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contemporanea www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 1 ESCOLA DE FRANKFURT A Escola de Frankfurt surgiu do Instituto de Pesquisa Social, fundado em Frankfurt no início da década de 1920 e tem como seus principais representantes Theodor Adorno, Max Horkheimer, Herbert Marcuse, Walter Benjamin, Erich Fromm e Jügen Habermas, este último considerado como pertencente à segunda geração dessa escola. Para entendermos o que eles produziram e porque decidiram escrever sobre o que escreveram, nós temos que ter em mente o que eles viram e viveram no seu tempo. A escola começa na década de 20, mas obviamente eles nasceram um pouco antes e puderam presenciar a consolidação de uma nova sociedade e com isso várias mudanças de comportamentos. Os caras estavam alí, no início do século XX. Tínhamos, em decorrência da Revolução Industrial, a produção de bens de consumo em larga escala, consequência disso, a guerra por mercados e depois a guerra de verdade, a Primeira Guerra Mundial que durou de 1914 a 1918. Imediatamente após esses acontecimentos temos a consolidação dos Estados Unidos da América com sua sociedade de consumo como uma potência econômica e a crise de 1929 que quase acaba com toda economia globalizada. Há a ascensão dos regimes totalitários do nazismo e do fascismo culminando na Segunda Guerra Mundial (1939-1945) que deixou a humanidade perplexa com o holocausto. www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 2 Então pessoal, é em meio a tudo isso que a escola emerge com a pretensão de tentar explicar o que levou uma civilização dita racional a cometer tanta barbaridade, e com isso, apresentavam um modo novo de pensar sobre a sociedade. Dessa maneira, eles passaram a analisar que tipo de racionalidade é essa que direcionou a humanidade à autodestruição e ajudou a criar meios de dominação social, semelhante à dominação proporcionada sobre a natureza através do método científico. Nesse sentido, se opuseram ao pensamento tradicional produzido pelos filósofos desde Descartes até o iluminismo, e se destacaram por sua teoria crítica que atacava principalmente essa razão iluminista que estava no cerne da fundação da sociedade (mundo) moderna. Diferentemente do caráter especializado da ciência, que disseca a realidade para estudar suas partes de maneira separada, os pensadores dessa escola discutiram sobre vários temas de caráter tanto filosófico quanto sociológico, tais como autoridade, autoritarismo, totalitarismo, família, cultura de massa, liberdade, o papel da ciência e da técnica. Isso porque entendiam que a pesquisa social não pode se dissolver em várias pesquisas especializadas e setoriais. Para eles, a sociedade deve ser pesquisada “como um todo” nas relações que se ligam através dos âmbitos econômicos, culturais e psicológicos. É aqui que se instaura a ligação entre hegelianismo (totalidade e dialética), marxismo (crítica social) e freudismo (estudo do inconsciente que domina esse ser racional que se diz consciente de si mesmo), que influenciará a obra dos pensadores da Escola de Frankfurt. A teoria crítica desenvolvida por eles pretende fazer emergir as contradições fundamentais da sociedade capitalista e apontar para “um desenvolvimento que leve a uma sociedade sem exploração”. 1. THEODOR ADORNO A Filosofia de Theodor Adorno (1903- 1969), considerada uma das mais complexas do século XX, fundamenta- se na perspectiva da dialética. Dialética do esclarecimento Uma das suas importantes obras, a Dialética do Esclarecimento (1947), escrita em colaboração com Max Horkheimer durante a segunda guerra mundial, é uma crítica da razão instrumental, conceito fundamental deste último filósofo, ou, o que seria o mesmo, uma crítica, fundada em uma interpretação negativa do Iluminismo, de uma civilização técnica e da lógica cultural do sistema capitalista (que Adorno chama de “indústria cultural”). Também uma crítica à sociedade de mercado que não persegue outro fim que não o do progresso técnico e o lucro. A atual civilização técnica, surgida do espírito do Iluminismo e do seu conceito de razão, não representa mais que um domínio racional sobre a natureza, que implica paralelamente um domínio (irracional) sobre o homem; os diferentes fenômenos de barbárie moderna (fascismo e nazismo) não seriam outra coisa que não mostras, e talvez as piores manifestações, desta atitude autoritária de domínio sobre o outro. Em sua Dialética Negativa, Adorno intenta mostrar o caminho de uma reforma da razão mesma, com o fim de libertá-la deste lastro de domínio autoritário sobre as coisas e os homens, lastro que ela carrega desde a razão iluminista. Seu pensamento opõe-se à filosofia dialética inspirada em Hegel, que reduz a sistema todas as coisas através do pensamento, superando suas contradições (crítica também do Positivismo, que deseja assenhorar- se da natureza por intermédio do conhecimento científico). A razão só deixa de ser dominadora se aceita a dualidade de sujeito e objeto, interrogando e interrogando-se sempre o sujeito diante do objeto, sem saber sequer se pode chegar a compreendê-lo por inteiro. Da Crítica da Razão, Adorno chega também à crítica da linguagem. Para Adorno, toda linguagem conceitual realiza alguma forma de violência cognitiva, pois nunca é possível conformar totalmente às palavras aos objetos e sentimentos tais como eles são (contradição do "não-idêntico"). Como alternativa e complemento à linguagem conceitual, Adorno valoriza a linguagem artística, a qual consegue expressar as irracionalidades, contradições e www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 3 estranhamentos dos sujeitos, sem violentá-las por meio de conceitos. Ao erigir os seus próprios significados, cada obra de arte cria o seu mundo interno (ser-para- si), sem necessidade de se espelhar em objetos externos e incorrer em violência cognitiva. Para ele, o conceito de técnica não deve ser pensado de maneira absoluta: ele possui uma origem histórica e pode desaparecer. Ao visarem à produção em série e à homogeneização, as técnicas de reprodução sacrificam a distinção entre o caráter da própria obra de arte e do sistema social. Desse modo, se a técnica passa a exercer imenso poder sobre a sociedade, tal ocorre, segundo Adorno, graças, em grande parte, ao fato de que as circunstâncias que favorecem tal poder são arquitetadas pelo poder dos economicamente mais fortes sobre a própria sociedade. Em decorrência, a racionalidade da técnica identifica-se com a racionalidade do próprio domínio. Essas considerações evidenciariam que, não só o cinema, como também o rádio, não devem ser tomados como arte. “O fato de não serem mais que negócios – escreve Adorno – basta-lhes como ideologia”. Enquanto negócios, seus fins comerciais são realizados por meio de sistemática e programada exploração de bens considerados culturais. Tal exploração Adorno chama de “indústria cultural”. Indústria cultural O termo foi empregado pela primeira vez em 1947, quando ele publicou a Dialética do Esclarecimento, juntamente com Max Horkheimer. A expressão “indústria cultural” visa a substituir “cultura de massa”, pois esta induz ao engodo que satisfaz os interesses dos detentores dos veículos de comunicação de massa. Os defensores da expressão “cultura de massa” querem dar a entender que se trata de algo como uma cultura surgindo espontaneamentecoisas!” torna-se o lema da fenomenologia. E é precisamente a fim de ir às coisas, as coisas em carne e osso, ou seja, a fim de encontrar pontos sólidos e dados indubitáveis, coisas tão manifestas a ponto de não poderem ser postas em dúvida e sobre as quais poder fundar uma concepção filosófica consistente, que Husserl propõe a epoché ou redução fenomenológica, como método da filosofia. Epoché (que é a transliteração do termo usado pelos céticos gregos para indicar a suspensão do juízo) significa justamente suspender o juízo em primeiro lugar sobre tudo aquilo que nos dizem as doutrinas filosóficas com seus debates metafísicos, depois igualmente sobre tudo o que nos dizem as ciências, sobre aquilo que cada um de nós afirma e pressupõe na vida quotidiana, isto é, sobre as crenças que compõem aquilo que Husserl chama de atitude natural. A atitude natural do homem é feita de persuasões variadas, úteis e necessárias à vida cotidiana. E a primeira dessas persuasões é a de que vivemos em um mundo de coisas existentes. Essas persuasões, porém, não possuem evidencia constritiva e, consequentemente, devem ser postas entre parênteses. Não é que o filósofo duvide delas: ele muito mais as põe fora de uso, não as utilizando como fundamento de sua filosofia, uma vez que, se a filosofia quer ser ciência rigorosa, deve pôr como seu fundamento apenas o que é indubitavelmente evidente. Por conseguinte, da minha persuasão de que o mundo existe, eu não devo deduzir nenhuma proposição filosófica, pelo motivo de que a existência do mundo, fora da consciência que a percebe, não é de modo nenhum indubitável. Como homem, o filósofo crê na existência do mundo e, ainda como homem, não pode deixar de crer em muitas outras coisas na vida prática, mas, como filósofo, ele não pode partir delas. E não pode partir tampouco dos resultados a pesquisa científica, em virtude do fato de que, embora procedendo crítica e rigorosamente no seu âmbito, as ciências interpretam, aceitando-os “ingenuamente”, os dados da experiência comum, sem se perguntar se eles resistem à pressão da epoché, ou seja, se são realidades indubitáveis. Portanto, nem as doutrinas filosóficas, nem os resultados da ciência, nem as crenças da atitude natural, até as mais óbvias, podem constituir pontos de partida indubitáveis, que são precisamente aquilo de que necessita a filosofia concebida como ciência rigorosa. Todas essas crenças, pois, devem ser postas entre parênteses. Mas existe alguma coisa da qual não se possa duvidar e que não se deixa pôr entre parênteses? Se existe, o que é isso que pode resistir a epoché? Pois bem, para Husserl, o que resiste aos ataques da epoché, ou seja, o que não se pode pôr entre parêneses, é a consciência ou subjetividade. Aquilo cuja existência é absolutamente evidente é o cogito com seus cogitata, a consciência à qual se manifesta tudo aquilo que aparece. A consciência, portanto, é o resíduo fenomenológico que resiste aos continuados assaltos da epoché. Mas a consciência, prossegue Husserl, não é apenas a realidade mais evidente, e sim também realidade absoluta, é o fundamento de toda realidade, é aquela realidade que não há necessidade de existir. O mundo, diz Husserl, é “constituído” pela consciência. A crise das ciências européias e o “mundo da vida” Em 1950, apareceu postumamente A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental. Esta é a última obra de fôlego de Husserl, na qual trabalhou até próximo da morte. A crise das ciências, obviamente, não é a crise de sua cientificidade, e sim crise do que elas, as ciências em geral, têm significado e podem significar para a existência humana. Escreve Husserl: “A exclusividade www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 17 com que, na segunda metade do século XIX, a visão de conjunto do mundo do homem moderno se deixou determinar pelas ciências positivas, e com que se deixou deslumbrar pela 'prosperidade' que daí derivava, significou o afastamento dos problemas decisivos para uma autêntica humanidade. As meras ciências de fatos criam meros homens de fato”. O objeto da crítica de Husserl são o naturalismo e o objetivismo, a pretensão pela qual a verdade científica é a única verdade válida, e a ideia a ela ligada de que o mundo descrito pelas ciências seria a verdadeira realidade. E Husserl traça a história dessa pretensão e dessa ideia, a começar por Galileu e Descartes. Mas, escreve ele, “na miséria de nossa vida [...] tal ciência não tem nada a nos dizer. Em princípio, ela exclui aqueles problemas que são os mais candentes para o homem, o qual, em nossos tempos atormentados, sente-se à mercê do destino; os problemas do sentido e do não-sentido da existência humana em seu conjunto”. Na opinião de Husserl, em sua generalidade e em sua necessidade, esses problemas exigem solução racionalmente fundada. Eles “concernem ao homem em seu comportamento diante do mundo circundante, humano e extra-humano, o homem que deve escolher livremente, o homem livre de plasmar-se a si mesmo e ao mundo que o circunda”. Então Husserl pergunta: “O que tal ciência tem a dizer sobre a razão e sobre a não-razão, o que tem ela a dizer sobre nós, homens, enquanto sujeitos dessa liberdade? Obviamente, a mera ciência de fatos não tem nada a nos dizer a esse respeito: ela, precisamente, abstrai de qualquer sujeito”. O drama da época moderna é o drama que começou com Galileu, ele recortou do mundo-da-vida a dimensão físico-matemática, que depois passou a ser considerada como vida concreta. “Galileu vive na ingenuidade da evidência apodítica”. Naturalmente, a filosofia reconhece a função da ciência e da técnica, mas a função da filosofia “é a de libertar a história da fetichização da ciência e da técnica”. Vista desse modo, “a fenomenologia é filosofia primeira que se liberta da clausura do mundo, anulando-o, para descobrir na humanidade a liberdade de se transcender em direção a novos horizontes”. 3. MARTIN HEIDEGGER: DA FENOMENOLOGIA AO EXISTENCIALISMO O expoente principal da filosofia da existência é Martin Heidegger. Nascido em Messkirch em 1889, estudou teologia e filosofia, laureou-se em filosofia em 1914 com uma tese sobre A doutrina do juízo no psicologismo. Em 1916, como tese de habilitação ao ensino universitário, publicou A doutrina das categorias e do significado em Duns Escoto. Professor por alguns anos na Universidade de Marburgo, em 1929 Heidegger sucedeu a Husserl na cátedra de filosofia em Friburgo, dando sua aula inaugural sobre 0 que é a metafisica? Do mesmo ano é o ensaio Sobre a essência do fundamento (escrito para o volume miscelâneo publicado em comemoração dos setenta anos de Husserl), bem como o livro Kant e o problema da metafisica. Nesse entretempo, em 1927, saíra o trabalho fundamental de Heidegger, Ser e tempo. Em 1933, Heidegger, que aderira ao nazismo, torna-se reitor da Universidade de Friburgo, pronunciando o discurso A autoafirmação da universidade alemã. Mas pouco depois se demitiu do cargo de reitor. Seus escritos posteriores a esse período são: Holderlin e a essência da poesia (1937), A doutrina de Platão sobre a verdade (1942), republicado em 1947, juntamente com a Carta sobre o humanismo; A essência da verdade (1943); Caminhos interrompidos (1950); Introdução à metafisica 1953); 0 que é a filosofia? (1956), A caminho rumo à linguagem (1959); Nietzsche (1961), em dois volumes. Heidegger morreu em 1976. Da fenomenologia ao existencialismo O objetivo declarado de Ser e tempo é o de uma ontologia capaz de determinar adequadamente o sentido do ser. Mas, para alcançar esse objetivo, é preciso analisar quem é que se propõe a pergunta sobre o sentido do ser. Enquanto Ser e tempo se resume em umaanalítica existencial sobre aquele ente (o homem) que se propõe a pergunta sobre o sentido do ser, os escritos de 1930 em diante abandonam a proposição originária: não se trata mais de analisar aquele ente que procura caminhos de acesso ao ser, mas sim o próprio ser e sua auto revelação. E aqui, precisamente, reside a “reviravolta” do pensamento de Heidegger, que, no segundo período de sua filosofia, prescinde da existência, que se torna uma determinação não essencial do ser. Escreve ele: “A história do ser rege e determina toda condição e situação humana”. O ser-aí e a analítica existencial A intenção da obra Ser e tempo, diz Heidegger, é “a elaboração concreta do problema do sentido do ser”. Entretanto, o problema do sentido do ser propõe imediatamente a interrogação: “A respeito de qual ente deve ser compreendido o sentido do ser?” Pois bem, prossegue Heidegger, se o problema do ser deve ser proposto explicitamente em toda a sua transparecia, então [...] torna-se necessário evidenciar as maneiras de penetração no ser, de compreensão e de www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 18 posse conceitual de seu sentido, bem como a solução da possibilidade de escolha correta do ente exemplar e a indicação do caminho autêntico de acesso a esse ente. Penetração, compreensão, solução, escolha, acesso - são momentos constitutivos da busca e, ao mesmo tempo, modos de ser de determinado ente, mais precisamente daquele ente que, nós que o buscamos, já somos. Por tudo isso, a elaboração do problema do ser significa, portanto, o tornar-se transparente de um ente, pôr aquele que busca em seu ser. E nisso consiste a analítica existencial. O homem, portanto, é o ente que se propõe a pergunta sobre o sentido do ser. Por isso, a proposição correta do problema do sentido do ser requer uma explicitação preliminar daquele ente que se propõe a pergunta sobre o sentido do ser: e “esse ente, que nós mesmos já somos sempre, e que tem, entre as outras possibilidades de ser, a de buscar, nós o indicamos com o termo Ser-aí (Dasein, em alemão)”. Considerado em seu modo de ser, o homem é precisamente Da-sein, ou seja, Ser-aí. E o “da” (aí) indica o fato de que o homem está sempre em uma situação, lançado nela e em relação ativa com ela. O Ser-aí, isto é, o homem, não é somente aquele ente que propõe a pergunta sobre o sentido do ser, mas é também aquele ente que não se deixa reduzir à noção de ser aceita pela filosofia ocidental, que identifica o ser com a objetividade, ou seja, como diz Heidegger, com a simples-presença. As coisas são certamente diversas uma da outra, mas todas são objetos colocados diante de mim: e nesse seu estar presente a filosofia ocidental viu o ser. Mas o homem não pode se reduzir a objeto puro e simples no mundo; o Ser-aí jamais é uma simples-presença, uma vez que ele é precisamente aquele ente para o qual as coisas estão presentes. O modo de ser do Ser-aí é a existência: “A 'natureza', a 'essência' do Ser-aí consiste em sua existência”. A essência da existência é dada pela possibilidade, que não é possibilidade lógica vazia nem simples contingência empírica. O ser do homem é sempre uma possibilidade a atuar e, consequentemente, o homem pode escolher-se, isto é, pode conquistar-se ou perder-se. Neste sentido, o Ser-aí (ou homem) é “o ente que depende de seu ser” e “a existência é decidida, no sentido da posse ou da ruína, somente por cada Ser-aí individual”. O ser-no-mundo O homem é aquele ente que se interroga sobre o sentido do ser. O homem não pode reduzir-se a simples objeto, isto é, a simples estar-presente. O modo de ser do homem é a existência. A existência é poder- ser. Mas poder-ser significa projetar. Por isso, a existência é essencialmente transcendência, identificada por Heidegger com a ultrapassagem. Desse modo, para ele, a transcendência não é um entre os muitos possíveis comportamentos do homem, e sim sua constituição fundamental: o homem é projeto e as coisas do “mundo” são originariamente utensílios em função do projetar humano. Tudo isso nos introduz à tratação da característica fundamental do homem que Heidegger chama de ser-no-mundo. O homem está-no-mundo. Mas, como o homem é constitutivamente projeto, o mundo - diferentemente do que pensava Husserl - não é originariamente uma realidade a contemplar, e sim muito mais um conjunto de instrumentos “para” o homem, um conjunto de utensílios, ou seja, de coisas a utilizar, à mão, e não de coisas a contemplar como presentes. A existência é poder-ser, projeto, transcendência em relação ao mundo: estar-no-mundo, portanto, significa originariamente fazer do mundo o projeto das ações e dos comportamentos possíveis do homem. A transcendência institui o projeto ou esboço de um mundo: ela é um ato de liberdade - aliás, para Heidegger, é a própria liberdade. Entretanto, se é verdade que qualquer projeto se radica em um ato de liberdade, também é verdade que todo projeto limita imediatamente o homem que se encontra dependente das necessidades e limitado pelo conjunto daqueles utensílios que é o mundo. Estar-no-mundo, pois, significa para o homem cuidar das coisas necessárias a seus projetos, e ter a ver com uma realidade-utensílio, meio para sua vida e para suas ações. Sendo o Ser-aí constitutivamente projeto, o mundo existe como conjunto de coisas utilizáveis: o mundo vem a ser graças a seu ser utilizável. O ser das coisas equivale ao seu ser utilizadas pelo homem. O homem, portanto, não é um espectador do grande teatro do mundo: o homem está no mundo, envolvido nele, em suas vicissitudes. E transformando o mundo, ele forma e se transforma a si mesmo. A atitude teórica e contemplativa do espectador desinteressado (na qual Husserl tanto insistira, bem como a tradição filosófica ocidental em geral) é somente um aspecto da mais ampla e geral utilizabilidade das coisas. As coisas são sempre instrumentos: se for conveniente, poderão ser vistas como instrumentos que satisfazem um prazer estético; mas, se o consideramos útil, poderão ser vistas “objetivamente”, isto é, cientificamente, tendo como fundo um projeto total. O homem compreende uma coisa quando sabe o que fazer dela, do mesmo modo como compreende a si mesmo quando sabe o que pode fazer consigo, isto é, quando sabe o que pode ser. www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 19 O ser-com-os-outros Se o ser-no-mundo é um existencial, também o ser-com-os-outros é um existencial. Não há “um sujeito sem mundo” e, ao mesmo tempo, não existe “um eu isolado sem os outros”. Os outros não são inferidos como outros “eus”; eles são dados, ao invés, como outros “eus”, desde a origem. Sendo a existência constitutivamente abertura, desde a origem os outros “eus”, como tais, participam do mesmo mundo no qual eu vivo. Por outro lado, assim como o ser-no-mundo do homem se expressa pelo cuidar das coisas, do mesmo modo o seu ser-com-os-outros se expressa pelo cuidar dos outros, coisa que constitui a estrutura basilar de toda possível relação entre os homens. E o cuidar dos outros pode tomar duas direções: na primeira, procura-se subtrair os outros de seus cuidados; na segunda, procura-se ajudá-los a conquistar a liberdade de assumir seus próprios cuidados. No primeiro caso, temos um simples “estar junto” e estamos diante de uma forma inautêntica de coexistência; no segundo caso, ao contrário, temos um autêntico “coexistir”. O ser-para-a-morte, existência inautêntica e existência autêntica O Ser-aí é e tem de ser; isto é, o homem se encontra sempre em uma situação e enfrenta essa situaçãograças a seu projetar. Mas, quando volta seus “cuidados” para o plano “ôntico” ou “existentivo”, isto é, ao plano dos entes em sua factualidade, o homem permanece na existência inautêntica. Nesta, o homem manipula as coisas, utiliza-as e estabelece relações sociais com outros homens. Todos esses projetos, porém, em uma espécie de vertigem, atiram o homem para o nível dos fatos. A utilização das coisas se transforma em fim em si mesma. A linguagem se transforma então no palavrório da existência anônima subjacente ao axioma “as coisas são assim porque assim se diz”. Essa existência anônima procura encher o vazio que a caracteriza, recorrendo continuamente ao novo: ela se afoga na curiosidade. E, por fim, além do palavrório e da curiosidade, a terceira característica da existência inautêntica é o equívoco: a individualidade das situações, em uma existência devorada pelo palavrório e pela curiosidade, desvanece na neblina do equívoco. A existência inautêntica é existência anônima: é a existência do “se diz” e do “se faz”. A análise existencial revela que a existência anônima é um poder ser constitutivo do homem. E, segundo Heidegger, o que se encontra na base desse poder-ser é a dejeção, ou seja, a queda do homem no plano das coisas do mundo. Entretanto, existe a voz da consciência, que chama à existência, quando então nós colocamos não mais no plano “ôntico” ou “existentivo”, e sim no plano “ontológico” ou “existencial”, procurando o sentido do ser dos entes, isto é, o sentido do seu existir. A voz da consciência traz de novo o homem envolvido pelos cuidados para diante de si mesmo, remetendo-o a questão do que ele é no mais profundo o seu ser e que não pode ocultar. Como já sabemos, a existência é poder-ser; e é nesse poder-ser que se baseia o projetar ou transcender do homem. Mas todo projetar leva o homem ao nível das coisas e do mundo. Tudo isso quer dizer que os projetos e as escolhas do homem, no fundo, são todos equivalentes: posso dedicar minha vida ao trabalho, ao estudo, a riqueza ou a qualquer outra coisa, mas posso ser homem seja escolhendo uma possibilidade, seja escolhendo outra. E por essa razão que, considerando como última e decisiva uma dessas escolhas ou possibilidades, o homem se decide por e se dispersa em uma existência inautêntica. Entretanto, entre as várias possibilidades, há uma diferente das outras, à qual o homem não pode escapar: trata-se da morte. Posso decidir dedicar minha vida a um objetivo ou a outro, posso escolher uma profissão ou outra, mas não posso deixar de morrer. E então, quando a morte se torna realidade, não há mais existência. Isso nos faz entender que, enquanto há o existente, a morte é possibilidade permanente, e essa é a possibilidade de que todas as outras possibilidades se tornem impossíveis. Diz Heidegger: “Enquanto possibilidade, a morte não dá ao homem nada a realizar”. Ela é a www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 20 possibilidade da impossibilidade de todo projeto e, com isso, de toda existência: com efeito, com a morte, não há outras possibilidades a escolher nem novos projetos a realizar. A voz da consciência, por conseguinte, nos remete ao sentido da morte e revela a nulidade de todo projeto: na perspectiva da morte, todas as situações singulares aparecem como possibilidades que podem se tornar impossíveis. Desse modo, a morte impede que alguém se fixe em uma situação, mostra a nulidade de todo projeto e funda a historicidade da existência. A existência autentica, portanto, é um ser-para- a-morte. Somente compreendendo a impossibilidade da morte como possibilidade da existência, e somente assumindo essa possibilidade com decisão antecipada, o homem encontra seu ser autêntico. A coragem diante da angústia O “viver para a morte” constitui, portanto, o sentido autêntico da existência. O “viver-para-a-morte” nos afasta do estar submerso nos fatos e nas circunstâncias. A antecipação da morte (que não significa de modo algum realiza-la pelo suicídio) dá sentido ao ser dos entes, mediante a experiência do seu nada possível. Essa experiência, no entanto, não se tem por obra de ato intelectivo, e sim, muito mais, por meio do sentimento especifico que é a angústia: “O ser-para-a- morte é essencialmente angústia”. A angústia põe o homem diante do nada, do nada de sentido, isto é, do não-sentido dos projetos humanos e da própria existência. Existir autenticamente implica ter a coragem de olhar de frente a possibilidade do próprio não-ser, de sentir a angústia do ser-para-a-morte. A existência autentica, por conseguinte, significa a aceitação da própria finitude. E é a essa aceitação que nos conclama a voz da consciência: a aceitação da nossa própria finitude e negatividade. A existência inautêntica e anônima, ao contrário, tem medo da angústia diante da morte, de modo que, para escapar a angústia, a existência anônima ocupa-se muito com as coisas e afunda no reino do se (man): “a existência anônima e banal não tem a coragem da angústia diante da morte”. E isso pode ser visto no fato de que a existência anônima banaliza a angústia no medo: “o medo é uma angústia que decaiu ao nível do mundo, inautêntica e oculta para si mesma como angústia”. Sempre se tem medo de alguma coisa; ao passo que nos angustiamos por nada: na angústia está presente o nada, com seu poder de aniquilação. O tempo Dado que a existência é possibilidade e projeto, escreve Heidegger em Ser e tempo, entre as determinações do tempo (passado, presente e futuro) a fundamental é o futuro: “O projetar-se-adiante para o 'em-vista-de-si-mesmo', projetar-se que se baseia no futuro, é característica essencial da existencialidade. Seu sentido primário é o futuro”. Entretanto, o cuidado, que antecipa as possibilidades, surge do passado e o implica. E entre passado e futuro estão o ocupar-se com as coisas que é o presente. Essas três determinações do tempo encontram seu significado em seu ser “fora de si”: o futuro é um pretender-se, o presente é estar preso as coisas e o passado é retornar à situação de fato para aceitá-la. Essa é a razão pela qual Heidegger chama os três momentos do tempo de êxtase, entendido em seu sentido etimológico de “estar fora”. Em todo caso, as três determinações do tempo mudam com base no fato de se tratar de tempo autêntico ou de tempo inautêntico, sendo o tempo autêntico o da existência autentica e o tempo inautêntico tipificado pela preocupação com o sucesso, é a atenção para com o êxito; ao passo que na existência autentica, que assume a morte como possibilidade que qualifica a existência, o futuro é um viver para a morte que não permite ao homem ser envolvido pelas possibilidades mundanas. E se o passado autêntico é o não aceitar passivamente a tradição, mas confiar nas possibilidades que a tradição nos oferece e reviver a possibilidade do homem que já foi, o presente autêntico é o instante, em que o homem repudia o presente inautêntico (onde o homem é absorvido sem descanso pelas coisas a fazer) e decide seu destino. Dessa análise do tempo, entre outras coisas, derivam algumas consequências importantes no pensamento de Heidegger: 1) Os significados do tempo usados no pensamento comum e na ciência (a databilidade e a medida científica do tempo) constituem tempo inautêntico, já que remetem à existência lançada entre as coisas do mundo. 2) A existência autentica é a existência angustiada, que vê a insignificância de todos os projetos e fins do homem. Essa insignificância torna todos os projetos equivalentes. Pondo o homem diante da equivalente nulidade dos fins, a angústia dá ao indivíduo a possibilidade de aceitar o próprio tempo e a ele permanecer fiel, ou seja, assumir como próprio o destino da comunidade humanaa qual pertence, em uma espécie de amor fati. Em outros termos, o homem que vive autenticamente continua a viver a vida, por assim dizer, banal de seu tempo e de seu povo, mas a vive com todo aquele afastamento próprio de quem, com a experiência antecipadora da morte, teve a revelação do nada dos projetos humanos e da existência humana. www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 21 A metafísica ocidental como “esquecimento do ser” A tarefa declarada de Ser e tempo é a de determinar o sentido do Ser. Entretanto, essa interrogação - que se desdobrou na analítica existencial, ou seja, na análise das estruturas da existência - teve como resultado o de que o sentido do ser não pode ser obtido pela interrogação de um ente. A análise da existência mostra que a existência autentica é o nada de todo projeto e o nada da própria existência. A análise do Ser-aí, isto é, daquele ente privilegiado que se propõe a pergunta sobre o sentido do ser, não revela o sentido do Ser, e sim o nada da existência. Essas considerações são explicitadas por Heidegger em sua Introdução à metafisica (1953), que se apresenta como crítica radical da metafísica clássica. De Aristóteles a Hegel e ao próprio Nietzsche, a metafísica clássica fez o que a analítica existencial mostrou ser impossível: procurou o sentido do Ser indagando os entes. A metafísica identificou o ser com a objetividade, isto é, com a simples presença dos entes. Desse modo, ela não é metafísica, senão “física” absorvida pelas coisas, que esqueceu o ser e que, aliás, leva ao esquecimento desse esquecimento. Heidegger diz que Platão foi o primeiro responsável pela degradação da metafísica a física. Os primeiros filósofos (Anaximandro, Parmênides, Heráclito) conceberam a verdade como um desvelar-se do Ser, como provaria o sentido etimológico de alétheia, onde lantháno (velar) é precedido do alfa privativo. Entretanto, Platão rejeitou a verdade como “não- ocultamento” do Ser e subverteu a relação entre Ser e verdade, baseando o Ser na verdade, no sentido de que a verdade estaria no pensamento que julga e estabelece relações entre os próprios “conteúdos” ou “ideias”, e não no ser que se desvela ao pensamento. Desse modo, o ser deveria se finalizar e relativizar para a mente humana, aliás, para a linguagem dela. A linguagem da poesia como linguagem do ser Entretanto, o patrimônio de palavras, de regras lógicas, gramaticais e sintáticas, que é a linguagem, estabelece limites intransponíveis ao que podemos dizer. A linguagem do homem pode falar dos entes, mas não do ser. Por isso, a revelação do ser não pode ser obra de um ente, ainda que privilegiado como o Ser-aí, mas só pode se dar através da iniciativa do próprio ser. Aí reside a “reviravolta” do pensamento de Heidegger. O homem não pode desvelar o sentido do Ser. Ele deve ser o pastor do Ser e não o senhor do ente. E sua dignidade “consiste em ser chamado pelo próprio Ser para ser o guarda de sua verdade”. Por isso, é preciso levar a filosofia de sua deformação “humanista” até o “mistério” do Ser, a seu desvelar-se originário. Mas onde ocorre esse desvelar-se do Ser? Diz Heidegger que o ser se desvela na linguagem, não na linguagem científica própria dos entes, ou na linguagem inautêntica do palavrório, e sim na linguagem autentica da poesia. Escreve ele na Carta sobre o humanismo: “A linguagem é a casa do ser. E nessa morada habita o homem. Os pensadores são os guardiões dessa morada”. Na forma autoral da poesia, a palavra tinha caráter “sacral”: língua originária, a poesia deu nomes às coisas e fundou o Ser. Essa fundação do Ser, porém, especificada por Heidegger em Holderlin e a essência da poesia (1937), não é obra do homem, e sim dom do Ser. Na linguagem do poeta, não é o homem que fala, e sim a própria linguagem - e, nela, o Ser. Consequentemente, a justa atitude do homem em relação ao ser é a do silêncio para ouvi-lo; o abandono ao Ser é o único comportamento correto. O homem deve, portanto, tornar-se livre para a verdade, concebida como desvelamento do Ser. E, assim, liberdade e verdade se identificam. E, como a verdade, também a liberdade é dom do Ser ao homem, uma iniciativa do Ser. A técnica e o mundo ocidental São, portanto, os “pensadores essenciais” (como Anaximandro, Parmênides, Heráclito e Holderlin) as testemunhas ou os ouvintes da voz do Ser, e não a metafísica ocidental. O senhor do ente não é o pastor do Ser. Mas o homem ocidental, precisamente por força daquela “física” que pretendia ser “metafísica”, transformou-se em senhor do ente. A reviravolta operada por Platão no conceito de verdade e, com isso, no destino da metafísica, explica o destino do Ocidente e o primado da técnica no mundo moderno. A técnica não é instrumento neutro nas mãos do homem, que pode usá-la para o bem ou para o mal, nem constitui acontecimento acidental no Ocidente. Para Heidegger, a realidade é que a técnica é o resultado natural daquele desenvolvimento pelo qual, esquecendo o Ser, o homem se deixou arrastar pelas coisas, tornando a realidade puro objeto a dominar e a desfrutar. E esse comportamento, que não se deterá sequer quando chega, como acontece hoje, a ameaçar as bases da própria vida, é comportamento que se tornou onívoro; trata-se de uma fé, a fé na técnica como domínio sobre tudo. 4. HANNA ARENDT Hannah Arendt nasce de família judaica em Hannover, dia 14 de outubro de 1906. Entre 1924 e www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 22 1929 foi estudante universitária em Marburg e em Freiburg na Brisgóvia, e sucessivamente em Heidelberg. Frequentou os cursos de literatura grega, teologia e filosofia. Laureou-se em 1928, apresentando uma dissertação sobre santo Agostinho. Em 1933 abandonou a Alemanha nazista e se refugiou em Paris, onde entrou em contato com os pensadores mais conhecidos da época. Na França foi ativa na organização para a emigração na Palestina das crianças judias. Foi presa em 1940, mas conseguiu fugir, e em 1941 foi para os Estados Unidos. Escreveu muito e em diversas revistas. Ensinou em numerosas Universidades, entre as quais Berkeley, Princeton, Columbia. Em 1967 foi nomeada professora de filosofia política na New School for Social Research em Nova York, a “filial americana no exilio”, por assim dizer, da Escola de Frankfurt. Morreu em Nova York dia 4 de dezembro de 1975. Sua influência sobre a cultura europeia, assim como sobre a americana, foi e ainda é muito forte. Uma filosofia em defesa da liberdade Sua obra mais conhecida em 1951; trata-se de As origens do totalitarismo. De 1958 é o livro A condição humana. Em 1963 Arendt publica aquele que se tornou seu livro mais conhecido: Eichmann em Jerusalem: Um relato sobre a banalidade do mal. Este é um livro sobre o processo que teve lugar em Jerusalém, e que viu como imputado um dos máximos responsáveis pelo Holocausto. Foi a publicação dos Pentagon Papers - os quarenta e seis volumes da História do processo decisional americano sobre a política no Vietnam - que, segundo Arendt, fez com que "o famoso vazio de credibilidade, que nos acompanhou por seis longos anos, tenha improvisamente se aberto tanto a ponto de se tornar um abismo [...]. O ponto crucial [...] não é apenas que a política da mentira quase nunca haja se voltado contra o inimigo [...], mas também que estava destinada principalmente, senão exclusivamente, ao consumo interno, à propaganda nacional, e tinha em particular a finalidade de enganar o Congresso”. Adversária irredutível dos regimes totalitários, Hannah Arendt foi fustigadoraimplacável das carências e tortuosidades das sociedades democráticas; atenta para captar o novo, mas sem a ele sucumbir, viu com bons olhos as lutas dos estudantes, principalmente pelos direitos civis. Postumamente foi publicado o volume incompleto A vida da mente. Anti-semitismo, imperialismo e totalitarismo As origens do totalitarismo é uma obra que divide- se em três partes: 1) O antissemitismo; 2) O imperialismo; 3) O totalitarismo. Escreve Arendt: “O antissemitismo (não o simples ódio contra os judeus), o imperialismo (não a simples conquista), o totalitarismo (não a simples ditadura) demonstraram, um depois do outro, um mais brutalmente que o outro, que a dignidade humana tem necessidade de nova garantia, que se pode encontrar apenas em um novo princípio político, em nova lei sobre a terra, destinada a valer para toda a humanidade”. Em primeiro lugar, todavia, é preciso compreender; e compreender “significa [...] examinar e carregar conscientemente o fardo que nosso século nos colocou sobre as costas, não negar sua existência, não nos submeter supinamente a seu peso”. Arendt quer compreender como o antissemitismo “tenha podido se tornar o catalisador, primeiro do movimento nazista, depois de uma guerra mundial, e por fim da criação da fábrica da morte”. Fundamental é compreender, além disso, que os regimes totalitários baseiam sua política sobre a ideia de alcançar o fim último, que é “a conquista do mundo”; e tal fim os totalitaristas “jamais o perdem de vista, por mais remoto que possa parecer, e por mais gravemente que suas exigências 'ideais' possam contrastar com a necessidade do momento". Justamente por isso - afirma Arendt – “eles não consideram [...] nenhum país como perpetuamente estrangeiro, mas, ao contrário, todo país como um potencial território seu”. E da “questão judaica” serviram-se os nazistas para seu escopo: “Obrigando-os [os judeus] a deixar o Reich sem passaporte e sem dinheiro, se traduzia na realidade a lenda do hebreu errante; e obrigando-os a assumir um comportamento de hostilidade intransigente contra o Terceiro Reich, os nazistas providenciavam o pretexto para imiscuir-se nos assuntos internos de qualquer país estrangeiro”. Mais em profundidade e mais em particular, Arendt faz ver que os campos de concentração e de extermínio servem para o regime totalitário como laboratórios para a verificação de sua pretensão de domínio absoluto sobre o homem [...]. O domínio total, que visa a organizar os homens em sua infinita pluralidade e diversidade como se todos juntos constituíssem único indivíduo, é possível apenas se cada pessoa for reduzida a imutável identidade de reações, de modo que cada um destes feixes de reações: possa ser trocado com qualquer outro. É assim - afirma Arendt - que o totalitarismo procura fabricar algo que não existe, isto é, um tipo humano semelhante aos animais, cuja única “liberdade” consistiria em “preservar a espécie”. www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 23 E chega-se a esse inferno (propagandeado como o paraíso) tanto com a doutrinação das elites como com o terror dos campos de concentração, que “servem, além de ao extermínio e à degradação dos indivíduos, para realizar o horrendo experimento de eliminar, em condições cientificamente controladas, a própria espontaneidade como expressão do comportamento humano e de transformar o homem em um objeto, em algo que nem sequer os animais são”. A Alemanha de Hitler e a Rússia de Stalin quiseram tornar “supérfluos os homens”. E por trás de tudo isso encontra-se, justamente, a ideologia totalitária: ela exige a punição sem o reato, o desfrutamento sem o proveito e o trabalho sem o produto; é a justificação de uma sociedade que é “um lugar onde quotidianamente se cria a insensatez”. A ação como atividade política por excelência Contra as ideologias que reduzem o homem a objeto, esmagando-o sob as atrocidades das torturas, e contra as ideologias que, como o materialismo histórico, o aniquilam nos abismos do determinismo e do fatalismo, Arendt vê o homem como fonte espontânea de livres iniciativas, como início de ações criativas. Em A condição humana ela escreve: “Com o termo vita activa, proponho designar três atividades humanas fundamentais: a atividade trabalhadora, o operar e o agir”. A atividade trabalhadora “corresponde ao desenvolvimento biológico do corpo humano [...] e assegura não só a sobrevivência individual, mas também a vida da espécie. O operar é a práxis não absorvida pelo ciclo vital e que produz um “mundo artificial” de coisas, “claramente distinto do ambiente natural”. A ação - afirma Arendt - é “a única atividade que põe em relação direta os homens sem a mediação de coisas materiais [e] corresponde à condição humana da pluralidade, ao fato de que mais homens, e não o homem, vivem sobre a terra”. São sempre os homens individuais que agem; a ação e interação: “viver” e “estar entre os homens” eram sinônimos para os romanos - lembra Arendt -, e para eles os sinônimos eram “morrer” e “deixar de estar entre os homens”. A ação significa iniciativa, nascimento ou início de algo de novo, e “uma vez que a ação é a atividade política por excelência, a natalidade, e não a mortalidade, pode ser a categoria central do pensamento político enquanto se distingue do pensamento metafisico”. E é a ação - salienta Arendt - que cria e conserva os organismos políticos, e deste modo ela permite a lembrança, isto é, a história. A ação, além disso, desloca a vida do indivíduo sobre o lado público. Sem dúvida há coisas “que não podem suportar a luz violenta e implacável da presença constante de outros sobre a cena pública” - pensemos no amor: “o amor, diferentemente da amizade, morre, ou melhor, apaga-se no momento em que aparece em público”. Todavia, Arendt insiste sobre o fato de que a verdade não encontra sua sede na profundidade íntima do homem; a verdade é antes um fato público fruto não de introspecção, ou de vida contemplativa, e sim de vita activa, e “como nossa sensibilidade em relação a realidade se funda sobretudo sobre a aparência, e portanto sobre a existência de um domínio público em que as coisas podem emergir da existência latente, também o lusco-fusco que ilumina nossas vidas privadas e íntimas deriva em última análise da luz muito mais forte do domínio público”. 5. JEAN PAUL SARTRE Testemunha atenta e arguta de nosso tempo, Jean-Paul Sartre, nascido em Paris em 1905, realizou seus estudos na Escola Normal Superior e ensinou filosofia nos liceus de Le Havre e Paris até o início da última guerra, exceto em um período que passou em Berlim (1933-1934), onde estudou a fenomenologia e escreveu A transcendência do Ego. Convocado para o serviço militar, foi aprisionado pelos alemães e levado para a Alemanha. Voltando logo depois para a França, fundou o grupo de resistência intelectual “Socialismo e Liberdade”, juntamente com Merleau-Ponty. No imediato pós-guerra, seu pensamento se impõe ao público mundial durante cerca de duas décadas (graças sobretudo a seu “teatro de situações”), influindo amplamente na sociedade e nos costumes. Nas últimas duas décadas de sua vida, Sartre não teve descanso: as viagens políticas (como a viagem a Cuba, onde encontrou Fidel Castro e Che Guevara, e a viagem a Moscou, onde foi recebido por Kruschev) não lhe impediram o frenético trabalho de filósofo, romancista, ensaísta, dramaturgo, conferencista e roteirista cinematográfico. Sartre morreu em 1980. Sua obra é bastante extensa e variada: 1 - Romances a) A náusea (1938); b) A idade da razão (1945); c) O adiamento (1945); d) A morte na alma (1949); www.filosofiatotal.com.brProf. Anderson 24 2 - Escritos para o teatro a) As moscas (1943); b) A portas fechadas (1945); c) A prostituta respeitosa (1946); d) Mãos sujas (1948); e) O diabo e o bom Deus (1951); f) Nekrassov (1956); g) Os sequestrados de Altona (1960). 3 - Panfletos políticos a) O antissemitismo (1946); b) Os comunistas e a paz, (1952); 4 - Obras filosóficas a) O ser e o nada. Ensaio de uma ontologia fenomenológica, (1943); b) A transcendência do Ego (1936); c) A imaginação (1936); d) Ensaio de uma teoria das emoções (1939); e) O imaginário. Psicologia fenomenológica da imaginação (1940). f) O existencialismo é um humanismo (1946); g) Crítica da razão dialética (1960). A náusea diante da gratuidade das coisas Sartre iniciou sua atividade de pensador com análises de psicologia fenomenológica relativas ao eu, a imaginação e as emoções. Retoma de Husserl a ideia de intencionalidade da consciência, censurando-o, porém, por ter caído no idealismo e no solipsismo com o seu sujeito transcendental. Em A transcendência do Ego, Sartre afirma que “o eu não é um habitante da consciência”, pois ele “não está na consciência, mas fora dela, no mundo: é um ente do mundo como o eu de outro”. O homem, diz Sartre, é o ser cujo aparecimento faz com que exista um mundo. O mundo não é a consciência. A consciência é abertura para o mundo; a consciência está encarnada na densa realidade do universo; o mundo pode ser visto como um conjunto de utensílios. Mas o mundo não é a existência. E quando o homem não tem mais objetivos, o mundo fica privado de sentido. Essa é a tese expressa por Sartre em A náusea, na qual o autor opõe o absurdo aos valores positivos da filosofia clássica. O herói do romance é Antoine Roquentin, que, refletindo sobre as razões de sua própria existência e do mundo que o circunda, tem a experiência reveladora da náusea. A náusea é o sentimento que nos invade quando descobrimos a contingência essencial e o absurdo do real. E Roquentin põe essa descoberta nas seguintes palavras: “O essencial é a contingência. Quero dizer que, por definição, a existência não é a necessidade. Existir é estar ali, simplesmente; os seres aparecem, se deixam encontrar, mas nunca se pode deduzi-los [...]. Não há nenhum ser necessário que possa explicar a existência: a contingência não é falsa fisionomia, aparência que pode se dissipar; é o absoluto e, por conseguinte, a perfeita gratuidade”. É a essa tese que Sartre queria chegar: “Tudo é gratuito: este jardim, esta cidade, eu mesmo. E quando acontece de nos darmos conta disso, nosso estômago se revira e tudo se põe a flutuar [. . .] eis a náusea”. A vida de Roquentin torna-se privada de sentido; nenhum objetivo consegue mais orientá-la; ele existe como uma coisa, como todas as coisas que emergem, na experiência da náusea, em sua gratuidade e em seu absurdo: um sujeito sem sentido cancela de repente o sentido de todas as coisas e passam a faltar instruções para seu uso. A náusea de Sartre não está longe da angústia de Heidegger. O “em si”, e o “para-si”, o “ser” e o “nada” Se a experiência da náusea revela a gratuidade das coisas e do homem reduzido a coisa e submerso nas coisas, a analise desenvolvida em O ser e o nada revela, antes de mais nada, que a consciência é sempre Onisciência de algo, de algo que não é consciência. Em outras palavras, o exame da experiência mostra-nos que desde o início o ser-em-si, isto é, os objetos que transcendem a consciência, não são a consciência. Eu tenho consciência dos objetos do mundo, mas nenhum desses objetos é minha consciência: a consciência “é um nada de ser e, ao mesmo tempo, um poder nulificante, o nada”. O mundo é o “em-si”, é o dado “misturado de si mesmo”, “opaco a si mesmo porque cheio de si mesmo”, absolutamente contingente e gratuito (como precisamente revela a náusea). Diante do “em si” está a consciência, que Sartre denomina o “para-si”. A consciência está no mundo, no “ser-em-si”, mas é radicalmente diferente dele, não está ligada a ele. A consciência, que vem a ser a existência ou o homem, é, portanto, absolutamente livre. O “em si” é “o ser que é o que é”; a consciência não é um objeto. O ser é pleno e completo; a consciência é vazia de ser, é possibilidade - e a possibilidade não é realidade. A consciência é liberdade. Escreve Sartre em O Ser e o nada: “A liberdade não é um ser; ela é o ser do homem, isto é, o seu nada de ser”. A liberdade é constitutiva da consciência: “Eu estou condenado a existir para sempre além dos moventes e dos motivos de meu ato: estou condenado a ser livre”. Uma vez lançado à vida, o homem é responsável por tudo o que faz do projeto fundamental, isto é, da sua vida. E ninguém tem desculpas: se falirmos, falimos porque escolhemos a falência. Procurar desculpas significa estar de mé-fé: a má-fé apresenta o desejado como necessidade inevitável. www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 25 O homem, portanto, se escolhe; sua liberdade não é condicionada; e ele pode mudar seu projeto fundamental a qualquer momento. E assim como a náusea constitui a experiência metafísica que revela a gratuidade e o absurdo das coisas, da mesma forma a angústia é a experiência metafísica do nada, isto é, da liberdade incondicionada. Com efeito, o homem, e só o homem, é “o ser para o qual todos os valores existem”. Todavia, estabelecido isso, não é preciso muito para ver que, então, “todas as atividades humanas são equivalentes [...] e que todas estão destinadas em principio à falência. No fundo, é a mesma coisa embriagar-se na solidão ou conduzir os povos”. As coisas do mundo são gratuitas, e um valor não é superior a outro. As coisas são desprovidas de sentido e fundamento, e as ações dos homens são desprovidas de valor. Em suma, a vida é aventura absurda, onde o homem se projeta continuamente além de si mesmo, como que para poder tornar-se Deus. Escreve Sartre: “O homem é o ser que projeta ser Deus”, mas, na realidade, ele se mostra como aquilo que é, “uma paixão inútil”. O “ser-para-os-outros” O homem ou “ser-para-si” é também “ser-para- outros”. O outro não tem necessidade de ser inferido analogicamente a partir de mim mesmo. O outro revela- se como outro naquelas experiências em que ele invade o campo de minha subjetividade e, de sujeito, me transforma em objeto de seu mundo. Em suma, o outro não é aquele que é visto por mim, mas muito mais aquele que me vê, aquele que se torna presente a mim, para além de qualquer dúvida, mantendo-me sob a opressão de seu olhar. Sartre analisa com habilidade magistral aquelas experiências típicas do olhar-alheio, que geralmente são as experiências da inferioridade, como a vergonha, o pudor, a timidez. Quando outro entra subitamente no mundo de minha consciência, minha experiência se modifica: não tem mais seu centro em mim, e vejo-me como elemento de um projeto que não é meu e não me pertence. O olhar de outro me fixa e me paralisa, ao passo que, quando o outro estava ausente, eu era livre, isto é, era sujeito e não objeto. Quando aparece o outro, portanto, nasce o conflito: “o conflito é o sentido original do ser-para-outros”. Diz ainda Sartre: “Minha queda original é a existência do outro”. E também faz uma das personagens de A portas fechadas pronunciar a famosa expressão: “o inferno são os outros”. O existencialismo é um humanismo Nos anos seguintes a O ser e o nada, Sartre atenuou sempre mais o tom desesperado de sua filosofia inicial, como veremos a seguir. A possibilidade de um sentido menos negativo da consciência humana já aparece no ensaio O existencialismo é um humanismo (1946). Nesse escrito, Sartre também identificao homem com sua liberdade; o homem não está de modo algum sujeito ao determinismo; sua vida não se assemelha à da planta, cujo futuro já está “escrito” na semente; o homem é o demiurgo de seu futuro. Em suma, o homem não é uma essência fixa: ele é muito mais o que projeta ser. Nele, a existência precede a essência. Contudo, “se, na realidade, a existência precede a essência, nunca será possível explicá-la em referência a uma natureza humana dada e não modificável; em outras palavras, não há determinismo; o homem é livre, o homem é liberdade”. Por outro lado, “se [...] Deus não existe, nós não encontramos diante de nós valores e ordens em condições de legitimar nossa conduta. Assim, nem atrás nem diante de nós, em um domínio luminoso de valores, temos justificações ou desculpas. Estamos sós, sem desculpas. É isso o que eu expresso com a afirmação de que o homem está condenado a ser livre. Condenado porque não se criou por si mesmo e, no entanto, livre, porque, uma vez lançado ao mundo, é responsável por tudo aquilo que faz”. A liberdade defendida por Sartre é uma liberdade absoluta, e a responsabilidade que ele, consequentemente, atribui ao homem, é total. Estas palavras resumem bem a convicção de fundo de Sartre: “O homem, sem nenhum socorro e apoio, está condenado a cada instante a inventar o homem [...]. O homem inventa o homem”. A liberdade é absoluta e a responsabilidade é total. Mas já estamos em 1946: Sartre tem atrás de si uma guerra terrível e a experiência da Resistência; mas, diante dele, está a grande questão da reconstrução. Todas essas coisas não passam em vão, deixando um trago em seu pensamento, onde se delineia uma moral social com base na relação entre a liberdade de cada um e a liberdade dos outros: “eu sou obrigado - escreve ele - a querer ao mesmo tempo minha liberdade e a liberdade dos outros, e não posso tomar minha liberdade como fim se não tomar igualmente como fim a liberdade dos outros”. Crítica da razão dialética Minha liberdade, porém, não depende somente da liberdade dos outros. Ela também é condicionada por situações precisas, com as quais os projetos fundamentais dos homens têm de se defrontar. É com base nisso que Sartre enfrenta a questão das relações entre seu existencialismo e o marxismo, como mostram vários ensaios escritos para a revista “Tempos modernos” (revista dirigida pelo próprio Sartre) e, sobretudo, a obra Crítica da razão dialética (da qual só apareceu a primeira parte, Teoria dos conjuntos práticos). www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 26 Na realidade, afirma Sartre, “dizer de um homem o que ele é significa dizer o que ele pode, e reciprocamente: as condições materiais de sua existência circunscrevem o campo de suas possibilidades [...], de modo que o campo do possível é o objetivo em direção ao qual o agente ultrapassa sua situação objetiva. E esse campo, por sua vez, depende estritamente da realidade social e histórica”. Com base nisso, podemos compreender por que Sartre afirma firmemente aderir sem reservas à teoria do materialismo histórico, para a qual, como diz Marx, “o modo de produção da vida material domina em geral o desenvolvimento da vida social, política e intelectual”. Entretanto, se Sartre adere ao materialismo histórico, ele rejeita, porém, o materialismo dialético. Em suma, para Sartre, o marxismo não é de modo nenhum “o materialismo dialético, se com este se entende a ilusão metafísica de descobrir uma dialética da natureza. Essa dialética pode efetivamente existir, mas é preciso reconhecer que não temos a mínima prova disso”. Em suma, Sartre não aceita as três leis da dialética propostas por Engels como regras que guiariam o desenvolvimento da natureza, da história e do pensamento. A admissão dessas leis gerais do devir implicaria um otimismo ingênuo que proclamaria um finalismo de tipo hegeliano e, o que é ainda mais inadmissível, reduziria o homem a simples instrumento passivo da grande máquina dialética, incapaz de se subtrair ao mais rígido determinismo. A doutrina da dialética é um dogma - e o dogma não hesita em se opor aos fatos. É essa a razão por que, diante de toda experiência possível, o marxista não muda de opinião. O marxista transformou o marxismo em “saber eterno” e, desse modo, “a busca totalizadora deu lugar a uma escolástica da totalidade”. O princípio heurístico “procurai o todo através das partes” transformou-se em prática terrorista: “liquidar a particularidade”. Com base nessas premissas, podemos compreender, diz Sartre, por que o marxismo “não sabe mais nada: seus conceitos são impostos; seu fim não é mais o de adquirir conhecimentos, mas de se constituir a priori como saber absoluto”. E como o marxismo, com a teoria dialética, dissolveu os homens “em um banho de Ácido sulfúrico”, “o existencialismo pôde renascer e se manter porque afirmava a realidade dos homens, como Kierkegaard afirmava sua própria realidade contra Hegel”. 6. MAURICE MARLEAU-PONTY: ENTRE EXISTENCIALISMO E FENOMENOLOGIA Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), ensinou filosofia em escolas secundárias. Militante da Resistência durante a ocupação nazista, depois da guerra tornou-se professor na Sorbonne, posteriormente na Escola Normal e, por fim, a partir de 1952, tornou-se titular de filosofia no Callége de France. Desde a fundação, participou do comitê de direção da revista “Tempos modernos”, embora as suas relações com Sartre logo se tenham transformado em polêmica apaixonada. As principais obras de Merleau-Ponty são: A estrutura do comportamento (1942) e A fenomenologia da percepção (1945). Além disso, também são notáveis suas coletâneas de ensaios: Humanismo e terror (1947), Senso e contra-senso (1948), As aventuras da dialética (1955) e Sinais (1960). A relação “consciência” e “corpo”, e “homem” e “mundo” Merleau-Panty é um existencialista sobre o qual são muito acentuadas as influências tanto da fenomenologia como da psicologia científica e da biologia. Também para Merleau-Ponty a existência é ser- no-mundo, isto é, “certa maneira de enfrentar o mundo”. Mas esse ser-no-mundo é anterior a contraposição entre alma e corpo, entre o psíquico e o físico. A interpretação causal das relações entre alma e corpo é rejeitada por Merleau-Ponty. Ele vê nessa relação muito mais uma dualidade dialética de comportamentos. Ou melhor: alma e corpo indicam níveis de comportamento do homem, dotados de significado diverso. Escreve Merleau-Ponty em A estrutura do comportamento: “Nem o psíquico em relação ao vital, nem o espiritual em relação ao psíquico podem ser considerados como substâncias ou mundos novos”. Na realidade, escreve ele, “trata-se de 'oposição funcional' www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 27 que não pode ser transformada em 'oposição substancial' “. Na representação das relações entre alma e corpo, portanto, Merleau-Ponty não aceita “nenhum modelo materialista, mas também nenhum modelo espiritualista, como o contido na metáfora cartesiana do artesão e de seu utensilio. Não se pode comparar o órgão a um instrumento, como se ele existisse e pudesse ser pensado à parte de seu funcionamento integral, nem se pode comparar o espírito a um artesão que o use: isso seria recair em uma relação puramente extrínseca [...]. O espírito não utiliza o corpo, mas se faz por meio dele”. Compreende-se muito bem, por conseguinte, a centralidade do tema da percepção. Segundo nosso filósofo, todas as ciências inserem-se em um mundo completo e “real”, sem se dar conta de que a experiência perceptiva tem valor constitutivo em relaçãoa este mundo. Assim, encontramo-nos diante de um campo de percepções vividas que são anteriores ao número, à medida, ao espaço, à causalidade e que, porém, não se apresenta como visão prospectiva de objetos dotados de propriedades estáveis, de mundo e de espaço objetivos. O problema da percepção consiste em ver como é que, através desse campo, chega-se ao mundo intersubjetivo, do qual, pouco a pouco, a ciência precisa as determinações. Em tal programa de análises, torna-se central o conceito de corpo, já que “meu corpo (...) é meu ponto de vista sobre o mundo’, “o corpo é nosso meio geral de ter um mundo”. A percepção é a inserção do corpo no mundo. E se, por um lado, a percepção tem o caráter da “totalidade”, por outro lado ela permanece sempre “aberta”, remetendo sempre a um além de sua manifestação singular, prometendo-nos outros ângulos de visão e, com isso, “algo mais a ver”. Portanto, o significado das coisas no mundo e do próprio mundo permanece aberto ou, como diz Merleau-Ponty, ambíguo. E essa ambiguidade ou abertura é constitutiva da existência. A liberdade “condicionada” Se é errado conceber a relação entre a consciência e o corpo como relação causal entre duas substâncias, também é errado, portanto, ter uma concepção análoga sobre as relações entre o sujeito e o mundo. Mas, para Merleau-Ponty, também é errado conceber uma relação de causalidade entre o homem e a sociedade. Por isso, se Sartre está fora de rumo com sua ideia da liberdade absoluta, também é errada a teoria marxista da primazia causal do fato econômico sobre a constituição do homem e da sociedade. Na opinião de Merleau-Ponty, o homem é livre e não existe estrutura, como a econômica, que possa anular sua liberdade constitutiva. Mas a liberdade do homem é liberdade condicionada: condicionada pelo mundo em que vive e pelo passado que viveu. Assim, “jamais existe determinismo e jamais existe escolha absoluta; eu jamais sou coisa e jamais sou consciência nua”. A realidade é que nós escolhemos nosso mundo e o mundo nos escolhe. Por isso, é desviante o dilema que afirma que “nossa liberdade [...] ou é total ou não existe”. A liberdade existe, não porque algo me solicite, mas, ao contrário, porque de repente estou fora de mim e aberto para o mundo. Ou seja, a liberdade existe, mas é condicionada, porque “somos uma estrutura psicológica e histórica”, porque “estamos misturados ao mundo e aos outros em confusão inextricável". Nossa liberdade, portanto, não destrói a situação, mas nela se insere. E é por essa razão que as situações permanecem abertas, já que a inserção do homem nelas poderá configurá-las de um ou de outro modo, obviamente enquanto as situações o permitirem. E nesta dimensão a liberdade condicionada do homem assume um significado construtivo positivo. www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 28 FILOSOFIA ANALÍTICA 1. BERTRAND RUSSEL Bertrand Arthur William Russell (1872-1970) nasceu em Ravenscroft, nas proximidades de Tintern, em Monmouthshire. Depois da morte precoce de seus pais, foi acolhido na casa de sua avó, “Lady John”, escocesa e presbiteriana, que defendeu os direitos dos irlandeses e atacou a política imperialista da Grã- Bretanha na África. Russell recebeu sua educação inicial de preceptores particulares agnósticos, aprendeu perfeitamente o francês e o alemão e, na biblioteca de seu avô, adquiriu gosto pela história e descobriu na geometria de Euclides as alegrias que podem ser dadas pelo rigor e a clareza da matemática. Aos dezoito anos, porém, ingressou como aluno no Trinity College de Cambridge, que lhe revelou “um mundo novo”. Mais tarde, sempre no Trinity, teve como discípulo L. Wittgenstein, o inspirador do neopositivismo do Círculo de Viena e mestre reconhecido do movimento analítico-linguístico hoje conhecido como Cambridge-Oxford-Philosophy. Falando do encontro com Wittgenstein, Russell disse que representou para ele “uma das aventuras intelectuais mais excitantes de minha vida”. Posteriormente, Russell e Wittgenstein afastaram-se cada vez mais, até romperem completamente a amizade. No Trinity, Russell foi hegeliano. Mas em 1898, com a ajuda de Moore, libertou-se do idealismo. Escreve ele: “Em Cambridge, li Kant e Hegel, bem como a Lógica de Bradley, que me influenciou profundamente. Durante alguns anos, fui discípulo de Bradley, mas, em torno de 1898, mudei meus pontos de vista, em grande parte por causa das argumentações de G. E. Moore [...]. Ele assumiu a guia da rebelião, e eu o segui com a sensação de libertação. Bradley sustentava que qualquer coisa em que o senso comum crê é mera aparência. Nós passamos ao extremo oposto: passamos a pensar que é real qualquer coisa que o senso comum, não influenciado pela filosofia e pela religião, supõe que seja real. Com a sensação de escapar de uma prisão, nos permitimos pensar que a grama é verde, que o sol e as estrelas existiriam ainda que ninguém tivesse consciência de sua existência. E foi assim que o mundo, que até então fora sutil e lógico, de repente tornou-se rico, variado e só1ido”. O atomismo lógico Foi desse modo, portanto, que Russell se libertou das cadeias do idealismo e voltou a trilha do tradicional empirismo da filosofia inglesa. E passaria a contribuir para essa concepção empírica e realista da filosofia com toda uma longa série de livros relativos a vitais e difíceis questões de gnosiologia e epistemologia: 0s problemas da filosofia (1912), Nosso conhecimento do mundo externo (1914), Misticismo e lógica (1918), A análise da mente (1921), A análise da matéria (1927) e 0 conhecimento humano: seu objetivo e seus limites (1948). Embora em um desenvolvimento que viu mudados alguns de seus pontos de vista, Russell sempre sustentou que a filosofia não pode ser fecunda se estiver afastada da ciência. E o Russell da década de 1960 via sua própria concepção do mundo como “uma concepção resultante da síntese de quatro ciências diferentes, ou seja, a física, a fisiologia, a psicologia e a lógica matemática”. Russell fixa em 1899-1900 a data fundamental de seu trabalho filosófico: foi nessa época que ele adotou “a filosofia do atomismo lógico e a técnica de Peano na lógica matemática [...]. A reviravolta desses anos representou urna revolução, ao passo que as mudanças posteriores tiveram o caráter de uma evolução”. O atomismo lógico pretendia ser urna filosofia emergente da simbiose entre um empirismo radical e urna lógica perspicaz. A lógica oferece as formas-padrão do raciocínio correto e o empirismo oferece premissas, que são proposições atômicas ou proposições complexas, construídas a partir das primeiras. A proposição atômica descreve um fato, afirma que uma coisa tem certa qualidade ou que determinadas coisas em certas relações. Um fato atômico, por seu turno, é o que torna verdadeira ou falsa urna proposição atômica. “Sócrates é ateniense” é uma proposição atômica, que expressa o fato de Sócrates ser cidadão ateniense. “Sócrates é marido de Xantipa” é outra proposição atômica. “Sócrates é ateniense e marido de Xantipa” é proposição complexa ou molecular. Veremos essas ideias retornarem no Tractatus logico-philosophicus, de L. Wittgenstein. Em 1903 publicou Os princípios da matemática, onde se propõe “a mostrar, em primeiro lugar, que toda a matemática procede da lógica simbólica, depois de www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 29 descobrir, tanto quanto possível, quais são os princípios da própria lógica simbólica”. Pois bem, enquantoilustrava o primeiro objetivo com o livro citado, Russell pretendeu desenvolver o segundo com os Principia mathematica, três grandes volumes elaborados em colaboração com A. N. Whitehead, publicados respectivamente em 1910,1912 e 1913. Juntamente com o alemão Gottlob Frege, ele considera a) que a matemática pode ser reduzida a um ramo da lógica; b) que “a matemática pura é a classe de todas as proposições da forma 'p implica q' ”; c) que não existem conceitos típicos da matemática que não possam ser reduzidos a conceitos lógicos (de lógica das classes) e d) que, com maior razão, não existem procedimentos de cálculo e de derivação dentro da matemática que não possam ser resumidos em derivações de caráter puramente formal. A teoria das descrições Próximo a Frege no programa logicista, Russell, em sua reação ao idealismo, também está de acordo com Frege ao sustentar o realismo platônico para os objetos da matemática: os números, as classes, as relações etc., tem existência independente do sujeito e da experiência. Uma relação como “Se A = B e B = C, então A = C” existe independentemente do sujeito que a pensa: existe e é sempre verdadeira. Entretanto, há uma questão importante sobre a qual, naquela época, Russell se distanciou de Frege. Trata-se da sua Teoria das descrições (1905). Frege fizera notar que expressões como “a estrela da manhã” e “a estrela vespertina”, embora indicando o mesmo planeta Vênus, dizem coisas diferentes, apresentando sentidos diferentes. Consequentemente, ele distinguira entre sentido e significado ou, em termos clássicos, entre conotação e denotação ou intensão e extensão. As duas expressões têm o mesmo significado ou a mesma denotação, ou seja, indicam o mesmo objeto, ao passo que o seu sentido ou conotação, isto é, o que dizem desse objeto, é diferente. Ora, Alexius Meinong também refletira sobre esses problemas e sobre o status de certas frases como “a montanha de ouro não existe” ou “o círculo quadrado não existe”. Trata-se de proposições verdadeiras que, em alguns casos, podem também ser úteis. Mas eis o problema: como pode uma proposição ser verdadeira e ter significado se ela se refere ao nada? Pensou-se então que deveria haver algum sentido em que existam tanto as montanhas de ouro como os círculos quadrados, isto é, os objetos indicados pelas expressões denotativas. Em suma, ainda que não existam realmente, as montanhas de ouro, as quimeras e os círculos quadrados devem de alguma forma ter algum tipo de existência se as expressões que os denotam são parte de enunciados que tem significado e são verdadeiros, como é o caso da afirmação “o círculo quadrado não existe”. Russell se rebelou contra o reino das sombras de Meinong. E, para evitar os becos sem saída e os enigmas a que tais expressões denotativas levam, propôs uma análise que visava a fazer desaparecer tais expressões, de modo que, ao invés de dizer “a montanha de ouro não existe”, se possa dizer que “não há nenhuma entidade que, ao mesmo tempo, seja de ouro e seja montanha”. Tal análise elimina a locução “uma montanha de ouro” e consequentemente elimina também qualquer razão de crer que o objeto por ela indicado tenha algum tipo de existência. A frase “o círculo quadrado não existe” torna- se "jamais é verdadeiro que x seja circular, y seja quadrado e não seja sempre falso que x e y se identifiquem”. Como se vê, nas reconstruções de Russell desaparecem as expressões denotativas, e desaparecem as formas do verbo “existir” e do verbo “ser” em função não-copulativa. Exposta em 1905, essa teoria foi depois desenvolvida nos Principia mathematica onde Russell distingue entre descrições indefinidas ou ambíguas (“um homem”, “alguém que caminha” etc.) e descrições definidas (“o primeiro rei de Roman”, “o assim e assado” etc.). Por esse caminho, Russell pensava eliminar os paradoxos metafísicos da “existência” e os paradoxos dos não-existentes. Em suma, a teoria das descrições de Russell afirma essencialmente que as expressões denotativas são incompletas, ou seja, são incapazes de ter significado por si sós e se distinguem claramente dos nomes próprios (que, tomados isoladamente, têm significado). O embate contra o segundo Witgestein e a filosofia analítica Atento analista da linguagem, durante toda a sua vida Russell submeteu ao “microscópio da lógica toda uma série de questões filosoficamente relevantes e amiúde difíceis e complicadas. Mas o fez preocupado sempre com a relação que a linguagem deve ter com os fatos, se deve haver conhecimento válido. Naturalmente, Russell tem consciência dos limites do empirismo. Com efeito, o empirismo pode ser definido com a afirmação de que “todo conhecimento sintético baseia-se na experiência”. Mas esse princípio não se baseia na experiência. Consequentemente, o empirismo é uma teoria que mostra suas inadequações. E, no entanto, diz Russell, entre as teorias disponíveis, o empirismo é a teoria melhor. Contrário www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 30 ao pragmatismo, Russell também era avesso aqueles neopositivistas (Neurath, Hempel e outros) que pareciam ter esquecido que o objetivo das palavras “é o de se ocupar de coisas diferentes das palavras”. Mas Russell reservou seus ataques mais ferozes ao “segundo” Wittgenstein e a filosofia da linguagem. Como se verá nas páginas dedicadas tanto ao “segundo” Wittgenstein como à filosofia analítica, as acusações de Russell caem substancialmente fora do alvo, já que a filosofia analítica preocupa-se com as palavras, precisamente porque a filosofia analítica está atenta para uma relação não enevoada ou ilusória entre as palavras e as coisas, ou melhor, entre as palavras e a vida. Sobre o movimento analítico em seu conjunto, disse Russell: “Pelo que entendi, a doutrina consiste em sustentar que a linguagem da vida cotidiana, com as palavras usadas em seu significado comum, basta para a filosofia, pois esta não teria necessidade de termos técnicos ou de mudanças de significado nos termos comuns. Não consigo absolutamente aceitar essa opinião. Sou contrário a ela: a) porque é insincera; b) porque é suscetível de desculpar a ignorância da matemática, da física e da neurologia naqueles que tiveram somente uma educação clássica; c) porque é apresentada por alguns com o tom de retidão cerimoniosa, como se a oposição a ela fosse pecado contra a democracia; d) porque torna esmiuçada e superficial a filosofia; e) porque torna quase inevitável a perpetuação entre os filósofos daquela atitude confusa que eles retomaram do senso comum”. Em suma, Russell acredita que os filósofos da linguagem estão praticando a mística do uso comum. E rejeita o fato de que os oxfordianos consideram a linguagem comum como o banco de prova de qualquer outra linguagem. Claro, na linguagem comum não queremos de modo algum “ficar discorrendo sobre o sol que surge e que cai. Mas os astrônomos acham melhor uma linguagem diferente, e eu sustento que uma linguagem diferente também é preferível m filosofia”. A outra acusação que Russell faz a Oxford é que a filosofia que nela se faz “parece urna disciplina desprovida de relevância e de interesse. Discutir ao infinito o que os tolos entendem quando dizem tolices pode ser divertido, mas é muito difícil que seja importante”. São duas, portanto, as acusações que Russell levanta contra a filosofia analítica: por um lado, ela praticaria o culto ao uso comum da linguagem, a despeito de toda linguagem técnica; por outro lado, ao invés de buscar o sentido das coisas e da realidade, ela se ocuparia de modo estéril com o sentido das palavras. A moral e o cristianismo Persuadido de que os valores não podem ser deduzidos logicamente do conhecimento, Russellfoi tenaz defensor da liberdade do indivíduo contra toda ditadura e contra os abusos do poder. Sensível às injustiças sociais, Russell também foi convicto defensor do pacifismo. Com suas dilacerações e seus sofrimentos, amiúde inúteis, a vida irredutível e obstinada levou Russell do céu da matemática a terra dos homens sofredores. Adversário das injustiças do capitalismo, Russell não foi menos duro em relação aos métodos do bolchevismo. Em Teoria e pratica do bolchevismo (1920), podemos ler: “O sectarismo e a crueldade mongólica de Lênin (com quem Russell manteve longa conversa em 1920) gelaram-me o sangue nas veias”. Em 1952, Russell pediu ao governo norte-americano que fosse libertado Morton Sobell (acusado por Rosenberg em 1951), que fora condenado a trinta anos de prisão por espionagem. Em 1954, apoiado por Einstein, promoveu uma campanha contra os armamentos atômicos. Durante a crise de Cuba, escreveu a Kennedy e a Kruschev duas cartas memoráveis. Alguns meses mais tarde, escreveu ao Izvestia para combater a hostilidade russa em relação aos judeus. Pacifista durante a Primeira Guerra Mundial, colocou-se do lado dos aliados na Segunda Guerra. Horrorizado com os crimes nazistas, criou posteriormente a “Fundação Atlântica da Paz” para despertar a consciência das massas contra a guerra dos Estados Unidos no Vietnã, e inspirou o “Tribunal Russell” para desmascarar os crimes de guerra contra o Vietnã. Pacifista coerente e desmistificador corajoso, Russell pagou pessoalmente por seus ideais. Foi processado várias vezes, esteve preso, enfrentou a impopularidade, foi-lhe tirada a cátedra de filosofia no City College de Nova Iorque. Russell defendeu o amor livre. Casou-se quatro vezes e, evidentemente, divorciou-se três. Em 1927, juntamente com a segunda mulher, Dora Winefred Black, chegou a fundar uma escola baseada em princípios educativos “revolucionários”: nela, rapazes e moças liam aquilo que quisessem, nunca eram punidos, tomavam banho juntos, e corriam nus pelo parque. A escola faliu. No fundo, para Russell, somente as afirmações tautológicas da matemática e as afirmações sintéticas das ciências empíricas têm sentido. E com base nesses fundamentos, é óbvio que caem por terra toda fé, toda visão metafísica do mundo e toda religião. Como todas as outras religiões, ele considerou o cristianismo do ponto de vista teórico, como um conjunto de contra- sensos e, do ponto de vista ético, como implicando www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 31 moral desumana e obscurantista. A respeito desse ponto, porém, surge a forte suspeita de que Russell não tenha querido reconhecer outra interpretação histórica do cristianismo diferente da visão imperante na Inglaterra, no cinzento período da época vitoriana. Russell dedicou sua vida a um mundo novo, no qual, como fazia questão de dizer, “o espirito criativo é vivaz, e em que a vida é uma aventura cheia de alegria e de esperança [...], um mundo no qual o afeto tenha livre trânsito, e onde a crueldade e a inveja tenham sido afugentadas pela felicidade e pelo desenvolvimento livre e solto de todos aqueles instintos que constroem a vida e a enchem de delicias intelectuais”. Russell também escreveu uma brilhante História da filosofia ocidental (4 vols., 1934), onde tenta mostrar que “Os filósofos são o resultado de seu meio social”. 2. LUDWIG WITTGESTEIN Ludwig Wittgenstein (1889-1951) nasceu em Viena. Encaminhado pelo pai (Karl Wittgenstein, fundador da indústria do aço no império dos Hasburgos) foi estudar engenharia. Em 1911 foi para Cambridge para estudar os fundamentos da matemática, sob a guia de Bertrand Russel. Em 1930 tornou-se professor no Trinity College, iniciando sua atividade de ensino superior. Em 1939, sucedeu a G. E. Moore na cátedra de filosofia. As teses fundamentais O Tractatus logico-philosophicus saiu em 1921, em alemão e foi publicado em inglês em 1922, acompanhado do texto alemão, com uma introdução de Bertrand Russell. As teses fundamentais do Tractatus são as seguintes: “O mundo é tudo o que acontece”. “O que acontece, o fato, é a existência dos fatos atômicos”. “A representação lógica dos fatos é o pensamento”. “O pensamento é a proposição exata”. “A proposição é uma função de verdade das proposições elementares”. “A forma geral da função de verdade é [r, x, N(x)]: essa é a fórmula geral da proposição”. “Aquilo de que não se pode falar, deve-se calar”. Em uma primeira consideração, encontramos no Tractatus uma ontologia: “O mundo divide-se em fatos”. Mas o próprio fato é divisível: “Aquilo que acontece, o fato, é a existência de fatos atômicos”. E os fatos atômicos, por seu turno, são constituídos por objetos simples: estes são substância do mundo. “O fato atômico é uma combinação de objetos (entidades, coisas)”. “O objeto é simples”. “Os objetos constituem a substância do mundo. Por isso não podem ser compostos”. “O fixo, o consistente e o objeto são uma só coisa”. “O objeto é o fixo, o consistente; a configuração é o mutável, o instável". Realidade e linguagem À teoria da realidade corresponde a teoria da linguagem. Segundo o Wittgenstein do Tractatus (ou, como se diz, o “primeiro” Wittgenstein), a linguagem é uma representação projetiva da realidade. “Nós fazemos representações dos fatos”. “A representação é um modelo da realidade”. E “o que a representação deve ter em comum com a realidade para poder representá-la – exata ou falsamente -, segundo seu próprio modo, é a forma de representação”. Sem dúvida, diz Wittgenstein, “à primeira vista não parece que a proposição - assim como, por exemplo, a que está estampada no papel - seja representação da realidade de que trata. Mas a notação musical também não parece à primeira vista, representação da música, assim como nossa escritura fonética (ou letras) também não parece uma representação de nossa linguagem falada. E, no entanto, esses símbolos se revelam, também no sentido comum do termo, como representações daquilo que representam”. “O disco fonográfico, o pensamento musical, a notação, as ondas sonoras, estão todos, entre si, naquela relação interior representativa que se estabelece entre língua e mundo. O que é comum a todas essas coisas é a estrutura lógica (como, na fábula, os dois jovens, seus dois cavalos e seus lírios, que são todos, em certo sentido, uma só coisa)”. Por conseguinte, o pensamento ou proposição representa ou espelha projetivamente a realidade. E a cada elemento constitutivo do real corresponde outro elemento no pensamento. A realidade consta de fatos que se resumem em fatos atômicos, compostos por seu turno de objetos simples. Analogamente, a linguagem é formada de proposições complexas (moleculares), que podem ser divididas em proposições simples ou atômicas (elementares), não ulteriormente divisíveis em outras proposições. www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 32 Essas proposições elementares constituem o correspondente dos fatos atômicos. E são combinações de nomes, correspondentes aos objetos: “O nome significa o objeto. O objeto é seu significado”. Para exemplificar, “Sócrates é ateniense” é uma proposição atômica, que descreve o fato atômico de que Sócrates é ateniense; já “Sócrates é ateniense e mestre de Platão” é proposição molecular, que reflete o fato molecular de que Sócrates é ateniense e mestre de Platão. A proposição atômica é a menor entidade linguística da qual se pode proclamar o verdadeiro ou o falso. O fato atômico é o que torna verdadeira ou falsa uma proposição atômica. O fato molecular é uma combinaçãodas próprias massas. Adorno diverge frontalmente dessa interpretação e explica que a indústria cultural é um sistema político e econômico que tem por finalidade produzir bens de cultura como filmes, livros, música popular, programas de TV, entre outros, como mercadoria e como estratégia de dominação social. Ao aspirar à integração vertical de seus consumidores, não apenas adapta seus produtos ao consumo das massas, mas, em larga medida, determina o próprio consumo. Quer dizer, as pessoas pensam estar consumindo o que querem quando na verdade estão consumindo o que o sistema quer que eles consumam. Interessada nos homens apenas enquanto consumidores ou empregados, a indústria cultural reduz a humanidade, em seu conjunto, assim como cada um de seus elementos, às condições que representam seus interesses. A indústria cultural traz em seu bojo todos os elementos característicos do mundo industrial moderno e nele exerce um papel específico, qual seja, o de portadora da ideologia dominante, a qual outorga sentido a todo o sistema. Adorno fala como a ideologia capitalista, e sua cúmplice, a indústria cultural contribuíram eficazmente para falsificar as relações entre os homens, bem como dos homens com a natureza, de tal forma que o resultado final constitui uma espécie de anti- iluminismo. Considerando-se que o iluminismo tem como finalidade libertar os homens do medo, tornando-os senhores e liberando o mundo da magia e do mito, e admitindo-se que essa finalidade pode ser atingida por meio da ciência e da tecnologia, tudo levaria a crer que o iluminismo instauraria o poder do homem sobre a ciência e sobre a técnica. Mas ao invés disso, liberto do medo mágico, o homem tornou-se vítima de novo engodo: o progresso da dominação técnica. Esse progresso transformou-se em poderoso instrumento utilizado pela indústria cultural para conter o desenvolvimento da consciência das massas. https://pt.wikipedia.org/wiki/Cultura_de_massa https://pt.wikipedia.org/wiki/Cultura_de_massa https://pt.wikipedia.org/wiki/Massas www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 4 A indústria cultural nas palavras do próprio Adorno “impede a formação de indivíduos autônomos, independentes, capazes de julgar e de decidir conscientemente”. O próprio ócio do homem é utilizado pela indústria cultural com o fito de mecanizá-lo, de tal modo que, sob o capitalismo, em suas formas mais avançadas, a diversão e o lazer tornam-se um prolongamento do trabalho. Para Adorno, a diversão é buscada pelos que desejam esquivar-se ao processo de trabalho mecanizado para colocar-se, novamente, em condições de se submeterem a ele. Criando “necessidades” ao consumidor (que deve contentar-se com o que lhe é oferecido), a indústria cultural organiza-se para que ele compreenda sua condição de mero consumidor, ou seja, ele é apenas e tão-somente um objeto daquela indústria. Desse modo, instaura-se a dominação natural e ideológica. Tal dominação tem sua mola motora no desejo de posse constantemente renovado pelo progresso técnico e científico, e sabiamente controlado pela indústria cultural. Nesse sentido, o universo social, além de configurar-se como um universo de “coisas”, constituiria um espaço hermeticamente fechado. Nele, todas as tentativas de liberação estão condenadas ao fracasso. Contudo, Adorno não desemboca numa visão inteiramente pessimista, e procura mostrar que é possível encontrar-se uma via de salvação. Esse tema aparece desenvolvido em sua última obra, intitulada Teoria Estética. A arte como saída No livro Teoria Estética, Adorno oscila entre negar a possibilidade de produzir arte depois de Auschwitz e buscar nela refúgio ante um mundo que o chocava, mas que ele não podia deixar de olhar e denominar. Essa postura foi extremamente criticada pelos movimentos de contestação radical, que o acusavam de buscar refúgio na pura teoria ou na criação artística, esquivando-se assim da práxis política. A seus críticos, Adorno responde que, embora plausível para muitos, o argumento de que contra a totalidade bárbara não surtem efeito senão os meios bárbaros, na verdade não releva que, apesar disso, atinge-se um valor limite. A violência que há cinquenta anos podia parecer legítima àqueles que nutrissem a esperança abstrata e a ilusão de uma transformação total está, após a experiência do nazismo e do horror stalinista, inextricavelmente imbricada naquilo que deveria ser modificado: “ou a humanidade renuncia à violência da lei de talião, ou a pretendida práxis política radical renova o terror do passado”. Criticando a práxis brutal da sobrevivência, a obra de arte, para Adorno, apresenta-se, socialmente, como antítese da sociedade, cujas antinomias e antagonismos nela reaparecem como problemas internos de sua forma. 2. MAX HORKHEIMER Em 1939, Horkheimer (1895-1973) afirma que “o fascismo é a verdade da sociedade moderna”. Mas acrescenta logo que quem não quer falar do capitalismo deve calar também sobre o fascismo. E isso porque, em sua opinião, o fascismo está dentro das leis do capitalismo: por trás da “pura lei econômica” - que é a lei do mercado e do lucro -, está a “pura lei do poder”. E o comunismo, que é capitalismo de Estado, constitui uma variante do Estado totalitário. As organizações proletárias de massa também constituíram estruturas burocráticas e, na opinião de Horkheimer, nunca foram além do horizonte do capitalismo de Estado. Aqui, o princípio do plano substituiu o do lucro, mas os homens continuam como objetos de administração, de administração centralizada e burocratizada. O lucro por um lado e o controle do plano por outro geraram repressão sempre maior. Portanto, o que estrutura a sociedade industrial é uma lógica pérfida. E a intenção do trabalho de Horkheimer intitulado Eclipse da razão. Crítica da razão instrumental (1947) é a de examinar o conceito de racionalidade que está na base da cultura industrial moderna, e procurar estabelecer se esse conceito não contém defeitos que o viciam de modo essencial. A razão instrumental Digamos logo que, segundo Horkheimer, o conceito de racionalidade que está na base da civilização https://pt.wikipedia.org/wiki/Consumidor www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 5 industrial é podre na raiz. A doença da razão está no fato de que ela nasceu da necessidade humana de dominar a natureza. Essa vontade de dominar a natureza, de compreender suas “leis” para submetê-la, exigiu a instauração de uma organização burocrática e impessoal, que, em nome do triunfo da razão sobre a natureza, chegou a reduzir o homem a simples instrumento. Ao progresso dos recursos técnicos, que poderiam servir para “iluminar” a mente do homem, acompanha um processo de desumanização, de tal modo que o progresso ameaça destruir precisamente o objetivo que deveria realizar: a indica do homem. E a ideia do homem, isto é, sua humanidade, sua emancipação, seu poder de crítica e de criatividade acham-se ameaçados porque o desenvolvimento do “sistema” da civilização industrial substituiu os fins pelos meios e transformou a razão em instrumento para atingir fins, dos quais a razão não sabe mais nada. Em outros termos, o pensamento pode servir para qualquer objetivo, bom ou mau. E instrumento de todas as ações da sociedade, mas não deve procurar estabelecer as normas da vida social ou individual, que se supõe serem estabelecidas por outras forças. A razão, portanto, não nos dá mais verdades objetivas e universais as quais possamos nos agarrar, mas somente instrumentos para objetivosde fatos atômicos que torna verdadeira ou falsa uma proposição molecular. A parte “mística” do Tractatus São essas, em resumo, as ideias centrais do Tractatus. Mas Wittgenstein se dá conta de que, embora a ciência represente projetivamente o mundo, entretanto, além da ciência e do mundo, “há verdadeiramente o inexprimível. Mostra-se; é aquilo que é místico”. “O que é místico não é como o mundo é, mas que ele é”. “O sentido do mundo deve se encontrar fora dele. No mundo, tudo é como é, e acontece como acontece: nele não há nenhum valor - e, se houvesse, não teria nenhum valor”. E “nós sentimos que, ainda que todas as possíveis perguntas da ciência recebessem resposta, os problemas de nossa vida não seriam sequer arranhados. Sem dúvida, não resta então nenhuma pergunta - e esta é precisamente a resposta”. “O problema da vida resolve-se quando se desvanece”. Nessas afirmações consiste precisamente a denominada parte mística do Tractatus. A interpretação não neopositivistas do Tractatus Lido, discutido, pesquisado nos pressupostos e nos diversos núcleos teóricos, interpretado com base em perspectivas diversas, o Tractatus foi um dos livros filosóficos mais influentes do século XX. E a influência mais consistente foi a que exerceu sobre os neopositivistas, que, embora rejeitando a parte mística, aceitaram sua antimetafísica, retomaram a teoria da tautologicidade das assertivas lógicas, interpretaram as proposições atômicas como protocolos das ciências empíricas e assumiram sua ideia de que a filosofia é atividade clarificadora da linguagem cientifica e não doutrina. Tanto mediante a Introdução de Bertrand Russell ao Tractatus como mediante a interpretação dos neopositivistas, o Tractatus foi visto pela maior parte dos estudiosos como a bíblia do neopositivismo. Entretanto, em nossos dias, essa imagem do Tractatus foi justamente abandonada. Wittgenstein não apenas não foi membro do Círculo de Viena e nunca participou das suas sessões, mas também nunca foi neopositivista. Suas intenções eram bem diversas das intenções dos neopositivistas. Na realidade, em 1919 (portanto, três anos antes que M. Schlick, o fundador do Círculo de Viena, fosse chamado a Viena), Wittgenstein escreveu uma carta a L. von Ficker, com o qual estava tratando da publicação do Tractatus. Entre outras coisas, podemos ler nessa carta: “Talvez lhe seja útil que eu lhe escreva algumas palavras sobre o meu livro: com efeito, o senhor não extrairá grande coisa de sua leitura, essa é minha opinião exata. De fato, o senhor não o compreendera; o tema lhe parecerá totalmente estranho. Na realidade, porém, ele não lhe é estranho, já que o sentido do livro é um sentido ético. Certa vez, pensei em incluir no prefacio uma proposição, que agora de fato não está lá, mas que escreverei neste momento para o senhor, porque talvez constitua para o senhor uma chave para a compreensão do trabalho. Com efeito, eu queria escrever que meu trabalho consiste em duas partes: aquilo que escrevi e, além disso, tudo aquilo que não escrevi. E precisamente esta segunda parte é a importante [...]”. Ou seja, o que não está escrito, o que não é dito porque não é dizível cientificamente é a parte mais importante: a ética e a religião. E é assim que se reconciliam em um todo consistente a lógica e a “filosofia” do Tractatus com a mística do próprio Tractatus. Este era o problema de fundo de Wittgenstein: “Poder encontrar um método qualquer para reconciliar a física de Hertz e Boltzmann com a ética de Kierkegaard e Tolstoi”. Mas os neopositivistas, devido a seus interesses e perspectivas, não souberam ver esse problema profundo e condenaram como contra-senso a mística de Wittgenstein. Toda uma geração considerou Wittgenstein positivista, já que ele tinha em comum com os positivistas algo de enorme importância: traçara uma linha de separação entre aquilo de que se pode falar e aquilo que se deve calar, coisa que os positivistas também haviam feito. A diferença está apenas no fato de que eles não tinham nada sobre o que calar. O positivismo sustenta - e esta é sua essência - que aquilo de que podemos falar é tudo o que conta na vida. Wittgenstein, ao contrário, crê apaixonadamente que tudo o que conta na vida humana é precisamente aquilo sobre o qual, no seu modo de ver, devemos calar. Apesar disso, quando ele toma grande cuidado em delimitar o que não é importante, não é a costa daquela ilha que ele quer examinar tão acuradamente, e sim os limites do oceano. www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 33 A volta à filosofia No Prefacio ao Tractatus, Wittgenstein escrevia que “a veracidade das ideias aqui transmitidas é intocável e definitiva” e pensava “ter, no essencial, resolvido definitivamente os problemas”. Desse modo, Wittgenstein calou-se. Os problemas estavam definitivamente resolvidos. Por isso, em 4 de julho de 1924, Wittgenstein escrevia a J. M. Keynes (que, juntamente com o matemático F. P. Ramsey, preocupava-se em fazer o filósofo austríaco retornar a Cambridge): “O senhor me pergunta se pode fazer algo para tornar-me novamente possível o trabalho científico. Não, a esse respeito não há mais nada a fazer; com efeito, não tenho mais nenhum forte impulso interior para tal ocupação. Tudo o que eu realmente tinha a dizer, já o disse. E, com isso, a fonte se esgotou. Isso pode soar estranho, mas é assim mesmo”. Na realidade, não seria assim por muito tempo. Em janeiro de 1929 Wittgenstein estava novamente em Cambridge. E o retorno a Cambridge era o retorno à filosofia. Em suma, Wittgenstein percebeu que os problemas filosóficos não haviam sido definitivamente resolvidos. Não devemos esquecer três coisas em relação a seu retorno à filosofia: a) os encontros que Wittgenstein manteve com alguns membros do Círculo de Viena; b) os “inumeráveis colóquios” que Wittgenstein diz ter mantido com Ramsey, tendo por objeto a revisão dos Principia matemáticas e as teses do Tractatus sobre a lógica e sobre os fundamentos da matemática; C) o contato com “a linguagem real das crianças” das escolas primárias. Esses três fatos - a reflexão sobre a matemática intuicionista, os colóquios com Ramsey e a linguagem das crianças levaram Wittgenstein a assumir nova perspectiva teórica na interpretação da linguagem. E, em um esforço intenso, Wittgenstein afasta-se das soluções do Tractatus e elabora sua nova perspectiva filosófica, da qual as Investigações filosóficas representam o documento mais elaborado. A teoria dos “jogos de língua” As Investigações filosóficas se iniciam com uma crítica cerrada ao esquema tradicional de interpretação que vê a linguagem como um conjunto de nomes que denominam ou designam objetos, nomes de coisas e de pessoas, unidos pela aparelhagem lógico-sintática constituída por termos como “e”, “o”, “se” ... “então” etc. É obvio que, assim concebendo a linguagem, o compreender se reduz a dar explicações que se resumem em definições ostensivas, que postulam toda aquela série de atos e processos mentais que deveriam explicar a passagem da linguagem à realidade. Como se vê, a teoria da representação, o atomismo lógico e o mentalismo estão estreitamente conjugados. Na realidade, porém, o jogo linguístico da denominação não é de modo nenhum primário. Com efeito, se eu digo, indicando uma pessoa ou um objeto, “este é Mário” ou “isto é vermelho”, haverá sempre para quem me escuta certa ambiguidade, já que não sabe a que propriedade da pessoa ou do objeto me referi. “Dizendo ‘cada palavra desta linguagem designa alguma coisa’, não dizemos absolutamente nada”, escreve Wittgenstein nas Observações sobre os fundamentos da matemática. “Pensa-se que aprender a linguagem consista em denominar objetos, isto é, homens,formas, cores, dores, estados de espirito, números etc. A denominação é semelhante a pendurar em um a coisa um cartãozinho com um nome. Pode-se dizer que isso é uma preparação para o uso da palavra. Mas para que nos prepara?”. A teoria da representação sustenta que, com nossa linguagem, nós fazemos apenas uma coisa: denominamos. Mas Wittgenstein está persuadido de que, “ao contrário, com nossas proposições, fazemos as coisas mais diversas. Basta pensar nas exclamações, com suas tão diferentes funções: Agua! Fora! Ai! Socorro! Lindo! Não! E agora, ainda estão dispostos a chamar essas palavras de ‘denominação de objetos’?”. Com a linguagem, fazemos as coisas mais variadas. Os “jogos linguísticos” são inumeráveis: “São inumeráveis os tipos diferentes de emprego de tudo o que chamamos ‘sinais’, ‘palavras’, ‘proposições’. E essa multiplicidade não é algo fixo ou algo dado de uma vez por todas, mas novos tipos de linguagem, novos jogos linguísticos, como poderíamos dizer, surgem continuamente, enquanto outros envelhecem e são esquecidos (uma imagem aproximada disso poderia ser dada pelas mudanças da matemática)”. O princípio de uso e a filosofia como terapia linguística A linguagem é um conjunto de jogos de linguagem. O significado de uma palavra é seu uso. E o www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 34 uso tem regras. Por outro lado, “seguir uma regra é análogo a obedecer a uma ordem: somos adestrados para obedecer à ordem”. “Seguir uma regra, fazer urna comunicação, dar urna ordem ou jogar urna partida de xadrez sio hábitos (usos, instituições)”. E essas regras que aprendemos através do adestramento são públicas: “No sentido em que existem processos (também processos psíquicos) característicos do compreender, o compreender não é processo psíquico”. Mas uma imagem nos mantinha prisioneiros. E ela fez com que o mundo de nossa mente se povoasse de espectros, isto é, de problemas filosóficos: “Eles não são naturalmente problemas empíricos, mas problemas que se resolvem penetrando na operação de nossa linguagem de forma a reconhecê-la, contra uma forte tendência a subentendê-la. Os problemas não se resolvem mais produzindo novas experiências, mas sim ajustando aquilo que já nos é conhecido há tempo. A filosofia é batalha contra o encantamento de nosso intelecto, por meio de nossa linguagem”. “Os problemas filosóficos surgem quando falta a linguagem”. E esses problemas se resolvem dissolvendo-os. “Quando os filósofos usam uma palavra – ‘saber’, ‘ser’, ‘objeto’, ‘eu’, ‘proposição’, ‘nome’ – e tentam captar a essência da coisa, devemos sempre perguntar: essa palavra é efetivamente usada assim na linguagem, na qual tem sua pátria?”. “Nós utilizamos as palavras, no seu emprego metafísico, na trilha do seu emprego cotidiano”. E isso porque a linguagem “faz parte de nossa história natural, como o caminhar, o comer, o beber, o brincar”. A linguagem opera sobre o fundo de necessidades humanas, na determinação de um ambiente humano. E como “o significado de uma palavra é seu uso na linguagem”, a função da filosofia é puramente descritiva. Como na psicanálise, a diagnose é a terapia: “o filósofo trata uma questão como uma doença”. Não busqueis o significado, buscai o uso - repetia Wittgenstein em Cambridge. E acrescentava: “O que vos dou é a morfologia do uso de uma expressão. Demonstro que ela tem usos com os quais jamais havíeis sonhado. Em filosofia, as pessoas sentem-se forçadas a ver um conceito de determinado modo. Pois o que faço é propor ou até inventar outros modos de considerá-lo. Sugiro possibilidades nas quais jamais havíeis pensado. Acreditáveis que só existisse uma possibilidade ou, no máximo, duas. Mas eu vos fiz pensar em outras possibilidades. Além disso, mostrei que era absurdo esperar que o conceito se adequasse a possibilidades tão restritas assim. Desse modo, vos libertei de vossa cãibra mental; agora, podeis olhar em volta, no campo do uso da expressão, e descrever seus diversos tipos de uso”. Em suma, a filosofia é a terapia das doenças da linguagem. “Qual é o teu objetivo em filosofia? Indicar à mosca o caminho de saída de dentro da garrafa”. 3. EPISTEMOLOGIA CONTEMPORÂNEA 3.1 NEOPOSITIVISMO A reflexão sobre o método cientifico conhece, nos anos que intercorrem entre as duas guerras, um impulso decisivo. O principal centro para a filosofia da ciência foi nesse período, a Universidade de Viena, onde um grupo de intelectuais se reuniram, a partir de 1924, ao redor de Moritz Schlick, dando vida ao que se tornou o Círculo de Viena, cuja atividade, que consistia de discussões, seminários, congressos, publicações, durou até pela metade da década de 1930. A tomada do poder por Hitler levou consigo também o fim do Círculo de Viena, enquanto significou a diáspora de neopositivistas. Paralelamente ao Círculo de Viena, e em ligação estreita de intenções, desenvolveu-se o assim chamado Círculo de Berlim ou Sociedade para a filosofia científica. O manifesto do neopositivismo É em 1929 que, com a assinatura de Neurath, Hahn e Carnap, aparece o manifesto do Círculo de Viena, pequeno volume com o título A concepção cientifica do mundo, cujas linhas programáticas eram: 1) a formulação de uma ciência unificada, compreendendo todos os conhecimentos provenientes da física, das ciências naturais etc.; 2) o meio para tal fim devia consistir no uso da logica matemática; 3) contribuir para o esclarecimento dos conceitos e das teorias da ciência empírica e para o esclarecimento dos fundamentos da matemática. O princípio fundamental do neopositivismo - que é, justamente, a filosofia do Círculo de Viena - é o princípio de verificação, segundo o qual têm sentido apenas as proposições que podem empiricamente ser verificadas, ou seja, apenas as proposições que podem se reduzir ou traduzir na linguagem “coisificada” da física: ou seja, têm sentido unicamente as proposições da ciência empírica (física, química, geografia, história, geologia etc.). www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 35 A antimetafísica Daí a antimetafísica dos neopositivistas vienenses, para os quais as afirmações metafísicas junto com as religiosas são simplesmente não-sentidos, justamente pela razão de que não são verificáveis. Carnap dirá que “nem Deus nem diabo algum poderão jamais dar-nos uma metafisica”, e que “Os metafísicos são musicistas sem talento musical”. Do mesmo parecer foram, em relação a antimetafísica, Schlick e os outros frequentadores do Círculo. Para Neurath, mais especificamente, a rejeição da metafísica constituía uma batalha, justamente como se se tratasse de marchar contra um inimigo político. E Hans Reichenbach dirá que é um fato decididamente positivo o abandono de qualquer metafísica ou poesia em conceitos. Da fase semântica à sintática Tendo admitido o princípio de verificação, o trabalho filosófico sério não consistira mais na construção de teorias metafísicas, e sim muito mais na análise dos conceitos e das teorias científicas. E de grande valor foram as contribuições dos filósofos vienenses na análise das teorias cientificas e na discussão de seu significado filosófico. E isso enquanto a discussão sobre a base empírica da ciência - ou seja, seus protocolos ou afirmações-de-observação -, que pareceu estar cheia de solipsismo (a observação de alguma coisa é sempre a observação feita por um indivíduo), levou Neurath, seguido em parte por Carnap, a inverter a orientação semântica do Círculo na direção sintática ou, como foi dito, fisicalísta: a linguagem e assumida como umfato físico; e eliminada sua função de representação projetiva dos fatos; e à verdade como correspondência com os fatos substituiu-se a verdade como coerência entre proposições. De modo que uma proposição é “não- correta” se ela não está de acordo com as outras proposições reconhecidas pelos cientistas e por eles já aceitas no corpus da ciência; se, ao contrário, está de acordo com as outras proposições, então está “correta”. A linguagem física como linguagem da ciência unificada Embora fortemente influenciado por Neurath, Carnap achou que as formulações deste eram “de modo nenhum irrepreensíveis”. Carnap não insistiu sobre a redução da linguagem a fato físico nem rejeitou a função simbólica dos sinais; ele, porém, aceitou totalmente a tese da universalidade da língua fiscalista. Em Filosofia e sintaxe lógica (1935) Carnap escreve: “Nós, nas discussões no Círculo de Viena, chegamos a concepção de que a linguagem física é a linguagem-base de toda a ciência, uma linguagem universal que abraça os conteúdos de qualquer outra linguagem científica”. E a linguagem física deve ser a linguagem da ciência unificada (na qual entram também a psicologia, a sociologia, enfim, as chamadas “ciências do espírito”) por causa de sua intersensualidade, intersubjetividade e universalidade. E se para Carnap - que naquele tempo trabalhava na Sintaxe lógica da linguagem - a questão da relação entre linguagem e realidade não interessava muito, ela constituía o problema mais candente para Schlick: para ele uma linguagem não contraditória não é suficiente para dar razão da ciência; de fato, também uma fábula bem engenhada pode ser não contraditória, mas não é ciência. Dentro do neopositivismo vienense Schlick teve a função dialética de se remeter continuamente aos fatos. A liberalização do neopositivismo O princípio de verificação comporta dificuldades que não foram de fato protegidas. Com efeito, ele é um princípio cripto-metafisico; autocontraditório (diz que tem sentido apenas as proposições que podem empiricamente ser verificadas, mas o próprio princípio é uma proposição não verificável e, portanto, também ele é insensato); e incapaz, sendo indutivo, de dar conta das afirmações universais da ciência. E enquanto pelo fim da década de 1920 Ludwig Wittgenstein - cujo Tractatus lógico-philosophicus havia www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 36 incitado os neopositivistas a construção de uma linguagem perfeita - voltava a filosofar e não via mais “o sentido de uma proposição no método de sua verificação”, e sustentava que o significado de uma palavra ou de uma expressão está no uso que dela se faz; em 1934 Karl Popper rejeitava o critério de verificação - que é um critério de significância -, e propunha a falsificabilidade como critério de demarcação entre ciência e não ciência. Nesse tempo, com o transplante do neopositivismo nos Estados Unidos, o neo-empirismo se liberalizava e o próprio Carnap, em Controlabilidade e significado (1936), em vez de verificabilidade falará de controlabilidade e conformabilidade: “Diremos que uma proposição é controlável se, de fato, conhecemos um método para proceder à sua eventual confirmação; ao passo que diremos que é confirmável, se soubermos sob quais condições ela em linha de princípio seria confirmada”. 3.2 GASTON BACHELARD Gaston Bachelard nasceu na França meridional, em 1884. Suas obras epistemológicas apareceram em um momento em que a filosofia da ciência (o neopositivismo vienense e o operacionalismo norte- americano) se apresenta como concepção antimetafísica e a-histórica. É bem verdade que Bachelard continuaria seu trabalho de epistemólogo e historiador da ciência também depois da Segunda Guerra Mundial, mas deve- se dizer que ainda nesse momento, enquanto ainda não se havia difundido o pensamento de Popper e de sua Escola, a filosofia científica (isto é, a filosofia ligada a ciência e que pretendia dar conta da ciência) ainda era o neopositivismo. A ciência não tem a filosofia que merece A epistemologia de Bachelard, devido a época em que surgiu e se desenvolveu, representa o pensamento, prenhe de novidade, de um filósofo solitário (ainda que não isolado) que, dentro da tradição francesa de reflexo sobre a ciência, ultrapassa a filosofia “oficial” da ciência de sua época (o neopositivismo) e propõe, como escreveu Althusser, um não-positivismo radical e deliberado. Com base nisso, devemos registrar logo que os pontos fundamentais de seu pensamento podem ser reduzidos a quatro: 1) o filósofo deve ser “contemporâneo” à ciência de seu próprio tempo; 2) tanto o empirismo de tradição baconiana como o racionalismo idealista são incapazes de dar conta da prática científica real e efetiva; 3) a ciência é um evento essencialmente histórico; 4) a ciência possui um “inevitável caráter social”. Em O materialismo racional, Bachelard constata amargamente que “a ciência não tem a filosofia que merece”. A filosofia está sempre atrasada em relação as mudanças do saber cientifico. E Bachelard procura opor a “filosofia dos filósofos” a “filosofia produzida pela ciência”. O que caracteriza a filosofia dos filósofos são atributos como a unidade, o fechamento e a imobilidade, ao passo que os traços marcantes da “filosofia científica” (ou filosofia criada pela ciência) são a falta de unidade ou centro, a abertura e a historicidade. Diz Bachelard em A filosofia do não: “Pediremos aos filósofos que rompam com a ambição de encontrar um só ponto de vista para julgar uma ciência tão vasta e tão mutável como a física”. Para Bachelard, a filosofia das ciências é filosofia dispersiva, distribuída: “Dever-se-ia fundar uma filosofia do pormenor epistemológico, uma filosofia diferencial, para contrapor a filosofia integral dos filósofos. Essa filosofia diferencial seria encarregada de medir o futuro de um pensamento”. Esse tipo de filosofia diferencial “é a única filosofia aberta. Toda outra filosofia estabelece seus princípios como intangíveis, suas verdades primeiras como totais e adquiridas. Toda outra filosofia se orgulha de seu fechamento”. É a ciência que instrui a razão Em O racionalismo aplicado, Bachelard afirma que “a epistemologia deve ser tão móvel quanto a ciência”. Porém, é óbvio que, para haver uma filosofia dispersiva, distribuída, aberta, diferencial e móvel, é necessário penetrar nas práticas científicas, em vez de julgá-las do exterior - em suma, é preciso que o filosofo tenha confiança no cientista, que ele próprio seja cientista antes de ser filósofo. Na opinião de Bachelard, existem poucos pensamentos filosoficamente mais variados do que o pensamento científico. E o papel da filosofia da ciência é o de recensear essa variedade e mostrar como os filósofos aprenderiam se quisessem meditar sobre o pensamento cientifico contemporâneo. Enquanto os neopositivistas procuravam um princípio rígido (o princípio da verificação) capaz de separar claramente a ciência da não-ciência, Bachelard não aceita um critério a priori que tenha a presunção de captar a essência da cientificidade. Não é a razão filosófica que domestica a ciência, e sim muito mais “a ciência que instrui a razão”. Assim, contrariamente aos neopositivistas, Bachelard não aceita um princípio que estabeleça a priori www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 37 a cientificidade das ciências, nem a rejeição da história feita pelos próprios neopositivistas. Por outro lado, combate a filosofia dos filósofos, porém não considera a metafisica como insensata ou indiferente para a ciência, como ofizeram os filósofos do Círculo de Viena. Escreve ele: “O espírito pode mudar a metafisica, mas não pode prescindir da metafisica”. E se é verdade que “um pouco de metafisica nos afasta da natureza, muita metafisica nos aproxima dela”. Por aí pode-se ver que Bachelard não nutre preconceitos antifilosóficos ou antimetafísicos em nome da ciência. Ele é avesso à filosofia não contemporânea da ciência e arremete contra os filósofos que “pensam antes de estudar”, e sob cuja pena “a relatividade degenera em relativismo, a hipótese em suposição, o axioma em verdade primeira”. E esses juízos depreciativos em relação à “filosofia dos filósofos” brotam da firme vontade de Bachelard de dar à filosofia uma oportunidade para que se torne contemporânea da ciência. As “rupturas epistemológicas” Para Bachelard, não podemos considerar a ciência independentemente de seu devir. E o “real científico” não é imediato e primário. Ele precisa receber um valor convencional. É preciso que ele seja retomado em um sistema teórico. Aqui, como em toda parte, é a objetivação que domina a objetividade. O “dado cientifico”, portanto, é sempre relativo a sistemas teóricos. O cientista nunca parte da experiência pura. No tocante a isso, escreve Bachelard em A formação do espírito científico: “Conhece-se contra um conhecimento anterior, destruindo conhecimentos malfeitos e superando o que, dentro do próprio espírito, constitui um obstáculo a espiritualização. O espírito nunca é jovem quando se apresenta à cultura científica. Ao contrário, é muito velho, porque tem a idade de seus preconceitos. Ter acesso à ciência significa rejuvenescer espiritualmente, quer dizer aceitar brusca mudança que deve contradizer um passado”. Segundo Bachelard, essas sucessivas contradições do “passado” são autênticas rupturas epistemológicas, que, de vez em quando, comportam a negação de algo fundamental (pressupostos, categorias centrais, métodos) que sustentava a pesquisa na fase anterior. A teoria da relatividade e a teoria quântica, pondo em discussão os conceitos de espaço, tempo e causalidade, representariam algumas das mais flagrantes confirmações da ideia de ruptura epistemológica. A história da ciência, portanto, avança por meio de sucessivas rupturas epistemológicas. Mas, contrariamente a muitos outros, entre os quais Popper, Bachelard sustenta que também existe ruptura entre saber comum e conhecimento cientifico. O conhecimento vulgar tem sempre mais respostas do que perguntas. Tem respostas para tudo. No entanto, o espírito cientifico “nos proíbe ter opiniões sobre questões que não compreendemos, sobre questões que não sabemos formular claramente. Antes de mais nada, é preciso saber propor os problemas”. Para o espírito científico, toda teoria é a resposta a uma pergunta. E o sentido e a construção do problema são as características primeiras do espirito científico: o conhecimento vulgar é feito de respostas, o conhecimento científico vive na agitação dos problemas. “O eu científico é programa de experiências, ao passo que o não-científico é problemática já constituída”. Não há verdade sem erro corrigido Há mais, porém; diferentemente das rotinas incorrigíveis da experiência comum, o conhecimento científico avança através de sucessivas retificações as teorias anteriores: “não há verdade sem erro retificado”. Mas, afirma Bachelard em O novo espirito científico, para além do sentimento psicológico, “o espírito científico é essencialmente retificação do saber, ampliação dos esquemas do conhecimento. Ele julga seu passado histórico, condenando-o. Sua estrutura é a consciência de seus erros históricos. Do ponto de vista científico, o verdadeiro é pensado como retificação histórica de um longo erro, e a experiência como retificação da ilusão comum e primitiva”. Uma verdade sobre o fundo de um erro: essa é a forma do pensamento científico, cujo método “é método que busca o risco. A dúvida está na frente do método e não atrás, como em Descartes. E esse é o motivo por que posso dizer sem grandiloquência que o pensamento cientifico é pensamento empenhado. Ele põe continuamente em jogo sua própria organização. Há mais: paradoxalmente, parece que o espírito científico vive na estranha esperança de que o próprio método se choque com xeque-mate vital. E isso porque um xeque-mate tem por consequência o fato novo e a ideia nova”. As hipóteses cientificas podem sofrer xeques- mates; o espírito não-científico, ao contrário, é aquele que se torna “impermeável aos desmentidos da experiência”. Esta é a razão por que as rotinas incorrigíveis e as ideias vagas são sempre verificáveis. E essa é a razão por que é anticientífica a atitude de quem sempre encontra um modo de comprovar sua teoria, ao invés de mostrá-la errada e, portanto, retificá-la. O “obstáculo epistemológico” O conhecimento científico avança por meio de rupturas epistemológicas sucessivas. É desse modo que ele se aproxima da verdade: “não encontramos nenhuma solução possível para o problema da verdade, senão a de ir descartando erros cada vez mais sutis”. www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 38 Entretanto, o progresso da ciência, essa continua retificação dos erros anteriores, especialmente as retificações que constituem autênticas rupturas, não são passos que se efetuam com facilidade, em virtude do seu choque com o que Bachelard chama de “obstáculos epistemológicos”. Podemos dizer que o obstáculo epistemológico é uma ideia que impede e bloqueia outras ideias: hábitos intelectuais cristalizados, a inércia que faz estagnar as culturas, teorias cientificas ensinadas como dogmas, os dogmas ideológicos que dominam as diversas ciências - eis alguns obstáculos epistemológicos. a) O primeiro obstáculo a superar é o de derrubar a opinião: “A opinião, por direito, está sempre errada. A opinião pensa mal, não pensa, traduz necessidades por conhecimentos. Decifrando os objetos segundo sua utilidade, impede-se de conhecê- los. Não se pode basear nada na opinião: antes de mais nada, é preciso destrui-la”. b) Outro obstáculo é a falta de genuíno sentido dos problemas, sentido que se perde quando a pesquisa se encerra na casca dos conhecimentos dados como adquiridos e não mais problematizados. Mediante o uso, diz Bachelard, as ideias se valorizam indevidamente. E esse é um verdadeiro fator de inércia para o espírito. Por vezes, ocorre que uma ideia dominante polariza o espírito em sua totalidade. “Ha cerca de vinte anos, um epistemólogo irreverente dizia que os grandes homens são uteis para a ciência na primeira metade de sua vida, e nocivos na segunda metade”. Obstáculos importantes e difíceis de remover são: c) o obstáculo da experiência primeira, ou seja, da experiência que pretende se situar além da crítica; d) aquele que pode ser chamado obstáculo realista, e que consiste na sedução da ideia de substância; e) por fim, aquele que se pode chamar de obstáculo animista (“a palavra vida é palavra mágica. É palavra valorizada”). Diante dessas realidades constituídas pelos obstáculos epistemológicos, Bachelard propõe uma psicanálise do conhecimento objetivo, voltada para a identificação e para a remoção dos obstáculos que bloqueiam o desenvolvimento do espírito científico. Tal catarse torna-se absolutamente necessária se quisermos tornar possível o progresso da ciência, já que se conhece sempre contra um conhecimento anterior. Ciência e história da ciência Tudo isso mostra também a função da negação dentro de nossa atividade de conhecimento e dentro da própria filosofia, que, na opinião de Bachelard, deve se configurar como filosofia do não, firme na rejeição das pretensões dos velhos sistemas a se apresentarem como concepções absolutas e totalizantesda realidade e a imporem à ciência princípios intangíveis. A tese de Bachelard é de que a evolução do conhecimento não tem fim, e de que a filosofia deve ser instruída pela ciência. Isso pode até perturbar o filosofo. No entanto, é necessário chegar a essa conclusão se quisermos definir a filosofia do conhecimento científico como filosofia aberta, como a consciência de espírito que se fundamenta trabalhando sobre o desconhecido, e procurando no real o que contradiz conhecimentos anteriores. 3.3 KARL POPPER Karl Popper, nascido em Viena em 1902, faleceu na Inglaterra em 1994. Na capital austríaca estudou filosofia, matemática e física. Em 1928, formou-se em filosofia e em 1929, habilitou-se para o ensino de matemática e da física nas escolas de Ensino Médio. Suas principais obras são: 1 - Lógica da descoberta científica (1935); 2 - A miséria do historicismo (1944-1945); 3 - A sociedade aberta e seus inimigos (1945); 4 - Conjecturas e refutações (1962); 5 - Conhecimento objetivo (1972) . São notáveis e sempre perspicazes suas contribuições em múltiplos anais de seminários e simpósios. Membro da Royal Society, foi feito Sir em 1965. Professor visitante em muitas universidades estrangeiras, suas obras foram traduzidas em mais de vinte línguas. Popper contra o neopositivismo Durante muito tempo, na literatura filosófica, Popper apareceu associado ao neopositivismo. Chegou- se a dizer até que foi membro do Círculo de Viena. Entretanto, a exemplo de Wittgenstein, Popper nunca foi membro do Círculo. Em suas Réplicas aos meus críticos, o próprio Popper afirma que essa história é apenas lenda. E, em sua Autobiografia, admite a responsabilidade pela morte do neopositivismo. www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 39 Com efeito, Popper não é neopositivista. E, com toda razão, Neurath chamou Popper de “a oposição oficial” do Círculo de Viena. Popper embaralhou todas as cartas com as quais os neopositivistas estavam jogando seu jogo: substituiu o princípio de verificação (que é um princípio de significância) pelo critério de falsificabilidade (que é um critério de demarcação entre ciência e não-ciência); substituiu a velha e venerável, mas, em sua opinião, impotente teoria da indução, pelo método dedutivo da prova; deu uma interpretação diferente da interpretação de alguns membros do Círculo a respeito dos fundamentos empíricos da ciência, afirmando que os protocolos não são de natureza absoluta e definitiva; reinterpretou a probabilidade, sustentando que as melhores teorias cientificas (enquanto implicam mais e podem ser mais bem verificadas) são as menos prováveis; rejeitou a antimetafísica dos vienenses, considerando-a simples exclamação, e, entre outras coisas, defendeu a metafísica como progenitora de teorias científicas; Rejeitou também o desinteresse de muitos circulistas em relação a tradição e releu em novas bases filósofos como Kant, Hegel, Stuart Mill, Berkeley, Bacon, Aristóteles, Platão e Sócrates para chegar a uma estimulante releitura, em bases epistemológicas, dos pré-socráticos, vistos como os criadores da tradição de discussão crítica. Enfrentou seriamente autênticos e clássicos problemas filosóficos, como o das relações corpo- mente ou como o do sentido ou não da história humana; interessou-se pelo sempre emergente drama da violência, e é um dos mais aguerridos adversários teóricos do totalitarismo; rejeitou a diferença entre termos teóricos e termos observáveis; contra o convencionalismo de Carnap e Neurath, ou seja, a chamada “fase sintática” do Círculo, fez valer, a ideia reguladora da verdade. Em suma, não há questão ventilada pelos vienenses em torno da qual Popper não pense diferente. Por tudo isso, Neurath estava certo ao chamar Popper de “a oposição oficial do Círculo de Viena”. Popper contra a filosofia analítica Crítico em relação aos vienenses, mais recentemente, em 1961, Popper também atacou, em nome da unidade do método cientifico, as pretensões da Escola de Frankfurt de compreender a sociedade com categorias como a “totalidade” e a “dialética”. E também não se mostrou mais suave em relação a Cambridge-Oxford-Philosophy. Omitindo alguns acenos esparsos aqui e ali em seus escritos, Popper precisou sua posição essencialmente contrária ao movimento analítico no prefácio à primeira edição inglesa (1959) da Lógica da descoberta cientifica. Escreve Popper a esse propósito: “Hoje como então (isto é, nos tempos do Círculo de Viena), os analistas da linguagem são importantes para mim e não apenas como opositores, mas também como aliados, porque parecem os únicos filósofos que continuaram a manter vivas algumas tradições da filosofia racional. Os analistas da linguagem acreditam que não existem problemas filosóficos genuínos, ou que os problemas da filosofia – admitindo-se que existam – são problemas referentes ao uso linguístico ou ao significado das palavras”. Mas Popper não concorda com esse programa, tanto que afirma peremptoriamente que “devemos deixar de nos preocupar com as palavras e seus significados para passar a nos preocupar com as teorias criticáveis, com os raciocínios e com sua validade”. A indução não existe Escrevia Popper: “Penso ter resolvido um problema filosófico fundamental: o problema da indução [...]. Essa solução tem sido extremamente fecunda, e tem-me permitido resolver grande número de outros problemas filosóficos”. E ele resolveu o problema da indução dissolvendo-o: “A indução não existe. E a concepção oposta é um grande erro”. No passado, o termo “indução” era usado principalmente em dois sentidos: a) indução repetitiva ou por enumeração; b) indução por eliminação. A ideia de Popper é que ambos os tipos de indução caem por terra. Escreve ele: “A primeira é a indução repetitiva (ou indução por enumeração), que consiste em observações frequentemente repetidas, observações que deveriam fundamentar algumas generalizações da teoria. É óbvia a falta de validade desse gênero de raciocínio: nenhum número de observações de cisnes brancos é capaz de estabelecer que todos os cisnes são brancos (ou que é pequena a probabilidade de se encontrar um cisne que não seja branco). Do mesmo modo, por maior que seja o número de espectros de átomos de hidrogênio que observamos, nunca poderemos estabelecer que todos os átomos de hidrogênio emitem espectros do mesmo tipo [...]. Portanto, a indução por enumeração está fora de questão: não pode fundamentar nada”. Por outro lado, a indução eliminatória baseia-se no método da eliminação ou rejeição das falsas teorias. Diz Popper: “À primeira vista, esse tipo de indução pode parecer muito semelhante ao método da discussão crítica que eu defendo, mas, na realidade, é muito diferente. Com efeito, Bacon, Mill e os outros difusores desse método de indução acreditavam que, eliminando todas as teorias falsas, pode-se fazer valer a verdadeira teoria. Em outras palavras, não se davam conta de que o número de teorias rivais é sempre infinito, ainda que, via de regra, em cada momento particular possamos www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 40 tomar em consideração um número finito de teorias [...]. O fato de, para cada problema, existir sempre infinidade de soluções logicamente possíveis constitui um dos fatos decisivos de toda a ciência, e é uma das coisas que fazem da ciência uma aventura tão excitante. Com efeito, ele torna ineficazes todos os métodos baseados nas meras rotinas, o que significa que, na ciência, devemos usar a imaginação e ideias ousadas, ainda que uma e outras devam ser sempre temperadaspela crítica e pelos controles mais severos”. A indução, portanto, não existe. Por conseguinte, não pode fundamentar nada, e, consequentemente, não existem métodos baseados em meras rotinas. É erro pensar que a ciência empírica proceda com métodos indutivos. Normalmente, afirma-se que uma inferência é indutiva quando procede a partir de assertivas particulares, como os relatórios dos resultados de observações ou de experimentos, para chegar a asserções universais, como hipóteses ou teorias. No entanto, já em 1934 Popper escrevia: “Do ponto de vista logico, não é nada obvio que se justifique inferir assertivas universais a partir de assertivas singulares, por mais numerosas sejam estas últimas. Com efeito, qualquer conclusão tirada desse modo sempre pode se revelar falsa: por mais numerosos que sejam os casos de cisnes brancos que possamos ter observado, isso não justifica a conclusão de que todos os cisnes são brancos”. A inferência indutiva, portanto, não se justifica logicamente. Também poder-se-ia atacar a questão da indução a partir desta outra perspectiva. O princípio de indução é uma proposição analítica (isto é, tautológica) ou uma assertiva sintética (isto é, empírica). Entretanto, “se existisse algo como um princípio de indução puramente lógico, não existiria nenhum problema de indução, porque nesse caso todas as inferências indutivas deveriam ser consideradas como transformações puramente lógicas ou tautológicas, precisamente como as inércias da lógica dedutiva”. Portanto, o princípio de indução deve ser uma assertiva universal sintética. Mas, “se tentarmos considerar sua veracidade como conhecida pela experiência, então ressurgem exatamente os mesmos problemas que deram origem à sua introdução. Para justificá-la, devemos empregar inferências indutivas. E para justificar estas últimas, devemos adotar um princípio indutivo de ordem superior, e assim por diante. Desse modo, a tentativa de basear o princípio de indução na experiência acaba falindo, porque leva necessariamente a um regresso infinito”. A mente não é tábula rasa Há outra ideia ligada a teoria da indução: a de que a mente do pesquisador deveria ser mente desprovida de pressupostos, de hipóteses, de suspeitas e de problemas, em suma, uma tábula rasa, na qual refletir-se-ia depois o livro da natureza. Essa ideia é o que Popper chama de observativismo, e que ele considera mito. O observativismo é mito filosófico, já que a realidade é que nós somos uma tábula plena, um quadro-negro cheio dos sinais que a tradição ou a evolução cultural deixaram escritos. A observação sempre se orienta por expectativas teóricas. Esse fato, diz Popper, “pode ser ilustrado com um simples experimento, que eu gostaria de realizar, com vossa permissão, tomando a vos mesmos como cobaias. O meu experimento consiste em pedir-vos para observar, aqui e agora. Espero que todos vós estejais cooperando: observai! Temo, porém, que algum de vos, ao invés de observar, experimente a forte vontade de perguntar-me: ‘O que queres que eu observe?’ Se essa é a vossa resposta, então meu experimento teve êxito. Com efeito, aquilo que estou tentando evidenciar é que, tendo em vista a observação, devemos ter em mente uma questão bem definida, que podemos estar em condições de decidir através da observação.” Um experimento ou prova pressupõe sempre alguma coisa a experimentar ou a comprovar. E esse algo são as hipóteses (ou conjecturas, ideais e teorias) que inventamos para resolver os problemas. Purgada dos preconceitos, a mente não será mente pura, afirma Popper, mas apenas mente vazia. Nós operamos sempre com teorias, ainda que frequentemente não tenhamos consciência disso. Problemas e criatividade; gênese e prova da hipótese Portanto, segundo Popper, não existe procedimento indutivo, e a ideia da mente como tábula rasa é um mito. Para Popper, a pesquisa não parte de observações, mas sempre de problemas, “de problemas práticos ou de uma teoria que se chocou com dificuldades, ou seja, que despertou expectativas e depois as desiludiu”. Um problema é uma expectativa desiludida. Em sua natureza lógica, um problema é uma contradição entre afirmações estabelecidas; o maravilhamento e o interesse são as vestimentas psicológicas daquele fato lógico que é a contradição entre duas teorias ou, pelo menos, entre a consequência de uma teoria e uma proposição que, presumivelmente, descreve um fato. E os problemas explodem justamente porque nós somos “memória” biológico-cultural, fruto de uma evolução, primeiramente biológica e depois eminentemente cultural. Com efeito, quando um pedaço de “memoria”, ou seja, uma expectativa (hipótese ou preconceito), choca-se com outra expectativa ou com algum pedaço www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 41 de realidade (ou fatos), então temos um problema. É assim que Popper descreve a correlação entre o conjunto de expectativas que é a nossa “memória” cultural e os problemas: “Por vezes, enquanto descemos por uma escada, acontece-nos descobrir de repente que esperávamos outro degrau (que não existe) ou, ao contrário, que não esperávamos nenhum outro degrau, quando na verdade ainda existe um. A desagradável descoberta de nos termos enganado faz com que nos demos conta de ter alimentado certas expectativas inconscientes. E mostra que existem milhares de tais expectativas inconscientes”. A pesquisa, portanto, inicia-se com os problemas; buscamos precisamente a solução dos problemas. E para resolver os problemas, é necessária a imaginação criadora de hipóteses ou conjecturas; precisamos de criatividade, da criação de ideias “novas e boas”, boas para a solução dos problemas. Aqui é necessário traçar uma distinção - na qual Popper insiste com frequência - entre contexto da descoberta e contexto da justificação. Uma coisa é o processo psicológico ou gênese das ideias; outra coisa, bem diferente da gênese das ideias, é sua prova. As ideias cientificas não têm fontes privilegiadas: podem brotar do mito, das metafísicas, do sonho, da embriaguez etc. Mas o que importa é que elas sejam de fato comprovadas. E é óbvio que, para que sejam provadas de fato, as teorias cientificas devem ser prováveis ou verificáveis em princípio. O critério de falsificabilidade A pesquisa inicia pelos problemas. Para resolver os problemas, é preciso elaborar hipóteses como tentativas de solução. Uma vez propostas, as hipóteses devem ser provadas. E essa prova se dá extraindo-se consequências das hipóteses e vendo se tais consequências se confirmam ou não. Se elas ocorrem, dizemos que, no momento, as hipóteses estão confirmadas. Se, ao contrário, pelo menos uma consequência não ocorre, então dizemos que a hipótese é falsificada. Em outros termos, dado um problema P e uma teoria T, proposta como sua solução, nós dizemos: se T é verdadeira, então devem se dar as consequências p,, p,, p ,,..., p,; se elas se derem, confirmarão a teoria; se, ao contrário, não se derem, a desmentirão ou falsificarão, ou seja, demonstrarão ser falsa. Por aí se pode ver que, para ser provada de fato, uma teoria deve ser provável ou verificável em princípio. Em outras palavras, deve ser falsificável, ou seja, deve ser tal que dela sejam extraíveis consequências que possam ser refutadas, isto é, falsificadas pelos fatos. Com efeito, se não for possível extrair de uma teoria consequências passíveis de verificação factual, ela não é científica. Entretanto, deve-se observar aqui que uma hipótese metafísica de hoje pode se tornar científica amanhã (como foi o caso da antiga teoria atomista, metafísica nos tempos de Demócrito e cientifica na época de Fermi). Nessa extração de consequências da teoria sob controle e no seu confronto com as assertivasde base (ou protocolos) que, pelo que sabemos, descrevem os “fatos”, consiste o método dedutivo dos controles. Controles que, numa perspectiva lógica, nunca encontrarão um fim, já que, por mais confirmações que uma teoria possa ter obtido, ela nunca será certa, pois o próximo controle poderá desmenti-la. Esse fato lógico se coaduna com a história da ciência, onde vemos teorias, que resistiram durante décadas, e décadas acabarem por desmoronar sob o peso dos fatos contrários. Na realidade, existe uma assimetria lógica entre verificação e falsificação: bilhões e bilhões de confirmações não tornam certa uma teoria (como, por exemplo, a de que “todos os pedaços de madeira boiam na água”), ao passo que apenas um fato negativo (“este pedaço de ébano não boia na água”) falseia a teoria, do ponto de vista lógico. É com base nessa assimetria que Popper fixa a ordem metodológica da falsificação; como uma teoria permanece sempre desmentível, por mais confirmada que esteja, então é necessário tentar falsificá-la, porque, quanto antes se encontrar um erro, mais cedo poderemos eliminá-lo, com a formulação e a experimentação de uma teoria melhor do que a anterior. Desse modo, a epistemologia de Popper reflete a força do erro. Como dizia Oscar Wilde, “experiência é o nome que cada um de nós dá aos seus próprios erros”. Por tudo isso pode-se compreender muito bem a centralidade da ideia de falsificabilidade na epistemologia de Popper: “Não exigirei de um sistema científico que seja capaz de ser escolhido, em sentido positivo, de uma vez por todas, mas exigirei que sua forma lógica seja tal que ele possa ser posto em evidência, por meio de verificações empíricas, em sentido negativo: um sistema empírico deve poder ser refutado pela experiência”. Pode-se ver a adequação desse critério quando pensamos nos sistemas metafísicos, sempre verificáveis (qual fato não confirma uma das tantas filosofias da história?) e nunca desmentíveis (qual fato poderia desmentir urna filosofia da história ou uma visão religiosa do mundo?) Significado das teorias metafísicas Diversamente do princípio de verificação, o critério de falsificabilidade não é um critério de significância, mas, repetimos, um critério de demarcação entre assertivas empíricas e assertivas não www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 42 empíricas. Entretanto, dizer que uma assertiva ou um conjunto de assertivas não é científico não implica em absoluto dizer que ele é insensato. Foi por essa razão que, em 1933, Popper escreveu uma carta ao diretor da revista “Erkenntnis”, dizendo entre outras coisas: “Tão logo ouvi falar do novo critério de verificabilidade do significado elaborado pelo Circulo (de Viena), lhe contrapus meu critério de falsificabilidade: critério de demarcação destinado a demarcar sistemas de assertivas científicas dos sistemas perfeitamente significantes de assertivas metafisicas”. Com efeito, nós compreendemos muito bem o que querem dizer os realistas, os idealistas, os solipsistas ou os dialéticos. Na realidade, afirma Popper, os neopositivistas tentaram eliminar a metafísica, lançando-lhe impropérios. Mas, com seu princípio de verificação, reintroduziram a metafísica na ciência (enquanto as próprias leis da natureza não são verificáveis). Mas o fato é que “não se pode negar que, ao lado das ideias metafísicas que obstaculizaram o caminho da ciência, também houve outras, como o atomismo especulativo, que contribuíram para seu progresso. E, olhando a questão do ponto de vista psicológico, estou propenso a considerar que a descoberta cientifica é impossível sem a fé em ideias que em natureza puramente especulativa e que, por vezes, são até bastante nebulosas - uma fé que é completamente desprovida de garantias do ponto de vista da ciência e que, portanto, dentro desses limites, é ‘metafisica’ “. Relações entre ciência e metafísica Portanto, do ponto de vista psicológico, a pesquisa é impossível sem ideias metafísicas que, por exemplo poderiam ser as ideias de realismo, de ordem do universo ou de casualidade. Do ponto de vista histórico vemos que, por vezes, ideias que antes flutuavam nas regiões metafísicas mais altas podem ser alcançadas com o crescimento da ciência e, postas em contato com ela, podem se concretizar. São exemplos de tais ideias: o atomismo; a ideia de um ‘principio’ físico único ou elemento último (do qual derivam os outros); a teoria do movimento da terra (à qual Bacon se opunha, considerando-a fictícia); a venerável teoria corpuscular da luz; a teoria da eletricidade como fluido (que foi revivida com a hipótese de que a condução dos metais deve-se a um gás de elétrons). Todos esses conceitos e essas ideias metafisicas, ainda que em suas formas mais primitivas, foram de ajuda na ordenação da imagem que o homem faz do mundo. E, em alguns casos, podem também ter levado a previsões cercadas de êxito. Entretanto, uma ideia desse gênero só adquire status científico quando é apresentada de forma que possa ser falsificada, ou seja, somente se torna possível decidir empiricamente entre ela e alguma teoria rival. Tendo escrito tudo isso em 1934, Popper, em seu Postscript (esboçado desde 1957), a propósito dos programas de pesquisa metafísicos, também dizia que o atomismo é um exemplo excelente de uma teoria metafísica não controlável, cuja influência na ciência supera a de muitas teorias controláveis. O último e mais grandioso, até agora, foi o programa de Faraday, Maxwell, Einstein, De Broglie e Schrodinger, de conceber o mundo em termos de campos contínuos. Cada uma dessas teorias metafísicas funcionou como programa para a ciência, indicando a direção em que se poderiam encontrar teorias da ciência adequadamente explicativas, e tornando possível a avaliação da profundidade de uma teoria. Em biologia, a teoria da evolução, a teoria da célula e a teoria da infecção bacteriana desenvolveram todas um papel semelhante, pelo menos por algum tempo. Em psicologia, o sensismo, o atomismo (ou seja, a teoria segundo a qual todas as experiências são compostas de elementos últimos, como, por exemplo, os dados sensoriais) e a psicanalise deveriam ser recordados como programas de pesquisa metafísicos. Assertivas puramente existenciais também se revelaram, por vezes, inspiradoras e frutíferas na história da ciência, ainda que nunca tenham vindo a tornar-se parte dela. Aliás, poucas teorias metafísicas exerceram maior influência sobre o desenvolvimento da ciência do que a afirmação puramente metafísica de que existe uma substância que pode transformar os metais vis em ouro (isto é, uma pedra filosofal), afirmação que, se não é falsificável, nunca foi verificada e na qual ninguém mais acredita. Portanto, do ponto de vista psicológico, a pesquisa cientifica é impossível sem ideias metafísicas. Do ponto de vista histórico, é um dado de fato que, ao lado das ideias metafísicas que obstaculizaram a ciência, há outras que representaram fecundos programas de pesquisa; e existiram metafísicas que, com o crescimento do saber de fundo, transformaram-se em teorias verificáveis. E esse fato histórico nos mostra claramente que, do ponto de vista lógico, o âmbito do verdadeiro não se identifica com o âmbito do verificável. Contra a dialética, a “miséria do historicismo” Os primeiros elementos da filosofia social de Popper encontram-se no ensaio O que é a dialética? Esse escrito marca o momento em que Popper começa a se interessar pelos problemas de metodologia das ciências sociais. E com base em sua concepção do método científico, Popper afirma, entre outras coisas, que enquanto, de um lado, a contradição lógica e a contradição dialítica não têm nada a partilhar, do outro lado o método dialético é um subentendimento eabsolutização do método científico. www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 43 No método científico com efeito não se tem como pretendem os dialéticos, nem uma produção necessária da “síntese” nem a conservação necessária, nesta, da “tese” e da “antítese”. Além disso, Popper ainda diz que, enquanto teoria descritiva, a dialética se resume na banalidade do tautológico, ou então se qualifica como teoria que permite justificar tudo, pois, não sendo falsificável, ela escapa à prova da experiência. Em essência, embora parecendo onipotente, a dialética, na realidade, nada pode. Pois bem, com base nessa premissa, vejamos os pontos básicos da conhecida obra de Popper, intitulada A miséria do historicismo. Esse ensaio concentra-se na crítica ao historicismo e ao holismo, na defesa da unidade fundamental do método cientifico nas ciências naturais e nas ciências sociais, e na consequente proposta de uma tecnologia social racional, ou seja, gradualista. Segundo os historicistas, a função das ciências sociais deveria ser a de captar as leis de desenvolvimento da evolução da história humana, de modo que se possa prever seus desdobramentos posteriores. Mas Popper sustenta que tais profecias incondicionadas não têm nada a ver com as predições condicionadas da ciência. O historicismo é capaz apenas de pretensiosas profecias políticas. Crítica do “holismo” O holismo é a concepção segundo a qual seria possível captar intelectualmente a totalidade de um objeto, de um acontecimento, de um grupo ou de uma sociedade e, paralelamente, do ponto de vista prático, ou melhor, político, transformar tal totalidade. Contra essa concepção holística, Popper observa que: a) por um lado, é grave erro metodológico pensar que nós podemos compreender a totalidade, até do menor e mais insignificante pedaço de mundo, visto que todas as teorias captam e não podem captar mais do que aspectos seletivos da realidade, e são por princípio sempre falsificáveis e, sempre por princípio, infinitas em número; b) do ponto de vista prático e operativo, o holismo se resolve no utopismo no que se refere à tecnologia social, e no totalitarismo no que se refere à prática política. Como se pode ver, Popper desenvolve a crítica ao historicismo e ao holismo em nome da unidade fundamental do método cientifico que deve existir, tanto nas ciências naturais como nas ciências sociais. Na opinião do autor, as ciências procedem segundo o modelo delineado na lógica da descoberta cientifica. Ou seja, procedem através da elaboração de hipóteses que formulamos para resolver os problemas que nos preocupam e que é preciso submeter à prova da experiência. A contraposição entre ciências sociais e ciências naturais verifica-se unicamente porque, amiúde, não se entendem o método e o procedimento das ciências naturais. E o fato de que as ciências sociais sejam dessa natureza, ou seja, da mesma natureza que as ciências físicas, implica que, no plano da tecnologia social, procede-se na solução dos problemas mais urgentes mediante uma série de experimentos, dispostos de modo a corrigir objetivos e meios com base nos resultados conseguidos. A sociedade aberta Desse modo, as teses metodológicas do historicismo, segundo Popper, constituem o suporte teórico mais válido das ideologias totalitárias. E ele procura provar essa opinião nos dois volumes de A sociedade aberta e seus inimigos. Com essa obra, Popper passa da crítica metodológica ao ataque ideológico contra o historicismo, visto como filosofia reacionária e como defesa da “sociedade fechada” contra a “sociedade aberta”, ou seja, como defesa de uma sociedade totalitária concebida organicamente e organizada tribalmente segundo normas não modificáveis. Ao contrário, a sociedade aberta, em sua concepção, configura-se inversamente como sociedade baseada no exercício crítico da razão humana, como sociedade que não apenas tolera mas também estimula, em seu interior e por meio das instituições democráticas, a liberdade dos indivíduos e dos grupos tendo em vista a solução dos problemas sociais, ou seja, tendo em vista reformas continuas. Mais precisamente, Popper concebe a democracia como a conservação e o aperfeiçoamento continuo de determinadas instituições, particularmente as que oferecem aos governados a possibilidade efetiva de criticar seus governantes e substitui-los sem derramamento de sangue. Mas, com isso, Popper não quer dizer que, precisamente por ser tal, o democrático deva aceitar a subida dos totalitários ao poder. Escreve Popper: “A democracia apresenta um campo de batalha precioso para qualquer reforma razoável, dado que permite a realização de reformas sem violência. Mas, se a defesa da democracia não se tornar a preocupação predominante em toda batalha particular travada nesse campo maior de batalha, as tendências antidemocráticas latentes, que sempre estão presentes - e que recorrem aos que padecem dos efeitos estressantes da civilização -, podem provocar a derrocada da democracia. Se a compreensão desses princípios ainda não estiver suficientemente desenvolvida, é preciso promovê-la. A linha política oposta pode ser fatal, pois pode implicar na perda da batalha mais importante, que é a batalha pela própria democracia. www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 44 Para Popper é democrática a sociedade que possui instituições democráticas. Mas é preciso ficar atento, adverte ele, pois as instituições são como uma fortaleza: resistem se a guarnição for boa. Fé na liberdade e na razão Além disso, para Popper, os maiores ideais humanitários são constituídos pela justiça e pela liberdade. Mas ele constrói uma hierarquia em que a liberdade vem antes da justiça, já que, em uma sociedade livre, mediante a crítica intensa e reformas sucessivas, também se poderá caminhar para a justiça, ao passo que, na sociedade fechada, na tirania ou na ditadura, onde não é possível a crítica, a justiça tampouco será alcançada: aqui, haverá sempre a classe privilegiada dos servos do tirano. Para concluir, devemos dizer que, por trás de tudo isso, por trás dessa defesa racional e apaixonada das instituições democráticas, existe o que Popper chama de fé na razão. O racionalismo atribui valor à argumentação racional e à teoria, bem como ao controle com base na experiência. Mas essa decisão em favor do racionalismo, por seu turno, não se pode demonstrar pela argumentação racional e pela experiência. Ainda que se possa submetê-la à discussão, ela repousa em ótima análise na decisão irracional, na fé, na razio. Mas essa opção em favor da razão não é de ordem puramente intelectual, e sim de ordem moral. Ela condiciona toda a nossa atitude em relação aos outros homens e em relação aos problemas da vida social. E está estreitamente relacionada à fé na racionalidade do homem, no valor de cada homem. O racionalismo pode se acompanhar de uma atitude humanitária, muito melhor do que o irracionalismo, com sua rejeição da igualdade dos direitos. Naturalmente, os indivíduos humanos em particular são desiguais sob muitos aspectos. Isso, porém, não está em contraste com a exigência de que todos sejam tratados do mesmo modo e de que todos tenham direitos iguais. A igualdade diante da lei não é um fato, e sim uma instância política que repousa sobre uma opção moral. A fé na razão, inclusive na razão dos outros, implica a ideia de imparcialidade, de tolerância, de rejeição de toda pretensão autoritária. Os inimigos da sociedade aberta Justamente por isso Popper combate a sociedade fechada, ou seja, o Estado totalitário, teorizado emtempos e contextos diversos por pensadores como Platão, Hegel e Marx. Platão foi o Judas de Sócrates e propôs, na opinião de Popper, um Estado petrificado, estruturado sobre urna rígida divisão das classes e dirigido pelo domínio exclusivo dos filósofos-reis. Por outro lado, a filosofia hegeliana, centrada sobre a ideia de um inexorável desenvolvimento dialético da história e sobre o pressuposto da identidade entre o real e o racional, nada mais é do que a justificação e a apologia do Estado prussiano e do mito da horda. Popper vê no hegelianismo o arsenal conceitual dos movimentos totalitários modernos: do nazismo e da nefasta fé fascista, doutrina materialista e ao mesmo tempo mística, totalitária e simultaneamente tribal. E é ainda do hegelianismo que, segundo Popper, brotam os piores aspectos do marxismo, ou seja, seu historicismo (a pretensão de ter descoberto as leis que guiariam de modo ferrenho toda a história humana) e seu totalitarismo. O materialismo histórico (é a “estrutura econômica” que determina a “superestrutura ideológica”) é uma absolutização metafísica de um aspecto da realidade; a dialítica é um mito; e, além disso, os próprios marxistas proibiram as componentes teóricas do marxismo, que eram científicas, de se desenvolverem como ciência, uma vez que, diante das refutações históricas da teoria, eles procuraram proteger a teoria com hipóteses ad hoc (compensam anomalias não previstas pelas teorias em sua forma original, ainda não modificada), comportando-se como o médico que, em vez de salvar o paciente, procura salvar com vários subterfúgios o seu diagnóstico, matando o paciente. A pergunta justa de teoria da política, diz Popper, não é: “quem deve comandar?”, porque nenhum homem, nenhum grupo, nenhuma raça e nenhuma classe pode arrogar-se o direito natural de domínio sobre os outros. A pergunta justa é antes: “como é possível controlar quem comanda e substituir os governantes sem derramamento de sangue?” Este é o delineamento de quem constrói, aperfeiçoa e defende as instituições democráticas em favor da liberdade e dos direitos de cada um e, portanto, de todos. E o delineamento de todos os que prezam de coração a sociedade aberta. www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 45 3.4 THOMAS KUHN O conceito de “paradigma” Thomas S. Kuhn integra a luta de conhecidos epistemólogos pós-popperianos que desenvolveram suas teorias epistemológicas em contato sempre mais estreito com a história da ciência. Em 1963 Kuhn publicou o livro A estrutura das revoluções cientificas, sustentando que a comunidade científica se constitui através da aceitação de teorias que Kuhn chama de paradigmas. “Com esse termo – escreve ele -, quero indicar conquistas científicas universalmente reconhecidas, que por certo período fornecem um modelo de problemas e soluções aceitáveis aos que praticam certo campo de pesquisas”. Na realidade, Kuhn utiliza o termo paradigma em mais de um sentido. Entretanto, ele próprio explica que a função do paradigma é hoje cumprida pelos manuais científicos, por meio dos quais o jovem estudante é iniciado na comunidade científica; antigamente isso era realizado pelos clássicos da ciência, como a Física de Aristóteles, o Almagesto de Ptolomeu, os Principia e a Ótica de Newton, a Eletricidade de Franklin ou a Química de Lavoisier. Por essa razão, a astronomia ptolemaica (ou a copernicana), a dinâmica aristotélica (ou a newtoniana) são todas paradigmáticas, a exemplo do fixismo de Lineu, da teoria da evolução de Darwin ou da teoria da relatividade de Einstein. “Ciência normal” e “ciência extraordinária” Assim como uma comunidade religiosa pode ser reconhecida pelos dogmas específicos em que acredita, ou como um partido político agrega seus membros em torno de valores e finalidades específicos, da mesma forma é uma teoria paradigmática a que institui uma comunidade científica, a qual, por força e no interior dos temas paradigmáticos, realiza o que Kuhn chama de ciência normal. A ciência normal é “a tentativa esforçada e devotada de forçar a natureza dentro dos quadros conceituais fornecidos pela educação profissional”. Significa a pesquisa estavelmente baseada em um ou mais resultados alcançados pela ciência do passado, aos quais uma comunidade cientifica particular, por certo período de tempo, reconhece a capacidade de constituir o fundamento de sua práxis ulterior. Essa práxis ulterior - a ciência normal - consiste em tentar realizar as promessas do paradigma, determinando os fatos relevantes (para o paradigma), confrontando (por exemplo, mediante medidas sempre mais exatas) os fatos com a teoria, articulando os conceitos da própria teoria, ampliando os campos de aplicação da teoria. Fazer ciência normal, portanto, significa resolver quebra-cabeças, isto é, problemas definidos pelo paradigma, que emergem do paradigma ou que se inserem no paradigma, razão por que o insucesso da solução de um quebra-cabeças não é visto como insucesso do paradigma, mas muito mais como insucesso do pesquisador, que não soube resolver uma questão para a qual o paradigma diz (e promete) que existe solução. Essa é situação análoga à do jogador de xadrez que, quando não soube resolver um problema e perde, acha que isso aconteceu porque ele não é capaz, e não porque as regras do xadrez não funcionam. A ciência normal, portanto, é cumulativa (constroem-se instrumentos mais potentes, efetuam-se medidas mais exatas, precisam-se os conceitos da teoria, amplia-se a teoria a outros campos etc.) e o cientista normal não procura a novidade. No entanto, a novidade deve aparecer necessariamente, pela razão de que a articulação teórica e empírica do paradigma aumenta o conteúdo informativo da teoria e, portanto, a expõe ao risco do desmentido (com efeito, quanto mais se diz, mais se está arriscado a errar; quem não diz nada, não www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 46 erra nunca; se fala pouco, arrisca-se a cometer poucos erros). Tudo isso explica as anomalias que, em dado momento, a comunidade cientifica tem de enfrentar e que, resistindo aos reiterados assaltos paradigmáticos, determinam a crise do paradigma. Com a crise do paradigma inicia-se o período de ciência extraordinária: o paradigma é submetido a um processo de desfocamento, os dogmas são postos em dúvida e, consequentemente, suavizam-se as normas que governam a pesquisa normal. Em suma, postos diante de anomalias, os cientistas perdem a confiança na teoria que antes haviam abraçado. A perda de um sólido ponto de partida se expressa pelo recurso à discussão filosófica sobre os fundamentos e a metodologia. Esses são os sintomas da crise, que cessa quando, do cadinho daquele período de pesquisa desconjuntada que é a ciência extraordinária, um novo paradigma consegue emergir, e sobre ele se articulará novamente a ciência normal, que, por seu turno, depois de um período de tempo talvez bastante longo, levará a novas anomalias, e assim por diante. As revoluções científicas Kuhn descreve a passagem a um novo paradigma (da astronomia ptolemaica à copernicana, por exemplo) como urna reorientação gestáltica: quando abraça um novo paradigma, por exemplo, a comunidade cientifica manipula o mesmo número de dados que antes, mas inserindo-os em relações diferentes de antes. Além disso, a passagem de um paradigma a outro, para Kuhn, é o que constitui uma revolução científica. Mas - e esse é um dos problemas mais candentes suscitados por Kuhn - como ocorre a passagem de um paradigma para outro? Essa passagem realiza-se por motivos racionaisou não? Pois bem, Kuhn afirma que “paradigmas sucessivos nos dizem coisas diferentes sobre os objetos que povoam o universo e sobre o comportamento de tais objetos”. E “precisamente por se tratar de urna passagem entre incomensuráveis, a passagem de um paradigma para outro, oposto, não se pode realizar com um passo cada vez, nem imposto pela lógica ou por uma experiência, neutra. Como a reorientação gestáltica, ela deve se dar toda de uma vez (ainda que não em um só instante), ou então não se realizará de modo nenhum”. Assim, talvez Max Planck tenha razão quando, em sua Autobiografia, fez questão de observar com tristeza que “uma nova verdade cientifica não triunfa convencendo seus opositores e fazendo-lhes ver a luz, e sim muito mais porque seus opositores acabam por morrer, e cresce uma nova geração a ela habituada”. A “passagem” de um paradigma para outro Na realidade, Kuhn afirma que “a transferência da confiança de um paradigma para outro é uma experiência de conversão que não pode ser imposta pela força”. Mas então por que, e em que bases, se verifica essa experiência de conversão? Os cientistas em particular abraçam um novo paradigma por todo tipo de razões e, habitualmente, por várias razões ao mesmo tempo. Algumas dessas razões - como, por exemplo, o culto ao sol, que contribuiu para converter Kepler ao copernicanismo - encontram- se completamente fora da esfera da ciência. Outras razões podem depender de idiossincrasias autobiográficas e pessoais. Até a nacionalidade ou a reputação anterior do inovador e de seus mestres pode, por vezes, desempenhar papel importante. Provavelmente, a pretensão mais importante posta pelos defensores de um novo paradigma seja a de estar em condições de resolver os problemas que levaram o velho paradigma à crise. Quando pode ser posta legitimamente, essa pretensão constitui frequentemente a argumentação a favor mais eficaz. Além disso, deve-se considerar que, por vezes, a aceitação de um novo paradigma não se deve ao fato de que ele resolve os problemas que o velho paradigma não consegue resolver, e sim a promessas que dizem respeito a outros campos. E existem até razões estéticas que introduzem um cientista ou um grupo de cientistas a aceitar um paradigma. Entretanto, Kuhn afirma que nos debates sobre os paradigmas não se discutem realmente suas respectivas capacidades para resolver os problemas, ainda que, com razão, normalmente sejam utilizados termos que a eles se refiram. O ponto em discussão, ao contrário, consiste em decidir que paradigma deve guiar a pesquisa no futuro, em torno de problemas que, muitas vezes, nenhum dos dois competidores pode ainda pretender seja capaz de resolver completamente. É preciso decidir entre formas alternativas de desenvolver a atividade científica e, dadas as circunstâncias, essa decisão deve- se basear mais nas promessas futuras do que nas conquistas passadas. Quem abraça um novo paradigma desde o início, frequentemente o faz a despeito das provas fornecidas pela solução dos problemas. Ou seja, ele deve ter confiança de que o novo paradigma, no futuro, conseguira resolver muitos dos vastos problemas que tem à sua frente, sabendo somente que o velho paradigma não conseguiu resolver alguns. Uma decisão desse tipo pode ser tomada apenas com base na fé. Assim, para que um paradigma possa triunfar, deve primeiro conquistar (as vezes, com base em considerações pessoais ou em considerações estéticas inarticuladas) “alguns defensores, que o desenvolverão www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 47 até um ponto em que muitas argumentações sólidas poderão ser produzidas e multiplicadas. Mas, quando existem, essas argumentações também não são individualmente decisivas. Visto que os cientistas são homens racionais, uma ou outra argumentação acabará por persuadir muitos deles. Não existe, porém, nenhuma argumentação em particular que possa ou deva persuadir a todos. O que se verifica não é tanto uma única conversão de grupo, e sim muito mais um progressivo deslocamento da distribuição da confiança dos especialistas”. O desenvolvimento ateleológico da ciência Pergunta-se, porém: a passagem de um paradigma para outro implica em progresso? O problema é complexo. Entretanto, somente durante os períodos de “ciência normal” é que o progresso parece evidente e seguro, ao passo que durante os períodos de revolução, quando as doutrinas fundamentais de um campo estão mais uma vez em discussão, surgem repetidamente dúvidas sobre a possibilidade de continuação do progresso, se for adotado este ou aquele dos paradigmas que se confrontam. Naturalmente, quando um paradigma se afirma, seus defensores o encaram como progresso. Mas Kuhn pergunta: progresso em que direção? Com efeito, diz ele, o processo que vemos na evolução da ciência é um processo de evolução a partir de estágios primitivos, o que não significa, porém, que tal processo leve a pesquisa sempre para mais perto da verdade ou em direção a algo. “Seria necessário existir tal objetivo?” - pergunta-se ele -. Não é possível explicar a existência da ciência como o seu sucesso em termos de evolução a partir do estado do conhecimento possuído pela comunidade em cada dado período de tempo? Adiantará verdadeiramente alguma coisa imaginar que exista uma explicação da natureza completa, objetiva e verdadeira, e que a medida apropriada da conquista cientifica é a medida em que ela se aproxima desse objetivo final? Se aprendermos a substituir a evolução na direção daquilo que queremos conhecer pela evolução a partir daquilo que conhecemos, grande número de inquietantes problemas pode se dissolver no curso desse processo. Assim como na evolução biológicas, também na evolução da ciência nos encontramos diante de um processo que se desenvolve constantemente a partir de estágios primitivos, mas que não tende a nenhum objetivo. 3.5 PAUL FEYERABEND O livro de Feyerabend (1924-1994) Contra o método (1970) foi escrito na convicção de que “o anarquismo, embora não sendo talvez a filosofia política mais atraente, é sem dúvida um excelente remédio para a epistemologia e para a filosofia da ciência”. Em essência, segundo Feyerabend, é preciso abandonar a quimera de que as normas “ingênuas e simplistas” propostas pelos epistemólogos podem explicar o “labirinto de interações” apresentado pela história real. A história em geral e a história das revoluções em particular são sempre mais ricas em conteúdos, mais variadas, mais multilaterais, mais vivas e mais ‘astutas’ do que pode ser imaginado até pelo melhor historiador e pelo melhor metodólogo”. Consequentemente, o anarquismo epistemológico de Feyerabend consiste na tese de que a ideia de um método que contenha princípios estáticos, imutáveis e absolutamente obrigatórios como guia para a atividade cientifica se defronta com dificuldades consideráveis quando é posta diante dos resultados da pesquisa histórica. Podemos ver que não existe uma norma isolada, por mais plausível e por mais solidamente radicada na epistemologia, que não tenha sido violada em alguma circunstância. Também se torna evidente que tais violações não são acontecimentos acidentais, e que não são resultado de um saber insuficiente ou de desatenções que teriam podido ser evitadas. Ao contrário, vemos www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 48 que tais violações são necessárias para o progresso científico. Uma das características que mais chamam a atenção nas recentes discussões sobre a história e a filosofia da ciência é a tomada de consciência do fatojá estabelecidos. Não é ela que fundamenta e estabelece o que sejam o bem e o mal, como base para orientarmos nossa vida; quem decide sobre o bem e o mal é agora o “sistema”, ou seja, o poder. A razão, tendo renunciado à sua autonomia, tornou-se um instrumento. A filosofia como denúncia da razão instrumental Diante desse vazio terrível, procurasse remediá- lo voltando a sistemas como a astrologia, a ioga ou o budismo; ou então são propostas adaptações populares de filosofias clássicas objetivistas ou, ainda, recomendam-se para o uso moderno as ontologias medievais. As panaceias, porém, não deixam de ser panaceias. A realidade, no entanto, é que: 1) A natureza é concebida hoje, mais do que nunca, como simples instrumento do homem; é o objeto de exploração total, a qual a razio não atribui nenhum objetivo e que, portanto, não conhece limites. 2) O pensamento que não serve aos interesses de um grupo constituído ou aos objetivos da produção industrial considera-se inútil e supérfluo. 3) Essa decadência do pensamento favorece a obediência aos poderes constituídos, sejam eles representados pelos grupos que controlam o capital, ou pelos grupos que controlam o trabalho. 4) A cultura de massa procura “vender” aos homens o modo de vida que já levam e que odeiam inconscientemente, ainda que o louvem com palavras. 5) Não só a capacidade de produção do operário é hoje comprada pela fábrica e subordinada às exigências da técnica, mas também os chefes dos sindicatos estabelecem sua medida e a administram. 6) A deificação da atividade industrial não conhece limites. O ócio é considerado uma espécie de vício, quando vai além da medida do que é necessário para restaurar as forças e permitir retomar o trabalho com maior eficiência. 7) O significado da produtividade é medido com critérios de utilidade em relação a estrutura de poder, não mais em relação as necessidades de todos. Nessa situação desesperada, o maior serviço que a razão poderia prestar a humanidade seria o da denúncia do que é comumente chamado de razão. Escreve ainda Horkheimer: “Os verdadeiros indivíduos de nosso tempo são os mártires que passaram por infernos de sofrimento e degradação em sua luta contra a conquista e a opressão, não mais as personagens da cultura popular, infladas pela publicidade. Aqueles heróis, que ninguém cantou, expuseram conscientemente sua existência individual a destruição sofrida por outros sem ter consciência disso, como vítimas dos processos sociais. Os mártires anônimos dos campos de concentração são o símbolo de uma humanidade que luta para vir à luz. A função da filosofia é a de traduzir o que eles fizeram em palavras que os homens possam ouvir, ainda que suas vozes mortais tenham sido reduzidas ao silêncio pela tirania”. A nostalgia do “totalmente outro” Marxista e revolucionário quando jovem, Horkheimer foi se afastando pouco a pouco de suas posiq6es juvenis. Não podemos absolutizar nada (deve-se recordar que Horkheimer é de origem judaica) e, portanto, também não podemos absolutizar o marxismo. Todo ser finito - e a humanidade é finita - que se pavoneia como o valor último, supremo e único, torna-se ídolo, que tem sede de sacrifícios de sangue. Marxista por ser contrário ao nacional- socialismo, Horkheimer desde o início nutriu dúvidas www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 6 sobre o fato de se a solidariedade do proletariado pregada por Marx era verdadeiramente o caminho para chegar a urna sociedade justa. Na realidade - observa Horkheimer em A nostalgia do totalmente Outro (1970) - as ilusões de Marx logo vieram à tona: “A situação social do proletariado melhorou sem a revolução, e o interesse comum não é mais a transformação radical da sociedade, e sim a melhor estruturação material da vida”. E, na opinião de Horkheimer, existe uma solidariedade que vai além da solidariedade de determinada classe: é a solidariedade entre todos os homens, a solidariedade que deriva do fato de que todos os homens devem sofrer, devem morrer e são finitos. Se assim é, então “todos nós temos em comum um interesse originariamente humano, qual seja, o de criar um mundo no qual a vida de todos os homens seja mais bela, mais longa, mais livre da dor e, gostaria de acrescentar, mas não posso acreditar nisso, um mundo que seja mais favorável ao desenvolvimento do espirito”. Diante da dor do mundo e diante da injustiça, não podemos ficar inertes. Mas nós, homens, somos finitos. Por isso, embora não devamos nos conformar, também não podemos pensar que algo histórico – uma política, uma teoria, um Estado - seja algo absoluto. Nossa finitude, ou seja, nossa precariedade, não demonstra a existência de Deus. Entretanto, existe a necessidade de uma teologia, não entendida como ciência do divino ou de Deus, e sim como “a consciência de que o mundo é fenômeno e, portanto, não a verdade absoluta que só a realidade última pode ser. A teologia – e aqui devo me expressar com muita cautela - é a esperança de que, apesar dessa injustiça que caracteriza o mundo, possa acontecer que essa injustiça não seja a última palavra”. Assim para Horkheimer, portanto, a teologia é expressão de uma nostalgia segundo a qual o assassino não possa triunfar sobre sua vítima inocente. Portanto, nostalgia de justiça perfeita e consumada. Esta jamais poderá ser realizada na história, diz Horkheimer. Com efeito, ainda que a melhor sociedade viesse a substituir a atual desordem social, não será reparada a injustiça passada e não se anulará a miséria da natureza circunstante. Entretanto, isso não significa que devamos nos render aos fatos, como, por exemplo, ao fato de que nossa sociedade se torna sempre mais sufocante. Segundo Horkheimer, nós ainda não vivemos em uma sociedade automatizada. Ainda podemos fazer muitas coisas, mesmo que mais tarde essa possibilidade venha a ser-nos tirada. E o que o filósofo deve fazer é criticar a ordem constituída para impedir que os homens se percam naquelas ideias e naqueles modos de comportamento que a sociedade lhes propicia em sua organização. 3. HERBERT MARCUSE É impossível uma civilização não-repressiva? Eros e civilização (1955) desenvolve um dos temas mais importantes do pensamento de Freud, ou seja, a teoria freudiana de que a civilização se baseia na repressão permanente dos instintos humanos. Como escrevia Freud, “a felicidade não é um valor cultural”. E, comenta Marcuse (1898-1979), isso no sentido de que “a felicidade está subordinada a um trabalho que ocupa toda a jornada, a disciplina da reprodução monogâmica, ao sistema constituído das leis e da ordem. O sacrifício metódico da libido e seu desvio imposto inexoravelmente, para atividades e expressões socialmente úteis, são a cultura”. Na opinião de Freud, a história do homem é a história de sua repressão. A cultura ou civilização impõe constrições sociais e biológicas ao indivíduo, mas essas constrições são a condição preliminar do progresso. Deixados livres para seguir seus objetivos naturais, os instintos fundamentais do homem seriam incompatíveis com toda forma duradoura de associação: “Os instintos, portanto, devem ser desviados de sua meta, e inibidos em seu objetivo. A civilização começa quando se renuncia eficazmente ao objetivo primário: a satisfação integral das necessidades”. Essa renúncia ocorre na forma de deslocamento: DE PARA Satisfação Satisfação Imediata Adiada Prazer Limitação do prazer Alegria (jogo) Fadiga (trabalho) Receptividade Produtividade Ausência de repressão Segurança www.filosofiatotal.com.br Prof. Andersonde que acontecimentos e desdobramentos como a invenção do atomismo na antiguidade, a revolução copernicana, o advento da teoria atômica moderna (teoria cinética, teoria da dispersão, estereoquimica, teoria quântica) e o surgimento gradual da teoria ondulatória da luz só se verificaram porque alguns pensadores decidiram não se deixar obrigar por certas normas metodológicas “óbvias”, ou porque as violaram involuntariamente. Tal liberdade de ação, segundo Feyerabend, não é somente um fato da história da ciência. Ela é tão racional quanto absolutamente necessária para o crescimento do saber. Mais especificamente, pode-se demonstrar o seguinte: dada uma norma qualquer, por mais “fundamental” ou “necessária” que ela seja para a ciência, há sempre circunstâncias nas quais é oportuno não somente ignorar a norma, mas também adotar seu oposto. Por exemplo, há circunstâncias nas quais é aconselhável introduzir, elaborar e defender hipóteses ad hoc (compensam anomalias não previstas pelas teorias em sua forma original, ainda não modificada), ou hipóteses cujo conteúdo seja menor em relação ao das hipóteses alternativas existentes e empiricamente adequadas, ou ainda, hipóteses autocontraditórias etc. Há inclusive circunstâncias - que, aliás, se verificam bastante frequentemente - nas quais o raciocínio perde seu aspecto orientado para o futuro, tornando-se até obstáculo para o progresso. 3.6 KARL MANNHEIM Concepção parcial e total da ideologia Aqui, delinearemos os traços de fundo das teorias de Karl Mannheim (1893-1947), o pensador que, mais do que qualquer outro, contribuiu (com seu trabalho Ideologia e utopia, 1929) para a proposição dos problemas típicos da sociologia do conhecimento. A sociologia do conhecimento ou sociologia do saber estuda os condicionamentos sociais do saber, “procurando analisar a relação entre conhecimento e existência”. O fato de pertencer a determinada classe, como, por exemplo, a classe burguesa ou proletária, implica o que para as ideias morais, religiosas, políticas, econômicas, ou para o próprio modo de fazer ciência de quem a ela pertence? E como são condicionadas as produções mentais de quem pertence a uma Igreja, a uma camada social, a um partido ou a uma geração em função dessa participação? Na realidade, escreve Mannheim, “há aspectos do pensar que não podem ser adequadamente interpretados enquanto suas origens sociais permanecerem obscuras”. A consciência do condicionamento social das categorias e das produções mentais não é coisa recente. Assim, apenas para citar alguns pensadores do passado, a teoria dos idola de Bacon é exemplo da consciência do condicionamento social do pensamento. Mas essa consciência também pode ser encontrada em Malebranche, Pascal, Voltaire, Montesquieu, Saint-Simon e, mais recentemente, em Nietzsche. Foi Maquiavel quem observou que se pensa de um modo na praça e de outro no palácio. E Marx, por seu turno, estabeleceu como um dos fulcros de seu pensamento a ideia de que “não é a consciência dos homens que determina seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência”. Pois bem, a sociologia do conhecimento assume e modifica criticamente essa conhecida afirmação de Marx, no sentido de que, sem negar que exista a influência da sociedade sobre o pensamento, a sociologia do conhecimento considera que essa influência não é determinação, e sim condicionamento. Para Mannheim, o marxismo viu claramente que por trás de toda doutrina se encerra a consciência de uma classe. Esse pensamento coletivo, que procede de acordo com determinados interesses e situações sociais, Marx o chamou de ideologia. Em Marx, a ideologia é um pensamento subvertido (não são as ideias que dão sentido a realidade, mas sim a realidade social que determina as ideias morais, religiosas, filosóficas etc.) e distorcido (o burguês, por exemplo, propõe suas ideias como universalmente validas, embora elas sejam somente a defesa de interesses particulares), que tende a justificar e manter uma situação de fato. É a partir da concepção marxista de ideologia que Mannheim começa a tecer a rede de seus conceitos. Antes de mais nada, ele distingue entre concepção particular da ideologia e concepção total. Escreve Mannheim que, “na primeira, incluímos todos aqueles www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 49 casos em que a ‘falsidade’ deve-se a um elemento que, intencional ou não, consciente ou inconsciente, permanece em nível psicológico e não supera o plano da simples mentira”. Nessa concepção particular de ideologia, nos referimos sempre a afirmações especificas que podem ser vistas como deformações e falsificações, sem que por isso fique comprometida a integridade da estrutura mental do sujeito. Mas a sociologia do conhecimento problematiza precisamente essa estrutura mental em sua totalidade, tal como ela aparece nas diversas correntes de pensamento e nos vários grupos histórico- sociais. Em outros termos, a sociologia do saber não critica as simples afirmações que camuflam situações particulares; ao contrário, ela muito mais “as examina em plano estrutural ou noológico, que não se apresenta de modo algum igual em todos os homens, mas é tal que a mesma realidade assume diversas formas e aspectos no curso do desenvolvimento social. A concepção particular da ideologia mantém suas analises “em nível puramente psicológico”, enquanto a concepção total da ideologia refere-se à ideologia de uma época ou de um grupo histórico- social, como uma classe. A concepção total chama em causa toda a cosmovisão da oposição (inclusive todo o seu instrumento conceitual), compreendendo tais conceitos como produto da vida coletiva de que participa. Desmascaramos a ideologia parcial quando, por exemplo, dizemos ao adversário que essa sua ideia é somente uma defesa do seu posto de trabalho ou deste ou daquele privilégio social, e estou descobrindo uma ideologia total quando constato correspondência entre uma situação social e determinada perspectiva ou consciência coletiva. O marxismo é “ideológico”? A distinção entre ideologia e utopia Marx utilizou unilateralmente a descoberta do condicionamento social do pensamento. Ele procurou invalidar a concepção burguesa do mundo não porque ela seja um “engano político deliberado”, e sim porque determinada por uma situação social precisa. A cosmovisão burguesa é filha direta de uma situação histórica e social. Mas, se o condicionamento social vale para o pensamento burguês, pergunta-se Mannheim, não valerá também para o pensamento marxista? Escreve Mannheim: “Pode-se mostrar facilmente que aqueles que pensam em termos socialistas e comunistas só identificam o elemento ideológico nas ideias de seus adversários, ao passo que consideram suas próprias ideias como inteiramente livres da deformação ideológica. Como sociólogos, não temos nenhuma razão para deixar de aplicar ao marxismo o que ele próprio descobriu, e para não identificar, caso por caso, seu caráter ideológico”. E precisamente quando alguém “tem a coragem de submeter não só o ponto de vista do adversário, mas qualquer ponto de vista, inclusive o seu próprio, a análise ideológica, então se passa da crítica da ideologia à sociologia do conhecimento propriamente dita. Sociologia do conhecimento que realiza também outra distinção: a distinção entre ideologia e utopia. Por ideologia, diz Mannheim, entendem-se “as convicções e ideias dos grupos dominantes, os fatores inconscientes de certos grupos que ocultam o estado real da sociedade para si e para outros, exercendo, portanto, sobre ele função conservadora”. Já o conceito de utopia mostra uma segunda e inteiramente oposta descoberta: “Existem grupos subordinados tão fortemente empenhadosna transformação de determinada condição social, que só conseguem perceber na realidade os elementos que eles tendem a negar. Seu pensamento é incapaz de um diagnóstico correto da sociedade presente”. O pensamento de tais grupos nunca constitui uma visão objetiva da situação, podendo ser usado www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 50 somente como diretriz para a ação. É pensamento que dá as costas a tudo o que poderia ameaçar sua convicção profunda ou paralisar seu desejo de revolução. Portanto, enquanto a ideologia é o pensamento conservador que se ergue em defesa dos interesses adquiridos, a utopia é o pensamento voltado a destruir a ordem existente. Assim, para Mannheim, a utopia é um projeto realizável; trata-se de uma “verdade prematura”. De tais utopias, também elas obviamente condicionadas socialmente, Mannheim analisa quatro formas: 1) o quiliasmo orgiástico dos anabatistas; 2) o ideal liberal-humanitário que guiou o movimento da Revolução Francesa; 3) o ideal conservador; 4) a utopia socialista-comunista. A ideologia é o pensamento da classe “superior”, que detém o poder e procura não perdê-lo; a utopia é o pensamento da classe “inferior”, que visa libertar-se das opressões e tomar o poder. O “relacionamento” evita o “relativismo” Se o pensamento é socialmente condicionado, então também a sociologia do conhecimento deve ser socialmente condicionada. E Mannheim está pronto a reconhecer esse condicionamento. Podemos identificar, com relativa precisão, as condições que impelem as pessoas a refletir mais sobre o pensamento do que sobre as coisas do mundo e mostrar que, nesse caso, não se faz tanta questão de uma verdade absoluta, e sim muito mais do fato, em si mesmo alarmante, da mesma realidade que se apresenta diversamente para diferentes observadores. Mannheim vê na base da gênese da sociologia do conhecimento “a intensificação da mobilidade social”. Trata-se de uma mobilidade vertical e horizontal: a horizontal é “o movimento de uma posição a outra ou de um lugar a outro, sem que ocorra mudança no estado social”; a vertical, ao contrário, consiste em “rápido movimento entre as diversas camadas, no sentido de ascensão ou de declínio social”. Um e outro tipo de mobilidade contribuem para tornar as pessoas incertas em relação a sua concepção do mundo e a destruir a ilusão, dominante nas sociedades estáticas, de que “tudo pode mudar, mas o pensamento permanece eternamente o mesmo”. Aí, portanto, está a raiz social da sociologia do conhecimento: a dissolução das sociedades estáveis. Chegando-se a esse ponto, resta enfrentar o principal problema da sociologia do conhecimento. Com efeito, se todo pensamento é socialmente condicionado, e se toda concepção do mundo é relativa à condição social de seu portador, então onde está a verdade? Não há mais nenhum critério para distinguir concepções verdadeiras de concepções falsas? O pressuposto fundamental da sociologia do conhecimento (ou seja, o condicionamento social do pensamento) não leva necessariamente ao relativismo? São problemas que não podem ser evitados. E Mannheim os enfrenta e tenta resolvê-los com sua teoria da intellighentzia e, vinculada a ela, a teoria do relacionismo. O pensamento é socialmente condicionado, diz Mannheim, mas, consciente dos condicionamentos do seu pensamento e dos condicionamentos das outras concepções do mundo, o intelectual, precisamente com base nesta sua consciência, conseguiria se desvincular do condicionamento social. Em suma, na sua opinião, a intellighentzia seria um grupo relativamente independente daqueles interesses sociais que interferem nas concepções de mundo dos outros grupos, limitando-as. Em suma, conscientes dos laços entre as diversas cosmovisões e a existência social, os intelectuais estariam em condições de chegar a “uma síntese das virias perspectivas” e, portanto, a uma visão mais objetiva da realidade. Daí a teoria do relacionismo. Escreve Mannheim: “A sociologia do conhecimento submete consciente e sistematicamente todo fenômeno intelectual, sem exceção, à pergunta: em relação a que estrutura social tais fenômenos nascem e são válidos? A referência das ideias individuais a toda a estrutura histórico-social não deveria ser confundida com um relativismo filosófico, que nega a validade de todo modelo e a existência de uma ordem no mundo. Assim como o fato de que toda medida no espaço depende da natureza da luz não significa que nossas medidas sejam arbitrárias, e sim que elas são válidas em relação à luz, da mesma forma é o relacionismo que se aplica às nossas discussões, e não o relativismo e a arbitrariedade a ele implícita. O relacionismo não significa que faltem critérios de verdade na discussão. Segundo ele, entretanto, é próprio da natureza de certas afirmações o não poderem ser formuladas em absoluto, mas somente nos termos da perspectiva posta por determinada situação”. Ora, considerando precisamente o exemplo escolhido por Mannheim, podemos logo ver que há uma diferença abissal entre a relatividade dos conhecimentos fornecidos pelas ciências naturais e o relativismo das várias perspectivas em que, habitualmente, se faz caminhar a sociologia do conhecimento. Todo conhecimento cientifico é relativo a época em que é proposto e provado: depende do saber anterior, dos instrumentos disponíveis na época etc. Entretanto, quando respeitadas as condições do método cientifico, as teorias cientificas são universais e válidas para todos, ainda que desmentíeis em período posterior. O trabalho de Mannheim levantou toda uma série de problemas, sobre os quais trabalharia posteriormente a sociologia empírica, tanto européia como norte-americana. www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 51 4. PRAGMATISMO O pragmatismo é a forma que o empirismo assumiu nos Estados Unidos O pragmatismo nasceu nos Estados Unidos nas últimas décadas do século passado, e sua força de expressão, tanto na América quanto na Europa, chegou a seu ponto máximo nos primeiros quinze anos do século XX. Do ponto de vista sociológico, o pragmatismo representa a filosofia de uma nação voltada com confiança para o futuro, enquanto do ponto de vista da história das ideias ele se configura como a contribuição mais significativa dos Estados Unidos à filosofia ocidental. O pragmatismo é a forma que o empirismo tradicional assumiu nos Estados Unidos. Com efeito, enquanto o empirismo tradicional, de Bacon a Locke, de Berkeley a Hume, considerava válido o conhecimento baseado na experiência e a ela redutível - concebendo a experiência como a acumulação e organização progressiva de dados sensíveis passados ou presentes -, para o pragmatismo a experiência é abertura para o futuro, é previsão, é norma de ação. Os representantes mais prestigiosos do movimento pragmatista nos Estados Unidos foram: Charles Peirce, William James e John Dewey. 4.1 CHARLES S. PEIRCE E OS PROCEDIMENTOS PARA FIXAR AS CRENÇAS Se o pragmatismo de William James teve mais sucesso na época, no entanto o pragmatismo de Charles S. Peirce (1839-1914) exerceu e ainda em nossos dias exerce influência decididamente mais importante sobre as pesquisas metodológicas e semiológicas. Para Peirce, o conhecimento é pesquisa. E a pesquisa se inicia com a dúvida. E a irritação da dúvida que causa a luta para se obter o estado de crença, que é um estado de calma e satisfação. E nós procuramos obter crenças, já que são esses hábitos que determinam as nossas ações. Pois bem, por quais caminhos ou procedimentos se passa da dúvida à crença? No ensaio de 1877 Afixação da crença Peirce sustenta que os métodos para fixar a crença são substancialmente redutíveis a quatro: 1) o método da tenacidade; 2) o método da autoridade; 3) o método do a priori; 4) por fim, o método científico. 1) O método da tenacidade é o comportamento do avestruz, que esconde a cabeça na areia quando se aproxima o perigo; é o caminho de quem está seguro somente na aparência, ao passo que, em seu interior, está espantosamente inseguro. E tal insegurança emerge quando ele se defronta com outras crenças, reputadas igualmente boas por outros. O impulso social, escreve Peirce, é contra esse método. 2) O método da autoridade é o de quem, com a ignorância, o terror e a inquisição, quer alcançar a concordância de quem não pensa igual ou não pensa em harmonia com o grupo ao qual pertence. Este é um método que tem incomensurável superioridade mental e moral sobre o método da tenacidade, e seu sucesso tem sido grande e de fato sempre apresentou os mais majestosos resultados; este é o método das fés organizadas. Mas nenhuma de tais fés organizadas permaneceu eterna; na opinião de Peirce, a crítica as corroeu e a história as redimensionou e, de qualquer forma, as particularizou. 3) O método do “a priori” é o de quem considera que suas próprias proposições fundamentais estão de acordo com a razão. Entretanto, observa Peirce, a razão de um filósofo não é a razão de outro filósofo, como o demonstra a história das ideias metafísicas. O método a priori leva ao insucesso, porque faz da pesquisa algo semelhante ao desenvolvimento do gosto, visto ser método que não difere de modo essencial do método da autoridade. 4) Assim, por um ou outro motivo, os três métodos precedentes (da tenacidade, da autoridade e do a priori) não se sustentam. Se quisermos estabelecer validamente as nossas crenças, segundo Peirce, o método correto é o método cientifico. Dedução, indução e abdução Ora, na ciência, temos três diferentes modos fundamentais de raciocínio: a) a dedução; b) a indução; e aquela que Peirce chama de c) abdução. www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 52 a) A dedução é o raciocínio que não pode levar de premissas verdadeiras a conclusões falsas. b) A indução é argumentação que, a partir do conhecimento de que certos membros de uma classe, escolhidos ao acaso, possuem certas propriedades, conclui que todos os membros da mesma classe igualmente as terão. A indução, diz Peirce, move-se na linha de fatos homogêneos; classifica e não explica. C) O salto da linha dos fatos para a das suas razões, ao contrário, temos com o tipo de raciocínio que Peirce chama de abdução, cujo esquema é o seguinte: 1. Observa-se C, um fato surpreendente. 2. Mas, se A fosse verdadeiro, então C seria natural. 3. Portanto, há razões para suspeitar que A seja verdadeiro. Esse tipo de argumentação nos diz que, para encontrar a explicação de um fato problemático, devemos inventar uma hipótese ou conjectura, da qual se deduzam consequências, que, por seu turno, possam ser verificadas indutivamente, isto é, experimentalmente. Esse é o modo pelo qual a abdução mostra-se intimamente relacionada com a dedução e a indução. Por outro lado, a abdução mostra que as crenças cientificas são sempre falíveis, já que as provas experimentais sempre poderão desmentir as consequências de nossas conjecturas: “Para a mente cientifica, a hipótese deve ser o tempo todo provada”. Como tornar clara as nossas ideias: a regra pragmática O método válido para fixar as crenças, portanto, é o método cientifico, que consiste em formular hipóteses e submetê-las à verificação, com base em suas consequências. Por outro lado, a regra válida para a teoria do significado, isto é, a regra adequada para estabelecer o significado de um conceito, é a regra pragmática, segundo a qual um conceito se reduz a seus efeitos experimentais concebíveis; estes efeitos experimentais se reduzem, por sua vez, a ações possíveis (ou seja, a ações efetuáveis no momento em que se apresentar a ocasião); e a ação se refere exclusivamente a aquilo que atinge os sentidos. Do que foi dito torna-se evidente que o pragmatismo de Peirce não reduz de modo algum a verdade à utilidade, mas se estrutura muito mais como uma lógica da pesquisa ou uma norma metodológica que vê a verdade como por fazer, no sentido de considerar verdadeiras as ideias cujos efeitos concebíveis são comprovados pelo sucesso prático, sucesso jamais definitivo e absoluto. A verdade, escreve Peirce, jaz no futuro. 4.2 O EMPIRISMO RADICAL DE WILLIAM JAMES O pragmatismo é apenas um método Apesar de James (1842-1910) ser laureado em medicina e ter ensinado fisiologia e anatomia em Harvard, foi ele quem lançou o pragmatismo como filosofia em 1898. O pragmatismo de fato foi recebido e conhecido pelo público mais amplo nas concepções propostas por James. Foi sob a sua liderança que o pragmatismo se tornou conhecido no mundo. Com ele temos a versão moral e religiosa do pragmatismo. Afirma James: “O pragmatismo é apenas método” que se configura, em primeiro lugar, como uma atitude de pesquisa, como “a disposição de afastar o olhar das coisas primeiras, dos princípios, das ‘categorias’, das pretensas necessidades e, ao contrário, voltar os olhos para as coisas ultimas, os resultados, as consequências, os fatos”. O pragmatismo é método para alcançar a clareza das ideias que temos dos objetos. E esse método nos impõe “considerar quais efeitos práticos concebíveis essa ideia pode implicar, quais sensações podemos esperar e quais reações devemos preparar. Nossa concepção desses efeitos, tanto imediata como remota, é então toda a concepção que temos do objeto, enquanto ela tiver significado positivo”. A verdade de uma ideia se reduz a sua capacidade de “operar” A este ponto, parece que as ideias de James sobre o pragmatismo (expostas no ensaio Pragmatismo, de 1907) não diferem das de Peirce. No entanto, as coisas não são bem assim: para James, as ideias (que são www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 53 parte da nossa experiência) tornam-se verdadeiras a medida que nos ajudam a obter relações satisfat6ria com as outras partes de nossa experiência, e a resumi- las por meio de esquemas conceituais. Uma ideia é verdadeira quando nos permite andar adiante e leva-nos de uma parte a outra de nossa experiência, ligando as coisas de modo satisfatório, operando com segurança, simplificando, economizando esforços. Esta, diz ainda James, “é a concepção ‘instrumental’ da verdade, ensinada com tanto sucesso em Chicago, a concepção tão brilhantemente difundida em Oxford: a veracidade de nossas ideias significa sua capacidade de ‘operar’”. Desse modo, a veracidade das ideias era identificada com sua capacidade de operar, com sua utilidade, tendo em vista a melhoria ou a tornar menos precária a condição vital do indivíduo. Além disso, para James “a verdade de uma ideia não está em sua estagnante propriedade”. Há um processo de verificação que torna verdadeira uma ideia. “Uma ideia torna-se verdadeira, é tornada verdadeira pelos acontecimentos. Sua veracidade é de fato acontecimento, processo: mais exatamente, o processo de seu verificar-se, sua verificação. As ideias verdadeiras, segundo James, “são as que podemos assimilar, ratificar, confirmar e verificar. E falsas são aquelas em relação as quais não podemos fazer o mesmo”. As ideias ou teorias verdadeiras, para James, são aproximações melhores do que as ideias anteriores, resolvendo os problemas de modo mais satisfatório. E “a posse da verdade,longe de ser fim, é apenas meio para outras satisfações vitais”. Os princípios da psicologia e os instrumentos da adaptação Em 1890, James publicou os dois volumes que constituem os Princípios de psicologia. James considera que uma fórmula que prestou amplos serviços à psicologia foi a fórmula spenceriana, segundo a qual “a essência da vida mental e a essência da vida corporal são idênticas, ou seja, ‘a adaptação das relações internas as externas’ ”. Essa formula pode ser considerada a encarnação da generalidade – comenta James - mas, “como considera o fato de que as mentes vivem em ambientes que agem sobre elas e sobre as quais elas por seu turno reagem, já que, em suma, ela põe a mente no concreto de suas relações, tal formula é imensamente mais fértil do que a velha ‘psicologia racional’, que considerava a alma como coisa separada e autossuficiente, e pretendia estudar somente sua natureza e prioridade”. Na realidade, James faz da mente um instrumento dinâmico e funcional para a adaptação ambiental. A vida psíquica caracteriza-se por finalismo que se expressa como energia seletiva já no ato elementar da sensação. Por isso tudo, a velha noção de alma já não servia para James. Mas ele também criticava os associacionistas, que reduziam a vida psíquica a combinação das sensações elementares, e criticava os materialistas, com sua pretensão de identificar os fenômenos psíquicos com os movimentos da matéria cerebral. A consciência se apresenta para James como corrente contínua: ele fala de uma corrente de pensamento. E a única unidade que se pode detectar na corrente de pensamento é aquela pela qual o pensamento difere em cada momento do momento anterior, apropriando-o juntamente com tudo o que este último chama de seu. A “experiência pura” aparece para ele como “o imenso fluxo vital que fornece o material para a nossa reflexão ulterior”. Para James, a relação sujeito-objeto é derivada. Conceber a mente como instrumento de adaptação ao ambiente foi a ideia que levou James a ampliação do objeto de estudo da psicologia: esse objeto não diria mais respeito somente aos fenômenos perceptivos e intelectivos, e sim também aos condicionamentos sociais ou fenômenos como os concernentes ao hipnotismo, a dissociação ou ao subconsciente. James apenas realizou análises refinadas e críticas agudas sobre esses temas, mas também prenunciou muitas doutrinas que depois seriam desenvolvidas pelo comportamentalismo, pela psicologia da Gestalt e pela psicanálise. A questão moral: como escolher entre ideias contrastantes Presente em diversos escritos de James, a questão ética é enfrentada explicitamente em dois escritos fundamentais para sua concepção pragmática: O filósofo moral e a vida moral (1891), e A vontade de crer (1897). Neste último ensaio, James levanta questões como a dos valores, que não podem ser decididas recorrendo às experiências sensíveis. As questões morais, antes de tudo, não são tais que sua solução possa esperar prova sensível. Com efeito, uma questão moral não é uma questão do que existe, mas daquilo que é bom ou seria bom que existisse. A ciência pode nos dizer o que existe ou não existe. Mas, para as questões mais urgentes, devemos consultar as “razões do coração”. Há decisões que todo homem não pode deixar de tomar, dizem respeito ao sentido último da vida, ao problema da liberdade humana ou de sua falta, da dependência ou não no mundo em relação a uma inteligência ordenadora e regente, da unidade monística ou não do mundo todas questões teoricamente insolúveis, que só se podem enfrentar mediante escolha pragmática. www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 54 Voltemos, porém, aos valores. Os fatos físicos existem ou não existem e, enquanto tais, não são bons nem maus. O ser melhor não é relação física. A realidade é que o bem e o mal só existem em referência ao fato de que satisfazem ou não às exigências dos indivíduos. Refletindo variedade enorme de necessidades e impulsos diversos, essas exigências geram um universo de valores frequentemente em contraste. Então, como unificar e hierarquizar tais ideais, variados e muitas vezes contrastantes? A resposta de James a essa pergunta crucial é que se devem preferir os ideais que, se realizados, impliquem a destruição do menor número de outros ideais e o universo mais rico de possibilidades. Naturalmente, tal universo não é dado de fato, não é absolutamente garantido, e se propõe como simples norma que caracteriza a vontade moral enquanto tal. A variedade da experiência religiosa e o universo pluralista Outra grande obra de William James é A variedade da experiência religiosa (1902), onde o autor propõe antes de mais nada uma rica fenomenologia da experiência religiosa. James é contrário aos positivistas, que ligavam a religião a fenômenos degenerativos. O empirista radical James não quer que a identificação das riquezas das experiências humanas seja bloqueada por um juízo de valor qualquer. A vida religiosa é inconfundível; ela põe os homens em contato com uma ordem invisível e muda sua existência. Segundo James, o estado místico é o momento mais intenso da vida religiosa e age como se ampliasse o campo perceptivo, abrindo-nos possibilidades desconhecidas ao controle racional. E a atitude mística não pode se tornar garantia de uma determinada teologia. Aliás, para James, a experiência mística deve ser defendida pela filosofia. Aqui podemos ver como James passa da descrição à avaliação da experiência mística, considerada como acesso privilegiado, inacessível pelos meios comuns, ao Deus que potencializa nossas ações e que é “a alma e a razão interior do universo”, de um universo pluralista, onde Deus (que não é o mal nem o responsável pelo mal) é concebido como pessoa espiritual que nos transcende e nos convoca a colaborar com ele. Um universo pluralista (1909) é uma das últimas obras de James, onde ele tenta libertar a experiência religiosa da angústia do pecado - angústia arraigada na tradição puritana da Nova Inglaterra - e onde, precisamente, Deus é concebido como ser finito. Para James, Deus não é o todo, ele é um Deus-companheiro. 4.3 O INSTRUMENTALISMO DE JOHN DEWEY A experiência não se reduz à consciência nem ao conhecimento A filosofia de John Dewey (1859-1952), que foi o mais significativo filósofo americano do século XX, foi definida como “naturalismo”. É uma filosofia que se move no leito do pragmatismo e se situa no quadro da tradição empirista. Entretanto, Dewey optou por chamar sua filosofia de instrumentalismo, que, em primeiro lugar, se diferencia do empirismo clássico quanto ao conceito fundamental de experiência. A experiência dos empiristas clássicos é simplificada, ordenada e purificada de todos os elementos de desordem e erro, reduzida a estados de consciência claros e distintos. Dewey, em Experiência e natureza (1925), sustenta que “a experiência não é consciência, e sim história”; ou seja, ela não se reduz a um estado de consciência claro e distinto. A experiência não se reduz tampouco ao conhecimento, ainda que o próprio conhecimento seja parte da experiência, seja uma experiência. Ela, de fato, inclui os sonhos, a loucura, a doença, a morte, a guerra, a confusão, a ambiguidade, a mentira e o horror; inclui os sistemas transcendentais, e também os sistemas empíricos; inclui tanto a magia e a superstição como a ciência. Inclui tanto a inclinação que impede de aprender da experiência como a habilidade que tira partido de seus mais fracos acenos. Dewey propõe substancialmente a ideia de experiência capaz de dar a mesma atenção que se tem para aquilo que é “nobre, honroso e verdadeiro” também para o que, na vida humana, existe de “desfavorável, precário,incerto, irracional e odioso”. Afirma ele: “Considerando o papel que a antecipação e a memória da morte desempenharam na vida humana, da religião às companhias de seguro, o que se pode dizer de uma teoria que define a experiência de tal modo a ponto de fazer seguir-se logicamente que a morte nunca seja matéria de experiência?” Há mais, já que a não identificação entre experiência e conhecimento permite a Dewey realizar a tentativa de solução do problema gnosiológico: com www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 55 efeito, “há duas dimensões das coisas experimentadas; uma é a de tê-las outra é a de conhecê-las para tê-las de modo mais significativo e seguro”. Na realidade, não é fácil conhecer as coisas que temos ou somos, sejam elas o sonho, o sarampo, a virtude, uma pena, o vermelho. O problema do conhecimento é o problema de como encontrar o que é necessário encontrar em torno dessas coisas para garantir, retificar ou evitar o fato de tê-las ou o de sê- las. Desse modo, para Dewey, enquanto o ceticismo pode verificar-se (a fim de nos tornar curiosos e indagadores) em qualquer momento em relação a qualquer crença ou conclusão intelectual, no entanto ele é impossível acerca das coisas que nós temos e somos. Um homem pode duvidar se está com sarampo, porque o sarampo é termo intelectual, classificação, mas não pode duvidar do que tem empiricamente - não, como se diz, porque está imediatamente certo dele, mas porque não é matéria de conhecimento, não é de modo algum questão intelectual, não é caso de verdade ou falsidade, de certeza ou de dúvida, mas somente de existência. Precariedade e risco da existência A experiência é história, história voltada para o futuro, prenhe de futuro. E a filosofia, diferentemente da antropologia cultural, tem a função do desmembramento analítico e da reconstrução sintética da experiência. Os fenômenos da cultura, apresentados pelo antropólogo, constituem o material para o trabalho do filósofo. Pois bem, uma característica da existência que os fenômenos culturais põem em relevo é o seu caráter precário e arriscado. Diz Dewev: “O homem vive em mundo aleatório; para dizê-lo cruamente, sua existência implica o acaso. O mundo é o palco do risco: é incerto, instável, terrivelmente instável”. Claro, seria fácil e confortante insistir na boa sorte e nas alegrias inesperadas. A comédia é tão genuína quanto a tragédia. Mas, observa Dewey, é sabido que "a comédia atinge uma nota mais superficial que a tragédia. E o homem teme porque vive em um mundo temível, em um mundo que dá medo. O próprio mundo é precário e perigoso: “Não foi o temor em relação aos deuses que criou os deuses”. O homem vive neste mundo: a natureza não existe sem homem nem o homem existe sem a natureza. O homem está imerso na natureza. E, no entanto, ele é uma natureza capaz de, e destinada a, mudar a própria natureza e dar-lhe significado. É precisamente para se garantir contra a instabilidade e a precariedade da existência o homem, primeiro, recorreu a forças mágicas e construiu mitos que, depois de terem caído, logo procurou substituir por outras ideias tranquilizadoras, como a imutabilidade do ser, o processo universal, a racionalidade inerente ao universo, o universo regido por leis necessárias e universais. “De Heráclito a Bergson, há muitas filosofias ou metafísicas do universo. Somos gratos a essas filosofias, que mantiveram vivo aquilo que as filosofias clássicas e ortodoxas deixaram de lado. Mas as filosofias do fluxo normal também indicam a intensidade com que se deseja o que é seguro e estável. Elas deificaram a mudança, tornando-a universal, regular e segura. Considerai o modo completamente laudatório com o qual Hegel, Bergsoe os filósofos evolucionistas do devir consideraram a mudança. Para Hegel, o devir é processo racional que define uma lógica, mesmo nova e estranha, e um absoluto, também este novo e estranho, Deus. Para Spencer, a evolução é somente um processo transitório para obter o equilíbrio estável e universal de ajustamento harmonioso. Para Bergson, a mudança é a operação criadora de Deus ou é o próprio Deus”. Para Dewey, essas filosofias são filosofias do medo, hiper-simplificadoras e des-responsabilizadoras. Elas transformam um elemento da realidade na realidade em seu todo, confinando assim na aparência (no secundário, errôneo, ilusório etc.) tudo o que não se revela compatível com seu respectivo esquema de imutabilidade, ordem, racionalidade, necessidade ou perfeição do ser ou da realidade. Além disso, são des-responsabilizadoras, já que presumem garantir metafisicamente a ordem, o progresso ou a racionalidade, que, ao contrário, constituem a tarefa fundamental da condução inteligente da vida humana. Em suma, para Dewey, é preciso ter a coragem de denunciar a falência filosófica de metafísicas consoladoras e ilusórias, que iludem precisamente a respeito da permanência estável de bens e valores, posse exclusiva de uma camada privilegiada. São metafísicas que aparentemente repelem a irracionalidade, a desordem, o mal, o erro, coisas que não são aparências, e sim realidades que precisamos dominar e controlar, embora com a consciência de que a existência permanece, sempre e de qualquer modo, precária e cheia de riscos. A teoria da pesquisa A luta para enfrentar o mundo e a existência tão difíceis exige comportamentos e operações humanas inteligentes e responsáveis. É aí que se inserem o instrumentalismo e a teoria da pesquisa. Segundo a maior parte dos sistemas filosóficos tradicionais, a verdade é estática e definitiva, absoluta e eterna. Dewey, porém, não pensa assim. Dado seu interesse pela biologia, ele vê o pensamento como www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 56 processo de evolução; segundo ele, o conhecimento é processo chamado pesquisa, que, no fundo, consiste em uma forma de adaptação ao ambiente. O conhecimento é prática que tem êxito. Êxito no sentido de que resolve os problemas postos pelo ambiente (entendendo este no sentido mais amplo). Em sua grande obra Lógica: teoria da investigação (1938) Dewey sustenta que a função do pensamento reflexivo é a de transformar uma situação na qual se tem experiências caracterizadas por obscuridade, dúvida, conflito, em suma, experiências perturbadas, em uma situação que seja clara, coerente, ordenada e harmoniosa. Em poucas palavras, a investigação parte dos problemas, isto é, de situações que implicam incerteza, perturbação, dúvida e obscuridade. E Dewey se declarava desconcertado diante do fato de que pessoas sistematicamente empenhadas nas investigações sobre questões e problemas (como certamente são os filósofos) sejam tão pouco curiosas acerca da existência e da natureza dos problemas. Situações desse tipo, isto é, de dúvida e obscuridade, tornam-se problemáticas quando se tornam objeto de pesquisa, no sentido de que seja possível avançar alguma tentativa de solução, ainda que vaga, já que caso contrário se teria o caos, e de que seja possível intelectualizar essa vaga sugestão, formulando o problema dentro de uma ideia que consista em antecipação ou previsões do que pode acontecer. A ideia proposta desenvolve-se em seus significados pelo raciocínio, que identifica as consequências da ideia, pondo-a em relação com o sistema das outras ideias e esclarecendo-a assim em seus aspectos mais diversos. A solução do problema, inserida e antecipada na ideia que depois foi desenvolvida pelo raciocínio, dirige e articula o experimento. E será precisamente o experimento que dirá se a solução proposta deve ser aceita ourejeitada ou, ainda, corrigida, a fim de dar conta dos fatos problemáticos. A propósito dos fatos, diferentemente do antigo empirismo, Dewey observa que eles não são puros dados, pois não existem dados em si. Nada constitui um dado senão em relação com uma ideia ou com um plano operativo que possa ser formulado em termos simbólicos, desde os da linguagem comum até os mais precisos e específicos da matemática, da física ou da química. Em suma, Dewey é da opinião de que tanto as ideias como os fatos são de natureza operacional. As ideias são operacionais porque não são mais que propostas e planos de operação e intervenção sobre as condições existentes; e os fatos são operacionais no sentido de que são resultados de operações de organização e de escolha. Senso comum e pesquisa científica: as ideias como instrumentos A inteligência, portanto, é constitutivamente operativa. A razão não é meramente contemplativa: é força ativa chamada a transformar o mundo em conformidade com objetivos humanos. A contemplação, sem dúvida, é ela própria uma experiência, mas, para Dewey, ela constitui a parte final, na qual o homem desfruta do espetáculo de seus processos. O processo cognoscitivo não é contemplação, e sim participação nas vicissitudes de um mundo que deve ser mudado e reorganizado sem descanso. Dewey comenta que o método experimental é novo como recurso cientifico ou como meio sistematizado de criar o conhecimento e de garantir que seja conhecimento; entretanto, “como expediente prático, ele é tão antigo quanto a própria vida”. E é precisamente por essa razão que Dewey insiste na continuidade entre conhecimento comum e conhecimento cientifico. No escrito A unidade da ciência como problema social (1938), ele diz que a ciência, em sentido especializado, é a elaboração de operações cotidianas, ainda que essa elaboração assuma frequentemente caráter muito técnico. E, ainda na Lógica, Dewey reafirma o fato de que “a ciência tem seu ponto de partida necessário nos objetos qualitativos, nos processos e nos instrumentos do senso comum, que é o mundo do uso, da fruição e dos sofrimentos concretos”. Depois, porém, pouco a pouco, através de processos mais ou menos tortuosos e inicialmente desprovidos de uma linha diretriz, formam-se e são transmitidos determinados procedimentos e instrumentos técnicos. Vão sendo reunidas informações sobre as coisas, sobre suas propriedades e seus comportamentos, independentemente de cada aplicação imediata particular. Vamo-nos afastando sempre mais das situações originarias de uso e fruição imediatos. Não se ganha muito mantendo o próprio pensamento ligado ao tronco do uso com uma corrente muito curta, sentencia Dewey. O importante é que, como quer que seja, o pensamento, isto é, as ideias, estejam ligadas à prática, porque as ideias – tanto lógicas como científicas - estão sempre em função de problemas reais, ainda que abstratos, e porque é sempre a prática que decide do valor de urna ideia. E as ideias são exatamente instrumentos em nossa investigação. São instrumentos para resolver os problemas e para enfrentar um mundo ameaçador e uma existência precária. E, por serem instrumentos, há muito pouco sentido em pregar a veracidade ou a falsidade deles. As ideias são instrumentos que podem www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 57 ser eficazes, relevantes ou não, danosos ou econômicos, mas não verdadeiros ou falsos. E o juízo final que se dá em todo processo de pesquisa nada mais é do que uma “afirmação garantida”. Eis, portanto, o significado genuíno do instrumentalismo de Dewey: a verdade não é mais adequação do pensamento ao ser, mas se identifica muito mais com “o poder comprovado de guia” de uma ideia e, em última análise, com “o corpo sempre crescente das afirmações garantidas”, devendo-se ter em vista que essa garantia não é absoluta nem eterna, já que os resultados da pesquisa científica, bem como de toda operação humana, são continuamente corrigíveis e aperfeiçoáveis em relação às novas e cambiantes situações em que o homem virá a se encontrar em sua história. A teoria dos valores Se as ideias comprovam seu valor na luta com os problemas reais, e se cada indivíduo tem o direito- dever de dar sua contribuição à elaboração de ideias capazes de guiar positivamente a ação humana, então está claro que as ideias morais, os dogmas políticos ou os preconceitos do costume também não se revestem de autoridade especial. Também eles devem ser submetidos à verificação de suas consequências na prática e devem ser responsavelmente aceitos, rejeitados ou mudados com base na análise de seus efeitos. Dewey é relativista, não considera possível fundamentar valores absolutos. Os valores são históricos e a tarefa do filósofo é a de examinar as “condições generativas” (isto é, as instituições e os costumes ligados a estes valores) e de avaliar sua funcionalidade na perspectiva de uma renovação, em relação às necessidades que pouco a pouco irrompem da vida associada dos homens. Existem valores de fato, isto é, bens imediatamente desejados, e valores de direito, isto é, bens razoavelmente desejáveis. É precisamente função da filosofia e da ética promover a contínua revisão crítica, voltada para a conservação e o enriquecimento dos valores de direito. E está claro que, na perspectiva de Dewey, sequer estes últimos podem ter a pretensão de dignidade meta- histórica, já que todo sistema ético é relativo ao meio em que se formou e se tornou funcional. A ética de Dewey é histórica e social: como na teoria da pesquisa, nela também desponta aquele sentido de interdependência e de unidade inter-relativa dos fenômenos, que se explicitará no conceito de interação entre indivíduo e meio físico e social. Assim, os valores também são fatos tipicamente humanos: são planos de ação, tentativas de resolver problemas que brotam da vida associada dos homens. E constitui objetivo da filosofia educar os homens a refletir sobre os valores humanos mais elevados, da mesma forma como eles aprenderam a refletir sobre aquelas questões que se inserem no âmbito da técnica. Há, sem dúvida, o problema da determinação dos fins. Escreveu Dewey: “A ciência é indiferente ao fato de suas descobertas serem utilizadas para curar as doenças ou difundi-las, para acrescer os meios para a promoção da vida ou para fabricar material bélico a fim de aniquila-la”. Por vezes, Dewey parece indicar como fim último da vida dos homens um reino de Deus visto como justiça, amor e verdade. Entretanto, é preciso insistir em um ponto de capital importância no pensamento de Dewey: trata-se da não possibilidade de distinguir entre meios e fins. Para Dewey todo fim é também meio e todo meio para atingir um fim é desfrutado ou percebido também como fim. A atividade que produz meios e a atividade que inventa e consuma os fins estão intimamente ligadas uma a outra. O fim alcançado é meio para outros fins. E a avaliação dos meios é fundamental para todo fim real e genuíno, que não queira ser vã fantasia, ainda que nobre e sugestiva. E as coisas que parecem fins são, com efeito, unicamente previsões ou antecipações do que pode ser levado a existência em determinadas condições. Por isso, em Teoria da avaliação (1939), Dewey escreve que não existe problema de avaliação fora da relação entre meios e fins, o que vale não somente na ética, mas também na arte, onde a criação dos valores estéticos (a arte é natureza transformada e não existe distinção entre belas-artes e artes úteis) requer a utilização de meios adequados. A teoria da democracia Dewey é um relativista pelo fato de que, em sua opinião, não existem métodos racionais para a determinação dos fins últimos. Por isso ele é decididamentecontrário aos filósofos utópicos que, projetando suas visões ideais, não se preocuparam em dedicar uma investigação acurada aos meios necessários para sua realização, e sequer em avaliar atentamente sua desejabilidade moral efetiva. A utopia gera normalmente o ceticismo ou o fanatismo. O que é necessário, segundo Dewey, é propor metas concretas e descer dos fins remotos para os mais próximos, realizáveis em condições históricas efetivas. Portanto, ele projeta o operar contínuo tendo em vista maior consciência e maior liberdade, no sentido de que a liberdade conquistada hoje cria situações graças às quais haveria mais liberdade amanhã, e no sentido de que minha liberdade faz crescer a dos outros. Consequentemente, Dewey é avesso à sociedade totalitária e convicto defensor da sociedade www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 58 democrática. Para ele, a pressuposição de um fim absoluto dificulta a discussão, ao passo que a democracia representa discussão inteiramente livre. É método que permite discutir toda finalidade, é debate sem fim, é colaboração, é participação em finalidades conjuntas. A democracia é aquele modo de vida em que todas as pessoas maduras participam da formação dos valores que regem a vida dos homens associados, modo de vida que é necessário tanto do ponto de vista do bem social como da ética do desenvolvimento pleno dos seres humanos como indivíduos. Em Liberalismo e ação social (1935), Dewey afirma que o problema da democracia se torna o problema daquela forma de organização social que se estende a todo campo e a todo caminho da vida, pelo qual as forças individuais não deveriam ser simplesmente libertadas de constrições mecânicas externas, mas deveriam ser alimentadas, sustentadas e dirigidas. Com base nisso tudo, pode-se compreender a aversão de Dewey pela sociedade planejada. O que ele almeja e defende é a sociedade que se planeja constantemente a partir de seu interior, atenta, portanto, ao controle social mais amplo e articulado dos resultados. A diferença existente entre a sociedade planejada, e a sociedade que se planeja constantemente é definida por Dewey nos termos seguintes: “A primeira requer desígnios finais impostos de cima e que, portanto, se baseiam na força, física e psicológica, para fazer com que nos conformemos a eles. A segunda significa libertar a inteligência mediante a forma mais vasta de intercâmbio cooperativo”. Ligada à teoria da investigação, a teoria dos valores e a teoria da democracia de Dewey encontra-se sua teoria da educação, entendida como reconstrução e reorganização continua da experiência, visando a aumentar a consciência dos vínculos entre as atividades presentes, passadas e futuras, nossas e alheias, e aumentar a capacidade dos indivíduos para dirigir o curso da experiência futura. 5. NEOPRAGMATISMO - RICHARD RORTY Richard Rorty nasceu em New York em 1931. Estudou na Universidade de Chicago e na de Yale. “Dewey - disse ele – foi sem dúvida a figura mais influente durante toda a minha juventude; chamavam- no de filósofo da democracia, do New Deal, dos intelectuais socialistas americanos: para quem quer que tenha frequentado uma universidade americana antes dos anos cinquenta, era impossível não percebe-lo”. E ainda: “Minha formação foi principalmente histórica. O encontro com a filosofia analítica ocorreu em Princeton, quando eu já ensinava, e foi um momento verdadeiramente intenso. Quando as ótimas obras de Wittgenstein mal estavam para serem assimiladas”. Foi justamente a leitura do “segundo” Wittgenstein que persuadiu Rorty a tomar distância do pensamento analítico dominante nos Estados Unidos. Este pensamento - dirá Rorty - profissionalizou a filosofia, reduziu-a a uma disciplina acadêmica que se resolve na pesquisa obsessiva dos fundamentos do conhecimento objetivo, tirou da filosofia toda dimensão histórica, arrancou-a dos problemas da vida. Auxiliado também pelas críticas internas ao movimento analítico, Rorty se convenceu do esgotamento intrínseco da filosofia analítica (ou pós- filosófica, no sentido de estar distante da filosofia tradicional) des-disciplinarizada e de andamento discursivo, à qual não cabe mais o papel de mãe ou de rainha da ciência, sempre em busca de um vocabulário definitivo e imortal sobre a base do qual sintetizar ou descartar os resultados de outras esferas de atividade. A filosofia pós-analítica, de preferência, se democratiza na forma de uma “crítica da cultura” que a vê transformada em uma disciplina entre as outras, fundada sobre critérios histórica e socialmente contextuais, e preposta ao estudo comparado das vantagens e das desvantagens das diversas visões do mundo. A filosofia e o espelho da natureza (1979) foi o livro que no plano internacional tornou Rorty conhecido como fundador do neopragmatismo. Em 1980 aparece Consequências do pragmatismo. De 1989 é Contingência, ironia e solidariedade, livro que se ocupa de questões éticas e filosóficas. Segundo Rorty, os ensaios coletados nesse livro representam tentativas de delinear as consequências de uma teoria pragmatista da verdade. E ainda: “Os pragmatistas pensam que a tradição platônica tenha esgotado a própria função. Os pragmatistas sustentam que a maior aspiração da filosofia é a de não praticar a filosofia. Não consideram que pensar na verdade sirva para dizer algo de verdadeiro, nem que pensar no bem sirva para agir do melhor dos modos, nem que pensar na racionalidade sirva para ser racionais”. www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 59 Dois mitos da tradição filosófica O volume A filosofia e o espelho da natureza consiste na tentativa de desengonçar a pretensão fundante da filosofia tradicional. Escreve Rorty, “Em geral os filósofos consideram sua disciplina como uma discussão de problemas perenes, eternos. Alguns destes referem-se a diferença entre seres humanos e os outros seres, e se concentram nas questões que se referem a relação entre mente e corpo. Outros problemas se referem à legitimação das pretensões de conhecimento e concentram-se nas questões que se referem aos ‘fundamentos’ do conhecimento. Descobrir tais fundamentos significa descobrir algo sobre a mente e vice-versa”. Problemas eternos resolvidos por teorias perenes: eis a pretensão de fundo da filosofia tradicional, a qual se configura como filosofia fundacional em relação a toda a cultura. E esta sua pretensão se apoia sobre o fato de que ela compreenderia os fundamentos do conhecimento e encontraria tais fundamentos por meio do estudo da mente, dos “processos mentais”. Eis, portanto, que a tarefa central da filosofia tradicional está na construção de uma teoria geral da representação acurada tanto do mundo externo, como do modo com que a mente constrói essas representações. Tudo isso, afirma Rorty, nos mostra que existe “uma imagem que mantém prisioneira a filosofia tradicional”: é a imagem da mente como um grande espelho, que contém representações diversas – algumas acuradas, outras não - e pode ser estudado por meio de métodos puros, não empíricos”. Rorty comenta que se não houvesse a ideia da mente como espelho, não haveria sequer a ideia do conhecimento como representação acurada; sem a ideia de conhecimento como representação acurada não teriam sentido os grandes esforços de Descartes e de Kant dirigidos a obter representações mais acuradas por meio do exame, da reparação e do polimento do espelho. E, postos fora dessa estratégia, não teriam tido sentido sequer as recentes teses segundo as quais a filosofia consistiria de “analise conceitual”, ou de “análisefenomenológica”, ou de “explicação dos significados”, ou de exame da “lógica de nossa linguagem”, ou então da “estrutura da atividade constitutiva da consciência”. A filosofia fundacional De acordo com Rorty, devemos ao século XVII, e em particular a Locke, a noção de uma “teoria do conhecimento” baseada sobre a compreensão dos “processos mentais”. Devemos ao mesmo período, e em particular a Descartes, a noção de “mente” como entidade separada em que se atuam os “processos”. Devemos ao século XVIII, e em particular a Kant, a noção da filosofia como tribunal da razão pura, que confirma ou rejeita a pretensão da cultura restante. A filosofia, praticada como disciplina fundacional que garante a certeza dos fundamentos do conhecimento, foi consolidada pelos neokantianos. E no século XX, ainda segundo nosso filósofo, ela foi reproposta por filósofos como Russell e Husserl que se propuseram a mantê-la “rigorosa” e “cientifica”. No seu entendimento, o gênero de filosofia que descende de Russell, justamente como a fenomenologia clássica de Husserl, é simplesmente uma tentativa posterior de manter a filosofia na posição em que Kant a desejava pôr, ou seja, a de juiz das outras áreas da cultura, sobre a base de seu conhecimento especial dos “fundamentos” dessas áreas. As coisas, ao seu ver, não param aqui, uma vez que também a filosofia analítica é uma variante posterior da filosofia kantiana, uma variante caracterizada principalmente por considerar a representação como linguística muito mais que mental e, portanto, a filosofia da linguagem como a disciplina que exibe os “fundamentos do conhecimento”, em vez da “critica transcendental” ou da psicologia. Na base, portanto, do pensamento fundacional tradicional há uma ideia de mente, concebida como grande espelho que contém representações; voltando- nos para nossa interioridade (Descartes) ou trazendo à superfície os a priori da experiência (Kant), a filosofia - examinando e polindo novamente o grande espelho – estaria depois em grau de chegar à posse dos fundamentos do conhecimento. A união destas três ideias de mente como espelho da natureza, de conhecimento como representação acurada e de filosofia como busca e posse dos fundamentos do conhecimento “profissionalizou” a filosofia, tornando- a uma disciplina acadêmica restrita substancialmente à epistemologia, isto é, à teoria do conhecimento, e a propôs como uma fuga da história, uma vez que ela quer ser pesquisa e posse de fundamentos válidos para todo desenvolvimento histórico possível. O abandono da filosofia do fundamento Pois bem, é sobre este pano de fundo que Rorty olha para a obra daqueles que ele considera os três filósofos mais importantes do século XX, ou seja, a obra de Dewey, de Wittgenstein e de Heidegger. Estes três filósofos tentaram, em um primeiro momento, a construção de uma filosofia fundacional, propondo a formulação de “um critério último para o pensamento”. Cada um dos três, todavia, no desenvolvimento do próprio pensamento percebeu quão ilusória era sua primeira tentativa. E foi assim, então, que cada um dos três, na obra sucessiva, libertou-se da concepção kantiana da filosofia como fundamento, e consumou seu próprio tempo a pôr em alerta contra essas tentações às quais eles próprios haviam cedido. Assim, sua obra sucessiva é terapêutica, mais que construtiva; www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 60 mais edificante do que sistemática, dirigida a fazer o leitor refletir sobre motivos que tem para filosofar, muito mais do que para lhe fornecer um novo programa filosófico. Wittgenstein, Heidegger e Dewey deixam de lado, ao ver de Rorty, a noção de mente produzida justamente por Descartes, Locke e Kant, e entendida como um objeto de estudo especial, colocado no espaço interno, que contém os elementos ou os processos que tornam possível o conhecimento. Wittgenstein, Heidegger e Dewey, todos os três, concordam sobre o fato de que deve ser abandonada a noção do conhecimento como representação acurada, tornada possível por processos mentais especiais, e compreensível por meio de uma teoria geral da representação. Todos os três abandonam as noções de “fundamentos do conhecimento” e da filosofia como de algo que gira ao redor da tentativa cartesiana de responder ao cético epistemológico. Filósofos sistemáticos e edificantes A imagem neokantiana da filosofia como profissão - imagem que se encontra implícita na imagem da mente ou da linguagem que espelham a natureza – não se sustenta mais. A filosofia fundacional acabou; como acabou, em suma, a filosofia entendida como disciplina que julga as pretensões da ciência e da religião, da matemática e da poesia, da razão e do sentimento, atribuindo a cada uma o lugar apropriado. É preciso, portanto, tomar outros caminhos; e, para sair da “normalidade” da tradição, é preciso ser “revolucionário” (no sentido de Kuhn). E, todavia, entre os filósofos revolucionários, Rorty distingue dois tipos: os que fundam novas escolas dentro das quais pode ser praticada a filosofia normal e profissionalizada (um exemplo de tais filósofos são Husserl, e, antes dele, Descartes e Kant); e aqueles que rejeitam a ideia de que seu vocabulário possa um dia ser institucionalizado, ou que seus escritos possam ser considerados comensuráveis com a tradição (exemplos desses filósofos são o “último” Wittgenstein e o “último” Heidegger; e Nietzsche). É a esse último tipo de filósofos que vai a aprovação de Rorty, filósofos que ele chama de edificantes para distingui-los dos sistemáticos. A seu ver, os grandes filósofos sistemáticos são construtivos e oferecem argumentações. Os grandes filósofos edificantes são reativos e oferecem sátiras, paródias e aforismos. Eles sabem que suas obras perdem sua própria função essencial, quando é superado o período em relação ao qual definiram sua própria reação. Eles são intencionalmente periféricos. Os filósofos sistemáticos pretendem construir um saber, uma ciência para a eternidade; os filósofos edificantes destroem em benefício de sua própria geração. Os filósofos sistemáticos constroem certezas, como para exorcizar a incerteza do futuro; os filósofos edificantes estão à espera e investigam algo de novo, prontos para se abrir à maravilha de que haja algo de novo sob o sol, algo que não seja uma acurada representação daquilo que já havia, algo que (ao menos no momento) não pode ser explicado e pode apenas ser descrito. A filosofia edificante A filosofia edificante, portanto, deixa de lado a tradição da filosofia sistemática, construtiva, normal, fundacional. Mas o que devemos entender mais propriamente com tal filosofia edificante? Pois bem, trata-se de um projeto de educação ou formação - ou melhor, de edificação de nós mesmos ou de outros – dirigido à descoberta de modos de falar novos, melhores, mais interessantes e mais frutuosos. Isso no sentido de que a tentativa de edificar (nós mesmos ou os outros) pode consistir na atividade hermenêutica de realizar ligações entre nossa própria cultura e alguma cultura exótica ou algum período histórico, ou então entre nossa disciplina e outra disciplina que pareça perseguir objetivos incomensuráveis com um vocabulário incomensurável. Mas também pode consistir na atividade poética de descobrir esses novos objetivos, novas palavras, novas disciplinas. A filosofia edificante torna própria, assim, a hermenêutica de Gadamer, na qual não há contraste - afirma Rorty - entre o desejo de edificação e o desejo de verdade; e na qual, todavia, salienta-se o fato de que a pesquisa da verdade é um dos muitos modos com que podemos ser edificados. E os objetivos da filosofia edificante são mais a continuação de uma conversação do que a descoberta daverdade, de uma verdade objetiva como “resultado normal do discurso normal”. “A filosofia edificante não é apenas anormal, mas também reativa, tendo sentido apenas enquanto é um protesto contra a tentativa de truncar a conversação”. Manter aberta a conversação da humanidade As tentativas de truncar a conversação não faltam. Com efeito, truncam a conversação todas as filosofias sistemáticas, que não fazem mais que hipostatizar alguma descrição privilegiada em que se presume ter captado de uma vez por todas a verdade, a realidade, o bem, visto que se estaria em posse da razão. Por sua vez, os filósofos edificantes são do parecer que presunções desse tipo equivaleriam ao congelamento da cultura, o que significaria a desumanização dos seres humanos. Segundo Rorty, que para os filósofos edificantes a própria ideia de atingir “a totalidade da verdade” é www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 61 absurda, porque a noção platônica de verdade enquanto tal é absurda. Concluindo as considerações precedentes, Rorty sintetiza: “Pensar que manter aberta a discussão constitua uma tarefa suficiente para a filosofia, que a sabedoria consista na habilidade de sustentar uma conversão, significa considerar os seres humanos como criadores de novos discursos mais do que seres a serem acuradamente descritos. Terminou, portanto, a filosofia fundacional; mas não terminou a filosofia: ela continua como filosofia edificante, como “uma voz na conversação da humanidade”. Com ela nós continuamos a conversação iniciada por Platão, mesmo sem discutir os assuntos que Platão considerava que se devessem discutir. A filosofia edificante, é a maneira específica de intervir na discussão sobre todo tipo de problema, condicionada e caracterizada por uma tradição de textos e pelo adestramento peculiar de quem a pratica, mas não mais pela ilusão de possuir um domínio próprio dela, um método, e uma tarefa privilegiada em relação à de outras “vozes”. “Historicistas” para uma autonomia individual, “historicistas” para uma sociedade mais justa Contingência, ironia e solidariedade é um livro que é o fruto maduro de reflexões ético-políticas que Rorty estava elaborando há algum tempo. A partir de Hegel – afirma Rorty - diversos pensadores historicistas negaram a existência de uma “natureza humana” ou de um “estrato mais profundo do eu” sobre o atual fundar as virtudes pessoais e os ideais sociais. Estes pensadores sustentaram que tudo é socialização e, portanto, circunstância histórica, que não existe uma essência do homem “abaixo” da socialização e antes da história. Autores como estes não se colocam mais a pergunta sobre “o que significa ser homens?”; mas a substituem por perguntas como: “o que significa pertencer a uma rica sociedade democrática do século XX?”, ou então: “O membro de uma tal sociedade pode fazer algo a mais do que recitar uma parte de um roteiro já escrito?”. Pois bem, comenta Rorty, tal reviravolta historicista, gradual mas decididamente, nos libertou da teologia e da metafísica, e com isso da tentação de buscar trégua para o tempo e para o acaso; ela, por outro lado, nos permitiu substituir, “como viés do pensamento e do progresso social”, a liberdade à verdade. A reviravolta historicista existiu; todavia, ainda continua a antiga tensão entre os historicistas (por exemplo, Heidegger e Foucault), nos quais domina o desejo de autocriação e de autonomia individual, e os historicistas (por exemplo, Dewey e Habermas), para os quais dominante é o desejo de uma comunidade humana mais justa e mais livre. De sua parte, Rorty quer fazer justiça tanto a um como ao outro grupo de pensadores historicistas. E o seu é “um convite a não querer escolher entre eles mas a dar-lhes, ao contrário, igual peso, a fim de usá-los depois para finalidades diversas”. Continua Rorty: “Os autores como Kierkegaard, Nietzsche, Baudelaire, Proust, Heidegger e Nabokov são úteis enquanto modelos, exemplos de perfeições individuais, de vida autônoma que se criou por si. Os autores como Marx, Mill, Dewey, Habermas e Rawls são mais que modelos, são concidadãos. Seu empenho é social, é a tentativa de tornar nossas instituições e práticas mais justas e menos cruéis”. A solidariedade do “liberalismo” irônico E inútil, ao ver de Rorty, ir em busca de uma teoria que unifique o público e o privado. O caminho que ele propõe é o seguinte: contentarmo-nos em “considerar igualmente válidas, embora destinadas a ser incomensuráveis, as exigências de autocriação e de solidariedade humana”. E de tal proposta emerge a figura daquilo que Rorty chama de “irônico liberal”. Quem é o liberal? Os liberais, para Rorty, “são aqueles que pensam que a crueldade é o nosso pior delito”. E o irônico? “Uso o termo ‘irônico’ – responde Rorty - para designar um indivíduo que olha abertamente a contingência de suas crenças e de seus desejos mais fundamentais, alguém que é historicista e nominalista o suficiente para ter abandonado a ideia de que tais crenças e desejos remetam a algo que foge ao tempo e ao acaso". Segundo ele, a ironia “significa algo de muito próximo ao antifundacionalismo”. No fundo, afirma Rorty, “os irônicos liberais são pessoas que têm, entre estes seus desejos infundáveis, a esperança de que o sofrimento possa diminuir, e que possa ter fim a humilhação sofrida por alguns seres humanos por causa de outros seres humanos”. Essa utopia liberal renuncia às teorias filosóficas de largo porte - como as que se referem às leis da história, o declínio do Ocidente e o fim do niilismo. Na sociedade utópica proposta por Rorty, “a solidariedade não é descoberta com a reflexão; ela é criada”. É criada com a imaginação, “tornando mais sensíveis ao sofrimento e humilhação particulares, sofridos por outras pessoas desconhecidas”. Levar à esfera do “nós” pessoas que antes eram do “eles” É uma sensibilidade acrescida que nos faz reconhecer um indivíduo como “dos nossos” mais que vê-lo como “dos deles”. www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 62 Mas esta sensibilidade não cresce por causa de uma teoria universal que descreve uma essência humana presente em todos os homens; e ninguém se identifica com a comunidade de todos os seres racionais. Tal sensibilidade cresce por obra não da teoria, “mas de outros gêneros literários como a etnografia, a reportagem jornalística, a história em quadrinhos, o teatro-verdade e sobretudo o romance”. Dickens, Olive Schreiner ou Richard Wright nos fazem conhecer de modo detalhado formas de sofrimento passadas por pessoas que antes ignorávamos. Choderlos de Laclos, Henry James ou Nabokov nos mostram a crueldade da qual nós mesmos somos capazes, e nos obrigam, portanto, a redescrevermo-nos. Aqui está - insiste Rorty - a razão pela qual o romance, o filme e o programa televisivo substituíram, de modo gradual, mas decidido, o sermão e o tratado como veículos principais da mudança das convicções morais e do progresso. O liberal irônico exerce sua ironia sobre teorias a respeito da essência humana mas está atento a minimizar sempre mais a importância das diferenças tradicionais (de raça, de religião, de usos etc.) em relação “à semelhança na dor e na humilhação”. O liberal irônico inclui sempre mais na esfera do “nós” pessoas diferentes de nós que antes eram dos “eles”. Nós - diz Rorty – devemos começar de onde estamos. E eis seu comentário a uma posição que à primeira vista pareceria moralmente muito estreita: “Aquilo que redime este etnocentrismo é o fato de que é o etnocentrismo de um ‘nós’ (‘nós liberais’), cuja finalidade é a deexpandir-se, de criar um ethos ainda maior e diversificado. É o ‘nós’ daqueles que foram educados a estar em alerta contra o etnocentrismo”. 6.MICHEL FOUCAULT Foucault (1926-1984) veio de família tradicional de médicos, mas acabou se graduando em história, filosofia e psicologia. Foi considerado um filósofo contemporâneo dos mais polêmicos, pois possuía um olhar crítico de si mesmo. Devido às suas tentativas de suicídio, aproximou-se da psicologia e psiquiatria e produziu diversas obras sobre esse tema. Os seus estudos e pensamento envolvem, principalmente, o biopoder e a sociedade disciplinar. Para tanto, o filósofo percorreu três técnicas independentes, mas sucessivas e incorporadas umas pelas outras: do discurso, do poder e da subjetivação. Acreditava ser possível a luta contra padrões de pensamentos e comportamentos, mas impossível se livrar das relações de poder. Trata principalmente do tema poder, que para ele não está localizado em uma instituição, e nem tampouco como algo que se cede, por contratos jurídicos ou políticos. O poder em Foucault reprime, mas também produz efeitos de saber e verdade. Trata-se (...) de captar o poder em suas extremidades, em suas últimas ramificações (...) captar o poder nas suas formas e instituições mais regionais e locais, principalmente no ponto em que ultrapassando as regras de direito que o organizam e delimitam. Em outras palavras, captar o poder na extremidade cada vez menos jurídica de seu exercício. Ele acreditava que os acontecimentos deveriam ser considerados em seu tempo, história e espaço e sua obra pode ser dividida em três fases metodológicas: arqueológica, genealógica e ética. Para cada uma dessas fases elaborou perguntas fundamentais: que posso saber (ser-saber); que posso fazer (ser-poder - ação de uns com os outros); e quem eu sou (ser-consigo - ação de cada um consigo próprio)? Nesse sentido, o trabalho de Foucault pode ser dividido em três fases metodológicas: arqueologia, genealogia e ética. A fase arqueológica se refere ao procedimento vertical de investigar os discursos descontínuos, a fim de entender como e em seguida por quê. Nessa fase, o todo não deve ser considerado modelo prévio, necessário, principalmente, para encontrar os discursos e partes esquecidas ou ínfimas. Essa fase tem um enfoque explicitamente histórico com a preocupação de descrever a construção dos discursos das chamadas “ciências humanas”. Nas análises dele, os discursos são tomados em sua positividade, como “fatos”, e trata-se de buscar não sua origem ou seu sentido secreto, mas as condições de sua emergência, as regras que presidem seu surgimento, seu funcionamento, suas mudanças, seu desaparecimento, em determinada época, assim como as novas regras que presidem a formação de novos discursos em outras épocas. Fazem parte dessa fase da “constituição dos saberes” as seguintes obras: 1 – A história da loucura (1961); 2 – O nascimento da clínica (1963); 3 – As palavras e as coisas (1966); 4 – A arqueologia do saber (1969). Autor do Nascimento da clínica (1963) e de A História da loucura na época clássica (1961), Foucault não quis escrever uma história da psiquiatria entendida como história das teorias relativas ao tratamento prático dos doentes mentais, mas como uma reconstrução do modo pouco racional, na verdade, com que os homens “normais” e “racionais” da Europa Ocidental deram expressão a seu medo da não-razão, estabelecendo de modo repressivo o que é mentalmente “normal” e, ao contrário, o que é mentalmente “patológico”. É com As palavras e as coisas (1966) que Foucault exemplifica, de modo já considerado clássico, a www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 63 abordagem estruturalista do estudo da história. Ele rejeita também o mito do progresso: a continuidade na qual o homem ocidental pretende representar seu glorioso desenvolvimento é continuidade que não existe. A história não tem sentido, a história não tem fins últimos. A história é, antes, descontinua. E, no que se refere a história da cultura, ela é informada ou governada por típicas estruturas epistêmicas (ou epistemas), que agem no nível inconsciente. Cada época é regida por uma episteme diferente, ele analisa estas mudanças. Mas o que é, mais precisamente, uma estrutura epistêmica? Diz Foucault: “Quando falo de ‘epistemas’, entendo todas as relações que existiram em certa época entre os vários campos da ciência. Penso, por exemplo, no fato de que, a certo ponto, a matemática foi utilizada para pesquisas no campo da física; de que a linguística, ou melhor, a semiologia, a ciência dos sinais, foi utilizada pela biologia (para as mensagens genéticas); de que a teoria da evolução pôde ser utilizada ou servir de modelo para os historiadores, os psicólogos e os sociólogos do século XIX. Todos estes são fenômenos de relações entre as ciências ou entre os vários ‘discursos’ nos vários setores científicos que constituem o que eu chamo ‘epistema’ de uma época”. E Foucault chamou a ciência que estuda tais discursos e tais epistemas de arqueologia do saber. Essa ciência “arqueológica” mostra exatamente que não há nenhum progresso na história, e que não existe a continuidade de que se orgulha todo historicismo. O que a arqueologia do saber mostra é uma sucessão descontinua de epistemas, com a afirmação e a decadência de epistemas em uma história sem sentido. A descrição que ele faz dos “fatos discursivos” se limita a enunciados já formulados que compõe as formações discursivas e quer estabelecer o jogo de regras (episteme de uma época, seu a priori histórico, o solo onde são constituídas as formações discursivas historicamente realizadas e que compõem as diferentes configurações no espaço do saber) que definem as condições de possibilidade, das transformações, do desaparecimento de tais discursos, numa época dada e numa dada sociedade, jogo viável num curso histórico marcado por diferenças e descontinuidades. Em As palavras e as coisas Foucault distingue, na história do saber ocidental, três estruturas epistêmicas que se sucedem sem nenhuma continuidade. A primeira é a que se conservou até a Renascença; a segunda é a que se impôs nos séculos XVII e XVIII; a terceira se afirmou no século XIX. Mas o que tipifica essas diversas estruturas epistêmicas, que, por seu turno, qualificariam três diversas épocas culturais? Na primeira estrutura, “as palavras tinham a mesma realidade do que significavam”; o que as coisas são pode-se ler nos sinais do livro da natureza. Na segunda estrutura, o discurso rompe os laços que o uniam às coisas. Os sinais diretamente perceptíveis, quando não são ídolos enganadores, se configuram somente como pequenos auxílios para que o sujeito que conhece possa chegar a uma representação da realidade. Na terceira estrutura, o saber assume novo aspecto: ele não se detém nem se reduz à representação do visível, mas busca nova dimensão do real, ou seja, a da estrutura oculta. São essas, portanto, as estruturas epistêmicas que, de modo inconsciente, estruturaram as práticas discursivas (só aparentemente livres) dos homens em três diversas e descontinuas épocas da história do saber no Ocidente. Na fase da genealogia, ele busca as homogeneidades básicas que estão no fundo de determinada episteme. Como colocado pelo próprio Foucault: “a genealogia é cinza; ela é meticulosa e pacientemente documentária. Ela trabalha com pergaminhos embaralhados, riscados, várias vezes reescritos”. Nesse sentido, é procurar as particularidades que formam o conhecimento, as percepções e o saber. Nessa fase de investigação dos “mecanismos de poder” temos as obras: 1 – Vigiar e punir (1975); 2 – História da sexualidade vol. 1, intitulado A vontade de7 Marcuse diz que Freud descreveu essa mudança como a transformação do princípio do prazer em princípio de realidade, e as vicissitudes dos instintos são as vicissitudes da estrutura psíquica na civilização. E com a instituição do princípio de realidade, o ser humano - que, sob o princípio do prazer, fora pouco mais do que mistura de tendências animais, tornou-se Eu organizado. Para Freud, a modificação repressiva dos instintos é consequência “da eterna luta primordial pela existência que continua até nossos dias. Sem a modificação, ou melhor, o desvio dos instintos, não se vence a luta pela existência e não seria possível nenhuma sociedade humana duradoura. Entretanto, diz Marcuse, Freud considera eterna a luta primordial pela existência, acreditando, com isso, num antagonismo eterno entre o princípio do prazer e o princípio de realidade. A convicção de que é impossível uma civilização não repressiva representa uma pedra angular da construção teórica freudiana. Precisamente contra essa eternização e absolutização do contraste entre o princípio do prazer e o princípio de realidade é que se voltam os golpes críticos de Marcuse, no sentido de que, em sua opinião, esse contraste não é metafísico ou eterno, devido a certa misteriosa natureza humana considerada em termos essencialistas. Esse contraste é muito mais produto de uma organização histórico-social especifica. Freud mostrou que a falta de liberdade e a constrição foram o preço pago por aquilo que se fez, pela "civilização" que se construiu. Mas disso não deriva necessariamente que o preço a ser pago seja eterno. “Eros” libertado O progresso tecnológico gerou as premissas para a libertação da sociedade em relação à obrigação do trabalho, pela ampliação do tempo livre, pela mudança da relação entre tempo livre e tempo absorvido pelo trabalho socialmente necessário (de modo que este se torne apenas meio para a libertação de potencialidades hoje reprimidas): “Expandindo-se sempre mais, o reino da liberdade torna-se verdadeiramente o reino do jogo, do livre jogo das faculdades individuais. Assim libertadas, elas geram formas novas de realização e de descoberta do mundo, que, por seu turno, darão nova forma ao reino da necessidade e à luta pela existência”. O reino da necessidade (centrado no princípio do desempenho e da eficiência, que suga toda a energia humana) será então substituído por uma sociedade não repressiva, que reconcilia natureza e civilização, na qual se afirma a felicidade do Eros libertado. No progresso tecnológico, portanto, estão as condições objetivas para a transformação radical da sociedade. No entanto, o progresso tecnológico não fica abandonado a si mesmo: é controlado e guiado; consciente das possibilidades da derrocada do sistema, o poder sufoca as potencialidades libertadoras e perpetua um estado de necessidade doravante não mais necessário. E assim, já tecnicamente possível, a utopia permanece inalcançável. Daí a importância da filosofia, que, embora sem dizer como será o reino da utopia, no entanto o anuncia, ao mesmo tempo em que denuncia os obstáculos em seu caminho. O homem de uma dimensão O escrito mais conhecido de Marcuse é O homem de uma dimensão, de 1964. O homem de uma dimensão é o homem que vive em uma sociedade de uma dimensão, sociedade justificada e coberta pela filosofia de uma dimensão. A sociedade de uma dimensão é sociedade sem oposição, ou seja, sociedade que paralisou a crítica através da criação de um controle total. A filosofia de uma dimensão é a filosofia da racionalidade tecnológica e da lógica do domínio; é a negação do pensamento crítico, da “lógica do protesto”; é a filosofia “positivista” que justifica “a racionalidade tecnológica”. Na sociedade tecnológica avançada, “a máquina produtiva tende a se tornar totalitária enquanto determina não somente as ocupações, as habilidades e os comportamentos socialmente requeridos, mas também as necessidades e as aspirações individuais”. E, como universo tecnológico, a sociedade industrial avançada “é um universo político, o último estágio da realização de um projeto histórico específico, ou seja, a experiência, a transformação e a organização da natureza como mero objeto de domínio”. Ela alcança a mais alta produtividade e a utiliza para perpetuar o trabalho e o esforço; nela, a industrialização mais eficiente pode servir para limitar e manipular as necessidades. Escreve Marcuse: “Quando se alcança esse ponto, a dominação, sob a forma de opulência e liberdade, estende-se a todas as esferas da vida privada e pública, integra toda oposição genuína e absorve em si toda alternativa”. Em suma, a sociedade tecnológica avançada cria um verdadeiro universo totalitário; em uma sociedade madura, mente e corpo são mantidos em um estado de mobilização permanente para a defesa desse mesmo universo. www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 8 Por tudo isso, a luta pela mudança deve tomar outros caminhos, não mais os indicados por Marx: “As tendências totalitárias da sociedade unidimensional tornam ineficazes os caminhos e meios tradicionais de protesto”. Seja como for, a questão, porém, não se apresenta como desesperadora, pois, abaixo da base popular conservadora, existe a camada dos marginalizados e dos estrangeiros, dos explorados e perseguidos de outras raças e de outras cores, dos desempregados e dos deficientes. Eles ficam fora do processo democrático. Sua presença, mais do que nunca, prova quanto é imediata e real a necessidade de pôr fim a condições e instituições intoleráveis. Daí por que sua oposição é revolucionária, ainda que sua consciência não o seja. Sua oposição golpeia o sistema de fora dele e, por isso, não é desviada pelo sistema; é urna força elementar que infringe as regras do jogo e, assim fazendo, mostra tratar-se de um jogo com cartas marcadas. Quando eles se reúnem e andam pelos caminhos, sem armas e sem proteção, para reivindicar os mais elementares direitos civis, sabem que tem de enfrentar cães, pedras e bombas, prisão, campos de concentração e até a morte. O fato de que eles começam a se recusar a tomar parte no jogo pode ser o fato que marca o início do fim de um período. Isso não quer dizer, em absoluto, que as coisas serão assim. O que se diz é que “o fantasma está novamente presente, dentro e fora das fronteiras das sociedades avançadas”. E o que a teoria crítica da sociedade pode fazer é o seguinte: ela “não possui conceitos que possam preencher a lacuna entre o presente e seu futuro; não tendo promessas a fazer nem resultados a mostrar, ela permanece negativa. Desse modo, ela quer manter-se fiel aqueles que, sem esperança, deram e dão a vida pela grande recusa”. 4. WALTER BENJAMIM Walter Benjamin, nasceu em Berlim, a 15 de julho de 1892, no âmago de uma família judia de comerciantes. Posteriormente ele se tornaria ensaísta, crítico de literatura, tradutor, filósofo e sociólogo da cultura, sendo um dos membros mais importantes da Escola de Frankfurt. Ele foi profundamente influenciado por doutrinas aparentemente díspares, como o materialismo marxista, o idealismo de Hegel e a mística judaica de Gershom Scholem. Ainda adolescente, simpatizava com o socialismo, integrando o Movimento da Juventude Livre Alemã e escrevendo para a publicação deste grupo. É possível perceber então uma certa inspiração nietzscheana no jovem Benjamin. Enquanto adepto da Teoria Crítica foi marcado tanto por Georg Lukács, quanto pelo dramaturgo alemão Bertolt Brecht, gosto que traduz sua natureza por um lado artística, por outro intelectual. Adorno já chamava a atenção para sua personalidade austera, quase inflexível,saber (1976). Aqui ele procura evidenciar as articulações entre saber e poder, mediados, por assim dizer, pelo que podemos chamar de modos de produção da verdade. Em nossa sociedade a produção da verdade é regulamentada por regras que autorizam a eleição dos discursos reconhecidos como científicos, que qualificam os objetos dignos de saber, os sujeitos aptos a produzi-los, as instituições apropriadas, e cujos efeitos de poder, particularmente no caso das ciências humanas, são sobretudo disciplinar e normatizar. Para ele, verdade é o conjunto de regras segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efeitos específicos de poder. Este, por sua vez, é exercício, prática, que só existe em sua concretude, multifacetado e cotidiano. Nesse momento de sua produção intelectual passa a fazer o cruzamento da análise dos discursos com a trama das instituições e práticas sociais, abandonando a noção de episteme pela noção mais complexa de “dispositivo estratégico”. Apesar da episteme ser um elemento prioritário do dispositivo, este envolve articulações entre elementos heterogêneos, discursivos e extradiscursivos (práticas jurídicas, projetos arquitetônicos, instituições sociais diversas). Nosso filósofo então progride da arqueologia (método para análise da discursividade local onde tem- se uma análise descritiva vinculando uma denúncia) para a genealogia. Agora tem-se uma tática que, a partir www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 64 da discursividade local (arqueologia) assim descrita, ativa os saberes libertos da sujeição que emergem desta discursividade, construindo uma política de resistência e de luta. Nesse sentido, para entender as relações de poder é necessário, também, que se entenda como é elaborada a noção de verdade em nossa sociedade, pois é a partir daí que todo o sistema funciona. Caracterizando a economia política da verdade em nossa sociedade, podemos afirmar que a verdade é centrada na forma do discurso científico e nas instituições que a produzem. É objeto de uma grande difusão que tem a missão de espalhá-la. Segundo Foucault, “o importante, creio, é que a verdade não existe fora do poder ou sem poder. A verdade é deste mundo; ela é produzida nele, graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua “política geral” de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro”. Em suma, podemos dizer que a verdade está diretamente ligada ao sistema de poder, sustentando-o. Este sistema a elabora e reproduz de acordo com suas necessidades. Até o final do século XVIII, a medicina era uma sabedoria particular do médico que auxiliava o doente no combate à epidemia. Com a necessidade de mudanças estruturais e arquitetônicas, o hospital começou a utilizar a tecnologia política da disciplina. Para isso modificou se espaço interno e externo fazendo do médico seu organizador e utilizando o registro permanentemente. Assim, o hospital passa a ser não apenas um local de cura, mas também de registro, acúmulo e formação de saber. A verdade que era produzida passa a ser procurada através de técnicas. Quando nos referimos à prisão, vemos também que ela exerce um papel fundamental nessa relação de produzir verdades, por ser um mecanismo de manutenção do poder. Não é capaz de extinguir a delinquência, mas, antes, difunde a mesma para justificar a ação policial sobre a população. Assim como no final do século XVIII mudou- se de estratégia: do punir passou-se a vigiar. É mais eficiente. Até porque se imaginava que o homem faz o mal somente quando não está sendo visto. Com a estratégia do olhar vigiador esse problema estaria resolvido pois, “sem necessitar de armas, violências físicas, coações materiais. Apenas um olhar. Um olhar que vigia e que cada um, sentindo-o pesar sobre si, acabará por interiorizar, a ponto de observar a si mesmo. Fórmula maravilhosa: um poder contínuo e de custo afinal de contas irrisório”. Enquanto na arqueologia do saber ele procurou olhar para as transformações dos saberes, ou seja, como o saber foi sendo trabalhando a partir das ciências humanas; na genealogia do poder ele dá um passo a mais na profundidade da análise, ou seja, ele busca analisar não mais as transformações dos saberes, mas a origem dos saberes, o surgimento dos saberes. Assim, Foucault explicita que antes de olharmos para os saberes existentes, é preciso olhar e descobrir que eles têm uma raiz, uma origem, uma criação. Ou seja, todas as sociedades, todas as culturas, todas as classes, nenhuma é livre das relações de poder, porque em todas elas existem as relações de saber. E se precisamos de uma personificação dessas relações de poder, elas estão personificadas nos indivíduos. Ele propõe, então, com a genealogia, uma concepção não jurídica do poder, ou seja, não podemos olhar para o poder apenas do ponto de vista da lei, da repressão, da negatividade. Seria até um erro, caracterizar o poder como negativo, repressivo, ou que castiga, que impõe limites. Veja o que ele diz em Vigiar e Punir: “temos que deixar de descrever sempre os efeitos do poder em termos negativos: ‘ele exclui’, ele ‘reprime’ ele ‘recalca’, ele ‘censura’, ele ‘abstrai’, ele ‘mascara’, ele ‘esconde’. Na verdade o poder produz; ele produz realidade; produz campos de objetos e rituais da verdade. O indivíduo e o conhecimento que dele se pode ter se originam nessa produção”. Portanto, para Foucault, as relações de poder não são negativas justamente porque elas geram saberes novos, elas produzem, elas deslocam, mexem, provocam. Todos os indivíduos participam dessas relações. Nessa genealogia, todos produzem saber a partir das relações de poder. A fase ética em Foucault se refere à subjetivação, ou melhor, à constituição dos sujeitos e, dessa forma, o autor acreditava entender o conhecimento e suas relações pela multiplicidade e por diversas dimensões. Aqui ele pretende responder a um problema específico, qual seja, por que se deu o nascimento de uma moral, uma moral enquanto reflexão sobre a sexualidade, sobre o desejo, o prazer. Por que fizemos da sexualidade uma experiência moral? Essa pergunta fez ele mudar o rumo de suas pesquisas, fazendo-o recuar um pouco mais no tempo indo até a antiguidade clássica. O foco muda do sujeito objeto para o sujeito ético, indivíduo que se constitui a si mesmo, tomando então a relação a si e aos outros enquanto “sujeito do desejo”, como espaço de referência. Outra questão central é o sexo. As instituições apressaram-se em proibi-lo, não somente no discurso, mas também nas instituições e na prática. A aversão a www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 65 masturbação infantil surgiu no momento em que se precisava de uma nova educação, pois se estava instalando a industrialização e uma das maneiras de disciplinar as crianças foi pela “repressão” sexual. Nesse sentido, podemos constatar que, para se responder a uma urgência histórica, se constrói o dispositivo da sexualidade: uma rede que estabelece na relação de discursos, instituições, organizações, controladas através da confissão: o dirigido vai buscar no confessor uma verdade – a do pecado cometido. A verdade exige um discurso próprio. Assim,para se conseguir obter o saber válido para o sistema que o mantém, é preciso apossar-se do discurso que confere esse saber. As obras que compõe essa fase de “constituição do sujeito ético” são os outros dois volumes da História da sexualidade, escritos em 1984: 1 – Uso dos prazeres (Volume II); 2 – O cuidado de si (Volume III). Relações de poder Todas as pessoas estão envolvidas por relações de poder e não podem ser consideradas independente delas ou alheias a elas. Nas palavras de Foucault, “é preciso não tomar o poder como um fenômeno de dominação maciço e homogêneo de um indivíduo sobre os outros, de um grupo sobre os outros, de uma classe sobre as outras; mas ter bem presente que o poder não é algo que se possa dividir entre aqueles que o possuem e o detém exclusivamente e aqueles que não o possuem. O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como algo que só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de alguns, nunca é apropriado como uma riqueza ou um bem. O poder funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas os indivíduos não só circulam mas estão sempre em posição de exercer este poder e de sofrer sua ação; nunca são o alvo inerte ou consentido do poder, são sempre centros de transmissão. Em outros termos, o poder não se aplica aos indivíduos, passa por eles”. Dessa maneira, não existindo “o” poder, mas sim “relações de” poder, ele não está situado em um lugar específico, mas está distribuído e agindo em toda a sociedade, em todos os lugares e em todas as pessoas. Através de seus mecanismos, o poder atua como uma força coagindo, disciplinando e controlando os indivíduos. Para Foucault, de acordo com as necessidades e com as realidades de cada local, são produzidas novas relações de poder. A mecânica do poder que se expande por toda a sociedade, assumindo as formas mais regionais e concretas, investindo em instituições, tomando corpo em técnicas de dominação. Poder esse que intervém materialmente, atingindo a realidade mais concreta dos indivíduos (o seu corpo), e se situa no nível do próprio corpo social, e não acima dele, penetrando na vida cotidiana, e por isso pode ser caracterizado como micropoder ou subpoder. Este processo de renovação e adaptação das relações atinge certo grau de eficiência e o poder parece adquirir uma importante dose de autonomia, quase como se fosse independente dos indivíduos. Através das ideologias e da burocracia, mas não só por elas, o poder se exerce, envolvendo-se nos indivíduos. Diz Foucault: “O poder não se dá, não se troca nem se retoma, mas se exerce, só existe em ação; (...) o poder não é principalmente manutenção e reprodução das relações econômicas, mas acima de tudo uma relação de força”. Ele até parece invisível, mas é transmitido e reproduzido e perpetuado através dos indivíduos. Assim, o poder existe e age de modo sofisticado e sutil. O poder disciplinar adestra os corpos no intuito de tanto multiplicar suas forças, para que possam produzir riquezas, quanto diminuir sua capacidade de resistência política. Para fazer essa análise do poder, Foucault centra sua atenção no que chamou de poder disciplinar, além dos dispositivos da loucura e da sexualidade. Segundo ele, a finalidade das práticas de adestramento era disciplina e reclusão, tendo em vista a docilidade dos corpos. Para chegar a essas conclusões que adentram o interior das relações humanas, em vez de analisar a história de origem única e causal, ele realiza uma genealogia, ou seja, um olhar sobre as multiplicidades e as lutas. Para Foucault, “houve uma ideologia da educação, uma ideologia do poder monárquico, uma ideologia da democracia parlamentar, etc.; mas não creio que aquilo que se forma na base sejam ideologias: é muito menos e muito mais do que isso. São instrumentos reais de formação e de acumulação do saber: métodos de observação, técnicas de registro, procedimentos de inquérito e de pesquisa, aparelhos de verificação. Tudo isso significa que o poder, para exercer-se nesses mecanismos sutis, é obrigado a formar, organizar e pôr em circulação um saber”. Desse modo, estamos todos envolvidos nessa rede que recebe, gera e distribui o poder. Somos seres relacionáveis, sociáveis, e isso nos envolve nas relações de poder. Foucault nos aproxima dessa temática e, mais que isso, ele nos envolve nessa teia, nessa rede chamada poder. O biopoder foi um termo-conceito criado pelo próprio Foucault para mostrar a prática dos Estados modernos. Segundo ele, os Estados modernos regulam os sujeitos (cidadãos) através de numerosas técnicas que possibilitavam o controle dos corpos e da população em geral. No que se refere ao poder, direito e verdade, sob a análise de Foucault, existe um triângulo em que www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 66 cada item mencionado (poder, direito e verdade) se encontra nos seus vértices. Nesse triângulo, o filósofo vem demonstrar o poder como direito, pelas formas que a sociedade se coloca e se movimenta, ou seja, se há o rei, há também os súditos, se há leis que operam, há também os que a determinam e os que devem obediência. O poder como verdade vem se instituir, ora pelos discursos a que lhe é obrigada a produzir, ora pelos movimentos dos quais se tornam vitimados pela própria organização que a acomete e, por vezes, sem a devida consciência e reflexão, “para assinalar simplesmente, não o próprio mecanismo da relação entre poder, direito e verdade, mas a intensidade da relação e sua constância, digamos isto: somos forçados a produzir a verdade pelo poder que exige essa verdade e que necessita dela para funcionar, temos de dizer a verdade, somos coagidos, somos condenados a confessar a verdade ou encontrá-la”. Nessa perspectiva, pode-se entender por poder uma ação sobre ações. Estado e sociedade As relações de poder, direito e verdade, entre o Estado, mercado e sociedade civil são tão complexas, tácitas, intrínsecas e interdependentes que, por vezes, encontram-se discursos de verdades e direitos desenhados pelo interesse individual, o que pode ser chamado de relação de força, e tais forças estão distribuídas difusamente por todo tecido social. Para Foucault existem diversas ações que perfazem o poder, o direito e a verdade, ações essas que são transportadas para aquelas que permeiam a tríplice Estado/mercado/sociedade civil. Assim, pode-se concluir que a harmonia das relações de poder-direito, poder-verdade, estado, mercado e sociedade civil é essencial para que as políticas e ações sejam fundamentadas nos princípios éticos. Diante dos papéis possíveis que a sociedade pode apresentar, Foucault nos apresenta duas tecnologias de poder, divididas em duas séries: a série corpo — organismo/disciplina/instituições, que são os mecanismos disciplinares; a série população — processos biológicos (que são os mecanismos regulamentares)/Estado. Segundo ele, “uma técnica que é centrada no corpo, produz efeitos individualizantes, manipula o corpo como foco de forças que é preciso tornar úteis e dóceis ao mesmo tempo. E, de outro lado, temos uma tecnologia que, por sua vez, é centrada não no corpo, mas na vida; uma tecnologia que agrupa os efeitos de massas próprios de uma população”. De acordo com Foucault a modernidade trouxe duas novidades fortemente interligadas: poder disciplinar, no âmbito dos indivíduos; e sociedade estatal, no âmbito do coletivo. O poder disciplinar surgiu em substituição ao poder pastoral (no campo religioso), poder esse exercido verticalmente por um pastor que depende do seu rebanho e vice-versa. No poder pastoral, o pastor deve conhecer individualmente cada membro do seu rebanho, se sacrificar por eles e salvá-los, estabelecendodesse modo uma relação vertical, sacrificial e salvacionista, individualizante e detalhista. No campo político, a sociedade estatal veio em substituição ao poder de soberania, vem da lógica pastoral, embora não possa ser salvacionista, nem piedoso e nem mesmo individualizante. Assim, o poder de soberania tem um déficit em relação ao poder pastoral. Daí surge o poder disciplinar para preencher essa lacuna, com efeitos individualizantes, vigilante, a fim de preencher os espaços vazios do campo político. Em muitos momentos ocorreu a “a invasão do poder pastoral no plano político do corpo social”. Ou seja, o caráter individualizante do poder pastoral deveria ser abarcado pela sociedade estatal e essa contradição pode ser bem identificada no estado de bem-estar social. A partir disso, podemos observar as transformações do Estado e suas formas de produção e/ou regulação. O estado de bem-estar social surgiu da movimentação histórica em que houve urgência de o Estado provir necessidades básicas para a sociedade, visto que o liberalismo não deu conta de suprir tais necessidades. A economia capitalista entra na década de 1970 em profunda crise histórica, parecendo haver um consenso entre as correntes conservadoras e progressistas em relação ao seu caráter: trata-se de uma crise de Estado. Essa passagem de Estado tutelar, assistencial (Estado produtor) a Estado de livre iniciativa (Estado regulador) coaduna com a questão levantada por Foucault, em relação à arte de governar: “como introduzir a economia — isto é, a maneira de gerir corretamente os indivíduos, os bens, as riquezas no interior da família — ao nível da gestão de um Estado”. Governar um Estado significará, portanto, estabelecer a economia ao nível geral do Estado, isto é, ter em relação aos habitantes, às riquezas, aos comportamentos individuais e coletivos, uma forma de vigilância, de controle tão atenta quanto à do pai de família. Adiante, ele vem colocar a população não só como força do soberano, mas como sujeito das necessidades e aspirações, consciente daquilo que se quer, e inconsciente em relação ao que se quer que ela faça. “O interesse individual — como consciência de cada indivíduo constituinte da população — e o interesse geral — como interesse da população (...)”. Dessa forma, governar e programar políticas públicas perpassa pelas necessidades e aspirações da sociedade, identificadas não só pelo aspecto quantitativo de www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 67 demanda mas, principalmente, pelo aspecto qualitativo para garantir a sua sustentabilidade. Governabilidade Na Microfísica do poder (1979), Foucault coloca a governabilidade como objeto de estudo em relação às formas de governar. Ele põe as questões do problema da população e a questão de governo, em que faz deferência à relação de segurança, população e governo, sendo este o objeto principal. Ele decorre pelo principado, em particular a obra de Maquiavel, O príncipe, no sentido do modo de se comportar, de exercer o poder, de ser aceito pelos súditos. Dessa forma, traz à tona a temática acerca do governo dos estados pelos príncipes que seria: “(...) como se governar, como ser governado, como ser o melhor governante possível etc.”. Maquiavel, em princípio, como coloca Foucault, foi reverenciado por seus contemporâneos, para depois ser abominado e sofrer uma enorme literatura contrária à sua obra, daí o termo pejorativo e negativo de “maquiavélico”. É preciso levar em consideração que O príncipe, de Maquiavel, foi um postulado do comportamento do príncipe e dos que o cercavam, no sentido de reproduzir o comportamento e não escrever um tratado, um manual “maquiavélico”. Como bem colocado por Foucault, O príncipe deve ser analisado não pela função de censura, mas pela positividade dos conceitos e estratégias. No primeiro momento, Foucault coloca a relação de singularidade, exterioridade e transcendência do príncipe em relação ao principado, ou seja, o príncipe “recebe seu principado por herança, por aquisição, por conquista, mas não faz parte dele, lhe é exterior; os laços que o unem ao principado são de violência, de tradição, estabelecidos por tratado com a cumplicidade ou aliança de outros príncipes”. Para ele, a constituição de governabilidade implica analisar as formas de racionalidade, de procedimentos técnicos, de formas de instrumentalização, “o essencial é, portanto, este conjunto de coisas e homens; o território e a propriedade são apenas variáveis”. Quando se refere ao conjunto de coisas e homens, se refere à essência do ser perante as suas necessidades, interações e bem-estar; as propriedades, riquezas, recursos são as variáveis pertinentes de cada território e que dão suporte ao suprimento das necessidades do ser e o bem-estar da população. Estas coisas, de que o governo deve se encarregar, são os homens, os recursos, os meios de subsistência, o território e suas fronteiras, com suas qualidades, clima, seca, fertilidade etc.; os homens em suas relações com outras coisas que são os costumes, os hábitos, as formas de agir e pensar etc. Passada a época do principado, com as características de multiplicidade iniciada no século XVI, que introduziu a ideia de Estado, tal como se tem hoje, Foucault coloca como principais movimentos de constituição desse Estado: o movimento de concentração estatal; dispersão e dissidência religiosa. Foucault reflete sobre governabilidade a partir das três formas de governo: 1 - o governo de si (a moral); 2 - o governo da família e da casa (economia); 3 - o governo do Estado (a política). Esmiuçando essas três formas de governo, Foucault quer responder à questão postulada por Rousseau: como introduzir a questão da economia ao nível geral do Estado, ou seja, o controle atento de um pai a riquezas, recursos, comportamentos individuais e coletivos, para que a convivência seja assegurada e legitimada de forma conveniente e em prol do bem comum. Foucault aborda a questão da continuidade da arte de governar: ascendente e descendente. Na continuidade ascendente, ele afirma que “aquele que quer poder governar o Estado deve primeiro saber se governar, governar a sua família, seus bens, seu patrimônio”. A continuidade descendente é no sentido de que “quando o Estado é bem governado, os pais de família sabem governar suas famílias, seus bens, seu patrimônio e por sua vez os indivíduos se comportam como devem”. As duas linhas de continuidade fecham o cerco para a arte de bem governar, ou melhor, uma sociedade em que “todos” conseguem se governar e governar outrem; torna-se uma sociedade livre dos preceitos negativos imbricados nos interesses individuais colocados à frente dos coletivos, na sobreposição do espaço privado ao espaço público. Essas linhas de continuidade de Foucault vêm chamar atenção para a linha central entre o governo de si (a moral) e o governo de Estado (a política), e o governo da família (a economia), que permitirá que o equilíbrio desse triângulo, moral — economia — política, possa ser encaminhado ao bem da sociedade. A sociedade da vigilância e punição Para Foucault, estamos de uma forma ou de outra, todos envolvidos numa teia de relações que dá vida e “movimento” ao poder. Ele propõe também uma reflexão sobre a forma como os espaços se organizam para formar isso que chamamos de sociedade. Sobre essa organização do espaço, que chamamos de sociedade, Foucault diz: “[...] é uma máquina que circunscreve todo mundo, tanto aqueles que exercem o poder, quanto aqueles sobre os quais o poder se exerce. Isso me parece ser a característica das sociedades que se instauraram no século XIX”. www.filosofiatotal.com.brProf. Anderson 68 Mas Foucault vai além. Ele separa dois fatores que para ele funcionam como “dispositivos” para o exercício do poder: a vigilância e a punição. Dispositivos são meios, formas, veios, caminhos, pelos quais o poder se exerce na sociedade. Dispositivos são mecanismos usados de forma discreta para dar força aos meios que, em suma, objetivam determinado fim. O dispositivo, portanto, está sempre inscrito em um jogo de poder, estando sempre, no entanto, ligado a uma ou a configurações de saber que dele nascem mas que igualmente o condicionam. É isto, o dispositivo: estratégias de relações de força sustentando tipos de saber e sendo sustentadas por eles. O primeiro dispositivo usado pela sociedade, segundo Foucault, é a vigilância. Para haver vigilância, há custos econômicos e políticos. Econômicos porque precisam de investimentos com materiais e pessoas que possam agir como vigilantes. Custos políticos porque se a violência existir, por causa da vigilância, podem ocorrer revoltas. Isso é um custo político porque “desgasta” a imagem daqueles que estruturam essas forças e mantém tais mecanismos. Foucault também descreve o forte poder vigilante existente nas prisões, nas clínicas de recuperação, nos hospitais, enfim, nas formas de construção e estruturação dos locais onde se tratam do ser humano. No entanto, para uma maior precisão sobre a eficácia da vigilância, cria-se a filosofia do controle pelo olhar. Nasce a figura do inspetor. Este, de um lugar privilegiado, pode olhar e, desse modo, controlar a todos. O olhar torna-se uma boa forma de vigilância: “O olhar vai exigir muito pouca despesa. Sem necessidade de armas, violência física, coações materiais. Apenas um olhar. Um olhar que vigia e que cada um, sentindo-o pesar sobre si, acabará por interiorizar, a ponto de observar a si mesmo; sendo assim, cada um exercerá essa vigilância sobre e contra si mesmo. Formula maravilhosa: um poder contínuo e de custo afinal de contas irrisório”. Se um dos dispositivos é a vigilância, o outro é a punição. Em Vigiar e Punir, ele faz um estudo quase científico sobre a evolução histórica da legislação penal e os métodos coercitivos e punitivos, adotados pelo poder público nas formas de repressão. Métodos que vão desde a violência física até instituições correcionais. Segundo Foucault, a aplicação da pena torna-se um procedimento burocrático, permitindo que a punição seja oficializada pelo Estado mas, ao mesmo tempo, que justiça ou o sistema do estado tome uma certa distância da prática da punição. Essa distância justifica os atos de punição. Tais atos são apresentados como necessários para corrigir, reeducar, curar aqueles que são infratores da lei e da ordem. É a institucionalização do direito de castigar, punir. Ele analisa outros sistemas de punição, mas centra sua análise na prisão. Para ele o sistema carcerário torna natural e legítimo o exercício da punição, acaba com os exageros do castigo, porém, dá legalidade aos mecanismos disciplinares. Quando a punição se torna “legal” ela pode ser infligida pelo poder sem que isso seja visto como excesso. O poder de punir torna-se discreto. Na sua análise, “era assim que funcionava o poder monárquico. A justiça só prendia uma proporção irrisória de criminosos; ela se utilizava do fato para dizer: é preciso que a punição seja espetacular para que os outros tenham medo”. Dessa forma, os dispositivos de vigilância e punição são inseridos na sociedade de forma discreta, arquitetada para significar necessidade. Chega um certo ponto da construção da sociedade, que a existência desses dispositivos é vista como necessária, indispensável e legítima pelos próprios cidadãos. É a partir destes dispositivos que Foucault vai desenvolver sua análise do poder disciplinar, que já não é apresentado de forma centralizado e sim, de forma dinâmico, atuando em todos os níveis da sociedade. O olhar que controla No capítulo XIV da Microfísica do Poder, intitulado “O olho do poder”, Foucault procura trabalhar sobre a considerável mudança que acontece na sociedade a partir do século XVIII. Seus estudos estiveram relacionados às instituições, quartéis, fábricas, prisões, hospitais psiquiátricos e escolas, em que o autor perpassa pela sociedade disciplinar. A política que conduz tais instituições, Foucault afirma ser a “continuação da guerra por outros meios”. “A disciplina procede em primeiro lugar à distribuição dos indivíduos no espaço”. Entretanto, a organização espacial, horários, escala hierárquica, tudo leva a essas instituições a prescrição de comportamentos humanos estabelecidos e homogêneos, assim como descreve Foucault. Ao estudar as instituições, Foucault já havia passado pela fase arqueológica que se constitui da análise do discurso e do saber. Nessa nova etapa (das instituições), o autor buscou melhor entender as instituições e, por conseguinte, os sujeitos (fase ética). Analisando a arquitetura desenvolvida naquela época, Foucault observa principalmente como eram construídos os hospitais: com uma preocupação voltada para o modo de separação dos doentes, isolamento em departamentos separados para evitar o contágio, classificação dos problemas de saúde através do diagnóstico e, principalmente, desenvolvendo uma maneira de vigiar o paciente e observá-lo. De preferência mantendo o indivíduo longe da sociedade sadia, para “evitar os contatos, os contágios, as aproximações e os amontoamentos”. Os médicos tornam-se, dessa forma, os “especialistas do espaço”. www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 69 Para ele, “toda uma problemática se desenvolve então: a de uma arquitetura que não é mais feita simplesmente para ser vista (fausto dos palácios), ou para vigiar o espaço exterior (geometria das fortalezas), mas para permitir um controle interior, articulado e detalhado – para tornar visíveis os que nela se encontram”. Um outro lugar onde a arquitetura exerce bastante influencia é na forma como são construídas as prisões: celas, torres de observações, aberturas estratégicas, iluminação especial. Tudo para permitir um olhar que controle tudo e todos. Vigiar é preciso. As construções eram então da seguinte forma: “Na periferia, uma construção em anel; no centro, uma torre; esta possui grandes janelas que se abrem para a parte interior do anel. A construção periférica é dividida em celas, cada uma ocupando toda a largura da construção. Estas celas têm duas janelas: uma abrindo- se para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra dando para o exterior permite que a luz atravesse a cela de um lado para o outro. Basta então colocar um vigia na torre central e em cada cela trancaria um louco, um doente, um condenado, um operário ou um estudante. Devido ao efeito da contraluz, podem-se perceber, da torre, recortando-se na luminosidade, as silhuetas prisioneiras nas celas da periferia. Em suma inverte-se o princípio da masmorra; a luz e o olhar de um vigia captam melhor que o escuro que, no fundo, protegia”. Surge daí o conceito “olho do poder”, que estabelece uma nova forma de controle. Controle este que está calcado no olhar, na vigilância e não mais na força, como ocorreu até o século XVIII. Com a restauração do sistema penal, a pena de morte só aparece nos casos extremos. A prisão passa a ser admitida como a forma de punição ideal, transformando-se no local que irá corrigir reformar, reeducar e civilizar o indivíduo. O fator punitivo está na usurpação da liberdade (que passa a ser vigiada) e na correção disciplinar do detento para que este mude a sua forma de agir, tornando-se normal e produtivo. A prisão, então faz com que todos produzam: seja pormeio de incentivo, ou por meio de castigo. Com toda essa mudança estrutural, nasce o que Foucault chama de PANOPTISMO. É uma figura arquitetural que tem a visibilidade como uma armadilha. Para garantir a ordem na prisão, se constrói celas de onde não se pode ver, mas ser visto. Isso garante a ordem. O panóptico tem como efeito mais importante induzir o detento a estar consciente de que se está sendo observado. Dessa forma, o poder é automático e desindividualizado. É uma maquinaria facilmente assumida e controlada por qualquer indivíduo. O panoptismo é, portanto, um dispositivo invertido do espetáculo, shows, circo, poucos assistem ao que acontece com a multidão. Segundo Foucault: “o panóptico é uma máquina maravilhosa que, a partir dos desejos mais diversos, fabrica efeitos homogêneos de poder”. Ele explica que os “discursos de verdade” da sociedade, por meio de sua linguagem, comportamento e valores, são relações constituídas de poder e, portanto, aprisionam os sujeitos. Para ele, “cada sociedade tem seu regime de verdade, sua ‘política geral’ de verdade, isto é, os tipos de discurso que aceita e faz funcionar como verdadeiros..., os meios pelo qual cada um deles é sancionado, as técnicas e procedimentos valorizados na aquisição da verdade; o status daqueles que estão encarregados de dizer o que conta como verdadeiro”. Para tanto, Foucault vê na linguagem uma forma já constituída na sociedade, e por esse motivo, os discursos já circulam por muito tempo: “(...) analisando os próprios discursos, vemos se desfazerem os laços aparentemente tão fortes entre as palavras e as coisas, e destacar um conjunto de regras, próprias da prática discursiva”. De acordo com Foucault, as técnicas e práticas que induzem ao comportamento da internalização de movimentos sem questionamentos são chamadas de tecnologias do eu. As tecnologias de poder como produtoras da subjetividade, a análise arqueológica e a análise genealógica são alguns dos aspectos que podem ser utilizados para analisar a construção histórica de uma visão mecanicista e reducionista da sociedade. O panoptismo é um laboratório de poder. Cada vez que se aplica vai aperfeiçoando o exercício de poder porque reduz o número dos que exercem e multiplica- se o número daqueles sobre os quais é exercido. Assim, a forma do panóptico é uma maneira de perpetuar o poder porque todos estão sujeitos à verificação que este estabelece uma vez que qualquer pessoa pode assumir a torre central e exercer a vigilância. O poder torna-se, então, perpétuo, porque o panóptico o amplia; não pelo próprio poder, mas para fortificar as forças sociais, “aumentar a produção, desenvolver a economia, espalhar a instrução, elevar o nível da moral publica; fazer crescer e multiplicar.” Com esse poderoso olhar, que tudo pode ver e vigiar (o do panóptico) temos uma diferente maneira de analisar as relações sociais: não uma relação de soberania, como sugeriam os autores modernos Hobbes e Rousseau, mas numa relação de disciplina ou que usa de mecanismos disciplinares que tornam o poder rápido, eficaz, eficiente e sutil. A formação da sociedade disciplinar vem da necessidade de ordenação das multiplicidades humanas. Consequentemente de uma explosão demográfica no século XVIII, a sociedade necessita de um ordenamento. A disciplina aplicada ao corpo Com a necessidade de um ordenamento da sociedade, teve-se uma preocupação especial em se impor uma disciplina ao corpo. Este se deve adequar www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 70 espacial e funcionalmente. E vemos que esta adequação se dá num âmbito geral porque ela está implantada em todos os seguimentos da sociedade e do indivíduo: na escola, no quartel, nos hospitais. Sua característica principal é a observância do detalhe. Para Foucault, “não se trata de cuidar do corpo, em massa, grosso modo, como se fosse uma unidade indissociável, mas de trabalhá-lo detalhadamente; de exercer sobre ele uma coerção sem folga, de mantê-lo ao nível mesmo da mecânica – movimentos, gestos, atitudes, rapidez: poder infinitesimal sobre o corpo ativo. (...). Esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar as ‘disciplinas’.” Todas as atividades desenvolvidas pelos indivíduos devem ser rítmicas e estabelecidas em um determinado tempo. O corpo deve assumir uma determinada postura que seja adequada para mais eficiência. O soldado é o exemplo de como o corpo é alvo do poder disciplinar. O corpo torna-se dócil, pois pode ser manipulado, submetido, aperfeiçoado. Assim, quando se impõe a disciplina ao corpo se está tentando impor a toda a sociedade porque ele não se torna apenas obediente, mas também, útil. Nasce uma “mecânica do poder”, onde os corpos tornam-se dóceis e manipuláveis da maneira que se quer. No entanto, esse é um processo que não se dá de repente. Vem das escolas primárias dos colégios, dos hospitais, e da organização militar, uma vez que nestes ambientes se busca valorizar os detalhes, as minúcias. O homem moderno nasce neste esmiuçamento, que nada mais é que uma tática usada para o controle e utilização dos homens. Foucault, quando fez a análise das instituições sobre a ideia do panoptismo, trouxe as escolas, quartéis e hospitais como modelos do aparelhamento disciplinar, como já visto. Nesse sentido, ele perpassa em primeiro lugar pela distribuição dos corpos no espaço, “o espaço escolar se desdobra; a classe torna-se homogênea, ela agora só se compõe de elementos individuais que vêm se colocar uns ao lado dos outros sob o olhar do mestre (...)”. Em segundo lugar, pelo controle das atividades, seja na rigidez do cumprimento de horários; seja na penetração do tempo nos corpos, a fim de prevalecerem os efeitos de poder; seja pela eficiência, rapidez e utilidade dadas pelos corpos disciplinados; seja na articulação corpo-objeto, no que se refere à manipulação do corpo ao objeto e na engrenagem de um e outro; seja, por fim, pela utilização exaustiva, que importa extrair do tempo sempre mais tempos disponíveis e dessa forma tornar cada instante mais forças úteis. A ordenação por fileiras, a colocação de cada aluno em suas tarefas e provas, o alinhamento de classes por idade, a classificação de conteúdos, as questões classificadas e tratadas por ordem de dificuldade potencializam resultados, comportamentos e valores de mais valia. Segundo ele, “a minúcia dos regulamentos, o olhar esmiuçante das inspeções, o controle das mínimas parcelas da vida e do corpo darão, em breve, no quadro da escola, do quartel, do hospital ou da oficina, um conteúdo laicizado, uma racionalidade econômica ou técnica a esse cálculo místico do ínfimo e do infinito”. As análises de Foucault das instituições não são uma crítica pura, mas trazem reflexões aos sistemas instituídos no interior delas, à medida que ocorre sua progressão histórica. A ordem disciplinar, como vista, perfaz uma forma de instituir ordem e alçar eficiência e utilidade econômica. Segundo ele, “o corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Uma ‘anatomia política’, que é também igualmente uma ‘mecânica do poder’, está nascendo; ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina. A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos ‘dóceis’.” É importante destacar que para Foucault corpos dóceis são corpos maleáveis e moldáveis, o que significa que, por um lado, a disciplina se submete ao corponum ganho de força pela sua utilidade; e, por outro lado, perde força pela sua sujeição à obediência política. Nas suas palavras, “(...) se a exploração econômica separa a força e o produto do trabalho, digamos que a coerção disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma dominação acentuada”. Esse modelo de reclusão e disciplina usado nos quartéis, nos conventos etc., contribui para o nascimento das fábricas que seguem as mesmas regras, os mesmos parâmetros de ação dirigida ao indivíduo de modo a evitar roubos, vadiagem, enfim, para vigiar o comportamento de cada um. As relações de poder são sutilmente estabelecidas em meio a estes ambientes. Nas fábricas do fim do século XVIII surge o “quadriculamento individualizante”, onde as pessoas são distribuídas em postos, pois, assim, a força de trabalho pode ser analisada em unidades individuais de acordo com a função que o indivíduo exerce. Nesse sentido, nos diversos modos de se aplicar esse poder controlador do olhar panóptico, há o surgimento das celas, dos lugares designados para cada um, das fileiras nos colégios, etc. para propiciar isso, a arquitetura tem lugar muito importante no modo de construir os edifícios, na maneira de dividir as salas, na disposição dos móveis, na maneira como se posicionam os corredores, janelas e jardins. Surge desses detalhes o que Foucault chama de relações “microfísicas” do poder, apresentadas de www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 71 maneira celular, discreta e arquitetonicamente planejada. Para que a população em geral se familiarize com essa sociedade, com a preocupação em manter uma disciplina do corpo e com a preocupação de ser útil a cada momento e cada vez mais, é preciso que haja uma “domesticação” dessa população. Isso se dá através dos moldes dos meios militares e conventos, que apresentam e vivem com horários determinados e rigorosamente cumpridos; com formulas de boa convivência, de eficiência e produção constante. Dá-se aqui o uso exaustivo do tempo visando garantir a qualidade e o controle. Busca-se o tempo útil para evitar a vadiagem, os desocupados e os conflitos. No exército chega-se a fazer com que até mesmos os passos sejam dados ao mesmo tempo, numa sincronia invejável. O corpo é ajustado ao tempo e, uma vez disciplinado, gerará gestos eficientes. A disciplina é um controle do tempo. Isto é, estabelece uma sujeição do corpo ao tempo, com o objetivo de produzir o máximo de rapidez e o máximo de eficácia. Neste sentido, não é o resultado que interessa, mas seu desenvolvimento. E esse controle minucioso das operações do corpo, ela o realiza através da elaboração temporal do ato, da correlação de um gesto com o corpo que o produz e, finalmente, pela articulação do corpo com o objeto a ser manipulado. Dessa forma, podemos verificar uma mudança de uma visão de massa para uma visão mais individualizante das pessoas; por conta deste deslocamento é exigida uma maior eficiência em consequência da disciplina que lhe é imposta. O homem passa a ser como que a engrenagem de uma máquina funcional. É proibido, ou indesejável, falhar. Cada um deve estar interligado ao outro. Desenvolve-se a ideia de que se cada um desenvolver bem seu papel e “funcionar” de maneira correta, todo o conjunto alcançará ótimos resultados. Para se chegar a esse resultado positivo é necessário que se tenha um importante e eficiente sistema de comando. Não se exige da pessoa que entenda o funcionamento do todo, mas que seja eficiente no seu espaço. Por exemplo, o responsável pelo sino do colégio, o olhar constante do inspetor que vigia e guarda os corredores, o responsável pela fila que consequentemente deve ser formada. “O aluno deverá aprender o código dos sinais e atender automaticamente a cada um deles”. Tudo isso existe na tentativa de manter a ordem. Essas micro-maneiras de reproduzir o poder é que dá sustentação a toda essa engrenagem que por aí se sustenta. Essa disciplina vai criar uma individualidade, e é na fase ética, que trata da subjetivação e constituição do sujeito, que Foucault faz uma análise (a partir dessa fase genealógica aqui percorrida) de como é formado esse mecanismo de produção das individualidades que a disciplina produz a partir do controle de corpos, que a seu ver é constituída de quatro espécies: 1) celular — pelo jogo de repartição espacial; 2) orgânica — pela codificação das atividades; 3) genética — pela acumulação do tempo; 4) combinatória — pela composição de forças. Para ele, “O exercício da disciplina supõe um dispositivo que obrigue pelo jogo do olhar; um aparelho onde as técnicas que permitem ver induzam a efeitos de poder, e onde, em troca, os meios de coerção tornem claramente visíveis aqueles sobre quem se aplicam.” O fim último do poder disciplinar é ADESTRAR. A disciplina fabrica indivíduos através de um poder que circula discretamente, de forma modesta, desconfiada, mas permanente. Em Vigiar e punir, Foucault vem retratar, além da ordem disciplinar, os dispositivos que a fazem ganhar força. São simples os instrumentos que o fazem acontecer: o olhar hierárquico instituído através da ordenação espacial é analisada no panoptismo (se traduz no ver sem ser visto que se apresenta por um lado de maneira discreta porque é silencioso e anônimo e, por outro lado de forma bastante indiscreta, porque está inserido em todas as partes, alerta, controlando), a sansão normalizadora (se referem à imposição de ordem, escala hierárquica, dispositivos de comando, corrigindo os desvios, as negligencias, a tagarelice e, enfim, todos os atos que fogem à normalidade, produzindo comportamentos aceitáveis e eficientes) e o exame (onde cada indivíduo é diagnosticado a partir do que faz e pensa e da maneira como age. Cada um é colocado numa ficha, num cadastro, que o define como sendo dessa ou daquela forma, desse ou daquele comportamento, com essas ou aquelas capacidades, com essas ou aquelas fraquezas). Esse exame está presente nos hospitais (através doa médicos), nos colégios (com os mestres), nos quartéis (com o corpo militar), nas igrejas (através do padre que atende a confissão). Segundo Foucault, “o exame combina as técnicas da hierarquia que vigia e as da sanção que normaliza. É um controle normalizante, uma vigilância que permite qualificar, classificar e punir. (...). É por isso que, em todos os dispositivos de disciplina, o exame é altamente ritualizado. Nele vêm-se reunir a cerimônia do poder e a forma da experiência, a demonstração da força e o estabelecimento da verdade”. Ele coloca o exame no centro dos processos que constituem o indivíduo “como efeito e objeto de poder, como efeito e objeto de saber”. Portanto, o caminho para a individualização acaba por ser regido pelo percurso disciplinar e pelos exames que qualificam e classificam os sujeitos. Os rituais nos quais os indivíduos estão sujeitos corporificam e fabricam a individualidade celular, orgânica, genética e combinatória, entre o aparelho www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 72 institucional e entre as sanções normalizadoras em que estão inseridos. Considerações finais O modo como Foucault trata a questão do poder é inédito. Ao invés do modelo jurídico-político, Foucault mergulha no detalhado esquema apresentado pela sociedade disciplinar. Faz um recorte histórico e procura analisar o como desse poder que está subjacente às práticas que os homens desenvolvem em sua vivência social. Foucault pergunta pelas relações de poder, pelas ramificações, pelas táticas que buscamobservar os detalhes, as minúcias, o comportamento, o modo de ser de cada um para que possa domesticá-lo, encaixá-lo num espaço quadriculado a partir das verdades vividas e reproduzidas naquele momento histórico. Não que para Foucault não tenha importância estar atento ao poder estatal, instituído, representado pelo Estado. Muito pelo contrário. Diz ele que, se o problema do poder estivesse centrado nessa visão hierarquizada seria fácil acabar com o poder. O que acontece é que ele se sustenta não por subjugar, submeter, constranger, obrigar, sempre de cima para baixo, mas justamente porque essas ramificações existentes na base, dão força de sustentação para que o Estado se mantenha. Se nos perguntarmos sobre como acontece isso, Foucault nos vai mostrar que é da forma mais simples possível: nas normas e regulamentos de um colégio; do sábio sobre o ignorante; do general que exige harmonia, sincronia e cadencia nos gestos dos soldados; do padre que, através da confissão, analisa e julga o comportamento do fiel em relação a Deus; do guarda de transito que, atrás da farda e do apito se faz respeitado frente a uma grande quantidade de motoristas; enfim, onde há relacionamento humano, há essa relação de poder. A partir dessa visão de que se deve vigiar cada indivíduo, registrar cada doente numa ficha de relatório, separar os doentes dos sadios, manter a ordem nas repartições públicas (escolas, por exemplo), manter vigiada a prática da delinquência, punir os infratores, respeitar os saberes das ciências, etc. subjaz toda uma tentativa de manter o poder maior uma vez que as instâncias vão se completando num leque cada vez maior de relações até chegar no Estado que, com todos os micro poderes funcionando, se mantém. Segundo Foucault, “temos que deixar de descrever sempre os efeitos de poder em termos negativos: ele “exclui”, “recalca”, “censura”, “abstrai”, “máscara”, “esconde”. Na verdade, o poder produz realidade, produz campos de objetos e rituais da verdade”. Porque o indivíduo é adestrado, corrigido, não mais como força e martírio e morte, mas para que ele seja útil, produtivo, ágil. Isso porque o aumento da população coloca a família não mais como centro, mas como segmento interno desta que se tornará o alvo do governo que quer “olhar a sorte da população, aumentar sua riqueza, sua duração de vida, sua saúde, etc.”. Nesse caso, o poder disciplinar não pode ser deixado de lado porque através dele se pode gerir a população em profundidade, em detalhe. Estudar o poder em sua face externa, onde ele se implanta e produz efeitos reais. Não é perguntando o porquê do poder, o que ele procura e qual é a sua estratégia, mas como estão constituídos aqueles que estão sujeitos a esse poder. Não é querer formular o problema da “alma central” do poder (como faz Hobbes, no Leviatã), mas estudar os corpos sujeitos do poder. Essa nova tecnologia de poder não tem sua origem com um indivíduo ou um determinado Estado ou Monarquia. Ele foi requerido em determinadas condições locais, a partir de urgências particulares. Analisar os mecanismos desse poder significa, em suma, ver as posições e os modos de ação de cada um. Em face de toda essa análise feita do poder, Foucault diz que cabe apenas resistir a ele, pois sempre haverá poder já que ele se exerce produzindo verdade acerca do sujeito, fazendo aparecer indivíduo. 7. JÜRGEN HABERMAS Habermas é conhecido por suas teorias sobre a razão comunicativa e a esfera pública sendo considerado como um dos mais importantes intelectuais contemporâneos. www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 73 Sua preocupação com as questões políticas aparece desde a sua tese de doutorado quando realizou uma pesquisa empírica sobre a participação estudantil na política alemã, intitulada “Estudante e Política”. Doutorou-se em 1954 e em 1961 conquistou sua livre- docência com a tese intitulada “Mudanças estruturais do espaço público”. Em 1954, tornou-se assistente de Theodor Adorno (1903-1969), no Instituto de Pesquisa Social (Escola) de Frankfurt de 1956 a 1959. Seu trabalho trata ainda dos fundamentos da teoria social, da análise da democracia, do Estado de direito e da política contemporânea, particularmente na Alemanha. Esteve preocupado com o restabelecimento dos vínculos entre socialismo e democracia e seu interesse esteve centrado no desenvolvimento de uma teoria crítica da sociedade. Em seu sistema teórico, Habermas procura revelar as possibilidades da razão, da emancipação e da comunicação racional-crítica, latentes nas instituições modernas e na capacidade humana de deliberar e agir em função de interesses racionais. Esse projeto fez com que ele adotasse o paradigma da razão comunicativa, como uma forma de superar os impasses criados pelas análises de Adorno e Horkheimer na obra Dialética do Esclarecimento. Habermas concebe a razão comunicativa – e a ação comunicativa – como alternativa à razão instrumental teorizada por Adorno e Horkheimer. Várias obras e artigos foram publicados pelo filósofo nos anos seguintes, entre os quais se destacam: A Transformação Estrutural da Esfera Pública, em 1962; a famosa Teoria e Práxis, em 1963; Lógica das Ciências Sociais, em 1967; e Técnica e Ciência como Ideologia e Conhecimento e Interesse, ambas em 1968. Autor de vasta obra, que compreende hermenêutica jurídica; críticas ferrenhas ao positivismo em sua expressão resultante, o tecnicismo; análise do Marxismo e muitos outros temas, Jürgen Habermas é representante da segunda fase da Escola da Frankfurt. Contudo, mesmo sendo vasta a sua obra, o principal eixo das discussões do filósofo é, sem dúvida, a crítica ao tecnicismo e cientificismo que, ao seu ver, reduziam todo o conhecimento humano ao domínio da técnica e modelo das ciências empíricas, limitando o campo de atuação da razão humana a todo conhecimento que fosse objetivo e prático. Destacam-se, assim, três ideias fundamentais seguidas por Habermas: a) Teoria da Ação Comunicativa; b) A defesa da existência de uma esfera pública, na qual os cidadãos, livres de domínio político, podem expor ideias e discuti-las – Habermas, contudo, destaca que a mídia exerce influência no sentido de diminuir este espaço; c) A ideia de que as ciências naturais seguem uma lógica objetiva, enquanto as ciências humanas – uma vez que a sociedade e a cultura são baseadas em símbolos – seguem uma lógica interpretativa. E em cada um desses temas expressa-se a característica de Habermas, herança explícita da Escola de Frankfurt, isto é, a abordagem dita “crítica” a respeito das teorias, das ciências e do próprio presente, construindo, assim, um conhecimento engajado e revolucionário. Seguindo este eixo e introduzindo uma nova visão a respeito das relações entre a linguagem e a sociedade, em 1981 Habermas publicou aquela que é considerada sua obra mais importante: Teoria da Ação Comunicativa. Em algumas outras obras ele abordou as ciências sociais e, em especial, dedicou-se a estudar o Direito. Em Conhecimento e Interesse (1968), Habermas apresenta uma distinção entre as ciências exatas e as ciências humanas, afirmando a especificidade das ciências sociais No seu livro A Transformação Estrutural da Esfera Pública (1962), aborda o fundamento da legitimidade da autoridade política como o consenso e a discussão racional. Na obra Entre Fatos e Normas (1996), ele faz uma descrição do contexto social necessário à democracia, bem como esclarece fundamentos da lei, de direitos fundamentais bem como uma crítica ao papel da lei e do Estado. A obra habermasiana tem diversos momentos e um dos mais importante ocorre no final dos anos 70 e começo dos anos 80 onde ocorrerá a tentativa deinserir a ideia de um consenso discursivo em uma teoria da reflexividade da ação social. A “Teoria da Ação Comunicativa” é a obra onde esse empreendimento é construído do ponto de vista teórico. Duas dimensões são centrais a esse empreendimento: a construção de um conceito de mundo social reflexivamente adquirido e a ideia de uma forma de ação que seja intersubjetiva e voltada para um consenso comunicativo. Essa ação intersubjetiva se torna uma dimensão central pois a subjetividade não é construída através de um ato solitário, mas é resultante das interações que estabelecem nesse mundo social, a partir de uma complexa rede de interações sociais, que são simultaneamente dialógicas e comunicativas. É dentro desta perspectiva que Habermas procura trabalhar com o conceito de uma racionalidade comunicativa. A Teoria do Agir Comunicativo é uma obra de arquitetura complexa. O objetivo é a formulação de uma teoria orgânica da racionalidade crítica e comunicativa; uma teoria fundada sob a dialética entre agir instrumental e agir comunicativo ou, como ele diz, entre “sistema e mundo da vida”. O sistema está vinculado ao agir instrumental; é o Estado com seu aparato e a sua organização econômica. O mundo da www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 74 vida está vinculado ao agir comunicativo; é o conjunto de valores que cada um de nós individualmente ou comunitariamente “vive” de maneira imediata, espontânea e natural. Teoria do Agir Comunicativo A Teoria do Agir Comunicativo de Habermas tem sido analisada sob diferentes enfoques: seja sua aplicação às teorias sociais, políticas e democráticas seja sua relação com o direito, com a saúde e muitas outras. Sua obra é dominada por quatro eixos temáticos, 1) fundamentação de um conceito de racionalidade comunicativa que serve de base e princípio norteador; 2) dicotomia entre agir estratégico ou instrumental e agir comunicativo; 3) elaboração de uma nova teoria da ordem social com primazia do agir comunicativo; 4) contraposição entre mundo da vida e sistema. A obra contém também um diálogo crítico com autores consagrados das ciências sociais, como a análise da teoria da racionalização de Max Weber, análise da teoria da comunicação de G. H. Mead e da sociologia da religião de Durkheim. Habermas afirma, no prefácio da Lógica das ciências sociais que já havia prefigurado o surgimento da teoria do agir comunicativo, a partir de um viés metodológico para uma fundamentação teórico- linguística das ciências sociais. A teoria do agir comunicativo “substancializa”, por assim dizer, essa ideia. Neste mesmo prefácio Habermas afirma que a obra foi escrita ao longo de quatro anos e desenvolve “o conceito fundamental de agir comunicativo, abrindo caminho para três complexos temáticos ligados entre si: o conceito de racionalidade comunicativa; o conceito de sociedade em dois níveis, a saber, “mundo da vida” e “sistema”; e por fim uma teoria da modernidade que “deve possibilitar uma conceitualização do contexto social da vida que se revele adequada aos paradoxos da modernidade”. A premissa básica da Teoria da Ação Comunicativa é a de que os homens são capazes de ação, e para tanto, se utilizam da linguagem para se comunicar com seus pares, buscando chegar a um entendimento. Sendo o princípio base da razão comunicativa a linguagem, esta constitui o meio através do qual as interações sociais se dão no mundo da vida. A linguagem mediatiza fundamentalmente toda relação significativa entre sujeito e objeto. Ela está inevitavelmente presente em toda comunicação humana, a qual implica um entendimento mútuo sobre o sentido de todas as palavras e sobre o sentido do ser das coisas mediadas pelos significados da palavra. A linguagem possui, primordialmente, um sentido comunicativo, ou seja, nós moramos na linguagem. Para nos comunicarmos, a única alternativa é a linguagem. Sem ela, não temos nem conhecimento e nem acesso ao mundo. Todos nós vivemos dentro de uma teia de relações humanas onde a linguagem marca as coordenadas da nossa vida na sociedade e enche esta vida de objetos dotados de significação. Um sujeito solitário não terá como agir comunicativamente. Comunicação que é concebida como um ato intrinsecamente intersubjetivo. Por isso a teoria do agir comunicativo só pode ser fundada sobre as estruturas da linguagem natural, capaz de produzir uma racionalidade baseada em uma compreensão intersubjetiva. O conceito de agir comunicativo refere- se, portanto, a interação de pelo menos dois sujeitos capazes de se expressar através da linguagem e que, por meios verbais ou não, estabeleçam uma relação entre si. A tarefa da linguagem, no agir comunicativo, é fornecer o horizonte pré-estruturado a partir do qual os sujeitos podem relacionar-se entre si e sobre o mundo. O entendimento possível entre os sujeitos dá-se na linguagem porque nela está depositado o saber pré- teórico específico do gênero humano. A linguagem, como horizonte pré-estruturante, possibilita as experiências, as ações e a obtenção do consenso. Está posto o caminho, grosso modo, para se criar a teoria habermasiana do agir comunicativo e de uma racionalidade comunicativa. Racionalidade comunicativa que está intimamente ligada ao agir comunicativo e tem como objetivo a busca do consenso entre sujeitos capazes de falarem e agirem. Mediatizadas pela linguagem, toda relação existente entre sujeitos que interagem uns com os outros está inevitavelmente presente em toda comunicação humana e, por conseguinte, o conhecimento, a partir de sua mediação pela linguagem, só pode ser concebido como a compreensão comunicativa e formação do consenso sobre algo do mundo. Ao ventilar que a linguagem, enquanto ato de entendimento é consenso humano sobre questões pertinentes (ética, política, direito, moral, estética, poder) inicia-se o abandono do paradigma monológico da razão kantiana, fundada no discernimento pessoal, para um paradigma do entendimento mútuo mediado intersubjetivamente pela linguagem. A partir da publicação da obra Teoria do Agir Comunicativo, Habermas começa um processo de aplicação da sua concepção de teoria do discurso à política contemporânea. Ele irá operacionalizar tal aplicação através da percepção de que o problema da legitimidade na política está ligado a um processo de deliberação coletiva que contasse com a participação racional de todos os indivíduos possivelmente interessados ou afetados por decisões políticas. Esta obra que é considerada a mais importante tem uma relevância sem precedentes dentro do contexto atual de qualquer regime que se pretende democrático. Habermas sugere um modelo ideal de www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 75 ação comunicativa e democracia deliberativa, no qual as pessoas interagem através da linguagem, organizam-se em sociedade e procuram o consenso de forma não coercitiva. Uma democracia deliberativa que defende que o exercício da cidadania se estende para além da mera participação no processo eleitoral, exigindo uma participação mais direta dos indivíduos no domínio da esfera pública, em um processo contínuo de discussão e crítica reflexiva das normas e valores sociais. As questões sociais e coletivas devem ser objeto de apreciação de todos. Ora, se nós considerarmos que em uma sociedade democrática, a esfera pública é dominada pelo discurso e pela argumentação, de interesses da coletividade, então fica fácil entender a importância dessa Teoria da Ação Comunicativa.Sua relevância está, indubitavelmente, em pretender o fim da arbitrariedade e da coerção nas questões que envolvem toda a comunidade, propondo uma participação mais ativa e igualitária de todos os cidadãos nas discussões em torno da coisa pública. Essa forma defendida por Habermas é o agir comunicativo que se ramifica no discurso. Do ponto de vista do exercício democrático, Habermas pressupõe que as instituições devem estar organizadas e estruturadas de maneira que o discurso possa surgir como forma de resolução dos conflitos surgidos das quebras pactuais ou dificuldades de comunicação das comunidades. O ponto central é, portanto, o mesmo, independente da sua formulação. As normas e as decisões políticas só podem legitimarem-se em decorrência de poderem ser questionadas e aceitas no discurso entre cidadãos livres e iguais. A ação comunicativa habermasiana pressupõe uma teoria social: a do mundo da vida; e contrapõe-se à uma ação estratégica, regida pela lógica da dominação. A ação comunicativa tem como lócus privilegiado o mundo da vida. Ao conceito de agir comunicativo Habermas opõe o conceito de agir estratégico, sendo que ambos estão ligados entre si, porém se distinguem e se diferenciam: o agir comunicativo parte do pressuposto que as decisões levam em conta os interesses interpessoais do bem-comum e da reciprocidade, ao passo que o agir estratégico pressupõe que as decisões levam em conta os interesses pessoais individuais. O agir estratégico tem como horizonte os interesses individuais da ação, com o objetivo de obter sucesso e poder. O agir comunicativo não pode, ao contrário, ser orientado por interesses pessoais, já que pressupõe satisfazer as condições de entendimento e cooperação e consenso. O agir comunicativo compreende aquelas ações orientadas para o entendimento e o agente é o sujeito competente linguisticamente para agir na busca do consenso. Trata-se de uma tentativa de compreender as condições universais de produção de enunciados que visem ao entendimento, uma vez que todas as normas de ação social são entendidas como derivadas do agir voltado para o entendimento. De outro modo, as relações mediadas comunicativamente devem ser inteligíveis, sob pena de ofuscar o entendimento. Para isso, Habermas identifica na filosofia da linguagem de cunho analítico os pressupostos de validade do ato de fala, onde se encontra o fundamento da racionalidade comunicativa. Para Habermas, entender um “ato-de-fala”, significa que, pelo menos, dois sujeitos, linguística e interativamente competentes, compreendem identicamente uma mesma impressão. E é este entendimento que pode possibilitar a obtenção de um consenso, um consenso que seja aceito como válido para todos os participantes do discurso, fundando na ação e na razão comunicativa. Para tentar ilustrar suas ideias Habermas cria uma “situação de fala ideal”, em que o filósofo pressupõe uma situação onde os participantes são autênticos e verdadeiros. Uma situação talvez empiricamente impossível de ser atingida, mas pressuposta como real em cada discurso onde uma questão possa ser tematizada e onde os participantes atuem livres de coerções naturais e/ou intrapsíquicas. A Esfera Pública Entre 1989 e 1992, Habermas, pela primeira vez desde os anos 60, reconsidera o seu pensamento sobre a esfera pública. Isso acontece devido a um congresso sobre o tema em 1989, no qual o filósofo foi confrontado com releituras da sua obra e do conceito por ele desenvolvido em 1962. Isso o levou a publicar Direito e Democracia: Entre Facticidade e Validade, em 1992, obra que traz, entre outras coisas, a noção de esfera pública de volta ao patrimônio argumentativo do pensador alemão. Também, pela primeira vez em trinta anos, é feita a conexão entre a noção de esfera pública e temas- chave do seu patrimônio, como “ação comunicativa” “formação discursiva da opinião e da vontade” e “discurso”. Esfera pública é o domínio ou espaço socialmente reconhecido, mas não-institucionalizado, onde há a livre circulação de questões, informações, pontos de vista e argumentos provenientes das vivências diárias dos sujeitos. Assim como as câmaras e tribunais existem por meio dos debates institucionalizados, a esfera pública se realiza por meio da livre flutuação de problemas e contribuições. Para ajudar a definir o que é a esfera pública, Habermas usa metáforas, como a dos sensores sociais, por exemplo. A esfera pública nesse caso seria uma ampla rede de radares e sensores, localizados no interior da sociedade, sensíveis ao ponto de perceber e https://pt.wikipedia.org/wiki/Esfera_p%C3%BAblica https://pt.wikipedia.org/wiki/Direito_e_Democracia:_Entre_Facticidade_e_Validade https://pt.wikipedia.org/wiki/Direito_e_Democracia:_Entre_Facticidade_e_Validade https://pt.wikipedia.org/wiki/A%C3%A7%C3%A3o_comunicativa https://pt.wikipedia.org/wiki/Discurso https://pt.wikipedia.org/wiki/Radar https://pt.wikipedia.org/wiki/Sensor www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 76 identificar os problemas da sociedade. Ainda nessa ideia, a sugestão dos radares sociais se junta à metáfora da caixa de ressonância. A esfera pública não é capaz de resolver, sozinha, os problemas sociais, portanto, ela aumenta seu eco e volume para conseguir chamar a atenção dos parlamentares e orientar suas decisões. Habermas se esforça para ligar a esfera pública a uma das suas principais teorias: a ação comunicativa. A sua existência depende dessa ação voltada para o entendimento, ou seja, aquela em que os sujeitos orientam o seu comportamento pela vontade de entender uns aos outros. A esfera pública não tem propriamente a ver nem com as funções nem com os conteúdos da ação comunicativa; a esfera pública é, na verdade, o espaço social que a ação comunicativa forma. Nesse sentido, a esfera pública tem grande função em explicar os processos pelos quais são formadas a opinião e a vontade coletivas. Esses processos são baseados em interações, de modo que precisam de comunicação e busca de consenso. Para Habermas, parece razoável e democrático que a opinião pública e a vontade geral devam ser formadas discursivamente. Somente as leis que surgem de um processo discursivo, debatido por todos os cidadãos interessados, em situação de igualdade de oportunidades e direitos, são democraticamente legitimas. Ética do discurso Se as ações sociais de natureza comunicativa estão concentradas na esfera pública, são os movimentos sociais que reorganizam as formas de participação democrática. Portanto, os movimentos sociais devem preservar as formas de solidariedade postas em risco pelo Estado ou pelas corporações capitalistas, exercendo o papel de atores sociais e políticos na defesa de um espaço autônomo e democrático. Tais atores sociais têm como objetivo a organização e a reprodução da cultura, sobretudo com base na formação de identidades e solidariedades coletivas. Uma questão importante que se coloca à teoria de Habermas diz respeito à contenção da tendência de desenvolvimento do dinheiro e do poder (do sistema) pelos movimentos sociais, isto é, a contenção da racionalidade instrumental pelo agir comunicativo. Marx, no Manifesto comunista, ao analisar o desenvolvimento da sociedade capitalista, afirmou que “tudo o que é sólido e estável se volatiza, tudo o que é sagrado é profanado”. Em outras palavras, a lógica de produção e reprodução da sociedade capitalista tende a invadir todos os espaços sociais. Nesse sentido, entender, como Habermas, que as formas da ação comunicativa (do mundo da vida) seriam capazes, com base na organização política de movimentos sociais, de conter esse avanço pressupõe que o processo de reinvenção e reorganizaçãoda economia capitalista em algum momento cederá a argumentos racionalmente defendidos na esfera pública. Na esfera pública, onde impera a razão comunicativa, as pessoas dialogam livres das pressões econômicas e políticas, construindo argumentos racionais que produzem normas morais válidas em uma “situação ideal de fala” que permite o consenso do conjunto dos indivíduos, não privilegiando nenhum interesse particular. É importante deixar claro que Habermas constrói uma ética procedimentalista na medida em que não afirma o que seja certo ou errado, justo ou injusto. Ele explicita a forma, o meio, o procedimento a ser tomado pelos indivíduos para que cheguem a essas conclusões através de um diálogo livre de qualquer tipo de dominação ideológica. Direito e Moral A obra Direito e Moral é dividida em dois segmentos principais, o primeiro fazendo uma crítica a pontos de vista de Max Weber no que toca o direito e a moral, tendo como título “Como é possível a legitimidade através da legalidade”; e o segundo mostrando se o desmoronamento do direito puramente racional resulta em um estado jurídico com maior agilidade diante da sociedade, sendo o título “Para a ideia do estado jurídico”. O primeiro grande segmento é subdividido em três partes. Na primeira parte Habermas comenta a visão de Max Weber sobre a racionalidade do direito. Segundo Weber a racionalidade só existe devido ao caráter formal que está incutido no direito, ou seja, só pode existir a razão em decorrência da obediência aos procedimentos jurídicos. Dessa forma, moral e direito são dois campos separados, sendo a moral subjetiva e o direito objetivamente racional. Assim a interferência da moral no direito acabaria por retirar a racionalidade do mesmo. Mas Habermas nos mostra que o próprio ato de seguir os procedimentos jurídicos já implica na mistura entre moral e direito, afinal o direito é constituído de normas estabelecidas por um legislador e este possui uma moral que acaba sendo incorporada à lei. Sendo assim, a teoria de Weber onde a legitimidade só pode ser alcançada pela legalidade puramente racional perde força. Na segunda parte são abordados alguns fenômenos não previstos por Weber. Dessa forma temos o direito reflexivo, onde os juristas refletem sobre as leis e fazendo isso acabam recorrendo a https://pt.wikipedia.org/wiki/Resson%C3%A2ncia_ac%C3%BAstica www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 77 preceitos morais para explicá-las. Podemos falar ainda da marginalização dos litígios, pois as partes envolvidas podem fazer contratos aproveitando brechas na lei e acabam tornando o processo bastante subjetivo. Os imperativos funcionais, onde a criação de condições para um estado regulador pender espaço para as preferências geradas pelo dinheiro e poder, deixando de lado a razão. Por fim temos a sucessão de legisladores, que tentam embutir seus próprios padrões morais na lei. Para encerrar esse segmento do texto o autor ainda menciona a axiologia das Constituições Federais existentes como uma prova de padrões morais presentes na lei. O último texto deste segmento mostra como nossa sociedade aceita a legitimidade só através da legalidade, sendo assim é preciso fundamentar esta legalidade. Já foram utilizados fundamentos como a metafísica e a religião, mas atualmente estes não são mais aceitos. Assim se buscou a razão como fundamento para nossa legalidade. Mas se de acordo com Max Weber a inserção da moral no direito retira sua razão e por sua vez sua legalidade, podemos questionar o fato de a razão estar baseada na moral; afinal não retiramos os padrões morais sociais do limbo. A segunda parte do livro também é dividida em três partes. A primeira delas mostra como o sistema jurídico não está preso aos conceitos gerais da teoria de sistema. Isso acontece porque o direito tem uma necessidade peculiar, que não ocorre na maioria dos sistemas, a de se adaptar constantemente e rapidamente às mudanças que se desenrolam na sociedade como um todo. Afinal a norma jurídica tem lacunas que devem ser preenchidas para manter a sociedade controlada e regulada. Nesta próxima parte o autor busca mostrar o entrelaçamento do direito e da moral com a política. Ou seja, expor que o direito não se coloca a serviço da política, pois se a política controlasse o direito a legitimidade daquela seria comprometida pois este não teria poder para dar credibilidade, sendo o direito incorporado à política. E a seguir vemos que o contrário também é impensável, pois a ideia de que o direito pudesse criar suas próprias estruturas normativas pela razão também lesaria a legitimidade da norma jurídica. Por fim, Habermas mostra o porquê da transformação do direito racional em estado jurídico. Uma sociedade como à atual não pode se prender as estruturas formais presentes no direito racionalista. Os mercados pedem uma maior agilidade por parte do ordenamento jurídico, assim se abre espaço para o direito subjetivo criar as condições necessárias para tal agilidade. Os contratos privados ganham uma maior autonomia para preencher as lacunas da legislação e dessa maneira a moral ganha um grande espaço no direito pois os contratos privados são subjetivos e a subjetividade é uma das manifestações mais claras da moral. Concluindo O objetivo de Habermas é compreender como as sociedades ocidentais estão organizadas e quais os efeitos desse processo de racionalização sobre os agentes sociais. Apesar do predomínio da lógica estratégica do mercado e do Estado, a ação comunicativa tem papel decisivo na constituição das formas de solidariedade e de identidade sociais. Na prática, Habermas admite um confronto constante entre a lógica instrumental (o “sistema”) e o agir comunicativo (o “mundo da vida”). Ele entende que o sistema e o mundo da vida seriam formas sintéticas para qualificar a racionalidade instrumental e o agir comunicativo. O ponto de encontro dessas duas lógicas distintas se daria nos espaços de disputa política. A lógica instrumental do mercado se apresenta como um processo em desenvolvimento. Ou seja, ainda há espaços sociais em que a razão instrumental não predomina, onde ainda prevalecem as relações de solidariedade e identidade social. Mas o desenvolvimento da racionalidade instrumental coloca esses espaços em risco. Habermas identifica esse processo como uma forma de colonização do mundo da vida pelo sistema. O desenvolvimento de sistemas econômicos e administrativos de racionalidade instrumental tende a colonizar, com base no dinheiro e no poder, áreas de interação ainda não governadas por eles. Criam-se, dessa forma, conflitos sociais, já que essas áreas se caracterizam pela transmissão cultural, pela integração social e pela socialização, isto é, são dependentes de uma articulação social que se daria pelo entendimento mútuo. A partir dessas considerações, Habermas elege a esfera pública como um local onde os atores sociais, sobretudo os movimentos sociais, resistiriam ao desenvolvimento da racionalidade instrumental. Fundamentadas na linguagem e em argumentos discursivamente defendidos, os atores sociais se expressam e resistem ao avanço do sistema. Suas competências comunicativas são, assim, as formas privilegiadas de contenção da racionalidade estratégica. 8. JOHN RAWLS John Rawls (1921 – 2002) nasceu em Baltimore, estudou em Princeton e, depois de uma estadia em Oxford, voltou para os Estados Unidos, passando a ensinar na Universidade de Harvard, onde também ensina seu mais aguerrido e leal adversário: Robert Nozick. Rawls é conhecido por ter publicado em 1971 um dos livros mais discutidos - e mais influentes - destes últimos vinte anos: Uma teoria da justiça. www.filosofiatotal.com.brmas também muito educada, tendendo mais para a vibração artística que para a insensibilidade científica, embora ele valorizasse muito a esfera da razão. Seu grande amigo, Gerschom Gerhard Scholem, com quem ele trava conhecimento em 1915, logo percebeu no jovem alguns traços inequívocos de melancolia, tema, aliás, muito presente na teoria benjaminiana. Além disso, para completar a caracterização deste grande filósofo, é preciso acrescentar também sua veia poética e sua natureza mística. Benjamin foi um intenso admirador da língua e da cultura francesas, as quais dominava perfeitamente. Ele traduziu para a língua alemã obras fundamentais de Charles Baudelaire e de Marcel Proust. Sua produção literária foi também um espelho de suas crenças, à primeira vista paradoxais. As obras mais célebres são A Obra de Arte na Era da Sua Reprodutibilidade Técnica (1936) e a incompleta Paris, Capital do século XIX. A Tarefa do Tradutor é essencial para quem estuda Literatura. Em 1934, Benjamin foge para a Itália, onde permanece por um ano, tentando fugir da ascensão do Nazismo na Alemanha. Neste período já haviam se estabelecido algumas divergências entre Benjamin e a Escola de Frankfurt. Em 1940, na margem espanhola da fronteira entre França e Espanha, tentando atravessar os Pireneus, possivelmente com medo de ser capturado pelos nazistas, proibido de seguir adiante, Benjamin comete suicídio. O filósofo não resiste à intensidade da pressão emocional e, movido pelo ardor de seu lado melancólico e apaixonado, opta pela morte. Seu aspecto racional não é forte o bastante para contê- lo. Neste mesmo ano ele cria sua última obra, Teses Sobre o Conceito de História. Sua produção intelectual marcou a produção de vários filósofos que o sucederam. A tarefa da crítica Para a posteridade, a enorme produção de Benjamin significou o estabelecimento de um marco no pensamento e na crítica Olhando retrospectivamente para o século 20, podemos dizer que ele de fato realizou um de seus projetos pessoais mais arrojados. Como ele formulou em uma carta a seu grande amigo Gershom Scholem, de janeiro de 1930, ele achava que conseguira o objetivo de “ser considerado como o primeiro crítico da literatura alemã”. Este reconhecimento na época era na verdade muito tímido, restrito a um pequeno círculo de leitores especializados. Hoje este círculo cresceu a ponto de podermos com razão falar de um www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 9 “reconhecimento” de sua posição privilegiada como crítico. Benjamin estava ciente, como ele escreveu na mesma carta, que para tornar-se este “primeiro crítico” era necessário “recriar a crítica como gênero”. Este gênero encontrava-se então na Alemanha desprezado, não era considerado como sério. No mesmo ano, Benjamin diagnosticava que uma das causas que havia levado a crítica alemã à crise naquela época, era a “ditadura da resenha como forma de pesquisa crítica”. Ele mencionou então, como um contra-modelo do passado, as “Características” dos irmãos Schlegel. Como um dos caminhos para a saída da crise da crítica, ele cobrava dos críticos uma aproximação entre a abordagem filológica e uma autêntica reflexão crítica. Este termo indicava para ele uma reflexão tanto no sentido de uma teoria das formas, como de uma teoria da história. Sem falsa-modéstia ele escreveu então que se a situação da crítica alemã estava se transformando, isto ocorria em parte devido aos seus enormes esforços. E, de fato, Benjamin então, com 38 anos, já fizera bastante para o aprimoramento da crítica. Ele não apenas publicara dois ensaios de peso sobre a literatura alemã, seu “O conceito de crítica de arte no romantismo alemão” (1919) e o “Origem do drama barroco alemão” (de 1925, publicado em 1928), como compusera uma profunda análise das Afinidades eletivas de Goethe (1922), além de mais de cerca de uma centena de artigos de crítica, sobretudo sobre literatura alemã e francesa. Com o fracasso de seu plano de entrar para a universidade, ele se entregara de corpo e alma a este projeto de crítica. Isto significou para ele uma vida atribulada, com enormes dificuldades econômicas. Para a posteridade, a sua enorme produção, paradoxalmente derivada desta mesma situação precária, significou o estabelecimento de um marco no pensamento e na crítica. Esta última, em Benjamin, nunca foi limitada à literatura ou às obras de arte consagradas. Ele entendeu em primeiro lugar o conceito de crítica no seu sentido kantiano, de crítica da possibilidade de conhecimento. Neste ponto seu pensamento já se aproxima do dos românticos Schlegel e Novalis que cobravam da filosofia kantiana uma expansão do seu conceito de experiência. Com estes autores ele via na crítica um médium-de-reflexão. Trocando em miúdos, assim como os românticos viam na “romantização” do mundo um projeto de superação das barreiras entre o universo criativo e penetrado de fantasia das artes, e, por outro lado, a vida prosaica cotidiana, do mesmo modo, Benjamin propõe para a crítica um projeto tanto estético quanto político. O ato da crítica era visto por ele como um meio de crítica de todo o sistema cultural e de sua base econômica. A partir de seu encontro com o marxismo de Lukács, isto tornou-se cada vez mais patente em seus ensaios e textos de crítica de arte. Aliás, se ele se identificou tão rapidamente com o marxismo de Lukács, foi também porque ambos, este e Benjamin, vinham de uma profunda relação com o romantismo alemão. Mas Benjamin foi mais longe que seus colegas de geração, justamente porque ao invés de “superar” seu romantismo, manteve-se fiel a ele por toda sua vida. Se ele tenta nos anos de 1930 demarcar uma posição contra este seu romantismo, é justamente porque ele não conseguiu superá-lo totalmente. A crítica de Benjamin era, portanto, antes de mais nada, um ato de reflexão que se desdobrava em cinco níveis, articulando-os. O primeiro nível incluía uma auto-reflexão (ele sempre refletia sobre sua própria atividade de crítico, sobre o local e o papel da crítica na sociedade). Em segundo lugar, destaca-se uma leitura detalhada e uma reflexão sobre a obra criticada (que era sempre analisada não a partir de um modelo a-histórico, mas sim de seu próprio Ideal a priori, nas palavras de Novalis). Em terceiro lugar, encontramos uma reflexão sobre a história da arte e da literatura, na qual Benjamin, dentro de uma forte tradição alemã, desenvolveu muitas vezes (como no livro Sobre o barroco e no seu ensaio sobre o narrador, de 1936) o tema da teoria dos gêneros literários. Em quarto lugar, nota-se sempre uma reflexão crítica sobre a sociedade, ou seja, a crítica foi praticada em Benjamin a partir do seu presente e voltada para ele, sem a ilusão positivista de se poder penetrar no passado “tal como ele aconteceu”. Por fim, e articulando todos os níveis anteriores, devemos destacar a teoria da história de Benjamin com a sua crítica aos modelos da evolução histórica, tanto liberais como marxistas, que acreditavam em um avanço constante e positivo do devir da história. Benjamin opôs a este modelo uma imagem da história como acúmulo de catástrofes. Contra o positivismo daqueles que pregavam (inocentemente ou não) uma crítica apolítica, Benjamin demonstrou que não existe um campo fora do político. A arte e sua crítica são médium-de-reflexão não apenas do sistema estético, mas, antes, de toda a sociedade. Neste sentido, ele extrapolou programaticamente o âmbito da crítica da literatura e da arte. Sua atividade crítica não pode ser inteiramente compreendida, se não levarmos em conta seus seminais textos críticos dirigidos à questão do poder e do direito, assim como a sua crítica do que ele denominou de concepção “burguesa”, ou seja, instrumental,Prof. Anderson 78 Karl Popper definiu a obra de John Rawls como “um livro importantíssimo sob muitos aspectos”, e apreciou muito a ideia de Rawls segundo o qual é um projeto de vida “que caracteriza as intenções ou as finalidades que fazem de um homem ‘uma pessoa moral unificada, consciente’”. Por sua vez, justamente Robert Nozick escreveu que Uma teoria da justiça “é uma fonte de ideias iluminadoras, fundidas em um conjunto agradável. Ora, os filósofos devem trabalhar dentro da teoria de Rawls, ou então explicar por que não o fazem [...]. Também quem não estiver convencido do desencontro com a visão sistemática de Rawls aprenderá muito, estudando- o aprofundadamente”. Essas coisas, ditas por seu adversário mais temível, constituem o melhor elogio da obra de Rawls. Contra o Utilitarismo Desde os inícios de seu livro Uma teoria da justiça, Rawls é claro sobre o fato de que sua teoria é de “natureza profundamente kantiana”; e isso no sentido de que ele põe sua obra na esteira do contratualismo (Locke, Rousseau, Kant), em contraste com a tradição do utilitarismo (Hume, Bentham e Mill). O intento de fundo da obra de Rawls está na proposta e no exame de princípios em grau de sustentar uma sociedade livre e justa. “A justiça - escreve Rawls - é o primeiro requisito das instituições sociais, assim como a verdade o é dos sistemas de pensamento”. E logo acrescenta: “uma teoria, por mais simples e elegante que seja, deve ser abandonada ou modificada, se não for verdadeira”. Pois bem, “do mesmo modo as leis e as instituições, não importa o quanto sejam eficientes e bem urdidas, devem ser reformadas ou abolidas se forem injustas”. Mas quando é que leis e instituições são justas? Os utilitaristas - pensemos, justamente, em Bentham ou em Mill – perseguiram o ideal do maior bem-estar para o maior número de pessoas; por conseguinte, defenderam uma concepção tal que no fim, de fato, comportava a submissão do indivíduo a sociedade. Rawls combate tal impostação, enquanto, a seu ver, nenhum homem deve sofrer privações em vantagem de algum outro ou da “maior parte da sociedade”. “Véu de ignorância e posição originária” Rawls, na pesquisa de Uma teoria da justiça, parte daquela que ele chama de posição originária. Esta posição originaria é o estado em que se encontram os indivíduos que devem determinar o contrato. Ela não é uma hipótese de estado de natureza, mais ou menos fictícia. É simplesmente um expediente heurístico imaginado “de modo a obter - afirma Rawls - a solução desejada”. Na posição originária, os indivíduos particulares se encontram em uma situação de equidade, isto é, de igualdade; e tal equidade deve-se ao véu de ignorância que caracteriza a condição dos indivíduos que se põem na posição originária. Escreve Rawls: “Devemos de algum modo zerar os efeitos das consequências particulares que põem em dificuldade os homens, e que os impelem a desfrutar em sua própria vantagem as circunstâncias naturais e sociais. Com este objetivo, assumo que as partes estão situadas por trás de um véu de ignorância. As partes não sabem de que modo as alternativas influenciarão em seu caso particular, e são por isso obrigadas a avaliar os princípios apenas com base em considerações gerais. Assume-se, portanto, que as partes não conhecem alguns tipos de fatos particulares. Primeiramente, ninguém conhece seu próprio lugar na sociedade, sua posição de classe ou seu status social; o mesmo vale na distribuição dos dotes e das capacidades naturais, sua força, inteligência e semelhantes. Além disso, ninguém conhece sua própria concepção do bem, nem os particulares dos próprios planos racionais de vida e nem as próprias características psicológicas particulares, como a aversão ao risco ou a tendência ao pessimismo ou ao otimismo. Além disso, assumo que as partes não conheçam as circunstâncias especificas de sua sociedade”. A posição originária faz escolher princípios universais Pois bem, em urna situação desse tipo, nessa posição originária, o véu de ignorância torna todos iguais. O véu de ignorância não beneficia ninguém; portanto, nenhum dos contraentes poderá propor uma sociedade futura ou instituições em sua própria vantagem; ninguém sabe qual é ou será seu próprio interesse ou privilégio particular. www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 79 A posição originária faz com que todos sejam igualmente racionais e reciprocamente desinteressados; é uma situação que obriga todos a escolher princípios universais de justiça, ou, para dizer com Kant - ao qual Rawls se remete -, princípios de uma moral autônoma que nós mesmos nos damos não como seres interessados nisto ou naquilo, ou como membros desta ou daquela sociedade, mas como seres livres e racionais. “O véu de ignorância - escreve Rawls - priva a pessoa na posição originária dos conhecimentos que a colocariam em grau de escolher princípios heterônomos. As partes chegam juntas à sua escolha, enquanto pessoas livres, racionais e iguais, conhecendo apenas as circunstâncias que fazem surgir a necessidade de princípios de justiça”. Os indivíduos que se encontram na posição originária não podem propor princípios ou pensar em uma sociedade em que poderão ser favorecidos eles mesmos ou talvez seus amigos, e desfavorecidos os outros. Ninguém sabe nada nem de si mesmo nem dos outros. A única escolha possível é, então, a que deverá se referir a todos; tratar-se-á, portanto, de uma escolha de princípios universais de justiça. Dois princípios de justiça Na base da proposta dos princípios que constituem “a estrutura fundamental da sociedade” há, portanto, um contrato. As partes contraentes são todos os indivíduos - não conta aqui o tempo nem tem importância nenhuma as gerações - que se põem na posição originária. Objeto do contrato são os dois princípios de justiça, que são princípios morais e que serão expostos em breve. E a motivação que está por trás do contrato e da proposta dos dois princípios é principalmente a de se proteger contra a possibilidade de se encontrar amanhã entre os desfavorecidos. O primeiro princípio de justiça é o seguinte: “toda pessoa tem direito igual a mais extensa liberdade fundamental, compativelmente com semelhante liberdade para os outros”. O segundo princípio sustenta que: “as desigualdades econômicas e sociais, como as de riqueza e de poder, são justas apenas se produzem benefícios compensatórios para cada um, e em particular para os membros menos favorecidos da sociedade”. O primeiro princípio funciona como fundamento das liberdades individuais; ele “requer a igualdade na atribuição dos direitos e dos deveres fundamentais”. O segundo princípio não justifica o sacrifício de alguns, mesmo que ele chegue a produzir um bem maior para alguns ou para a maioria. Isso é o que o utilitarismo propõe; mas Rawls é antiutilitarista: “O fato de que alguns tenham menos a fim de que outros prosperem pode ser útil, mas é injusto”. As desigualdades econômicas e sociais são admitidas, ou seja, são justas, não por beneficiar os poucos ou os muitos ou os mais, mas apenas com a condição de que favoreçam todos, e de modo especial os mais desfavorecidos. O primeiro princípio de justiça O primeiro princípio de justiça fala das liberdades individuais. Estas liberdades, iguais para todos, são a liberdade de pensamento e de consciência, a liberdade de palavra e de reunião, a liberdade da detenção arbitrária, a liberdade política – o direito de voto. A Constituição e as leis têm a função de garantir o uso livre destas liberdades, onde se deve salientar que as liberdades de consciência e de pensamento são as primeiras na graduação, as absolutamenteda linguagem. Além disso, Benjamin refletiu também em vários importantes ensaios críticos sobre questões www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 10 como a da coleção e do colecionismo. Seus escritos voltados para a recordação de sua infância são profundamente inovadores, na medida em que desconstroem criticamente os modelos da autobiografia e introduzem uma modalidade da auto-escritura mais fragmentada e voltada para uma “topografia da memória”. O fundamental dentro do universo das críticas de Benjamin, quando ele voltava seu potente intelecto para as obras que eram publicadas na sua época (como as de Proust, Kafka, Döblin, Kraus, Brecht etc.), ou para reedições de obras consagradas ou não (de Goethe, Kleist, Hebel etc.) é que ele sempre realizou uma crítica que era, ao mesmo tempo, teoria da literatura. É este talvez o legado mais importante de sua produção crítica: ele mostrou a infecundidade da crítica apenas filológica, assim como a limitação da crítica meramente imanente, ou ainda, da crítica biográfica. Crítica para ele só existia enquanto capacidade de se articular (delicadamente, ou às vezes, como todo o peso histórico exigido por seu objeto de análise), a imanência da obra com a reflexão histórico-crítica. As mostras mais eloquentes desta concepção são a introdução “crítico-epistemológica” do seu livro sobre o drama barroco alemão, e as reflexões que acompanham as notas de seu trabalho que ficou inconcluso sobre as passagens de Paris. Benjamin escreveu no seu último texto, dedicado à crítica da noção de progresso, que “nunca existiu um documento da cultura que não fosse ao mesmo tempo um [documento] da barbárie”. Com Benjamin aprendemos que cultura é a partir de meados do século 20 toda ela como que transformada em um documento e, mais ainda, ela passa a ser lida como testemunho da barbárie. Esta noção é essencial, porque com este autor vemos não apenas uma tremenda expansão nos critérios de seleção, como também a afirmação radical de um modo de interpretar esses documentos. Sua teoria da história e da cultura descortina o passado e suas ruínas, sobre as quais construímos nosso presente, como um único e gigantesco arquivo. Quando se fala de arquivo, não se pode esquecer que a toda inscrição deve-se associar um modo de leitura e de interpretação, de outro modo teríamos um arquivo literalmente morto. O elemento político domina todos os momentos do trabalho no arquivo, da seleção, passando pela conservação e pelo acesso, chegando à leitura dos documentos. A história para Benjamin, como é conhecida, é aproximada do modelo do colecionador e do catador de papéis. O historiador deve acumular os documentos que são como que apresentados diante do tribunal da história. Em Benjamin, a cultura como arquivo e memória, devido ao viés crítico e revolucionário de seu modo de leitura, não deixa a sociedade e sua história se cristalizarem em museus e parques temáticos. É o viés conservador da cultura como mercadoria que o faz, ao qual Benjamin opõe sua visada da cultura como documento e testemunho da barbárie. Seu projeto de historiografia calcada no colecionismo (que tem por princípio o arrancar de seus objetos do falso contexto para inseri-los dentro de uma nova ordem comandada pelos interesses de cada presente) e, por outro lado, inspirado no trabalho do catador (que se volta para o esquecido e considerado inútil) ainda hoje pode ser comparado a um pólen que guarda uma assombrosa força de germinação. A obra de arte na modernidade O ensaio “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” analisa questões como a noção de autenticidade e o valor de culto das obras de arte. Apesar de ter sido escrito a pelo menos meio século, ainda hoje é um texto de muita importância. O ponto central desse estudo encontra-se na análise das causas e consequências da destruição da “aura” que envolve as obras de arte, enquanto objetos individualizados e únicos. A “aura” corresponde a absoluta singularidade de algo, relacionando-se a sua condição de exemplar único dentro de um contexto que lhe dá sentido e justificação. A obra de arte sempre pôde ser reproduzível, discípulos “imitavam” seus mestres para difusão da obra ou visando lucro. Porém a reprodução técnica da obra de arte é algo novo, que foi possível com a xilografia (gravura em madeira), muitos anos antes da imprensa. Logo, a litografia (tipo de gravura que envolve a criação de marcas ou desenhos sobre uma matriz de pedra calcária ou placa de metal com um lápis gorduroso) permitiu a arte colocar-se no mercado suas produções não somente em massa, mas sob a forma de criações sempre novas. Com a litografia, as artes gráficas situarem-se no mesmo nível da imprensa, ilustrando a vida cotidiana; logo, com a fotografia, a arte situou-se no mesmo nível que a palavra oral. A partir daí a responsabilidade era do olho e não mais da mão do artista. https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Aura_(Walter_Benjamin)&action=edit&redlink=1 https://pt.wikipedia.org/wiki/Arte https://pt.wikipedia.org/wiki/Gravura https://pt.wikipedia.org/wiki/Matriz https://pt.wikipedia.org/wiki/Pedra_calc%C3%A1ria https://pt.wikipedia.org/wiki/Metal www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 11 Com o progresso das técnicas de reprodução, sobretudo do cinema, a aura, dissolvendo-se nas várias reproduções do original, destituiria a obra de arte de seu status de raridade. É muito mais fácil você encontrar um “original” do filme Matrix no shopping do que a Monalisa original em qualquer lugar que seja. Não é mesmo? Essa raridade confere toda essa “aura” que envolve a obra de arte. Para Benjamin, a partir do momento em que a obra fica excluída da atmosfera aristocrática e religiosa, que fazem dela uma coisa para poucos e um objeto de culto, a dissolução da aura atinge dimensões sociais. Essas dimensões seriam resultantes da estreita relação existente entre as transformações técnicas da sociedade e as modificações da percepção estética. Benjamin nos apresenta o conceito de aura, como sendo uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais, seria como um halo misterioso e inapreensível das imagens; a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja. Para Benjamin esta aura foi se perdendo com a fotografia, diante do valor de exposição. Segundo ele as primeiras fotografias remetem à captação de mistérios nas intimidades dos rostos fotografados. Mas com o avanço do processo negativo- positivo, a popularização da fotografia e o barateamento do aparelho tivemos a decadência da aura e as tentativas malsucedidas de sua recriação, o “mistério” da fotografia se perdeu. A reprodutibilidade técnica da obra de arte altera a relação das massas com a arte. Uma das funções revolucionárias do cinema será a de tornar reconhecíveis como idênticos os aproveitamentos artístico e científico da fotografia, até agora divergentes, na maioria dos casos. Segundo Benjamin o valor único da obra de arte “autêntica” tem sempre um fundamento teológico, por mais remoto que seja. O objeto de arte como ídolo perde-se na era da reprodutibilidade. As mais antigas obras de arte surgiram com o fim de culto, para exprimir uma cultura e um significado em determinado povo e lugar. Benjamin diz que a obra de arte tem ou um valor de culto ou de exposição, quanto menor o valor de culto maior o valor de exposição. A unicidade da obra de arte é idêntica à sua inserção no contexto da tradição, e esta tradição é viva e extraordinariamente variável. A chapa fotográfica ou o arquivo de computadorpermite-nos ter quantas copias quisermos, a questão de autenticidade das copias, segundo Benjamin, não tem nenhum sentido. No momento em que o critério da autenticidade deixa de ser aplicado à produção artística, toda função social da arte se transforma, em vez de fundar-se no ritual, passa a fundar-se em outra práxis: a política. À medida que as obras de arte se emancipam do seu uso ritual, aumentam as ocasiões para que elas sejam expostas. A imagem era algo quase sagrado, apenas algumas pessoas tinham aceso para realização de rituais, o dono de uma imagem continuou tendo status de poder por muito tempo, porém com a fotografia, qualquer um podia apreciá-las ou até produzi-las. Agora podemos conhecer lugares ou obras que não poderíamos sem a fotografia e os meios de comunicação. A Monalisa, por exemplo, poucos tiveram a chance de contemplá-la de perto, mesmo que atrás de um grosso vidro, mas quem não a conhece? Segundo Benjamin a exponibilidade de uma obra de arte cresce em tal escala, com vários métodos de reprodutibilidade técnica, que a mudança de ênfase de um pólo para outro corresponde a uma mudança qualitativa comparável à que ocorreu na pré-história. Como na pré-história a preponderância absoluta do valor de culto conferido à obra levou-a a ser concebida em primeiro lugar como instrumento mágico, e só mais tarde como obra de arte, do mesmo modo a preponderância absoluta conferida hoje a seu valor de exposição atribui-lhe funções inteiramente novas, entre as quais a “artística”, a única de que temos consciência. Já o cinema representaria um meio de expressão absolutamente incomparável. A reprodutibilidade técnica do filme tem seu fundamento imediato na técnica de sua produção. Não se permite apenas a difusão em massa da obra cinematográfica, como a torna obrigatória, pois a produção de um filme é cara. Em 1927, calculou-se que um filme de longa metragem, https://pt.wikipedia.org/wiki/Cinema https://pt.wikipedia.org/wiki/Aristocr%C3%A1tica www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 12 para ser rentável, precisaria atingir um público de nove milhões de pessoas. Apesar das dificuldades financeiras, numa perspectiva externa, o cinema falado estimulou interesses nacionais, visto de dentro se internacionalizou a produção cinematográfica numa escala ainda maior. Para o cinema é menos importante o ator representar diante do público outro personagem, que ele representar a si mesmo diante do aparelho. O cinema renuncia aos valores eternos, pois tem que ser cada vez melhor para o público, cada vez mais perfeito. O corpo do interprete cinematográfico perde a substância sendo privado da realidade diante das câmeras. A crise da democracia foi como uma crise nas condições de exposição do político. A metamorfose do modo de exposição pela técnica de produção é visível também na política. A crise da democratização pode ser interpretada como crise nas condições de exposição do político profissional. O político quer se expor de forma imediata, em pessoa, diante de certos representantes, ou seja, seu objetivo é o mesmo que o ator, se tornar “mostrável” para a sociedade. O cinegrafista utiliza o procedimento técnico para fazer a cena parecer real, já o pintor vê em sua obra a distância entre a realidade dada e ele próprio. O cinegrafista mergulha na realidade. A pintura desfruta do que é tradicional sem criticar, critica-se o que é novo sem desfrutar. O filme de sucesso já é o mais exposto, é o que mais pessoas assistiram. A análise de Benjamin mostra que as técnicas de reprodução das obras de arte, provocando a queda da aura, promovem a liquidação do elemento tradicional da herança cultural; mas, por outro lado, esse processo contém um germe positivo. É que possibilidade de reprodução em massa democratiza a cultura e faz com que o contato com a obra de arte não seja um privilégio apenas da elite. Desse modo, na medida em que possibilita um outro relacionamento das massas com a arte, esta pode ser um instrumento de politização e com isso um meio eficaz de renovação das estruturas sociais. Um filme que contém uma forte crítica social é um bom exemplo disso na medida em que faz a classe oprimida pensar a sua realidade social. FENOMENOLOGIA 1. FENOMENOLOGIA: UM MÉTODO PARA “VOLTAR ÀS PRÓPRIAS COISAS” Escreve Heidegger em Ser e tempo: “A expressão 'fenomenologia' significa, antes de mais nada, um conceito de método [...]. O termo expressa um lema que poderia ser assim formulado: voltemos às próprias coisas! E isso em contraposição às construções desfeitas no ar e às descobertas casuais. Em contraposição a aceitação de conceitos só aparentemente justificados e aos problemas aparentes que se impõem de uma geração a outra como verdadeiros problemas”. Portanto, a palavra de ordem da fenomenologia é a do retorno às próprias coisas, indo além da verbosidade dos filósofos e de seus sistemas construídos no ar. Mas como se fará para construir uma filosofia que se sustente? Para cumprir essa tarefa, é preciso partir de dados indubitáveis para com base neles construir depois o edifício filosófico. Em suma, procuram-se evidências estáveis para colocar como fundamento da filosofia: “sem evidencia não há ciência”. Dirá Husserl nas Pesquisas lógicas: “Os limites da evidência apodítica representam os limites de nosso saber. Assim, é preciso buscar coisas manifestas, fenômenos tão evidentes que não possam ser negados”. Essa, portanto, é a intenção de fundo da fenomenologia, intenção que os fenomenólogos procuram realizar através da descrição dos “fenômenos” que se anunciam e se apresentam à consciência depois de feita a epoché, isto é, depois de postos entre parênteses as nossas persuasões filosóficas, os resultados das ciências e as convicções engastadas naquela nossa atitude natural que nos impõe a crença na existência de um mundo de coisas. https://pt.wikipedia.org/wiki/Cultura_de_massa https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Estruturas_sociais&action=edit&redlink=1 www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 13 Em outros termos, é preciso suspender o juízo sobre tudo o que não é apodítico nem objeto de controvérsia até se conseguir encontrar aqueles “dados” que resistem aos reiterados assaltos da epoché. E os fenomenólogos encontram esse ponto de aproximação da epoché, o resíduo fenomenológico - como o chamaria Husserl -, na consciência: a existência da consciência é imediatamente evidente. A fenomenologia é descrição das essências eidéticas A partir dessa evidência, os fenomenólogos pretendem descrever os modos típicos como as coisas e os fatos se apresentam à consciência. E esses modos típicos são precisamente as essências eidéticas. A fenomenologia não é ciência de fatos, e sim ciência de essências. Para o fenomenólogo não interessa a análise desta ou daquela norma moral, porém compreender por que esta ou aquela norma são normas morais e não, por exemplo, normas jurídicas ou regras de comportamento. Da mesma forma, o fenomenólogo não se interessara (ou, pelo menos, não se interessara principalmente) em examinar os ritos e os hinos desta ou daquela religião; ao contrário, ele se interessará por compreender o que á a religiosidade, ou seja, o que transforma ritos e hinos tão diferentes em ritos e hinos “religiosos”. Naturalmente, o fenomenólogo também produzirá analises mais especificas sobre o que caracteriza essencialmente, por exemplo, o pudor, a santidade, o amor, a justiça, o remorso ou os tipos de sociedade, mas, em todo caso, sua ciênciaé precisamente ciência de essências. Tais essências se tornam objeto de estudo se o pesquisador, estabelecendo-se na atitude de espectador desinteressado, liberta-se das opiniões preconcebidas e, sem se deixar envolver pela banalidade e pelo óbvio, saiba “ver” e consiga intuir (e descrever) aquele universal pelo qual um fato é aquilo e não outra coisa. Nós distinguimos um texto mágico de um texto científico, mas como conseguimos faze-lo senão porque utilizamos discriminantes essenciais, senão porque, talvez até sem termos consciência disso, sabemos o que é magia e o que é ciência? Como podemos dizer que este é um ato de simpatia, aquele um gesto de ira, este outro um comportamento desesperado ou aquele outro ainda um comportamento de santidade, se não houvesse precisamente essências, ou seja, ideias essenciais, de simpatia, de ira, de desespero ou de santidade? Eis, portanto, o que a fenomenologia pretende ser: ciência fundamentada estavelmente, voltada a análise e a descrição das essências. Com base nisso, podemos compreender como a fenomenologia se distingue da análise psicológica ou da análise científica. Diferentemente do psicólogo, o fenomenólogo não manipula dados de fato, mas essências; não estuda fatos particulares, senão ideias universais; não se interessa pelo comportamento moral desta ou daquela pessoa, mas pretende conhecer a essência da moralidade e talvez ver se a moral é ou não fruto de ressentimento. Direção idealista e direção realista da fenomenologia O fenomenólogo, em suma, cumpre tarefas bem diferentes das dos cientistas. A consciência é “intencional”, é sempre consciência de alguma coisa que se apresenta de modo típico: a análise desses modos típicos é precisamente a função do fenomenólogo, que se pergunta e indaga sobre o que a consciência transcendental entende por amor, percepção, religiosidade, justiça, comunidade, simpatia, e assim por diante. Nesse ponto, a fenomenologia podia tomar duas direções: a idealista ou a realista. Os significados ou essências dos objetos, das instituições e dos valores são constituídos e postos pela consciência, ou o olhar do teórico desinteressado os intui enquanto dados objetivos? Husserl tomará o caminho do idealismo. Assim, o pensador que estabeleceu como programa da fenomenologia o do retorno às próprias coisas, no fim se encontrará com a realidade única que é a consciência: a consciência transcendental, que “constitui” os significados das coisas, das ações, das instituições e o sentido do mundo (aqui, transcendental quer dizer kantianamente o que está na nossa consciência enquanto algo independente da sensibilidade e, portanto, a priori, mas funcionalmente ordenado para a “constituição” da experiência). O movimento fenomenológico é uma vasta e articulada corrente de pensamento, da qual se destacam, além de Husserl, o pensamento de Heidegger, as análises de Sartre e de Merleau-Ponty. Deve-se dizer ainda que a influência dos fenomenólogos sobre a psicologia, a antropologia, a psiquiatria, a filosofia moral e a filosofia da religião foi e continua sendo notável. Por isso, é reconhecido que o movimento fenomenológico constitui um acontecimento decisivo no âmbito da filosofia contemporânea. Às origens da fenomenologia A fenomenologia nasce com Husserl como polêmica antipsicologista. Uma das ideias fundamentais de Husserl e da fenomenologia é a da intencionalidade da consciência. Foi precisamente em relação a esses dois núcleos problemáticos que Husserl se inspirou em dois pensadores de nível notável, isto é, Bernhard Bolzano e Franz Brentano. www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 14 Bolzano (1781-1 848), matemático e filósofo, padre católico e professor de filosofia da religião na Universidade de Praga até 1819, nos deixou duas importantes obras: 0s paradoxos do infinito (1851), e a Doutrina da ciência (1837). O primeiro trabalho exerceu influencia notável sobre a história do pensamento matemático. Já o segundo elabora a doutrina da “proposição em si” e da “verdade em si”. A proposição em si é o puro significado lógico de um enunciado, não dependendo do fato de ele ser expresso ou pensado. Já a verdade em si é dada por qualquer proposição válida, seja ou não expressa ou pensada. Assim, a validade de um princípio lógico, como o da não-contradição, permanece tal tanto se o pensarmos ou não, tanto se o expressarmos com palavras ou por escrito, como se não o expressarmos. As proposições em si podem derivar uma da outra e podem entrar em contradição: elas são parte de um mundo lógico-objetivo e são independentes das condições subjetivas do conhecer. Brentano (1838- 1917), também padre católico que depois abandonou a Igreja, foi professor na Universidade de Viena. Escreveu muito sobre Aristóteles (A psicologia de Aristóteles, 1867; O cristianismo de Aristóteles, 1882; Aristóteles e sua visão do mundo, 1911; A doutrina de Aristóteles sobre a origem do espirito humano, 1911); todavia, sua obra de maior sucesso foi A psicologia do ponto de vista empírico (1874). É nesta última obra que Bretano afirma o caráter intencional da consciência. Na escolástica, intentio significava o conceito enquanto indica algo diferente de si. Segundo Brentano, precisamente, a intencionalidade é o que tipifica os fenômenos psíquicos, que sempre se referem a algo diferente de si próprio. Eles se distinguem em três classes fundamentais, que são a representação, o juízo e o sentimento. Na representação, o objeto é puramente presente; no juízo, ele é afirmado ou negado; no sentimento, ele é amado ou odiado. 2. EDMUND HUSSERL Husserl nasceu em Prossnitz (na Morávia), em 1859. Estudou matemática em Berlim e laureou-se em 1883 com uma tese sobre o cálculo das variações. Em Viena, seguiu as aulas de Brentano. Em 1891, publicou a Filosofia da aritmética. Livre-docente em Halles em 1887, foi nomeado professor de filosofia em Gottingen em 1901. Neste ano apareceram as Pesquisas lógicas. É de 1911 A filosofia como ciência rigorosa; e Ideias para uma fenomenologia pura e uma filosofia fenomenológica é de 1913. Em 1916 passou a ensinar em Friburgo, onde permaneceu até 1928, ano em que foi posto de licença. Como emérito, não pôde prosseguir sua atividade didática porque, sendo judeu, foi obstaculizado pelo regime nazista. A lógica formal e a lógica transcendental é de 1929. Em 1931 foram publicadas suas conferências parisienses, sob o título de Meditações cartesianas. Morreu em 1938 e deixou grande quantidade de inéditos (cerca de quarenta e cinco mil páginas estenografadas). Dessa grande massa de manuscritos foram extraídos vários livros, o mais conhecido e importante dos quais é A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental, publicado em 1950. A intuição eidética As proposições universais e necessárias são condições que tornam possível uma teoria, sendo diferentes das proposições obtidas indutivamente da experiência. Na base desses dois tipos de proposições, Husserl distingue entre intuição de um dado de fato e intuição de uma essência. Husserl está persuadido de que nosso conhecimento começa com a experiência, ou seja, com a experiência de coisas existentes, de fatos. A experiência nos oferece continuamente dados de fato, os dados de fato com os quais nos vemos às voltas na vida cotidiana, e dos quais a ciência também se ocupa. Um fato é o que acontece aqui e agora; um fato é contingente, podendo ser ou não ser. Mas, quando um fato (este som, esta cor etc.) se nos apresenta à consciência, juntamente com o fato captamos uma essência (o som, a cor etc.). Nas ocasiões mais díspares, podemos ouvir os sons mais diversos (clarim, violino, piano etc.), mas neles reconhecemos algo decomum, uma essência comum. No fato sempre se capta uma essência. O individual se anuncia para a consciência através do universal. Quando a consciência capta um fato aqui e agora, ela capta também a essência: esta cor é caso particular da essência "cor", este som é caso particular da essência "som", este ruído é caso particular da essência "ruído" etc. As essências, portanto, são os modos típicos do aparecer dos fenômenos. E não é que nós abstraiamos as essências da comparação de coisas semelhantes, como queriam os empiristas, uma vez que a semelhança www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 15 já é essência. Não abstraímos a ideia ou essência de “triângulo” da comparação de muitos triângulos: o que ocorre é que este, esse e aquele são triângulos porque são casos particulares da ideia de triângulo. Este triângulo isóscele desenhado no quadro-negro existe aqui e agora, com estas dimensões e não outras. Esse é um dado de fato particular. Mas nele captamos uma essência. E o conhecimento das essências não é conhecimento mediato, obtido, como se repete, por meio da abstração ou comparação de vários fatos. Para comparar vários fatos, é preciso já ter captado uma essência, isto é, um aspecto pelo qual eles são semelhantes. O conhecimento das essências é uma intuição. É uma intuição diferente daquela que nos permite captar os fatos particulares. É a ela que Husserl chama intuição eidética ou intuição da essência. Trata-se de conhecimento distinto do conhecimento do fato. Os fatos particulares são casos de essências eidéticas. Essas essências eidéticas, portanto, não são objetos misteriosos ou evanescentes. É verdade que só os fatos particulares são reais, e que os universais não são reais como os fatos particulares. Os universais, isto é, as essências, são conceitos, ou seja, objetos ideais que, porém, permitem classificar, reconhecer e distinguir os fatos particulares, dos quais a consciência, quando eles se lhe apresentam, reconhece o “aqui e agora”, mas também o “o quê”. Ontologias regionais e ontologia formal A fenomenologia pretende ser ciência de essências e não de dados de fato. Ela é fenomenologia, ou seja, “ciência dos fenômenos”, mas seu objetivo é o de descrever os modos típicos com os quais os fenômenos se apresentam à consciência. E essas modalidades típicas (pelas quais este som é um som e não uma cor ou um ruído, ou pelas quais este desenho é de um triângulo e não de outra coisa) são precisamente as essências. A fenomenologia, portanto, é ciência de experiência, não, porém, de dados de fato. Os objetos da fenomenologia são as essências dos dados de fato, são os universais que a consciência intui quando os fenômenos a ela se apresentam. E nisso consiste a redução eidética, isto é, a intuição das essências, quando, na descrição do fenômeno que se apresenta à consciência, sabemos prescindir dos aspectos empíricos e das preocupações que nos ligam a eles. Nesse sentido, as essências são invariáveis. E são obtidas através do que, nos escritos póstumos de Husserl, denomina-se “método da variação eidética”. Toma-se determinado exemplo de um conceito que se quer explicar e depois, pouco a pouco, se introduzem variações nas propriedades, as quais são submetidas a variações até se chegar a um ponto em que não se pode mais variar, caso contrário já não se estaria tratando do mesmo conceito. É óbvio que essas essências não existem somente no interior do mundo perceptivo: fatos como recordações, esperanças ou desejos também tem sua essência, isto é, se apresentam à consciência de modo típico. Além disso, a distinção entre o fato (que é um isto) e uma essência (que é um “o que”) permite a Husserl justificar a lógica e a matemática. As proposições lógicas e matemáticas são juízos universais e necessários porque são relações entre essências. E sendo relações entre essências, as proposições lógicas e matemáticas não recorrem a experiência como fundamento de sua validade. O fato de a consciência poder efetivamente referir-se a essências ideais não legitima somente uma análise dos modos típicos em que se apresentam os fenômenos perceptivos, nem apenas a distinção das proposições lógicas e matemáticas das propriedades das ciências empíricas; o fato da referência às essências ideais abre à fenomenologia a exploração e a descrição do que Husserl chama de “ontologias regionais”. Nesse sentido, “regiões” são a natureza, a sociedade, a moral e a religião. O estudo dessas ontologias regionais se propõe captar e descrever as essências, isto é, as modalidades típicas com que aparecem à consciência os fenômenos morais, por exemplo, ou os fenômenos religiosos. À essas ontologias regionais, Husserl contrapõe a ontologia formal, que depois identifica com a lógica. A intencionalidade da consciência A fenomenologia, portanto, é ciência das essências, isto é, dos modos típicos do aparecer e do manifestar-se dos fenômenos da consciência, cuja característica fundamental é a da intencionalidade. A consciência, com efeito, é sempre consciência de alguma coisa. Quando eu percebo, imagino, penso ou recordo, eu percebo, imagino, penso ou recordo alguma coisa. Por isso se pode ver, diz Husserl, que a distinção entre sujeito e objeto dá-se imediatamente. O sujeito é um eu capaz de atos de consciência como perceber, julgar, imaginar e recordar; o objeto, ao contrário, é o que se manifesta nesses atos, ou seja, corpos percebidos, imagens, pensamentos, recordações. Por isso, devemos distinguir ainda o aparecer de um objeto do objeto que aparece. E se é verdade que conhecemos o que aparece, para Husserl também é verdade que vivemos o aparecer do que aparece. Husserl chama de noese o ter consciência, e noema aquilo de que se tem consciência. E entre os diversos noemas, como sabemos, Husserl distingue claramente os fatos das essências. A consciência, portanto, é intencional. Como escreve Husserl, “a intencionalidade é o que caracteriza www.filosofiatotal.com.br Prof. Anderson 16 consciência de modo significativo. Nossos atos psíquicos têm a característica de se referirem sempre a um objeto, pois sempre fazem aparecer objetos”. Entretanto, deve-se notar que, em Husserl, o caráter intencional da consciência, em si mesmo, não implica concepção realista. Em outros termos: a consciência refere-se a outra coisa; isto, porém, não significa que essa outra intencionalidade da consciência deixa pendente a controvérsia entre realismo e idealismo. O que importa, no entanto, é descrever o que efetivamente se dá à consciência, o que nela se manifesta e nos limites em que se manifesta. E o que se manifesta e aparece é o fenômeno, em que por “fenômeno” não devemos entender a “aparência” contraposta à “coisa em si”: eu não ouço a aparência de uma música, eu escuto a música; eu não sinto a aparência de um perfume, eu sinto o perfume; nem tenho a aparência de uma recordação, eu tenho uma recordação. Consequentemente, o “princípio de todos os princípios”, enunciado por Husserl, é o seguinte: “Toda intuição que apresenta originariamente alguma coisa é, por direito, fonte de conhecimento; tudo aquilo que se apresenta a nós originariamente na intuição (que, por assim dizer, se nos oferece em carne e osso) deve ser assumido assim como se apresenta, mas também apenas nos limites em que se apresenta”. Epoché Mediante o princípio acima mencionado, Husserl pensava fundamentar a fenomenologia como ciência rigorosa, como ciência voltada para as coisas, para as próprias coisas; uma ciência que está voltada para ver como são as coisas. “Vamos às