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Trypanosoma cruzi
Vetor e transmissão 
Fazendo um paralelo, muitas vezes criamos um cenário na nossa cabeça do que seria típico da Doença de Chagas. Quando olhamos os dados, vemos que São Paulo, capital, e Minas Gerais, especialmente na região de Belo Horizonte, são locais com grande número de casos. Aí pensamos: “Poxa, mas pra ter Doença de Chagas não precisa ter aquelas casas de pau a pique, com frestas onde o barbeiro se aloja?” Eu, por exemplo, não consigo imaginar uma casa de pau a pique no meio da Avenida Paulista para justificar o número crescente de casos na capital. E é justamente esse o primeiro cenário que precisamos desconstruir. Esse cenário remonta ao passado, quando se acreditava que a doença só ocorreria se houvesse casas com essas características, porque apenas nelas o barbeiro conseguiria se alojar. A partir desse alojamento, tendo contato com uma pessoa infectada, ele passaria a infectar outras. Hoje sabemos que esse ciclo, chamado de ciclo silvestre — aquele que tem maior relação com áreas de vegetação — ainda existe e é importante, mas não é o único.
O barbeiro pode sair dessas áreas infectado ou, ainda, pessoas vão para essas regiões, se infectam, e voltam para seus locais de origem- sejam eles quais forem- portando o parasito. Nessas novas localidades, Nessas novas localidades, esses indivíduos podem se deparar com o vetor também presente e com outras pessoas suscetíveis à infecção, reiniciando o ciclo de transmissão. Alguém comentou, com razão, que no slide anterior estava mencionado que o Pará é o estado com o maior número de casos. E de fato, muitos desses casos estão relacionados à ingestão de açaí contaminado, pois a palmeira do açaí serve de habitat para o vetor. Como o açaí é armazenado em locais acessíveis ao barbeiro, existe risco de contaminação. Mais à frente vamos ver uma tabela com as diferentes formas de transmissão, incluindo a via alimentar, que hoje tem grande importância.
Passando para a parte epidemiológica, já começamos a abordar o que é importante para o ciclo da doença e não tem como não falarmos do vetor, é necessário conhecê-lo para entendermos o ciclo da doença de Chagas. Como comentamos antes, existem artrópodes extremamente relevantes para o ciclo biológico de outros parasitas. Lembrando que os artrópodes também são parasitas — só que ectoparasitas — e são essenciais no ciclo dos endoparasitas. Quando um parasita precisa de pelo menos duas espécies de hospedeiro para completar seu ciclo, dizemos que ele é heteroxênico. E o Trypanosoma cruzi é um exemplo clássico disso, pois precisa de um hospedeiro definitivo, como o ser humano, e de um hospedeiro intermediário, que também atua como vetor, no caso os triatomíneos, pertencentes à família Triatominae. Na cultura popular, chamamos esses insetos de barbeiros.
Esse nome popular vem do fato de que, em locais onde se usava mosquiteiro, as pessoas dormiam com o rosto descoberto — e por fobia ou calor deixavam só a face de fora. O barbeiro, então, acessava a face da pessoa e fazia hematofagia nessa região, ganhando esse apelido. Do ponto de vista biológico, os triatomíneos são vetores de infecção, porque, além de serem hospedeiros intermediários — participando do ciclo do parasito — são capazes de transportar esse parasito até o hospedeiro definitivo. Nem todo hospedeiro intermediário é vetor de infecção, mas o vetor biológico, como o barbeiro, além de abrigar o parasito, o transfere de forma ativa. Importante: nem todo hospedeiro intermediário é vetor. O vetor, além de albergar o parasita, o transporta até outro organismo.
O Trypanosoma cruzi se transmite quando o barbeiro realiza hematofagia. Em todos os estágios evolutivos (com exceção do ovo), ele é hematófago. A cada alimentação, ele pode se infectar ao sugar sangue de um hospedeiro com parasitemia. O barbeiro se infecta, adquire o Trypanosoma cruzi, através da hematofagia, mas o humano se infecta por outra via: o parasito está presente nas fezes do barbeiro (precisa defecar próximo ao local onde realizou a hematofagia). Quando o inseto pica, ele causa prurido, reação eritematosa, edema, dependendo da sensibilidade individual da pessoa. A coceira, desencadeada devido à reação inflamatória local por conta da picada, facilita a entrada do parasito pela pele lesada. A própria pessoa, ao coçar, introduz as formas infectantes que estavam nas fezes na porta de entrada que foi a picada. Esse processo acontece simultaneamente: hematofagia, prurido, coceira, defecação e infecção. Ou seja, o barbeiro pica, suga o sangue, defeca próximo, e a pessoa, ao coçar, favorece a infecção.
Quanto maior o número de espécies de triatomíneos hematófagos presentes em um ambiente, maior a chance de transmissão ao ser humano. Os triatomíneos pertencem a três gêneros principais: Panstrongylus, Rhodnius e Triatoma. No gênero Triatoma, a principal espécie é Triatoma infestans. As outras espécies também têm relevância epidemiológica, mas essa é a mais associada aos surtos humanos. O formato do corpo dos barbeiros é geralmente muito parecido: possuem um exoesqueleto rígido (cutícula) que recobre o corpo. Porém, o padrão de coloração e o tamanho variam de acordo com o gênero, e esses critérios são usados no diagnóstico morfológico e na identificação durante inquéritos epidemiológicos. Em investigações epidemiológicas, equipes multidisciplinares são enviadas para regiões endêmicas para coletar e identificar o gênero do vetor circulante. Embora para o ciclo em si não faça diferença qual é o gênero (do ponto de vista do ciclo todos exerçam o mesmo papel), a informação é relevante do ponto de vista epidemiológico.
Hospedeiros
Após tratar do vetor, voltamos ao hospedeiro definitivo, que é o ser humano. Mas também existem outros mamíferos que atuam como hospedeiros definitivos em ciclos silvestres, garantindo a manutenção do parasito em regiões onde o humano não está presente. Na ausência do ser humano, esses animais ocupam seu lugar no ciclo. Inicialmente, falava-se principalmente em gambás e tatus, mas hoje sabemos que os roedores periurbanos — sinantrópicos — também participam. Esses roedores transitam entre áreas urbanas e silvestres, e podem trazer o parasito de volta à zona urbana. Ou seja, esse sinantropismo, característico dos roedores, permite que eles convivam com humanos e se movam entre diferentes habitats, contribuindo para a disseminação do parasita. Essa novidade reforça o entendimento de que o ciclo não depende exclusivamente do ser humano. O T. cruzi consegue completar seu ciclo biológico em diferentes mamíferos, apresentando os mesmos estágios evolutivos, sem distinção morfológica ou funcional. Por isso, é classificado como um parasita eurixeno — ou seja, com amplo espectro de hospedeiros.
O Trypanosoma cruzi consegue infectar o ser humano e outros mamíferos e apresentar os mesmos estágios evolutivos em todos eles. Por isso, é considerado um parasito euryxeno, ou seja, não apresenta especificidade quanto ao hospedeiro definitivo. Em todos os hospedeiros, ele percorre as mesmas etapas morfológicas e reprodutivas. Quanto à patogenicidade, há eelatos de animais que também manifestaram sinais clínicos, como febre ou perda de peso, dependendo da carga parasitária, mas geralmente respondem melhor do que os humanos. Essa diferença leva a questionamentos sobre se o ser humano é, de fato, o verdadeiro hospedeiro mais adaptado ao parasito/definitivo, já que desenvolve manifestações clínicas graves. Entretanto, ainda não há consenso definitivo sobre essa questão.
Morfologia do Trypanosoma cruzi e ciclo da doença 
Agora, vamos falar da morfologia do Trypanosoma cruzi. Ele apresenta quatro estágios evolutivos, sendo que, desses quatro, dois compartilham a mesma morfologia, o que nos leva a reconhecer apenas três formas morfologicamente distintas: epimastigota (exclusivo do vetor), tripomastigota (formas sanguínea e metacíclica, morfologicamente idênticas) e amastigota (exclusiva do hospedeiro definitivo, intracelular obrigatória). tripomastigota metacíclico também ocorre no vetor,mas é a forma infectante que será inoculada no hospedeiro definitivo. O tripomastigota sanguíneo circula na corrente sanguínea do hospedeiro, enquanto a amastigota é a forma intracelular obrigatória, que se reproduz por fissão binária assexuada no interior das células hospedeiras. O epimastigota tem corpo alongado, com flagelo emergindo na região anterior, puxando o corpo celular e o cinetoplasto, determinando sua posição anterior (estrutura que contém a mitocôndria e o DNA mitocondrial). Esse cinetoplasto tem forma de bastonete. O núcleo fica em posição posterior ao cinetoplasto, e o flagelo é aderido/se associa ao corpo celular por uma membrana ondulante, característica morfológica importante para o diagnóstico.
O tripomastigota também tem corpo alongado e possui um flagelo também emergindo anteriormente, mas o cinetoplasto ocorre em posição posterior ao núcleo, em forma ovalada, o que dá a impressão de dois núcleos quando observado em lâmina. A membrana ondulante também está presente. Como o tripomastigota metacíclico e o sanguíneo são morfologicamente idênticos, essa forma é representada por uma única configuração no diagnóstico. A amastigota é ovalada, intracelular (interior das células hospedeiras), tem cinetoplasto justo-nuclear (próximo ao núcleo) em forma de bastonete, e o flagelo ainda é interno e não exteriorizado, tornando-se invisível em microscopia de luz. Com o tempo, o flagelo emerge. z. As amastigotas se agrupam em “ninhos de amastigotas” dentro das células, principalmente musculares, onde se multiplicam por fissão binária até que a célula seja lisada, liberando as amastigotas e outros estágios em diferentes fases de desenvolvimento. Essa lise celular é o que inicia os danos teciduais que caracterizam a forma crônica da doença. Essas estruturas podem ser observadas por microscopia óptica, tanto em lâminas coradas quanto em preparações frescas. No caso do xenodiagnóstico, que será explicado adiante, o exame busca especificamente a presença da forma epimastigota no intestino do barbeiro após ele se alimentar do sangue do paciente suspeito. Todas essas formas intracelulares que observamos — as chamadas “ninhos de amastigotas” — são formadas a partir da diferenciação de tripomastigotas metacíclicos que invadem as células hospedeiras.
O tripomastigota apresenta tropismo por células musculares cardíacas, mas também pode invadir outras células nucleadas. Uma vez que o parasita entra na célula hospedeira — processo que será detalhado mais adiante — ele se diferencia em amastigota e se multiplica. Ao romper a célula, libera amastigotas, formas intermediárias e tripomastigotas, que podem infectar novas células ou permanecer na corrente sanguínea, permitindo que sejam ingeridas por um novo barbeiro durante a hematofagia.
Esse ciclo entre o tripomastigota sanguíneo no humano e a forma epimastigota no vetor culmina na produção de tripomastigotas metacíclicos infectantes no intestino do barbeiro, por meio de um processo molecular chamado metaciclogênese. Assim, ao realizar uma nova hematofagia, o barbeiro defeca próximo ao local da picada, liberando os tripomastigotas metacíclicos que penetram a pele por meio de microlesões ou coceira provocada pela picada.
O ciclo, portanto, se dá da seguinte forma: o tripomastigota metacíclico presente nas fezes do vetor penetra a pele do humano e invade células nucleadas, principalmente musculares. Lá, se diferencia em amastigota, que se multiplica, causa lise celular e se transforma novamente em tripomastigota. Parte dessas formas reinvade novas células, e parte permanece na corrente sanguínea. Quando o barbeiro se alimenta novamente, ingere os tripomastigotas sanguíneos, que no intestino do vetor se transformam em epimastigotas, multiplicam-se e passam por metaciclogênese para gerar novos tripomastigotas metacíclicos.
A entrada do parasito na célula hospedeira se dá através de receptores específicos. O tripomastigota metacíclico utiliza o flagelo para reconhecer receptores de fibronectina da célula hospedeira. Essa interação ativa vias de endocitose semelhantes à fagocitose, com formação de uma vesícula intracelular. Essa vesícula se funde com lisossomos, formando um fagolisossomo. No entanto, o T. cruzi secreta proteínas que neutralizam esse ambiente hostil, permitindo que escape da vesícula e passe ao citoplasma, onde se diferencia em amastigota e se multiplica.
Esse processo está na base da fisiopatologia das manifestações clínicas. A lise de células infectadas/hospedeiras, especialmente musculares, após a intensa replicação das amastigotas libera os parasitos no interstício e na corrente sanguínea e promove um processo inflamatório local, que será responsável pelos sintomas da fase aguda e, futuramente, pelas alterações anatômicas e funcionais da fase crônica. Parte dessas formas parasitárias reinfecta novas células e outra parte permanece circulante, tornando possível que um barbeiro se infecte ao sugar o sangue do indivíduo. Quando o vetor ingere esse sangue infectado, ele consome várias formas parasitárias, mas apenas o tripomastigota sanguíneo é capaz de se diferenciar em epimastigota no intestino do inseto. Os epimastigotas então se multiplicam assexuadamente e se transformam em tripomastigotas metacíclicos — forma infectante para o humano — por meio da metaciclogênese.
Esse ciclo é contínuo e complexo, envolvendo diferentes ambientes e formas parasitárias em constante transição. No contexto da infecção humana, o período entre a entrada do parasito e o aparecimento das manifestações clínicas é denominado período de incubação ou de prepatência, que varia conforme a via de infecção. Na transmissão vetorial, esse período pode durar de 4 a 15 dias, na oral de 20 a 22 dias, na transfusional de 30 a 40 dias e, nos acidentes laboratoriais, em torno de 20 dias. Em outras formas raras e hipotéticas de transmissão, como sexual, por beijo ou violência, esse período ainda não está bem estabelecido na literatura.
Trajetórias clínicas
Após a infecção, o indivíduo pode seguir por diferentes trajetórias clínicas. Na fase aguda da doença de Chagas, geralmente observada entre uma a duas semanas após a infecção, há intensa parasitemia, com abundância de tripomastigotas sanguíneos circulando. A multiplicação intensa do parasito nos tecidos também gera resposta inflamatória significativa, especialmente nos locais de entrada do parasito. O sinal mais clássico de porta de entrada é o chamado sinal de Romaña, caracterizado por edema periorbital unilateral, geralmente acompanhado de hiperemia conjuntival, linfadenopatia local e, eventualmente, febre e prostração. Há também casos de chagomas de inoculação em outros locais da pele, como o braço ou o tronco, que manifestam edema, eritema e endurecimento.
A fase aguda pode ser sintomática ou assintomática, dependendo da carga parasitária e da resposta imune do hospedeiro. Se não for tratada adequadamente, a infecção evolui para a fase indeterminada, que pode durar de 10 a 30 anos. Nessa fase, o indivíduo permanece infectado, porém sem manifestações clínicas aparentes. Mesmo sem sintomas, há persistência do parasito em níveis subpatentes, podendo haver lesões teciduais progressivas e silenciosas, especialmente no coração e trato gastrointestinal.
Cerca de 30% dos indivíduos com infecção crônica evoluem para a forma crônica sintomática, com predomínio de três apresentações: forma cardíaca, forma digestiva (com megaesôfago ou megacólon) e forma mista. Na forma cardíaca, a invasão das células miocárdicas pelas amastigotas e a resposta inflamatória subsequente levam à fibrose, destruição do tecido muscular cardíaco e comprometimento do sistema de condução elétrica do coração. Clinicamente, isso se manifesta como arritmias, insuficiência cardíaca congestiva, cardiomegalia e, em casos graves, aneurisma apical. No exame histopatológico, observa-se infiltração inflamatória crônica e ninhos de amastigotas no miocárdio.
A forma digestiva ocorre devido à destruição dos plexos nervosos entéricos, especialmente nos segmentos esofágico ecolônico. Isso compromete o peristaltismo, levando ao acúmulo de conteúdo e dilatação dos órgãos — formando o megaesôfago e o megacólon. Os sintomas incluem disfagia, regurgitação, constipação intestinal severa e, nos casos mais avançados, obstrução intestinal. Casos extremos exigem intervenção cirúrgica. A forma mista combina manifestações cardíacas e digestivas e é comum em regiões endêmicas do Brasil.
Recentemente, alguns estudos vêm descrevendo uma possível forma neurológica da doença de Chagas, com identificação de ninhos de amastigotas no tecido cerebral de pacientes que apresentavam distúrbios neuropsiquiátricos. Entretanto, ainda não se sabe ao certo se há relação causal, pois muitos desses indivíduos já tinham condições neurológicas pré-existentes. Assim, essa forma permanece controversa e carece de evidência científica robusta.
Fase Aguda da Doença de Chagas
A fase aguda se inicia logo após a infecção do hospedeiro pelo tripomastigota metacíclico. É nesta fase que ocorre intensa parasitemia sanguínea, sendo possível detectar os tripomastigotas sanguíneos por métodos diretos (exame de sangue fresco, gota espessa, esfregaço). Esse estágio é caracterizado por um ciclo muito ativo do parasito, com repetidas invasões celulares, multiplicação intracelular das amastigotas e lise das células hospedeiras.
Como consequência direta da lise celular e do recrutamento do sistema imune, observa-se um infiltrado inflamatório importante em tecidos onde o parasito se estabelece, especialmente em células musculares cardíacas e do sistema digestivo. Esse infiltrado é responsável por parte dos sinais clínicos observados.
Clinicamente, podem surgir os sinais de porta de entrada, como o chagoma de inoculação, uma lesão inflamatória localizada, e o clássico sinal de Romaña, caracterizado por edema periorbital unilateral, geralmente acompanhado de hiperemia, prurido e eritema, reflexo do local da inoculação pelo vetor.
Outros sintomas comuns incluem febre prolongada, astenia, mialgia, adenomegalia, hepatoesplenomegalia e, em alguns casos, miocardite aguda, evidenciada por alterações no eletrocardiograma e dor torácica. Pode haver linfadenite, devido à inflamação do endotélio linfático quando o parasito penetra por essa via. Raramente, ocorre meningoencefalite aguda, especialmente em crianças pequenas e imunossuprimidos.
Nem todos os pacientes apresentam sintomas. A manifestação clínica depende de fatores como a carga parasitária, o estado imunológico do hospedeiro e o número de reinfecções. Casos leves podem passar despercebidos, o que dificulta o diagnóstico precoce.
Fase Indeterminada Doença de Chagas
Após a resolução da fase aguda, cerca de 70% dos pacientes entram na fase indeterminada, caracterizada pela ausência de sinais e sintomas clínicos evidentes. Nessa fase, o parasito pode continuar presente no organismo, mas em baixos níveis, com parasitemia muitas vezes ausente ou intermitente.
Mesmo sem sintomas, é possível detectar alterações histopatológicas discretas em exames especializados, especialmente em tecidos que foram alvo de lesão durante a fase aguda. O paciente pode viver nessa fase por décadas (10 a 30 anos), e muitos morrem por outras causas sem nunca ter desenvolvido manifestação crônica da doença.
Entretanto, a ausência de sintomas não significa cura. O parasito pode persistir em nichos teciduais e, sob determinadas condições (como queda de imunidade), a doença pode evoluir para a fase crônica.
Fase Crônica Doença de Chagas
Cerca de 20 a 30% dos indivíduos infectados progridem para a fase crônica da doença. Esta fase é marcada pelo desenvolvimento de alterações anatômicas e funcionais importantes, decorrentes do processo inflamatório crônico, da fibrose tecidual e da destruição de células hospedeiras infectadas ao longo dos anos.
A fase crônica pode se apresentar de três formas principais:
1. Forma Cardíaca
 É a forma mais prevalente e grave. O tropismo do parasito pelas células musculares cardíacas leva à destruição progressiva do tecido miocárdico e ao espessamento da parede cardíaca por fibrose. O resultado é a perda da força contrátil, gerando insuficiência cardíaca congestiva, cardiomegalia e, em casos avançados, aneurisma apical do ventrículo esquerdo.
 Além disso, a inflamação pode afetar o sistema de condução elétrica, resultando em bloqueios atrioventriculares, arritmias ventriculares e risco elevado de morte súbita.
2. Forma Digestiva
 Resulta da destruição dos plexos nervosos do sistema nervoso entérico, especialmente o plexo mioentérico de Auerbach, levando à perda da motilidade e ao acúmulo de conteúdo intestinal. Os principais órgãos afetados são o esôfago e o cólon.
 No esôfago, há acolia peristáltica e dilatação progressiva (megaesôfago), com sintomas como disfagia, regurgitação e perda de peso.
 No cólon, observa-se constipação grave, distensão abdominal e, em casos extremos, megacólon tóxico, com risco de perfuração e sepse.
3. Forma Mista
 Alguns pacientes apresentam simultaneamente manifestações cardíacas e digestivas. Esta forma é particularmente debilitante e está associada a maior mortalidade e complicações.
4. Forma Neurológica (Hipótese emergente)
 Embora não seja oficialmente reconhecida como uma forma clássica da doença de Chagas, estudos recentes relatam a presença de ninhos de amastigotas no sistema nervoso central. Alguns pacientes com doença de Chagas crônica apresentam manifestações neuropsiquiátricas (alterações comportamentais, demência, epilepsia), mas não há consenso sobre a relação causal. Há controvérsias se esses sintomas se devem à infecção direta ou à coexistência com outras comorbidades.
Resumo da Evolução Clínica 
· Fase aguda: alta parasitemia, sintomas inespecíficos, sinais de entrada (sinal de Romaña), miocardite, linfadenite.
· Fase indeterminada: assintomática, parasitemia baixa ou ausente, alterações histológicas discretas.
· Fase crônica: comprometimento cardíaco (insuficiência, arritmias, aneurismas), digestivo (megaesôfago, megacólon), ou ambos (forma mista).
· Diagnóstico: parasitológico direto nas fases aguda e indeterminada; sorológico ou molecular na fase crônica.
Diagnóstico 
No diagnóstico da doença de Chagas, a fase aguda e a forma indeterminada são as que oferecem melhores condições para a detecção parasitológica direta, por meio da observação de tripomastigotas sanguíneos em lâminas de gota espessa ou esfregaço corado. Já na fase crônica, onde há baixa ou nenhuma parasitemia, o diagnóstico depende de testes sorológicos, como ELISA, imunofluorescência indireta e hemaglutinação indireta. O protocolo do Ministério da Saúde exige a realização de pelo menos dois testes com metodologias distintas para confirmar o diagnóstico. Em casos inconclusivos (um teste reagente e outro não), recomenda-se a repetição dos exames e, se necessário, PCR para detectar DNA do parasito.
Outro método é o xenodiagnóstico, utilizado principalmente em áreas de difícil acesso. Consiste em permitir que barbeiros de laboratório (não infectados) se alimentem do sangue do paciente suspeito. Após alguns dias, o intestino do inseto é examinado para verificar a presença de epimastigotas. Apesar de invasivo e pouco prático, é uma ferramenta útil em inquéritos epidemiológicos.
O diagnóstico da doença de Chagas varia de acordo com a fase da infecção. Em linhas gerais, nas fases aguda e indeterminada, onde há parasitemia (circulação de tripomastigotas no sangue), os métodos parasitológicos diretos são mais eficazes. Já na fase crônica, quando o parasito se aloja nos tecidos e a parasitemia é ausente ou intermitente, utilizam-se métodos sorológicos ou moleculares, como PCR.
1. Diagnóstico Parasitológico Direto (fase aguda e indeterminada)
a) Exame de sangue fresco (gota espessa não corada)
Consiste na observação ao microscópio óptico de uma gota de sangue total sem coloração, geralmente entre lamínula e lâmina. Permite visualizar tripomastigotas móveis. É rápido e barato, mas exige grande experiência do laboratorista e uma carga parasitária relativamente altapara ser efetivo.
b) Gota espessa corada (Giemsa)
É a forma mais sensível de detectar tripomastigotas sanguíneos. O corante facilita a identificação das estruturas morfológicas do parasito, como o núcleo, o cinetoplasto e a membrana ondulante.
c) Esfregaço sanguíneo (estrigaço)
O sangue é espalhado em camada fina sobre a lâmina, corado (Giemsa ou Panótico) e observado ao microscópio. Por permitir maior distinção morfológica, é considerado superior à gota espessa para fins diagnósticos detalhados.
d) Xenodiagnóstico
Utiliza barbeiros não infectados criados em laboratório, que são alimentados com sangue do paciente suspeito. Após um período de incubação, dissecam-se os intestinos dos barbeiros em busca de epimastigotas. É um método sensível, útil em áreas endêmicas ou em inquéritos epidemiológicos, mas com limitações éticas e logísticas.
e) Hemocultura
O sangue do paciente é cultivado em meios próprios para multiplicação do parasito, com observação periódica. Tem alta especificidade, mas demora várias semanas, sendo pouco utilizado na prática clínica.
2. Diagnóstico Sorológico (fase crônica)
Como a parasitemia na fase crônica é muito baixa ou ausente, os exames sorológicos passam a ser o principal método diagnóstico. Detectam anticorpos específicos contra Trypanosoma cruzi no soro do paciente.
a) ELISA (Enzyme-Linked Immunosorbent Assay)
Alta sensibilidade e especificidade, automatizável. Detecta anticorpos IgG específicos contra antígenos do parasito.
b) Imunofluorescência Indireta (IFI)
O soro do paciente reage com antígenos do parasito fixados em lâmina. Anticorpos fluorescentes detectam a ligação. Requer microscópio de fluorescência.
c) Hemaglutinação Indireta (HAI)
Antígenos parasitários são fixados a hemácias. Em presença de anticorpos do paciente, ocorre aglutinação. É mais barato, porém menos sensível.
O protocolo do Ministério da Saúde recomenda que para o diagnóstico sorológico de Chagas na fase crônica sejam realizados dois testes sorológicos diferentes. Se os dois forem concordantes (ambos positivos ou negativos), o diagnóstico está fechado. Em caso de discordância (um positivo e um negativo), deve-se realizar um terceiro teste ou PCR para esclarecer.
3. Diagnóstico Molecular (fase crônica ou casos inconclusivos)
a) PCR (Reação em Cadeia da Polimerase)
Detecta o DNA do T. cruzi no sangue ou tecidos. Possui alta sensibilidade, mesmo em casos de baixa parasitemia. Muito útil em recém-nascidos de mães chagásicas (onde IgG materno interfere na sorologia) e para monitoramento pós-tratamento.
b) PCR em tempo real (qPCR)
Além da detecção, quantifica a carga parasitária. Pode ser usado para avaliação da resposta ao tratamento.
Tratamento
O tratamento da doença de Chagas é feito com dois antiparasitários: benznidazol (nome comercial Rochagan) e nifurtimox (nome comercial Lampit). Ambos atuam gerando radicais livres de oxigênio e intermediários reativos que danificam o parasito. Contudo, sua eficácia é limitada, especialmente na fase crônica, onde o parasito pode estar ausente ou em níveis muito baixos. Além disso, esses medicamentos apresentam efeitos colaterais importantes e contraindicações, como em gestantes, crianças pequenas e pessoas com comorbidades. Por esse motivo, o tratamento deve ser individualizado e monitorado cuidadosamente por pelo menos cinco anos após o término da terapia.
Na forma crônica, o tratamento antiparasitário não tem impacto sobre os danos teciduais já instalados. Nesses casos, o foco passa a ser o tratamento sintomático das complicações cardíacas ou digestivas. Para o acompanhamento, exames como raio-X de tórax, eletrocardiograma e ecocardiograma são utilizados para monitorar a evolução da cardiopatia chagásica. Já para os distúrbios digestivos, contrastes baritados e colonoscopia podem ser necessários.
Por fim, o caso histórico de Charles Darwin é frequentemente citado em aulas sobre doença de Chagas. Em seus relatos, Darwin descreve sintomas compatíveis com a fase aguda da doença após ser picado por triatomíneos durante sua expedição na América do Sul. Alguns estudiosos sugerem que ele possa ter desenvolvido complicações cardíacas tardias relacionadas à infecção, embora não haja confirmação definitiva.
O tratamento visa eliminar ou reduzir a carga parasitária e prevenir ou retardar as complicações da fase crônica, mas não reverte os danos já causados. Ele é mais eficaz quando iniciado precocemente, principalmente na fase aguda.
1. Fármacos Disponíveis
a) Benzonidazol (Rochagan®)
É o principal medicamento utilizado no Brasil. Mecanismo de ação baseado na geração de radicais livres e danos ao DNA do parasito, além da inibição de enzimas essenciais para a sobrevivência do T. cruzi. A dose varia conforme idade e peso do paciente. O tratamento dura de 30 a 60 dias.
b) Nifurtimox (Lampit®)
Também utilizado em alguns países sul-americanos. Tem mecanismos semelhantes ao benzonidazol. Não está amplamente disponível no Brasil, mas pode ser usado em casos de intolerância ou falha terapêutica.
2. Limitações do Tratamento
· Eficácia limitada na fase crônica, quando o parasito está localizado nos tecidos e a replicação é baixa.
· Efeitos adversos frequentes, como dermatite, polineuropatia, anorexia, perda de peso, distúrbios gastrintestinais e intolerância medicamentosa.
· Contraindicações em gestantes, pacientes com doença hepática grave, insuficiência renal ou alergia conhecida aos nitrofuranos.
3. Monitoramento pós-tratamento
Após o término do esquema terapêutico, é necessário acompanhar o paciente por 5 anos, realizando sorologia e, quando possível, PCR, para avaliar a persistência ou negativação dos anticorpos e da carga parasitária.
Critérios de cura
· Negativação dos exames parasitológicos e sorológicos (IgG anti-T. cruzi).
· Pode demorar anos para ocorrer, especialmente na fase crônica. Por isso, o acompanhamento prolongado é essencial.
Considerações finais
Em suma, a doença de Chagas é uma enfermidade complexa, com um ciclo de vida que envolve múltiplos estágios parasitários, diferentes hospedeiros e diversas formas clínicas. O conhecimento detalhado do ciclo, das manifestações clínicas e das estratégias diagnósticas e terapêuticas é essencial para o manejo adequado dos pacientes, sobretudo em regiões endêmicas. A atuação médica exige atenção à história epidemiológica, avaliação clínica minuciosa e escolha criteriosa dos exames e do tratamento, respeitando as diretrizes nacionais e internacionais.
Apesar das limitações no tratamento, o diagnóstico precoce e o início rápido da terapia antiparasitária podem prevenir as formas graves da doença. Estratégias de controle do vetor, triagem de sangue e órgãos, vigilância em gestantes e neonatos, e educação sanitária são fundamentais para reduzir a morbidade da doença de Chagas.

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