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Francisco Amaral Doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra e Católica Portuguesa. Professor Titular de Direito Civil e Romano na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro Da Academia Brasileira de Letras Jurídicas Da Accademia dei Giusprivatisti Europei CAPÍTULO IV DIREITO CIVIL O Direito Civil. Gênese e Evolução. INTRODUÇÃO Sumário: 1. direito civil. Conceito e importância. 2. Características do direito 3. o direito civil como produto histórico e cultural. Historicidade e continuidade. 4. A fase O direito romano. 5. direito Edição 6. direito germânico. 7. direito canônico. 8 direito comum (ius commune). 9. direito moderno. 10. Estado moderno na formação do direito civil, o Revista, modificada e aumentada Estado Liberal de Direito. 11. A sistematização do direito civil, o processo de codificação. 12. Código Civil 13. Código Civil alemão. 14. o direito civil brasileiro. Esboço 15. A codificação civil brasileira: a) antecedentes; b) Código Civil de 1916. Estrutura e características. 16. A reforma do Código Civil. 17. Código Civil de 2002. 18. A unidade do direito privado. 19. Conteúdo do direito civil. Os institutos fundamentais. 20. A personalidade. 21. A família. 22. A propriedade. 23. contrato. 24. A empresa.. 25. A responsabilidade civil. 26. A sucessão hereditária. 27. o direito civil Tendências e características. 1. direito civil. Conceito e importância Direito civil é conjunto de princípios e normas que discipli- nam as relações jurídicas comuns de natureza privada. É o direito RENOVAR privado comum, geral ou De modo analítico, é o direito Rio de Janeiro São Paulo Recife que regula a pessoa, na sua existência e atividade, a família e pa- 2008 Respeite trimônio. Ritter dos Reis 1 Clóvis Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Comentado, p. 63.134 Direito Civil Introdução 0 Direito Gênese e Evolução. 135 É direito privado porque se baseia na igualdade jurídica e no poder de autodeterminação das pessoas que intervêm nas relações talização das reiteradas decisões dos magistrados romanos, em face jurídicas, objeto de sua disciplina, e é comum ou geral, porque suas de casos concretos. A base do direito da chamada civilização ociden- normas aplicam-se de modo uniforme a todas essas relações, disci- tal é o direito romano, do qual nos vieram as noções funda- plinando a realidade social como um mentais, o método e os principais institutos, principalmente em ma- A importância do direito civil manifesta-se em diversos aspectos. téria de obrigações. Em primeiro lugar, constitui a base do ordenamento jurídico de É um direito estável em comparação com os sistemas de direito todas as sociedades. É direito comum por excelência, dele nascen- público, variáveis no tempo e no espaço, ao sabor das modificações do outros ramos, outras disciplinas de natureza especial, que a ele políticas e ideológicas, que justificam as mudanças nas estruturas do continuam ligadas, quer pela existência de princípios fundamentais poder, mantendo direito civil, ao longo dos séculos, uma linha de comuns, quer pela aplicação subsidiária de suas normas, como continuidade histórica nos seus aspectos formais e materiais. As suas re com direito comercial, hoje direito empresarial, direito do principais instituições, que hoje disciplinam a nossa vida em socie- trabalho, direito econômico, direito agrário, direito previden- dade, como a personalidade, a família, a propriedade, O contrato, a ciário etc. Em segundo lugar, seu espírito e sua técnica têm in- herança e a responsabilidade civil, são idênticas às que, guardadas fluenciado profundamente os demais ramos da ciência jurídica. É as inevitáveis modificações resultantes do progresso social, já exis- no direito civil que a técnica jurídica, conjunto de processos que se tiam em Roma e na Idade Média. Consagrando valor fundamental utilizam na determinação do direito, mais se desenvolveu, conti- da pessoa, é direito civil O setor jurídico onde mais lentamente nuando a ser a espinha dorsal da ciência próprio Esta- repercutem as mudanças sociais e as revoluções políticas, pois nele do, no exercício de sua atividade econômica, a ele se submete. não existem diferenças de poder e de hierarquia, predominando os valores da igualdade e da liberdade. Apresenta-se, assim, como de- positário dos valores e das tradições nacionais, mantendo-se ao lon- 2. Características do Direito Civil go dos tempos como produto da história social e cultural de um povo,4 que não impede que se constitua, quando necessário, em O direito civil apresenta características que o diferenciam dos instrumento de reforma e de institucionalização de processos de demais ramos de direito. mudança social. É um direito de formação histórica e jurisprudencial, estável, É um direito altamente desenvolvido porque em nenhum outro a altamente desenvolvido em sua técnica, personalista e técnica alcançou tão grande aperfeiçoamento, elaborando regras, É direito de formação histórica porque, arrancando das mais antigas princípios, conceitos, categorias e construções jurídicas que, por tradições e práticas costumeiras dos romanos, ius quiritium, veio se sua amplidão e generalidade, se aplicam a todos os ramos do direito. formando, ao longo dos séculos, com a contribuição de vários povos Sua técnica e seu espírito servem de base a toda atividade jurídica, e É jurisprudencial porque suas normas resultam da cris- tendo sido nele também que se desenvolveram os métodos de cria- ção e de realização, próprios dos juristas. É um direito personalista na medida em que tem por objetivo a 2 Orlando Gomes. Introdução ao Direito Civil, p. 29. Pietro Rescigno. Manuale di diritto privato italiano, p. 4. proteção da pessoa e dos seus interesses de ordem familiar e patri- monial. A pessoa é centro e a razão de ser da ordem jurídica civil, 3 José De Mozos. Derecho Civil p. 49; Franz Wieacker. História do que se baseia no princípio da dignidade da pessoa humana e tem Direito Privado Moderno, p. 1 ss.; Federico de Castro-y Bravo. Derecho Civil de p. 108 José Castan Derecho Civil Español, Comum y Foral, I, p. 128 como expressão imediato os chamados direitos da personalidade Ludwig Tratado de Derecho Civil, I, p. 1 ss.; Georges Ripert et (CC, arts. 11 a 21). Fundamento ideológico do direito civil é, histo- Boulanger. de droit civil, p. 34 ss.; Erich Molitor e Hans Schlosser. Grund- Jean züge der Neueren Privatrechtsgeschichte (Perfiles de la Nueva Historia del Derecho Priva- Introducción al Derecho Civil, p. 41 do), p. 9 Francesco Medio evo del diritto, I, le fonti, p. 503 ss.; José Puig 4 Cf. Hans Hattenhauer. Die geistesgeschichtlichen Grundlagen des deustschen Rechts (Los Fundamentos Históricos Ideológicos del Derecho Aleman), p. 199; Francesco Calasso, Storicità del diritto, p. 260136 Direito Civil Introdução 0 Direito Gênese e Evolução. 137 ricamente, O individualismo, temperado, hoje em dia, pelas preocupações da ética que justificam o princípio da sociali- fluindo, ao longo do seu processo de formação, principalmente os dade do Código Civil (V. Capítulo II, item 3). Exemplo desse indivi- que se verificam no seu estágio atual, de significativas mudanças. E dualismo seria enunciado do art. 1.228, caput do Código Civil, que é importante também pela perspectiva que oferece das relações en- estabelece O conceito e conteúdo do direito de propriedade como tre sistema jurídico e os demais subsistemas que formam a socie- direito subjetivo absoluto por excelência, hoje relativizado pela dade, como político e é de re- função social que a Constituição da República exige (art. XXIII) cusar-se toda a argumentação que se desenvolva em termos de pura sitivo. e Código Civil regulamenta nos diversos parágrafos desse dispo- lógica, ou limitada à perspectiva da ciência do direito como pura dogmática, separada da realidade que a justifica. As estruturas jurí- É um direito liberal porque consagra, como um de seus valores dicas não são neutras, e os sistemas de direito não se constituem em fundamentais, a liberdade da pessoa humana. Essa liberdade tra- instrumentos técnicos para fins de qualquer natureza, mas para a duz-se em uma esfera de autonomia reconhecida no indivíduo, de realização dos valores essenciais da sociedade de que resultam. O que são principais manifestações direito de propriedade e a auto- estudo do direito civil e, particularmente, do direito civil brasileiro, nomia da vontade, esta revelada em várias facetas, principalmente deve, portanto, levar em conta a realidade que faz nascer, não na área do contrato,6 observadas as limitações legais de cada sistema somente os aspectos formais de suas instituições, pois direito se jurídico. torna incompreensível com exame apenas de suas normas e sem É, por tudo isso, considerado direito da sociedade civil, enten- a necessária perspectiva histórica e dendo-se esta como a esfera de relações econômicas ou materiais A compreensão do conceito, natureza, conteúdo e característi- entre indivíduos ou grupos, fora do âmbito do poder cas do direito civil exige, assim, breve notícia que esclareça as causas e os modos de sua formação histórica e sistemática, levando-se em conta as circunstâncias de ordem cultural, política e econômica que 3. direito civil como produto histórico e cultural. Historicidade e presidiram à sua gênese e ao seu processo De tudo isso resulta que direito civil, por sua origem e evolu- ção, é um direito jurisprudencial no sentido de que se formou pelas O direito civil é, antes de tudo, um fenômeno cultural, em que reiteradas decisões dos juízes romanos, transformando-se, por notá- predominam as notas da historicidade e da Historici- vel esforço de abstração, em regras fixas e gerais que vieram a cons- dade no sentido de que se formou gradativamente, desde os primór- tituir-se no direito positivo (ius in civitate positum) de cada povo, e dios da civilização ocidental até transformar- se em um dos mais doutrinário, porque também resultante da elaboração científica dos importantes ramos da ciência jurídica. pelo fato de juristas sobre tal matéria, coordenando-a e sistematizando-a. ter-se mantido como processo constante e, de certo modo, unifor- Nesse processo evolutivo do direito civil podem distinguir-se me, na maneira de solucionar os problemas que lhe são próprios, quatro fases: a do direito romano, a do direito medieval, com direito revelando a existência de princípios fundamentais a orientar a gê- germânico e o direito canónico, a do direito moderno e a do direito nese e a realização de suas normas. contemporâneo. Creio ser impossível uma perfeita compreensão do fenômeno jurídico, principalmente do direito civil, sem recurso à investiga- ção histórica, que permite identificar os fatores que nele vêm in- 7 Entenda-se aqui a dogmática jurídica como a idéia segundo a qual o direito se apresenta como construção jurídica, lógica, racional e sistematizada, obe- diente ao princípio positivista de que objeto da ciência do direito são apenas as normas positivadas (dogmas), independentemente da realidade social subja- 5 Larenz/Wolf. Allgemeiner Teil des Bürgerlichen Rechts, p. 34 cente. Cf. Enrique Aftalion, Fernando Garcia Olano e José Vilanova. Introduc- 6 Orlando Gomes. Autonomia Privada, in Enciclopédia Saraiva do Direito, vol. ción al Derecho, p. 878 Niklas Luhman. Rechtssystem und Rechtsdogmatik (Siste- 9. p. 258; Alex Weil et François Terré. Droit civil, les obligations, p. 53 ss.; Boris ma jurídico y dogmática social), p. 27 Carlos Santiago Nino. Introducción al Starck. Droit civil, obligations, p. 341 Analisis del Derecho, p. 321 V. Cap. I, nota 83. 8 Pietro Barcellona. Diritto privato e processo economico, p. 35. 3138 Direito Introdução 0 Direito Gênese e Evolução. 139 4. A fase direito romano época. O ius civile como direito quiritário, exclusivamente romano, Entende-se como direito romano O conjunto de princípios e dos cidadãos romanos, tendo como fonte as sentenças proferidas normas que vigoraram em Roma e seus territórios desde a criação pelos jurisconsultos clássicos, disciplinava as relações de natureza da cidade, em 753 a.C., até à morte do imperador Justiniano, em privada, ainda que não exclusivamente, pois continha normas de 565. Direito vigente por treze séculos, com fases diversas, conforme direito penal, processual e administrativo. as variações ocorridas no sistema econômico e não foi um A segunda fase acompanhou as alterações econômico e sociais todo unitário, mas um processo evolutivo que nasceu, desenvolveu- que a sociedade romana sofreu após as guerras púnicas. As conquis- se, atingiu apogeu e decaiu, até compilar-se no Corpus iuris civilis. tas dos exércitos de Roma, criando O império, fizeram com que os Embora com raízes na religião e na magia, foi um direito laico, uma antigos romanos, simples agricultores do Lácio, se tornassem, no criação humana, não um reflexo da lei Caracterizou-se curto período de 60 anos, dominadores do mundo antigo e herdei- como um direito flexível, elaborado principalmente pelos magistra- ros das mais florescentes civilizações. As práticas do tráfico mercan- dos (pretores, cônsules, edis curuis, censores, questores) que, realistas, ja- til de Roma com suas colônias e com novas formas de vida, passaram mais se deixaram seduzir pelas estritamente lógicas a exigir um novo direito civil, mais flexível, mais atuante, sem a de princípios gerais. Seus cultores, dotados de espírito analítico, rigidez dos antigos princípios quiritários. O direito perde a impre- elaborarem todos os conceitos e distinções necessárias ao raciocínio cisão característica da época arcaica e alcança O ponto de maior jurídico, devendo-se-lhes a distinção entre as situações de fato e as exatidão e grandeza. Começa seu período clássico, assim chamado situações de direito. Era também um direito econômico, simples, por ser a fase dos grandes jurisconsultos. Roma perde as caracterís- que procurava realizar-se com menor número possível de fontes ticas rurais, tornando-se uma cidade cosmopolita, centro do co- mércio enriquecendo-se direito com novas categorias, O ponto de partida é o ius civile, o direito dos cidadãos romanos, próprias de um sistema comercial de trocas, substituindo-se O forma- os cives, direito baseado nos costumes dos antepassados (mores maio- lismo pela simplicidade e celeridade dos atos jurídicos. rum), com sua primeira formulação legal na Lei das XII Tábuas, a No ano 367 a.C. surgiu urbanus, magistrado encarrega- primeira codificação romana, assim chamada por ter sido apresen- do da jurisdição civil. Suas decisões constituíram ius ou tada em doze tábuas de bronze, no Forum romano, em 499 a.C. ius honorarium, de honos, honra, significado técnico da função con- Na primeira fase, chamada de antiga ou arcaica, que vai da cria- ferida ao magistrado pelo povo ius honorarium era uma ção de Roma até começo das guerras púnicas, no século III a.C., a evolução do direito romano, no sentido de conjugar a criação do sociedade romana era simples e rústica. A propriedade dividia-se direito com a sua realização. Sua distinção relativamente ao ius civile entre os chefes de família, conforme os interesses da agricultura, a foi uma das características da época clássica (130 a.C., 230 d.C.), base da No direito, imperava formalismo jurídico. A representando a consolidação, apogeu e a exatidão do direito ro- simples manifestação de vontade não bastava para que o ato produ- mano. zisse efeitos jurídicos, exigia-se a observância de determinados ritos, Aspecto a destacar-se em um livro de introdução ao direito civil, palavras, gesto, sob pena de ineficácia. direito era, assim, formal é o de que em Roma direito nascia da prática. A justiça romana e solene, do que são exemplos a mancipatio, nexum, a ou começou a funcionar sem leis que a que foi, aliás, iuris civilis, a actio A Lei das XII Tábuas e o ius uma das causas da grandeza do direito Enquanto ius civi- civile, criado pela jurisprudência dos eram a expressão da le, antigo direito, resultava dos tradicionais costumes dos primei- ros cidadãos romanos, e eventualmente da lei, o ius honorarium era produto da atividade judicante do magistrado que, além de aplicar 9 Sebastião Direito Romano, in Polis-Enciclopédia Verbo da Sociedade e ius civile (iuris civilis adjuvandi gratia), completava-lhe as normas do Estado, vol. 2, p. 558. 10 Rene Robaye. Le droit romain, p. 8. 11 Idem, p. 9. 12 Michel Tigar e Madeleine R. Levy. Direito e a Ascensão do Capitalismo, p. 28. 13 Michel Villey. Le droit romain, p. 21. 4140 Direito Civil Introdução 0 Direito Civil. Gênese e Evolução. 141 (iuris civilis suplendi gratia), ou até o reformava (iuris civilis corrigendi o direito das relações comerciais e instrumento da nova classe Pode assim reconhecer-se que O ius civile nasceu "ex legibus, ascendente: a dos comerciantes e mercadores. plebis scitis, senatus consultis, decretis principum, auctoritate prudentium", A terceira e última fase, a partir do século III (230 d.C.), carac- enquanto O ius honorarium era um direito eminentemente jurispru- O direito romano assim, como um direito teriza-se pela vulgarização do direito romano, isto é, a sua expansão por todas as províncias do império. Esse direito deixa de ser nacio- casuístico, nascido menos da aplicação de leis que do estudo e da análise dos casos concretos, segundo princípio do bom e do equi- nal e passa a direito universal, com prejuízo do pensamento e da técnica jurídica da época clássica. Influenciando ou até sendo ado- tativo (D. 1,1,1,1: "Ius est ars boni et Na mesma época surgiu O ius gentium. O caráter exclusivo do ius tado por todos os povos do continente europeu, passa a ser O direito civile, destinado somente aos cidadãos de Roma, impedia que a ele comum ou vulgar, mandado compilar em 565 pelo imperador Justi- niano no Corpus iuris civilis. recorressem os estrangeiros, os não-romanos, os peregrini. Ora, cada vez mais os juízes eram chamados a resolver conflitos de interesses, Do final do século IX a meados do século XII, reduz-se a impor- a disciplinar relações jurídicas entre os romanos e os estrangeiros tância do direito romano e aumenta a do costume como principal fonte de direito. Com O advento do humanismo no século O (civis romani e peregrini), dada a complexidade do tráfico mercantil direito romano objeto de verdadeiro Duran- no Mediterrâneo. No ano 242 a.C. institui-se cargo de pere- grinus, juiz para os estrangeiros, de cuja atividade resultou ius te a alta Idade Média, ele é conhecido principalmente por meio do Código Teodosiano, do qual o direito visigótico (Breviário de Alari- gentium. O ius civile, direito dos cidadãos, opunha-se, desse modo, ao co) recebeu grande contribuição. ius gentium, direito dos estrangeiros. Com este, obra do pere- grinus, O direito romano vai assimilando novos elementos e sobre- O legado do direito romano está presente na cultura ocidental, constituindo-se em fator de unidade para os países de direito escri- pondo-se às suas características nacionais, para converter-se, pro- to. Manifesta-se em princípios fundamentais, como a liberdade, no gressivamente, em um direito comum e Nasceu, assim, um novo direito romano, um ius civile isento de sentido de uma esfera de atividade própria de cada indivíduo e, formalismo, aplicável aos romanos e estrangeiros na disciplina de especificamente, em alguns institutos de direito civil, como a perso- suas relações comerciais. Apresentando-se como direito comum e nalidade, a família, as obrigações, os direitos reais e a sucessão. Da universal, invocável por todos os que se encontravam no crença na liberdade surgiu princípio da autonomia da vontade e romano, surgia como direito natural, um direito de todos os parti- a propriedade, como direito subjetivo absoluto. cipantes do comércio mediterrâneo que nele viam consagrados al- No que respeita à personalidade, O direito romano protegia gumas de suas práticas. Com ele surgiam diversos institutos ainda concebido ainda não nascido, reservando-lhe os direitos, especial- vigentes, como as arras ou sinal nos contratos, a promessa unilateral mente sucessórios, que ficavam dependendo do nascimento. Dizia- obrigatória, germe da liberdade de comércio, aperfeiçoamento se, por isso, que os concebidos se assemelhavam aos já nascidos, dos contratos de compra e venda, de depósito, de sociedade, os (nasciturus pro iam nato habetur quotiens de eius commodis agitur, ou negócios fiduciários, os contratos de boa-fé. O ius gentium foi, assim, então, que in utero sunt in toto paene iure civili intelleguntur in rerum natura esse) (D. 1, 5, 26). Esse preceito conserva-se no art. 2° do nosso Código Civil, que dispõe: "A personalidade civil do homem começa 14 R. Sohm. Instituciones de Derecho Privado Romano, p. 71. do nascimento com a vida, mas a lei a salvo, desde a concepção, 15 Ex legibus, plebis scitis, senatus consultis, decretis principum, auctoritate prudentium os direitos do nascituro", embora com divergência a (o direito civil nasce das leis, dos plebiscitos, das decisões do senado, das deci- do imperador, da ciência do direito), D. 1. 1, 7. 16 Peter Stein. Le droit romain et l'Europe. Essai d'interprétation historique, p. X. 18 Albert Rigaudière. Introduction Historique à l'étude du Droit et des Institutions, 17 Puig Brutau, p. 51. Sobre os institutos remanescentes no direito contempo- p. 168. i râneo, no campo processual, cfr. J.M. Othon Sidou, Processo Civil Comparado, p. 19 Do Autor, o Nascituro no Direito Civil Brasileiro. Contribuição do Direito Portu- 61 SS. guês, in Revista Brasileira de Direito Comparado, n° 8, p. 75 SS.142 Direito Civil Introdução 0 Direito Gênese e Evolução. 143 Em matéria de família, as fontes romanas tinham duas defini- ções de casamento, uma de Modestino (D. 23, 2, 1) e outra de fruendi, abutendi). Sendo hoje direito subjetivo por excelência, e piano, Seus requisitos de existência e validade permanecem elemento básico do direito patrimonial, sua estrutura, conteúdo e no direito com as modificações impostas pelo pro- função permancem como no direito romano, guardadas as modifi- cesso histórico, em que se destaca a influência do direito cações decorrentes da evolução histórica. Aspecto peculiar do casamento romano, pelo menos na época clás- Finalmente, no direito das sucessões, testamento (testamen- sica, era ser um ato que dispensava a intervenção dos poderes públi- tum) permanece como "ato solene de última vontade que produz cos, não estando submetido a formalidade de qualquer espécie. efeitos past-mortem do testador. "À parte as velhas formas prescritas Quanto à adoção, ato civil pela qual alguém aceita estranho como pelo ius civile, a substância persiste em nosso direito, cuja compreen- filho,20 direito romano admitia duas espécies, a plena (adoptio ple- são postula conhecimento do testamento romano". na), quando feita por um ascendente do adotado, desligando-se este No Código Civil brasileiro de 1916, quatro quintos dos seus completamente da sua família de origens, e a simples (adoptio minus 1.807 artigos, ou seja, 1.445, eram produto da cultura romana, dire- plena) quando O adotado permanecia sob poder de seu pai natu- tamente da compilação justiniânea ou indiretamente, por meio das ral, adquirindo somente um direito sucessão legítima sobre os bens legislações que nelas se nutriram e depois se constituíram em fontes da codificação do adotante (C. 8, 47). O direito brasileiro contemporâneo também distingue a adoção plena, em que menor, com menos de 18 anos, passa a ser, irrevogavelmente, filho dos adotantes, desligado de 5. Direito Medieval qualquer vínculo com os pais de sangue e parentes originários, da adoção simples ou restrita, em que O adotado é maior de 18 anos, não sendo a sua nova posição de filho definitiva ou irrevogável. O Códi- Costuma-se considerar a Idade Média como período que vai go Civil brasileiro (art. 1.728) também recepcionou a tutela do di- da conquista de Roma até à queda de Constantinopla, sede do Im- reito romano, no qual instituía-se por testamento (tutela testamen- pério Romano do Oriente (476-1453 d.C.). Caracteriza-se O direito tária), por lei (tutela legítima) ou pelo magistrado (tutela dativa), civil dessa época pela permanência do direito romano como direito espécies que direito contemporâneo mantém. comum, pelo surgimento dos direitos civis nacionais e pela criação No campo das obrigações têm especial interesse os contratos, das bases ou pressupostos culturais e científicos do direito privado sendo a compra e venda (emptio venditio) primeiro na disciplina do Para alguns juristas, porém, a experiência jurídi- ca medieval é autônoma e distinta da Código Civil, por sua importância e Em nosso direito, esse contrato tem eficácia meramente obrigacional, à semelhança Com a queda de Roma (476 d.C.) e a deposição do último im- do que ocorria no direito romano e diversamente do que ocorre no perador do Ocidente, Romulo Augustulo, acabava Império Roma- direito francês e nos direitos por esse influenciado. A fiança tinha no do Ocidente, substituído por uma série de reinos bárbaros e, no direito romano, como no contemporâneo, a função de garantir depois, por uma pluralidade de cidades, nações e estados inde- O cumprimento das obrigações. Nas relações entre credor e fia- pendentes, cada um com seu direito particular, os estatutos, os fo- dor, a este era assegurado benefício de ordem ou de excussão ros, os costumes. Separava-se política e culturalmente Ocidente do (beneficium excussionis) (CC, art. 827), e benefício de divisão (bene- Oriente, e naquele, direito romano perdia sua vigência como or- ficium divisionis (CC, art. 829). vez fiador que pagasse in- denamento jurídico positivo até ser redescoberto no século XII, tegralmente a dívida, sub-rogava-se nos direitos do credor (D. 46, 1, quando passou a ser considerado direito comum (ius commune), con- pr.), que direito brasileiro também consagra (CC, art. 831). junto de elementos de direito romano, canônico e germânico, assim Em matéria de direito reais, a propriedade tinha um conteúdo complexo, reunindo as faculdades de usar, fruir e dispor (ius utendi, 21 Antonio Santos Justo, Direito Romano em Portugal, p. 290. 22 Abelardo Lobo. Curso de Direito Romano, vol. I, p. LI. 23 Franz Wieacker, p. 1. 20 Silmara I. A. Chinelato e Tutela Civil do Nascituro, p. 33. 24 Paolo Grossi. El Orden Jurídico Medieval, p. 48. 6144 Direito Civil Introdução 0 Direito Civil. Gênese e Evolução. 145 chamado porque era geral, sendo direito de cada unidade territo- rial um direito particular (ius proprium). Da combinação de ambos dade, onde predomine bem comum sobre a vontade dos indi- surge direito territorial (ius compositum), germe dos direitos civis víduos. Já o elemento canônico é responsável pelo processo de De qualquer modo, durante a Idade Média, direito civil espiritualização do direito, com preocupações éticas e idealistas, é direito como demonstram a sacramentalização do matrimônio, a doutrina As sucessivas invasões dos bárbaros, estado de permanente in- da posse, elemento da boa-fé em matéria de usucapião (v. item 7, seguinte). a ausência de um governo central e de um sistema de defesa, como garantido pelos exércitos romanos, levavam as pes- Com decurso do tempo e as transformações políticas e sociais, soas a solicitar a proteção dos mais ricos e poderosos, normalmente o direito civil passa a ser considerado direito privado dos povos, os senhores de terras, os suseranos, com quem estabeleciam rela- decorrente da nacionalização que cada estado faz do direito roma- ções de vassalagem. Em troca de proteção e assistência econômica, no comum, e, como direito privado especial, direito dos comer- os vassalos obrigavam-se a servir ao seu senhor, compensando-o com ciantes e mercadores, consolidando seus usos e costumes e sua juris- O pagamento de impostos correspondentes ao amparo que ele lhes dição específica, pela necessidade de segurança e rapidez das opera- Criava-se, desse modo, uma relação contratual, de obrigações ções mercantis, a exigir, por isso mesmo, um direito mais flexível. recíprocas, que veio a caracterizar regime feudal, um sistema de organização econômica, política e social baseado nos laços de de- 6. direito germânico pendência e de serviço, sobretudo militar, da parte dos vassalos para com senhor, e das obrigações de proteção e sustento da parte deste para com Com regime feudal surgem os direitos Outra contribuição significativa para a cultura e direito co- particulares, os estatutos de cada cidade, nação ou estado (ius pro- mum europeus, se bem que inferior ao direito romano, foi a do prium), que, incorporando sobre fundo comum do direito romano elemento germano-feudal, que nos chegou por meio dos povos ger- novos elementos, como germânico e canônico, vêm a formar a mânicos que dominaram a Península Ibérica, dentre os quais mais base do direito civil importante foi dos Aproveitando-se da queda do Im- Com a recepção, nome que se dá à adoção, pelos estados na pério Romano do Ocidente, esses povos dominaram a Península Idade Média, do direito romano, passa este a ser direito comum, Ibérica (Hispânia) até a invasão dos em 711, conviven- aplicável na maior parte do continente europeu. Mas do, nesse território, os Visigodos, os Vândalos, os Suevos e os Alanos, não só direito romano se faz presente; existe ainda a influência do povos germânicos, e os conquistados "em que entravam os indíge- direito germânico e do direito Enquanto direito roma- nas Celtiberos, Cantábricos, Lusitanos, e um misto de Fenícios, Car- no é individualista, colocando no centro do sistema jurídico o indi- tagineses e Romanos, população esta que se reputava romana, por- víduo e sua liberdade, O direito germânico é social, no sentido de que de há muito vivia e regia-se pela legislação de Roma" considerar mesmo indivíduo como participante de uma comuni- Uma das principais contribuições do direito germânico foi princípio da personalidade ou da nacionalidade das leis, pelo qual cada povo regia-se por seu direito próprio, isto é, direito da sua 25 De Los Mozos, p. 69. No direito, as principais fontes eram Breviário de Alarico 26 José Feudalismo, in Polis-Enciclopédia Verbo da Sociedade e do ou Lex Romana Visigothorum (ano 506), e o Código Visigótico, nas Estado, vol. 2. p. 1.114; Edward Mcnall Burns. História da Civilização Ocidental, I, suas versões de Recesvindo (ano 654) e Ervígio (ano 681). "O Códi- p. go Visigótico resultava de três correntes jurídicas, a romana, a ger- 27 Ubi statuta habet locum ius civilis (onde cessa a eficácia dos estatutos mânica e a canônica", tendo sido preponderante a romana. De- locais aplica-se direito civil ou comum) Baldus de Ubaldis (1327-1400), apud Diez-Picazo, p. 46. direito comum era direito romano, em contraposição aos direitos locais, estatutários, de cada região ou lugar, de aplicação subsidiá- 28 Mário Júlio Almeida Costa, História do Direito p. 101. ria. Erich Molitor-Hans Schlosser, p. 27. Cf. Braga da Cruz. o Direito Subsidiário na História do Direito p. 266. 29 Cândido Mendes de Almeida, Código Filipino, 1870, p. XIII. 30 Almeida Costa, p. 106. Nuno Espinosa Gomes da Silva, p. 83146 Direito Civil Introdução 0 Direito Gênese e Evolução. 147 monstra isso fato de Breviário de Alarico ser muito mais uma seleção de textos de direito romano, leges e iura, do que de direito Em matéria sucessória, não se considerava a herança uma uni- versitas rerum, como no direito O herdeiro respondia pelas Quanto à influência que poderá ter tido no direito medieval dívidas da herança até limite dos bens que a formavam, O que português e, por meio deste, no direito brasileiro, particularmente corresponde ao nosso benefício de civil, destacam-se os seguintes aspectos. No campo da personalida- de, a compreensão da pessoa "em sua natureza moral e jurídica, em 7. direito canônico sua liberdade e honra, de um modo mais profundo que nenhum outro foro", que foi fortalecido pelo cristianismo, e realçado pela reforma protestante, que "reconheceu a pessoa em sua dignidade e direito canônico é direito da Igreja Composto de liberdade moral e Também a distinção entre pessoas físi- princípios e regras (Kanon) que as autoridades eclesiásticas estabe- cas e jurídicas, matéria em que direito romano, com os conceitos leceram para a organização da Igreja e disciplina das relações dos opostos de communio e universitas não era suficiente para as necessi- esse direito formou-se gradativamente, a partir de um Concí- dades da vida econômica e social. No campo dos direitos reais, lio, em Jerusalém que estabeleceu normas fundamentais, reconhecimento de uma propriedade sobre direitos, idéia que veio notadamente as que liberavam os cristãos dos ritos do judaísmo (por exemplo, a a ser reconhecida pelos códigos modernos. Também a distinção en- tre posse e propriedade, distinta da concepção romana. A posse direito canônico é uma síntese do direito romano, das regras germânica (gewere) como proteção jurídica, onde ressaltava ele- jurídicas do antigo testamento e dos preceitos éticos dos Pais da mento objetivo da proteção, diversa da posse romana, em que predo- Igreja. Surgido como direito costumeiro, foi inicialmente um direi- minava a relação subjetiva de uma pessoa a uma coisa. Também to interno, aplicável somente aos religiosos, vindo a adquirir uma reconhecimento da propriedade comum e dividida, ou de exercício importância geral pelo caráter ecumênico da igreja e regime simultâneo por vários titulares, que não se confundia com condo- confessional dos antigos estados europeus, onde a religião era inti- minium Diversamente do direito romano, que definia a mamente ligada aos poderes públicos e à Sua influên- propriedade (dominium ou proprietas) como um conjunto de facul- cia manifesta-se em diversos institutos. No campo dos princípios ge- dades jurídicas (utendi, fruendi, abutendi) titulado de modo se não rais, princípio da não-retroatividade das leis, decorrente do prin- absoluto pelo menos individual, direito germânico sempre defen- cípio de origem romana Leges respiciunt futura non praeterita, sempre deu a idéia da propriedade comum. em vigor no direito da está presente no direito No campo do direito das obrigações, "o direito germânico não no direito e no penal.40 estado de necessidade vem do direi- apresentava nenhuma dificuldade para admitir a substituição de uma pessoa por outra" na relação jurídica obrigacional, sendo assim preponderante respectivo conteúdo material e objetivo, diversa- 32 Enrique Ahrens, Historia del Derecho, trad. de Francisco Giner Y Augusto Linares, p. 324. mente do que se verificava no direito romano em que não se admitia a mudança subjetiva na obrigação. 33 Antonio Manuel Hespanha. Panorama Histórico da Cultura Jurídica p. 84. No âmbito do direito de família matrimônio era um vínculo sagrado, a que cristianismo deu caráter de sacramento. Os regi- 34 Aloísio Surgik. Direito Canônico in Enciclopédia Saraiva do Direito, vol. 25, p. 392. mes de bens eram três: da reunião de bens, em que os dos cônju- ges permanecial separados, embora externamente reunidos e sub- 35 Antoine Leca. La genèse du droit (Essai d'Introduction historique au Droit), p. 155. metidos à administração e usufruto do marido, da comunhão geral 36 Idem; p. 157. ou parcial, e sistema dotal romano, modificado. 37 Código de Direito Canônico, 1983, cap. 9: "As leis se referem ao futuro e não ao passado". 38 Constituição da República, art. XXXVI. 31 Gomes da Silva, p. 70. 39 Lei de Introdução ao Código Civil, art. 8148 Direito Civil - Introdução 0 Direito Gênese e Evolução. 149 to canônico. Com base nas os canonistas foram levados casamento consagrada no Ocidente pela Decretal tan- a admitir furto de alimentos em caso de necessidade extrema. A ta est vis matrimonii, de Alexandre III. máxima necessitas non habent lege figura no Decreto de Graciano (D. Nos direitos reais, para caso de espoliação com violência, é de 1. 11.). O direito canônico contribuiu ainda para a moralização direito canônico princípio Spoliatus ante omnia restituendus, segun- das relações privadas, embora tenham sido os juristas pagãos os pri- do qual quem for espoliado deve reintegrar-se na posse, antes de meiros a defender que direito era ars boni et aequi, como dizia Celso qualquer procedimento. A instituição do remedium spolii ou actio spo- (D. 1, 1, 1, pr.). Contribuiu, também, para o fortalecimento de prin- lii está na origem da reintegração cípios gerais como do enriquecimento sem causa,4 (CC, arts. 884 a No direito das obrigações, em vez da forma, a valorização da 886), e abuso do direito (CC, art. 187).43 Os princípios canônicos, vontade, expressa nos princípio do consensualismo e da obrigato- entretanto, sempre se opuseram à reparação do dano corporal, jul- riedade contratual. É O sentido das duas máximas célebres solus con- gado incompatível com a idéia do caráter sagrado do corpo huma- sensus obligat e pacta sunt servanda. Também a regra Rebus sic stanti- no, fora de Foi preciso chegar-se à Revolução Industrial, bus, tirada do Decreto de Graciano (Decreto, XIV, 2), que libera com O progresso da máquina e a multiplicação dos acidentes de O devedor de uma prestação que se tornou muito onerosa; a subor- trabalho, para que legislador O introduzisse no direito francês. No dinação da validade dos contratos a uma causa moral e lícita; a con- direito brasileiro, esta matéria regula-se pela Lei n° 8.213, de denação da usura. E ainda, no campo legislativo, a idéia da genera- 24.7.1991 (Lei dos Acidentes do Trabalho). O princípio da inviola- lidade da lei desenvolvida pela doutrina canônica da segunda meta- bilidade do corpo humano, fora de comércio, vem diretamente do de do século XII; a idéia de que as leis não são obrigatórias senão provérbio Noli me tangere (Não me toquem), tirado da palavra de depois da sua publicação;50 e ainda a regra segundo a qual na con- Cristo ressuscitado segundo Maria Madalena (João, XX, 17).45 Está tagem do prazo, não se conta O dia inicial (CC, art. 132) (dies a quo hoje no Código Civil (arts. 13 e 15). non computatur in termino), forjado pelos romanistas medievais a par- também notória a influência do direito canônico em matéria tir de uma passagem do Digesto,5 e ainda O adágio speciala generali- de casamento e das relações pessoais entre 46 O casamento bus derogant, consagrado no Também a redação dos atos do civil é hoje, como no direito canônico pós-concílio de Trento, um estado civil, estabelecida pelo Concílio de Trento para O batismo e ato consensual, público e solene, celebrado na presença de várias e a noção de pessoa moral, que deve muito à doutri- testemunhas (CC, art. 1.534). casamento monogâmico, os impe- na do século XIII.54 dimentos matrimoniais do parentesco uso da alian- No campo processual, a mudança "dos primitivos e bárbaros ça, a necessidade do consentimento recíproco, a teoria dos vícios do processos de prova dos germanos; a necessidade do processo escrito, consentimento e a oposição ao casamento são herança direta do com os tramites de citação, de produção de documentos, da prova direito canônico medieval, assim como O dever de fidelidade, a per- testemunhal etc.; O recurso de apelação; a utilização das expressões missão de separação de corpos a mensa et thoro), a separa- processus, processus iuris, processus judiciarius, em vez do judicium e da ção judicial, com a extinção da vida em comum, dos deveres conju- ordo judiciorum privatorum dos romanos".55 gais e do regime matrimonial. Também dever alimentar entre os parentes, principalmente os filhos,47 e a legitimação dos filhos pelo 47 Idem, arts. 1.694 e 1.696. 48 Código Civil de 1916, art. 353. 40 Constituição da República, art. XL. 49 Leca, p. 173. Código Civil, art. 1.210. 41 Provérbios, VI, 30; Mateus XII, 1-8. 50 Jean Gaudemet, apud Leca, p. 176, nota 185. 42 BGB, par. 812. 51 D. 5, 17, 1; Código de Direito Canônico, can. 203, p. 1. 43 BGB, par. 138/2 e 226. 52 Sexto, V, 12, 34. 44 Leca, p. 169, nota 128. 53 Leca, p. 176. 45 Idem, ibidem. 54 Idem, p. 177. 46 António Manuel Hespanha, p. 86. 55 Isidoro Martins Junior, de História Geral do Direito, XI.150 Direito Civil Introdução 0 Direito Civil. Gênese e Evolução. 151 8 direito comum (ius commune) mune era, então, uma categoria lógica, abstrata, designativa de um Os direitos romano, canônico e germânico conjugaram-se na conjunto de normas que valiam genericamente para todos, em con- formação de um direito comum (ius commune) (porque geral), contra- traposição às normas que valiam só para alguns. Configurava-se, des- posto aos direitos particulares (ius proprium) dos novos reinos, na- se modo, uma pluralidade de ordens jurídicas formadas de normas ções, territórios, cidades etc., que surgiram com a queda do Império de direito romano, canônico, germânico, feudal (própria dos feu- Romano do Esse direito veio a ser O elemento básico da dos que então já se haviam constituído), costumes locais, estatutos tradição romana na Europa medieval, constituindo a ligação entre estatutos corporativos, estatutos de direito marítimo, direito antigo e moderno. ordenamentos monárquicos etc. Surgiu, assim, dualismo ius com- Vários fatores contribuíram para a configuração desse direito. A mune e ius proprium, só se aplicando, de regra, aquele, no caso de queda e conseqüente fragmentação do Império Romano do Oci- lacunas neste. dente fizeram surgir reinos bárbaros, de origem germânica (Visigo- O'direito comum foi recebido em todo ocidente europeu, in- dos na Hispania, Francos na Gália, Lombardos na Itália etc.), reinos cluindo-se a Península Ibérica. Vários fatores favoreceram tal recep- esse interessados na formação do seu próprio direito (ius proprium), ção: 1) interesse político dos reis na aplicação dos princípios do verdadeiras ordens jurídicas,56 seu prejuízo da influência romana. O direito romano, 2) a insuficiência do direito consuetudinário vigen- direito privado romano permanecia direito das populações roma- te nos diferentes territórios, 3) a superioridade e perfeição técnica nizadas e os invasores germânicos mantinham os seus costumes an- do novo direito, 4) a obra jurídico-cultural das Universidades (Bo- vigorando já referido da personalidade do direito, lonha, Montpellier), que se transformaram em verdadeiros "focos segundo qual vencedor deixava que os vencidos vivessem segun- de romanismo jurídico", com a formação do "Estamento Letrado" e do seu próprio princípio aplicado sobretudo em maté- a difusão dos livros de ria civil e penal. Isso criava a necessidade de se determinar a lei Na Espanha, O direito comum foi recebido nos fins do século aplicável no caso de conflito entre pessoas regidas por ordens jurí- XII, por meio não só dos estudantes de direito que iam estudar na dicas diversas. As regras estabelecidas nessa matéria estão na origem Universidade de Bolonha, e dali voltavam com conhecimento do dos princípios do direito internacional privado direito romano, a influenciar posteriormente direito espanhol, Com a redescoberta do Corpus iuris civilis, no século XII, mais o como também dos textos jurídicos romanos do Corpus iuris civilis surgimento da Universidade de Bolonha, a criação da ciência jurí- dica por obra dos glosadores e, dos pós-glosadores usados pelos juristas e legisladores. No campo da literatura jurídica, há que fazer referência a Jacome Ruiz, autor das Flores del Derecho, do ou comentadores. e também com restabelecimento do Sacro rio Romano, por Carlos Magno,60 surge a idéia de um direito uno, Doctrinal de los pleytos e os Nuevos tiempos del juicio, obras principal- direito romano, que retoma seu primado sob título de ius mente de direito processual civil romano.64 Quanto à produção le- gislativa, as principais leis eram Fuero Real (1255), no reinado de commune Esse direito seria "o complexo das instituições jurídicas que os povos da bacia mediterrânea tinham em comum". Ius com- Afonso X, Sábio, rei de Castela, e a Ley das Siete Partidas, assim chamada por ser dividida em 7 livros, e que se constituía em "uma grande enciclopédia do direito, em que se pretendia incluir todo 56 Idem, p. 421. saber jurídico da Essas obras são instrumento de pene- 57 John Gilissen, Introdução Histórica ao Direito, ed., tradução de A. M. Hes- tração do ius commune em Portugal, facilitado pelo fato de serem panha e M. Malheiros, p. 166. "escritas em idioma que facilita sua direta consulta ou tradução", 58 p. 167. 59 Idem, p. 168. 60 Francesco Calasso, Medio evo del diritto, p. 374. 62 Nuno Espinosa Gomes da Silva, História do Direito p. 229. 63 Ferrin e Arcilla, p. 19. 61 Emma Montanos Ferrin e José Sanchez Arcilla, del Derecho y de las Instituciones, II, p. 7. 64 Gomes da Silva, p. 229. 65 Ferrin e Arcilla, p. 19.152 Direito Civil Introdução 0 Direito Gênese e Evolução. 153 com resumos ou sínteses de soluções e refletirem "ambiente hispânico". ainda, a revolução protestante iniciada em 1517, na Alemanha, e a Revolução Francesa de 1789, para uns, ou a revolução industrial do A Siete Partidas tiveram grande influência no direito português, principalmente nas Ordenações Afonsinas, para as quais os legisla- séc. XIX, para outros. Caracteriza-se pelos importantes processos de natureza política, econômica, social, religiosa e cultural que nela se dores portugueses transladaram quase que literalmente leis inteiras da compilação espanhola.67 verificaram, dos quais os mais importantes, com profunda repercus- são no direito privado, foram a revolução comercial, a reforma reli- As subseqüentes Ordenações Manuelinas (1521) e Ordenações giosa, dos estados nacionais e dos governos ab- Filipinas (1603) não apresentam grande mudança, salvo em dois solutos, a revolução intelectual do racionalismo e desenvolvimen- pontos: direito comum mantém sua aplicação subsidiária não mais to do em função de qualquer vínculo com Império mas porque fundado A revolução comercial o processo econômico da fase originária do na razão (ractio scripta); a glosa de Acúrsio e a opinião de Bártolo capitalismo, com o comércio desenvolvendo-se por toda a Europa, vigem, na medida em que não sofrem contraste com a interpretação modificando a economia estática das corporações medievais e estabe- da doutrina que lhes é posterior, isso até à lei da Boa lecendo um regime dinâmico de operações com fins No que diz respeito ao direito brasileiro, as Ordenações Filipi- Com a expansão do comércio desenvolveu-se uma nova classe, a nas, cujo objetivo principal foi reunir, em um mesmo texto, as Or- burguesia mercantil, que iria ter grande papel no processo de evo- denações Manuelinas, a Coleção de Duarte Nunes de Leão e as leis lução política, econômica e jurídica da sociedade européia. Política a essa pouco apresentaram de inovação, mantendo porque "desejosa de paz e estabilidade, necessárias ao bom anda- direito comum como subsidiário. mento dos negócios, favoreceu a centralização do governo e for- talecimento do poder real". Econômica, por ser a base da criação e desenvolvimento do capitalismo. E jurídica porque com ela se con- 9. direito moderno sagrava individualismo como princípio fundamental da ordem ju- rídica moderna. A idade moderna é o período compreendido entre a queda de imediata da revolução mercantil é, assim, O ad- Constantinopla, em 1453, ou a descoberta dos novos mundos, ou vento do capitalismo, sistema econômico que se caracteriza pela propriedade privada dos bens de produção e de consumo. Seus tra- marcantes são a liberdade de iniciativa privada, a concorrência 66 Gomes da Silva, p. 229. e a atividade negocial com fins lucrativos, assim como desenvolvi- 67 Gama Barros, História da Administração Pública em Portugal, p. 127. mento do sistema bancário, a expansão dos instrumentos de crédi- 68 A Lei da Boa Razão, Lei de 18 de agosto de 1769, é, ao lado da Carta de Lei to, declínio das corporações, O surgimento da indústria e, como de 1772, que aprovou a reforma da Universidade de Coimbra, "o diploma de instrumento jurídico de larga dimensão, desenvolvimento das so- maior projeção e de mais trancendente significado" no processo de reforma ciedades por ações. À revolução comercial devem-se, portanto, instaurado pelo Marquês de Pombal, Sebastião José de Carvalho e Mello, no "quase todos os elementos que vieram a constituir regime capita- direito português. Com a Lei da Boa Razão operou-se "a reforma dos critérios de interpretação e integração das lacunas do direito", com a Lei da Reforma da lista" e, ainda, a "ascensão da burguesia ao poder econômico e Universidade, seu imprescindível complemento, promoveu-se "a reforma da lítico, início da europeização do mundo, entendendo-se como tal mentalidade dos juristas". A Boa Razão, razão natural ou razão justa era a recta transplante dos hábitos e da cultura européia para outros conti- ratio dos jusnaturalistas, "arvorada em supremo padrão da justiça e da felicidade nentes". dos povos". Cfr. Guilherme Braga da Cruz, Obras Esparsas, vol. II, p. 404. Como não podia deixar de ser, tal processo produziu efeitos de A Lei da Boa Razão foi assim chamada em 1845 por José Homem Corrêa Telles. ordem econômica, política e social de grande importância para Cfr. Almeida Costa, História do Direito p. 356. direito, sendo a partir dele que se desenvolveu O direito natural 69 Gomes da Silva, 313. Para compreensão da herança ibérica no campo do direito e do processo no Brasil, cfr. Silva Pacheco, Evolução do Processo Civil Brasileiro, p. 25 70 Mcnall Burns, p. 488.154 Direito Civil Introdução 0 Direito Civil. Gênese e Evolução. 155 (séculos XVII e a escola histórica, positivismo jurídico e se soberanos. O direito civil deixa de ser O direito romano para ser institucionalizou O Estado de Direito, Estado Liberal ou burguês. direito nacional, adquirindo sua forma e seu conteúdo atuais. A reforma religiosa compreendeu a revolução protestante que ir- Reflexo do racionalismo (rectius, do jusracionalismo) é a con- rompeu em 1517, levando a maior parte da Europa do norte a sepa- cepção do "direito como sistema, dotado de método dedutivo espe- rar-se da igreja romana, e a reforma católica, ou contra-reforma, cífico, construído a partir de conceitos gerais". No campo do direito movimento contrário que nasceu com Concílio de Trento (1545- privado, liberta-se direito civil da submissão histórica às fontes do 1563). Entre seus principais efeitos temos impulso dado ao indivi- direito romano, abrindo caminho para a construção do sistema que dualismo, com grande repercussão no campo do direito civil, na tem hoje nos códigos sua mais importante aplicação. Surgem as fi- medida em que contribuiu para desenvolvimento e aplicação de guras abstratas da obrigação e do dever contratual, do sujeito de um direito geral e igualitário. direito, da declaração de vontade, do negócio jurídico, doutrinas Efeito da revolução comercial e da reforma religiosa é fortale- que direito comum não tinha construído como teorias gerais, e cimento do poder real, com surgimento do Estado-Nação e desen- que são princípios jusnaturalistas transformados em categorias téc- volvimento de absolutismo como forma de governo. A criação dos nico-jurídicas. impérios coloniais e desenvolvimento do mercantilismo propor- cionam aos reis grande riqueza, usada na organização de exércitos e armadas. Por outro lado, a expansão dos negócios acentua a ne- 10. Estado moderno na formação do direito Estado liberal de cessidade de um governo forte, tendo a classe média, no governo, a Direito garantia para seu desenvolvimento e bem Fenômeno diretamente ligado à revolução comercial é pro- A idade moderna tem, assim, especial importância para estudo gresso da filosofia e da ciência, verificado nos séculos XVII e XVIII, do direito civil, pelo surgimento do Estado moderno e pela raciona- a chamada revolução intelectual, de que são notáveis expressões ra- lização do pensamento e da cultura, que levou ao desenvolvimen- cionalismo e individualismo. O primeiro considerava a razão o to da ciência jurídica, com seus conceitos abstratos, suas operações guia infalível da sabedoria. O segundo acentuava predomínio da lógicas e caráter sistemático da ordem jurídica. personalidade (individualismo filosófico), considerando-se que as O Estado moderno surge inicialmente como Estado absoluto, instituições políticas e jurídicas de um país devem colocar-se prefe- vigente até fins do séc. XVIII, caracterizado pela concentração do rencialmente a serviço dos interesses particulares (individualismo poder real, enfraquecimento da nobreza, ascensão da burguesia, político), acreditando-se que a "autoridade pública não deve perver- culto da razão de Estado, e pela vontade do rei como ter O resultado do livre jogo das atividades econômicas individuais, Com a Revolução Francesa, e tendo como antecedentes imedia- mas deve reduzir sua intervenção no domínio econômico ao míni- tos Bill of Rights inglês de 1689, a Declaração de Direitos de Vir- mo, concentrando-se em garantir a cada um a liberdade de trabalho gínia (EUA) de 1776 e a Declaração dos Direitos do Homem e do e do comércio e benefício da propriedade de seus bens" (indivi- Cidadão, de 1789, o Estado absoluto substitui-se pelo Estado liberal, dualismo econômico), ou ainda, que indivíduo é a única finali- próprio do liberalismo econômico, denominado, também, de Esta- dade de todas as regras do direito, a causa final de toda atividade do de Direito pelas seguintes características: a) da lei, no jurídica do Estado" ou, também, "a fonte das regras de direito ou de sentido de que todos os poderes dela derivam, como expressão da mutações jurídicas" (individualismo vontade O primado da lei é a característica fundamental, O racionalismo no direito exprime-se na doutrina do direito na- subordinando-se a lei à Constituição, conforme a hierarquia das tural, de que uma das mais importantes é processo de codificação do direito civil, realizado pelos Estados modernos e 73 Diogo Freitas do Amaral. Estado, in Polis Enciclopédia Verbo da Socieda- de e do Estado, vol. II, p. 1.160. 71 Mcnall Burns, p. 543. 74 Pietro Barcelona. Diritto privato e società moderna, p. 55; Elias Díaz, Estado de 72 Marcel Walline. L L'individualisme et le droit, Paris, p. 10 Derecho y Sociedade Democrática, p. 31.156 Direito Civil Introdução 0 Direito Gênese e Evolução. 157 normas; b) divisão dos poderes, respectivamente, legislativo, judiciário acontecia na Idade Média) e responsável por si mesmo. O sujeito de e executivo, a que correspondem os três momentos do processo direito em abstrato é homem, livre e igual, do iluminismo. jurídico: formação, aplicação e execução das leis. Não se trata de No campo jurídico, a liberdade individual, a propriedade, O rígida separação, mas de distribuição de funções, com base na dife- contrato e a responsabilidade civil são institutos jurídicos funda- rença entre criação e aplicação do direito, tarefas dos poderes legisla- mentais, que a ciência jurídica constrói com princípios, conceitos, tivo e respectivamente. Não podem legislar o executivo categorias e modelos que formam direito como sistema racional. e judiciário, como também não podem julgar o executivo e o le- A impertância do direito moderno para direito civil está por- gislativo; c) generalidade e abstração das regras d) distin- tanto, no fato de ter, pelas circunstâncias políticas, econômicas e ção entre direito público e direito privado, entendendo-se aquele como culturais, levado à construção da ciência jurídica, com seus concei- conjunto de normas com as quais o Estado determina a própria tos, suas técnicas de suas operações lógicas, seu forma- estrutura e organiza e regula as relações com os cidadãos, e por lismo, com a "imagem do homem como indivíduo singular, como direito privado, O conjunto de normas que se destinam a regular as sujeito abstrato, matéria com que trabalha O pensamento sistemáti- relações entre particulares"; e) crença na completude na neutralidade CO e que tem, no positivismo jurídico, a grande herança deixada do ordenamento jurídico: f) concepção do homem como um abstra- para as mudanças do direito civil to sujeito de direito, por efeito do processo de abstração do direito Concluindo, a grande contribuição do Estado moderno ao direi- moderno, e correspondente à idéia do homem livre e igual, da tra- to, principalmente do Estado liberal, é a racionalização da vida jurí- dição iluminista, pressuposto do processo de aquisição e circulação dica, com a adoção da idéia de sistema e O desenvolvimento do pen- de direitos. Enfim, o Estado de Direito é Estado da legalidade e da samento sistemático, do que os maiores exemplos foram os códigos liberdade dos indivíduos, livres e iguais. e as constituições do séc. XIX, e ainda da subjetividade Fundamento dessa construção é a subjetividade jurídica que, se- jurídica que estabelece indivíduo como causa e razão final da esfe- gundo Hegel, é princípio dos tempos modernos, expresso no in- ra jurídica privada. dividualismo, na autonomia do agir e na responsabilidade do indi- víduo pelo exercício de suas Contribuem para o desenvolvimento desse princípio a Reforma, 11. A sistematização do direito civil. processo de codificação Iluminismo e a Revolução A Reforma Protestante com a crença de que a salvação é puramente individual, proclama a so- Produto do jusracionalismo é a concepção do direito como sis- berania do indivíduo e do seu pensamento. O Iluminismo como tema, conjunto unitário e coerente de princípios e normas jurídicas. filosofia do homem novo, burguês, que luta pelo progresso contra Partindo da formulação de conceitos gerais e utilizando método obscurantismo e os privilégios da aristocracia e do clero. E a Revo- dedutivo, através de uma more geometrico, aplica-se mé- lução Francesa, abolindo regime feudal e consagrando os prin- todo cartesiano ao direito e chega-se à idéia de sistema jurídico, do cípios da igualdade, da liberdade individual e da propriedade pri- que a jurisprudência dos conceitos, de Puchta e Windscheid, e a vada. parte geral dos códigos civis são a melhor expressão. A sociedade moderna é, assim, marcada pela instituição do ho- Entende-se que a idéia de sistema permite uma compreensão mem como sujeito singular, livre e igual, sem vínculos sociais (como melhor do direito, não só de ordem didática como também de di- reito comparado, na medida em que autoriza confronto e rela- cionamento entre sistemas diversos. Além disso, possibilita com- 75 Kelsen. Teoria generale del diritto e dello stato, cap. III, p. 275. preender a matéria social em que se insere sistema jurídico, isto é, 76 V. Cap. III, 3. as relações sociais e os valores determinantes do agir em sociedade, 77 Yürgen Habermas. Discurso da Modernidade, p. 27; Anthony J. Cascardi, Subjectivité et modernité, p. 49 e 83. 78 Habermas, p. 28. 79 Barcelona, p. 22. 13158 Direito Civil Introdução 0 Direito Gênese e Evolução. 159 e, ainda, a interpenetração do direito com os demais sistemas que formam universo social, como econômico, político e religio- inconveniente, afirma-se que a codificação impede desenvolvi- O direito é um sistema de controle que emerge da vida, da socie- mento do direito, produto da vida social que não pode ficar circuns- dade, não podendo isolar-se da realidade que produz. Já Savigny crito, limitado, aprisionado por estruturas formais e dizia que a ciência e a história do direito são inseparáveis do estudo A codificação é fenômeno histórico na vida dos povos, da sociedade que lhe for havendo, todavia, grande diferença entre as codificações antigas e A idéia de sistema liga-se diretamente à de codificação, as modernas. As antigas tinham um caráter mais geral, visando a mento de normas jurídicas da mesma natureza em um corpo agrupa- unitá- totalidade do direito, enquanto que as modernas são especiais, dis- rio e homogêneo. Distingue-se esta da compilação, mero ajunta- ciplinando um só ramo jurídico. As primeiras surgiam como simples mento de leis, geralmente por ordem cronológica, e da consolida- compilações, já as modernas apresentam-se sob a forma sistemática. ção, que é a reunião de leis pelo critério da matéria, simplificando- Os códigos antigos recolhiam leis, doutrinas, princípios jurídicos, se e apresentando-se no seu último estágio.80 Em senso estrito, codi- enquanto os modernos contêm, apenas, preceitos legais, que enun- ficação significa processo legislativo, verdadeiramente revolucio- ciam regras ou, eventualmente princípios. Os códigos antigos eram nário, que marcou os séculos XVIII e XIX, de acordo com os crité- difusamente redigidos, os modernos são redigidos de forma breve e rios científicos decorrentes do jusnaturalismo e do iluminismo, e concisa. que produziu os códigos, leis gerais e O código passou também a ser, na esfera do direito privado, a Sua causa imediata é a necessidade de unificar e uniformizar a garantia das liberdades civis e do predomínio do poder legislativo legislação vigente em determinada matéria, simplificando o direito sobre judiciário, assegurando a autonomia do indivíduo contra a e facilitando seu conhecimento, dando-lhe ainda mais certeza e ingerência do poder estatal, como fazem, no direito público, as Eventualmente, constitui-se em instrumento de refor- declarações de direitos e as constituições. Ocupava centro da dis- ma de sociedade como reflexo da evolução social. Seu fundamento ciplina social. filosófico ou ideológico é que vê nos códigos o Conjugam-se, assim, os códigos civis e as constituições, criando instrumento de planejamento global da sociedade pela reordena uma nova organização jurídica da sociedade, e realizando espírito ção sistemática e inovadora da matéria jurídica, pelo que se afirma da época, o "individualismo jurídico próprio do pensamento libe- que "os códigos jusnaturalistas foram atos de transformação revolu- ral", que se exprime na divisão do direito em público e privado, na garantia da liberdade dos indivíduos, e na concepção da centralida- A codificação apresenta vantagens, como a de simplificar sis- de do direito em face da política e da filosofia. tema jurídico, facilitando conhecimento e a aplicação do direito, Os exemplos historicamente mais importantes desse processo permitindo ainda elaborar os princípios gerais do ordenamento de codificação, tanto pela importância político-ideológica que en- que "servirão de base para adaptar direito à complexidade da vida carnavam quanto pelo exemplo que ofereceram às codificações pos- real", que explica triunfo da codificação nos três séculos. Como teriores, são os Códigos Civis francês e 80 Teixeira de Freitas, "Contrato para coligir e classificar toda a legislação p. 101. pátria e consolidar a civil", in Silvio Meira. Teixeira de Freitas. o Jurisconsulto do 83 A expressão máxima da controvérsia sobre as vantagens e inconvenientes da codificação encontra-se na polêmica travada no século XIX, entre professor de direito civil da Universidade de Heidelberg, Antor Friedrich Justus Thibaut 81 Castan p. 204. O código apresenta-se como um sistema de (1772 a 1840), admirador da França revolucionária e do seu Código Civil, de- organicamente e subordinadas e coordenadas, com pretensões de generalidade regras fendendo a codificação no seu opúsculo Acerca da Necessidade de um Direito Civil plenitude, agrupadas em institutos e redigidas de modo conciso (De Los Mo- Geral para a Alemanha (Uber die Notwendigkeit eines allgemeinem bürgerlichen Rechts zos, p. 190). für Deutschland 1814) e o professor de direito Friedrich Carl von Savigny (1779 82 Wieacker p. Perfiles de la Nueva Historia del Derecho a 1861), contrário a ela no famoso ensaio Da Vocação no Nosso Tempo Para a Privado, p. 61. Legislação e a Ciência do Direito (Vom Beruf unserer Zeit für Gesetzgebung und Rechts- wissenschaft, 1814). 14160 Direito Civil Introdução 0 Direito Gênese e Evolução. 161 12. Código Civil partes, uma geral e uma especial, representa a síntese dos estudos O Código Civil francês é primeiro das codificações modernas. doutrinários desenvolvidos na Alemanha no curso do século XIX, Promulgado em 21 de março de 1804, elaborou-o uma comissão tomando por base direito romano, que lhe ofereceu a matéria e formada por Napoleão Bonaparte e constituída por Portalis (1746- os conceitos técnicos, principalmente na parte geral e no direito das 1807), Tronchet (1726-1806), Bigot de Préameneu (1747-1825) e obrigações, e direito germânico, que influenciou nos direitos Maleville, todos juristas práticos. O material com que trabalharam reais, família e sucessão. E um código sistemático, profundo, rigoro- foram os costumes, direito romano, recolhido por grandes juris- so, dogmático, no sentido de uma construção lógica, Apre- consultos como Domat e Pothier, este mais importante jurista senta, como vantagens, a disciplina lógica, a universalidade ou am- francês de sua época, as Ordenações Reais, as leis da Revolução e, plitude, e, como defeitos, a falta de clareza, a abstração demasiada, ainda, secundariamente, a jurisprudência dos antigos parlamentos a dificuldade de compreensão pelo povo. e direito Do ponto de vista da técnica jurídica, suas normas têm elevado Ideologicamente, caracteriza-se Código Civil francês por seu nível de abstração e elasticidade, que permite à jurisprudência laicismo, isto é, a separação da Igreja em matéria de estado civil ou adaptar seus dispositivos a muitas e distintas situações de fato. O de casamento, e por seu individualismo, expressão civilista da Decla- esmerado rigor técnico de suas construções jurídicas e uma certa ração dos Direitos de 1789, manifesto nos princípios da igualdade, obscuridade na linguagem tornam-no acessível, todavia, somente liberdade e espiritualidade do homem.84 É a igualdade, a liberdade aos juristas. Do ponto de vista moral, confere grande valor à boa-fé econômica e a autonomia da vontade garantidas em um corpo jurí- na interpretação dos contratos e à função educadora dos costumes. dico de elaboração essencialmente prática. Representa o triunfo do Do ponto de vista político e econômico, corresponde à ordem pri- individualismo liberal, expresso no caráter absoluto do direito de vada da época de sua redação, consagrando os princípios do indivi- propriedade e no princípio da liberdade contratual contido no art. dualismo.86 1.134, que afirma ser contrato lei entre as partes. Sua influência é notável em códigos de vários países como O Código Civil passou a denominar-se, em 1807, Código de Na- Brasil, Japão, Suíça, China e Grécia. Foi recentemente objeto de um poleão, depois, novamente, Código Civil dos franceses, em 1814 e, processo de recodificação, no campo das obrigações, por meio de finalmente, Código de Napoleão, em 1852. Contém as premissas uma que entrou em vigor em 1° de janeiro de 2002. filosóficas de toda a legislação burguesa, sendo modelo específico das relações entre humanismo jurídico e a ordem civil. Foi, assim, instrumento jurídico da ideologia e do espírito da Revolução Fran- 14. o direito civil Esboço histórico Quanto à forma, é reconhecidamente conciso e preciso. Sua influência foi Além de adotado por alguns Estados, como a A história do direito civil brasileiro compreende três fases: do Bélgica, influiu na elaboração dos Códigos Civis da Holanda, Romê- descobrimento do Brasil à codificação, processo de codificação nia, Portugal, Mônaco, Egito, Baixo Canadá, Luisiana, e dos países em si e a fase posterior ao Código até agora, quando se projeta a da América Central e América do Sul. reforma do Código Civil. A primeira fase divide-se em duas, de 1500 a 1808, época do Brasil-Colônia, e de 1808 a 1889, época do Brasil Império. 13. o Código Civil alemão A fase do Brasil-Colônia caracteriza-se pela aplicação das Ordenações Filipinas, legislação portuguesa que já era, no de Código Civil alemão aprovou-se em 1° de julho de 1896 e Coelho da Rocha, "atrasada, mantendo em vigor, na entrou em vigor em de janeiro de 1900. Compondo-se de duas época moderna, regras do século XV. Trazidas para Brasil, conso- lidou-se aqui esse 84 Jean Droit Introduction, Les personnes, p. 66. 86 Wieacker, p. 177. 85 Arnaud. Essai d'analyse structurale du code civil français, p. 12. 87 As Ordenações Filipinas foram elaboradas por incumbência do Rei Filipe I 15,162 Direito Civil Introdução 0 Direito Gênese e Evolução. 163 Nos primeiros tempos de colônia, até 1531, data da expedição Em 16 de dezembro de 1815, a carta régia elevou O Brasil à de Martin Afonso de Souza, direito era dos costumes e usos, no categoria de reino, provocando a centralização administrativa e, mais das vezes, a força física. conseqüentemente, fértil atividade legislativa. O primeiro ato legislativo que nos diz respeito é a bula do Papa Proclamada a independência do Brasil em 7 de setembro de João II, de 20. 01. 1506, confirmando os direitos de D. Manuel, rei 1822, a lei de 20 de outubro de 1823 determina a manutenção da de Portugal, sobre as terras do Brasil, em do Tratado vigência das ordenações, leis, regimentos, alvarás, decretos e resolu- de Tordesilhas, de 1494. ções dos reis de Portugal em vigor no Brasil até 26 de abril de 1821, No período das capitanias hereditárias (1532-1542), a legislação data em que D. João VI regressou a Portugal. E a Constituição do brasileira formava-se de cartas régias, cartas de doação das capita- Império, de 25 de março de 1824, no art. 179 manda nias, a primeira das quais lavrada em Évora, em 20 de janeiro de organizar-se, quanto antes, um Código Civil e um Criminal, "fun- 1534 e, principalmente, pelos forais, ou cartas de foral, que, comple- dados nas sólidas bases da justiça e da tando a carta de doação, eram verdadeiro documento jurídico. Enquanto as cartas de doação estabeleciam "apenas a legitimidade da posse e os direitos e privilégios dos donatários", as cartas de foral 15. A codificação civil brasileira: a) antecedentes; b) Código eram "um contrato enfitêutico em virtude do qual se constituíram Estrutura, características perpétuos tributários da coroa e dos donatários os a) Antecedentes solarengos que recebessem terras de De 1549 a 1581 temos período do Governo Geral, iniciado com a carta régia de 7 de janeiro de 1549, dando início ao sistema O Código Civil brasileiro resulta de um processo de elaboração do poder central de 1640 até 1750, (a subida do Marquês de Pom- legislativa que se desdobra em várias fases, no curso de noventa e dois anos. bal) e daí até 1808 (ano em que a corte portuguesa se desloca para Brasil), período em que surgiu incipiente legislação voltada para Em 1845, grande advogado Francisco Inácio de Carvalho Mo- a atividade mercantil, letras de câmbio, câmbio marítimo, correta- reira, Barão de Penedo, defende no Instituto da Ordem dos Advo- gem de câmbio, ao mesmo tempo que as relações civis se tornavam gados Brasileiros a tese da imediata remodelação do direito civil mais complexas, surgindo uma legislação sobre casamento, pátrio brasileiro, formado por Legislação "esparsa, desordenada e nume- poder (hoje poder familiar), tutela e curatela, sucessão e contratos. Sentindo a mesma necessidade, Eusébio de Queirós pro- A fase do Brasil Império, da abertura dos portos por D. João VI, em 1851, que se adote Digesto de Correia Teles. Mas em 1808, até a implantação da República, em 1889, tem dois aspec- é Teixeira de Freitas quem inicia os trabalhos de Aten- tos marcantes para a nossa história jurídica. Politicamente, o estabe- dendo a convite de José Tomás Nabuco, Ministro da Justiça, encar- lecimento da sede da monarquia portuguesa no Brasil; sociologica- rega-se Teixeira de Freitas, em 1855, de consolidar a legislação civil mente, a plena configuração do povo brasileiro. existente no Brasil, para que fosse bem conhecida, e depois, de re- digir Código Civil. O que foi a ciclópica obra de Freitas na sua tarefa de coligir e classificar toda a legislação brasileira, consolidando a civil, è de ela- de Portugal II de Espanha e vigentes a partir de 11 de janeiro de 1603. Partici- borar projeto de Código Civil, merece especial atenção.89 param da elaboração: Duarte Nunes do Leão, Jorge de Cabedo, Afonso Vaz Toureiro, possivelmente, Pedro Barbosa, Paulo Afonso e Damião de Aguiar. Deve-se, todavia, lembrar que a sua produção a Cf. Nuno Espinosa Gomes da Silva. História do Direito Português, p. 221, e ainda lidação das Leis Civis e o Esboço, constitui uma das maiores glórias da José Motta Maia Ordenações Filipinas, in Enciclopédia Saraiva do Direito, vol. 56, cultura jurídica nacional e estrangeira, comparável, se não superior, 291; Cândido Mendes de Almeida, Código Filipino, p. XXVII; Pontes de Miran- à dos maiores juristas do seu século, consideradas as circunstâncias da. Fontes e Evolução do Direito Civil Brasileiro, p. 41; Silva Pacheco, Evolução do Processo Civil Brasileiro, p. 25 88 Isidoro Martins Júnior. História do Direito Nacional, p. 104. 16 89 Silvio Meira. Teixeira de Freitas, o Jurisconsulto do cap. VIII. 16164 Direito Civil - Introdução 0 Direito Civil. Gênese e Evolução. 165 de ordem material e cultural em que se produziu. Rescindido o contrato de Teixeira de Freitas com o governo, incumbiu-se Nabuco tas pela primeira comissão revisora, que modificou um pouco O sis- tema originário do autor. de Araújo, em 3 de dezembro de 1872, de elaborar projeto de Código Civil, no que trabalhou até 1878, quando morreu, deixando O projeto Beviláqua foi discutido na Câmara em 1901 e 1902 e prontos 118 artigos do título preliminar e, com redação incompleta, remetido ao Senado neste mesmo ano, onde foi objeto de notável mais 182 artigos da parte geral. É visível a influência do Esboço de parecer do Senador Ruy Barbosa, redigido em apenas três dias, de Freitas. natureza mais filológica do que jurídica, verdadeira "mão-de-obra literária do projeto". Esse parecer foi objeto de crítica do Prof. Er- A obra de codificação prossegue, no mesmo ano, com Joaquim nesto Carneiro Ribeiro, eminente Filólogo da Bahia, autor da revi- Felício dos Santos, que se oferece para terminar esse trabalho. Re- são gramatical do projeto, nas suas "ligeiras observações sobre as dige 2.692 artigos que apresenta sob O título "Apontamentos para Projeto de Código Civil Brasileiro", distribuídos em uma Parte geral, emendas do dr. Ruy Barbosa, feitas à redação do Projeto do Código com três livros, das pessoas, das coisas e dos atos jurídicos em geral, e uma Civil, em setembro de 1902. A essa manifestação reagiu Ruy Barbosa com a sua monumental Réplica, que mereceu de Carneiro Ribeiro Parte Especial, com idêntica divisão. nova manifestação ("A redação do projeto do Código Civil e a Ré- Não vingando esse projeto, em 15 de junho de 1890, logo depois plica do Dr. Ruy Barbosa"), obras que, no seu conjunto, constituem de proclamada a República, encarregou-se Antonio Coelho Rodri- a mais genial realização de nossa história filológica, e talvez das le- gues de elaborar projeto do Código Civil, que faz em Genebra tras sob a influência do Código de Zurique e do direito alemão, como se A polêmica instaurada com projeto do Código faz com que verifica na própria divisão adotada: uma lei preliminar, uma parte este permaneça no senado até 1912, sendo devolvido a 31 de dezem- geral, subdividida em três livros, das pessoas, dos bens, dos fatos e atos bro desse ano à Câmara para apreciação da "Redação final das jurídicos, e uma parte especial, subdividida em quatro livros, das emendas do Senado", em número de 1.736. Em 1915, foi projeto obrigações, da posse, da propriedade e de outros direitos reais, do direito de remetido ao senado para exame das emendas rejeitadas pela Câma- família e do direito das sucessões. ra. O projeto volta a esta, que aprova a redação final a 26 de dezem- Não se tendo aprovado nenhum desses projetos, em janeiro de bro de 1915, sendo sancionado e promulgado com a Lei 3.071 de 1889 O Ministro da Justiça Epitácio Pessoa convida Clóvis Beviláqua, de janeiro de 1916, para entrar em vigor a de janeiro de 1917. eminente professor da Faculdade de Direito do Recife, para prosse- Existindo algumas incorreções no texto, a Lei n° 3.725, de 15 de guir no trabalho de codificação, aproveitando, no que fosse possível janeiro de 1919, eliminou-as. e não contrariando as suas próprias idéias, os trabalhos dos juristas A elaboração do Código Civil brasileiro deu origem à grande precedentes. O novo projeto foi elaborado de abril a outubro de floração doutrinária, com notável desenvolvimento da civilística na- 1889 e, concluído, remetido a alguns jurisconsultos para opinarem cional. Além das obras de Clóvis Beviláqua, onde ressalta a sua no- a respeito, a princípio individualmente e depois em comissão presi- tável Teoria Geral do Direito Civil, de 1908, desenvolvem-se os traba- dida pelo próprio Ministro. lhos de Lacerda de Almeida, Martinho Garcez, Almáquio Diniz, Aze- O projeto Clóvis Beviláqua compunha-se de uma lei de introdu- vedo Marques, Lafayette R. Pereira, Ferreira Coelho, Carvalho de ção, uma parte geral dividida em três livros, pessoas, bens, nascimento e Mendonça, Virgílio de Sá Pereira, Eduardo Espínola, Eduardo Espí- extinção de direitos, e uma parte especial, desdobrada em quatro livros, nola Filho e Carvalho Santos, a obra coletiva redigida por Paulo direito de família, direito das coisas, direito das obrigações e direito das Lacerda, Manual do Código Civil; Pontes de Miranda, João Luis sucessões. Caracterizava-se pela "harmonia entre a ordem e a liberda- Alves, Spencer Vampré, Adauto Fernandes e, mais recentemente, de, entre a tradição e O progresso". Adotava a concepção de Ihering San Thiago Dantas, Orlando Gomes, Caio Mário da Silva Pereira, em matéria de posse, embora não exclusivamente, e disciplinava o Antônio Chaves, Washington de Barros Monteiro, Sílvio Rodrigues, direito de propriedade sem O absolutismo do direito romano. Apre- Franzen de Lima, Vicente Serpa Lopes, Arnoldo Wald, Rubens sentava algumas idéias novas, como reconhecimento de filhos ile- Limongi França, Maria Helena Diniz etc. gítimos de qualquer espécie, a investigação de paternidade, a insol- vência civil, a igualdade jurídica dos cônjuges, idéias essas não-acei- 90 Pontes de Miranda, 353. 17166 Direito Civil Introdução 0 Direito Gênese e Evolução. 167 b) Código Civil de 1916. Estrutura, características tentores do poder político e social da época, por sua vez determina- À semelhança do que ocorre com Código alemão (Bürgerliches das, ou condicionadas, pelos fatores econômicos, políticos e sociais. Gesetzbuch), o Código Civil brasileiro de 1916 tinha a precedê-lo uma Era um código conciso, com apenas 1.807 artigos, número bem lei de Introdução, com regras sobre publicação, vigência e aplicação inferior ao do francês (2.281), ao do alemão (2.383), ao do italiano das leis, sua interpretação e integração, e ainda os critérios para (2.969), ao do português (2.334) Tecnicamente, um dos mais per- solução de conflitos de normas no tempo e no espaço, isto é, regras feitos, quer na sua estrutura dogmática, quer na sua redação, escor- de direito intertemporal e de direito internacional privado. Aten- reita, segura, precisa. dia, assim, à necessidade de normas gerais de aplicação para todas Tinha formação eclética, com predomínio de concepções do as leis, já previstas no título primeiro do Código de Napoleão ("De direito francês e da técnica do código la publication, des effets et de l'aplication des lois en général) e na proposta Do ponto de vista ideológico, consagrava os princípios do libe- de Teixeira de Freitas, que, em 1867, propunha, juntamente com a ralismo das classes dominantes, defendido por uma classe média elaboração de um código geral de direito privado, unindo as maté- conservadora que absorvia contradições já existentes entre a bur- rias civil e comercial, uma Lei Geral que dominasse a legislação in- guesia mercantil, defensora da mais ampla liberdade de ação, e a teira, abrangendo "matérias superiores a todos os ramos da legis- burguesia agrária, receosa dos efeitos desse Individua- lação". lista por natureza, garantiu direito de propriedade característico Compreendia Código de 1916 duas partes, uma geral e outra da estrutura político-social do país e assegurou ampla liberdade con- especial. tratual, na forma mais pura do liberalismo A parte geral, com 179 artigos distribuídos em três livros, refe- Na parte do direito de família, sancionava patriarcalismo do- rentes às pessoas, aos bens e aos fatos jurídicos, reúne os princípios méstico da sociedade que gerou, traduzido no absolutismo do e regras aplicáveis à generalidade dos atos e das relações jurídicas poder marital e no do pátrio poder. Tímido no reconhecimento dos disciplinadas pelas normas da parte especial, isto é, aos sujeitos e aos direitos da filiação ilegítima, preocupava-se com a falsa moral de seu objetos dessas relações e aos fatos jurídicos que as fazem nascer, tempo. Não obstante, continha algumas inovações progressistas modificar ou extinguir. A parte especial subdivide-se em quatro li- para a época, como deferimento do pátrio poder à mãe, mesmo vros. O primeiro, do direito de família, com 305 artigos, compreende na filiação ilegítima. Privava, porém, desse poder a bínuba, que so- a matéria pertinente ao casamento, sua validade e eficácia; aos regi- mente veio a adquiri-lo em 1962, com o estatuto da mulher mes de bens entre os cônjuges; à dissolução da sociedade conjugal Refletia, pois, o ideal de justiça de uma classe dirigente européia e à proteção da pessoa dos filhos; às relações de parentesco e à tute- por origem e cultura, mal-adequada às condições de vida do interior la, curatela e ausência. O segundo, do direito das coisas, com 372 do país, traduzindo mais as aspirações civilizadoras dessa elite, em- artigos, compreendendo a posse, a propriedade e os direitos reais bora progressista, do que os sentimentos e necessidades da grande sobre as coisas alheias. O terceiro, do direito das obrigações, com 709 massa da população, em condições de completo artigos, que disciplina as obrigações nas suas modalidades, transmis- Código Civil de 1916 era, assim, produto da sua época e das são, fontes e extinção. E finalmente, livro quatro, do direito das forças sociais imperantes no meio em que surgiu. Feito por homens sucessões, com 234 artigos, compreende as normas sobre a sucessão identificados com a ideologia dominante, traduziu o sistema norma- em geral, a sucessão legítima, a sucessão testamentária, inventário tivo de um regime capitalista colonial. e a partilha. Teve, porém, grande repercussão. No campo interno, deu mar- Código Civil de 1916 era um código de sua época, elaborado gem à profunda e magnífica floração No campo exter- a partir da realidade típica de uma sociedade colonial, traduzindo no, bastam os elogios de Arminjon, Nolde e Wolff que lhe ressalta- uma visão do mundo condicionado pela circunstância histórica, sica e étnica em que se revela. Sendo a cristalização axiológica das idéias dominantes no seu tempo, principalmente nas classes supe- 91 Orlando Gomes. Históricas e Sociológicas do Código Civil Brasileiro, p. 43. riores, reflete as concepções filosóficas dos grupos dominantes, de- 92 Lei 4.121, de 27 de março de 1962. 93 Orlando Gomes, p. 34. 18168 Direito Civil Introdução 0 Direito Civil. Gênese e Evolução. 169 ram a técnica jurídica, a clareza e a precissão, e as de Alfredo Colmo, Em 1969, constitui Governo nova Comissão integrada por Mi- Martinez Paz e Lafaille, na Argentina; Luis Gasperi, no Uruguai; guel Reale, presidente, José Carlos Moreira Alves, Agostinho de Ar- Enneccerus, na Alemanha, que qualificava como a mais indepen- ruda Alvim, Sylvio Marcondes, Ebert Chamoun, Clóvis do Couto e dente das codificações e ainda as observações de Machado Vilela, em Portugal e de Scialoja, na Itália. Silva e Torquato Castro, para elaborar anteprojeto de Código Civil, posteriormente transformado em Projeto de Lei 634, de 1975, e finalmente aprovado no Congresso Nacional pela Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. 16. A reforma do Código Civil novo Código apresenta as seguintes características: a) preser- va, no possível, a estrutura e a redação do Código Civil de 1916, As transformações da sociedade brasileira no curso deste século tendo-o atualizado com novos institutos e redistribuído a matéria de têm submetido direito a uma contínua adaptação, com uma série acordo com a moderna sistemática civil; b) mantém Código Civil crescente de leis especiais em torno das principais instituições do como lei básica, embora não global, do direito privado, unificando direito privado, a a família, a propriedade, contra- o direito das obrigações na linha de Teixeira de Freitas e Inglez de to, a herança e a responsabilidade civil. Souza, reconhecida a autonomia doutrinária do direito civil e do Tais modificações deslocam para âmbito dessa legislação espe- direito comercial; c) aproveita as contribuições dos trabalhos e pro- cial centro da disciplina jurídica das relações privadas, ficando jetos anteriores, assim como os respectivos estudos e críticas; d) in- Código Civil como fonte residual e supletiva, que se acentua com clui no sistema do Código, com a necessária revisão, a matéria das a transferência, para a órbita constitucional, de alguns dos tradicio- leis especiais posteriores a 1916, assim como as contribuições da nais princípios de direito civil concernentes à família, à propriedade jurisprudência; e e) exclui matéria de ordem processual, a não ser privada e à liberdade contratual. quando profundamente ligada à de natureza material. Com a finalidade de se restaurar Código Civil como diploma básico da disciplina das relações de natureza privada, adaptando-o às exigências do processo de mudança social operada no Brasil, vá- 17. Código Civil de 2002 rias tentativas se fizeram. Em 1941, publica-se um anteprojeto de Código de Obrigações Código Civil, aprovado pela Lei n° 10.406, de 10 de janeiro de elaborado em conjunto pelos eminentes civilistas Orozimbo Nona- 2002, mantém a estrutura e a redação do Código Civil de 1916, atua- to, Filadelfo Azevedo e Hahnemann visando unificar o lizando-o com novas figuras e institutos, e redistribuindo a matéria direito das obrigações, não recebendo tal o apoio necessá- de acordo com a moderna sistemática civil, seguindo O critério do rio da classe jurídica. legislador de preservar, sempre que possível, as disposições desse Em 1961, toma Governo a iniciativa de reformular os princi- Código tendo em vista que ele representa como patrimônio pais códigos do país, convidando Prof. Orlando Gomes para redi- A Parte Geral tem 232 artigos, dividida em três gir anteprojeto de Código Civil, contendo direito de família, os livros, referentes às pessoas, aos bens e aos fatos jurídicos, isto é, à direitos reais e direito das sucessões, e Prof. Caio Mário da Silva disciplina da relação jurídica, no seu nascimento, evolução, extin- Pereira, para elaborar anteprojeto de Código das ção e conteúdo. Suas principais novidades são a distinção entre per- trabalho do Prof. Orlando Gomes foi transformado em Projeto de sonalidade e capacidade (Capítulo I), a disciplina dos direitos da Código Civil pela Comissão constituída do respectivo autor, e dos personalidade (Capítulo II), a existência de um capítulo autônomo juristas Orozimbo Nonato e Caio Mário da Silva Pereira. O antepro- para as associações (Título II, Capítulo II), a substituição da catego- jeto do Código de Obrigações foi transformado em projeto, revisto ria unitária do ato jurídico pela do negócio jurídico e reconheci- pela Comissão Revisora integrada pelo respectivo autor e ainda por mento da figura dos atos jurídicos lícitos, a autonomia do instituto Orozimbo Nonato, de Azeredo Santos, Sylvio Marcon- des, Orlando Gomes e Nehemias Gueiros. 94 Miguel Reale.O Projeto do Novo Código Civil, p. 4. 19170 Direito Civil Introdução 0 Direito Gênese e Evolução. 171 da a inclusão do estado de perigo e da lesão no elen- dos defeitos do negócio jurídico, a possibilidade de conversão do direito comercial. O problema da unidade do direito privado con- negócio jurídico nulo, a nova disciplina da prescrição e da decadên- siste então em saber se deve considerar-se direito civil como com- cia e, em matéria de prova, reconhecimento do documento ele- preensivo de toda a matéria de direito privado ou, ao contrário, trônico ou digital, e a da recusa a perícia médica. manter-se a clássica dicotomia direito civil-direito comercial. A Parte Especial do Código compreende cinco livros, a saber, do O direito civil é um direito de formação histórica, contínua e Direito das Obrigações (Livro do Direito de Empresa (Livro II), jurisprudencial, no sentido de que resulta de longo processo inicia- do Direito das Coisas (Livro III), do Direito de Família (Livro IV), e do pelosimagistrados romanos, os pretores, e desenvolvido ao longo do Direito das Sucessões (Livro V). Relativamente ao Código de dos séculos sob a influência de fatores políticos, econômicos e so- 1916, Código de 2002 inova ao iniciar a Parte Especial com a ma- ciais. téria das Obrigações, em vez do Direito de Família, que foi desloca- direito comercial surge posteriormente na Idade Média como do para penultimo livro, a preceder Direito das Sucessões, e com ius mercatorum, direito dos mercadores, criado especialmente para a introdução de um novo livro, de Direito de Empresa. Operou-se, regular-lhes a atividade mercantil. O material com que se formou desse modo, a unificação do direito privado no campo das obriga- foram os estatutos das corporações mercantis, os costumes mercan- ções, implicando isso a revogação do Código Comercial, na parte tis e a jurisprudência da cúria dos Sua razão de ser referente ao direito comercial terrestre, completamente superado. Quanto às principais inovações do Código de 2002, no que diz estava na insuficiência do direito civil, conservador, estático, pouco flexível para atender às necessidades da vida mercantil, em franco respeito à parte especial, há que assinalar, no Direito das Obriga- ções, a introdução de um titulo novo, dedicado às modificações sub- desenvolvimento, por força da revolução comercial, a partir do sé- culo XI. jetivas da relação obrigacional, respectivamente, a cessão de crédito O direito comercial nasceu assim como direito da classe mercan- e a assunção de débito, e ainda a inclusão de novas figuras contra- tuais (contrato preliminar, contrato com pessoa a declarar, contrato til, aplicando-se quando uma das partes da relação jurídica fosse estimatório, comissão, agência e distribuição, corretagem, transpor- comerciante, e a matéria basicamente de obrigações e contratos. E te de pessoas e de coisas, seguro de dano e de pessoa), assim como enquanto direito civil garantia a segurança e a estabilidade das a disciplina geral dos títulos de os título de instituições, das quais a mais importante era a propriedade, e con- crédito ao portador, à ordem e os nominativos. Direito de Empre- trato seu meio de disposição, direito comercial separava con- sa é completamente novo na sistemática do Código Civil, o que lhe trato da propriedade, atribuindo ao primeiro funções especulativas. dá carácter de originalidade, relativamente aos códigos contem- O contrato passava a ser instrumento jurídico de realização do porâneos. Disciplina a figura e as atividades 'do Empresário e das lucro, por meio das relações dos comerciantes com os produtores Sociedades empresárias, e dos Institutos Complementares (registro, das mercadorias, com os proprietários dos bens e com os consumi- nome empresarial, prepostos e escrituração). Há que assinalar, ain- dores dos produtos que punha no comércio. da, o enriquecimento de sua estrutura com a inserção de novos prin- Depois de várias entra em vigor, em 1807, Có- cípios (boa-fé, função social, equidade, igualdade de cônjuges e de digo Comercial francês, considerado pai de todos os códigos filhos etc.), cláusulas gerais e conceitos indeterminados, que tor- merciais modernos". Configura-se, desse modo, a dicotomia direito nam seu sistema aberto e flexível, tudo isso a exigir maior preparo civil-direito comercial, com dois sistemas legais, dois códigos dife- do intérprete e maior poder do juiz no processo metodológico de rentes, o Código Civil da burguesia fundiária, estabelecida sobre a realização das normas do código. 95 Joaquim Garrigues. Curso de Derecho Mercantil, p. 26; Francesco Galgano, 18. A unidade do Direito Privado Pubblico e privato nella regolazione dei rapporti economici, in Trattado di diritto co- merciale e di diritto pubblico dell'economia volume primo, p. 4. Discute-se no campo doutrinário se a matéria de direito privado 96 Na Inglaterra, Navigation Act, em 1651; na Suécia, Código de em é uma só, ou se devemos considerá-la dividida em direito civil e 1667; na Dinamarca, Código de na França, a Ordonnance sur le Commerce de Terre (Código Savary), em 1673, e a Ordonnance sur le Commerce de em 1681. 20172 Direito Civil Introdução 0 Direito Civil. Gênese e Evolução. 173 propriedade do solo urbano e do solo rural que conservava e usu- fruía, e Código Comercial, da burguesia comercial e industrial, contratos e das obrigações, a disciplina é uma só, não se distinguin- do a comercial da civil. Além disso, O número e a influência crescen- que protegia a riqueza mobiliária e a sua Com O Código francês opera-se uma grande mudança: direito te das empresas na atividade econômica têm feito com que direito comercial deixa de ser direito de uma classe, a dos comerciantes, mercantil tenha perdido, gradativamente, a sua qualidade de direi- e passa a ser direito dos atos do com peculiaridades pró- to especial para tornar-se em verdadeiro direito "geral", com uma progressiva comercialização do direito civil, como se vê na emigra- O direito civil apresentava-se, então, como um direito da produ- ção, direito geral das obrigações, de institutos que antes per- ção e do consumo dos bens, considerados no seu valor de uso, en- tenciam aos códigos do comércio, reduzindo-se número dos con- quanto direito comercial disciplinava a circulação dos bens, con- tratos mercantis. Disso resulta, como imperativo, a unidade, pelo siderados no seu valor de troca, caracterizando-se ainda pela ausên- menos, do direito das obrigações e a redução do âmbito do puro cia de formalismo e maior rapidez nos seus atos, maior proteção ao direito mercantil como direito Domina então, na doutri- crédito e presunção de solidariedade passiva nas suas obrigações. O na, a idéia de que não há motivo para se distinguirem os atos civis Código Civil seria muito mais amplo, abrangendo também os direi- dos comerciais, devendo unificar-se a matéria das obrigações, sem prejuízo da autonomia didática da matéria. tos de família e das sucessões, vale dizer, o seu âmbito de aplicação seria dos direitos patrimoniais e dos extrapatrimoniais. No Brasil, já em 1867, Teixeira de Freitas propunha ao governo O surgimento e a evolução do direito comercial, primeiro um a unificação do direito privado, com um Código Civil abrangente de direito da classe dos mercadores ou comerciantes, depois um direito toda a matéria civil e mercantil, e um Código Geral, "dominando a objetivo dos atos do comércio, suscita, a partir do século passado, legislação inteira", abrangendo "matérias superiores a todos os ra- notável polêmica em torno do problema da autonomia do direito mos da legislação", "sobre as leis em geral, sua publicação e aplica- comercial em face do civil, dividindo-se os juristas, uns a favor da ção", "regras de interpretação" e "providências sobre computação divisão, outros defendendo a unidade do direito privado. de prazos". Alegava grande jurista não haver razão para "essa Os adeptos da autonomia do direito comercial, com um Código arbitrária separação de leis a que todos os atos da vida jurídica, ex- distinto do civil, alegam que as relações jurídicas típicas do comér- cetuados os benéficos, podem ser comerciais ou não-comerciais, isto cio exigem uma disciplina legal específica, capaz de atender às pe- é, tanto podem ter por fim lucro pecuniário como outra satisfação culiaridades da atividade mercantil, como a simplicidade e a celeri- da existência. Não há mesmo alguma razão de ser para tal seleção dade na prática dos atos, a maior proteção ao crédito, a disciplina de leis, pois que em todo decurso dos trabalhos de um Código dos títulos de crédito, os negócios em massa etc. O direito comercial Civil aparecem raros casos em que seja mister distinguir o fim co- surge, assim, como O direito da produção e da troca, direito da mercial dos atos, por motivo da diversidade nos efeitos jurídicos". nova realidade que é a empresa, atividade econômica organizada Com esse mesmo pensamento manifestou-se Cesare Vivante, professor da Universidade de Roma, considerado maior comercia- em vista da produção e da troca de bens e lista de todos os tempos. Em 1892, ao abrir seu curso na Universida- Os partidários da unidade acham que não se justifica essa auto- de de Bolonha, criticou a divisão, direito civil-direito comercial e nomia por não haver um conjunto de normas dominado por prin- cípios próprios e diversos dos que valem para direito além defendeu a unidade do direito privado, posição que, aliás, mais tar- de reviu, ao elaborar projeto de Código Comercial italiano. Em do que, para a categoria mais importante de relações, que é a dos defesa da unidade, invocava, entre outros argumentos, os exemplos dos direitos inglês e americano, que não distinguem civil do co- 97 Galgano, p. 67. mercial, e suíço, que unificou apenas a matéria obrigacional, com um Código das Obrigações ao lado do Código Civil. 98 Philomeno J. da Costa. Autonomia do Direito Comercial, p. 33; João Eunápio Borges, Curso de Direito Comercial Terrestre, p. 53. 99 Cesare Vivante, apud João Eunápio Borges, p. 59; Remo Corso di diritto commerciale l'imprenditore, p. 19. 101 Joaquim Garrigues, p. 31. 100 Francesco Ferrara Junior. Gli imprenditori e le società, p. 18 e 19. 102 Teixeira de Freitas, em carta de 20 de setembro de 1867, ao Ministro da Justiça Martim Francisco Ribeiro de Andrade, apud Silvio Meira, p. 347 21174 Direito Civil Introdução 0 Direito Gênese e Evolução. 175 Em 1942 entra em vigor o Código Civil italiano, contendo em um só corpo legal todo direito privado, compreendendo a matéria Do ponto de vista subjetivo, esse conteúdo são as relações jurídi- civil, a comercial e a do trabalho. E no Brasil, dentro do espírito da cas entre os particulares ou entre estes e Estado, quando situados unidade, em 1941 uma comissão integrada por Orozimbo Nonato, em posição de igualdade e coordenação. Filadelfo Azevedo e Hahnemann elabora um anteproje- Do ponto de vista objetivo, direito civil compreende os princí- to de Código de Obrigações, reunindo toda a matéria pios e as regras sobre a pessoa, a família, patrimônio e a empresa, ou Essa tendência prevalece em 1963, quando governo brasileiro de- de modo analítico, os direitos da personalidade, direito de família, cide reformar os códigos, elaborando-se um Código Civil e um Có- direito das coisas, direito das obrigações, e direito das digo das Obrigações. Modificando-se tal orientação, em 1975 opta es e o direito de empresa, ou ainda, a personalidade, as relações O governo pela unidade do direito privado, constituindo comissão patrimoniais, a família e a transmissão dos bens por morte e a ativi- para rever Código Civil, atualizando-o e a ele incorporando a ma- dade econômica da pessoa Pode-se assim dizer que objeto do téria comercial terrestre, com a unidade do direito das obrigações, direito civil é a tutela da personalidade humana, disciplinando a os títulos de crédito e direito de empresa. personalidade jurídica, a família, patrimônio e sua O Código Civil de 2002 optou assim, pela unificação do direito Em seguida, a família, como grupo social básico e primário, fonte privado, pelo menos no que respeita ao direito das obrigações, man- da primeira disciplina ou controle social do Em terceiro tendo-se Código Civil como "lei básica, embora não-global do di- lugar, patrimônio, conjunto de bens necessários à satisfação das reito privado", na lista de pensamento de notáveis juristas como Tei- necessidades humanas, garantindo a conservação da pessoa e da xeira de Freitas, Carvalho Lacerda de Almeida, Coelho família. E ainda a empresa como atividade econômica organizada Rodrigues, Carlos de Carvalho, Sá Viana, Alfredo Valladão, Carva- para a produção ou a circulação de bens ou de serviços. lho Mourão, Inglez de Souza, J. X. Carvalho de Walde- Para os que defendem a unidade do direito privado, todo esse é mar Ferreira, Otávio Mendes, Francisco Campos etc. Seus argumen- hoje direito civil, direito privado comum ou geral, incorporando tos principais, como já visto, são que a dicotomia existente fere o direito comercial, hoje direito de empresa. princípio da igualdade, pois fatos da mesma natureza não devem ter disciplina diversa e que, no caso de haver duas jurisdições, uma civil e outra comercial, isso pode levar à insegurança na administração 20. A personalidade da justiça, além da progressiva comercialização da vida civil deter- minada pela evolução do A personalidade é o instituto básico do direito civil, e a pessoa, A unidade do direito privado ou, pelo menos, do direito das seu núcleo fundamental. O direito protege-a e garante-lhe a re- obrigações, não prejudica, porém, a autonomia científica e didática produção e a conservação, por meio dos direitos da personalidade, do direito civil e do comercial. Tira deste, porém, a natureza de do direito de família e do direito patrimonial. Do ponto de vista matéria especial. jurídico, instituto da personalidade é conjunto de princípios e regras que protegem a pessoa em todos os seus aspectos e manifesta- ções. Com base no art. 1° da Constituição da República, que consa- 19. Conteúdo do direito Os institutos fundamentais gra o princípio da dignidade da pessoa humana, esse instituto reúne as normas sobre princípio e fim da existência, qualificação e Conteúdo do direito civil é O conjunto de princípios, regras, exercício dos direitos das pessoas físicas e jurídicas, reunindo as direitos, relações e institutos que formam seu ordenamento jurí- prescrições constitucionais, civis, penais e administrativas que pro- dico, seu sistema legal. tegem os chamados direitos da personalidade, aqueles que têm 103 Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil, vol. I n° Manuel Broseta Pont. Manual de Derecho Mercantil, p. 52; Castan Tobenas, p. 139; Mota 104 "A personalidade é a idéia básica do direito civil e a pessoa humana Pinto, p. 20. ponto de partida para a disciplina da convivência humana". Espin Manual de Derecho Civil Español, I, p. 31. 22 22176 Direito Civil Introdução 0 Direito Civil. Gênese e Evolução. 177 como objeto os valores essenciais da pessoa no seu aspecto físico, O conceito de família também não é preciso em sua moral e intelectual (Capítulo VIII). Em sentido amplo, compreende os descendentes do mesmo ances- Como expressão da filosofia do personalismo repre- senta reconhecimento da pessoa como como sujeito de direitos e tral. Em sentido restrito, é O grupo formado pelos cônjuges, ou com- panheiros, e seus descendentes, ou ainda, a comunidade formada deveres, centro e destinatário do direito, da propriedade como direito de domínio limitado por sua função social, e da autonomia privada por qualquer dos pais e seus como poder jurídico que os particulares têm, nos limites estabeleci- Do ponto de vista jurídico, a família é uma instituição, isto é, um dos pelo Estado, de auto-regularem, por sua vontade, as relações grupo social ordenado e organizado segundo disciplina própria que jurídicas de que são parte. é o direito de família. De modo mais analítico, é um conjunto de pessoas ligadas pelo vínculo do casamento ou pela relação de paren- tesco. 21. A família O direito de família é conjunto de princípios e normas que disciplinam e organizam as relações entre os membros da mesma A família é uma das instituições fundamentais da sociedade. Seu família, isto é, entre os cônjuges e entre os parentes. Compreende, estudo interessa à sociologia, como realidade ética, política e social, especificamente, as normas sobre casamento e seus efeitos pes- e ao direito, como fonte de relações sociais de reconhecida impor- soais e patrimoniais, a dissolução da sociedade conjugal, as relações tância, pelos interesses individuais e coletivos que encerra. de parentesco e os institutos de proteção aos incapazes, compreen- Do ponto de vista sociológico, a família é o mais importante dendo, a tutela, a curatela e a ausência. Sua importância é tão gran- grupo social primário, de geração espontânea e natural. Nela o in- de e tão manifesta a presença, na sua matéria, dos costumes e dos divíduo nasce, cresce, educa-se e prepara-se para ingresso na so- valores morais, sendo esse ramo do direito mais sensível às mudan- ciedade. ças da sociedade em geral, que se torna constante a presença do Suas principais funções são, portanto, de natureza biológica, ga- direito público na disciplina de suas relações jurídicas. Sendo pre- rantindo a descendência e a permanência do grupo; educadora e so- valentes os interesses da sociedade e do Estado na proteção da famí- cializadora, adequando comportamento de seus membros aos valo- lia, e não havendo campo, na sua disciplina legal, para exercício res dominantes no grupo familiar e na sociedade, transmitindo-lhes da autonomia privada, predominando as normas imperativas, discu- a linguagem, os hábitos, a cultura; econômica, proporcionando-lhes tem os juristas sobre a inclusão do direito de família no direito civil. as condições materiais de subsistência e conforto, e psicológica, con- O predomínio do dever em face do poder e a dificuldade em distin- tribuindo para equilíbrio, desenvolvimento afetivo e a segurança emocional de seus membros. guir-se direito da moral, fazem com que alguns autores defendam, O conceito de família é histórico e relativo. Não existe família se não a inclusão desse ramo no direito público, pelo menos a sua como termo absoluto e permanente, mas uma realidade social mu- autonomia em face do direito "A natureza dos objetivos tável. Se a família romana se caracterizava pela autoridade absoluta familiares justifica a mais freqüente e penetrante ingerência do Es- e pela hierarquia, na sociedade contemporânea verifica-se uma pro- tado, pois a tutela de interesses maiores não pode ser realizada se- não por um poder superior." gressiva redução da família, reduzida ao par conjugal, à família nu- clear, com pequena prole, onde se materializa o princípio da igual- Os princípios de direito de família são hoje de natureza consti- dade dos cônjuges e dos filhos. A originária família patriarcal, arti- e institucional e pertinentes 1) aos direitos familiares culada em função de uma necessidade de auto-suficiência, perde gradativamente sua função econômica, integrando-se os seus mem- bros nas estruturas sociais e produtivas 107 CR, art. 226, § Sobre mudanças contemporâneas no instituto da filia- ção, cfr. Luiz Edson Fachin, Da Paternidade. Relação Biológica e Afetiva; Heloisa Helena Barbosa, A Filiação em Face da Inseminação Artificial e da Fertilização in Maria Helena Diniz. Estado Atual do Biodireito. 105 Karl Larenz, p. 24. 108 Antonio Cicu, Il diritto di famiglia. Teoria generale. 106 Luigi Russo. La famiglia ed il diritto, in Diritti civili e istituti privatistici, p. 164. 109 Cfr. Gustavo Tepedino. A Disciplina Civil-Constitucional das Relações Familia- Paulo Lobo, p. 53. res, in A Nova Família: Problemas e Perspectivas, p. 47 a 71. 23,178 Direito Civil - Introdução 0 Direito Gênese e Evolução. 179 pessoais, compreendendo O princípio do casamento civil (CR, art. Saliente-se ainda que progresso nas áreas da medicina e da 226, § O princípio da admissibilidade do divórcio (CR, art. 226, biologia, com as descobertas de novas técnicas de reprodução hu- § princípio da igualdade dos cônjuges (CR, art. 226, § mana (inseminação artificial, fecundação in vitro, transferência de princípio da igualdade dos filhos (CR, art. 227, § 6°) e 2) aos direitos embriões) e a possibilidade de manipulações genéticas, que dão familiares sociais, como princípio da proteção da família (C.R. art. acesso ao conhecimento da estrutura e da função do material gené- 6° e art. 226, § princípio da proteção da infância e da adoles- tico (ADN), repercute na família, nas relações da filiação e do ma- cência (CR, art. 227, e seu § trimônio. Essas técnicas revolucionaram os conceitos de paternida- As normas jurídicas de direito de família, segundo parecer do- de e da maternidade, colocando-nos no umbral de um novo direito minante, são normas de direito privado, pois os interesses protegi- de família e superando a instituição tradicional, centrada no casa- dos são predominantemente individuais, não obstante interesse mento e em, hoje insubsistentes, presunções do que é prova coletivo. Visam realizar valores de donde a grande o reconhecimento da união estável e a possibilidade da prova gené- influência da moral e da religião; são cogentes, imperativas, limitan- tica no estabelecimento da filiação. do ou até anulando a autonomia privada; sua interpretação é restri- ta e específica, diversa da dos outros ramos do direito, não se lhe aplicando, por exemplo, os critérios interpretativos do direito das 22. A propriedade obrigações, sendo também excepcional recurso à parte geral do código; estabelecem a tipicidade dos atos de direito de família. A A propriedade é um dos institutos jurídicos fundamentais e O existência, validade e eficácia de tais atos exigem sejam respeitados mais importante dos direitos privados. Por sua ligação com os de- as disposições legais de ordem material e formal que a lei estabelece, mais institutos civis, é elemento básico do direito patrimonial. Pro- não tendo os sujeitos autonomia para atuar de forma diversa da tegido pela Constituição como direito fundamental (CR, art. 5°, estabelecida para tais atos típicos, como O casamento, a adoção, XXII) e como princípio da Ordem Econômica e Financeira (CR, divórcio, o reconhecimento de filho extramatrimonial. art. 170, II), é regulada, como categoria unitária, pelo Código Civil São fontes do direito de família a Constituição da República (arts. 1.228 a 1.368) Juntamente com a autonomia privada, é proje- (arts. 226 a 230), O Código Civil (arts. 1.511 a 1.783), e legislação ção imediata, na ordem jurídica, do individualismo que marcou especial referente ao matrimônio, à união estável e às relações de direito civil dos séculos passados. Como reação do iluminismo aos Reconhece-se, assim, a família de fato, aquela que se privilégios e do sistema feudal, permitia ao indivíduo isolar-se dos baseia na simples convivência pessoal, sem casamento. demais no uso, gozo e fruição dos seus bens, de modo absoluto e exclusivo. 110 Decreto-Lei 3.200, de 19 de abril de 1941, dispondo sobre a organização e proteção da família, permitindo O casamento de colaterais de terceiro grau, mediante prévio exame que demonstre a inexistência de inconvenientes sob havidos fora do casamento; Lei 8.971, de 29 de dezembro de 1994, que regula ponto de vista da saúde; Lei n° 883, de 21 de outubro de 1949, dispondo sobre o direito dos companheiros à alimentação e à sucessão; Lei 9.263, de 12 de reconhecimento de filho extramatrimonial; Lei n° 5.478, de 25 de julho de janeiro de 1996, que trata do planejamento familiar previsto no § do art. 226 1968, sobre a ação de alimentos; Lei n° 1.110, de 23 de maio de 1950, regulando da Constituição Federal; Lei n° 9.278, de 10 de maio de 1996, que regula O § 3° os efeitos civis do casamento religioso, revogada nos arts. a pela Lei n° do art. 226 da Constituição Federal dispondo sobre a união estável; Lei 9.975, 6.015, 31/12/1973 (arts. 71 a 75); Lei 4.121, de 27 de agosto de 1962, alte- de 23 de junho de 2000. rando a situação jurídica da mulher casada, dando-lhe novo estatuto; Lei n° 111 Cfr. Eduardo de Oliveira Leite. Procriações Artificiais e 0 Direito; Sawen, Regi- 6.015, de 31 de dezembro de 1973, que dispõe sobre os registros públicos, na na Fiuza e Hryniewicz Severo. Direito in Da Bioética ao Biodireito; Heloisa parte referente ao Registro Civil das Pessoas Naturais; Lei n° 6.515, de 26 de Helena Barboza. A Filiação em Face da Inseminação Artificial e da Fertilização "in dezembro de 1977, que regula os casos de dissolução da sociedade conjugal e vitro"; Guilherme Freire Falcão de Oliveira. Mãe só há duas. contrato de gestação; do casamento; Lei 8.009, de 29 de março de 1990; Lei n° 8.069, de 13 de julho Paula Martinho da Silva. A Procriação Artificial. Aspectos Jurídicos. Cfr. Simão Isaac de 1990, que institui O Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei n° 8.560, de Benjó. União Estável e seus Efeitos Econômicos em Face da Constituição Federal; Semy 29 de dezembro de 1992, que regula a investigação de paternidade dos filhos Glanz. União Estável; Zeno Veloso. União 24 24180 Direito Civil - Introdução 0 Direito Civil. Gênese e Evolução. 181 O direito de propriedade consiste no poder jurídico de alguém Nos ordenamentos jurídicos da época moderna (séc. XVIII e usar, gozar e dispor de seus bens, e de reavê-los de quem injustamen- XIX) propriedade e liberdade são intimamente ligadas. A proprie- te os possua (CC, art. 1.228). É direito subjetivo por excelência, O dade configura-se, assim, como um poder pleno e exclusivo do pro- mais complexo e absoluto, definido na lei civil e garantido constitu- prietário, e como um princípio de organização política e econômica cionalmente (CR, art. 5°, XXII), como suporte da vida econômica da sociedade À propriedade privada cabe, por isso, pa- individual. pel de princípio organizativo das relações econômicas e sociais, que A descrição contida no Código Civil é analítica e estrutural, des- está na base da sociedade moderna gerada pela Revolução France- tacando as diversas faculdades jurídicas que compõem O direito de propriedade, jus utendi (direito de usar), o ius fruendi (direito de existe profunda conexão entre fruir, gozar, de perceber seus frutos) e ius abutendi (direito de dade, empresa e dispor). Mas O proprietário também tem deveres, pelo que o direito A propriedade é um dos institutos jurídicos que mais diretamen- de propriedade mais se apresenta como uma situação jurídica com- te refletem as mudanças nas condições econômicas e sociais e, por- preensiva de poderes e deveres, que vem a caracterizar a sua fun- tanto, objeto de particular atenção dos historiadores, filósofos e eco- ção social. nomistas. O século XX assiste a grandes transformações na proprie- O direito romano usava inicialmente termo dominium e depois dade, como instituição e como direito, por efeito do processo de proprietas como poder de uma pessoa sobre seus bens, móveis e imó- mobilização e de desmaterialização da Constata-se de- veis e até pessoas, consideradas como elementos do patrimônio clínio da noção unitária da propriedade, desenvolvendo-se a idéia (mulheres, filhos, servos, escravos). O direito medieval, que com os de um instituto plural. Não mais a propriedade mas as proprieda- glosadores e pós-glosadores desenvolveu elaborada teoria geral dos des, dada a diversidade do objeto (propriedade mobiliária e imobi- direitos subjetivos, considerava-a como atributo da personalidade liária, propriedade urbana e rural ou agrária, propriedade de águas, humana, em sentido filosófico, e passou a utilizar termo proprietas, de minas, propriedade intelectual, industrial, patentes, marcas, pro- característica do que pertence à própria pessoa. Na época moderna, priedade literária, artística e científica, etc.). A propriedade con- consagrada pelo liberalismo e definida pelo Código de Napoleão temporânea apresenta-se, assim, caracterizada pelo pluralismo de (art. 544), a propriedade consagrou-se como um direito unitário, seus objetos, tendo mais significado a atividade do que a titularidade absoluto, perpétuo, exclusivo e ilimitado. Unitário no sentido de ha- do sujeito proprietário, em função do interesse social. De sentido ver um só tipo de propriedade, ou domínio, embora passível de inicialmente estático, como previsto no Código Civil, é hoje um ins- conteúdos diversos. Absoluto, por deixar ao arbítrio do seu titular a trumento de que se utiliza a dinâmica iniciativa econômica. decisão sobre a conveniência e modo de seu aproveitamento. Perpé- tuo, por não se extinguir pelo não uso. É a duração física da coisa Com as transformações da sociedade a idéia do que determina a permanência do Exclusivo, porque com social começa a prevalecer sobre a do individual, levando a uma in- eficácia erga omnes, tendo proprietário direito de impedir qual- tervenção crescente do Estado no domínio econômico, que suscita quer invasão na esfera do seu Ilimitado, no sentido da in- dois novos temas, o da função social e do abuso do determinação do exercício das faculdades que o compõem, e por A função social da propriedade e o abuso do direito são constru- isso mesmo elástica, porque suscetível de contração e distensão, con- ções teóricas, decorrentes da passagem do Estado de Direito, ou forme seja privada ou não, de qualquer das suas faculdades. Assim liberal, de atividade negativa no sentido de limitar-se a garantir "o sendo, a propriedade era considerada projeção da personalidade livre jogo dos poderes e interesses individuais", para Estado Social, individual e, conseqüentemente, protegida por ser um de seus atri- butos. 114 Vicenzo Roppo. Istituzioni di diritto privato, p. 234. 115 Barcellona, p. 252. 112 Vicent L. Montés. La Propriedade Privada en el Sistema del Derecho Civil Con- 116 Idem, p. 275. temporaneo, p. 70. 117 Roppo, p. 235. 113 Montés, p. 75. 118 Francesco Lucarelli. Diritti civili e istituti privatistici, p. 208 e 210.182 Direito Civil Introdução 0 Direito Civil. Gênese e Evolução. 183 de ação positiva no sentido de intervir na ordem econômica e social, 23. contrato tendo em vista os interesses coletivos. A função social liga-se ao exercício da propriedade de acordo Se a propriedade é um dos institutos fundamentais da ordem com as exigências do bem comum. Significa que proprietário não jurídica privada, constituindo-se na base da vida econômica dos in- tem apenas poderes, mas também deveres no exercício do seu direi- divíduos, e no instituto básico do direito civil no campo da estática to. Com tal sentido, dispõe O Código Civil no par. 1° do seu artigo patrimonial, contrato e as relações jurídicas dele decorrentes, as 1.228 que "O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com obrigações, são elemento dinâmico do direito patrimonial, tendo as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de por objetivo a cooperação das pessoas por meio da prestação de conformidade com o estabelecimento em lei especial, a flora, a fauna, as serviços, e a circulação dos bens econômicos. belezas naturais, equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, Propriedade e contrato são assim os institutos representativas do bem como evitada a poluição do ar e das águas." No caso da propriedade individualismo jurídico e da liberdade no direito civil, de modo a rural, ela cumpre a sua função social quando tem aproveitamento poder afirmar-se ser direito civil ordenamento jurídico dos par- adequado; quando utiliza bem os recursos naturais disponíveis e ticulares, fundado no princípio da igualdade de poder perante a lei preserva ambiente; quando respeita as disposições normativas do e construído com base no reconhecimento de uma esfera de sobe- trabalho, e quando a sua exploração favorecer bem-estar dos pro- rania individual, cujas mais evidentes manifestações são o princípio prietários e dos trabalhadores (CR, art. 186). Função social significa da liberdade, com referência à pessoa, a propriedade, com referência à papel que instituto jurídico exerce na sociedade, principalmen- relação pessoa e bens da vida, e contrato, com referência à atividade te quanto aos efeitos que produz, relativamente a terceiros. livre e discricionária dos indivíduos. Tais aspectos permitem carac- O abuso de direito resulta da concepção segundo a qual os di- terizar objeto ou a matéria do direito civil, como aquele conjunto reitos subjetivos não podem ser exercidos de modo a prejudicar de relações ou setor de experiência jurídica em que desempenha terceiros (V. Capítulo VI, item 17). Nascida e diretamente ligada ao papel proeminente a autonomia reconhecida aos indivíduos e que se direito de propriedade, essa teoria aplica-se tanto aos direitos patri- traduz na liberdade, como valor individual, na propriedade, como se- moniais quanto aos extrapatrimoniais, como, por exemplo, exer- nhoria dos bens, e na autonomia privada, como poder de auto-regu- cício abusivo do pátrio poder, no caso de proibição de visita dos lamentação jurídica dos próprios interesses por meio do negócio netos aos 119 Seu problema consiste, no final de contas, no es- jurídico, de que são mais importantes espécies contrato e testa- tabelecimento de limites ao exercício dos direitos subjetivos, que mento. Tais institutos seriam a expressão das três liberdades funda- não podem exceder os impostos pela boa-fé, pelos bons costumes, mentais do direito civil, a liberdade de contratar, a liberdade de ser ou pelo fim social ou econômico desse O abuso de direito proprietário e a liberdade de testar, liberdades essas às vezes limita- é hoje considerado um ato ilícito (CC, art. 187). No caso específico das pela intervenção do Estado no âmbito da autonomia individual, da propriedade, proibem-se os "atos que não trazem ao proprietário por meio das regras de ordem pública e dos bons qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de pre- O contrato é acordo de vontades contrapostas para fim de judicar outrem". (CC, art. 1.228, § criar, modificar ou extinguir relações jurídicas, em que uma das O sistema jurídico da propriedade compõe-se hoje, no direito partes pode exigir da outra uma prestação específica. a figura-sím- brasileiro, de a) normas constitucionais, que a reconhecem como bolo da igualdade formal dos sujeitos 122 e constitui-se na direito fundamental (CR, art. caput), estabelecem a sua garantia fonte principal das obrigações, restrita, porém, a liberdade de con- (CR, art. 5°, XXII), e a condicionam à sua função social e permitem tratar aos limites decorrentes da função social do contrato, isto é, a a desapropriação (CR, art. 5°, XXIV); b) normas ordinárias, do Có- sua eficácia em face de terceiros (CC, art. 421). digo Civil (arts. 1.228 a 1.368) e leis especiais. 119 Orlando Gomes, p. 116. 121 Franz Wieacker. Diritto privato e società industriale, p. 13. 120 Código Civil português, art. 344. 122 Pietro Barcellona. Diritto privato e processo economico, p. 53. 26 26184 Direito Civil Introdução 0 Direito Gênese e Evolução. 185 24. A empresa que Código Civil denomina de Direito de Empresa, objeto do Livro II da Parte Especial do Código (arts. 966 a 1.195), compreen- A empresa é um novo instituto no sistema do Código Civil. Sua de a disciplina do Empresário, pessoa natural, da Sociedade (pessoa inclusão realiza uma das diretrizes fundamentais do seu anteproje- jurídica), do Estabelecimento e dos Institutos Complementares (re- to, segundo a qual Código se compreende como a lei básica do gistro, nome empresarial, prepostos e escrituração). direito privado, promovendo a unidade das obrigações e integran- do no sistema do Código a disciplina das atividades negociais ou empresariais, "como desdobramento natural do Direito das Obriga- 25. A responsabilidade civil ções". Realiza também um dos princípios gerais da ordem econômi- ca constitucional, a liberdade de iniciativa econômica (CR, art. Além da personalidade, da família, da propriedade, do contrato 170). O Código Civil não a conceitua, definindo apenas seu agente e da empresa, a responsabilidade civil é também instituto funda- titular, empresário que, na forma do art.966, é quem exerce pro- mental do direito privado. fissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou A expressão responsabilidade civil significa, em senso estrito, a a circulação de bens ou serviços. Não se empresá- obrigação de indenizar. rio, quem exercer profissão intelectual, de natureza científica, lite- Seu fundamento é, na doutrina clássica e tradicional, a culpa. rária ou artística, salvo se exercício da profissão constituir elemen- Modernamente, com as mudanças nas condições de vida, princí- to da empresa. pio da culpa tem-se mostrado insuficiente, desenvolvendo-se a tese Do ponto de vista econômico a empresa é uma organização de de que o dano deve ser indenizado independentemente da culpa do capital e trabalho. A partir desse conceito, podemos defini-la juridi- agente, bastando risco decorrente de uma atividade econômica camente como sendo uma atividade econômica organizada para a lucrativa. Temos, assim, duas espécies de responsabilidade, a subje- produção e circulação de bens e serviços, um conjunto organizado tiva, baseada na culpa do agente, consubstanciada na prática de ato de elementos (capital e trabalho), destinado à produção para mer- ilícito (CC, art. 186), e a objetiva, especificamente determinada em lei (CC, art. 931). Essa atividade exerce-a profissionalmente a pessoa (natural ou Outra classificação, aliás, consagrada nos códigos em geral, é a jurídica) do empresário (art. 966), que dispõe de um conjunto de que distingue a responsabilidade contratual da extracontratual, meios chamado de estabelecimento. A empresa é, portanto, uma conforme a natureza do direito lesado. Quando o comportamento atividade econômica organizada, que se exerce profissionalmente, lesivo do agente ofende direito subjetivo relativo, inserido em uma com três elementos concretos, empresário, a atividade e estabe- relação jurídica obrigacional, geralmente nascida de contrato, a res- ponsabilidade é contratual. Se direito subjetivo lesado é absoluto, A empresa é elemento fundamental da economia contempo- independente de relação jurídica preexistente, a responsabilidade rânea, instrumento imprescindível para a realização das atividades é extracontratual, e tem sua origem no ato ilícito (CC, art. 186). A mercantis e industriais em massa. E elemento da organização eco- responsabilidade civil é hoje um dos mais criativos setores da ciência nômica que, pela sua complexidade, é objeto de várias disciplinas jurídica. Novos desafios sociais, causados pelo enorme progresso in- jurídicas, conforme esses elementos sejam de natureza pessoal, ma- dustrial e tecnológico, pelas novas formas de energia e também de terial ou imaterial, sendo preponderante nessa disciplina direito exercício profissional, suscitam novas espécies de dano e exigem comercial moderno, do qual a empresa é "centro das suas cogita- novas respostas jurídicas. Desenvolve-se uma teoria geral da respon- çõese de sua problemática". A regulamentação legal dessa matéria, sabilidade e configuram-se responsabilidades especiais, como a res- ponsabilidade profissional (advogados, médicos, fabricantes, trans- portadores, construtores, banqueiros, administradores de empresas 123 Manuel Broseta Pont. Manual de Derecho Mercantil, p. 80. etc.), a responsabilidade ambiental, a responsabilidade do Estado 124 Waldírio Bulgarelli. A Teoria da Empresa, p. 213. etc. 27186 Direito Civil - Introdução 0 Direito Civil. Gênese e Evolução. 187 26. A sucessão hereditária sua vida particular contra a ingerência do poder político. Desse va- lor nasceu a pretensão de estabilidade dos códigos, considerados Como último instituto, temos a sucessão hereditária, com a qual como capazes de abarcar em todo O seu sistema a multiplicidade das se conservam os bens dentro da mesma família por gerações suces- relações jurídicas privadas. Constatando-se, porém, a incapacidade sivas. O fenômeno sucessório, disciplinado no direito das sucessões, do sistema econômico de resolver, por si só, os problemas inerentes consiste na substituição da pessoa, por sua morte, na titularidade de ao seu funcionamento, tornou-se inevitável a intervenção do Estado seu patrimônio, que é a herança, pelas pessoas que falecido indi- no campo,da economia, levando a segurança individual a ocupar car no ato de última vontade, chamado testamento (sucessão testa- lugar secundário na hierarquia axiológica que fundamentava as mentária), ou, na ausência dessa disposição, na forma disposta em instituições civis do século passado, em favor da segurança coletiva lei (sucessão legítima). e do bem comum. No fenômeno sucessório manifestam-se três ordens de interesse: Em segundo lugar, a justiça, como valor em si, dá lugar à justiça individual, do falecido, que atribuiu seus bens por meio de testa- social, noção de contornos imprecisos que significa a justiça que mento; familiar, garantido pela legítima reserva, isto é, a parte da exige de todos e de cada um O necessário para bem comum. Seu herança que a lei estabelece em favor dos herdeiros necessários objetivo é a distribuição mais das riquezas entre os ho- (CC, arts. 1.845 e 1.850), e pelas disposições legais que se aplicam mens e, nesse particular, constitui-se em um dos pontos fundamen- no caso de não haver testamento; e O social, representado pelos im- tais da doutrina social da igreja, sendo consagrado na Constituição postos e taxas devidos pela transmissão dos bens e pelos processos brasileira, no seu capítulo da ordem econômica e financeira (CR, judiciais e administrativos a ela pertinentes, e pela hipótese de he- art. 170). rança vacante quando, não comparecendo herdeiros do falecido, a Mas é na liberdade, em suas vertentes da autonomia privada e herança vai para Estado. A sucessão pode ser legítima ou testamen- no direito de propriedade, pleno e absoluto, que se manifestam as tária, conforme a ela se apliquem as normas legais ou as que fale- mais profundas modificações. cido estatui no ato, de última vontade, que é seu testamento. Desde início do século, com as exigências de mudança impos- tas pela revolução industrial, que mostrava a diferença cada vez maior entre a igualdade formal, de todos perante a lei, e a desigualdade 27. direito civil Tendências e características material, que afastava as classes menos favorecidas, vem O Estado ser- vindo-se do direito não mais para garantir a ordem e a segurança, O direito civil contemporâneo atravessa uma fase de transforma- mas, principalmente, para promover reformas sociais. ções nos seus valores e nos seus aspectos formais e materiais, perden- O Estado liberal, Estado burguês ou Estado de Direito, assim do a nitidez e a clareza da sua construção inicial e gerando as incer- conhecido porque submetido ao ordenamento jurídico por ele pró- tezas que contribuem para a chamada crise do direito. Esta é uma prio elaborado, caracterizava-se pela separação dos poderes, pela crise de paradigmas, que se revela na inadequação dos institutos limitação do poder político, pela garantia dos direitos individuais, jurídicos herdados do direito moderno (séc. XIX) para a solução dos pela distinção direito público/direito privado e pela abstração e ge- problemas da sociedade contemporânea. neralidade das normas respectivas. Sua função básica era garantir os À semelhança do direito em geral, direito civil tem como valo- direitos, principalmente a liberdade e a propriedade. Com a inter- res fundamentais a segurança e a justiça, e como valores específicos venção crescente do poder público na economia e no trabalho, re- a liberdade e a igualdade. No seu aspecto formal é Código Civil a conhecendo o direito dos trabalhadores, protegendo a família, ins- sua maior expressão, constituindo, com leis especiais e com disposi- tituindo a previdência social, criando mecanismos de controle de tivos da própria Constituição, vasto sistema jurídico de direito pri- preços, intervindo, enfim, na matéria até então reservada à iniciati- vado. Que alterações se vislumbram em tal conjunto? va individual, Estado de Direito transforma-se em Estado Em primeiro lugar a segurança, valor fundamental dos códigos civis do século passado, que, consagrando a separação entre a socie- dade civil e Estado, visavam proteger a liberdade do indivíduo na 125 Paulo Bonavides. Do Estado Liberal ao Estado Social, p. 208. 28 28188 Direito Civil Introdução 0 Direito Gênese e Evolução. 189 tão bem estruturado na Constituição de caracterizando- A propriedade é um direito subjetivo que consiste no poder da se pela prioridade concedida à justiça social, pela supremacia da pessoa usar, gozar, dispor e reivindicar seus bens (CC, art. 1.228) segurança coletiva sobre a individual e pela importância dos direitos Por sua importância no sistema jurídico, considera-se também uma econômicos, sociais e culturais dos situação jurídica ou até um instituto jurídico. O termo função con- Com advento do Estado social ou intervencionista, indivi- trapõe-se a esse direito, pois traduz um poder que deve ser exercido dualismo típico e fundamental do direito privado, expresso nos có- digos civis francês e alemão, entra em crise, como resultado da con- no interesse de Pode a propriedade ser, ao mesmo tempo, direito e função, no sentido de o proprietário utilizar bem no seu tradição entre os ideais jurídicos da burguesia e o anseio da justiça interesse, e, simultaneamente, no interesse de outrem? Essa contra- das classes menos favorecidas. O valor da liberdade supera-se com ideal da socialização e da presença do Estado na economia. dição dialética supera-se com entendimento de que a função cial diz respeito não ao direito em si mas às coisas que formam o seu A autonomia privada vem a ser gradativamente limitada por prin- que a norma constitucional pretende é estabelecer uma cípios e normas que, regulando os interesses fundamentais do Esta- do ou no direito privado, as da ordem exigência de destinação social, ou seja, um aproveitamento comum econômica e moral da sociedade, passam a constituir a chamada dos recursos e das riquezas, mobiliárias e imobiliárias, ainda que ordem pública. Divide-se esta, quanto às suas finalidades, em ordem sejam de propriedade particular. proprietário tem, além de pode- pública política e moral, pertinente à organização do Estado e dos res, deveres. A propriedade deixa de ocupar, assim, a posição cen- poderes públicos, da família e dos bons costumes, e ordem pública tral que lhe reconheciam os códigos civis do século passado, de econômica e social, que compreende a ordem pública de direção (inter- modo coerente com a evolução econômico-social, pois não é idên- vencionismo e dirigismo estatal) e de proteção (disciplina dos contra- tico o papel da propriedade em uma economia agrária e em uma de tos, proteção ao consumidor, contratos de adesão, contratos regula- capitalismo avançado, como é a dos nossos O interesse social mentados etc.). supera o interesse individual. Mesmo assim permanece a autonomia privada como princípio Outra particular mudança que se verifica é a fragmentação do fundamental, embora limitada, no seu campo de atuação, pela or- tradicional conceito unitário de propriedade. Não mais só uma dis- dem pública e pelos princípios da justiça contratual e da ciplina da propriedade, mas diversas, correspondentes aos vários Justiça contratual é a justiça comutativa, segundo a qual, nos contra- processos de utilização dos bens. Não mais uma propriedade, mas tos, cada parte deve receber equivalente ao que A boa-fé, com- várias propriedades. Não mais a unidade conceitual do direito sub- plemento da justiça contratual, é a lealdade das partes no cumpri- jetivo, mas pluralismo dos estatutos da propriedade. A nova pro- mento de suas prestações. priedade caracteriza-se, desse modo, pela relatividade do direito e A propriedade é outro instituto que sofre substanciais mudanças, pela variabilidade do seu de acordo com o tipo de des- deixando de ser um direito absoluto e passando a ter função social, tinação e de organização. Várias propriedades são diferenciadas no como disposto na Constituição da República, art. 170, III. seu conteúdo, como a propriedade imobiliária urbana e a proprie- dade rural, a propriedade industrial, a propriedade dos bens de 126 É a Constituição do Reich alemão, aprovada em 11 de agosto de 1919 na produção e de bens de consumo, a propriedade pública e a particu- lar, a propriedade individual e a cidade de Weimar. "É a primeira das grandes Constituições européias a interes- sar-se profundamente pela questão social, em contraste com a aparente neutra- direito de família também sofre profundas alterações. Aumen- lidade das constituições liberais do século passado". Jorge Miranda. Manual de ta o número de uniões livres e o Estado reconhece-as, dando assim Direito Constitucional, I, p. 193. 127 Marcelo Rebelo de Souza. Estado Social, in Polis Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado, II, p. 129 Francesco Galgano. Diritto privato, p. 115. 128 Jacques de droit La formation du contrat, ps. 228 a 239. 130 Stefano La e l'impresa, in Il diritto privato nella società Sobre a boa-fé como limite ao exercício dos direitos subjetivos, cfr. Judith Mar- moderna, p. 313. tins Costa, A Boa-Fé no Direito Privado, p. 455 e Mário Júlio Almeida Costa. 131 Francesco Diritti civili e istituti privatistici, p. 218 e 219. Direito da Obrigações, p. 95 132 Pietro Perlingieri. Il diritto civile nella legalità costituzionale, p. 467. 29190 Direito Civil Introdução 0 Direito Civil. Gênese e Evolução. 191 eficácia jurídica a situações de fato. Disciplina-se divórcio, desenvol- do é chamado a intervir para organizar as relações econômicas en- vem-se os métodos de prova no reconhecimento da filiação, regula- tre os particulares, ou entre estes e próprio Estado, aplicando nor- menta-se a inseminação artificial. Socializam-se os deveres familiares mas de direito administrativo, que, visando regular a economia, e Estado intervém na disciplina desses deveres. Desaparece poder orientando a produção e disciplinando consumo, toma O nome de marital, os cônjuges equiparam-se na titularidade de direitos e deve- direito econômico. res, assim como os filhos. pátrio poder transforma-se em pátrio de- II) Ressistematização da matéria civil, com um novo processo de codifi- ver. Enfim, os princípios da liberdade e da igualdade compatibilizam- cação. A inadequação do Código Civil para os desafios da sociedade se com os interesses superiores da família, como realidade subjacen- pós-industrial (V. Cap. I, item 15) foi um dos sintomas da crise que te, fixando-se, como regras jurídicas, no texto constitucional. marcou direito da segunda metade do século XX, levando a uma Essas transformações acentuam-se com as mudanças sociais do crítica da codificação e a um processo de interrelacionamento do pós-guerra e, principalmente, nas últimas décadas, com a revolução direito civil com constitucional. Este fato representou, para al- tecnológica, a mundialização da economia, progresso da medici- guns, a constitucionalização do direito no sentido de que "maté- na e da biologia, que permitem O controle da reprodução e da ge- rias tratadas pelos civilistas entraram na Constituição" e, para ou- nética, a massificação nas relações de consumo e nos meios de co- tros, a civilização do direito constitucional, representando a substitui- municação, configurando as seguintes características do direito civil ção dos fundamentos constitucionais do direito civil pelos funda- contemporâneo. mentos civis do direito constitucional, e relativizando a clássica di- I) Personalização do direito civil, no sentido da crescente importân- cotomia direito público-direito privado. Não obstante as críticas à cia da vida e da dignidade da pessoa humana, elevadas à categoria codificação, tem-se verificado um processo de ressistematização da de direitos e de princípio fundamental da Constituição. O princípio matéria civil, substituindo-se O modelo de sistema fechado e preten- da subjetividade jurídica do direito moderno, expresso na figura do samente completo, que dava segurança e certeza jurídica, pelo aber- sujeito de direito como centro de atribuição de direitos e deveres, evo- to e flexível, com princípios, regras, cláusulas gerais e conceitos in- lui para O princípio do personalismo da época determinados, aumentando O poder criador do intérprete, mas tam- nea, segundo qual todo ser humano é pessoa, individual e concre- bém a insegurança e a incerteza no direito. ta. O homem, porque é pessoa em sentido ético, é um valor em si Os Códigos Civis que serviram de modelo à codificação moder- mesmo, O que legitima O surgimento de uma nova categoria jurídi- na foram o Código Civil francês, de 1804, e Código Civil alemão, ca, a dos Direitos da Personalidade. de 1896. O primeiro representava O triunfo do individualismo libe- A personalização do direito não leva, porém, à desconsideração ral. Consagrava o direito da propriedade como absoluto, O princípio da esfera patrimonial individual. O homo privatus é ainda e sempre, da autonomia da vontade (CC francês, arts. 544 e 1.334) e a igual- um homo oeconomicus, "portador de exigências econômicas juridica- dade de direitos, dando substrato jurídico às conquistas da Revolu- mente relevantes", como atesta a introdução recente de novas figu- ção Francesa. O Código Civil alemão, sua vez, foi mais perfeito ras contratuais, próprias da sociedade pós-industrial (leasing, mer- resultado da ciência pandectística do séc. XIX, filho tardio do libe- chandising, franchising, know how, engineering, factoring, contra- ralismo ideologia de ambos era a do "liberalismo em tos na informática, alienação fiduciária em garantia). A existência de um novo ramo, direito econômico, conjunto de normas e princí- pios relativos às relações de produção, demonstra, também, a vitali- 134 Perlingieri, p. 200; Maria Celina Bodin de Moraes. A Caminho de um Direito dade das relações crescente integração dos siste- Civil Constitucional, in Direito, Estado e Sociedade, n° 1, p. 59 Joaquim Arce mas econômico e jurídico é típica da sociedade industrial contem- y El Derecho Civil Constitucional, p. 27 Carlos de porânea, de que é testemunho O planejamento econômico. O Esta- re y Aldaz, El Derecho Civil a Finales del Siglo XX, p. 75 135 Wieacker, apud Molitor-Schlosser, p. 115. Pandectística, ou ciência das Pandectas, é uma construção abstrata, conceitual e sistemática do direito priva- do alemão, tendo por base o direito romano feita pelos juristas 133 Luiz Diez-Picazo. Fundamentos del Derecho Civil Patrimonial, I, p. 41. Cf. Or- alemães do século XIX, que possibilitaram, assim, O chamado usus modernum lando Gomes e Antunes Varela. Direito Econômico, p. 17 pandectarum por meio de perfeita e completa realização do método sistemático. 30192 Direito Civil Introdução 0 Direito Gênese e Evolução. 193 política, a do capitalismo na economia e a do individualismo no direito". A doutrina posterior não foi uniforme em favor dos códi- terra, do mercado de capitais, da legislação bancária, do inqui- gos, considerando-se que a passagem para direito constitucional linato, da responsabilidade civil, dos direitos autorais, dos se- dos princípios fundamentais do direito privado transformaria Có- guros, da propriedade industrial, da proteção ao consumidor digo Civil em um ordenamento jurídico residual. Código Civil etc, a provocar significativa alteração na teoria das fontes e na inter- deixaria, assim, de ser "estatuto orgânico da vida privada", perden- pretação do direito. Notas a registrar em todo esse processo é do as pretensões tradicionais de totalidade e generalidade com que espírito de socialidade e concreção que perpassa pelos novos códi- abarcava todas as espécies de relações jurídicas privadas. Os defen- gos, particularmente a implicar tanto uma redução nos sores da tese do esgotamento do processo histórico-cultural da codi- limites de exercício dos direitos subjetivos quanto uma significativa ficação advogavam, então, a regulamentação da matéria privada não mudança na metodologia da interpretação jurídica. mais por um código civil mas por códigos setoriais, temáticos, aptos IV) Ampliação do campo temático do direito civil em virtude de a disciplinarem uma parte especial da matéria Isso não novos problemas causados pelo desenvolvimento científico e tecno- impediu, porém, a revisão e surgimento de novos códigos, por lógico, que caracterizam a sociedade do conheci- exemplo, da Hungria (1959), da Polônia (1964), de Portugal mento e da informação. O reconhecimento da pessoa como valor (1967), da República Democrática (1976), do Perú (1984), fundamental da ordem jurídica, e as possibilidades de novas espé- de Cuba (1987), da Holanda (1992), de Québec (1994), o da cies de dano, decorrentes do surgimento de outros bens jurídicos Rússia (1994), de Macau (1999) e, mais recentemente, a recodifi- de natureza pessoal e patrimonial que não os tradicionalmente re- cação do Código Civil alemão (BGB), principalmente na parte das conhecidos, abrem a possibilidade de novos conflitos de interesses obrigações, em vigor desde de janeiro de 2.002. Em 12 de janeiro e, outros setores do como a bio- de 2003 entra em vigor em novo Código Civil brasileiro, como lei ética, a informática, ambiente, e ampliam os já existentes, como a básica, mas não global, do nosso direito privado. Dispondo no seu responsabilidade civil, chamada a enfrentar os desafios da ciência e artigo que Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil, da técnica. estabelece-se como âmbito prioritário de eficácia dos direitos, pre- V) Desenvolvimento de uma nova concepção metodológica de tensões e ações de natureza civil, que deve levar ao refluxo a idéia realização do direito, no sentido de superar-se modelo tradicional de interpenetração supra mencionada do direito civil com o consti- de interpretação jurídica, que tinha na exegese do texto legal seu tucional, nos termos formulados. ponto de partida e raciocínio lógico-dedutivo como processo de III) Surgimento dos microssistemas jurídicos. Fenômeno típico das aplicação de direito, a caracterizar paradigma do pensamento sis- épocas de mudança, direito civil tem-se também caracterizado temático, em favor de um novo modelo que considera a interpreta- pelo surgimento de novos ramos jurídicos dele derivados, alguns ção jurídica uma atividade prática e constitutiva do direito, a desen- com princípios próprios, outros vinculados ainda aos princípios volver-se segundo um raciocínio dialético que tem como ponto de fundamentais do direito civil. É direito do trabalho, direito agrá- partida problema, caso concreto a resolver, e como critérios de rio, direito previdenciário, direito imobiliário, direito aero- orientação os princípios e as regras do sistema jurídico tudo isso a náutico, direito bancário, direito industrial, direito notarial, caracterizar um novo modelo, pensamento problemático. etc., inexistentes no século XIX, que surgem devido à crescente complexidade das relações jurídicas, a exigir do legislador discipli- na específica e Além desses ramos autônomos, surgem também outros sistemas específicos, leis especiais, verdadeiros mi- crossistemas legais, como das sociedades por ações, estatuto da Cfr. Giovanni Pandectistica, Digesto, XIII, p. 251. 136 Natalino Irti. L'età della decodificazione, p. 123. 31

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