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Práticas Pedagógicas e literatura infantil Maringá 2011 editora da universidade estadual de Maringá Reitor Prof. Dr. Júlio Santiago Prates Filho Vice - Reitor Profa. Dra. Neusa Altoé Diretor da Eduem Prof. Dr. Ivanor Nunes do Prado Editor - Chefe da Eduem Prof. Dr. Alessandro de Lucca e Braccini conselho editorial Presidente Prof. Dr. Ivanor Nunes do Prado Editores Científicos Prof. Adson Cristiano Bozzi Ramatis Lima Profa. Dra. Ana Lúcia Rodrigues Profa. Dra. Analete Regina Schelbauer Prof. Dr. Antonio Ozai da Silva Prof. Dr. Clóves Cabreira Jobim Profa. Dra. Eliane Aparecida Sanches Tonolli Prof. Dr. Eduardo Augusto Tomanik Prof. Dr. Eliezer Rodrigues de Souto Prof. Dr. Evaristo Atêncio Paredes Profa. Dra. Ismara Eliane Vidal de Souza Tasso Prof. Dr. João Fábio Bertonha Profa. Dra. Larissa Michelle Lara Profa. Dra. Luzia Marta Bellini Profa. Dra. Maria Cristina Gomes Machado Profa. Dra. Maria Suely Pagliarini Prof. Dr. Manoel Messias Alves da Silva Prof. Dr. Oswaldo Curty da Motta Lima Prof. Dr. Raymundo de Lima Prof. Dr. Reginaldo Benedito Dias Prof. Dr. Ronald José Barth Pinto Profa. Dra. Rosilda das Neves Alves Profa. Dra. Terezinha Oliveira Prof. Dr. Valdeni Soliani Franco Profa. Dra. Valéria Soares de Assis equiPe técnica Projeto Gráfico e Design Marcos Kazuyoshi Sassaka Fluxo Editorial Edilson Damasio Edneire Franciscon Jacob Mônica Tanamati Hundzinski Vania Cristina Scomparin Artes Gráficas Luciano Wilian da Silva Marcos Roberto Andreussi Marketing Marcos Cipriano da Silva Comercialização Norberto Pereira da Silva Paulo Bento da Silva Solange Marly Oshima Maringá 2011 Formação de ProFessores - ead Práticas Pedagógicas e Literatura Infantil Marta Chaves (Organizadora) 44 coleção formação de Professores - ead Copydesk: Rosane Gomes Carpanese Apoio técnico: Silvia Teresa Abrantes Silva de Assis Rosane Gomes Carpanese Normalização e catalogação: Ivani Baptista CRB - 9/331 Revisão Gramatical: Annie Rose dos Santos Edição, Produção Editoria: Carlos Alexandre Venancio Eliane Arruda Fernando Truculo Evangelista Capa: Marta Chaves Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Copyright © 2011 para o autor Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo mecânico, eletrônico, reprográfico etc., sem a autorização, por escrito, do autor. Todos os direitos reservados desta edição 2011 para Eduem. Práticas pedagógicas e literatura infantil / Marta Chaves, organizadora. -- Maringá: Eduem, 2011. 126p.: il. 21cm. (Coleção formação de professores EAD; n. 44) ISBN 978-85-7628-371-3 1. Literatura infantil – Prática Educativas. 2. Pedagogia – Literatura infantil. 3. Educação – Leitura. I. Chaves, Marta. CDD 21.ed. 370.118 P912 Endereço para correspondência: eduem - editora da universidade estadual de Maringá Av. Colombo, 5790 - Bloco 40 - Campus Universitário 87020-900 - Maringá - Paraná fone: (0xx44) 3011-4103 / fax: (0xx44) 3011-1392 http://www.eduem.uem.br / eduem@uem.br Sobre os autores Apresentação da coleção Um diálogo e um convite caPítulo 1 A arte na contemporaneidade: mercantilismo e elitização Maria Inês Hamann Peixoto caPítulo 2 A arte no processo de humanização: o desafi o do acesso livre à produção artística Maria Inês Hamann Peixoto caPítulo 3 A Literatura infantil e a formação da atitude leitora nas crianças pequenas Suely Amaral Mello caPítulo 4 Literatura infantil e caixas que contam histórias: encantamentos e envolvimentos Elieuza Aparecida de Lima / Amanda Valiengo caPítulo 5 Literatura infantil, letramento e alfabetização: uma relação possível e necessária Maria Angélica Olivo Francisco Lucas > 7 > 11 > 13 > 19 > 31 > 41 > 55 > 69 umárioS 5 caPítulo 6 Literatura infantil e educação infantil: limites e possibilidades no trabalho pedagógico Heloisa Toshie Irie Sato caPítulo 7 Enlaces da teoria histórico-cultural com a literatura infantil Marta Chaves caPítulo 8 Imaginação e Impressões: uma narrativa de interações na Literatura infantil Regina Lúcia Mesti caPítulo 9 Medos revelados: a importância da Literatura infantil para crianças e adolescentes hospitalizados Ercília Maria Angeli Teixeira de Paula / Layla Patrícia Klug Matos / Daniela Alves Moreira Rodrigues / Diana Cozer > 85 > 97 > 107 > 115 Práticas Pedagógicas e literatura infantil 6 AMAndA VALIEngo graduada em Pedagogia pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – câmpus de Marília, SP (2005), mestre em Educação (2008) e doutoranda em Educação pela mesma universidade. Professora nas Séries Iniciais do Ensino Fundamental e no Ensino Superior da Faculdade Unida de Suzano (Unisuz). dIAnA CozEr Estudante do Curso de Pedagogia da Universidade Federal do Espírito Santo; realizou pesquisa sobre Educação em Contexto não Escolar junto a Hospital Público de Vitória, ES. dAnIELA ALVES MorEIrA rodrIgUES Estudante do Curso de Pedagogia da Universidade Federal do Espírito Santo; realizou pesquisa sobre Educação em Contexto não Escolar junto a Hospital Público de Vitória, ES. ELIEUzA APArECIdA dE LIMA graduada em Pedagogia, mestre e doutora em Educação pela Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), câmpus de Marília. Professora Assistente doutora do departamento de didática da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Membro ativo dos grupos de Pesquisa “Implicações Pedagógicas da Teoria Histórico-Cultural”; “Processos de Leitura e de Escrita: apropriação e objetivação” e “gP – ForME, Formação do Educador”. ErCíLIA MArIA AngELI TEIxEIrA dE PAULA graduada em Pedagogia pela Universidade Estadual de Campinas (1989), mestre em Educação pela Universidade de São Paulo (1994), doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia (2005). Atuou como professora hospitalar no Hospital Sarah de Brasília e São Luis do Maranhão. Professora do Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo. Professora Colaboradora do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Estadual de Ponta grossa. obre as autorasS 7 HELoISA ToSHIE IrIE SATo graduada em Pedagogia pela Universidade Estadual de Maringá (2002), mestre em Educação pela Universidade Estadual de Maringá (2004), doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (2010). Professora da Universidade Estadual de Maringá. Membro do grupo de Pesquisa e Estudos em Educação Infantil/UEM e Contextos Integrados em Educação Infantil da Faculdade de Educação da USP. LAyLA PATrICIA KLUg MAToS Estudante do Curso de Pedagogia da Universidade Federal do Espírito Santo; realizou pesquisa sobre Educação em Contexto não Escolar junto a Hospital Público de Vitória, ES. MArIA AngéLICA oLIVo FrAnCISCo LUCAS graduada em Pedagogia pela Universidade Estadual de Maringá (1987), mestre em Educação pela Universidade Estadual de Maringá (1999) doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (2009). Professora Adjunta do departamento de Teoria e Prática da Educação da Universidade Estadual de Maringá, coordenadora do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à docência (PIBId). MArIA InêS HAMAnn PEIxoTo graduada em Filosofia pela Universidade Católica do Paraná – UCPr (1968) e em Pedagogia pela Universidade Federal do Paraná (1974), especialista em História da Arte – Artes Plásticas, pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná – EMBAP (1998), mestre em Educação pela Universidade Federal do Paraná (1980), doutora em Educação (Área de História,Filosofia e Educação) pela Universidade Estadual de Campinas (2001). Professora aposentada do Setor de Educação da Universidade Federal do Paraná, artista plástica e “performer”. Autora do livro “Arte e grande público: a distância a ser extinta”, pela Editora Autores Associados (2003). MArTA CHAVES graduada em Pedagogia pela Universidade Estadual de Maringá (1993), mestre em Educação pela Universidade Estadual de Maringá (2000), doutora em Educação pela Universidade Federal do Estado do Paraná (2008), pós-doutora em Educação pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – câmpus de Araraquara, SP. Professora Adjunta do departamento de Teoria e Prática da Educação da Universidade Estadual de Maringá e Líder do grupo de Pesquisa e Estudos em Educação Infantil. Práticas Pedagógicas e literatura infantil 8 rEgInA LúCIA MESTI graduada em Pedagogia pela Universidade Estadual de Maringá (1985), mestre em Educação pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (1995), doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2004). Professora do departamento de Teoria e Prática da Educação da Universidade Estadual de Maringá. Membro do grupo de Estudos e Pesquisas em Formação de Professores, coordenadora da pesquisa “Arte e Compreensão Estética” e do Programa de Educação de Jovens e Adultos da Universidade Estadual de Maringá. SUELy AMArAL MELLo graduada em Letras Modernas pela Universidade Estadual Paulista (1975), mestre em Educação pela Universidade Federal de São Carlos (1981), doutora em Educação pela mesma universidade (1996). Professora do Programa de Pós-graduação em Educação da Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – câmpus de Marília, SP. Vice-Líder do grupo de Pesquisa “Implicações Pedagógicas da Teoria Histórico-Cultural”, coordenadora do grupo de Estudos em Educação Infantil da Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp) – câmpus de Marília. sobre as autoras 9 Este livro integra a coleção Formação de Professores – EAD que se constitui parte do material didático produzido especialmente para o Curso de Licenciatura em Pedagogia, na Modalidade de Educação a Distância, vinculado ao Departamento de Fundamentos da Educação (DFE) do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCH) da Universidade Estadual de Maringá (UEM). Cada livro da coleção traz, em seu bojo, um objeto de reflexão que foi pensado para uma disciplina específica do curso, mas em nenhum dos livros seus organizadores e autores tiveram a pretensão de dar conta da totalidade das discussões teóricas e práticas construí- das historicamente referentes aos conteúdos apresentados. O que se busca, com cada um dos livros publicados, é abrir a possibilidade da leitura, da reflexão e do aprofundamento das questões pensadas como fundamentais para a formação de professores para as séries iniciais do Ensino Fundamental. Por isso mesmo, essa coleção somente poderia ser construída a partir do esforço coleti- vo de professores das mais diversas áreas e departamentos da Universidade Estadual de Ma- ringá e das instituições que colaboraram decisivamente para que o projeto para a produção do material didático desse curso, aprovado e selecionado pelo Edital 001/2004-SEED-MEC, pudesse ser efetivamente concretizado. Em função disto, agradecemos sinceramente aos colegas da Unicentro e Fafipa, insti- tuições que se colocaram como parceiras da UEM no Consórcio EAD-Paraná-Noroeste, o que permitiu o financiamento da produção dessa coleção com recursos disponibilizados pela Secretaria Especial de Educação a Distância (SEED) do Ministério da Educação (MEC). Agradecemos, ainda, aos professores de tantas outras instituições públicas e particulares que organizaram livros ou escreveram capítulos para os diversos livros dessa coleção. Internamente, ressaltamos o apoio decisivo e fundamental do Departamento de Fun- damentos da Educação (DFE), do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCH), da Reitoria, da Pró-Reitoria de Ensino (PEN), da Eduem e da Assessoria de Planejamento (ASP). Esperamos que a Coleção Formação de Professores (EAD) tenha, em um futuro pró- ximo, novas edições para novos cursos e novos alunos da UEM e das instituições públi- cas de ensino superior que integram e possam integrar posteriormente o Consórcio EAD-Paraná-Noroeste. Maria Luisa Furlan Costa Organizadora da Coleção presentação da ColeçãoA 11 A organização deste livro mostrou-se como uma oportunidade de reunir textos que se harmonizam pela defesa de uma escola de excelência para alunos e professores. O que implica, também, na defesa de uma educação plena para os pedagogos em for- mação. Sem desconsiderar os desafios da educação a distância, queremos tratar não dos limites, mas das possibilidades de realizar o curso com esmero e compreensão da necessidade de consistente fundamentação teórico-metodológica. Avaliamos que este livro e os das demais disciplinas revelam, sem dúvida, uma possibilidade primorosa de estudos. Ademais, para se somar a essa tarefa acadêmica, tivemos ainda outra satisfação: a reunião de companheiros (e alguns camaradas) para a composição deste material didático tão cuidadosamente lapidado pelas autoras. Encontraremos nestes nove capítulos estudos e investigações, e com igual impor- tância, reflexões acerca dos procedimentos didáticos possíveis de realizar nas institui- ções escolares; elementos que harmonizam conteúdo e forma, o que é essencial para uma prática educativa, que deve se caracterizar pelo ensino intencional e sistematizado. Assim, para tratar da Literatura Infantil – que se apresenta como arte por excelên- cia – vislumbramos a possibilidade de discutir conteúdos e, com a mesma destreza, ponderar sobre a necessidade de efetivar intervenções educativas revestidas de sentido e significado para os educandos. Nesta composição, contamos com três alunas do Curso de Pedagogia e nove pes- quisadoras de diferentes instituições, a saber: a Universidade Estadual de Maringá, a Universidade Federal do Paraná, a Universidade Federal do Espírito Santo e a Univer- sidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp) – câmpus de Marília. Nesse “encontro” de pessoas e palavras está expressa a defesa do trabalho pedagógico com Literatura Infantil, não sob uma ótica secundarizada, de complemento ao trabalho pedagógico, mas, ao contrário, como condição especial, por sua possibilidade de fa- vorecer o processo ensino e aprendizagem. Teremos também propostas de atividades e sugestões de textos para aprimorar a nossa formação, pois aqui todos aprendem e estamos verdadeiramente em um esforço de estudo coletivo. Os textos que compõem esta obra recebem ilustrações das pequenas e hábeis mãos das crianças da Escola Municipal “Omar de Oliveira”, localizada no Município de Santo m diálogo e um conviteU 13 Inácio, Região Norte Central do Estado do Paraná. A entrega desse “presente” para to- dos nós foi direcionada pelas professoras e pela equipe pedagógica1 da referida escola. Neste sentido, em meio a escritos e imagens, apresentamos um breve retrato dos textos e suas autoras. Para a composição do livro temos, no primeiro capítulo, escla- recimentos acerca do conceito de Arte. Maria Inês Hamann Peixoto, artista plástica e autora desse texto, expõe elementos que desvelam e nos permitem compreender por que a arte, na sociedade capitalista, está afastada da classe trabalhadora. Esse capítulo se justifica por entendermos que, antes de tratar de Literatura Infantil pontualmente, precisamos de estudosque nos conduzam a reflexões sobre a produção da arte elitiza- da e restrita a uma minoria, situação que dificulta – ou mesmo impede – o acesso às diversas formas de arte para a maioria da população. Dessa forma, por não ter acesso livre e fácil aos produtos estéticos histórica e socialmente construídos pelos seres hu- manos (universo da cultura), essa maioria encontra-se alijada de algo essencial para o seu processo de humanização. No segundo texto, da mesma autora, são tratadas as concepções de arte e trabalho, do homem, sociedade e cultura na perspectiva do materialismo histórico e dialético, com vista à análise das possibilidades e implicações de enfrentar o que hoje é conside- rado o grande desafio para a sociedade e para os produtores de arte, bem como para o processo educativo: promover a abertura e o acesso ao universo das artes para o gran- de público. Com esses textos, compreendemos a necessidade de nos fortalecermos nos estudos e nos instrumentalizarmos, pois esta é uma das possibilidades de não dei- xarmos de lutar por uma sociedade justa para todos. O referencial teórico é explícito nessa defesa. A autora M. Inês Hamann é uma intelectual que ficamos com vontade de ouvir e conhecer depois que lemos seus escritos. Sua arte e sua doçura nos lembram 1. Com carinho e agradecimento nomino as professoras da Escola Municipal “Omar de Olivei- ra”, sempre competentes e cuidadosas com crianças, escritores, poetas e personagens: Adriana Delázari Baldini do Nascimento, Ana Cristina de Lima, Ana Paula Laureano Ferreira, Ânge- la Aparecida Rossaneis, Celismara Seleguim Gnann, Cláudia Lúcia Nakahara da Mota, Elaine Adriana da Silva, Eliana de Oliveira Silva Alencar, Esmeralda Martos dos Santos, Hilda da Silva Pimenta, Ilda Alves Ribeiro Barbosa, Isabel Alves Rosa, Ivete Marrafon Angeli, Jacira Aparecida Bega, Jacira Locastre Lopes, Luzia Aparecida Dadona Lima, Maria Aparecida Crespo Albuquer- que, Maria Cristina Saçaoka de Paula, Maria Sonia da Silva Pimenta Novo Trevisan, Rosicléa Lopes, Silvana Andrade da Silva Aquino, Simone Aparecida Basseto, Sueli Lourenço de Jesus, Valderez Conceição Bertipalha Monteiro. Com o mesmo afeto apresento Neuraci da Silva San- tos, Diretora da Escola, e as pedagogas Arlete Aparecida Valério Bega e Rosalina Bega de Jesus que, tanto quanto as professoras, dedicam-se com esmero a uma educação de excelência. Referen- cio aqui com absoluto respeito e carinho Wandercleya de Oliveira Lopes, Secretária Municipal de Educação que conduz os trabalhos com a firmeza de uma Leoa e a emoção de um riso de criança e Silvia Ednaira Lopes, Coordenadora Pedagógica da Secretaria de Educação que de igual modo atua fazendo com que professores e crianças sintam-se sempre perto de uma FADINHA. Práticas Pedagógicas e literatura infantil 14 a cada instante que as crianças – e nós – temos direito (e condições objetivas) de nos apropriar de todas as riquezas que a humanidade produziu. Suely Amaral Mello, com rigor metodológico, expõe como as crianças se relacio- nam e podem se relacionar com a escrita e os textos literários. Reafirma, como tem feito em outras publicações, a necessidade da participação das crianças no processo de ensino. Dessa forma, entende que a participação das crianças nas ações escolares favorece o encantamento e a compreensão do texto lido, criando nelas a atitude de buscar a compreensão do que se ouve nas situações de leitura – e por falarmos em encantamento, Suely Amaral Mello é absolutamente encantadora. Elieuza Aparecida Lima e Amanda Valiengo, responsáveis pelo quarto capítulo, apresentam as contribuições da Teoria Histórico-Cultural ao abordarem a importância de textos literários próprios para crianças na Educação Infantil e Ensino Fundamental a partir de uma discussão sobre as “Caixas que Contam Histórias”; versam sobre a ne- cessidade de constituição de um entorno propício para a organização intencional do trabalho pedagógico. Destacam, com leveza e competência, a necessidade de muitas leituras e a contação de histórias, uma vez que se apresentam na condição de práticas pedagógicas que provocam na criança pequena novas motivações para aquisição de conhecimentos. Com esse capítulo, ficamos com muita vontade de estudar e abrir “cai- xas que contam histórias”, de uma das quais talvez saiam duas “fazedoras de mágicas”, assim como Elieuza e Amanda. Maria Angélica Olivo Francisco Lucas, em seu texto consistente, e ao mesmo tempo leve como uma borboleta, que ao voar aprecia as mais belas flores, defende a neces- sidade de se estabelecer relação entre a Literatura Infantil e a escola. Reafirma que a escrita é um instrumento cultural por meio do qual é possível comunicar-se, registrar opiniões e ter acesso ao conhecimento. A autora salienta ainda que, tanto para esti- mular o processo de alfabetização quanto para aprofundar o nível de letramento das crianças, oportunizando-lhes contato com a maior diversidade possível de textos que circulam na sociedade, requerem-se práticas pedagógicas intencionais e planejadas. Com isto, destaca a importância do contato efetivo com o texto literário, por compre- ender que se trata de um gênero textual que prima pela fruição e pela ludicidade. Heloisa Toshie Irie Sato, com a ternura e sobriedade próprias de sua conduta, apre- senta uma reflexão acerca da Literatura Infantil como um recurso viável e prazeroso, que propicia diferentes aprendizagens para as crianças, especialmente para aquelas que frequentam o universo da Educação Infantil. No decorrer da discussão, contempla parte da pesquisa realizada em um Centro Municipal de Educação Infantil (CMEI) por ocasião de seu curso de Doutorado. Essa discussão refere-se ao uso da Literatura In- fantil em salas de pré-escola, mostrando como os professores a compreendem e como um diálogo e um convite 15 deveriam empregá-la, para aproveitar ao máximo as contribuições desse recurso para o processo de elaboração dos conhecimentos científicos e a construção da identidade das crianças. O texto de nossa autoria contempla uma reflexão sobre as possibilidades de efetu- ar, nas instituições escolares, práticas educativas humanizadoras, o que significa afir- mar que as instituições escolares devem possibilitar a apropriação, por parte da crian- ça, da cultura desenvolvida e acumulada social e historicamente pela humanidade. Nessa ponderação, assinalamos que a Literatura Infantil pode ser considerada como expressão de conteúdo e estratégia e, ao mesmo tempo, como recurso didático. Para nós, essa tripla condição permite apresentar às crianças elaborações humanas signifi- cativas, portanto contribui decisivamente para ampliar o universo de conhecimentos das crianças. Regina Lúcia Mesti, com seus estudos e encantos, leva-nos a um passeio por meio de palavras e imagens cuidadosamente descritas. Desse modo, a autora nos apresenta Érica, na narrativa de muitas aventuras e ávida de conhecimento, que busca incansa- velmente a realização de uma tarefa muito especial: encontrar flores para o aniversário da avó, em que a pequena aventureira ultrapassa as fronteiras das molduras de telas no museu de arte, formando um texto e uma história com muitas possibilidades de aprendizagens e sonhos. A autora nos reapresenta a importância da imaginação e cria- ção associadas à arte, e, com arte, esse texto nos ensina muito e deixa uma espécie de perfume de flores no ar. Regina é assim: por onde passa, deixa um ar de suave e agradável perfume. Para finalizar e, acima de tudo, pontuar que a atuação do pedagogo se dá também em espaços não-escolares, como o dos hospitais, Ercília Maria Angeli Teixeira de Paula, Layla Patrícia Klug Matos, Daniela Alves Moreira Rodrigues e Diana Cozer apresentam uma reflexãosobre a importância das histórias infantis no processo de ensino-apren- dizagem das crianças hospitalizadas. As autoras enunciam que Literatura Infantil, in- serida nas enfermarias pediátricas, permite que as crianças e adolescentes, em muitos momentos, esqueçam-se da realidade vivenciada no hospital. Nesse texto, as autoras observam que os medos das crianças hospitalizadas precisam ser mais bem compre- endidos e afirmam que estes são elementos importantes para o trabalho cotidiano a ser desenvolvido pelos professores nos hospitais com seus alunos. Com esse texto e a sensibilidade de suas autoras, somos convidados a ser pedagogos também fora das escolas e centros de Educação Infantil, e com o doce sorriso de Ercília, ficaremos ten- tados a aceitar o convite. Desejamos, por fim, que todos se sintam convidados a conhecer esses autores e seus preciosos textos; a imaginar e ficar com um desejo de estudar, abrir livros e Práticas Pedagógicas e literatura infantil 16 “caixas que contam histórias”, aprimorando a formação para “vencer dragões”, “acor- dar princesas” e encantar não apenas as crianças, mas também as “pessoas grandes”, levando encanto, cores, surpresas e perfumes às instituições escolares e outros espa- ços de aprendizagem. Marta Chaves Organizadora Anotações um diálogo e um convite 17 Anotações Práticas Pedagógicas e literatura infantil 18 Maria Inês Hamann Peixoto A arte na contemporaneidade: mercantilismo e elitização 1 A habilidade de captar os traços essenciais do seu tempo e desvendar novas realidades pode ser considerada a medida de grandeza do artista e de sua obra. Ernest Fischer Como facilmente podemos constatar, nas sociedades ocidentais regidas pelo sis- tema capitalista (a elas as análises deste texto vão se restringir), via de regra, a área das artes, assim como a da cultura em geral não constituem prioridade dos governos, tanto no que diz respeito à promoção do livre – e fácil! – acesso para a maioria da população, quanto em relação à intensidade da presença da arte, na educação formal. No Brasil, a iniciativa privada, com raras exceções, reluta até mesmo em aplicar parte do imposto de renda devido em projetos artísticos e culturais. A par dessa realidade, o comércio de arte floresce. A ideia não é nova. O mercanti- lismo das artes começou na época do Renascimento, com o desenvolvimento do gran- de comércio para além-mar e com a fundação das colônias, o que coincide com início da acumulação do capital, fatos que ensejaram “a apropriação colonialista de objetos desconhecidos para a cultura européia”, e geraram “um acúmulo desses objetos nas metrópoles1”. Compondo esse contexto, o acúmulo de uma grande riqueza resultante do desenvolvimento mercantil favoreceu a criação de um mercado para tais objetos exóticos, reputados como arte. 1 “Esses objetos, quando retirados do ambiente de origem, perdem sua função, seu valor de uso, próprio da cultura da qual são originários. Caracterizados como simples mercadorias, objetos de diferentes culturas têm mascarado o seu sentido de origem e passam a ser um mero valor de troca, uma mercadoria sujeita às leis de mercado” (PEIXOTO, 2001, p. 73-74). 19 Simultaneamente, surgiu a necessidade de se construírem espaços para guardá-los, expô-los ou vendê-los. Foram, então, criados museus e abertas galerias que, junta- mente com as grandes coleções particulares formadas em cidades como Florença e Veneza, demarcaram para a obra de arte um território próprio, distinto e distanciado do público em geral (CANCLINI, 1984, p. 97-98). Nos primórdios da era moderna, esse foi o quadro que balizou o processo do mer- cantilismo da arte e, paralelamente, o de sua elitização. Não obstante o florescimento cultural e artístico, o Renascimento (séculos XV e XVI) não garantiu uma ampliação do público para além da camada aristocrática: “as massas populares sequer tomavam co- nhecimento da existência de tais obras.” A Renascença configurou um movimento res- trito “a uma elite intelectual e latinizada” que “consistia principalmente naquelas classes da sociedade que estavam associadas ao movimento humanista e neoplatônico”, para as quais as obras de arte importantes eram destinadas (HAUSER, 1995, p. 320-322). No século XVIII, com a consolidação da sociedade de classes2, o distanciamento entre arte e público se foi aprofundando, de modo crucial e aparentemente irreversível, dentro dos padrões estabelecidos por essa nova ordem social (PEIXOTO, 2001, p. 75). Neste capítulo, fazemos uma abordagem da problemática da transformação da arte em mercadoria e do processo da sua elitização, para o que abordadaremos a situação da arte e sua comercialização tal como se apresentam na contemporaneidade. MercantilisMo e elitização da arte, na conteMPoraneidade Contemporaneamente, os processos de mercantilagem e elitização da arte se exa- cerbaram. No plano internacional – e, sem dúvida, com ramificações no Brasil –, a arte já se instituiu como o grande negócio, em detrimento do artista que a produz. Ou seja, o capitalismo já submeteu as artes à condição de simples mercadoria, regida pelas leis do mercado de produtos em escala. Como afirma Arantes, “o poder público e as elites dominantes tanto gerem o Estado quanto administram a sociedade em termos pura- mente mercadológicos, quer dizer, fornecendo todo tipo de garantias aos ambientes de negócios considerados estratégicos” (ARANTES, 2005, p. 1). Na contemporaneidade, a arte é considerada estratégica em termos de veiculação de novas ideias, como também um fulcro de resistência política a regimes ditatoriais. Do ponto de vista econômico, quando comparada à produção em escala, no varejo a 2 Essa nova sociedade cindiu-se em duas classes fundamentais: a dos capitalistas – proprietá- rios dos meios de produção, e a dos proletários, que, para proverem sua subsistência, passam a vender a única mercadoria que lhes restou – a força de trabalho –, em um mercado regido por leis próprias, estabelecidas à revelia do indivíduo produtor (PEIXOTO, 2001, p. 75, nota 4). Práticas Pedagógicas e literatura infantil 20 arte é ainda considerada uma área menor da economia, dado o volume mediano de negócios realizados pelos marchands e pelas pequenas galerias. Mas, como integrante do conjunto da cultura no atacado, a arte há tempos se tornou a “mercadoria vedete”, no dizer profético de Guy Debord (1997, p. 126) na obra A sociedade do espetáculo (1960); e como bem aponta Arantes, “a cultura passa a ser adotada pelo novo poder soberano no mundo como a última trincheira civilizatória do capital” (2005, p. 1). Vejamos, como exemplo, o caso da Sotheby’s (casa de leilões fundada em 1744, na Inglaterra), que opera como um dos principais centros de venda de artes (ou “sales- room”, como preferem os ingleses) em quarenta países, nos grandes centros como Nova York, Londres, Hong Kong e Paris. Tal empresa, a partir da área dos leilões de arte, estendeu seu raio de ação criando outras seis áreas de atuação: 1. O Sotheby’s Ins- titute of Arts, em Londres, onde são ofertados os cursos de mestrado e pós-graduação em Fine & Decorative Art; Photography; East Asian Art e Contemporary Design. Não satisfeita, essa grande empresa passou também a oferecer cursos de graduação e mes- trado em Art Business, que forma mão-de-obra para atuar no mundo dos negócios da arte. E foi adiante: usando o prestígio do nome vinculado às artes, seus negócios pas- saram a incluir: 2. A Sotheby’s International Realty (1976), voltada à venda de imóveis de luxo, em diversos países; 3. A Sotheby’s Diamonds, dedicada à venda de diamantes; 4. A Sotheby’s Financial Services, a única financiadora, no mundo, que oferece umserviço completo para a aquisição de obras de arte; 5. O Sotheby’s Café (Londres), um requintadíssimo restaurante e confeitaria, que serve café da manhã, brunch, chá da tar- de e jantar; 6. Nos últimos anos, a empresa entrou também no ramo dos vinhos finos franceses: em seu site, oferece mais de quarenta tipos para compra no varejo, on line ou na loja de Nova York, bem como promove leilões desses vinhos de primeira linha, tais como os das casas Pierre Morey, Leflaive, Fourrier, Roumier, entre outras tantas. Como podemos perceber, este é um dos melhores exemplos do que veio a resultar a transformação da arte em mercadoria de luxo para alimentar o mundo dos negócios, e de como o fato de uma empresa se servir da arte como mercadoria nobre e própria da elite, coerentemente, permitiu a expansão dos negócios em várias direções, para atender aos interesses dessa classe social: não apenas o financiamento para compra de objetos de arte, como também diamantes, imóveis suntuosos e vinhos finos3. Nada mais longínquo da fruição da arte pela totalidade da população como parte es- sencial da construção histórica da cultura – ou seja, como trabalho humano de criação – e, consequentemente, do significado essencial da arte no processo de humanização! 3 Para mais informações, acessar <http://www.sothebys.com/> a arte na contemporaneidade: mercantilismo e elitização 21 Outro exemplo, agora relacionado a um museu de arte, o Guggenheim, de Nova York, transformado em franquia (tal como qualquer McDonald’s!) por Thomas Krens4, diretor da Fundação Solomon R. Guggenheim5, de 1998 até novembro de 2008. Ad- ministrando o museu como uma empresa, Krens criou uma rede internacional de museus satélites do Guggenheim, que envolve a Peggy Guggenheim Collection, de Veneza; o Guggenheim Bilbao, na Espanha; o Guggenheim de Berlin, na Alemanha, e o Guggenheim Hermitage Museum, em Las Vegas (este, fechado em 2008), mantendo como centro dessa constelação o Guggenheim de Nova York. Há também o projeto já em andamento do Guggenheim Abu Dhabi (Emirados Árabes), que será o maior de todos, com trinta mil metros quadrados, com previsão para ser inaugurado em 2011. O motor dessa empreitada é o mesmo das empresas capitalistas, em seu processo de expansão do mercado: o aumento dos lucros. E é uma ideia contagiante: trata-se de um modelo de expansão de negócios que atingiu o conjunto da Tate6 (Tate Britain e Tate Modern, em Londres; Tate Liverpool e Tate St. Ives) e o tradicionalíssimo Museu do Louvre (Paris) (VOGEL, 2008). O campo da produção da arte, tradicionalmente, constitui um forte reduto de de- fesa da liberdade de criação contra toda e qualquer ingerência externa. Nem todos os artistas, no entanto, defendem esse pensamento: impregnados pelo individualismo imposto a todos como padrão de conduta na vida em geral – p elo mesmo sistema que submete sua produção às leis implacáveis do mercado –, muitos artistas se mostram ávidos por fazer sucesso, ganhar fama, ou mesmo enriquecer. Crédulos de que tais vantagens se constituirão em benefícios para a qualidade da sua produção artística, almejam alcançar uma posição de destaque, julgando que o melhor caminho seja o de ser premiado em salões, expor nas grandes galerias, lutar pelo aval de críticos de arte, 4 Para conhecer as ações do polêmico ex-diretor da Salomon R. Guggenheim Foundation, Tho- mas Krens, acessar <http://www.nytimes.com/2008/02/28/arts/design/28muse.html>. 5 Em 2003, o então prefeito do Rio de Janeiro, César Maia, negociou a vinda do Guggenheim para o Rio de Janeiro; um projeto milionário, que envolvia como arquiteto o francês Jean Nou- vel. A polêmica se estendeu pelo ano de 2003, e, após intensa luta política, em que se envolve- ram muitos artistas, o projeto foi embargado na justiça. Custaria aos cofres públicos municipais cerca de 150 milhões de dólares! É significativo conhecer a situação em que se encontrava a Fundação Guggenheim, à época, como aponta Magalhães: “A situação financeira da Fundação Guggenheim, comandada pelo francês Thomas Krens, é grave. A filial em Las Vegas foi fechada, a de Nova York demitiu quase a metade dos seus funcionários, o projeto de uma nova filial em Manhattan foi cancelado. A famosa filial em Bilbao, na Espanha, enfrenta graves problemas. Na verdade, estamos comprando uma franquia, vamos pagar pela construção do projeto, vamos pagar pelas obras e não teremos a gerência sobre o que será visto, e nem a mínima ideia sobre quaisquer benefícios para cidade” (MAGALHÃES, 2003). Para saber mais sobre a Fundação Guggenheim, acessar <http://www.guggenheim.org/guggenheim-foundation>. 6 Para conhecer a Tate, acessar <http://www.tate.org.uk/> Práticas Pedagógicas e literatura infantil 22 conquistar a confiança de marchands, e... vender, vender muito, o que na sociedade capitalista de consumo é sinônimo de ser um grande artista, ou ainda, de vencer na vida. A quantidade é o que mais conta, nesses casos. Para falar do sucesso artístico de alguém, invariavelmente tudo deve ser traduzido em números: quantas exposições individuais realizou – e em que espaços (há os sacralizados); o número de visitantes; quantas obras o artista vendeu no último ano, e quem as comprou; em quantas das principais coleções de arte existem obras do artista; para quantas bienais e salões foi selecionado e quantas premiações obteve (índice da consagração); com quantos mar- chands de quantos países e continentes ele trabalha (e sua cotação no mercado, ou seja, a quantia aproximada – em dólares, preferencialmente – que lhe rende em média a venda de uma obra. Isso vai permitir ao sistema estabelecer a posição do artista na bolsa de artes), etc., etc. Apesar desse fato ser negado, a qualidade da obra, no mundo business, quase sempre fica em segundo plano. Se um colecionador ou alguém das altas finanças comprou uma obra, ou um crítico de renome escreveu algumas linhas sobre o artista, é o que basta. Ele passa a ser percebido e aceito, no universo dos ne- gócios, como bom! Ao se conformarem e se deixarem subjugar pelos ditames do sistema de arte (so- bre o qual discorreremos na sequência), não se dão conta, os incautos (via de regra, jovens artistas) de que terão de abrir mão de algo essencial: sua autonomia para criar, um altíssimo preço de que só alguns poucos se verão relativamente livres de pagar. Em casos extremos, há artistas que aceitam se submeter às exigências da moda – em geral impostas pelo marchand – e a produzir arte “para combinar com as cortinas e o sofá da sala”, porque desse modo vende! Assim, de livre criador passa o artista a defender a ideia de que em arte, tal como em qualquer outro ramo da produção capitalista de mercadorias, os fins justificam os meios7. E quando a meta é ganhar fama, dinheiro e expandir os negócios, para alcançá-lo o artista facilmente se rende às exigências da clientela compradora. Em casos menos evidentes, alguns artistas passam a espelhar sua produção no que é exibido nas grandes mostras internacionais: Veneza, Kassel, Nova York, etc., para alinhar sua produção com a dos grandes nomes internacionais que por lá transitam. 7 No mundo da produção capitalista, a desenfreada busca do lucro a qualquer preço faz com que, por exemplo, a indústria de alimentos possa pôr em risco a saúde das pessoas ao colocar nos alimentos uma química agressiva ao organismo humano; ou ainda, que a indústria moveleira possa devastar florestas – arruinando o meio ambiente, promovendo o desaparecimento de espé- cies vegetais e animais e piorando as condições gerais da vida no nível planetário – para o corte de madeiras nobres direcionadas à produção de mobiliário fino, para um consumo elitizado, e assim por diante. a arte na contemporaneidade:mercantilismo e elitização 23 É evidente que todo artista necessita estar informado sobre o que é produzido por seus contemporâneos! Jamais, contudo, com vistas ao alinhamento de sua própria produção, pois que isso constitui, igualmente, uma sujeição a determinação externa ao seu trabalho – apesar de provir de dentro da própria área –, limitação de todo dis- pensável para uma produção que tem por fundamento histórico a livre expressão da humanidade do homem. Contudo, a partir do pressuposto de que cada um deve viver do próprio trabalho a partir do acima exposto, um problema persiste sem solução: de que modo o artista poderá garantir sua sobrevivência se o seu trabalho é produzir arte? o sisteMa de arte e a Produção da arte O problema da sobrevivência do artista, é preciso que reconheçamos, não é causa- do pelo tipo de produção a que se dedica, mas sim pelo sistema de arte8 que compõe o mundo capitalista dos negócios, e que, ao reger a produção e a comercialização pelo requinte e pelo luxo, transforma a arte em mercadoria para agradar o freguês. Faz com ela o que, ao longo da história, aconteceu gradativamente com a produção dos antigos artesãos, os quais foram sendo alijados das condições gerais para produzir livremente, assim como da possibilidade de eles próprios, ao seu único juízo, definirem a des- tinação do produto final, assenhoreando-se do valor total dos objetos. Em resumo: para conseguir manter-se produzindo, tal como aconteceu com os artesãos em relação aos negociantes burgueses, o artista passou a depender das decisões de marchan- ds, galeristas, críticos, etc., não apenas para vender suas obras, mas até mesmo para planejá-las e criá-las. Isso significa que o sistema de arte, com o passar do tempo, se foi introduzindo/apropriando também das múltiplas decisões, essenciais a cada fase da criação da obra de arte: planejamento, produção, distribuição e venda. Se antes, o in- divíduo criador definia o que criar; por que criar; para quem criar (o público, de modo genérico); como criar (com que materiais, formato, dimensões, etc.) e a quem dar a destinação final da obra, o sistema de arte passou a ditar ou, no mínimo, a direcionar as etapas da produção artística. Tudo foi sendo subjugado ao objetivo maior: vender! 8 Neste trabalho, entendemos por sistema de arte a estrutura das relações sociais de produção, circulação e consumo, do campo da arte erudita, cujo funcionamento envolve uma série de ins- tâncias e seus respectivos especialistas: as instâncias de produção – o artista isolado ou associado – e de consagração/legitimação/conservação/difusão e venda: as academias, o corpo de críticos, os salões, os museus, as revistas especializadas, o sistema de ensino com seus diplomas, títulos, as galerias, etc. (BOURDIEU, 1999, cap. 3, passim.). Tais instâncias desenvolvem códigos ri- tualísticos sofisticados e formam um quadro de iniciados – do artista produtor ao marchand, passando pelos críticos de arte e professores da área – que alimenta a gama das inúmeras inter- mediações para o acesso à produção e ao consumo da arte. Práticas Pedagógicas e literatura infantil 24 Sacralizar e elitizar, para... vender! Com alguma elegância, relativa qualidade e certo bom gosto... Mas, VENDER! Essa lógica, irremediavelmente, imiscuiu-se no pensamento – e na ação – de mui- tos artistas, que, com maior ou menor grau de consciência sobre o processo, passaram a se inquirir: de que vale uma obra de arte se não cair nas boas graças da clientela compradora? Em outras palavras, quando a venda, quase que inexoravelmente, pas- sou para as mãos do comerciante de arte profissional ou marchand, toda a produção artística se viu de algum modo afetada, tanto no que diz respeito à qualidade quanto em relação ao seu sentido maior, sua dimensão humana: a de ser a concretização do processo de criação livre e específica dos seres humanos, pelo qual o indivíduo/ ser genérico (que pertence ao gênero humano) se objetiva esteticamente no mundo. Trataremos desse tema na segunda parte do texto. O mais pernicioso e devastador, no quadro da transformação da arte em negócio, é que muito artista (nem todos, é claro!), levado por esse individualismo interesseiro e exacerbado (entre outras determinações, que não vêm ao caso, neste momento), se esqueceu de que a arte – enquanto objetivação do homem no mundo, uma criação humana livre – tem por objetivo sensibilizar as pessoas. Isso significa que ela tem um papel social: a arte é produto de um ser histórico e social, cuja razão de ser é fruição dos demais congêneres... Nunca direcionada para um freguês, aquele que quer com- prar e pode pagar pela obra! Sendo a arte uma objetivação e forma de expressão de capacidades humanas, só faz sentido quando é exposta para a fruição de todos, indis- criminadamente. Ao transformar arte em mercadoria, o sistema privatizou e elitizou a fruição das obras de arte que, fechadas em galerias ou em coleções particulares, torna- ram-se inacessíveis para o grande público. Do mesmo modo que qualquer mercadoria de supermercado (um pacote de feijão na prateleira, por exemplo) somente poderá ser consumida pelo freguês que passar pelo caixa – sem que importe a fome de quem o necessita como alimento –, também a arte passou a ser artigo de mercado acessível quase que tão somente para os que detêm posses e privilégios. Nega-se, desse modo, o direito de todos de acesso àquele que consiste em um dos maiores bens produzidos pela humanidade. O que se critica nessa concepção, entretanto, não é a venda em si mesma. Ninguém cogita de impedir que o artista venda as obras. Produzindo os trabalhos com liberdade, no âmbito particular e em uma relação direta e pessoal com indivíduos ou instituições interessadas, o artista poderá dispor de suas obras para, com o fruto da venda, garantir o próprio sustento e a continuidade de sua produção. O inaceitável é que a produção de um objeto de arte possa ser submetida a normas, leis ou imposições de qualquer ordem; assim, a arte não deve ser criada tendo a colocação no mercado (com suas a arte na contemporaneidade: mercantilismo e elitização 25 leis e exigências) como finalidade última, assim como não deve se deixar direcionar pelo gosto do cliente ou por imposições da moda! Mais ainda: o artista não deve se submeter aos atravessadores do campo da arte, que muitas vezes se aproveitam da penúria do autor para comprar seus trabalhos por preços irrisórios, vendendo-os por somas altíssimas no mercado (exclusivamente em proveito próprio) em relação ao valor pago ao artista9. Esse tipo de exploração do trabalho humano equipara-se àquele sobre o qual o sistema capitalista se assenta e se expandiu: a extração da mais-valia ou lucro, que nada mais é do que trabalho não pago10. O artista que cede a tais situações “nega-se a si mesmo como trabalhador livre, como construtor consciente da história. Quando assim age, dificilmente poderá manter a dignidade profissional e a autonomia, ou seja, o estatuto de artista” (PEIXOTO, 2001, p. 31). 9 Certa vez, estávamos participando de uma coletiva, em uma grande cidade do interior, oca- sião em que fomos apresentados ao artista, considerado o melhor e o “mais famoso da região”, segundo palavras do diretor da galeria pública da cidade. Cumprimentou-nos apressadamente e, sem que comentasse nada sobre o livro que estávamos lançando, e nem mesmo mencionasse nosso trabalho lá exposto, foi logo se pondo a nos explicar sua pressa: seus marchands do Cana- dá, da Bélgica e de um terceiro país de que não nos recordamos o nome chegariam na semana seguinte para apanhar um lote de suas obras. Disse-nos, então, que faltavam ainda oito (!!) qua- dros a serem pintados, do total que ele deveriaentregar. E eram telas de grande porte (cerca de 3mx2m) pelas quais, segundo ele, os negociantes usualmente lhe pagavam mil reais cada, mas que ele sabia (e parecia orgulhoso sobre o fato!) que eram vendidas por quatro mil dólares, nos países de origem dos negociantes. Terminou declarando-nos que não se importava com o fato (No pensamento, emendamos: “contanto que venda!”). 10 De modo sucinto, a extração da mais-valia no processo produtivo se dá da seguinte forma: no mercado de trabalho, a venda da mercadoria força de trabalho, pelo trabalhador – e a respecti- va compra, pelo capitalista, com a finalidade de empregá-lo na produção (ou seja, gerar riqueza nova no processo produtivo) – é feita por um contrato de tempo de uso: oito horas diárias, por exemplo. Em troca, o contrato estipula que o trabalhador dono da força de trabalho receberá um salário fixo, que corresponde ao valor do que seu corpo necessita para manter-se, durante o período dedicado à produção. “As necessidades do trabalhador reduzem-se assim à necessidade de o manter (sic) durante o trabalho e de maneira a que a raça dos trabalhadores não se extinga” (MARX, 1989, p. 174). Dessa forma, o salário que recebe pela venda de sua mercadoria força de trabalho durante o período das oito horas diárias será sempre menor do que o valor das mercadorias que produz, ou seja, as novas riquezas que resultam do emprego da sua capacida- de produtiva para transformar os materiais em mercadorias terão sempre um valor maior, um excedente. Como o trabalhador não foi contratado por produção, mas por número de horas trabalhadas, a mais-valia ou lucro é justamente essa diferença entre a riqueza produzida pelo trabalhador e o que ele recebe. O sistema capitalista de produção prevê que o capitalista dela se aproprie legalmente (é o que reza o contrato aceito por ambas as partes, e assinado pelo contra- tante). No sistema capitalista, portanto, é necessário que o valor da mercadoria força de trabalho seja inferior ao valor (riqueza nova) que o trabalhador pode produzir nas oito horas de trabalho pelas quais é contratado, pois, se assim não for, não será possível a extração da mais-valia. O modo de produção capitalista, portanto, é um sistema econômico que se assenta na extração da mais-valia pela única forma possível: a exploração do trabalho alheio. Assim, o lucro é trabalho não pago: legalmente, porém, conforme reza o contrato assinado (carteira de trabalho), que estipula o tempo de uso da mercadoria força de trabalho na produção. Práticas Pedagógicas e literatura infantil 26 “Assim, entre o tudo tem seu preço de uns e o negócio é negócio de outros, vola- tiliza-se e desmistifica-se a pureza, a neutralidade e a ‘incontaminação’ dos artistas/ intelectuais eruditos. Diz bem Marx: ‘Não revelando o dinheiro aquilo que nele se transforma, converte-se tudo em dinheiro, mercadoria ou não. Tudo se pode vender e comprar’ (MARX, 1987, p. 146). Para muitos, “a consciência profissional, inclusive” (PEIXOTO, 2001, p. 90). Esse é o quadro desanimador em que se encontra a arte, que, de produção hu- mana livre, foi historicamente sendo subjugada pelos ditames do sistema de arte na sociedade capitalista ocidental. Ao materialismo histórico e dialético coube fazer a crítica dessa realidade, afirmando a concepção de arte como forma de conhecimento e expressão da totalidade das dimensões constituídas histórica e coletivamente pelos homens, voltada ao crescimento humano: a arte do homem, pelo homem, para o ho- mem, o que constituirá o tema do próximo capítulo. 1) Quais características do modo de produção capitalista e do seu mercado que induziram à transformação da ARTE em mercadoria? 2) Em que consiste e como disseminar, através do ensino da arte na escola, os valores essen- cialmente humanos, discernindo-os dos valores artificialmente criados pelo marketing, e divulgados pela mídia, com vistas à exacerbação do consumo? Proposta de Atividades Sugestões de Leitura BENJAMIN, W. O que é o teatro épico? In: KOTHE, Flávio R. (Org.). Walter Benjamin: Sociologia. 2. ed. São Paulo: Ática, 1991. ECO, U. Obra aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. 8. ed. São Paulo: Perspectiva, 1997. IANNI, O. O Estado e a organização da cultura. Encontros com a Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 216-241, 1978. a arte na contemporaneidade: mercantilismo e elitização 27 referências ARANTES, O. B. F. A “virada cultural” do sistema das artes. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL ESTÉTICA E POLÍTICA, 2005, São Paulo. Anais... São Paulo: SESC/SP. Disponível em: <http://www.sescsp.org.br/sesc/conferencias/index. cfm?forget=12&inslog=12SESCSP/conferências/Otília Arantes > Acesso em: 3 jul. 2009. BOURDIEU, P. A Economia das trocas simbólicas. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 1999. CANCLINI, N. G. A socialização da arte: teoria e prática na América Latina. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 1984. Título do original: Arte popular y sociedad en América Latina: teorias estéticas y ensayos de transformación. DEBORD, G. A sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do espetáculo. 3 imp. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de janeiro: Contraponto, 1997. Conteúdo parcial. 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Guggenheim’s Provocative Director Steps Down. New York Times, New York, 28 fev..2008. Disponível em: <http://www.nytimes.com/2008/02/28/arts/ design/28muse.html>. Acesso em: 15 fev.2011. Anotações a arte na contemporaneidade: mercantilismo e elitização 29 Anotações Práticas Pedagógicas e literatura infantil 30 Maria Inês Hamann Peixoto A arte no processo de humanização: o desafio do acesso livre à produção artística 2 Todas as [...] relações humanas ao mundo – visão, audição, olfacto, gosto, per- cepção, pensamento, observação, sensação, vontade, actividade, amor – em suma, todo os órgãos de sua individualidade [...] são no seu comportamento objectivo [...] a apropriação da realidade humana. Karl Marx Este capítulo tem por objetivo expor, de modo sucinto, a concepção materialista dialética de arte, que faz a crítica dos processos mercantilista e de elitização do objeto de arte (apontados no capítulo anterior), ao mesmo tempo em que aduz implicações dessa concepção para a produção artística, bem como para as relações entre arte e grande público. O materialismo histórico e dialético tem por parâmetro o processo histórico de humanização que a todos deve ser facultado, para o qual a sensibilização – promovida nos indivíduos pelo acesso às diversas formas de arte – é um determinante essencial. a arte no Processo de huManização Uma consciência precária sobre o significado, a importância e a necessidade da arte como apropriação da realidade humana histórica e socialmente construída – ouseja, a arte como fonte de humanização – é, sem dúvida, uma séria determinante do descaso em se defender o acesso irrestrito das pessoas às variadas formas de produção artística, na vida cotidiana. Essa desconsideração se faz presente tanto na formação acadêmica do artista e dos professores de arte quanto nos planos social e das políticas públicas da área da cultura, com raras exceções. Para tratar tal temática sob a ótica do materialismo histórico e dialético, partimos da concepção de homem como ser social e histórico: aquele que, pelo trabalho, se dife- renciou dos animais ao construir a história e a sociedade, enquanto, simultaneamente, 31 é por elas constituído. Em outras palavras, o ser homem, ao garantir sua sobrevivência no embate com a natureza, construiu o mundo exclusivamente humano usando as mãos, em um processo coletivo de trabalho. Nesse mesmo processo, dialeticamente, desenvolveu a capacidade do pensar (abstrair), e assim se constituiu como huma- no, diferenciando-se dos animais, enquanto, simultaneamente, construía a história e a sociedade humanas, distintas do mundo natural. Em sendo a arte uma das formas de trabalho exclusivamente humanas, este texto assume a concepção de arte como trabalho humano1 de criação. arte e huManização: fundaMentos Para o materialismo histórico e dialético, uma sólida formação humana se dá, necessariamente, com o desenvolvimento da totalidade das dimensões humanas: a corporal, ou dimensão sensório-motora e emocional; a intelectual, ou dimensão teó- rica; a ética, ou dimensão dos valores; a política, isto é, a dimensão da comunicação, ação e intervenção no real; e a dimensão estética, da sensibilidade. Assim, a valorização da arte no processo de humanização exige o contato de todos com as diversas formas de criação artística, pois só desse modo é possível se promover o desenvolvimento de uma sensibilidade acurada, que, no conjunto das demais di- mensões dos seres humanos, dá ao indivíduo a estatura humana, fruto da construção coletiva do processo histórico e social. Entretanto, como já vimos, a maior parte da produção artística, na sociedade oci- dental atual, sustém-se ao sabor de modismos ditados pela hegemonia das ideias e interesses do sistema de arte, vinculados (se bem que não de modo evidente) à con- cepção arte pela arte. Para muitos, tal concepção é acompanhada de resquícios da 1 Na concepção do materialismo histórico e dialético, entende-se por trabalho humano o pro- cesso histórico de domínio da natureza, realizado de modo coletivo, para a produção da sobre- vivência humana. Nesse processo, o homem, ao objetivar-se no mundo, simultaneamente sub- jetiva/humaniza a natureza, constrói a história e se autoconstitui como homem. Contrapõe-se, portanto, ao trabalho tal como é tratado na esfera da economia política (ou seja, sob o regime da produção capitalista), em que passou a significar a alienação do homem tanto em relação ao produto do trabalho (MARX, 1989, p. 159-161) e ao processo da produção (MARX, 1989, p. 161-163) quanto à condição humana como ser genérico (MARX, 1989, p. 163-166). Opõe-se, portanto, à concepção de trabalho como “desrealização do trabalhador, a objectivação [do ho- mem no mundo] como perda e servidão do objecto, a apropriação [da natureza] como alienação”, tal como acontece no universo capitalista de produção (MARX, 1989, p. 159 apud PEIXOTO, 2001, p.81-82, grifo do autor). Práticas Pedagógicas e literatura infantil 32 ideia do artista como alguém especial, o gênio criador2, ideia que persiste e rende bons lucros para o mercado da arte, associada à busca de uma produção muitas vezes extravagante. A concepção arte pela arte, ao defender a centralização na forma como única pos- sibilidade para a arte autêntica, rompe a unidade forma-conteúdo da obra, cindindo a unidade arte-vida, que é referência imediata à unidade-totalidade do homem criador. Ao mesmo tempo, consolida uma visão fragmentada da arte. Advoga, assim, a autono- mia da arte em relação à vida, ou seja, a desumanização da arte. Nessa linha, Ortega y Gasset (1991, p. 31) defende a evitação de toda e qualquer referência à vida, tendendo a considerar a arte um puro jogo. Essa posição descrê da arte como produção de um indivíduo humano integral, na sua totalidade de mãos-sensibilidade-razão-emoção- -valoração-ação, ou seja, um indivíduo concreto do qual cada ação ou atitude só é compreensível, só adquire sentido quando e se dialeticamente relacionada ao todo, in- cluído aí a sociedade, a cultura e o momento histórico em que o artista vive e produz o seu trabalho. Importa considerar que o conteúdo do pensamento do artista, como ele percebe o mundo e sente emoções, o que ele valoriza, além dos métodos e materiais de que se vale para criar suas obras são fortemente determinados por essa totalidade. A concepção arte pela arte tem suas raízes no Iluminismo e no liberalismo. No que concerne à arte, o primeiro defende sua neutralidade em relação às questões sociais e políticas, característica esta antes reivindicada apenas para as ciências exatas. Tal concepção entende como possível ao artista desvestir-se da sua visão de mundo, de suas posições pró ou contra as questões sociais e políticas que estão postas no seu contexto histórico e cultural. Igualmente, pressupõe ser possível ao artista eximir-se ou omitir-se de todo e qualquer julgamento de valor, na produção dos seus trabalhos. 2 Na primeira sistematização da estética, a Crítica da faculdade do juízo (1790), Kant trata das características do gênio criador – ideia posteriormente adotada e acalentada pelo movimento filosófico e artístico do romantismo, no qual o artista passa a ser visto (e a se perceber) como alguém especial, diferente do vulgo. Na obra apontada, Kant afirma que “o génio é a originali- dade exemplar do dom natural de um sujeito no uso livre das suas faculdades de conhecimento [...] favorito da natureza [...] aparição rara [...] o seu exemplo produz para outras boas cabeças uma escola, isto é, um ensinamento metódico segundo regras [...] extraídas dos produtos de seu espírito e peculiaridade” (KANT, 1992, p. 211-226). Apesar de, no início, o movimento ro- mântico ter significado uma reação de descontentamento frente aos resultados funestos da Re- volução Industrial (segunda metade do século XVIII) para a maioria da população e, portanto, ter se mesclado a um forte sentimento de solidariedade com a miséria da classe trabalhadora, no âmbito das artes, historicamente, prevaleceu a posição individualista e elitista do gênio criador, bem ao gosto e em acordo com os interesses mercantis da classe burguesa, voltados para a obra única, original e exclusiva que, por assim ser, alcança altos preços no mercado, segundo a lei da oferta e da procura (PEIXOTO, 2003, p. 11-12). a arte no processo de humanização: o desafio do acesso livre à produção artística 33 O liberalismo3, ao defender o individualismo e a liberdade do artista no proces- so criador e sua autonomia em relação à história e à cultura, além de dar suporte à ideia de que a arte deva ser neutra, assume uma concepção negativa de liberdade, entendida aí como desvinculação, como ruptura de laços entre o indivíduo criador e a sociedade em que vive e trabalha. Ou seja, a arte pela arte é uma concepção de cunho nitidamente dissociado, que tenta negar os vínculos da arte com uma realidade especí- fica de um ser humano datado, já fragmentado no processo produtivo4 pelo modo de produção capitalista, o qual se consolidou a partir do século XVIII, com a Revolução Industrial inglesa, e com a Revolução Francesa (1789). A concepção arte pela arte propiciou o desenvolvimento do sistema de arte com tudo o que ele comporta: a) Uma estrutura de ensino queprima pela ortodoxia cul- tural ao definir o que pode ou não ser considerada obra de arte legítima, e que cria critérios para distingui-la das ilegítimas; b) A reprodução, pela inculca, da obediência consciente aos modelos preconizados (isso vem mudando relativamente com relação à arte contemporânea, mas não no que diz respeito à análise da arte do passado), o que, simultaneamente, garante a formação do habitus, ou seja, a reprodução de esquemas de ação, expressão, concepção, imaginação, percepção e apreciação disponíveis numa sociedade dada; c) A participação de academias de arte, dos museus e salões de arte, que difundem, consagram e legitimam com premiações ou com o favorecimento de exposições aquela produção artística considerada autêntica ou legítima pelo viés do sistema; além dessas instituições, o próprio Estado participa e reafirma os padrões gerais acima apontados, pela concessão de honrarias (BOURDIEU, 1999, p. 117-125). 3 O liberalismo ganhou alento ao final da Idade Média e se constituiu historicamente associado à consolidação do modo de produção capitalista, no século XVIII. Como filosofia, possibilitou uma justificativa racional para a transformação das relações entre os homens – agora, de cunho puramente contratual –, cabendo aqui salientar o contrato por tempo de uso, na produção em escala, da mercadoria força de trabalho. Como visão de mundo hegemônica, sob os auspícios da classe burguesa, essa ideologia fundamentou-se na defesa da propriedade privada, do individu- alismo e da liberdade (entendamos, de modo especial, como liberdade de ir e vir para produzir, comerciar e acumular riquezas), desconsiderando toda e qualquer questão relativa ao bem co- mum da maioria da população (LASKI, 1973, passim.). 4 Esse homem fragmentado é visto e tratado pelo sistema produtivo exclusivamente como força de trabalho, uma mercadoria que se vende/compra no mercado de trabalho, cujo valor é regido pela lei da oferta e da procura. Essa mercadoria força de trabalho, como qualquer outra mercado- ria necessária ao processo produtivo, é nele consumida enquanto produtora de um novo valor (valor de troca), submetida à produção de mais-valia (lucro) para o capitalista, dono exclusivo dos meios de produção. Portanto, nessa realidade, o homem, que já não é mais proprietário do produto final do trabalho e dos meios de produção (tendo sido ele próprio transformado pelo sistema capitalista num desses meios), só terá valor pelo que produz num dado período de tempo, contratado segundo os interesses do modo de produção capitalista, que desconhece as necessidades concretas da vida dos seres humanos reais que servem aos seus propósitos. Práticas Pedagógicas e literatura infantil 34 Para tanto, busca na academia (pesquisadores, professores e críticos de arte) orienta- ções sobre quem merece recebê-las. Na sociedade contemporânea, tem especial pa- pel a mídia, que se encarrega de difundir os trabalhos dos artistas legitimados pela academia, mas só endeusa aqueles que de um ou outro modo lhe são convenientes, por servirem aos interesses privados da direção desta ou daquela empresa midiática. Ressaltemos que tais interesses por vezes sobrepujam as opiniões da academia, o que permite à larga a projeção de muito artista com pouco ou nenhum valor; até mesmo de verdadeiras mediocridades. A arte pela arte privilegia, ainda, uma concepção igualmente fragmentária e linear de história da arte, ora entendida como uma sucessão cronológica de estilos ou escolas, ora como parte da história das civilizações, ora como o conjunto de biografias dos de- nominados gênios criadores, ora como história das obras de arte (HADJINICOLAOU, 1973, p. 33-76). A arte ela arte é, por excelência a concepção que vigora no mercado de arte, com as figuras dos distribuidores, galeristas e marchands, que, juntamente com os críticos de arte, constituem um corpo de mediadores entre os produtores e os consumidores dos produtos artísticos, supostamente para promover o conhecimento e a aproximação entre os polos da produção (artista) e do consumo (público aprecia- dor e/ou comprador), historicamente distanciados. Por exigir o domínio de códigos não acessíveis a todos, a apreciação das obras da denominada grande arte permanece privilégio de poucos, configurando-se como mais um meio de exclusão cultural. arte Para todos: arte do hoMeM, Pelo hoMeM e Para sua huManização À concepção liberal arte pela arte contrapõe-se o materialismo histórico e dia- lético, com uma concepção de arte vinculada à vida concreta; arte do homem, pelo homem e para o homem: a arte como trabalho humano de criação, livre e, como tal, fonte de humanização. Contra a fragmentação da visão liberal, o materialismo históri- co erige a unidade do conteúdo-forma da obra de arte como expressão da totalidade humana do seu criador, para um público aberto e diversificado, o qual, a cada ato fruitivo cria e recria a obra. Assume-se que o artista – indivíduo concreto, enquanto integralidade de trabalhador-criador-cidadão-ser ético-político, construtor-partícipe de uma dada sociedade e de um dado momento histórico –, através da criação es- tética e por uma ótica singular, em cada obra expressa o humano genérico que nele existe. A forma-conteúdo através da qual fala ao público é marcada pelo seu tempo histórico e pelo seu contexto sócio-cultural. Assim, enquanto componente da constru- ção coletiva e histórica da cultura humana, na obra de arte o autor se posiciona frente a sua contemporaneidade ( já marcado por ela, entretanto) como indivíduo, com toda a arte no processo de humanização: o desafio do acesso livre à produção artística 35 a complexidade das suas dimensões humanas: O autor, como momento constitutivo da [...] [obra], é a atividade organizada e oriunda do interior, do homem como totalidade, que realiza plenamente a sua tarefa, [...] é, ademais, o homem todo dos pés à cabeça: ele precisa de si por inteiro, respirando (o ritmo), movimentando-se, vendo, ouvindo, lembrando- -se, amando e compreendendo (BAKHTIN, 1998, p. 68). Neste sentido, além de ampliar e revitalizar a sensibilidade, a arte humaniza o homem: ao condensar uma cosmovisão peculiar, permite àquele que se dedica a sua fruição atenta, compartilhar de outra consciência do mundo5, o que caracteriza a arte como forma de conhecimento. Simultaneamente, pela experiência da presença do novo (a obra é uma nova realidade estética e social), o momento da fruição ativa ou co-criação favorece um adensamento da autoconsciência6. A seguir, intentamos uma análise dessas posições. “A formação dos cinco sentidos é a obra de toda a história mundial anterior” (MARX, 1989, p. 199), ou seja, no processo de construção da existência, a sensibilida- de estética desenvolveu-se como: resultante do desenvolvimento dos sentidos físicos e espirituais humanos pari passu ao domínio da natureza, o que só é possível ao homem [...] portanto, todos os sentidos do homem se fazem humanos somente no âmbito da socie- dade, na práxis (PEIXOTO, 2003, p. 44). Na sociedade capitalista, onde tudo se transforma em mercadoria à venda, inclusive o ser humano, a tendência dos cinco sentidos é a de se restringir ou se embrutecer, di- minuindo nas pessoas a sensibilidade, a necessidade do contato com a arte. Contenta- -se, assim, a maioria dos indivíduos – independentemente da classe socioeconômica e do nível de escolaridade – com os produtos da indústria cultural. A esse respeito, citamos os espantosos índices de audiência de programas medíocres tais como os fo- lhetins levados ao ar pelas diferentes emissoras de TV, e de outros tantos de péssima qualidade, a exemplo do Big Brother, já na décima primeira edição, em 2011. Na direção diametralmente oposta à daindústria cultural caminha a arte, uma 5 Consciência ou consciência do mundo refere-se “ao processo aproximativo de construção, pela práxis humana, do conhecimento sobre a multiplicidade de determinações do concreto, no embate com a natureza em busca da sobrevivência” (PEIXOTO, 2003, p. 47). 6 Autoconsciência é “uma ideologia individual; é a imagem de mundo – construída, em última instância, com a ajuda de conceitos filosóficos, éticos – com a qual cada um ordena sua própria atividade individual na totalidade da práxis. Nessa medida [...], assume a vida cotidiana do indivíduo um caráter filosófico; e como tal se realiza quando e na medida que [sic] o indivíduo é guiado pela concepção de mundo na tarefa de dirigir sua vida, na ordenação de sua forma própria de viver” (HELLER, 1982, p. 16). Práticas Pedagógicas e literatura infantil 36 produção que opera com a matéria e a particularidade. Como tal, aguça e refina os sentidos, em especial o olhar e a audição, enriquecendo, portanto, os seres humanos, tanto o artista criador quanto o público fruidor. Dessa maneira, a arte assume um pa- pel primordial no processo de formação, revitalização e aprimoramento dos sentidos. Sabemos que a necessidade de algo pode ser gerada pelo contato com o próprio produto, porque na relação dialética produto-consumidor a produção determina não só o objeto do consumo, mas também o modo do consumo. Nesse âmbito, o produto arte pode criar seu consumidor-fruidor. Como escreveu Marx (1983, p. 210, grifos nossos): a necessidade que sente do objeto é criada pela percepção deste. O objeto de arte - tal como qualquer outro produto - cria um público capaz de compreen- der a arte e de apreciar a beleza. Portanto, a produção não cria somente um objeto para o sujeito, mas também um sujeito para o objeto. Logo, a produção gera o consumo. Daí a importância de se colocar a arte – em todas as suas formas – à disposição, no cotidiano da maioria da população. Não importa se os indivíduos detêm ou não conhe- cimentos sobre o campo da arte; se demonstram – ou não – um interesse imediato e explícito. O contato com obras de arte, no cotidiano, de modo direto, intensivo, e de fácil acesso se encarregará de criar tanto o interesse quanto a necessidade. Com base em Marx (1983, p. 210), inferir que a produção artística pode gerar consu- mo de três modos: primeiro: ao proporcionar “condições concretas de acesso às obras, em quantidade (extensão) e em qualidade (intensidade) compatíveis com um padrão elevado de arte, ao maior número possível de pessoas”; segundo: ao determinar a forma do consumo, ou melhor, ao disponibilizar “uma apropriação-fruição das obras que pro- mova a consciência e permita o desenvolvimento da autoconsciência”, e não um “con- sumo massificado e passivo”, tal como promove a indústria cultural, em especial a TV; terceiro: ao gerar no consumidor a necessidade do produto: “não só despertar, mas criar necessidades e prazeres especificamente humanos, tais como: a acuidade perceptiva e a agudeza de sensibilidade, o exercício da capacidade de reflexão, de interpretação e de crítica, entre outros [...]” (PEIXOTO, 2003, p. 48). Entende-se, pois, que “o processo de (re)humanizar os sentidos do homem, ampliar-lhe o âmbito da reflexão e criar uma sensibilidade genuinamente humana é um desafio histórico posto a cada dia para todos aqueles que trabalham ou se preocupam com a educação” e com a arte, ou seja, com o processo de humanização dos seres humanos. Esse é o desafio que deve, necessariamen- te, estar presente na formação e na práxis do artista (PEIXOTO, 2003, p. 48-49). A partir da concepção de que a totalidade do trabalhador-criador materializa-se na obra – de que sua visão de mundo permeia todo o processo de criação –, entende-se que a arte possibilita uma forma de conhecimento sensível, uma maneira de apreender a arte no processo de humanização: o desafio do acesso livre à produção artística 37 e compreender a realidade não restrita à racionalidade ou ao discurso; logo, uma forma de conhecimento não científica, mas estética, pela intermediação da produção artística de uma totalidade humana, o artista. Tal conhecimento, o indivíduo fruidor no seu todo apreende no confronto de seus próprios conteúdos (seus conhecimentos, sua sensibilidade e emotividade, suas posições éticas e políticas, sua visão de mundo, etc.) com a nova realidade-totalidade concreta (a obra de arte) materializada livremente por outra totalidade humana (um trabalhador-criador livre). Nesse cotejo, aquele que frui a obra, ao decidir-se livremente pelo envolvimento e interação com ela, no ato de interpretá-la cria uma nova obra, assimilando-a e enriquecendo-a, assimilando- -se a si mesmo como interlocutor que dialoga com a obra, com seu criador e consigo mesmo, no processo interpretativo. Trata-se, portanto, de um processo de co-criação da obra, que só nesse momento garante seu status como arte. Desse processo resulta que nada ou ninguém permanecerá o mesmo: obra, autor e fruidor transformam-se durante o processo de interação humana que configura a experiência estética. A consciência do mundo se amplia e se intensifica pela abertura ao estético como uma forma específica de conhecimento do real, que, simultaneamente, lhe amplia a autoconsciência, ensejando ao fruidor/co-criador um crescimento huma- no. Assim, a obra de arte permite-lhe “extrapolar a simples consciência espontânea de si mesmo e do seu ambiente, o chamado ‘senso comum’ [...] pela construção de uma ‘consciência filosófica’, através da reflexão” (PEIXOTO, 2001, p. 107). Entende-se que “a construção da consciência e da autoconsciência estão [...] dialeticamente imbricadas e dizem respeito, numa dada sociedade, à superação do senso comum” (PEIXOTO, 2003, p. 48), gerando um processo de humanização dos sentidos e do homem por inteiro. Urge que se recupere a concepção de arte em sua especificidade, como produto hu- mano livre, de cunho cultural, histórico e social, e, por consequência, seu valor como fonte de humanização; na prática, isso implica na exigência de que as obras sejam postas ao alcance de todos, indiscriminadamente. No ato de interpretar a obra de arte, quando o público se deixa avassalar por ela, é trabalhada a totalidade das dimensões humanas: a sensibilidade, associada à razão, às emoções e às posições éticas e políticas presentes na obra, que, como tal, atingem e repercutem no fruidor. Por esse motivo, as diversas for- mas de arte têm muito a contribuir para a constituição do homem rico de que fala Marx.: aquele que, contraditoriamente, se apresenta pleno de necessidades – mas necessidades humanas, não aquelas artificiais criadas pelo marketing, que visam levar ao consumis- mo –, o homem “dotado de todos os sentidos, como sua permanente realidade [...] que necessita de uma totalidade de manifestações humanas [...] cuja realização existe como urgência natural interna, como necessidade” (MARX, 1989, p. 200-202). Em suma, tornar-se um ser humano rico significa deixar-se tomar, conscientemente, por uma série 38 Práticas Pedagógicas e literatura infantil de necessidades humanas, que levam os indivíduos a buscarem ser mais e melhores. Finalizando, concluímos que a arte constitui uma arma construtiva poderosa na luta para “a superação do homem desumanizado-atomizado no processo produtivo, com vista à sua humanização e à construção de uma ‘sociedade plenamente constituí- da’ ” (PEIXOTO, 2003, p. 49). Subscrevemos, então, as palavras de Antônio Callado, na Introdução da obra de Fischer: “Um dos males da sociedade atual é que a própria angústia da condição hu- mana só pode ser sentida (ia quase dizer saboreada) por uns poucos. Esse tipo de angústiaé hoje em dia um privilégio dos que dispõem de ócio. Precisa ser estendido a todos” (CALLADO apud FISCHER, 1987, p. 10). Aos artistas e à sociedade organizada, fica aqui lançado o desafio: desmitificar e desmistificar o campo das artes como produção de poucos, gênios iluminados, para poucos, social, econômica e/ou culturalmente aquinhoados. Que se promova, sim, o acesso livre e irrestrito: a arte para todos! 1) Quais as implicações para a sociedade e para vida dos indivíduos – em especial, aqueles que compõem as classes subalternas – do fato de terem acesso quase que tão somente aos produtos da indústria cultural? 2) Qual o papel do(a) professor(a) na luta pela inclusão social – ou seja, pelo livre e fácil aces- so da maioria da população –, no que tange à produção artística? Como pode ele melhor desempenhá-lo? Proposta de Atividades Sugestões de Leitura KONDER, L. Os marxistas e a arte: breve estudo histórico-crítico de algumas tendências da estética marxista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966. KOSÍK, K. Dialética do concreto. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. ZUIN, A. A. S.; PUCCI, B.; RAMOS-DE-OLIVEIRA, N. (Org.). A Educação danificada: contribuições à teoria crítica da Educação. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1998. a arte no processo de humanização: o desafio do acesso livre à produção artística 39 referências BAKHTIN, M. Questões de Literatura e de estética: a teoria do romance. 4. ed. São Paulo: Ed. da unesp, 1998. BOURDIEU, P. A Economia das trocas simbólicas. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 1999. FISCHER, E. A necessidade da arte. 9. ed. Tradução de Leandro Konder. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1987. HADJINICOLAOU, N. História da arte e movimentos sociais. Lisboa: Edições 70, 1973. HELLER, A. La revolución de la vida cotidiana. Barcelona: Península, 1982. KANT, I. Crítica da faculdade do juízo. Lisboa: Imprensa Nacional, 1992. LASKI, H. J. O liberalismo europeu. São Paulo: Mestre Jou, 1973. MARX, K. Contribuição à crítica da Economia Política. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1983. ______. Manuscritos económico-filosóficos. Lisboa: Edições 70, 1989. ORTEGA y GASSET, J. A desumanização da arte. São Paulo: Cortez, 1991. PEIXOTO, M. I. H. Relações arte, artista e grande público: a prática estético- educativa numa obra aberta. 2001. 259 f. Tese (Doutorado em História, Filosofia e Educação)-Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, 2001. ______. Arte e grande público: a distância a ser extinta. Campinas, SP: Autores Associados, 2003. Práticas Pedagógicas e literatura infantil 40 suely amaral Mello A literatura infantil e a formação da atitude leitora nas crianças pequenas 3 considerações iniciais Pouco se tem discutido sobre o sentido que as crianças aprendem a atribuir àquilo que vão conhecendo. Em geral, nem consideramos que a criança, desde pequena, atri- bui um sentido pessoal a tudo o que vive e conhece. E, no entanto, é assim. De acordo com a experiência que tem ao vivenciar uma situação ou conhecer um objeto – que tanto pode ser material, como, por exemplo, um livro, como pode ser não-material, como, por exemplo, uma história lida pelo/a professor/a – a criança atribui um sentido a esse objeto ou situação. Esse sentido condicionará toda relação que ela estabelecerá com esse objeto ou situação a partir de então. Em outras palavras, de acordo com as experiências vividas, a criança forma uma atitude frente aos objetos e situações e sem- pre que se dirigir a esses objetos e situações as experiências já vividas filtrarão as novas relações que ela estabelece. Essa atitude da criança constitui-se, então, como uma res- posta da criança aos objetos: sua atitude depende do que os objetos significam para ela, de como ela os entende, de como esses objetos a afetam e de quanto a afetam. Quais as implicações pedagógicas disso? Entendemos que essa compreensão – de que a atitude das crianças frentes aos objetos condiciona sua aprendizagem – revolu- ciona a forma como o/a professor/a pensa e propõe o ensino e percebe a aprendiza- gem. Em primeiro lugar, isso leva a entender que para realizar de forma adequada sua atividade, uma das tarefas essenciais do trabalho docente é conhecer o sentido que a criança já construiu para si sobre aquilo que o/a professor/a se propõe a ensinar. To- mando a apropriação da leitura e da escrita – instrumentos essenciais para o sucesso da criança na escola a partir do ensino fundamental e na vida –, conhecer que sentido a criança aprendeu a atribuir à cultura escrita é condição essencial para a organização 41 do trabalho docente. Da mesma forma, para o sucesso do trabalho docente, é essencial acompanhar qual sentido a criança vai atribuindo à cultura escrita a partir das situa- ções propostas pelo/a professor/a. Apenas para dar um exemplo, tomamos o caso de uma criança de 6 anos que fre- quenta uma escola infantil onde as crianças realizam treinos de escrita diariamente. Ao perceber a pesquisadora que escreve, o menino se aproxima e pergunta: — Moça, o que você está fazendo? — Estou escrevendo! – responde a pesquisadora. — Por quê? – volta a perguntar o menino. — Para eu ler depois e me lembrar do que eu vi! – responde a pesquisadora — Quem mandou?1 Nesse diálogo, percebemos a concepção de escrita que a escola, ainda que não tivesse essa intenção, ensinou para a criança: escrevemos o que alguém manda. Esse sentido de cultura escrita aprendido nas situações vividas na escola marcará sua com- preensão daquilo que ler e escrever com uma atitude negativa em relação à escrita; com uma atitude que não lhe permite buscar expressar-se no que escreve. Conforme afirma Leontiev (1978), os sentidos são formados e desenvolvidos nas situações vividas pela criança e são condicionados pelos motivos da atividade que a criança realiza. Nas palavras do autor, “o desenvolvimento dos sentidos é produto do desenvolvimento dos motivos da atividade; por sua vez, o desenvolvimento dos pró- prios motivos da atividade é determinado pelas relações reais que o sujeito tem com o mundo, que dependem das condições históricas objetivas de sua vida” (LEONTIEV, 1978, p. 217). Sendo assim, ao que tudo indica, em nenhum momento a escola apresentou para esse menino a ideia de que a escrita serve para a comunicação com os outros, para expressar o que sentimos, pensamos, aprendemos, para divulgar uma ideia ou para ajudar a lembrar coisas. Considerando esse um tema essencial na formação do/a professor/a, pretendemos, nessas páginas, aprofundar a compreensão do sentido e de seu papel na apropriação do conhecimento, com a intenção de contribuir para a atividade docente com a litera- tura infantil na educação infantil e das séries iniciais do Ensino Fundamental. Para isso, citamos, em primeiro lugar, a abordagem de Leontiev (1978) sobre o pa- pel do sentido nas relações que estabelecemos com o mundo que vamos conhecendo 1 PAIXÃO, K. de M. G. A Educação infantil e as práticas escolarizadas de Educação: o caso de uma EMEI de Marília/SP. 2004. 149f. Dissertação (Mestrado em Psicologia)-Programa do Desenvolvimento e Aprendizagem, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Assis, 2004. Práticas Pedagógicas e literatura infantil 42 – nas aprendizagens que vamos realizando e que criam uma atitude que favorece ou dificulta a aprendizagem. Em seguida, procuramos analisar a forma como a cultura escrita é, de um modo geral, apresentada para as crianças na Educação Infantil e no início do Ensino Fundamental em algumas práticas por nós observadas. Finalmente, procuramos refletir acerca da possibilidade do trabalho com a literatura infantil na escola dainfância e no Ensino Fundamental formar a atitude leitora e produtora de textos nas crianças. o sentido na aPrendizageM No livro “Atividade, Consciência e Personalidade”, e mais especificamente em seu apêndice intitulado “Problemas Psicológicos do Caráter Consciente do Estudo”, Le- ontiev (1978) chama a atenção para o fato de que o conhecimento é indubitavelmen- te fator de desenvolvimento e humanização das crianças, mas adverte: para que o conhecimento eduque, é preciso antes educar na criança sua atitude em relação ao conhecimento. Segundo o autor, “esta é a essência do caráter consciente do estudo” (LEONTIEV, 1978, p. 234). Conforme define Leontiev (1978, p. 221), o sentido é o “aspecto da consciência do indivíduo que é determinado por suas próprias relações de vida”. Isso quer dizer que a atitude das crianças frente aos objetos não é algo se ensina como um produto. Essa atitude é um elemento da consciência que se forma como um processo ao longo das situações reais de vida que as crianças vão experimentando. É importante consi- derar que essas situações vividas não determinam diretamente o sentido que a criança atribui às situações. Se assim fosse, todas as crianças atribuiriam o mesmo sentido às situações vividas em comum. O processo, de fato, é mais complexo. Cada criança filtra as situações e experiências que vive por meio do sentido produzido por ela em suas experiências anteriores. Vygotsky (1994) também destaca o papel da criança na produção do sentido. Quan- do discute a relação que a criança estabelece com o meio – que pode ser chamado de cultura2 e que é produzida pelos homens e mulheres ao longo da história –, Vygotsky (1994, p. 339-340, tradução nossa) assinala que: O fator essencial que explica a influência do meio sobre o desenvolvimento da criança e sua personalidade são as vivências. A vivência que surge de qualquer situação ou aspecto do meio determina que tipo de influência esta situação ou 2 Cultura significa aqui o conjunto da produção humana: os hábitos e costumes, a língua que usamos para nos comunicar, a arte, a forma de pensar (a lógica), a ciência e as técnicas, os valo- res, os objetos (a casa, os móveis, as roupas, etc.) e os instrumentos (os talheres, o computador, a caneta) que ampliam as possibilidades do nosso corpo. a literatura infantil e a formação da atitude leitora nas crianças pequenas 43 meio terá sobre o desenvolvimento da criança. Assim, não é um fator por si (se tomado sem referência à criança) que determina como ele influenciará o curso do desenvolvimento futuro, mas o próprio fator refratado pelo prisma da vivência da criança. Desse ponto de vista, Vygotsky define a criança como elemento ativo que filtra a influência da cultura no processo em se apropria dela, isto é, no processo em que aprende a utilizar a cultura que encontra ao seu redor desde que nasce. Assim, em consonância com este autor, mesmo que, ao longo de um tempo, as situações apresen- tadas à criança apresentem poucas mudanças, sua influência sobre a criança pode sofrer grandes mudanças, uma vez que a criança muda no processo de desenvolvimento, tanto devido a condições biológicas quanto devido à experiência humana de que se apropria. Com isso, o autor postula que o sentido que a criança atribui às coisas é dinâmico e vai se modificando de acordo com as experiências que ela vai vivendo. Esse sentido, de qualquer modo, sempre filtra a influência das coisas sobre a criança. Vygotsky explica que cada situação mobiliza algumas e não todas as peculiaridades da criança. Isso significa que, em cada situação, algumas peculiaridades exercem papel principal enquanto outras podem estar ausentes. Por isso, para compreendermos a maneira como a cultura influi sobre o desenvolvimento da criança, “é importante sa- ber quais dessas peculiaridades constitucionais desempenharam um papel de- terminante para definir a atitude da criança frente a dada situação” (VYGOTSKY, 1994, p. 341, tradução nossa, grifos no texto original). Assim, nas palavras do autor, a análise do papel do meio – da cultura – no desenvolvimento da criança, deve sempre considerar o sentido que as coisas têm para a criança. Vygotsky sintetiza essa relação que a criança estabelece com a cultura no conceito de vivência como uma unidade de elementos da cultura e de elementos da personali- dade como unidade do subjetivo e do objetivo. Nas palavras do autor, A vivência é uma unidade na qual, por um lado, de modo indivisível, o meio, aquilo que se vivencia está representado – a vivência sempre se liga àquilo que está localizado fora da pessoa – e, por outro lado, está represen- tado como eu vivencio isso, ou seja, todas as particularidades da personali- dade e todas as particularidades do meio são apresentadas na vivência, tanto aquilo que é retirado do meio, todos os elementos que possuem relação com dada personalidade, como aquilo que é retirado da personalidade, todos os traços de seu caráter, traços constitucionais que possuem relação com dado acontecimento. Desta forma, na vivência, nós sempre lidamos com a união indivisível das particularidades da personalidade e das particularidades da situação representada na vivência ( VYGOTSKY, 1994, p. 342, tradução nossa, grifos no texto original). Para Vygotsky (1994), as experiências emocionais das crianças frente aos objetos e si- tuações são, por conseguinte, fatores essenciais para explicar a influência do meio sobre Práticas Pedagógicas e literatura infantil 44 seu desenvolvimento psicológico e sobre o desenvolvimento de sua personalidade. A experiência emocional que a criança experimenta em qualquer situação determina que tipo de influência uma situação exercerá sobre a criança. Portanto, não é nenhum fator externo que determina o futuro do desenvolvimento infantil; mas esse próprio fator percebido através do prisma da experiência emocional – da vivência – da criança. A vivência depende, então, da atitude da criança frente aos fatos e objetos. Em outras palavras, depende do sentido que a criança atribui aos fatos e objetos já vivenciados. Essa compreensão permite entender o significado de uma afirmação que tem se torna- do comum no meio educacional: a unidade do cognitivo e do afetivo ou, em outras pa- lavras, a compreensão de que as emoções têm um papel no processo de aprendizagem. É importante destacar, para a compreensão adequada dessa afirmação, que o afetivo que condiciona a aprendizagem não pode ser entendido no sentido cotidiano da pala- vra. Afetivo aqui não diz respeito a uma relação amigável e amorosa entre professor/a e criança ou aluno/a. Afetivo significa a maneira como um objeto ou situação afeta a criança. E isso depende do que esse objeto ou situação significam para a criança, de como ela os compreende, de que sentido a criança atribui a eles. Portanto, ainda que possa e deva ser formado intencionalmente na escola, o sentido que a criança atribui a um objeto “não se ensina, se educa” (LEONTIEV, 1978, p. 221), isto é, se forma como produto das relações reais estabelecidas com as coisas. Nesse caso, podemos dizer que a organização do trabalho do/a professor/a para esse apren- dizado precisa considerar as relações reais que a criança estabelece com aquilo que apresentamos a ela na escola e a complexidade do processo de atribuição de sentido. sentido e atividade É um pressuposto até certo ponto comum na escola a compreensão de que a apren- dizagem pode acontecer mesmo na ausência de uma relação de comunicação – ou de afetação – entre a criança e o objeto dessa aprendizagem, ou, ainda, na ausência de uma necessidade ou de um motivo para a aprendizagem por parte da criança. Discor- dando dessa assertiva, Leontiev (1978) pontua que a formaçãoe o desenvolvimento do pensamento não podem ser reduzidos ao domínio de conhecimentos, atitudes e hábitos mentais. No entanto, este autor julga necessário considerarmos que só se pode produzir o sentido depois de enriquecer o aluno com os correspondentes co- nhecimentos e atitudes. Isso implica que o sentido também é criado na escola pelo/a professor/a no processo de apresentar o conhecimento às crianças, alunos e alunas. Outro pressuposto que permeia as concepções vigentes em muitas escolas é que ao chamar a atenção da criança para um tema, garantimos sua aprendizagem. Por isso, é comum lançar perguntas no início de uma aula como estratégia de motivação. Todavia, a literatura infantil e a formação da atitude leitora nas crianças pequenas 45 os estudos desenvolvidos por Leontiev apontaram que chamar a atenção da criança para algo pode provocar nela uma reação orientadora inicial, mas essa atenção desaparece caso não surja uma atividade3 que se vincule com o objeto em questão. Isso significa que o objeto se mantém no foco de atenção da criança apenas se para ela se apresentar uma tarefa que a impulsione a agir motivada pelo produto ou objetivo que se alcançará ao final do processo. Portanto, o problema do sentido não se reduz à atenção, mas depende da atividade, isto é, depende da organização uma atividade, de um processo em que o resultado que se alcançará ao final desse processo coincida com o motivo que leva a criança a agir. Assim sendo, é o motivo da atividade em que está envolvida a criança que determina o sentido que tem para ela essa atividade. Por isso, nas palavras do autor: “o problema do sentido é sempre o problema dos motivos” (LEONTIEV, 1978, p. 217). Ainda citando Leontiev (1978; 1988), apenas quando o objetivo (o fim/ o produ- to/ o resultado) para o qual se orienta o agir da criança coincide com o motivo que a impulsiona é que se tem configurada uma atividade. É a atividade que possibilita a produção de um sentido para o objeto que seja coerente com a função para a qual o objeto foi criado, ou seja, apenas com a atividade é possível ocorrer a efetiva apropria- ção e aprendizagem. na escola da infância e no ensino fundaMental Trazendo essa discussão para a escola para examinar os processos de formação do leitor e do produtor de textos, percebemos que, na escola brasileira atual, é típica a utilização de métodos para ensinar a criança a ler e escrever que enfatizam o domínio da técnica antes de criar na criança um motivo para a escrita. Nessas situações, cons- tatamos que o objetivo não é inserir as crianças no mundo da cultura escrita para criar nelas a compreensão do que seja a linguagem escrita como instrumento cultural e um motivo para a leitura e a escrita que seja consequente com seu significado (ler para compreender o que se lê e escrever para expressar/comunicar algo). O objetivo é apenas apresentar a técnica, deixando a função social da linguagem escrita em se- gundo plano. Esse procedimento de ensino da escrita, que se estruturou com base nas cartilhas, não desapareceu com as cartilhas, hoje substituídas pelo livro didático. O procedimento permanece, porque permanece a compreensão de que aprender a ler e a escrever exige apenas a capacidade de relacionar as letras do alfabeto e seus sons. 3 Compreender o conceito de atividade é essencial nessa discussão. Ele não se confunde com a atividade em seu sentido cotidiano quando se refere a qualquer coisa que se faz. Na abordagem histórico-cultural, atividade significa o processo em que o sujeito age motivado pelo produto que alcançará ao final do processo, o que implica envolvimento, produção de sentido e aprendizagem. Práticas Pedagógicas e literatura infantil 46 Com isso, o início do contato da criança com a escrita é valorizado como o momen- to em que a criança passa a memorizar a relação entre som e letra, a conhecer o alfabe- to, a articular letras para pronunciar sílabas, palavras e mesmo pequenos textos que – ainda que sejam corretos do ponto de vista gramatical – não concretizam o desejo das crianças de expressão em um texto ou compreensão de um texto lido. Seja na escola infantil, seja no Ensino Fundamental, quando se concebe a leitura como decifração de letras em sons e a escrita como codificação de sons em letras, os textos apresentados como exercício de leitura e escrita, preocupados em contemplar letras já conhecidas, estabelecem como objetivo a decifração ou codificação de frases que não respondem à necessidade de expressão ou de compreensão das crianças. Em muitas situações de leitura apresentadas pela primeira vez na escola não há nada a ser compreendido. E, no caso da escrita, não há nada a ser expresso. Por meio da observação de situações de leitura, descobrimos, em um grupo de crianças, sentidos que motivavam essas crianças a ler alheios à compreensão do texto lido. Quando solicitadas a dizer o motivo que as levava a realizar tarefas de memoriza- ção e decifração de letras em frases e pequenos textos apresentados pela professora como exercício de leitura, as crianças apontaram: satisfazer a vontade da professora, não indispor-se com ela, cumprir a tarefa para desfrutar depois de um tempo livre, não levar tarefa para casa. Esses sentidos são externos à leitura e à cultura escrita. Como vimos acima, é nas situações concretas que a criança constrói motivos e cria para si o sentido do que vai conhecendo. Nesse caso, ao viver situações concretas na escola em que a leitura não cumpre sua função social, torna-se impossível construir um sentido adequado à leitura como significado social. Em tal situação, como vemos no exemplo acima, a criança se envolve em outra atividade não aparente à primeira vista e à obser- vação do/a professor/a. Nas situações supracitadas, as atividades em que as crianças estavam envolvidas de fato eram: ir brincar, livrar-se da tarefa de casa, manter a estima que tem por parte da professora, manter uma relação pacífica com a professora; atividades que nada têm em comum com a atividade de leitura tal como existe socialmente. Nessas situações, percebemos uma clara falta de coincidência entre a intenção do conteúdo proposto pela escola e o que a criança realmente compreende em seu pro- cesso de aprendizagem. Essa não-coincidência, muitas vezes, não é percebida pelo/a professor/a porque permanece imersa em uma aparente atividade da criança. No en- tanto, como lembra Leontiev (1978), ser a criança ativa não bastaria, é necessário que a atividade se refira àquilo que se está expondo ou mostrando, pois, enfraquecido o motivo da atividade inicialmente proposta, como no exemplo acima, outro motivo relacionado a outra atividade toma seu lugar. a literatura infantil e a formação da atitude leitora nas crianças pequenas 47 Inserida em exercícios de leitura que não criam nas crianças motivos coincidentes com a função para a qual a leitura existe como objeto cultural, a criança não constitui a leitura como atividade. Com isso, constrói para a leitura um sentido que a distancia desse instrumento cultural essencial na apropriação da experiência humana acumula- da – a qual, vale lembrar, é a fonte do processo de humanização que cada um precisa viver para formar para si as qualidades humanas em suas máximas possibilidades. Ter a compreensão do que se lê como um motivo impulsionador da leitura e o de- sejo de expressão como motivo impulsionador da escrita não são atitudes naturais na criança. A necessidade de ler/escrever não nasce com a criança. Essa necessidade preci- sa ser formada na criança, por meio das situações que vive. Vimos acima, com Leontiev, que os motivos se formam com as experiências que as crianças vão vivendo, ou seja,na vida real. Nessas vivências, vai se formando o sentido dos objetos que a criança vai conhecendo. As situações de leitura que as crianças vivenciam condicionam, portanto, a formação de motivos de leitura na criança. A formação desse motivo é condicionada pelo sentido que a criança aprende a atribuir à leitura nas situações em que convive com a cultura escrita e às quais é apresentada e nas quais é inserida. Se as situações vividas pela criança a colocam na posição de tomar como motivo de escuta da leitura a finalidade social própria da leitura, ou seja, se ela ouve ou realiza uma leitura motivada pela compreensão do que lê, podemos afirmar que tem um motivo impulsionador para a leitura que coincide com o resultado (ou fim ou objetivo) da leitura (compre- ender o que se lê). Em tal situação, a criança forma para si um sentido coincidente com o fim da leitura. Aprende a atitude de ler para compreender o que se lê e todas as vezes em que se defrontar com situações de leitura, procurará compreender o que lê ou ouve de alguém que lê. Esse sentido – e essa atitude – para a leitura cria na criança uma nova necessidade: a necessidade de ler para compreender o que se diz nos textos lidos. Isso significa que a criança foi afetada positivamente por experiências de leitura que veio experimen- tando desde seus primeiros contatos com a cultura escrita, e isso permite estabelecer para a leitura um sentido adequado a sua função. Vale repetir: frente a situações de leitura, sua atitude tende a ser procurar compreender o que alguém lê e, mais tarde, o que ela própria lê. Quando não consideramos os motivos que ensinamos a criança a atribuir à lingua- gem escrita, ou quando não criamos nela a necessidade de compreensão da leitura e a necessidade de expressão por meio de um texto lido, não atentamos para a formação de um sentido para a leitura e a escrita que coincida com sua função social. São as condições em que a leitura e a escrita são apresentadas que podem pro- mover ou impedir a constituição do sentido adequado pela criança. Nas situações Práticas Pedagógicas e literatura infantil 48 referidas acima, observadas nas séries iniciais do Ensino Fundamental e em práticas de Educação Infantil, foi possível constatarmos a falta de concordância entre o objetivo da tarefa de leitura proposta pelo/a professor/a e a possibilidade de atribuição de sentido adequado à leitura por parte das crianças. E essa falta de coincidência já estava dada na proposição da tarefa às crianças. Nas situações de leitura por alunos/as no Ensino Fundamental, o objetivo era a pronúncia clara e correta das palavras e a entonação adequada das orações. Em nenhuma das situações observadas o objetivo da leitura foi compreender o texto lido. Essa compreensão foi sempre anunciada pelo/a professor/a em um segundo momento complementar à leitura feita pelos alunos/as. No caso das crianças da Educação Infantil, a leitura proposta tinha como objetivo o reconheci- mento de letras ou palavras fora de contexto. Novamente, ler era descobrir os sons representados pela escrita. Nesse caso, a criança aprende a atribuir à leitura um sentido que é estranho a ela, o significado social da leitura se perde e isso será um complicador nos processos em que precisar ler para entender um texto, pois sua atitude de ler para compreender um texto não foi formada nela. Nessa condição, quando precisar ler um texto, a criança buscará no texto letras e palavras, e não ideias e informações. Neste sentido, as experi- ências vividas apontam para a formação de uma atitude que pode chegar à negação da leitura como necessidade. É o que acontece quando ouvimos dos/as alunos/as ou dos adultos a declaração de que não gostam de ler: as experiências vividas não formaram neles a necessidade de ler para conhecer mais a partir do texto lido. Não obstante, pudemos verificar situações em que a leitura se estruturou como uma atividade por meio da qual as crianças, a julgar por seu envolvimento na própria leitura, puderam ouvir o texto lido motivadas pela compreensão do que liam. Vejamos como isso ocorreu e como deve ocorrer para que a criança forme uma atitude de lei- tura que a motive a compreender o que lê ou o que leem para ela. a literatura infantil e a forMação de uM sentido Para a leitura Ao refletir sobre a formação de um sentido para a leitura e a escrita que seja ade- quado a seu significado social – ou seja, adequado à função que a cultura escrita tem em nossa sociedade –, podemos prever duas situações distintas: uma, em que a criança pequena se inicia no contato com a cultura escrita na escola; outra, em que a criança chega à escola, tendo já formado para si um sentido para a escrita alheio a sua função social. Tanto em um caso como em outro, a literatura infantil pode contribuir fortemente para formar nas crianças uma atitude leitora e produtora de textos. a literatura infantil e a formação da atitude leitora nas crianças pequenas 49 Como formar nas crianças uma atitude leitora e produtora de textos, ou, em outras palavras, um sentido para a cultura escrita de modo que esta se apresente à criança como uma atividade? Pela discussão realizada acima, vimos que o desafio está em for- mar na criança um motivo para a leitura de um texto escrito que coincida com sua finalidade. Ou seja, temos que educar na criança a atitude de ler ou ouvir uma leitura motivada pelo entendimento da informação ou do sentimento expresso no texto. Consideramos que, como postula Vygotsky (1988), o processo de formação de uma atitude acontece em dois momentos. No primeiro momento, a atitude é externa, social, compartilhada e coletiva, é vivida socialmente. Na escola, deve ser intencio- nalmente orientada pelo/a professor/a. No segundo momento, essa atitude externa se internaliza e se torna individual, pessoal, interpsíquica. Portanto, é a vivência da leitura sob a forma de atividade que deflagra a formação da atitude leitora na criança. Ao viver na escola da infância e no Ensino Fundamental situações de leitura em que a compreensão do que se lê é condição para conhecer um assunto que se quer conhecer ou para conhecer o fim de uma história, por exemplo, a leitura se torna uma ativida- de. Quando a criança é inserida na cultura escrita, tomando parte em atividades em que a leitura é feita para que conheça mais sobre um tema de interesse, quando ouve histórias infantis lidas de modo a criar o prazer de ouvir histórias, quando ouve o/a professor/a que lê a resposta a uma carta enviada pelo grupo de crianças ou quando ouve poemas engraçados, a atribuição de sentido à leitura que seja adequado a seu significado torna-se uma possibilidade e, com isso, torna-se possível a formação de uma atitude positiva da criança em relação à escrita. Por essas situações concretas de vida em que a leitura é tomada como instrumen- to de ampliação do que se sabe, como compartilhamento de experiências, ideias e sentimentos, ou como retomada de experiências vividas, a compreensão torna-se um motivo impulsionador dos atos de leitura. Com isso, cria-se na criança uma atitude em relação à leitura que favorece sua aprendizagem e seu desenvolvimento. Ler histórias infantis pelo prazer de ouvir histórias, imaginar cenários e personagens, acompanhar as aventuras dos heróis ao fugir de bruxas, ao esconder-se de madrastas más, encontrar príncipes, acordar princesas, vencer dragões, enfim, esperar e torcer pelo final feliz, tudo isso cria na criança que ouve histórias uma atitude leitora. Em leituras posteriores – e sabemos que repetir a leitura de histórias é solicitação constante das crianças –, se pode acompanhar a leitura com a representação dos movimentos das per-sonagens, produção dos sons sugeridos pela ação, produção de personagens sob a forma de fantoches e tantas outras formas de expressão que, planejadas com a participação das crianças e promovendo sua atividade, motivam na criança a compreensão do texto lido, criam nela a atitude de buscar a compreensão do que ouve nas situações de leitura. Práticas Pedagógicas e literatura infantil 50 Para aquelas crianças que já encontramos com uma atitude desinteressada em rela- ção à leitura – que vale lembrar, se forma pelas experiências anteriores de leitura vivida pelas crianças ou pela ausência dessas experiências –, a literatura infantil também tem uma contribuição fundamental na formação de motivo de leitura que seja adequado a sua função social. Como lembra Leontiev (1988), em determinadas circunstâncias a criança pode, por exemplo, iniciar uma experiência de leitura na escola motivada pelo tempo livre que terá como prêmio de seu bom comportamento durante a leitura. En- tretanto,, durante a leitura, pode criar-se nela um novo motivo: conhecer o assunto da história. Nesse caso, a criança inicia a leitura com um motivo alheio à leitura e termina a leitura com um motivo adequado à função social da leitura. Isso é possível quando ocorre uma mudança no motivo que inicialmente impulsionava a criança a agir: o motivo que anteriormente a impulsionava a ouvir a história (ter direito ao tempo livre) passa a ser menos interessante do que o resultado da leitura (conhecer a história) proposto pela atividade. Assim, a criança forma para si um novo motivo: conhecer o assunto da leitura. Seu motivo não é mais alheio à leitura e sua atitude em relação à lei- tura busca a compreensão do que lê. Podemos pontuar que, nessa condição, a criança passa a ser afetada positivamente pela leitura. Diferente do caso supracitado, em que a tarefa proposta pelo/a professor/a impedia a constituição da atividade, agora aquilo que se propõe à criança provoca nela o inte- resse pelo conhecimento do assunto da leitura e, com isso, promove a constituição da atividade de leitura. Poderíamos discutir a importância da literatura infantil na formação da imaginação, da ampliação do vocabulário infantil, na formação do pensamento, no desenvolvimen- to da expressão oral e das diferentes linguagens. São muitas as possibilidades abertas pela literatura infantil ao processo de humanização na infância. A formação de uma atitude leitora nas crianças talvez seja a menos discutida, no entanto, essencial ao sucesso da criança na escola. Essa atitude pode fazer a diferença na apropriação da cultura escrita, o que não é pouca coisa na sociedade letrada em que vivemos. Pouco a pouco, vamos percebendo a complexidade e a dimensão verdadeira que tem o processo de ensinar nossas crianças na escola da infância e no Ensino Funda- mental. Longe de nos assustar, essa compreensão deve ser para nós um desafio! a literatura infantil e a formação da atitude leitora nas crianças pequenas 51 1) Que ideias esse texto traz para a nossa discussão? 2) Como podemos apresentar a escrita para permitir que a criança se aproprie da escrita e se torne verdadeiramente uma leitora e uma produtora de texto e não uma reconhecedora de letras, sílabas e palavras? 3) O que fazer para que a escrita seja percebida pela criança como um instrumento de comu- nicação e expressão? Proposta de Atividades referências LEONTIEV, A. N. Actividad, conciencia y personalidad. Buenos Aires: Ediciones Ciencias Del Hombre, 1978. ______. Uma contribuição à teoria do desenvolvimento da psique infantil. In: VIGOTSKII, L. S., LURIA, A. R.; LEONTIEV, A. N. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. 4. ed. Tradução de Maria da Penha Villlalobos. São Paulo: Ícone; Editora da Universidade de São Paulo, 1988. p. 59-83. Sugestões de Leitura RIZZOLI, M. C. De Leitura com letras e sem letras na Educação infantil do norte da Itália. In: GOULART, A. L.; MELLO, S. A. (Org.). Linguagens infantis: outras formas de leitura. Campinas, SP: Autores Associados, 2010. NEVES, M. “Histórias sem fim...”. In: GOULART, A. L.; MELLO, S. A. (Org.) O mundo da escrita no universo da pequena infância. Campinas, SP: Autores Associados, 2005. Práticas Pedagógicas e literatura infantil 52 VYGOTSKY, L. S. The problem of the environment. In: VAN DER VEER, R.; VALSINER, J. (Org.). The Vygotsky reader. Oxford, UK: Basil Blackwell, 1994. p.338-354. ______. Aprendizagem e desenvolvimento na idade escolar. In: VIGOTSKY, L. S., LURIA, A. R.; LEONTIEV, A. N. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. 4. ed. Tradução de Maria da Penha Villalobos. São Paulo: Ícone: Editora da Universidade de São Paulo, 1988. p. 59-83. a literatura infantil e a formação da atitude leitora nas crianças pequenas Anotações 53 Anotações Práticas Pedagógicas e literatura infantil 54 Elieuza Aparecida de Lima / Amanda Valiengo Literatura infantil e caixas que contam histórias: encantamentos e envolvimentos 4 Neste capítulo, nosso desejo é trazer à discussão uma experiência iniciada em 2002, que tem-nos provocado descobertas sobre a riqueza da literatura no contexto da educação infantil, assim como acerca de livros produzidos especificamente para os pequenos leitores, atividades de contação e leitura de histórias e recursos motivadores dessas atividades. Queremos compartilhar com você, leitor e leitora, a maneira encan- tadora como a Caixa que conta histórias envolve crianças, jovens e adultos e neles motiva novos desejos de leitura no universo da educação da criança pequena. figura 1: caixa que conta histórias “a ratinha cor-de-rosa de rabinho azul escuro”1 1 Recurso didático-pedagógico elaborado por Jeniffer Arruda, aluna do Curso de Pedagogia da F.F.C. – Unesp, Marília, SP, na disciplina optativa Especificidades da Docência na Infância, com base na história “A ratinha cor-de-rosa de rabinho azul escuro”, de Jonas Ribeiro (2007). 55 Como professoras de cursos de formação docente inicial e continuada, criamos e continuamente aperfeiçoamos esse recurso, conduzidas pela seguinte ideia: condições favoráveis de vida, educação e atividade determinam a aprendizagem de novos desejos de conhecimento e as qualidades humanas inerentes a essa apropriação (LEONTIEV, 1978; VYGOTSKI, 1995). Mas qual o significado dessa afirmação? Em primeiro lugar, significa que a humanidade em cada um de nós, homens e mulheres, é criação histórica, social e cultural, em dialética relação com nosso corpo biológico. Apreciação estética, emoções e valores morais, por exemplo, são produções da cultura humana e só podem ser apropriadas, aprendidas, mediante relações sociais entre os homens. A cultura social e historicamente elaborada é fonte de aprendizagens e de desenvolvimento humano. Essa cultura pode ser material (como livros e obras de arte) ou não material (como linguagem, valores, costumes). Trata-se do caráter histórico-social da constituição do humano nas pessoas. Ao con- trário dos animais, somente por meio das relações sociais a pessoa se apropria de qualidades humanas, externas a ela, no seu nascimento, e forma a sua herança social construída histórica e socialmente, por homens e mulheres antecessores e contempo- râneos a nós, bem como por nós mesmos, nas nossas vivências. Cada pessoa se torna humana em virtude de aprendizagens de qualidades típicas do gênero humano cristalizadas nos objetos culturais e capazes de impulsionar o de- senvolvimento sociocultural do sujeito (VYGOTSKI, 1995). Qualidades cristalizadas? O que seria isso? Vamos a um exemplo. Quando a criança ouve a leitura, a contação de histórias, lê ou conta uma história, ativa uma série de capacidades, comoa memória (recorda-se de outros momentos, de histórias ouvidas ou lidas), a atenção (se a história ou o recurso utilizado para a contação da história a envolve completamente, ela para ouvir, assume uma atitude de ouvinte atento), a fantasia (imagina-se parte da história contada, visitando mundos e personagens, ativando suas emoções). Isto é, o livro traz cristalizadas em si as capaci- dades humanas e, na atividade de contação ou leitura de histórias, a criança vivencia e ativa o uso dessas capacidades, tornando-as individuais, parte de sua humanidade. Dentre essas qualidades humanas formadas, apropriadas e desenvolvidas social- mente, estão, além da apreciação estética, valores morais, emoções e capacidade de recordação e de atenção voluntária: tipos de percepção voluntária, diferentes formas de linguagem e de pensamento, imaginação, sentimentos, capacidade de planejamen- to, dentre outras. Por serem socialmente instauradas e aprendidas, apenas em atividades mediadas pelo outro (uma pessoa, um objeto tal como um livro, por exemplo) tais qualida- des são internalizadas e passam a constituir qualidades inerentes à personalidade e Práticas Pedagógicas e literatura infantil 56 inteligência de cada sujeito. Com base nessas ideias, queremos contribuir para refle- xões sobre atividades capazes de possibilitar aprendizagens relativas a essas qualidades promotoras de desenvolvimento cultural dos homens. Em especial, firmamos o con- vite para a discussão sobre a contação e a leitura de histórias como atividades promo- toras de um amplo desenvolvimento infantil, especialmente por intermédio da Caixa que conta histórias, como recurso didático-pedagógico motivador da aprendizagem da leitura na infância. Ressaltamos, na discussão a seguir, o trabalho desenvolvido no Curso de Pedagogia da Unesp – Campus de Marília, SP, com aluno(a)s dos últimos anos do curso, alguns dos quais já atuam na Educação Infantil e no Ensino Fundamental, em diferentes loca- lidades brasileiras. Além disso, esse trabalho de reflexões e elaborações das Caixas também se efetiva em atividades de pesquisa e de extensão universitária2, cujos parceiros comumente são professores e crianças da Educação Infantil e dos anos iniciais do Ensino Fundamental. Desde 2002, iniciamos discussões teóricas e organizamos oficinas para confecção das referidas Caixas que contam histórias, em cursos de formação docente. Nossa intenção era (e continua sendo) a constituição de elos entre a teoria apropriada e refle- tida por nós, na universidade, e o enriquecimento da prática pedagógica concretizada em salas de Educação Infantil ou dos anos iniciais do Ensino Fundamental. Dentre as atividades propostas para criação de um entorno propício à contação e à leitura de histórias, organizamos discussões e confecções de Caixas que contam histórias. Valorizamos, nesse processo, o papel desse recurso na formação de qualida- des humanas nas crianças, abertas a conhecerem o mundo, e em nós, professoras, em permanente constituição de nossa identidade pessoal e profissional. teoria histórico-cultural: iMPlicações Para a educação infantil Desde 1996, estudamos as implicações pedagógicas da Teoria Histórico-Cultural3. Nas discussões e reflexões decorrentes dos estudos e pesquisas realizados com ou- tros pesquisadores, aprendemos a materialidade da formação humana e sua estru- turação social. Somos homens, mulheres e crianças que nos tornamos humanos, 2 Desde 2009, realizamos trabalhos de pesquisa colaborativa na rede Municipal de Educação de Marília, SP. Formamos uma equipe de pesquisadoras e alunos do Curso de Graduação em Peda- gogia – bolsistas do Núcleo de Ensino da Unesp – Marília, SP (Financiamento da Pró-Reitoria de Graduação da Unesp) e professoras e crianças parceiras da investigação. 3 Grupo de Pesquisa: Implicações Pedagógicas da Teoria Histórico-Cultural, atualmente lidera- do pelas Doutoras Sueli G. de L. Mendonça e Suely Amaral Mello. literatura infantil e caixas que contam histórias: encantamentos e envolvimentos 57 transformando-nos de crisálidas a borboletas (BARROCO, 2008), rompendo os limites da nossa natureza biológica, com a qual nascemos, na dança poética da formação de uma segunda natureza, de cunho social. Os anos iniciais da vida marcam um momento em que a criança está aberta para descobrir e se apaixonar pelo mundo de pessoas e objetos que a cerca. Como em um caleidoscópio de vivências e aprendizados, esse momento único e sensível pode concretizar aprendizagens orientadoras de todo o desenvolvimento humano poste- rior. Estudos recentes confirmam essa ideia: do nascimento aos dez anos, a criança vive os denominados períodos sensíveis ao desenvolvimento de qualidades típicas do homem, já mencionadas: a memória voluntária, a atenção voluntária, as diferentes formas de percepção, a imaginação, a função simbólica da consciência, as emoções, as formas de linguagem e de pensamento, os sentimentos, a apreciação estética, as pre- missas inerentes à personalidade (MUKHINA, 1996; LIMA, 2001, 2005; RIBEIRO, 2004; BARROCO, 2008; CHAVES, 2008; VALIENGO, 2008; RIBEIRO, 2009). Na verdade, [...] cada idade na infância se diferencia por ser propícia para o desenvolvi- mento de habilidades e capacidades humanas específicas. São os denominados períodos sensíveis ao desenvolvimento [...]. [...] no primeiro ano, as formas de percepção auditiva e visual têm um período propício para desenvolvimento, então, se torna essencial a educação sensorial do bebê de forma a elevar o seu desenvolvimento perceptivo, ao mesmo tempo em que se desenvolvem as pri- meiras formas de pensamento, a comunicação oral, a memória. [...] dos três aos seis anos existem capacidades em desenvolvimento cujas ba- ses se formaram na primeira infância. É o caso da memória voluntária que a criança pode desenvolver mais amplamente por meio do jogo de faz-de-conta, do desenho, da música, da modelagem, [da contação e leitura de histórias] entre outras atividades motivadoras do uso e do exercício de novas formas de memória (LIMA, 2005, p. 194). Para que essas qualidades sejam aprendidas e desenvolvidas em níveis sofisticados, são essenciais condições adequadas de vida, educação e atividade. Não é, pois, qual- quer ação que provoca a aprendizagem dessas capacidades, mas atividades nas quais elas sejam necessárias e façam sentido para quem está envolvido nelas. As diferentes condições em que transcorre o desenvolvimento psíquico da criança interferem de maneiras distintas nesse desenvolvimento. As condições naturais – constituição do organismo, suas funções e sua maturação – são im- prescindíveis; sem elas não pode haver desenvolvimento psíquico, mas não são elas que determinam as qualidades psíquicas da criança. Isso depende das condições de vida e da educação, sob influência das quais a criança assimila a experiência social. A experiência social é a fonte do desenvolvimento psíquico da criança; é daí, com o adulto como mediador, que a criança recebe o material com que serão construídas as qualidades psíquicas e as propriedades de sua personalidade (MUKHINA, 1996, p. 43). Práticas Pedagógicas e literatura infantil 58 As implicações pedagógicas dessas afirmativas revelam o lugar do planejamento e da organização de atividades, na Educação Infantil, para que a criança possa aprender o uso de capacidades humanas em experiências inicialmente realizadas com outras pessoas. As ações colaborativas entre a criança e o professor e entre a criança e seus colegas representam o início do processo de apropriação dos conhecimentos, isto é, o nível interpessoal da aprendizagem. Em um segundo momento, a realização das ações acontece no nível intrapessoal ou mental (VIGOTSKII, 1988).No interior da escola da infância, os livros de literatura infantil, particularmente cada vez mais atrativos e com uma riqueza literária a ser destacada, tornam-se supor- tes para o fascínio das crianças para as primeiras leituras, que vão além das palavras, envolvendo-as. Quando há livros dessa natureza disponíveis e acessíveis à criança, as- sim como quando existem momentos diários de leituras ou contação de histórias, da- mos aos pequenos a possibilidade de vivências com as formas ideais da leitura: como professores, assumimos papéis de leitores efetivos, organizando um espaço para essa atividade (a própria sala da turma, a sombra de uma árvore, o quiosque da escola, ou algum canto propício), apresentando o livro (autor, ilustrador, nome da história), lendo a história e mostrando as ilustrações, envolvendo cada criança no enredo da história e chamando-a à participação ativa, por exemplo, fazendo questionamentos sobre o que vem na sequência da história. Conforme Mello (2009, p. 369): Na escola, esse processo de apropriação da cultura e de formação e desenvol- vimento das qualidades humanas histórica e socialmente criadas é mediatizado direta ou indiretamente pelo professor. Essa relação com a cultura não acontece só na escola, mas a escola tem como função essencial essa mediação intencionalmente voltada para o ensino, para a aprendizagem e para o desenvolvimento humano. Com a intenção de situar a criança ativamente nas atividades das quais participa, as relações estabelecidas nas escolas podem ser motivadoras de aprendizagens essenciais ao desenvolvimento cultural da inteligência e personalidade humanas, porque todos os processos psíquicos são realizados inicialmente nas relações entre as pessoas, cons- tituindo-se como resultado da passagem das ações externas para o interior, tornando- -se internas e mentais. De modo a ratificar essas ideias, podemos recorrer a Mukhina (1996, p. 46), quando enuncia: “Graças ao processo de internalização, a assimilação de ações dirigidas sob orientação do adulto aperfeiçoa as ações psíquicas internas e impulsiona o progresso psíquico”. As ações partilhadas são o primeiro plano do processo de apropriação de conheci- mentos propulsores de um amplo desenvolvimento da inteligência e da personalidade infantis: primeiramente, a criança realiza atividades com a parceria do adulto e outras literatura infantil e caixas que contam histórias: encantamentos e envolvimentos 59 pessoas mais experientes para, então, ao internalizar as ações práticas e mentais, fazê- -las de modo independente. Baseado na escuta e no respeito à criança pequena, assim como em sua necessidade de aprendizagem e possibilidade de desenvolvimento, o trabalho pedagógico intencio- nal é uma alternativa de criação de elos mediadores entre a criança e o conhecimento a ser apropriado. Nesse processo educativo das marcas do humano em cada criança (PINO, 2005), organizamos espaço, tempo, materiais e atividades, contemplando e envolvendo cada criança como sujeito das relações educativas, ao lhe darmos protago- nismo e visibilidade. Trata-se da expressão da intencionalidade docente: mediamos re- lações das crianças com os objetos da cultura e nos tornamos criadores de mediações, com o papel essencial de enriquecedores da atividade infantil. Enfatizamos, pois, que a atividade da criança ou do professor não se caracteriza como qualquer tarefa, no âmbito educativo. Na perspectiva histórico-cultural, essa ati- vidade envolve ações mobilizadoras do uso de capacidades mentais. Nela, cada sujeito concilia o objetivo a ser alcançado e o motivo que o impulsiona a agir e atribuir sentido as suas ações. Com base nisso, discutimos a seguir a contação e a leitura de histórias como possi- bilidades motivadoras de aprendizagens e, consequentemente, de um desenvolvimen- to amplo da criança pequena, a partir do planejamento das ações docentes. a contação e a leitura de histórias: atividades essenciais na educação infantil Cada livro era um mundo em si mesmo e nele eu me refugiava. Embora eu me soubesse incapaz de inventar histórias como as que meus autores favoritos es- creviam, achava que minhas opiniões frequentemente coincidiam com a deles [...] Mais tarde, fui capaz de me dissociar da ficção deles; mas na infância e em boa parte da adolescência, o que os livros me contavam, por mais fantástico que fosse, era verdade no momento da leitura, e tão tangível quanto o material de que o próprio livro era feito (MANGUEL, 1999, p. 24). Na Educação Infantil, é possível pensarmos em uma diversidade de formas de lei- tura: a leitura de mundo feita pela criança, com todos os seus sentidos, ao manusear objetos, perceber o movimento das plantas e dos animais e ilustrações de livros, olhar o que acontece ao seu redor; ouvir, tatear, degustar o que cai em suas mãos e, ainda, buscar desvendar os símbolos linguísticos. Nessa(s) leitura(s), é descoberta a possibili- dade de se apaixonar pelo mundo, como sintetiza Freire (1995) no texto “A paixão de conhecer o mundo”. Essa paixão de conhecer o mundo caracteriza inúmeras leituras possíveis de serem planejadas e organizadas, intencional e conscientemente, na rotina diária da Educação Práticas Pedagógicas e literatura infantil 60 Infantil. Dentre elas, faremos uma reflexão particular sobre o ler e o contar histórias como maneiras de inserir ativamente – a partir da intervenção ativa e intencional do professor – a criança, desde pequenininha, no mundo letrado. Ainda que ela não leia o texto escrito, efetivamente, terá oportunidade de perceber atitudes de leitores efeti- vos, apropriando-se paulatinamente de estratégias de leitura. Vale o destaque para a hora do conto ou a hora da história como um momento fundamental na rotina de trabalho com crianças pequenas (LIMA, 2005). Conforme discutimos, os primeiros anos de vida são fundamentais no processo de humanização e, nesses anos, a criança desenvolve-se de forma acelerada. Nesse processo de huma- nização, que é um processo de educação, os momentos de contação ou de leituras de histórias se concretizam como oportunidades significativas a um desenvolvimento amplo na infância. [...] o texto literário é polissêmico, pois sua leitura provoca no leitor reações diversas, que vão do prazer emocional ao intelectual. Além de simplesmen- te fornecer informação sobre diferentes temas [...] também oferecem vários outros tipos de situações existenciais, entra em contato com novas idéias etc. (FARIA, 2004, p. 12). Em cursos de formação de professores, enfatizamos esses momentos como privile- giados para envolvimento e encantamento da criança como sujeito do contexto edu- cativo. Nas discussões, nas salas de aula da universidade, os alunos recordam histórias das quais jamais se esqueceram e se motivam, escutando outras histórias, em cada aula, adequadas ao trabalho com crianças pequenas. Com isso, em nosso Roteiro de Trabalho, há sempre histórias a serem lidas ou contadas, e muitas delas com o uso da Caixa que conta histórias. Nós, alunos e professoras, movidos pela beleza, fascínio e concretude das histórias contadas por meio das caixas, encontramos mais um recurso para encantar e enrique- cer os momentos de leitura e contação de histórias com as crianças. figura 2: imagem da caixa da maneira como se conta ou lê a história – o texto fica para o leitor/a e as páginas ilustradas, para os ouvintes (as crianças). literatura infantil e caixas que contam histórias: encantamentos e envolvimentos 61 Discutimos as histórias contadas ou lidas apresentadas a partir de recursos diversos: simples narrativa, com o uso do livro, com gravuras, com flanelógrafo, com desenhos, com interferências do narrador e dos ouvintes,com dramatização, teatro de bonecos, dentre outros. Salientamos que, nas contações ou leituras de histórias, o professor as- sume-se como mediador do desejo de leitura da criança, utilizando-se de voz clara, cuja intensidade depende da própria história e do lugar onde a história é contada ou lida. Uma das especificidades dessas atividades, na Educação Infantil, é a duração da narrativa ou da leitura da história. Esta é flexível e dependente do envolvimento das crianças e, também, da idade delas. As crianças bem pequenas ainda não desenvolveram uma atenção voluntária e têm mais dificuldade de permanecer tempos longos ouvindo histórias. Nessa perspectiva, a tarefa docente é a provocação e mobilização da atenção e da percepção das crianças, usando recursos diferenciados, contando e lendo histórias como parte efetiva da rotina educativa das crianças pequenas (LIMA, 2001). Outra peculiaridade é que o êxito da narração está associado, em grande medida, ao envolvimento de todos os sujeitos na atividade de leitura (COELHO, 1989). Parar constantemente a história para chamar a atenção das crianças acaba por levar ao fra- casso da atividade: em lugar disso, envolvemos as crianças, chamamos a atenção delas para o ambiente e para a história contada ou lida, apresentamos as imagens, tratando os pequenos leitores como interlocutores ativos. Conversas com a turma e localização de cada criança, no tempo e no espaço, criam oportunidades de torná-la sujeito ativo daquilo que experimenta cotidianamente no ambiente educativo. Ao observar e ouvir as crianças, escutando-as, temos instrumentos fundamentais para a escolha das histórias e para a otimização da atividade com os pequenos. Conver- sar com as crianças antes e depois dos momentos das histórias fundamenta novas ativi- dades com a história contada ou viabiliza a introdução de novas histórias a serem lidas ou contadas. Isso significa que, quando alguma criança interrompe a história, é preciso se dirigir a ela, seja com um olhar, seja com um sorriso afetuoso, indicando que depois de terminada a história ela terá voz e vez de se manifestar (HEVESI, 2004). Com isso, a partir das histórias podem surgir relatos escritos pelo professor, de- senhos das crianças, dramatização, modelagens, dobraduras e recortes, brincadeiras, construção de maquetes. Vale ressaltar, no entanto, que as histórias, os poemas, as can- tigas devem ser lidos e contados pelo seu valor em si mesmos, porque tais textos podem aguçar a escuta da criança, bem como a ativação e o uso de capacidades tipicamente humanas, tal qual a atenção para ouvir a história lida. A criança, que é um dos maiores escutadores da realidade que a circunda, pode, por meio dessas atividades, escutar a vida nas suas formas, sons, cores; escutar os ou- tros, adultos e seus colegas. A criança pode imaginar, fantasiar e vivenciar capacidades Práticas Pedagógicas e literatura infantil 62 especificamente humanas, como sujeito capaz de perceber que a escuta é ato de co- municação que reserva maravilhas, alegrias, medos, tristezas, surpresas, entusiasmos, paixões e fantasias. Como vemos em nossas ações de extensão universitária e nos relato das atuações de nossos alunos universitários, a hora do conto pode ser motivada pelo uso da Caixa que conta histórias. Essa maneira de contar histórias é uma alternativa metodológica para que a criança seja efetivamente envolvida nessa atividade e, sobretudo, por buscar mobilizar o emprego de capacidades mentais essenciais ao seu desenvolvimento cul- tural: a memória, a atenção e a percepção voluntárias, a imaginação, a linguagem oral, o pensamento, as emoções, a função simbólica da consciência, a vontade, conforme já apontamos – e não é demais retomar. A Caixa que conta Histórias caracteriza-se por materiais reciclados: uma caixa de sapatos coberta por papel e grude, contendo histórias apreciadas pelas crianças, obje- tos e imagens que retratem o texto escolhido ou mesmo fantoches e “dedoches”. Esse recurso contempla histórias produzidas pelas crianças ou por autores brasileiros e es- trangeiros, obras de arte, cantigas preferidas e cantadas com o uso da caixa. Um exemplo dessa produção é a caixa baseada na história “A ratinha cor-de-rosa de rabinho azul-escuro”, de Jonas Ribeiro (2007), apresentada nas Figuras 3 e 4, subse- quentes. A caixa foi confeccionada por uma aluna do Curso de Pedagogia. figuras 3 e 4: Páginas do livreto anexado à caixa. Conforme as imagens revelam, a aluna confeccionou esse recurso com a utilização da história original e, com base nela, criou novos contextos para cada página do livro, anexado à caixa. As páginas de papel-cartão ou E.V.A. (um tipo de emborrachado) são enriquecidas com diversos elementos: recorte e colagem de imagens de personagens da história, pintura, desenhos. Com esses tipos de materiais, verificamos maior dura- bilidade desse recurso, uma vez que as crianças têm acesso à caixa, no momento ou após a contação da história. literatura infantil e caixas que contam histórias: encantamentos e envolvimentos 63 Nessa caixa cabe, assim, imaginação, criação, reciclagem, arte manual, palavras registradas nos livros (agora recontadas) dos adultos e das crianças, permitindo a me- diação e a criação de mediações pedagógicas primordiais à educação potencializadora da humanização na infância. figuras 5 e 6: a caixa de sapatos já finalizada, decorada, com o livreto anexado e os elementos da história dentro dela. Nesse caso, a aluna fez a técnica do grude em uma caixa de sapato. Essa técnica consiste em passar o grude (creme cozido de farinha de trigo e água) em pedaços de papel (preferencialmente folhas de jornal rasgadas em pedaços de mais ou menos 8 x 8 cm). Para exemplificar: foram feitas três camadas de jornal envolto dos dois lados de cada pedaço com o grude. Somente depois de seca, a caixa foi encapada com papel azul e finalizada com gliter. Além disso, é possível decorar a caixa com papel fantasia, camurça ou E.V.A.; pintá-la; texturizá-la; ilustrá-la. Tal procedimento (as camadas de papel e grude) é feito para que a caixa fique bem firme e tenha maior durabilidade, como já mencionamos. figura 7: livreto aberto e anexado à caixa. Práticas Pedagógicas e literatura infantil 64 Em seguida, a aluna fez as páginas do livro a ser anexado à caixa, para que, na hora da contação de histórias, as ilustrações sejam mostradas às crianças e a parte da escrita (trecho relativo da história à imagem mostrada para o ouvinte) fique voltada para o contador ou leitor, conforme demonstrado na Figura 7. Na situação de contação da história, o livro-referência para a elaboração da caixa é mostrado às crianças, para que observem o suporte livro e que, habitualmente, as leituras ou contações tenham por base uma história já registrada em um livro. Enfatizamos que essas histórias são escri- tas por alguém (o autor) e, normalmente, ilustradas por outra pessoa (o ilustrador). Conforme assinala Vigotskii (1988), um bom ensino – uma educação potenciadora – é aquele que, ao se adiantar ao desenvolvimento, o faz avançar a níveis cada vez mais elevados. Neste sentido, o trabalho docente pode ser motivador desse desenvolvimento, tendo como um dos recursos pedagógicos as denominadas Caixas que contam histórias. figura 8: a caixa ao final da história, depois de os elementos terem sido colados. considerações finais A leitura e as leituras possíveis, na Educação Infantil, vão além das palavras, mas contêm as palavras, os anseios e as necessidades de conhecimento das crianças. Nessas leituras, somos professores mediadores e criadores de mediações entre a criança e a cultura historicamente elaborada, introduzindo-as no mundoda fantasia, dos bens cul- turais e da apropriação de conhecimentos necessários ao seu desenvolvimento pleno. Na escola da infância, é preciso refletir acerca das linguagens infantis, sua impor- tância no pleno e harmônico desenvolvimento da inteligência e da personalidade de nossas crianças, que estão se apaixonando pelo mundo, ao agir ativamente sobre ele, transformando-o e sendo transformadas por ele. Como formadoras de professores dedicados à educação das crianças, assumimos a tarefa de criar novos motivos de conhecimentos nos indivíduos desde o seu nascimen- to, dentre eles o desejo de descobrir outros mundos, por meio das histórias lidas ou contadas, a partir de diferentes recursos, como a Caixa que conta histórias. literatura infantil e caixas que contam histórias: encantamentos e envolvimentos 65 1) O texto apresenta um recurso didático-pedagógico contribuinte em atividades de leitura e contação de histórias na Educação Infantil e nas séries iniciais do Ensino Fundamental. Quais as implicações pedagógicas do uso desse recurso no trabalho docente na Educa- ção Infantil, especialmente para valorização da Literatura Infantil na rotina educativa com crianças pequenas? 2) Você conhece outro recurso motivador de situações de leitura e contação de histórias? Cite alguns e relacione-os às discussões propostas no texto. Proposta de Atividades Sugestões de Leitura ABRAMOVICH, F. Literatura infantil: gostosuras e bobices. São Paulo: Scipione, 2010. COELHO, B. Contar histórias: uma arte sem idade. São Paulo: Ática, 1989. FARIA, M. A. Como usar a literatura infantil na sala de aula. São Paulo: Editorial Presença, 2004. referências BARROCO, S. M. S. L. S. Vigotski e os novos fundamentos para a educação de pessoas com e sem deficiência. In: FAUSTINO, R. C.; CHAVES, M.; BARROCO, S. M. S. (Org.). Intervenções pedagógicas na Educação escolar indígena: contribuições da teoria histórico-cultural. Maringá: Eduem, 2008. p. 91-111. CHAVES, M. Intervenções pedagógicas e promoção da aprendizagem da criança: contribuições da Psicologia histórico-cultural. In: FAUSTINO, R. C.; CHAVES, M.; BARROCO, S. M. S. (Org.). Intervenções pedagógicas na Educação escolar indígena: contribuições da teoria histórico-cultural. Maringá: Eduem, 2008, p. 75-89. COELHO, B. Contar histórias: uma arte sem idade. São Paulo: Ática, 1989. Práticas Pedagógicas e literatura infantil 66 FARIA, M. A. Como usar a literatura infantil na sala de aula. São Paulo: Presença, 2004. FREIRE, M. A paixão de conhecer o mundo: relato de uma professora. 12. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. HEVESI, K. Relação através da linguagem entre a educadora e as crianças do grupo. In: FALK, J. (Org.). Educar os três primeiros anos: a experiência de lóczy. Tradução de Suely Amaral Mello. Araraquara: JM, 2004. p. 47-56. LEONTIEV, A. O desenvolvimento do psiquismo. Lisboa: Livros Horizonte, 1978. LIMA, E. A. de. Re-conceitualizando o papel do educador: o ponto de vista da Escola de Vigotski. 2001. Dissertação (Mestrado em Ensino na Educação Brasileira)– Faculdade de Filosofia e Ciências, Unesp, Marília, 2001. ______. Infância e teoria histórico-cultural: (des) encontros da teoria e da prática. 2005. Tese (Doutorado em Ensino na Educação Brasileira)-Faculdade de Filosofia e Ciências, Unesp, Marília, 2005. MANGUEL, A. Uma história da leitura. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. MELLO, S. A. 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Dissertação (Mestrado em Ensino na Educação Brasileira)-Faculdade de Filosofia e Ciências, Unesp, Marília, 2004. RIBEIRO, J. A ratinha cor de rosa do rabinho azul escuro. Rio de Janeiro: Ave Maria, 2007. VALIENGO, A. Educação infantil e ensino fundamental: bases orientadoras à aquisição da leitura e da escrita e o problema da antecipação da escolaridade. 2008. Dissertação (Mestrado em Ensino na Educação Brasileira)-Faculdade de Filosofia e Ciências, Unesp, Marília, 2008. VIGOTSKII, L. S. Aprendizagem e desenvolvimento na idade escolar. In: VIGOTSKII, L. S.; LURIA, A. R.; LEONTIEV, A. N. Linguagem, Desenvolvimento e Aprendizagem. São Paulo, Ícone: Edusp, 1988, p. 103-117. VYGOTSKI, L. S. Problemas del desarrollo de la psique. Obras Escogidas, Vol. III. Madrid: Visor, 1995. Anotações Práticas Pedagógicas e literatura infantil 68 Maria angélica olivo francisco lucas Literatura infantil, letramento e alfabetização: uma relação possível e necessária 5 estudos iniciais O título deste capítulo aponta para a defesa da existência e da necessidade de estabelecermos relação entre a literatura infantil e a escola, cuja função primaz, como apontou a mãe de João – o menino que aprendeu a ver, personagem criado por Ruth Rocha ([19--]) e desenhado por Walter Ono, é ensinar os homens a ler, escrever e con- tar, enfim, ensinar todas as coisas... Um dia a mãe do João disse para ele: - Meu filho, você precisa ir pro colégio, aprender a ler, aprender todas as coisas... - Que coisas, mãe? - As letras, João, os números. Você vive perguntando as coisas. (rocha, [19--], p. 7) Essa é uma relação aparentemente óbvia, contudo, em muitas situações – e a pre- sente se constitui em uma delas –, o óbvio necessita ser explicado, até porque, segundo Lajolo (2001, p. 66), “na tradição brasileira, literatura infantil e escola mantiveram sem- pre relação de dependência mútua”, embora nem sempre compreendida. A escola, in- contáveis vezes, recorreu à literatura infantil, por meio do envolvimento provocado pelas narrativas e/ou pelo encantamento dos versos, para difundir valores, conceitos, atitudes, comportamentos. Em contrapartida, a escola, para os livros de literatura infantil é um entreposto, seja por meio de leituras obrigatórias seja de outras atividades pedagógicas. 69 Essa histórica aliança entre a escola e a literatura infantil hoje se manifesta, por exemplo, pelo movimento do mercado editorial, com grandes tiragens de livros des- tinados ao público infantil, e pela divulgação junto aos professores e órgãos gover- namentais, que, ao “adotarem” um livro, transformam a venda no varejo em atacado, pela profissionalização do escritor que se dedica a esse público. Essas são algumas manifestações da relação escola-literatura externas ao livro. Há ainda as expressões internas dessa aliança, lembra-nos Lajolo (2001), como o tratamento didático dispen- sado aos textos que compõem os livros de língua portuguesa, sobretudo os utilizados no Ensino Fundamental. Enfim, seja para servir de pretexto para a realização de exercícios gramaticais, seja para propor modelos de análise literária (responder questionários, descrever personagens, identificar tempo e espaço da narrativa, entre outros afazeres), seja ainda para desenvolver o gosto pela leitura (encenar textos narrativos, reproduzir em desenhoso tema, o enredo, as personagens, reescrever o texto alterando pontos de vista, entrevistar autores, transformar o texto narrativo ou poético em jogral, entre outras tarefas), não há como secundarizar a relação entre escola e literatura infantil, sobretudo quando nos propomos alfabetizar as crianças e enriquecer seu processo de letramento. É com base nesses esclarecimentos introdutórios que neste capítulo refletiremos a respeito dos conceitos de letramento e alfabetização, da relação existente entre es- ses dois processos e, por fim, de como tornar possível a necessária relação entre a literatura infantil e os processos de letramento e alfabetização, enfatizando práticas pedagógicas que envolvem narrações de histórias e pseudoleituras. o conceito de letraMento No Brasil, é na segunda metade da década de 1980 que, no âmbito acadêmico, situam-se as primeiras formulações da palavra letramento para designar algo que ultra- passa o processo de alfabetização. Mais do que ler e escrever, é preciso saber responder às exigências de leitura e escrita que a sociedade nos impõe cotidianamente. Soares (1998, p. 19) ressalta que “[...] novas palavras são criadas, ou a velhas palavras dá-se um novo sentido, quando emergem novos fatos, novas ideias, novas maneiras de compreender os fenômenos”. Neste sentido, o surgimento do termo letramento representa uma mudança histórica nas práticas sociais: “novas demandas sociais de uso da leitura e da escrita exigiram uma nova palavra para designá-la” (SO- ARES, 1998, p. 21). Segundo a referida autora, “etimologicamente, a palavra literacy vem do latim littera (letra), com sufixo -cy, que denota qualidade, condição, estado, fato de ser” Práticas Pedagógicas e literatura infantil 70 (SOARES, 1998, p. 17). Em inglês, significa o estado ou condição que assume a pes- soa que aprende a ler e escrever. No caso da língua portuguesa, à palavra letra, que também se origina do latim littera, foi acrescentado o sufixo -mento, que denota o resultado de uma ação. Assim, letramento é, segundo Soares (1998, p. 18), “[...] o resultado da ação de ensinar ou aprender a ler e escrever: o estado ou condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como consequência de ter-se apropriado da escrita”. Não obstante, o letramento é considerado um fenômeno multifacetado e extre- mamente complexo, tornando-se difícil, ou até impossível, atribuir-lhe uma definição precisa e universal. Por cobrir uma vasta gama de conhecimentos, habilidades, capa- cidades, valores, usos e funções sociais, o conceito de letramento envolve sutilezas e complexidades difíceis de serem contempladas em uma única definição. Por isso, Mortatti (2004, p. 98) salienta que o processo de letramento [...] está diretamente relacionado com a língua escrita e seu lugar, suas funções e seus usos nas sociedade letradas, ou, mais especificamente, grafocêntricas, isto é, sociedades organizadas em torno de um sistema de escrita e em que esta, sobretudo por meio do texto escrito e impresso, assume importância central na vida das pessoas e em suas relações com os outros e com o mundo em que vivem. Isso significa que, conforme o sentido atualmente atribuído à palavra letramento, uma pessoa pode não saber ler e escrever, ou seja, ser analfabeto, mas ser, de certa forma, letrado. Assim, um adulto pode ser analfabeto, porque marginalizado social e econo- micamente, mas, se vive em um meio em que a leitura e a escrita têm presença forte, se se interessa em ouvir a leitura de jornais feita por um alfabetizado, que recebe cartas que outros leem para ele, se dita carta para que um alfabetizado as escreva [...], se pede a alguém que lhe leia avisos ou indicações afixados em algum lugar, esse analfabeto é, de certa forma, letrado, porque faz uso da escri- ta, envolve-se em práticas sociais de leitura e de escrita (SOARES, 1998, p. 24). O mesmo pode ocorrer com a criança que ainda não foi alfabetizada, mas que tem oportunidade de folhear livros, de brincar de escrever, de ouvir histórias. Para Soares (1998, p. 24), “[...] essa criança é ainda “analfabeta”, porque não aprendeu a ler e a escrever, mas já penetrou no mundo do letramento, já é, de certa forma, letrada”, como o João – personagem criado por Ruth Rocha – que apesar de ser ainda analfabe- to, aprendeu, por intermédio das orientações de sua mãe, que as placas nas esquinas indicam os nomes das ruas e facilitam a localização das pessoas. literatura infantil, letramento e alfabetização: uma relação possível e necessária 71 Em cada rua, na esquina, uma placa pequenina. João queria saber: - O que é aquela placa mãe? Todas as esquinas têm. - É o nome da rua, filho. João olhava, olhava e via uma porção de desenhos que para ele eram assim: (rocha, [19--], p. 6). Isto quer dizer que o indivíduo letrado “[...] é não só aquele que sabe ler e escrever, mas aquele que usa socialmente a leitura e a escrita, pratica a leitura e a escrita, responde adequadamente às demandas sociais de leitura e de escrita” (SOARES, 1998, p. 39-40). o conceito de alfabetização Hoje, concebemos a alfabetização como um processo de aprendizagem de habi- lidades necessárias para os atos de ler e escrever (SOARES, 1998). Trata-se da apren- dizagem de uma atividade cultural complexa que ocorre por meio da interação entre o adulto letrado e a criança; contudo, no Brasil, esse conceito passou por algumas mudanças ao longo da história do ensino da leitura e da escrita, no início do processo de escolarização. A partir do final da década de 1970 e início da década de 1980, coincidindo com as transformações decorrentes do processo de abertura política, os problemas da educação escolar foram duramente criticados em nosso país. No dizer de Mortatti (2004, p. 70), “os diagnósticos e denúncias dos problemas educacionais encontravam sua síntese na constatação do fracasso escolar das camadas populares, que se verifi- cava na passagem da 1ª para a 2ª série do ensino de 1º grau”. Nesse período, críticas contundentes foram dirigidas aos métodos até então utilizados para alfabetizar, por basearem-se no ensino da codificação e decodificação, a partir do qual passaram a ser denominados tradicionais. Houve, a partir desse período, um aumento considerável de estudos e pesquisas so- bre alfabetização, detectando-se, entre outras questões, uma mudança de perspectiva (SOARES; MACIEL, 2000). Nesse momento, adentraram as portas das escolas, por meio de propostas pedagógicas implantadas por órgãos governamentais, contribuições da perspectiva construtivista, baseadas nas pesquisas sobre a psicogênese da escrita reali- zadas por Emília Ferreiro e colaboradores. Essa perspectiva, ao criticar a forma como a escrita era apresentada à criança, enfatizando-se nela a associação entre letras e sons e, desse modo, transformando-a em um recurso meramente escolar, rompeu com os cha- mados “métodos tradicionais de alfabetização” e alterou profundamente a concepção Práticas Pedagógicas e literatura infantil 72 de alfabetização, que passou a ser vista como um processo de construção da represen- tação da língua escrita pela criança, cujo início ocorre antes de ela ingressar na escola, desde que esteja exposta a manifestações de leitura e escrita (FERREIRO, 1988). Foi por isso que João – o menino que aprendeu a ver – que desde muito pequeno convivia com manifestações de leitura e escrita, ingressou na escola para, por meio do ensino sistematizado, aprender a ver, ou melhor a ler! Em casa, no jornal que os pais do Joãozinho liam, na caixa de sabão, na pasta de dentes, em tudo que João pegava, encontrava o tal desenho da professora: A A A João não podia compreender: - Será que enquanto eu fui praescola pintaram todos esses desenhos? (rocha, [19--], p. 14). Para Soares (2004), esse momento corresponde ao movimento de ampliação do conceito de alfabetização. Tal processo não mais poderia se concebido de forma res- trita, como aprendizagem da capacidade de codificar e decodificar; ao contrário, por ser um processo por meio do qual a criança constrói ativamente a linguagem escrita através de interações em um ambiente rico em material escrito, conforme preconiza a perspectiva construtivista, a alfabetização foi conceituada em sentido amplo e con- tínuo. Não obstante, esse movimento provocou, entre outras consequências, a perda da especificidade da alfabetização, a ponto de, na atualidade, segundo Soares (2003a), necessitarmos reinventá-la, como veremos adiante. a relação entre alfabetização e letraMento A partir das explanações anteriores, concluímos que os termos alfabetização e letra- mento não são sinônimos. Tratam-se de dois processos distintos que, contudo, ocor- rem de forma indissociável e interdependente: [...] a alfabetização se desenvolve no contexto de e por meio de práticas sociais de leitura e de escrita, isto é, através de atividades de letramento, e este, por sua vez, só pode desenvolver-se no contexto da e por meio da aprendizagem das relações fonema-grafema, isto é, em dependência da alfabetização (SOARES, 2004, p. 14, destaques do autor). No Brasil, tenta-se conceituar e diferenciar esses dois processos desde a década de 1980, quando o foco da discussão era o problema da evasão escolar e da repetência, principalmente da 1ª para a 2ª série; todavia, em consonância com Soares (2004), os literatura infantil, letramento e alfabetização: uma relação possível e necessária 73 censos demográficos, a mídia e a própria produção acadêmica brasileira sobre alfabe- tização provocaram aproximações entre esses conceitos. Mesmo que a intenção tenha sido diferenciá-los, esse quadro gerou, em algumas situações, a fusão dos dois con- ceitos e produziu, em determinados casos, confusão entre ambos, a ponto de diluir a especificidade do processo de alfabetização. Vale frisar que há estreita relação entre o histórico fracasso das escolas brasileiras em ensinar seus alunos a ler, escrever e fazer uso competente dessas habilidades e a re- ferida perda de especificidade do processo de alfabetização. Quando as crianças eram alfabetizadas pelos métodos tradicionais, valorizava-se exclusivamente a apropriação do sistema de escrita. Nessa situação, as crianças precisavam, primeiramente, dominar o código escrito para, somente depois, ler textos como os contidos em livros de litera- tura infantil, que se diferenciavam, em forma e conteúdo, dos presentes nas cartilhas utilizadas para alfabetizá-las. Não obstante, principalmente na década de 1980, essas práticas que priorizavam o ensino do código escrito foram muito criticadas e consideradas como causa da inca- pacidade das escolas brasileiras de ensinar a ler e escrever, como esclarecemos ante- riormente, e em razão disso as práticas pedagógicas que objetivavam a apropriação do sistema de escrita foram colocadas em segundo plano, passando-se a priorizar o con- vívio da criança com a linguagem escrita; todavia, no entender de Soares (2004, p. 9), a causa maior de tal perda foi “[...] a mudança conceitual a respeito da aprendizagem da língua escrita que se difundiu no Brasil a partir de meados dos anos 1980” (a autora está se referindo à implantação, em grande parte de nossas escolas – mesmo que em nível de ideário –, da perspectiva construtivista). Concordamos com Soares (2004) quando expõe que não se podem negar as con- tribuições que a perspectiva construtivista trouxe para a compreensão do processo de alfabetização, porém tal perspectiva conduziu a equívocos e a falsas inferências, que ajudam a explicar a perda de especificidade do processo de alfabetização, tais como desconsiderar a necessidade de um método para alfabetizar; dirigir o foco para o processo de construção do sistema de escrita pela criança, esquecendo que este se constitui de relações convencionais e arbitrárias entre fonemas e grafemas; e crer que o convívio intenso com materiais escritos utilizados nas mais diversas práticas sociais seja suficiente para alfabetizar a criança. Esses equívocos e falsas inferências fizeram com que o processo de alfabetização, de certa forma, fosse ofuscado pelo de letramento; ou seja, ao se incorporarem na prática pedagógica os usos sociais da linguagem escrita, priorizou-se o processo de letramento em detrimento do de alfabetização, que acabou obscurecido, perdendo sua especificidade. Práticas Pedagógicas e literatura infantil 74 Essa situação gerou uma inusitada forma de fracasso escolar, denunciada por ava- liações externas à escola, como o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SAEB), o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA). Esses sistemas de avaliação revelaram que há muitos alunos não alfabetizados ou semialfabetizados matriculados em todas as séries do En- sino Fundamental e até no Ensino Médio. Diante das críticas a esse movimento, que não produziu os resultados esperados, porque as crianças continuaram sem aprender a ler e escrever, apenas tendo sido promovidas de uma série ou ciclo à (ao) seguinte, iniciou-se um novo movimento, que busca recuperar a especificidade do processo de alfabetização. Para Soares (2003b, 2004), urge reinventarmos a alfabetização, ou seja, para alfabetizar faz-se necessário orientar as crianças de forma sistemática na aprendizagem do sistema de escrita: “É a retomada da aquisição do sistema alfabético e ortográfico pela criança nas suas rela- ções com o sistema fonológico” (SOARES, 2003a, p. 21). Não obstante, a autora alerta para os riscos que advêm desse movimento. Ele pode ser um retrocesso se o processo de alfabetização for tratado de forma dissociada do processo de letramento. Isto quer dizer que precisamos recuperar a especificidade da alfabetização e reconhecer a relação de indissociabilidade e interdependência existen- te entre ela e o processo de letramento. Isto quer dizer que o processo de aprendiza- gem da escrita deve ser encaminhado de tal forma que as crianças aprendam a ler e a escrever em situações que levem em consideração as finalidades dessa linguagem e seu impacto na vida social, como aconteceu com o João. E a professora ensinava D de doce D de dado D de dedo E de dourado... E quando João saiu da escola já começou a procurar as placas. (rocha, [19--], p. 17). Essa forma de compreender a relação entre alfabetização e letramento é importan- te, uma vez que cada um desses processos tem diferentes facetas, cujas distintas natu- rezas requerem metodologias de ensino diferentes. Para algumas, não há como abrir mão de metodologias dotadas de intencionalidade e sistematização, como é o caso, por exemplo, da consciência fonológica e fonêmica e da identificação das relações literatura infantil, letramento e alfabetização: uma relação possível e necessária 75 fonema-grafema – habilidades necessárias para a codificação e decodificação da lín- gua escrita. Nessas situações, é imprescindível a presença do professor organizando o ensino com objetivos claros e definidos. Para outras facetas, além de intencionais e sistematizadas, é possível recorrer a metodologias indiretas, subordinadas às possibili- dades e motivações das crianças. É o caso da situação em que se pretende imergi-las no mundo da escrita, promover experiências variadas com a leitura e a escrita, conhecer diferentes tipos e gênero de material escrito e interagir com eles (SOARES, 2004). É porisso que defendemos a necessidade de haver, na prática pedagógica que visa à aprendizagem inicial da linguagem escrita, uma relação de equilíbrio e complemen- taridade entre os processos de alfabetização e letramento. a relação entre literatura infantil, letraMento e alfabetização Defender a indissociabilidade entre os processos de alfabetização e letramento sig- nifica que, ao organizar a prática pedagógica, faz-se necessário dotar de intenciona- lidade e sistematicidade tanto as ações que envolvem o ensino do sistema de escrita quanto as que pretendem mergulhar as crianças no mundo da escrita. É nessa situação que sugerimos recorrer à literatura infantil, considerando-a não apenas capaz de am- pliar o nível de letramento das crianças e de estimulá-las a aprender a ler e a escrever, mas, sobretudo, de revestir de ludicidade as práticas pedagógicas que envolvem esses dois processos. Essa orientação se coaduna com as reflexões desenvolvidas por Maia (2007) acerca da formação de leitores. Para ela, “[...] a literatura possibilita à criança uma apropria- ção lúdica do real, a convivência com um mundo ficcional, a descoberta do prazer proporcionado pelo texto literário e a apreensão do potencial linguístico que esse tex- to expressa” (MAIA, 2007, p. 67). Isto significa que a literatura infantil, além de poder transportar o leitor mirim a lugares imaginários e de lhe permitir vivenciar situações que a vida cotidiana não lhe proporcionaria, estimula o interesse pelo texto escrito enquanto linguagem capaz de materializar ações e pensamentos humanos. Nessa perspectiva, a linguagem tem uma dupla importância: além de constituir um instrumento de interação entre as crianças, é fator determinante no processo de aprendizagem e desenvolvimento delas. Dessa forma de conceber a linguagem advêm algumas implicações de ordem metodológica: não há necessidade de a criança primei- ramente aprender a ler e a escrever para, somente depois de atingir um determinado nível de apreensão do código linguístico, embrenhar-se no mundo da escrita, mais espe- cificamente, no mundo de encantamento e magia que experiências significativas com a literatura podem lhe proporcionar. Nas palavras de Maia: “antes de decodificar a língua Práticas Pedagógicas e literatura infantil 76 escrita, é fundamental que a criança vivencie atos de leitura” (MAIA, 2007, p. 22). Para tanto, convém envolver as crianças, desde a mais tenra idade, em eventos de letramento: “situações em que a escrita constitui parte essencial para fazer sentido à situação, tanto em relação à interação entre os participantes como em relação aos processos e estratégias interpretativas” (KLEIMAN, 1995, p. 40). É o que fez a mãe de João – personagem ao qual já nos referimos –, mostrando-lhe que a rota seguida pelo ônibus estava marcada na frente e na lateral do veículo, que nas placas das esquinas estavam registrados os nomes das ruas, para ajudar a população a se localizar, que os outdoors continham mensagens publicitárias. No dia seguinte, cedo, João foi para o colégio. Quando chegaram na esquina a mãe do João falou: - Temos de tomar o ônibus. Será que vai demorar? - Mas que ônibus, mamãe, nós vamos ter que tomar? - O que vai pra sua escola. - E como é que você sabe o que vai pra minha escola? - Eu olho o que está escrito na placa: RIO BONITO. (rocha, [19--], p. 9). João, como as demais crianças, sobretudo as que moram em centros urbanos, por viver em uma sociedade grafocêntrica, encontra-se imerso em eventos de letramento que denunciam aspectos funcionais da leitura e da escrita fora dos usos escolares. Ele está vivenciando atos de leitura propriamente ditos, superando o valor pragmático da leitura presente nos discursos da escola e de parte significativa de pais que consideram importante saber ler para “ficar sabendo das coisas” e escrever para “provar para a professora que sabe das coisas”. Concebemos a instituição escolar como a mais importante agência de letramento, capaz de aproximar a criança de vários modelos de linguagem escrita (poesias, contos de fadas, reportagens jornalísticas, entre outros) e de diversos portadores de texto (revistas, livros, jornais, folders, folhetos publicitários, livros de receitas, entre outros); contudo, algumas práticas pedagógicas que visam a aproximar a criança da escrita são questionáveis, tais como distribuir livros de literatura para “acalmar” as crianças que voltaram muito “agitadas” do recreio. Além disso, essas práticas costumam vir acompa- nhadas de muitas recomendações: não pode rasgar; não pode sujar; não pode colo- car no chão; não pode colocar na boca; não pode levantar da carteira (ou mesinha) para compartilhar a leitura com o amigo; só pode pegar um; uma vez escolhido, não pode trocar de livro. literatura infantil, letramento e alfabetização: uma relação possível e necessária 77 Dessa forma, em conformidade com Maia (2007, p. 87), “ao invés de intermediar uma relação de prazer entre a criança e o livro, a escola patrocina momentos de tensão em que o aluno sente-se intimidado diante do material de leitura”. Isto não significa que os cuidados com esse material não devam ser ensinados às crianças, quando ne- cessário; ao contrário, deve se ensinar lhes a forma de segurar o livro e de folheá-lo, a localização da ilustração e da escrita nas páginas, a localização do título do livro, do nome do autor, do ilustrador, da editora na capa do livro, a direção da escrita. O im- portante é que nessas situações o temor não se sobreponha ao prazer. Entre os muitos eventos de letramento, os atos de narrar e ler histórias se cons- tituem em práticas prazerosas e significativas para as crianças, seja nos lares, seja em instituições de Educação Infantil e de Ensino Fundamental. Um dos principais objetivos da leitura ou da narração de histórias na escola é estabelecer interação entre as crianças e a linguagem escrita, “de modo a possibilitar uma intimidade prazerosa, uma relação afetiva com a natureza dessa modalidade de linguagem” (MAIA, 2007, p. 95). Para tanto, o professor deve assumir o papel de mediador entre a criança e o livro. Isto implica a postura, o modo de interagir, o grau de envolvimento com o livro, a adequabilidade do tom da voz, saber conduzir conversas sobre o livro, seu autor, conteúdo e ilustrações. Para a autora anteriormente mencionada, ao lermos e narrarmos muitas histórias às crianças, estamos oferecendo-lhes a possibilidade de conhecer o uso real da escrita, pois é ouvindo e tentan- do fazer leituras de textos com mensagens que remetem ao universo, às vezes real, às vezes imaginário, que ela descobre a língua escrita como um sistema linguístico representativo da realidade. É ouvindo mensagens com contextos significativos que a criança insere-se num processo de construção acerca da linguagem; aprendizado, portanto, diferente do processo de simples domínio de codificação e decodificação de sentenças descontextualizadas e tão comuns nas cartilhas (MAIA, 2007, p. 82). Não obstante, tais práticas necessitam ser previamente organizadas e planejadas. Esse planejamento envolve, em linhas gerais, quatro momentos: conhecer a história antes de lê-la para as crianças e estudar seu enredo; pesquisar sobre a vida do autor (e do ilustrador); definir as estratégias e os recursos didáticos mais adequados à história selecionada; e confeccionar os recursos escolhidos. É necessário estudar o enredo da história antes de lê-la para as crianças, para pes- quisar o significado de alguma palavra desconhecida, verificar se a história escolhida é adequada à faixa etária do público, conhecer o enredo, as personagens principais, secundárias e supérfluas, o ambiente da trama (local, época,civilização) para verificar se há mensagem ou conteúdo educacional, avaliar a qualidade do texto e aprimorar o fluxo da leitura. Enfim, é essa compreensão em profundidade do texto que garante Práticas Pedagógicas e literatura infantil 78 a criação de um clima de envolvimento e encantamento. Na opinião de Abramovich (1989), esse estudo é importante para que o professor [...] saiba dar pausas, criar os intervalos, respeitar o tempo para o imaginário de cada criança construir seu cenário, visualizar seus monstros, criar seus dragões, adentrar pela casa, vestir a princesa, pensar na casa do padre, sentir o galope do cavalo, imaginar o tamanho do bandido e outras coisas mais... (ABRAMOVICH, 1989, p. 21). Ao apresentarmos às crianças o livro da história lida ou narrada, seu autor e ilus- trador (e outros elementos contidos na capa e contracapa do livro), estamos ensinan- do-lhes que o pensamento humano pode se tornar matéria. As histórias são criadas pelos homens, registradas por meio da escrita (e da ilustração) e reproduzidas em editoras por meio de máquinas impressoras. É esse registro – uma das principais finalidades da linguagem escrita – que nos permite conhecer uma história, mesmo não vivendo na mesma época e no mesmo local de seu autor. Isso significa que se Ruth Rocha tivesse contado somente para seus filhos a história do menino que apren- deu a ver, poucas seriam as pessoas que hoje teriam acesso a ela. Talvez o pudessem seus netos, porém seus filhos poderiam esquecer alguma parte ou não contar com fidelidade a história inventada pela mãe. Enfim, a história de João poderia sofrer alterações ou cair no esquecimento. Por isso a autora a escreveu, dando concretude à linguagem. Ela queria que muitas crianças e adultos, independentemente do local onde morassem ou da época em que vivessem, conhecessem a história por ela inven- tada, lendo o seu livro. O conhecimento do enredo, das personagens e do ambiente no qual se passa a história auxilia o professor na seleção de estratégias e recursos didáticos mais apro- priados para a narração. Dohme (2010, p. 27) salienta que “estes elementos indicarão onde estão as dificuldades para a produção de caracterizações e cenários e quais pon- tos podemos explorar para dar um colorido especial” à narrativa. Além do próprio livro, existem muitos recursos que podem auxiliar na narração de histórias. Os fanto- ches (de vara, de meia, de mão) são os mais comuns. Existem ainda: dedoches, caixas que contam histórias1, flanelógrafos, álbuns seriados, teatros de sombras, aventais, TV a cabo, painéis sanfonados, cartazes e outros. O importante é que tais recursos sejam confeccionados com esmero e como pensamento voltado a sua durabilidade, porque, a depender da organização da escola, podem tornar-se materiais pedagógicos aos quais todos os professores podem ter acesso. 1 O trabalho com as “caixas que contam histórias”, criado pela Profª Drª Elieuza Aparecida de Lima, encontra-se descrito no Capítulo 4 deste livro. literatura infantil, letramento e alfabetização: uma relação possível e necessária 79 Enfim, são muitas as possibilidades de enriquecer as práticas de leitura e narra- ção de histórias, tendo-se em vista que por meio delas, se planejadas e intencionais, estamos promovendo o processo de letramento das crianças e estimulando-as a aprender a ler e escrever. Se ao final da história as crianças manifestarem o desejo de ouvi-la novamente, é sinal de que houve encantamento, de que ações e pensamen- tos humanos – materializados em escrita – foram transmitidos para outras gerações, de que se concretizou uma das finalidades dessa complexa forma de linguagem: a transmissão de cultura de forma prazerosa. Para que tais práticas possibilitem a ampliação do nível de letramento das crian- ças, tão importantes quanto os atos de ler e narrar histórias são os diálogos esta- belecidos com as crianças após a leitura ou narrativa. Rego (1990, p. 54) destaca a importância de incentivar a criança a falar sobre o texto lido: “É muito importante que surjam perguntas e comentários por parte das crianças, para que a história não se transforme num ritual didático alheio aos verdadeiros interesses delas”. Por isso, o clima instalado após a leitura deve favorecer o diálogo e permitir que as crianças façam comentários, e não apenas respondam a perguntas elaboradas pela professora para verificar se houve a compreensão do texto. Segundo Maia (2007, p. 83), “o diálogo e os comentários sobre as leituras realizadas são necessários para que haja troca de informações, confronto de opiniões, comunhão de ideias, expo- sição de valores e, consequentemente, desenvolvimento dos sujeitos envolvidos no processo”. O importante, como salienta Kleiman (1995), é que o conteúdo desses diálogos estenda-se a outros contextos, aproximando a história às experiências das crianças e permitindo-lhes fazer inferências. Experiências significativas com a linguagem escrita proporcionadas por meio de narrações de histórias cuidadosamente planejadas permitem que as crianças desen- volvam capacidades essenciais para a aprendizagem da leitura e da escrita, estimu- lando-as a embrenhar-se no mundo da escrita. Ouvir histórias constitui-se em um momento de muita exigência para a crian- ça: atenção, concentração, antecipações, formulação de hipóteses sobre a natureza da linguagem escrita. São ações que colaboram para a compreensão dos processos e relações estabelecidas no sistema de representação da língua (MAIA, 2007, p. 107). A vontade de aprender a ler e escrever muitas vezes manifesta-se nos momentos de narração de histórias, quando a criança se aproxima do professor, olha desejosa para o livro e diz: “Posso ler também?”. Então, de posse do livro, começa a folheá- -lo, a admirar as ilustrações, a correr os pequenos dedos sob as letras e a “ler” a história contada pela professora. É evidente que nessa circunstância a criança está Práticas Pedagógicas e literatura infantil 80 realizando uma pseudoleitura, ou seja, está imitando o ato de ler um texto cujo conteúdo ela conhece. Trata-se de um processo significativo, no qual a criança apoia a leitura na sua memória e na estrutura gráfica que conhece. Para Cavalcanti (1997, p. 26): “realizar uma pseudoleitura é o mesmo que fingir saber ler”. Vale esclarecer que, ao imitar atos de leitura, a criança não está simplesmente copiando modelos, como ocorre quando lhe é oferecido um desenho para pintar ou um texto para copiar no caderno. “A imitação, longe de ser uma atividade de pura repetição mecânica, é a reconstrução de atos observados pela criança; portanto, a imitação possibilita a realização de ações que, em tese, estão além de seus limites” (MAIA, 2007, p. 84). Por isso é tão importante para a criança folhear livros de litera- tura e fazer de conta que está lendo, criar histórias a partir das ilustrações do livro e ter oportunidade de contá-las aos colegas. Cavalcanti (1997) acrescenta: Essa simulação muitas vezes se transforma em situação de pesquisa por parte do aluno, que tenta relacionar as partes gráficas que vê no texto com as par- tes orais que segmenta em sua fala. Essa simulação pode contribuir para que características da escrita se tornem observáveis para os alunos: semelhanças e diferenças, desenho, traçado da letra. Mas o mais importante, em atividades deste tipo, é o esforço das crianças em relacionar logicamente a escrita à fala e vice-versa (CAVALCANTI, 1997, p. 26). Algumas obras são mais adequadas para a realização de pseudoleitura por cau- sa da apreensão do sistema de escrita: livros com pouco texto e muita ilustração. Picote, o menino de papel (Mário Vale, Editora RHJ), Tatu-bola aprontou (ReginaSiguemoto, Editora Formato), Tum, tum, tum, um barulho do corpo e Plic, plic, plic, um barulho da chuva (Liliana Iacocca, Editora Ática) e a Coleção Gato e Rato (Mary e Eliardo França, Editora Ática), entre muitos outros, são livros que apelam para o recurso visual, com ilustrações muito coloridas que reforçam os textos es- critos. Estes, apesar de curtos, não são banais, revelando narrativas que agradam os leitores iniciantes. Ademais, as crianças também são capazes de “ler” obras com características distintas das acima sugeridas. O menino que aprendeu a ver, aqui já mencionado, é uma delas, pois seu conteúdo é extremamente significativo para as crianças em processo de alfabetização. literatura infantil, letramento e alfabetização: uma relação possível e necessária 81 No dia seguinte, cedo, João foi para o colégio. Quando chegaram na esquina a mãe do João falou: - Preciso prestar atenção que é pra não perder o ônibus... - Pode deixar que eu presto, mãe. Pode deixar, que eu já sei ver.... (rocha, [19--], p. 24). Afinal, parafraseando Ruth Rocha, elas também estão aprendendo a ver, ou melhor, a ler a palavra, a desvendar o mundo. alguMas considerações finais Além de ensinar a ler e escrever, tornou-se função da escola demonstrar, por meio de práticas significativas e carregadas de sentido, que a escrita é um instrumento cul- tural por meio do qual é possível comunicar-se, registrar opiniões e ter acesso ao co- nhecimento, entre outras finalidades. Não obstante, tanto para estimular o processo de alfabetização quanto para aprofundar o nível de letramento das crianças, oportunizan- do-lhes contato com a maior diversidade possível de textos que circulam na sociedade, requerem-se práticas pedagógicas intencionais e planejadas. Por isso, destacamos neste capítulo a importância do contato efetivo com um tipo de texto – o literário – por com- preendermos que se trata de um gênero textual que prima pela fruição e pela ludicida- de. Isso significa que todas as práticas pedagógicas dos professores devem ter em vista o processo de alfabetização, ou as que visem a ampliar o nível de letramento das crianças, ao objetivarem a ampliação das experiências da criança com a linguagem escrita, podem recorrer à magia e ao encantamento proporcionado pela literatura infantil. Enfim, desejamos que todas as crianças, por meio do processo de escolarização e do acesso a muitos livros de história, aprendam a ver e ler o mundo e a admirar o que nele há de belo e encantador, como fez o João, que deu saltos de alegria quando olhou para a placa da rua onde morava, reuniu todas as letras e leu: RUA DO SOL. Práticas Pedagógicas e literatura infantil 82 1) Escolha um livro de literatura adequado à faixa etária das crianças de sua turma. 2) Leia-o com atenção e estude-o, destacando os principais elementos da narrativa: enredo, personagens, espaço e tempo. 3) A partir desses elementos confeccione, cuidadosamente, recursos didáticos para narrar a história selecionada para as crianças de sua turma. 4) Pesquise sobre diferentes assuntos que possam suscitar interesse pela narrativa. 5) Com base nessa pesquisa, elabore um roteiro para orientar a conversa com as crianças após a narração. 6) Prepare um local para a narração da história. 7) Se possível, registre por meio de imagens o momento da narração. 8) Converse com as crianças sobre a história, extrapolando o conteúdo do texto. Relate e analise essa experiência, tomando por base o conteúdo deste capítulo. Proposta de Atividades Sugestões de Leitura MAIA, Joseane. Literatura na formação de leitores e professores. São Paulo: Paulinas, 2007. SOARES, Magda. A reinvenção da alfabetização. Presença Pedagógica, Belo Horizonte, n. 52, p. 15-21, jul./ago. 2003. Disponível em: <http://www. presencapedagogica.com.br/capa6/artigos/52.pdf>. Acesso em: 13 jan. 2011. referências ABRAMOVICH, Fanny. Literatura infantil: gostosuras e bobices. São Paulo: Scipione, 1989. CAVALCANTI, Zélia (Org.). Alfabetizando. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. DOHME, Vânia. Técnicas de contar histórias. Petrópolis: Vozes, 2010. literatura infantil, letramento e alfabetização: uma relação possível e necessária 83 FERREIRO, Emília. Reflexões sobre alfabetização. São Paulo: Cortez, Autores Associados, 1988. KLEIMAN, Ângela. Os significados do letramento. Campinas, SP: Mercado de Letras, 1995. LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. São Paulo: Ática, 2001. MAIA, Joseane. Literatura na formação de leitores e professores. São Paulo: Paulinas, 2007. MORTATTI, Maria do Rosário Longo. Educação e letramento. São Paulo: Unesp, 2004. REGO, Lúcia Lins Browne. Literatura infantil: uma nova perspectiva de alfabetização na pré-escola. São Paulo: FTD, 1990. ROCHA, Ruth. O menino que aprendeu a ver. São Paulo: Quinteto Editorial, [19--]. SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: CEALE; Autêntica, 1998. ______. A reinvenção da alfabetização. Presença pedagógica, Belo Horizonte, n. 52, p. 15-21, jul./ago. 2003a. ______. Letramento e escolarização. In: RIBEIRO, Vera Masagão (Org.). Letramento no Brasil: reflexões a partir do INAF. São Paulo: Global, 2003b. p. 89-113. ______. Letramento e alfabetização: as muitas facetas. Revista Brasileira de Educação, São Paulo, n. 25, p. 5-17, jan./abr. 2004. SOARES, Magda; MACIEL, Francisca. (Org.). Alfabetização. Brasília, DF: MEC/Inep/ Comped, 2000. Práticas Pedagógicas e literatura infantil 84 Heloisa Toshie Irie Sato Literatura infantil e educação infantil: limites e possibilidades no trabalho pedagógico 6 Este capítulo tem como propósito refletir acerca da literatura infantil como um recurso viável e prazeroso que propicia diferentes aprendizagens para as crianças, es- pecialmente àquelas que frequentam o universo da Educação Infantil. No decorrer da discussão, apresentaremos trechos da pesquisa realizada no doutorado, em um Centro Municipal de Educação Infantil (CMEI), referentes ao uso da literatura infantil em salas da pré-escola, mostrando como os professores a usam e como deveriam empregá-la para aproveitar ao máximo as contribuições desse recurso para o processo de elabo- ração dos conhecimentos científicos e para a construção da identidade das crianças. Para isso, optamos por estruturar a discussão em dois momentos. Em uma primeira parte, levantaremos breves considerações sobre as características que defendemos ser essenciais no trabalho da educação infantil e, posteriormente, apresentaremos trechos da nossa pesquisa que dizem respeito de forma específica ao emprego da literatura infantil na Educação Infantil. a educação infantil e suas Peculiaridades Discutir a utilização da literatura infantil no espaço da Educação Infantil requer antes de tudo traçar algumas considerações sobre esse nível inicial da educação básica para demarcar características que são peculiares a ele. Defendemos que o trabalho na Educação Infantil deve ser sistemático, de modo a articular, a todo o momento, o cuidar e o educar. Como em todos os outros níveis e modalidades educacionais, a Educação Infantil deve ter como prioridade máxima a elaboração do conhecimento científico acumulado historicamente pela humanida- de e por esse motivo a sistematização das ações pedagógicas é fundamental para se 85 alcançar este objetivo. No entanto, esse trabalho não pode desconsiderar o cuidar que faz parte da Educação Infantil, assim como também dos demais níveis e modalidades educacionais, o que significa afirmar que o educar está intrinsecamente relacionado ao ato de cuidar, pelo fato de a escola lidar com vidas humanas e, como é de consen- so, oshomens são seres completos, tendo assim uma vinculação muito estreita entre o cognitivo, o afetivo e o social. Segundo Kuhlmann (2001, p. 208): “A educação de uma criança pequena envolve o seu cuidado, por isso destaca-se o papel de educar e cuidar atribuído às instituições de educação infantil”, porém, o autor alerta que “O mais importante é entendermos que, para superar as marcas da tradição histórica, não podemos sair apressadamente atrás de soluções fáceis, de adotar os novos preceitos sem uma profunda reflexão sobre as nossas propostas e práticas”. É importante também enfatizarmos a necessidade de políticas públicas voltadas para a Educação Infantil, tomando-a não apenas como um nível educacional que, por uma tradição histórica ainda arraigada em nossa época, prioritariamente cuida e guar- da a criança pequena, mas como um momento educacional que forma a criança em todos os aspectos, considerando-a um participante ativo. Para que essa articulação aconteça, entendemos ser essencial a formação do profis- sional, tanto a nível inicial quanto contínuo, que atua nesse nível, para garantir os prin- cípios pedagógicos básicos necessários para um planejamento mais sistematizado, o qual levará a uma prática educacional mais consciente e eficaz. De acordo com Kramer (2002, p. 129): “O eixo norteador precisa ser a prática aliada à reflexão crítica, tendo a linguagem como elemento central que possibilita a reflexão, interação e transformação dos processos de formação em espaços de pluralidade de vozes e conquista da pala- vra”. Isso pressupõe dar voz aos profissionais que atuam diretamente no espaço edu- cacional e que sofrem as determinações do contexto social, político e econômico que delineia as ações educativas; significa, portanto, oportunizar uma formação mais pro- funda e politizada que garantirá paulatinamente uma ação pedagógica mais elaborada. a literatura infantil: seus usos e contribuições Com já anunciado anteriormente, esta parte objetiva apresentar as situações obser- vadas que se referem diretamente ao trabalho com a literatura infantil em três turmas de uma pré-escola que foi campo de pesquisa para o doutorado. No estudo, o intuito era analisar se as ações pedagógicas desenvolvidas no CMEI tinham como base o que é proposto pelos documentos oficiais em relação à Educação Infantil e se as atividades cotidianas junto às crianças atendiam as determinações presentes nesses documentos. Escolhemos a observação em sala de aula, pois acreditamos que, nesse espaço, po- demos perceber a prática pedagógica pela ótica do professor e dos alunos, as crenças Práticas Pedagógicas e literatura infantil 86 construídas pelo professor em torno do fazer pedagógico e a ação de todos os atores de campo, ou seja, pela observação em sala de aula podemos “[...] conviver e expe- rienciar com eles os diferentes espaços e ambientes de ensino e de aprendizagem es- colar” (CARDOSO; PENIN, 2009, p. 116) e conseguimos, assim, construir uma análise que considere os diferentes fatores que influenciam a dinâmica das interações sociais resultantes da ação pedagógica. situações observadas no Pré i, ii e iii Durante cinco observações na turma do pré I, presenciamos duas situações de trabalho com a literatura infantil. Em uma delas, após várias atividades desenvolvidas (trabalho com uma fotografia antiga do CMEI, jogo de montagem, representação do prédio da instituição com figuras geométricas e desenho do ambiente, brincadeira cuja finalidade era desenvolver a percepção auditiva), a professora colocou um CD com a história dos Três Porquinhos, sem a menor preparação. As crianças apenas escutaram e ficou por isso mesmo. Ao terminarem de ouvir a história, desceram ao pátio para desenharem livremente, na parede, com giz. Em outra situação, estando todas as crianças acomodadas nas mesinhas, a professo- ra mostrou novamente um livro sobre animais que tratava de antônimos, com o qual trabalhara no dia anterior, e o foi relendo. Após a releitura do livro, foi escolhido, pela professora, o gato, cujo corpo as crianças deveriam ilustrar a partir da dobradura da cabeça, e para isso, foi entregue, em um papel sulfite, a cara do gato colada, pedindo que as crianças pintassem a margem. Terminada a atividade, brincaram um pouco com pecinhas de montagem, bonecas e brinquedos pequenos. Quanto ao pré II, em cinco observações verificamos três ações voltadas para a lite- ratura infantil. Na segunda observação, depois da acolhida, as crianças se organizaram no chão, a professora iniciou a leitura do livro Quando eu crescer e propôs que todo mundo cantasse uma música chamada Eu era assim... e fizesse os gestos de acordo com a letra da música. Foi um momento bem divertido para as crianças, já que pude- ram se expressar imitando os gestos uns dos outros. Após essa encenação, a professora organizou as crianças nas mesinhas, com a ajuda delas, e distribuiu, para cada uma, uma folha de papel sulfite com a letra da música que haviam cantado para produzi- rem um desenho sobre cada estrofe. Passado um tempo, interromperam a atividade e desceram ao refeitório para tomar o lanche. Quando retornaram, cada aluno recebeu uma porção de massa para moldar uma figura humana. Todos ficaram empolgados e se concentraram muito para executar a atividade. Na quarta observação, como era uma sexta-feira, a professora pediu, no início da aula, que cada criança escolhesse um livro que deveria levar para casa no final de literatura infantil e educação infantil: limites e possibilidades no trabalho pedagógico 87 semana para ler com os familiares. Após todos terem escolhido o seu livro, a professo- ra gastou alguns minutos procurando o livro de um aluno e, como não o encontrou, disse que, se o livro não aparecesse, ele não levaria nenhum livro para casa. Nesse intervalo de tempo, como não tinham o que fazer, as crianças ficaram conversando; disso a professora não gostou e disse: “Bracinho cruza, boquinha fecha”. Depois de certo tempo, como o livro não foi encontrado, o aluno pegou outro livro e o problema não foi discutido em sala. Na quinta situação observada, as crianças que chegavam eram acolhidas pela pro- fessora e ficavam conversando com os demais colegas nas mesinhas, brincando no quadro-negro ou até mesmo de pega-pega. Depois de um tempo, cada criança foi chamada à mesa da professora com o propósito de escolher um livro de literatura que deveria levar para casa, no final de semana, para ler com a família. Depois disso, realizaram a contagem das crianças, a representação e a comparação das quantidades obtidas e, em seguida, a professora apresentou uma mala que circula em todas as salas da instituição, cujo nome é “Nossas histórias”. A professora mostrava os livros e as crianças iam dizendo quais já tinham sido contados e quais não. Então, escolheram a história da Rapunzel para que a professora lesse; depois de escutarem a história, tiveram que recontá-la. Em relação ao pré III, em oito observações, compartilhamos quatro situações que envolveram a literatura infantil. A primeira delas foi que a professora fez a leitura do livro “O gato pirado” de Lúcia Reis e, em seguida, discutiu rapidamente a história com os alunos, perguntando algu- mas coisas básicas, como, por exemplo: sobre quem a história conta? O que aconteceu com o gato? Na realidade, a leitura foi uma maneira de introduzir a atividade que deu sequência à prática pedagógica daquele dia, ou seja, a montagem de um gato por meio de um círculo grande e um pequeno. É necessário registrar que todos os círculos já estavam recortados e que a montagem do gato foi minuciosamente dirigida pela pro- fessora, assim como o desenho de suas partes (orelhas,olhos, boca, bigode, rabo). Outra situação foi que, após o café da manhã, as crianças subiram à sala e se arruma- ram em círculo para iniciar uma conversa informal dirigida pela professora; discutiram sobre os mais variados assuntos (o que fizeram no dia anterior, o que tinha acontecido em casa, notícias que ouviram...) e houve a preocupação de dar oportunidade de fala a todos, o que é muito importante. Em seguida, desceram ao pátio para cantar o Hino Nacional e, ao voltarem à sala, organizaram-se novamente em círculo para escutar uma história intitulada “O caso dos ovos”, ao final da qual não houve discussões a respeito do conteúdo. Nessa história, cada galinha escrevia seu nome no ovo. Então, distribuiu- -se às crianças um caderno de cartografia onde já estava registrado o nome REGINA, Práticas Pedagógicas e literatura infantil 88 em forma de acróstico. Assim, cada criança, ao recebê-lo, sob o direcionamento da pro- fessora, escreveu os algarismos de 1 a 6, registrando a quantidade de letras do nome. Foi escolhida, de comum acordo, uma palavra iniciada com cada uma das letras para que as crianças pudessem escrevê-las e ilustrá-las de forma dirigida. Na quinta observação, posteriormente ao café da manhã, as crianças foram ao pátio para cantar o Hino Nacional; em seguida, as professoras de todas as turmas cantaram várias músicas juntamente com as crianças e depois retornaram às salas. Já no am- biente de sala, as crianças colocaram-se em círculo e sentadas no chão; a professora entregou para cada uma a sua pasta, na qual estava o livro que elas haviam levado para ler com seus familiares no final de semana. Algumas crianças contaram a história toda, outras só se lembraram do título e ou- tras não se lembraram de nada. A professora preocupou-se em fazer com que todos falassem e também ouvissem o amigo. Foi uma situação riquíssima de desenvolvimen- to da oralidade e muito bem aproveitada pela professora, já que ela indagava, cons- tantemente, os alunos, tentando incentivá-los a comentar o que leram. Finalizada essa troca das leituras, as crianças foram distribuídas nas mesinhas e a professora começou a resgatar a noção de quantidade de 0 a 10 e todas as letras do alfabeto. Uma última situação observada foi a leitura de um livro intitulado “Ursinho mar- rom”, que foi seguida da interpretação oral. Estando os alunos já organizados nas me- sinhas, a professora resgatou as letras do alfabeto com o auxílio de um abecedário que fica afixado acima do quadro-negro, já que o ursinho da história não compreendeu várias coisas porque não sabia ler. Após essa tarefa, os alunos iniciaram o registro e o desenho da história, sob a dire- ção da professora, que ia desenhando, detalhe por detalhe; as crianças observavam e desenhavam, procurando seguir o modelo. analisando e rediMensionando as ações Pedagógicas vol- tadas Para a literatura infantil A partir das ações observadas e apresentadas acima, verificamos atividades relativas à literatura infantil totalmente desvinculadas das demais, o que pareceu indicar uma forma de “preenchimento do tempo”, visto que não havia conexão alguma entre am- bas, além de carecerem da intervenção da professora. Entendemos que é necessário o planejamento prévio das atividades que serão desenvolvidas, para que não se percam de vista os objetivos a serem alcançados, de modo que a prática pedagógica tenha se- quência e permita que a criança atinja determinadas metas e, então, desenvolva mais habilidades linguísticas, motoras e emocionais. Uma forma efetiva de se conseguir isso é praticar a elaboração de projetos, que é um modo de se garantir a participação dos literatura infantil e educação infantil: limites e possibilidades no trabalho pedagógico 89 alunos, uma vez que o projeto parte sempre de uma problemática surgida no contexto escolar e/ou social. Na acepção de Oliveira: Na verdade, a elaboração de uma sequência de atividades relativas a um eixo temático que se projeta no tempo e constitui o mote principal da ação permite à criança integrar sua experiência com diferentes propostas. Isso pode ser feito, por exemplo, com a organização de sequências de atividades, como representar um objeto associado a uma história lida pelo professor com um conjunto de peças para serem encaixadas, desenhar depois o que foi representado e, final- mente, contar e “escrever” uma história com base na representação do desenho (OLIVEIRA, 2005, p. 236). Acreditamos que, se houvesse uma vinculação maior entre as atividades, seria maior a chance de a professora integrar as várias linguagens (desenho, pinturas, lin- guagem oral, dramatização...), de forma a contribuir para um melhor aproveitamento pelos alunos. O que não se pode deixar de considerar é que oralidade, leitura e escrita constituem um tripé para o bom desenvolvimento das habilidades linguísticas, sendo por isso importante trabalhar esses três eixos de modo articulado, não só na Educação Infantil, mas ao longo dos outros níveis de ensino. Para Schmidt, Marques e Costa (2003, p. 197): A linguagem oral é predominante na Educação Infantil, por ser o instrumento mais utilizado nesse nível de escolarização, já que as crianças não são ainda leitoras e escritoras. A oralidade deve trabalhar dois pontos importantes: o pri- meiro é a própria comunicação que se estabelece com base na linguagem que a criança já domina [...] O segundo é utilizar a oralidade como um importante mediador do conhecimento letrado [...]. Assim, devemos dar relevância à linguagem no processo de desenvolvimento infan- til, pois, como bem afirma Vygotsky (2000, p. 11), “A função da linguagem é a comuni- cativa. A linguagem é, antes de tudo, um meio de comunicação social, de enunciação e compreensão”. Vygotsky também defende que a linguagem expressa o pensamento da criança e o organiza. Nos termos do autor: [...] a capacitação especificamente humana para a linguagem habilita as crianças a providenciarem instrumentos auxiliares na solução de tarefas difíceis, a su- perarem a ação impulsiva, a planejarem a solução para um problema antes de sua execução e a controlarem seu próprio comportamento. Signos e palavras constituem para as crianças, primeiro e acima de tudo, um meio de contato social com outras pessoas. As funções cognitivas e comunicativas da linguagem tornam-se, então, a base de uma forma nova e superior de atividade nas crian- ças, distinguindo-as dos animais (VYGOTSKY, 1984, p. 31). No entendimento de Nascimento (2004, p. 60), para Wallon “a linguagem é suporte e instrumento para os progressos do pensamento e para a constituição do ‘eu’, reve- lando as diferentes fases pelas quais passa a criança”. Práticas Pedagógicas e literatura infantil 90 Todas as ideias apresentadas acima evidenciam que, pelo fato de as professoras em alguns momentos não priorizarem a oralidade das crianças, desperdiçaram oportuni- dades riquíssimas de observar até que ponto cada aluno desenvolveu sua oralidade; perderam, consequentemente, a oportunidade de interferir no aperfeiçoamento do aluno, mostrando-lhe o quanto é necessário desenvolver a oralidade. Sobre isso, Sch- midt, Marques e Costa (2003, p. 197) expõem que: Não podemos deixar de considerar que a escola de Educação Infantil para as crianças oriundas de famílias pouco alfabetizadas talvez seja a mais importante instituição no sentido de permitir o acesso a um aprofundamento de seu grau de letramento. É importante que o professor conheça e valorize a linguagem que essas crianças trazem de sua comunidade, e que parta dela para orientar a diferenciação entre as situações que requerem maior ou menor formalidade. Ainda em relação à oralidade, verificamos que, posteriormente à leitura do livro selecionadopela professora, não houve uma discussão acerca do tema nele tratado e, dessa maneira, perdeu-se uma grande oportunidade de trabalhar a linguagem oral. Esse fato demonstra que, muitas vezes, a literatura infantil é tratada como um simples recurso para a introdução de uma atividade escrita ou como preenchimento de um tempo e não como uma possibilidade riquíssima de se trabalhar outros aspectos, tais como a imaginação, a criação, um melhor entendimento de mundo, a oralidade, o entendimento de sequenciação dos fatos e a própria leitura. Portanto, a professora po- deria e deveria ter realizado procedimentos que abarcassem todas as amplitudes que podem ser exploradas a partir da literatura infantil. A esse respeito, Battaglia (2003, p. 117) faz a seguinte reflexão: A hora do conto, um momento fecundo para usufruir e compartilhar do prazer literário na roda formada por crianças e adulto, é reduzida à condição de ati- vidade didática (com suas correspondentes tarefas), ou desvalorizada por ser encarada como simples entretenimento. Além disso, confunde-se com atividade de leitura, preocupada em habilitar as crianças para o domínio dos códigos oral e escrito. Embora a linguagem seja a matéria-prima da arte literária, não se pode limitá-la a esse aspecto, negando-lhe sua função primeira que é a criação, o estranhamento e o desvendamento do mundo. No momento da distribuição dos livros que deveriam ser levados para casa no final de semana, defendemos que a professora poderia ter organizado a escolha de um modo diferente, ou seja, poderia ter feito um comentário inicial, valorizando a prática da leitura, ou solicitado que algumas crianças oralizassem algumas situações positivas que vivenciaram a partir dessa ação. Depois disso, poderia ter estimulado os alunos a fazer a seleção, a partir de algumas informações breves sobre cada livro, a fim de instigar o desejo destes para a realização da leitura com a família. Nesse âmbito, percebemos a importância da correta mediação do docente em situações rotineiras de literatura infantil e educação infantil: limites e possibilidades no trabalho pedagógico 91 sala de aula, pois se este não souber conduzir as mais variadas ocorrências, ele pode desestimular a aprendizagem. Conforme Goulart (2007, p. 54): [...] as capacidades mentais das crianças não nascem com elas, se formam na medida em que são inseridas e estimuladas no grupo social, e o desenvolvimen- to de suas características individuais, inclusive a plasticidade cerebral, depende da interação com os demais e das mediações a que forem submetidas. Isso reforça a ideia de que devemos sempre acreditar no potencial das crianças e dar-lhes oportunidades para que mostrem o que já são capazes de realizar, com ou sem ajuda de outrem, e o que ainda não conseguem fazer, para que, desse modo, o professor possa planejar as atividades futuras de forma a atender as reais necessidades da turma. Bezerra, ao discorrer, no prefácio da obra de Vygotsky, A construção do pensamento e da linguagem, sobre o conceito de zona de desenvolvimento proximal, mostra que o autor o compreende da seguinte maneira: Trata-se de um estágio do processo de aprendizagem em que o aluno consegue fazer sozinho ou com a colaboração de colegas mais adiantados o que antes fazia com o auxílio do professor, isto é, dispensa a mediação do professor. Na ótica de Vigotski, esse ‘fazer em colaboração’ não anula mas destaca a partici- pação criadora da criança e serve para medir o seu nível de desenvolvimento intelectual, sua capacidade de discernimento, de tomar a iniciativa, de começar a fazer sozinha o que antes só fazia acompanhada, sendo, ainda, um valiosís- simo critério de verificação da eficácia do processo de ensino-aprendizagem. Resumindo, é um estágio em que a criança traduz no seu desempenho imediato os novos conteúdos e as novas habilidades adquiridas no processo de ensino- -aprendizagem, em que ela revela que pode fazer hoje o que ontem não conse- guia fazer. É isto que Vygotski define como zona de desenvolvimento imediato, que no Brasil apareceu como zona de desenvolvimento proximal (VYGOTSKI, 2000, p. x-xi, grifo do autor). Entendemos que as atividades que envolvem a literatura infantil, além de trabalha- rem com o ato criativo, com a dúvida e com as questões do mundo, devem propiciar uma maior aproximação com o texto escrito, atuando nessa zona de desenvolvimento proximal de modo a possibilitar uma maior familiaridade com o código linguístico. A respeito disso, Nicolau pontua que: Essa aproximação às funções e aos significados da escrita é mais marcada quan- to mais as crianças são estimuladas a ouvir histórias contadas e lidas, folhe- ar e ler imagens de livros de histórias com e sem textos, inventar histórias, dramatizando-as, recontando-as, respondendo a questões e/ou se expressando nas linguagens que preferirem; a descobrir o significado de cartazes afixados nos estabelecimentos comerciais e nas ruas; a comentar acerca dos programas de televisão assistidos; a relatar ocorrências observadas na pré-escola e fora de seu âmbito, representando-as por meio de suas múltiplas formas expressivas, inclusive valorizando as muitas oportunidades que o jogo teatral oferece; ava- liar situações decorrentes de seus jogos e brincadeiras, enfim, a conversar e a representar sobre tudo, inclusive sobre seus familiares, suas vidas e expectati- vas. E, nesse processo, as crianças e o professor são falantes e ouvintes capazes Práticas Pedagógicas e literatura infantil 92 de criar inúmeras formas de representação para suas experiências (NICOLAU, 2003, p. 213). Todas as propostas supracitadas são possíveis de realização, desde que haja planeja- mento e um ambiente alfabetizador que orientem as crianças a se familiarizarem com o texto escrito, presente em toda parte, e a perceberem a função social da escrita. Neste sentido, o professor é uma figura importantísima, que exerce o papel de leitor e de escriba quando a criança ainda não compreende os mecanismos formais da linguagem escrita. considerações finais Diante da apresentação dos dados colhidos nas turmas de pré-escola e das análises referentes às práticas efetivadas tendo a literatura infantil como foco, pudemos veri- ficar que o trabalho pedagógico realizado com a literatura serve mais como pretexto para se iniciar um conteúdo escolar do que propriamente uma ação voltada para o encantamento das nossas crianças e para o desenvolvimento de leitores e escritores. Pensando nesse aspecto, defendemos que o trabalho com a literatura infantil no es- paço da Educação Infantil deve ser algo que propicie aprendizagens, vivências e emo- ções e que consolide um desenvolvimento humano mais emancipatório, almejando constantemente a elaboração de conceitos científicos. Assim, há sempre a necessidade de sistematizar as ações que objetivem empregar a literatura infantil para tê-la como uma aliada no processo escolar e, mais que isso, realizar uma prática pedagógica que abranja todas as possibilidades de uso dessa literatura. O que propomos é um rever constante das ações realizadas com as crianças, que às vezes ocorrem sem planejamento e sem consciência, para que se tenham reflexões que possibilitem o professor traçar outros caminhos, enxergando dessa forma os limites de seu trabalho no que se refere à literatura infantil e as possibilidades que esta apresenta para um trabalho pedagógico mais sistematizado e de qualidade. 1) O texto evidencia a importância da sistematização no trabalho com a literatura infantil na educação infantil e comenta sobre a necessidade constante da reflexão a partir das ações pedagógicas realizadas. Sendo assim, como podemos criar no nosso espaço escolar o hábi- to de reflexão e uma maior sistematizaçãodas ações que envolvam a literatura infantil? Proposta de Atividades literatura infantil e educação infantil: limites e possibilidades no trabalho pedagógico 93 Sugestões de Leitura BATAGLIA, Stela Maris Fazio. A criança e a literatura. NICOLAU, Marieta Lúcia Machado; DIAS, Marina Célia Moraes (Org.). Oficinas de sonho e realidade na formação do educador da infância. Campinas, SP: Papirus, 2003. p. 113-125. NICOLAU, Marieta Lúcia Machado. Reflexões sobre as várias dimensões de atuação do professor de Educação infantil na estimulação da aquisição da leitura e escrita pelas crianças. In: NICOLAU, Marieta Lúcia Machado; DIAS, Marina Célia Moraes (Org.). Oficinas de sonho e realidade na formação do educador da infância. Campinas, SP: Papirus, 2003. p. 207-229. SCHMIDT, Maria Helena Costa Braga; MARQUES, Maria Lucia Marques; COSTA, Vera Lúcia Voos Gomes da. O processo de aquisição da leitura e da escrita na infância. In: NICOLAU, Marieta Lúcia Machado; DIAS, Marina Célia Moraes (Org.). Oficinas de sonho e realidade na formação do educador da infância. Campinas, SP: Papirus, 2003. p. 193-205. referências BATAGLIA, Stela Maris Fazio. A criança e a literatura. In: NICOLAU, Marieta Lúcia Machado; DIAS, Marina Célia Moraes (Org.). Oficinas de sonho e realidade na formação do educador da infância. Campinas, SP: Papirus, 2003. p. 113-125. CARDOSO, Oldimar; PENIN, Sonia Teresinha de Sousa. A sala de aula como campo de pesquisa: aproximações e a utilização de equipamentos digitais. Revista da FEUSP, [São Paulo], v. 35, p. 113-128, 2009. GOULART, Áurea Maria Paes Leme. Educação Infantil e mediação pedagógica. In: RODRIGUES, Elaine; ROSIN, Sheila Maria (Org.). Infância e práticas educativas. Maringá: Eduem, 2007. p. 47-55. Práticas Pedagógicas e literatura infantil 94 KRAMER, Sonia. Formação de profissionais de Educação infantil: questões e tensões. In: MACHADO, Maria Lucia. (Org.). Encontros e desencontros em Educação infantil. São Paulo: Cortez, 2002. p. 117-132. KUHLMANN Jr., M. Infância e Educação infantil: uma abordagem histórica. Porto Alegre: Mediação, 2001. NASCIMENTO, Maria Letícia B. P. A criança concreta, completa e contextualizada: a Psicologia de Henri Wallon. In: CARRARA, Kester (Org.). Introdução à Psicologia da Educação: seis abordagens. São Paulo: Avercamp, 2004. NICOLAU, Marieta Lúcia Machado. Reflexões sobre as várias dimensões de atuação do professor de Educação Infantil na estimulação da aquisição da leitura e escrita pelas crianças. In: NICOLAU, Marieta Lúcia Machado; DIAS, Marina Célia Moraes (Org.). Oficinas de sonho e realidade na formação do educador da infância. Campinas, SP: Papirus, 2003. p. 207-229. OLIVEIRA, Zilma Moraes Ramos de. Educação infantil: fundamentos e métodos. 2 ed. São Paulo: Cortez, 2005. SCHMIDT, Maria Helena Costa Braga; MARQUES, Maria Lucia Marques; COSTA, Vera Lúcia Voos Gomes da. O processo de aquisição da leitura e da escrita na infância. In: NICOLAU, Marieta Lúcia Machado; DIAS, Marina Célia Moraes (Org.). Oficinas de sonho e realidade na formação do educador da infância. Campinas, SP: Papirus, 2003. p. 193-205. VYGOTSKY, Lev Semenovich. A construção do pensamento e da linguagem. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2000. _______. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1984. literatura infantil e educação infantil: limites e possibilidades no trabalho pedagógico Anotações 95 Anotações Práticas Pedagógicas e literatura infantil 96 Marta Chaves Enlaces da teoria histórico-cultural com a literatura infantil 7 Ah! tu, livro despretensioso, que, na sombra de uma prateleira, uma criança li- vremente descobriu, pelo qual se encantou, e, sem figuras, sem extravagâncias, esqueceu as horas, os companheiros, a merenda... tu, sim, és um livro infantil, e o teu prestígio, será, na verdade, imortal (MEIRELES, 1984, p. 31). nossas PriMeiras Palavras No presente capítulo, traremos uma tentativa de diálogo e reflexão sobre as possi- bilidades de efetuarmos práticas educativas humanizadoras nas instituições escolares. Com isto, afirmamos que nem todas as intervenções pedagógicas são humanizadoras, o que equivale a dizer que nem todas as ações didático-pedagógicas das instituições escolares asseguram a grandeza do que podem vir a ser o trabalho do professor e as realizações das crianças. Assumiremos, neste nosso estudo, a perspectiva da Teoria ou Psicologia Histórico- -Cultural, por considerarmos que esse referencial teórico, seja em seus autores clás- sicos (L. S. Vigostski; A. R. Luria; A. N. Leontiev), seja nos pesquisadores contemporâ- neos (Duarte, 2004; Facci, 2004; Mello, 1999; Tuleski, 2007; Barroco, 2007; Martins, 2001; e Lima, 2005), apresenta investigações e proposições acerca do processo de ensino-aprendizagem. Temos ainda como propósito, neste texto, apresentar a possi- bilidade do enlace desse referencial teórico às intervenções afetas à literatura infantil; assim, acreditamos que essa harmonia contribui para que se reflita, podendo-se, de- pendendo da conduta política que se assuma, chegar ao redirecionamento da prática profissional. Com o amparo dessa perspectiva teórica, poderíamos eleger questionamentos para motivar este nosso exercício de reflexão. Poderíamos indagar, então: como 97 caracterizar práticas educativas humanizadoras? O que distinguiria uma conduta pe- dagógica humanizadora de uma conduta pedagógica que não favorece a promoção intelectual das crianças? Consideramos que práticas pedagógicas humanizadoras poderiam ser caracteriza- das como aquelas em que os encaminhamentos teórico-metodológicos expressem a ideia de capacidade plena das crianças no processo de ensino-aprendizagem. Assim, se firmaria a ideia de potencial para aprender e nesse processo não haveria dependência de condicionantes biológicos, por exemplo. Outro aspecto que marca uma educação humanizadora é a organização do tempo e do espaço. Com isto, queremos pontu- ar que todas as ações das crianças seriam organizadas levando em consideração as máximas elaborações humanas, independentemente de sua idade, em se tratando de centros de Educação Infantil ou de escolas de Ensino Fundamental. Neste sentido, o planejamento do trabalho, ou seja, a eleição do ponto de partida – que pode ser a exposição de determinado conteúdo (o quê), a estratégia de inter- venção (como) ou os recursos didáticos envolvidos no processo de ensino – estaria, necessariamente, vinculado àquilo que há de mais avançado em diferentes áreas do conhecimento – regra que se aplica também ao universo da arte. Consideramos que aqui se firma a importância da literatura infantil, pois entendemos que há uma tríplice condição no trabalho pedagógico. Isto significa afirmar que a literatura infantil é ao mesmo tempo conteúdo, estratégia e recurso didático-pedagógico. Destacamos aqui a necessidade de esclarecer que, para nós, é primordial vencer a ideia inicial que se tem de literatura infantil, de que ela estivesse limitada às histórias; para nós, é essencial lembrar que músicas, poesias, histórias e as mais diversas formas de expressão e registro popular – como adivinhas, parlendas e os brinquedos cantados – compõem o que chamamos de literatura infantil. Desta forma, aquilo que se sustenta em diferentes regiões e em diferente épocas – como as parlendas, as histórias infantis clássicas, as contemporâneas de inquestionável qualidade e de reconhecimento aca- dêmico –, seriam excelentes conteúdos, estratégias e ao mesmo tempo recursos para apresentarmos às crianças as máxima elaborações humanas. Com isto, atenderíamos a um dos preceitos da Teoria Histórico-Culturale firmaríamos, em essência, uma educa- ção plena para quem ensina e para quem precisa aprender. literatura infantil: uMa Possibilidade de enlaces, encantos e aPrendizagens Como afirmamos anteriormente, consideramos que as instituições escolares devem possibilitar a apropriação, por parte da criança, da cultura desenvolvida e acumulada social e historicamente pela humanidade. Com base nessa premissa de Leontiev [19--], Práticas Pedagógicas e literatura infantil 98 pontuamos que a Literatura Infantil pode ser considerada expressão de conteúdo, es- tratégia e ao mesmo tempo recurso didático, fatores que permitem apresentar às crian- ças elaborações humanas significativas e assim contribuir decisivamente para ampliar o universo de conhecimento das crianças. Lembramos que, nessa mesma perspectiva, segundo Duarte (2001), cabe à educação identificar os elementos culturais que cada indivíduo precisa assimilar para se tornar humano, porque o objetivo da educação deve ser, direta e intencionalmente, produzir a humanidade em cada indivíduo. Nesta lógica, o trabalho pedagógico, seja qual for a área do conhecimento, pode, de acordo com a Teoria Histórico-Cultural, potencializar as funções psicológicas su- periores. Nessa perspectiva, a sensibilidade, a curiosidade, a atenção, a memória e a percepção podem ser desenvolvidas com conteúdos, estratégias e recursos de ensino adequados, e a literatura infantil apresenta-se como fundamental em um processo educativo humanizador. Para nós, essa possibilidade não dispensa – ao contrário, co- loca como essencial – a necessidade de rigor e critério para organizar o trabalho edu- cativo no tocante à já mencionada tríplice condição da literatura infantil: de conteúdo, de estratégia e de recurso didático. Queremos propalar com isto que, para apresentar às crianças uma música, uma po- esia, uma história, e/ou para favorecer-lhes que criem e brinquem com sons, ritmos, le- tras e palavras, o que servirá de base ou apoio para o planejamento não serão todos os materiais didáticos – livros, revistas, discos, figuras, CDs, DVDs. Vamos mais uma vez pensar juntos. Falamos aqui da necessidade de critério e rigor para eleição do “quê” e “como” ensinar e dos recursos que devem ser utilizados nas aulas ou encontros orga- nizados para as crianças, sejam estas da Educação Infantil ou do Ensino Fundamental. Ter rigor e critério para planejar significa assinalar que a definição de conteúdo e a escolha dos materiais devem estar amparadas em uma intervenção educativa afeta à literatura infantil e, fundamentalmente, no pressuposto teórico-metodológico que sus- tenta o fazer do professor. O que parece ser rápido, simples e possível de ser “preparado” em uma hora-ati- vidade, ou seja, naquela hora semanal de planejamento do professor, mostra-se com- plexo e requer mais tempo para estudo, e somente assim o planejamento do que será ensinado e apresentado às crianças mostra-se algo especial, tão importante como – se não mais importante que – uma aula de Matemática ou Geografia, por exemplo. A tomada de decisão do que cantar ou ler para as crianças passa a ser a preocupa- ção central, uma vez que requer o mesmo requinte e cuidado com que vamos ensinar fração, relevo ou outro conteúdo. Não seria ao primeiro manual ou apostila ou à mú- sica que figura na lista das mais tocadas no rádio ou nos programas de auditório que poderíamos atribuir o status de conteúdo, estratégia ou material didático hábil a ser enlaces da teoria histórico-cultural com a literatura infantil 99 apresentado às crianças. Reafirmando essa assertiva, temos a lição de Cecília Meireles, que em seu livro “Problemas da Literatura Infantil” escreve: Um livro de Literatura Infantil é, antes de mais nada, uma obra literária. Nem se deveria consentir que as crianças freqüentassem obras insignificantes, para não perderem tempo e prejudicarem seu gosto. Se considerarmos que muitas crianças, ainda hoje, têm na infância o melhor tempo disponível da sua vida, que talvez nunca mais possam ter a liberdade de uma leitura desinteressada, compreenderemos a importância bem de aproveitar essa oportunidade. Se a criança desde cedo fosse posta em contato com obras-primas, é possível que sua formação se processasse de modo mais perfeito (MEIRELES, 1984, p. 123). Retomamos a questão principal que trouxemos no início deste capítulo, quando falávamos do que consideramos fundamental para caracterizar uma prática educativa humanizadora: que em todos os espaços e a todo o tempo as crianças vejam, sintam, ouçam e realizem algo a partir das máximas elaborações humanas, no que diz respeito à arte, à educação e às ciências. É neste aspecto que se centram a responsabilidade e a conduta política das institui- ções escolares, como temos afirmado em cursos de formação continuada1. Neste con- texto, algumas vezes podemos dizer: milhares de crianças terão em mãos apenas o que nós – professores, coordenadores e secretários de Educação – colocarmos nas mãos delas. Isto equivale a postularmos que os filhos dos cortadores de cana, dos trabalhado- res das usinas, dos frigoríficos ou das indústrias só terão acesso de forma sistematizada aos bens culturais se lhes disponibilizarmos esses bens, isto é, se os ensinarmos a eles e os apresentarmos nas paredes, nos muros, nos painéis ou em cartazes, cadernos, textos e livros. A possibilidade de escrever, ler e ouvir um texto enriquecido, de apreciar uma 1 Fazemos referência aqui a alguns municípios em que tivemos experiências como organizadores de proposta de capacitação ou assessoria à Secretaria de Educação. Indianópolis, Região Noro- este, formação intitulada “Desafios da Prática Educativa: diálogos e conquistas de professores e crianças”, iniciada em 2002; Presidente Castelo Branco, Região Noroeste, formação intitula- da “Professores Repensando a Prática: propostas, objetivos e conquistas coletivas”, nos anos de 2005 e 2006; Alto Paraná, Região Noroeste, formação intitulada “Teoria Histórico-Cultural e Práticas Educativas: conquistas de professores e crianças da Educação Infantil”no ano de 2006; Telêmaco Borba, Região Sul, formação intitulada “Práticas Pedagógicas e Literatura Infantil: conquistas de professores e crianças” em 2006; Lobato, Região Noroeste, com a capacitação denominada “Letras, números, pincel e tinta: sempre é hora de brincar e aprender”, no ano de 2009. Planaltina do Paraná, Região Noroeste, com a capacitação intitulada “Estudos e Práticas Educativas: desafios e conquistas de Educadores e Crianças”, iniciada em 2009; Terra Rica, Re- gião Noroeste, com a capacitação intitulada: “Teoria Histórico-Cultural e Práticas Educativas Humanizadoras: o desafio da formação continuada” no ano de 2010, Santo Inácio, Região Nor- te Central, com a formação denominada: “Teoria Histórico-Cultural: contribuições à formação pedagógica e às práticas Educativas”, realizada em 2010 e Santa Inês, Região Norte Central, com formação denominada: “Teoria Histórico-Cultural e Intervenções Pedagógicas Humanizado- ras: realizações e vivências possíveis com educadores e crianças”, realizada em 2011. Práticas Pedagógicas e literatura infantil 100 música e um livro que conte a história de Tchaikovsky, por exemplo, está condicionada à função da Educação que a instituição escolar e cada um de nós tenhamos assumido. Trazemos a questão da responsabilidade e da conduta política, porque nossa so- ciedade (a sociedade capitalista, que somos ensinados a chamar de nossa), no que diz respeito à formação intelectual e cultural das crianças, concede “obras insignifican- tes”, ou, como costumamos dizer, autoriza a caída de migalhas que se convencionou chamar de música para crianças ou “baixinhos”, como bem sabemos. Aí se inclui odescaso representado por textos reduzidos ou apressadamente traduzidos, o que, em geral, os torna empobrecidos – isto para não falarmos dos hits das últimas semanas que as crianças (de tanto ouvirem) chegam cantando nas instituições educativas. Nessa situação, vale a formação do educador, que precisa, sabiamente, atribuir valor à criança e, ao mesmo tempo, com uma habilidade cirúrgica, apresentar outras possibilidades de canto e dança, bem como utilizar o seu conteúdo, estratégia ou recurso didático, não devendo, em hipótese alguma, transformar em recurso didático o último ou al- gum outro hit, ou migalhas – entre os quais não há nenhuma diferença. Não são as migalhas o que deve ser ofertado ou repetido nas instituições educativas. Seguindo neste nosso estudo, avaliamos que tratar dessas questões com proprie- dade está diretamente condicionado à formação consistente do educador, cuja ação sistematizada e intencional pode possibilitar às crianças a apropriação dos bens cul- turais da humanidade; mas antes disso, ele próprio (o educador) precisa ter acesso às grandezas da arte, da literatura e das ciências. No atual contexto, a estratégia mais eficaz para a apropriação dos bens culturais (por ora) é o estudo, o fortalecimento de sua própria formação. Em acordo com esta defesa, mencionamos um livro de Valéria Mukhina (1995), o qual, embora tenha como título “Psicologia da Idade Pré-Escolar”, traz como conteúdo estudos afetos à aprendizagem e ao desenvolvimento de crianças da Educação Infantil e do Ensino Fundamental. No livro, há algo que marca a necessidade de firmarmos o propósito de ações didáticas que humanizem. Escreve a autora, amparada na Teoria Histórico-Cultural: A criança assimila esse mundo, a cultura humana, assimila pouco a pouco as ex- periências sociais que essa cultura contém, os conhecimentos, as aptidões e as qualidades psíquicas do homem. É essa a herança social. Sem dúvida a criança não pode se integrar a cultura humana de forma espontânea. Consegue-o com a ajuda contínua e a orientação do adulto – no processo de educação e ensino (MUKHINA, 1995, p. 40). É preciso, a todo o instante, considerar que as instituições escolares constituem o espaço em que, intencionalmente e de forma rigorosamente planejada, os conteúdos e valores serão ensinados e apresentados aos educandos. A autora nos lembra um enlaces da teoria histórico-cultural com a literatura infantil 101 elemento essencial da Teoria Histórico-Cultural, qual seja, a negação da espontaneida- de. Destacamos então a importância das relações que se efetivam, sejam de crianças com outras crianças, sejam de crianças com o educador. Se consideramos as vivências que as crianças podem ter no tocante à literatura infantil, às leituras, às encenações à redação de textos, nessas circunstâncias haverá sempre um mediador com mais expe- riência (e, fundamentalmente, estudo) para dirigir os trabalhos. É importante lembrar que às vezes a direção pode ser feita pela criança. Além da condução sistematizada, existem outros elementos caros à Teoria Histórico- -Cultural no que tange ao ensino e ao trabalho com arte. Lembramos Vygotsky (1998), para quem o primeiro ponto a ser ressaltado acerca da contribuição do ensino da arte é a construção de valores estéticos. Além disso, a condição humana do educando poderá ser potencializada tanto quanto sua criatividade. Sobre isto, em outra obra, o autor escreve: [...] a inventividade literária da criança pode ser estimulada e dirigida do exte- rior e deve ser julgada do ponto de visto do seu valor para o desenvolvimento e para a educação da criança. Tal como ajudamos as crianças a organizarem os seus jogos, seleccionamos e dirigimos as suas diversões, também podemos esti- mular e conduzir as suas reacções artísticas (VYGOTSKY, 2009, p. 80). Continua o autor: O melhor dos estímulos para a criação artística infantil consiste em organizar a vida e o meio ambiente das crianças de maneira tal, que isso crie a necessidade e a possibilidade da criação infantil (VYGOTSKY, 2009, p. 81). Neste sentido, a necessidade de atribuirmos atenção à organização do espaço nas instituições educativas ganha vigor com esse escrito de Vygotsky. A partir das elabo- rações do autor, refuta-se a ideia de que ordenar o espaço em uma sala de aula – seja no maternal, seja na Educação Infantil, seja ainda no 1º ano do Ensino Fundamental – configura-se como um mero procedimento. A organização sistematizada do espaço fica diretamente associada à “criação artística infantil”. Mais uma vez é negado o que parece simples, o que aceitaria a espontaneidade, o que nos leva a reafirmar a neces- sidade de estudo e de planejamento para estimular e desenvolver a criatividade e a imaginação, em oposição absoluta ao espontâneo. Este entendimento pode (e nesse caso deve) levar a inúmeras condutas. Vamos pensar em algo muito frequente em nosso cotidiano profissional. Lembremos e ana- lisemos juntos. É comum observarmos que alguns (muitos) educadores, com a em- preitada de ter que “decorar as salas”, veem-se obrigados a levar tarefas de recorte e colagem para casa e acabam por envolver familiares e até amigos em ações absoluta- mente áridas e técnicas. Pensemos nos maços de papel e tiras que precisam ganhar um formato de sol, nuvem, flores, trenzinhos e tantas figuras mais que povoam as salas e Práticas Pedagógicas e literatura infantil 102 corredores das instituições educativas – coisas que se tornam cansativas para o pro- fessor e vazias de sentido e significado para a criança, que chega à instituição e a sala estar “pronta” para ela. Nosso desafio está em estudar, compreender por que e como a organização do am- biente – por exemplo – pode estimular a criatividade da criança. Com isto, as figuras, cartazes, painéis e móbiles contribuiriam para revestir o espaço educativo. Essa ação seria então intencionalmente planejada e, de saída, incluiria a participação das crian- ças em um espaço que é delas e para elas. Com a participação das crianças e com o entendimento de que a literatura infantil tem muito a oferecer, teríamos o espaço tomado pela arte, e personagens e variados cenários revestiriam as paredes. Então se fortaleceriam as vivências referentes a dese- nhos e pinturas. Telas ou detalhes de pinturas poderiam ser expostos e as histórias clássicas infantis, as brincadeiras de adivinha, as poesias de Cecília Meireles e de José Paulo Paes ou os textos de Carlos Drummond de Andrade poderiam ganhar vida nas paredes, painéis e cartazes das unidades escolares. Assim, todas essas grandezas esta- riam disponibilizadas sob o toque e no campo visual imediato das crianças. considerações finais Este nosso diálogo-reflexão defende que o encanto e a liberdade anunciados por Cecília Meireles e trazidos em nossa epígrafe só têm sentido em uma instituição es- colar se forem intencionalmente planejados e apresentados de forma sistematizada. Assim, o que se mostra para a criança como magia e liberdade é, antes de tudo, expres- são de um intenso trabalho de estudo e organização pelas equipes pedagógicas das secretarias municipais de Educação ou das unidades de ensino. Consideramos, então, o caráter coletivo que deve ter o trabalho pedagógico com literatura para crianças. Aqui tratamos de Arte – com ênfase na literatura para crianças – com o entendi- mento de que todo o tempo e todo o espaço poderiam ser ocupados por imagens e sons que apresentassem às crianças o que de mais avançado a humanidade construiu e a História disponibiliza, uma vez que as crianças e nós ficamos na condição de her- deiros de todas as riquezas. Neste texto, procuramos discutir que as crianças herdaram a leveza das músicas de Tchaikovisky, agraça de Volpi, com seus lúdicos traçados, a sensação de movimento que nos é sugerida com o balançar da gangorra de Portinari e o saltitar das letras e palavras dos poemas de José Paulo Paes e das histórias de Ruth Rocha, Tatiana Belinki e Pedro Bandeira. Este nosso diálogo objetiva, fundamentalmente, mostrar como a literatura infantil pode assumir uma tríplice condição: ser conteúdo, estratégia e ao mesmo tempo (se ne- cessário for) recurso em favor de práticas educativas plenas de aprendizagem e encanto. enlaces da teoria histórico-cultural com a literatura infantil 103 1) Estude o texto com colegas de curso e/ou do trabalho e discuta sobre a importância da “formação consistente” tratada no texto. Elaborem elementos que caracterizariam uma formação que permita análises e avanços na prática educativa. 2) Organize um grupo de estudo e, em um encontro com colegas de curso e/ou de trabalho, discutam a contribuição da literatura infantil para a organização do ambiente de um Cen- tro de Educação Infantil ou Escola do Ensino Fundamental. 3) Das citações da autora Valéria Mukhina e Vygostsky, o que mais chamou sua atenção? Faça anotações sobre suas observações e discuta com colegas e profissionais da Educação. Proposta de Atividades Sugestões de Leitura BARROCO, S. M. S. Psicologia educacional e Arte: uma leitura histórico-cultural da figura humana. Maringá: Eduem, 2007. TULESKI, S. C. Vygotski: a construção de uma Psicologia marxista. Maringá: Eduem, 2002. referências BARROCO, S. M. S. A Educação especial do novo homem soviético e a Psicologia de L. S. Vigostki: implicações e contribuições para a Psicologia e a Educação atuais. 2007. 414f. Tese (Doutorado)-Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar da Universidade Estadual Paulista, Araraquara, 2007. DUARTE. N. Educação escolar, teoria do cotidiano e a escola de Vigotski. 3. ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2001. (Coleção polêmicas de nosso tempo, v. 55). ______. Vigotski e o “aprender a aprender”: crítica às apropriações neoliberais e pós-modernas da teoria vigotskiana. 3. ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2004. (Coleção educação contemporânea). Práticas Pedagógicas e literatura infantil 104 FACCI, M. G. D. Valorização ou esvaziamento do trabalho do professor?: um estudo crítico-comparativo da teoria do professor reflexivo, do construtivismo e da Psicologia vigotskiana. Campinas, SP: Autores Associados, 2004. LEONTIEV, A. O desenvolvimento do psiquismo. 1. ed. São Paulo: Moraes, [19--]. LIMA, E. A. Infância e teoria histórico-cultural: (des) encontros da teoria e da prática. 2005. Tese (Doutorado em Ensino na Educação Brasileira)-Faculdade de Filosofia e Ciências, Unesp, Marília, 2005. MARTINS, L. M. Análise sócio-histórica do processo de personalização de professores. 2001. Tese (Doutorado em Educação)-Faculdade de Filosofia e Ciências, Unesp, Marília. 2001. MEIRELES, C. Problemas da Literatura infantil. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. MELLO, S. A. Algumas implicações pedagógicas da Escola de Vygotsky para a Educação infantil. Revista Pro-Posições, Campinas, SP, v. 10, n. 1, p. 16-27, mar. 1999. MUKHINA, V. 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São Paulo: Martins Fontes, 1998. enlaces da teoria histórico-cultural com a literatura infantil 105 Anotações Práticas Pedagógicas e literatura infantil 106 regina Lúcia Mesti Imaginação e impressões: uma narrativa de interações na Literatura infantil 8 A busca de significação do livro de literatura infantil Érica e os impressionistas, de James Mayhew (2001), exigiu o estudo da narrativa das impressões e imaginação na visita ao museu de arte. Um passeio em celebração do aniversário da avó permite que vivenciem as impressões da qualidade sensível das imagens de quadros. Na nar- rativa, a busca das flores-presente faz a neta ultrapassar as fronteiras das molduras de telas. Uma história de imaginação polinizada pelas impressões das imagens. A narrativa constrói a riqueza do encontro de personagens de diferentes gerações e destas com a arte. Se a distância cultural fosse invencível, as personagens dessa história, uma avó e uma neta, Érica, não compartilhariam das impressões vivenciadas na interação com os objetos artísticos. A análise dos percursos construídos na narrativa se apoia em princípios teóricos e metodológicos da Semiótica Discursiva, constituída em torno de Algirdas Julien Grei- mas, na França. Essa perspectiva de análise de objetos culturais tem sido desenvolvida no Brasil, pelo Centro de Pesquisas Sociossemióticas na Pontifícia Universidade Católi- ca de São Paulo e pelo Grupo de Pesquisa de Semiótica Discursiva na Universidade de São Paulo. Os estudos sobre compreensão estética, desenvolvidos por Parsons (1992), contribuíram para o reconhecimento da compreensão estética nas interações do sujei- to do conhecimento com as pinturas impressionistas. A necessidade e importância da literatura infantil tem sido analisada em pesquisas que afirmam a possibilidade da democratização de bens culturais. A confirmação da possibilidade da interação e conhecimento dos bens culturais depende da criação de oportunidades de desenvolvimento da compreensão estética. A experiência de conhe- cimento artístico foi enfatizada em uma tarde de luminosidade e colorido intenso na 107 Universidade Estadual de Maringá. No encontro e cenário construído pelo Grupo de Estudos em Educação Infantil, foi promovido um momento de estudo em um final de tarde do mês de junho, que se constituiu como uma interação com os impressionistas. Nessa oportunidade de interação, pudemos ver os traços marcados pela copresença das cores e o efeito de luz nas imagens digitalizadas de pinturas impressionistas. Ainda sob o efeito da experiência de observação, percepção e impressões, recebemos de presente da Professora Marta Chaves o livro carregado de sentidos: Érica e os impres- sionistas. Sua análise, neste capítulo, examina a narrativa em busca da significação da obra na interação com o leitor. iMaginação e iMPressões na narrativa A análise da narrativa das interações da avó e da neta com as obras de arte busca identificar quais são os traços pertinentes do processo de conhecer vivenciados pelas personagens, entre os quais destacamos: 1) A interlocução entre pessoas durante a visita ao museu ocupa qual espaço na narrativa?; 2) Como é mostrada a interação das personagens e as imagens de pinturas que figuram na ilustração do livro?; 3) Quais os principais percursos do conhecimento da personagem menina? O pressuposto de análise é que a significação construída11, na narrativa, com elementos sensíveis e in- teligíveis, demarca os vários percursos do sujeito do conhecimento: as interações, as percepções e o processo de imaginação criadora. O início da narrativa constrói as ações das personagens em sua busca de interação com o universo da arte. Na folha de rosto, constam as figuras de um adulto e uma criança, de costas para o leitor, na direçãode um prédio com grande porta de entrada. O título da obra, grafado acima do desenho, sugere o sentido da visita, mas exige do leitor o reconhecimento do termo impressionista. Na primeira página, o desenho do interior do prédio na ilustração as figuras femininas podem ser vistas de frente: uma senhora de mãos dadas com uma menina, entre um portal e diversas paredes com qua- dros penduradas. “Era o dia do aniversário da Vovó e, para comemorar, ela foi com Érica até o museu de arte. Érica adorava passear lá, porque as coisas eram sempre novas e surpreendentes” (MAYHEW, 2001, p. 3). 1 O verbete construção é assim explicado no Dicionário de Semiótica: “No plano epistemológi- co, opõe-se freqüentemente construção e estrutura: consideradas como imanentes, as estruturas solicitam procedimentos de reconhecimento e de descrição, ao passo que a construção é consi- derada como o fazer soberano e arbitrário do sujeito científico. No quadro da teoria semiótica, a descrição do objeto, que revela progressivamente a ordem imanente das significações, confunde- -se, em última instância, com a construção, operada pelo sujeito epistêmico coletivo [...] trata-se do homem e do seu universo significante” (GREIMAS; COURTÈS, 1989, p. 80). Práticas Pedagógicas e literatura infantil 108 Érica exclama: “- São apenas borrões!” A Vovó explica: “- As tintas nas telas pare- cem borrões. Mas, quando você olha de longe, os borrões formam uma linda pin- tura” (MAYHEW, 2001, p. 4). A troca de impressões da neta e da avó contrasta seus pontos de vista durante uma experiência de interação com objetos de arte no museu. O conhecimento sobre arte e a compreensão estética dos sujeitos, segundo Parsons (1992), depende de vivências de apreciação de obras artísticas e de estudos de sua significação. A percepção e a imaginação dependem da riqueza de experiências, que se tornam materiais a serem transformados. Diante da pintura de Claude Monet, O Almoço, 1873, Érica lembra-se do que ensi- nou sua avó, afasta-se do quadro, olha de outro modo e vê o jardim de flores. “Vovó ia gostar de receber flores de aniversário lindas assim, pensou Érica. Fechou os olhos, respirou fundo e percebeu que o perfume das flores chegava até ela” (MAYHEW, 2001, p. 5). A percepção visual das flores, uma conquista recente, torna-se instrumento de mudança de percurso do sujeito na narrativa: a impressão das flores na mente da me- nina torna-se material para criação do objeto flores-presente que deseja entregar para a avó desde que sentiu seu aroma. Na primeira sequência da narrativa de visita ao museu, a ilustração e o texto verbal- -escrito constroem as interações entre a avó, a neta e o universo da arte. A experiên- cia de ensinar e aprender a observar modifica a capacidade de significação do objeto cultural no museu. A percepção visual do jardim, construído com tintas, identifica elementos que serão transformados pela imaginação do sujeito das impressões. Na sequência da narrativa, a personagem menina cria outras formas de contato com a pintura. A imaginação transforma as figuras, ativa a paixão e, conforme o narrador, o perfume das flores chegava até ela. Entendemos que a capacidade de percepção da personagem foi modificada no processo de conhecer. Na folha seguinte do livro de literatura, a figura da menina Érica localiza-se no cená- rio semelhante àquele retratado na pintura O Almoço. A cena do interior da tela passa a ocupar a página inteira, inicia-se um novo percurso do sujeito: a imaginação criadora. As telas, que até então pareciam penduradas nas paredes do museu nas cenas da visita, são modificadas na ilustração, tornam-se o cenário da narrativa do livro e ocupam as dimensões de cada página. As cenas das pinturas passam a compor a narrativa literária, entre os personagens das telas vemos, nas ilustrações, a menina que atua como inter- locutora e se movimenta pelos jardins das pinturas em sua tentativa de apanhar flores. As figuras femininas da cena do Almoço deslocam-se do passeio pelo jardim e estão próximas da mesa, com gestos que indicam o ato de servir com o aparelho de chá. O narrador localiza Érica no novo cenário: “Quando abriu os olhos, lá estava, entre arbustos, margaridas, girassóis e rosas. “– Posso pegar algumas flores?”. Ao abrir as imaginação e impressões: uma narrativa de interações na literatura infantil 109 páginas do livro, reconhecemos algumas cenas e personagens da pintura. Na cena do livro, respondem que sim e o menino Jean ajuda colher as flores e pergunta à Érica: “– Você vai pintar um quadro delas? – Não, vou dar as flores para minha Vovó. – Pa- pai pinta flores. Quer ver?”. Na pequena galeria, uma surpresa: “ – Este é o estúdio do papai. Ele é um pintor famoso: seu nome é Claude Monet” (MAYHEW, 2001, p. 4-6). A narrativa do livro constrói o percurso de conhecimento e experiências da personagem. Érica, que entrara no museu com a avó, entra nas telas pelas trilhas de sua imaginação e, agora, adentra ao estúdio do pintor pelas mãos de Jean, o filho. O que aprende torna-se instrumento nas próximas conquistas, que exige ultrapassar as fronteiras da moldura e recompor as cenas que vivencia. Nas páginas seguintes do livro, entra nas telas para buscar flores e sai das telas à procura da avó no museu. Atuou nas cenas da ilustração das pinturas e interagiu com as personagens de diversos quadros dos im- pressionistas: Claude Monet (1840-1926), Pierre-Auguste Renoir (1841-1919) e Edgar Degas (1834-1917). as iMPressões coMo base da iMaginação criadora Consideramos imprescindível a colaboração significativa da intervenção educacio- nal para ampliar as experiências relativas ao conhecimento da cultura, da arte e da ciência. Na sequência narrativa de Érica e os impressionistas foram construídos, pelo menos, dois percursos de aquisições do sujeito na história, são eles: o percurso, que denominamos da interação, e o percurso da imaginação, a imbricação de um no outro indica o reconhecimento de uma forma exemplar da imaginação criativa. A imaginação criativa tem como ponto de apoio as percepções exteriores e inte- riores que formam a base da experiência da criança, ou seja, o que vê e o que escuta compõe os materiais a serem transformados pela dissociação e associação das impres- sões percebidas. A condição da criação que se apoia nas experiências indica que estas resultam de colaborações anônimas, como explica Vigotski: “Qualquer inventor, mes- mo um gênio, é sempre um fruto de seu tempo e de seu meio. Sua criação surge de necessidades que foram criadas antes dele e, igualmente, apóia-se em possibilidades que existem além dele” (2009, p. 42). No livro Érica e os impressionistas, a interação do leitor com o texto pode contri- buir para apreciação estética, uma vez que sua leitura pode ser uma experiência rica em significações do universo cultural e artístico. A narrativa provoca desafios, com as transformações surpreendentes da personagem e suas conquistas de interações e co- nhecimentos no cenário do museu que figura nas páginas do livro. As trocas simbólicas e afetivas entre os personagens na história favoreceram as aquisições da protagonista da história e pode ser conquista do leitor. Práticas Pedagógicas e literatura infantil 110 Na história, a imaginação da personagem promove a significação dos quadros de pinturas como cenário de canteiros de flores. A atuação de Érica pode ser comparada ao processo de representação teatral, que constitui o tipo de criação infantil muito próximo à forma da criança apresentar as impressões do meio e está relacionada à brincadeira, considerada a forma dramática primeira. A imaginação criativa transforma as impressões pelo processo de dissociação eassociação: A dissociação e associação das impressões percebidas são partes importantíssi- mas desse processo. Qualquer impressão representa em si um todo complexo, composto de múltiplas partes separadas. A dissociação consiste em fragmentar esse todo complexo em partes. Algumas delas destacam-se das demais; umas conservam-se e outras são esquecidas. Dessa forma, a dissociação é uma condi- ção necessária para a atividade posterior da fantasia (VIGOTSKI, 2009, p. 36). De forma especial, a leitura da história Érica e os impressionistas pode ser uma rica experiência de impressões que podem se tornar materiais a serem transformados pela capacidade de dissociação e associação, um dos momentos do processo de imaginação e criação da criança. A experiência de percepção e conhecimento presente na narrativa do livro de literatura contribui para nosso argumento da necessidade de definição de critérios estéticos e educacionais na seleção das obras literárias como objetos culturais no processo de leitura e significação. leitura e iMPressões Durante a leitura, o leitor terá como desafio compreender, em algumas passagens, a que obra de arte o narrador da história está se referindo, pois é de forma direta e rápida, por exemplo: O Almoço, de Claude Monet, que indica as obras e os pintores que figuram nas páginas do livro como cenário campo de ação de Érica. Essa estrutura narrativa pode exigir uma releitura, com apresentação das obras e artistas impressio- nistas e seu contexto de produção. A história constrói as formas de interação da personagem com as obras de arte e pode promover a identificação da criança leitora com o tom lúdico do movimento de busca de flores nas telas impressionistas. Érica e os impressionistas, com sua motivação afetiva, pode instigar o leitor a querer a conhecer a arte da literatura e da pintura. A literatura é constituída de sentidos como objeto cultural; sua significação ocorre na interação com os apreciadores, que também participam da significação no ato de ler. A contribuição fundamental do livro está em sua narrativa, que constitui modos de ser e estar da personagem em relação às pessoas e à arte, modos de interagir que veiculam valores. A contribuição primordial desse livro está na construção discursiva, com recursos da linguagem verbal escrita e da ilustração, que cria a oportunidade de imaginação e impressões: uma narrativa de interações na literatura infantil 111 cada leitor participar da história no ato de leitura, conforme sua disponibilidade afeti- va e sua capacidade de impressões e imaginação. Reconhecemos que essa história pode desencadear o interesse pelo estudo de al- gumas características da pintura impressionista. Christoph Heinrich (2007, p. 32) ex- plica que “por impressão subentende-se o registro de uma paisagem, um tema tal qual existe no momento. [...] o cérebro ultrapassa o olhar, apagando a primeira impressão e substituindo-a pela experiência, pela convenção ou pela imaginação”. Ao examinar uma imagem da pintura com traços das pinceladas, vemos que a cons- trução da figura se faz pela co-presença das cores. A técnica não mistura as cores na palheta, coloca-se na tela uma cor ao lado da outra, são as impressões de um pesquisa- dor que analisou o quadro de Claude Monet, Campo de Papoulas, 1873. A simplicidade da composição garante uma leveza radiante. Ao céu com nuvens brancas se adiciona a luz que sobe pelo tapete escarlate de onde emergem os personagens. Jean quase se confunde com as flores. Camille avança serena e graciosa. Reina uma impressão de câmara lenta nesse mundo protegido, onde o vermelho das papoulas evoca a lembrança de homens que pouco antes haviam caído nos campos de batalha [...] (PRIETO, 2007, p. 60). O estudo dos modos de ver a pintura impressionista já seria outra história. Nessa citação, podemos identificar um percurso da análise da pintura que recorre à experi- ência e compreensão estética ao escrever as impressões diante da materialidade e da narrativa da obra artística. Mais do que isso, o estudioso das obras de arte amplia seus estudos do contexto histórico da sociedade europeia com o propósito de identificar a visão de mundo dos pintores e reconhecer os valores estéticos do movimento artístico impressionista. considerações finais No livro de literatura infantil Érica e os impressionistas, durante visita ao museu, avó e neta trocam suas impressões das imagens das pinturas e aprendem os modos de ver as obras dos impressionistas que desenham com cores. As interações com a arte construídas na narrativa são modificadas no percurso da história. A atitude inicial da personagem visitante do museu, que aprendera com a avó a colocar-se a certa distância da obra para observar a pintura, é modificada. Pela imaginação, a menina transforma-se ou é transformada (pelo autor e ilustrador James Mayhew) em integrante da narrativa pictórica. Ou seriam os atores da cena das telas transformados em personagens da narrativa literária? A atuação dos personagens, que antes transcorria no interior das imagens da pintura, se faz, em seguida, na dimensão da página do livro. Uma nova caracterização de gestos e diálogos surge nas trocas que estabelecem com Érica, a protagonista da narrativa literária que adentrou o cenário e Práticas Pedagógicas e literatura infantil 112 a cena pictórica, e a esta quer trazer de lá as flores que encontra. Na sequência da narrativa do percurso de imaginação são construídas as trans- formações no modo de ser e estar da menina no museu de arte. A cada nova página do livro, Érica atua ora no interior do cenário dos quadros, nos jardins em busca de flores, ora fora dos quadros, no interior do museu. A imaginação modifica as frontei- ras de tempo, espaço e materialidade do cenário e parece que operou com o novo instrumento: as impressões da imagem do objeto artístico. Seriam essas experiências de conquistas cognitivas e afetivas a base do material transformado pela imaginação? A narrativa do percurso de imaginação da personagem inclui a ilustração de telas dos impressionistas que outrora desenharam com tintas as cenas e cenários europeus na passagem do século XIX para o século XX. Pela imaginação criadora, na narrativa do livro, a busca de flores ocorreu nos campos e palcos construídos nas pinturas com o arsenal das paletas e impressões: O Almoço e Campo de papoulas, de Claude Monet (1840-1926), Menina com regador e A primeira noite, de Pierre-Auguste Renoir (1841- 1919) e As dançarinas azuis, de Edgar Degas (1834-1917). Em síntese, na análise da narrativa do livro identificamos diferentes formas de in- terações: o diálogo entre as pessoas e o contato com as obras de arte. Nos vários percursos de experiência com a arte, identificamos as aquisições da criança como a percepção da imagem do objeto cultural. Identificamos o percurso de imaginação cria- dora, que transformou o espaço, o tempo e a materialidade dos elementos da história. Nas páginas do livro, Jean e sua mãe, as bailarinas azuis e a plateia – anteriormente, personagens das narrativas de pinturas de Monet, Renoir e Degas – são enredadas por Érica no cenário de sua imaginação e universo da significação da obra impressionista. 1) Durante a leitura, cada leitor interage com o texto e vivencia um percurso de conhecimen- to. Você, como leitor desse texto, quais interações vivenciou, quais conquistas realizou, quais conhecimentos provocaram suas transformações? Quais dúvidas permanecem e gos- taria de explicitação das autoras? Proposta de Atividades Sugestões de Leitura SELLIER, Marie. Impressionismo: visita guiada. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2009. imaginação e impressões: uma narrativade interações na literatura infantil 113 referências GREIMAS, Algirdas Julien.; COURTÈS, Joseph. Dicionário de Semiótica. Tradução de Alceu Dias Lima et al. São Paulo: Cultrix, 1989. v. 1. GOMBRICH, Ernest H. A História da Arte. 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Anotações Práticas Pedagógicas e literatura infantil 114 Ercília Maria Angeli Teixeira de Paula / Layla Patrícia Klug Matos daniela Alves Moreira rodrigues / diana Cozer Medos revelados: a importância da Literatura infantil para crianças e adolescentes hospitalizados 9 a literatura infantil, a criança e o hosPital A inserção da literatura infantil nas enfermarias pediátricas no Brasil por profissio- nais especializados faz parte dos tempos modernos. Certamente durante muitos anos os pais, os avós, os familiares e os acompanhantes das crianças e adolescentes hospi- talizados contaram muitas histórias nos leitos infantis, as quais propiciavam conforto, acolhimento, intimidade e afeto nos momentos difíceis do período de internação. En- tretanto, essas experiências eram realizadas de maneira informal e não eram sistemati- zadas e estudadas como na contemporaneidade. Por outro lado, é preciso considerar também que as enfermarias pediátricas e os cuidados relativos às necessidades das crianças são modelos de atendimento recentes na área da saúde e estão inseridos nos movimentos de humanização do atendimento hospitalar. Durante muitos anos, as crianças e adolescentes foram tratados com indiferença pelos adultos em relação às necessidades infantis. Eles eram internados junto com os adultos nos hospitais e não recebiam tratamento diferenciado. Para Áries (1978, p. 52), “A infância era um período de transição, logo ultrapassado, e cuja lembrança também era logo perdida”. Ao longo da história, a criança foi ganhando seu espaço e deixou de ser miniatura de adultos. A sociedade passou a compreendê-la e a respeitá-la e ela foi aos pou- cos sendo concebida como um indivíduo que pertence a um determinado grupo so- cial que possui comportamento e linguagem próprios, atitudes e desejos diferentes dos adultos. Entre as muitas conquistas obtidas nas últimas décadas está o direito à 115 educação e a uma vida digna e de qualidade. Na Constituição Brasileira de 1988, pode- mos encontrar a seguinte afirmativa: A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimen- to da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (BRASIL, 1988, p. 134). Não obstante, o que fazer quando uma criança adoece e, por algum motivo, fica internada em um hospital e impossibilitada de frequentar uma sala de aula regular, vivenciando um cotidiano totalmente diferente daquele com o qual ela estava acostu- mada – repleto de remédios, médicos, enfermeiros e outras pessoas ou coisas próprias dos ambientes hospitalares? Como garantir tal direito a essa criança? Como desenvolver um trabalho pedagógico? Que papel as histórias infantis assumem em seu cotidiano? As desigualdades sociais e culturais fazem parte do cotidiano das crianças e ado- lescentes hospitalizados. É preciso estar atendo aos mecanismos de segregação dessas crianças e adolescentes. De acordo com Paula (2007a): As doenças não escolhem classe social, pois atingem crianças e adolescentes, indistintamente. Nos casos das doenças crônicas, as internações por longos períodos levam as crianças e adolescentes a permanecerem afastados de seus amigos, familiares, escola e objetos. Muitas vezes, a rudeza no tratamento, os procedimentos evasivos e as situações encontradas no hospital favorecem um afastamento do universo infanto-juvenil. Os pacientes ficam presos as suas pa- tologias, a um ambiente que não é o seu, e a um destino incerto (PAULA, 2007a, p. 322). A partir dessa temática, a educação para crianças em hospitais desenvolveu um projeto de contação de histórias infantis na escola1, em um hospital público na cidade de Vitória, no Estado do Espírito Santo. O objetivo inicial desse projeto era conhecer e apreender as questões do cotidiano de uma escola hospitalar. O trabalho fez parte da disciplina “Pesquisa, Extensão e Prática Pedagógica” do Curso de Pedagogia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), inserida no segundo semestre de 2010 para estudantes de Pedagogia do sétimo período (noturno) e ministrada pela Prof.ª Dr.ª Ercília Maria Angeli Teixeira de Paula. Essa disciplina constava de aulas teóricas e práticas, nas quais os estudantes pre- cisavam conhecer e pesquisar a educação em contextos não-escolares. A disciplina 1 Neste capítulo, optamos por utilizar o conceito Escolas nos Hospitais. É preciso destacar que o Ministério da Educação (MEC) utiliza o conceito Classe Hospitalar; porém os estudiosos da Pedagogia Hospitalar no Brasil consideram que esse conceito não abrange o trabalho desenvol- vido, daí a adoção do termo escola hospitalar. Também concordamos com esses pesquisadores, por isso adotamos esse conceito. Práticas Pedagógicas e literatura infantil 116 também previa a elaboração de um pré-projeto de pesquisa para a elaboração de um artigo final, o qual foi construído e entregue à instituição pesquisada. Não obstante, ao longo das visitas realizadas, começamos a sentir a necessidade e o desejo de intervir no grupo de alunas no contexto hospitalar. Solicitamos às professoras da escola no hos- pital que permitissem às alunas interagirem com as crianças e adolescentes internados de forma mais próxima, e para isso obtivemos a autorização das professoras. É preciso ressaltar que nessa disciplina foram pesquisadas várias instituições e orga- nizações não-governamentais da cidade de Vitória, ES, e na Grande Vitória. O hospital infantil foi escolhido pelo grupo pela necessidade de investigar as ações realizadas pelas professoras nesse contexto, assim como pela afinidade com a temática e por ser este ambiente um universo ainda pouco conhecido e explorado nos cursos de Pedagogia no Brasil. Nesse processo, observamos as ações das professoras que atuavam na escola da- quele hospital e realizamos entrevistas com elas. Também empreendemos uma pes- quisa de campo com as crianças que estavam internadas nas várias visitas que fizemos à instituição hospitalar. Neste texto, nos deteremos na análise das ações de uma pro- fessora da escola e de um desses momentos de contação de histórias pelo grupo. Essas ações foram registradas em diário de campo e posteriormente analisadas.. Foi possível verificarmos que as histórias assumiam um papel expressivo no cotidia- no das crianças presentes e nos seus processos de ensino-aprendizagem. o PaPel das histórias infantis Para crianças e adolescentes hosPitalizados As histórias infantis, quando bem contadas, exercem um grande fascínio nas crian- ças e permitem que elas sejam transportadas para um mundo de faz-de-conta, no qual tudo pode acontecer. Esse processo permite que as crianças deixem aflorar sua cria- tividade, desenvolvam o gosto pela leitura, adquiram conhecimentos e ampliem seu vocabulário. Fontes e Vasconcellos (2007), ao analisarem a condição da criança hospitalizadae suas interações, assinalam que é por meio do brinquedo e do faz-de-conta que a crian- ça ultrapassa os limites de sua própria compreensão, criando um mundo de desejos realizáveis (FONTES; VASCONCELOS, 2007 p. 287). Desta maneira, a literatura infantil inserida nos hospitais tem como funções essen- ciais entreter, instruir, divertir e educar as crianças através de uma linguagem fácil e de belas imagens. Ela proporciona, tanto às crianças quanto aos adolescentes, momentos muito prazerosos e permite que eles tenham acesso ao mundo de ficção, poesia, arte e imaginação. Medos revelados: a importância da literatura infantil para crianças e adolescentes hospitalizados 117 Segundo Machado (2002), a leitura precisa ser prazerosa, trazer contentamento e cumplicidade e levar a criança a se apaixonar. A leitura precisa ser para a criança um transporte para um novo universo, no qual ela, como leitora, transforme-se em parte da vida de outrem e passe a ser alguém que ela não é no seu cotidiano. Esse é um dos motivos que tem levado a literatura infantil para dentro das escolas nos hospitalais, onde ela é utilizada com múltiplas finalidades: terapêutica, lúdica, educativa e de formação pessoal e intelectual. Um exemplo que podemos apontar é o projeto Viva e Deixe Viver (2011). A Associação Viva e Deixe Viver é uma organização da sociedade civil declarada de interesse público que capacita voluntários para se tornarem contadores de histórias em hospitais para crianças e adolescentes internados. Essa organização proporciona entretenimento e aprendizado, ao mesmo tempo em que ajuda a humanizar esses ambientes, levando um pouco de alegria para essas crianças. De acordo com Paula (2007b), outros trabalhos também merecem destaque em relação à inserção da literatura infantil nos hospitais. O primeiro trabalho é referente às ações realizadas por estudantes de Pedagogia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná no Hospital Pequeno Príncipe, de Curitiba. Essas atividades foram coordenadas e registradas pelas pesquisadoras da Pedagogia Hospitalar Matos e Muggiati (2001). As estudantes levavam livros infantis até os leitos das crianças, onde contavam histórias e cantavam músicas de ninar. Esse projeto era intitulado “Enquanto o sono não vem” e ocorria no período noturno (no final da tarde, nesse hospital). As crianças e as famílias gostavam e avaliavam de maneira positiva esse trabalho das alunas e as ações de rela- xamento promovidas para as crianças. Outro trabalho também relevante citado por Paula (2007 b) diz respeito ao “Projeto Biblioteca Viva em Hospitais”. Esse projeto é promovido pela Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança e pelo Banco Citibank. O projeto tem vários objetivos, entre eles a preservação da saúde psíquica das crianças e adolescentes no período em que estão hospitalizados, assim como o acesso a livros através da literatura infantil e de profis- sionais hospitalizados. Como é possível perceber, esses projetos têm buscado dar nova vida e novos hori- zontes ao ambiente hospitalar. Durante a pesquisa realizada no hospital de Vitória, foi possível entendermos o papel que exerce a literatura infantil na vida das crianças. Em um dos momentos ob- servados, recordamos a seguinte cena registrada em nosso diário de campo: A professora regente chegou à enfermaria da ortopedia para efetuar seu tra- balho como todos os dias. Inicialmente, cumprimentou a todos e observou se havia chegado algum aluno novo. Após esse primeiro momento ela passou atividades para cada aluno individualmente, ensinou e explicou como essas Práticas Pedagógicas e literatura infantil 118 atividades deveriam ser feitas. Depois de atender quase todas as crianças, pegou um livro de história infantil para ler para uma criança, um menino de nove anos que estava impossibilitado de fazer qualquer movimento físico e de falar, devido um acidente que sofreu. No momento em que a professora começou a contar a história, o menino começou a sorrir a demonstrar felicidade, prestando atenção em cada palavra dita pela professora. A história foi contada a partir de adivinha- ções (o texto descrevia as características das frutas e o leitor tinha de adivinhar qual era a fruta). O menino participou atentamente, sussurrando as respostas para a professora (Diário de Campo de Layla, 19/10/2010). Abramovich (1997) pontua que as histórias infantis trabalham com as crianças questões e problemas típicos da infância, como medo, curiosidade, dor, perdas e infi- nitos assuntos que as ajudam a visualizar seus sentimentos sobre o mundo de forma mais clara: É através de uma história que se pode descobrir outros lugares, outros tempos, outros jeitos de agir e de ser, outras regras, outra ética, outra ótica [...] É ficar sabendo história, filosofia, direito, política, sociologia, antropologia, etc. sem precisar saber o nome disso tudo e muito menos achar que tem cara de aula (ABRAMOVICH, 1997, p. 17). Para Santos (2009), as histórias infantis podem funcionar como “um verdadeiro remédio para a alma”, permitindo muitas vezes que a criança se veja e se reconheça na história, vivenciando por meio dos personagens os problemas e as soluções encon- trados na história. Essa ação ajuda a criança a se distanciar um pouco da própria dor e a expressar os seus sentimentos, enfrentando com mais tranquilidade as situações adversas. De acordo com relatos das professoras do hospital, nas visitas realizadas, as crian- ças hospitalizadas gostam de ouvir histórias de personagens fortes e valentes, pois os heróis dessas histórias geralmente trazem soluções imprevisíveis para problemas simples e complexos, e certamente as crianças hospitalizadas se identificam com es- ses personagens nas observações das estratégias de enfrentamentos de seus medos e situações difíceis Paula (2007b), em um artigo produzido sobre a literatura infantil no hospital, abor- dou a questão do medo em crianças e adolescentes hospitalizados que frequentavam a escola no Hospital Santo Antônio, das Obras Sociais Irmã Dulce em Salvador, Bahia. A autora citou um episódio das crianças que assistiam às aulas da professora do Ensino Fundamental. A professora contou aos alunos a “História do Bichinho do Não”, que dizia respeito a uma criança que tinha medo de tudo, inclusive de injeção. Ela recusava todas as ofertas que os pais lhe faziam, alegando ter engolido o “Bichinho do Não”. Os pais levaram essa criança ao médico, que lhe “receitou” a obediência aos pais, e ela prontamente aceitou. Medos revelados: a importância da literatura infantil para crianças e adolescentes hospitalizados 119 Após a contação dessa história, a professora a reapresentou às crianças do hospital e elas foram falando de seus medos e anseios através de brincadeiras com fantoches e com os personagens da história. Paula (2007b) fez a seguinte descrição a respeito dos medos revelados das crianças hospitalizadas: Foi possível perceber nestes episódios que a literatura, através da ficção, repro- duzia a realidade vivida pelas crianças no cotidiano hospitalar, possibilitando o diálogo entre eles. Numa articulação entre literatura, livros, fantoches e vi- vências dos alunos foi possível rever valores. padrões e conceitos. A Literatura Infantil, como exercício da poética e beleza, oportunizou as crianças, refletirem sobre o contexto e também rirem e compartilharem com os amigos e as profes- soras, os sofrimentos, desafios que viviam no hospital, demonstrando múltiplas relações possíveis entre ficção e o real (PAULA, 2007b, p. 189). O livro “Medo, medinhos e medonhos: como lidar com o medo infantil”, organi- zado por Silva (2004), apresenta várias situações nas quais as crianças vivenciam o medoe procuram enfrentá-lo, seja nas ruas, seja em casa, seja nos hospitais, além de situações em que os medos são vivenciados em conjunto com os amigos. Nesse livro, o artigo de Mainardes (2004) descreve “O medo no livro infantil”. O autor faz uma análise de livros da literatura infantil brasileira que, de forma direta ou indireta, tratam dos medos infantis. O autor também estabelece algumas categorias dentro das obras literárias que tratam do medo. As categorias elencadas por ele foram: medo nos contos de fadas, medo em obras contemporâneas, o medo como sentimen- to natural, o medo como algo superável e o medo como prudência. Mainardes (2004, p. 58) enuncia que as crianças precisam ter contato com obras literárias que tratem dessa temática. Em suas palavras:, O contato das crianças com as obras que focalizam o medo pode ser um primei- ro passo para o início de um diálogo sobre medos, permitindo que o mesmo seja partilhado, representado e, finalmente, compreendido e incorporado. [...]. No processo de constituição do sujeito leitor e do desenvolvimento do gosto pela leitura, o ideal é que as crianças tenham acesso à diversidade de textos lite- rários, a partir dos quais elas possam escolher suas obras preferidas. Entretanto é preciso reconhecer que ler para as crianças bem como narrar histórias são atividades essenciais para despertar nelas o gosto pela leitura, e os professores podem incluir livros que abordem o medo, colocando a criança num contato inicial com a temática. Neste sentido, é possível percebermos o significado da discussão dos medos infantis. A seguir, descreveremos os procedimentos realizados em nosso trabalho. entrando no hosPital – ProcediMentos Metodológicos O primeiro momento de nosso trabalho foi dedicado à leitura de livros, textos, sites e artigos que abordavam os temas literatura infantil, escola no hospital e medos Práticas Pedagógicas e literatura infantil 120 infantis. Com base nos conhecimentos adquiridos nessas leituras foi elaborado um pré-projeto intitulado “A importância da Literatura Infantil no processo de ensino aprendizado na escola no hospitalar”. Em seguida, realizamos visitas na instituição escolhida. O pré-projeto foi entregue às profissionais da instituição para tomarem co- nhecimento dos objetivos desse trabalho. Durante as visitas ao hospital, foi possível conhecermos alguns momentos e viven- ciar o cotidiano de um professor de escola hospitalar. A pesquisa foi realizada na escola de um hospital público localizado em Vitória, no Estado do Espírito Santo. Esse hospital atende crianças e adolescentes que não podem frequentar uma sala de aula regular por algum motivo de saúde. O atendimento escolar foi iniciado em 2004, com a subgerência de Educação Es- pecial. A escola hospitalar funciona em parceria entre o Governo do Estado, por meio das Secretarias de Educação (SEDU) e da Saúde (SESA), o hospital público e uma casa de acolhida a crianças com câncer em Vitória. Essa casa atende crianças das cidades do Estado do Espírito Santo e de estados vizinhos. A Secretaria Estadual da Educação do Espírito Santo envia os professores para o hospital. Atualmente, são dez professores ao todo, cinco para cada período. O hospital também conta com uma pedagoga da Educação Especial e disponibiliza o espaço e mais uma funcionária que trabalha na coordenação da escola. A casa de acolhida, que é uma organização não-governamental, fornece todo o material didá- tico da escola. A coordenação do projeto é de responsabilidade da Secretaria Estadual da Educa- ção. A pedagoga da Educação Especial participa, sempre que possível, das reuniões de planejamento, nas quais se definem quais temas serão trabalhados com os alunos ao longo do mês. A escola no hospital é vinculada à escola da rede municipal de referência. A comu- nidade escolar é formada por crianças e adolescentes internados, ou em tratamento, residentes, em sua grande maioria, nos estados do Espírito Santo, Minas Gerais e Bahia. Quando o aluno chega à escola do hospital, a professora responsável prepara uma carta para ser entregue à escola regular do aluno, informando a sua situação e pedin- do à professora que envie as atividades que ela está trabalhando na sala de aula para serem trabalhadas com o aluno na escola do hospital. As professoras relataram que os professores das escolas particulares normalmente não deixam de enviar as atividades, mas quanto aos professores das escolas públicas, os pais reclamam que, na maioria das vezes, eles solicitam, mas não são atendidos e as atividades não são enviadas para os alunos. Quando isso acontece, na falta do envio das atividades, os professores da escola do hospital preparam as atividades de acordo Medos revelados: a importância da literatura infantil para crianças e adolescentes hospitalizados 121 com a série da criança e/ou adolescente, com base no currículo e nos Parâmetros Curriculares Nacionais. O atendimento a essas crianças é feito diariamente na sala de aula do hospital, quando os alunos não podem sair das enfermarias. As aulas são realizadas em atendi- mento individualizado. O objetivo do trabalho do professor é oferecer o ensino regular ao aluno que está internado, mediante atividades lúdicas e pedagógicas, e possibilitar seu desenvolvi- mento, facilitando o regresso e a continuidade da educação regular. Nesse trabalho, a literatura infantil tem uma presença forte. ouvindo as Professoras e crianças: coletando dados Realizamos entrevistas com a coordenadora e com alguns professores da classe hos- pitalar, as quais nos permitiram compreender e conhecer como funciona uma escola no hospital. As professoras relataram que gostam do trabalho, mas acreditam que o Estado deveria criar políticas públicas efetivas para essa área hospitalar. No Espírito Santo, por exemplo, não existem concursos para professores nos hospitais. Desta maneira, todos os anos os professores contratados sofrem rodízio, o que impossibilita a continuidade de trabalhos efetivos e duradouros nas escolas dos hospitais desse Estado. Conhecer essa realidade de trabalho é muito importante para compreendermos o sistema social no qual as professoras estão inseridas. Nessa pesquisa, ocorreu também a observação participativa, a qual é caracteriza-se pela presença constante do pesquisa- dor no campo e sua observação ativa das atividades da instituição. Nas visitas realizadas, tivemos também a oportunidade de contar uma história para os alunos da escola no hospital. A história escolhida foi Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque. Esse livro conta a história de uma menina, chamada Chapeuzinho Amarelo, que tinha medo de tudo. Ela não saía de casa, não corria, não brincava nem dormia, de tanto medo. Seu maior medo, porém, era do lobo. Ela não o conhecia, mas morria de medo dele. Nem sabia se ele existia – até que um dia o encontrou e perce- beu que podia vencer seu medo. Ela deixou de ter medo do lobo e de todas as coisas que a amedrontavam. Seus medos desapareceram, porque ela os enfrentou e nunca mais teve medo de nada. O final da história traz a ideia de que quando enfrentamos nossos medos e anseios, podemos vencê-los. A história foi bem aceita pelas crianças e adolescentes, que dela participaram ati- vamente. É preciso ressaltarmos que no início eles estavam um pouco tímidos, mas depois foram se soltando. Enquanto eles ouviam a história, contemplavam as imagens do livro. É preciso considerar também que o grupo fez uma ampliação colorida das figuras do livro, o que chamou bastante a atenção das crianças. Práticas Pedagógicas e literatura infantil 122 Ao final da história, o grupo interagiu com as crianças e adolescentes. Fizemos várias perguntas,as quais foram bem respondidas. Um dos alunos, ao ser indagado do que tinha medo, respondeu prontamente: “Tenho medo de perder meu pai e minha mãe”. Podemos perceber que a hospitalização gera certa fragilidade nas crianças, sen- timentos de perda e necessidade de proteção. No primeiro momento, algumas crianças não quiseram falar sobre os seus medos, principalmente os meninos, que falaram “que homem não tem medo de nada”. Após começarmos a relatar os nossos medos, as crianças também começaram a falar quais eram os seus. Algumas crianças responderam que tinham medo do escuro, outras que tinham medo de barata e outras, ainda, de outros bichos. Algumas crianças continu- aram a falar que não tinham medo de nada, mas logo depois acabaram encontrando nas falas dos colegas algum medo que também eles tinham. Todos participaram das atividades, inclusive das de desenho e pintura, que propusemos em seguida. Algumas respostas eram esperadas por nós, outras nos surpreenderam muito. A resposta que mais nos chamou a atenção foi uma das crianças que revelou que tinha medo e não queria mais voltar para a escola. Quando começamos a conversar com ela e a perguntar os motivos disso, ela nos contou que estava internada por causa de uma “brincadeira de mau gosto” de seus colegas, pois havia caído da escada na escola, e quando seus colegas a viram caída, em vez de ajudá-la, começaram a chutá-la, o que resultara em um joelho quebrado e em sua internação no hospital. Conversamos com essa criança (um menino) e argumentamos que o estudo é mui- to importante e que sua desistência da escola acarretaria outros problemas em sua vida. Conversamos também com ele sobre a tentativa de trocar de escola ou procurar uma escola perto da sua casa, menos violenta, e ele concordou. Também pedimos ao pai e às professoras para que tomassem alguma providência para ajudar esse aluno. As professoras ficaram de entrar em contato com a escola e buscar esclarecer a situação para que esse menino pudesse voltar para as aulas, enfrentar seus medos e não desistir da escola. A escola precisa ser um espaço de convivência amigável, e não de brigas e violência; precisa ser um lugar para formar pessoas, e não deformá-las, e os responsá- veis pela escola precisam procurar resolver essas questões do cotidiano. Após essa conversa, começamos a dizer às crianças que, assim como Chapeuzinho Amarelo, personagem da história que havíamos contado, enfrentou seus medos, eles também deveriam refletir e buscar formas para vencerem seus medos e obstáculos. considerações finais O trabalho realizado junto ao hospital configurou-se como uma experiência muito significativa e nos permitiu conhecer e vivenciar um pouco do que é e como funciona Medos revelados: a importância da literatura infantil para crianças e adolescentes hospitalizados 123 uma escola no ambiente hospitalar. Também possibilitou-nos compreender que as his- tórias infantis podem ser usadas como um grande recurso pedagógico no processo de ensino e aprendizagem e no currículo a ser utilizado pelas professoras com as crianças e adolescentes. As histórias enriquecem o imaginário infantil e a criatividade e ajudam a promover o gosto pela leitura e até mesmo a discussão, problematização e busca de estratégias para o enfrentamento de problemas. Nos momentos de contação da história, observamos que as crianças “viajavam” para o mundo da imaginação e, por alguns momentos, esqueciam-se da realidade que estavam vivenciando. A leitura e as discussões posteriores proporcionaram momentos prazerosos àquelas crianças, que, mesmo estando hospitalizadas, não perdiam as suas características infantis. A resistência inicial das crianças, em alguns momentos, principalmente quando perguntamos quais eram seus medos, deveu-se ao fato de nós sermos “desconhecidas” para eles; porém, mesmo assim, a história nos permitiu promover um momento de descontração e abertura para falas posteriores. As visitas à escola do hospital de Vitória foram muito importantes para nós, pois nunca havíamos visitado uma escola de hospital e tivemos a oportunidade de conhecer o trabalho pedagógico desenvolvido naquele ambiente. Esse trabalho representou um conhecimento inicial a mais para todas nós, pois como professoras, precisamos conhecer como ocorre a ação docente em diferentes ambientes, inclusive nos não-escolares. Nesse trabalho, também pudemos vencer nos- sos medos em relação ao hospital e seus dramas. Essa experiência nos revelou que, além de alívio à dor, a literatura no hospital pode promover esperança. O trabalho dos professores e a contação de histórias nos permitiram olhar o hospi- tal de outra forma e compreender os medos revelados por crianças e adolescentes na sociedade contemporânea. 1) Após a leitura deste capítulo, pense na sua história familiar, ou na história de amigos, ou de vizinhos e procure lembrar se você já conheceu alguma criança ou adolescente que ficou hospitalizado. Você sabe dizer se eles tiverem acesso a professores nos hospitais para a não haver interrupção das aulas? Se não tiveram esse professor, como ocorreu a continuidade da escolarização dessas crianças? Você conhece o trabalho de professores em hospitais no Brasil? Descreva as informações que conhece. 2) A Literatura Infantil tem sido um recurso muito importante utilizado para crianças e ado- lescentes em situação de internação. Você conhece algum livro de Literatura Infantil que Proposta de Atividades Práticas Pedagógicas e literatura infantil 124 aborde a questão do medo, das perdas, do luto, das deficiências, da condição das crianças e adolescentes hospitalizados e processos de exclusão social? Se você conhece, cite três livros. Se você não conhece, é um bom momento para pesquisar e se informar. Sugestões de Leitura MATOS, E. L. M.; TORRES, P. L. (Org.). Teoria e prática na Pedagogia hospitalar: novos cenários, novos desafios. Curitiba: Champagnat, 2010. SILVEIRA, R. M. H. (Org.). Professoras que as histórias nos contam. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. WIERZCHOWSKI, L.; PIRES, M. O menino paciente. Rio de Janeiro: Record, 2007. referências ASSOCIAÇÃO VIVA E DEIXE VIVER. Disponível em: <http:// www.vivaedeixeviver.org.br>. Acesso em: 3 fev 2011. ABRAMOVICH, F. Literatura infantil: gostosuras e bobices. São Paulo: Scipione, 1997. ÁRIES, P História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. 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