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contemporanea
 www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 
 
 
1 
 ESCOLA DE FRANKFURT 
 
A Escola de Frankfurt surgiu do Instituto de 
Pesquisa Social, fundado em Frankfurt no início da 
década de 1920 e tem como seus principais 
representantes Theodor Adorno, Max Horkheimer, 
Herbert Marcuse, Walter Benjamin, Erich Fromm e 
Jügen Habermas, este último considerado como 
pertencente à segunda geração dessa escola. 
 
 Para entendermos o que eles produziram e 
porque decidiram escrever sobre o que escreveram, nós 
temos que ter em mente o que eles viram e viveram no 
seu tempo. 
 A escola começa na década de 20, mas 
obviamente eles nasceram um pouco antes e puderam 
presenciar a consolidação de uma nova sociedade e com 
isso várias mudanças de comportamentos. 
 
 Os caras estavam alí, no início do século XX. 
Tínhamos, em decorrência da Revolução Industrial, a 
produção de bens de consumo em larga escala, 
consequência disso, a guerra por mercados e depois a 
guerra de verdade, a Primeira Guerra Mundial que 
durou de 1914 a 1918. 
 
 Imediatamente após esses acontecimentos 
temos a consolidação dos Estados Unidos da América 
com sua sociedade de consumo como uma potência 
econômica e a crise de 1929 que quase acaba com toda 
economia globalizada. 
 
 Há a ascensão dos regimes totalitários do 
nazismo e do fascismo culminando na Segunda Guerra 
Mundial (1939-1945) que deixou a humanidade 
perplexa com o holocausto. 
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2 
 
Então pessoal, é em meio a tudo isso que a 
escola emerge com a pretensão de tentar explicar o que 
levou uma civilização dita racional a cometer tanta 
barbaridade, e com isso, apresentavam um modo novo 
de pensar sobre a sociedade. 
Dessa maneira, eles passaram a analisar que tipo 
de racionalidade é essa que direcionou a humanidade à 
autodestruição e ajudou a criar meios de dominação 
social, semelhante à dominação proporcionada sobre a 
natureza através do método científico. 
Nesse sentido, se opuseram ao pensamento 
tradicional produzido pelos filósofos desde Descartes 
até o iluminismo, e se destacaram por sua teoria crítica 
que atacava principalmente essa razão iluminista que 
estava no cerne da fundação da sociedade (mundo) 
moderna. 
Diferentemente do caráter especializado da 
ciência, que disseca a realidade para estudar suas partes 
de maneira separada, os pensadores dessa escola 
discutiram sobre vários temas de caráter tanto filosófico 
quanto sociológico, tais como autoridade, 
autoritarismo, totalitarismo, família, cultura de massa, 
liberdade, o papel da ciência e da técnica. 
Isso porque entendiam que a pesquisa social 
não pode se dissolver em várias pesquisas especializadas 
e setoriais. Para eles, a sociedade deve ser pesquisada 
“como um todo” nas relações que se ligam através dos 
âmbitos econômicos, culturais e psicológicos. 
 É aqui que se instaura a ligação entre hegelianismo 
(totalidade e dialética), marxismo (crítica social) e 
freudismo (estudo do inconsciente que domina esse ser 
racional que se diz consciente de si mesmo), que 
influenciará a obra dos pensadores da Escola de 
Frankfurt. 
A teoria crítica desenvolvida por eles pretende 
fazer emergir as contradições fundamentais da 
sociedade capitalista e apontar para “um 
desenvolvimento que leve a uma sociedade sem 
exploração”. 
 
 
1. THEODOR ADORNO 
A Filosofia de 
Theodor Adorno (1903-
1969), considerada uma 
das mais complexas do 
século XX, fundamenta-
se na perspectiva da 
dialética. 
 
Dialética do esclarecimento 
 
Uma das suas importantes obras, a Dialética do 
Esclarecimento (1947), escrita em colaboração com Max 
Horkheimer durante a segunda guerra mundial, é uma 
crítica da razão instrumental, conceito fundamental 
deste último filósofo, ou, o que seria o mesmo, uma 
crítica, fundada em uma interpretação negativa do 
Iluminismo, de uma civilização técnica e da lógica 
cultural do sistema capitalista (que Adorno chama de 
“indústria cultural”). 
Também uma crítica à sociedade de mercado 
que não persegue outro fim que não o do progresso 
técnico e o lucro. 
A atual civilização técnica, surgida do espírito 
do Iluminismo e do seu conceito de razão, não 
representa mais que um domínio racional sobre a 
natureza, que implica paralelamente um domínio 
(irracional) sobre o homem; os diferentes fenômenos 
de barbárie moderna (fascismo e nazismo) não seriam 
outra coisa que não mostras, e talvez as piores 
manifestações, desta atitude autoritária de domínio 
sobre o outro. 
Em sua Dialética Negativa, Adorno intenta 
mostrar o caminho de uma reforma da razão mesma, 
com o fim de libertá-la deste lastro de domínio 
autoritário sobre as coisas e os homens, lastro que ela 
carrega desde a razão iluminista. 
Seu pensamento opõe-se à filosofia dialética 
inspirada em Hegel, que reduz a sistema todas as coisas 
através do pensamento, superando suas contradições 
(crítica também do Positivismo, que deseja assenhorar-
se da natureza por intermédio do conhecimento 
científico). 
A razão só deixa de ser dominadora se aceita a 
dualidade de sujeito e objeto, interrogando e 
interrogando-se sempre o sujeito diante do objeto, sem 
saber sequer se pode chegar a compreendê-lo por 
inteiro. 
Da Crítica da Razão, Adorno chega também à 
crítica da linguagem. Para Adorno, toda linguagem 
conceitual realiza alguma forma de violência cognitiva, 
pois nunca é possível conformar totalmente às palavras 
aos objetos e sentimentos tais como eles são 
(contradição do "não-idêntico"). 
Como alternativa e complemento à linguagem 
conceitual, Adorno valoriza a linguagem artística, a qual 
consegue expressar as irracionalidades, contradições e 
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3 
estranhamentos dos sujeitos, sem violentá-las por meio 
de conceitos. Ao erigir os seus próprios significados, 
cada obra de arte cria o seu mundo interno (ser-para-
si), sem necessidade de se espelhar em objetos externos 
e incorrer em violência cognitiva. 
Para ele, o conceito de técnica não deve ser 
pensado de maneira absoluta: ele possui uma origem 
histórica e pode desaparecer. 
Ao visarem à produção em série e à 
homogeneização, as técnicas de reprodução sacrificam 
a distinção entre o caráter da própria obra de arte e do 
sistema social. 
Desse modo, se a técnica passa a exercer imenso 
poder sobre a sociedade, tal ocorre, segundo Adorno, 
graças, em grande parte, ao fato de que as 
circunstâncias que favorecem tal poder são 
arquitetadas pelo poder dos economicamente mais 
fortes sobre a própria sociedade. 
Em decorrência, a racionalidade da técnica 
identifica-se com a racionalidade do próprio domínio. 
Essas considerações evidenciariam que, não só o 
cinema, como também o rádio, não devem ser tomados 
como arte. “O fato de não serem mais que negócios – 
escreve Adorno – basta-lhes como ideologia”. 
Enquanto negócios, seus fins comerciais são 
realizados por meio de sistemática e programada 
exploração de bens considerados culturais. Tal 
exploração Adorno chama de “indústria cultural”. 
 
Indústria cultural 
 
O termo foi empregado pela primeira vez em 
1947, quando ele publicou a Dialética do 
Esclarecimento, juntamente com Max Horkheimer. A 
expressão “indústria cultural” visa a substituir “cultura 
de massa”, pois esta induz ao engodo que satisfaz os 
interesses dos detentores dos veículos de comunicação 
de massa. 
Os defensores da expressão “cultura de massa” 
querem dar a entender que se trata de algo como uma 
cultura surgindo espontaneamentecoisas!” torna-se o lema da 
fenomenologia. E é precisamente a fim de ir às coisas, 
as coisas em carne e osso, ou seja, a fim de encontrar 
pontos sólidos e dados indubitáveis, coisas tão 
manifestas a ponto de não poderem ser postas em 
dúvida e sobre as quais poder fundar uma concepção 
filosófica consistente, que Husserl propõe a epoché ou 
redução fenomenológica, como método da filosofia. 
Epoché (que é a transliteração do termo usado 
pelos céticos gregos para indicar a suspensão do juízo) 
significa justamente suspender o juízo em primeiro 
lugar sobre tudo aquilo que nos dizem as doutrinas 
filosóficas com seus debates metafísicos, depois 
igualmente sobre tudo o que nos dizem as ciências, 
sobre aquilo que cada um de nós afirma e pressupõe na 
vida quotidiana, isto é, sobre as crenças que compõem 
aquilo que Husserl chama de atitude natural. 
A atitude natural do homem é feita de 
persuasões variadas, úteis e necessárias à vida cotidiana. 
E a primeira dessas persuasões é a de que vivemos em 
um mundo de coisas existentes. Essas persuasões, 
porém, não possuem evidencia constritiva e, 
consequentemente, devem ser postas entre parênteses. 
Não é que o filósofo duvide delas: ele muito 
mais as põe fora de uso, não as utilizando como 
fundamento de sua filosofia, uma vez que, se a filosofia 
quer ser ciência rigorosa, deve pôr como seu 
fundamento apenas o que é indubitavelmente evidente. 
Por conseguinte, da minha persuasão de que o mundo 
existe, eu não devo deduzir nenhuma proposição 
filosófica, pelo motivo de que a existência do mundo, 
fora da consciência que a percebe, não é de modo 
nenhum indubitável. 
Como homem, o filósofo crê na existência do 
mundo e, ainda como homem, não pode deixar de crer 
em muitas outras coisas na vida prática, mas, como 
filósofo, ele não pode partir delas. 
E não pode partir tampouco dos resultados a 
pesquisa científica, em virtude do fato de que, embora 
procedendo crítica e rigorosamente no seu âmbito, as 
ciências interpretam, aceitando-os “ingenuamente”, os 
dados da experiência comum, sem se perguntar se eles 
resistem à pressão da epoché, ou seja, se são realidades 
indubitáveis. 
Portanto, nem as doutrinas filosóficas, nem os 
resultados da ciência, nem as crenças da atitude natural, 
até as mais óbvias, podem constituir pontos de partida 
indubitáveis, que são precisamente aquilo de que 
necessita a filosofia concebida como ciência rigorosa. 
Todas essas crenças, pois, devem ser postas entre 
parênteses. 
Mas existe alguma coisa da qual não se possa 
duvidar e que não se deixa pôr entre parênteses? Se 
existe, o que é isso que pode resistir a epoché? Pois bem, 
para Husserl, o que resiste aos ataques da epoché, ou seja, 
o que não se pode pôr entre parêneses, é a consciência 
ou subjetividade. Aquilo cuja existência é 
absolutamente evidente é o cogito com seus cogitata, a 
consciência à qual se manifesta tudo aquilo que aparece. 
A consciência, portanto, é o resíduo 
fenomenológico que resiste aos continuados assaltos da 
epoché. Mas a consciência, prossegue Husserl, não é 
apenas a realidade mais evidente, e sim também 
realidade absoluta, é o fundamento de toda realidade, é 
aquela realidade que não há necessidade de existir. O 
mundo, diz Husserl, é “constituído” pela consciência. 
 
 A crise das ciências européias e o “mundo da 
vida” 
 
Em 1950, apareceu postumamente A crise das 
ciências europeias e a fenomenologia transcendental. Esta é a 
última obra de fôlego de Husserl, na qual trabalhou até 
próximo da morte. 
A crise das ciências, obviamente, não é a crise 
de sua cientificidade, e sim crise do que elas, as ciências 
em geral, têm significado e podem significar para a 
existência humana. Escreve Husserl: “A exclusividade 
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17 
com que, na segunda metade do século XIX, a visão de 
conjunto do mundo do homem moderno se deixou 
determinar pelas ciências positivas, e com que se deixou 
deslumbrar pela 'prosperidade' que daí derivava, 
significou o afastamento dos problemas decisivos para 
uma autêntica humanidade. As meras ciências de fatos 
criam meros homens de fato”. 
O objeto da crítica de Husserl são o naturalismo 
e o objetivismo, a pretensão pela qual a verdade científica 
é a única verdade válida, e a ideia a ela ligada de que o 
mundo descrito pelas ciências seria a verdadeira 
realidade. 
E Husserl traça a história dessa pretensão e 
dessa ideia, a começar por Galileu e Descartes. Mas, 
escreve ele, “na miséria de nossa vida [...] tal ciência não 
tem nada a nos dizer. Em princípio, ela exclui aqueles 
problemas que são os mais candentes para o homem, o 
qual, em nossos tempos atormentados, sente-se à mercê 
do destino; os problemas do sentido e do não-sentido 
da existência humana em seu conjunto”. Na opinião de 
Husserl, em sua generalidade e em sua necessidade, 
esses problemas exigem solução racionalmente 
fundada. 
Eles “concernem ao homem em seu 
comportamento diante do mundo circundante, 
humano e extra-humano, o homem que deve escolher 
livremente, o homem livre de plasmar-se a si mesmo e 
ao mundo que o circunda”. 
Então Husserl pergunta: “O que tal ciência tem 
a dizer sobre a razão e sobre a não-razão, o que tem ela 
a dizer sobre nós, homens, enquanto sujeitos dessa 
liberdade? Obviamente, a mera ciência de fatos não tem 
nada a nos dizer a esse respeito: ela, precisamente, 
abstrai de qualquer sujeito”. 
O drama da época moderna é o drama que 
começou com Galileu, ele recortou do mundo-da-vida 
a dimensão físico-matemática, que depois passou a ser 
considerada como vida concreta. “Galileu vive na 
ingenuidade da evidência apodítica”. 
Naturalmente, a filosofia reconhece a função da 
ciência e da técnica, mas a função da filosofia “é a de 
libertar a história da fetichização da ciência e da 
técnica”. Vista desse modo, “a fenomenologia é 
filosofia primeira que se liberta da clausura do mundo, 
anulando-o, para descobrir na humanidade a liberdade 
de se transcender em direção a novos horizontes”. 
 
3. MARTIN HEIDEGGER: DA 
FENOMENOLOGIA AO EXISTENCIALISMO 
 
O expoente principal da filosofia da existência é 
Martin Heidegger. Nascido em Messkirch em 1889, 
estudou teologia e filosofia, laureou-se em filosofia em 
1914 com uma tese sobre A doutrina do juízo no 
psicologismo. 
Em 1916, como tese de habilitação ao ensino 
universitário, publicou A doutrina das categorias e do 
significado em Duns Escoto. Professor por alguns anos na 
Universidade de Marburgo, em 1929 Heidegger 
sucedeu a Husserl na cátedra de filosofia em Friburgo, 
dando sua aula inaugural sobre 0 que é a metafisica? 
Do mesmo ano é o 
ensaio Sobre a essência do 
fundamento (escrito para o 
volume miscelâneo publicado 
em comemoração dos setenta 
anos de Husserl), bem como o 
livro Kant e o problema da 
metafisica. Nesse entretempo, 
em 1927, saíra o trabalho 
fundamental de Heidegger, Ser e tempo. 
 Em 1933, Heidegger, que aderira ao nazismo, 
torna-se reitor da Universidade de Friburgo, 
pronunciando o discurso A autoafirmação da universidade 
alemã. Mas pouco depois se demitiu do cargo de reitor. 
Seus escritos posteriores a esse período são: 
Holderlin e a essência da poesia (1937), A doutrina de Platão 
sobre a verdade (1942), republicado em 1947, juntamente 
com a Carta sobre o humanismo; A essência da verdade (1943); 
Caminhos interrompidos (1950); Introdução à metafisica 1953); 
0 que é a filosofia? (1956), A caminho rumo à linguagem 
(1959); Nietzsche (1961), em dois volumes. Heidegger 
morreu em 1976. 
 
Da fenomenologia ao existencialismo 
 
O objetivo declarado de Ser e tempo é o de uma 
ontologia capaz de determinar adequadamente o 
sentido do ser. Mas, para alcançar esse objetivo, é 
preciso analisar quem é que se propõe a pergunta sobre 
o sentido do ser. Enquanto Ser e tempo se resume em 
umaanalítica existencial sobre aquele ente (o homem) que 
se propõe a pergunta sobre o sentido do ser, os escritos 
de 1930 em diante abandonam a proposição originária: 
não se trata mais de analisar aquele ente que procura 
caminhos de acesso ao ser, mas sim o próprio ser e sua 
auto revelação. E aqui, precisamente, reside a 
“reviravolta” do pensamento de Heidegger, que, no 
segundo período de sua filosofia, prescinde da 
existência, que se torna uma determinação não essencial 
do ser. Escreve ele: “A história do ser rege e determina 
toda condição e situação humana”. 
 
O ser-aí e a analítica existencial 
 
A intenção da obra Ser e tempo, diz Heidegger, é 
“a elaboração concreta do problema do sentido do ser”. 
Entretanto, o problema do sentido do ser propõe 
imediatamente a interrogação: “A respeito de qual ente 
deve ser compreendido o sentido do ser?” 
Pois bem, prossegue Heidegger, se o problema 
do ser deve ser proposto explicitamente em toda a sua 
transparecia, então [...] torna-se necessário evidenciar as 
maneiras de penetração no ser, de compreensão e de 
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posse conceitual de seu sentido, bem como a solução 
da possibilidade de escolha correta do ente exemplar e 
a indicação do caminho autêntico de acesso a esse ente. 
Penetração, compreensão, solução, escolha, acesso - 
são momentos constitutivos da busca e, ao mesmo 
tempo, modos de ser de determinado ente, mais 
precisamente daquele ente que, nós que o buscamos, já 
somos. 
Por tudo isso, a elaboração do problema do ser 
significa, portanto, o tornar-se transparente de um ente, 
pôr aquele que busca em seu ser. E nisso consiste a 
analítica existencial. 
O homem, portanto, é o ente que se propõe a 
pergunta sobre o sentido do ser. Por isso, a proposição 
correta do problema do sentido do ser requer uma 
explicitação preliminar daquele ente que se propõe a 
pergunta sobre o sentido do ser: e “esse ente, que nós 
mesmos já somos sempre, e que tem, entre as outras 
possibilidades de ser, a de buscar, nós o indicamos com 
o termo Ser-aí (Dasein, em alemão)”. 
Considerado em seu modo de ser, o homem é 
precisamente Da-sein, ou seja, Ser-aí. E o “da” (aí) indica 
o fato de que o homem está sempre em uma situação, 
lançado nela e em relação ativa com ela. O Ser-aí, isto 
é, o homem, não é somente aquele ente que propõe a 
pergunta sobre o sentido do ser, mas é também aquele 
ente que não se deixa reduzir à noção de ser aceita pela 
filosofia ocidental, que identifica o ser com a 
objetividade, ou seja, como diz Heidegger, com a 
simples-presença. 
As coisas são certamente diversas uma da outra, 
mas todas são objetos colocados diante de mim: e nesse 
seu estar presente a filosofia ocidental viu o ser. 
Mas o homem não pode se reduzir a objeto 
puro e simples no mundo; o Ser-aí jamais é uma 
simples-presença, uma vez que ele é precisamente 
aquele ente para o qual as coisas estão presentes. 
O modo de ser do Ser-aí é a existência: “A 
'natureza', a 'essência' do Ser-aí consiste em sua 
existência”. A essência da existência é dada pela 
possibilidade, que não é possibilidade lógica vazia nem 
simples contingência empírica. O ser do homem é 
sempre uma possibilidade a atuar e, consequentemente, o 
homem pode escolher-se, isto é, pode conquistar-se ou 
perder-se. 
Neste sentido, o Ser-aí (ou homem) é “o ente 
que depende de seu ser” e “a existência é decidida, no 
sentido da posse ou da ruína, somente por cada Ser-aí 
individual”. 
 
O ser-no-mundo 
 
O homem é aquele ente que se interroga sobre 
o sentido do ser. O homem não pode reduzir-se a 
simples objeto, isto é, a simples estar-presente. O modo 
de ser do homem é a existência. A existência é poder-
ser. Mas poder-ser significa projetar. Por isso, a 
existência é essencialmente transcendência, identificada 
por Heidegger com a ultrapassagem. Desse modo, para 
ele, a transcendência não é um entre os muitos possíveis 
comportamentos do homem, e sim sua constituição 
fundamental: o homem é projeto e as coisas do 
“mundo” são originariamente utensílios em função do 
projetar humano. 
Tudo isso nos introduz à tratação da 
característica fundamental do homem que Heidegger 
chama de ser-no-mundo. O homem está-no-mundo. Mas, 
como o homem é constitutivamente projeto, o mundo 
- diferentemente do que pensava Husserl - não é 
originariamente uma realidade a contemplar, e sim 
muito mais um conjunto de instrumentos “para” o 
homem, um conjunto de utensílios, ou seja, de coisas a 
utilizar, à mão, e não de coisas a contemplar como 
presentes. 
A existência é poder-ser, projeto, 
transcendência em relação ao mundo: estar-no-mundo, 
portanto, significa originariamente fazer do mundo o 
projeto das ações e dos comportamentos possíveis do 
homem. 
A transcendência institui o projeto ou esboço 
de um mundo: ela é um ato de liberdade - aliás, para 
Heidegger, é a própria liberdade. Entretanto, se é 
verdade que qualquer projeto se radica em um ato de 
liberdade, também é verdade que todo projeto limita 
imediatamente o homem que se encontra dependente 
das necessidades e limitado pelo conjunto daqueles 
utensílios que é o mundo. Estar-no-mundo, pois, 
significa para o homem cuidar das coisas necessárias a 
seus projetos, e ter a ver com uma realidade-utensílio, 
meio para sua vida e para suas ações. 
Sendo o Ser-aí constitutivamente projeto, o 
mundo existe como conjunto de coisas utilizáveis: o 
mundo vem a ser graças a seu ser utilizável. O ser das 
coisas equivale ao seu ser utilizadas pelo homem. O homem, 
portanto, não é um espectador do grande teatro do 
mundo: o homem está no mundo, envolvido nele, em 
suas vicissitudes. E transformando o mundo, ele forma 
e se transforma a si mesmo. 
A atitude teórica e contemplativa do espectador 
desinteressado (na qual Husserl tanto insistira, bem 
como a tradição filosófica ocidental em geral) é 
somente um aspecto da mais ampla e geral 
utilizabilidade das coisas. As coisas são sempre 
instrumentos: se for conveniente, poderão ser vistas 
como instrumentos que satisfazem um prazer estético; 
mas, se o consideramos útil, poderão ser vistas 
“objetivamente”, isto é, cientificamente, tendo como 
fundo um projeto total. 
O homem compreende uma coisa quando sabe 
o que fazer dela, do mesmo modo como compreende a 
si mesmo quando sabe o que pode fazer consigo, isto é, 
quando sabe o que pode ser. 
 
 
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19 
O ser-com-os-outros 
 
Se o ser-no-mundo é um existencial, também o 
ser-com-os-outros é um existencial. Não há “um sujeito 
sem mundo” e, ao mesmo tempo, não existe “um eu 
isolado sem os outros”. Os outros não são inferidos 
como outros “eus”; eles são dados, ao invés, como 
outros “eus”, desde a origem. Sendo a existência 
constitutivamente abertura, desde a origem os outros 
“eus”, como tais, participam do mesmo mundo no qual 
eu vivo. 
Por outro lado, assim como o ser-no-mundo do 
homem se expressa pelo cuidar das coisas, do mesmo 
modo o seu ser-com-os-outros se expressa pelo cuidar 
dos outros, coisa que constitui a estrutura basilar de toda 
possível relação entre os homens. E o cuidar dos outros 
pode tomar duas direções: na primeira, procura-se 
subtrair os outros de seus cuidados; na segunda, 
procura-se ajudá-los a conquistar a liberdade de assumir 
seus próprios cuidados. No primeiro caso, temos um 
simples “estar junto” e estamos diante de uma forma 
inautêntica de coexistência; no segundo caso, ao 
contrário, temos um autêntico “coexistir”. 
 
O ser-para-a-morte, existência inautêntica e 
existência autêntica 
 
O Ser-aí é e tem de ser; isto é, o homem se 
encontra sempre em uma situação e enfrenta essa 
situaçãograças a seu projetar. Mas, quando volta seus 
“cuidados” para o plano “ôntico” ou “existentivo”, isto 
é, ao plano dos entes em sua factualidade, o homem 
permanece na existência inautêntica. Nesta, o homem 
manipula as coisas, utiliza-as e estabelece relações 
sociais com outros homens. Todos esses projetos, 
porém, em uma espécie de vertigem, atiram o homem 
para o nível dos fatos. A utilização das coisas se 
transforma em fim em si mesma. A linguagem se 
transforma então no palavrório da existência anônima 
subjacente ao axioma “as coisas são assim porque assim 
se diz”. 
Essa existência anônima procura encher o vazio 
que a caracteriza, recorrendo continuamente ao novo: 
ela se afoga na curiosidade. E, por fim, além do palavrório 
e da curiosidade, a terceira característica da existência 
inautêntica é o equívoco: a individualidade das situações, 
em uma existência devorada pelo palavrório e pela 
curiosidade, desvanece na neblina do equívoco. A 
existência inautêntica é existência anônima: é a 
existência do “se diz” e do “se faz”. 
A análise existencial revela que a existência 
anônima é um poder ser constitutivo do homem. E, 
segundo Heidegger, o que se encontra na base desse 
poder-ser é a dejeção, ou seja, a queda do homem no 
plano das coisas do mundo. Entretanto, existe a voz da 
consciência, que chama à existência, quando então nós 
colocamos não mais no plano “ôntico” ou 
“existentivo”, e sim no plano “ontológico” ou 
“existencial”, procurando o sentido do ser dos entes, 
isto é, o sentido do seu existir. 
A voz da consciência traz de novo o homem 
envolvido pelos cuidados para diante de si mesmo, 
remetendo-o a questão do que ele é no mais profundo 
o seu ser e que não pode ocultar. Como já sabemos, a 
existência é poder-ser; e é nesse poder-ser que se baseia 
o projetar ou transcender do homem. Mas todo projetar 
leva o homem ao nível das coisas e do mundo. 
Tudo isso quer dizer que os projetos e as 
escolhas do homem, no fundo, são todos equivalentes: 
posso dedicar minha vida ao trabalho, ao estudo, a 
riqueza ou a qualquer outra coisa, mas posso ser 
homem seja escolhendo uma possibilidade, seja 
escolhendo outra. E por essa razão que, considerando 
como última e decisiva uma dessas escolhas ou 
possibilidades, o homem se decide por e se dispersa em 
uma existência inautêntica. 
Entretanto, entre as várias possibilidades, há 
uma diferente das outras, à qual o homem não pode 
escapar: trata-se da morte. Posso decidir dedicar minha 
vida a um objetivo ou a outro, posso escolher uma 
profissão ou outra, mas não posso deixar de morrer. E 
então, quando a morte se torna realidade, não há mais 
existência. Isso nos faz entender que, enquanto há o 
existente, a morte é possibilidade permanente, e essa é 
a possibilidade de que todas as outras possibilidades se 
tornem impossíveis. 
Diz Heidegger: “Enquanto possibilidade, a 
morte não dá ao homem nada a realizar”. Ela é a 
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20 
possibilidade da impossibilidade de todo projeto e, com 
isso, de toda existência: com efeito, com a morte, não 
há outras possibilidades a escolher nem novos projetos 
a realizar. 
A voz da consciência, por conseguinte, nos 
remete ao sentido da morte e revela a nulidade de todo 
projeto: na perspectiva da morte, todas as situações 
singulares aparecem como possibilidades que podem se 
tornar impossíveis. Desse modo, a morte impede que 
alguém se fixe em uma situação, mostra a nulidade de 
todo projeto e funda a historicidade da existência. 
A existência autentica, portanto, é um ser-para-
a-morte. Somente compreendendo a impossibilidade da 
morte como possibilidade da existência, e somente 
assumindo essa possibilidade com decisão antecipada, 
o homem encontra seu ser autêntico. 
 
A coragem diante da angústia 
 
O “viver para a morte” constitui, portanto, o 
sentido autêntico da existência. O “viver-para-a-morte” 
nos afasta do estar submerso nos fatos e nas 
circunstâncias. A antecipação da morte (que não 
significa de modo algum realiza-la pelo suicídio) dá 
sentido ao ser dos entes, mediante a experiência do seu 
nada possível. 
Essa experiência, no entanto, não se tem por 
obra de ato intelectivo, e sim, muito mais, por meio do 
sentimento especifico que é a angústia: “O ser-para-a-
morte é essencialmente angústia”. A angústia põe o 
homem diante do nada, do nada de sentido, isto é, do 
não-sentido dos projetos humanos e da própria 
existência. 
Existir autenticamente implica ter a coragem de 
olhar de frente a possibilidade do próprio não-ser, de 
sentir a angústia do ser-para-a-morte. A existência 
autentica, por conseguinte, significa a aceitação da 
própria finitude. E é a essa aceitação que nos conclama 
a voz da consciência: a aceitação da nossa própria 
finitude e negatividade. 
A existência inautêntica e anônima, ao 
contrário, tem medo da angústia diante da morte, de 
modo que, para escapar a angústia, a existência anônima 
ocupa-se muito com as coisas e afunda no reino do se 
(man): “a existência anônima e banal não tem a coragem 
da angústia diante da morte”. E isso pode ser visto no 
fato de que a existência anônima banaliza a angústia no 
medo: “o medo é uma angústia que decaiu ao nível do 
mundo, inautêntica e oculta para si mesma como 
angústia”. Sempre se tem medo de alguma coisa; ao 
passo que nos angustiamos por nada: na angústia está 
presente o nada, com seu poder de aniquilação. 
 
O tempo 
 
Dado que a existência é possibilidade e projeto, 
escreve Heidegger em Ser e tempo, entre as 
determinações do tempo (passado, presente e futuro) a 
fundamental é o futuro: “O projetar-se-adiante para o 
'em-vista-de-si-mesmo', projetar-se que se baseia no 
futuro, é característica essencial da existencialidade. Seu 
sentido primário é o futuro”. 
Entretanto, o cuidado, que antecipa as 
possibilidades, surge do passado e o implica. E entre 
passado e futuro estão o ocupar-se com as coisas que é 
o presente. Essas três determinações do tempo 
encontram seu significado em seu ser “fora de si”: o 
futuro é um pretender-se, o presente é estar preso as 
coisas e o passado é retornar à situação de fato para 
aceitá-la. 
Essa é a razão pela qual Heidegger chama os 
três momentos do tempo de êxtase, entendido em seu 
sentido etimológico de “estar fora”. 
Em todo caso, as três determinações do tempo 
mudam com base no fato de se tratar de tempo 
autêntico ou de tempo inautêntico, sendo o tempo 
autêntico o da existência autentica e o tempo 
inautêntico tipificado pela preocupação com o sucesso, 
é a atenção para com o êxito; ao passo que na existência 
autentica, que assume a morte como possibilidade que 
qualifica a existência, o futuro é um viver para a morte 
que não permite ao homem ser envolvido pelas 
possibilidades mundanas. 
E se o passado autêntico é o não aceitar 
passivamente a tradição, mas confiar nas possibilidades 
que a tradição nos oferece e reviver a possibilidade do 
homem que já foi, o presente autêntico é o instante, em 
que o homem repudia o presente inautêntico (onde o 
homem é absorvido sem descanso pelas coisas a fazer) 
e decide seu destino. 
Dessa análise do tempo, entre outras coisas, 
derivam algumas consequências importantes no 
pensamento de Heidegger: 
1) Os significados do tempo usados no 
pensamento comum e na ciência (a databilidade e a 
medida científica do tempo) constituem tempo 
inautêntico, já que remetem à existência lançada entre 
as coisas do mundo. 
2) A existência autentica é a existência 
angustiada, que vê a insignificância de todos os projetos 
e fins do homem. Essa insignificância torna todos os 
projetos equivalentes. Pondo o homem diante da 
equivalente nulidade dos fins, a angústia dá ao indivíduo 
a possibilidade de aceitar o próprio tempo e a ele 
permanecer fiel, ou seja, assumir como próprio o 
destino da comunidade humanaa qual pertence, em 
uma espécie de amor fati. 
Em outros termos, o homem que vive 
autenticamente continua a viver a vida, por assim dizer, 
banal de seu tempo e de seu povo, mas a vive com todo 
aquele afastamento próprio de quem, com a experiência 
antecipadora da morte, teve a revelação do nada dos 
projetos humanos e da existência humana. 
 
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21 
A metafísica ocidental como “esquecimento do 
ser” 
 
A tarefa declarada de Ser e tempo é a de 
determinar o sentido do Ser. Entretanto, essa 
interrogação - que se desdobrou na analítica existencial, 
ou seja, na análise das estruturas da existência - teve 
como resultado o de que o sentido do ser não pode ser 
obtido pela interrogação de um ente. 
A análise da existência mostra que a existência 
autentica é o nada de todo projeto e o nada da própria 
existência. A análise do Ser-aí, isto é, daquele ente 
privilegiado que se propõe a pergunta sobre o sentido 
do ser, não revela o sentido do Ser, e sim o nada da 
existência. 
Essas considerações são explicitadas por 
Heidegger em sua Introdução à metafisica (1953), que se 
apresenta como crítica radical da metafísica clássica. 
De Aristóteles a Hegel e ao próprio Nietzsche, 
a metafísica clássica fez o que a analítica existencial 
mostrou ser impossível: procurou o sentido do Ser 
indagando os entes. 
A metafísica identificou o ser com a 
objetividade, isto é, com a simples presença dos entes. 
Desse modo, ela não é metafísica, senão “física” 
absorvida pelas coisas, que esqueceu o ser e que, aliás, 
leva ao esquecimento desse esquecimento. 
Heidegger diz que Platão foi o primeiro 
responsável pela degradação da metafísica a física. Os 
primeiros filósofos (Anaximandro, Parmênides, 
Heráclito) conceberam a verdade como um desvelar-se 
do Ser, como provaria o sentido etimológico de alétheia, 
onde lantháno (velar) é precedido do alfa privativo. 
Entretanto, Platão rejeitou a verdade como “não-
ocultamento” do Ser e subverteu a relação entre Ser e 
verdade, baseando o Ser na verdade, no sentido de que 
a verdade estaria no pensamento que julga e estabelece 
relações entre os próprios “conteúdos” ou “ideias”, e 
não no ser que se desvela ao pensamento. Desse modo, 
o ser deveria se finalizar e relativizar para a mente 
humana, aliás, para a linguagem dela. 
 
A linguagem da poesia como linguagem do ser 
 
Entretanto, o patrimônio de palavras, de regras 
lógicas, gramaticais e sintáticas, que é a linguagem, 
estabelece limites intransponíveis ao que podemos 
dizer. 
A linguagem do homem pode falar dos entes, 
mas não do ser. Por isso, a revelação do ser não pode ser 
obra de um ente, ainda que privilegiado como o Ser-aí, 
mas só pode se dar através da iniciativa do próprio ser. 
Aí reside a “reviravolta” do pensamento de Heidegger. 
O homem não pode desvelar o sentido do Ser. 
Ele deve ser o pastor do Ser e não o senhor do ente. E 
sua dignidade “consiste em ser chamado pelo próprio 
Ser para ser o guarda de sua verdade”. Por isso, é preciso 
levar a filosofia de sua deformação “humanista” até o 
“mistério” do Ser, a seu desvelar-se originário. Mas 
onde ocorre esse desvelar-se do Ser? Diz Heidegger que 
o ser se desvela na linguagem, não na linguagem 
científica própria dos entes, ou na linguagem 
inautêntica do palavrório, e sim na linguagem autentica 
da poesia. 
Escreve ele na Carta sobre o humanismo: “A 
linguagem é a casa do ser. E nessa morada habita o 
homem. Os pensadores são os guardiões dessa 
morada”. Na forma autoral da poesia, a palavra tinha 
caráter “sacral”: língua originária, a poesia deu nomes 
às coisas e fundou o Ser. 
Essa fundação do Ser, porém, especificada por 
Heidegger em Holderlin e a essência da poesia (1937), não é 
obra do homem, e sim dom do Ser. Na linguagem do 
poeta, não é o homem que fala, e sim a própria 
linguagem - e, nela, o Ser. Consequentemente, a justa 
atitude do homem em relação ao ser é a do silêncio para 
ouvi-lo; o abandono ao Ser é o único comportamento 
correto. O homem deve, portanto, tornar-se livre para 
a verdade, concebida como desvelamento do Ser. E, 
assim, liberdade e verdade se identificam. E, como a 
verdade, também a liberdade é dom do Ser ao homem, 
uma iniciativa do Ser. 
 
A técnica e o mundo ocidental 
 
São, portanto, os “pensadores essenciais” 
(como Anaximandro, Parmênides, Heráclito e 
Holderlin) as testemunhas ou os ouvintes da voz do Ser, 
e não a metafísica ocidental. O senhor do ente não é o 
pastor do Ser. Mas o homem ocidental, precisamente 
por força daquela “física” que pretendia ser 
“metafísica”, transformou-se em senhor do ente. 
A reviravolta operada por Platão no conceito de 
verdade e, com isso, no destino da metafísica, explica o 
destino do Ocidente e o primado da técnica no mundo 
moderno. 
A técnica não é instrumento neutro nas mãos 
do homem, que pode usá-la para o bem ou para o mal, 
nem constitui acontecimento acidental no Ocidente. 
Para Heidegger, a realidade é que a técnica é o resultado 
natural daquele desenvolvimento pelo qual, esquecendo 
o Ser, o homem se deixou arrastar pelas coisas, 
tornando a realidade puro objeto a dominar e a 
desfrutar. E esse comportamento, que não se deterá 
sequer quando chega, como acontece hoje, a ameaçar 
as bases da própria vida, é comportamento que se 
tornou onívoro; trata-se de uma fé, a fé na técnica como 
domínio sobre tudo. 
 
4. HANNA ARENDT 
 
 Hannah Arendt nasce de família judaica em 
Hannover, dia 14 de outubro de 1906. Entre 1924 e 
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22 
1929 foi estudante universitária em Marburg e em 
Freiburg na Brisgóvia, e sucessivamente em Heidelberg. 
Frequentou os cursos 
de literatura grega, teologia e 
filosofia. Laureou-se em 1928, 
apresentando uma dissertação 
sobre santo Agostinho. 
Em 1933 abandonou a 
Alemanha nazista e se refugiou 
em Paris, onde entrou em 
contato com os pensadores 
mais conhecidos da época. 
Na França foi ativa na organização para a 
emigração na Palestina das crianças judias. Foi presa em 
1940, mas conseguiu fugir, e em 1941 foi para os 
Estados Unidos. Escreveu muito e em diversas revistas. 
Ensinou em numerosas Universidades, entre as quais 
Berkeley, Princeton, Columbia. 
Em 1967 foi nomeada professora de filosofia 
política na New School for Social Research em Nova 
York, a “filial americana no exilio”, por assim dizer, da 
Escola de Frankfurt. 
Morreu em Nova York dia 4 de dezembro de 
1975. Sua influência sobre a cultura europeia, assim 
como sobre a americana, foi e ainda é muito forte. 
 
Uma filosofia em defesa da liberdade 
 
Sua obra mais conhecida em 1951; trata-se de 
As origens do totalitarismo. De 1958 é o livro A condição 
humana. Em 1963 Arendt publica aquele que se tornou 
seu livro mais conhecido: Eichmann em Jerusalem: Um 
relato sobre a banalidade do mal. Este é um livro sobre o 
processo que teve lugar em Jerusalém, e que viu como 
imputado um dos máximos responsáveis pelo 
Holocausto. 
Foi a publicação dos Pentagon Papers - os 
quarenta e seis volumes da História do processo decisional 
americano sobre a política no Vietnam - que, segundo 
Arendt, fez com que "o famoso vazio de credibilidade, 
que nos acompanhou por seis longos anos, tenha 
improvisamente se aberto tanto a ponto de se tornar 
um abismo [...]. O ponto crucial [...] não é apenas que a 
política da mentira quase nunca haja se voltado contra 
o inimigo [...], mas também que estava destinada 
principalmente, senão exclusivamente, ao consumo 
interno, à propaganda nacional, e tinha em particular a 
finalidade de enganar o Congresso”. 
Adversária irredutível dos regimes totalitários, 
Hannah Arendt foi fustigadoraimplacável das carências 
e tortuosidades das sociedades democráticas; atenta 
para captar o novo, mas sem a ele sucumbir, viu com 
bons olhos as lutas dos estudantes, principalmente 
pelos direitos civis. Postumamente foi publicado o 
volume incompleto A vida da mente. 
 
 
Anti-semitismo, imperialismo e totalitarismo 
 
As origens do totalitarismo é uma obra que divide-
se em três partes: 
1) O antissemitismo; 
2) O imperialismo; 
3) O totalitarismo. 
Escreve Arendt: “O antissemitismo (não o 
simples ódio contra os judeus), o imperialismo (não a 
simples conquista), o totalitarismo (não a simples 
ditadura) demonstraram, um depois do outro, um mais 
brutalmente que o outro, que a dignidade humana tem 
necessidade de nova garantia, que se pode encontrar 
apenas em um novo princípio político, em nova lei 
sobre a terra, destinada a valer para toda a 
humanidade”. 
Em primeiro lugar, todavia, é preciso 
compreender; e compreender “significa [...] examinar e 
carregar conscientemente o fardo que nosso século nos 
colocou sobre as costas, não negar sua existência, não 
nos submeter supinamente a seu peso”. 
Arendt quer compreender como o 
antissemitismo “tenha podido se tornar o catalisador, 
primeiro do movimento nazista, depois de uma guerra 
mundial, e por fim da criação da fábrica da morte”. 
Fundamental é compreender, além disso, que os 
regimes totalitários baseiam sua política sobre a ideia de 
alcançar o fim último, que é “a conquista do mundo”; e 
tal fim os totalitaristas “jamais o perdem de vista, por 
mais remoto que possa parecer, e por mais gravemente 
que suas exigências 'ideais' possam contrastar com a 
necessidade do momento". 
Justamente por isso - afirma Arendt – “eles não 
consideram [...] nenhum país como perpetuamente 
estrangeiro, mas, ao contrário, todo país como um 
potencial território seu”. E da “questão judaica” 
serviram-se os nazistas para seu escopo: “Obrigando-os 
[os judeus] a deixar o Reich sem passaporte e sem 
dinheiro, se traduzia na realidade a lenda do hebreu 
errante; e obrigando-os a assumir um comportamento 
de hostilidade intransigente contra o Terceiro Reich, os 
nazistas providenciavam o pretexto para imiscuir-se nos 
assuntos internos de qualquer país estrangeiro”. 
Mais em profundidade e mais em particular, 
Arendt faz ver que os campos de concentração e de 
extermínio servem para o regime totalitário como 
laboratórios para a verificação de sua pretensão de 
domínio absoluto sobre o homem [...]. O domínio total, 
que visa a organizar os homens em sua infinita 
pluralidade e diversidade como se todos juntos 
constituíssem único indivíduo, é possível apenas se cada 
pessoa for reduzida a imutável identidade de reações, de 
modo que cada um destes feixes de reações: possa ser 
trocado com qualquer outro. É assim - afirma Arendt - 
que o totalitarismo procura fabricar algo que não existe, 
isto é, um tipo humano semelhante aos animais, cuja 
única “liberdade” consistiria em “preservar a espécie”. 
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23 
E chega-se a esse inferno (propagandeado 
como o paraíso) tanto com a doutrinação das elites como 
com o terror dos campos de concentração, que 
“servem, além de ao extermínio e à degradação dos 
indivíduos, para realizar o horrendo experimento de 
eliminar, em condições cientificamente controladas, a 
própria espontaneidade como expressão do 
comportamento humano e de transformar o homem 
em um objeto, em algo que nem sequer os animais são”. 
A Alemanha de Hitler e a Rússia de Stalin 
quiseram tornar “supérfluos os homens”. E por trás de 
tudo isso encontra-se, justamente, a ideologia totalitária: 
ela exige a punição sem o reato, o desfrutamento sem o 
proveito e o trabalho sem o produto; é a justificação de 
uma sociedade que é “um lugar onde quotidianamente 
se cria a insensatez”. 
 
A ação como atividade política por excelência 
 
Contra as ideologias que reduzem o homem a 
objeto, esmagando-o sob as atrocidades das torturas, e 
contra as ideologias que, como o materialismo 
histórico, o aniquilam nos abismos do determinismo e 
do fatalismo, Arendt vê o homem como fonte 
espontânea de livres iniciativas, como início de ações 
criativas. 
Em A condição humana ela escreve: “Com o 
termo vita activa, proponho designar três atividades 
humanas fundamentais: a atividade trabalhadora, o 
operar e o agir”. 
A atividade trabalhadora “corresponde ao 
desenvolvimento biológico do corpo humano [...] e 
assegura não só a sobrevivência individual, mas também 
a vida da espécie. O operar é a práxis não absorvida pelo 
ciclo vital e que produz um “mundo artificial” de coisas, 
“claramente distinto do ambiente natural”. A ação - 
afirma Arendt - é “a única atividade que põe em relação 
direta os homens sem a mediação de coisas materiais [e] 
corresponde à condição humana da pluralidade, ao fato 
de que mais homens, e não o homem, vivem sobre a 
terra”. 
São sempre os homens individuais que agem; a 
ação e interação: “viver” e “estar entre os homens” 
eram sinônimos para os romanos - lembra Arendt -, e 
para eles os sinônimos eram “morrer” e “deixar de estar 
entre os homens”. 
A ação significa iniciativa, nascimento ou início 
de algo de novo, e “uma vez que a ação é a atividade 
política por excelência, a natalidade, e não a 
mortalidade, pode ser a categoria central do 
pensamento político enquanto se distingue do 
pensamento metafisico”. 
E é a ação - salienta Arendt - que cria e conserva 
os organismos políticos, e deste modo ela permite a 
lembrança, isto é, a história. A ação, além disso, desloca 
a vida do indivíduo sobre o lado público. Sem dúvida há 
coisas “que não podem suportar a luz violenta e 
implacável da presença constante de outros sobre a 
cena pública” - pensemos no amor: “o amor, 
diferentemente da amizade, morre, ou melhor, apaga-se 
no momento em que aparece em público”. 
Todavia, Arendt insiste sobre o fato de que a 
verdade não encontra sua sede na profundidade íntima 
do homem; a verdade é antes um fato público fruto não 
de introspecção, ou de vida contemplativa, e sim de vita 
activa, e “como nossa sensibilidade em relação a 
realidade se funda sobretudo sobre a aparência, e portanto 
sobre a existência de um domínio público em que as coisas podem 
emergir da existência latente, também o lusco-fusco que ilumina 
nossas vidas privadas e íntimas deriva em última análise da luz 
muito mais forte do domínio público”. 
 
5. JEAN PAUL SARTRE 
 
Testemunha atenta e arguta de nosso tempo, 
Jean-Paul Sartre, nascido em Paris em 1905, realizou 
seus estudos na Escola Normal Superior e ensinou 
filosofia nos liceus de Le Havre e Paris até o início da 
última guerra, exceto em um período que passou em 
Berlim (1933-1934), onde estudou a fenomenologia e 
escreveu A transcendência do Ego. 
Convocado para o serviço militar, foi 
aprisionado pelos alemães e levado para a Alemanha. 
Voltando logo depois para a França, fundou o grupo de 
resistência intelectual “Socialismo e Liberdade”, 
juntamente com Merleau-Ponty. 
No imediato pós-guerra, seu pensamento se 
impõe ao público mundial durante cerca de duas 
décadas (graças sobretudo a seu “teatro de situações”), 
influindo amplamente na sociedade e nos costumes. 
Nas últimas duas décadas de sua vida, Sartre não 
teve descanso: as viagens políticas (como a viagem a 
Cuba, onde encontrou Fidel Castro e Che Guevara, e a 
viagem a Moscou, onde foi recebido por Kruschev) não 
lhe impediram o frenético trabalho de filósofo, 
romancista, ensaísta, dramaturgo, conferencista e 
roteirista cinematográfico. Sartre morreu em 1980. 
Sua obra é bastante extensa e variada: 
1 - Romances 
a) A náusea (1938); 
b) A idade da razão (1945); 
c) O adiamento (1945); 
d) A morte na alma (1949); 
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24 
2 - Escritos para o teatro 
a) As moscas (1943); 
b) A portas fechadas (1945); 
c) A prostituta respeitosa (1946); 
d) Mãos sujas (1948); 
e) O diabo e o bom Deus (1951); 
f) Nekrassov (1956); 
g) Os sequestrados de Altona (1960). 
 
3 - Panfletos políticos 
a) O antissemitismo (1946); 
b) Os comunistas e a paz, (1952); 
 
4 - Obras filosóficas 
a) O ser e o nada. Ensaio de uma ontologia 
fenomenológica, (1943); 
b) A transcendência do Ego (1936); 
c) A imaginação (1936); 
d) Ensaio de uma teoria das emoções (1939); 
e) O imaginário. Psicologia fenomenológica da 
imaginação (1940). 
f) O existencialismo é um humanismo (1946); 
g) Crítica da razão dialética (1960). 
 
A náusea diante da gratuidade das coisas 
 
Sartre iniciou sua atividade de pensador com 
análises de psicologia fenomenológica relativas ao eu, a 
imaginação e as emoções. Retoma de Husserl a ideia de 
intencionalidade da consciência, censurando-o, porém, 
por ter caído no idealismo e no solipsismo com o seu 
sujeito transcendental. 
Em A transcendência do Ego, Sartre afirma que “o 
eu não é um habitante da consciência”, pois ele “não 
está na consciência, mas fora dela, no mundo: é um ente 
do mundo como o eu de outro”. 
O homem, diz Sartre, é o ser cujo aparecimento 
faz com que exista um mundo. O mundo não é a 
consciência. A consciência é abertura para o mundo; a 
consciência está encarnada na densa realidade do 
universo; o mundo pode ser visto como um conjunto 
de utensílios. Mas o mundo não é a existência. E 
quando o homem não tem mais objetivos, o mundo fica 
privado de sentido. 
Essa é a tese expressa por Sartre em A náusea, 
na qual o autor opõe o absurdo aos valores positivos da 
filosofia clássica. O herói do romance é Antoine 
Roquentin, que, refletindo sobre as razões de sua 
própria existência e do mundo que o circunda, tem a 
experiência reveladora da náusea. 
A náusea é o sentimento que nos invade quando 
descobrimos a contingência essencial e o absurdo do 
real. E Roquentin põe essa descoberta nas seguintes 
palavras: “O essencial é a contingência. Quero dizer 
que, por definição, a existência não é a necessidade. 
Existir é estar ali, simplesmente; os seres aparecem, se 
deixam encontrar, mas nunca se pode deduzi-los [...]. 
Não há nenhum ser necessário que possa explicar a 
existência: a contingência não é falsa fisionomia, 
aparência que pode se dissipar; é o absoluto e, por 
conseguinte, a perfeita gratuidade”. 
É a essa tese que Sartre queria chegar: “Tudo é 
gratuito: este jardim, esta cidade, eu mesmo. E quando 
acontece de nos darmos conta disso, nosso estômago 
se revira e tudo se põe a flutuar [. . .] eis a náusea”. 
A vida de Roquentin torna-se privada de 
sentido; nenhum objetivo consegue mais orientá-la; ele 
existe como uma coisa, como todas as coisas que 
emergem, na experiência da náusea, em sua gratuidade 
e em seu absurdo: um sujeito sem sentido cancela de 
repente o sentido de todas as coisas e passam a faltar 
instruções para seu uso. A náusea de Sartre não está 
longe da angústia de Heidegger. 
 
O “em si”, e o “para-si”, o “ser” e o “nada” 
 
Se a experiência da náusea revela a gratuidade 
das coisas e do homem reduzido a coisa e submerso nas 
coisas, a analise desenvolvida em O ser e o nada revela, 
antes de mais nada, que a consciência é sempre 
Onisciência de algo, de algo que não é consciência. Em 
outras palavras, o exame da experiência mostra-nos que 
desde o início o ser-em-si, isto é, os objetos que 
transcendem a consciência, não são a consciência. Eu 
tenho consciência dos objetos do mundo, mas nenhum 
desses objetos é minha consciência: a consciência “é um 
nada de ser e, ao mesmo tempo, um poder nulificante, 
o nada”. 
O mundo é o “em-si”, é o dado “misturado de 
si mesmo”, “opaco a si mesmo porque cheio de si 
mesmo”, absolutamente contingente e gratuito (como 
precisamente revela a náusea). 
Diante do “em si” está a consciência, que Sartre 
denomina o “para-si”. A consciência está no mundo, no 
“ser-em-si”, mas é radicalmente diferente dele, não está 
ligada a ele. A consciência, que vem a ser a existência ou 
o homem, é, portanto, absolutamente livre. O “em si” 
é “o ser que é o que é”; a consciência não é um objeto. 
O ser é pleno e completo; a consciência é vazia de ser, 
é possibilidade - e a possibilidade não é realidade. A 
consciência é liberdade. 
Escreve Sartre em O Ser e o nada: “A liberdade 
não é um ser; ela é o ser do homem, isto é, o seu nada 
de ser”. A liberdade é constitutiva da consciência: “Eu 
estou condenado a existir para sempre além dos 
moventes e dos motivos de meu ato: estou condenado 
a ser livre”. 
Uma vez lançado à vida, o homem é 
responsável por tudo o que faz do projeto fundamental, 
isto é, da sua vida. E ninguém tem desculpas: se 
falirmos, falimos porque escolhemos a falência. 
Procurar desculpas significa estar de mé-fé: a má-fé 
apresenta o desejado como necessidade inevitável. 
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25 
O homem, portanto, se escolhe; sua liberdade 
não é condicionada; e ele pode mudar seu projeto 
fundamental a qualquer momento. E assim como a 
náusea constitui a experiência metafísica que revela a 
gratuidade e o absurdo das coisas, da mesma forma a 
angústia é a experiência metafísica do nada, isto é, da 
liberdade incondicionada. Com efeito, o homem, e só o 
homem, é “o ser para o qual todos os valores existem”. 
Todavia, estabelecido isso, não é preciso muito 
para ver que, então, “todas as atividades humanas são 
equivalentes [...] e que todas estão destinadas em 
principio à falência. No fundo, é a mesma coisa 
embriagar-se na solidão ou conduzir os povos”. 
As coisas do mundo são gratuitas, e um valor 
não é superior a outro. As coisas são desprovidas de 
sentido e fundamento, e as ações dos homens são 
desprovidas de valor. Em suma, a vida é aventura 
absurda, onde o homem se projeta continuamente além 
de si mesmo, como que para poder tornar-se Deus. 
Escreve Sartre: “O homem é o ser que projeta ser 
Deus”, mas, na realidade, ele se mostra como aquilo que 
é, “uma paixão inútil”. 
 
O “ser-para-os-outros” 
 
O homem ou “ser-para-si” é também “ser-para-
outros”. O outro não tem necessidade de ser inferido 
analogicamente a partir de mim mesmo. O outro revela-
se como outro naquelas experiências em que ele invade 
o campo de minha subjetividade e, de sujeito, me 
transforma em objeto de seu mundo. 
Em suma, o outro não é aquele que é visto por 
mim, mas muito mais aquele que me vê, aquele que se 
torna presente a mim, para além de qualquer dúvida, 
mantendo-me sob a opressão de seu olhar. 
Sartre analisa com habilidade magistral aquelas 
experiências típicas do olhar-alheio, que geralmente são 
as experiências da inferioridade, como a vergonha, o 
pudor, a timidez. Quando outro entra subitamente no 
mundo de minha consciência, minha experiência se 
modifica: não tem mais seu centro em mim, e vejo-me 
como elemento de um projeto que não é meu e não me 
pertence. 
O olhar de outro me fixa e me paralisa, ao passo 
que, quando o outro estava ausente, eu era livre, isto é, 
era sujeito e não objeto. Quando aparece o outro, 
portanto, nasce o conflito: “o conflito é o sentido 
original do ser-para-outros”. Diz ainda Sartre: “Minha 
queda original é a existência do outro”. E também faz 
uma das personagens de A portas fechadas pronunciar a 
famosa expressão: “o inferno são os outros”. 
 
O existencialismo é um humanismo 
 
Nos anos seguintes a O ser e o nada, Sartre 
atenuou sempre mais o tom desesperado de sua 
filosofia inicial, como veremos a seguir. 
A possibilidade de um sentido menos negativo 
da consciência humana já aparece no ensaio O 
existencialismo é um humanismo (1946). Nesse escrito, 
Sartre também identificao homem com sua liberdade; 
o homem não está de modo algum sujeito ao 
determinismo; sua vida não se assemelha à da planta, 
cujo futuro já está “escrito” na semente; o homem é o 
demiurgo de seu futuro. 
Em suma, o homem não é uma essência fixa: ele 
é muito mais o que projeta ser. Nele, a existência 
precede a essência. Contudo, “se, na realidade, a 
existência precede a essência, nunca será possível explicá-la 
em referência a uma natureza humana dada e não 
modificável; em outras palavras, não há determinismo; 
o homem é livre, o homem é liberdade”. 
Por outro lado, “se [...] Deus não existe, nós não 
encontramos diante de nós valores e ordens em 
condições de legitimar nossa conduta. Assim, nem atrás 
nem diante de nós, em um domínio luminoso de 
valores, temos justificações ou desculpas. Estamos sós, 
sem desculpas. É isso o que eu expresso com a 
afirmação de que o homem está condenado a ser livre. 
Condenado porque não se criou por si mesmo e, no 
entanto, livre, porque, uma vez lançado ao mundo, é 
responsável por tudo aquilo que faz”. 
A liberdade defendida por Sartre é uma 
liberdade absoluta, e a responsabilidade que ele, 
consequentemente, atribui ao homem, é total. Estas 
palavras resumem bem a convicção de fundo de Sartre: 
“O homem, sem nenhum socorro e apoio, está 
condenado a cada instante a inventar o homem [...]. O 
homem inventa o homem”. 
A liberdade é absoluta e a responsabilidade é 
total. Mas já estamos em 1946: Sartre tem atrás de si 
uma guerra terrível e a experiência da Resistência; mas, 
diante dele, está a grande questão da reconstrução. 
Todas essas coisas não passam em vão, 
deixando um trago em seu pensamento, onde se 
delineia uma moral social com base na relação entre a 
liberdade de cada um e a liberdade dos outros: “eu sou 
obrigado - escreve ele - a querer ao mesmo tempo 
minha liberdade e a liberdade dos outros, e não posso 
tomar minha liberdade como fim se não tomar 
igualmente como fim a liberdade dos outros”. 
 
Crítica da razão dialética 
 
Minha liberdade, porém, não depende somente 
da liberdade dos outros. Ela também é condicionada 
por situações precisas, com as quais os projetos 
fundamentais dos homens têm de se defrontar. É com 
base nisso que Sartre enfrenta a questão das relações 
entre seu existencialismo e o marxismo, como mostram 
vários ensaios escritos para a revista “Tempos 
modernos” (revista dirigida pelo próprio Sartre) e, 
sobretudo, a obra Crítica da razão dialética (da qual só 
apareceu a primeira parte, Teoria dos conjuntos práticos). 
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26 
Na realidade, afirma Sartre, “dizer de um 
homem o que ele é significa dizer o que ele pode, e 
reciprocamente: as condições materiais de sua 
existência circunscrevem o campo de suas 
possibilidades [...], de modo que o campo do possível é 
o objetivo em direção ao qual o agente ultrapassa sua 
situação objetiva. E esse campo, por sua vez, depende 
estritamente da realidade social e histórica”. 
Com base nisso, podemos compreender por 
que Sartre afirma firmemente aderir sem reservas à 
teoria do materialismo histórico, para a qual, como diz 
Marx, “o modo de produção da vida material domina 
em geral o desenvolvimento da vida social, política e 
intelectual”. Entretanto, se Sartre adere ao materialismo 
histórico, ele rejeita, porém, o materialismo dialético. 
Em suma, para Sartre, o marxismo não é de 
modo nenhum “o materialismo dialético, se com este se 
entende a ilusão metafísica de descobrir uma dialética 
da natureza. Essa dialética pode efetivamente existir, 
mas é preciso reconhecer que não temos a mínima 
prova disso”. 
Em suma, Sartre não aceita as três leis da 
dialética propostas por Engels como regras que 
guiariam o desenvolvimento da natureza, da história e 
do pensamento. A admissão dessas leis gerais do devir 
implicaria um otimismo ingênuo que proclamaria um 
finalismo de tipo hegeliano e, o que é ainda mais 
inadmissível, reduziria o homem a simples instrumento 
passivo da grande máquina dialética, incapaz de se 
subtrair ao mais rígido determinismo. 
A doutrina da dialética é um dogma - e o dogma 
não hesita em se opor aos fatos. É essa a razão por que, 
diante de toda experiência possível, o marxista não 
muda de opinião. O marxista transformou o marxismo 
em “saber eterno” e, desse modo, “a busca totalizadora 
deu lugar a uma escolástica da totalidade”. O princípio 
heurístico “procurai o todo através das partes” 
transformou-se em prática terrorista: “liquidar a 
particularidade”. 
Com base nessas premissas, podemos 
compreender, diz Sartre, por que o marxismo “não sabe 
mais nada: seus conceitos são impostos; seu fim não é 
mais o de adquirir conhecimentos, mas de se constituir 
a priori como saber absoluto”. 
E como o marxismo, com a teoria dialética, 
dissolveu os homens “em um banho de Ácido 
sulfúrico”, “o existencialismo pôde renascer e se manter 
porque afirmava a realidade dos homens, como 
Kierkegaard afirmava sua própria realidade contra 
Hegel”. 
 
6. MAURICE MARLEAU-PONTY: ENTRE 
EXISTENCIALISMO E FENOMENOLOGIA 
 
 Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), ensinou 
filosofia em escolas secundárias. 
Militante da Resistência durante a ocupação 
nazista, depois da guerra 
tornou-se professor na 
Sorbonne, posteriormente na 
Escola Normal e, por fim, a 
partir de 1952, tornou-se titular 
de filosofia no Callége de 
France. 
Desde a fundação, 
participou do comitê de direção 
da revista “Tempos modernos”, 
embora as suas relações com Sartre logo se tenham 
transformado em polêmica apaixonada. 
As principais obras de Merleau-Ponty são: A 
estrutura do comportamento (1942) e A fenomenologia da 
percepção (1945). Além disso, também são notáveis suas 
coletâneas de ensaios: Humanismo e terror (1947), Senso e 
contra-senso (1948), As aventuras da dialética (1955) e Sinais 
(1960). 
 
A relação “consciência” e “corpo”, e “homem” e 
“mundo” 
Merleau-Panty é um existencialista sobre o qual 
são muito acentuadas as influências tanto da 
fenomenologia como da psicologia científica e da 
biologia. 
Também para Merleau-Ponty a existência é ser-
no-mundo, isto é, “certa maneira de enfrentar o 
mundo”. Mas esse ser-no-mundo é anterior a 
contraposição entre alma e corpo, entre o psíquico e o 
físico. A interpretação causal das relações entre alma e 
corpo é rejeitada por Merleau-Ponty. Ele vê nessa 
relação muito mais uma dualidade dialética de 
comportamentos. Ou melhor: alma e corpo indicam níveis 
de comportamento do homem, dotados de significado diverso. 
Escreve Merleau-Ponty em A estrutura do 
comportamento: “Nem o psíquico em relação ao vital, nem 
o espiritual em relação ao psíquico podem ser 
considerados como substâncias ou mundos novos”. Na 
realidade, escreve ele, “trata-se de 'oposição funcional' 
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27 
que não pode ser transformada em 'oposição 
substancial' “. 
Na representação das relações entre alma e 
corpo, portanto, Merleau-Ponty não aceita “nenhum 
modelo materialista, mas também nenhum modelo 
espiritualista, como o contido na metáfora cartesiana do 
artesão e de seu utensilio. Não se pode comparar o 
órgão a um instrumento, como se ele existisse e pudesse 
ser pensado à parte de seu funcionamento integral, nem 
se pode comparar o espírito a um artesão que o use: isso 
seria recair em uma relação puramente extrínseca [...]. O 
espírito não utiliza o corpo, mas se faz por meio dele”. 
Compreende-se muito bem, por conseguinte, a 
centralidade do tema da percepção. Segundo nosso 
filósofo, todas as ciências inserem-se em um mundo 
completo e “real”, sem se dar conta de que a experiência 
perceptiva tem valor constitutivo em relaçãoa este 
mundo. Assim, encontramo-nos diante de um campo 
de percepções vividas que são anteriores ao número, à 
medida, ao espaço, à causalidade e que, porém, não se 
apresenta como visão prospectiva de objetos dotados 
de propriedades estáveis, de mundo e de espaço 
objetivos. O problema da percepção consiste em ver 
como é que, através desse campo, chega-se ao mundo 
intersubjetivo, do qual, pouco a pouco, a ciência precisa 
as determinações. 
Em tal programa de análises, torna-se central o 
conceito de corpo, já que “meu corpo (...) é meu ponto 
de vista sobre o mundo’, “o corpo é nosso meio geral 
de ter um mundo”. A percepção é a inserção do corpo 
no mundo. 
E se, por um lado, a percepção tem o caráter da 
“totalidade”, por outro lado ela permanece sempre 
“aberta”, remetendo sempre a um além de sua 
manifestação singular, prometendo-nos outros ângulos 
de visão e, com isso, “algo mais a ver”. 
Portanto, o significado das coisas no mundo e do 
próprio mundo permanece aberto ou, como diz 
Merleau-Ponty, ambíguo. E essa ambiguidade ou abertura 
é constitutiva da existência. 
 
A liberdade “condicionada” 
 
Se é errado conceber a relação entre a 
consciência e o corpo como relação causal entre duas 
substâncias, também é errado, portanto, ter uma 
concepção análoga sobre as relações entre o sujeito e o 
mundo. Mas, para Merleau-Ponty, também é errado 
conceber uma relação de causalidade entre o homem e 
a sociedade. Por isso, se Sartre está fora de rumo com 
sua ideia da liberdade absoluta, também é errada a teoria 
marxista da primazia causal do fato econômico sobre a 
constituição do homem e da sociedade. 
Na opinião de Merleau-Ponty, o homem é livre 
e não existe estrutura, como a econômica, que possa 
anular sua liberdade constitutiva. Mas a liberdade do 
homem é liberdade condicionada: condicionada pelo 
mundo em que vive e pelo passado que viveu. Assim, 
“jamais existe determinismo e jamais existe escolha 
absoluta; eu jamais sou coisa e jamais sou consciência 
nua”. A realidade é que nós escolhemos nosso mundo 
e o mundo nos escolhe. Por isso, é desviante o dilema 
que afirma que “nossa liberdade [...] ou é total ou não 
existe”. 
A liberdade existe, não porque algo me solicite, 
mas, ao contrário, porque de repente estou fora de mim 
e aberto para o mundo. Ou seja, a liberdade existe, mas 
é condicionada, porque “somos uma estrutura 
psicológica e histórica”, porque “estamos misturados 
ao mundo e aos outros em confusão inextricável". 
Nossa liberdade, portanto, não destrói a 
situação, mas nela se insere. E é por essa razão que as 
situações permanecem abertas, já que a inserção do 
homem nelas poderá configurá-las de um ou de outro 
modo, obviamente enquanto as situações o permitirem. 
E nesta dimensão a liberdade condicionada do homem 
assume um significado construtivo positivo. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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28 
FILOSOFIA ANALÍTICA 
 
 
1. BERTRAND RUSSEL 
 
Bertrand Arthur William Russell (1872-1970) 
nasceu em Ravenscroft, nas proximidades de Tintern, 
em Monmouthshire. Depois da morte precoce de seus 
pais, foi acolhido na casa de sua avó, “Lady John”, 
escocesa e presbiteriana, que defendeu os direitos dos 
irlandeses e atacou a política imperialista da Grã-
Bretanha na África. 
Russell recebeu sua educação inicial de 
preceptores particulares agnósticos, aprendeu 
perfeitamente o francês e o alemão e, na biblioteca de 
seu avô, adquiriu gosto pela história e descobriu na 
geometria de Euclides as alegrias que podem ser dadas 
pelo rigor e a clareza da matemática. 
 
Aos dezoito anos, porém, ingressou como 
aluno no Trinity College de Cambridge, que lhe revelou 
“um mundo novo”. Mais tarde, sempre no Trinity, teve 
como discípulo L. Wittgenstein, o inspirador do 
neopositivismo do Círculo de Viena e mestre 
reconhecido do movimento analítico-linguístico hoje 
conhecido como Cambridge-Oxford-Philosophy. 
Falando do encontro com Wittgenstein, Russell disse 
que representou para ele “uma das aventuras 
intelectuais mais excitantes de minha vida”. 
Posteriormente, Russell e Wittgenstein afastaram-se 
cada vez mais, até romperem completamente a 
amizade. 
No Trinity, Russell foi hegeliano. Mas em 1898, 
com a ajuda de Moore, libertou-se do idealismo. 
Escreve ele: “Em Cambridge, li Kant e Hegel, bem 
como a Lógica de Bradley, que me influenciou 
profundamente. Durante alguns anos, fui discípulo de 
Bradley, mas, em torno de 1898, mudei meus pontos de 
vista, em grande parte por causa das argumentações de 
G. E. Moore [...]. Ele assumiu a guia da rebelião, e eu o 
segui com a sensação de libertação. Bradley sustentava 
que qualquer coisa em que o senso comum crê é mera 
aparência. Nós passamos ao extremo oposto: passamos 
a pensar que é real qualquer coisa que o senso comum, 
não influenciado pela filosofia e pela religião, supõe que 
seja real. Com a sensação de escapar de uma prisão, nos 
permitimos pensar que a grama é verde, que o sol e as 
estrelas existiriam ainda que ninguém tivesse 
consciência de sua existência. E foi assim que o mundo, 
que até então fora sutil e lógico, de repente tornou-se 
rico, variado e só1ido”. 
 
O atomismo lógico 
 
Foi desse modo, portanto, que Russell se 
libertou das cadeias do idealismo e voltou a trilha do 
tradicional empirismo da filosofia inglesa. E passaria a 
contribuir para essa concepção empírica e realista da 
filosofia com toda uma longa série de livros relativos a 
vitais e difíceis questões de gnosiologia e epistemologia: 
0s problemas da filosofia (1912), Nosso conhecimento do mundo 
externo (1914), Misticismo e lógica (1918), A análise da mente 
(1921), A análise da matéria (1927) e 0 conhecimento humano: 
seu objetivo e seus limites (1948). 
Embora em um desenvolvimento que viu 
mudados alguns de seus pontos de vista, Russell sempre 
sustentou que a filosofia não pode ser fecunda se estiver 
afastada da ciência. E o Russell da década de 1960 via 
sua própria concepção do mundo como “uma 
concepção resultante da síntese de quatro ciências 
diferentes, ou seja, a física, a fisiologia, a psicologia e a 
lógica matemática”. 
Russell fixa em 1899-1900 a data fundamental 
de seu trabalho filosófico: foi nessa época que ele 
adotou “a filosofia do atomismo lógico e a técnica de 
Peano na lógica matemática [...]. A reviravolta desses 
anos representou urna revolução, ao passo que as 
mudanças posteriores tiveram o caráter de uma 
evolução”. 
O atomismo lógico pretendia ser urna filosofia 
emergente da simbiose entre um empirismo radical e 
urna lógica perspicaz. 
A lógica oferece as formas-padrão do raciocínio 
correto e o empirismo oferece premissas, que são 
proposições atômicas ou proposições complexas, 
construídas a partir das primeiras. A proposição 
atômica descreve um fato, afirma que uma coisa tem 
certa qualidade ou que determinadas coisas em certas 
relações. Um fato atômico, por seu turno, é o que torna 
verdadeira ou falsa urna proposição atômica. “Sócrates 
é ateniense” é uma proposição atômica, que expressa o 
fato de Sócrates ser cidadão ateniense. “Sócrates é 
marido de Xantipa” é outra proposição atômica. 
“Sócrates é ateniense e marido de Xantipa” é 
proposição complexa ou molecular. Veremos essas 
ideias retornarem no Tractatus logico-philosophicus, de 
L. Wittgenstein. 
Em 1903 publicou Os princípios da matemática, 
onde se propõe “a mostrar, em primeiro lugar, que toda 
a matemática procede da lógica simbólica, depois de 
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29 
descobrir, tanto quanto possível, quais são os princípios 
da própria lógica simbólica”. 
Pois bem, enquantoilustrava o primeiro 
objetivo com o livro citado, Russell pretendeu 
desenvolver o segundo com os Principia mathematica, três 
grandes volumes elaborados em colaboração com A. N. 
Whitehead, publicados respectivamente em 1910,1912 
e 1913. 
Juntamente com o alemão Gottlob Frege, ele 
considera 
a) que a matemática pode ser reduzida a um 
ramo da lógica; 
b) que “a matemática pura é a classe de todas as 
proposições da forma 'p implica q' ”; 
c) que não existem conceitos típicos da 
matemática que não possam ser reduzidos a conceitos 
lógicos (de lógica das classes) e 
d) que, com maior razão, não existem 
procedimentos de cálculo e de derivação dentro da 
matemática que não possam ser resumidos em 
derivações de caráter puramente formal. 
 
A teoria das descrições 
 
Próximo a Frege no programa logicista, Russell, 
em sua reação ao idealismo, também está de acordo 
com Frege ao sustentar o realismo platônico para os 
objetos da matemática: os números, as classes, as 
relações etc., tem existência independente do sujeito e da 
experiência. Uma relação como “Se A = B e B = C, 
então A = C” existe independentemente do sujeito que 
a pensa: existe e é sempre verdadeira. 
Entretanto, há uma questão importante sobre a 
qual, naquela época, Russell se distanciou de Frege. 
Trata-se da sua Teoria das descrições (1905). Frege fizera 
notar que expressões como “a estrela da manhã” e “a 
estrela vespertina”, embora indicando o mesmo planeta 
Vênus, dizem coisas diferentes, apresentando sentidos 
diferentes. 
Consequentemente, ele distinguira entre 
sentido e significado ou, em termos clássicos, entre 
conotação e denotação ou intensão e extensão. As 
duas expressões têm o mesmo significado ou a mesma 
denotação, ou seja, indicam o mesmo objeto, ao passo 
que o seu sentido ou conotação, isto é, o que dizem 
desse objeto, é diferente. 
Ora, Alexius Meinong também refletira sobre 
esses problemas e sobre o status de certas frases como 
“a montanha de ouro não existe” ou “o círculo 
quadrado não existe”. 
Trata-se de proposições verdadeiras que, em 
alguns casos, podem também ser úteis. Mas eis o 
problema: como pode uma proposição ser verdadeira e 
ter significado se ela se refere ao nada? Pensou-se então 
que deveria haver algum sentido em que existam tanto 
as montanhas de ouro como os círculos quadrados, isto 
é, os objetos indicados pelas expressões denotativas. Em 
suma, ainda que não existam realmente, as montanhas 
de ouro, as quimeras e os círculos quadrados devem de 
alguma forma ter algum tipo de existência se as 
expressões que os denotam são parte de enunciados que 
tem significado e são verdadeiros, como é o caso da 
afirmação “o círculo quadrado não existe”. 
Russell se rebelou contra o reino das sombras 
de Meinong. E, para evitar os becos sem saída e os 
enigmas a que tais expressões denotativas levam, 
propôs uma análise que visava a fazer desaparecer tais 
expressões, de modo que, ao invés de dizer “a 
montanha de ouro não existe”, se possa dizer que “não 
há nenhuma entidade que, ao mesmo tempo, seja de 
ouro e seja montanha”. Tal análise elimina a locução 
“uma montanha de ouro” e consequentemente elimina 
também qualquer razão de crer que o objeto por ela 
indicado tenha algum tipo de existência. 
A frase “o círculo quadrado não existe” torna-
se "jamais é verdadeiro que x seja circular, y seja 
quadrado e não seja sempre falso que x e y se 
identifiquem”. Como se vê, nas reconstruções de 
Russell desaparecem as expressões denotativas, e 
desaparecem as formas do verbo “existir” e do verbo 
“ser” em função não-copulativa. 
Exposta em 1905, essa teoria foi depois 
desenvolvida nos Principia mathematica onde Russell 
distingue entre descrições indefinidas ou ambíguas (“um 
homem”, “alguém que caminha” etc.) e descrições definidas 
(“o primeiro rei de Roman”, “o assim e assado” etc.). 
Por esse caminho, Russell pensava eliminar os 
paradoxos metafísicos da “existência” e os paradoxos 
dos não-existentes. Em suma, a teoria das descrições de 
Russell afirma essencialmente que as expressões 
denotativas são incompletas, ou seja, são incapazes de 
ter significado por si sós e se distinguem claramente dos 
nomes próprios (que, tomados isoladamente, têm 
significado). 
 
O embate contra o segundo Witgestein e a filosofia 
analítica 
 
Atento analista da linguagem, durante toda a sua 
vida Russell submeteu ao “microscópio da lógica toda 
uma série de questões filosoficamente relevantes e 
amiúde difíceis e complicadas. Mas o fez preocupado 
sempre com a relação que a linguagem deve ter com os 
fatos, se deve haver conhecimento válido. 
Naturalmente, Russell tem consciência dos 
limites do empirismo. Com efeito, o empirismo pode ser 
definido com a afirmação de que “todo conhecimento 
sintético baseia-se na experiência”. Mas esse princípio 
não se baseia na experiência. Consequentemente, o 
empirismo é uma teoria que mostra suas inadequações. 
E, no entanto, diz Russell, entre as teorias 
disponíveis, o empirismo é a teoria melhor. Contrário 
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30 
ao pragmatismo, Russell também era avesso aqueles 
neopositivistas (Neurath, Hempel e outros) que 
pareciam ter esquecido que o objetivo das palavras “é o 
de se ocupar de coisas diferentes das palavras”. 
Mas Russell reservou seus ataques mais ferozes 
ao “segundo” Wittgenstein e a filosofia da linguagem. 
Como se verá nas páginas dedicadas tanto ao 
“segundo” Wittgenstein como à filosofia analítica, as 
acusações de Russell caem substancialmente fora do 
alvo, já que a filosofia analítica preocupa-se com as 
palavras, precisamente porque a filosofia analítica está 
atenta para uma relação não enevoada ou ilusória entre 
as palavras e as coisas, ou melhor, entre as palavras e a 
vida. 
Sobre o movimento analítico em seu conjunto, 
disse Russell: “Pelo que entendi, a doutrina consiste em 
sustentar que a linguagem da vida cotidiana, com as 
palavras usadas em seu significado comum, basta para 
a filosofia, pois esta não teria necessidade de termos 
técnicos ou de mudanças de significado nos termos 
comuns. Não consigo absolutamente aceitar essa 
opinião. 
Sou contrário a ela: 
a) porque é insincera; 
b) porque é suscetível de desculpar a ignorância 
da matemática, da física e da neurologia naqueles que 
tiveram somente uma educação clássica; 
c) porque é apresentada por alguns com o tom 
de retidão cerimoniosa, como se a oposição a ela fosse 
pecado contra a democracia; 
d) porque torna esmiuçada e superficial a 
filosofia; 
e) porque torna quase inevitável a perpetuação 
entre os filósofos daquela atitude confusa que eles 
retomaram do senso comum”. 
Em suma, Russell acredita que os filósofos da 
linguagem estão praticando a mística do uso comum. E 
rejeita o fato de que os oxfordianos consideram a 
linguagem comum como o banco de prova de qualquer 
outra linguagem. Claro, na linguagem comum não 
queremos de modo algum “ficar discorrendo sobre o 
sol que surge e que cai. Mas os astrônomos acham 
melhor uma linguagem diferente, e eu sustento que uma 
linguagem diferente também é preferível m filosofia”. 
A outra acusação que Russell faz a Oxford é que 
a filosofia que nela se faz “parece urna disciplina 
desprovida de relevância e de interesse. Discutir ao 
infinito o que os tolos entendem quando dizem tolices 
pode ser divertido, mas é muito difícil que seja 
importante”. 
São duas, portanto, as acusações que Russell 
levanta contra a filosofia analítica: por um lado, ela 
praticaria o culto ao uso comum da linguagem, a 
despeito de toda linguagem técnica; por outro lado, ao 
invés de buscar o sentido das coisas e da realidade, ela 
se ocuparia de modo estéril com o sentido das palavras. 
 
A moral e o cristianismo 
 
Persuadido de que os valores não podem ser 
deduzidos logicamente do conhecimento, Russellfoi 
tenaz defensor da liberdade do indivíduo contra toda 
ditadura e contra os abusos do poder. Sensível às 
injustiças sociais, Russell também foi convicto defensor 
do pacifismo. 
Com suas dilacerações e seus sofrimentos, 
amiúde inúteis, a vida irredutível e obstinada levou 
Russell do céu da matemática a terra dos homens 
sofredores. 
Adversário das injustiças do capitalismo, Russell 
não foi menos duro em relação aos métodos do 
bolchevismo. Em Teoria e pratica do bolchevismo (1920), 
podemos ler: “O sectarismo e a crueldade mongólica de 
Lênin (com quem Russell manteve longa conversa em 
1920) gelaram-me o sangue nas veias”. Em 1952, 
Russell pediu ao governo norte-americano que fosse 
libertado Morton Sobell (acusado por Rosenberg em 
1951), que fora condenado a trinta anos de prisão por 
espionagem. Em 1954, apoiado por Einstein, 
promoveu uma campanha contra os armamentos 
atômicos. Durante a crise de Cuba, escreveu a Kennedy 
e a Kruschev duas cartas memoráveis. Alguns meses 
mais tarde, escreveu ao Izvestia para combater a 
hostilidade russa em relação aos judeus. 
Pacifista durante a Primeira Guerra Mundial, 
colocou-se do lado dos aliados na Segunda Guerra. 
Horrorizado com os crimes nazistas, criou 
posteriormente a “Fundação Atlântica da Paz” para 
despertar a consciência das massas contra a guerra dos 
Estados Unidos no Vietnã, e inspirou o “Tribunal 
Russell” para desmascarar os crimes de guerra contra o 
Vietnã. 
Pacifista coerente e desmistificador corajoso, 
Russell pagou pessoalmente por seus ideais. Foi 
processado várias vezes, esteve preso, enfrentou a 
impopularidade, foi-lhe tirada a cátedra de filosofia no 
City College de Nova Iorque. 
Russell defendeu o amor livre. Casou-se quatro 
vezes e, evidentemente, divorciou-se três. Em 1927, 
juntamente com a segunda mulher, Dora Winefred 
Black, chegou a fundar uma escola baseada em 
princípios educativos “revolucionários”: nela, rapazes e 
moças liam aquilo que quisessem, nunca eram punidos, 
tomavam banho juntos, e corriam nus pelo parque. A 
escola faliu. 
No fundo, para Russell, somente as afirmações 
tautológicas da matemática e as afirmações sintéticas 
das ciências empíricas têm sentido. E com base nesses 
fundamentos, é óbvio que caem por terra toda fé, toda 
visão metafísica do mundo e toda religião. Como todas 
as outras religiões, ele considerou o cristianismo do 
ponto de vista teórico, como um conjunto de contra-
sensos e, do ponto de vista ético, como implicando 
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31 
moral desumana e obscurantista. A respeito desse 
ponto, porém, surge a forte suspeita de que Russell não 
tenha querido reconhecer outra interpretação histórica 
do cristianismo diferente da visão imperante na 
Inglaterra, no cinzento período da época vitoriana. 
Russell dedicou sua vida a um mundo novo, no 
qual, como fazia questão de dizer, “o espirito criativo é 
vivaz, e em que a vida é uma aventura cheia de alegria e 
de esperança [...], um mundo no qual o afeto tenha livre 
trânsito, e onde a crueldade e a inveja tenham sido 
afugentadas pela felicidade e pelo desenvolvimento 
livre e solto de todos aqueles instintos que constroem a 
vida e a enchem de delicias intelectuais”. 
Russell também escreveu uma brilhante História 
da filosofia ocidental (4 vols., 1934), onde tenta mostrar 
que “Os filósofos são o resultado de seu meio social”. 
 
2. LUDWIG WITTGESTEIN 
 
 Ludwig Wittgenstein (1889-1951) nasceu em 
Viena. Encaminhado pelo pai (Karl Wittgenstein, 
fundador da indústria do aço no império dos 
Hasburgos) foi estudar engenharia. Em 1911 foi para 
Cambridge para estudar os fundamentos da 
matemática, sob a guia de Bertrand Russel. 
Em 1930 tornou-se professor no Trinity 
College, iniciando sua atividade de ensino superior. Em 
1939, sucedeu a G. E. Moore na cátedra de filosofia. 
 
As teses fundamentais 
 
O Tractatus logico-philosophicus saiu em 1921, em 
alemão e foi publicado em inglês em 1922, 
acompanhado do texto alemão, com uma introdução de 
Bertrand Russell. 
As teses fundamentais do Tractatus são as 
seguintes: 
“O mundo é tudo o que acontece”. 
“O que acontece, o fato, é a existência dos fatos 
atômicos”. 
“A representação lógica dos fatos é o 
pensamento”. 
“O pensamento é a proposição exata”. 
“A proposição é uma função de verdade das 
proposições elementares”. 
“A forma geral da função de verdade é [r, x, 
N(x)]: essa é a fórmula geral da proposição”. 
“Aquilo de que não se pode falar, deve-se calar”. 
Em uma primeira consideração, encontramos 
no Tractatus uma ontologia: “O mundo divide-se em 
fatos”. Mas o próprio fato é divisível: “Aquilo que 
acontece, o fato, é a existência de fatos atômicos”. E os 
fatos atômicos, por seu turno, são constituídos por 
objetos simples: estes são substância do mundo. “O 
fato atômico é uma combinação de objetos (entidades, 
coisas)”. “O objeto é simples”. “Os objetos constituem 
a substância do mundo. Por isso não podem ser 
compostos”. “O fixo, o consistente e o objeto são uma 
só coisa”. “O objeto é o fixo, o consistente; a 
configuração é o mutável, o instável". 
 
Realidade e linguagem 
 
À teoria da realidade corresponde a teoria da 
linguagem. Segundo o Wittgenstein do Tractatus (ou, 
como se diz, o “primeiro” Wittgenstein), a linguagem é 
uma representação projetiva da realidade. “Nós 
fazemos representações dos fatos”. “A representação é 
um modelo da realidade”. E “o que a representação 
deve ter em comum com a realidade para poder 
representá-la – exata ou falsamente -, segundo seu 
próprio modo, é a forma de representação”. Sem 
dúvida, diz Wittgenstein, “à primeira vista não parece 
que a proposição - assim como, por exemplo, a que está 
estampada no papel - seja representação da realidade de 
que trata. Mas a notação musical também não parece à 
primeira vista, representação da música, assim como 
nossa escritura fonética (ou letras) também não parece 
uma representação de nossa linguagem falada. E, no 
entanto, esses símbolos se revelam, também no sentido 
comum do termo, como representações daquilo que 
representam”. “O disco fonográfico, o pensamento 
musical, a notação, as ondas sonoras, estão todos, entre 
si, naquela relação interior representativa que se 
estabelece entre língua e mundo. O que é comum a 
todas essas coisas é a estrutura lógica (como, na fábula, 
os dois jovens, seus dois cavalos e seus lírios, que são 
todos, em certo sentido, uma só coisa)”. 
Por conseguinte, o pensamento ou proposição 
representa ou espelha projetivamente a realidade. E a 
cada elemento constitutivo do real corresponde outro 
elemento no pensamento. A realidade consta de fatos 
que se resumem em fatos atômicos, compostos por seu 
turno de objetos simples. 
Analogamente, a linguagem é formada de 
proposições complexas (moleculares), que podem ser 
divididas em proposições simples ou atômicas 
(elementares), não ulteriormente divisíveis em outras 
proposições. 
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32 
Essas proposições elementares constituem o 
correspondente dos fatos atômicos. E são combinações 
de nomes, correspondentes aos objetos: “O nome 
significa o objeto. O objeto é seu significado”. Para 
exemplificar, “Sócrates é ateniense” é uma proposição 
atômica, que descreve o fato atômico de que Sócrates é 
ateniense; já “Sócrates é ateniense e mestre de Platão” 
é proposição molecular, que reflete o fato molecular de 
que Sócrates é ateniense e mestre de Platão. 
A proposição atômica é a menor entidade 
linguística da qual se pode proclamar o verdadeiro ou o 
falso. O fato atômico é o que torna verdadeira ou falsa 
uma proposição atômica. O fato molecular é uma 
combinaçãodas próprias massas. 
Adorno diverge frontalmente dessa 
interpretação e explica que a indústria cultural é um 
sistema político e econômico que tem por 
finalidade produzir bens de cultura como filmes, 
livros, música popular, programas de TV, entre 
outros, como mercadoria e como estratégia de 
dominação social. 
Ao aspirar à integração vertical de seus 
consumidores, não apenas adapta seus produtos ao 
consumo das massas, mas, em larga medida, determina 
o próprio consumo. 
Quer dizer, as pessoas pensam estar 
consumindo o que querem quando na verdade 
estão consumindo o que o sistema quer que eles 
consumam. 
Interessada nos homens apenas enquanto 
consumidores ou empregados, a indústria cultural reduz 
a humanidade, em seu conjunto, assim como cada um 
de seus elementos, às condições que representam seus 
interesses. 
A indústria cultural traz em seu bojo todos os 
elementos característicos do mundo industrial moderno 
e nele exerce um papel específico, qual seja, o de 
portadora da ideologia dominante, a qual outorga 
sentido a todo o sistema. 
Adorno fala como a ideologia capitalista, e sua 
cúmplice, a indústria cultural contribuíram eficazmente 
para falsificar as relações entre os homens, bem como 
dos homens com a natureza, de tal forma que o 
resultado final constitui uma espécie de anti-
iluminismo. 
Considerando-se que o iluminismo tem como 
finalidade libertar os homens do medo, tornando-os 
senhores e liberando o mundo da magia e do mito, e 
admitindo-se que essa finalidade pode ser atingida por 
meio da ciência e da tecnologia, tudo levaria a crer que 
o iluminismo instauraria o poder do homem sobre a 
ciência e sobre a técnica. 
Mas ao invés disso, liberto do medo mágico, o 
homem tornou-se vítima de novo engodo: o progresso 
da dominação técnica. Esse progresso transformou-se 
em poderoso instrumento utilizado pela indústria 
cultural para conter o desenvolvimento da consciência 
das massas. 
 
https://pt.wikipedia.org/wiki/Cultura_de_massa
https://pt.wikipedia.org/wiki/Cultura_de_massa
https://pt.wikipedia.org/wiki/Massas
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4 
A indústria cultural nas palavras do próprio 
Adorno “impede a formação de indivíduos autônomos, 
independentes, capazes de julgar e de decidir 
conscientemente”. 
O próprio ócio do homem é utilizado pela 
indústria cultural com o fito de mecanizá-lo, de tal 
modo que, sob o capitalismo, em suas formas mais 
avançadas, a diversão e o lazer tornam-se um 
prolongamento do trabalho. 
Para Adorno, a diversão é buscada pelos que 
desejam esquivar-se ao processo de trabalho 
mecanizado para colocar-se, novamente, em condições 
de se submeterem a ele. 
Criando “necessidades” ao consumidor (que 
deve contentar-se com o que lhe é oferecido), a 
indústria cultural organiza-se para que ele compreenda 
sua condição de mero consumidor, ou seja, ele é apenas 
e tão-somente um objeto daquela indústria. 
Desse modo, instaura-se a dominação natural e 
ideológica. Tal dominação tem sua mola motora no 
desejo de posse constantemente renovado pelo 
progresso técnico e científico, e sabiamente controlado 
pela indústria cultural. 
Nesse sentido, o universo social, além de 
configurar-se como um universo de “coisas”, 
constituiria um espaço hermeticamente fechado. Nele, 
todas as tentativas de liberação estão condenadas ao 
fracasso. 
Contudo, Adorno não desemboca numa visão 
inteiramente pessimista, e procura mostrar que é 
possível encontrar-se uma via de salvação. Esse tema 
aparece desenvolvido em sua última obra, intitulada 
Teoria Estética. 
 
A arte como saída 
 
No livro Teoria Estética, Adorno oscila entre 
negar a possibilidade de produzir arte depois de 
Auschwitz e buscar nela refúgio ante um mundo que o 
chocava, mas que ele não podia deixar de olhar e 
denominar. 
Essa postura foi extremamente criticada pelos 
movimentos de contestação radical, que o acusavam de 
buscar refúgio na pura teoria ou na criação artística, 
esquivando-se assim da práxis política. 
A seus críticos, Adorno responde que, embora 
plausível para muitos, o argumento de que contra a 
totalidade bárbara não surtem efeito senão os meios 
bárbaros, na verdade não releva que, apesar disso, 
atinge-se um valor limite. 
A violência que há cinquenta anos podia parecer 
legítima àqueles que nutrissem a esperança abstrata e a 
ilusão de uma transformação total está, após a 
experiência do nazismo e do horror stalinista, 
inextricavelmente imbricada naquilo que deveria ser 
modificado: “ou a humanidade renuncia à violência da 
lei de talião, ou a pretendida práxis política radical 
renova o terror do passado”. 
Criticando a práxis brutal da sobrevivência, a 
obra de arte, para Adorno, apresenta-se, socialmente, 
como antítese da sociedade, cujas antinomias e 
antagonismos nela reaparecem como problemas 
internos de sua forma. 
 
2. MAX HORKHEIMER 
Em 1939, 
Horkheimer (1895-1973) 
afirma que “o fascismo é a 
verdade da sociedade 
moderna”. Mas acrescenta 
logo que quem não quer falar 
do capitalismo deve calar 
também sobre o fascismo. E 
isso porque, em sua opinião, 
o fascismo está dentro das 
leis do capitalismo: por trás da “pura lei econômica” - 
que é a lei do mercado e do lucro -, está a “pura lei do 
poder”. 
E o comunismo, que é capitalismo de Estado, 
constitui uma variante do Estado totalitário. As 
organizações proletárias de massa também constituíram 
estruturas burocráticas e, na opinião de Horkheimer, 
nunca foram além do horizonte do capitalismo de 
Estado. Aqui, o princípio do plano substituiu o do 
lucro, mas os homens continuam como objetos de 
administração, de administração centralizada e 
burocratizada. 
O lucro por um lado e o controle do plano por 
outro geraram repressão sempre maior. Portanto, o que 
estrutura a sociedade industrial é uma lógica pérfida. E 
a intenção do trabalho de Horkheimer intitulado Eclipse 
da razão. Crítica da razão instrumental (1947) é a de 
examinar o conceito de racionalidade que está na base 
da cultura industrial moderna, e procurar estabelecer se 
esse conceito não contém defeitos que o viciam de 
modo essencial. 
 
A razão instrumental 
 
 Digamos logo que, segundo Horkheimer, o 
conceito de racionalidade que está na base da civilização 
https://pt.wikipedia.org/wiki/Consumidor
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5 
industrial é podre na raiz. A doença da razão está no 
fato de que ela nasceu da necessidade humana de 
dominar a natureza. 
Essa vontade de dominar a natureza, de 
compreender suas “leis” para submetê-la, exigiu a 
instauração de uma organização burocrática e 
impessoal, que, em nome do triunfo da razão sobre a 
natureza, chegou a reduzir o homem a simples 
instrumento. 
Ao progresso dos recursos técnicos, que 
poderiam servir para “iluminar” a mente do homem, 
acompanha um processo de desumanização, de tal 
modo que o progresso ameaça destruir precisamente o 
objetivo que deveria realizar: a indica do homem. E a 
ideia do homem, isto é, sua humanidade, sua 
emancipação, seu poder de crítica e de criatividade 
acham-se ameaçados porque o desenvolvimento do 
“sistema” da civilização industrial substituiu os fins 
pelos meios e transformou a razão em instrumento para 
atingir fins, dos quais a razão não sabe mais nada. 
Em outros termos, o pensamento pode servir 
para qualquer objetivo, bom ou mau. E instrumento de 
todas as ações da sociedade, mas não deve procurar 
estabelecer as normas da vida social ou individual, que 
se supõe serem estabelecidas por outras forças. 
A razão, portanto, não nos dá mais verdades 
objetivas e universais as quais possamos nos agarrar, 
mas somente instrumentos para objetivosde fatos atômicos que torna verdadeira ou 
falsa uma proposição molecular. 
 
A parte “mística” do Tractatus 
 
São essas, em resumo, as ideias centrais do 
Tractatus. Mas Wittgenstein se dá conta de que, embora 
a ciência represente projetivamente o mundo, 
entretanto, além da ciência e do mundo, “há 
verdadeiramente o inexprimível. Mostra-se; é aquilo que 
é místico”. “O que é místico não é como o mundo é, mas 
que ele é”. 
“O sentido do mundo deve se encontrar fora 
dele. No mundo, tudo é como é, e acontece como 
acontece: nele não há nenhum valor - e, se houvesse, 
não teria nenhum valor”. 
E “nós sentimos que, ainda que todas as 
possíveis perguntas da ciência recebessem resposta, os 
problemas de nossa vida não seriam sequer arranhados. 
Sem dúvida, não resta então nenhuma pergunta - e esta 
é precisamente a resposta”. “O problema da vida 
resolve-se quando se desvanece”. Nessas afirmações 
consiste precisamente a denominada parte mística do 
Tractatus. 
 
A interpretação não neopositivistas do Tractatus 
 
Lido, discutido, pesquisado nos pressupostos e 
nos diversos núcleos teóricos, interpretado com base 
em perspectivas diversas, o Tractatus foi um dos livros 
filosóficos mais influentes do século XX. E a influência 
mais consistente foi a que exerceu sobre os 
neopositivistas, que, embora rejeitando a parte mística, 
aceitaram sua antimetafísica, retomaram a teoria da 
tautologicidade das assertivas lógicas, interpretaram as 
proposições atômicas como protocolos das ciências 
empíricas e assumiram sua ideia de que a filosofia é 
atividade clarificadora da linguagem cientifica e não 
doutrina. 
Tanto mediante a Introdução de Bertrand Russell 
ao Tractatus como mediante a interpretação dos 
neopositivistas, o Tractatus foi visto pela maior parte dos 
estudiosos como a bíblia do neopositivismo. 
Entretanto, em nossos dias, essa imagem do Tractatus 
foi justamente abandonada. 
Wittgenstein não apenas não foi membro do 
Círculo de Viena e nunca participou das suas sessões, 
mas também nunca foi neopositivista. Suas intenções 
eram bem diversas das intenções dos neopositivistas. 
Na realidade, em 1919 (portanto, três anos antes 
que M. Schlick, o fundador do Círculo de Viena, fosse 
chamado a Viena), Wittgenstein escreveu uma carta a L. 
von Ficker, com o qual estava tratando da publicação 
do Tractatus. Entre outras coisas, podemos ler nessa 
carta: “Talvez lhe seja útil que eu lhe escreva algumas 
palavras sobre o meu livro: com efeito, o senhor não 
extrairá grande coisa de sua leitura, essa é minha opinião 
exata. De fato, o senhor não o compreendera; o tema 
lhe parecerá totalmente estranho. Na realidade, porém, 
ele não lhe é estranho, já que o sentido do livro é um 
sentido ético. Certa vez, pensei em incluir no prefacio uma 
proposição, que agora de fato não está lá, mas que 
escreverei neste momento para o senhor, porque talvez 
constitua para o senhor uma chave para a compreensão 
do trabalho. Com efeito, eu queria escrever que meu 
trabalho consiste em duas partes: aquilo que escrevi e, 
além disso, tudo aquilo que não escrevi. E precisamente 
esta segunda parte é a importante [...]”. 
Ou seja, o que não está escrito, o que não é dito 
porque não é dizível cientificamente é a parte mais 
importante: a ética e a religião. E é assim que se 
reconciliam em um todo consistente a lógica e a 
“filosofia” do Tractatus com a mística do próprio 
Tractatus. 
Este era o problema de fundo de Wittgenstein: 
“Poder encontrar um método qualquer para reconciliar 
a física de Hertz e Boltzmann com a ética de 
Kierkegaard e Tolstoi”. 
Mas os neopositivistas, devido a seus interesses 
e perspectivas, não souberam ver esse problema 
profundo e condenaram como contra-senso a mística 
de Wittgenstein. 
Toda uma geração considerou Wittgenstein 
positivista, já que ele tinha em comum com os 
positivistas algo de enorme importância: traçara uma 
linha de separação entre aquilo de que se pode falar e 
aquilo que se deve calar, coisa que os positivistas 
também haviam feito. A diferença está apenas no fato 
de que eles não tinham nada sobre o que calar. O 
positivismo sustenta - e esta é sua essência - que aquilo 
de que podemos falar é tudo o que conta na vida. 
Wittgenstein, ao contrário, crê 
apaixonadamente que tudo o que conta na vida humana 
é precisamente aquilo sobre o qual, no seu modo de ver, 
devemos calar. Apesar disso, quando ele toma grande 
cuidado em delimitar o que não é importante, não é a 
costa daquela ilha que ele quer examinar tão 
acuradamente, e sim os limites do oceano. 
 
 
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33 
A volta à filosofia 
No Prefacio ao Tractatus, Wittgenstein escrevia 
que “a veracidade das ideias aqui transmitidas é 
intocável e definitiva” e pensava “ter, no essencial, 
resolvido definitivamente os problemas”. Desse modo, 
Wittgenstein calou-se. Os problemas estavam 
definitivamente resolvidos. Por isso, em 4 de julho de 
1924, Wittgenstein escrevia a J. M. Keynes (que, 
juntamente com o matemático F. P. Ramsey, 
preocupava-se em fazer o filósofo austríaco retornar a 
Cambridge): “O senhor me pergunta se pode fazer algo 
para tornar-me novamente possível o trabalho 
científico. Não, a esse respeito não há mais nada a fazer; 
com efeito, não tenho mais nenhum forte impulso 
interior para tal ocupação. Tudo o que eu realmente 
tinha a dizer, já o disse. E, com isso, a fonte se esgotou. 
Isso pode soar estranho, mas é assim mesmo”. 
Na realidade, não seria assim por muito tempo. 
Em janeiro de 1929 Wittgenstein estava novamente em 
Cambridge. E o retorno a Cambridge era o retorno à 
filosofia. Em suma, Wittgenstein percebeu que os 
problemas filosóficos não haviam sido definitivamente 
resolvidos. Não devemos esquecer três coisas em 
relação a seu retorno à filosofia: 
a) os encontros que Wittgenstein manteve com 
alguns membros do Círculo de Viena; 
b) os “inumeráveis colóquios” que Wittgenstein 
diz ter mantido com Ramsey, tendo por objeto a revisão 
dos Principia matemáticas e as teses do Tractatus sobre a 
lógica e sobre os fundamentos da matemática; 
C) o contato com “a linguagem real das 
crianças” das escolas primárias. 
Esses três fatos - a reflexão sobre a matemática 
intuicionista, os colóquios com Ramsey e a linguagem 
das crianças levaram Wittgenstein a assumir nova 
perspectiva teórica na interpretação da linguagem. E, 
em um esforço intenso, Wittgenstein afasta-se das 
soluções do Tractatus e elabora sua nova perspectiva 
filosófica, da qual as Investigações filosóficas representam o 
documento mais elaborado. 
A teoria dos “jogos de língua” 
 
As Investigações filosóficas se iniciam com uma 
crítica cerrada ao esquema tradicional de interpretação 
que vê a linguagem como um conjunto de nomes que 
denominam ou designam objetos, nomes de coisas e de 
pessoas, unidos pela aparelhagem lógico-sintática 
constituída por termos como “e”, “o”, “se” ... “então” 
etc. 
É obvio que, assim concebendo a linguagem, o 
compreender se reduz a dar explicações que se 
resumem em definições ostensivas, que postulam toda 
aquela série de atos e processos mentais que deveriam 
explicar a passagem da linguagem à realidade. Como se 
vê, a teoria da representação, o atomismo lógico e o 
mentalismo estão estreitamente conjugados. 
Na realidade, porém, o jogo linguístico da 
denominação não é de modo nenhum primário. Com 
efeito, se eu digo, indicando uma pessoa ou um objeto, 
“este é Mário” ou “isto é vermelho”, haverá sempre 
para quem me escuta certa ambiguidade, já que não sabe 
a que propriedade da pessoa ou do objeto me referi. 
“Dizendo ‘cada palavra desta linguagem designa alguma 
coisa’, não dizemos absolutamente nada”, escreve 
Wittgenstein nas Observações sobre os fundamentos 
da matemática. “Pensa-se que aprender a linguagem 
consista em denominar objetos, isto é, homens,formas, 
cores, dores, estados de espirito, números etc. A 
denominação é semelhante a pendurar em um a coisa 
um cartãozinho com um nome. Pode-se dizer que isso 
é uma preparação para o uso da palavra. Mas para que 
nos prepara?”. 
A teoria da representação sustenta que, com 
nossa linguagem, nós fazemos apenas uma coisa: 
denominamos. Mas Wittgenstein está persuadido de 
que, “ao contrário, com nossas proposições, fazemos as 
coisas mais diversas. Basta pensar nas exclamações, 
com suas tão diferentes funções: Agua! Fora! Ai! 
Socorro! Lindo! Não! E agora, ainda estão dispostos a 
chamar essas palavras de ‘denominação de objetos’?”. 
Com a linguagem, fazemos as coisas mais 
variadas. Os “jogos linguísticos” são inumeráveis: “São 
inumeráveis os tipos diferentes de emprego de tudo o 
que chamamos ‘sinais’, ‘palavras’, ‘proposições’. E essa 
multiplicidade não é algo fixo ou algo dado de uma vez 
por todas, mas novos tipos de linguagem, novos jogos 
linguísticos, como poderíamos dizer, surgem 
continuamente, enquanto outros envelhecem e são 
esquecidos (uma imagem aproximada disso poderia ser 
dada pelas mudanças da matemática)”. 
 
O princípio de uso e a filosofia como terapia 
linguística 
 
 A linguagem é um conjunto de jogos de 
linguagem. O significado de uma palavra é seu uso. E o 
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34 
uso tem regras. Por outro lado, “seguir uma regra é 
análogo a obedecer a uma ordem: somos adestrados 
para obedecer à ordem”. “Seguir uma regra, fazer urna 
comunicação, dar urna ordem ou jogar urna partida de 
xadrez sio hábitos (usos, instituições)”. E essas regras 
que aprendemos através do adestramento são públicas: 
“No sentido em que existem processos (também 
processos psíquicos) característicos do compreender, o 
compreender não é processo psíquico”. 
Mas uma imagem nos mantinha prisioneiros. E 
ela fez com que o mundo de nossa mente se povoasse 
de espectros, isto é, de problemas filosóficos: “Eles não 
são naturalmente problemas empíricos, mas problemas 
que se resolvem penetrando na operação de nossa 
linguagem de forma a reconhecê-la, contra uma forte 
tendência a subentendê-la. Os problemas não se 
resolvem mais produzindo novas experiências, mas sim 
ajustando aquilo que já nos é conhecido há tempo. A 
filosofia é batalha contra o encantamento de nosso 
intelecto, por meio de nossa linguagem”. 
“Os problemas filosóficos surgem quando falta 
a linguagem”. E esses problemas se resolvem 
dissolvendo-os. “Quando os filósofos usam uma 
palavra – ‘saber’, ‘ser’, ‘objeto’, ‘eu’, ‘proposição’, 
‘nome’ – e tentam captar a essência da coisa, devemos 
sempre perguntar: essa palavra é efetivamente usada 
assim na linguagem, na qual tem sua pátria?”. 
“Nós utilizamos as palavras, no seu emprego 
metafísico, na trilha do seu emprego cotidiano”. E isso 
porque a linguagem “faz parte de nossa história natural, 
como o caminhar, o comer, o beber, o brincar”. 
A linguagem opera sobre o fundo de 
necessidades humanas, na determinação de um 
ambiente humano. E como “o significado de uma 
palavra é seu uso na linguagem”, a função da filosofia é 
puramente descritiva. Como na psicanálise, a diagnose 
é a terapia: “o filósofo trata uma questão como uma 
doença”. 
Não busqueis o significado, buscai o uso - 
repetia Wittgenstein em Cambridge. E acrescentava: “O 
que vos dou é a morfologia do uso de uma expressão. 
Demonstro que ela tem usos com os quais jamais 
havíeis sonhado. Em filosofia, as pessoas sentem-se 
forçadas a ver um conceito de determinado modo. Pois 
o que faço é propor ou até inventar outros modos de 
considerá-lo. Sugiro possibilidades nas quais jamais 
havíeis pensado. Acreditáveis que só existisse uma 
possibilidade ou, no máximo, duas. Mas eu vos fiz 
pensar em outras possibilidades. Além disso, mostrei 
que era absurdo esperar que o conceito se adequasse a 
possibilidades tão restritas assim. Desse modo, vos 
libertei de vossa cãibra mental; agora, podeis olhar em 
volta, no campo do uso da expressão, e descrever seus 
diversos tipos de uso”. Em suma, a filosofia é a terapia 
das doenças da linguagem. “Qual é o teu objetivo em 
filosofia? Indicar à mosca o caminho de saída de dentro 
da garrafa”. 
3. EPISTEMOLOGIA CONTEMPORÂNEA 
3.1 NEOPOSITIVISMO 
 
A reflexão sobre o método cientifico conhece, 
nos anos que intercorrem entre as duas guerras, um 
impulso decisivo. O principal centro para a filosofia da 
ciência foi nesse período, a Universidade de Viena, 
onde um grupo de intelectuais se reuniram, a partir de 
1924, ao redor de Moritz Schlick, dando vida ao que se 
tornou o Círculo de Viena, cuja atividade, que consistia 
de discussões, seminários, congressos, publicações, 
durou até pela metade da década de 1930. A tomada do 
poder por Hitler levou consigo também o fim do 
Círculo de Viena, enquanto significou a diáspora de 
neopositivistas. 
Paralelamente ao Círculo de Viena, e em ligação 
estreita de intenções, desenvolveu-se o assim chamado 
Círculo de Berlim ou Sociedade para a filosofia 
científica. 
 
O manifesto do neopositivismo 
 
É em 1929 que, com a assinatura de Neurath, 
Hahn e Carnap, aparece o manifesto do Círculo de 
Viena, pequeno volume com o título A concepção cientifica 
do mundo, cujas linhas programáticas eram: 
1) a formulação de uma ciência unificada, 
compreendendo todos os conhecimentos provenientes 
da física, das ciências naturais etc.; 
2) o meio para tal fim devia consistir no uso da 
logica matemática; 
3) contribuir para o esclarecimento dos 
conceitos e das teorias da ciência empírica e para o 
esclarecimento dos fundamentos da matemática. 
O princípio fundamental do neopositivismo - 
que é, justamente, a filosofia do Círculo de Viena - é o 
princípio de verificação, segundo o qual têm sentido 
apenas as proposições que podem empiricamente ser 
verificadas, ou seja, apenas as proposições que podem 
se reduzir ou traduzir na linguagem “coisificada” da 
física: ou seja, têm sentido unicamente as proposições 
da ciência empírica (física, química, geografia, história, 
geologia etc.). 
 
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35 
A antimetafísica 
 
Daí a antimetafísica dos neopositivistas 
vienenses, para os quais as afirmações metafísicas junto 
com as religiosas são simplesmente não-sentidos, 
justamente pela razão de que não são verificáveis. 
Carnap dirá que “nem Deus nem diabo algum poderão 
jamais dar-nos uma metafisica”, e que “Os metafísicos 
são musicistas sem talento musical”. 
 
Do mesmo parecer foram, em relação a 
antimetafísica, Schlick e os outros frequentadores do 
Círculo. Para Neurath, mais especificamente, a rejeição 
da metafísica constituía uma batalha, justamente como 
se se tratasse de marchar contra um inimigo político. E 
Hans Reichenbach dirá que é um fato decididamente 
positivo o abandono de qualquer metafísica ou poesia 
em conceitos. 
 
Da fase semântica à sintática 
 
Tendo admitido o princípio de verificação, o 
trabalho filosófico sério não consistira mais na 
construção de teorias metafísicas, e sim muito mais na 
análise dos conceitos e das teorias científicas. E de 
grande valor foram as contribuições dos filósofos 
vienenses na análise das teorias cientificas e na 
discussão de seu significado filosófico. E isso enquanto 
a discussão sobre a base empírica da ciência - ou seja, 
seus protocolos ou afirmações-de-observação -, que 
pareceu estar cheia de solipsismo (a observação de 
alguma coisa é sempre a observação feita por um 
indivíduo), levou Neurath, seguido em parte por 
Carnap, a inverter a orientação semântica do Círculo na 
direção sintática ou, como foi dito, fisicalísta: a 
linguagem e assumida como umfato físico; e eliminada 
sua função de representação projetiva dos fatos; e à 
verdade como correspondência com os fatos 
substituiu-se a verdade como coerência entre 
proposições. De modo que uma proposição é “não-
correta” se ela não está de acordo com as outras 
proposições reconhecidas pelos cientistas e por eles já 
aceitas no corpus da ciência; se, ao contrário, está de 
acordo com as outras proposições, então está “correta”. 
 
A linguagem física como linguagem da ciência 
unificada 
 
Embora fortemente influenciado por Neurath, 
Carnap achou que as formulações deste eram “de modo 
nenhum irrepreensíveis”. Carnap não insistiu sobre a 
redução da linguagem a fato físico nem rejeitou a 
função simbólica dos sinais; ele, porém, aceitou 
totalmente a tese da universalidade da língua fiscalista. 
Em Filosofia e sintaxe lógica (1935) Carnap 
escreve: “Nós, nas discussões no Círculo de Viena, 
chegamos a concepção de que a linguagem física é a 
linguagem-base de toda a ciência, uma linguagem 
universal que abraça os conteúdos de qualquer outra 
linguagem científica”. 
E a linguagem física deve ser a linguagem da 
ciência unificada (na qual entram também a psicologia, 
a sociologia, enfim, as chamadas “ciências do espírito”) 
por causa de sua intersensualidade, intersubjetividade e 
universalidade. E se para Carnap - que naquele tempo 
trabalhava na Sintaxe lógica da linguagem - a questão da 
relação entre linguagem e realidade não interessava 
muito, ela constituía o problema mais candente para 
Schlick: para ele uma linguagem não contraditória não 
é suficiente para dar razão da ciência; de fato, também 
uma fábula bem engenhada pode ser não contraditória, 
mas não é ciência. Dentro do neopositivismo vienense 
Schlick teve a função dialética de se remeter 
continuamente aos fatos. 
 
A liberalização do neopositivismo 
 
O princípio de verificação comporta 
dificuldades que não foram de fato protegidas. Com 
efeito, ele é um princípio cripto-metafisico; 
autocontraditório (diz que tem sentido apenas as 
proposições que podem empiricamente ser verificadas, 
mas o próprio princípio é uma proposição não 
verificável e, portanto, também ele é insensato); e 
incapaz, sendo indutivo, de dar conta das afirmações 
universais da ciência. 
E enquanto pelo fim da década de 1920 Ludwig 
Wittgenstein - cujo Tractatus lógico-philosophicus havia 
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36 
incitado os neopositivistas a construção de uma 
linguagem perfeita - voltava a filosofar e não via mais 
“o sentido de uma proposição no método de sua 
verificação”, e sustentava que o significado de uma 
palavra ou de uma expressão está no uso que dela se 
faz; em 1934 Karl Popper rejeitava o critério de 
verificação - que é um critério de significância -, e 
propunha a falsificabilidade como critério de 
demarcação entre ciência e não ciência. 
Nesse tempo, com o transplante do 
neopositivismo nos Estados Unidos, o neo-empirismo 
se liberalizava e o próprio Carnap, em Controlabilidade e 
significado (1936), em vez de verificabilidade falará de 
controlabilidade e conformabilidade: “Diremos que 
uma proposição é controlável se, de fato, conhecemos 
um método para proceder à sua eventual confirmação; 
ao passo que diremos que é confirmável, se soubermos 
sob quais condições ela em linha de princípio seria 
confirmada”. 
 
3.2 GASTON BACHELARD 
 
Gaston Bachelard nasceu na França meridional, 
em 1884. Suas obras epistemológicas apareceram em 
um momento em que a filosofia da ciência (o 
neopositivismo vienense e o operacionalismo norte-
americano) se apresenta como concepção 
antimetafísica e a-histórica. 
É bem verdade que Bachelard continuaria seu 
trabalho de epistemólogo e historiador da ciência 
também depois da Segunda Guerra Mundial, mas deve-
se dizer que ainda nesse momento, enquanto ainda não 
se havia difundido o pensamento de Popper e de sua 
Escola, a filosofia científica (isto é, a filosofia ligada a 
ciência e que pretendia dar conta da ciência) ainda era o 
neopositivismo. 
 
A ciência não tem a filosofia que merece 
 
A epistemologia de Bachelard, devido a época 
em que surgiu e se desenvolveu, representa o 
pensamento, prenhe de novidade, de um filósofo 
solitário (ainda que não isolado) que, dentro da tradição 
francesa de reflexo sobre a ciência, ultrapassa a filosofia 
“oficial” da ciência de sua época (o neopositivismo) e 
propõe, como escreveu Althusser, um não-positivismo 
radical e deliberado. 
Com base nisso, devemos registrar logo que os 
pontos fundamentais de seu pensamento podem ser 
reduzidos a quatro: 
1) o filósofo deve ser “contemporâneo” à 
ciência de seu próprio tempo; 
2) tanto o empirismo de tradição baconiana 
como o racionalismo idealista são incapazes de dar 
conta da prática científica real e efetiva; 
3) a ciência é um evento essencialmente 
histórico; 
4) a ciência possui um “inevitável caráter 
social”. 
Em O materialismo racional, Bachelard constata 
amargamente que “a ciência não tem a filosofia que 
merece”. A filosofia está sempre atrasada em relação as 
mudanças do saber cientifico. E Bachelard procura 
opor a “filosofia dos filósofos” a “filosofia produzida 
pela ciência”. 
O que caracteriza a filosofia dos filósofos são 
atributos como a unidade, o fechamento e a 
imobilidade, ao passo que os traços marcantes da 
“filosofia científica” (ou filosofia criada pela ciência) 
são a falta de unidade ou centro, a abertura e a 
historicidade. Diz Bachelard em A filosofia do não: 
“Pediremos aos filósofos que rompam com a ambição 
de encontrar um só ponto de vista para julgar uma 
ciência tão vasta e tão mutável como a física”. 
Para Bachelard, a filosofia das ciências é 
filosofia dispersiva, distribuída: “Dever-se-ia fundar 
uma filosofia do pormenor epistemológico, uma 
filosofia diferencial, para contrapor a filosofia integral 
dos filósofos. Essa filosofia diferencial seria 
encarregada de medir o futuro de um pensamento”. 
Esse tipo de filosofia diferencial “é a única filosofia 
aberta. Toda outra filosofia estabelece seus princípios 
como intangíveis, suas verdades primeiras como totais 
e adquiridas. Toda outra filosofia se orgulha de seu 
fechamento”. 
 
É a ciência que instrui a razão 
 
 Em O racionalismo aplicado, Bachelard afirma que 
“a epistemologia deve ser tão móvel quanto a ciência”. 
Porém, é óbvio que, para haver uma filosofia dispersiva, 
distribuída, aberta, diferencial e móvel, é necessário 
penetrar nas práticas científicas, em vez de julgá-las do 
exterior - em suma, é preciso que o filosofo tenha 
confiança no cientista, que ele próprio seja cientista 
antes de ser filósofo. 
Na opinião de Bachelard, existem poucos 
pensamentos filosoficamente mais variados do que o 
pensamento científico. E o papel da filosofia da ciência 
é o de recensear essa variedade e mostrar como os 
filósofos aprenderiam se quisessem meditar sobre o 
pensamento cientifico contemporâneo. 
Enquanto os neopositivistas procuravam um 
princípio rígido (o princípio da verificação) capaz de 
separar claramente a ciência da não-ciência, Bachelard 
não aceita um critério a priori que tenha a presunção de 
captar a essência da cientificidade. Não é a razão 
filosófica que domestica a ciência, e sim muito mais “a 
ciência que instrui a razão”. 
Assim, contrariamente aos neopositivistas, 
Bachelard não aceita um princípio que estabeleça a priori 
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37 
a cientificidade das ciências, nem a rejeição da história 
feita pelos próprios neopositivistas. Por outro lado, 
combate a filosofia dos filósofos, porém não considera 
a metafisica como insensata ou indiferente para a 
ciência, como ofizeram os filósofos do Círculo de 
Viena. Escreve ele: “O espírito pode mudar a 
metafisica, mas não pode prescindir da metafisica”. E 
se é verdade que “um pouco de metafisica nos afasta da 
natureza, muita metafisica nos aproxima dela”. 
Por aí pode-se ver que Bachelard não nutre 
preconceitos antifilosóficos ou antimetafísicos em 
nome da ciência. Ele é avesso à filosofia não 
contemporânea da ciência e arremete contra os 
filósofos que “pensam antes de estudar”, e sob cuja 
pena “a relatividade degenera em relativismo, a hipótese 
em suposição, o axioma em verdade primeira”. E esses 
juízos depreciativos em relação à “filosofia dos 
filósofos” brotam da firme vontade de Bachelard de dar 
à filosofia uma oportunidade para que se torne 
contemporânea da ciência. 
 
As “rupturas epistemológicas” 
 
Para Bachelard, não podemos considerar a 
ciência independentemente de seu devir. E o “real 
científico” não é imediato e primário. Ele precisa 
receber um valor convencional. É preciso que ele seja 
retomado em um sistema teórico. Aqui, como em toda 
parte, é a objetivação que domina a objetividade. 
O “dado cientifico”, portanto, é sempre relativo 
a sistemas teóricos. O cientista nunca parte da 
experiência pura. No tocante a isso, escreve Bachelard 
em A formação do espírito científico: “Conhece-se contra um 
conhecimento anterior, destruindo conhecimentos 
malfeitos e superando o que, dentro do próprio espírito, 
constitui um obstáculo a espiritualização. O espírito 
nunca é jovem quando se apresenta à cultura científica. 
Ao contrário, é muito velho, porque tem a idade de seus 
preconceitos. Ter acesso à ciência significa rejuvenescer 
espiritualmente, quer dizer aceitar brusca mudança que 
deve contradizer um passado”. 
Segundo Bachelard, essas sucessivas contradições 
do “passado” são autênticas rupturas epistemológicas, 
que, de vez em quando, comportam a negação de algo 
fundamental (pressupostos, categorias centrais, 
métodos) que sustentava a pesquisa na fase anterior. A 
teoria da relatividade e a teoria quântica, pondo em 
discussão os conceitos de espaço, tempo e causalidade, 
representariam algumas das mais flagrantes 
confirmações da ideia de ruptura epistemológica. 
A história da ciência, portanto, avança por meio 
de sucessivas rupturas epistemológicas. Mas, 
contrariamente a muitos outros, entre os quais Popper, 
Bachelard sustenta que também existe ruptura entre 
saber comum e conhecimento cientifico. O 
conhecimento vulgar tem sempre mais respostas do que 
perguntas. Tem respostas para tudo. No entanto, o 
espírito cientifico “nos proíbe ter opiniões sobre 
questões que não compreendemos, sobre questões que 
não sabemos formular claramente. Antes de mais nada, 
é preciso saber propor os problemas”. Para o espírito 
científico, toda teoria é a resposta a uma pergunta. 
E o sentido e a construção do problema são as 
características primeiras do espirito científico: o 
conhecimento vulgar é feito de respostas, o 
conhecimento científico vive na agitação dos 
problemas. “O eu científico é programa de experiências, ao 
passo que o não-científico é problemática já constituída”. 
 
Não há verdade sem erro corrigido 
 
Há mais, porém; diferentemente das rotinas 
incorrigíveis da experiência comum, o conhecimento 
científico avança através de sucessivas retificações as 
teorias anteriores: “não há verdade sem erro retificado”. Mas, 
afirma Bachelard em O novo espirito científico, para além 
do sentimento psicológico, “o espírito científico é 
essencialmente retificação do saber, ampliação dos 
esquemas do conhecimento. Ele julga seu passado 
histórico, condenando-o. Sua estrutura é a consciência 
de seus erros históricos. Do ponto de vista científico, o 
verdadeiro é pensado como retificação histórica de um 
longo erro, e a experiência como retificação da ilusão 
comum e primitiva”. 
Uma verdade sobre o fundo de um erro: essa 
é a forma do pensamento científico, cujo método “é 
método que busca o risco. A dúvida está na frente do 
método e não atrás, como em Descartes. E esse é o 
motivo por que posso dizer sem grandiloquência que o 
pensamento cientifico é pensamento empenhado. Ele 
põe continuamente em jogo sua própria organização. 
Há mais: paradoxalmente, parece que o espírito 
científico vive na estranha esperança de que o próprio 
método se choque com xeque-mate vital. E isso porque 
um xeque-mate tem por consequência o fato novo e a 
ideia nova”. 
As hipóteses cientificas podem sofrer xeques-
mates; o espírito não-científico, ao contrário, é aquele 
que se torna “impermeável aos desmentidos da 
experiência”. Esta é a razão por que as rotinas 
incorrigíveis e as ideias vagas são sempre verificáveis. E 
essa é a razão por que é anticientífica a atitude de quem 
sempre encontra um modo de comprovar sua teoria, ao 
invés de mostrá-la errada e, portanto, retificá-la. 
 
O “obstáculo epistemológico” 
 
O conhecimento científico avança por meio de 
rupturas epistemológicas sucessivas. É desse modo que 
ele se aproxima da verdade: “não encontramos 
nenhuma solução possível para o problema da verdade, 
senão a de ir descartando erros cada vez mais sutis”. 
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38 
Entretanto, o progresso da ciência, essa 
continua retificação dos erros anteriores, especialmente 
as retificações que constituem autênticas rupturas, não 
são passos que se efetuam com facilidade, em virtude 
do seu choque com o que Bachelard chama de 
“obstáculos epistemológicos”. 
Podemos dizer que o obstáculo epistemológico 
é uma ideia que impede e bloqueia outras ideias: hábitos 
intelectuais cristalizados, a inércia que faz estagnar as 
culturas, teorias cientificas ensinadas como dogmas, os 
dogmas ideológicos que dominam as diversas ciências - 
eis alguns obstáculos epistemológicos. 
a) O primeiro obstáculo a superar é o de 
derrubar a opinião: “A opinião, por direito, está sempre 
errada. A opinião pensa mal, não pensa, traduz 
necessidades por conhecimentos. Decifrando os 
objetos segundo sua utilidade, impede-se de conhecê-
los. Não se pode basear nada na opinião: antes de mais 
nada, é preciso destrui-la”. 
b) Outro obstáculo é a falta de genuíno sentido 
dos problemas, sentido que se perde quando a pesquisa 
se encerra na casca dos conhecimentos dados como 
adquiridos e não mais problematizados. Mediante o 
uso, diz Bachelard, as ideias se valorizam indevidamente. 
E esse é um verdadeiro fator de inércia para o espírito. 
Por vezes, ocorre que uma ideia dominante polariza o 
espírito em sua totalidade. “Ha cerca de vinte anos, um 
epistemólogo irreverente dizia que os grandes homens 
são uteis para a ciência na primeira metade de sua vida, 
e nocivos na segunda metade”. 
Obstáculos importantes e difíceis de remover 
são: 
c) o obstáculo da experiência primeira, ou seja, 
da experiência que pretende se situar além da crítica; 
d) aquele que pode ser chamado obstáculo 
realista, e que consiste na sedução da ideia de 
substância; 
e) por fim, aquele que se pode chamar de 
obstáculo animista (“a palavra vida é palavra mágica. É 
palavra valorizada”). 
Diante dessas realidades constituídas pelos 
obstáculos epistemológicos, Bachelard propõe uma 
psicanálise do conhecimento objetivo, voltada para a 
identificação e para a remoção dos obstáculos que 
bloqueiam o desenvolvimento do espírito científico. 
Tal catarse torna-se absolutamente necessária se 
quisermos tornar possível o progresso da ciência, já que 
se conhece sempre contra um conhecimento anterior. 
 
Ciência e história da ciência 
 
Tudo isso mostra também a função da negação 
dentro de nossa atividade de conhecimento e dentro da 
própria filosofia, que, na opinião de Bachelard, deve se 
configurar como filosofia do não, firme na rejeição das 
pretensões dos velhos sistemas a se apresentarem como 
concepções absolutas e totalizantesda realidade e a 
imporem à ciência princípios intangíveis. 
A tese de Bachelard é de que a evolução do 
conhecimento não tem fim, e de que a filosofia deve ser 
instruída pela ciência. Isso pode até perturbar o filosofo. 
No entanto, é necessário chegar a essa conclusão se 
quisermos definir a filosofia do conhecimento científico 
como filosofia aberta, como a consciência de espírito 
que se fundamenta trabalhando sobre o desconhecido, 
e procurando no real o que contradiz conhecimentos 
anteriores. 
 
3.3 KARL POPPER 
 
Karl Popper, nascido em Viena em 1902, 
faleceu na Inglaterra em 1994. Na capital austríaca 
estudou filosofia, matemática e física. 
 
Em 1928, formou-se em filosofia e em 1929, 
habilitou-se para o ensino de matemática e da física nas 
escolas de Ensino Médio. Suas principais obras são: 
1 - Lógica da descoberta científica (1935); 
2 - A miséria do historicismo (1944-1945); 
3 - A sociedade aberta e seus inimigos (1945); 
4 - Conjecturas e refutações (1962); 
5 - Conhecimento objetivo (1972) . 
São notáveis e sempre perspicazes suas 
contribuições em múltiplos anais de seminários e 
simpósios. Membro da Royal Society, foi feito Sir em 
1965. Professor visitante em muitas universidades 
estrangeiras, suas obras foram traduzidas em mais de 
vinte línguas. 
 
Popper contra o neopositivismo 
 
 Durante muito tempo, na literatura filosófica, 
Popper apareceu associado ao neopositivismo. Chegou-
se a dizer até que foi membro do Círculo de Viena. 
Entretanto, a exemplo de Wittgenstein, Popper nunca 
foi membro do Círculo. Em suas Réplicas aos meus críticos, 
o próprio Popper afirma que essa história é apenas 
lenda. E, em sua Autobiografia, admite a responsabilidade 
pela morte do neopositivismo. 
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39 
Com efeito, Popper não é neopositivista. E, 
com toda razão, Neurath chamou Popper de “a 
oposição oficial” do Círculo de Viena. 
Popper embaralhou todas as cartas com as quais 
os neopositivistas estavam jogando seu jogo: substituiu 
o princípio de verificação (que é um princípio de 
significância) pelo critério de falsificabilidade (que é um 
critério de demarcação entre ciência e não-ciência); 
substituiu a velha e venerável, mas, em sua opinião, 
impotente teoria da indução, pelo método dedutivo da 
prova; deu uma interpretação diferente da interpretação 
de alguns membros do Círculo a respeito dos 
fundamentos empíricos da ciência, afirmando que os 
protocolos não são de natureza absoluta e definitiva; 
reinterpretou a probabilidade, sustentando que as 
melhores teorias cientificas (enquanto implicam mais e 
podem ser mais bem verificadas) são as menos 
prováveis; rejeitou a antimetafísica dos vienenses, 
considerando-a simples exclamação, e, entre outras 
coisas, defendeu a metafísica como progenitora de 
teorias científicas; 
Rejeitou também o desinteresse de muitos 
circulistas em relação a tradição e releu em novas bases 
filósofos como Kant, Hegel, Stuart Mill, Berkeley, 
Bacon, Aristóteles, Platão e Sócrates para chegar a uma 
estimulante releitura, em bases epistemológicas, dos 
pré-socráticos, vistos como os criadores da tradição de 
discussão crítica. 
Enfrentou seriamente autênticos e clássicos 
problemas filosóficos, como o das relações corpo-
mente ou como o do sentido ou não da história 
humana; interessou-se pelo sempre emergente drama 
da violência, e é um dos mais aguerridos adversários 
teóricos do totalitarismo; rejeitou a diferença entre 
termos teóricos e termos observáveis; contra o 
convencionalismo de Carnap e Neurath, ou seja, a 
chamada “fase sintática” do Círculo, fez valer, a ideia 
reguladora da verdade. 
Em suma, não há questão ventilada pelos 
vienenses em torno da qual Popper não pense diferente. 
Por tudo isso, Neurath estava certo ao chamar Popper 
de “a oposição oficial do Círculo de Viena”. 
 
Popper contra a filosofia analítica 
 
 Crítico em relação aos vienenses, mais 
recentemente, em 1961, Popper também atacou, em 
nome da unidade do método cientifico, as pretensões 
da Escola de Frankfurt de compreender a sociedade 
com categorias como a “totalidade” e a “dialética”. E 
também não se mostrou mais suave em relação a 
Cambridge-Oxford-Philosophy. Omitindo alguns 
acenos esparsos aqui e ali em seus escritos, Popper 
precisou sua posição essencialmente contrária ao 
movimento analítico no prefácio à primeira edição 
inglesa (1959) da Lógica da descoberta cientifica. 
Escreve Popper a esse propósito: “Hoje como 
então (isto é, nos tempos do Círculo de Viena), os 
analistas da linguagem são importantes para mim e não 
apenas como opositores, mas também como aliados, 
porque parecem os únicos filósofos que continuaram a 
manter vivas algumas tradições da filosofia racional. Os 
analistas da linguagem acreditam que não existem 
problemas filosóficos genuínos, ou que os problemas 
da filosofia – admitindo-se que existam – são problemas 
referentes ao uso linguístico ou ao significado das 
palavras”. 
Mas Popper não concorda com esse programa, 
tanto que afirma peremptoriamente que “devemos 
deixar de nos preocupar com as palavras e seus 
significados para passar a nos preocupar com as teorias 
criticáveis, com os raciocínios e com sua validade”. 
 
A indução não existe 
 
 Escrevia Popper: “Penso ter resolvido um 
problema filosófico fundamental: o problema da 
indução [...]. Essa solução tem sido extremamente 
fecunda, e tem-me permitido resolver grande número 
de outros problemas filosóficos”. E ele resolveu o 
problema da indução dissolvendo-o: “A indução não 
existe. E a concepção oposta é um grande erro”. 
No passado, o termo “indução” era usado 
principalmente em dois sentidos: 
a) indução repetitiva ou por enumeração; 
b) indução por eliminação. 
A ideia de Popper é que ambos os tipos de 
indução caem por terra. Escreve ele: “A primeira é a 
indução repetitiva (ou indução por enumeração), que 
consiste em observações frequentemente repetidas, 
observações que deveriam fundamentar algumas 
generalizações da teoria. É óbvia a falta de validade 
desse gênero de raciocínio: nenhum número de 
observações de cisnes brancos é capaz de estabelecer 
que todos os cisnes são brancos (ou que é pequena a 
probabilidade de se encontrar um cisne que não seja 
branco). Do mesmo modo, por maior que seja o 
número de espectros de átomos de hidrogênio que 
observamos, nunca poderemos estabelecer que todos 
os átomos de hidrogênio emitem espectros do mesmo 
tipo [...]. Portanto, a indução por enumeração está fora 
de questão: não pode fundamentar nada”. 
Por outro lado, a indução eliminatória baseia-se 
no método da eliminação ou rejeição das falsas teorias. 
Diz Popper: “À primeira vista, esse tipo de indução 
pode parecer muito semelhante ao método da discussão 
crítica que eu defendo, mas, na realidade, é muito 
diferente. Com efeito, Bacon, Mill e os outros difusores 
desse método de indução acreditavam que, eliminando 
todas as teorias falsas, pode-se fazer valer a verdadeira 
teoria. Em outras palavras, não se davam conta de que 
o número de teorias rivais é sempre infinito, ainda que, 
via de regra, em cada momento particular possamos 
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40 
tomar em consideração um número finito de teorias 
[...]. O fato de, para cada problema, existir sempre 
infinidade de soluções logicamente possíveis constitui 
um dos fatos decisivos de toda a ciência, e é uma das 
coisas que fazem da ciência uma aventura tão excitante. 
Com efeito, ele torna ineficazes todos os métodos 
baseados nas meras rotinas, o que significa que, na 
ciência, devemos usar a imaginação e ideias ousadas, 
ainda que uma e outras devam ser sempre temperadaspela crítica e pelos controles mais severos”. 
A indução, portanto, não existe. Por 
conseguinte, não pode fundamentar nada, e, 
consequentemente, não existem métodos baseados em 
meras rotinas. É erro pensar que a ciência empírica 
proceda com métodos indutivos. Normalmente, 
afirma-se que uma inferência é indutiva quando 
procede a partir de assertivas particulares, como os 
relatórios dos resultados de observações ou de 
experimentos, para chegar a asserções universais, como 
hipóteses ou teorias. No entanto, já em 1934 Popper 
escrevia: “Do ponto de vista logico, não é nada obvio 
que se justifique inferir assertivas universais a partir de 
assertivas singulares, por mais numerosas sejam estas 
últimas. Com efeito, qualquer conclusão tirada desse 
modo sempre pode se revelar falsa: por mais 
numerosos que sejam os casos de cisnes brancos que 
possamos ter observado, isso não justifica a conclusão 
de que todos os cisnes são brancos”. 
A inferência indutiva, portanto, não se justifica 
logicamente. 
Também poder-se-ia atacar a questão da 
indução a partir desta outra perspectiva. 
O princípio de indução é uma proposição 
analítica (isto é, tautológica) ou uma assertiva sintética 
(isto é, empírica). Entretanto, “se existisse algo como 
um princípio de indução puramente lógico, não existiria 
nenhum problema de indução, porque nesse caso todas 
as inferências indutivas deveriam ser consideradas 
como transformações puramente lógicas ou 
tautológicas, precisamente como as inércias da lógica 
dedutiva”. 
Portanto, o princípio de indução deve ser uma 
assertiva universal sintética. Mas, “se tentarmos 
considerar sua veracidade como conhecida pela 
experiência, então ressurgem exatamente os mesmos 
problemas que deram origem à sua introdução. Para 
justificá-la, devemos empregar inferências indutivas. E 
para justificar estas últimas, devemos adotar um 
princípio indutivo de ordem superior, e assim por 
diante. Desse modo, a tentativa de basear o princípio de 
indução na experiência acaba falindo, porque leva 
necessariamente a um regresso infinito”. 
 
A mente não é tábula rasa 
 
 Há outra ideia ligada a teoria da indução: a de 
que a mente do pesquisador deveria ser mente 
desprovida de pressupostos, de hipóteses, de suspeitas 
e de problemas, em suma, uma tábula rasa, na qual 
refletir-se-ia depois o livro da natureza. Essa ideia é o 
que Popper chama de observativismo, e que ele 
considera mito. 
O observativismo é mito filosófico, já que a 
realidade é que nós somos uma tábula plena, um 
quadro-negro cheio dos sinais que a tradição ou a 
evolução cultural deixaram escritos. 
A observação sempre se orienta por 
expectativas teóricas. Esse fato, diz Popper, “pode ser 
ilustrado com um simples experimento, que eu gostaria 
de realizar, com vossa permissão, tomando a vos 
mesmos como cobaias. O meu experimento consiste 
em pedir-vos para observar, aqui e agora. Espero que 
todos vós estejais cooperando: observai! Temo, porém, 
que algum de vos, ao invés de observar, experimente a 
forte vontade de perguntar-me: ‘O que queres que eu 
observe?’ Se essa é a vossa resposta, então meu 
experimento teve êxito. Com efeito, aquilo que estou 
tentando evidenciar é que, tendo em vista a observação, 
devemos ter em mente uma questão bem definida, que 
podemos estar em condições de decidir através da 
observação.” 
Um experimento ou prova pressupõe sempre 
alguma coisa a experimentar ou a comprovar. E esse 
algo são as hipóteses (ou conjecturas, ideais e teorias) 
que inventamos para resolver os problemas. Purgada 
dos preconceitos, a mente não será mente pura, afirma 
Popper, mas apenas mente vazia. Nós operamos 
sempre com teorias, ainda que frequentemente não 
tenhamos consciência disso. 
 
Problemas e criatividade; gênese e prova da 
hipótese 
 
Portanto, segundo Popper, não existe 
procedimento indutivo, e a ideia da mente como tábula 
rasa é um mito. Para Popper, a pesquisa não parte de 
observações, mas sempre de problemas, “de problemas 
práticos ou de uma teoria que se chocou com 
dificuldades, ou seja, que despertou expectativas e depois 
as desiludiu”. 
Um problema é uma expectativa desiludida. Em 
sua natureza lógica, um problema é uma contradição 
entre afirmações estabelecidas; o maravilhamento e o 
interesse são as vestimentas psicológicas daquele fato 
lógico que é a contradição entre duas teorias ou, pelo 
menos, entre a consequência de uma teoria e uma 
proposição que, presumivelmente, descreve um fato. E 
os problemas explodem justamente porque nós somos 
“memória” biológico-cultural, fruto de uma evolução, 
primeiramente biológica e depois eminentemente 
cultural. 
Com efeito, quando um pedaço de “memoria”, 
ou seja, uma expectativa (hipótese ou preconceito), 
choca-se com outra expectativa ou com algum pedaço 
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41 
de realidade (ou fatos), então temos um problema. É 
assim que Popper descreve a correlação entre o 
conjunto de expectativas que é a nossa “memória” 
cultural e os problemas: “Por vezes, enquanto 
descemos por uma escada, acontece-nos descobrir de 
repente que esperávamos outro degrau (que não existe) 
ou, ao contrário, que não esperávamos nenhum outro 
degrau, quando na verdade ainda existe um. A 
desagradável descoberta de nos termos enganado faz 
com que nos demos conta de ter alimentado certas 
expectativas inconscientes. E mostra que existem 
milhares de tais expectativas inconscientes”. 
A pesquisa, portanto, inicia-se com os 
problemas; buscamos precisamente a solução dos 
problemas. 
E para resolver os problemas, é necessária a 
imaginação criadora de hipóteses ou conjecturas; 
precisamos de criatividade, da criação de ideias “novas 
e boas”, boas para a solução dos problemas. 
Aqui é necessário traçar uma distinção - na qual 
Popper insiste com frequência - entre contexto da 
descoberta e contexto da justificação. Uma coisa é o processo 
psicológico ou gênese das ideias; outra coisa, bem 
diferente da gênese das ideias, é sua prova. As ideias 
cientificas não têm fontes privilegiadas: podem brotar 
do mito, das metafísicas, do sonho, da embriaguez etc. 
Mas o que importa é que elas sejam de fato 
comprovadas. E é óbvio que, para que sejam provadas 
de fato, as teorias cientificas devem ser prováveis ou 
verificáveis em princípio. 
 
O critério de falsificabilidade 
 
A pesquisa inicia pelos problemas. Para resolver 
os problemas, é preciso elaborar hipóteses como 
tentativas de solução. 
Uma vez propostas, as hipóteses devem ser 
provadas. E essa prova se dá extraindo-se 
consequências das hipóteses e vendo se tais 
consequências se confirmam ou não. Se elas ocorrem, 
dizemos que, no momento, as hipóteses estão 
confirmadas. Se, ao contrário, pelo menos uma 
consequência não ocorre, então dizemos que a hipótese 
é falsificada. 
Em outros termos, dado um problema P e uma 
teoria T, proposta como sua solução, nós dizemos: se T 
é verdadeira, então devem se dar as consequências p,, 
p,, p ,,..., p,; se elas se derem, confirmarão a teoria; se, 
ao contrário, não se derem, a desmentirão ou 
falsificarão, ou seja, demonstrarão ser falsa. 
Por aí se pode ver que, para ser provada de fato, 
uma teoria deve ser provável ou verificável em 
princípio. Em outras palavras, deve ser falsificável, ou 
seja, deve ser tal que dela sejam extraíveis 
consequências que possam ser refutadas, isto é, 
falsificadas pelos fatos. 
Com efeito, se não for possível extrair de uma 
teoria consequências passíveis de verificação factual, ela 
não é científica. Entretanto, deve-se observar aqui que 
uma hipótese metafísica de hoje pode se tornar 
científica amanhã (como foi o caso da antiga teoria 
atomista, metafísica nos tempos de Demócrito e 
cientifica na época de Fermi). 
Nessa extração de consequências da teoria sob 
controle e no seu confronto com as assertivasde base 
(ou protocolos) que, pelo que sabemos, descrevem os 
“fatos”, consiste o método dedutivo dos controles. 
Controles que, numa perspectiva lógica, nunca 
encontrarão um fim, já que, por mais confirmações que 
uma teoria possa ter obtido, ela nunca será certa, pois o 
próximo controle poderá desmenti-la. Esse fato lógico 
se coaduna com a história da ciência, onde vemos 
teorias, que resistiram durante décadas, e décadas 
acabarem por desmoronar sob o peso dos fatos 
contrários. 
Na realidade, existe uma assimetria lógica entre 
verificação e falsificação: bilhões e bilhões de 
confirmações não tornam certa uma teoria (como, por 
exemplo, a de que “todos os pedaços de madeira boiam 
na água”), ao passo que apenas um fato negativo (“este 
pedaço de ébano não boia na água”) falseia a teoria, do 
ponto de vista lógico. É com base nessa assimetria que 
Popper fixa a ordem metodológica da falsificação; 
como uma teoria permanece sempre desmentível, por 
mais confirmada que esteja, então é necessário tentar 
falsificá-la, porque, quanto antes se encontrar um erro, 
mais cedo poderemos eliminá-lo, com a formulação e a 
experimentação de uma teoria melhor do que a anterior. 
Desse modo, a epistemologia de Popper reflete a força 
do erro. Como dizia Oscar Wilde, “experiência é o 
nome que cada um de nós dá aos seus próprios erros”. 
Por tudo isso pode-se compreender muito bem 
a centralidade da ideia de falsificabilidade na 
epistemologia de Popper: “Não exigirei de um sistema 
científico que seja capaz de ser escolhido, em sentido 
positivo, de uma vez por todas, mas exigirei que sua 
forma lógica seja tal que ele possa ser posto em 
evidência, por meio de verificações empíricas, em 
sentido negativo: um sistema empírico deve poder ser 
refutado pela experiência”. 
Pode-se ver a adequação desse critério quando 
pensamos nos sistemas metafísicos, sempre verificáveis 
(qual fato não confirma uma das tantas filosofias da 
história?) e nunca desmentíveis (qual fato poderia 
desmentir urna filosofia da história ou uma visão 
religiosa do mundo?) 
 
Significado das teorias metafísicas 
 
Diversamente do princípio de verificação, o 
critério de falsificabilidade não é um critério de 
significância, mas, repetimos, um critério de 
demarcação entre assertivas empíricas e assertivas não 
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42 
empíricas. Entretanto, dizer que uma assertiva ou um 
conjunto de assertivas não é científico não implica em 
absoluto dizer que ele é insensato. 
Foi por essa razão que, em 1933, Popper 
escreveu uma carta ao diretor da revista “Erkenntnis”, 
dizendo entre outras coisas: “Tão logo ouvi falar do 
novo critério de verificabilidade do significado elaborado 
pelo Circulo (de Viena), lhe contrapus meu critério de 
falsificabilidade: critério de demarcação destinado a 
demarcar sistemas de assertivas científicas dos sistemas 
perfeitamente significantes de assertivas metafisicas”. 
Com efeito, nós compreendemos muito bem o 
que querem dizer os realistas, os idealistas, os solipsistas 
ou os dialéticos. Na realidade, afirma Popper, os 
neopositivistas tentaram eliminar a metafísica, 
lançando-lhe impropérios. Mas, com seu princípio de 
verificação, reintroduziram a metafísica na ciência 
(enquanto as próprias leis da natureza não são 
verificáveis). Mas o fato é que “não se pode negar que, 
ao lado das ideias metafísicas que obstaculizaram o 
caminho da ciência, também houve outras, como o 
atomismo especulativo, que contribuíram para seu 
progresso. E, olhando a questão do ponto de vista 
psicológico, estou propenso a considerar que a 
descoberta cientifica é impossível sem a fé em ideias que 
em natureza puramente especulativa e que, por vezes, 
são até bastante nebulosas - uma fé que é 
completamente desprovida de garantias do ponto de 
vista da ciência e que, portanto, dentro desses limites, é 
‘metafisica’ “. 
 
Relações entre ciência e metafísica 
 
Portanto, do ponto de vista psicológico, a pesquisa é 
impossível sem ideias metafísicas que, por exemplo 
poderiam ser as ideias de realismo, de ordem do 
universo ou de casualidade. 
Do ponto de vista histórico vemos que, por vezes, 
ideias que antes flutuavam nas regiões metafísicas mais 
altas podem ser alcançadas com o crescimento da 
ciência e, postas em contato com ela, podem se 
concretizar. São exemplos de tais ideias: o atomismo; a 
ideia de um ‘principio’ físico único ou elemento último 
(do qual derivam os outros); a teoria do movimento da 
terra (à qual Bacon se opunha, considerando-a fictícia); 
a venerável teoria corpuscular da luz; a teoria da 
eletricidade como fluido (que foi revivida com a 
hipótese de que a condução dos metais deve-se a um 
gás de elétrons). 
Todos esses conceitos e essas ideias metafisicas, 
ainda que em suas formas mais primitivas, foram de 
ajuda na ordenação da imagem que o homem faz do 
mundo. E, em alguns casos, podem também ter levado 
a previsões cercadas de êxito. Entretanto, uma ideia 
desse gênero só adquire status científico quando é 
apresentada de forma que possa ser falsificada, ou seja, 
somente se torna possível decidir empiricamente entre 
ela e alguma teoria rival. 
Tendo escrito tudo isso em 1934, Popper, em 
seu Postscript (esboçado desde 1957), a propósito dos 
programas de pesquisa metafísicos, também dizia que o 
atomismo é um exemplo excelente de uma teoria 
metafísica não controlável, cuja influência na ciência 
supera a de muitas teorias controláveis. O último e mais 
grandioso, até agora, foi o programa de Faraday, 
Maxwell, Einstein, De Broglie e Schrodinger, de 
conceber o mundo em termos de campos contínuos. 
Cada uma dessas teorias metafísicas funcionou 
como programa para a ciência, indicando a direção em 
que se poderiam encontrar teorias da ciência 
adequadamente explicativas, e tornando possível a 
avaliação da profundidade de uma teoria. Em biologia, 
a teoria da evolução, a teoria da célula e a teoria da 
infecção bacteriana desenvolveram todas um papel 
semelhante, pelo menos por algum tempo. Em 
psicologia, o sensismo, o atomismo (ou seja, a teoria 
segundo a qual todas as experiências são compostas de 
elementos últimos, como, por exemplo, os dados 
sensoriais) e a psicanalise deveriam ser recordados 
como programas de pesquisa metafísicos. 
Assertivas puramente existenciais também se 
revelaram, por vezes, inspiradoras e frutíferas na 
história da ciência, ainda que nunca tenham vindo a 
tornar-se parte dela. Aliás, poucas teorias metafísicas 
exerceram maior influência sobre o desenvolvimento 
da ciência do que a afirmação puramente metafísica de 
que existe uma substância que pode transformar os 
metais vis em ouro (isto é, uma pedra filosofal), 
afirmação que, se não é falsificável, nunca foi verificada 
e na qual ninguém mais acredita. 
Portanto, do ponto de vista psicológico, a pesquisa 
cientifica é impossível sem ideias metafísicas. Do ponto 
de vista histórico, é um dado de fato que, ao lado das ideias 
metafísicas que obstaculizaram a ciência, há outras que 
representaram fecundos programas de pesquisa; e 
existiram metafísicas que, com o crescimento do saber 
de fundo, transformaram-se em teorias verificáveis. E 
esse fato histórico nos mostra claramente que, do ponto de 
vista lógico, o âmbito do verdadeiro não se identifica com 
o âmbito do verificável. 
 
Contra a dialética, a “miséria do historicismo” 
 
Os primeiros elementos da filosofia social de 
Popper encontram-se no ensaio O que é a dialética? Esse 
escrito marca o momento em que Popper começa a se 
interessar pelos problemas de metodologia das ciências 
sociais. E com base em sua concepção do método 
científico, Popper afirma, entre outras coisas, que 
enquanto, de um lado, a contradição lógica e a 
contradição dialítica não têm nada a partilhar, do outro 
lado o método dialético é um subentendimento eabsolutização do método científico. 
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43 
No método científico com efeito não se tem 
como pretendem os dialéticos, nem uma produção 
necessária da “síntese” nem a conservação necessária, 
nesta, da “tese” e da “antítese”. 
Além disso, Popper ainda diz que, enquanto 
teoria descritiva, a dialética se resume na banalidade do 
tautológico, ou então se qualifica como teoria que 
permite justificar tudo, pois, não sendo falsificável, ela 
escapa à prova da experiência. Em essência, embora 
parecendo onipotente, a dialética, na realidade, nada 
pode. Pois bem, com base nessa premissa, vejamos os 
pontos básicos da conhecida obra de Popper, intitulada 
A miséria do historicismo. 
Esse ensaio concentra-se na crítica ao 
historicismo e ao holismo, na defesa da unidade 
fundamental do método cientifico nas ciências naturais 
e nas ciências sociais, e na consequente proposta de 
uma tecnologia social racional, ou seja, gradualista. 
Segundo os historicistas, a função das ciências sociais 
deveria ser a de captar as leis de desenvolvimento da 
evolução da história humana, de modo que se possa 
prever seus desdobramentos posteriores. 
Mas Popper sustenta que tais profecias 
incondicionadas não têm nada a ver com as predições 
condicionadas da ciência. O historicismo é capaz 
apenas de pretensiosas profecias políticas. 
 
Crítica do “holismo” 
 
O holismo é a concepção segundo a qual seria 
possível captar intelectualmente a totalidade de um 
objeto, de um acontecimento, de um grupo ou de uma 
sociedade e, paralelamente, do ponto de vista prático, 
ou melhor, político, transformar tal totalidade. Contra 
essa concepção holística, Popper observa que: 
a) por um lado, é grave erro metodológico 
pensar que nós podemos compreender a totalidade, até 
do menor e mais insignificante pedaço de mundo, visto 
que todas as teorias captam e não podem captar mais 
do que aspectos seletivos da realidade, e são por 
princípio sempre falsificáveis e, sempre por princípio, 
infinitas em número; 
b) do ponto de vista prático e operativo, o 
holismo se resolve no utopismo no que se refere à 
tecnologia social, e no totalitarismo no que se refere à 
prática política. 
Como se pode ver, Popper desenvolve a crítica 
ao historicismo e ao holismo em nome da unidade 
fundamental do método cientifico que deve existir, 
tanto nas ciências naturais como nas ciências sociais. Na 
opinião do autor, as ciências procedem segundo o 
modelo delineado na lógica da descoberta cientifica. Ou 
seja, procedem através da elaboração de hipóteses que 
formulamos para resolver os problemas que nos 
preocupam e que é preciso submeter à prova da 
experiência. 
A contraposição entre ciências sociais e ciências 
naturais verifica-se unicamente porque, amiúde, não se 
entendem o método e o procedimento das ciências 
naturais. E o fato de que as ciências sociais sejam dessa 
natureza, ou seja, da mesma natureza que as ciências 
físicas, implica que, no plano da tecnologia social, 
procede-se na solução dos problemas mais urgentes 
mediante uma série de experimentos, dispostos de 
modo a corrigir objetivos e meios com base nos 
resultados conseguidos. 
 
A sociedade aberta 
 
Desse modo, as teses metodológicas do 
historicismo, segundo Popper, constituem o suporte 
teórico mais válido das ideologias totalitárias. E ele 
procura provar essa opinião nos dois volumes de A 
sociedade aberta e seus inimigos. 
Com essa obra, Popper passa da crítica 
metodológica ao ataque ideológico contra o 
historicismo, visto como filosofia reacionária e como 
defesa da “sociedade fechada” contra a “sociedade 
aberta”, ou seja, como defesa de uma sociedade 
totalitária concebida organicamente e organizada 
tribalmente segundo normas não modificáveis. 
Ao contrário, a sociedade aberta, em sua 
concepção, configura-se inversamente como sociedade 
baseada no exercício crítico da razão humana, como 
sociedade que não apenas tolera mas também estimula, 
em seu interior e por meio das instituições 
democráticas, a liberdade dos indivíduos e dos grupos 
tendo em vista a solução dos problemas sociais, ou seja, 
tendo em vista reformas continuas. 
Mais precisamente, Popper concebe a 
democracia como a conservação e o aperfeiçoamento 
continuo de determinadas instituições, particularmente 
as que oferecem aos governados a possibilidade efetiva 
de criticar seus governantes e substitui-los sem 
derramamento de sangue. Mas, com isso, Popper não 
quer dizer que, precisamente por ser tal, o democrático 
deva aceitar a subida dos totalitários ao poder. 
Escreve Popper: “A democracia apresenta um 
campo de batalha precioso para qualquer reforma 
razoável, dado que permite a realização de reformas 
sem violência. Mas, se a defesa da democracia não se 
tornar a preocupação predominante em toda batalha 
particular travada nesse campo maior de batalha, as 
tendências antidemocráticas latentes, que sempre estão 
presentes - e que recorrem aos que padecem dos efeitos 
estressantes da civilização -, podem provocar a 
derrocada da democracia. Se a compreensão desses 
princípios ainda não estiver suficientemente 
desenvolvida, é preciso promovê-la. A linha política 
oposta pode ser fatal, pois pode implicar na perda da 
batalha mais importante, que é a batalha pela própria 
democracia. 
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44 
Para Popper é democrática a sociedade que 
possui instituições democráticas. Mas é preciso ficar 
atento, adverte ele, pois as instituições são como uma 
fortaleza: resistem se a guarnição for boa. 
 
Fé na liberdade e na razão 
 
Além disso, para Popper, os maiores ideais 
humanitários são constituídos pela justiça e pela 
liberdade. Mas ele constrói uma hierarquia em que a 
liberdade vem antes da justiça, já que, em uma 
sociedade livre, mediante a crítica intensa e reformas 
sucessivas, também se poderá caminhar para a justiça, 
ao passo que, na sociedade fechada, na tirania ou na 
ditadura, onde não é possível a crítica, a justiça 
tampouco será alcançada: aqui, haverá sempre a classe 
privilegiada dos servos do tirano. 
Para concluir, devemos dizer que, por trás de 
tudo isso, por trás dessa defesa racional e apaixonada das 
instituições democráticas, existe o que Popper chama 
de fé na razão. 
O racionalismo atribui valor à argumentação 
racional e à teoria, bem como ao controle com base na 
experiência. Mas essa decisão em favor do racionalismo, 
por seu turno, não se pode demonstrar pela 
argumentação racional e pela experiência. 
Ainda que se possa submetê-la à discussão, ela 
repousa em ótima análise na decisão irracional, na fé, na 
razio. Mas essa opção em favor da razão não é de ordem 
puramente intelectual, e sim de ordem moral. Ela 
condiciona toda a nossa atitude em relação aos outros 
homens e em relação aos problemas da vida social. E 
está estreitamente relacionada à fé na racionalidade do 
homem, no valor de cada homem. O racionalismo pode 
se acompanhar de uma atitude humanitária, muito 
melhor do que o irracionalismo, com sua rejeição da 
igualdade dos direitos. Naturalmente, os indivíduos 
humanos em particular são desiguais sob muitos 
aspectos. 
Isso, porém, não está em contraste com a 
exigência de que todos sejam tratados do mesmo modo 
e de que todos tenham direitos iguais. A igualdade 
diante da lei não é um fato, e sim uma instância política 
que repousa sobre uma opção moral. A fé na razão, 
inclusive na razão dos outros, implica a ideia de 
imparcialidade, de tolerância, de rejeição de toda 
pretensão autoritária. 
 
Os inimigos da sociedade aberta 
 
Justamente por isso Popper combate a sociedade 
fechada, ou seja, o Estado totalitário, teorizado emtempos e contextos diversos por pensadores como 
Platão, Hegel e Marx. Platão foi o Judas de Sócrates e 
propôs, na opinião de Popper, um Estado petrificado, 
estruturado sobre urna rígida divisão das classes e 
dirigido pelo domínio exclusivo dos filósofos-reis. 
Por outro lado, a filosofia hegeliana, centrada 
sobre a ideia de um inexorável desenvolvimento 
dialético da história e sobre o pressuposto da identidade 
entre o real e o racional, nada mais é do que a 
justificação e a apologia do Estado prussiano e do 
mito da horda. 
 
Popper vê no hegelianismo o arsenal conceitual 
dos movimentos totalitários modernos: do nazismo e 
da nefasta fé fascista, doutrina materialista e ao mesmo 
tempo mística, totalitária e simultaneamente tribal. E é 
ainda do hegelianismo que, segundo Popper, brotam os 
piores aspectos do marxismo, ou seja, seu historicismo (a 
pretensão de ter descoberto as leis que guiariam de 
modo ferrenho toda a história humana) e seu 
totalitarismo. 
O materialismo histórico (é a “estrutura 
econômica” que determina a “superestrutura 
ideológica”) é uma absolutização metafísica de um 
aspecto da realidade; a dialítica é um mito; e, além disso, 
os próprios marxistas proibiram as componentes 
teóricas do marxismo, que eram científicas, de se 
desenvolverem como ciência, uma vez que, diante das 
refutações históricas da teoria, eles procuraram proteger 
a teoria com hipóteses ad hoc (compensam anomalias não 
previstas pelas teorias em sua forma original, ainda não 
modificada), comportando-se como o médico que, em 
vez de salvar o paciente, procura salvar com vários 
subterfúgios o seu diagnóstico, matando o paciente. 
A pergunta justa de teoria da política, diz 
Popper, não é: “quem deve comandar?”, porque 
nenhum homem, nenhum grupo, nenhuma raça e 
nenhuma classe pode arrogar-se o direito natural de 
domínio sobre os outros. A pergunta justa é antes: 
“como é possível controlar quem comanda e substituir 
os governantes sem derramamento de sangue?” Este é 
o delineamento de quem constrói, aperfeiçoa e defende 
as instituições democráticas em favor da liberdade e dos 
direitos de cada um e, portanto, de todos. E o 
delineamento de todos os que prezam de coração a 
sociedade aberta. 
 
 
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45 
3.4 THOMAS KUHN 
 
O conceito de “paradigma” 
 
Thomas S. Kuhn integra a luta de conhecidos 
epistemólogos pós-popperianos que desenvolveram 
suas teorias epistemológicas em contato sempre mais 
estreito com a história da ciência. 
Em 1963 Kuhn publicou o livro A estrutura das 
revoluções cientificas, sustentando que a comunidade 
científica se constitui através da aceitação de teorias que 
Kuhn chama de paradigmas. “Com esse termo – 
escreve ele -, quero indicar conquistas científicas 
universalmente reconhecidas, que por certo período 
fornecem um modelo de problemas e soluções 
aceitáveis aos que praticam certo campo de pesquisas”. 
Na realidade, Kuhn utiliza o termo paradigma 
em mais de um sentido. Entretanto, ele próprio explica 
que a função do paradigma é hoje cumprida pelos 
manuais científicos, por meio dos quais o jovem 
estudante é iniciado na comunidade científica; 
antigamente isso era realizado pelos clássicos da ciência, 
como a Física de Aristóteles, o Almagesto de Ptolomeu, 
os Principia e a Ótica de Newton, a Eletricidade de 
Franklin ou a Química de Lavoisier. Por essa razão, a 
astronomia ptolemaica (ou a copernicana), a dinâmica 
aristotélica (ou a newtoniana) são todas paradigmáticas, a 
exemplo do fixismo de Lineu, da teoria da evolução de 
Darwin ou da teoria da relatividade de Einstein. 
 
“Ciência normal” e “ciência extraordinária” 
 
Assim como uma comunidade religiosa pode 
ser reconhecida pelos dogmas específicos em que 
acredita, ou como um partido político agrega seus 
membros em torno de valores e finalidades específicos, 
da mesma forma é uma teoria paradigmática a que 
institui uma comunidade científica, a qual, por força e 
no interior dos temas paradigmáticos, realiza o que 
Kuhn chama de ciência normal. A ciência normal é “a 
tentativa esforçada e devotada de forçar a natureza 
dentro dos quadros conceituais fornecidos pela 
educação profissional”. 
Significa a pesquisa estavelmente baseada em 
um ou mais resultados alcançados pela ciência do 
passado, aos quais uma comunidade cientifica 
particular, por certo período de tempo, reconhece a 
capacidade de constituir o fundamento de sua práxis 
ulterior. 
Essa práxis ulterior - a ciência normal - consiste 
em tentar realizar as promessas do paradigma, 
determinando os fatos relevantes (para o paradigma), 
confrontando (por exemplo, mediante medidas sempre 
mais exatas) os fatos com a teoria, articulando os 
conceitos da própria teoria, ampliando os campos de 
aplicação da teoria. 
Fazer ciência normal, portanto, significa 
resolver quebra-cabeças, isto é, problemas definidos 
pelo paradigma, que emergem do paradigma ou que se 
inserem no paradigma, razão por que o insucesso da 
solução de um quebra-cabeças não é visto como 
insucesso do paradigma, mas muito mais como 
insucesso do pesquisador, que não soube resolver uma 
questão para a qual o paradigma diz (e promete) que 
existe solução. 
Essa é situação análoga à do jogador de xadrez 
que, quando não soube resolver um problema e perde, 
acha que isso aconteceu porque ele não é capaz, e não 
porque as regras do xadrez não funcionam. 
A ciência normal, portanto, é cumulativa 
(constroem-se instrumentos mais potentes, efetuam-se 
medidas mais exatas, precisam-se os conceitos da teoria, 
amplia-se a teoria a outros campos etc.) e o cientista 
normal não procura a novidade. No entanto, a novidade 
deve aparecer necessariamente, pela razão de que a 
articulação teórica e empírica do paradigma aumenta o 
conteúdo informativo da teoria e, portanto, a expõe ao 
risco do desmentido (com efeito, quanto mais se diz, 
mais se está arriscado a errar; quem não diz nada, não 
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46 
erra nunca; se fala pouco, arrisca-se a cometer poucos 
erros). 
Tudo isso explica as anomalias que, em dado 
momento, a comunidade cientifica tem de enfrentar e 
que, resistindo aos reiterados assaltos paradigmáticos, 
determinam a crise do paradigma. 
Com a crise do paradigma inicia-se o período de 
ciência extraordinária: o paradigma é submetido a um 
processo de desfocamento, os dogmas são postos em 
dúvida e, consequentemente, suavizam-se as normas 
que governam a pesquisa normal. 
Em suma, postos diante de anomalias, os 
cientistas perdem a confiança na teoria que antes 
haviam abraçado. A perda de um sólido ponto de 
partida se expressa pelo recurso à discussão filosófica 
sobre os fundamentos e a metodologia. Esses são os 
sintomas da crise, que cessa quando, do cadinho 
daquele período de pesquisa desconjuntada que é a 
ciência extraordinária, um novo paradigma consegue 
emergir, e sobre ele se articulará novamente a ciência 
normal, que, por seu turno, depois de um período de 
tempo talvez bastante longo, levará a novas anomalias, 
e assim por diante. 
 
As revoluções científicas 
 
Kuhn descreve a passagem a um novo 
paradigma (da astronomia ptolemaica à copernicana, 
por exemplo) como urna reorientação gestáltica: 
quando abraça um novo paradigma, por exemplo, a 
comunidade cientifica manipula o mesmo número de 
dados que antes, mas inserindo-os em relações 
diferentes de antes. Além disso, a passagem de um 
paradigma a outro, para Kuhn, é o que constitui uma 
revolução científica. Mas - e esse é um dos problemas 
mais candentes suscitados por Kuhn - como ocorre a 
passagem de um paradigma para outro? Essa passagem 
realiza-se por motivos racionaisou não? 
 
Pois bem, Kuhn afirma que “paradigmas 
sucessivos nos dizem coisas diferentes sobre os objetos 
que povoam o universo e sobre o comportamento de 
tais objetos”. E “precisamente por se tratar de urna 
passagem entre incomensuráveis, a passagem de um 
paradigma para outro, oposto, não se pode realizar com 
um passo cada vez, nem imposto pela lógica ou por 
uma experiência, neutra. Como a reorientação 
gestáltica, ela deve se dar toda de uma vez (ainda que 
não em um só instante), ou então não se realizará de 
modo nenhum”. 
Assim, talvez Max Planck tenha razão quando, 
em sua Autobiografia, fez questão de observar com 
tristeza que “uma nova verdade cientifica não triunfa 
convencendo seus opositores e fazendo-lhes ver a luz, 
e sim muito mais porque seus opositores acabam por 
morrer, e cresce uma nova geração a ela habituada”. 
 
A “passagem” de um paradigma para outro 
 
Na realidade, Kuhn afirma que “a transferência 
da confiança de um paradigma para outro é uma 
experiência de conversão que não pode ser imposta pela 
força”. 
Mas então por que, e em que bases, se verifica 
essa experiência de conversão? 
Os cientistas em particular abraçam um novo 
paradigma por todo tipo de razões e, habitualmente, 
por várias razões ao mesmo tempo. Algumas dessas 
razões - como, por exemplo, o culto ao sol, que 
contribuiu para converter Kepler ao copernicanismo - 
encontram- se completamente fora da esfera da ciência. 
Outras razões podem depender de idiossincrasias 
autobiográficas e pessoais. 
Até a nacionalidade ou a reputação anterior do 
inovador e de seus mestres pode, por vezes, 
desempenhar papel importante. 
Provavelmente, a pretensão mais importante 
posta pelos defensores de um novo paradigma seja a de 
estar em condições de resolver os problemas que 
levaram o velho paradigma à crise. Quando pode ser 
posta legitimamente, essa pretensão constitui 
frequentemente a argumentação a favor mais eficaz. 
Além disso, deve-se considerar que, por vezes, 
a aceitação de um novo paradigma não se deve ao fato 
de que ele resolve os problemas que o velho paradigma 
não consegue resolver, e sim a promessas que dizem 
respeito a outros campos. E existem até razões estéticas 
que introduzem um cientista ou um grupo de cientistas 
a aceitar um paradigma. Entretanto, Kuhn afirma que 
nos debates sobre os paradigmas não se discutem 
realmente suas respectivas capacidades para resolver os 
problemas, ainda que, com razão, normalmente sejam 
utilizados termos que a eles se refiram. 
O ponto em discussão, ao contrário, consiste 
em decidir que paradigma deve guiar a pesquisa no 
futuro, em torno de problemas que, muitas vezes, 
nenhum dos dois competidores pode ainda pretender 
seja capaz de resolver completamente. É preciso decidir 
entre formas alternativas de desenvolver a atividade 
científica e, dadas as circunstâncias, essa decisão deve-
se basear mais nas promessas futuras do que nas 
conquistas passadas. 
Quem abraça um novo paradigma desde o 
início, frequentemente o faz a despeito das provas 
fornecidas pela solução dos problemas. Ou seja, ele 
deve ter confiança de que o novo paradigma, no futuro, 
conseguira resolver muitos dos vastos problemas que 
tem à sua frente, sabendo somente que o velho 
paradigma não conseguiu resolver alguns. Uma decisão 
desse tipo pode ser tomada apenas com base na fé. 
Assim, para que um paradigma possa triunfar, 
deve primeiro conquistar (as vezes, com base em 
considerações pessoais ou em considerações estéticas 
inarticuladas) “alguns defensores, que o desenvolverão 
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47 
até um ponto em que muitas argumentações sólidas 
poderão ser produzidas e multiplicadas. Mas, quando 
existem, essas argumentações também não são 
individualmente decisivas. Visto que os cientistas são 
homens racionais, uma ou outra argumentação acabará 
por persuadir muitos deles. Não existe, porém, 
nenhuma argumentação em particular que possa ou 
deva persuadir a todos. O que se verifica não é tanto 
uma única conversão de grupo, e sim muito mais um 
progressivo deslocamento da distribuição da confiança 
dos especialistas”. 
 
O desenvolvimento ateleológico da ciência 
 
Pergunta-se, porém: a passagem de um 
paradigma para outro implica em progresso? 
O problema é complexo. Entretanto, somente 
durante os períodos de “ciência normal” é que o 
progresso parece evidente e seguro, ao passo que 
durante os períodos de revolução, quando as doutrinas 
fundamentais de um campo estão mais uma vez em 
discussão, surgem repetidamente dúvidas sobre a 
possibilidade de continuação do progresso, se for 
adotado este ou aquele dos paradigmas que se 
confrontam. 
Naturalmente, quando um paradigma se afirma, 
seus defensores o encaram como progresso. Mas Kuhn 
pergunta: progresso em que direção? Com efeito, diz ele, 
o processo que vemos na evolução da ciência é um 
processo de evolução a partir de estágios primitivos, o 
que não significa, porém, que tal processo leve a 
pesquisa sempre para mais perto da verdade ou em 
direção a algo. 
“Seria necessário existir tal objetivo?” - 
pergunta-se ele -. Não é possível explicar a existência da 
ciência como o seu sucesso em termos de evolução a 
partir do estado do conhecimento possuído pela 
comunidade em cada dado período de tempo? 
Adiantará verdadeiramente alguma coisa 
imaginar que exista uma explicação da natureza 
completa, objetiva e verdadeira, e que a medida 
apropriada da conquista cientifica é a medida em que 
ela se aproxima desse objetivo final? Se aprendermos a 
substituir a evolução na direção daquilo que queremos 
conhecer pela evolução a partir daquilo que 
conhecemos, grande número de inquietantes problemas 
pode se dissolver no curso desse processo. 
Assim como na evolução biológicas, também na 
evolução da ciência nos encontramos diante de um 
processo que se desenvolve constantemente a partir de 
estágios primitivos, mas que não tende a nenhum 
objetivo. 
 
 
 
 
 
3.5 PAUL FEYERABEND 
 
O livro de Feyerabend (1924-1994) Contra o 
método (1970) foi escrito na convicção de que “o 
anarquismo, embora não sendo talvez a filosofia política 
mais atraente, é sem dúvida um excelente remédio para 
a epistemologia e para a filosofia da ciência”. 
Em essência, segundo Feyerabend, é preciso 
abandonar a quimera de que as normas “ingênuas e 
simplistas” propostas pelos epistemólogos podem 
explicar o “labirinto de interações” apresentado pela 
história real. A história em geral e a história das 
revoluções em particular são sempre mais ricas em 
conteúdos, mais variadas, mais multilaterais, mais vivas 
e mais ‘astutas’ do que pode ser imaginado até pelo 
melhor historiador e pelo melhor metodólogo”. 
Consequentemente, o anarquismo 
epistemológico de Feyerabend consiste na tese de que a 
ideia de um método que contenha princípios estáticos, 
imutáveis e absolutamente obrigatórios como guia para 
a atividade cientifica se defronta com dificuldades 
consideráveis quando é posta diante dos resultados da 
pesquisa histórica. 
Podemos ver que não existe uma norma isolada, 
por mais plausível e por mais solidamente radicada na 
epistemologia, que não tenha sido violada em alguma 
circunstância. 
Também se torna evidente que tais violações 
não são acontecimentos acidentais, e que não são 
resultado de um saber insuficiente ou de desatenções 
que teriam podido ser evitadas. Ao contrário, vemos 
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48 
que tais violações são necessárias para o progresso 
científico. 
Uma das características que mais chamam a 
atenção nas recentes discussões sobre a história e a 
filosofia da ciência é a tomada de consciência do fatojá 
estabelecidos. Não é ela que fundamenta e estabelece o 
que sejam o bem e o mal, como base para orientarmos 
nossa vida; quem decide sobre o bem e o mal é agora o 
“sistema”, ou seja, o poder. 
A razão, tendo renunciado à sua autonomia, 
tornou-se um instrumento. 
 
A filosofia como denúncia da razão instrumental 
 
 Diante desse vazio terrível, procurasse remediá-
lo voltando a sistemas como a astrologia, a ioga ou o 
budismo; ou então são propostas adaptações populares 
de filosofias clássicas objetivistas ou, ainda, 
recomendam-se para o uso moderno as ontologias 
medievais. 
As panaceias, porém, não deixam de ser 
panaceias. A realidade, no entanto, é que: 
1) A natureza é concebida hoje, mais do que 
nunca, como simples instrumento do homem; é o 
objeto de exploração total, a qual a razio não atribui 
nenhum objetivo e que, portanto, não conhece limites. 
2) O pensamento que não serve aos interesses 
de um grupo constituído ou aos objetivos da produção 
industrial considera-se inútil e supérfluo. 
3) Essa decadência do pensamento favorece a 
obediência aos poderes constituídos, sejam eles 
representados pelos grupos que controlam o capital, ou 
pelos grupos que controlam o trabalho. 
4) A cultura de massa procura “vender” aos 
homens o modo de vida que já levam e que odeiam 
inconscientemente, ainda que o louvem com palavras. 
5) Não só a capacidade de produção do operário 
é hoje comprada pela fábrica e subordinada às 
exigências da técnica, mas também os chefes dos 
sindicatos estabelecem sua medida e a administram. 
6) A deificação da atividade industrial não 
conhece limites. O ócio é considerado uma espécie de 
vício, quando vai além da medida do que é necessário 
para restaurar as forças e permitir retomar o trabalho 
com maior eficiência. 
7) O significado da produtividade é medido 
com critérios de utilidade em relação a estrutura de 
poder, não mais em relação as necessidades de todos. 
Nessa situação desesperada, o maior serviço 
que a razão poderia prestar a humanidade seria o da 
denúncia do que é comumente chamado de razão. 
Escreve ainda Horkheimer: “Os verdadeiros 
indivíduos de nosso tempo são os mártires que 
passaram por infernos de sofrimento e degradação em 
sua luta contra a conquista e a opressão, não mais as 
personagens da cultura popular, infladas pela 
publicidade. Aqueles heróis, que ninguém cantou, 
expuseram conscientemente sua existência individual a 
destruição sofrida por outros sem ter consciência disso, 
como vítimas dos processos sociais. Os mártires 
anônimos dos campos de concentração são o símbolo 
de uma humanidade que luta para vir à luz. A função da 
filosofia é a de traduzir o que eles fizeram em palavras 
que os homens possam ouvir, ainda que suas vozes 
mortais tenham sido reduzidas ao silêncio pela tirania”. 
 
A nostalgia do “totalmente outro” 
 
 Marxista e revolucionário quando jovem, 
Horkheimer foi se afastando pouco a pouco de suas 
posiq6es juvenis. 
Não podemos absolutizar nada (deve-se 
recordar que Horkheimer é de origem judaica) e, 
portanto, também não podemos absolutizar o 
marxismo. Todo ser finito - e a humanidade é finita - 
que se pavoneia como o valor último, supremo e único, 
torna-se ídolo, que tem sede de sacrifícios de sangue. 
Marxista por ser contrário ao nacional- 
socialismo, Horkheimer desde o início nutriu dúvidas 
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6 
sobre o fato de se a solidariedade do proletariado 
pregada por Marx era verdadeiramente o caminho para 
chegar a urna sociedade justa. Na realidade - observa 
Horkheimer em A nostalgia do totalmente Outro (1970) - as 
ilusões de Marx logo vieram à tona: “A situação social 
do proletariado melhorou sem a revolução, e o interesse 
comum não é mais a transformação radical da 
sociedade, e sim a melhor estruturação material da 
vida”. E, na opinião de Horkheimer, existe uma 
solidariedade que vai além da solidariedade de 
determinada classe: é a solidariedade entre todos os 
homens, a solidariedade que deriva do fato de que todos 
os homens devem sofrer, devem morrer e são finitos. 
 
Se assim é, então “todos nós temos em comum 
um interesse originariamente humano, qual seja, o de 
criar um mundo no qual a vida de todos os homens seja 
mais bela, mais longa, mais livre da dor e, gostaria de 
acrescentar, mas não posso acreditar nisso, um mundo 
que seja mais favorável ao desenvolvimento do 
espirito”. 
Diante da dor do mundo e diante da injustiça, 
não podemos ficar inertes. Mas nós, homens, somos 
finitos. Por isso, embora não devamos nos conformar, 
também não podemos pensar que algo histórico – uma 
política, uma teoria, um Estado - seja algo absoluto. 
Nossa finitude, ou seja, nossa precariedade, não 
demonstra a existência de Deus. Entretanto, existe a 
necessidade de uma teologia, não entendida como 
ciência do divino ou de Deus, e sim como “a 
consciência de que o mundo é fenômeno e, portanto, 
não a verdade absoluta que só a realidade última pode 
ser. A teologia – e aqui devo me expressar com muita 
cautela - é a esperança de que, apesar dessa injustiça que 
caracteriza o mundo, possa acontecer que essa injustiça 
não seja a última palavra”. 
Assim para Horkheimer, portanto, a teologia é 
expressão de uma nostalgia segundo a qual o assassino 
não possa triunfar sobre sua vítima inocente. Portanto, 
nostalgia de justiça perfeita e consumada. Esta jamais 
poderá ser realizada na história, diz Horkheimer. 
Com efeito, ainda que a melhor sociedade viesse 
a substituir a atual desordem social, não será reparada a 
injustiça passada e não se anulará a miséria da natureza 
circunstante. 
Entretanto, isso não significa que devamos nos 
render aos fatos, como, por exemplo, ao fato de que 
nossa sociedade se torna sempre mais sufocante. 
Segundo Horkheimer, nós ainda não vivemos em uma 
sociedade automatizada. Ainda podemos fazer muitas 
coisas, mesmo que mais tarde essa possibilidade venha 
a ser-nos tirada. 
E o que o filósofo deve fazer é criticar a ordem 
constituída para impedir que os homens se percam 
naquelas ideias e naqueles modos de comportamento 
que a sociedade lhes propicia em sua organização. 
 
3. HERBERT MARCUSE 
É impossível uma civilização não-repressiva? 
 
Eros e civilização 
(1955) desenvolve um dos 
temas mais importantes do 
pensamento de Freud, ou 
seja, a teoria freudiana de 
que a civilização se baseia na 
repressão permanente dos 
instintos humanos. 
Como escrevia 
Freud, “a felicidade não é 
um valor cultural”. E, comenta Marcuse (1898-1979), 
isso no sentido de que “a felicidade está subordinada a 
um trabalho que ocupa toda a jornada, a disciplina da 
reprodução monogâmica, ao sistema constituído das 
leis e da ordem. O sacrifício metódico da libido e seu 
desvio imposto inexoravelmente, para atividades e 
expressões socialmente úteis, são a cultura”. 
Na opinião de Freud, a história do homem é a 
história de sua repressão. A cultura ou civilização impõe 
constrições sociais e biológicas ao indivíduo, mas essas 
constrições são a condição preliminar do progresso. 
Deixados livres para seguir seus objetivos 
naturais, os instintos fundamentais do homem seriam 
incompatíveis com toda forma duradoura de 
associação: “Os instintos, portanto, devem ser 
desviados de sua meta, e inibidos em seu objetivo. A 
civilização começa quando se renuncia eficazmente ao 
objetivo primário: a satisfação integral das 
necessidades”. 
Essa renúncia ocorre na forma de 
deslocamento: 
DE PARA 
Satisfação Satisfação 
Imediata Adiada 
Prazer Limitação do prazer 
Alegria (jogo) Fadiga (trabalho) 
Receptividade Produtividade 
Ausência de repressão Segurança 
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que acontecimentos e desdobramentos como a 
invenção do atomismo na antiguidade, a revolução 
copernicana, o advento da teoria atômica moderna 
(teoria cinética, teoria da dispersão, estereoquimica, 
teoria quântica) e o surgimento gradual da teoria 
ondulatória da luz só se verificaram porque alguns 
pensadores decidiram não se deixar obrigar por certas 
normas metodológicas “óbvias”, ou porque as 
violaram involuntariamente. 
Tal liberdade de ação, segundo Feyerabend, não 
é somente um fato da história da ciência. Ela é tão 
racional quanto absolutamente necessária para o 
crescimento do saber. Mais especificamente, pode-se 
demonstrar o seguinte: dada uma norma qualquer, por 
mais “fundamental” ou “necessária” que ela seja para a 
ciência, há sempre circunstâncias nas quais é oportuno 
não somente ignorar a norma, mas também adotar seu 
oposto. 
Por exemplo, há circunstâncias nas quais é 
aconselhável introduzir, elaborar e defender hipóteses 
ad hoc (compensam anomalias não previstas pelas teorias 
em sua forma original, ainda não modificada), ou 
hipóteses cujo conteúdo seja menor em relação ao das 
hipóteses alternativas existentes e empiricamente 
adequadas, ou ainda, hipóteses autocontraditórias etc. 
Há inclusive circunstâncias - que, aliás, se 
verificam bastante frequentemente - nas quais o 
raciocínio perde seu aspecto orientado para o futuro, 
tornando-se até obstáculo para o progresso. 
 
3.6 KARL MANNHEIM 
 
Concepção parcial e total da ideologia 
 
Aqui, delinearemos os traços de fundo das 
teorias de Karl Mannheim (1893-1947), o pensador que, 
mais do que qualquer outro, contribuiu (com seu 
trabalho Ideologia e utopia, 1929) para a proposição dos 
problemas típicos da sociologia do conhecimento. 
A sociologia do conhecimento ou sociologia do 
saber estuda os condicionamentos sociais do saber, 
“procurando analisar a relação entre conhecimento e 
existência”. 
O fato de pertencer a determinada classe, como, 
por exemplo, a classe burguesa ou proletária, implica o 
que para as ideias morais, religiosas, políticas, 
econômicas, ou para o próprio modo de fazer ciência 
de quem a ela pertence? E como são condicionadas as 
produções mentais de quem pertence a uma Igreja, a 
uma camada social, a um partido ou a uma geração em 
função dessa participação? Na realidade, escreve 
Mannheim, “há aspectos do pensar que não podem ser 
adequadamente interpretados enquanto suas origens 
sociais permanecerem obscuras”. 
A consciência do condicionamento social das 
categorias e das produções mentais não é coisa recente. 
Assim, apenas para citar alguns pensadores do passado, 
a teoria dos idola de Bacon é exemplo da consciência do 
condicionamento social do pensamento. 
Mas essa consciência também pode ser 
encontrada em Malebranche, Pascal, Voltaire, 
Montesquieu, Saint-Simon e, mais recentemente, em 
Nietzsche. Foi Maquiavel quem observou que se pensa 
de um modo na praça e de outro no palácio. E Marx, por 
seu turno, estabeleceu como um dos fulcros de seu 
pensamento a ideia de que “não é a consciência dos 
homens que determina seu ser, mas, ao contrário, é o 
seu ser social que determina sua consciência”. 
Pois bem, a sociologia do conhecimento assume 
e modifica criticamente essa conhecida afirmação de 
Marx, no sentido de que, sem negar que exista a 
influência da sociedade sobre o pensamento, a 
sociologia do conhecimento considera que essa 
influência não é determinação, e sim condicionamento. 
Para Mannheim, o marxismo viu claramente 
que por trás de toda doutrina se encerra a consciência 
de uma classe. Esse pensamento coletivo, que procede 
de acordo com determinados interesses e situações 
sociais, Marx o chamou de ideologia. 
Em Marx, a ideologia é um pensamento 
subvertido (não são as ideias que dão sentido a 
realidade, mas sim a realidade social que determina as 
ideias morais, religiosas, filosóficas etc.) e distorcido (o 
burguês, por exemplo, propõe suas ideias como 
universalmente validas, embora elas sejam somente a 
defesa de interesses particulares), que tende a justificar 
e manter uma situação de fato. 
É a partir da concepção marxista de ideologia 
que Mannheim começa a tecer a rede de seus conceitos. 
Antes de mais nada, ele distingue entre concepção 
particular da ideologia e concepção total. Escreve 
Mannheim que, “na primeira, incluímos todos aqueles 
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49 
casos em que a ‘falsidade’ deve-se a um elemento que, 
intencional ou não, consciente ou inconsciente, 
permanece em nível psicológico e não supera o plano 
da simples mentira”. 
Nessa concepção particular de ideologia, nos 
referimos sempre a afirmações especificas que podem 
ser vistas como deformações e falsificações, sem que 
por isso fique comprometida a integridade da estrutura 
mental do sujeito. 
Mas a sociologia do conhecimento 
problematiza precisamente essa estrutura mental em 
sua totalidade, tal como ela aparece nas diversas 
correntes de pensamento e nos vários grupos histórico-
sociais. Em outros termos, a sociologia do saber não 
critica as simples afirmações que camuflam situações 
particulares; ao contrário, ela muito mais “as examina 
em plano estrutural ou noológico, que não se apresenta 
de modo algum igual em todos os homens, mas é tal 
que a mesma realidade assume diversas formas e 
aspectos no curso do desenvolvimento social. 
 
A concepção particular da ideologia mantém 
suas analises “em nível puramente psicológico”, 
enquanto a concepção total da ideologia refere-se à 
ideologia de uma época ou de um grupo histórico-
social, como uma classe. A concepção total chama em 
causa toda a cosmovisão da oposição (inclusive todo o 
seu instrumento conceitual), compreendendo tais 
conceitos como produto da vida coletiva de que 
participa. Desmascaramos a ideologia parcial quando, 
por exemplo, dizemos ao adversário que essa sua ideia 
é somente uma defesa do seu posto de trabalho ou deste 
ou daquele privilégio social, e estou descobrindo uma 
ideologia total quando constato correspondência entre 
uma situação social e determinada perspectiva ou 
consciência coletiva. 
 
O marxismo é “ideológico”? A distinção entre 
ideologia e utopia 
 
Marx utilizou unilateralmente a descoberta do 
condicionamento social do pensamento. Ele procurou 
invalidar a concepção burguesa do mundo não porque 
ela seja um “engano político deliberado”, e sim porque 
determinada por uma situação social precisa. A 
cosmovisão burguesa é filha direta de uma situação 
histórica e social. Mas, se o condicionamento social vale 
para o pensamento burguês, pergunta-se Mannheim, 
não valerá também para o pensamento marxista? 
Escreve Mannheim: “Pode-se mostrar 
facilmente que aqueles que pensam em termos 
socialistas e comunistas só identificam o elemento 
ideológico nas ideias de seus adversários, ao passo que 
consideram suas próprias ideias como inteiramente 
livres da deformação ideológica. Como sociólogos, não 
temos nenhuma razão para deixar de aplicar ao 
marxismo o que ele próprio descobriu, e para não 
identificar, caso por caso, seu caráter ideológico”. E 
precisamente quando alguém “tem a coragem de 
submeter não só o ponto de vista do adversário, mas 
qualquer ponto de vista, inclusive o seu próprio, a 
análise ideológica, então se passa da crítica da ideologia à 
sociologia do conhecimento propriamente dita. Sociologia do 
conhecimento que realiza também outra distinção: a 
distinção entre ideologia e utopia. 
Por ideologia, diz Mannheim, entendem-se “as 
convicções e ideias dos grupos dominantes, os fatores 
inconscientes de certos grupos que ocultam o estado 
real da sociedade para si e para outros, exercendo, 
portanto, sobre ele função conservadora”. 
Já o conceito de utopia mostra uma segunda e 
inteiramente oposta descoberta: “Existem grupos 
subordinados tão fortemente empenhadosna 
transformação de determinada condição social, que só 
conseguem perceber na realidade os elementos que eles 
tendem a negar. Seu pensamento é incapaz de um 
diagnóstico correto da sociedade presente”. 
O pensamento de tais grupos nunca constitui 
uma visão objetiva da situação, podendo ser usado 
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50 
somente como diretriz para a ação. É pensamento que 
dá as costas a tudo o que poderia ameaçar sua convicção 
profunda ou paralisar seu desejo de revolução. 
Portanto, enquanto a ideologia é o pensamento 
conservador que se ergue em defesa dos interesses 
adquiridos, a utopia é o pensamento voltado a destruir a 
ordem existente. Assim, para Mannheim, a utopia é um 
projeto realizável; trata-se de uma “verdade prematura”. 
De tais utopias, também elas obviamente 
condicionadas socialmente, Mannheim analisa quatro 
formas: 
1) o quiliasmo orgiástico dos anabatistas; 
2) o ideal liberal-humanitário que guiou o 
movimento da Revolução Francesa; 
3) o ideal conservador; 
4) a utopia socialista-comunista. 
A ideologia é o pensamento da classe 
“superior”, que detém o poder e procura não perdê-lo; 
a utopia é o pensamento da classe “inferior”, que visa 
libertar-se das opressões e tomar o poder. 
 
O “relacionamento” evita o “relativismo” 
 
Se o pensamento é socialmente condicionado, 
então também a sociologia do conhecimento deve ser 
socialmente condicionada. E Mannheim está pronto a 
reconhecer esse condicionamento. Podemos 
identificar, com relativa precisão, as condições que 
impelem as pessoas a refletir mais sobre o pensamento 
do que sobre as coisas do mundo e mostrar que, nesse 
caso, não se faz tanta questão de uma verdade absoluta, 
e sim muito mais do fato, em si mesmo alarmante, da 
mesma realidade que se apresenta diversamente para 
diferentes observadores. 
Mannheim vê na base da gênese da sociologia 
do conhecimento “a intensificação da mobilidade 
social”. Trata-se de uma mobilidade vertical e 
horizontal: a horizontal é “o movimento de uma 
posição a outra ou de um lugar a outro, sem que ocorra 
mudança no estado social”; a vertical, ao contrário, 
consiste em “rápido movimento entre as diversas 
camadas, no sentido de ascensão ou de declínio social”. 
Um e outro tipo de mobilidade contribuem para 
tornar as pessoas incertas em relação a sua concepção 
do mundo e a destruir a ilusão, dominante nas 
sociedades estáticas, de que “tudo pode mudar, mas o 
pensamento permanece eternamente o mesmo”. Aí, 
portanto, está a raiz social da sociologia do 
conhecimento: a dissolução das sociedades estáveis. 
Chegando-se a esse ponto, resta enfrentar o 
principal problema da sociologia do conhecimento. 
Com efeito, se todo pensamento é socialmente 
condicionado, e se toda concepção do mundo é relativa 
à condição social de seu portador, então onde está a 
verdade? Não há mais nenhum critério para distinguir 
concepções verdadeiras de concepções falsas? O 
pressuposto fundamental da sociologia do 
conhecimento (ou seja, o condicionamento social do 
pensamento) não leva necessariamente ao relativismo? 
São problemas que não podem ser evitados. E 
Mannheim os enfrenta e tenta resolvê-los com sua 
teoria da intellighentzia e, vinculada a ela, a teoria do 
relacionismo. 
O pensamento é socialmente condicionado, diz 
Mannheim, mas, consciente dos condicionamentos do 
seu pensamento e dos condicionamentos das outras 
concepções do mundo, o intelectual, precisamente com 
base nesta sua consciência, conseguiria se desvincular 
do condicionamento social. 
Em suma, na sua opinião, a intellighentzia seria 
um grupo relativamente independente daqueles 
interesses sociais que interferem nas concepções de 
mundo dos outros grupos, limitando-as. Em suma, 
conscientes dos laços entre as diversas cosmovisões e a 
existência social, os intelectuais estariam em condições 
de chegar a “uma síntese das virias perspectivas” e, 
portanto, a uma visão mais objetiva da realidade. Daí a 
teoria do relacionismo. 
Escreve Mannheim: “A sociologia do 
conhecimento submete consciente e sistematicamente 
todo fenômeno intelectual, sem exceção, à pergunta: 
em relação a que estrutura social tais fenômenos 
nascem e são válidos? A referência das ideias individuais 
a toda a estrutura histórico-social não deveria ser 
confundida com um relativismo filosófico, que nega a 
validade de todo modelo e a existência de uma ordem 
no mundo. Assim como o fato de que toda medida no 
espaço depende da natureza da luz não significa que 
nossas medidas sejam arbitrárias, e sim que elas são 
válidas em relação à luz, da mesma forma é o 
relacionismo que se aplica às nossas discussões, e não o 
relativismo e a arbitrariedade a ele implícita. O 
relacionismo não significa que faltem critérios de 
verdade na discussão. Segundo ele, entretanto, é 
próprio da natureza de certas afirmações o não 
poderem ser formuladas em absoluto, mas somente nos 
termos da perspectiva posta por determinada situação”. 
Ora, considerando precisamente o exemplo 
escolhido por Mannheim, podemos logo ver que há 
uma diferença abissal entre a relatividade dos 
conhecimentos fornecidos pelas ciências naturais e o 
relativismo das várias perspectivas em que, 
habitualmente, se faz caminhar a sociologia do 
conhecimento. Todo conhecimento cientifico é relativo 
a época em que é proposto e provado: depende do 
saber anterior, dos instrumentos disponíveis na época 
etc. Entretanto, quando respeitadas as condições do 
método cientifico, as teorias cientificas são universais e 
válidas para todos, ainda que desmentíeis em período 
posterior. 
O trabalho de Mannheim levantou toda uma 
série de problemas, sobre os quais trabalharia 
posteriormente a sociologia empírica, tanto européia 
como norte-americana. 
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51 
4. PRAGMATISMO 
O pragmatismo é a forma que o empirismo 
assumiu nos Estados Unidos 
 
O pragmatismo nasceu nos Estados Unidos nas 
últimas décadas do século passado, e sua força de 
expressão, tanto na América quanto na Europa, chegou 
a seu ponto máximo nos primeiros quinze anos do 
século XX. Do ponto de vista sociológico, o 
pragmatismo representa a filosofia de uma nação 
voltada com confiança para o futuro, enquanto do 
ponto de vista da história das ideias ele se configura 
como a contribuição mais significativa dos Estados 
Unidos à filosofia ocidental. O pragmatismo é a forma 
que o empirismo tradicional assumiu nos Estados 
Unidos. 
Com efeito, enquanto o empirismo tradicional, 
de Bacon a Locke, de Berkeley a Hume, considerava 
válido o conhecimento baseado na experiência e a ela 
redutível - concebendo a experiência como a 
acumulação e organização progressiva de dados 
sensíveis passados ou presentes -, para o pragmatismo 
a experiência é abertura para o futuro, é previsão, é 
norma de ação. 
Os representantes mais prestigiosos do 
movimento pragmatista nos Estados Unidos foram: 
Charles Peirce, William James e John Dewey. 
 
4.1 CHARLES S. PEIRCE E OS 
PROCEDIMENTOS PARA FIXAR AS 
CRENÇAS 
 
Se o pragmatismo de William James teve mais 
sucesso na época, no entanto o pragmatismo de Charles 
S. Peirce (1839-1914) exerceu e ainda em nossos dias 
exerce influência decididamente mais importante sobre 
as pesquisas metodológicas e semiológicas. 
Para Peirce, o conhecimento é pesquisa. E a 
pesquisa se inicia com a dúvida. E a irritação da dúvida 
que causa a luta para se obter o estado de crença, que é 
um estado de calma e satisfação. E nós procuramos 
obter crenças, já que são esses hábitos que determinam 
as nossas ações. 
Pois bem, por quais caminhos ou 
procedimentos se passa da dúvida à crença? 
 No ensaio de 1877 Afixação da crença Peirce sustenta 
que os métodos para fixar a 
crença são substancialmente 
redutíveis a quatro: 
 
1) o método da tenacidade; 
2) o método da autoridade; 
3) o método do a priori; 
4) por fim, o método 
científico. 
 
1) O método da tenacidade 
é o comportamento do 
avestruz, que esconde a cabeça 
na areia quando se aproxima o 
perigo; é o caminho de quem está seguro somente na 
aparência, ao passo que, em seu interior, está 
espantosamente inseguro. E tal insegurança emerge 
quando ele se defronta com outras crenças, reputadas 
igualmente boas por outros. O impulso social, escreve 
Peirce, é contra esse método. 
2) O método da autoridade é o de quem, com a 
ignorância, o terror e a inquisição, quer alcançar a 
concordância de quem não pensa igual ou não pensa em 
harmonia com o grupo ao qual pertence. 
Este é um método que tem incomensurável 
superioridade mental e moral sobre o método da 
tenacidade, e seu sucesso tem sido grande e de fato 
sempre apresentou os mais majestosos resultados; este 
é o método das fés organizadas. Mas nenhuma de tais 
fés organizadas permaneceu eterna; na opinião de 
Peirce, a crítica as corroeu e a história as redimensionou 
e, de qualquer forma, as particularizou. 
3) O método do “a priori” é o de quem considera 
que suas próprias proposições fundamentais estão de 
acordo com a razão. Entretanto, observa Peirce, a razão 
de um filósofo não é a razão de outro filósofo, como o 
demonstra a história das ideias metafísicas. O método a 
priori leva ao insucesso, porque faz da pesquisa algo 
semelhante ao desenvolvimento do gosto, visto ser 
método que não difere de modo essencial do método 
da autoridade. 
4) Assim, por um ou outro motivo, os três 
métodos precedentes (da tenacidade, da autoridade e do 
a priori) não se sustentam. 
Se quisermos estabelecer validamente as nossas 
crenças, segundo Peirce, o método correto é o método 
cientifico. 
 
Dedução, indução e abdução 
 
Ora, na ciência, temos três diferentes modos 
fundamentais de raciocínio: 
a) a dedução; 
b) a indução; e aquela que Peirce chama de 
c) abdução. 
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52 
a) A dedução é o raciocínio que não pode levar 
de premissas verdadeiras a conclusões falsas. 
b) A indução é argumentação que, a partir do 
conhecimento de que certos membros de uma classe, 
escolhidos ao acaso, possuem certas propriedades, 
conclui que todos os membros da mesma classe 
igualmente as terão. A indução, diz Peirce, move-se na 
linha de fatos homogêneos; classifica e não explica. 
C) O salto da linha dos fatos para a das suas 
razões, ao contrário, temos com o tipo de raciocínio que 
Peirce chama de abdução, cujo esquema é o seguinte: 
1. Observa-se C, um fato surpreendente. 
2. Mas, se A fosse verdadeiro, então C seria 
natural. 
3. Portanto, há razões para suspeitar que A seja 
verdadeiro. 
Esse tipo de argumentação nos diz que, para 
encontrar a explicação de um fato problemático, 
devemos inventar uma hipótese ou conjectura, da qual 
se deduzam consequências, que, por seu turno, possam 
ser verificadas indutivamente, isto é, 
experimentalmente. 
Esse é o modo pelo qual a abdução mostra-se 
intimamente relacionada com a dedução e a indução. 
Por outro lado, a abdução mostra que as crenças 
cientificas são sempre falíveis, já que as provas 
experimentais sempre poderão desmentir as 
consequências de nossas conjecturas: “Para a mente 
cientifica, a hipótese deve ser o tempo todo provada”. 
 
Como tornar clara as nossas ideias: a regra 
pragmática 
 
O método válido para fixar as crenças, portanto, 
é o método cientifico, que consiste em formular 
hipóteses e submetê-las à verificação, com base em suas 
consequências. Por outro lado, a regra válida para a 
teoria do significado, isto é, a regra adequada para 
estabelecer o significado de um conceito, é a regra 
pragmática, segundo a qual um conceito se reduz a seus 
efeitos experimentais concebíveis; estes efeitos 
experimentais se reduzem, por sua vez, a ações 
possíveis (ou seja, a ações efetuáveis no momento em 
que se apresentar a ocasião); e a ação se refere 
exclusivamente a aquilo que atinge os sentidos. 
Do que foi dito torna-se evidente que o 
pragmatismo de Peirce não reduz de modo algum a 
verdade à utilidade, mas se estrutura muito mais como 
uma lógica da pesquisa ou uma norma metodológica 
que vê a verdade como por fazer, no sentido de 
considerar verdadeiras as ideias cujos efeitos 
concebíveis são comprovados pelo sucesso prático, 
sucesso jamais definitivo e absoluto. A verdade, escreve 
Peirce, jaz no futuro. 
 
 
4.2 O EMPIRISMO RADICAL DE WILLIAM 
JAMES 
 
O pragmatismo é apenas um método 
 
Apesar de James (1842-1910) ser laureado em 
medicina e ter ensinado fisiologia e anatomia em 
Harvard, foi ele quem lançou o pragmatismo como 
filosofia em 1898. O pragmatismo de fato foi recebido 
e conhecido pelo público mais amplo nas concepções 
propostas por James. Foi sob a sua liderança que o 
pragmatismo se tornou conhecido no mundo. Com ele 
temos a versão moral e religiosa do pragmatismo. 
Afirma James: “O pragmatismo é apenas 
método” que se configura, em primeiro lugar, como 
uma atitude de pesquisa, como “a disposição de afastar 
o olhar das coisas primeiras, dos princípios, das 
‘categorias’, das pretensas necessidades e, ao contrário, 
voltar os olhos para as coisas ultimas, os resultados, as 
consequências, os fatos”. 
O pragmatismo é método para alcançar a 
clareza das ideias que temos dos objetos. E esse método 
nos impõe “considerar quais efeitos práticos 
concebíveis essa ideia pode implicar, quais sensações 
podemos esperar e quais reações devemos preparar. 
Nossa concepção desses efeitos, tanto imediata como 
remota, é então toda a concepção que temos do objeto, 
enquanto ela tiver significado positivo”. 
 
A verdade de uma ideia se reduz a sua capacidade 
de “operar” 
 
A este ponto, parece que as ideias de James 
sobre o pragmatismo (expostas no ensaio Pragmatismo, 
de 1907) não diferem das de Peirce. No entanto, as 
coisas não são bem assim: para James, as ideias (que são 
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53 
parte da nossa experiência) tornam-se verdadeiras a 
medida que nos ajudam a obter relações satisfat6ria 
com as outras partes de nossa experiência, e a resumi-
las por meio de esquemas conceituais. 
Uma ideia é verdadeira quando nos permite 
andar adiante e leva-nos de uma parte a outra de nossa 
experiência, ligando as coisas de modo satisfatório, 
operando com segurança, simplificando, 
economizando esforços. 
Esta, diz ainda James, “é a concepção 
‘instrumental’ da verdade, ensinada com tanto sucesso 
em Chicago, a concepção tão brilhantemente difundida 
em Oxford: a veracidade de nossas ideias significa sua 
capacidade de ‘operar’”. Desse modo, a veracidade das 
ideias era identificada com sua capacidade de operar, 
com sua utilidade, tendo em vista a melhoria ou a tornar 
menos precária a condição vital do indivíduo. 
Além disso, para James “a verdade de uma ideia 
não está em sua estagnante propriedade”. 
Há um processo de verificação que torna 
verdadeira uma ideia. “Uma ideia torna-se verdadeira, é 
tornada verdadeira pelos acontecimentos. Sua 
veracidade é de fato acontecimento, processo: mais 
exatamente, o processo de seu verificar-se, sua 
verificação. As ideias verdadeiras, segundo James, “são 
as que podemos assimilar, ratificar, confirmar e 
verificar. E falsas são aquelas em relação as quais não 
podemos fazer o mesmo”. 
As ideias ou teorias verdadeiras, para James, são 
aproximações melhores do que as ideias anteriores, 
resolvendo os problemas de modo mais satisfatório. E 
“a posse da verdade,longe de ser fim, é apenas meio 
para outras satisfações vitais”. 
 
Os princípios da psicologia e os instrumentos da 
adaptação 
 
Em 1890, James publicou os dois volumes que 
constituem os Princípios de psicologia. 
James considera que uma fórmula que prestou 
amplos serviços à psicologia foi a fórmula spenceriana, 
segundo a qual “a essência da vida mental e a essência 
da vida corporal são idênticas, ou seja, ‘a adaptação das 
relações internas as externas’ ”. Essa formula pode ser 
considerada a encarnação da generalidade – comenta 
James - mas, “como considera o fato de que as mentes 
vivem em ambientes que agem sobre elas e sobre as 
quais elas por seu turno reagem, já que, em suma, ela 
põe a mente no concreto de suas relações, tal formula é 
imensamente mais fértil do que a velha ‘psicologia 
racional’, que considerava a alma como coisa separada 
e autossuficiente, e pretendia estudar somente sua 
natureza e prioridade”. 
Na realidade, James faz da mente um 
instrumento dinâmico e funcional para a adaptação 
ambiental. A vida psíquica caracteriza-se por finalismo 
que se expressa como energia seletiva já no ato 
elementar da sensação. 
Por isso tudo, a velha noção de alma já não 
servia para James. Mas ele também criticava os 
associacionistas, que reduziam a vida psíquica a 
combinação das sensações elementares, e criticava os 
materialistas, com sua pretensão de identificar os 
fenômenos psíquicos com os movimentos da matéria 
cerebral. 
A consciência se apresenta para James como 
corrente contínua: ele fala de uma corrente de 
pensamento. E a única unidade que se pode detectar na 
corrente de pensamento é aquela pela qual o 
pensamento difere em cada momento do momento 
anterior, apropriando-o juntamente com tudo o que 
este último chama de seu. A “experiência pura” aparece 
para ele como “o imenso fluxo vital que fornece o 
material para a nossa reflexão ulterior”. Para James, a 
relação sujeito-objeto é derivada. 
Conceber a mente como instrumento de 
adaptação ao ambiente foi a ideia que levou James a 
ampliação do objeto de estudo da psicologia: esse 
objeto não diria mais respeito somente aos fenômenos 
perceptivos e intelectivos, e sim também aos 
condicionamentos sociais ou fenômenos como os 
concernentes ao hipnotismo, a dissociação ou ao 
subconsciente. James apenas realizou análises refinadas 
e críticas agudas sobre esses temas, mas também 
prenunciou muitas doutrinas que depois seriam 
desenvolvidas pelo comportamentalismo, pela 
psicologia da Gestalt e pela psicanálise. 
 
A questão moral: como escolher entre ideias 
contrastantes 
 
Presente em diversos escritos de James, a 
questão ética é enfrentada explicitamente em dois 
escritos fundamentais para sua concepção pragmática: 
O filósofo moral e a vida moral (1891), e A vontade de crer 
(1897). Neste último ensaio, James levanta questões 
como a dos valores, que não podem ser decididas 
recorrendo às experiências sensíveis. As questões 
morais, antes de tudo, não são tais que sua solução 
possa esperar prova sensível. Com efeito, uma questão 
moral não é uma questão do que existe, mas daquilo que 
é bom ou seria bom que existisse. 
A ciência pode nos dizer o que existe ou não 
existe. Mas, para as questões mais urgentes, devemos 
consultar as “razões do coração”. Há decisões que todo 
homem não pode deixar de tomar, dizem respeito ao 
sentido último da vida, ao problema da liberdade 
humana ou de sua falta, da dependência ou não no 
mundo em relação a uma inteligência ordenadora e 
regente, da unidade monística ou não do mundo todas 
questões teoricamente insolúveis, que só se podem 
enfrentar mediante escolha pragmática. 
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54 
Voltemos, porém, aos valores. Os fatos físicos 
existem ou não existem e, enquanto tais, não são bons 
nem maus. O ser melhor não é relação física. A 
realidade é que o bem e o mal só existem em referência 
ao fato de que satisfazem ou não às exigências dos 
indivíduos. Refletindo variedade enorme de 
necessidades e impulsos diversos, essas exigências 
geram um universo de valores frequentemente em 
contraste. 
Então, como unificar e hierarquizar tais ideais, 
variados e muitas vezes contrastantes? 
A resposta de James a essa pergunta crucial é 
que se devem preferir os ideais que, se realizados, 
impliquem a destruição do menor número de outros 
ideais e o universo mais rico de possibilidades. 
Naturalmente, tal universo não é dado de fato, não é 
absolutamente garantido, e se propõe como simples 
norma que caracteriza a vontade moral enquanto tal. 
 
A variedade da experiência religiosa e o universo 
pluralista 
 
Outra grande obra de William James é A 
variedade da experiência religiosa (1902), onde o autor 
propõe antes de mais nada uma rica fenomenologia da 
experiência religiosa. 
James é contrário aos positivistas, que ligavam a 
religião a fenômenos degenerativos. O empirista radical 
James não quer que a identificação das riquezas das 
experiências humanas seja bloqueada por um juízo de 
valor qualquer. A vida religiosa é inconfundível; ela põe 
os homens em contato com uma ordem invisível e 
muda sua existência. 
Segundo James, o estado místico é o momento 
mais intenso da vida religiosa e age como se ampliasse 
o campo perceptivo, abrindo-nos possibilidades 
desconhecidas ao controle racional. E a atitude mística 
não pode se tornar garantia de uma determinada 
teologia. Aliás, para James, a experiência mística deve 
ser defendida pela filosofia. 
Aqui podemos ver como James passa da 
descrição à avaliação da experiência mística, 
considerada como acesso privilegiado, inacessível pelos 
meios comuns, ao Deus que potencializa nossas ações 
e que é “a alma e a razão interior do universo”, de um 
universo pluralista, onde Deus (que não é o mal nem o 
responsável pelo mal) é concebido como pessoa 
espiritual que nos transcende e nos convoca a colaborar 
com ele. 
Um universo pluralista (1909) é uma das últimas 
obras de James, onde ele tenta libertar a experiência 
religiosa da angústia do pecado - angústia arraigada na 
tradição puritana da Nova Inglaterra - e onde, 
precisamente, Deus é concebido como ser finito. Para 
James, Deus não é o todo, ele é um Deus-companheiro. 
 
4.3 O INSTRUMENTALISMO DE JOHN 
DEWEY 
 
A experiência não se reduz à consciência nem ao 
conhecimento 
 
A filosofia de John Dewey (1859-1952), que foi 
o mais significativo filósofo americano do século XX, 
foi definida como “naturalismo”. É uma filosofia que 
se move no leito do pragmatismo e se situa no quadro 
da tradição empirista. 
Entretanto, Dewey optou por chamar sua 
filosofia de instrumentalismo, que, em primeiro lugar, 
se diferencia do empirismo clássico quanto ao conceito 
fundamental de experiência. A experiência dos 
empiristas clássicos é simplificada, ordenada e 
purificada de todos os elementos de desordem e erro, 
reduzida a estados de consciência claros e distintos. 
Dewey, em Experiência e natureza (1925), sustenta 
que “a experiência não é consciência, e sim história”; ou 
seja, ela não se reduz a um estado de consciência claro 
e distinto. A experiência não se reduz tampouco ao 
conhecimento, ainda que o próprio conhecimento seja 
parte da experiência, seja uma experiência. Ela, de fato, 
inclui os sonhos, a loucura, a doença, a morte, a guerra, 
a confusão, a ambiguidade, a mentira e o horror; inclui 
os sistemas transcendentais, e também os sistemas 
empíricos; inclui tanto a magia e a superstição como a 
ciência. Inclui tanto a inclinação que impede de 
aprender da experiência como a habilidade que tira 
partido de seus mais fracos acenos. 
Dewey propõe substancialmente a ideia de 
experiência capaz de dar a mesma atenção que se tem 
para aquilo que é “nobre, honroso e verdadeiro” 
também para o que, na vida humana, existe de 
“desfavorável, precário,incerto, irracional e odioso”. 
Afirma ele: “Considerando o papel que a antecipação e 
a memória da morte desempenharam na vida humana, 
da religião às companhias de seguro, o que se pode dizer 
de uma teoria que define a experiência de tal modo a 
ponto de fazer seguir-se logicamente que a morte nunca 
seja matéria de experiência?” 
Há mais, já que a não identificação entre 
experiência e conhecimento permite a Dewey realizar a 
tentativa de solução do problema gnosiológico: com 
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55 
efeito, “há duas dimensões das coisas experimentadas; 
uma é a de tê-las outra é a de conhecê-las para tê-las de 
modo mais significativo e seguro”. 
Na realidade, não é fácil conhecer as coisas que 
temos ou somos, sejam elas o sonho, o sarampo, a 
virtude, uma pena, o vermelho. O problema do 
conhecimento é o problema de como encontrar o que 
é necessário encontrar em torno dessas coisas para 
garantir, retificar ou evitar o fato de tê-las ou o de sê-
las. 
Desse modo, para Dewey, enquanto o 
ceticismo pode verificar-se (a fim de nos tornar curiosos 
e indagadores) em qualquer momento em relação a 
qualquer crença ou conclusão intelectual, no entanto ele 
é impossível acerca das coisas que nós temos e somos. 
Um homem pode duvidar se está com sarampo, porque 
o sarampo é termo intelectual, classificação, mas não 
pode duvidar do que tem empiricamente - não, como 
se diz, porque está imediatamente certo dele, mas 
porque não é matéria de conhecimento, não é de modo 
algum questão intelectual, não é caso de verdade ou 
falsidade, de certeza ou de dúvida, mas somente de 
existência. 
 
Precariedade e risco da existência 
 
A experiência é história, história voltada para o 
futuro, prenhe de futuro. E a filosofia, diferentemente 
da antropologia cultural, tem a função do 
desmembramento analítico e da reconstrução sintética 
da experiência. Os fenômenos da cultura, apresentados 
pelo antropólogo, constituem o material para o trabalho 
do filósofo. 
Pois bem, uma característica da existência que 
os fenômenos culturais põem em relevo é o seu caráter 
precário e arriscado. 
Diz Dewev: “O homem vive em mundo 
aleatório; para dizê-lo cruamente, sua existência implica 
o acaso. O mundo é o palco do risco: é incerto, instável, 
terrivelmente instável”. Claro, seria fácil e confortante 
insistir na boa sorte e nas alegrias inesperadas. 
A comédia é tão genuína quanto a tragédia. Mas, 
observa Dewey, é sabido que "a comédia atinge uma 
nota mais superficial que a tragédia. E o homem teme 
porque vive em um mundo temível, em um mundo que 
dá medo. O próprio mundo é precário e perigoso: “Não 
foi o temor em relação aos deuses que criou os deuses”. 
O homem vive neste mundo: a natureza não 
existe sem homem nem o homem existe sem a natureza. 
O homem está imerso na natureza. E, no entanto, ele é 
uma natureza capaz de, e destinada a, mudar a própria 
natureza e dar-lhe significado. 
É precisamente para se garantir contra a 
instabilidade e a precariedade da existência o homem, 
primeiro, recorreu a forças mágicas e construiu mitos 
que, depois de terem caído, logo procurou substituir 
por outras ideias tranquilizadoras, como a imutabilidade 
do ser, o processo universal, a racionalidade inerente ao 
universo, o universo regido por leis necessárias e 
universais. 
“De Heráclito a Bergson, há muitas filosofias 
ou metafísicas do universo. Somos gratos a essas 
filosofias, que mantiveram vivo aquilo que as filosofias 
clássicas e ortodoxas deixaram de lado. Mas as filosofias 
do fluxo normal também indicam a intensidade com 
que se deseja o que é seguro e estável. Elas deificaram a 
mudança, tornando-a universal, regular e segura. 
Considerai o modo completamente laudatório com o 
qual Hegel, Bergsoe os filósofos evolucionistas do devir 
consideraram a mudança. Para Hegel, o devir é 
processo racional que define uma lógica, mesmo nova 
e estranha, e um absoluto, também este novo e 
estranho, Deus. Para Spencer, a evolução é somente um 
processo transitório para obter o equilíbrio estável e 
universal de ajustamento harmonioso. Para Bergson, a 
mudança é a operação criadora de Deus ou é o próprio 
Deus”. 
Para Dewey, essas filosofias são filosofias do 
medo, hiper-simplificadoras e des-responsabilizadoras. 
Elas transformam um elemento da realidade na 
realidade em seu todo, confinando assim na aparência 
(no secundário, errôneo, ilusório etc.) tudo o que não 
se revela compatível com seu respectivo esquema de 
imutabilidade, ordem, racionalidade, necessidade ou 
perfeição do ser ou da realidade. 
Além disso, são des-responsabilizadoras, já que 
presumem garantir metafisicamente a ordem, o 
progresso ou a racionalidade, que, ao contrário, 
constituem a tarefa fundamental da condução 
inteligente da vida humana. 
Em suma, para Dewey, é preciso ter a coragem 
de denunciar a falência filosófica de metafísicas 
consoladoras e ilusórias, que iludem precisamente a 
respeito da permanência estável de bens e valores, posse 
exclusiva de uma camada privilegiada. São metafísicas 
que aparentemente repelem a irracionalidade, a 
desordem, o mal, o erro, coisas que não são aparências, 
e sim realidades que precisamos dominar e controlar, 
embora com a consciência de que a existência 
permanece, sempre e de qualquer modo, precária e 
cheia de riscos. 
 
A teoria da pesquisa 
 
A luta para enfrentar o mundo e a existência tão 
difíceis exige comportamentos e operações humanas 
inteligentes e responsáveis. É aí que se inserem o 
instrumentalismo e a teoria da pesquisa. 
Segundo a maior parte dos sistemas filosóficos 
tradicionais, a verdade é estática e definitiva, absoluta e 
eterna. Dewey, porém, não pensa assim. Dado seu 
interesse pela biologia, ele vê o pensamento como 
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56 
processo de evolução; segundo ele, o conhecimento é 
processo chamado pesquisa, que, no fundo, consiste em 
uma forma de adaptação ao ambiente. O conhecimento 
é prática que tem êxito. Êxito no sentido de que resolve 
os problemas postos pelo ambiente (entendendo este 
no sentido mais amplo). 
Em sua grande obra Lógica: teoria da investigação 
(1938) Dewey sustenta que a função do pensamento 
reflexivo é a de transformar uma situação na qual se tem 
experiências caracterizadas por obscuridade, dúvida, 
conflito, em suma, experiências perturbadas, em uma 
situação que seja clara, coerente, ordenada e 
harmoniosa. 
Em poucas palavras, a investigação parte dos 
problemas, isto é, de situações que implicam incerteza, 
perturbação, dúvida e obscuridade. E Dewey se 
declarava desconcertado diante do fato de que pessoas 
sistematicamente empenhadas nas investigações sobre 
questões e problemas (como certamente são os 
filósofos) sejam tão pouco curiosas acerca da existência 
e da natureza dos problemas. 
Situações desse tipo, isto é, de dúvida e 
obscuridade, tornam-se problemáticas quando se 
tornam objeto de pesquisa, no sentido de que seja 
possível avançar alguma tentativa de solução, ainda que 
vaga, já que caso contrário se teria o caos, e de que seja 
possível intelectualizar essa vaga sugestão, formulando 
o problema dentro de uma ideia que consista em 
antecipação ou previsões do que pode acontecer. 
A ideia proposta desenvolve-se em seus 
significados pelo raciocínio, que identifica as 
consequências da ideia, pondo-a em relação com o 
sistema das outras ideias e esclarecendo-a assim em seus 
aspectos mais diversos. A solução do problema, 
inserida e antecipada na ideia que depois foi 
desenvolvida pelo raciocínio, dirige e articula o 
experimento. E será precisamente o experimento que 
dirá se a solução proposta deve ser aceita ourejeitada 
ou, ainda, corrigida, a fim de dar conta dos fatos 
problemáticos. 
A propósito dos fatos, diferentemente do 
antigo empirismo, Dewey observa que eles não são 
puros dados, pois não existem dados em si. Nada 
constitui um dado senão em relação com uma ideia ou 
com um plano operativo que possa ser formulado em 
termos simbólicos, desde os da linguagem comum até 
os mais precisos e específicos da matemática, da física 
ou da química. 
Em suma, Dewey é da opinião de que tanto as 
ideias como os fatos são de natureza operacional. As 
ideias são operacionais porque não são mais que 
propostas e planos de operação e intervenção sobre as 
condições existentes; e os fatos são operacionais no 
sentido de que são resultados de operações de 
organização e de escolha. 
 
Senso comum e pesquisa científica: as ideias como 
instrumentos 
 
A inteligência, portanto, é constitutivamente 
operativa. A razão não é meramente contemplativa: é 
força ativa chamada a transformar o mundo em 
conformidade com objetivos humanos. 
A contemplação, sem dúvida, é ela própria uma 
experiência, mas, para Dewey, ela constitui a parte final, 
na qual o homem desfruta do espetáculo de seus 
processos. O processo cognoscitivo não é 
contemplação, e sim participação nas vicissitudes de um 
mundo que deve ser mudado e reorganizado sem 
descanso. 
Dewey comenta que o método experimental é 
novo como recurso cientifico ou como meio 
sistematizado de criar o conhecimento e de garantir que 
seja conhecimento; entretanto, “como expediente 
prático, ele é tão antigo quanto a própria vida”. E é 
precisamente por essa razão que Dewey insiste na 
continuidade entre conhecimento comum e 
conhecimento cientifico. 
No escrito A unidade da ciência como problema social 
(1938), ele diz que a ciência, em sentido especializado, é 
a elaboração de operações cotidianas, ainda que essa 
elaboração assuma frequentemente caráter muito 
técnico. E, ainda na Lógica, Dewey reafirma o fato de 
que “a ciência tem seu ponto de partida necessário nos 
objetos qualitativos, nos processos e nos instrumentos 
do senso comum, que é o mundo do uso, da fruição e 
dos sofrimentos concretos”. 
Depois, porém, pouco a pouco, através de 
processos mais ou menos tortuosos e inicialmente 
desprovidos de uma linha diretriz, formam-se e são 
transmitidos determinados procedimentos e 
instrumentos técnicos. 
Vão sendo reunidas informações sobre as 
coisas, sobre suas propriedades e seus 
comportamentos, independentemente de cada 
aplicação imediata particular. Vamo-nos afastando 
sempre mais das situações originarias de uso e fruição 
imediatos. 
Não se ganha muito mantendo o próprio 
pensamento ligado ao tronco do uso com uma corrente 
muito curta, sentencia Dewey. O importante é que, 
como quer que seja, o pensamento, isto é, as ideias, 
estejam ligadas à prática, porque as ideias – tanto 
lógicas como científicas - estão sempre em função de 
problemas reais, ainda que abstratos, e porque é sempre 
a prática que decide do valor de urna ideia. 
E as ideias são exatamente instrumentos em 
nossa investigação. São instrumentos para resolver os 
problemas e para enfrentar um mundo ameaçador e 
uma existência precária. E, por serem instrumentos, há 
muito pouco sentido em pregar a veracidade ou a 
falsidade deles. As ideias são instrumentos que podem 
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57 
ser eficazes, relevantes ou não, danosos ou econômicos, 
mas não verdadeiros ou falsos. E o juízo final que se dá 
em todo processo de pesquisa nada mais é do que uma 
“afirmação garantida”. 
Eis, portanto, o significado genuíno do 
instrumentalismo de Dewey: a verdade não é mais 
adequação do pensamento ao ser, mas se identifica 
muito mais com “o poder comprovado de guia” de uma 
ideia e, em última análise, com “o corpo sempre 
crescente das afirmações garantidas”, devendo-se ter 
em vista que essa garantia não é absoluta nem eterna, já 
que os resultados da pesquisa científica, bem como de 
toda operação humana, são continuamente corrigíveis e 
aperfeiçoáveis em relação às novas e cambiantes 
situações em que o homem virá a se encontrar em sua 
história. 
 
A teoria dos valores 
 
Se as ideias comprovam seu valor na luta com 
os problemas reais, e se cada indivíduo tem o direito-
dever de dar sua contribuição à elaboração de ideias 
capazes de guiar positivamente a ação humana, então 
está claro que as ideias morais, os dogmas políticos ou 
os preconceitos do costume também não se revestem 
de autoridade especial. Também eles devem ser 
submetidos à verificação de suas consequências na 
prática e devem ser responsavelmente aceitos, 
rejeitados ou mudados com base na análise de seus 
efeitos. 
Dewey é relativista, não considera possível 
fundamentar valores absolutos. Os valores são 
históricos e a tarefa do filósofo é a de examinar as 
“condições generativas” (isto é, as instituições e os 
costumes ligados a estes valores) e de avaliar sua 
funcionalidade na perspectiva de uma renovação, em 
relação às necessidades que pouco a pouco irrompem 
da vida associada dos homens. 
Existem valores de fato, isto é, bens 
imediatamente desejados, e valores de direito, isto é, 
bens razoavelmente desejáveis. 
É precisamente função da filosofia e da ética 
promover a contínua revisão crítica, voltada para a 
conservação e o enriquecimento dos valores de direito. E 
está claro que, na perspectiva de Dewey, sequer estes 
últimos podem ter a pretensão de dignidade meta-
histórica, já que todo sistema ético é relativo ao meio 
em que se formou e se tornou funcional. 
A ética de Dewey é histórica e social: como na 
teoria da pesquisa, nela também desponta aquele 
sentido de interdependência e de unidade inter-relativa 
dos fenômenos, que se explicitará no conceito de 
interação entre indivíduo e meio físico e social. Assim, 
os valores também são fatos tipicamente humanos: são 
planos de ação, tentativas de resolver problemas que 
brotam da vida associada dos homens. E constitui 
objetivo da filosofia educar os homens a refletir sobre 
os valores humanos mais elevados, da mesma forma 
como eles aprenderam a refletir sobre aquelas questões 
que se inserem no âmbito da técnica. 
Há, sem dúvida, o problema da determinação 
dos fins. Escreveu Dewey: “A ciência é indiferente ao 
fato de suas descobertas serem utilizadas para curar as 
doenças ou difundi-las, para acrescer os meios para a 
promoção da vida ou para fabricar material bélico a fim 
de aniquila-la”. Por vezes, Dewey parece indicar como 
fim último da vida dos homens um reino de Deus visto 
como justiça, amor e verdade. Entretanto, é preciso 
insistir em um ponto de capital importância no 
pensamento de Dewey: trata-se da não possibilidade de 
distinguir entre meios e fins. 
Para Dewey todo fim é também meio e todo 
meio para atingir um fim é desfrutado ou percebido 
também como fim. A atividade que produz meios e a 
atividade que inventa e consuma os fins estão 
intimamente ligadas uma a outra. O fim alcançado é 
meio para outros fins. E a avaliação dos meios é 
fundamental para todo fim real e genuíno, que não 
queira ser vã fantasia, ainda que nobre e sugestiva. E as 
coisas que parecem fins são, com efeito, unicamente 
previsões ou antecipações do que pode ser levado a 
existência em determinadas condições. Por isso, em 
Teoria da avaliação (1939), Dewey escreve que não existe 
problema de avaliação fora da relação entre meios e 
fins, o que vale não somente na ética, mas também na 
arte, onde a criação dos valores estéticos (a arte é 
natureza transformada e não existe distinção entre 
belas-artes e artes úteis) requer a utilização de meios 
adequados. 
 
A teoria da democracia 
 
Dewey é um relativista pelo fato de que, em sua 
opinião, não existem métodos racionais para a 
determinação dos fins últimos. Por isso ele é 
decididamentecontrário aos filósofos utópicos que, 
projetando suas visões ideais, não se preocuparam em 
dedicar uma investigação acurada aos meios necessários 
para sua realização, e sequer em avaliar atentamente sua 
desejabilidade moral efetiva. 
A utopia gera normalmente o ceticismo ou o 
fanatismo. O que é necessário, segundo Dewey, é 
propor metas concretas e descer dos fins remotos para 
os mais próximos, realizáveis em condições históricas 
efetivas. Portanto, ele projeta o operar contínuo tendo 
em vista maior consciência e maior liberdade, no 
sentido de que a liberdade conquistada hoje cria 
situações graças às quais haveria mais liberdade amanhã, 
e no sentido de que minha liberdade faz crescer a dos 
outros. 
Consequentemente, Dewey é avesso à 
sociedade totalitária e convicto defensor da sociedade 
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58 
democrática. Para ele, a pressuposição de um fim 
absoluto dificulta a discussão, ao passo que a 
democracia representa discussão inteiramente livre. É 
método que permite discutir toda finalidade, é debate 
sem fim, é colaboração, é participação em finalidades 
conjuntas. 
A democracia é aquele modo de vida em que 
todas as pessoas maduras participam da formação dos 
valores que regem a vida dos homens associados, modo 
de vida que é necessário tanto do ponto de vista do bem 
social como da ética do desenvolvimento pleno dos 
seres humanos como indivíduos. 
Em Liberalismo e ação social (1935), Dewey afirma 
que o problema da democracia se torna o problema 
daquela forma de organização social que se estende a 
todo campo e a todo caminho da vida, pelo qual as 
forças individuais não deveriam ser simplesmente 
libertadas de constrições mecânicas externas, mas 
deveriam ser alimentadas, sustentadas e dirigidas. 
Com base nisso tudo, pode-se compreender a 
aversão de Dewey pela sociedade planejada. O que ele 
almeja e defende é a sociedade que se planeja 
constantemente a partir de seu interior, atenta, 
portanto, ao controle social mais amplo e articulado dos 
resultados. A diferença existente entre a sociedade 
planejada, e a sociedade que se planeja 
constantemente é definida por Dewey nos termos 
seguintes: “A primeira requer desígnios finais impostos 
de cima e que, portanto, se baseiam na força, física e 
psicológica, para fazer com que nos conformemos a 
eles. A segunda significa libertar a inteligência mediante 
a forma mais vasta de intercâmbio cooperativo”. 
Ligada à teoria da investigação, a teoria dos 
valores e a teoria da democracia de Dewey encontra-se 
sua teoria da educação, entendida como reconstrução e 
reorganização continua da experiência, visando a 
aumentar a consciência dos vínculos entre as atividades 
presentes, passadas e futuras, nossas e alheias, e 
aumentar a capacidade dos indivíduos para dirigir o 
curso da experiência futura. 
 
5. NEOPRAGMATISMO - RICHARD RORTY 
 
 Richard Rorty nasceu em New York em 1931. 
Estudou na Universidade de Chicago e na de Yale. 
“Dewey - disse ele – foi sem dúvida a figura mais 
influente durante toda a minha juventude; chamavam-
no de filósofo da democracia, do New Deal, dos 
intelectuais socialistas americanos: para quem quer que 
tenha frequentado uma universidade americana antes 
dos anos cinquenta, era impossível não percebe-lo”. 
E ainda: “Minha formação foi principalmente 
histórica. O encontro com a filosofia analítica ocorreu 
em Princeton, quando eu já ensinava, e foi um 
momento verdadeiramente intenso. Quando as ótimas 
obras de Wittgenstein mal estavam para serem 
assimiladas”. 
Foi justamente a leitura do “segundo” 
Wittgenstein que persuadiu Rorty a tomar distância do 
pensamento analítico dominante nos Estados Unidos. 
Este pensamento - dirá Rorty - profissionalizou a 
filosofia, reduziu-a a uma disciplina acadêmica que se 
resolve na pesquisa obsessiva dos fundamentos do 
conhecimento objetivo, tirou da filosofia toda 
dimensão histórica, arrancou-a dos problemas da vida. 
Auxiliado também pelas críticas internas ao 
movimento analítico, Rorty se convenceu do 
esgotamento intrínseco da filosofia analítica (ou pós-
filosófica, no sentido de estar distante da filosofia 
tradicional) des-disciplinarizada e de andamento 
discursivo, à qual não cabe mais o papel de mãe ou de 
rainha da ciência, sempre em busca de um vocabulário 
definitivo e imortal sobre a base do qual sintetizar ou 
descartar os resultados de outras esferas de atividade. 
A filosofia pós-analítica, de preferência, se 
democratiza na forma de uma “crítica da cultura” que a 
vê transformada em uma disciplina entre as outras, 
fundada sobre critérios histórica e socialmente 
contextuais, e preposta ao estudo comparado das 
vantagens e das desvantagens das diversas visões do 
mundo. 
A filosofia e o espelho da natureza (1979) foi o livro 
que no plano internacional tornou Rorty conhecido 
como fundador do neopragmatismo. Em 1980 aparece 
Consequências do pragmatismo. De 1989 é Contingência, ironia 
e solidariedade, livro que se ocupa de questões éticas e 
filosóficas. 
Segundo Rorty, os ensaios coletados nesse livro 
representam tentativas de delinear as consequências de 
uma teoria pragmatista da verdade. E ainda: “Os 
pragmatistas pensam que a tradição platônica tenha 
esgotado a própria função. Os pragmatistas sustentam 
que a maior aspiração da filosofia é a de não praticar a 
filosofia. Não consideram que pensar na verdade sirva 
para dizer algo de verdadeiro, nem que pensar no bem 
sirva para agir do melhor dos modos, nem que pensar 
na racionalidade sirva para ser racionais”. 
 
 
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59 
Dois mitos da tradição filosófica 
O volume A filosofia e o espelho da natureza 
consiste na tentativa de desengonçar a pretensão 
fundante da filosofia tradicional. 
Escreve Rorty, “Em geral os filósofos 
consideram sua disciplina como uma discussão de 
problemas perenes, eternos. Alguns destes referem-se a 
diferença entre seres humanos e os outros seres, e se 
concentram nas questões que se referem a relação entre 
mente e corpo. Outros problemas se referem à 
legitimação das pretensões de conhecimento e 
concentram-se nas questões que se referem aos 
‘fundamentos’ do conhecimento. Descobrir tais 
fundamentos significa descobrir algo sobre a mente e 
vice-versa”. 
Problemas eternos resolvidos por teorias perenes: eis a 
pretensão de fundo da filosofia tradicional, a qual se 
configura como filosofia fundacional em relação a toda 
a cultura. E esta sua pretensão se apoia sobre o fato de 
que ela compreenderia os fundamentos do 
conhecimento e encontraria tais fundamentos por meio 
do estudo da mente, dos “processos mentais”. Eis, 
portanto, que a tarefa central da filosofia tradicional está 
na construção de uma teoria geral da representação acurada 
tanto do mundo externo, como do modo com que a 
mente constrói essas representações. 
Tudo isso, afirma Rorty, nos mostra que existe 
“uma imagem que mantém prisioneira a filosofia 
tradicional”: é a imagem da mente como um grande 
espelho, que contém representações diversas – 
algumas acuradas, outras não - e pode ser estudado por 
meio de métodos puros, não empíricos”. 
Rorty comenta que se não houvesse a ideia da 
mente como espelho, não haveria sequer a ideia do 
conhecimento como representação acurada; sem a 
ideia de conhecimento como representação acurada não 
teriam sentido os grandes esforços de Descartes e de 
Kant dirigidos a obter representações mais acuradas por 
meio do exame, da reparação e do polimento do 
espelho. E, postos fora dessa estratégia, não teriam tido 
sentido sequer as recentes teses segundo as quais a 
filosofia consistiria de “analise conceitual”, ou de 
“análisefenomenológica”, ou de “explicação dos 
significados”, ou de exame da “lógica de nossa 
linguagem”, ou então da “estrutura da atividade 
constitutiva da consciência”. 
 
A filosofia fundacional 
De acordo com Rorty, devemos ao século 
XVII, e em particular a Locke, a noção de uma “teoria 
do conhecimento” baseada sobre a compreensão dos 
“processos mentais”. Devemos ao mesmo período, e 
em particular a Descartes, a noção de “mente” como 
entidade separada em que se atuam os “processos”. 
Devemos ao século XVIII, e em particular a 
Kant, a noção da filosofia como tribunal da razão pura, 
que confirma ou rejeita a pretensão da cultura restante. 
A filosofia, praticada como disciplina fundacional que 
garante a certeza dos fundamentos do conhecimento, 
foi consolidada pelos neokantianos. E no século XX, 
ainda segundo nosso filósofo, ela foi reproposta por 
filósofos como Russell e Husserl que se propuseram a 
mantê-la “rigorosa” e “cientifica”. 
No seu entendimento, o gênero de filosofia que 
descende de Russell, justamente como a fenomenologia 
clássica de Husserl, é simplesmente uma tentativa 
posterior de manter a filosofia na posição em que Kant 
a desejava pôr, ou seja, a de juiz das outras áreas da 
cultura, sobre a base de seu conhecimento especial dos 
“fundamentos” dessas áreas. 
As coisas, ao seu ver, não param aqui, uma vez 
que também a filosofia analítica é uma variante 
posterior da filosofia kantiana, uma variante 
caracterizada principalmente por considerar a 
representação como linguística muito mais que mental 
e, portanto, a filosofia da linguagem como a disciplina 
que exibe os “fundamentos do conhecimento”, em vez 
da “critica transcendental” ou da psicologia. 
Na base, portanto, do pensamento fundacional 
tradicional há uma ideia de mente, concebida como 
grande espelho que contém representações; voltando-
nos para nossa interioridade (Descartes) ou trazendo à 
superfície os a priori da experiência (Kant), a filosofia - 
examinando e polindo novamente o grande espelho – 
estaria depois em grau de chegar à posse dos 
fundamentos do conhecimento. 
A união destas três ideias de mente como espelho 
da natureza, de conhecimento como representação acurada 
e de filosofia como busca e posse dos fundamentos do 
conhecimento “profissionalizou” a filosofia, tornando-
a uma disciplina acadêmica restrita substancialmente à 
epistemologia, isto é, à teoria do conhecimento, e a 
propôs como uma fuga da história, uma vez que ela 
quer ser pesquisa e posse de fundamentos válidos para 
todo desenvolvimento histórico possível. 
 
O abandono da filosofia do fundamento 
Pois bem, é sobre este pano de fundo que Rorty 
olha para a obra daqueles que ele considera os três 
filósofos mais importantes do século XX, ou seja, a 
obra de Dewey, de Wittgenstein e de Heidegger. Estes 
três filósofos tentaram, em um primeiro momento, a 
construção de uma filosofia fundacional, propondo a 
formulação de “um critério último para o pensamento”. 
Cada um dos três, todavia, no desenvolvimento 
do próprio pensamento percebeu quão ilusória era sua 
primeira tentativa. E foi assim, então, que cada um dos 
três, na obra sucessiva, libertou-se da concepção 
kantiana da filosofia como fundamento, e consumou 
seu próprio tempo a pôr em alerta contra essas 
tentações às quais eles próprios haviam cedido. Assim, 
sua obra sucessiva é terapêutica, mais que construtiva; 
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60 
mais edificante do que sistemática, dirigida a fazer o 
leitor refletir sobre motivos que tem para filosofar, 
muito mais do que para lhe fornecer um novo programa 
filosófico. 
Wittgenstein, Heidegger e Dewey deixam de 
lado, ao ver de Rorty, a noção de mente produzida 
justamente por Descartes, Locke e Kant, e entendida 
como um objeto de estudo especial, colocado no 
espaço interno, que contém os elementos ou os 
processos que tornam possível o conhecimento. 
Wittgenstein, Heidegger e Dewey, todos os três, 
concordam sobre o fato de que deve ser abandonada a 
noção do conhecimento como representação acurada, 
tornada possível por processos mentais especiais, e 
compreensível por meio de uma teoria geral da 
representação. Todos os três abandonam as noções de 
“fundamentos do conhecimento” e da filosofia como 
de algo que gira ao redor da tentativa cartesiana de 
responder ao cético epistemológico. 
 
Filósofos sistemáticos e edificantes 
A imagem neokantiana da filosofia como 
profissão - imagem que se encontra implícita na imagem 
da mente ou da linguagem que espelham a natureza – 
não se sustenta mais. A filosofia fundacional acabou; 
como acabou, em suma, a filosofia entendida como 
disciplina que julga as pretensões da ciência e da 
religião, da matemática e da poesia, da razão e do 
sentimento, atribuindo a cada uma o lugar apropriado. 
É preciso, portanto, tomar outros caminhos; e, 
para sair da “normalidade” da tradição, é preciso ser 
“revolucionário” (no sentido de Kuhn). E, todavia, 
entre os filósofos revolucionários, Rorty distingue dois 
tipos: os que fundam novas escolas dentro das quais 
pode ser praticada a filosofia normal e profissionalizada 
(um exemplo de tais filósofos são Husserl, e, antes dele, 
Descartes e Kant); e aqueles que rejeitam a ideia de que 
seu vocabulário possa um dia ser institucionalizado, ou 
que seus escritos possam ser considerados 
comensuráveis com a tradição (exemplos desses 
filósofos são o “último” Wittgenstein e o “último” 
Heidegger; e Nietzsche). 
É a esse último tipo de filósofos que vai a 
aprovação de Rorty, filósofos que ele chama de 
edificantes para distingui-los dos sistemáticos. A seu ver, os 
grandes filósofos sistemáticos são construtivos e 
oferecem argumentações. Os grandes filósofos 
edificantes são reativos e oferecem sátiras, paródias e 
aforismos. Eles sabem que suas obras perdem sua 
própria função essencial, quando é superado o período 
em relação ao qual definiram sua própria reação. Eles 
são intencionalmente periféricos. 
Os filósofos sistemáticos pretendem construir 
um saber, uma ciência para a eternidade; os filósofos 
edificantes destroem em benefício de sua própria 
geração. Os filósofos sistemáticos constroem certezas, 
como para exorcizar a incerteza do futuro; os filósofos 
edificantes estão à espera e investigam algo de novo, 
prontos para se abrir à maravilha de que haja algo de 
novo sob o sol, algo que não seja uma acurada 
representação daquilo que já havia, algo que (ao menos 
no momento) não pode ser explicado e pode apenas ser 
descrito. 
 
A filosofia edificante 
 
A filosofia edificante, portanto, deixa de lado a 
tradição da filosofia sistemática, construtiva, normal, 
fundacional. Mas o que devemos entender mais 
propriamente com tal filosofia edificante? 
Pois bem, trata-se de um projeto de educação 
ou formação - ou melhor, de edificação de nós mesmos 
ou de outros – dirigido à descoberta de modos de falar 
novos, melhores, mais interessantes e mais frutuosos. 
Isso no sentido de que a tentativa de edificar (nós 
mesmos ou os outros) pode consistir na atividade 
hermenêutica de realizar ligações entre nossa própria 
cultura e alguma cultura exótica ou algum período 
histórico, ou então entre nossa disciplina e outra 
disciplina que pareça perseguir objetivos 
incomensuráveis com um vocabulário incomensurável. 
Mas também pode consistir na atividade poética de 
descobrir esses novos objetivos, novas palavras, novas 
disciplinas. 
A filosofia edificante torna própria, assim, a 
hermenêutica de Gadamer, na qual não há contraste - 
afirma Rorty - entre o desejo de edificação e o desejo 
de verdade; e na qual, todavia, salienta-se o fato de que 
a pesquisa da verdade é um dos muitos modos com que 
podemos ser edificados. 
E os objetivos da filosofia edificante são mais a 
continuação de uma conversação do que a descoberta 
daverdade, de uma verdade objetiva como “resultado 
normal do discurso normal”. “A filosofia edificante não 
é apenas anormal, mas também reativa, tendo sentido 
apenas enquanto é um protesto contra a tentativa de 
truncar a conversação”. 
 
Manter aberta a conversação da humanidade 
As tentativas de truncar a conversação não 
faltam. Com efeito, truncam a conversação todas as 
filosofias sistemáticas, que não fazem mais que 
hipostatizar alguma descrição privilegiada em que se 
presume ter captado de uma vez por todas a verdade, a 
realidade, o bem, visto que se estaria em posse da razão. 
Por sua vez, os filósofos edificantes são do parecer que 
presunções desse tipo equivaleriam ao congelamento da 
cultura, o que significaria a desumanização dos seres 
humanos. 
Segundo Rorty, que para os filósofos edificantes 
a própria ideia de atingir “a totalidade da verdade” é 
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61 
absurda, porque a noção platônica de verdade enquanto 
tal é absurda. 
Concluindo as considerações precedentes, 
Rorty sintetiza: “Pensar que manter aberta a discussão 
constitua uma tarefa suficiente para a filosofia, que a 
sabedoria consista na habilidade de sustentar uma 
conversão, significa considerar os seres humanos como 
criadores de novos discursos mais do que seres a serem 
acuradamente descritos. Terminou, portanto, a filosofia 
fundacional; mas não terminou a filosofia: ela continua 
como filosofia edificante, como “uma voz na 
conversação da humanidade”. 
Com ela nós continuamos a conversação 
iniciada por Platão, mesmo sem discutir os assuntos que 
Platão considerava que se devessem discutir. A filosofia 
edificante, é a maneira específica de intervir na 
discussão sobre todo tipo de problema, condicionada e 
caracterizada por uma tradição de textos e pelo 
adestramento peculiar de quem a pratica, mas não mais 
pela ilusão de possuir um domínio próprio dela, um 
método, e uma tarefa privilegiada em relação à de outras 
“vozes”. 
 
“Historicistas” para uma autonomia individual, 
“historicistas” para uma sociedade mais justa 
 
Contingência, ironia e solidariedade é um livro que é 
o fruto maduro de reflexões ético-políticas que Rorty 
estava elaborando há algum tempo. A partir de Hegel – 
afirma Rorty - diversos pensadores historicistas 
negaram a existência de uma “natureza humana” ou de 
um “estrato mais profundo do eu” sobre o atual fundar 
as virtudes pessoais e os ideais sociais. Estes pensadores 
sustentaram que tudo é socialização e, portanto, 
circunstância histórica, que não existe uma essência do 
homem “abaixo” da socialização e antes da história. 
Autores como estes não se colocam mais a pergunta 
sobre “o que significa ser homens?”; mas a substituem 
por perguntas como: “o que significa pertencer a uma 
rica sociedade democrática do século XX?”, ou então: 
“O membro de uma tal sociedade pode fazer algo a 
mais do que recitar uma parte de um roteiro já escrito?”. 
Pois bem, comenta Rorty, tal reviravolta 
historicista, gradual mas decididamente, nos libertou da 
teologia e da metafísica, e com isso da tentação de 
buscar trégua para o tempo e para o acaso; ela, por 
outro lado, nos permitiu substituir, “como viés do 
pensamento e do progresso social”, a liberdade à 
verdade. 
A reviravolta historicista existiu; todavia, ainda 
continua a antiga tensão entre os historicistas (por 
exemplo, Heidegger e Foucault), nos quais domina o 
desejo de autocriação e de autonomia individual, e os 
historicistas (por exemplo, Dewey e Habermas), para os 
quais dominante é o desejo de uma comunidade 
humana mais justa e mais livre. 
De sua parte, Rorty quer fazer justiça tanto a um 
como ao outro grupo de pensadores historicistas. E o 
seu é “um convite a não querer escolher entre eles mas 
a dar-lhes, ao contrário, igual peso, a fim de usá-los 
depois para finalidades diversas”. Continua Rorty: “Os 
autores como Kierkegaard, Nietzsche, Baudelaire, 
Proust, Heidegger e Nabokov são úteis enquanto 
modelos, exemplos de perfeições individuais, de vida 
autônoma que se criou por si. Os autores como Marx, 
Mill, Dewey, Habermas e Rawls são mais que modelos, 
são concidadãos. Seu empenho é social, é a tentativa de 
tornar nossas instituições e práticas mais justas e menos 
cruéis”. 
 
A solidariedade do “liberalismo” irônico 
 
E inútil, ao ver de Rorty, ir em busca de uma 
teoria que unifique o público e o privado. O caminho 
que ele propõe é o seguinte: contentarmo-nos em 
“considerar igualmente válidas, embora destinadas a ser 
incomensuráveis, as exigências de autocriação e de 
solidariedade humana”. 
E de tal proposta emerge a figura daquilo que 
Rorty chama de “irônico liberal”. Quem é o liberal? Os 
liberais, para Rorty, “são aqueles que pensam que a 
crueldade é o nosso pior delito”. E o irônico? “Uso o 
termo ‘irônico’ – responde Rorty - para designar um 
indivíduo que olha abertamente a contingência de suas 
crenças e de seus desejos mais fundamentais, alguém 
que é historicista e nominalista o suficiente para ter 
abandonado a ideia de que tais crenças e desejos 
remetam a algo que foge ao tempo e ao acaso". Segundo 
ele, a ironia “significa algo de muito próximo ao 
antifundacionalismo”. 
No fundo, afirma Rorty, “os irônicos liberais 
são pessoas que têm, entre estes seus desejos 
infundáveis, a esperança de que o sofrimento possa 
diminuir, e que possa ter fim a humilhação sofrida por 
alguns seres humanos por causa de outros seres 
humanos”. 
Essa utopia liberal renuncia às teorias filosóficas 
de largo porte - como as que se referem às leis da 
história, o declínio do Ocidente e o fim do niilismo. Na 
sociedade utópica proposta por Rorty, “a solidariedade 
não é descoberta com a reflexão; ela é criada”. É criada 
com a imaginação, “tornando mais sensíveis ao 
sofrimento e humilhação particulares, sofridos por 
outras pessoas desconhecidas”. 
 
Levar à esfera do “nós” pessoas que antes eram do 
“eles” 
 
É uma sensibilidade acrescida que nos faz 
reconhecer um indivíduo como “dos nossos” mais que 
vê-lo como “dos deles”. 
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62 
Mas esta sensibilidade não cresce por causa de 
uma teoria universal que descreve uma essência humana 
presente em todos os homens; e ninguém se identifica 
com a comunidade de todos os seres racionais. Tal 
sensibilidade cresce por obra não da teoria, “mas de 
outros gêneros literários como a etnografia, a 
reportagem jornalística, a história em quadrinhos, o 
teatro-verdade e sobretudo o romance”. Dickens, Olive 
Schreiner ou Richard Wright nos fazem conhecer de 
modo detalhado formas de sofrimento passadas por 
pessoas que antes ignorávamos. Choderlos de Laclos, 
Henry James ou Nabokov nos mostram a crueldade da 
qual nós mesmos somos capazes, e nos obrigam, 
portanto, a redescrevermo-nos. 
Aqui está - insiste Rorty - a razão pela qual o 
romance, o filme e o programa televisivo substituíram, 
de modo gradual, mas decidido, o sermão e o tratado 
como veículos principais da mudança das convicções 
morais e do progresso. 
O liberal irônico exerce sua ironia sobre teorias 
a respeito da essência humana mas está atento a 
minimizar sempre mais a importância das diferenças 
tradicionais (de raça, de religião, de usos etc.) em relação 
“à semelhança na dor e na humilhação”. O liberal 
irônico inclui sempre mais na esfera do “nós” pessoas 
diferentes de nós que antes eram dos “eles”. Nós - diz 
Rorty – devemos começar de onde estamos. E eis seu 
comentário a uma posição que à primeira vista pareceria 
moralmente muito estreita: “Aquilo que redime este 
etnocentrismo é o fato de que é o etnocentrismo de um 
‘nós’ (‘nós liberais’), cuja finalidade é a deexpandir-se, 
de criar um ethos ainda maior e diversificado. É o ‘nós’ 
daqueles que foram educados a estar em alerta contra o 
etnocentrismo”. 
 
6.MICHEL FOUCAULT 
 
Foucault (1926-1984) 
veio de família tradicional de 
médicos, mas acabou se 
graduando em história, filosofia 
e psicologia. Foi considerado 
um filósofo contemporâneo dos 
mais polêmicos, pois possuía 
um olhar crítico de si mesmo. 
Devido às suas 
tentativas de suicídio, 
aproximou-se da psicologia e psiquiatria e produziu 
diversas obras sobre esse tema. Os seus estudos e 
pensamento envolvem, principalmente, o biopoder e a 
sociedade disciplinar. Para tanto, o filósofo percorreu 
três técnicas independentes, mas sucessivas e 
incorporadas umas pelas outras: do discurso, do poder 
e da subjetivação. 
Acreditava ser possível a luta contra padrões de 
pensamentos e comportamentos, mas impossível se 
livrar das relações de poder. Trata principalmente do 
tema poder, que para ele não está localizado em uma 
instituição, e nem tampouco como algo que se cede, por 
contratos jurídicos ou políticos. O poder em Foucault 
reprime, mas também produz efeitos de saber e 
verdade. Trata-se (...) de captar o poder em suas 
extremidades, em suas últimas ramificações (...) captar 
o poder nas suas formas e instituições mais regionais e 
locais, principalmente no ponto em que ultrapassando 
as regras de direito que o organizam e delimitam. Em 
outras palavras, captar o poder na extremidade cada vez 
menos jurídica de seu exercício. 
Ele acreditava que os acontecimentos deveriam 
ser considerados em seu tempo, história e espaço e sua 
obra pode ser dividida em três fases metodológicas: 
arqueológica, genealógica e ética. Para cada uma dessas 
fases elaborou perguntas fundamentais: que posso 
saber (ser-saber); que posso fazer (ser-poder - ação de 
uns com os outros); e quem eu sou (ser-consigo - ação 
de cada um consigo próprio)? 
Nesse sentido, o trabalho de Foucault pode ser 
dividido em três fases metodológicas: arqueologia, 
genealogia e ética. 
A fase arqueológica se refere ao procedimento 
vertical de investigar os discursos descontínuos, a fim 
de entender como e em seguida por quê. Nessa fase, o 
todo não deve ser considerado modelo prévio, 
necessário, principalmente, para encontrar os discursos 
e partes esquecidas ou ínfimas. 
Essa fase tem um enfoque explicitamente 
histórico com a preocupação de descrever a construção 
dos discursos das chamadas “ciências humanas”. 
Nas análises dele, os discursos são tomados em 
sua positividade, como “fatos”, e trata-se de buscar não 
sua origem ou seu sentido secreto, mas as condições 
de sua emergência, as regras que presidem seu 
surgimento, seu funcionamento, suas mudanças, seu 
desaparecimento, em determinada época, assim como 
as novas regras que presidem a formação de novos 
discursos em outras épocas. 
Fazem parte dessa fase da “constituição dos 
saberes” as seguintes obras: 
1 – A história da loucura (1961); 
2 – O nascimento da clínica (1963); 
3 – As palavras e as coisas (1966); 
4 – A arqueologia do saber (1969). 
Autor do Nascimento da clínica (1963) e de A 
História da loucura na época clássica (1961), Foucault não 
quis escrever uma história da psiquiatria entendida 
como história das teorias relativas ao tratamento prático 
dos doentes mentais, mas como uma reconstrução do 
modo pouco racional, na verdade, com que os homens 
“normais” e “racionais” da Europa Ocidental deram 
expressão a seu medo da não-razão, estabelecendo de 
modo repressivo o que é mentalmente “normal” e, ao 
contrário, o que é mentalmente “patológico”. 
É com As palavras e as coisas (1966) que Foucault 
exemplifica, de modo já considerado clássico, a 
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63 
abordagem estruturalista do estudo da história. Ele 
rejeita também o mito do progresso: a continuidade na 
qual o homem ocidental pretende representar seu 
glorioso desenvolvimento é continuidade que não 
existe. A história não tem sentido, a história não tem 
fins últimos. 
A história é, antes, descontinua. E, no que se 
refere a história da cultura, ela é informada ou 
governada por típicas estruturas epistêmicas (ou epistemas), 
que agem no nível inconsciente. Cada época é regida 
por uma episteme diferente, ele analisa estas mudanças. 
Mas o que é, mais precisamente, uma estrutura 
epistêmica? Diz Foucault: “Quando falo de ‘epistemas’, 
entendo todas as relações que existiram em certa época 
entre os vários campos da ciência. Penso, por exemplo, 
no fato de que, a certo ponto, a matemática foi utilizada 
para pesquisas no campo da física; de que a linguística, 
ou melhor, a semiologia, a ciência dos sinais, foi 
utilizada pela biologia (para as mensagens genéticas); de 
que a teoria da evolução pôde ser utilizada ou servir de 
modelo para os historiadores, os psicólogos e os 
sociólogos do século XIX. Todos estes são fenômenos 
de relações entre as ciências ou entre os vários 
‘discursos’ nos vários setores científicos que constituem 
o que eu chamo ‘epistema’ de uma época”. 
E Foucault chamou a ciência que estuda tais 
discursos e tais epistemas de arqueologia do saber. Essa 
ciência “arqueológica” mostra exatamente que não há 
nenhum progresso na história, e que não existe a 
continuidade de que se orgulha todo historicismo. O 
que a arqueologia do saber mostra é uma sucessão 
descontinua de epistemas, com a afirmação e a 
decadência de epistemas em uma história sem sentido. 
A descrição que ele faz dos “fatos discursivos” 
se limita a enunciados já formulados que compõe as 
formações discursivas e quer estabelecer o jogo de 
regras (episteme de uma época, seu a priori histórico, o 
solo onde são constituídas as formações discursivas 
historicamente realizadas e que compõem as diferentes 
configurações no espaço do saber) que definem as 
condições de possibilidade, das transformações, do 
desaparecimento de tais discursos, numa época dada e 
numa dada sociedade, jogo viável num curso histórico 
marcado por diferenças e descontinuidades. 
Em As palavras e as coisas Foucault distingue, na 
história do saber ocidental, três estruturas 
epistêmicas que se sucedem sem nenhuma 
continuidade. 
A primeira é a que se conservou até a 
Renascença; a segunda é a que se impôs nos séculos 
XVII e XVIII; a terceira se afirmou no século XIX. Mas 
o que tipifica essas diversas estruturas epistêmicas, que, por 
seu turno, qualificariam três diversas épocas culturais? 
Na primeira estrutura, “as palavras tinham a 
mesma realidade do que significavam”; o que as coisas 
são pode-se ler nos sinais do livro da natureza. 
Na segunda estrutura, o discurso rompe os 
laços que o uniam às coisas. Os sinais diretamente 
perceptíveis, quando não são ídolos enganadores, se 
configuram somente como pequenos auxílios para que 
o sujeito que conhece possa chegar a uma representação 
da realidade. 
Na terceira estrutura, o saber assume novo 
aspecto: ele não se detém nem se reduz à representação 
do visível, mas busca nova dimensão do real, ou seja, a 
da estrutura oculta. 
São essas, portanto, as estruturas epistêmicas 
que, de modo inconsciente, estruturaram as práticas 
discursivas (só aparentemente livres) dos homens em 
três diversas e descontinuas épocas da história do saber 
no Ocidente. 
Na fase da genealogia, ele busca as 
homogeneidades básicas que estão no fundo de 
determinada episteme. Como colocado pelo próprio 
Foucault: “a genealogia é cinza; ela é meticulosa e 
pacientemente documentária. Ela trabalha com 
pergaminhos embaralhados, riscados, várias vezes 
reescritos”. Nesse sentido, é procurar as 
particularidades que formam o conhecimento, as 
percepções e o saber. 
Nessa fase de investigação dos “mecanismos de 
poder” temos as obras: 
1 – Vigiar e punir (1975); 
2 – História da sexualidade vol. 1, intitulado A 
vontade de7 
Marcuse diz que Freud descreveu essa mudança 
como a transformação do princípio do prazer em 
princípio de realidade, e as vicissitudes dos instintos 
são as vicissitudes da estrutura psíquica na civilização. 
E com a instituição do princípio de realidade, o ser 
humano - que, sob o princípio do prazer, fora pouco 
mais do que mistura de tendências animais, tornou-se 
Eu organizado. 
Para Freud, a modificação repressiva dos 
instintos é consequência “da eterna luta primordial pela 
existência que continua até nossos dias. Sem a 
modificação, ou melhor, o desvio dos instintos, não se 
vence a luta pela existência e não seria possível 
nenhuma sociedade humana duradoura. Entretanto, diz 
Marcuse, Freud considera eterna a luta primordial pela 
existência, acreditando, com isso, num antagonismo 
eterno entre o princípio do prazer e o princípio de 
realidade. A convicção de que é impossível uma 
civilização não repressiva representa uma pedra angular 
da construção teórica freudiana. 
Precisamente contra essa eternização e 
absolutização do contraste entre o princípio do prazer 
e o princípio de realidade é que se voltam os golpes 
críticos de Marcuse, no sentido de que, em sua opinião, 
esse contraste não é metafísico ou eterno, devido a certa 
misteriosa natureza humana considerada em termos 
essencialistas. Esse contraste é muito mais produto de 
uma organização histórico-social especifica. Freud 
mostrou que a falta de liberdade e a constrição foram o 
preço pago por aquilo que se fez, pela "civilização" que 
se construiu. 
Mas disso não deriva necessariamente que o 
preço a ser pago seja eterno. 
 
“Eros” libertado 
 
O progresso tecnológico gerou as premissas 
para a libertação da sociedade em relação à obrigação 
do trabalho, pela ampliação do tempo livre, pela 
mudança da relação entre tempo livre e tempo 
absorvido pelo trabalho socialmente necessário (de 
modo que este se torne apenas meio para a libertação 
de potencialidades hoje reprimidas): “Expandindo-se 
sempre mais, o reino da liberdade torna-se 
verdadeiramente o reino do jogo, do livre jogo das 
faculdades individuais. Assim libertadas, elas geram 
formas novas de realização e de descoberta do mundo, 
que, por seu turno, darão nova forma ao reino da 
necessidade e à luta pela existência”. 
O reino da necessidade (centrado no princípio 
do desempenho e da eficiência, que suga toda a energia 
humana) será então substituído por uma sociedade não 
repressiva, que reconcilia natureza e civilização, na qual 
se afirma a felicidade do Eros libertado. 
No progresso tecnológico, portanto, estão as 
condições objetivas para a transformação radical da 
sociedade. No entanto, o progresso tecnológico não 
fica abandonado a si mesmo: é controlado e guiado; 
consciente das possibilidades da derrocada do sistema, 
o poder sufoca as potencialidades libertadoras e 
perpetua um estado de necessidade doravante não mais 
necessário. 
E assim, já tecnicamente possível, a utopia 
permanece inalcançável. Daí a importância da filosofia, 
que, embora sem dizer como será o reino da utopia, no 
entanto o anuncia, ao mesmo tempo em que denuncia 
os obstáculos em seu caminho. 
 
O homem de uma dimensão 
 
O escrito mais conhecido de Marcuse é O homem 
de uma dimensão, de 1964. O homem de uma dimensão é 
o homem que vive em uma sociedade de uma dimensão, 
sociedade justificada e coberta pela filosofia de uma 
dimensão. A sociedade de uma dimensão é sociedade sem 
oposição, ou seja, sociedade que paralisou a crítica 
através da criação de um controle total. 
A filosofia de uma dimensão é a filosofia da 
racionalidade tecnológica e da lógica do domínio; é a 
negação do pensamento crítico, da “lógica do 
protesto”; é a filosofia “positivista” que justifica “a 
racionalidade tecnológica”. 
Na sociedade tecnológica avançada, “a máquina 
produtiva tende a se tornar totalitária enquanto 
determina não somente as ocupações, as habilidades e 
os comportamentos socialmente requeridos, mas 
também as necessidades e as aspirações individuais”. E, 
como universo tecnológico, a sociedade industrial avançada 
“é um universo político, o último estágio da realização de 
um projeto histórico específico, ou seja, a experiência, 
a transformação e a organização da natureza como 
mero objeto de domínio”. 
Ela alcança a mais alta produtividade e a utiliza 
para perpetuar o trabalho e o esforço; nela, a 
industrialização mais eficiente pode servir para limitar e 
manipular as necessidades. Escreve Marcuse: “Quando 
se alcança esse ponto, a dominação, sob a forma de 
opulência e liberdade, estende-se a todas as esferas da 
vida privada e pública, integra toda oposição genuína e 
absorve em si toda alternativa”. Em suma, a sociedade 
tecnológica avançada cria um verdadeiro universo 
totalitário; em uma sociedade madura, mente e corpo 
são mantidos em um estado de mobilização permanente 
para a defesa desse mesmo universo. 
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8 
Por tudo isso, a luta pela mudança deve tomar 
outros caminhos, não mais os indicados por Marx: “As 
tendências totalitárias da sociedade unidimensional 
tornam ineficazes os caminhos e meios tradicionais de 
protesto”. 
Seja como for, a questão, porém, não se 
apresenta como desesperadora, pois, abaixo da base 
popular conservadora, existe a camada dos 
marginalizados e dos estrangeiros, dos explorados e 
perseguidos de outras raças e de outras cores, dos 
desempregados e dos deficientes. Eles ficam fora do 
processo democrático. Sua presença, mais do que 
nunca, prova quanto é imediata e real a necessidade de 
pôr fim a condições e instituições intoleráveis. Daí por 
que sua oposição é revolucionária, ainda que sua 
consciência não o seja. Sua oposição golpeia o sistema 
de fora dele e, por isso, não é desviada pelo sistema; é 
urna força elementar que infringe as regras do jogo e, 
assim fazendo, mostra tratar-se de um jogo com cartas 
marcadas. Quando eles se reúnem e andam pelos 
caminhos, sem armas e sem proteção, para reivindicar 
os mais elementares direitos civis, sabem que tem de 
enfrentar cães, pedras e bombas, prisão, campos de 
concentração e até a morte. O fato de que eles começam 
a se recusar a tomar parte no jogo pode ser o fato que 
marca o início do fim de um período. 
Isso não quer dizer, em absoluto, que as coisas 
serão assim. O que se diz é que “o fantasma está 
novamente presente, dentro e fora das fronteiras das 
sociedades avançadas”. E o que a teoria crítica da 
sociedade pode fazer é o seguinte: ela “não possui 
conceitos que possam preencher a lacuna entre o 
presente e seu futuro; não tendo promessas a fazer nem 
resultados a mostrar, ela permanece negativa. Desse 
modo, ela quer manter-se fiel aqueles que, sem 
esperança, deram e dão a vida pela grande recusa”. 
 
4. WALTER BENJAMIM 
Walter Benjamin, 
nasceu em Berlim, a 15 de 
julho de 1892, no âmago de 
uma família judia de 
comerciantes. Posteriormente 
ele se tornaria ensaísta, crítico 
de literatura, tradutor, filósofo 
e sociólogo da cultura, sendo 
um dos membros mais 
importantes da Escola de 
Frankfurt. 
Ele foi profundamente 
influenciado por doutrinas 
aparentemente díspares, como o materialismo marxista, 
o idealismo de Hegel e a mística judaica de Gershom 
Scholem. Ainda adolescente, simpatizava com o 
socialismo, integrando o Movimento da Juventude 
Livre Alemã e escrevendo para a publicação deste 
grupo. É possível perceber então uma certa inspiração 
nietzscheana no jovem Benjamin. Enquanto adepto da 
Teoria Crítica foi marcado tanto por Georg Lukács, 
quanto pelo dramaturgo alemão Bertolt Brecht, gosto 
que traduz sua natureza por um lado artística, por outro 
intelectual. 
Adorno já chamava a atenção para sua 
personalidade austera, quase inflexível,saber (1976). 
Aqui ele procura evidenciar as articulações entre 
saber e poder, mediados, por assim dizer, pelo que 
podemos chamar de modos de produção da verdade. 
Em nossa sociedade a produção da verdade é 
regulamentada por regras que autorizam a eleição dos 
discursos reconhecidos como científicos, que 
qualificam os objetos dignos de saber, os sujeitos aptos 
a produzi-los, as instituições apropriadas, e cujos efeitos 
de poder, particularmente no caso das ciências 
humanas, são sobretudo disciplinar e normatizar. 
Para ele, verdade é o conjunto de regras 
segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se 
atribui ao verdadeiro efeitos específicos de poder. Este, 
por sua vez, é exercício, prática, que só existe em sua 
concretude, multifacetado e cotidiano. 
Nesse momento de sua produção intelectual 
passa a fazer o cruzamento da análise dos discursos com 
a trama das instituições e práticas sociais, abandonando 
a noção de episteme pela noção mais complexa de 
“dispositivo estratégico”. Apesar da episteme ser um 
elemento prioritário do dispositivo, este envolve 
articulações entre elementos heterogêneos, discursivos 
e extradiscursivos (práticas jurídicas, projetos 
arquitetônicos, instituições sociais diversas). 
Nosso filósofo então progride da arqueologia 
(método para análise da discursividade local onde tem-
se uma análise descritiva vinculando uma denúncia) 
para a genealogia. Agora tem-se uma tática que, a partir 
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64 
da discursividade local (arqueologia) assim descrita, 
ativa os saberes libertos da sujeição que emergem desta 
discursividade, construindo uma política de resistência 
e de luta. 
Nesse sentido, para entender as relações de 
poder é necessário, também, que se entenda como é 
elaborada a noção de verdade em nossa sociedade, pois 
é a partir daí que todo o sistema funciona. 
Caracterizando a economia política da verdade em 
nossa sociedade, podemos afirmar que a verdade é 
centrada na forma do discurso científico e nas 
instituições que a produzem. É objeto de uma grande 
difusão que tem a missão de espalhá-la. 
Segundo Foucault, “o importante, creio, é que a 
verdade não existe fora do poder ou sem poder. A 
verdade é deste mundo; ela é produzida nele, graças a 
múltiplas coerções e nele produz efeitos 
regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu 
regime de verdade, sua “política geral” de verdade: isto 
é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar 
como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que 
permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos 
falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as 
técnicas e os procedimentos que são valorizados para a 
obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o 
encargo de dizer o que funciona como verdadeiro”. 
Em suma, podemos dizer que a verdade está 
diretamente ligada ao sistema de poder, sustentando-o. 
Este sistema a elabora e reproduz de acordo com suas 
necessidades. 
Até o final do século XVIII, a medicina era uma 
sabedoria particular do médico que auxiliava o doente 
no combate à epidemia. Com a necessidade de 
mudanças estruturais e arquitetônicas, o hospital 
começou a utilizar a tecnologia política da disciplina. 
Para isso modificou se espaço interno e externo 
fazendo do médico seu organizador e utilizando o 
registro permanentemente. Assim, o hospital passa a ser 
não apenas um local de cura, mas também de registro, 
acúmulo e formação de saber. A verdade que era 
produzida passa a ser procurada através de técnicas. 
Quando nos referimos à prisão, vemos também 
que ela exerce um papel fundamental nessa relação de 
produzir verdades, por ser um mecanismo de 
manutenção do poder. Não é capaz de extinguir a 
delinquência, mas, antes, difunde a mesma para 
justificar a ação policial sobre a população. 
Assim como no final do século XVIII mudou-
se de estratégia: do punir passou-se a vigiar. É mais 
eficiente. Até porque se imaginava que o homem faz o 
mal somente quando não está sendo visto. Com a 
estratégia do olhar vigiador esse problema estaria 
resolvido pois, “sem necessitar de armas, violências 
físicas, coações materiais. Apenas um olhar. Um olhar 
que vigia e que cada um, sentindo-o pesar sobre si, 
acabará por interiorizar, a ponto de observar a si 
mesmo. Fórmula maravilhosa: um poder contínuo e de 
custo afinal de contas irrisório”. 
Enquanto na arqueologia do saber ele procurou 
olhar para as transformações dos saberes, ou seja, como 
o saber foi sendo trabalhando a partir das ciências 
humanas; na genealogia do poder ele dá um passo a 
mais na profundidade da análise, ou seja, ele busca 
analisar não mais as transformações dos saberes, mas a 
origem dos saberes, o surgimento dos saberes. 
Assim, Foucault explicita que antes de olharmos 
para os saberes existentes, é preciso olhar e descobrir 
que eles têm uma raiz, uma origem, uma criação. Ou 
seja, todas as sociedades, todas as culturas, todas as 
classes, nenhuma é livre das relações de poder, porque 
em todas elas existem as relações de saber. E se 
precisamos de uma personificação dessas relações de 
poder, elas estão personificadas nos indivíduos. 
Ele propõe, então, com a genealogia, uma 
concepção não jurídica do poder, ou seja, não podemos 
olhar para o poder apenas do ponto de vista da lei, da 
repressão, da negatividade. Seria até um erro, 
caracterizar o poder como negativo, repressivo, ou que 
castiga, que impõe limites. 
Veja o que ele diz em Vigiar e Punir: “temos que 
deixar de descrever sempre os efeitos do poder em 
termos negativos: ‘ele exclui’, ele ‘reprime’ ele ‘recalca’, 
ele ‘censura’, ele ‘abstrai’, ele ‘mascara’, ele ‘esconde’. 
Na verdade o poder produz; ele produz realidade; 
produz campos de objetos e rituais da verdade. O 
indivíduo e o conhecimento que dele se pode ter se 
originam nessa produção”. 
Portanto, para Foucault, as relações de poder 
não são negativas justamente porque elas geram saberes 
novos, elas produzem, elas deslocam, mexem, 
provocam. Todos os indivíduos participam dessas 
relações. Nessa genealogia, todos produzem saber a 
partir das relações de poder. 
A fase ética em Foucault se refere à 
subjetivação, ou melhor, à constituição dos sujeitos e, 
dessa forma, o autor acreditava entender o 
conhecimento e suas relações pela multiplicidade e por 
diversas dimensões. 
Aqui ele pretende responder a um problema 
específico, qual seja, por que se deu o nascimento de 
uma moral, uma moral enquanto reflexão sobre a 
sexualidade, sobre o desejo, o prazer. Por que fizemos 
da sexualidade uma experiência moral? 
Essa pergunta fez ele mudar o rumo de suas 
pesquisas, fazendo-o recuar um pouco mais no tempo 
indo até a antiguidade clássica. O foco muda do sujeito 
objeto para o sujeito ético, indivíduo que se constitui a 
si mesmo, tomando então a relação a si e aos outros 
enquanto “sujeito do desejo”, como espaço de 
referência. 
Outra questão central é o sexo. As instituições 
apressaram-se em proibi-lo, não somente no discurso, 
mas também nas instituições e na prática. A aversão a 
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65 
masturbação infantil surgiu no momento em que se 
precisava de uma nova educação, pois se estava 
instalando a industrialização e uma das maneiras de 
disciplinar as crianças foi pela “repressão” sexual. 
Nesse sentido, podemos constatar que, para se 
responder a uma urgência histórica, se constrói o 
dispositivo da sexualidade: uma rede que estabelece na 
relação de discursos, instituições, organizações, 
controladas através da confissão: o dirigido vai buscar 
no confessor uma verdade – a do pecado cometido. A 
verdade exige um discurso próprio. Assim,para se 
conseguir obter o saber válido para o sistema que o 
mantém, é preciso apossar-se do discurso que confere 
esse saber. 
As obras que compõe essa fase de “constituição 
do sujeito ético” são os outros dois volumes da História 
da sexualidade, escritos em 1984: 
1 – Uso dos prazeres (Volume II); 
2 – O cuidado de si (Volume III). 
 
Relações de poder 
 
Todas as pessoas estão envolvidas por relações 
de poder e não podem ser consideradas independente 
delas ou alheias a elas. 
Nas palavras de Foucault, “é preciso não tomar 
o poder como um fenômeno de dominação maciço e 
homogêneo de um indivíduo sobre os outros, de um 
grupo sobre os outros, de uma classe sobre as outras; 
mas ter bem presente que o poder não é algo que se 
possa dividir entre aqueles que o possuem e o detém 
exclusivamente e aqueles que não o possuem. O poder 
deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, 
como algo que só funciona em cadeia. Nunca está 
localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de alguns, 
nunca é apropriado como uma riqueza ou um bem. O 
poder funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas os 
indivíduos não só circulam mas estão sempre em 
posição de exercer este poder e de sofrer sua ação; 
nunca são o alvo inerte ou consentido do poder, são 
sempre centros de transmissão. Em outros termos, o 
poder não se aplica aos indivíduos, passa por eles”. 
Dessa maneira, não existindo “o” poder, mas 
sim “relações de” poder, ele não está situado em um 
lugar específico, mas está distribuído e agindo em toda 
a sociedade, em todos os lugares e em todas as pessoas. 
Através de seus mecanismos, o poder atua como uma 
força coagindo, disciplinando e controlando os 
indivíduos. 
Para Foucault, de acordo com as necessidades e 
com as realidades de cada local, são produzidas novas 
relações de poder. A mecânica do poder que se expande 
por toda a sociedade, assumindo as formas mais 
regionais e concretas, investindo em instituições, 
tomando corpo em técnicas de dominação. Poder esse 
que intervém materialmente, atingindo a realidade mais 
concreta dos indivíduos (o seu corpo), e se situa no 
nível do próprio corpo social, e não acima dele, 
penetrando na vida cotidiana, e por isso pode ser 
caracterizado como micropoder ou subpoder. 
Este processo de renovação e adaptação das 
relações atinge certo grau de eficiência e o poder parece 
adquirir uma importante dose de autonomia, quase 
como se fosse independente dos indivíduos. Através 
das ideologias e da burocracia, mas não só por elas, o 
poder se exerce, envolvendo-se nos indivíduos. 
Diz Foucault: “O poder não se dá, não se troca 
nem se retoma, mas se exerce, só existe em ação; (...) o 
poder não é principalmente manutenção e reprodução 
das relações econômicas, mas acima de tudo uma 
relação de força”. Ele até parece invisível, mas é 
transmitido e reproduzido e perpetuado através dos 
indivíduos. 
Assim, o poder existe e age de modo sofisticado 
e sutil. O poder disciplinar adestra os corpos no intuito 
de tanto multiplicar suas forças, para que possam 
produzir riquezas, quanto diminuir sua capacidade de 
resistência política. 
Para fazer essa análise do poder, Foucault 
centra sua atenção no que chamou de poder disciplinar, 
além dos dispositivos da loucura e da sexualidade. 
Segundo ele, a finalidade das práticas de adestramento 
era disciplina e reclusão, tendo em vista a docilidade dos 
corpos. Para chegar a essas conclusões que adentram o 
interior das relações humanas, em vez de analisar a 
história de origem única e causal, ele realiza uma 
genealogia, ou seja, um olhar sobre as multiplicidades e 
as lutas. 
Para Foucault, “houve uma ideologia da 
educação, uma ideologia do poder monárquico, uma 
ideologia da democracia parlamentar, etc.; mas não 
creio que aquilo que se forma na base sejam ideologias: 
é muito menos e muito mais do que isso. São 
instrumentos reais de formação e de acumulação do 
saber: métodos de observação, técnicas de registro, 
procedimentos de inquérito e de pesquisa, aparelhos de 
verificação. Tudo isso significa que o poder, para 
exercer-se nesses mecanismos sutis, é obrigado a 
formar, organizar e pôr em circulação um saber”. 
Desse modo, estamos todos envolvidos nessa 
rede que recebe, gera e distribui o poder. Somos seres 
relacionáveis, sociáveis, e isso nos envolve nas relações 
de poder. Foucault nos aproxima dessa temática e, mais 
que isso, ele nos envolve nessa teia, nessa rede chamada 
poder. 
O biopoder foi um termo-conceito criado pelo 
próprio Foucault para mostrar a prática dos Estados 
modernos. Segundo ele, os Estados modernos regulam 
os sujeitos (cidadãos) através de numerosas técnicas que 
possibilitavam o controle dos corpos e da população 
em geral. 
No que se refere ao poder, direito e verdade, 
sob a análise de Foucault, existe um triângulo em que 
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66 
cada item mencionado (poder, direito e verdade) se 
encontra nos seus vértices. 
Nesse triângulo, o filósofo vem demonstrar o 
poder como direito, pelas formas que a sociedade se 
coloca e se movimenta, ou seja, se há o rei, há também 
os súditos, se há leis que operam, há também os que a 
determinam e os que devem obediência. 
O poder como verdade vem se instituir, ora 
pelos discursos a que lhe é obrigada a produzir, ora 
pelos movimentos dos quais se tornam vitimados pela 
própria organização que a acomete e, por vezes, sem a 
devida consciência e reflexão, “para assinalar 
simplesmente, não o próprio mecanismo da relação 
entre poder, direito e verdade, mas a intensidade da 
relação e sua constância, digamos isto: somos forçados 
a produzir a verdade pelo poder que exige essa verdade 
e que necessita dela para funcionar, temos de dizer a 
verdade, somos coagidos, somos condenados a 
confessar a verdade ou encontrá-la”. Nessa perspectiva, 
pode-se entender por poder uma ação sobre ações. 
 
Estado e sociedade 
 
As relações de poder, direito e verdade, entre o 
Estado, mercado e sociedade civil são tão complexas, 
tácitas, intrínsecas e interdependentes que, por vezes, 
encontram-se discursos de verdades e direitos 
desenhados pelo interesse individual, o que pode ser 
chamado de relação de força, e tais forças estão 
distribuídas difusamente por todo tecido social. 
Para Foucault existem diversas ações que 
perfazem o poder, o direito e a verdade, ações essas que 
são transportadas para aquelas que permeiam a tríplice 
Estado/mercado/sociedade civil. Assim, pode-se 
concluir que a harmonia das relações de poder-direito, 
poder-verdade, estado, mercado e sociedade civil é 
essencial para que as políticas e ações sejam 
fundamentadas nos princípios éticos. 
Diante dos papéis possíveis que a sociedade 
pode apresentar, Foucault nos apresenta duas 
tecnologias de poder, divididas em duas séries: a série 
corpo — organismo/disciplina/instituições, que são os 
mecanismos disciplinares; a série população — 
processos biológicos (que são os mecanismos 
regulamentares)/Estado. 
Segundo ele, “uma técnica que é centrada no 
corpo, produz efeitos individualizantes, manipula o 
corpo como foco de forças que é preciso tornar úteis e 
dóceis ao mesmo tempo. E, de outro lado, temos uma 
tecnologia que, por sua vez, é centrada não no corpo, 
mas na vida; uma tecnologia que agrupa os efeitos de 
massas próprios de uma população”. 
De acordo com Foucault a modernidade trouxe 
duas novidades fortemente interligadas: poder 
disciplinar, no âmbito dos indivíduos; e sociedade 
estatal, no âmbito do coletivo. 
O poder disciplinar surgiu em substituição ao 
poder pastoral (no campo religioso), poder esse 
exercido verticalmente por um pastor que depende do 
seu rebanho e vice-versa. No poder pastoral, o pastor 
deve conhecer individualmente cada membro do seu 
rebanho, se sacrificar por eles e salvá-los, estabelecendodesse modo uma relação vertical, sacrificial e 
salvacionista, individualizante e detalhista. 
No campo político, a sociedade estatal veio em 
substituição ao poder de soberania, vem da lógica 
pastoral, embora não possa ser salvacionista, nem 
piedoso e nem mesmo individualizante. Assim, o poder 
de soberania tem um déficit em relação ao poder 
pastoral. Daí surge o poder disciplinar para preencher 
essa lacuna, com efeitos individualizantes, vigilante, a 
fim de preencher os espaços vazios do campo político. 
Em muitos momentos ocorreu a “a invasão do 
poder pastoral no plano político do corpo social”. Ou 
seja, o caráter individualizante do poder pastoral deveria 
ser abarcado pela sociedade estatal e essa contradição 
pode ser bem identificada no estado de bem-estar 
social. 
A partir disso, podemos observar as 
transformações do Estado e suas formas de produção 
e/ou regulação. O estado de bem-estar social surgiu da 
movimentação histórica em que houve urgência de o 
Estado provir necessidades básicas para a sociedade, 
visto que o liberalismo não deu conta de suprir tais 
necessidades. A economia capitalista entra na década de 
1970 em profunda crise histórica, parecendo haver um 
consenso entre as correntes conservadoras e 
progressistas em relação ao seu caráter: trata-se de uma 
crise de Estado. 
Essa passagem de Estado tutelar, assistencial 
(Estado produtor) a Estado de livre iniciativa (Estado 
regulador) coaduna com a questão levantada por 
Foucault, em relação à arte de governar: “como 
introduzir a economia — isto é, a maneira de gerir 
corretamente os indivíduos, os bens, as riquezas no 
interior da família — ao nível da gestão de um Estado”. 
Governar um Estado significará, portanto, 
estabelecer a economia ao nível geral do Estado, isto é, 
ter em relação aos habitantes, às riquezas, aos 
comportamentos individuais e coletivos, uma forma de 
vigilância, de controle tão atenta quanto à do pai de 
família. 
Adiante, ele vem colocar a população não só 
como força do soberano, mas como sujeito das 
necessidades e aspirações, consciente daquilo que se 
quer, e inconsciente em relação ao que se quer que ela 
faça. “O interesse individual — como consciência de 
cada indivíduo constituinte da população — e o 
interesse geral — como interesse da população (...)”. 
Dessa forma, governar e programar políticas públicas 
perpassa pelas necessidades e aspirações da sociedade, 
identificadas não só pelo aspecto quantitativo de 
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67 
demanda mas, principalmente, pelo aspecto qualitativo 
para garantir a sua sustentabilidade. 
 
Governabilidade 
 
Na Microfísica do poder (1979), Foucault coloca a 
governabilidade como objeto de estudo em relação às 
formas de governar. Ele põe as questões do problema 
da população e a questão de governo, em que faz 
deferência à relação de segurança, população e governo, 
sendo este o objeto principal. 
Ele decorre pelo principado, em particular a 
obra de Maquiavel, O príncipe, no sentido do modo de 
se comportar, de exercer o poder, de ser aceito pelos 
súditos. Dessa forma, traz à tona a temática acerca do 
governo dos estados pelos príncipes que seria: “(...) 
como se governar, como ser governado, como ser o 
melhor governante possível etc.”. 
Maquiavel, em princípio, como coloca 
Foucault, foi reverenciado por seus contemporâneos, 
para depois ser abominado e sofrer uma enorme 
literatura contrária à sua obra, daí o termo pejorativo e 
negativo de “maquiavélico”. É preciso levar em 
consideração que O príncipe, de Maquiavel, foi um 
postulado do comportamento do príncipe e dos que o 
cercavam, no sentido de reproduzir o comportamento 
e não escrever um tratado, um manual “maquiavélico”. 
Como bem colocado por Foucault, O príncipe 
deve ser analisado não pela função de censura, mas pela 
positividade dos conceitos e estratégias. No primeiro 
momento, Foucault coloca a relação de singularidade, 
exterioridade e transcendência do príncipe em relação 
ao principado, ou seja, o príncipe “recebe seu 
principado por herança, por aquisição, por conquista, 
mas não faz parte dele, lhe é exterior; os laços que o 
unem ao principado são de violência, de tradição, 
estabelecidos por tratado com a cumplicidade ou 
aliança de outros príncipes”. 
Para ele, a constituição de governabilidade 
implica analisar as formas de racionalidade, de 
procedimentos técnicos, de formas de 
instrumentalização, “o essencial é, portanto, este 
conjunto de coisas e homens; o território e a 
propriedade são apenas variáveis”. Quando se refere ao 
conjunto de coisas e homens, se refere à essência do ser 
perante as suas necessidades, interações e bem-estar; as 
propriedades, riquezas, recursos são as variáveis 
pertinentes de cada território e que dão suporte ao 
suprimento das necessidades do ser e o bem-estar da 
população. 
Estas coisas, de que o governo deve se 
encarregar, são os homens, os recursos, os meios de 
subsistência, o território e suas fronteiras, com suas 
qualidades, clima, seca, fertilidade etc.; os homens em 
suas relações com outras coisas que são os costumes, os 
hábitos, as formas de agir e pensar etc. 
Passada a época do principado, com as 
características de multiplicidade iniciada no século XVI, 
que introduziu a ideia de Estado, tal como se tem hoje, 
Foucault coloca como principais movimentos de 
constituição desse Estado: o movimento de 
concentração estatal; dispersão e dissidência religiosa. 
Foucault reflete sobre governabilidade a partir 
das três formas de governo: 
1 - o governo de si (a moral); 
2 - o governo da família e da casa (economia); 
3 - o governo do Estado (a política). 
Esmiuçando essas três formas de governo, 
Foucault quer responder à questão postulada por 
Rousseau: como introduzir a questão da economia ao 
nível geral do Estado, ou seja, o controle atento de um 
pai a riquezas, recursos, comportamentos individuais e 
coletivos, para que a convivência seja assegurada e 
legitimada de forma conveniente e em prol do bem 
comum. 
Foucault aborda a questão da continuidade da 
arte de governar: ascendente e descendente. Na 
continuidade ascendente, ele afirma que “aquele que 
quer poder governar o Estado deve primeiro saber se 
governar, governar a sua família, seus bens, seu 
patrimônio”. A continuidade descendente é no sentido 
de que “quando o Estado é bem governado, os pais de 
família sabem governar suas famílias, seus bens, seu 
patrimônio e por sua vez os indivíduos se comportam 
como devem”. 
As duas linhas de continuidade fecham o cerco 
para a arte de bem governar, ou melhor, uma sociedade 
em que “todos” conseguem se governar e governar 
outrem; torna-se uma sociedade livre dos preceitos 
negativos imbricados nos interesses individuais 
colocados à frente dos coletivos, na sobreposição do 
espaço privado ao espaço público. 
Essas linhas de continuidade de Foucault vêm 
chamar atenção para a linha central entre o governo de 
si (a moral) e o governo de Estado (a política), e o 
governo da família (a economia), que permitirá que o 
equilíbrio desse triângulo, moral — economia — 
política, possa ser encaminhado ao bem da sociedade. 
 
A sociedade da vigilância e punição 
 
Para Foucault, estamos de uma forma ou de 
outra, todos envolvidos numa teia de relações que dá 
vida e “movimento” ao poder. Ele propõe também uma 
reflexão sobre a forma como os espaços se organizam 
para formar isso que chamamos de sociedade. Sobre 
essa organização do espaço, que chamamos de 
sociedade, Foucault diz: “[...] é uma máquina que 
circunscreve todo mundo, tanto aqueles que exercem o 
poder, quanto aqueles sobre os quais o poder se exerce. 
Isso me parece ser a característica das sociedades que se 
instauraram no século XIX”. 
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68 
Mas Foucault vai além. Ele separa dois fatores 
que para ele funcionam como “dispositivos” para o 
exercício do poder: a vigilância e a punição. 
Dispositivos são meios, formas, veios, caminhos, pelos 
quais o poder se exerce na sociedade. Dispositivos são 
mecanismos usados de forma discreta para dar força 
aos meios que, em suma, objetivam determinado fim. 
O dispositivo, portanto, está sempre inscrito em 
um jogo de poder, estando sempre, no entanto, ligado 
a uma ou a configurações de saber que dele nascem mas 
que igualmente o condicionam. É isto, o dispositivo: 
estratégias de relações de força sustentando tipos de 
saber e sendo sustentadas por eles. 
O primeiro dispositivo usado pela sociedade, 
segundo Foucault, é a vigilância. Para haver vigilância, 
há custos econômicos e políticos. Econômicos porque 
precisam de investimentos com materiais e pessoas que 
possam agir como vigilantes. Custos políticos porque se 
a violência existir, por causa da vigilância, podem 
ocorrer revoltas. Isso é um custo político porque 
“desgasta” a imagem daqueles que estruturam essas 
forças e mantém tais mecanismos. 
Foucault também descreve o forte poder 
vigilante existente nas prisões, nas clínicas de 
recuperação, nos hospitais, enfim, nas formas de 
construção e estruturação dos locais onde se tratam do 
ser humano. No entanto, para uma maior precisão 
sobre a eficácia da vigilância, cria-se a filosofia do 
controle pelo olhar. 
Nasce a figura do inspetor. Este, de um lugar 
privilegiado, pode olhar e, desse modo, controlar a 
todos. O olhar torna-se uma boa forma de vigilância: 
“O olhar vai exigir muito pouca despesa. Sem 
necessidade de armas, violência física, coações 
materiais. Apenas um olhar. Um olhar que vigia e que 
cada um, sentindo-o pesar sobre si, acabará por 
interiorizar, a ponto de observar a si mesmo; sendo 
assim, cada um exercerá essa vigilância sobre e contra si 
mesmo. Formula maravilhosa: um poder contínuo e de 
custo afinal de contas irrisório”. 
Se um dos dispositivos é a vigilância, o outro é 
a punição. Em Vigiar e Punir, ele faz um estudo quase 
científico sobre a evolução histórica da legislação penal 
e os métodos coercitivos e punitivos, adotados pelo 
poder público nas formas de repressão. Métodos que 
vão desde a violência física até instituições correcionais. 
Segundo Foucault, a aplicação da pena torna-se 
um procedimento burocrático, permitindo que a 
punição seja oficializada pelo Estado mas, ao mesmo 
tempo, que justiça ou o sistema do estado tome uma 
certa distância da prática da punição. Essa distância 
justifica os atos de punição. Tais atos são apresentados 
como necessários para corrigir, reeducar, curar aqueles 
que são infratores da lei e da ordem. É a 
institucionalização do direito de castigar, punir. 
Ele analisa outros sistemas de punição, mas 
centra sua análise na prisão. Para ele o sistema 
carcerário torna natural e legítimo o exercício da 
punição, acaba com os exageros do castigo, porém, dá 
legalidade aos mecanismos disciplinares. Quando a 
punição se torna “legal” ela pode ser infligida pelo 
poder sem que isso seja visto como excesso. O poder 
de punir torna-se discreto. 
Na sua análise, “era assim que funcionava o 
poder monárquico. A justiça só prendia uma proporção 
irrisória de criminosos; ela se utilizava do fato para 
dizer: é preciso que a punição seja espetacular para que 
os outros tenham medo”. 
Dessa forma, os dispositivos de vigilância e 
punição são inseridos na sociedade de forma discreta, 
arquitetada para significar necessidade. Chega um certo 
ponto da construção da sociedade, que a existência 
desses dispositivos é vista como necessária, 
indispensável e legítima pelos próprios cidadãos. É a 
partir destes dispositivos que Foucault vai desenvolver 
sua análise do poder disciplinar, que já não é 
apresentado de forma centralizado e sim, de forma 
dinâmico, atuando em todos os níveis da sociedade. 
 
O olhar que controla 
 
No capítulo XIV da Microfísica do Poder, 
intitulado “O olho do poder”, Foucault procura 
trabalhar sobre a considerável mudança que acontece 
na sociedade a partir do século XVIII. 
Seus estudos estiveram relacionados às 
instituições, quartéis, fábricas, prisões, hospitais 
psiquiátricos e escolas, em que o autor perpassa pela 
sociedade disciplinar. A política que conduz tais 
instituições, Foucault afirma ser a “continuação da 
guerra por outros meios”. “A disciplina procede em 
primeiro lugar à distribuição dos indivíduos no espaço”. 
Entretanto, a organização espacial, horários, escala 
hierárquica, tudo leva a essas instituições a prescrição 
de comportamentos humanos estabelecidos e 
homogêneos, assim como descreve Foucault. 
Ao estudar as instituições, Foucault já havia 
passado pela fase arqueológica que se constitui da 
análise do discurso e do saber. Nessa nova etapa (das 
instituições), o autor buscou melhor entender as 
instituições e, por conseguinte, os sujeitos (fase ética). 
Analisando a arquitetura desenvolvida naquela 
época, Foucault observa principalmente como eram 
construídos os hospitais: com uma preocupação voltada 
para o modo de separação dos doentes, isolamento em 
departamentos separados para evitar o contágio, 
classificação dos problemas de saúde através do 
diagnóstico e, principalmente, desenvolvendo uma 
maneira de vigiar o paciente e observá-lo. De 
preferência mantendo o indivíduo longe da sociedade 
sadia, para “evitar os contatos, os contágios, as 
aproximações e os amontoamentos”. Os médicos 
tornam-se, dessa forma, os “especialistas do espaço”. 
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69 
Para ele, “toda uma problemática se desenvolve 
então: a de uma arquitetura que não é mais feita 
simplesmente para ser vista (fausto dos palácios), ou 
para vigiar o espaço exterior (geometria das fortalezas), 
mas para permitir um controle interior, articulado e 
detalhado – para tornar visíveis os que nela se 
encontram”. 
Um outro lugar onde a arquitetura exerce 
bastante influencia é na forma como são construídas as 
prisões: celas, torres de observações, aberturas 
estratégicas, iluminação especial. Tudo para permitir 
um olhar que controle tudo e todos. Vigiar é preciso. 
As construções eram então da seguinte forma: 
“Na periferia, uma construção em anel; no centro, uma 
torre; esta possui grandes janelas que se abrem para a 
parte interior do anel. A construção periférica é dividida 
em celas, cada uma ocupando toda a largura da 
construção. Estas celas têm duas janelas: uma abrindo-
se para o interior, correspondendo às janelas da torre; 
outra dando para o exterior permite que a luz atravesse 
a cela de um lado para o outro. Basta então colocar um 
vigia na torre central e em cada cela trancaria um louco, 
um doente, um condenado, um operário ou um 
estudante. Devido ao efeito da contraluz, podem-se 
perceber, da torre, recortando-se na luminosidade, as 
silhuetas prisioneiras nas celas da periferia. Em suma 
inverte-se o princípio da masmorra; a luz e o olhar de 
um vigia captam melhor que o escuro que, no fundo, 
protegia”. 
Surge daí o conceito “olho do poder”, que 
estabelece uma nova forma de controle. Controle este 
que está calcado no olhar, na vigilância e não mais na 
força, como ocorreu até o século XVIII. 
Com a restauração do sistema penal, a pena de 
morte só aparece nos casos extremos. A prisão passa a 
ser admitida como a forma de punição ideal, 
transformando-se no local que irá corrigir reformar, 
reeducar e civilizar o indivíduo. O fator punitivo está na 
usurpação da liberdade (que passa a ser vigiada) e na 
correção disciplinar do detento para que este mude a 
sua forma de agir, tornando-se normal e produtivo. A 
prisão, então faz com que todos produzam: seja pormeio de incentivo, ou por meio de castigo. 
Com toda essa mudança estrutural, nasce o que 
Foucault chama de PANOPTISMO. É uma figura 
arquitetural que tem a visibilidade como uma armadilha. 
Para garantir a ordem na prisão, se constrói celas de 
onde não se pode ver, mas ser visto. Isso garante a 
ordem. O panóptico tem como efeito mais importante 
induzir o detento a estar consciente de que se está sendo 
observado. Dessa forma, o poder é automático e 
desindividualizado. É uma maquinaria facilmente 
assumida e controlada por qualquer indivíduo. 
O panoptismo é, portanto, um dispositivo 
invertido do espetáculo, shows, circo, poucos assistem 
ao que acontece com a multidão. Segundo Foucault: “o 
panóptico é uma máquina maravilhosa que, a partir dos 
desejos mais diversos, fabrica efeitos homogêneos de 
poder”. 
Ele explica que os “discursos de verdade” da 
sociedade, por meio de sua linguagem, comportamento 
e valores, são relações constituídas de poder e, portanto, 
aprisionam os sujeitos. Para ele, “cada sociedade tem 
seu regime de verdade, sua ‘política geral’ de verdade, 
isto é, os tipos de discurso que aceita e faz funcionar 
como verdadeiros..., os meios pelo qual cada um deles 
é sancionado, as técnicas e procedimentos valorizados 
na aquisição da verdade; o status daqueles que estão 
encarregados de dizer o que conta como verdadeiro”. 
Para tanto, Foucault vê na linguagem uma 
forma já constituída na sociedade, e por esse motivo, os 
discursos já circulam por muito tempo: “(...) analisando 
os próprios discursos, vemos se desfazerem os laços 
aparentemente tão fortes entre as palavras e as coisas, e 
destacar um conjunto de regras, próprias da prática 
discursiva”. 
De acordo com Foucault, as técnicas e práticas 
que induzem ao comportamento da internalização de 
movimentos sem questionamentos são chamadas de 
tecnologias do eu. As tecnologias de poder como 
produtoras da subjetividade, a análise arqueológica e a 
análise genealógica são alguns dos aspectos que podem 
ser utilizados para analisar a construção histórica de 
uma visão mecanicista e reducionista da sociedade. 
O panoptismo é um laboratório de poder. Cada 
vez que se aplica vai aperfeiçoando o exercício de poder 
porque reduz o número dos que exercem e multiplica-
se o número daqueles sobre os quais é exercido. Assim, 
a forma do panóptico é uma maneira de perpetuar o 
poder porque todos estão sujeitos à verificação que este 
estabelece uma vez que qualquer pessoa pode assumir a 
torre central e exercer a vigilância. O poder torna-se, 
então, perpétuo, porque o panóptico o amplia; não pelo 
próprio poder, mas para fortificar as forças sociais, 
“aumentar a produção, desenvolver a economia, 
espalhar a instrução, elevar o nível da moral publica; 
fazer crescer e multiplicar.” 
Com esse poderoso olhar, que tudo pode ver e 
vigiar (o do panóptico) temos uma diferente maneira de 
analisar as relações sociais: não uma relação de 
soberania, como sugeriam os autores modernos 
Hobbes e Rousseau, mas numa relação de disciplina ou 
que usa de mecanismos disciplinares que tornam o 
poder rápido, eficaz, eficiente e sutil. A formação da 
sociedade disciplinar vem da necessidade de ordenação 
das multiplicidades humanas. Consequentemente de 
uma explosão demográfica no século XVIII, a 
sociedade necessita de um ordenamento. 
 
A disciplina aplicada ao corpo 
 
Com a necessidade de um ordenamento da 
sociedade, teve-se uma preocupação especial em se 
impor uma disciplina ao corpo. Este se deve adequar 
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70 
espacial e funcionalmente. E vemos que esta adequação 
se dá num âmbito geral porque ela está implantada em 
todos os seguimentos da sociedade e do indivíduo: na 
escola, no quartel, nos hospitais. Sua característica 
principal é a observância do detalhe. 
Para Foucault, “não se trata de cuidar do corpo, 
em massa, grosso modo, como se fosse uma unidade 
indissociável, mas de trabalhá-lo detalhadamente; de 
exercer sobre ele uma coerção sem folga, de mantê-lo 
ao nível mesmo da mecânica – movimentos, gestos, 
atitudes, rapidez: poder infinitesimal sobre o corpo 
ativo. (...). Esses métodos que permitem o controle 
minucioso das operações do corpo, que realizam a 
sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma 
relação de docilidade-utilidade, são o que podemos 
chamar as ‘disciplinas’.” 
Todas as atividades desenvolvidas pelos 
indivíduos devem ser rítmicas e estabelecidas em um 
determinado tempo. O corpo deve assumir uma 
determinada postura que seja adequada para mais 
eficiência. O soldado é o exemplo de como o corpo é 
alvo do poder disciplinar. O corpo torna-se dócil, pois 
pode ser manipulado, submetido, aperfeiçoado. Assim, 
quando se impõe a disciplina ao corpo se está tentando 
impor a toda a sociedade porque ele não se torna apenas 
obediente, mas também, útil. 
Nasce uma “mecânica do poder”, onde os 
corpos tornam-se dóceis e manipuláveis da maneira que 
se quer. No entanto, esse é um processo que não se dá 
de repente. Vem das escolas primárias dos colégios, dos 
hospitais, e da organização militar, uma vez que nestes 
ambientes se busca valorizar os detalhes, as minúcias. 
O homem moderno nasce neste esmiuçamento, que 
nada mais é que uma tática usada para o controle e 
utilização dos homens. 
Foucault, quando fez a análise das instituições 
sobre a ideia do panoptismo, trouxe as escolas, quartéis 
e hospitais como modelos do aparelhamento 
disciplinar, como já visto. 
Nesse sentido, ele perpassa em primeiro lugar 
pela distribuição dos corpos no espaço, “o espaço 
escolar se desdobra; a classe torna-se homogênea, ela 
agora só se compõe de elementos individuais que vêm 
se colocar uns ao lado dos outros sob o olhar do mestre 
(...)”. Em segundo lugar, pelo controle das atividades, 
seja na rigidez do cumprimento de horários; seja na 
penetração do tempo nos corpos, a fim de prevalecerem 
os efeitos de poder; seja pela eficiência, rapidez e 
utilidade dadas pelos corpos disciplinados; seja na 
articulação corpo-objeto, no que se refere à 
manipulação do corpo ao objeto e na engrenagem de 
um e outro; seja, por fim, pela utilização exaustiva, que 
importa extrair do tempo sempre mais tempos 
disponíveis e dessa forma tornar cada instante mais 
forças úteis. 
A ordenação por fileiras, a colocação de cada 
aluno em suas tarefas e provas, o alinhamento de classes 
por idade, a classificação de conteúdos, as questões 
classificadas e tratadas por ordem de dificuldade 
potencializam resultados, comportamentos e valores de 
mais valia. 
Segundo ele, “a minúcia dos regulamentos, o 
olhar esmiuçante das inspeções, o controle das mínimas 
parcelas da vida e do corpo darão, em breve, no quadro 
da escola, do quartel, do hospital ou da oficina, um 
conteúdo laicizado, uma racionalidade econômica ou 
técnica a esse cálculo místico do ínfimo e do infinito”. 
As análises de Foucault das instituições não são 
uma crítica pura, mas trazem reflexões aos sistemas 
instituídos no interior delas, à medida que ocorre sua 
progressão histórica. A ordem disciplinar, como vista, 
perfaz uma forma de instituir ordem e alçar eficiência e 
utilidade econômica. 
Segundo ele, “o corpo humano entra numa 
maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e 
o recompõe. Uma ‘anatomia política’, que é também 
igualmente uma ‘mecânica do poder’, está nascendo; ela 
define como se pode ter domínio sobre o corpo dos 
outros, não simplesmente para que façam o que se quer, 
mas para que operem como se quer, com as técnicas, 
segundo a rapidez e a eficácia que se determina. A 
disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, 
corpos ‘dóceis’.” 
É importante destacar que para Foucault corpos 
dóceis são corpos maleáveis e moldáveis, o que significa 
que, por um lado, a disciplina se submete ao corponum 
ganho de força pela sua utilidade; e, por outro lado, 
perde força pela sua sujeição à obediência política. Nas 
suas palavras, “(...) se a exploração econômica separa a 
força e o produto do trabalho, digamos que a coerção 
disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre 
uma aptidão aumentada e uma dominação acentuada”. 
Esse modelo de reclusão e disciplina usado nos 
quartéis, nos conventos etc., contribui para o 
nascimento das fábricas que seguem as mesmas regras, 
os mesmos parâmetros de ação dirigida ao indivíduo de 
modo a evitar roubos, vadiagem, enfim, para vigiar o 
comportamento de cada um. As relações de poder são 
sutilmente estabelecidas em meio a estes ambientes. 
Nas fábricas do fim do século XVIII surge o 
“quadriculamento individualizante”, onde as pessoas 
são distribuídas em postos, pois, assim, a força de 
trabalho pode ser analisada em unidades individuais de 
acordo com a função que o indivíduo exerce. 
Nesse sentido, nos diversos modos de se aplicar 
esse poder controlador do olhar panóptico, há o 
surgimento das celas, dos lugares designados para cada 
um, das fileiras nos colégios, etc. para propiciar isso, a 
arquitetura tem lugar muito importante no modo de 
construir os edifícios, na maneira de dividir as salas, na 
disposição dos móveis, na maneira como se posicionam 
os corredores, janelas e jardins. 
Surge desses detalhes o que Foucault chama de 
relações “microfísicas” do poder, apresentadas de 
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71 
maneira celular, discreta e arquitetonicamente 
planejada. 
Para que a população em geral se familiarize 
com essa sociedade, com a preocupação em manter 
uma disciplina do corpo e com a preocupação de ser 
útil a cada momento e cada vez mais, é preciso que haja 
uma “domesticação” dessa população. Isso se dá 
através dos moldes dos meios militares e conventos, 
que apresentam e vivem com horários determinados e 
rigorosamente cumpridos; com formulas de boa 
convivência, de eficiência e produção constante. Dá-se 
aqui o uso exaustivo do tempo visando garantir a 
qualidade e o controle. Busca-se o tempo útil para evitar 
a vadiagem, os desocupados e os conflitos. No exército 
chega-se a fazer com que até mesmos os passos sejam 
dados ao mesmo tempo, numa sincronia invejável. O 
corpo é ajustado ao tempo e, uma vez disciplinado, 
gerará gestos eficientes. 
A disciplina é um controle do tempo. Isto é, 
estabelece uma sujeição do corpo ao tempo, com o 
objetivo de produzir o máximo de rapidez e o máximo 
de eficácia. Neste sentido, não é o resultado que 
interessa, mas seu desenvolvimento. E esse controle 
minucioso das operações do corpo, ela o realiza através 
da elaboração temporal do ato, da correlação de um 
gesto com o corpo que o produz e, finalmente, pela 
articulação do corpo com o objeto a ser manipulado. 
Dessa forma, podemos verificar uma mudança 
de uma visão de massa para uma visão mais 
individualizante das pessoas; por conta deste 
deslocamento é exigida uma maior eficiência em 
consequência da disciplina que lhe é imposta. O homem 
passa a ser como que a engrenagem de uma máquina 
funcional. É proibido, ou indesejável, falhar. Cada um 
deve estar interligado ao outro. Desenvolve-se a ideia 
de que se cada um desenvolver bem seu papel e 
“funcionar” de maneira correta, todo o conjunto 
alcançará ótimos resultados. 
Para se chegar a esse resultado positivo é 
necessário que se tenha um importante e eficiente 
sistema de comando. Não se exige da pessoa que 
entenda o funcionamento do todo, mas que seja 
eficiente no seu espaço. Por exemplo, o responsável 
pelo sino do colégio, o olhar constante do inspetor que 
vigia e guarda os corredores, o responsável pela fila que 
consequentemente deve ser formada. “O aluno deverá 
aprender o código dos sinais e atender automaticamente 
a cada um deles”. 
Tudo isso existe na tentativa de manter a ordem. 
Essas micro-maneiras de reproduzir o poder é que dá 
sustentação a toda essa engrenagem que por aí se 
sustenta. 
Essa disciplina vai criar uma individualidade, e 
é na fase ética, que trata da subjetivação e constituição 
do sujeito, que Foucault faz uma análise (a partir dessa 
fase genealógica aqui percorrida) de como é formado 
esse mecanismo de produção das individualidades que 
a disciplina produz a partir do controle de corpos, que 
a seu ver é constituída de quatro espécies: 
1) celular — pelo jogo de repartição espacial; 
2) orgânica — pela codificação das atividades; 
3) genética — pela acumulação do tempo; 
4) combinatória — pela composição de forças. 
Para ele, “O exercício da disciplina supõe um 
dispositivo que obrigue pelo jogo do olhar; um aparelho 
onde as técnicas que permitem ver induzam a efeitos de 
poder, e onde, em troca, os meios de coerção tornem 
claramente visíveis aqueles sobre quem se aplicam.” 
O fim último do poder disciplinar é 
ADESTRAR. A disciplina fabrica indivíduos através de 
um poder que circula discretamente, de forma modesta, 
desconfiada, mas permanente. 
Em Vigiar e punir, Foucault vem retratar, além 
da ordem disciplinar, os dispositivos que a fazem 
ganhar força. 
São simples os instrumentos que o fazem 
acontecer: o olhar hierárquico instituído através da 
ordenação espacial é analisada no panoptismo (se 
traduz no ver sem ser visto que se apresenta por um 
lado de maneira discreta porque é silencioso e anônimo 
e, por outro lado de forma bastante indiscreta, porque 
está inserido em todas as partes, alerta, controlando), a 
sansão normalizadora (se referem à imposição de 
ordem, escala hierárquica, dispositivos de comando, 
corrigindo os desvios, as negligencias, a tagarelice e, 
enfim, todos os atos que fogem à normalidade, 
produzindo comportamentos aceitáveis e eficientes) e o 
exame (onde cada indivíduo é diagnosticado a partir do 
que faz e pensa e da maneira como age. 
Cada um é colocado numa ficha, num cadastro, 
que o define como sendo dessa ou daquela forma, desse 
ou daquele comportamento, com essas ou aquelas 
capacidades, com essas ou aquelas fraquezas). 
Esse exame está presente nos hospitais (através 
doa médicos), nos colégios (com os mestres), nos 
quartéis (com o corpo militar), nas igrejas (através do 
padre que atende a confissão). 
Segundo Foucault, “o exame combina as 
técnicas da hierarquia que vigia e as da sanção que 
normaliza. É um controle normalizante, uma vigilância 
que permite qualificar, classificar e punir. (...). É por isso 
que, em todos os dispositivos de disciplina, o exame é 
altamente ritualizado. Nele vêm-se reunir a cerimônia 
do poder e a forma da experiência, a demonstração da 
força e o estabelecimento da verdade”. 
Ele coloca o exame no centro dos processos 
que constituem o indivíduo “como efeito e objeto de 
poder, como efeito e objeto de saber”. Portanto, o 
caminho para a individualização acaba por ser regido 
pelo percurso disciplinar e pelos exames que qualificam 
e classificam os sujeitos. 
Os rituais nos quais os indivíduos estão sujeitos 
corporificam e fabricam a individualidade celular, 
orgânica, genética e combinatória, entre o aparelho 
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72 
institucional e entre as sanções normalizadoras em que 
estão inseridos. 
 
Considerações finais 
 
O modo como Foucault trata a questão do 
poder é inédito. Ao invés do modelo jurídico-político, 
Foucault mergulha no detalhado esquema apresentado 
pela sociedade disciplinar. Faz um recorte histórico e 
procura analisar o como desse poder que está 
subjacente às práticas que os homens desenvolvem em 
sua vivência social. 
Foucault pergunta pelas relações de poder, pelas 
ramificações, pelas táticas que buscamobservar os 
detalhes, as minúcias, o comportamento, o modo de ser 
de cada um para que possa domesticá-lo, encaixá-lo 
num espaço quadriculado a partir das verdades vividas 
e reproduzidas naquele momento histórico. 
Não que para Foucault não tenha importância 
estar atento ao poder estatal, instituído, representado 
pelo Estado. Muito pelo contrário. Diz ele que, se o 
problema do poder estivesse centrado nessa visão 
hierarquizada seria fácil acabar com o poder. O que 
acontece é que ele se sustenta não por subjugar, 
submeter, constranger, obrigar, sempre de cima para 
baixo, mas justamente porque essas ramificações 
existentes na base, dão força de sustentação para que o 
Estado se mantenha. 
Se nos perguntarmos sobre como acontece isso, 
Foucault nos vai mostrar que é da forma mais simples 
possível: nas normas e regulamentos de um colégio; do 
sábio sobre o ignorante; do general que exige harmonia, 
sincronia e cadencia nos gestos dos soldados; do padre 
que, através da confissão, analisa e julga o 
comportamento do fiel em relação a Deus; do guarda 
de transito que, atrás da farda e do apito se faz 
respeitado frente a uma grande quantidade de 
motoristas; enfim, onde há relacionamento humano, há 
essa relação de poder. 
A partir dessa visão de que se deve vigiar cada 
indivíduo, registrar cada doente numa ficha de relatório, 
separar os doentes dos sadios, manter a ordem nas 
repartições públicas (escolas, por exemplo), manter 
vigiada a prática da delinquência, punir os infratores, 
respeitar os saberes das ciências, etc. subjaz toda uma 
tentativa de manter o poder maior uma vez que as 
instâncias vão se completando num leque cada vez 
maior de relações até chegar no Estado que, com todos 
os micro poderes funcionando, se mantém. 
Segundo Foucault, “temos que deixar de 
descrever sempre os efeitos de poder em termos 
negativos: ele “exclui”, “recalca”, “censura”, “abstrai”, 
“máscara”, “esconde”. Na verdade, o poder produz 
realidade, produz campos de objetos e rituais da 
verdade”. 
Porque o indivíduo é adestrado, corrigido, não 
mais como força e martírio e morte, mas para que ele 
seja útil, produtivo, ágil. Isso porque o aumento da 
população coloca a família não mais como centro, mas 
como segmento interno desta que se tornará o alvo do 
governo que quer “olhar a sorte da população, 
aumentar sua riqueza, sua duração de vida, sua saúde, 
etc.”. 
Nesse caso, o poder disciplinar não pode ser 
deixado de lado porque através dele se pode gerir a 
população em profundidade, em detalhe. Estudar o 
poder em sua face externa, onde ele se implanta e 
produz efeitos reais. Não é perguntando o porquê do 
poder, o que ele procura e qual é a sua estratégia, mas 
como estão constituídos aqueles que estão sujeitos a 
esse poder. Não é querer formular o problema da “alma 
central” do poder (como faz Hobbes, no Leviatã), mas 
estudar os corpos sujeitos do poder. Essa nova 
tecnologia de poder não tem sua origem com um 
indivíduo ou um determinado Estado ou Monarquia. 
Ele foi requerido em determinadas condições locais, a 
partir de urgências particulares. Analisar os mecanismos 
desse poder significa, em suma, ver as posições e os 
modos de ação de cada um. 
Em face de toda essa análise feita do poder, 
Foucault diz que cabe apenas resistir a ele, pois sempre 
haverá poder já que ele se exerce produzindo verdade 
acerca do sujeito, fazendo aparecer indivíduo. 
 
7. JÜRGEN HABERMAS 
 
Habermas é conhecido por suas teorias sobre a 
razão comunicativa e a esfera pública sendo 
considerado como um dos mais importantes 
intelectuais contemporâneos. 
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73 
Sua preocupação com as questões políticas 
aparece desde a sua tese de doutorado quando realizou 
uma pesquisa empírica sobre a participação estudantil 
na política alemã, intitulada “Estudante e Política”. 
Doutorou-se em 1954 e em 1961 conquistou sua livre-
docência com a tese intitulada “Mudanças estruturais 
do espaço público”. Em 1954, tornou-se assistente de 
Theodor Adorno (1903-1969), no Instituto de Pesquisa 
Social (Escola) de Frankfurt de 1956 a 1959. 
Seu trabalho trata ainda dos fundamentos da 
teoria social, da análise da democracia, do Estado de 
direito e da política contemporânea, particularmente na 
Alemanha. Esteve preocupado com o restabelecimento 
dos vínculos entre socialismo e democracia e seu 
interesse esteve centrado no desenvolvimento de uma 
teoria crítica da sociedade. 
 Em seu sistema teórico, Habermas procura 
revelar as possibilidades da razão, da emancipação e da 
comunicação racional-crítica, latentes nas instituições 
modernas e na capacidade humana de deliberar e agir 
em função de interesses racionais. 
 Esse projeto fez com que ele adotasse o 
paradigma da razão comunicativa, como uma forma de 
superar os impasses criados pelas análises de Adorno e 
Horkheimer na obra Dialética do Esclarecimento. 
Habermas concebe a razão comunicativa – e a ação 
comunicativa – como alternativa à razão instrumental 
teorizada por Adorno e Horkheimer. 
Várias obras e artigos foram publicados pelo 
filósofo nos anos seguintes, entre os quais se destacam: 
A Transformação Estrutural da Esfera Pública, em 1962; a 
famosa Teoria e Práxis, em 1963; Lógica das Ciências 
Sociais, em 1967; e Técnica e Ciência como Ideologia e 
Conhecimento e Interesse, ambas em 1968. 
Autor de vasta obra, que compreende 
hermenêutica jurídica; críticas ferrenhas ao positivismo 
em sua expressão resultante, o tecnicismo; análise do 
Marxismo e muitos outros temas, Jürgen Habermas é 
representante da segunda fase da Escola da Frankfurt. 
Contudo, mesmo sendo vasta a sua obra, o 
principal eixo das discussões do filósofo é, sem dúvida, 
a crítica ao tecnicismo e cientificismo que, ao seu ver, 
reduziam todo o conhecimento humano ao domínio da 
técnica e modelo das ciências empíricas, limitando o 
campo de atuação da razão humana a todo 
conhecimento que fosse objetivo e prático. 
Destacam-se, assim, três ideias fundamentais 
seguidas por Habermas: 
a) Teoria da Ação Comunicativa; 
b) A defesa da existência de uma esfera 
pública, na qual os cidadãos, livres de domínio político, 
podem expor ideias e discuti-las – Habermas, contudo, 
destaca que a mídia exerce influência no sentido de 
diminuir este espaço; 
c) A ideia de que as ciências naturais 
seguem uma lógica objetiva, enquanto as ciências 
humanas – uma vez que a sociedade e a cultura são 
baseadas em símbolos – seguem uma lógica 
interpretativa. 
E em cada um desses temas expressa-se a 
característica de Habermas, herança explícita da Escola 
de Frankfurt, isto é, a abordagem dita “crítica” a 
respeito das teorias, das ciências e do próprio presente, 
construindo, assim, um conhecimento engajado e 
revolucionário. 
Seguindo este eixo e introduzindo uma nova 
visão a respeito das relações entre a linguagem e a 
sociedade, em 1981 Habermas publicou aquela que é 
considerada sua obra mais importante: Teoria da Ação 
Comunicativa. 
Em algumas outras obras ele abordou as 
ciências sociais e, em especial, dedicou-se a estudar o 
Direito. 
Em Conhecimento e Interesse (1968), Habermas 
apresenta uma distinção entre as ciências exatas e as 
ciências humanas, afirmando a especificidade das 
ciências sociais 
No seu livro A Transformação Estrutural da Esfera 
Pública (1962), aborda o fundamento da legitimidade da 
autoridade política como o consenso e a discussão 
racional. 
Na obra Entre Fatos e Normas (1996), ele faz uma 
descrição do contexto social necessário à democracia, 
bem como esclarece fundamentos da lei, de direitos 
fundamentais bem como uma crítica ao papel da lei e 
do Estado. 
 A obra habermasiana tem diversos momentos e 
um dos mais importante ocorre no final dos anos 70 e 
começo dos anos 80 onde ocorrerá a tentativa deinserir 
a ideia de um consenso discursivo em uma teoria da 
reflexividade da ação social. 
A “Teoria da Ação Comunicativa” é a obra 
onde esse empreendimento é construído do ponto de 
vista teórico. Duas dimensões são centrais a esse 
empreendimento: a construção de um conceito de 
mundo social reflexivamente adquirido e a ideia de uma 
forma de ação que seja intersubjetiva e voltada para um 
consenso comunicativo. Essa ação intersubjetiva se 
torna uma dimensão central pois a subjetividade não é 
construída através de um ato solitário, mas é resultante 
das interações que estabelecem nesse mundo social, a 
partir de uma complexa rede de interações sociais, que 
são simultaneamente dialógicas e comunicativas. É 
dentro desta perspectiva que Habermas procura 
trabalhar com o conceito de uma racionalidade 
comunicativa. 
 A Teoria do Agir Comunicativo é uma obra de 
arquitetura complexa. O objetivo é a formulação de 
uma teoria orgânica da racionalidade crítica e 
comunicativa; uma teoria fundada sob a dialética entre 
agir instrumental e agir comunicativo ou, como ele diz, 
entre “sistema e mundo da vida”. O sistema está 
vinculado ao agir instrumental; é o Estado com seu 
aparato e a sua organização econômica. O mundo da 
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74 
vida está vinculado ao agir comunicativo; é o conjunto 
de valores que cada um de nós individualmente ou 
comunitariamente “vive” de maneira imediata, 
espontânea e natural. 
 
Teoria do Agir Comunicativo 
 
 A Teoria do Agir Comunicativo de Habermas 
tem sido analisada sob diferentes enfoques: seja sua 
aplicação às teorias sociais, políticas e democráticas seja 
sua relação com o direito, com a saúde e muitas outras. 
 Sua obra é dominada por quatro eixos temáticos, 
1) fundamentação de um conceito de 
racionalidade comunicativa que serve de base e 
princípio norteador; 
2) dicotomia entre agir estratégico ou 
instrumental e agir comunicativo; 
3) elaboração de uma nova teoria da ordem 
social com primazia do agir comunicativo; 
4) contraposição entre mundo da vida e sistema. 
A obra contém também um diálogo crítico com 
autores consagrados das ciências sociais, como a análise 
da teoria da racionalização de Max Weber, análise da 
teoria da comunicação de G. H. Mead e da sociologia 
da religião de Durkheim. 
Habermas afirma, no prefácio da Lógica das 
ciências sociais que já havia prefigurado o surgimento da 
teoria do agir comunicativo, a partir de um viés 
metodológico para uma fundamentação teórico-
linguística das ciências sociais. A teoria do agir 
comunicativo “substancializa”, por assim dizer, essa 
ideia. Neste mesmo prefácio Habermas afirma que a 
obra foi escrita ao longo de quatro anos e desenvolve 
“o conceito fundamental de agir comunicativo, abrindo 
caminho para três complexos temáticos ligados entre si: 
o conceito de racionalidade comunicativa; o conceito de 
sociedade em dois níveis, a saber, “mundo da vida” e 
“sistema”; e por fim uma teoria da modernidade que 
“deve possibilitar uma conceitualização do contexto 
social da vida que se revele adequada aos paradoxos da 
modernidade”. 
 A premissa básica da Teoria da Ação Comunicativa 
é a de que os homens são capazes de ação, e para tanto, 
se utilizam da linguagem para se comunicar com seus 
pares, buscando chegar a um entendimento. Sendo o 
princípio base da razão comunicativa a linguagem, esta 
constitui o meio através do qual as interações sociais se 
dão no mundo da vida. 
 A linguagem mediatiza fundamentalmente toda 
relação significativa entre sujeito e objeto. Ela está 
inevitavelmente presente em toda comunicação 
humana, a qual implica um entendimento mútuo sobre 
o sentido de todas as palavras e sobre o sentido do ser 
das coisas mediadas pelos significados da palavra. A 
linguagem possui, primordialmente, um sentido 
comunicativo, ou seja, nós moramos na linguagem. 
Para nos comunicarmos, a única alternativa é a 
linguagem. Sem ela, não temos nem conhecimento e 
nem acesso ao mundo. 
 Todos nós vivemos dentro de uma teia de 
relações humanas onde a linguagem marca as 
coordenadas da nossa vida na sociedade e enche esta 
vida de objetos dotados de significação. 
 Um sujeito solitário não terá como agir 
comunicativamente. Comunicação que é concebida 
como um ato intrinsecamente intersubjetivo. Por isso a 
teoria do agir comunicativo só pode ser fundada sobre 
as estruturas da linguagem natural, capaz de produzir 
uma racionalidade baseada em uma compreensão 
intersubjetiva. O conceito de agir comunicativo refere-
se, portanto, a interação de pelo menos dois sujeitos 
capazes de se expressar através da linguagem e que, por 
meios verbais ou não, estabeleçam uma relação entre si. 
 A tarefa da linguagem, no agir comunicativo, é 
fornecer o horizonte pré-estruturado a partir do qual os 
sujeitos podem relacionar-se entre si e sobre o mundo. 
O entendimento possível entre os sujeitos dá-se na 
linguagem porque nela está depositado o saber pré-
teórico específico do gênero humano. A linguagem, 
como horizonte pré-estruturante, possibilita as 
experiências, as ações e a obtenção do consenso. 
 Está posto o caminho, grosso modo, para se 
criar a teoria habermasiana do agir comunicativo e de 
uma racionalidade comunicativa. Racionalidade 
comunicativa que está intimamente ligada ao agir 
comunicativo e tem como objetivo a busca do consenso 
entre sujeitos capazes de falarem e agirem. Mediatizadas 
pela linguagem, toda relação existente entre sujeitos que 
interagem uns com os outros está inevitavelmente 
presente em toda comunicação humana e, por 
conseguinte, o conhecimento, a partir de sua mediação 
pela linguagem, só pode ser concebido como a 
compreensão comunicativa e formação do consenso 
sobre algo do mundo. 
 Ao ventilar que a linguagem, enquanto ato de 
entendimento é consenso humano sobre questões 
pertinentes (ética, política, direito, moral, estética, 
poder) inicia-se o abandono do paradigma monológico 
da razão kantiana, fundada no discernimento pessoal, 
para um paradigma do entendimento mútuo mediado 
intersubjetivamente pela linguagem. 
 A partir da publicação da obra Teoria do Agir 
Comunicativo, Habermas começa um processo de 
aplicação da sua concepção de teoria do discurso à 
política contemporânea. Ele irá operacionalizar tal 
aplicação através da percepção de que o problema da 
legitimidade na política está ligado a um processo de 
deliberação coletiva que contasse com a participação 
racional de todos os indivíduos possivelmente 
interessados ou afetados por decisões políticas. 
 Esta obra que é considerada a mais importante 
tem uma relevância sem precedentes dentro do 
contexto atual de qualquer regime que se pretende 
democrático. Habermas sugere um modelo ideal de 
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75 
ação comunicativa e democracia deliberativa, no qual as 
pessoas interagem através da linguagem, organizam-se 
em sociedade e procuram o consenso de forma não 
coercitiva. 
 Uma democracia deliberativa que defende que 
o exercício da cidadania se estende para além da mera 
participação no processo eleitoral, exigindo uma 
participação mais direta dos indivíduos no domínio da 
esfera pública, em um processo contínuo de discussão 
e crítica reflexiva das normas e valores sociais. As 
questões sociais e coletivas devem ser objeto de 
apreciação de todos. Ora, se nós considerarmos que em 
uma sociedade democrática, a esfera pública é 
dominada pelo discurso e pela argumentação, de 
interesses da coletividade, então fica fácil entender a 
importância dessa Teoria da Ação Comunicativa.Sua 
relevância está, indubitavelmente, em pretender o fim 
da arbitrariedade e da coerção nas questões que 
envolvem toda a comunidade, propondo uma 
participação mais ativa e igualitária de todos os cidadãos 
nas discussões em torno da coisa pública. Essa forma 
defendida por Habermas é o agir comunicativo que se 
ramifica no discurso. 
 Do ponto de vista do exercício democrático, 
Habermas pressupõe que as instituições devem estar 
organizadas e estruturadas de maneira que o discurso 
possa surgir como forma de resolução dos conflitos 
surgidos das quebras pactuais ou dificuldades de 
comunicação das comunidades. O ponto central é, 
portanto, o mesmo, independente da sua formulação. 
As normas e as decisões políticas só podem 
legitimarem-se em decorrência de poderem ser 
questionadas e aceitas no discurso entre cidadãos livres 
e iguais. 
 A ação comunicativa habermasiana pressupõe 
uma teoria social: a do mundo da vida; e contrapõe-se à 
uma ação estratégica, regida pela lógica da dominação. 
A ação comunicativa tem como lócus privilegiado 
o mundo da vida. 
 Ao conceito de agir comunicativo Habermas 
opõe o conceito de agir estratégico, sendo que ambos 
estão ligados entre si, porém se distinguem e se 
diferenciam: o agir comunicativo parte do pressuposto 
que as decisões levam em conta os interesses 
interpessoais do bem-comum e da reciprocidade, ao 
passo que o agir estratégico pressupõe que as decisões 
levam em conta os interesses pessoais individuais. O 
agir estratégico tem como horizonte os interesses 
individuais da ação, com o objetivo de obter sucesso e 
poder. O agir comunicativo não pode, ao contrário, ser 
orientado por interesses pessoais, já que pressupõe 
satisfazer as condições de entendimento e cooperação 
e consenso. 
 O agir comunicativo compreende aquelas ações 
orientadas para o entendimento e o agente é o sujeito 
competente linguisticamente para agir na busca do 
consenso. Trata-se de uma tentativa de compreender as 
condições universais de produção de enunciados que 
visem ao entendimento, uma vez que todas as normas 
de ação social são entendidas como derivadas do agir 
voltado para o entendimento. 
De outro modo, as relações mediadas 
comunicativamente devem ser inteligíveis, sob pena de 
ofuscar o entendimento. Para isso, Habermas identifica 
na filosofia da linguagem de cunho analítico os 
pressupostos de validade do ato de fala, onde se 
encontra o fundamento da racionalidade comunicativa. 
 Para Habermas, entender um “ato-de-fala”, 
significa que, pelo menos, dois sujeitos, linguística e 
interativamente competentes, compreendem 
identicamente uma mesma impressão. E é este 
entendimento que pode possibilitar a obtenção de um 
consenso, um consenso que seja aceito como válido 
para todos os participantes do discurso, fundando na 
ação e na razão comunicativa. 
 Para tentar ilustrar suas ideias Habermas cria 
uma “situação de fala ideal”, em que o filósofo 
pressupõe uma situação onde os participantes são 
autênticos e verdadeiros. Uma situação talvez 
empiricamente impossível de ser atingida, mas 
pressuposta como real em cada discurso onde uma 
questão possa ser tematizada e onde os participantes 
atuem livres de coerções naturais e/ou intrapsíquicas. 
 
A Esfera Pública 
 
Entre 1989 e 1992, Habermas, pela primeira vez 
desde os anos 60, reconsidera o seu pensamento sobre 
a esfera pública. Isso acontece devido a um congresso 
sobre o tema em 1989, no qual o filósofo foi 
confrontado com releituras da sua obra e do conceito 
por ele desenvolvido em 1962. 
Isso o levou a publicar Direito e Democracia: Entre 
Facticidade e Validade, em 1992, obra que traz, entre 
outras coisas, a noção de esfera pública de volta ao 
patrimônio argumentativo do pensador alemão. 
Também, pela primeira vez em trinta anos, é 
feita a conexão entre a noção de esfera pública e temas-
chave do seu patrimônio, como “ação comunicativa” 
“formação discursiva da opinião e da vontade” e 
“discurso”. 
Esfera pública é o domínio ou espaço 
socialmente reconhecido, mas não-institucionalizado, 
onde há a livre circulação de questões, informações, 
pontos de vista e argumentos provenientes das 
vivências diárias dos sujeitos. Assim como as câmaras e 
tribunais existem por meio dos debates 
institucionalizados, a esfera pública se realiza por meio 
da livre flutuação de problemas e contribuições. 
Para ajudar a definir o que é a esfera pública, 
Habermas usa metáforas, como a dos sensores sociais, 
por exemplo. A esfera pública nesse caso seria uma 
ampla rede de radares e sensores, localizados no 
interior da sociedade, sensíveis ao ponto de perceber e 
https://pt.wikipedia.org/wiki/Esfera_p%C3%BAblica
https://pt.wikipedia.org/wiki/Direito_e_Democracia:_Entre_Facticidade_e_Validade
https://pt.wikipedia.org/wiki/Direito_e_Democracia:_Entre_Facticidade_e_Validade
https://pt.wikipedia.org/wiki/A%C3%A7%C3%A3o_comunicativa
https://pt.wikipedia.org/wiki/Discurso
https://pt.wikipedia.org/wiki/Radar
https://pt.wikipedia.org/wiki/Sensor
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76 
identificar os problemas da sociedade. Ainda nessa 
ideia, a sugestão dos radares sociais se junta à metáfora 
da caixa de ressonância. A esfera pública não é capaz de 
resolver, sozinha, os problemas sociais, portanto, ela 
aumenta seu eco e volume para conseguir chamar a 
atenção dos parlamentares e orientar suas decisões. 
Habermas se esforça para ligar a esfera pública 
a uma das suas principais teorias: a ação comunicativa. 
A sua existência depende dessa ação voltada para o 
entendimento, ou seja, aquela em que os sujeitos 
orientam o seu comportamento pela vontade de 
entender uns aos outros. A esfera pública não tem 
propriamente a ver nem com as funções nem com os 
conteúdos da ação comunicativa; a esfera pública é, na 
verdade, o espaço social que a ação comunicativa 
forma. 
Nesse sentido, a esfera pública tem grande 
função em explicar os processos pelos quais são 
formadas a opinião e a vontade coletivas. Esses 
processos são baseados em interações, de modo que 
precisam de comunicação e busca de consenso. Para 
Habermas, parece razoável e democrático que a opinião 
pública e a vontade geral devam ser formadas 
discursivamente. 
Somente as leis que surgem de um processo 
discursivo, debatido por todos os cidadãos 
interessados, em situação de igualdade de 
oportunidades e direitos, são democraticamente 
legitimas. 
 
Ética do discurso 
 
Se as ações sociais de natureza comunicativa 
estão concentradas na esfera pública, são os 
movimentos sociais que reorganizam as formas de 
participação democrática. Portanto, os movimentos 
sociais devem preservar as formas de solidariedade 
postas em risco pelo Estado ou pelas corporações 
capitalistas, exercendo o papel de atores sociais e 
políticos na defesa de um espaço autônomo e 
democrático. 
Tais atores sociais têm como objetivo a 
organização e a reprodução da cultura, sobretudo com 
base na formação de identidades e solidariedades 
coletivas. 
Uma questão importante que se coloca à teoria 
de Habermas diz respeito à contenção da tendência de 
desenvolvimento do dinheiro e do poder (do sistema) 
pelos movimentos sociais, isto é, a contenção da 
racionalidade instrumental pelo agir comunicativo. 
Marx, no Manifesto comunista, ao analisar o 
desenvolvimento da sociedade capitalista, afirmou que 
“tudo o que é sólido e estável se volatiza, tudo o que é 
sagrado é profanado”. Em outras palavras, a lógica de 
produção e reprodução da sociedade capitalista tende a 
invadir todos os espaços sociais. 
Nesse sentido, entender, como Habermas, que 
as formas da ação comunicativa (do mundo da vida) 
seriam capazes, com base na organização política de 
movimentos sociais, de conter esse avanço pressupõe 
que o processo de reinvenção e reorganizaçãoda 
economia capitalista em algum momento cederá a 
argumentos racionalmente defendidos na esfera 
pública. 
Na esfera pública, onde impera a razão 
comunicativa, as pessoas dialogam livres das pressões 
econômicas e políticas, construindo argumentos 
racionais que produzem normas morais válidas em uma 
“situação ideal de fala” que permite o consenso do 
conjunto dos indivíduos, não privilegiando nenhum 
interesse particular. 
É importante deixar claro que Habermas 
constrói uma ética procedimentalista na medida em que 
não afirma o que seja certo ou errado, justo ou injusto. 
Ele explicita a forma, o meio, o procedimento a 
ser tomado pelos indivíduos para que cheguem a essas 
conclusões através de um diálogo livre de qualquer tipo 
de dominação ideológica. 
 
Direito e Moral 
 
A obra Direito e Moral é dividida em dois 
segmentos principais, o primeiro fazendo uma crítica a 
pontos de vista de Max Weber no que toca o direito e a 
moral, tendo como título “Como é possível a 
legitimidade através da legalidade”; e o segundo 
mostrando se o desmoronamento do direito puramente 
racional resulta em um estado jurídico com maior 
agilidade diante da sociedade, sendo o título “Para a 
ideia do estado jurídico”. 
O primeiro grande segmento é subdividido em 
três partes. Na primeira parte Habermas comenta a 
visão de Max Weber sobre a racionalidade do direito. 
Segundo Weber a racionalidade só existe devido ao 
caráter formal que está incutido no direito, ou seja, só 
pode existir a razão em decorrência da obediência aos 
procedimentos jurídicos. 
Dessa forma, moral e direito são dois campos 
separados, sendo a moral subjetiva e o direito 
objetivamente racional. Assim a interferência da moral 
no direito acabaria por retirar a racionalidade do 
mesmo. Mas Habermas nos mostra que o próprio ato 
de seguir os procedimentos jurídicos já implica na 
mistura entre moral e direito, afinal o direito é 
constituído de normas estabelecidas por um legislador 
e este possui uma moral que acaba sendo incorporada à 
lei. Sendo assim, a teoria de Weber onde a legitimidade 
só pode ser alcançada pela legalidade puramente 
racional perde força. 
Na segunda parte são abordados alguns 
fenômenos não previstos por Weber. Dessa forma 
temos o direito reflexivo, onde os juristas refletem 
sobre as leis e fazendo isso acabam recorrendo a 
https://pt.wikipedia.org/wiki/Resson%C3%A2ncia_ac%C3%BAstica
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77 
preceitos morais para explicá-las. Podemos falar ainda 
da marginalização dos litígios, pois as partes envolvidas 
podem fazer contratos aproveitando brechas na lei e 
acabam tornando o processo bastante subjetivo. Os 
imperativos funcionais, onde a criação de condições 
para um estado regulador pender espaço para as 
preferências geradas pelo dinheiro e poder, deixando de 
lado a razão. Por fim temos a sucessão de legisladores, 
que tentam embutir seus próprios padrões morais na lei. 
Para encerrar esse segmento do texto o autor ainda 
menciona a axiologia das Constituições Federais 
existentes como uma prova de padrões morais 
presentes na lei. 
O último texto deste segmento mostra como 
nossa sociedade aceita a legitimidade só através da 
legalidade, sendo assim é preciso fundamentar esta 
legalidade. Já foram utilizados fundamentos como a 
metafísica e a religião, mas atualmente estes não são 
mais aceitos. Assim se buscou a razão como 
fundamento para nossa legalidade. Mas se de acordo 
com Max Weber a inserção da moral no direito retira 
sua razão e por sua vez sua legalidade, podemos 
questionar o fato de a razão estar baseada na moral; 
afinal não retiramos os padrões morais sociais do limbo. 
A segunda parte do livro também é dividida em 
três partes. A primeira delas mostra como o sistema 
jurídico não está preso aos conceitos gerais da teoria de 
sistema. Isso acontece porque o direito tem uma 
necessidade peculiar, que não ocorre na maioria dos 
sistemas, a de se adaptar constantemente e rapidamente 
às mudanças que se desenrolam na sociedade como um 
todo. Afinal a norma jurídica tem lacunas que devem 
ser preenchidas para manter a sociedade controlada e 
regulada. 
Nesta próxima parte o autor busca mostrar o 
entrelaçamento do direito e da moral com a política. Ou 
seja, expor que o direito não se coloca a serviço da 
política, pois se a política controlasse o direito a 
legitimidade daquela seria comprometida pois este não 
teria poder para dar credibilidade, sendo o direito 
incorporado à política. E a seguir vemos que o contrário 
também é impensável, pois a ideia de que o direito 
pudesse criar suas próprias estruturas normativas pela 
razão também lesaria a legitimidade da norma jurídica. 
Por fim, Habermas mostra o porquê da 
transformação do direito racional em estado jurídico. 
Uma sociedade como à atual não pode se prender as 
estruturas formais presentes no direito racionalista. Os 
mercados pedem uma maior agilidade por parte do 
ordenamento jurídico, assim se abre espaço para o 
direito subjetivo criar as condições necessárias para tal 
agilidade. Os contratos privados ganham uma maior 
autonomia para preencher as lacunas da legislação e 
dessa maneira a moral ganha um grande espaço no 
direito pois os contratos privados são subjetivos e a 
subjetividade é uma das manifestações mais claras da 
moral. 
Concluindo 
 
O objetivo de Habermas é compreender 
como as sociedades ocidentais estão organizadas e quais 
os efeitos desse processo de racionalização sobre os 
agentes sociais. 
Apesar do predomínio da lógica estratégica do 
mercado e do Estado, a ação comunicativa tem papel 
decisivo na constituição das formas de solidariedade e 
de identidade sociais. 
Na prática, Habermas admite um confronto 
constante entre a lógica instrumental (o “sistema”) e o 
agir comunicativo (o “mundo da vida”). Ele entende 
que o sistema e o mundo da vida seriam formas 
sintéticas para qualificar a racionalidade instrumental e 
o agir comunicativo. O ponto de encontro dessas duas 
lógicas distintas se daria nos espaços de disputa política. 
A lógica instrumental do mercado se apresenta 
como um processo em desenvolvimento. Ou seja, ainda 
há espaços sociais em que a razão instrumental não 
predomina, onde ainda prevalecem as relações de 
solidariedade e identidade social. Mas o 
desenvolvimento da racionalidade instrumental coloca 
esses espaços em risco. 
Habermas identifica esse processo como uma 
forma de colonização do mundo da vida pelo sistema. 
O desenvolvimento de sistemas econômicos e 
administrativos de racionalidade instrumental tende a 
colonizar, com base no dinheiro e no poder, áreas de 
interação ainda não governadas por eles. 
Criam-se, dessa forma, conflitos sociais, já que 
essas áreas se caracterizam pela transmissão cultural, 
pela integração social e pela socialização, isto é, são 
dependentes de uma articulação social que se daria pelo 
entendimento mútuo. 
A partir dessas considerações, Habermas elege 
a esfera pública como um local onde os atores sociais, 
sobretudo os movimentos sociais, resistiriam ao 
desenvolvimento da racionalidade instrumental. 
Fundamentadas na linguagem e em argumentos 
discursivamente defendidos, os atores sociais se 
expressam e resistem ao avanço do sistema. Suas 
competências comunicativas são, assim, as formas 
privilegiadas de contenção da racionalidade estratégica. 
 
8. JOHN RAWLS 
 
John Rawls (1921 – 2002) nasceu em Baltimore, 
estudou em Princeton e, depois de uma estadia em 
Oxford, voltou para os Estados Unidos, passando a 
ensinar na Universidade de Harvard, onde também 
ensina seu mais aguerrido e leal adversário: Robert 
Nozick. 
Rawls é conhecido por ter publicado em 1971 
um dos livros mais discutidos - e mais influentes - 
destes últimos vinte anos: Uma teoria da justiça. 
 www.filosofiatotal.com.brmas também 
muito educada, tendendo mais para a vibração artística 
que para a insensibilidade científica, embora ele 
valorizasse muito a esfera da razão. Seu grande amigo, 
Gerschom Gerhard Scholem, com quem ele trava 
conhecimento em 1915, logo percebeu no jovem alguns 
traços inequívocos de melancolia, tema, aliás, muito 
presente na teoria benjaminiana. Além disso, para 
completar a caracterização deste grande filósofo, é 
preciso acrescentar também sua veia poética e sua 
natureza mística. 
Benjamin foi um intenso admirador da língua e 
da cultura francesas, as quais dominava perfeitamente. 
Ele traduziu para a língua alemã obras fundamentais de 
Charles Baudelaire e de Marcel Proust. Sua produção 
literária foi também um espelho de suas crenças, à 
primeira vista paradoxais. As obras mais célebres são A 
Obra de Arte na Era da Sua Reprodutibilidade Técnica (1936) 
e a incompleta Paris, Capital do século XIX. A Tarefa do 
Tradutor é essencial para quem estuda Literatura. 
Em 1934, Benjamin foge para a Itália, onde 
permanece por um ano, tentando fugir da ascensão do 
Nazismo na Alemanha. Neste período já haviam se 
estabelecido algumas divergências entre Benjamin e a 
Escola de Frankfurt. Em 1940, na margem espanhola 
da fronteira entre França e Espanha, tentando 
atravessar os Pireneus, possivelmente com medo de ser 
capturado pelos nazistas, proibido de seguir adiante, 
Benjamin comete suicídio. O filósofo não resiste à 
intensidade da pressão emocional e, movido pelo ardor 
de seu lado melancólico e apaixonado, opta pela morte. 
Seu aspecto racional não é forte o bastante para contê-
lo. Neste mesmo ano ele cria sua última obra, Teses Sobre 
o Conceito de História. Sua produção intelectual marcou a 
produção de vários filósofos que o sucederam. 
 
A tarefa da crítica 
 
Para a posteridade, a enorme produção de 
Benjamin significou o estabelecimento de um marco no 
pensamento e na crítica Olhando retrospectivamente 
para o século 20, podemos dizer que ele de fato realizou 
um de seus projetos pessoais mais arrojados. Como ele 
formulou em uma carta a seu grande amigo Gershom 
Scholem, de janeiro de 1930, ele achava que conseguira 
o objetivo de “ser considerado como o primeiro crítico 
da literatura alemã”. Este reconhecimento na época era 
na verdade muito tímido, restrito a um pequeno círculo 
de leitores especializados. Hoje este círculo cresceu a 
ponto de podermos com razão falar de um 
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9 
“reconhecimento” de sua posição privilegiada como 
crítico. 
Benjamin estava ciente, como ele escreveu na 
mesma carta, que para tornar-se este “primeiro crítico” 
era necessário “recriar a crítica como gênero”. Este 
gênero encontrava-se então na Alemanha desprezado, 
não era considerado como sério. 
No mesmo ano, Benjamin diagnosticava que 
uma das causas que havia levado a crítica alemã à crise 
naquela época, era a “ditadura da resenha como forma 
de pesquisa crítica”. Ele mencionou então, como um 
contra-modelo do passado, as “Características” dos 
irmãos Schlegel. 
Como um dos caminhos para a saída da crise da 
crítica, ele cobrava dos críticos uma aproximação entre 
a abordagem filológica e uma autêntica reflexão crítica. 
Este termo indicava para ele uma reflexão tanto no 
sentido de uma teoria das formas, como de uma teoria 
da história. 
Sem falsa-modéstia ele escreveu então que se a 
situação da crítica alemã estava se transformando, isto 
ocorria em parte devido aos seus enormes esforços. E, 
de fato, Benjamin então, com 38 anos, já fizera bastante 
para o aprimoramento da crítica. Ele não apenas 
publicara dois ensaios de peso sobre a literatura alemã, 
seu “O conceito de crítica de arte no romantismo alemão” (1919) 
e o “Origem do drama barroco alemão” (de 1925, publicado 
em 1928), como compusera uma profunda análise 
das Afinidades eletivas de Goethe (1922), além de mais de 
cerca de uma centena de artigos de crítica, sobretudo 
sobre literatura alemã e francesa. 
Com o fracasso de seu plano de entrar para a 
universidade, ele se entregara de corpo e alma a este 
projeto de crítica. Isto significou para ele uma vida 
atribulada, com enormes dificuldades econômicas. Para 
a posteridade, a sua enorme produção, paradoxalmente 
derivada desta mesma situação precária, significou o 
estabelecimento de um marco no pensamento e na 
crítica. 
Esta última, em Benjamin, nunca foi limitada à 
literatura ou às obras de arte consagradas. Ele entendeu 
em primeiro lugar o conceito de crítica no seu sentido 
kantiano, de crítica da possibilidade de conhecimento. 
Neste ponto seu pensamento já se aproxima do dos 
românticos Schlegel e Novalis que cobravam da 
filosofia kantiana uma expansão do seu conceito de 
experiência. Com estes autores ele via na crítica um 
médium-de-reflexão. 
Trocando em miúdos, assim como os 
românticos viam na “romantização” do mundo um 
projeto de superação das barreiras entre o universo 
criativo e penetrado de fantasia das artes, e, por outro 
lado, a vida prosaica cotidiana, do mesmo modo, 
Benjamin propõe para a crítica um projeto tanto 
estético quanto político. 
O ato da crítica era visto por ele como um meio 
de crítica de todo o sistema cultural e de sua base 
econômica. A partir de seu encontro com o marxismo 
de Lukács, isto tornou-se cada vez mais patente em seus 
ensaios e textos de crítica de arte. Aliás, se ele se 
identificou tão rapidamente com o marxismo de 
Lukács, foi também porque ambos, este e Benjamin, 
vinham de uma profunda relação com o romantismo 
alemão. Mas Benjamin foi mais longe que seus colegas 
de geração, justamente porque ao invés de “superar” 
seu romantismo, manteve-se fiel a ele por toda sua vida. 
Se ele tenta nos anos de 1930 demarcar uma 
posição contra este seu romantismo, é justamente 
porque ele não conseguiu superá-lo totalmente. 
A crítica de Benjamin era, portanto, antes de 
mais nada, um ato de reflexão que se desdobrava em 
cinco níveis, articulando-os. O primeiro nível incluía 
uma auto-reflexão (ele sempre refletia sobre sua própria 
atividade de crítico, sobre o local e o papel da crítica na 
sociedade). 
Em segundo lugar, destaca-se uma leitura 
detalhada e uma reflexão sobre a obra criticada (que era 
sempre analisada não a partir de um modelo a-histórico, 
mas sim de seu próprio Ideal a priori, nas palavras de 
Novalis). 
Em terceiro lugar, encontramos uma reflexão 
sobre a história da arte e da literatura, na qual Benjamin, 
dentro de uma forte tradição alemã, desenvolveu muitas 
vezes (como no livro Sobre o barroco e no seu ensaio sobre o 
narrador, de 1936) o tema da teoria dos gêneros 
literários. 
Em quarto lugar, nota-se sempre uma reflexão 
crítica sobre a sociedade, ou seja, a crítica foi praticada 
em Benjamin a partir do seu presente e voltada para ele, 
sem a ilusão positivista de se poder penetrar no passado 
“tal como ele aconteceu”. 
Por fim, e articulando todos os níveis anteriores, 
devemos destacar a teoria da história de Benjamin com 
a sua crítica aos modelos da evolução histórica, tanto 
liberais como marxistas, que acreditavam em um 
avanço constante e positivo do devir da história. 
Benjamin opôs a este modelo uma imagem da história 
como acúmulo de catástrofes. 
Contra o positivismo daqueles que pregavam 
(inocentemente ou não) uma crítica apolítica, Benjamin 
demonstrou que não existe um campo fora do político. 
A arte e sua crítica são médium-de-reflexão não 
apenas do sistema estético, mas, antes, de toda a 
sociedade. Neste sentido, ele extrapolou 
programaticamente o âmbito da crítica da literatura e da 
arte. 
Sua atividade crítica não pode ser inteiramente 
compreendida, se não levarmos em conta seus seminais 
textos críticos dirigidos à questão do poder e do direito, 
assim como a sua crítica do que ele denominou de 
concepção “burguesa”, ou seja, instrumental,Prof. Anderson 
 
 
78 
Karl Popper definiu a obra de John Rawls como 
“um livro importantíssimo sob muitos aspectos”, e 
apreciou muito a ideia de Rawls segundo o qual é um 
projeto de vida “que caracteriza as intenções ou as 
finalidades que fazem de um homem ‘uma pessoa moral 
unificada, consciente’”. 
Por sua vez, justamente Robert Nozick 
escreveu que Uma teoria da justiça “é uma fonte de ideias 
iluminadoras, fundidas em um conjunto agradável. Ora, 
os filósofos devem trabalhar dentro da teoria de Rawls, 
ou então explicar por que não o fazem [...]. Também 
quem não estiver convencido do desencontro com a 
visão sistemática de Rawls aprenderá muito, estudando-
o aprofundadamente”. Essas coisas, ditas por seu 
adversário mais temível, constituem o melhor elogio da 
obra de Rawls. 
 
Contra o Utilitarismo 
 
Desde os inícios de seu livro Uma teoria da justiça, 
Rawls é claro sobre o fato de que sua teoria é de 
“natureza profundamente kantiana”; e isso no sentido 
de que ele põe sua obra na esteira do contratualismo 
(Locke, Rousseau, Kant), em contraste com a tradição 
do utilitarismo (Hume, Bentham e Mill). 
O intento de fundo da obra de Rawls está na 
proposta e no exame de princípios em grau de sustentar 
uma sociedade livre e justa. “A justiça - escreve Rawls - 
é o primeiro requisito das instituições sociais, assim 
como a verdade o é dos sistemas de pensamento”. E 
logo acrescenta: “uma teoria, por mais simples e 
elegante que seja, deve ser abandonada ou modificada, 
se não for verdadeira”. Pois bem, “do mesmo modo as 
leis e as instituições, não importa o quanto sejam 
eficientes e bem urdidas, devem ser reformadas ou 
abolidas se forem injustas”. 
Mas quando é que leis e instituições são justas? 
Os utilitaristas - pensemos, justamente, em 
Bentham ou em Mill – perseguiram o ideal do maior 
bem-estar para o maior número de pessoas; por 
conseguinte, defenderam uma concepção tal que no 
fim, de fato, comportava a submissão do indivíduo a 
sociedade. Rawls combate tal impostação, enquanto, a 
seu ver, nenhum homem deve sofrer privações em 
vantagem de algum outro ou da “maior parte da 
sociedade”. 
 
“Véu de ignorância e posição originária” 
 
Rawls, na pesquisa de Uma teoria da justiça, parte 
daquela que ele chama de posição originária. Esta 
posição originaria é o estado em que se encontram os 
indivíduos que devem determinar o contrato. Ela não é 
uma hipótese de estado de natureza, mais ou menos 
fictícia. É simplesmente um expediente heurístico 
imaginado “de modo a obter - afirma Rawls - a solução 
desejada”. 
Na posição originária, os indivíduos particulares 
se encontram em uma situação de equidade, isto é, de 
igualdade; e tal equidade deve-se ao véu de ignorância 
que caracteriza a condição dos indivíduos que se põem 
na posição originária. 
Escreve Rawls: “Devemos de algum modo 
zerar os efeitos das consequências particulares que 
põem em dificuldade os homens, e que os impelem a 
desfrutar em sua própria vantagem as circunstâncias 
naturais e sociais. Com este objetivo, assumo que as 
partes estão situadas por trás de um véu de ignorância. 
As partes não sabem de que modo as alternativas 
influenciarão em seu caso particular, e são por isso 
obrigadas a avaliar os princípios apenas com base em 
considerações gerais. Assume-se, portanto, que as 
partes não conhecem alguns tipos de fatos particulares. 
Primeiramente, ninguém conhece seu próprio 
lugar na sociedade, sua posição de classe ou seu status 
social; o mesmo vale na distribuição dos dotes e das 
capacidades naturais, sua força, inteligência e 
semelhantes. Além disso, ninguém conhece sua própria 
concepção do bem, nem os particulares dos próprios 
planos racionais de vida e nem as próprias 
características psicológicas particulares, como a aversão 
ao risco ou a tendência ao pessimismo ou ao otimismo. 
Além disso, assumo que as partes não conheçam as 
circunstâncias especificas de sua sociedade”. 
 
A posição originária faz escolher princípios 
universais 
Pois bem, em urna situação desse tipo, nessa 
posição originária, o véu de ignorância torna todos 
iguais. O véu de ignorância não beneficia ninguém; 
portanto, nenhum dos contraentes poderá propor uma 
sociedade futura ou instituições em sua própria 
vantagem; ninguém sabe qual é ou será seu próprio 
interesse ou privilégio particular. 
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79 
A posição originária faz com que todos sejam 
igualmente racionais e reciprocamente desinteressados; 
é uma situação que obriga todos a escolher princípios 
universais de justiça, ou, para dizer com Kant - ao qual 
Rawls se remete -, princípios de uma moral autônoma 
que nós mesmos nos damos não como seres 
interessados nisto ou naquilo, ou como membros desta 
ou daquela sociedade, mas como seres livres e racionais. 
“O véu de ignorância - escreve Rawls - priva a pessoa 
na posição originária dos conhecimentos que a 
colocariam em grau de escolher princípios 
heterônomos. As partes chegam juntas à sua escolha, 
enquanto pessoas livres, racionais e iguais, conhecendo 
apenas as circunstâncias que fazem surgir a necessidade 
de princípios de justiça”. 
Os indivíduos que se encontram na posição 
originária não podem propor princípios ou pensar em 
uma sociedade em que poderão ser favorecidos eles 
mesmos ou talvez seus amigos, e desfavorecidos os 
outros. Ninguém sabe nada nem de si mesmo nem dos 
outros. 
A única escolha possível é, então, a que deverá 
se referir a todos; tratar-se-á, portanto, de uma escolha 
de princípios universais de justiça. 
 
Dois princípios de justiça 
Na base da proposta dos princípios que 
constituem “a estrutura fundamental da sociedade” há, 
portanto, um contrato. As partes contraentes são todos 
os indivíduos - não conta aqui o tempo nem tem 
importância nenhuma as gerações - que se põem na 
posição originária. Objeto do contrato são os dois 
princípios de justiça, que são princípios morais e que 
serão expostos em breve. E a motivação que está por 
trás do contrato e da proposta dos dois princípios é 
principalmente a de se proteger contra a possibilidade 
de se encontrar amanhã entre os desfavorecidos. 
O primeiro princípio de justiça é o seguinte: 
“toda pessoa tem direito igual a mais extensa 
liberdade fundamental, compativelmente com 
semelhante liberdade para os outros”. 
O segundo princípio sustenta que: 
“as desigualdades econômicas e sociais, como as 
de riqueza e de poder, são justas apenas se produzem 
benefícios compensatórios para cada um, e em 
particular para os membros menos favorecidos da 
sociedade”. 
O primeiro princípio funciona como 
fundamento das liberdades individuais; ele “requer a 
igualdade na atribuição dos direitos e dos deveres 
fundamentais”. O segundo princípio não justifica o 
sacrifício de alguns, mesmo que ele chegue a produzir 
um bem maior para alguns ou para a maioria. 
Isso é o que o utilitarismo propõe; mas Rawls é 
antiutilitarista: 
“O fato de que alguns tenham menos a fim de 
que outros prosperem pode ser útil, mas é injusto”. 
As desigualdades econômicas e sociais são 
admitidas, ou seja, são justas, não por beneficiar os 
poucos ou os muitos ou os mais, mas apenas com a 
condição de que favoreçam todos, e de modo especial 
os mais desfavorecidos. 
 
O primeiro princípio de justiça 
O primeiro princípio de justiça fala das 
liberdades individuais. Estas liberdades, iguais para 
todos, são a liberdade de pensamento e de consciência, 
a liberdade de palavra e de reunião, a liberdade da 
detenção arbitrária, a liberdade política – o direito de 
voto. 
A Constituição e as leis têm a função de garantir 
o uso livre destas liberdades, onde se deve salientar que 
as liberdades de consciência e de pensamento são as 
primeiras na graduação, as absolutamenteda 
linguagem. 
Além disso, Benjamin refletiu também em 
vários importantes ensaios críticos sobre questões 
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10 
como a da coleção e do colecionismo. Seus escritos 
voltados para a recordação de sua infância são 
profundamente inovadores, na medida em que 
desconstroem criticamente os modelos da autobiografia 
e introduzem uma modalidade da auto-escritura mais 
fragmentada e voltada para uma “topografia da 
memória”. 
O fundamental dentro do universo das críticas 
de Benjamin, quando ele voltava seu potente intelecto 
para as obras que eram publicadas na sua época (como 
as de Proust, Kafka, Döblin, Kraus, Brecht etc.), ou 
para reedições de obras consagradas ou não (de Goethe, 
Kleist, Hebel etc.) é que ele sempre realizou uma crítica 
que era, ao mesmo tempo, teoria da literatura. 
É este talvez o legado mais importante de sua 
produção crítica: ele mostrou a infecundidade da crítica 
apenas filológica, assim como a limitação da crítica 
meramente imanente, ou ainda, da crítica biográfica. 
Crítica para ele só existia enquanto capacidade 
de se articular (delicadamente, ou às vezes, como todo 
o peso histórico exigido por seu objeto de análise), a 
imanência da obra com a reflexão histórico-crítica. As 
mostras mais eloquentes desta concepção são a 
introdução “crítico-epistemológica” do seu livro sobre 
o drama barroco alemão, e as reflexões que 
acompanham as notas de seu trabalho que ficou 
inconcluso sobre as passagens de Paris. 
Benjamin escreveu no seu último texto, 
dedicado à crítica da noção de progresso, que “nunca 
existiu um documento da cultura que não fosse ao 
mesmo tempo um [documento] da barbárie”. 
Com Benjamin aprendemos que cultura é a 
partir de meados do século 20 toda ela como que 
transformada em um documento e, mais ainda, ela 
passa a ser lida como testemunho da barbárie. Esta 
noção é essencial, porque com este autor vemos não 
apenas uma tremenda expansão nos critérios de seleção, 
como também a afirmação radical de um modo de 
interpretar esses documentos. 
Sua teoria da história e da cultura descortina o 
passado e suas ruínas, sobre as quais construímos nosso 
presente, como um único e gigantesco arquivo. Quando 
se fala de arquivo, não se pode esquecer que a toda 
inscrição deve-se associar um modo de leitura e de 
interpretação, de outro modo teríamos um arquivo 
literalmente morto. 
O elemento político domina todos os 
momentos do trabalho no arquivo, da seleção, 
passando pela conservação e pelo acesso, chegando à 
leitura dos documentos. A história para Benjamin, 
como é conhecida, é aproximada do modelo do 
colecionador e do catador de papéis. O historiador deve 
acumular os documentos que são como que 
apresentados diante do tribunal da história. 
Em Benjamin, a cultura como arquivo e 
memória, devido ao viés crítico e revolucionário de seu 
modo de leitura, não deixa a sociedade e sua história se 
cristalizarem em museus e parques temáticos. É o viés 
conservador da cultura como mercadoria que o faz, ao 
qual Benjamin opõe sua visada da cultura como 
documento e testemunho da barbárie. 
Seu projeto de historiografia calcada no 
colecionismo (que tem por princípio o arrancar de seus 
objetos do falso contexto para inseri-los dentro de uma 
nova ordem comandada pelos interesses de cada 
presente) e, por outro lado, inspirado no trabalho do 
catador (que se volta para o esquecido e considerado 
inútil) ainda hoje pode ser comparado a um pólen que 
guarda uma assombrosa força de germinação. 
 
A obra de arte na modernidade 
 
O ensaio “A obra de arte na era de sua 
reprodutibilidade técnica” analisa questões como a noção de 
autenticidade e o valor de culto das obras de arte. 
Apesar de ter sido escrito a pelo menos meio século, 
ainda hoje é um texto de muita importância. 
O ponto central desse estudo encontra-se na 
análise das causas e consequências da destruição da 
“aura” que envolve as obras de arte, enquanto objetos 
individualizados e únicos. A “aura” corresponde a 
absoluta singularidade de algo, relacionando-se a sua 
condição de exemplar único dentro de um contexto que 
lhe dá sentido e justificação. 
A obra de arte sempre pôde ser reproduzível, 
discípulos “imitavam” seus mestres para difusão da 
obra ou visando lucro. Porém a reprodução técnica da 
obra de arte é algo novo, que foi possível com a 
xilografia (gravura em madeira), muitos anos antes da 
imprensa. Logo, a litografia (tipo de gravura que 
envolve a criação de marcas ou desenhos sobre 
uma matriz de pedra calcária ou placa de metal com um 
lápis gorduroso) permitiu a arte colocar-se no mercado 
suas produções não somente em massa, mas sob a 
forma de criações sempre novas. 
Com a litografia, as artes gráficas situarem-se no 
mesmo nível da imprensa, ilustrando a vida cotidiana; 
logo, com a fotografia, a arte situou-se no mesmo nível 
que a palavra oral. A partir daí a responsabilidade era do 
olho e não mais da mão do artista. 
https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Aura_(Walter_Benjamin)&action=edit&redlink=1
https://pt.wikipedia.org/wiki/Arte
https://pt.wikipedia.org/wiki/Gravura
https://pt.wikipedia.org/wiki/Matriz
https://pt.wikipedia.org/wiki/Pedra_calc%C3%A1ria
https://pt.wikipedia.org/wiki/Metal
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11 
Com o progresso das técnicas de reprodução, 
sobretudo do cinema, a aura, dissolvendo-se nas várias 
reproduções do original, destituiria a obra de arte de seu 
status de raridade. 
É muito mais fácil você encontrar um “original” 
do filme Matrix no shopping do que a Monalisa original 
em qualquer lugar que seja. Não é mesmo? Essa 
raridade confere toda essa “aura” que envolve a obra de 
arte. 
Para Benjamin, a partir do momento em que a 
obra fica excluída da atmosfera aristocrática e religiosa, 
que fazem dela uma coisa para poucos e um objeto de 
culto, a dissolução da aura atinge dimensões sociais. 
Essas dimensões seriam resultantes da estreita relação 
existente entre as transformações técnicas da sociedade 
e as modificações da percepção estética. 
Benjamin nos apresenta o conceito de aura, 
como sendo uma figura singular, composta de 
elementos espaciais e temporais, seria como um halo 
misterioso e inapreensível das imagens; a aparição única 
de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja. 
Para Benjamin esta aura foi se perdendo com a 
fotografia, diante do valor de exposição. 
Segundo ele as primeiras fotografias remetem à 
captação de mistérios nas intimidades dos rostos 
fotografados. Mas com o avanço do processo negativo-
positivo, a popularização da fotografia e o 
barateamento do aparelho tivemos a decadência da aura 
e as tentativas malsucedidas de sua recriação, o 
“mistério” da fotografia se perdeu. 
A reprodutibilidade técnica da obra de arte 
altera a relação das massas com a arte. Uma das funções 
revolucionárias do cinema será a de tornar 
reconhecíveis como idênticos os aproveitamentos 
artístico e científico da fotografia, até agora divergentes, 
na maioria dos casos. 
 Segundo Benjamin o valor único da obra de arte 
“autêntica” tem sempre um fundamento teológico, por 
mais remoto que seja. O objeto de arte como ídolo 
perde-se na era da reprodutibilidade. As mais antigas 
obras de arte surgiram com o fim de culto, para 
exprimir uma cultura e um significado em determinado 
povo e lugar. 
Benjamin diz que a obra de arte tem ou um 
valor de culto ou de exposição, quanto menor o valor 
de culto maior o valor de exposição. A unicidade da 
obra de arte é idêntica à sua inserção no contexto da 
tradição, e esta tradição é viva e extraordinariamente 
variável. 
A chapa fotográfica ou o arquivo de 
computadorpermite-nos ter quantas copias quisermos, 
a questão de autenticidade das copias, segundo 
Benjamin, não tem nenhum sentido. No momento em 
que o critério da autenticidade deixa de ser aplicado à 
produção artística, toda função social da arte se 
transforma, em vez de fundar-se no ritual, passa a 
fundar-se em outra práxis: a política. 
À medida que as obras de arte se emancipam do 
seu uso ritual, aumentam as ocasiões para que elas sejam 
expostas. A imagem era algo quase sagrado, apenas 
algumas pessoas tinham aceso para realização de rituais, 
o dono de uma imagem continuou tendo status de 
poder por muito tempo, porém com a fotografia, 
qualquer um podia apreciá-las ou até produzi-las. Agora 
podemos conhecer lugares ou obras que não 
poderíamos sem a fotografia e os meios de 
comunicação. 
A Monalisa, por 
exemplo, poucos tiveram a 
chance de contemplá-la de 
perto, mesmo que atrás de 
um grosso vidro, mas quem 
não a conhece? 
Segundo Benjamin 
a exponibilidade de uma obra 
de arte cresce em tal escala, 
com vários métodos de reprodutibilidade técnica, que a 
mudança de ênfase de um pólo para outro corresponde 
a uma mudança qualitativa comparável à que ocorreu 
na pré-história. 
Como na pré-história a preponderância 
absoluta do valor de culto conferido à obra levou-a a 
ser concebida em primeiro lugar como instrumento 
mágico, e só mais tarde como obra de arte, do mesmo 
modo a preponderância absoluta conferida hoje a seu 
valor de exposição atribui-lhe funções inteiramente 
novas, entre as quais a “artística”, a única de que temos 
consciência. 
 Já o cinema representaria 
um meio de expressão 
absolutamente incomparável. 
A reprodutibilidade técnica 
do filme tem seu fundamento 
imediato na técnica de sua 
produção. Não se permite 
apenas a difusão em massa da 
obra cinematográfica, como a 
torna obrigatória, pois a 
produção de um filme é cara. 
Em 1927, calculou-se que um filme de longa metragem, 
https://pt.wikipedia.org/wiki/Cinema
https://pt.wikipedia.org/wiki/Aristocr%C3%A1tica
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12 
para ser rentável, precisaria atingir um público de nove 
milhões de pessoas. 
Apesar das dificuldades financeiras, numa 
perspectiva externa, o cinema falado estimulou 
interesses nacionais, visto de dentro se 
internacionalizou a produção cinematográfica numa 
escala ainda maior. 
Para o cinema é menos importante o ator 
representar diante do público outro personagem, que 
ele representar a si mesmo diante do aparelho. O 
cinema renuncia aos valores eternos, pois tem que ser 
cada vez melhor para o público, cada vez mais perfeito. 
O corpo do interprete cinematográfico perde a 
substância sendo privado da realidade diante das 
câmeras. 
A crise da democracia foi como uma crise nas 
condições de exposição do político. A metamorfose do 
modo de exposição pela técnica de produção é visível 
também na política. A crise da democratização pode ser 
interpretada como crise nas condições de exposição do 
político profissional. O político quer se expor de forma 
imediata, em pessoa, diante de certos representantes, ou 
seja, seu objetivo é o mesmo que o ator, se tornar 
“mostrável” para a sociedade. 
 O cinegrafista utiliza o procedimento técnico para 
fazer a cena parecer real, já o pintor vê em sua obra a 
distância entre a realidade dada e ele próprio. O 
cinegrafista mergulha na realidade. A pintura desfruta 
do que é tradicional sem criticar, critica-se o que é novo 
sem desfrutar. O filme de sucesso já é o mais exposto, 
é o que mais pessoas assistiram. 
 A análise de Benjamin mostra que as técnicas de 
reprodução das obras de arte, provocando a queda da 
aura, promovem a liquidação do elemento tradicional 
da herança cultural; mas, por outro lado, esse processo 
contém um germe positivo. É que possibilidade de 
reprodução em massa democratiza a cultura e faz com 
que o contato com a obra de arte não seja um privilégio 
apenas da elite. 
Desse modo, na medida em que possibilita um 
outro relacionamento das massas com a arte, esta pode 
ser um instrumento de politização e com isso um meio 
eficaz de renovação das estruturas sociais. Um filme 
que contém uma forte crítica social é um bom exemplo 
disso na medida em que faz a classe oprimida pensar a 
sua realidade social. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 FENOMENOLOGIA 
 
1. FENOMENOLOGIA: UM MÉTODO PARA 
“VOLTAR ÀS PRÓPRIAS COISAS” 
Escreve Heidegger em Ser e tempo: “A expressão 
'fenomenologia' significa, antes de mais nada, um 
conceito de método [...]. O termo expressa um lema que 
poderia ser assim formulado: voltemos às próprias coisas! E 
isso em contraposição às construções desfeitas no ar e 
às descobertas casuais. Em contraposição a aceitação de 
conceitos só aparentemente justificados e aos 
problemas aparentes que se impõem de uma geração a 
outra como verdadeiros problemas”. 
Portanto, a palavra de ordem da fenomenologia 
é a do retorno às próprias coisas, indo além da verbosidade 
dos filósofos e de seus sistemas construídos no ar. Mas 
como se fará para construir uma filosofia que se 
sustente? Para cumprir essa tarefa, é preciso partir de 
dados indubitáveis para com base neles construir depois 
o edifício filosófico. Em suma, procuram-se evidências 
estáveis para colocar como fundamento da filosofia: 
“sem evidencia não há ciência”. 
Dirá Husserl nas Pesquisas lógicas: “Os limites da 
evidência apodítica representam os limites de nosso 
saber. Assim, é preciso buscar coisas manifestas, 
fenômenos tão evidentes que não possam ser negados”. 
Essa, portanto, é a intenção de fundo da 
fenomenologia, intenção que os fenomenólogos 
procuram realizar através da descrição dos 
“fenômenos” que se anunciam e se apresentam à 
consciência depois de feita a epoché, isto é, depois de 
postos entre parênteses as nossas persuasões 
filosóficas, os resultados das ciências e as convicções 
engastadas naquela nossa atitude natural que nos impõe 
a crença na existência de um mundo de coisas. 
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https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Estruturas_sociais&action=edit&redlink=1
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13 
Em outros termos, é preciso suspender o juízo 
sobre tudo o que não é apodítico nem objeto de 
controvérsia até se conseguir encontrar aqueles “dados” 
que resistem aos reiterados assaltos da epoché. E os 
fenomenólogos encontram esse ponto de aproximação 
da epoché, o resíduo fenomenológico - como o chamaria 
Husserl -, na consciência: a existência da consciência é 
imediatamente evidente. 
 
A fenomenologia é descrição das essências 
eidéticas 
 
A partir dessa evidência, os fenomenólogos 
pretendem descrever os modos típicos como as coisas e os 
fatos se apresentam à consciência. E esses modos 
típicos são precisamente as essências eidéticas. A 
fenomenologia não é ciência de fatos, e sim ciência de 
essências. 
Para o fenomenólogo não interessa a análise 
desta ou daquela norma moral, porém compreender 
por que esta ou aquela norma são normas morais e não, 
por exemplo, normas jurídicas ou regras de 
comportamento. Da mesma forma, o fenomenólogo 
não se interessara (ou, pelo menos, não se interessara 
principalmente) em examinar os ritos e os hinos desta 
ou daquela religião; ao contrário, ele se interessará por 
compreender o que á a religiosidade, ou seja, o que 
transforma ritos e hinos tão diferentes em ritos e hinos 
“religiosos”. 
Naturalmente, o fenomenólogo também 
produzirá analises mais especificas sobre o que 
caracteriza essencialmente, por exemplo, o pudor, a 
santidade, o amor, a justiça, o remorso ou os tipos de 
sociedade, mas, em todo caso, sua ciênciaé 
precisamente ciência de essências. 
Tais essências se tornam objeto de estudo se o 
pesquisador, estabelecendo-se na atitude de espectador 
desinteressado, liberta-se das opiniões preconcebidas e, 
sem se deixar envolver pela banalidade e pelo óbvio, 
saiba “ver” e consiga intuir (e descrever) aquele 
universal pelo qual um fato é aquilo e não outra coisa. 
Nós distinguimos um texto mágico de um texto 
científico, mas como conseguimos faze-lo senão 
porque utilizamos discriminantes essenciais, senão 
porque, talvez até sem termos consciência disso, 
sabemos o que é magia e o que é ciência? Como 
podemos dizer que este é um ato de simpatia, aquele 
um gesto de ira, este outro um comportamento 
desesperado ou aquele outro ainda um comportamento 
de santidade, se não houvesse precisamente essências, 
ou seja, ideias essenciais, de simpatia, de ira, de 
desespero ou de santidade? 
Eis, portanto, o que a fenomenologia pretende 
ser: ciência fundamentada estavelmente, voltada a análise e a 
descrição das essências. Com base nisso, podemos 
compreender como a fenomenologia se distingue da 
análise psicológica ou da análise científica. 
Diferentemente do psicólogo, o fenomenólogo não 
manipula dados de fato, mas essências; não estuda fatos 
particulares, senão ideias universais; não se interessa 
pelo comportamento moral desta ou daquela pessoa, 
mas pretende conhecer a essência da moralidade e 
talvez ver se a moral é ou não fruto de ressentimento. 
 
Direção idealista e direção realista da 
fenomenologia 
 
O fenomenólogo, em suma, cumpre tarefas 
bem diferentes das dos cientistas. A consciência é 
“intencional”, é sempre consciência de alguma coisa 
que se apresenta de modo típico: a análise desses modos 
típicos é precisamente a função do fenomenólogo, que 
se pergunta e indaga sobre o que a consciência 
transcendental entende por amor, percepção, 
religiosidade, justiça, comunidade, simpatia, e assim por 
diante. 
Nesse ponto, a fenomenologia podia tomar 
duas direções: a idealista ou a realista. Os significados 
ou essências dos objetos, das instituições e dos valores 
são constituídos e postos pela consciência, ou o olhar 
do teórico desinteressado os intui enquanto dados 
objetivos? 
Husserl tomará o caminho do idealismo. Assim, 
o pensador que estabeleceu como programa da 
fenomenologia o do retorno às próprias coisas, no fim 
se encontrará com a realidade única que é a consciência: 
a consciência transcendental, que “constitui” os 
significados das coisas, das ações, das instituições e o 
sentido do mundo (aqui, transcendental quer dizer 
kantianamente o que está na nossa consciência 
enquanto algo independente da sensibilidade e, 
portanto, a priori, mas funcionalmente ordenado para a 
“constituição” da experiência). 
O movimento fenomenológico é uma vasta e 
articulada corrente de pensamento, da qual se destacam, 
além de Husserl, o pensamento de Heidegger, as 
análises de Sartre e de Merleau-Ponty. 
Deve-se dizer ainda que a influência dos 
fenomenólogos sobre a psicologia, a antropologia, a 
psiquiatria, a filosofia moral e a filosofia da religião foi 
e continua sendo notável. Por isso, é reconhecido que 
o movimento fenomenológico constitui um 
acontecimento decisivo no âmbito da filosofia 
contemporânea. 
 
Às origens da fenomenologia 
 
A fenomenologia nasce com Husserl como 
polêmica antipsicologista. Uma das ideias fundamentais 
de Husserl e da fenomenologia é a da 
intencionalidade da consciência. Foi precisamente 
em relação a esses dois núcleos problemáticos que 
Husserl se inspirou em dois pensadores de nível 
notável, isto é, Bernhard Bolzano e Franz Brentano. 
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14 
 Bolzano (1781-1 848), 
matemático e filósofo, padre 
católico e professor de filosofia 
da religião na Universidade de 
Praga até 1819, nos deixou duas 
importantes obras: 0s paradoxos 
do infinito (1851), e a Doutrina da 
ciência (1837). 
O primeiro trabalho 
exerceu influencia notável sobre a história do 
pensamento matemático. Já o segundo elabora a 
doutrina da “proposição em si” e da “verdade em si”. 
A proposição em si é o puro significado lógico 
de um enunciado, não dependendo do fato de ele ser 
expresso ou pensado. Já a verdade em si é dada por 
qualquer proposição válida, seja ou não expressa ou 
pensada. Assim, a validade de um princípio lógico, 
como o da não-contradição, permanece tal tanto se o 
pensarmos ou não, tanto se o expressarmos com 
palavras ou por escrito, como se não o expressarmos. 
As proposições em si podem derivar uma da outra e 
podem entrar em contradição: elas são parte de um 
mundo lógico-objetivo e são independentes das 
condições subjetivas do conhecer. 
 Brentano (1838-
1917), também padre 
católico que depois 
abandonou a Igreja, foi 
professor na Universidade 
de Viena. Escreveu muito 
sobre Aristóteles (A 
psicologia de Aristóteles, 1867; 
O cristianismo de Aristóteles, 
1882; Aristóteles e sua visão do mundo, 1911; A doutrina de 
Aristóteles sobre a origem do espirito humano, 1911); todavia, 
sua obra de maior sucesso foi A psicologia do ponto de vista 
empírico (1874). É nesta última obra que Bretano afirma 
o caráter intencional da consciência. 
Na escolástica, intentio significava o conceito 
enquanto indica algo diferente de si. Segundo Brentano, 
precisamente, a intencionalidade é o que tipifica os 
fenômenos psíquicos, que sempre se referem a algo 
diferente de si próprio. Eles se distinguem em três 
classes fundamentais, que são a representação, o juízo e 
o sentimento. Na representação, o objeto é puramente 
presente; no juízo, ele é afirmado ou negado; no 
sentimento, ele é amado ou odiado. 
 
2. EDMUND HUSSERL 
 
Husserl nasceu em Prossnitz (na Morávia), em 
1859. Estudou matemática em Berlim e laureou-se em 
1883 com uma tese sobre o cálculo das variações. 
Em Viena, seguiu as aulas de Brentano. Em 
1891, publicou a Filosofia da aritmética. 
Livre-docente em Halles em 1887, foi nomeado 
professor de filosofia em Gottingen em 1901. Neste 
ano apareceram as Pesquisas lógicas. É de 1911 A filosofia 
como ciência rigorosa; e Ideias para uma fenomenologia pura e 
uma filosofia fenomenológica é de 1913. 
Em 1916 passou a 
ensinar em Friburgo, onde 
permaneceu até 1928, ano 
em que foi posto de licença. 
Como emérito, não pôde 
prosseguir sua atividade 
didática porque, sendo 
judeu, foi obstaculizado 
pelo regime nazista. A lógica 
formal e a lógica transcendental é 
de 1929. Em 1931 foram 
publicadas suas 
conferências parisienses, sob o título de Meditações 
cartesianas. 
Morreu em 1938 e deixou grande quantidade de 
inéditos (cerca de quarenta e cinco mil páginas 
estenografadas). Dessa grande massa de manuscritos 
foram extraídos vários livros, o mais conhecido e 
importante dos quais é A crise das ciências europeias e a 
fenomenologia transcendental, publicado em 1950. 
 
A intuição eidética 
 
As proposições universais e necessárias são 
condições que tornam possível uma teoria, sendo 
diferentes das proposições obtidas indutivamente da 
experiência. Na base desses dois tipos de proposições, 
Husserl distingue entre intuição de um dado de fato e 
intuição de uma essência. 
Husserl está persuadido de que nosso 
conhecimento começa com a experiência, ou seja, com 
a experiência de coisas existentes, de fatos. A experiência 
nos oferece continuamente dados de fato, os dados de 
fato com os quais nos vemos às voltas na vida cotidiana, 
e dos quais a ciência também se ocupa. Um fato é o que 
acontece aqui e agora; um fato é contingente, podendo ser 
ou não ser. 
Mas, quando um fato (este som, esta cor etc.) se 
nos apresenta à consciência, juntamente com o fato 
captamos uma essência (o som, a cor etc.). Nas ocasiões 
mais díspares, podemos ouvir os sons mais diversos 
(clarim, violino, piano etc.), mas neles reconhecemos 
algo decomum, uma essência comum. No fato sempre se 
capta uma essência. O individual se anuncia para a 
consciência através do universal. 
Quando a consciência capta um fato aqui e agora, 
ela capta também a essência: esta cor é caso particular da 
essência "cor", este som é caso particular da essência 
"som", este ruído é caso particular da essência "ruído" 
etc. 
As essências, portanto, são os modos típicos do 
aparecer dos fenômenos. E não é que nós abstraiamos 
as essências da comparação de coisas semelhantes, 
como queriam os empiristas, uma vez que a semelhança 
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15 
já é essência. Não abstraímos a ideia ou essência de 
“triângulo” da comparação de muitos triângulos: o que 
ocorre é que este, esse e aquele são triângulos porque 
são casos particulares da ideia de triângulo. Este 
triângulo isóscele desenhado no quadro-negro existe 
aqui e agora, com estas dimensões e não outras. Esse é 
um dado de fato particular. Mas nele captamos uma 
essência. 
E o conhecimento das essências não é 
conhecimento mediato, obtido, como se repete, por 
meio da abstração ou comparação de vários fatos. Para 
comparar vários fatos, é preciso já ter captado uma 
essência, isto é, um aspecto pelo qual eles são 
semelhantes. 
O conhecimento das essências é uma intuição. 
É uma intuição diferente daquela que nos permite 
captar os fatos particulares. É a ela que Husserl chama 
intuição eidética ou intuição da essência. Trata-se de 
conhecimento distinto do conhecimento do fato. Os 
fatos particulares são casos de essências eidéticas. Essas 
essências eidéticas, portanto, não são objetos 
misteriosos ou evanescentes. 
É verdade que só os fatos particulares são reais, 
e que os universais não são reais como os fatos 
particulares. Os universais, isto é, as essências, são 
conceitos, ou seja, objetos ideais que, porém, permitem 
classificar, reconhecer e distinguir os fatos particulares, 
dos quais a consciência, quando eles se lhe apresentam, 
reconhece o “aqui e agora”, mas também o “o quê”. 
 
Ontologias regionais e ontologia formal 
 
A fenomenologia pretende ser ciência de 
essências e não de dados de fato. Ela é fenomenologia, 
ou seja, “ciência dos fenômenos”, mas seu objetivo é o 
de descrever os modos típicos com os quais os 
fenômenos se apresentam à consciência. E essas 
modalidades típicas (pelas quais este som é um som e 
não uma cor ou um ruído, ou pelas quais este desenho é 
de um triângulo e não de outra coisa) são precisamente 
as essências. 
A fenomenologia, portanto, é ciência de 
experiência, não, porém, de dados de fato. Os objetos 
da fenomenologia são as essências dos dados de fato, 
são os universais que a consciência intui quando os 
fenômenos a ela se apresentam. E nisso consiste a 
redução eidética, isto é, a intuição das essências, quando, 
na descrição do fenômeno que se apresenta à 
consciência, sabemos prescindir dos aspectos empíricos 
e das preocupações que nos ligam a eles. 
Nesse sentido, as essências são invariáveis. E 
são obtidas através do que, nos escritos póstumos de 
Husserl, denomina-se “método da variação eidética”. 
Toma-se determinado exemplo de um conceito que se 
quer explicar e depois, pouco a pouco, se introduzem 
variações nas propriedades, as quais são submetidas a 
variações até se chegar a um ponto em que não se pode 
mais variar, caso contrário já não se estaria tratando do 
mesmo conceito. 
É óbvio que essas essências não existem 
somente no interior do mundo perceptivo: fatos como 
recordações, esperanças ou desejos também tem sua 
essência, isto é, se apresentam à consciência de modo 
típico. Além disso, a distinção entre o fato (que é um isto) 
e uma essência (que é um “o que”) permite a Husserl 
justificar a lógica e a matemática. 
As proposições lógicas e matemáticas são juízos 
universais e necessários porque são relações entre 
essências. E sendo relações entre essências, as 
proposições lógicas e matemáticas não recorrem a 
experiência como fundamento de sua validade. 
O fato de a consciência poder efetivamente 
referir-se a essências ideais não legitima somente uma 
análise dos modos típicos em que se apresentam os 
fenômenos perceptivos, nem apenas a distinção das 
proposições lógicas e matemáticas das propriedades das 
ciências empíricas; o fato da referência às essências 
ideais abre à fenomenologia a exploração e a descrição 
do que Husserl chama de “ontologias regionais”. 
Nesse sentido, “regiões” são a natureza, a 
sociedade, a moral e a religião. O estudo dessas 
ontologias regionais se propõe captar e descrever as 
essências, isto é, as modalidades típicas com que 
aparecem à consciência os fenômenos morais, por 
exemplo, ou os fenômenos religiosos. À essas 
ontologias regionais, Husserl contrapõe a ontologia 
formal, que depois identifica com a lógica. 
 
A intencionalidade da consciência 
 
A fenomenologia, portanto, é ciência das 
essências, isto é, dos modos típicos do aparecer e do 
manifestar-se dos fenômenos da consciência, cuja 
característica fundamental é a da intencionalidade. 
A consciência, com efeito, é sempre consciência 
de alguma coisa. Quando eu percebo, imagino, penso 
ou recordo, eu percebo, imagino, penso ou recordo 
alguma coisa. Por isso se pode ver, diz Husserl, que a 
distinção entre sujeito e objeto dá-se imediatamente. O 
sujeito é um eu capaz de atos de consciência como 
perceber, julgar, imaginar e recordar; o objeto, ao 
contrário, é o que se manifesta nesses atos, ou seja, 
corpos percebidos, imagens, pensamentos, 
recordações. 
Por isso, devemos distinguir ainda o aparecer de 
um objeto do objeto que aparece. E se é verdade que 
conhecemos o que aparece, para Husserl também é 
verdade que vivemos o aparecer do que aparece. Husserl 
chama de noese o ter consciência, e noema aquilo de que 
se tem consciência. E entre os diversos noemas, como 
sabemos, Husserl distingue claramente os fatos das 
essências. 
A consciência, portanto, é intencional. Como 
escreve Husserl, “a intencionalidade é o que caracteriza 
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consciência de modo significativo. Nossos atos 
psíquicos têm a característica de se referirem sempre a um 
objeto, pois sempre fazem aparecer objetos”. 
Entretanto, deve-se notar que, em Husserl, o 
caráter intencional da consciência, em si mesmo, não 
implica concepção realista. Em outros termos: a 
consciência refere-se a outra coisa; isto, porém, não 
significa que essa outra intencionalidade da consciência 
deixa pendente a controvérsia entre realismo e 
idealismo. 
O que importa, no entanto, é descrever o que 
efetivamente se dá à consciência, o que nela se 
manifesta e nos limites em que se manifesta. E o que se 
manifesta e aparece é o fenômeno, em que por 
“fenômeno” não devemos entender a “aparência” 
contraposta à “coisa em si”: eu não ouço a aparência de 
uma música, eu escuto a música; eu não sinto a 
aparência de um perfume, eu sinto o perfume; nem 
tenho a aparência de uma recordação, eu tenho uma 
recordação. 
Consequentemente, o “princípio de todos os 
princípios”, enunciado por Husserl, é o seguinte: “Toda 
intuição que apresenta originariamente alguma coisa é, 
por direito, fonte de conhecimento; tudo aquilo que se 
apresenta a nós originariamente na intuição (que, por 
assim dizer, se nos oferece em carne e osso) deve ser 
assumido assim como se apresenta, mas também 
apenas nos limites em que se apresenta”. 
 
Epoché 
 
Mediante o princípio acima mencionado, 
Husserl pensava fundamentar a fenomenologia como 
ciência rigorosa, como ciência voltada para as coisas, 
para as próprias coisas; uma ciência que está voltada 
para ver como são as coisas. 
“Vamos às

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