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RECURSO ESPECIAL Nº 1.634.851 - RJ (2015/0226273-9) RELATORA : MINISTRA NANCY ANDRIGHI RECORRENTE : VIA VAREJO S/A ADVOGADOS : ROBERTA FEITEN SILVA - RS050739 GUILHERME RIZZO AMARAL - RS047975 ADVOGADOS : PATRICIA VASQUES DE LYRA PESSOA ROZA E OUTRO(S) - DF020213 LEONAM MARCEL PAUFERRO YOUNG E OUTRO(S) - RJ176236 RECORRIDO : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO RELATÓRIO O EXMO. SR. MINISTRO NANCY ANDRIGHI (RELATOR): Cuida-se de recurso especial interposto por VIA VAREJO S/A, fundamentado nas alíneas “a” e “c” do permissivo constitucional, contra acórdão do TJ/RJ. Ação: civil pública, ajuizada pelo recorrido em face da recorrente, em que se requer a condenação desta a sanar os vícios dos produtos, no prazo de 30 dias (art. 26 do CDC), e, em não o fazendo, a conferir ao consumidor a escolha de uma das opções contidas no art. 18, § 1º, do CDC, sob pena de multa; bem como a efetuar a troca de seus produtos duráveis dentro do prazo legal de 90 dias (art. 26, II, do CDC), sob pena de multa; além da reparação dos danos materiais e morais causados aos consumidores individualmente considerados e em sentido coletivo. Sentença: o Juízo de primeiro grau julgou improcedentes os pedidos. Acórdão: o TJ/RJ deu parcial provimento à apelação interposta pelo recorrido para condenar a recorrente a “receber os produtos comercializados que apresentem vícios, desde que a reclamação realizada pelo consumidor seja efetuada no prazo de 30 e 90 dias, em se tratando de produtos não duráveis e duráveis, respectivamente” e a pagar “indenização por danos morais e materiais Documento: 69980557 - RELATÓRIO E VOTO - Site certificado Página 1 de 12 de natureza individual, que serão apurados em sede de liquidação de sentença com referência a cada consumidor prejudicado”. O acórdão está assim ementado: Ação Civil Pública. Direito do Consumidor. Vício do produto. Aposição de carimbo no verso da nota fiscal dos produtos comercializados pela empresa ré prevendo o prazo para troca de 3 dias úteis. Recusa no recebimento dos produtos que apresentem vícios dentro do prazo legal previsto no artigo 26, do CDC. Inobservância do diploma consumerista que configura prática abusiva. Sentença de improcedência que merece reforma parcial. Responsabilidade solidária entre todos os fornecedores para as hipóteses de vício do produto. Obediência do disposto no artigo 18, do CDC que se revela obrigatória por todos os integrantes da cadeia de consumo. Conduta ilícita praticada pela empresa ré que, na qualidade de comerciante, tem o dever legal de, ao menos, receber os produtos apresentados dentro do prazo legal para tentar regularizar o vício apontado pelo consumidor, encaminhando ela própria, demandada, o produto viciado para a assistência técnica, já que ônus seu e não do consumidor. Responsabilidade civil reconhecida. Danos morais e materiais de natureza individual que devem ser apurados em sede de liquidação de sentença. Incidência dos artigos 95 e 97 do CDC. Inocorrência de dano moral coletivo. Ausência de alteração relevante na ordem social. Precedente deste Egrégio Tribunal de Justiça sobre o tema. Descabimento de condenação em honorários de sucumbência em favor do Ministério Público em sede de Ação Civil Pública. Inteligência do artigo 18 da Lei 7.347/85. Precedentes do Superior Tribunal de Justiça sobre a matéria. Recurso interposto pela parte autora a que se dá parcial provimento. Recurso especial: alega-se ofensa aos arts. 535, II, 462, 517, do CPC/73 e ao art. 18, caput e § 1º, do CDC, além de divergência jurisprudencial. A par da negativa de prestação jurisdicional, sustenta a recorrente que “o Tribunal a quo reformou a decisão com muita influência nos documentos juntados intempestivamente pelo Ministério Público” (fl. 338, e-STJ), que “a obrigação de reparar não cabe ao comerciante, do que decorre também a ausência de obrigação de coleta e intermediação dos produtos pelo comerciante junto ao fabricante para fins de reparo” (fl. 344, e-STJ), e que “a conduta de orientar o consumidor a conduzir seu produto a uma assistência técnica jamais pode ser vista como prática abusiva” (fl. 346, e-STJ). Juízo prévio de admissibilidade: o recurso foi inadmitido pelo Tribunal de origem, dando azo à interposição de agravo, provido para determinar Documento: 69980557 - RELATÓRIO E VOTO - Site certificado Página 2 de 12 a autuação como especial (fl. 507, e-STJ). Parecer do MPF: da lavra do Subprocurador-Geral da República Antonio Carlos Alpino Bigonha, pelo não provimento do agravo em recurso especial. Na sessão de 09/03/2017, após a sustentação oral do advogado da recorrente, pedi vista dos autos, na forma regimental, para melhor refletir sobre as questões discutidas neste recurso. É o relatório. Documento: 69980557 - RELATÓRIO E VOTO - Site certificado Página 3 de 12 RECURSO ESPECIAL Nº 1.634.851 - RJ (2015/0226273-9) RELATORA : MINISTRA NANCY ANDRIGHI RECORRENTE : VIA VAREJO S/A ADVOGADOS : ROBERTA FEITEN SILVA - RS050739 GUILHERME RIZZO AMARAL - RS047975 ADVOGADOS : PATRICIA VASQUES DE LYRA PESSOA ROZA E OUTRO(S) - DF020213 LEONAM MARCEL PAUFERRO YOUNG E OUTRO(S) - RJ176236 RECORRIDO : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO VOTO O EXMO. SR. MINISTRO NANCY ANDRIGHI (RELATOR): Cinge-se a controvérsia a decidir sobre: (i) a negativa de prestação jurisdicional (art. 535, II, do CPC/73); (i i) a preclusão operada quanto à produção de prova (arts. 462 e 517 do CPC/73); (i i i) a responsabilidade do comerciante no que tange à disponibilização e prestação de serviço de assistência técnica (art. 18, caput e § 1º, do CDC). I. Da negativa de prestação jurisdicional (violação do art. 535, II, do CPC/73) Alega a recorrente que o Tribunal de origem não se manifestou expressamente sobre a preclusão operada quanto à produção de provas, em virtude da juntada, a destempo, de documentos, os quais foram utilizados como elemento de convicção para dar parcial provimento à apelação do recorrido, julgando procedentes, em parte, os pedidos. No entanto, sobre esse ponto, manifestou-se o TJ/RJ no julgamento da apelação interposta pela recorrente e dos seus embargos de declaração (respectivamente às fls. 284/285 e 316, e-STJ – sem grifos no original): Ainda que o carimbo aposto no verso da nota fiscal fixando o prazo de 3 Documento: 69980557 - RELATÓRIO E VOTO - Site certificado Página 4 de 12 (três) dias úteis para troca não afaste a regra constante no artigo 18 e seus parágrafos, percebe-se através das reclamações veiculadas no endereço eletrônico “reclame aqui”, que a empresa ré busca afastar sua responsabilidade solidária, encaminhando o consumidor com o produto viciado para outro fornecedor integrante da cadeia de consumo, em evidente prejuízo à parte hipossuficiente da relação, quando, em realidade, a empresa ré deveria encaminhar o produto viciado para a assistência técnica, ônus que é seu e não do consumidor. Destaque-se que, mesmo que se entendesse que as reclamações acima aludidas não constaram de órgão oficial de defesa do consumidor, a verdade é que era desnecessária até mesmo a existência de ditas reclamações, porque se tratam de fatos públicos e notórios, os alegados na exordial desta demanda, e, que, portanto, independem de prova, conforme o disposto no artigo 334, inciso I, do CPC. Registre-se que, no que se refere à alegação de ocorrência de preclusão no sentido da impossibilidade de consideração de questões de fato supostamente novas veiculadas através dos documentos juntados com o apelo, impõe-se ressaltar que nenhum dado novo veio aos autos com o recurso mencionado. Na verdade, os documentos adunados naquele momento processual apenas serviram para ilustrar o que já tinha sido exaustivamente demonstrado na inicial, qual seja, a já conhecida prática da empresa embargante de se recusar a receber o produto viciadono prazo por ela própria estabelecido, obrigando o consumidor a buscar a assistência técnica para resolver seu problema. Dessa forma, não há que se falar em preclusão quanto à produção de provas, posto que não foram aqueles documentos anexados ao recurso interposto pelo Ministério Público que acarretaram a formação do convencimento dos ilustres Desembargadores integrantes desta Colenda Câmara no sentido da existência de prática abusiva da recorrente. Assim, embora contrariando a pretensão da recorrente, o TJ/RJ decidiu sobre a questão, não havendo, pois, falar em violação do art. 535, II, do CPC/73. II. Da preclusão operada quanto à produção de prova (violação dos arts. 462 e 517 do CPC/73) Afirma a recorrente que “o Ministério Público juntou à apelação uma série de documentos novos, extraídos do site 'Reclame Aqui' (órgão não oficial), Documento: 69980557 - RELATÓRIO E VOTO - Site certificado Página 5 de 12 visando a comprovar suas alegações” e que o Tribunal de origem, muito influenciado por tais documentos, reformou a sentença de improcedência, violando, dessa forma, os arts. 462 e 517 do CPC/73. Moacyr Amaral dos Santos, ao tratar da teoria das provas, em sua obra Primeiras Linhas de Direito Processual Civil (5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1980. v. 2), afirmou: Documentos outros, que não sejam substanciais ou fundamentais da ação, ou da defesa, poderão ser oferecidos no curso do processo, especialmente quando visem a: Fazer prova contrária; Provar fatos ou circunstâncias conexas ou explicativas de fatos em que se funda a ação ou a defesa; Provar fatos novos, ocorridos posteriormente aos alegados na inicial ou na contestação, e que interessem de perto à relação jurídica controvertida. Nessa linha, a jurisprudência do STJ firmou-se no sentido de admitir a juntada de documentos, que não apenas os produzidos após a inicial e a contestação, inclusive na via recursal, desde que observado o contraditório e ausente a má-fé. Nesse sentido: REsp 1.176.440/RO, Primeira Turma, julgado em 17/09/2013, DJe de 04/10/2013; AgRg no AREsp 294.057/SP, Quarta Turma, julgado em 19/09/2013, DJe de 24/09/2013; REsp 980.191/MS, Terceira Turma, julgado em 21/02/2008, DJe de 10/03/2008; REsp 466.751/AC, Primeira Turma, julgado em 03/06/2003, DJ de 23/06/2003; REsp 431.716/PB, Quarta Turma, julgado em 22/10/2002, DJ de 19/12/2002; REsp 181.627/SP, Quarta Turma, julgado em 18/03/1999, DJ de 21/06/1999. Na espécie, registrou o TJ/RJ que “nenhum dado novo veio aos autos com o recurso mencionado” e que “os documentos adunados naquele momento processual apenas serviram para ilustrar o que já tinha sido exaustivamente demonstrado na inicial” (fl. 316, e-STJ – sem grifos no original). Da conclusão a que chegou o TJ/RJ – que não pode ser alterada na Documento: 69980557 - RELATÓRIO E VOTO - Site certificado Página 6 de 12 via do especial sem o vedado revolvimento do conjunto fático-probatório – extrai-se que os referidos documentos não revelam fato novo, mas se trata de documentos novos acerca de fato já alegado e provado. Igualmente, infere-se do contexto delineado no acórdão que os documentos juntados com a apelação não eram indispensáveis à propositura da ação, mas apenas reforçam os fatos anteriormente descritos na petição inicial, razão pela qual sua juntada não implica alteração da causa de pedir ou do pedido. E mais, a própria recorrente, nas razões do especial, reconhece que, “em sede de contrarrazões à apelação apresentadas pelo recorrido, insurgiu-se contra tal juntada de documentos” (fl. 338, e-STJ), o que evidencia o respeito ao contraditório. Por todo o exposto, não se configura a alegada ofensa aos arts. 462 e 517 do CPC/73. III. Da responsabilidade do comerciante no que tange à disponibilização e prestação de serviço de assistência técnica (art. 18, caput e § 1º, do CDC) Sustenta a recorrente que da leitura do art. 18, caput e § 1º, do CDC não se pode extrair a responsabilidade solidária do comerciante pelo saneamento do vício do produto antes do prazo de 30 dias, como decidido no acórdão impugnado. Em princípio, a interpretação puramente topográfica do § 1º do art. 18 do CDC leva a crer que a responsabilidade solidária imputada no caput aos fornecedores, inclusive aos próprios comerciantes, compreende o dever de reparar o vício no prazo de trinta dias, sob pena de o consumidor poder exigir a substituição do produto, a restituição da quantia paga ou o abatimento Documento: 69980557 - RELATÓRIO E VOTO - Site certificado Página 7 de 12 proporcional do preço. Vejamos: Art. 18. Os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não duráveis respondem solidariamente pelos vícios de qualidade ou quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade, com a indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária, respeitadas as variações decorrentes de sua natureza, podendo o consumidor exigir a substituição das partes viciadas. § 1° Não sendo o vício sanado no prazo máximo de trinta dias, pode o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha: I - a substituição do produto por outro da mesma espécie, em perfeitas condições de uso; II - a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos; III - o abatimento proporcional do preço. Sob essa ótica, para o TJ/RJ, conquanto elogiável a conduta da recorrente de facultar ao consumidor a troca do bem em até 72 horas – pois a isso não está obrigada pela legislação consumerista –, tal postura não afasta o seu dever de “receber os produtos viciados apresentados pelos consumidores, sejam eles duráveis ou não duráveis, dentro dos respectivos prazos decadenciais para reclamação, com fundamento nos artigos 18 e 26, ambos do CDC” (fl. 285, e-STJ). Essa é também a visão de Rizzatto Nunes, para quem “o consumidor poderá optar por levar o aparelho à loja, à assistência técnica ou diretamente ao fabricante (os fornecedores do caput do art. 18)”, concluindo o jurista que “qualquer deles terá até 30 dias para efetuar o conserto” (Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 332). E, na mesma linha, é o entendimento de Arruda Alvim e outros (Código do consumidor anotado. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1995. p. 144), ao afirmar que: O consumidor, em razão da solidariedade passiva, tem direito de exigir e receber de um ou alguns daqueles que intervieram nas relações de fornecimento, parcial ou totalmente, a sanação do vício ou, esta não Documento: 69980557 - RELATÓRIO E VOTO - Site certificado Página 8 de 12 sendo levada a efeito, quaisquer das alternativas oferecidas no parágrafo primeiro desse art. [18]. (sem grifos no original) A 3ª Turma, no entanto, ao analisar situação análoga à descrita nestes autos, se manifestou no sentido de que, “disponibilizado serviço de assistência técnica, de forma eficaz, efetiva e eficiente, na mesma localidade [município] do estabelecimento do comerciante, a intermediação do serviço apenas acarretaria delongas e acréscimo de custos, não justificando a imposição pretendida na ação coletiva” (REsp 1.411.136/RS, Terceira Turma, julgado em 24/02/2015, DJe 10/03/2015). Embora, na ocasião, eu tenha acompanhado a Turma, o julgamento deste recurso me trouxe a oportunidade de uma nova reflexão sobre o tema. Isso porque, malgrado na teoria a tese seja bastante sedutora, o dia a dia – e todos que já passaram pela experiência bem entendem isso – revela que o consumidor, não raramente, trava verdadeira batalha para, enfim, atender a sua legítima expectativa de obter o produto adequado ao uso, em sua quantidade e qualidade. A começar pela tentativa – por vezes frustrada– de localizar a assistência técnica próxima de sua residência ou local de trabalho ou até mesmo de onde adquiriu o produto; e ainda o esforço de agendar uma “visita” da autorizada – tarefa que, como é de conhecimento geral, tem frequentemente exigido bastante tempo do consumidor, que se vê obrigado a aguardar o atendimento no período da manhã ou da tarde, quando não por todo o horário comercial. Aliás, já há quem defenda, nessas hipóteses, a responsabilidade civil pela perda injusta e intolerável do tempo útil: Marcos Dessaune (Desvio Produtivo do Consumidor – O Prejuízo do Tempo Desperdiçado. São Paulo: RT, 2011, p. 47-48); Pablo Stolze (Responsabilidade civil pela perda do tempo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3540, 11 mar. Documento: 69980557 - RELATÓRIO E VOTO - Site certificado Página 9 de 12 2013. Disponível em: . Acesso em: 3 mar. 2017); Vitor Vilela Guglinski (Danos morais pela perda do tempo útil: uma nova modalidade. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3237, 12 maio 2012. Disponível em: . Acesso em: 3 mar. 2017). Basta dizer que num município como o Rio de Janeiro, com aproximadamente 1.200 km² de extensão territorial e cerca de 161 bairros – segundo os dados fornecidos, respectivamente, pelo IBGE (Disponível em: http://cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?lang=&codmun=330455&search=||infog r%E1ficos:-informa%E7%F5es-completas. Acesso em 3 mar. 2017) e pela Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro (Disponível em: http://data.rio/dataset/bairros-do-rio-de-janeiro/resource/6da44946-550e-40da-af3 0-c893003a7371. Acesso em 3 mar. 2017) –, se o consumidor adquire o produto no estabelecimento que fica bem na esquina de sua casa, na Ilha do Governador, terá que se deslocar mais de 30 km para leva-lo à assistência técnica localizada na Barra da Tijuca, por exemplo. A modernidade exige soluções mais rápidas e eficientes, e o comerciante, porque desenvolve a atividade econômica em seu próprio benefício, tem condições de realizá-las! Assim, não é razoável que, à frustração do consumidor de adquirir o bem com vício, se acrescente o desgaste para tentar resolver o problema ao qual ele não deu causa, o que, por certo, pode ser evitado – ou, ao menos, atenuado – se o próprio comerciante participar ativamente do processo de reparo, intermediando a relação entre consumidor e fabricante, inclusive porque, juntamente com este, tem o dever legal de garantir a adequação do produto oferecido ao consumo. Vale ressaltar que o comerciante, em regra, desenvolve uma relação direta com o fabricante ou com o representante deste; o consumidor, não. Documento: 69980557 - RELATÓRIO E VOTO - Site certificado Página 10 de 12 Por isso também, o dispêndio gerado para o comerciante tende a ser menor que para o consumidor, sendo ainda possível àquele exigir do fabricante o ressarcimento das respectivas despesas. Logo, à luz do princípio da boa-fé objetiva, se a inserção no mercado do produto com vício traz em si, inevitavelmente, um gasto adicional para a cadeia de consumo, esse gasto deve ser tido como ínsito ao risco da atividade, e não pode, em nenhuma hipótese, ser suportado pelo consumidor. Toda essa dinâmica que se revela na prática, portanto, demonstra que a via-crúcis a que o fornecedor muitas vezes submete o consumidor vai de encontro aos princípios que regem a política nacional das relações de consumo, em especial o da vulnerabilidade do consumidor (art. 4º, I, do CDC) e o da garantia de adequação, a cargo do fornecedor (art. 4º, V, do CDC), além de configurar violação do direito do consumidor de receber a efetiva reparação de danos patrimoniais sofridos por ele (art. 6º, VI, do CDC). Assegurado o direito líquido e certo dos consumidores, portanto, não impressionam os argumentos deduzidos pela recorrente – em tom quase ameaçador – de que “é preciso atentar para as graves consequências da determinação constante do acórdão recorrido, dados os efeitos maléficos que pode causar ao mercado de consumo e aos próprios consumidores”, ou de que “deste cenário decorra o aumento do preço final dos produtos, em prejuízo ao próprio consumidor” (fl. 348, e-STJ). Há de ser ressaltado, por oportuno, que a defesa do consumidor foi erigida a princípio geral da atividade econômica pelo art. 170, V, da Constituição Federal. Por isso, depois de novamente refletir sobre a questão, rogando vênia aos eminentes pares, concluo que é o consumidor quem deve escolher a alternativa que lhe pareça menos onerosa ou embaraçosa para exercer seu direito Documento: 69980557 - RELATÓRIO E VOTO - Site certificado Página 11 de 12 de ter sanado o vício em 30 dias – levar o produto ao comerciante, à assistência técnica ou diretamente ao fabricante –, não cabendo ao fornecedor impor-lhe a opção que mais convém. Forte nessas razões, NEGO PROVIMENTO ao recurso especial. Documento: 69980557 - RELATÓRIO E VOTO - Site certificado Página 12 de 12