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Eu caminho por uma sala de espelhos onde cada reflexo é uma época distinta. À minha esquerda, surge uma sala de velhas cartas: Mary Wollstonecraft escreve em 1792 sobre os direitos das mulheres como se acendesse uma vela num quarto escuro. O papel amarelecido arde sem consumar-se; as ideias se propagam como faíscas. Mais adiante, uma voz francesa — Olympe de Gouges — rabiscando uma Declaração dos Direitos da Mulher, tentativa de subverter a gramática de um mundo que nomeava tudo no masculino. Sinto o chão tremer com as botas das sufragistas: Emmeline Pankhurst e outras batem portões, quebram janelas, vão para a prisão; da resistência nasce, por fim, o sufrágio em vários países. Entro numa galeria onde as imagens se sobrepõem: mulheres negras nos Estados Unidos e no Brasil, com seus próprios combates. Sojourner Truth ergue a pergunta que atravessa séculos — “Ain't I a Woman?” — e sacode a ideia de igualdade que não inclui raça nem classe. No Brasil, Bertha Lutz surge como figura de ponte entre movimentos internacionais e lutas locais, articulando o direito ao voto em terras tropicais e conectando as vozes femininas ao cenário político da jovem república. A narrativa não é linear; é um rio que recebe afluentes. No século XX, leio Simone de Beauvoir declarando que não se nasce mulher, aprende-se a sê-lo — uma sentença que rasga véus e expõe papéis impostos. Betty Friedan descreve, nos anos 1960, a insatisfação doméstica que muitos fingiam inexistir: a mulher-boa-mãe-em-casa começa a questionar. É a segunda onda: direitos reprodutivos, igualdade no trabalho, denúncia da violência doméstica e das estruturas que naturalizam a submissão. As ruas se enchem de cartazes; as universidades, de teorias; as clínicas, de disputas sobre autonomia. Mas enquanto o cais europeu e norte-americano fervilha, outras margens levantam outro tipo de história. As feministas do Sul Global, mulheres indígenas, afrodescendentes e camponesas, entram na cena para dizer que igualdade não é apenas voto ou emprego — é terra, é saúde, é memória. A terceira onda, e sobretudo as vozes que emergem a partir dos anos 1990, reclamam pluralidade: identidade, performance de gênero, sexualidade, e a crítica ao essencialismo que pretendia uma universalidade feminina homogênea. Rebecca Walker pronuncia a palavra “terceira onda” e a academia registra o que já se fazia nas ruas e nas periferias. E junto dessa terceira onda, surge a noção de interseccionalidade — ferramenta para ver como gênero, raça, classe, sexualidade e colonialidade se entrelaçam. Kimberlé Crenshaw nomeia o que muitas já sentiam: que experiências múltiplas produzem opressões simultâneas. É como se o espelho finalmente aceitasse múltiplos ângulos, deixando de achatá-las numa única silhueta. A transição para o século XXI traz o pulso digital. Redes sociais tornam-se palcos instantâneos: hashtags como #MeToo e #NiUnaMenos globalizam relatos de assédio e feminicídio, tornan‑se instrumentos de solidariedade e denúncia. O quarto onda é visível nas campanhas que colocam patriarcado, mídia e poder em xeque, retomando antigas demandas e amplificando outras: ambientalismo feminista, direitos trans, críticas à mercantilização do corpo. No Brasil, movimentos e coletivos urbanos e rurais dialogam em protestos, pesquisas e ações jurídicas, mostrando que a história do feminismo aqui tem contornos únicos, marcados por desigualdades herdadas e resistências criativas. Ao longo dessa história, a arte e a literatura foram mapas secretos. Poetas, romancistas e cineastas traduziram o processo em metáforas, dores e celebrações — porque a política também é linguagem afetiva. Lembro de uma jovem lendo trechos de Clarice Lispector e outra recitando versos de Audre Lorde; entre linhas, reconhecem-se e se organizam. A memória do movimento é palimpsesto: sobre escritas oficiais, escreve-se a experiência; sobre legislações, inscrevem-se práticas de cuidado coletivo. Não houve um único roteiro, e tampouco existe um destino fechado. Aos poucos, o movimento aprendeu a conviver com contradições internas: debates sobre trabalho reprodutivo, sobre inclusão de homens nas lutas, sobre como lidar com diferenças culturais sem renunciar a princípios universais de dignidade. As vitórias legislativas — sufrágio, direito ao trabalho, acesso a métodos contraceptivos, leis contra a violência de gênero — são marcos, mas não conclusões. Muitas frontes permanecem abertas: disparidades salariais, representação política, violência de gênero, controle do corpo, e a invisibilidade de certas mulheres nas narrativas hegemônicas. Ao fim da sala de espelhos, percebo que a história do feminismo é uma travessia que combina urgência e paciência. É feito de pequenas rupturas e grandes cuidados: redes de apoio, creches comunitárias, bibliotecas feministas, centros de acolhimento. Não é apenas luta por direitos formais; é reimaginar o que significa viver em sociedade. Caminho para fora, com a sensação de que cada época deixou um presente: ferramentas intelectuais, solidariedade intergeracional, e a certeza de que o movimento se reinventa sempre que novas vozes se somam. A narrativa termina sem fechar a trama. O espelho final reflete não apenas o passado, mas o que nasce agora — meninas e meninos aprendendo outra gramática de gênero; ativistas digitais costurando redes; mulheres do campo guardando sementes e memórias. A história do feminismo segue sendo escrita, numa caligrafia coletiva onde o futuro é, em parte, promessa e, em parte, tarefa cotidiana. PERGUNTAS E RESPOSTAS 1) Quais são as “ondas” do feminismo? Resposta: Geralmente: primeira (sufrágio), segunda (direitos sociais e reprodutivos), terceira (identidade e diversidade) e quarta (ativismo digital e interseccionalidade). 2) O que é interseccionalidade? Resposta: Conceito que mostra como gênero se cruza com raça, classe, sexualidade etc., explicando opressões múltiplas e simultâneas. 3) Quais conquistas centrais do movimento? Resposta: Sufrágio, acesso à educação e trabalho, leis contra violência de gênero, e ampliação de direitos reprodutivos. 4) Como o feminismo difere no Sul Global? Resposta: Foco em terra, memória, descolonização, racismo estrutural e demandas que articulam gênero com soberania e pobreza. 5) Como homens podem apoiar? Resposta: Escutando, desconstruindo privilégios, dividindo cuidados domésticos e combatendo violência e sexismo no cotidiano.