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O pé diabético é uma complicação crônica grave do diabetes. Consiste em lesões nos tecidos profundos associadas a distúrbios neurológicos e doença vascular periférica nos membros inferiores. A incidência de pé diabético aumentou devido à prevalência mundial de diabetes melito (DM) e à expectativa de vida prolongada de pacientes diabéticos. Epidemiologia O diabetes e suas complicações têm alcançado proporções epidêmicas no mundo. Trata-se de uma pandemia mundial que tem extrapolado barreiras econômicas e sociais. Globalmente, estima-se que cerca de 422 milhões de adultos viviam com diabetes em 2014, comparados a 108 milhões em 1980. O diabetes causou 1,5 milhão de mortes em 2012. O aumento da glicemia acima dos níveis considerados ideais foi responsável por um adicional de 2,2 milhões de mortes, aumentando risco cardiovascular e outras doenças. 43% das 3,7 milhões de mortes ocorrem antes dos 70 anos. Em uma revisão sistemática recente, a prevalência global do pé diabético foi de 6,3% (intervalo de confiança de 95% [IC 95%]: 5,4 a 7,3%), e a prevalência na América do Norte, Ásia, Europa, África e Oceania foi de 13,0% (IC 95%: 10,0 a 15,9%), 5,5% (IC 95%: 4,6 a 6,4%), 5,1% (IC 95%: 4,1 a 6,0%), 7,2% (IC 95%: 5,1 a 9,3%) e 3,0% (IC 95%: 0,9 a 5,0%), respectivamente. A afecção é mais comum em homens que mulheres, e em pacientes com DM 2 do que naqueles com DM 1. Os pacientes com pé diabético eram mais velhos, apresentavam menor índice de massa corporal, maior tempo com a doença e apresentavam hipertensão, retinopatia diabética e histórico de tabagismo do que pacientes sem a patologia. O diabetes parece aumentar dramaticamente o risco de amputação da extremidade em função de infecções em úlceras que não cicatrizam no pé. As taxas de amputação na população com diabetes são cerca de 10 a 20 vezes as da população de não diabéticos. De todas as amputações em pacientes diabéticos, 85% são precedidas por ulceração do pé que, posteriormente, se deteriora por gangrena ou infecção grave. Estima-se que um membro inferior é amputado em decorrência de diabetes a cada 30 segundos. Fisiopatologia Os pés com ulcerações em geral mostram-se comprometidos principalmente por isquemia e neuropatia. A associação de doença arterial obstrutiva periférica (DAOP) afeta amplamente os resultados do tratamento do pé diabético em relação à cicatrização de úlceras, amputações de membros inferiores e mortalidade. O diabetes é um dos fatores de risco individuais mais importantes da DAOP, estando associada a uma prevalência 20 vezes maior em pacientes com diabetes. Isquemia A doença arterial obstrutiva periférica (DAOP) é definida como qualquer doença arterial obstrutiva aterosclerótica abaixo do ligamento inguinal, resultando em redução do fluxo sanguíneo para as extremidades inferiores. A DAOP suprainguinal é semelhante à que ocorre entre pessoas sem DM; porém, a associada ao pé diabético é predominantemente distal, simétrica e multissegmentar. A DAOP influencia diretamente o desenvolvimento de Úlcera de Pressão no paciente Diabético (UPD) e determina a evolução mediante o grau de gravidade da isquemia. As lesões surgem após traumatismo, mesmo de pequena intensidade, predominam nas faces lateral e medial dos pés, bem como nas extremidades digitais, e são dolorosas (na ausência de PND). A DAOP constitui um fator de risco independente para UPD e amputação, além de estar associada a maior risco cardiovascular. Em geral, existe concomitância de DAOP e PND, resultando em ulcerações neuroisquêmicas, e a infecção, na presença de PND e DAOP, atua como fator complicador e ainda é o fator causal principal de amputação em países em desenvolvimento. A hiperglicemia pode contribuir de forma independente para as complicações microvasculares, na medida em que se associa ao mecanismo de estresse oxidativo por meio de ativação da via do poliol, aumento do fluxo da via de hexosamina, acúmulo de produtos finais de glicação avançada (AGE) e pela ativação da via da proteinoquinase C (PKC). endocrinologia: pé diabético Igor Mecenas Neuropatia A PND acarreta insensibilidade por dano às fibras nervosas finas (tipo C e delta) pela exposição prolongada à hiperglicemia, associada a fatores cardiovasculares e deformidades estruturais dos pés, por meio do comprometimento das fibras grossas (beta A, alfa). Este último resulta em perda da propriocepção, do movimento articular e da percepção de posição segmentar pelos receptores nas pernas e nos pés, e, em estágios avançados, em fraqueza muscular e alterações da arquitetura óssea, em consequência do envolvimento tardio das fibras grossas motoras (A alfa). Observam-se deformidades neuropáticas típicas: dedos em garra ou em martelo, proeminências de metatarsos e acentuação do arco. Consequentemente, surgem áreas de pressão anormal (cabeça dos metatarsos, região dorsal e plantar dos dedos dos pés) e modifica-se o padrão normal da marcha ao caminhar. Assim, a tríade da UPD é conjunção de PND, deformidade e traumatismo. O comprometimento das fibras simpáticas (finas) pela neuropatia autonômica (NAD) periférica resulta em diminuição ou ausência de sudorese (anidrose) e pele ressecada, predispondo a rachaduras e fissuras. Além disso, alterações na microcirculação pela denervação dos receptores nociceptivos perivasculares e pelo espessamento da membrana basal dos capilares desequilibram os mecanismos reguladores da vasodilatação e vasoconstrição, com aumento do fluxo e surgimento de fístulas arteriovenosas que desviam esse fluxo dos tecidos profundos. O resultado clínico é um pé “quente”, veias dorsais distendidas e, algumas vezes, edema. É importante ressaltar que o comprometimento microvascular é funcional, ocorre na ausência de macrovasculopatia e não é responsável direto pelas ulcerações e amputações. O processo de glicosilação não enzimática e a maior deposição de produtos avançados de glicosilação tardia (AGES) em fibras do colágeno, articulações e pele favorecem a limitação de mobilidade articular (LMA), com anormalidade de amplitude articular, sobretudo na região subtalar. Um exemplo é a incapacidade do hálux de fazer a dorsiflexão e extensão (demonstrada pela goniometria), e a combinação de deformidades nos pés, alterações no padrão da marcha e LMA resulta em modificações na biomecânica e pressões plantares anormais. O traumatismo repetitivo do caminhar não é percebido, pela perda da sensibilidade protetora plantar (SPP) e da sensibilidade dolorosa, surgindo hiperqueratose e calos, que aumentam a pressão local em até 30%. Caso a carga não seja removida e redistribuída, lesões se instalarão nas áreas de pressão das deformidades, que pioram devido à ruptura da pele e à consequente infecção. Os mecanismos fisiopatogênicos envolvidos na PND são complexos e múltiplos. Os efeitos metabólicos da hiperglicemia crônica associada ao estresse oxidativo no desenvolvimento das complicações microvasculares diabéticas estão bem estabelecidos, contudo a dislipidemia no DM2 e a redução de insulina e peptídeo C no DM1 são mais relevantes. A hiperglicemia atua no desenvolvimento da lesão e na disfunção neuroaxonal, como verificado no DCCT-EDIC (DM1) e no estudo de Kumamoto (DM2), este restrito à população japonesa, mas não se observou na maioria dos estudos com DM2. Mínimas alterações da glicemia podem lesionar fibras finas e causar dor neuropática, como observado em casos de pré-DM (IGT, IFG), porém os mecanismos ainda não estão totalmente esclarecidos, e parece que a autoimunidade pode estar envolvida. O fluxo aumentado da via hexosamina associa-se a lesão inflamatória, e o excesso de ROS induz alterações intracelulares no retículo endoplasmático e no DNA, provocando alterações funcionais da célula nervosa. No DM1, há sinalização insuficiente pela deficiência e redução do peptídeo C, causando disfunção nervosa pela reduzida atividade da Na-K-ATPase e da NO sintase endotelial (eNOS), diminuindo o fluxo sanguíneo com hipoxia endoneural. Diagnóstico A história clínica e o exame clínico são cruciais para o diagnóstico e a classificação do risco e envolvem testes neurológicos e vasculares simples, de baixo custo e boa sensibilidade. Sintomas, isoladamente, não são critérios importantes para confirmar PND ou DAOP, pois podem estar ausentes. O exame físico se inicia por avaliação do calçado e sua remoção, além de remoção das meias, e deve ser realizado regularmente a partir do 5o ano de duração do DM1 e ao diagnóstico do DM2, e o seguimento deve ser feito de acordo com o risco detectado. Deve-se realizar inspeção da arquitetura dos pés, das condições e da coloração da pele e das unhas, além de verificar a presença de pelos e realizar a palpação dos pulsos das artérias pediosas dorsais e tibiais posteriores, atentando-se para a baixa reprodutibilidade e a dificuldade diante de edema. Testes qualitativos Avaliam fibras grossas e finas, de modo qualitativo, com respostas subjetivas de presente ou ausente. Avaliação da sensibilidade vibratória É avaliada com o uso de um diapasão de 128 Hz. • O local de escolha para o teste é a parte óssea no lado dorsal da falange distal do hálux, em ambos os pés, mas alternativamente o maléolo lateral pode ser utilizado. • O teste é positivo (alterado) se o paciente responde de forma incorreta (pessoa perde a sensação da vibração enquanto o examinador ainda percebe o diapasão vibrando), em pelo menos duas de três aplicações, e negativo (normal) com duas das três respostas corretas. • Caso alterado, recomenda-se a repetição do teste em local mais proximal (maléolo ou tuberosidade tibial) Avaliação do reflexo Aquileu É obtido por meio da percussão com o martelo de reflexos ou com a digitopercussão do tendão de Aquiles. • O teste é considerado alterado quando a flexão plantar reflexa do pé está ausente ou diminuída. Testes semiquantitativos Monofilamento 10 g É instrumento constituído de fibras de náilon apoiadas em uma haste, de alta sensibilidade (86 a 100%), que representa o logaritmo (5,07) de 10 vezes a força (em miligramas) necessária para curvá-lo. Avalia a sensibilidade protetora plantar (SPP), conduzida pelas fibras grossas mielinizadas. A Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD) adotou a recomendação da American Diabetes Association (ADA) e a da American Association of Clinical Endocrinologists (AACE), adicionando as regiões indicadas pelo IWGDF (1999-2016), a saber: hálux, 1a e 5a cabeças de metatarsos e a região plantar da 3a cabeça bilateralmente. O monofilamento requer um “repouso” de 24 horas após ser aplicado em 10 pacientes, e sua acurácia diminui após 500 testes. Qualquer área insensível é considerada anormal. A combinação do teste com monofilamento e um ou mais testes qualitativos alterados diagnostica perda de SPP, uma modalidade de rastreamento de PND e risco de UPD. Bioestesiômetro e neuroestesiômetro O bioestesiômetro e o neuroestesiômetro têm maior especificidade do que o monofilamento e quantificam o limiar da sensibilidade vibratória (LSVB) pela amplitude em volts: 0 a 50 e 1 a 100, respectivamente. O limiar > 25 volts indica 7 vezes mais risco de UPD e incidência de ulceração em 20%.33 O custo é superior ao do monofilamento: 500 dólares vs. 4,25 dólares. Pressão plantar A valorização de pressão plantar (PP) como fator de risco para ulceração foi demonstrada em estudos prospectivos e transversais, que verificaram ausência de UPD em pacientes com deformidades nos pés por artrite reumatoide sem DM e PND. Vários métodos avaliam a PP, desde simples plantígrafos sem escala de força (Harris Mat®) até plantígrafos com escala de força (Podotrack/PressureStat®), validados com relação ao pedobarógrafo, que, com plataformas e palmilhas dotadas de sensores, captam, por meio da pisada, a pressão anormal; portanto, o ponto de corte, indicativo de PP anormal, varia segundo os sistemas empregados. A PP também norteia a confecção de palmilhas para aliviar a distribuição de carga. O PressureStat® possibilita também uma abordagem educativa ao mostrar ao paciente a área mais escura, indicativa de maior PP. Vasculares O diagnóstico clínico não provê valor confiável por várias limitações: (1) PND coexiste em vários pacientes e mascara os sintomas de DAOP (claudicação intermitente e dor isquêmica em repouso); (2) o exame físico não assegura a presença de DAOP nem a gravidade; (3) com UPD presente, coexistência de edema, PND e infecção, a precisão também é questionável e pode dificultar o desempenho de testes; (4) calcificação da camada média arterial (Mönckeberg) limita a compressibilidade das artérias na insuflação do manguito durante a tomada do ITB, fornecendo valores elevados. A palpação dos pulsos deve ser sempre efetuada, porém há grande variação intra e interobservadores, mesmo em mãos experientes. Para se chegar ao ITB, afere-se a pressão sistólica das artérias, toma-se o maior registro detectado e divide-se pela pressão sistólica da artéria braquial homolateral. O ponto de corte do ITB normal é > 0,9 e < 1,15 a 1,30. Um valor < 0,9 é indicativo de isquemia (sensibilidade de 95% e especificidade de quase 100%) e impõe um acompanhamento constante do paciente, inclusive pela cirurgia vascular periférica. Termometria e termografia Detecção precoce e monitoramento da inflamação/infecção tem sido descrita há vários anos, por meio da temperatura da pele com termometria a laser, objetivando diagnosticar UPD aguda ou recidiva de lesão crônica precoce, bem como monitorar a evolução do pé de Charcot. O ponto de corte ≥ 2°C de diferença entre áreas ou no pé contralateral indica presença de inflamação e/ou infecção. A termografia infravermelha na superfície do pé é também utilizada para identificar potenciais pontos quentes (hotspot). A combinação de termometria com termografia foi validada e surge como uma ferramenta mais eficaz, com melhor sensibilidade (> 60%) e especificidade (> 79%), contornando o problema de falso-positivos. Classificação O Pé Diabético pode ser classificado, segundo sua etiopatogenia, em: • Neuropático • Vascular (também chamado isquêmico) • Misto (neurovascular ou neuroisquêmico) Risco Classificação das Úlceras A definição de úlcera, segundo o glossário do IWGDF, é “lesão espessada que atinge a derme, localiza-se abaixo do tornozelo e acomete pacientes diabéticos, independentemente de sua duração”. Gangrena é definida como necrose contínua da pele e de estruturas subjacentes: músculo, tendão, osso, articulação. As UPD devem ser avaliadas em três níveis: situação clínica global (cognitiva, metabólica e hemodinâmica), membro afetado e infecção. A classificação de uma ferida no Pé Diabético é útil para orientar o tratamento, fornecer uma base de comparação da evolução e definir o risco de complicações, em especial a amputação de membro. Diversos sistemas de classificação de feridas em Pé Diabético foram desenvolvidos para predição de desfechos, mas os estudos que avaliaram a validade e a reprodutibilidade dessas classificações são, de uma maneira geral, escassos e de baixa qualidade. Classificação de Meggitt-Wagner A primeira classificação específica publicada para o pé diabético foi a de Meggitt-Wagner. Ela consiste em um sistema linear que contempla seis graus de comprometimento. Trata-se de uma classificação simples de ser utilizada, mas que apresenta limitações, como não considerar a doença arterial e a infecção nas lesões superficiais e não citar a neuropatia como fator patogênico da lesão. Apesar de “simples” e “incompleta”, ela é um excelente preditor para amputação. Classificação da Universidade do Texas Esta classificação contempla quatro graus (0 a 3) e quatro estágios (A a D) para o comprometimento do pé diabético.O grau de comprometimento corresponde à profundidade e o estágio à presença de infecção, desde o grau inicial com hiperemia, até a presença de um abscesso local. A CTU é efetiva como preditor de amputação de extremidade e é mais descritiva que a classificação Meggitti-Wagner. Essa classificação é muito utilizada na prática clínica e não contempla a neuropatia como fator a ser considerado na gravidade da lesão. Ela não apresenta um escore de gravidade, mas demonstra que os casos em que foram encontrados graus e estágios mais elevados de comprometimento aumentaram a chance de amputações maiores. Classificação SINBAD A Classificação SINBAD é simples de ser usada e não requer aparelhos específicos da especialidade, simplesmente um exame físico mais detalhado. Seu escore é obtido por meio da soma de todos os dados importantes sobre a úlcera e apresenta valor prognóstico com boa acurácia. Para a comunicação entre os profissionais da saúde é importante encaminhar o escore obtido pela SINBAD, mas também a descrição individual da lesão estudada. Esta classificação foi validada tanto para prognosticar cicatrização da úlcera quanto como preditor de amputação. Classificação PEDIS Para caracterizar e definir a úlcera do pé diabético de maneira objetiva, facilitar a comunicação entre os serviços de saúde que lidam com esta patologia e a obtenção de dados precisos que possam ser comparados e reproduzidos em pesquisas de centros no mundo todo, o International Working Group on the Diabetic Foot (IWGDP) desenvolveu a classificação PEDIS (do inglês, perfusion, extent, depth, infection and sensation). A PEDIS classifica as úlceras do pé diabético em cinco categorias de comprometimento: perfusão; extensão; profundidade/perda tecidual; infecção; e sensibilidade. A utilização principal desta classificação é na pesquisa, não excluindo a possibilidade de uso na prática clínica e nas auditorias. Escores de Sintomas e Sinais Neuropáticos O rastreamento anual para investigar a PND e PND dolorosa (PNDD) é a partir de 5 anos de duração para o DM1 e ao diagnóstico no DM2. O diagnóstico de PND é de exclusão, e outras causas de neuropatia periférica devem ser afastadas: deficiências vitamínicas (B12, B6), infecções (p. ex. HIV, hanseníase), hipotireoidismo, malignidades (síndromes paraneoplásicas, mieloma múltiplo), alcoolismo, iatrogênicas (isoniazida, vincristina, pós-quimioterapia, pós-cirurgias), doenças renais, hereditárias (amiloidose familiar), traumatismos, dentre outras. A PNDD pode ser avaliada por meio de várias ferramentas validadas, com combinação de sintomas e sinais: NDS (escore de disfunção ou comprometimento neuropático); Michigan Neuropathy Score Instrument; Toronto Clinical Scoring System; Neuropathy Symptom and Change (NSC – 38 itens); NIS-LL (Neuropathy Impairment Score of Lower Limbs), TSS (Total Symptom Scores). O NDS é o mais usado no Brasil e foi adotado pelo Programa da SBD e IWGDF: o Step by Step (SbS, Passo a Passo). O NDS inclui avaliação do reflexo Aquileu e sensibilidades vibratória, dolorosa e térmica, em ambos os pés. O escore varia de 0 a 10. Tratamento As lesões nos pés dos diabéticos são de difícil tratamento, demandam grande atenção e cuidado, e, se não tratadas corretamente, podem levar à perda do membro e até a óbito. É importante identificar e tratar a etiologia de maior relevância e indicar o curativo mais adequado para alcançar a cura da lesão. Para o planejamento do tratamento e escolha do curativo, o primeiro passo é a avaliação da lesão: localização, tamanho, aspecto do leito e borda. O segundo, é a identificação de sua etiologia e dos aspectos associados, como edema e fungos. O tempo esperado para a cicatrização primária de uma ferida é de 4 semanas; se isso não ocorrer, além do cuidado local, outros fatores podem ser responsáveis pela piora ou estagnação da ferida e devem ser abordados por equipe multidisciplinar. O adequado tratamento de lesões do pé diabético envolve três pilares: • Desbridamento mecânico/cirúrgico ou químico • Retirada de carga sobre o membro afetado • Uso de coberturas adequadas. Curativos São materiais utilizados para limpar, desbridar tecidos desvitalizados ou para manter ou recuperar um meio úmido, um ambiente favorável à cicatrização ou reparação da ferida. Sua função é manter coaptação das bordas, controle do biofilme e flora bacteriana no leito da ferida. São classificados em: • Passivos: têm a função de absorver, proteger e limpar • Ativos e interativos: provocam mudança no ambiente da ferida; alteração do pH da lesão da umidade, concentração de oxigênio local ou fatores de crescimento do tecido que melhoram a cicatrização da úlcera • Interativos: função primordial na aceleração do desbridamento, da granulação e da cicatrização. Desbridamento Geralmente, é necessário o desbridamento cirúrgico seriado e planejado para a limpeza dessas feridas. Quando isso não ocorre, substâncias desbridantes podem ser utilizadas, como: • Enzimáticos: colagenase, papaína, estreptoquinase associada à estreptodornase e dextranas; têm capacidade de quebrar moléculas maiores e destruir tecidos necróticos • Biológicos: larvas esterilizadas, alimentam-se de tecidos desvitalizados e digerem até mesmo bactérias multirresistentes • Autolíticos: hidrogéis, hidrocoloides e coberturas hidrorresponsivas. Sua ação é criar ambiente úmido e limpar a ferida. Deve-se usar com cautela em lesões isquêmicas secas, porque podem evoluir para necrose úmida. Após o desbridamento, as úlceras devem ser mantidas limpas e úmidas para facilitar a ação das coberturas e a regeneração dos tecidos. Cobertura Características de uma cobertura ideal: • Promover cicatrização/regeneração da ferida e barreira mecânica antibacteriana • Controlar o meio adequadamente úmido • Permitir trocas gasosas e de fluidos • Ser hipoalergênica e não tóxica • Ser de fácil manuseio, não aderentes e capaz de eliminar odores • Possibilitar analgesia, pouca troca e adequado custo-benefício. Uma cobertura com todas essas características nem sempre está disponível; portanto, a equipe deverá decidir qual a mais adequada com base no aspecto do leito da úlcera. Espuma de poliuretano: apresenta alta capacidade de absorção, controla umidade e é de fácil manuseio. Associada à prata ou PHMB, tem ação antimicrobiana. Alginato de cálcio e sódio: sua composição química favorece a hemostasia e desbridamento autolítico; tem poder bacteriostático, absorve fluidos e mantém a umidade. É necessária cobertura secundária. Indicado para feridas com grande exsudato. Prata: combinada com espuma e alginatos/carboximetilcelulose para aumento da absorção e em forma de pasta. Tem ação antibacteriana. Indicada para feridas muito colonizadas ou com sinais clínicos de infecção e com baixo a alto grau de exsudação. Carvão ativado: associado à prata metálica e superfície de contato não aderente. Tem ação antibacteriana, antifúngica e controla odor. Indicado para feridas infectadas, hipergranuladas, com esfacelos e necrose. Ácidos graxos: são óleos vegetais poli-insaturados. Puro ou associado ao hidrogel, alginato ou ambos. Têm ação anti-inflamatória, imunológica e promovem neoangiogênese. Mantêm a superfície úmida, auxiliam no desbridamento e no processo de granulação. Hidrocoloides: gel, pasta, grânulo ou placa. Absorve fluidos e promove desbridamento da ferida. Indicado para lesões superficiais, com pouco ou nenhum tecido desvitalizado e pouco ou médio exsudato. Hidrogel: gel à base de água e meticelulose. Pode estar associado a alginato, sais, proteínas desbridantes. Reidrata o leito, mantém a umidade e promove desbridamento. Indicado para lesões secas ou pouco exsudativas. Hidropolímeros: compostos por almofada de espuma, com camadas sobrepostas de não tecido e hidropolímero. Algumas contêm sais de prata e silicone ou glicerinapara reduzir a sua aderência e manter adequada a umidade da ferida. Limpeza Para limpeza da ferida, pode ser utilizado: Aquasept Plus Spray, Aquasept Foam, clorexidina aquosa 0,2%, clorexidina 2% degermante, solução aquosa de PHMB 0,1% e 0,2%, Ringer Lactato e soro fisiológico 0,9%. Terapia por Pressão Negativa Terapia por pressão negativa (TPN) é termo genérico e tem sido utilizado para todos os curativos de sistema fechado que apresentem unidades (bombas) de aspiração conectadas a esponjas de poliuretano. O sistema aplica pressão subatmosférica controlada de 80 a 125 mmHg na superfície da ferida, aspirando toda a área da lesão e realizando a limpeza contínua ou intermitente da mesma, adsorvendo o excesso de exsudato, diminuindo o espaço morto, estimulando a granulação tecidual e minimizando o tempo de cicatrização. A TPN pode, ainda, preparar o leito da ferida para enxertia de pele, melhorando a integração do enxerto. Oxigenoterapia Hiperbárica Entre as modalidades adjuvantes para o tratamento, encontramos a oxigenoterapia hiperbárica (OHB). Apesar de ainda encontrar-se cercada de incerteza devido à literatura de suporte ser constituída de artigos com evidência científica apenas moderada e ausência de grandes trials randomizados, ainda assim tem seu papel no tratamento, sendo utilizada em vários países do mundo. A infecção acentua e prolonga a fase inflamatória, aumenta o consumo de oxigênio e, por conseguinte, diminui sua oferta aos tecidos, além de reduzir o fluxo vascular secundariamente ao edema que se forma, retardando o início das fases subsequentes. Em conjunto, a hipoperfusão tecidual resulta na ausência de oxigênio, fator preponderante e indispensável ao processo de reconstituição celular. Sua ausência torna a oferta de energia inadequada, visto que o metabolismo anaeróbio não supre a grande quantidade de energia necessária ao trabalho de cicatrização. A migração e a proliferação de fibroblastos são sensivelmente diminuídas na fase proliferativa na vigência de hipóxia, assim como a produção de colágeno. A presença de oxigênio também se demonstrou fundamental para a produção de radicais livres por parte dos neutrófilos, com a finalidade de eliminar bactérias. Se a hipóxia influencia negativamente a cicatrização, a normalização de sua oferta, em teoria, aumenta a eficiência dos processos de regeneração tecidual. Segundo a diretriz da Sociedade Brasileira de Medicina Hiperbárica, publicada em 2019, as indicações do emprego de OHB no pé diabético complicado compreendem pacientes submetidos a desbridamento ou amputação menor (independentemente do tempo), apresentando evolução desfavorável e/ou infecções necrotizantes, com alto risco de amputação. Fármacos Tinea pedis (“micose dos pés”) São mais comuns nos espaços interdigitais (“pé de atleta”), mas podem ocorrer em outras localizações dos pés. São, frequentemente, portas de entrada para infecção bacteriana, devendo sempre ser buscadas e tratadas. O tratamento tópico geralmente é suficiente, com miconazol 2% ou cetoconazol 2%, creme, aplicado 2x/dia, por dez dias, após completa resolução do quadro, a fim de evitar recorrência. A recorrência do quadro, entretanto, é algo frequente, o que deve indicar períodos mais longos de tratamento. Uma alternativa aceitável é o uso de fluconazol 150 mg, 1 cápsula, 1x/semana, durante 1 a 4 semanas. Onicomicose (“micose das unhas”) Uma vez que seu tratamento é prolongado e passível de efeitos colaterais relevantes, recomenda-se, sempre que possível, a confirmação diagnóstica com exame complementar (habitualmente, exame citológico de raspado ungueal). O tratamento deve ser, na ausência de contraindicações, sistêmico. Para onicomicose das unhas das mãos, recomenda-se itraconazol 100 mg, 2 cápsulas, 2x/dia, por uma semana (primeira semana), com repetição do tratamento após três semanas completas (quinta semana). Para onicomicose das unhas dos pés, recomenda-se itraconazol 100 mg, 2 cápsulas, 1x/dia, por 12 semanas consecutivas. Uma alternativa possível é o uso de itraconazol 100 mg, 4 cápsulas, 1x/dia, por uma semana em cada mês, durante três meses. Infecções bacterianas O tratamento recomendado para infecções bacterianas no Pé Diabético depende da gravidade da infecção. Para infecções leves, recomenda-se a utilização de antibióticos orais com cobertura contra organismos Gram positivos, como, por exemplo, Cefalexina 500 mg, 1 comprimido (ou cápsula), por via oral, de 6/6 horas, durante 7 a 14 dias. O uso de Amoxicilina + Clavulanato 500 + 125 mg, 1 comprimido, por via oral, de 8/8 horas, durante 7 a 14 dias; ou Clindamicina 300 mg, 1 cápsula, via oral, de 8/8 horas, por 7 a 14 dias são alternativas possíveis, esta última indicada quando MRSA >10% (avaliar o perfil de resistência local). Para infecções moderadas, quando se decidir pelo tratamento na Atenção Básica, a antibioticoterapia oral deve cobrir germes Gram positivos e Gram negativos, incluindo germes anaeróbios, devendo-se optar por associações de fluorquinolonas (Ciprofloxacina ou Levofloxacina) + Clindamicina, ou tratamento injetável com Ceftriaxona. A duração do tratamento, nesses casos, deve ser de 14 a 21 dias. Doença Arterial Obstrutiva Periférica Apesar de o tratamento cirúrgico ser o responsável direto pela melhora do quadro de isquemia, possibilitando a cicatrização da úlcera, o tratamento clínico também apresenta relevância, principalmente por atuar em fases mais precoces da história natural da doença e na prevenção da evolução da DAOP no pós- operatório tardio. O tratamento clínico contempla as medidas gerais para controle do risco cardiovascular global e da aterosclerose. Tratamento medicamentoso específico para DAOP: • Cilostazol. Inibidor da fosfodiesterase III, ação vasodilatadora e hemorreológica. Grau de recomendação 1A no aumento da distância de marcha, melhorando os sintomas, com baixos índices de efeitos colaterais. Contraindicado nos casos de insuficiência cardíaca. • Pentoxifilina. Ação hemorreológica e na redução da viscosidade sanguínea. Não foi comprovado seu uso no tratamento da claudicação. Pode ser usada como alternativa ao Cilostazol. • Antiagregantes plaquetários. Principalmente AAS e clopidogrel. Não apresentam benefício na melhora da claudicação. Grau de recomendação 1A na redução de eventos tromboembólicos arteriais e redução da mortalidade por causas vasculares, principalmente IAM e AVC. • Prostaglandinas. Alguns estudos mostraram melhora da cicatrização de úlceras e redução de amputações com a utilização de prostaglandinas como o alprostadil, porém outros estudos não demonstraram benefício. Não há outro fármaco recomendado para o tratamento da isquemia crítica. A utilização de prostaglandinas pode ser uma alternativa, principalmente nos casos de isquemia crítica sem possibilidade de revascularização cirúrgica ou tratamento endovascular. • Anticoagulantes. Diferentemente das doenças vasculares venosas, não há indicação bem estabelecida para uso de anticoagulantes na DAOP crônica. Não existe recomendação na melhora da claudicação. Estudos recentes demonstraram que os novos anticoagulantes (NOACs) associados ao AAS podem reduzir a morbimortalidade cardiovascular. Além do tratamento geral dos fatores de risco e da DAOP, outras medidas como antibioticoterapia, curativos e controle da dor são importantes no manejo do paciente, com impacto na morbimortalidade. Prevenção e Cuidado • Realize a inspeção diária dos pés (seja por você mesmo ou com a ajuda de um familiar ou um cuidador orientado), incluindo as áreas entre os dedos. • Realize a higiene regular dos pés, seguida da secagem cuidadosa deles, principalmente entre os dedos. • Cuidado com a temperatura da água! Ela deve estar sempre inferior a 37°C, para evitar o risco de queimadura. • Evite andar descalço, seja em ambientes fechados ou ao ar livre.• Sempre use meias claras ao utilizar calçados fechados. • Use, sempre que possível, meias com costura de dentro para fora ou sem costura. • Procure trocar de meias diariamente. • Nunca use meias apertadas e evite usar meias altas acima do joelho. • Inspecione e palpe diariamente a parte interna dos calçados, à procura de objetos que possam machucar seus pés. • Use calçados confortáveis e de tamanho apropriado, evitando o uso de sapatos apertados ou com reentrâncias e costuras irregulares. • Use cremes ou óleos hidratantes para pele seca, porém, evite usá-los entre os dedos. • Corte as unhas em linha reta. • Não utilize agentes químicos ou emplastros para remover calos. Calos e calosidades devem ser avaliados e tratados pela sua equipe de saúde. • Faça a reavaliação dos seus pés com a sua equipe de saúde uma vez ao ano (ou mais vezes, se for solicitado). • Procure imediatamente sua Unidade de Saúde se uma bolha, corte, arranhão ou ferida aparecer. • Em caso de dúvidas, procure sempre a sua equipe de saúde! Amputação Primária Atualmente, há uma tendência crescente à terapêutica não cirúrgica da osteomielite no pé diabético, que tradicionalmente foi tratado cirurgicamente. De acordo com as diretrizes da Infectious Diseases Society of America (IDSA), o tratamento não cirúrgico pode ser tentado se: • Não houver sepse persistente; • O paciente puder receber e tolerar antibióticos apropriados; • O grau de destruição óssea não tiver causado comprometimento irrecuperável da mecânica do pé; • O paciente preferir evitar a cirurgia; • As comorbidades dos pacientes conferirem alto risco à cirurgia; • Não existirem contraindicações para antibióticos por tempo prolongado. Novos métodos de tratamento do pé diabético têm sido utilizados com sucesso, visando evitar a amputação primária. Usando-se agentes oxidantes, bactérias são combatidas eficazmente e, assim, evita-se a remoção de ossos infectados e, consequentemente, a amputação de dedos ou partes do pé. Essas metodologias não interferem com a função renal, não apresentam toxicidade hepática e podem ser utilizadas por tempo prolongado, sem prejuízos para o paciente. A amputação primária é necessária apenas em casos de: • Sepse; • Dor de repouso, por isquemia refratária à analgesia e sem possibilidade de revascularização (isquemia crítica); • Gangrena de todo o pé (Wagner 5). Referências: VILAR – Endocrinologia Clínica BURIHAN e CAMPOS JÚNIOR – Consenso no Tratamento e Prevenção do Pé Diabético 2020 BRASIL – Manual do pé diabético: estratégias para o cuidado da pessoa com doença crônica, 2016.