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ANTROPOLOGIA E CULTURA Ronaldo Queiroz de Morais Queiroz Revisão técnica: Guilherme Marin Bacharel em Filosofia Mestre em Sociologia da Educação Catalogação na publicação: Karin Lorien Menoncin CRB-10/2147 B277a Barroso, Priscila Farfan. Antropologia e cultura / Priscila Farfan Barroso, Wilian Junior Bonete, Ronaldo Queiroz de Morais Queiroz ; [revisão técnica: Guilherme Marin]. – Porto Alegre: SAGAH, 2017. 218 p. : il ; 22,5 cm. ISBN 978-85-9502-184-6 1. Antropologia. 2. Sociologia. 3. Cultura. I. Bonete, Wilian. II.Queiroz, Ronaldo Queiroz de Morais. III.Título. CDU 31 Antropologia e Cultura_Iniciais_Impressa.indd 2 17/11/2017 16:23:27 A cultura africana Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: � Definir o conceito antropológico de cultura africana. � Descrever as manifestações culturais afro-brasileiras. � Analisar os problemas referentes à africanidade brasileira. Introdução Este capítulo está voltado para o estudo da cultura africana presente na sociedade brasileira, visto que somos resultado de práticas carregadas de significados que compõe nossa herança cultural. A cultura africana está alinhada ao cotidiano brasileiro no quadro de uma longa herança cultural construída por inúmeras gerações de afro-brasileiros desde o período colonial até o tempo presente. Os africanos foram compul- soriamente conduzidos ao Brasil no processo de diáspora negra que transformou seres humanos, de diversas etnias e culturas, em escravos na América Portuguesa. Em contexto adverso e de brutal exploração, os afro-brasileiros gestaram uma cultura particular de matriz africana que está na base estrutural da cultura popular do Brasil. Toda cultura, no sentido antropológico, carrega um universo de práticas sociais e individuais, assim a cultura africana refere-se à totalidade de práticas religiosas, musicais, hábitos e saberes desenvolvidos por afrodescendentes ao longo da história brasileira. Cultura africana: conceito antropológico É importante definir o conceito de cultura para que possamos percorrer as raízes africanas que estão presente na formação do povo brasileiro. A cultura, U N I D A D E 4 Antropologia e Cultura_U4_C15.indd 163 17/11/2017 17:44:30 em essência, representa uma espécie de lente na qual olhamos o mundo e que nos condiciona a valores e práticas que compartilhamos com o grupo social no qual convivemos (LARAIA, 2008). O conceito de cultura de que nos reportamos é o de sentido antropológico. A cultura africana, nessa perspec- tiva, corresponde, em poucas palavras, à totalidade de práticas carregadas de significado, desenvolvidas por grupos sociais africanos e afrodescendentes – em unidade na diversidade –que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes, ou seja, hábitos adquiridos e presentes nos homens (e em cada indivíduo) como integrantes de uma sociedade (MUNANGA, 2009). Efetivamente, somos resultado de práticas carregadas de significados que compõe nossa herança cultural. A cultura africana está alinhada ao cotidiano brasileiro no quadro de uma longa herança cultural construída por inúmeras gerações de afro-brasileiros, desde o período colonial até o tempo presente. Os africanos foram compulsoriamente conduzidos ao Brasil no processo de diáspora negra que transformou seres humanos, de diversas etnias e culturas, em escravos na América Portuguesa. Em contexto adverso e de brutal exploração, os afro- -brasileiros gestaram uma cultura particular de matriz africana que está na base estrutural da cultura popular do Brasil. Então, para trilhar nossa caminhada no percurso da cultura africana brasileira, vamos desdobrar três estradas que se bifurcam em um conjunto orgânico e coerente de práticas que compreendem o fazer religioso, musical e os próprios costumes e saberes impregnados na forma de ser do povo brasileiro, que amarra laços fortes com o continente africano. As influências culturais africanas na cultura brasileira Religiosidade afro-brasileira As práticas religiosas africanas já estão incorporadas aos ritos de fé no Brasil desde o período colonial. No século XVII, já há informações de manifestação de cultos africanos. Os atos religiosos iam além do mero ritual sagrado, congre- gando em si, também, práticas de curas do corpo enfermo e de adivinhação. Os rituais religiosos de matriz africana não eram restritos aos negros escravizados, havia inclusive brancos que congregavam na mesma fé. A diversidade étnica dos negros diasporizados e a presença imperativa do catolicismo ibérico tornaram o sincretismo religioso em um ato estratégico a fim de garantir a identidade africana. A mistura das tradições religiosas africanas, indígenas e católicas possibilitou a emergência da umbanda, culto nativo de religiosidade híbrida. A cultura africana164 Antropologia e Cultura_U4_C15.indd 164 17/11/2017 17:44:31 Contudo, na esfera exclusiva da afro-brasilidade, o inovador corresponde ao ato de reunião de todos os orixás, no mesmo templo, fomentado pelo can- domblé, que configura, de fato, a expressão religiosa dos negros brasileiros. A religiosidade afro-brasileira, desde o início, foi configurada na margem da sociedade, sendo objeto de perseguição por parte da burocracia pública, no passado, e de indiferença, no presente. A crescente europeização do país, a partir do século XIX, procurou sustentar que os brasileiros são ocidentais e cristãos. Como resultado imediato, há, ao longo da história do Brasil, uma constante expropriação da tradição cultural africana e baixa tolerância aos cultos e demandas religiosas. O candomblé possibilitou a reunião de negros escravizados de diversas etnias africanas, de línguas e culturas diferentes, em uma mesma matriz religiosa. Diferentes deuses celebrados no mesmo espaço religando povos africanos distintos a partir da fabricação de religiosidade afro-brasileira. A centralidade das práticas religiosas do candomblé no século XIX estava no nordeste brasileiro, na cidade de Salvador, Bahia. A estrutura religiosa transcendida à figura dos líderes dos cultos correspondia, verdadeiramente, à presença de uma comunidade religiosa ampla e de atividade complexa. Havia os indivíduos que presidiam os terreiros propriamente, mas também grupos de iniciados que conviviam em camadas hierárquicas na organização do terreiro. Havia os auxiliares mais próximos dos sacerdotes como, por exemplo, o líder dos tocadores de atabaques e os responsáveis pelo ritual de sacrifício de animais. Além disso, podemos apontar um conjunto de adivinhos e curandeiros que atendiam em casa, deslocados dos terreiros de candomblé. A constante perseguição religiosa, no século XIX, e a persistência do candomblé como identidade negra – até os dias de hoje – demonstram-nos que as práticas religiosas de matriz africana estão alicerçadas na identidade brasileira. Ao contrário do catolicismo que adveio do topo da hierarquia ibérica para a América Latina, o candomblé nasce como criação popular de extensão africana. Realmente, o que caracteriza a cultura afro-brasileira é o popular, a africanidade que está no povo. Há uma independência surpreen- dente dos negros na formação das teias de significados culturais que escapa ao poder do Estado. A perseguição aos cultos afro-brasileiros, no século XIX, traduz o desconforto das autoridades diante da resistência religiosa dos negros posta a partir dos terreiros. As palavras do historiador João José Reis são esclarecedoras: Em 1828, um juiz de paz prendeu mulheres, tanto africanas quanto pretas brasileiras, dançando para deuses africanos em Salvador, na freguesia 165A cultura africana Antropologia e Cultura_U4_C15.indd 165 17/11/2017 17:44:31 de Brotas. Aquilo representava outro passo largo na formação do can- domblé baiano: a incorporação ritual dos negros nascidos do lado de cá do Atlântico. Considerando sua reação, ojuiz que invadiu o terreiro se defrontara com algo novo. Em longos e coléricos relatórios ao presidente da província, ele argumentou que a mistura de crioulas (negras brasileiras) e africanas para celebrar deuses d’além-mar era a ruptura de uma norma comportamental perigosa para a ordem pública; a seu ver, negras nascidas no Brasil deviam ser exclusivamente católicas (REIS, 2009, p. 46). O candomblé, além de ligar o continente africano à América e, de mesma forma, africanos aos afro-brasileiros, também produzia uma mistura geral: étnica, racial e social. No culto religioso, celebravam africanos de diversas etnias, negros nascidos no Brasil e brancos de diversas camadas sociais. No entanto, para as elites do país, a expressão religiosa afro-brasileira foi percebida como anticristã e tradicionalmente ainda está na margem da religiosidade dominante. Os afro-brasileiros, por meio de esforço contínuo, provocaram espaços importantes nos terreiros de candomblé para tecer teias culturais de formação de identidade própria. Aos poucos, os negros escravizados foram adquirindo consciência de grupo e produzindo influência sobre a sociedade brasileira. O catolicismo de inclinação popular tem importante influência afri- cana, na forma festeira e na carregada intimidade, em que o povo expressa sua fé. Segundo o antropólogo Gilberto Freyre (2004, p. 367): “[...] no catolicismo em que se deliciam nossos sentidos [...], em tudo que é expressão sincera da vida, trazemos quase todos a marca da influência negra”. Toda a brutalidade exercida pelo sistema escravocrata contra os africanos e afro-brasileiros não conseguiu subtrair a humanidade dos corpos explorados. Assim, em esforço inaudito de autoreconstrução de si, os negros construíram uma cultura própria religando crenças na criação de religiosidade comum. O catolicismo popular e o candomblé carregam, até os dias de hoje, traços das práticas religiosas d’além-mar, da África e da africanidade que se produziu no Brasil (Figura 1). A cultura africana166 Antropologia e Cultura_U4_C15.indd 166 17/11/2017 17:44:31 Figura 1. Traços da africanidade no Brasil: candomblé é uma das mais importantes práticas religiosas. Fonte: Brasil (2013). A musicalidade negra no Brasil Os laços culturais brasileiros estão impregnados de africanidade. A musica- lidade popular que ecoa nos centros urbanos é de inclinação negra. O samba é o que sintetiza a preferência nacional. Há, também, uma rica musicalidade nordestina com danças específicas de matriz africana. O forró, o xaxado, baião e maracatu são exemplos importantes do hibridismo cultural com forte swing afro-brasileiro. Ao contrário da posição periférica da religiosidade afro-brasileira, a expressão musical brasileira tem no centro as batidas e a voz da modernidade africana. A massa de negros deslocados do campo para as favelas das cidades brasileiras teve que criar um modo de conviver, diante das adversidades de uma vida social miserável, com outros negros que já conhe- ciam a vida urbana e, assim, produziram criatividade singular e musicalidade de acordo com o ritmo modernizante das cidades industrializadas. Como afirma Darcy Ribeiro (2003, p. 222): “uma cultura feita de retalhos do que o africano guardara no peito nos longos anos de escravidão, como sentimentos 167A cultura africana Antropologia e Cultura_U4_C15.indd 167 17/11/2017 17:44:31 musicais, ritmos, sabores e religiosidade”. A capacidade de adaptação diante da brutal adversidade social e a de formar hibridismos culturais fazem dos afro-brasileiros, sem dúvida, o componente mais criativo e hegemônico da cultura popular brasileira. O maracatu é um bom exemplo de expressão de africanidade na cultura popular brasileira. Ele envolve um conjunto de práticas culturais de matriz afro-brasileira (Figura 2). Nele há, ao mesmo tempo, constituição de iden- tidade e afirmação religiosa no ato de diversão coletiva. Os maracatus são práticas culturais que já eram exercidas por escravos africanos, e, ainda hoje, presenciamos grupos de maracatus no carnaval de Recife. Demonstração popular independente das forças de agenciamento de mercado da indústria cultural, o maracatu, além dos elementos africanos, congrega a brasilidade nordestina. Trata-se de fazer e refazer os laços culturais entre o Brasil e a África, integrados, exclusivamente, por negros que, no carnaval pernambucano, se organizam em torno de uma pequena orquestra de percussão, tambores e chocalhos a fim de percorrerem as ruas, cantando, dançando sem uma coreografia especial. Algo muito semelhante aos séquitos de negros que no passado acompanhavam os reis congos, eleitos por escravos, para coroação nas igrejas em homenagem a Nossa Senhora do Rosário (CASCUDO, 2000). Nos anos de 1990, houve um revigoramento com o Movimento Mangue Beat, centrado na figura de Chico Science e sua Banda Nação Zumbi, que inseriram o maracatu como expressão moderna carregada de elementos eletrônicos do Rock contemporâneo (LIMA, 2009). A cultura africana168 Antropologia e Cultura_U4_C15.indd 168 17/11/2017 17:44:31 Figura 2. O baque solto está associado a forte musicalidade da região canavieira, em Per- nambuco, entremeado pelo improviso e a rica coreografia dos arreiamás, caboclos e baianas. Fonte: Brasil (2014a). Há também a capoeira, onde, além de canção negra e de presença da percussão singular do berimbau, presenciamos movimentos que se asseme- lham a uma dança de combate, em que os corpos, no jogo, correspondem, efetivamente, a uma arte marcial. Ela é uma expressão afro-brasileira, carre- gada de musicalidade e jinga do corpo, que ainda permanece nas margens da indústria cultural (Figura 3). Trata-se de expressão popular não massificada. Está ligada à tradição que mobiliza laços identitários com a África. A capo- eira na memória oral dos mestres tem origem na senzala, entre escravos ou por negros quilombolas. Contudo, há na África uma dança semelhante que marca a entrada das meninas na vida adulta, a dança da zebra, em que jovens galanteadores procuram nos movimentos corpóreos atingir o adversário com o pé no rosto. Tudo no campo da sonoridade das palmas e na dança, que imita o coice de uma zebra. Dessa forma, faz sentido buscar as raízes da capoeira na região do atual Congo e Angola. Há inúmeros relatos de cronistas acerca dos exércitos congolês e angolano, com seus guerreiros aperfeiçoados na luta corporal, experientes no jogo de corpo que confundia os adversários (ASSUNÇÃO; MANSA, 2009). 169A cultura africana Antropologia e Cultura_U4_C15.indd 169 17/11/2017 17:44:32 Figura 3. A capoeira depende da manutenção da cadeia de transmissão dos mestres para sua continuidade como manifestação cultural. Fonte: Brasil (2014b). O samba é a expressão cultural afro-brasileira mais representativa da identidade nacional. Nas primeiras décadas do século XX, o samba foi recebido pelas elites brancas do país de forma muito negativa. Era visto como imoral, o rebolado dos corpos e a sensualidade exposta abalaram uma sociedade republicana conservadora e moralista que desejava se ocidenta- lizar, eliminando toda e qualquer presença de africanidade no país. Porém, a crescente urbanização e a República de Vargas quebraram a dicotomia: dança europeia na Casa-Grande e samba africano no terreiro. Na construção do Brasil industrial e moderno, o samba da capital (na época, Rio de Janeiro) passou a representar a canção popular brasileira a partir da Rádio Nacional o que contribuiu para inserir na identidade nacional o elemento negro e, ao mesmo, criar a ideia de “democracia racial”. O samba está associado à dança de roda. O primeiro samba, no Brasil, registrado pela indústria fonográfica, foi gravado em 1916 por Ernesto Sousa (Donga) com o título da canção, “Pelo Telefone” (CASCUDO, 2000). De todas as expressões populares de referência afro-brasileira, o samba corresponde aos maiores investimentos da indústria cultural e dos poderes públicos,visto que sintetiza a identidade do Brasil contemporâneo (Figura 4). A cultura africana170 Antropologia e Cultura_U4_C15.indd 170 17/11/2017 17:44:33 Figura 4. As matrizes referenciais do samba no Rio de Janeiro distinguem-se de outros subgêneros de samba criados posteriormente e guardam relação direta com os padrões de sociabilidade. Fonte: Brasil (2014c). Os saberes e costumes africanos Fruto da diáspora negra, o Brasil, ao longo da história de sua formação, carrega uma população africana de volume superior aos de brancos europeus. Assim, não há como negligenciar a africanidade que percorre todo o corpo social. As palavras dengo, cafuné, farofa, neném, quitanda, moleque e samba, por exemplo, tão presentes na linguagem cotidiana dos brasileiros, são de origem africana, da região onde hoje encontramos Congo e Angola. Não é tudo. Essas palavras traduzem práticas e sentimentos culturais carregados de significados e afetividades. São palavras que, segundo Gilberto Freyre (2004, p. 417): “[...] correspondem melhor do que as portuguesas à nossa experiência, ao nosso paladar, aos nossos sentidos, às nossas emoções”. Do tronco linguístico banto, são palavras que substituíram as de mesmo valor existentes na língua portuguesa. A presença de vocábulos africanos, na língua portuguesa falada no Brasil, é importante para mensurarmos o impacto da cultura africana sobre nós e, também, compreender como a África civilizou 171A cultura africana Antropologia e Cultura_U4_C15.indd 171 17/11/2017 17:44:34 o Brasil com a inserção de práticas afetivas, saberes e sabores novos. Como, por exemplo, conhecimentos técnicos, agrícolas e de mineração, além de valores sociais, costumes cotidianos e toda uma culinária que marca nossos pratos principais e favoritos (LIMA, 2009). O banto é conjunto de populações da África, ao sul do equador, que falam línguas da mesma família, mas pertencem a tipos étnicos muito diversos. A essência da estruturação do imaginário de um povo podemos, certamente, creditar à cultura. No caso brasileiro, a cultura do país está impregnada de afri- canidade. No olhar dos brasileiros afrodescendentes e nas suas mentalidades, todos os legados da cultura africana estão postos como patrimônio material e imaterial da própria cultura nacional (MUNANGA, 2009). Dessa forma, ser brasileiro é compartilhar com os povos africanos práticas e significados em comum. O africano e, por extensão, o afro-brasileiro, desde o nascimento do Brasil, infiltraram-se, compulsoriamente, na intimidade dos donos do poder, dos brancos europeus e da própria sociedade. Em cada lar, há, direta ou indiretamente, a presença do negro. Como resultado, há, na intimidade de cada brasileiro, traços culturais africanos. É o que explica a preponderância da cultura negra sobre a indígena em nossa tradição oral, como também a interferência negra na própria cultura portuguesa, transformando a linguagem e a religiosidade católica (FERNANDES, 2007). Entretanto, o lugar dos afro-brasileiros na estratificação social do país é o mais baixo. A hegemonia do poder está localizada em uma elite branca. Diante das dificuldades, segundo Darcy Ribeiro (2003, p. 223): “[...] o negro aproveita cada oportunidade que lhe é dada para expressar o seu valor”. Assim, insere-se com sucesso estrondoso nas atividades que não se exige escolaridade, como no futebol e na canção popular, em que os negros são os mais representativos do Brasil. Apesar da presença evidente do negro na cultura do país, a ideologia do branqueamento, que atravessou o século XX e ainda persiste no tempo presente, torna as práticas culturais nacionais vazias de africanidade. A África apresenta-se como um continente muito distante de nós, quando na realidade estamos impregnados por ela em nossas práticas culturais cotidianas. A cultura africana172 Antropologia e Cultura_U4_C15.indd 172 17/11/2017 17:44:34 De fato, houve, e ainda há, uma crescente expropriação da africanidade de cada brasileiro. A auto-identificação, por parte da maioria dos negros brasileiros, com a figura do “homem pardo”, nas pesquisas do IBGE, revela o esvaziamento da negritude provocada pela política de branqueamento aplicada no Brasil. Como resultado imediato, os saberes e costumes de matriz africana aparecem descolados do valor simbólico e político da própria negritude que poderia atuar como força motriz para as lutas sociais de emancipação, a fim de desconstruir a fantasia de democracia racial para, de fato, criar uma política real de democracia para a igualdade racial. A questão central no processo de transformações de seres humanos em coisas está, sem dúvida, na eliminação da memória e, consequentemente, na anulação das práticas culturais. Assim, todo o esforço de dominação das elites brancas centrou-se na eliminação da História e da cultura africana, pois a África deveria desaparecer para os cativos e, posteriormente, para o negro livre. Não é à toa que, em Benin, todos os cativos, antes de embarcarem nos navios, para a diáspora negra, eram obrigados a dar inúmeras voltas em torno da chamada “árvore do esquecimento”, a fim de se desprender de sua memória e cultura para sempre. Efetivamente, a resistência fundamental dos afro-brasileiros está, como no passado, posto no limite da memória e da cultura originária, para afrontar o poder simbólico da árvore do esquecimento. Quando conferimos a importância da cultura africana para a constituição do Brasil, é possível perceber um evidente paradoxo, por um lado, a cultura afrodescendente está na intimidade de todos nós, mantém-se em nossos corpos e está nas nossas práticas cotidianas e, por outro, há uma espécie de silêncio inquietante que procura negligenciar a África que há em cada cidadão brasileiro, principalmente naqueles corpos de baixa cidadania: os negros brasileiros. Sem dúvida, é resultado de um racismo também muito silencioso, que subtrai a história e a cultura africana do corpo de cada um de nós. Somos resultado de séculos de escravidão, de coisificação dos negros, a fim de produção de riqueza para o Brasil. O fim do sistema escravocrata não resultou em “democracia racial”, ele foi substituído por uma república que resolveu esquecer a África e a escravidão, sem desenvolver políticas objetivas de integração dos negros como cidadãos brasileiros. No entanto, há sinais importantes no país de reparação e de constituição de cidadania para os afro-brasileiros, no quadro da redemocratização na chamada Nova República. Ela começou muito bem com uma nova constitui- ção, em 1988, que refuta a discriminação de toda a ordem, inclusive racial. Constituição promulgada, exatamente, no centenário da abolição da escravidão, ano de contínuos debates sobre a questão negra no país. Nesse mesmo ano, 173A cultura africana Antropologia e Cultura_U4_C15.indd 173 17/11/2017 17:44:34 são reconhecidos os direitos territoriais dos remanescentes das comunidades quilombolas, garantindo, assim, a titulação definitiva sobre a terra. No ano seguinte, o racismo passa a ser crime inafiançável no Brasil. Dando seguimento, em 1995, o Estado brasileiro instituiu o 20 de novembro, que marca a morte de Zumbi dos Palmares, como o “Dia da Consciência Negra”. Em 2003, o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira passou a ser obrigatório com a Lei 10.639. Além da Lei das Cotas Raciais, em 2012, que passou a assegurar, nas universidades públicas, a entrada de negros por competitividade justa. De fato, do Centenário da Abolição para os dias de hoje, avanços significativos foram realizados, mas os esforços devem persistir para que, no futuro, o Brasil possa ter realmente uma Democracia Racial. A cultura africana174 Antropologia e Cultura_U4_C15.indd 174 17/11/2017 17:44:34 ASSUNÇÃO, M. R.; MANSA, M. C. A Dança da zebra. In: FIGUEIREDO, L. (Org.). Raízes africanas. Rio de Janeiro: Sabin, 2009. BRASIL. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.Maracatu de Baque Solto. 2014a. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/galeria/detalhes/133?eFototeca=1>. Acesso em: 24 out. 2017. BRASIL. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Matrizes do samba no Rio de Janeiro: partido alto, samba de terreiro e samba-enredo. 2014c. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/64>. Acesso em: 24 out. 2017. BRASIL. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Roda de capoeira. 2014b. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/66>. Acesso em: 24 out. 2017. BRASIL. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Tombamento do Teatro Castro Alves e registro do Terreiro de Candomblé Ilê Axé Oxumaré. 2013. 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Conteúdo: LITERATURA POPULAR Alessandra Bittencourt Flach Eliana Cristina Caporale Barcellos Literatura popular e identidade cultural Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: � Apontar os mecanismos envolvidos na formação da identidade cultural. � Demonstrar a importância da literatura popular na formação da identidade cultural. � Identificar, na literatura popular, as marcas da identidade cultural. Introdução Quando usamos o termo “popular” associado à literatura, estamos nos referindo a um conjunto de produções literárias com característi- cas bem específicas e com uma ampla significação. O que entende- mos por “povo” é extremamente importante para estudar a literatura popular. No entanto, o fundamental é que a literatura, juntamente com outras expressões artísticas populares, faz parte de um imenso patrimônio cultural, que representa nossa identidade e evidencia um importante senso de pertencimento. Neste texto, você vai conhecer um pouco mais sobre a relação entre a literatura popular e a identi- dade cultural. Cultura e identidade cultural Você já sabe que o homem é, por natureza, um ser social, um produto cultural. Mas o que isso quer dizer? Durante muito tempo, a ideia de cultura e identidade esteve associada a uma visão nacionalista – cultura brasileira, identidade brasileira, povo brasi- leiro e, por extensão, uma literatura popular brasileira. Tal abordagem chegou até a despertar um senso de patriotismo (valorizar e exaltar o que é nacional). Além disso, chamou a atenção para a importância de estudar melhor aquilo que pertence ao país, em vez de buscar imitar modelos. Em contrapartida, tal enfoque apresenta alguns riscos, em especial o risco de homogeneizar ou simplificar conceitos como cultura, identidade e até de nação. Também pode Literatura_popular_U3_C08.indd 92 21/09/2016 16:28:04 levar a desconsiderar algumas práticas por não se enquadrarem numa defi- nição restrita de cultura ou povo. Desde o início do século XIX, quando essas visão nacionalista ganhou força, até os dias de hoje, ampliaram-se bastante esses conceitos. Quando atualmente tratamos do assunto, devemos considerar uma série de questões, como, por exemplo, a diversidade cultural e a importância de haver espaço para todo tipo de expressão cultural, sem que alguém ou alguma instituição imponha parâmetros ou delimitações a isso. Quanto à literatura, sabemos que ela é produto do seu meio – mesmo que um autor crie uma história que se passe em época diferente da sua ou mesmo em outro planeta, ainda assim, aspectos de seu contexto cultural estarão evi- denciados. Na literatura popular, porém, esse processo se dá de um modo mais parti- cularizado. A literatura, assim como a música, a pintura, a escultura, a dança, as festas e outros expressões populares, são produzidas e divulgadas a partir de um vínculo cultural e identitário bem significativo. Inicialmente, essas manifestações artísticas tinham vínculo com rituais e crenças compartilhados por certos grupos. Aos poucos, modificaram-se e ampliaram-se, tornando-se produtos estéticos, com fins de entretenimento. Contudo, conservam resquícios dessas práticas. Figura 1. Festa de São João. Fonte: Bricolage/Shutterstock.com 93Literatura popular e identidade cultural Literatura_popular_U3_C08.indd 93 21/09/2016 16:28:04 A cultura popular conserva uma relação muito estreita com os hábitos de vida, com crenças e valores. Você percebe isso nos contos, nos folhetos de cordel, na música, nas festas. Veja, por exemplo, que as comemorações juninas celebram a vida do homem sertanejo e suas atividades diárias. A festa é recheada de simbologias e significações. A cultura popular está associada a essas relações de trabalho e vida sim- ples, a um tempo em que as relações se davam por meio da presença, do con- tato olho no olho. Os códigos de conduta e os ensinamentos eram transmitidos através da palavra, a qual tinha força de lei. De certa forma, há um conservadorismo nesse processo. Como práticas sagradas, elas tendem a se reproduzir mais ou menos preservando as formas originais (daí os resquícios dos rituais). Não significa que essas práticas cultu- rais não se atualizem e se adaptem às naturais transformações do mundo. Isso acontece, sim. Por isso é que a cultura popular é complexa e rica de significa- ções e ainda hoje tem razão de existir. E também, por estabelecerem um vínculo cultural, não precisamos temer que vão desaparecer diante de novos hábitos e tecnologias. Elas se adaptam (ainda que em um processo mais lento). Se não forem mais significativas, essas práticas culturais desaparecem ou são substituídas naturalmente. Para estudar os produtos dessa cultura – como a literatura popular –, é preciso reconhecer as várias marcas de tempos passados e modos de vida que se transformam. Mais do que isso: qualquer produção literária popular reflete os interesses e os valores desse grupo, atende a certa expectativa. A aceitação, o reconhecimento e a reprodução dessas produções literárias se dão em um processo de identificação cultural, reforçando as marcas de uma coletividade, atendendo a uma necessidade de pertencimento, de vín- culo, tão indispensável em nossas relações sociais. Diversidade cultural Diversidade cultural é um conceito relativamente recente, como são re- centes as leis que determinam promover e valorizar a diversidade cul- tural. Com isso, a cultura popular e suas manifestações ganham amparo e in- centivo, um meio de fazer com que chegue a mais pessoas e seja reconhecida como parte da nossa identidade. Isso tem relevância porque,por muito tempo, o mais valorizado era a cul- tura “estrangeira”. No século XIX, por exemplo, quando o Brasil ainda era Literatura popular94 Literatura_popular_U3_C08.indd 94 21/09/2016 16:28:04 colônia de Portugal, difundia-se a ideia de que a cultura boa e de prestígio era a europeia e que a “boa formação” só poderia vir dos livros e do domínio da arte erudita – ópera, orquestra, teatro, literatura. Por extensão, a cultura popular era desprestigiada, considerada coisa de pobre e iletrado. A diversidade cultural sempre existiu, mas, em algumas épocas, essa mes- tiçagem era vista como algo negativo. Valorizava-se a pureza da raça e a fidelidade e processos estéticos padronizados. No final do século XIX, houve, no mundo todo, um importante avanço das ciências natu- rais, com descobertas significativas e uma valorização do olhar cientificista. Teorias como o evolucionismo de Charles Darwin e o determinismo de Hippolyte Taine defendiam a importância da adaptação do homem ao meio, destacavam as reações instintivas e indi- cavam que a genética tinha grande interferência nesse processo. Daí interpretações um tanto equivocadas que priorizavam a importância de uma pureza de raça Figura 2. Evolucionismo. Fonte: williammpark/Shutterstock.com O brasileiro, sob essa perspectiva, era visto como mais fraco, mas susce- tível (física e moralmente), porque produto de uma diversidade, diversidade essa que ainda contava com a influência africana, também menosprezada. E a literatura? Bem, a literatura erudita, de alguma forma, submeteu-se a essa perspectiva, e isso se deu de duas formas – menosprezando o elemento 95Literatura popular e identidade cultural Literatura_popular_U3_C08.indd 95 21/09/2016 16:28:04 local e valorizando a imitação de modelos europeus ou olhando para o ele- mento nacional como algo exótico e frágil. A literatura popular, como produto de uma coletividade, fica alheia a tudo isso. Porém, são os estudiosos que vão olhar para ela de um modo diferente, com consequências importantes. As manifestações literárias populares serão classificadas a partir das influências raciais e culturais, o que é uma forma bem simplista de análise, ainda que condizente com o pensamento do período. Como uma influência do Romantismo, que valorizava o saber do povo, houve um interesse pelo estudo das produções populares. Mais tarde, no final do século XIX, sob o viés cientificista, essas produções continuaram a ser estudadas e classificadas. Sílvio Romero, um pesquisador dessa época, publicou uma recolha de contos (Contos populares do Brasil, de 1897), os quais foram divididos em três categorias – contos de origem europeia, contos de origem indígena e contos de origem africana e mestiça. Essa divisão é condizente com esse olhar determinista da época. Ao fazer essa divisão, podemos perceber o que o pesquisador considera como elementos constituintes da cultura brasileira. Os contos de origem europeia são aqueles que envolvem elementos má- gicos, reis e príncipes. Os contos de origem indígena são as histórias de ani- mais (não aparecem indígenas!) e os contos de origem africana e mestiça com- preendem também histórias de animais (em especial, o macaco) e facécias, ou seja, histórias que provocam riso, expondo personagens bobos, pregui- çosos, ladrões, o que é um indicativo do que se pensava em relação ao povo de origem mestiça. Vejamos um exemplo deste último ponto. O NEGRO PACHOLA Havia uma senhora de engenho casada e sem filhos. Adoecen- do o marido e morrendo, ficou em lugar dele um preto africano, chamado Pai José. Assim que Pai José ouviu dizer que ia governar o engenho, ficou muito orgulhoso. Logo que foi distribuir o serviço com os outros ne- gros, passou ordem a eles que, de ora em diante, não o tratassem mais por Pai José, e sim Sinhô Moço Cazuza. Os negros lhe obedeceram. E, quando o viam, diziam: “A bença, Sinhô Moço Cazuza.” O negro, muito concha, respondia: “Bênção de Deus.” Literatura popular96 Literatura_popular_U3_C08.indd 96 21/09/2016 16:28:04 Não ficou só aí o orgulho do negro. Quando chegou à casa, disse para a senhora: “Meu sinhá, quando Sinhô Moço Cazuza chegava em casa cansado, meu sinhá não mandava logo botar banho para ele? Pois eu também quer.” A senhora, coitada, não teve outro remédio senão mandar botar banho para Pai José. Não satisfeito ainda, disse o negro: “Meu sinhá, não mandava mulatinha esfregar costa de meu sinhô? Pois eu também quer.” A senhora mandou a mulatinha esfregar as costas de Pai José. Este ainda continuou: “E meu sinhá não dava camisa gomada pra meu sinhô vestir? Pai José também quer.” A pobre mulher foi buscar uma camisa engomada, deu a Pai José para vestir. E, vendo que devia acabar com as pacholices daquele negro, falou com dois criados, muniu-se de dois bons chicotes e mandou-os esconde- rem-se no quarto. Esperou que o negro pedisse mais alguma coi- sa. E não tardou que ele dissesse: “Meu sinhá, quando meu sinhô acabava de tomar banho e de vestir a camisa grosmada, ia para o quarto pra meu sinhá catar piolho nele? Pai José também quer.” A moça não teve dúvida. Mandou-o entrar para o quarto e deu ordem aos criados que empurrassem o chicote. Se ela bem ordenou, melhor executaram os criados. Pai José apa- nhou tanto que escapou de morrer. No outro dia, bem cedo, o negro foi para a roça ainda muito ma- goado das pancadas. E, quando os negros o saudaram: “A ben- ça, Sinhô Moço Cazuza”, ele muito zangado respondeu: “Cazu- za, não, eu sou Pai José.” E deu ordem para o tratarem pelo seu próprio nome. Os negros muito admirados ficaram sem saber a causa daquela mudança. Nunca mais Pai José pediu banho, nem camisa engomada, nem à senhora para catar piolhos. (ROMERO, 1985, p. 194) 97Literatura popular e identidade cultural Literatura_popular_U3_C08.indd 97 21/09/2016 16:28:04 O conto mostra as relações sociais de poder e dominação, através da lição dada ao “pai José”. Mostra também a vida nos engenhos, a escravidão e al- gumas práticas cotidianas. Na moral do conto, percebe-se certa visão precon- ceituosa e a valorização dos brancos, em detrimentos dos negros. Leia a análise da literatura popular feita pelo próprio Sílvio Romero, à época: As relações da raça superior com as duas inferiores tiveram dois aspectos principais: a) relações meramente externas, em que os portugueses não poderiam, como civilizados, modificar sua vida intelectual que tendia a prevalecer e só poderiam contrair um ou outro hábito, e empregar um ou outro utensílio na vida cotidiana ordinária; b) relações de sangue, tendentes a modificar as três ra- ças e a formar o mestiço. (ROMERO, 1985, p. 16) través dela, notamos o reconhecimento de um multiculturalismo brasi- leiro, representado pelo mestiço, mas, ao mesmo tempo, uma noção que su- pervaloriza uma cultura em detrimento de outras, consideradas inferiores e desprovidas de “civilidade”. Felizmente, o que era considerado uma fraqueza – a mestiçagem – foi sendo percebido como uma riqueza, uma fonte inesgotável de criação, desper- tando interesses legítimos em termos de estudos, especialmente a partir dos anos 1920, com o Modernismo brasileiro. Atualmente, a diversidade cultural é mais valorizada, porque há um maior reconhecimento da complexidade de elementos e inf luências em nosso meio. Até mesmo os Parâmetros Curriculares Nacionais, um do- cumento que normatiza o ensino no Brasil, reforça a importância de co- nhecer e valorizar a pluralidade do patrimônio sociocultural brasileiro. Algumas leis preveem o ensino da cultura afro-brasileira e o contato com as culturas indígenas, em uma tentativa de nos reconhecermos como pro- duto de uma sociedade que valoriza a liberdade de criação e de expressão cultural. Literatura popular98 Literatura_popular_U3_C08.indd 98 21/09/2016 16:28:04 O contador de histórias – um mediador da cultura Para deixar mais clara a relação entre a cultura e a literatura popular, vamosanalisar agora um aspecto essencial na literatura – o contador de his- tórias, ou cantador, ou poeta. Como dissemos anteriormente, a literatura popular conserva resquí- cios de rituais, que celebravam momentos importantes da vida em comu- nidade – colheitas, nascimentos, conquistas e até tragédias. Desde tempos imemoriais, as comunidades mais primitivas se organizavam em torno de líderes, responsáveis pelos ensinamentos e pela ordem. Em geral, esse papel era ocupado pelos mais velhos – os sacerdotes, os xamãs. Essas figuras estabeleciam uma ligação entre o sagrado e o cotidiano. Eram de- tentores do poder da palavra. Como sabemos, a literatura popular tem como suas bases a oralidade, daí o impacto da voz, daquilo que é proferido como valor-verdade. A partir desse conceito, podemos relacionar a função do xamã com a do poeta popular, que domina um código social, que conhece o seu grupo, que recorre à palavra para divulgar e transmitir os saberes de seu grupo. Ele faz a mediação entre a cultura e as pessoas, através da literatura. É por isso que, nas histórias populares, comumente percebemos o narrador se colocar como testemunha dos fatos, para reforçar a importância do que está sendo apresentado. Ao contar uma história, faz isso levando em consideração seu papel de mediador da cultura, o que exige conhecimento e experiência, mas também sensibilidade, para atingir seu interlocutor. Torna-se, de certa forma, a memória vida de sua cultura. Observe os exemplos a seguir, que evidenciam o papel do contador de histórias como um transmissor da cultura. 99Literatura popular e identidade cultural Literatura_popular_U3_C08.indd 99 21/09/2016 16:28:04 EXEMPLO 1 – O BOI LEIÇÃO Informante: José Maria de Melo, Alagoas E no dia do casamento houve uma festa tão grande que abalou todo o pessoal da redondeza. Dançou-se sete dias com sete noites “encastoados”. Naquele tempo eu ainda era solteiro, e meti-me no meio e dancei tanto que quase me acabo!… A festa só acabou no fim do sétimo dia; assim mesmo porque os dedos do tocador de harmô- nico, de tão inchados que estavam de tocar, não podiam mais arrastar o fole. (CASCUDO, 2003, p. 184) EXEMPLO 2 – LAMPEÃO ARREPENDIDO DA VIDA DE CANGACEIRO Autoria: Laurindo Gomes Maciel Virgolino Lampeão Se achar meu verso ruim Deus queira que o Governo Brevemente dê-lhe fim Falei somente a verdade Lampeão por caridade Não tenha queixa de mim. Terminei caro leitor O verso de Lampeão Descrevi divinamente O que ele fez no sertão Nada mais tenho a dizer, Quando Lampeão morrer Faço outra narração. (PROENÇA, 1986, p. 375) Literatura popular100 Literatura_popular_U3_C08.indd 100 21/09/2016 16:28:04 EXEMPLO 3 – MINHOCÃO Entrevistado: Vadô Outro dia, foi dois dia de festa, dois dia de festa. Dois, três dia que nós ia embora pra buscar padre que tinha lá, pra nós fazer essa brincadeira. Não, mas diz que é, eu tô falando pro senhor, é realidade! O que eu falo o senhor escreve, eu assino. Então, o senhor vê como é. Então tá. Bandeira ficava quadro, cinco dia. Comia capivara, peixe, o que tiver, né? Ah! Nesse tempo, mandioca tinha todo dia na beira do rio aí. Passava aquela lancha aí, a Cabuxio, a Panamericana, tudo. No tempo que matava capivara, sabe? Matava jacaré. [...] Aí, nós tomando umas pinga e tal... Aí o companheiro falou: – Ah! Rapaz, eu tô cum uma fome muito forte! Eu vou matar uma capivara! Falei: – Vamos, eu vou cum vocês. Outro falou: – Eu também vou! Vamos caçar aí, matar umas capivara aí, lontra, qualquer coisa, né? E eu tava enjoado dos remédio e bem passado da bebida. Pegamos essa canoa. Aaooô rapaz! [...] E esse rapaz caçava, esse que num quis pegar a bandeira, caçava também. Foi e atirou nesse bicho. Mas atirou: pá! [...] Aí o pessoal me disseram: – Cê sabe o que que é? Esse é o bicho que ele atirou. Esse é o minhocão. (FERNANDES, 2002, p. 168-169) No Exemplo 1, temos um trecho de um conto coletado por Câmara Cas- cudo. Trata-se do final da história. Em primeira pessoa, o narrador, para le- gitimar o teor do narrado, coloca-se como testemunha e descreve detalhes da festa em comemoração ao final feliz. No Exemplo 2, o final de um folheto de cordel. Como é muito comum nesse gênero literário, as últimas estrofes fazem referência ao interlocutor, motivando-o a comprar o folheto. Neste caso, em particular, o poeta dirige- -se, primeiramente, a Lampeão, receoso do impacto da narrativa; em seguida, dirige-se ao leitor, atestando seu conhecimento sobre o assunto e prometendo tornar a versejar sobre o tema. No Exemplo 3, temos a transcrição de um depoimento de um pantaneiro sobre sua vida de vaqueiro. No trecho, fica evidente a preocupação em ga- rantir a veracidade do narrado (como nos outros dois exemplos) a partir da legitimação da própria palavra (“O que eu falo o senhor escreve, eu assino”). 101Literatura popular e identidade cultural Literatura_popular_U3_C08.indd 101 21/09/2016 16:28:04 Também podemos conhecer mais sobre a vida no Pantanal, os hábitos e o imaginário – como o Minhocão, a cobra que, em noites de lua cheia, suga o sangue das pessoas. Nos três casos, há um comprometimento de quem conta com aquilo que é contado, evidenciando domínio do contexto onde se desenvolve a história. Através de seu relato, temos as explicações e as informações sobre as práticas culturais, sobre os modos de relacionar o cotidiano ao discurso literário. Os textos populares estão repletos de exemplos de modos de ser e de pensar. Conhecer a literatura popular, entre muitas vantagens, permite co- nhecermos expressões culturais e, mais do que isso, estreita nossos vínculos identitários, porque nos reconhecemos nessas histórias. Literatura popular102 Literatura_popular_U3_C08.indd 102 21/09/2016 16:28:05 CASCUDO, L. da C. Contos tradicionais do Brasil. 13. ed. São Paulo: Global, 2003. FERNANDES, F. A. G. Entre histórias e tererés: o ouvir da literatura pantaneira. São Paulo: EDUNESP, 2002. JOLLES, A. Formas simples: legenda, saga, mito, adivinha, ditado, caso, memorável, con- to, chiste. São Paulo: Cultrix, 1975. MEYER, M. (Org.). Autores de cordel: literatura comentada. São Paulo: Abril Educação, 1980. PROENÇA, M. C. Literatura popular em verso (antologia). Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/ EDUSP, 1986. ROMERO, S. Contos populares do Brasil. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/EDUSP, 1985. Leituras recomendadas BERND, Z.; UTÉZA, F. (Orgs.) Produção literária e identidades culturais: estudos de literatura comparada. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 1997. ONG, W. Oralidade e cultura escrita: a tecnologização da palavra. São Paulo: Papirus, 1998. ZUMTHOR, P. A letra e a voz. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. Conteúdo: LITERATURA POPULAR Conteúdo: Alessandra Bittencourt Flach Eliana Cristina Caporale Barcellos U N I D A D E 2 Gêneros poéticos (romance, cantoria e folheto) Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: � Identificar o contexto de produção e circulação das narrativas em verso. � Conceituar os gêneros poéticos. � Analisar gêneros poéticos populares. Introdução Os gêneros poéticos populares em versos – romances ou folhe- tos em geral – estão estreitamente relacionados à voz, ao canto e a todo um sistema que envolve a interação entre quem produz o texto e aquele que o recebe. Nesses pequenos livros de tiragem limi- tada e produção amadora e quase artesanal, circulam grandes histórias vivas da nossa tradição popular. Origem e desenvolvimento da poesia popular Cordel é um termo de origem portuguesa usado para designar o que hoje chamamos de literatura de cordel. O termo faz referência ao modo como tra- dicionalmente esses textos eram expostos para venda – fixados em barbantes, em uma espécie de varal. No Brasil, o uso de cordéis não se consagrou, ainda que você possa encontrar por aí livros expostos dessa forma. Os pequenos livretos, ou folhetos, são vendidos por seus produtores em feiras livres,nas ruas ou mesmo de porta em porta. A trajetória dessa literatura remete ao pe- ríodo em que se popularizou, na Europa, o uso da impressão de relatos. Para saber um pouco mais sobre a origem dos gêneros poéticos em versos, é importante que você entenda o contexto de produção e circulação desses textos. Literatura_popular_U2_C04.indd 35 21/09/2016 14:45:31 Quando falamos em literatura, muitas vezes temos em mente aquela pro- duzida por escritores famosos, obras ricamente editadas e vendidas em livra- rias ou comércio especializado. No entanto, juntamente à tradição literária erudita, uma outra, popular, de origem oral, “não oficial”, tem deixado sua marca ao longo dos tempos. Seja pela forma de divulgação, seja pelo conteúdo – sempre envolvente e renovado –, seja pelas capas com títulos chamativos e gravuras expressivas, a literatura de cordel ganha cada vez mais apreciadores. Em vez de ser esque- cido ou superado por novas tecnologias da comunicação, esse tipo de literatura consolidou seu espaço e tem despertado a curiosidade do meio acadêmico. Xilogravura é uma impressão iconográfica obtida a partir de uma técnica de gravura entalhada em relevo sobre madeira, uma espécie de carimbo. As xilogravuras cos- tumam estar associadas à literatura de cordel. Estampam as capas dos folhetos e cons- tituem mais um atrativo ao seu consumo. Figura 1. Exemplo de xilogravura. Fonte da imagem: jottafernandes / Shutterstock.com Muitos poetas populares, que usavam sua voz e sua memória para contar histórias e causos, passaram a grafar essas composições, com o intuito de registrar suas produções e divulgá-las a um número maior de Literatura popular36 Literatura_popular_U2_C04.indd 36 21/09/2016 14:45:31 http://shutterstock.com/ interessados. Esses folhetos constituíam uma forma barata e acessível de literatura, atingindo muitos leitores. Para os artistas, representavam um meio extra de ganhar dinheiro. O público a quem se destinam esses textos é composto, em geral, por pes- soas de classes mais humildes, semialfabetizadas, muitas vezes. Não é raro que essas obras sejam o primeiro (ou principal) acesso à literatura para os leitores em formação. No Brasil, a literatura de cordel pode ser vista e adquirida em vários lo- cais, desde cidades do interior até grandes centros urbanos, ou mesmo na in- ternet. Porém, sua origem e maior consolidação está no Nordeste. Tal fato tem fundo histórico e remete às condições sociais da própria história da região. Os serões e os encontros para ouvir e contar histórias eram comuns nas varandas das fazendas de gado, nos engenhos e na roça. Esse costume decorre da tradição ibérica dos romances de cavalaria. Em um país como o Brasil, cuja taxa de analfabetismo sempre foi significativa, a leitura coletiva, ou mesmo a contação de histórias, tinha espaço garantido nesses locais. As histórias, portanto, envolviam temas vinculados ao dia a dia do povo, ao trabalho com o gado, às lutas entre famílias, às festas, aos períodos de seca e até à presença de cangaceiros e bandidos. Tudo era assunto para as histórias. Por tratarem de elementos do cotidiano e práticas sociais compartilhadas por muitos, as narrativas ganhavam fama, sendo recontadas e reinventadas até se tornarem parte de uma tradição. Nesse contexto, a figura de cantores e contadores de histórias vai se con- solidando. Esses artistas ambulantes frequentavam as fazendas, as feiras, di- vulgavam as notícias, envolviam-se em disputas orais de trovas, improvisos e repentes. Essa tradição, inicialmente oral, vai se fixando nesses livretos e, assim, adquire uma nova via de acesso ao público. Consolida-se aí uma cul- tura da voz, constituída a partir dos versos desses artistas, que dão origem a uma literatura com traços marcantes e bem peculiares. Os interessados em narrativas em versos, além de manusear os folhetos e escolher aquele cujo tema mais agrade, têm a oportunidade de ouvir os versos cantados pelo próprio poeta. Como você pode perceber, esse é um privilégio dificilmente encontrado em outros gêneros literários. 37Gêneros poéticos (romance, cantoria e folheto) Literatura_popular_U2_C04.indd 37 21/09/2016 14:45:31 Romance, cantoria e folheto No século XX, a partir dos anos 1930, a literatura de cordel se consolida no Brasil. Porém, com o tempo e com as mudanças sociais e culturais, passa por transformações importantes. Os primeiros folhetos abordavam as histórias tradicionais sobre reis e príncipes, as lendas, as histórias de animais. Em geral, esses temas eram co- nhecidos da tradição oral e recebiam uma versão escrita, em cordel. Com o passar dos anos, assuntos do cotidiano nordestino, como a seca, o cangaço, o progresso e a política, vão ganhando espaço. Até mesmo o surgimento da televisão teve seu papel na literatura de cordel: por um lado, conquistou uma parte do público do gênero; por outro, serviu de tema e inspiração para os poetas, que reescreviam as tramas das novelas em formato de cordel. Mas o que se manteve mais ou menos do mesmo jeito ao longo de toda essa história foi o modo de transmissão e divulgação. Junto com o texto impresso em livretos, está o poeta, que divulga sua arte declamando trechos de suas histórias e fazendo propaganda de seu trabalho. É fundamental entender a relação entre cantadores e poetas. Cantadores são aqueles artistas que se dedicam a improvisar ou declamar suas histórias, sem o auxílio do papel, ou mesmo partindo do texto escrito. Costumam andar pelo sertão, pelas fazendas, pelas feiras, declamando textos próprios ou de ou- tros poetas. Muitas vezes, envolvem-se em desafios, ou repentes, competindo verbalmente com outro artista popular, colocando em evidência sua capaci- dade de improvisar e rimar. Já os poetas populares compõem as histórias, mas não costumam ser repentistas. Sua arte está ligada à escrita do texto. Caso não sejam alfabeti- zados, ditam suas obras a alguém que faça o registro. Os poetas podem ou não ter sua própria tipografia. Alguns vivem de vender folhetos. Outros fazem disso uma atividade paralela. Leandro Gomes de Barros (1865-1918) foi um dos pioneiros da literatura de cordel no Brasil. Seus primeiros impressos começaram a circular em 1893. Escrevia, imprimia e vendia os próprios folhetos. Teve grande sucesso nessa arte. Com mais de 240 folhetos publicados e milhões de cópias vendidas, lançou as bases para seus seguidores. Atualmente, seus textos estão reunidos em coletâneas, mas ainda é possível encontrá-los no formato de livretos. Literatura popular38 Literatura_popular_U2_C04.indd 38 21/09/2016 14:45:31 Uns e outros produzem textos narrativos em versos rimados, recurso formal que facilita a memorização. E todos eles fazem de sua arte uma ex- pressão da cultura popular, de seu modo de viver e de pensar. Para fins didáticos, você pode dividir a literatura de cordel em dois seg- mentos: os romances e os folhetos, propriamente. Os romances nada mais são do que histórias divulgadas em folhetos também. No entanto, recebem uma nomenclatura própria porque contemplam as narrativas ficcionais, em geral de origem europeia, como História da Donzela Teodora, O pavão misterioso e Carlos Magno e os 12 pares de França. Em seus enredos, há a presença do maravilhoso e a referência à cultura medieval. Em termos de extensão, possuem entre 16 e 64 páginas. Ou seja, são muito maiores do que os folhetos tradicionais. Nos séculos XVII e XVIII, no Brasil, circulavam grandes edi- ções portuguesas de livros que reuniam romanceiros europeus. A hipótese é que esses romances eram lidos e depois recontados e, então, passaram a ser novamente escritos (já com adaptações) em versões menores – nos folhetos. A palavra romance data do início da Idade Média (em torno do século IX). Referia-se a um gênero literário popular, escrito em romanço, que era uma língua formada pela mistura entre o latim (até então a língua de prestígio) e variantes de línguas locais na Europa. Essa língua é que vaidar origem às línguas neolatinas, como o português, o italiano, o espanhol. Nessas histórias em língua popular, narravam-se os amores entre camponeses, além de suas atividades diárias, em oposição ao gênero literário clássico, que era a epopeia, poema narrativo que contava as histórias de heróis. Sob a nomenclatura de folhetos, há poemas narrativos de diversos temas: notícias, causos humorados, adivinhas, fatos históricos, histórias do Nor- deste, o ciclo do gado, personalidades do imaginário popular, superstições. A extensão pode variar de oito a 48 páginas. Nesses folhetos, você consegue perceber a criatividade e a riqueza de composições possíveis. As cantorias, que podem tematizar o próprio ato de compor versos e as ha- bilidades do poeta, estão associadas à divulgação tanto dos romances quanto da diversidade de tópicos contemplados nos folhetos. O cantador é, assim, descendente dos aedos gregos, dos trovadores medievais, e faz uma espécie de registro cantado da sociedade em que se insere. 39Gêneros poéticos (romance, cantoria e folheto) Literatura_popular_U2_C04.indd 39 21/09/2016 14:45:32 Os aedos eram artistas da Grécia Antiga. Eles cantavam epopeias acompanhados de instrumentos musicais. Os trovadores medievais, por sua vez, declamavam cantigas. Eles atuavam especialmente no Sul da França, durante a Idade Média. A palavra em verso e voz Como você leu há pouco, os temas e os meios de produção e divulgação da literatura de cordel são diversos. No entanto, sua forma segue alguns padrões bem característicos, independentemente de o texto ser produzido para ser de- clamado ou para ser lido. Sabemos que os primeiros textos literários narrativos foram escritos em verso. Esse recurso evidencia uma estreita relação entre a oralidade e a me- morização dos fatos. E as quadras (estrofes de quatro versos) são a forma mais popular de métrica (de mais fácil fixação na memória). O grande poeta português Fernando Pessoa escreveu um livro chamado Quadras ao gosto popular, em que reproduz o estilo popular desse tipo de mé- trica, associado, muitas vezes, a temas do cotidiano. Veja uma dessas quadras: A caixa que não tem tampa Fica sempre destapada Dá-me um sorriso dos teus Porque não quero mais nada. Com rimas simples e sete silabas poéticas, o poeta destaca a importância desse modo de fazer versos ao estilo popular. Ainda que as quadras sejam comuns em adivinhas e provérbios, no cordel predominam as sextilhas (estrofes de seis versos). Em alguns casos, podemos encontrar 10 versos por estrofe (décimas). Em geral, são sete sílabas poéticas. Mas como algumas formas são improvisadas, isso não é tão rígido assim. O mais importante, porém, nos versos narrativos da literatura de cordel, em quatro, seis ou 10 estrofes, é o ritmo do verso, que nem sempre segue um rigor métrico, mas sempre prevê o ritmo das rimas. Assim, nas cantorias, por exemplo, não há uma música feita para aqueles versos e, muitas vezes, o poeta desafina ou não tem boa voz. O que importa mesmo é o ritmo do verso. Perceba isso neste trecho de História da Donzela Teodora, de Leandro Gomes de Barros: Literatura popular40 Literatura_popular_U2_C04.indd 40 21/09/2016 14:45:32 Caro leitor escrevi Tudo que no livro achei Só fiz rimar a história Nada aqui acrescentei Na história grande dela Muitas coisas consultei. Nem todos os versos têm rima, porém há certo ritmo, conquistado pelo nú- mero de palavras nos versos, pela ordem nas palavras, por algumas inversões (“história grande”). Os diálogos também são organizados de maneira a integrar o ritmo dos versos. Observe isso em outro trecho do mesmo texto de Leandro Gomes de Barros: O sábio disse: – Donzela Tens falado muito além Me diga que condições O homem no mundo tem? Disse a donzela: – Tem todas Para o mal e para o bem. (BARROS, 2004, p. 78-79) Nos dois trechos (assim como no restante da história), os versos 2, 4 e 6 rimam. Você também pode notar certa pausa interna nos versos: pelo uso do tra- vessão ou pela disposição dos sons consonantais em relação aos sons vocálicos. O mesmo ritmo e estratégias semelhantes são percebidos nos versos de outro poeta, Cícero Vieira da Silva, no folheto Os martírios do nortista via- jando para o Sul: A carestia do Norte Vivente nenhum aguenta Cada dia que se passa O custo da vida aumenta Por isso o pai de família Grande sacrifício enfrenta. (MEYER, 1980, p. 79) É realmente incrível constatar a grande riqueza de temas, a capacidade de adaptação e versificação e o talento desses poetas orais. Eles são incansáveis divulgadores de uma cultura em contínua transformação e em sintonia com o seu tempo e a sua gente. 41Gêneros poéticos (romance, cantoria e folheto) Literatura_popular_U2_C04.indd 41 21/09/2016 14:45:32 1. O que o termo cordel significa? a) O estilo musical associado à literatura, remetendo às cordas do violão. b) Um termo de origem portuguesa de compreensão pouco precisa. c) A simbologia das cordas que amarram um conjunto de folhetos de mesmo tema ou mesmo poeta. d) Uma referência à corda onde os folhetos são fixados para expo- sição e venda ao público. e) Um sinônimo de poesia oral, de divulgação exclusiva via cantoria. 2. “Compõem um conjunto de poemas narrativos em verso que referem histórias tradicionais de origem europeia com adaptações brasileiras”. A que essa definição se refere? a) A toda a literatura de cordel. b) Ao romance, um estilo de litera- tura de cordel. c) A qualquer expressão literária que trate de amor. d) Aos folhetos do ciclo do gado no Brasil. e) A repentes e desafios improvi- sados. 3. Qual a opção que melhor representa a interpretação destes versos de João Ferreira Lima? – Boa noite seu Azulão Atrás de quem eu andava, Há tempo que procurava Pelas zonas do sertão Chegou hoje a ocasião, Que desfruto o meu destino Sou o Borborema ferino, Que gloso por linha reta Eu faço medo a poeta Como boi faz a menino – Sou Benedito Azulão Da Paraíba do Norte, troco a vida pela morte Volto o que for de razão Pego o curisco com a mão Deixo o fogo apagado Quando estou aperriado, No debate mais tirano, Mergulho no oceano, Vou sair do outro lado. (PROENÇA, 1986, p. 286) a) Evidencia-se, nesses versos, um tema tradicional do cordel: a dis- puta de versos entre dois poetas. Cada um a seu modo demonstra suas habilidades de rimar. b) Nota-se uma comparação entre os diferentes temas presentes na literatura de cordel, desde os mais ficcionais até os mais próximos do cotidiano. c) Tem-se um exemplo de como a literatura de cordel necessita da escrita para existir, já que os versos são claramente produto de uma reflexão autoral individual. d) As rimas não são perfeitas, o que compromete o ritmo dos versos e denota pouca habilidade do poeta. e) O uso de travessões indicando diálogos é um recurso pouco utilizado na literatura de cordel, já que o poeta assume o papel de narrador e não costuma dar voz às “personagens”. 4. Sobre a divulgação da literatura de Literatura popular42 Literatura_popular_U2_C04.indd 42 21/09/2016 14:45:32 cordel, assinale a alternativa correta. a) A sua principal fonte é a cantoria, em que um grupo de cantores narra os versos de cordel e, assim, recebe algum dinheiro. É uma produção literária escrita para ser cantada. b) Os folhetos, em sua maioria, são ditados pelos poetas, que não possuem domínio da escrita. Portanto, em relação ao cordel, temos uma produção compar- tilhada, ou seja, envolve quem conta e quem escreve o texto. c) Está associada a um sistema de impressão tipográfica quase artesanal, em geral feita pelos próprios artistas, prática que se difundiu com a popularização das prensas. d) As xilogravuras que ilustram as capas dos folhetos constituem uma estratégia das grandes editoras para conferir um aspecto mais artístico a essas obras, que, sem essa arte pictórica, não inte- ressariam ao público. e) O cordel desenvolveu-se apenas no Brasil, como resultado de uma literaturaproduzida entre ile- trados e pobres, que não tinham condições nem de aprender as letras, nem de adquirir livros. 5. A vivacidade e a criatividade são elementos próprios da literatura de cordel. Os poetas são sensíveis àquilo que acontece à sua volta. Tudo pode ser transformado em versos. Assinale a alternativa que contém nos versos um exemplo dessa originalidade. a) Eu vou contar uma história De um Pavão Misterioso Que levantou voo na Grécia Com um rapaz corajoso Raptando uma condessa Filha dum conde orgulhoso. (SILVA, J. M. O pavão misterioso. In: MEYER, 1980, p.14.) b) No reino da Pedra Fina Havia uma princesa Misteriosa, encantada, Uma obra da natureza Com ela duas irmãs Que eram flor da beleza. (ATHAYDE, J. M. In: MEYER, 1980, p. 30.) c) A Donzela respondeu: – Com licença do El-rei Tudo que me perguntares Aqui te responderei Com brevidade e acerto Tudo vos explicarei. (BARROS, L. G. História da Donzela Teodora. In: BARROS, 2004, p.62.) d) Deixemos agora a terra Num clima de confusão Para falar de Getúlio Na celestial mansão Como foi seu julgamento Vamos dar a descrição. (CAVALCANTE, R. Getúlio Vargas no céu. In: PROENÇA, 1986, p. 367.) e) Eram doze cavalheiros Homens muito valorosos Destemidos e animosos Entre todos os guerreiros Como bem, fossem Oliveiros Um dos pares de fiança Que sua perseverança Venceu todos os infiéis Eram uns leões cruéis Os doze pares de França. (BARROS, L. G. A batalha de Oliveiros com Ferrabraz. In: MEYER, 1980, p. 72.) 43Gêneros poéticos (romance, cantoria e folheto) Literatura_popular_U2_C04.indd 43 21/09/2016 14:45:32 BARROS, L. G. História do boi misterioso. São Paulo: Hedra, 2004. MEYER, M. (Org.). Autores de cordel: literatura comentada. São Paulo: Abril Educação, 1980. PESSOA, F. Quadras ao gosto popular. 4 ed. Lisboa: Ática, 1979. Leituras recomendadas CASCUDO, L. C. Vaqueiros e cantadores. São Paulo: Global, 2005. PROENÇA, M. C. Literatura popular em verso (antologia). Belo Horizonte/São Paulo: Ita- tiaia/EDUSP, 1986. Literatura popular44 Literatura_popular_U2_C04.indd 44 21/09/2016 14:45:32 Encerra aqui o trecho do livro disponibilizado para esta Unidade de Aprendizagem. Na Biblioteca Virtual da Instituição, você encontra a obra na íntegra. LITERATURAS AFRICANAS EM LÍNGUA PORTUGUESA Gustavo Henrique Rückert Catalogação na publicação: Poliana Sanchez de Araujo – CRB 10/2094 F722l Forli, Cristina Arena. Literaturas africanas em língua portuguesa / Cristina Arena Forli, Gustavo Henrique Rückert ; revisão técnica: Gabriela Semensato Ferreira. – Porto Alegre : SAGAH, 2017. 132 p. : il. ; 22,5 cm. ISBN 978-85-9502-106-8 1. Literatura africana – Língua portuguesa. 2. Qualidade ambiental. I. Rückert, Gustavo Henrique. II. Título. CDU 821.134.3(6) Revisão técnica: Gabriela Semensato Ferreira Mestra em Letras com ênfase em Literatura Comparada (UFRGS) Graduada em Licenciatura em Letras (UFRGS) Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_Iniciais_Impressa.indd 2 03/07/2017 14:41:17 Literatura de prosa Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: n Identi� car as especi� cidades dos textos em prosa nas literaturas afri- canas em língua portuguesa. n Reconhecer a importância da oralidade e da escrita para a narrativa africana. n Sintetizar a contribuição de Luandino Vieira, Manuel Ferreira e Luís Bernardo Honwana para a construção de um estilo próprio na prosa literária africana em língua portuguesa. Introdução Certamente, você já ouviu falar bastante acerca da literatura de prosa no ocidente. Contos, novelas e romances franceses, ingleses, russos, alemães, italianos e estadunidenses são presença frequente nas prateleiras de estudiosos e interessados em literatura. No entanto, você já parou para pensar nas características que a prosa assume na África? Quais escritores e obras foram fundamentais para a consolidação de um estilo africano de prosa em língua portuguesa? Neste texto, você irá explorar essas questões. A prosa africana entre a letra e a voz Narrar é uma habilidade que acompanha a humanidade desde o domínio da linguagem. A partir da exposição de signos em sequência (sejam eles dese- nhos ou palavras), adquirimos a capacidade de contar histórias (sejam elas reais ou fi ctícias). Contando histórias, passamos a organizar a compreensão temporal de nossas vidas, e consequentemente, carregá-las de sentidos. Por isso, a narrativa tornou-se aspecto fundamental da história humana e está presente em diversos textos do nosso cotidiano: fi lmes, notícias de jornais ou telejornais, mitos religiosos, textos historiográfi cos, relatórios, depoimentos, casos populares, anedotas e tantos outros. Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U2_C05.indd 74 03/07/2017 14:30:39 Na literatura ocidental, as narrativas iniciaram sua trajetória sendo escritas em verso nas famosas epopeias, como a Ilíada e a Odisseia, de Homero. Até a Idade Média, as narrativas mantiveram-se predominantemente em versos, pois essa estrutura favorecia a memorização dos textos – que tinham como destino a declamação em reuniões públicas. No entanto, já havia a manifestação de algumas narrativas em prosa, ou seja, dispostas em parágrafo de maneira contínua, sem a marcação de ritmos regulares. É na modernidade, contudo, com o advento da imprensa e a popularização do hábito da leitura individual e silenciosa, que as narrativas literárias passaram a ser escritas predominantemente em prosa. Assim, os escritores passaram a escrever romances e coletâneas de contos que seriam posteriormente publicados e lidos em grande escala. Até os dias atuais, a prosa tem sido o formato preponderante das narrativas literárias. Quando as narrativas literárias ocidentais chegaram em solo africano sob a forma moderna do livro impresso, encontraram outra tradição narrativa no coti- diano das populações: a contação oral de histórias. Difundido nas mais diversas culturas da África, esse hábito é fundamental na organização da vida social. É por meio de histórias contadas pelos mais velhos que se ensinam as regras morais de uma sociedade, os seus princípios religiosos, a sua história, os seus hábitos etc. Passaram, então, a conviver duas formas narrativas no continente: a narrativa escrita (moderna e trazida pelo colonizador), e a narrativa oral (tradição milenar local). Apesar de alguns escritores africanos, como Castro Soromenho, autor do clássico Terra morta (1949), apropriarem-se da linguagem e das técnicas narrativas ocidentais para escrever sobre o cotidiano africano de língua portuguesa, é justa- mente a união das duas formas que caracteriza o estilo africano de prosa literária. Desse modo, a narrativa literária ocidental e a narrativa oral africana são as principais influências das literaturas de prosa nos países africanos de língua portuguesa. A caracterização de um estilo próprio a partir desses ele- mentos se dá, principalmente, por meio de três escritores que você conhecerá neste texto: Luandino Vieira, Manuel Ferreira e Luís Bernardo Honwana. No início da década de 1960, intensificaram-se os movimentos de independência em países como Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. Além da luta armada, parte fundamental da empreitada anticolonial era a busca por uma cultura que sintetizasse o sentimento nacional. É nesse contexto que os autores ressaltados inovaram ao consolidar características próprias à literatura de prosa escrita em seus países. 75Literatura de prosa Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U2_C05.indd 75 03/07/2017 14:30:39 Luandino Vieira Você já deve ter se perguntado: por que os escritores de países colonizados por Portugal optam por escrever em língua portuguesa? Em discussão semelhante, o escritor queniano Ngũgĩ wa Thiong’o (1986) defendeu que as literaturas africanas não deveriam ser escritas nas línguas coloniais, e simnas línguas locais. Se pensarmos no contexto específi co da colonização portuguesa, ve- remos que, apesar da língua do colonizador ter sido imposta como língua ofi cial, não houve preocupação com a escolarização dos colonizados. Dessa forma, as sociedades coloniais eram formadas por pessoas que possuíam diferentes etnias e, consequentemente, diferentes línguas que não o português. Por esse motivo, apropriar-se da língua portuguesa foi fundamental para a construção da unidade entre as diferentes etnias e, posteriormente, para luta contra a colonização. No campo da literatura, um dos principais nomes a resolver o dilema estético da língua de expressão do africano colonizado por Portugal foi José Vieira Mateus da Graça, que assumiu o nome de escrita de Luandino Vieira. Luandino, que você pode ver na foto da Figura 1, nasceu em 1935 em Portugal. No entanto, aos três anos mudou-se para a periferia de Luanda com os pais. Figura 1. Luandino Vieira. Fonte: Fenske (2016). Tendo crescido em Angola, Luandino assumiu-se angolano e passou a colaborar com a luta de independência. A partir da década de 1950, publicou Literaturas africanas em língua portuguesa76 Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U2_C05.indd 76 03/07/2017 14:30:40 textos em jornais e revistas que discutiam a questão do país, amadurecendo, assim, uma das escritas que marcaria a produção em prosa na África de língua portuguesa. Em 1963, o autor publica Luuanda, coletânea de três contos sobre a vida cotidiana nos musseques (termo local para definir as zonas periféricas) da capital angolana (VIEIRA, 2004). O impacto dessa publicação é tão grande que em 1965 a coletânea é premiada pela Sociedade Portuguesa de Escritores, tendo sido a primeira obra literária africana a receber premiação portuguesa. O reconhecimento da originalidade da prosa de Luandino (à época prisioneiro político) gerou perseguição e censura por parte da ditadura salazarista. Devido à sua posição política a favor da libertação de Angola, Luandino Viera foi detido pela Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE) e condenado a 14 anos de prisão. Após cumprir os primeiros anos em Luanda, foi transferido para a Colónia Penal do Tarrafal (Cabo Verde) – campo de concentração para onde eram enviados os principais dissidentes políticos da ditadura salazarista. No Tarrafal, Luandino ficou preso por oito anos. Grande parte de sua produção literária foi escrita durante esse período de reclusão. Mas, afinal, o que havia de tão perturbador ao sistema colonial em Luuanda? A obra apresenta três contos: “Vavó Xixi e seu neto Zeca Santos”, “Estória do ladrão e do papagaio” e “Estória da galinha e do ovo” (VIEIRA, 2004). Os três contos têm localização espacial na periferia de Luanda e apresentam enredos baseados no cotidiano de pessoas humildes. O primeiro conto trata dos dilemas do jovem Zeca, que vive junto de sua avó. Ao mesmo tempo em que o protagonista faz suas descobertas amorosas, descobre também a dura realidade social em que está inserido. Já o segundo conto se ambienta em uma prisão da capital, na qual personagens como o angolano Xico Futa e o cabo-verdiano Lomelino dos Reis conversam sobre os motivos que os levaram à prisão. Surgem assim detalhes sobre a vida cotidiana, reflexões metanarrativas e a compreensão da realidade colonial. Lomelino, por exemplo, casado e com dois filhos, explica que roubava patos porque não era permitido a ter um trabalho honrado. Por fim, o último conto da coletânea apresenta a problemática de um caso popular em uma comunidade. A galinha de nga 77Literatura de prosa Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U2_C05.indd 77 03/07/2017 14:30:40 Zefa botou um ovo no quintal de Bina, que lhe dava milho. Agora a quem deveria pertencer o ovo? Após consulta popular a diversos personagens, a polícia havia tomado para si não só o ovo como a galinha. É somente com a sagacidade das crianças do local que a galinha é recuperada. Dessa forma, em alusão figurativa à questão colonial, a comunidade compreende que deve se unir para que as disputas internas não favoreçam a exploração externa daquilo que pertence a elas. Para contar essas histórias, ou estórias, como o livro propõe, Luandino recorre a elementos característicos dos narradores orais da cultura local. Em “Estória da galinha e do ovo” (VIEIRA, 2004), por exemplo, antes de iniciar a narração propriamente dita, o narrador contextualiza: “Estes casos passa- ram no musseque Sambizanga, nesta nossa terra de Luanda”. Ao encerrar a narração, afirma: “minha estória”. “Se é bonita, se é feia, vocês é que sabem. Eu só juro não falei mentira e estes casos passaram na nossa terra de Luanda.” (VIEIRA, 2004, p. 152). O narrador literário representa, portanto, a figura do narrador oral e encena a situação de interlocução em que apresenta a narrativa à comunidade. A reiteração de que os casos se passaram na terra de Luanda (com direito a pronome possessivo), por fim, ainda cria o elo entre narrativa e comunidade. No que diz respeito à linguagem, o narrador narra em língua portuguesa. No entanto, não utiliza a língua conforme a gramática do colonizador, optando por utilizar a língua portuguesa conforme é utilizada por pessoas de comunidades periféricas de Luanda, com forte influência do quimbundo – uma das línguas locais. Assim, a presença do quimbundo altera o português em todas as suas estruturas: lexicais, morfológicas e sintáticas, criando uma estética única e que remete à fala dos sujeitos populares. A epígrafe da obra, por exemplo, é retirada de um conto popular local e citada na língua original: “Mu’xi ietu ia Luuanda mubita ima ikuata sonii...” (VIEIRA, 2004, p. 9). Em tradução, “[...] na nossa terra de Luanda acontecem coisas que envergonham...”. É dessa forma que Luandino Vieira (2004) subverte o colonizador em sua própria língua. O tão celebrado patrimônio português passa, assim, a ser visto como um aspecto que não é exclusivo da cultura lusitana. Faz parte também de tantos outros povos que o modificam à sua maneira. Luandino resolve, com isso, o principal problema estético das literaturas africanas em língua portuguesa: como ser africano escrevendo em português? É por isso que Luuanda (VIEIRA, 2004) é uma das mais fundamentais obras em prosa dos países africanos colonizados por Portugal, tornando-se referência obrigatória para as gerações posteriores. Na Figura 2, você pode observar a capa de uma das edições de Luuanda. Literaturas africanas em língua portuguesa78 Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U2_C05.indd 78 03/07/2017 14:30:40 Figura 2. Edição rara de Luuanda, impressa clandestinamente em Angola. Fonte: Martins (2015). Manuel Ferreira Manuel Ferreira, foi um nome de importância ímpar para a consolidação das literaturas africanas em língua portuguesa, veja a foto na Figura 3. Assim como Luandino, Ferreira nasceu em Portugal –especifi camente em 1917. Expedicionário do exército português, ele foi enviado para diversas colônias, como Angola e Goa, na Índia. Apesar da proximidade que desenvolveu com as demais colônias, foi em Cabo Verde que afl orou seu sentimento de pertença. Lá, participou ativamente de movimentos intelectuais e constituiu família com a também escritora Orlanda Amarílis. É a partir de suas experiências no arquipélago africano que escreveu Hora di bai (1962), um dos romances que revela ao mundo o drama insular vivido pelos habitantes locais. 79Literatura de prosa Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U2_C05.indd 79 03/07/2017 14:30:41 Figura 3. Manuel Ferreira. Fonte: Blog da Rua Nove (2016). Além de ser um dos principais ficcionistas das literaturas africanas em língua portuguesa, Manuel Ferreira é um dos principais críticos dessas literaturas. Seu estudo Literaturas africanas de expressão portuguesa, de 1977, é uma das primeiras historiografias literárias sobre essas literaturas. Como professor da Faculdade de Letras da Universidadede Lisboa, Ferreira também foi pioneiro na década de 1970, introduzindo a disciplina de literaturas africanas na instituição, uma das principais de Portugal. Em virtudes das peculiaridades de Cabo Verde, sua história e sua cultura são bastante distintas das dos demais países africanos colonizados por Por- tugal. Geograficamente, é importante considerar que o país se situa fora do continente, uma vez que é constituído por um arquipélago de dez ilhas. Essas ilhas, pequenas, montanhosas, pedregosas e com alta salinidade, são pouco receptivas à vida. Quando o colonizador chegou ao local, não havia populações lá. A população cabo-verdiana foi formada a partir do abandono de escravos Literaturas africanas em língua portuguesa80 Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U2_C05.indd 80 03/07/2017 14:30:41 rebeldes e doentes no local e do degredo de sujeitos indesejados em Portugal. Dessa forma, a cultura cabo-verdiana apresenta fortes traços decorrentes de suas peculiaridades: migração, solidariedade, receptividade, hospitalidade, criatividade e musicalidade. Em Hora di bai, Manuel Ferreira (1980) procurou dar conta justamente dessas questões, em uma prosa que fosse representativa do povo de Cabo Verde. O título da obra, em crioulo local, indica essa preocupação, seja na questão linguística, seja na questão temática da partida, tão comum à vida cabo-verdiana. O romance pode ser divido em dois grandes movimentos. No primeiro, os habitantes das ilhas, atingidos pela miséria, pela fome e pelo desemprego, veem-se obrigados a migrar para tentar sobreviver. No segundo, cresce em meio ao povo a percepção de que não só as adversi- dades geográficas são responsáveis pela miséria, mas também o descaso do sistema colonial português. Assim, passa a prevalecer o sentimento de antievasão e luta por melhores condições de vida no arquipélago. Os dois movimentos da obra também correspondem a dois movimentos intelectuais da história do país, o movimento Claridade (evasionista) e o movimento Certeza (antievasionista). Apesar de não buscar representar na linguagem de seu narrador a fala da população local, como Luandino, Ferreira (1980) também traz impor- tantes inovações à prosa africana em língua portuguesa. Um dos aspectos que chama atenção é a frequente citação de canções populares locais – as chamadas mornas. Assim, a voz narrativa vai sendo formada também pela voz da sabedoria popular e de seu ritmo, tão bem expressos nesse gênero musical. No entanto, é na questão do foco narrativo que está a principal contribuição do autor. O foco da obra acompanha o trânsito de personagens entre as ilhas cabo-verdianas. No entanto, a partir da referência das histórias dessas personagens, tão acostumadas ao trânsito, é constante a menção às demais colônias e à metrópole. Dessa forma, o próprio foco narrativo da obra remete ao eterno dilema ir/ficar dos habitantes locais, criando assim a perspectiva de uma narrativa que ora enfatiza o movimento ora a imo- bilidade. Dessa maneira, Manuel Ferreira contribui decisivamente para a prosa literária africana, com a característica marcadamente cabo-verdiana do ponto de vista cambiante entre a população local. A Figura 4 apresenta a capa da primeira edição de Hora di bai. 81Literatura de prosa Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U2_C05.indd 81 03/07/2017 14:30:41 Figura 4. Primeira edição de Hora di bai. Fonte: Blog da Rua Nove (2010). Luís Bernardo Honwana No prefácio da primeira edição de Nós matámos o Cão-Tinhoso, Luís Bernardo Honwana (2008, p. 9) afi rma: “Não sei se realmente sou escritor. Acho que apenas escrevo sobre coisas que, acontecendo à minha volta, se relacionam intimamente comigo.”. A coletânea de contos em questão é a única obra publicada pelo autor, que anteriormente havia redigido textos esparsos em jornais e revistas. No entanto, apesar de não ter se dedicado a outras obras, pode-se afi rmar que Honwana, veja a foto na Figura 5, é um escritor bastante decisivo nas literaturas africanas em língua portuguesa. Literaturas africanas em língua portuguesa82 Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U2_C05.indd 82 03/07/2017 14:30:41 Figura 5. Luís Bernardo Honwana. Fonte: Honwana... (2015). Nascido em Lourenço Marques (após a independência denominada Maputo), em 1942, o moçambicano Luís Augusto Bernardo Manuel passou a infância em Moamba. Após tornar à capital para estudar e trabalhar como jornalista, engajou-se no projeto de independência da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO). Devido à sua participação nos ideais independentistas, passou três anos preso. Seu talento literário foi percebido pelo poeta José Craveirinha, que incentivou a produção literária do seu conterrâneo. Assumindo o nome literário de Luís Bernardo Honwana, publicou em 1964 seus contos sob o título “Nós matámos o Cão-Tinhoso”. Logo após sua publicação pela Sociedade de Imprensa de Moçambique, em 1964, a coletânea Nós matámos o Cão-Tinhoso foi apreendida pela PIDE. Apesar de proibida de circular em Portugal e em suas colônias portuguesas, a obra logo se tornou conhecida internacionalmente por conta de sua tradução para o inglês, publicada em 1969, como você pode ver na Figura 6. 83Literatura de prosa Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U2_C05.indd 83 03/07/2017 14:30:42 Figura 6. Edição em língua inglesa de Nós matámos o Cão-Tinhoso. Fonte: Kinna (2011). Nós matámos o Cão-Tinhoso é composto por sete contos. Diferentemente de Manuel Ferreira e, sobretudo, Luandino Vieira, Honwana (2008) não explora tanto a relação do português com as línguas locais em sua linguagem. Com um estilo bastante diferente desses autores, seus contos primam por uma narrativa objetiva, econômica e bastante visual. O principal tema abordado em suas histórias é o preconceito racial na sociedade colonial de Moçambique. Para isso, seus contos focalizam o cotidiano de personagens de diferentes posições sociais. Não raro, são crianças que assumem o foco ou até a voz narrativa. Dessa forma, por meio do desejo de descoberta do olhar infantil, revela-se o abismo social alimentado pelo preconceito racial do país, então colônia portuguesa. Entre os contos (HONWANA, 2008), há especial destaque ao conto homô- nimo ao livro. A narrativa tem como narrador Ginho, menino negro e pobre. Apegado ao Cão-Tinhoso – como fora apelidado um cão velho, doente e de olhos azuis –, Ginho se depara com a vontade do veterinário Duarte de matar o animal. Duarte convence a turma de crianças da localidade a matar o animal, instalando, dessa forma o conflito do protagonista, que vive o dilema de não querer matar o cão e, ao mesmo tempo, não querer ser visto como covarde pelo restante da turma. Para alguns críticos (entre eles se destaca Inocência Mata), o cão representa a própria decadência do colonialismo português, ou seja, apesar da difícil decisão, o contexto apresenta a necessidade de agir com violência para romper os laços coloniais. Já para outros (entre eles se destaca Literaturas africanas em língua portuguesa84 Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U2_C05.indd 84 03/07/2017 14:30:42 Maria Lúcia Dal Farra), o cão representa o ser colonizado, que mal visto pelos poderes coloniais, é marginalizado e violado. O legado Portanto, é de diferentes formas que Luandino Vieira, Manuel Ferreira e Luís Bernardo Honwana exploram as relações entre a moderna narrativa literária ocidental e a tradição oral africana. Luandino (VIEIRA, 2004) subverte a palavra, dando o ritmo da fala das periferias de Luanda a sua escrita. Ferreira (1980) torna a narrativa em prosa migrante em seu foco como o próprio dilema do povo cabo-verdiano. Já Honwana (2008) empresta uma imagem objetiva aos casos de violência racial que afl igem a sociedade de Moçambique. É por marcarem a prosa literária com as cores locais nos anos de 1960 que se tornaram então referência para tantos outros prosadores que marcaram a vida literáriados países africanos de língua portuguesa, como os casos de Abdulai Sila, Boaventura Cardoso, Eduardo Agualusa, Germano Almeida, João Melo, João Paulo Borges Coelho, Manuel Rui, Mia Couto, Orlanda Amarílis, Paulina Chiziane, Pepetela, Ondjaki, Uanhenga Xitu, Ungulani Ba Ka Khosa e tantos outros. 85Literatura de prosa Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U2_C05.indd 85 03/07/2017 14:30:42 BLOG DA RUA NOVE. Manuel Ferreira: Hora di bai. [S.l.]: Literatura Colonial Portuguesa, 2010. Disponível em: <http://literaturacolonialportuguesa.blogs.sapo.pt/5834.html>. Acesso em: 31 maio 2017. BLOG DA RUA NOVE. Manuel Ferreira: Morna. [S.l.]: Literatura Colonial Portuguesa, 2016. Disponível em: <http://literaturacolonialportuguesa.blogs.sapo.pt/tag/cabo+verde>. Acesso em: 31 maio 2017. EVARISTO, C. 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Literatura africana – Língua portuguesa. 2. Qualidade ambiental. I. Rückert, Gustavo Henrique. II. Título. CDU 821.134.3(6) Revisão técnica: Gabriela Semensato Ferreira Mestra em Letras com ênfase em Literatura Comparada (UFRGS) Graduada em Licenciatura em Letras (UFRGS) Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_Iniciais_Impressa.indd 2 03/07/2017 14:41:17 Autores africanos no século XX Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: n Reconhecer as especi� cidades políticas do século XX. n Identi� car os principais autores e obras das literaturas angolana, mo- çambicana e cabo-verdiana do século XX. n Relacionar a obra � ccional de Pepetela aos principais acontecimentos da história angolana do século XX. Introdução O século XX foi repleto de intensas disputas pelo controle político de diversos territórios. Na África, não foi diferente. Angola, Moçambique e Cabo Verde vivenciaram a organização de movimentos revolucionários contra a opressão colonial e as guerras civis pós-independências (no caso dos dois primeiros). Como a literatura desses três países se articula em meio a esses acontecimentos? De que forma os representa? Quem são seus principais autores e obras? Neste texto, você irá estudar os principais autores africanos em língua portuguesa do século XX. Século XX: o século da potência e da fragilidade humanas Em meio aos destroços da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), o fi lósofo judaico-alemão Walter Benjamin (1994, p. 115) escrevia: U N I D A D E 4 Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U4_C07.indd 105 30/06/2017 11:39:25 Uma geração que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos viu- -se abandonada, sem teto, numa paisagem diferente em tudo, exceto nas nuvens, e em cujo centro, num campo de forças de correntes e explosões destruidoras, estava o frágil e minúsculo corpo humano. De fato, o século XX foi um século de traumas na história da humanidade. Se no seu início revelou toda a criatividade humana por meio da ebulição cultural da Belle Époque, do desenvolvimento das grandes metrópoles, dos grandes inventos, como o avião; em sua sequência revelou a sua face mais violenta, com grandes guerras e intermináveis disputas pelo poder. Dessa forma, o século XX é o século das vanguardas artísticas, do desenvolvimento científico e tecnológico, das grandes guerras, dos massacres, dos governos totalitários e dos embates ideológicos. O historiador Eric Hobsbawm define o século XX, marcado de 1914 a 1991 por grandes crises, catástrofes e incertezas, como o século dos extremos. Confira em A era dos extremos: o breve século XX, 1914-1991 (HOBSBAWM, 1995). Quando pensamos o século XX na África, não é diferente. Seu início é marcado pelas disputas territoriais dos colonizadores europeus (um dos motivos desencadeadores da Primeira Guerra Mundial), tráfico ilegal de escravos (mesmo após as abolições), exploração de recursos naturais e massacre de populações revoltosas. Os países africanos que eram colônias portuguesas passaram ainda pelo regime fascista do Estado Novo (comandado em quase sua totalidade por António Salazar); massacres entre colonos e populações locais; despertar de uma consciência política mais unificada; prisões, torturas e perseguições políticas; quase dez anos de luta pela independência; governos totalitários no pós-independência; falência das ideologias europeias em solo africano; e guerras civis impulsionadas pelas potências internacionais da Guerra Fria. Como era de se esperar, diante de um século em que o homem revela tanto a sua potência como a sua fragilidade, em que a vida de um grande estadista é representativa da vida de toda uma nação, e a vida de um simples soldado em campo de batalha é reduzida à inutilidade, a literatura (bem como outras artes) toma para si o papel de humanizar, procurando sensibilizar o leitor a Literaturas africanas em língua portuguesa106 Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U4_C07.indd 106 30/06/2017 11:39:25 partir da experiência individual de cada sujeito histórico. É no conturbado contexto do século XX que as literaturas de Angola, Moçambique e Cabo Verde se consolidam como literaturas nacionais, comprometendo-seaté a última letra com a vida social daqueles que sofreram seus excessos políticos. Literaturas africanas antes das independências O despertar de uma consciência coletiva crítica em relação ao colonialismo português (que, por sua vez, levaria à consciência nacional) é a base da for- mação de um sistema literário em Angola, Moçambique e Cabo Verde. Boa parte dessa consciência começou a se materializar em publicações como a revista Brado literário (1918), de Moçambique; as revistas Claridade (1936) e Certeza (1944), ambas de Cabo Verde; o boletim Mensagem (1948), da Casa dos Estudantes do Império, em Lisboa; e a revista Mensagem – a voz dos naturais de Angola (1951), de Angola. É por meio desses veículos que começaram a se difundir textos de escritores que viriam a ser fundamentais na consolidação dessas literaturas. A seguir, você ver alguns deles. Literatura angolana Em Angola, ganha destaque a publicação do romance Terra morta (1949), de Castro Soromenho. Embora com uma linguagem bastante lusitana, a obra chama a atenção para os confl itos envolvendo a terra e a exploração de mão de obra na vila do Camaxilo. À visão crítica de Soromenho, escritores como o prosador Luandino Vieira e o poeta Agostinho Neto acrescentam uma maior preocupação com uma linguagem que melhor dialogasse com a oralidade local. Nesse sentido, a narrativa de Luandino Vieira foi fundamental às literaturas africanas, pois aproximava a língua portuguesa da oralidade dos musseques (bairros periféricos) em obras como A vida verdadeira de Domingos Xavier (1961), Luuanda (1963) e Nós, os do Makulusu (1974). Já Agostinho Neto, que viria a se tornar o primeiro presidente angolano, publicou diversos poemas esparsos, que utilizavam das perspectivas da ne- gritude e do pan-africanismo para revelar a exploração do negro pelo mundo e, profeticamente, convocá-los à luta pela libertação. Esses poemas foram reunidos posteriormente na coletânea Sagrada esperança (1974). Aos poemas de Agostinho, somaram-se os dos poetas Alda Lara, António Jacinto, Viriato da Cruz, Arlindo Barbeitos, entre outros que, de diferentes formas, defen- deram o fim da exploração dos povos angolanos e a luta pela independência. 107Autores africanos no século XX Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U4_C07.indd 107 30/06/2017 11:39:26 Literatura moçambicana Em Moçambique, o despertar de uma consciência nacional por meio da escrita literária passou fundamentalmente por nomes como Luís Bernardo Honwana, José Craveirinha e Noémia de Sousa. Contista, Luís Bernardo Honwana destacou-se pela antologia de contos Nós matamos o Cão-Tinhoso (1964), na qual se utilizou frequentemente do ponto de vista infantil para denunciar o abismo social e a violência racial na sociedade da então colônia portuguesa. Por meio da poesia, José Craveirinha – em textos reunidos em Xigubo (1964) e em Karingana ua karingana (1974) – e Noémia de Sousa – em textos reunidos posteriormente em Sangue negro (2001) – denunciaram a violência sofrida por homens e mulheres negros no regime colonial e defenderam a importância da luta pela independência. Na defesa dos ideais moçambicanos, somaram-se a eles as vozes dos poetas Rui Knopfli, Rui Nogar e Marcelino Santos, entre outros. Observe abaixo a crítica ao racismo e à exploração da mão de obra no poema “Nin- guém”, publicado inicialmente em Karingana ua karingana, de José Craveirinha (1999, p. 92). Andaimes até ao décimo quinto andar do moderno edifício de betão armado. O ritmo florestal dos ferros erguidos arquitectonicamente no ar e um transeunte curioso que pergunta: – Já caiu alguém dos andaimes? O pousado ronronar dos motores a óleos pesados e a tranquila resposta do senhor empreiteiro: – Ninguém. Só dois pretos. Literaturas africanas em língua portuguesa108 Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U4_C07.indd 108 30/06/2017 11:39:26 Literatura cabo-verdiana Devido às suas particularidades históricas, geográfi cas e culturais, o contexto de consolidação de uma literatura cabo-verdiana no século XX é um pouco diferente dos contextos angolano e moçambicano. No lugar da negritude e da oposição ao colonialismo português, tem-se inicialmente a denúncia das delicadas situações de seca, de fome e de migrações. O primeiro movimento a atentar mais criticamente para essas questões é o surgido da revista Claridade (1936). Manuel Lopes, Baltazar Lopes (que, nos poemas, assinava Osvaldo Alcântara) e Jorge Barbosa, por exemplo, utilizaram tanto da prosa como da poesia para denunciar a experiência do circunstancialismo do homem cabo-verdiano. Encontraram no romance de 30 brasileiro, sobretudo de nor- destinos como Jorge Amado, Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Rachel de Queiroz, o diálogo estético necessário para dar conta do que pretendiam. O romance Chiquinho (1947), de Baltazar Lopes, é considerado um dos textos inaugurais da literatura cabo-verdiana. À criticidade na leitura social dos claridosos, somou-se a denúncia do des- caso colonial e a defesa da independência cabo-verdiana por parte daqueles que passaram a publicar na revista Certeza (1944). Surgiam, assim, nomes como os do poeta Ovídio Martins, que se opunha radicalmente à visão evasionista de seus antecessores, e o do prosador Manuel Ferreira, autor do clássico Hora di bai (1962), romance fundamental na história da literatura cabo-verdiana e que sedimentou a visão anticolonial no arquipélago. Deve-se destacar ainda Orlanda Amarílis, que, apesar de consolidar-se no pós-independência, publicou em 1974 a coletânea de contos Cais-do-Sodré té Salamansa, importantíssima para o despertar de uma consciência nacional por meio da representação do cotidiano local e do cotidiano dos emigrados em Portugal. As literaturas africanas após as independências Como se sabe, as independências dos países africanos colonizados por Portugal (em sua maioria no ano de 1975) não resolveram os problemas oriundos do legado de mais de cinco séculos de exploração. Logo que o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) e o Partido Africano da Indepen- dência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) assumiram o governo, os povos de Angola, Moçambique e Cabo Verde sofreram com inúmeros martírios, entre eles guerras civis financiadas pelas potências da Guerra Fria, governos totali- 109Autores africanos no século XX Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U4_C07.indd 109 30/06/2017 11:39:26 tários, perseguições políticas, burocratização do aparelho estatal, exploração da mão de obra local e dos recursos naturais por indústrias multinacionais, fome, estiagens, entre outros. Dessa forma, a literatura de tom utópico do pré-independência deu lugar à literatura de tom distópico do pós-independência, que apontou o triste con- traste entre o sonho da geração da Casa dos Estudantes do Império e a dura realidade que teimava em assolar os africanos. Em Angola, ganhou destaque o nome de Uanhenga Xitu. Embora com algumas publicações pré-independência, é no pós-independência que esse escritor se consolidou por meio de narrativas despidas de hermetismo literá- rio e bastante próximas do estilo oral da tradição local. É autor de Vozes na sanzala (1976), Maka na sanzala (1979) e Os discursos do mestre Tamoda (1984), entre outros. Os anos de 1980 são marcados pela descrença e pela incerteza denunciadas tanto na prosa quanto na poesia de escritores como Boaventura Cardoso, Manuel Rui e Ruy Duarte de Carvalho. São deles, respectivamente, os clássicos A morte do velho Kipacaça (1987), Quem me dera ser onda (1982) e Ondula, savana branca (1982). Ana Paula Tavares, por sua vez, abor- dou a questão da difícil condição feminina nas sociedades tradicionais. Desatacam-se os poemas de Ritos de passagem (1985) e as crônicas de Sangue da bungavília (1998). No final do século, surgiu ainda a voz do romancista José Eduardo Agua- lusa, que em Estação das chuvas (1996) criticou de maneiracontundente a atuação do MPLA e em Nação crioula: correspondência secreta de Fradique Mendes (1997) transitou entre Portugal, Angola e Brasil do século XIX. Em Moçambique, Ungulani Ba Ka Khosa publicou, em 1987, o romance Ualalapi, cujo enredo se passa no fim do século XIX e evidencia os conflitos entre as sociedades tradicionais e o poder colonial. Na poesia, destacaram-se Eduardo White e Luís Carlos Patraquim. O primeiro é autor de Amar sobre o Índico (1984) e Poemas da Ciência de Voar e da Engenharia de Ser Ave (1992). O segundo, de A inadiável viagem (1985) e Vinte e tal novas formulações e uma elegia carnívora (1992). Em comum a ambos, a poesia ganhou tons mais autorreferenciais e metafóricos. Mia Couto, o grande autor moçambicano pós-independência, ganhou relevância com as coletâneas de contos Vozes anoitecidas (1986) e Estórias abensonhadas (1994) e os romances Terra sonâmbula (1992), A varanda do Frangipani (1996) e Vinte e zinco (1999). Couto deu destaque a temas como a guerra civil, a memória do passado moçambicano e o conflito entre as culturas locais e globais. Literaturas africanas em língua portuguesa110 Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U4_C07.indd 110 30/06/2017 11:39:26 Por fim, os últimos anos do século revelaram a escritora Paulina Chiziane, uma das mais destacadas vozes africanas no enfoque de gênero. Em Balada de amor ao vento (1990) e Ventos do apocalipse (1993), a primeira mulher a publicar um romance em Moçambique revelou a desigualdade de gênero nas instituições do país, sejam elas tradicionais ou modernas. Vale ressaltar que Couto e Chiziane viriam a ter larga publicação no século XXI, desenvolvendo seus projetos literários iniciados nas décadas de 1980 e 1990. Autorreferência ou metaliteratura é a reflexão sobre as condições do texto literário contidas no próprio texto literário. Dessa forma, a literatura torna-se o tema de sua própria representação. Em Cabo Verde, Orlanda Amarílis tornou-se a escritora de maior destaque após a independência. Suas antologias de contos Ilhéu dos pássaros (1983) e A casa dos mastros (1989) seguiram a tradição realista de denúncia social da literatura do país, no entanto, inovaram ao focalizar a condição da mulher e ao levar elementos do fantástico para a prosa local. Já Arménio Vieira destacou-se tanto pelos seus Poemas (1981) como pelo seu romance O eleito do sol (1990). Nos seus poemas, buscou dialogar com a tradição não só local, mas universal. No romance, por meio da história de um escriba egípcio que inventou seu passado para se tornar faraó, representou metaforicamente a história cabo-verdiana (sem passado anterior à colonização). Dessa forma, pensar o passado do país significa pensar a sua identidade presente. Corsino Fortes, que já publicara Pão & fonema (1974) no pré-indepen- dência, deu continuidade à sua produção poética e publicou Árvore & tambor (1986) e Pedras de sol & substância (2001). O conjunto de seus livros de poemas forma a trilogia A cabeça calva de Deus, que difere bastante do estilo mais realista da literatura cabo-verdiana pela grande capacidade simbólica e pelo estilo hermético. Dina Salústio, importante figura na política e na literatura do arquipélago, publicou em 1994 a aclamada coletânea de contos Mornas eram as noites, voltada ao público infantil. Por fim, ganhou grande destaque no período pós-independência Germano Almeida, autor dos romances O meu poeta (1989) e O testamento do Sr. Na- pumoceno da Silva Araújo (1991). Responsável por inaugurar a característica 111Autores africanos no século XX Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U4_C07.indd 111 30/06/2017 11:39:26 do humor na narrativa literária de Cabo Verde, Almeida revela a permanência dos mecanismos coloniais de poder no pós-independência. Observe o primeiro parágrafo do romance Terra sonâmbula, de Mia Couto, o qual aborda o violento contexto da guerra civil moçambicana nos anos 1980 (COUTO, 2007, p. 9): Naquele lugar, a guerra tinha morto a estrada. Pelos caminhos só as hienas se arrastavam, focinhando entre cinzas e poeiras. A paisagem se mestiçara de tristezas nunca vistas, em cores que se pegavam à boca. Em cores sujas, tão sujas que tinham perdido toda a leveza, esquecidas da ousadia de levantar asas pelo azul. Aqui o céu se tornara impossível. E os viventes se acostumaram ao chão. Em resignada aprendizagem da morte. Pepetela e a representação da história angolana do século XX Como você pôde perceber a partir do breve panorama até aqui exposto, muitos foram os escritores africanos que se ocuparam da representação dos principais acontecimentos de seus países no século XX (elencamos uma pequena par- cela deles). No entanto, apesar da destacada qualidade de suas obras, poucos escritores internalizaram tanto o século XX de seu país como Pepetela (que você pode ver na Figura 1) incorporou o de Angola. Figura 1. Pepetela. Fonte: Agência Lusa (2014). Literaturas africanas em língua portuguesa112 Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U4_C07.indd 112 30/06/2017 11:39:26 Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos (nome civil do escritor) nasceu em Benguela no ano de 1941. Após frequentar a Casa dos Estudantes do Império no final da década de 1950 e no início de 1960, tornou-se militante do MPLA em 1963. Durante a guerra de independência, Pepetela retornou à África, estabelecendo-se em Argel. Lá trabalhou ativamente no Centro de Estudos Angolanos. Em 1969, transferiu-se para Brazzaville, uma importante base do MPLA na República do Congo, próximo à fronteira norte de Angola. A partir de então, teve importante atuação na guerrilha contra a colonização portuguesa e na alfabetização dos guerrilheiros e das comunidades próximas. Para o projeto de alfabetização do povo angolano, Pepetela escreveu sua primeira obra publicada, a novela As aventuras de Ngunga (1972). O texto tinha como objetivo servir de material de estudo para as aulas. Com a independência de Angola em 1975, Pepetela passou a integrar o quadro de governo do MPLA, tornando-se Ministro da Educação do presidente Agostinho Neto. Após exercer o mandato por sete anos, optou por desligar-se do governo e dedicar-se mais atentamente à sua carreira literária. O conjunto de sua obra é um dos maiores estudos sobre a história do país. Se a história oficial fora marcada pela perspectiva colonial, a ficção permitiu ao autor reescrever a história moderna de Angola por uma perspectiva crítica, a do colonizado. Em Yaka (1985), Pepetela retoma a história dos colonizadores portugueses no século XIX, tema caro à compreensão do século XX no país. Mayombe (1980) é um romance fragmentado, escrito durante sua experiência como guerrilheiro na fronteira norte do país, e retrata o cotidiano dos grupos de guerrilha. Uma de suas obras mais aclamadas, revela a dificuldade de se criar um sentimento de unidade em meio a disputas dos diferentes grupos étnico-raciais angolanos e ao uso do poder para interesses individuais por parte de algumas lideranças do partido. Tudo isso ocorre no ambiente da luta de libertação, diagnosticando, assim, os futuros problemas que enfrentaria Angola independente. Sua peça de teatro A corda (1980) centra-se em uma disputa de cabo de guerra. De um lado, os interesses estadunidenses com seu apoio à União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA); e de outro, a resistência do MPLA, apoiado pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). O prêmio ao vencedor: 113Autores africanos no século XX Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U4_C07.indd 113 30/06/2017 11:39:26 Angola. A obra encena assim os conflitos da guerra civil no pós-independência. No romance O cão e os caluandas (1985), o autor chama atenção para o cotidiano dos habitantes de Luanda após a independência. Em Lueji (1990), há duas narrativas paralelas: a da princesa Lueji, no século XVIII, e a de uma bailarina que a repre- sentava na contemporaneidade. O desejode Kianda (1995) é uma de suas obras com tom mais desiludido em relação aos rumos do país no pós-independência. No século XXI, Pepetela segue dando continuidade a seu grande projeto de escrita literária da história de Angola. No romance Predadores (2005), aponta a perversa relação entre a classe empresarial e o governo. Em O planalto e a estepe (2009), narra a relação de um angolano e uma mongol. A alteridade com a mongol serve de mote para revisar a história angolana a partir da memória da vida do personagem angolano na província de Huila. Em A sul, o sombreiro (2011), volta a ambientar sua narrativa na Angola dos séculos XVI e XVII, desvelando as disputas de interesse pela empreitada colonial. Entre as numerosas obras do autor, sem dúvida aquela que melhor dá conta da história do país no século XX é A geração da utopia (1992), romance dividido em quatro partes: a casa, a chana, o polvo e o templo (PEPETELA, 2000). Veja a imagem da capa deste romance na Figura 2. Figura 2. A geração da utopia, 2ª edição. Fonte: Alfarrabista (c2003-2013). “A casa” focaliza um grupo de angolanos (Sara, Aníbal, Vitor e Malongo) no contexto da Casa dos Estudantes do Império, em Lisboa. Em meio aos debates Literaturas africanas em língua portuguesa114 Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U4_C07.indd 114 30/06/2017 11:39:27 de suas distintas visões políticas, destaca-se o despertar de uma consciência revolucionária e a utopia de construir um país justo e igualitário. “A chana” está centrada nas guerrilhas pela independência do país. Com o foco em Vitor, que se torna comandante de guerra, o capítulo revela o quanto os ideais construídos nas décadas anteriores dão lugar a disputas internas e à busca por privilégios individuais. “O polvo”, já com Angola independente nos anos de 1980, tem seu foco em Aníbal, que desiludido com a corrupção no governo angolano e sentindo-se impotente frente ao novo quadro, passa a viver isolado na praia da Caotinha. Uma das cenas mais simbólicas da obra é quando ele mata um grande polvo, representando a ruptura com o passado utópico. Por fim, “O templo” revela o decadente contexto angolano da década de 1990. Malongo, o personagem apolítico do primeiro capítulo, torna-se um importante empresário que troca privilégios com os governantes do país. Ele e Vítor se juntam então a Elias, um ex-integrante da União das Populações de Angola (UPA), grupo revolucionário contrário ao MPLA, para fundar a Igreja da Esperança e da Alegria do Dominus, aproveitando-se da fragilidade social do povo angolano para enriquecer. Observe a reflexão do personagem Mukindo, de A geração da utopia: “Todos falam do povo, mas ninguém pensa nele. O povo é como tronco de árvore. Todos se apoiam a ele, sobem por ele, para apanhar os frutos que estão lá em cima. Não é o povo que lhes interessa. Só os frutos.” (PEPETELA, 2000, p. 209). Dessa forma, Pepetela (2000) aborda em seu romance grande parte da história angolana do século XX, fazendo isso de forma complexa e revelando que a história não é linear e que muitos dos problemas da Angola independente já estavam postos antes mesmo de sua independência. A narrativa dessa história ganha os tons autobiográficos de quem não apenas testemunhou, como de fato participou dos principais eventos da história moderna do país. É por unir essa singular experiência com capacidade crítica, apurada técnica narrativa e a incessante vontade de reescrever a história colonial e pós-colonial angolana por meio da literatura, que a obra de Pepetela é uma das mais ricas e complexas produções acerca do século XX africano. 115Autores africanos no século XX Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U4_C07.indd 115 30/06/2017 11:39:27 1. Assinale a descrição que melhor caracteriza o século XX. a) Um século caracterizado por intensas disputas territoriais, políticas e ideológicas. b) Um século de estabilidade política e pacifismo nas relações internacionais. c) Um século caracterizado pela dominação da igreja sobre o estado. d) Um século de pouca influência do estado sobre a sociedade. e) Um século marcado por guerras de teor religioso. 2. Sobre a produção literária dos países africanos de língua portuguesa antes de suas independências, é correto afirmar que: a) Em Angola, Luandino Vieira, Alda Lara e António Jacinto ficaram mais conhecidos por sua obra poética, a qual defendia o fim da exploração dos povos angolanos e a luta pela independência. b) Em Angola, Castro Soromenho, Luandino Vieira e Agostinho Neto evidenciaram em seus romances a preocupação com a exploração da terra e com o uso de uma linguagem que estabelecesse diálogo com a oralidade. c) Em Moçambique, José Craveirinha e Noémia de Sousa denunciaram em seus poemas a violência sofrida pelos sujeitos negros no regime colonial e defenderam a luta pela independência. d) Os poetas moçambicanos Rui Knopfli, Rui Nogar e Luís Bernardo Honwana defenderam os ideais moçambicanos em suas obras. e) O poeta cabo-verdiano Ovídio Martins apresenta uma visão evasionista em seus textos, criticando seus antecessores alinhados aos ideais da revista Claridade. 3. Assinale a alternativa correta sobre as literaturas africanas em língua portuguesa produzidas após as independências de seus países. a) É uma característica das obras desse período o tom de descrença e incerteza devido à falência dos projetos sociais tão sonhados para as independências. b) Tanto Ana Paula Tavares quanto Paulina Chiziane problematizam a condição da mulher em seus romances. c) Paulina Chiziane e Orlanda Amarílis inovam por trazer a questão da condição feminina em suas produções e por incluir elementos do fantástico na prosa local. d) Os poemas de Eduardo White e de Luís Carlos Patraquim têm em comum o fato de aproximarem-se da oralidade e, portanto, serem de fácil acesso ao leitor. e) José Eduardo Agualusa e Ungulani Ba Ka Khosa criticaram severamente a ação do MPLA em suas obras. 4. Manuel Alegre (1995, p. 19) considera que “Pepetela não é Literaturas africanas em língua portuguesa116 Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U4_C07.indd 116 30/06/2017 11:39:28 só o maior romancista da África que se exprime literariamente em português. Ele é o escritor da língua portuguesa que mais intensamente e melhor do que nenhum outro fixou nos seus livros o itinerário e o perfil de uma geração.”. Qual dos trechos abaixo, retirados do romance A geração da utopia, melhor exemplifica a reflexão de Manuel Alegre? a) “Portanto, só os ciclos eram eternos.” (PEPETELA, 2000, p. 9). b) “Claro que me interessa saber o que se passa na terra. Mas só isso. Não tenho nada que me meter em organizações, sei lá porquê uma é melhor que a outra. Acho que temos coisas mais importantes para fazer juntos.” (PEPETELA, 2000, p. 46). c) “E é triste sentir que a nossa geração, que vos deu apesar de tudo a independência, logo a seguir vos tirou a capacidade de a gozar. Como um pai que, ao oferecer um brinquedo ao filho, o monopoliza, só ele brinca com ele, com o pretexto de que o filho o vai estragar. Não é mesmo tragicabsurdo?” (PEPETELA, 2000, p. 361). d) “Há duas Angolas, elas se defrontam. Duas Angolas provenientes dessa cisão da elite, a urbana e a tradicional. Isto de forma grosseira, é evidente, porque sempre houve pontos de passagem entre os diferentes sectores. Felizmente nesta guerra houve empate, nenhuma destruiu a outra. Mas continua a haver duas Angolas.” (PEPETELA, 2000, p. 364). e) “E de qualquer modo tinham um vasto terreno comum, o ódio à ditadura de Salazar e a esperança na independência das colónias. Opunham-se nos métodos e na maneira de prever a sociedade futura. Uma sociedade onde o Estado ia abolir as classes, segundo Aníbal, uma sociedade sem Estado pois este tendia a ser o manto sob o qual novas classes se criariam, segundo Marta.” (PEPETELA, 2000, p. 86). 5. “Para dizera verdade, tinha vontade de criar o MMP, Movimento dos Marginalizados do Processo. Como único programa, ser oposição ao futuro governo eleito, qualquer seja. Porque marginalizados só podem ser oposição, nunca ganham eleições, mesmo sendo a esmagadora maioria da população. Se por um azar o Movimento conseguisse a maioria dos votos, o que correspondia a uma impressionante tomada de consciência do povo, dissolvia-se automaticamente, para não ser corrompido pelo uso do poder.” (PEPETELA, 2000, p. 366). A proposta fictícia de partido para tomada de consciência dos marginalizados do personagem Aníbal, do romance A geração da utopia, opõe-se à corrupção pelo uso do poder de qual dos seguintes governos? a) Governo do Estado Novo, comandado pelo sucessor de Salazar, Marcello Caetano. b) Governo do Estado Novo, comandado por António Salazar. c) Governo da FRELIMO. d) Governo do MPLA. e) Governo do PAIGC. 117Autores africanos no século XX Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U4_C07.indd 117 30/06/2017 11:39:28 AGÊNCIA LUSA. Pepetela e o 25 de Abril. Luanda: Rede Angola, 2014. Disponível em: <http://www.redeangola.info/pepetela-e-o-25-de-abril/>. Acesso em: 30 jun. 2017. ALEGRE, M. Muana Puó: ou talvez o nosso rosto. Jornal de Letras, Artes e Ideias, Lisboa, 11 abr. 1995. ALFARRABISTA. A geração da utopia. Póvoa de Varzim, c2003-2013. Disponível em: <http://www.alfarrabista.com/E/1041159/Livro/A%20Gera%C3%A7%C3%A3o%20 da%20Utopia/Dom%20Quixote>. Acesso em: 30 jun. 2017. BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. COUTO, M. Terra sonâmbula. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. CRAVEIRINHA, J. Obra poética. Lisboa: Caminho, 1999. v. I. HOBSBAWM, E. A era dos extremos: o breve século XX, 1941-1991. São Paulo: Compa- nhia das Letras, 1995. PEPETELA. A geração da utopia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. Literaturas africanas em língua portuguesa118 Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U4_C07.indd 118 30/06/2017 11:39:28 http://www.redeangola.info/pepetela-e-o-25-de-abril/ http://www.alfarrabista.com/E/1041159/Livro/A%20Gera%C3%A7%C3%A3o%20 Encerra aqui o trecho do livro disponibilizado para esta Unidade de Aprendizagem. Na Biblioteca Virtual da Instituição, você encontra a obra na íntegra. Conteúdo: Catalogação na publicação: Poliana Sanchez de Araujo – CRB 10/2094 F722l Forli, Cristina Arena. Literaturas africanas em língua portuguesa / Cristina Arena Forli, Gustavo Henrique Rückert ; revisão técnica: Gabriela Semensato Ferreira. – Porto Alegre : SAGAH, 2017. 132 p. : il. ; 22,5 cm. ISBN 978-85-9502-106-8 1. Literatura africana – Língua portuguesa. 2. Qualidade ambiental. I. Rückert, Gustavo Henrique. II. Título. CDU 821.134.3(6) Revisão técnica: Gabriela Semensato Ferreira Mestra em Letras com ênfase em Literatura Comparada (UFRGS) Graduada em Licenciatura em Letras (UFRGS) Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_Iniciais_Impressa.indd 2 03/07/2017 14:41:17 Autores contemporâneos Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: n Relacionar o conceito de contemporaneidade à capacidade de revelar as “trevas de seu tempo”. n Identi� car os principais autores e obras das literaturas angolana, mo- çambicana e cabo-verdiana do século XXI. n Reconhecer a importância dos autores africanos para a renovação da tradição literária universal. Introdução A consolidação das literaturas de Angola, Moçambique e Cabo Verde está bastante associada a seus processos de independência, ocorridos na segunda metade do século XX. No entanto, você já se perguntou sobre os rumos que essas literaturas tomaram no século XXI? Quem são seus principais autores e obras? Quais suas principais temáticas? Neste texto, você vai refletir sobre essas questões para compreender um pouco da contemporaneidade das literaturas africanas em língua portuguesa. As letras africanas no século XXI No século XX, as literaturas africanas em língua portuguesa consolidaram- -se como sistemas literários, atuaram de maneira decisiva na formação da consciência nacional e nas lutas pelas independências, criticaram incisiva- mente os regimes autoritários instalados no pós-independência, repensaram a condição da mulher nas sociedades africanas e revisitaram criticamente o passado colonial. Mas, e no século XXI? O que essas literaturas têm dito? Quais autores têm se destacado? Quais suas principais tendências? A seguir, você vai ver como alguns dos principais autores de Angola, Moçambique e Cabo Verde têm lido “as trevas do seu tempo”. Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U4_C08.indd 119 03/07/2017 14:30:14 Literaturas africanas em língua portuguesa120 Ao se perguntar sobre o que é ser “contemporâneo”, o teórico Giorgio Agamben (2009, p. 60) formulou uma das mais criativas definições para o conceito, defendendo que a contemporaneidade está na capacidade de revelar “as trevas” de seu próprio tempo. Angola O século XXI trouxe novas perspectivas para a literatura produzida pelos escritores angolanos. A condição da mulher, a revisão do passado, a co- munidade lusófona e o riso por meio da estética pós-moderna passaram a frequentar as páginas dos textos contemporâneos do país. Neste sentido, alguns autores, já consagrados das últimas décadas do século anterior e outros novos no cenário, têm renovado a história da literatura angolana. Ana Paula Tavares, já destacada no fim do século XX com poemas e crônicas que retratam sobretudo a questão da mulher africana, segue sendo nome imprescindível nesse assunto, em obras como Dizes-me coisas amargas como os frutos (2001) e Manual para amantes desesperados (2007). Os sig- nificados do feminino nas culturas locais são bastante explorados, revelando a condição feminina nessas sociedades. José Eduardo Agualusa, que também já vinha se destacando como romancista nos anos anteriores, consolida seu trabalho no século XXI. Seus romances como Um estranho em Goa (2000) e O ano em que Zumbi tomou o Rio (2001) confirmam a tendência de Nação crioula (1997) para uma perspectiva literária viajante e lusófona. Você pode notar, assim, que muitos enredos do escritor se passam no trânsito entre países que outrora formaram o império português. Já as obras como O vendedor de passados (2004) e Teoria geral do esquecimento (2012) revelam a preocupação com o passado angolano, que é entendido não como meramente factual, mas sim como sujeito aos mecanismos da narrativa e da imaginação. Por fim, destaca-se o romance Rainha Ginga (2014), em que o autor tematiza o mito da grande rainha dos reinos Ndongo e Matamba que resistiu ao colonialismo português no século XVII. Entre os escritores surgidos no século XXI, merece destaque também o nome de Ondjaki. Em romances como Bom dia, camaradas (2001) e Avó Dezanove e o segredo do soviético (2008) e a coletânea de contos Os da minha rua (2007) o autor segue o caminho iniciado pelo moçambicano Luís Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U4_C08.indd 120 03/07/2017 14:30:14 121Autores contemporâneos Bernardo Honwana da representação social por meio do olhar infantil. No entanto, seu contexto não é mais o colonial, e sim o pós-independência. Dessa forma, o leve humor característico dessa faixa etária conduz o olhar para os símbolos do passado de luta pela independência. Ondjaki ainda se destaca pela sua literatura para crianças, como é o caso da peça teatral Os vivos, o morto e o peixe-frito (2009), nessa obra, mais uma vez pela perspectiva bem-humorada, a condição de imigrantes africanos em Portugal é retratada. Entre os novos escritores da literatura de Angola, tem sido ressaltado o nome de João Melo, que você pode ver na Figura 1. Apesar de intensa obra poética publicada nos anos 1980 e 1990, a partir dos anos 2000 ele se con- solidacomo contista. Merecem atenção suas coletâneas Os filhos da pátria (2001), The Serial Killer e outros contos risíveis ou talvez não (2004) e O dia em que o Pato Donald comeu pela primeira vez a Margarida (2006). Suas narrativas são extremamente marcadas pelos dilemas culturais envolvendo a globalização, pela metanarrativa e pela ironia ao estilo pós-moderno. Assim, problematiza por meio de seu humor tanto o passado heroico da luta pela independência como a dúvida e a incerteza que permeiam a atualidade de seu país. Figura 1. João Melo. Fonte: João... (2015). Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U4_C08.indd 121 03/07/2017 14:30:15 Literaturas africanas em língua portuguesa122 Para elucidar de maneira mais específica a produção literária de João Melo, abordaremos o conto “O pato revolucionário e o pato contra-revolucionário”, publicado em O dia em que o Pato Donald comeu pela primeira vez a Marga- rida (MELO, 2006). O narrador do conto, em discurso marcado pela ironia e pelas reflexões metanarrativas, conta a história de um guerrilheiro angolano, denominado Agostinho (mesmo nome do principal herói nacional), que foi enviado na década de 1960 à Coreia do Norte para realizar treinamento militar. Agostinho importuna seu instrutor Lee com a seguinte problemática: se um pato coloca um ovo na fronteira entre as duas coreias, a quem ele pertencerá? Após Lee muito conjecturar sobre as prováveis origens capitalista ou comunista do pato, o angolano atesta o erro de seu professor ao afirmar que patos não colocam ovos. O comportamento do guerrilheiro (que para o narrador antecipou Lyotard nas reflexões sobre o pós-modernismo, revelando a fragilidade das grandes narrativas – no caso, socialismo e capitalismo) foi condenado pelas lideranças socialistas norte-coreanas, que o enviaram de volta para Angola. Por fim, o narrador ressalta que o professor Lee fugiu para a Coreia do Sul, onde se tornou um importante empresário. Agostinho, após a independência do país africano, não teve sucesso no ramo empresarial como outros líderes revolucionários, sendo apenas técnico de uma empresa privada. Após par- ceria com os sul-coreanos, por fim, Agostinho torna-se assalariado de Lee. O último detalhe elucidado pelo narrador é que se trata de uma empresa de criação de patos. A ambiguidade da palavra “patos”, que remete àqueles que acreditaram nas grandes ideologias que pautaram as disputas políticas do século XX, revela, a partir de Melo, uma transformação bastante significativa da literatura angolana. Se ela começou utópica e esperançosa nos versos de Agostinho Neto no século XX, chega ao século XXI com os típicos traços de ironia e de ceticismo da literatura produzida na pós-modernidade. O filósofo francês Jean-François Lyotard é um dos principais pensadores do pós- -modernismo. Em sua obra mais conhecida, A condição pós-moderna (LYOTARD, 1989), definiu a condição da pós-modernidade a partir da falência das grandes narrativas da modernidade, como as ideologias do século XX. Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U4_C08.indd 122 03/07/2017 14:30:15 123Autores contemporâneos Moçambique Da mesma forma como ocorreu com a literatura angolana, a literatura produzida em Moçambique também passou por signifi cativas modifi cações no século XXI. Já nos seus primeiros anos, o novo século traz à literatura do país uma de suas obras mais emblemáticas: Niketche: uma história de poligamia (2002), de Paulina Chiziane. A autora já havia publicado dois romances na década de 1990. Entre eles, Balada de amor ao vento (1990), considerado o primeiro romance escrito por uma mulher no país. Em Niketche, a autora desvela o cotidiano familiar moçambicano, explorando as diferenças culturais entre o norte e o sul, as sociedades tradicionais e os setores mais “ocidentalizados”. Em comum a eles, está a institucionalização da violência à mulher na cultura, na religião, nas leis e nos demais setores da sociedade. Esses temas também são explorados em obras como O alegre canto da perdiz (2008) e As andorinhas (2009). Se o projeto de independência da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) passou pela unificação da heterogeneidade étnica, linguística e cultural do país, João Paulo Borges Coelho trata de se voltar ao sentido contrário e evidenciar a pluralidade que compõe Moçambique. Suas coletâneas de contos Índicos indícios I (2005) e Índicos indícios II (2005), divididos pelos respectivos subtítulos setentrião e meridião, são exemplos claros desse projeto de defesa da diversidade. Apesar do surgimento e da consolidação de novos escritores, o grande destaque da literatura contemporânea do país continua sendo Mia Couto – o escritor africano de língua portuguesa mais aclamado internacionalmente, que você pode ver na Figura 2. No fim do século XX, o autor já havia con- sagrado o seu nome por meio de obras como Vozes anoitecidas (1986), Terra sonâmbula (1992), Estórias abensonhadas (1994), A varanda do frangipani (1996) e Vinte e zinco (1999). No século XXI, em O último voo do flamingo (2000), O outro pé da sereia (2006) e Venenos de deus, remédios do diabo (2008) dá prosseguimento a questões marcantes de sua obra, como a prosa poética que busca elementos de línguas locais e neologismos para alcançar lirismo, o deslumbramento com a atividade da contação de histórias, o limiar entre fato e ficção na narrativa do passado, o choque de culturas tradicionais e modernas no pós-independência. Já na coletânea de contos O fio das missan- gas (2004) e nos romances A confissão da leoa (2012) e Mulheres de cinzas (2015), inova na temática de sua própria obra ao representar a condição da mulher moçambicana. Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U4_C08.indd 123 03/07/2017 14:30:15 Literaturas africanas em língua portuguesa124 Figura 2. Mia Couto. Fonte: Trefaut (2015). Para abordar de maneira mais específica a obra de Mia Couto, iremos refletir sobre o romance Venenos de deus, remédios do diabo (COUTO, 2008). A narrativa está localizada no vilarejo fictício denominado Vila Cacimba. A vila moçambicana, remota e sempre encoberta pela cacimba, é ambiente onde não é possível distinguir a fantasia da realidade. Natural do local, Deolinda desperta a curiosidade do médico português Sidónio na antiga metrópole, que parte então para Vila Cacimba em busca da bela jovem que conhecera em Portugal. No vilarejo africano, Sidónio não encontra Deolinda – sempre ausente da narrativa –, mas Bartolomeu Sozinho e Dona Munda, seus pais. Trabalhando como médico voluntário, Sidónio tenta curar os males de Bartolomeu, que, por sua vez, vivia trancado em um quarto escuro com suas ferramentas – ambiente que remete ao porão do navio transatlântico onde trabalhava no período colonial. O fato de ser o único negro a trabalhar no navio orgulhava Bartolomeu, que se sentia saudoso em relação ao colonialismo. Ao buscar compreender seu universo, Sidónio envolve-se em uma rede de memórias de difícil compreensão. Dona Munda, mulher e mulata (portanto desvalorizada pelos brancos colonialistas e pelos negros da vila), é acusada pelo marido de feitiçaria. É através da enigmática relação com Munda que Sidónio entende a ausência de Deolinda, que teria partido do local após ser abusada pelo pai. Outra personagem fundamental para a trama é Suacelência, o corrupto administrador de Vila Cacimba. Nacionalista, Suacelência é o personagem que se opõe ao colonialista Bartolomeu. Seu totalitarismo, no entanto, deixa claro Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U4_C08.indd 124 03/07/2017 14:30:15 125Autores contemporâneos que, embora seja contrário ao regime colonial português, acaba por governar a partir dos mesmos mecanismos de poder que o colonizador. Portanto, por meio de uma confusa névoa formada pela memória de di- ferentes personagens, o médico português se depara com as contradições de Moçambique do período pós-independência, passando por temas como AIDS,violência doméstica, abuso sexual, machismo, corrupção, burocracia e tantos outros. Assim, é como se a enigmática Vila Cacimba, situada entre a tradição africana e a modernidade ocidental, fosse metonímia do próprio país, vagando em busca de memórias que resolvam seu conflito identitário. Ao fim da narrativa, são espalhadas “flores do esquecimento” no local. Resta a Moçambique, portanto, reinventar sua identidade para voltar-se ao futuro, e não ao passado colonial. Cabo Verde Assim como as literaturas de Angola e de Moçambique, a de Cabo Verde também apresenta novidades no que diz respeito à sua produção no século XXI. Arménio Vieira, já consagrado com seus Poemas (1981) e O eleito do sol (1990), continua seu projeto de uma literatura repleta de referências à cul- tura universal, porém de forma a sempre debater metaforicamente a situação do arquipélago. Seu conjunto O Brumário (2013), Derivações do Brumário (2013) e Fantasmas e fantasias do Brumário (2014), formado por aquilo que denomina poemas em prosa, faz referência tanto à Revolução Francesa, que empresta o ideário revolucionário à modernidade, como às brumas com que descreve Cabo Verde. Outro nome que se consolida nas letras cabo-verdianas durante o século XXI é o de Vera Duarte, da qual devem ser destacadas as coletâneas de poemas O arquipélago da paixão (2001), Preces e súplicas ou os cânticos da desesperança (2005) e Exercícios poéticos (2010), que revelam, por meio do olhar feminino, o cotidiano vivido nas ilhas. Duarte expressa sua ampla defesa pelos direitos humanos, atividade que também lhe rende importante destaque no campo jurídico. Entre os escritores que já haviam se consagrado na literatura cabo-verdiana do século XX e dão prosseguimento à sua obra no século XXI, destaca-se o nome de Germano Almeida, que você pode ver na Figura 3. Em O meu poeta (1989) e O testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo (1991), o autor havia inovado a literatura do país, marcada pelo tom dramático em relação à seca, à miséria e à fome, com a utilização do humor como recurso estético. A partir Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U4_C08.indd 125 03/07/2017 14:30:15 Literaturas africanas em língua portuguesa126 da virada do século, em As memórias de um espírito (2001), Eva (2006) e A morte do ouvidor (2010), prossegue satirizando o poder e o cotidiano local. Se nas suas primeiras obras o objeto da crítica era o regime totalitário do pós-independência, agora se concentra no poder empresarial proporcionado pelo neoliberalismo. Figura 3. Germano Almeida. Fonte: Loures (2013). Para refletir sobre a produção de Germano Almeida, abordaremos em particular a obra Eva (ALMEIDA, 2006), romance centrado em três per- sonagens: Luís Henriques, Reinaldo e Eva. Os dois primeiros são amigos e dividem intensa paixão pela mesma mulher: a protagonista Eva. A narrativa desenvolve-se em três momentos históricos distintos: os anos de 1960 em Lisboa, o pós-independência (1975) em Cabo Verde e, por fim, a atualidade novamente em Lisboa. Personagem central da obra, movimentando-a em ausência, visto que sua descrição é realizada por meio da memória de Luís Henriques e Reinaldo em Lisboa, Eva foge completamente à identidade imposta socialmente às mulheres. Ela nega a objetificação da mulher para a satisfação masculina, prezando pela sua liberdade sexual. Dessa forma, mesmo casada com Zé Manuel, mantém relações com mais dois homens, Luís Henriques e Reinaldo, sem deixar de amar nenhum dos três. Eva (ALMEIDA, 2006) é uma obra que trata de transformações nas relações amorosas ao longo do tempo. Isso ocorre também em relação a Cabo Verde. O confronto instala-se entre dois tempos extremos: a certeza e a utopia da juventude nos anos de 1960, com a dúvida e a reflexão da maturidade, nos dias atuais. Assim, o país igualitário sonhado pelos jovens revolucionários dá Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U4_C08.indd 126 03/07/2017 14:30:16 127Autores contemporâneos lugar a diversos conflitos do presente referenciados pela obra: uma sociedade patriarcal, racista e ainda pobre. Um dos pontos mais dramáticos dessa reali- dade está nas entrevistas que Reinaldo faz com os cabo-verdianos contrários à independência que se encontram exilados em Portugal sem possibilidade de regresso. Dessa forma, a obra insere-se no século XXI com o importante movimento de avaliar os efeitos do acontecimento mais importante do país africano no século XX: a sua independência. Os africanos colonizam a literatura portuguesa Boaventura de Sousa Santos (2010) sempre chamou atenção para o fato de que, apesar da violência colonial, o colonizador português acabava, inevita- velmente, herdando traços culturais africanos dessa relação. No século XXI, um dos elementos mais evidentes da colonização cultural do português pelos africanos está na literatura portuguesa, visto que alguns de seus principais escritores são nascidos em países como Angola, Moçambique e Cabo Verde. Esses autores, embora se assumam portugueses, possibilitam um outro olhar sobre África, Portugal e a colonização na história da literatura portuguesa. Um dos escritores mais importantes nesse sentido é Helder Macedo, que nasceu na África do Sul, passou a infância em Moçambique e a adolescência em Guiné-Bissau e em São Tomé e Príncipe. No final do século XX, com seu romance Partes de África (1991), no qual critica o sistema colonial a partir da narrativa ficcionalizada de suas vivências no continente africano, tornou-se uma das principais vozes literárias na crítica ao colonialismo português. No século XXI, destaca-se pelos romances Vícios e virtudes (2000) e Natália (2009). É importante mencionar ainda que Helder Macedo é professor de literaturas em língua portuguesa no King’s College, em Londres, sendo reconhecido como um dos principais críticos dessas literaturas. No século XXI, um dos escritores portugueses mais aclamados interna- cionalmente é Gonçalo Tavares, nascido em Angola. É autor das obras Um homem: Klaus Klump (2003), Jerusalém (2004) e da série O bairro (2002- 2010). No entanto, no que diz respeito à sua contribuição crítica em relação à colonização portuguesa, sua principal obra é a epopeia pós-moderna Uma viagem à Índia (2010). Em laborosa paródia do clássico camoniano Os lusía- das, do século XVI, o autor acaba por ironizar o imaginário desbravador que alimentou o passado lusitano. Outro escritor bastante destacado na literatura portuguesa do século XXI é o também nascido em Angola Valter Hugo Mãe. Entre as obras do autor Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U4_C08.indd 127 03/07/2017 14:30:16 Literaturas africanas em língua portuguesa128 estão O remorso de Baltazar Serapião (2006), O apocalipse dos trabalha- dores (2008) e A máquina de fazer espanhóis (2010). Sua mais destacada contribuição na crítica ao colonialismo português é O nosso reino (2004). Narrado por um menino de oito anos em uma aldeia portuguesa na década de 1970, o romance acaba desvelando toda a brutalidade social do racismo e da violência de gênero presente no cotidiano lusitano, passando, em grande parte, pela instituição da igreja católica. Outra grande surpresa do novo século nas letras portuguesas é Isabela Figueiredo. Nascida em Moçambique e, após a independência, tendo se mudado para Portugal, Figueiredo manteve ativo uma espécie de caderno de notas no seu blogue “Novo Mundo”, no qual compartilhava as memórias dos tempos coloniais com sua família em terras moçambicanas. As narrativas do sítio eletrônico transformaram-se no aclamado Caderno de memórias coloniais (2009), que problematiza questões como as violências culturais, religiosa, de gênero e de raça durante o período colonial, bem como o entrelugar indenti- tário daqueles que, tendo vivências nas antigas colônias e metrópoles, acabam não se sentindo pertencentes a Portugal nem à África. Para o teórico indiano Homi Bhabha (2013), o entrelugar está relacionadoàs fronteiras culturais. Estas são vistas não como ponto de segregação, e sim como ponto de contato entre diferentes culturas. Assim, os sujeitos pertencentes a um entrelugar identitário não podem ser definidos pelas culturas aquém ou além fronteira, pois configuram uma terceira cultura, a do interstício, do limiar, do trânsito. Conclusão É a partir da renovação das literaturas angolana, moçambicana, cabo-verdiana e até portuguesa, que os escritores africanos inovam a própria literatura universal. Se desde a antiguidade grega, com as epopeias de Homero, muitas foram as transformações ocorridas na tradição literária ocidental, no século XXI os africanos tratam de enriquecer essa história com a sua forma de ver a atualidade. O mundo ganha assim a valiosa contribuição daqueles capazes de revelar muitas das “trevas de nosso tempo” (AGAMBEN, 2009) por meio de suas páginas. Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U4_C08.indd 128 03/07/2017 14:30:16 129Autores contemporâneos 1. De acordo com as ideias do teórico Giorgio Agamben (2009), o contemporâneo na literatura está ligado a qual das seguintes ideias? a) Atualidade das obras publicadas. b) Capacidade de inovar a estrutura do texto literário. c) Abordagem de temas atuais. d) Visão crítica do próprio tempo. e) Originalidade de estilo. 2. Nas alternativas a seguir, estão listadas características que Maria Alzira Seixo (1999, p. 91-100) atribui à literatura pós-moderna. Assinale a característica que é mais evidente no trecho a seguir do conto “O pato revolucionário e o pato contra- revolucionário”, de João Melo (2006). “Os angolanos, além de gostarem de makas, de farrar até de manhã, de chegar tarde aos seus compromissos e de usar e abusar do humor, inclusive contra eles mesmos, também sempre foram pós- modernos avant la lettre.” a) A obra faz uma releitura ficcional da história oficial, confrontando assim os dois discursos. b) Propõe um diálogo da literatura consigo mesma. c) Fazendo uso da ironia em intrusões do narrador, transfere o foco narrativo para os excluídos. d) A obra insere-se na renovação narrativa do século XX, que associa os elementos do tempo e do espaço ao pensamento humano. e) Nenhuma das características anteriormente mencionadas encontra-se no trecho do conto de João Melo. 3. Sobre o romance Venenos de deus, remédios do diabo, de Mia Couto (2008), é correto afirmar que: a) Há um esforço na narrativa por manter bem marcados os dois planos existentes para a diferenciação do leitor: o da fantasia e o da realidade. b) Bartolomeu Sozinho, pai de Deolinda, devido à sua vivência no período colonial em um navio transatlântico, condena esse sistema e, por isso, vive trancado em um quarto escuro com suas ferramentas. c) Suacelência, administrador da Vila Cacimba, compartilha dos ideais nacionalistas de Bartolomeu, o que se configura em uma contradição, pois usa os mesmos mecanismos do colonizador para governar. d) O médico Sidónio, ao chegar em Moçambique, se depara com as contradições do país no período pré-independência. e) Vila Cacimba pode ser considerada a metonímia de Moçambique, que tal como a comunidade vaga procurando por memórias que resolvam seu conflito identitário. 4. Assinale a alternativa verdadeira acerca do romance Eva, do escritor cabo-verdiano Germano Almeida (2006). a) As ações da narrativa transcorrem no espaço de Cabo Verde. Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U4_C08.indd 129 03/07/2017 14:30:16 Literaturas africanas em língua portuguesa130 b) Eva é descrita como uma personagem que rompe com a identidade social imposta às mulheres, assumindo a posição de sujeito de suas relações. c) O núcleo do romance consiste nas disputas entre Luís Henriques e Reinaldo, ambos apaixonados por Eva. d) Reinaldo, jornalista, realiza entrevistas com os cabo-verdianos exilados por serem favoráveis à independência do país. e) O romance apresenta o encontro de seus três personagens principais, Eva, Luís Henriques e Reinaldo, em Lisboa na atualidade. 5. Acerca da literatura produzida por escritores portugueses que acabaram herdando traços culturais africanos, podemos dizer que: a) As narrativas Partes de África, Uma viagem à Índia, O nosso reino e Caderno de memórias coloniais tecem críticas ao colonialismo português. O primeiro e o último o fazem a partir de experiências autobiográficas; já o segundo e o terceiro, a partir de experiências mais ficcionais. b) Helder Macedo, autor nascido na África e identificado como cidadão português, alterna da perspectiva favorável ao colonialismo em seu primeiro romance, Partes de África, para a perspectiva crítica nos seus romances seguintes. c) O nosso reino, romance de Gonçalo Tavares, traz à tona a memória da infância de uma menina, problematizando questões culturais, religiosas, de gênero e de raça. d) Valter Hugo Mãe, com a epopeia pós-moderna Uma viagem à Índia, realiza uma paródia do clássico Os lusíadas, de Luís Vaz de Camões, ironizando o imaginário desbravador que fora tão exaltado no passado lusitano. e) Isabela Figueiredo, com Caderno de memórias coloniais, centra sua crítica apenas em questões de gênero durante o período colonial, mostrando uma perspectiva antes não abordada pela literatura. Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U4_C08.indd 130 03/07/2017 14:30:17 131Autores contemporâneos AGAMBEN, G. O que é contemporâneo?: e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009. ALMEIDA, G. Eva. Lisboa: Caminho, 2006. BHABHA, H. K. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 2013. COUTO, M. Venenos de deus, remédios do diabo: as incuráveis vidas de Vila Cacimba. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. JOÃO Melo: a literatura angolana hoje já não precisa de pedir licença a ninguém. África 21 Online, 03 set. 2015. Disponível em: <http://www.africa21online.com/artigo. php?a=16169&e=Entrevistas>. Acesso em: 18 jun. 2017. LOURES, C. Um grande escritor de Cabo Verde: Germano Almeida. [S.l.]: A Viagem dos Argonautas, 2013. Disponível em: <https://aviagemdosargonautas.net/2013/01/18/ um-grande-escritor-de-cabo-verde-germano-almeida/>. Acesso em: 19 jun. 2017. LYOTARD, J.-F. A condição pós-moderna. 2. ed. Lisboa: Gradiva, 1989. Originalmente publicada em 1979. MELO, J. 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Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U4_C08.indd 131 03/07/2017 14:30:17 http://www.africa21online.com/artigo. https://aviagemdosargonautas.net/2013/01/18/ http://www.revistaplaneta.com.br/mia-couto-e-o-racismo- Encerra aqui o trecho do livro disponibilizado para esta Unidade de Aprendizagem. Na Biblioteca Virtual da Instituição, você encontra a obra na íntegra. Conteúdo: Catalogação na publicação: Poliana Sanchez de Araujo – CRB 10/2094 F722l Forli, Cristina Arena. Literaturas africanas em língua portuguesa / Cristina Arena Forli, Gustavo Henrique Rückert ; revisão técnica: Gabriela Semensato Ferreira. – Porto Alegre : SAGAH, 2017. 132 p. : il. ; 22,5 cm. ISBN 978-85-9502-106-8 1. Literatura africana – Língua portuguesa. 2. Qualidade ambiental. I. Rückert, Gustavo Henrique. II. Título. CDU 821.134.3(6)Revisão técnica: Gabriela Semensato Ferreira Mestra em Letras com ênfase em Literatura Comparada (UFRGS) Graduada em Licenciatura em Letras (UFRGS) Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_Iniciais_Impressa.indd 2 03/07/2017 14:41:17 Comparação entre literatura brasileira e africana Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados. n Reconhecer a importância da intertextualidade na constituição dos textos literários. n Identi� car as relações intertextuais entre obras literárias africanas e brasileiras. n Avaliar os sistemas literários enquanto laços comunitários transnacionais. Introdução Você sabia que autores brasileiros como Jorge Amado, Guimarães Rosa e Manuel Bandeira foram indispensáveis para o desenvolvimento das literaturas africanas em língua portuguesa? Embora ainda não tenham o devido reconhecimento em nosso país, essas literaturas têm muito mais a ver conosco do que imaginamos. Neste texto, você vai estudar um pouco mais sobre as relações entre a literatura brasileira e as literaturas africanas. Diálogos para além do Atlântico Você já parou para pensar como é feito um texto literário? Os românticos defenderam que é a partir da expressão da subjetividade de seu autor. O texto seria, assim, produto de uma individualidade. No entanto, a literatura compa- rada nos mostrou que, diferentemente da perspectiva romântica, um texto é sempre formado por várias vozes. Para a teórica Julia Kristeva (1974, p. 74), U N I D A D E 3 Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U3_C06.indd 91 29/06/2017 18:15:52 “[...] todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto.”. Concluímos assim que a criação de uma obra literária se faz sempre pela utilização de outras obras literárias como referência, seja para a manutenção ou para a ruptura de características. O diálogo explícito ou implícito de uma obra literária com outras, formando uma comunidade textual, foi definido por Kristeva (1974) com o conceito de “intertextuali- dade”. Tania Franco Carvalhal (2001, p. 54), por sua vez, explicou que sempre que isso ocorre, “[...] a repetição sacode a poeira do texto anterior, atualiza-o, renova-o (e por que não dizê-lo?) o re-inventa.”. Nesse sentido, você já se perguntou que textos foram utilizados como referência para a constituição das literaturas africanas? Devido ao fato de essas literaturas configurarem importantes passos rumo à independência (não só política, como cultural) desses países, colonizados por Portugal, a literatura portuguesa deixou de ser seu grande norte referencial. Ao elencar suas leituras fundamentais, então, os escritores africanos de língua portuguesa passaram a observar o Brasil como possibilidade de diálogo mais que possível, indispensável. Em meados do século XX, a literatura brasileira já havia passado pela ruptura conceitual proposta pelos modernistas de 1922, pela perspectiva marxista do romance de 30 e pela solução linguística que Guimarães Rosa apresentou ao problema da distância entre a linguagem literária e a linguagem cotidiana do país. Os escritores afri- canos perceberam então que os diálogos entre África e Brasil, que remontam ao tráfico escravista do período colonial, renderiam no seu presente importantes frutos para a independência cultural de países como Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe. Nas próximas seções iremos abordar alguns pontos decisivos desse diálogo literário transatlântico. O romance de 30 – uma perspectiva crítica da sociedade A partir do fi nal da década de 1920, iniciou no Brasil um dos mais importantes movimentos de regionalização da literatura: o neorrealismo, ou romance de 30, Literaturas africanas em língua portuguesa92 Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U3_C06.indd 92 29/06/2017 18:15:52 como fi cou mais conhecido no país. Escritores como Jorge Amado, Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, José Lins do Rego e Erico Verissimo procuraram evidenciar as condições de trabalho no interior do país. Para isso, optaram frequentemente por narrativas lineares, narradores em terceira pessoa e linguagem objetiva. A partir dessa estrutura, puderam evidenciar as relações entre a propriedade privada das terras e a exploração da mão de obra dos trabalhadores. É importante mencionar que a sociologia brasileira produzia à época algumas de suas mais basilares obras, como Casa grande & senzala (1933), de Gilberto Freyre, e Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Hollanda. Em consonância com esses estudos, os romances de 30 acabavam por defender uma tese sobre a estruturação social do país, pautada na exploração da mão de obra daqueles que não detêm a propriedade de terras. A descoberta de uma literatura que possibilitava a observação da estru- tura social em um país também colonizado por Portugal e que passou pela experiência traumática da escravidão foi fundamental para a consolidação das literaturas africanas em língua portuguesa. O escritor africano que mais dialogou com a perspectiva do romance de 30 brasileiro foi o angolano Castro Soromenho. Em 1949, ele publicou o romance Terra morta, que aborda a deca- dência de brancos, mulatos e negros na vila do Camaxilo. A partir da presente exploração do algodão, retoma as explorações do diamante, da borracha e do marfim – condenando o capitalismo predatório do sistema colonial como o causador da morte da terra. À aplicação do neorrealismo às questões africanas de Soromenho, segui- ram vários outros escritores. Em Cabo Verde, por exemplo, a contribuição do romance de 30 brasileiro foi decisiva para o movimento Claridade (1936), encabeçado por Osvaldo Alcântara, Jorge Barbosa e Manuel Lopes. Esse mo- vimento foi um divisor de águas na literatura do arquipélago, pois iniciou um processo de denúncia à precariedade das condições de vida na então colônia portuguesa. À ruptura do movimento de 1933, segue a Certeza (1944). É no desenvolvimento desse segundo movimento que se destacam os nomes de Manuel Ferreira e Orlanda Amarílis. Ferreira é autor de Hora di bai (1962), romance que inova em relação à linguagem neorrealista alimentando-se da cultura migrante local e da musicalidade da morna, como é conhecido o gênero musical popular do país. No entanto, em relação à denúncia da exploração social ocorrida no período colonial, sua obra revela profundo diálogo com nomes como Jorge Amado e Graciliano Ramos. Amarílis, em obras como Cais-do-Sodré té Salamansa (1974), denuncia a realidade social, com especial enfoque na condição da mulher, também pela perspectiva neorrealista. 93Comparação entre literatura brasileira e africana Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U3_C06.indd 93 29/06/2017 18:15:52 Em Angola e Moçambique, Luandino Vieira e Luís Bernardo Honwana revelam também a importância do romance de 30 para suas obras. Luandino, apesar de adotar uma perspectiva linguística bastante distinta da estética neorrealista, denuncia em obras como A vida verdadeira de Domingos Xavier (1961) e Luuanda (1963) a violência do sistema colonial na periferia de Angola. Honwana, por sua vez, com linguagem muito mais sintética que os neorre- alistas, revela o quanto o racismo e a violência estão arraigados à estrutura social moçambicana. Apesar das diferenças linguísticas, a representação da sociedade colonial na produção desses autores deve muito à proposta dos escritores brasileiros. Por isso, o romance de 30 brasileiro foi fundamental à consolidação das literaturas africanas em língua portuguesa, sendo relevante não apenas aos autores mencionados, mas às gerações que os seguem. Em nomes como Jorge Amado, Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, José Lins do Rego e Erico Verissimo, os africanos encontraram o grande contributo para a leitura e a representação de sua realidade social, emprestando uma visão mais crítica aos textos literários. No caso do escritor baiano,sobretudo, encontraram uma referência de valores inestimáveis, visto que, além do alcance social de sua obra, havia maior interesse pelos aspectos da cultura afrodescendente e uma maior proximidade da linguagem popular em comparação aos demais neorrealistas. Guimarães Rosa e a solução para a problemática da linguagem narrativa Um dos principais problemas da literatura regionalista brasileira do século XIX consistia no abismo linguístico entre os narradores e os homens re- presentados na condição de personagens. Aqueles, com linguagem cientifi - cista e ponto de vista predominantemente urbano, acabavam reproduzindo preconceitos para descrever estes. Um dos primeiros escritores a resolver esse problema é Simões Lopes Neto, que cria Blau Nunes, uma espécie de contador de causos do interior do Rio Grande do Sul para assumir a condição de narrador de seus contos. Assim, a literatura aproximava-se da linguagem e da visão de mundo do homem interiorano. Já em meados do século XX, João Guimarães Rosa consolida a postura iniciada por Lopes Neto. Em seus contos e romances, Guimarães Rosa recorre a narradores que remontam sertanejos do norte de Minas Gerais. Se os regionalistas de outrora haviam descrito com preconceitos os sujeitos dos sertões do país, Literaturas africanas em língua portuguesa94 Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U3_C06.indd 94 29/06/2017 18:15:53 Rosa levava à excelência uma literatura que ia em sentido oposto: revelava poeticidade na narrativa oral desses sujeitos e densidade fi losófi ca na sua representação de mundo. Nas literaturas africanas, uma das discussões centrais sempre foi a ques- tão linguística. Escrever em português significaria escrever na língua do colonizador. No entanto, as línguas locais chegam a dezenas em cada um dos países – muitas delas sem registros gráficos. Dessa forma, essas línguas mostravam-se insuficientes para literatura, considerando o número de leitores que teriam acesso às obras. Apropriar-se da língua portuguesa foi, então, tarefa fundamental na literatura e na política desses países. No campo político, essa apropriação possibilitou a criação de uma unidade entre os diferentes povos que habitavam os futuros países. No campo literário, a partir da leitura de obras como Sagarana (1946), Grande sertão: veredas (1956) e Primeiras estórias (1962), de Guimarães Rosa, os escritores africanos perceberam que era possível utilizar a língua portuguesa como expressão da cultura popular local em suas narrativas. O escritor decisivo para o diálogo entre o sertanejo do norte de Minas e a África foi o angolano José Luandino Vieira. A partir da experiência de Rosa, Vieira percebeu a viabilidade da voz de sujeitos populares ser explorada literariamente. Assim, buscou no português hibridizado com o quimbundo, linguagem comum à oralidade de muitos musseques (bairros periféricos) da capital Luanda, o estilo de seus narradores. Obras como sua novela A vida verdadeira de Domingos Xavier (1961), seu romance Nós, os do Makulusu (1974) e, especialmente, sua coletânea de contos Luuanda (1963) – este último o primeiro livro africano premiado em Portugal – foram fundamentais à ques- tão linguística nas literaturas africanas em língua portuguesa, tornando-se referência indispensável à sua geração e às seguintes. Na esteira do diálogo entre Luandino Vieira e Guimarães Rosa está um dos autores africanos mais reconhecidos da atualidade: o moçambicano Mia Couto. Nas suas obras, prevalece o poder da fabulação que uma narrativa pode oferecer. Para obter essa força do contar histórias, Couto também recorre aos narradores orais populares de Moçambique, recriando seus universos linguísticos entre o português e as línguas locais, mas, assim como Guimarães Rosa, também utilizando bastante de neologismos. É autor, entre outros, de Vozes anoitecidas (1986), Terra sonâmbula (1992) – considerado um dos doze livros mais importantes do continente africano no século XX –, Estórias abensonhadas (1994) e O outro pé da sereia (2006) – obras aclamadas pela crítica e comumente elogiadas no que diz respeito ao aspecto linguístico. 95Comparação entre literatura brasileira e africana Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U3_C06.indd 95 29/06/2017 18:15:53 Observe o seguinte trecho da entrevista de Mia Couto concedida a Paulo Hebmüller (2016): Entrevistador: Quando o senhor começou a achar que era hora de transpor essas vozes para a escrita? Mia Couto: Essa África onde eu vivo é uma sociedade que escuta. As pessoas escutam os outros e, na conversa, há uma distribuição de tempos: o tempo da fala e o tempo da escuta, como se por turnos as pessoas soubessem o que têm de fazer. Acho que houve um momento em que eu, já jornalista, fui tentado a escrever as histórias que escutava. Essas histórias estavam tão vivas, tinham tanta força, que pediam que fossem transportadas dessa oralidade para a escrita. Mas aí percebi que a própria escrita tinha de mudar. Aquela que eu sabia e reconhecia não acomodava essa riqueza, essa coloração e, sobretudo, a música, a prosódia. Comecei à procura de uma escrita que fosse plástica e permitisse essa inundação da oralidade. Fiz um primeiro livro (Vozes Anoitecidas, 1987) já muito influenciado por um angolano chamado Luandino Vieira, que abriu portas à oralidade da sua cidade, Luanda, e li uma entrevista em que ele fazia referência à influência de João Guimarães Rosa em seu trabalho. Então, fui à procura de Guimarães Rosa. Nos meus livros seguintes, como Estórias Abensonhadas (1994), já tive esse encontro, que realmente foi importante porque havia ali uma legitimação: é possível fazer isso, é possível deixar entrar essas vozes. Pasárgada no imaginário cabo-verdiano Se a literatura brasileira foi referência fundamental às literaturas africanas em língua portuguesa, no caso específi co da literatura cabo-verdiana foi ainda maior. Por questões históricas, como a grande pluralidade étnica, sobretudo a partir da diáspora negra, a cultura de Cabo Verde apresenta traços muito evidentes de semelhanças culturais com o Brasil, como na religiosidade ou na musicalidade, por exemplo. Dessa forma, a literatura brasileira foi muito lida nas ilhas que compõem o arquipélago. Como você já viu anteriormente, o romance de 30, sobretudo de nordestinos como Jorge Amado, Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Rachel de Queiroz, uma vez que também retra- tavam do drama da seca, foram imprescindíveis aos movimentos literários cabo-verdianos no século XX. No entanto, um poeta modernista brasileiro fi cou marcado na cultura local de forma bastante singular: Manuel Bandeira. O recifense Manuel Bandeira é um dos principais poetas da história brasi- leira. Como poucos, conseguiu unir cultura popular à tradição lírica, criando uma voz poética de rara sensibilidade e beleza. É essa percepção da estética possível, a partir da oralidade popular, que encantou seu público africano. Um poema em específico, “Vou-me embora pra Pasárgada”, acabou compondo a Literaturas africanas em língua portuguesa96 Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U3_C06.indd 96 29/06/2017 18:15:53 concepção cabo-verdiana dos espaços estrangeiros e locais. O poema, publicado na coletânea Libertinagem (1930), cria a ideia de um lugar idílico, Pasárgada, onde seria possível a realização de tudo aquilo que não seria no plano real. Há, dessa forma, uma erotização das possibilidades mencionadas pelo eu-lírico nesse plano imaginário. Observe (BANDEIRA, 2007, p. 146-147): Vou-me embora pra Pasárgada Lá sou amigo do rei Lá tenho a mulher que eu quero Na cama que escolherei Vou-me embora pra Pasárgada Vou-me embora pra Pasárgada Aqui eu não sou feliz Lá a existência é uma aventura De tal modo inconsequente Que Joana a Louca de Espanha Rainha e falsa demente Vem a ser contraparente Da nora que nunca tive E como farei ginástica Andarei de bicicleta Montarei em burro brabo Subirei no pau-de-sebo Tomarei banhos de mar!E quando estiver cansado Deito na beira do rio Mando chamar a mãe-d’água Pra me contar as histórias Que no tempo de eu menino Rosa vinha me contar Vou-me embora pra Pasárgada Em Pasárgada tem tudo É outra civilização Tem um processo seguro De impedir a concepção Tem telefone automático 97Comparação entre literatura brasileira e africana Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U3_C06.indd 97 29/06/2017 18:15:53 Tem alcalóide à vontade Tem prostitutas bonitas Para a gente namorar E quando eu estiver mais triste Mas triste de não ter jeito Quando de noite me der Vontade de me matar — Lá sou amigo do rei — Terei a mulher que eu quero Na cama que escolherei Vou-me embora pra Pasárgada. O movimento Claridade (1936) foi fundamental na denúncia das condições de miséria pelas quais passavam os cabo-verdianos. Uma das formas de ressaltar essa questão era enfatizar a expectativa por condições melhores fora do país. Nesse contexto, Osvaldo Alcântara se apropriou do lugar ficcional criado por Bandeira para ressignificá-lo no imaginário local. Pasárgada, então, passava a significar qualquer terra estrangeira onde pudessem residir os sonhos de melhores con- dições de vida, com emprego, moradia, alimentação, água etc. Observe a seguir o poema “Itinerário de Pasárgada” (ALCÂNTARA apud ANDRADE, 1975, p. 32): Saudade fina de Pasárgada... Em Pasárgada eu saberia Onde é que Deus tinha depositado O meu destino... E na altura em que tudo morre... (cavalinhos de Nosso Senhor correm no céu; a vizinha acalenta o sono do filho rezingão; Tói Mulato foge a bordo de um vapor; O comerciante tirou a menina de casa; Os mocinhos de minha rua cantam Indo eu, indo eu, A caminho de Vizeu...) Na hora em que tudo morre, Essa saudade fina de Pasárgada É um veneno gostoso dentro do meu coração. Literaturas africanas em língua portuguesa98 Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U3_C06.indd 98 29/06/2017 18:15:53 É interessante perceber que o cotidiano cabo-verdiano é descrito com uma interpolação do verso “E na hora em que tudo morre”. Se Cabo Verde se caracteriza a partir do “tudo morre”, por oposição as terras estrangeiras (Pasárgada) são a promessa de vida. O movimento Certeza (1944) seguiu a perspectiva de denúncia das condições locais dos claridosos. No entanto, adotou uma perspectiva fundamentalmente oposta: o antievasionismo. Assim, a despeito da miséria, das condições climáticas e do descaso colonial, adotava a postura de ficar nas ilhas para construir a nação cabo-verdiana. Ovídio Martins, nesse sentido, respondeu ao poema de Osvaldo Alcântara, mantendo o mesmo significado para Pasárgada, no entanto adotando uma perspectiva completamente oposta em relação a ele. Observe o poema “Antievasão” (MARTINS apud ANDRADE, 1975, p. 48): Pedirei Suplicarei Chorarei Não vou para Pasárgada Atirar-me-ei ao chão E prenderei nas mãos convulsas Ervas e pedras de sangue Não vou para Pasárgada Gritarei Berrarei Matarei Não vou para Pasárgada. Ressalta-se que a vontade de permanecer em Cabo Verde (não ir para Pasárgada) é tão grande que a gradação de ações expressas nos versos chega ao extremo: “matarei”. Os versos “[...] atirar-me-ei ao chão/ E prenderei nas mãos convulsas/ Ervas e pedras de sangue [...]” revelam que esse permanecer nas ilhas está ligado a assumir uma identidade cabo-verdiana, amalgamando o ser e o espaço geográfico em que vive. A apropriação do lugar criado por Manuel Bandeira ressalta, portanto, a decisiva contribuição do autor para as discussões literárias, sociais e políticas 99Comparação entre literatura brasileira e africana Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U3_C06.indd 99 29/06/2017 18:15:53 do local. A ideia de Pasárgada ficou tão arraigada à cultura local que os escri- tores ligados aos movimentos Claridade e Certeza também são comumente mencionados como pasargadistas e antipasagardistas. Conclusão: um sistema literário transnacional e descolonizante Como você pôde perceber, a literatura brasileira foi fundamental à consoli- dação das literaturas africanas de língua portuguesa. De maneira especial, o modernismo brasileiro, nas suas mais variadas manifestações, ofereceu intertexto necessário para que essas literaturas afi rmassem o compromisso com as culturas locais. Vale lembrar que o modernismo foi o grande movi- mento de ruptura da literatura nacional com os laços lusitanos, tão comuns às estéticas anteriores. Por isso, a voz e o cotidiano das camadas populares do país passaram a integrar, de diferentes formas, nossa estética literária. É possível entender, dessa forma, que as relações intertextuais que foram aqui abordadas confi guram alguns elementos de um grande sistema literário transnacional. Esse sistema buscou, por meio da solidariedade entre dife- rentes países da comunidade lusófona, criar elementos que possibilitassem sua descolonização cultural. É importante mencionar, no entanto, que esse diálogo ainda ocorre so- bretudo em mão única. Se os africanos tomaram a literatura brasileira como referência indispensável para pensar os seus países, o movimento contrário ainda é muito pouco explorado no Brasil. Apesar dos destacados esforços de alguns escritores, pesquisadores e movimentos sociais, a literatura produzida em Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe ainda é muito pouco conhecida no país. Nesse sentido, a atividade dos atuais e futuros docentes de literatura é fundamental para reverter esse quadro. Afinal, conhecer nossas origens para além do Atlântico é primordial para conhecermo-nos. Literaturas africanas em língua portuguesa100 Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U3_C06.indd 100 29/06/2017 18:15:53 1. Assinale a alternativa que corresponde à contribuição do romance de 30 brasileiro para a consolidação das literaturas africanas em língua portuguesa. a) O romance de 30 resolve o problema do abismo linguístico entre o narrador e os personagens representados, possibilitando às literaturas africanas a inserção da oralidade de sujeitos populares à narrativa literária. b) Ao evidenciar as relações entre a propriedade privada das terras e a exploração da mão de obra dos trabalhadores, o romance de 30 ofereceu às literaturas africanas a possibilidade de uma visão mais crítica da sociedade. c) Em virtude de seu rebuscamento formal, com inversões cronológicas, fragmentação e linguagem hermética, o romance de 30 possibilitou a renovação estética das características formais dos romances africanos. d) O romance de 30, por meio da representação crítica dos grandes líderes estatistas, acabou por emprestar às literaturas africanas novas possibilidades de representação dos dilemas coloniais. e) O romance de 30 emprestou novos significados às concepções cabo-verdianas dos espaços estrangeiros e locais. 2. Observe o seguinte trecho, retirado de uma entrevista concedida por Guimarães Rosa a Günter Lorenz (1973): “Nós, os homens do sertão, somos fabulistas por natureza. Está no nosso sangue narrar estórias; já no berço recebemos esse dom para toda a vida. Desde pequenos, estamos constantemente escutando as narrativas multicoloridas dos velhos, os contos e lendas [...]. Eu trazia sempre os ouvidos atentos, escutava todo o que podia e comecei a transformar em lenda o ambiente que me rodeava, porque este, em sua essência, era e continua sendo uma lenda.” (ROSA apud LORENZ, 1973, p. 315). Qual dos seguintes trechos de obras literárias africanas mais se assemelha à concepção criativa explicada por Guimarães Rosa? a) “Estes casos passaram no musseque Sambizanga, nesta nossa terra de Luanda.” “Minha estória. Se é bonita, se é feia, vocês é que sabem. Eu só juro não falei mentira e estes casos passaram na nossa terra de Luanda.” (VIEIRA, 2008, p. 152). b) “‘Portanto, só os ciclos eram eternos.’ (Na prova oral de Aptidão à Faculdade de Letras, em Lisboa, o examinador fez uma pergunta aofuturo escritor. Este respondeu hesitantemente, iniciando com um portanto. De onde é o senhor, perguntou o professor, ao que o escritor respondeu de Angola. Logo vi que não sabia falar português, então desconhece que a palavra portanto só se utiliza como 101Comparação entre literatura brasileira e africana Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U3_C06.indd 101 29/06/2017 18:15:53 conclusão dum raciocínio?” (PEPETELA, 1992, p. 11). c) “Os angolanos, além de gostarem de makas, de farrar até de manhã, de chegar tarde aos seus compromissos e de usar e abusar do humor, inclusive contra eles mesmos, também sempre foram pós-modernos avant la lettre. Iconoclastas, não levam nada demasiado a sério, chegando ao ponto de abandalhar – este termo pode ser pouco literário, mas, enfim, o que fazer, se o próprio escritor é angolano?” (MELO, 2006, p. 33). d) “Titina acordou e estava a gozar a sabura da cama. Virou-se para a parede. As maçanetas tremeram e Titina enroscou-se melhor sobre si mesma. Branca, a camita de ferro, tanto à cabeceira como nos pés era rematada com um rendilhado – pareciam as lérias da titia, tendo ao centro, também em ferro, um desgracioso ramo de folhas pendentes em leque, pintado a esmalte verde.” (AMARÍLIS, 1991, p. 99). e) “– Faustino só tirava o dedo do botão quando o elevador aparecia. – Como é? Porco no elevador? – Porco não. Leitão, camarada Faustino. – Dá no mesmo em matéria de interpretação de leis. – Quais leis? – O problema é o que a gente combinou na assembleia de moradores e o camarada estava presente. Votação por unanimidade. Aqui no elevador só pessoas. E coisas só no monta-cargas.” (RUI, 1991, p. 7). 3. Entre as alternativas a seguir, assinale a que apresenta uma afirmação correta sobre a apropriação da imagem de Pasárgada nas literaturas africanas em língua portuguesa: a) Ovídio Martins ressignifica Pasárgada como um lugar idílico, onde seria possível a realização do que não aconteceria no plano real. b) Pasárgada, para Osvaldo Alcântara, passa a ter um sentido que sugere a erotização das possibilidades no plano imaginário. c) Para Martins, ao contrário de Alcântara, Pasárgada passa a significar qualquer terra estrangeira em que os cabo- verdianos pudessem ter melhores condições de vida. d) Alcântara se vale da imagem de Pasárgada como a terra da promessa de vida para criticar a visão evasionista de Martins. e) Martins mantém a imagem de Pasárgada criada por Alcântara, no entanto inverte a postura de seu eu-lírico, enfatizando uma visão evasionista. 4. Assinale o conjunto de obras que estabelece relações mais evidentes entre suas propostas estéticas. a) Cacau (1933), Jorge Amado. Terra morta (1949), Castro Soromenho. Grande sertão: veredas (1956), Guimarães Rosa. b) Sagarana (1946), Guimarães Rosa. Luuanda (1963), Luandino Vieira. Terra morta (1949), Castro Soromenho. Literaturas africanas em língua portuguesa102 Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U3_C06.indd 102 29/06/2017 18:15:54 c) “Vou-me embora pra Pasárgada” (Libertinagem) (1930), Manuel Bandeira. Sagrada Esperança (1974), Agostinho Neto. Gritarei, Berrarei, Matarei – Não vou para Pasárgada (1973), Ovídio Martins. d) Terras do Sem-Fim (1943), Jorge Amado. O quinze (1930), Rachel de Queiroz. Terra morta (1949), Castro Soromenho. e) Vidas secas (1948), Graciliano Ramos. Primeiras estórias (1962), Guimarães Rosa. Estórias abensonhadas (1994), Mia Couto. 5. Sobre as relações de intertextualidade envolvendo a literatura brasileira e as literaturas africanas em língua portuguesa, é correto afirmar que: a) as literaturas africanas de língua portuguesa consolidam-se ao romper os laços intertextuais com as literaturas portuguesa e brasileira. b) as literaturas africanas em língua portuguesa têm sido, desde o século XIX, uma das principais referências para as obras literárias brasileiras. c) para romper com a literatura do colonizador, as literaturas africanas optam por copiar a literatura brasileira, pois essa já havia realizado tal ruptura com o modernismo. d) as relações estabelecidas entre a literatura brasileira e as literaturas africanas no século XX contribuem decisivamente para a luta contra a colonização, seja em sua manifestação política ou cultural. e) a grande contribuição da literatura brasileira às literaturas africanas diz respeito à linguagem, com especial destaque ao trabalho de Guimarães Rosa, já que as temáticas de nosso país pouco contribuíram para esse diálogo. 103Comparação entre literatura brasileira e africana Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U3_C06.indd 103 29/06/2017 18:15:54 AMARÍLIS, O. Cais-do-Sodré té Salamansa. Lisboa: ALAC, 1991. ANDRADE, M. P. Antologia temática da poesia africana I: na noite grávida de punhais. Lisboa: Sá da Costa, 1975. v. 1. BANDEIRA, M. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007. CARVALHAL, T. F. Literatura comparada. São Paulo: Ática, 2001. HEBMÜLLER, P. Mia Couto: a tribo dos contadores de histórias. Porto Alegre: Fronteiras do Pensamento, 2016. Disponível em: <http://www.fronteiras.com/entrevistas/mia- -couto-a-tribo-de-contadores-de-historias>. Acesso em: 06 jun. 2017. KRISTEVA, J. Introdução à semanálise. São Paulo: Perspectiva, 1974. LORENZ, G. João Guimarães Rosa. In: LORENZ, G. Diálogo com a América Latina: pa- norama de uma literatura do futuro. São Paulo: E.P.U., 1973. p. 315-355. MELO, J. O dia em que o Pato Donald comeu pela primeira vez a Margarida. Lisboa: Caminho, 2006. PEPETELA. A geração da utopia. Lisboa: Dom Quixote, 1992. RUI, M. Quem me dera ser onda. Lisboa: Cotovia, 1991. VIEIRA, J. L. Luuanda. Lisboa: Caminho, 2008. Leituras recomendadas ABDALA JUNIOR, B. Literatura, história e política: literaturas de língua portuguesa no século XX. Cotia: Ateliê Editorial, 2007. FERREIRA, M. Literaturas africanas de expressão portuguesa. São Paulo: Ática, 1987. (Fundamentos). Literaturas africanas em língua portuguesa104 Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U3_C06.indd 104 29/06/2017 18:15:54 http://www.fronteiras.com/entrevistas/mia- Encerra aqui o trecho do livro disponibilizado para esta Unidade de Aprendizagem. Na Biblioteca Virtual da Instituição, você encontra a obra na íntegra. Conteúdo: ESTUDOS DE LITERATURA - ANÁLISE DA NARRATIVA EM SUAS DIVERSAS MANIFESTAÇÕES Elisa Lima Abrantes Raça e cor nos textos em prosa Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Definir raça, cor e identidade no contexto da literatura. Discutir possibilidades de interpretação a partir de conceitos como raça, cor e identidade. Analisar obras de Maria Firmina dos Reis, Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo. Introdução Na contemporaneidade, conceitos como os de identidade e discursos que procuram representá-la passam por categorias como raça, cor, gênero e sexualidade. A literatura, como expressão artística de seu tempo, articula os mundos possíveis da imaginação com os contextos históricos a que todos estamos submetidos, e, naturalmente, essas questões, próprias da contemporaneidade, são abordadas. Os estudos culturais e pós-coloniais se dedicam a estudar essas questões identitárias, aliadas à revisão de noções como cultura e história, para compreender o mundo de uma maneira mais plural. Neste capítulo, você será apresentado aos conceitos de raça, cor e identidade no contexto da literatura, examinará as possibilidades de interpretação a partir desses conceitos e conhecerá um pouco da obra de escritoras brasileiras negras, como Maria Firmina dos Reis, Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo. 1 Raça, cor e identidade no contexto da literatura Antes de mais nada, biologicamente falando, não existem diferentes raças humanas, pois não há diferenças genéticas signifi cativas entre os vários grupos étnicos. Portanto, quandofalamos “raça”, estamos nos referindo, na verdade, à etnia, que é uma categoria de pessoas que se identifi cam mutuamente com base em uma genealogia ou ancestralidade comum presumida e em semelhanças de aparência física, de língua, história, sociedade, cultura ou nação em comum. O conceito de raça é muito usado, contemporaneamente, de forma política e social. A esse respeito, vejamos o que a historiadora Lilia Schwarcz (2012, p. 34) comenta sobre o conceito: A bem da verdade, trata-se de um conceito construído histórica e socialmente, embora ele persista como uma representação poderosa, como um marcador social de diferença — ao lado de categorias como gênero, classe, religião e idade, que se relacionam e se retroalimentam — a construir hierarquias e delimitar discriminações. Raça é, pois, uma categoria classificatória que deve ser compreendida como uma construção local, histórica e cultural, que tanto pertence à ordem das representações sociais — assim como são as fantasias, mitos e ideologias — como exerce influência real no mundo, por meio da produção e reprodução de identidades coletivas e de hierarquias sociais politicamente poderosas. Ou seja, o termo “raça” persiste na literatura, pois esta lida com repre- sentações, e, como afirma Schwarcz, raça é uma representação (política) poderosa e marca social de diferença. Nesse contexto, cor, outro elemento ao qual também nos referimos na literatura contemporânea, não é o mesmo que o conceito de regionalismo, ou cor local, que se refere a características especificas de uma determinada região ou época, muito adotado no período do romantismo brasileiro, em que os escritores incluíam dialetos, detalhes de história e topografia para criar uma atmosfera que refletisse, em certos aspectos, a realidade daquele momento ou daquela área geográfica. Quando falamos de cor, nos referimos aqui à cor da pele, clara ou escura, que podemos associar aos termos ideologicamente opostos: a tese racista do branqueamento no Brasil imperial do século XIX e, de outro lado, o movimento da negritude no século XX. O primeiro tinha por princípio a eugenia, que visava “aprimorar” as qualidades das futuras gerações, física ou mentalmente, e, acreditando na superioridade do homem branco, buscava o branqueamento dos brasileiros por meio do incentivo à imigração europeia com financiamentos do governo e por meio da miscigenação, com o intuito declarado de reduzir a população negra no país. O segundo termo, ao contrário, trata do orgulho de ser negro. Raça e cor nos textos em prosa2 O termo negritude surgiu pela primeira vez por volta de 1934 em Paris e foi definido, segundo Zilá Bernd (1988a), como uma revolução na linguagem e na literatura, que permitia reverter o sentido pejorativo da palavra negro para dele extrair um sentido positivo. O conceito de negritude ingressou na literatura em 1939, quando foi usado em um poema do caribenho Aimé Césaire (1913–2008), poeta, ensaísta, político e ideólogo da negritude. Nas palavras de pesquisadoras do assunto, como Zilá Bernd e Maria Na- zareth Fonseca, temos que: Historicamente, a negritude, considerada em seu sentido amplo, isto é, como momento primeiro de tomada de consciência de uma situação de dominação e/ou discriminação, pode ser situada em solo americano quase que simul- taneamente à chegada dos primeiros escravos oriundos da África. Nesta medida, podem ser consideradas como manifestações da negritude a revolta dos escravos no Haiti, onde liderados por Toussaint Louverture os negros chegaram a obter a independência do país em 1804, e os quilombos brasileiros, que representaram o primeiro sinal de revolta contra o dominador branco (BERND, 1988a, p. 21). Fonseca e Duarte (2011, documento on-line) complementam o conceito de negritude ao afirmar que: Os movimentos literários da negritude definirão fortemente os traços mais significativos do conceito. São eles: a celebração de concepções e valores próprios de diferentes culturas africanas; e a busca de uma origem africana, que redundará por vezes na representação de uma África mítica, imaginada e, até mesmo, na retomada de alguns clichês sobre o exotismo do continente. Essa valorização de culturas africanas tem a ver com o fato de tratar-se de culturas que resistiram à assimilação do colonizador europeu. Para Bernd (1988, p. 52–53), a negritude foi um movimento que “[...] pretendeu provocar uma ruptura com um padrão cultural imposto pelo colonizador como único e universal”. Portanto, a literatura negra, para além dos procedimentos estéticos, expressa a consciência social do negro e se estabelece como um processo contínuo de afirmação identitária, culturalmente entendida. 3Raça e cor nos textos em prosa Por identidade cultural, de acordo com Rovira (2008, p. 3), temos que: [...] a identidade cultural abrange tudo o que se relaciona à pessoa, a seu sentido de pertença, a seu sistema de crenças, a seus sentimentos de valor pessoal. É a soma total dos modos de vida forjados por um grupo de seres humanos e transmitidos de geração em geração. A identidade cultural sou eu, e tenho o direito de conhecê-la e entendê-la. E, ao dar-me conta de quem sou, é provável que minha conduta manifeste traços positivos de identidade. Sendo assim, a identidade cultural é a consciência de se pertencer a uma identidade coletiva, compartilhando com um determinado grupo valores, atitudes e características; envolve também se definir a partir da relação de diferença com outras identidades. Daí percebemos que a identidade também é uma construção histórica e social, como raça e cor, que tratamos anterior- mente nesta seção. Analisando esses contextos, torna-se mais fácil entender a representação e a imbricação de raça, cor e identidade na literatura brasileira, de estereótipos criados por autores brancos, como analisados nos estudos de David Brookshaw (1983), Raça e cor na literatura brasileira, e Domício Proença Filho (2004), A trajetória do negro na literatura brasileira, até a literatura afro-brasileira, produzida por escritores negros e que conta com nomes como Maria Firmina dos Reis, considerada a primeira romancista negra brasileira, e as hoje consa- gradas Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo e Ana Maria Gonçalves, entre muitos outros autores e autoras afrodescendentes. Para confirmar que exemplos da literatura afrodescendente podem ser examinados desde o século XIX, vejamos o que diz Eduardo de Assis Duarte (2011, p. 1): No alvorecer do século XXI, a literatura afro-brasileira passa por um momento extremamente rico em realizações e descobertas, que propiciam a ampliação de seu corpus, tanto na prosa quanto na poesia, paralelamente ao debate em prol de sua consolidação acadêmica enquanto campo específico de produção literária — distinto, porém em permanente diálogo com a literatura brasileira tout court. Enquanto muitos na academia ainda indagam se a literatura afro- -brasileira realmente existe — e assinalemos aqui até mesmo a perversidade de uma pergunta que às vezes não deseja ouvir resposta —, a cada dia a pesquisa nos aponta para a vigor dessa escrita: ela tanto é contemporânea, quanto se estende a Domingos Caldas Barbosa, em pleno século XVIII; tanto é realizada nos grandes centros, com dezenas de poetas e ficcionistas, quanto se espraia pelas literaturas regionais, a nos revelar, por exemplo, uma Maria Firmina dos Reis escrevendo, em São Luiz do Maranhão, o primeiro romance afrodescendente da língua portuguesa — Úrsula — no mesmo ano de 1859 em que Luiz Gama publica suas Trovas burlescas.[...] Enfim, essa Raça e cor nos textos em prosa4 literatura não só existe como se faz presente nos tempos e espaços históricos de nossa constituição enquanto povo; não só existe como é múltipla e diversa (FONSECA; DUARTE, 2011, p. 1). A existência de uma literatura afro-brasileira se distingue de uma litera- tura que apenas tematiza o negro. Para Bernd (1988b), trata-se de um tipo de literaturaque se caracteriza pelo surgimento de um eu enunciador que se quer negro, assumindo posicionamentos políticos e ideológicos. Essa seria a marca que diferencia o discurso sobre o negro, bastante presente na literatura brasileira, como veremos mais adiante, e um discurso do negro, que é um discurso de identidade. Esse discurso pretende compreender o significado de ser negro no Brasil por meio do resgate de uma tradição e de uma história de lutas, conquistas e retrocessos que não está nos livros didáticos. Passemos então, brevemente, ao discurso sobre o negro na literatura, que foi construído a partir de estereótipos, como apresentado por Gama (2004) em seu estudo sobre a trajetória do negro na literatura brasileira. Para esse autor, embora tal discurso tenha se manifestado mais fortemente no século XIX, já estava presente nos versos satíricos de Gregório de Matos no século XVII, que retratava o negro como objeto e o inferiorizava. Que falta nesta cidade?... Verdade. Que mais por sua desonra?... Honra. Falta mais que se lhe ponha?... Vergonha. [...] Quem são seus doces objetos?... Pretos. Tem outros bens mais maciços?... Mestiços. Quais destes lhe são mais gratos?... Mulatos. Dou ao demo os insensatos, Dou ao demo a gente asnal, Que estima por cabedal Pretos, mestiços, mulatos (GAMA, 2004, p.162). Já no século XIX, são recorrentes os estereótipos, os quais Gama (2004) classifica como “escravos nobres”, que vencem por conta de seu branque- amento, como em Escrava Isaura (1872), de Bernardo Guimarães, de pele clara e tendo recebido educação de seus senhores, e o personagem Raimundo, mulato de olhos azuis do romance O mulato (1881), de Aluísio de Azevedo. Essa “nobreza” de caráter se alinha à aceitação da submissão, como Isaura, que diz para sua senhora saber reconhecer o seu lugar, e por isso não reclama da sorte, ou Raimundo, que por ser filho de uma escrava enfrenta o preconceito 5Raça e cor nos textos em prosa da família da mulher amada e se pergunta como poderia apagar a própria história da lembrança das pessoas que o detestam. O “negro vítima”, principalmente no seu sofrimento como escravo, é outro estereótipo muito recorrente, como no poema “Navio negreiro”, de Castro Alves: “Era um sonho dantesco... o tombadilho / Que das luzernas avermelha o brilho. / Em sangue a se banhar. / Tinir de ferros... estalar de açoite... Legiões de homens negros como a noite, / Horrendos a dançar” (O NAVIO..., c2020, documento on-line). Apesar de aqui o sofrimento do negro ser enfatizado e entendido como denúncia dessa realidade, outras dimensões de sua existência como sujeito não são mencionadas. Há também o “negro infantilizado, serviçal e subalterno”, como em O demônio familiar, de José de Alencar. Outra construção é o “negro pervertido”, como no romance O bom crioulo (1885), de Adolfo Caminha, trazendo à luz uma história de homossexualismo, e em A carne (1888), de Júlio Ribeiro, em que a protagonista Lenita apresenta um comportamento mais livre, segundo o narrador, pela convivência com os escravos. Temos ainda estereótipos do negro fiel e do exilado da cultura brasileira. Por outro lado, para além do estereótipo, na década de 1980 surgem obras que resgatam a figura do negro, mas o fazem de maneira um tanto distan- ciada, geralmente a partir de narradores em terceira pessoa, como no romance Tambores de São Luís (1985), de Josué Montello, que se aproxima de um romance histórico. Outro exemplo é João Ubaldo Ribeiro que, em Viva o povo brasileiro (1984), traz considerações a respeito da formação histórica do brasileiro em relação à sua identidade e a respeito da busca por liberdade e igualdade de negros e mestiços na sociedade. José Lins do Rego, por sua vez, em seus romances do ciclo do açúcar (1932–1936) retrata o papel do trabalho negro nas usinas. Essas representações, entre muitas outras, chamam a atenção para um certo distanciamento entre autor e personagens, ao contrário da literatura afro-brasileira contemporânea, que é uma literatura identitária e que reflete sobre as questões do ser negro na sociedade brasileira. Um dos mais impor- tantes autores brasileiros de todos os tempos, Machado de Assis, levanta hipóteses acerca da falta de aspectos ideológicos afirmativos em relação à etnia em sua obra ficcional. Machado, mulato, não trata da temática negra, e parece até mesmo indiferente a ela. Seus personagens negros e mestiços participam como figurantes nas histórias, como se fossem apenas parte da paisagem humana que constitui a realidade social que pretende retratar. No entanto, há algumas exceções, como no conto “Pai e mãe”, em que, embora a escrava seja uma personagem secundária, sua situação e a violência a que Raça e cor nos textos em prosa6 é submetida são centrais para o desenvolvimento da trama. O final do conto causa mais impacto, já que existe a troca de uma vida por outra. O bebê da escrava morre e o do branco sobrevive. Já Cruz e Sousa (1861–1898), poeta simbolista brasileiro, negro, filho de escravos alforriados, com nome, sobrenome e educação esmerada ganhos dos senhores de seus pais, tendo sofrido amargamente a violência, traz em sua obra as marcas do conflito que experimentava. Assim, assumiu a luta contra a opressão racial e, entre outras atividades, dirigiu o jornal O Moleque, além de deixar poemas e textos em prosa comprometidos com a causa abolicionista. Essa vertente literária de escritores negros, que lida com as causas importantes para esse grupo de forma compromissada, tem representantes desde o século XIX. A seguir, veremos algumas possibilidades de interpretação literária a partir dos conceitos de raça, cor e identidade. 2 Possibilidades de interpretação a partir dos conceitos de raça, cor e identidade Desde a segunda metade do século XX, após a Segunda Guerra Mundial (1939–1945), o mundo vem passando por transformações rápidas e intensas. A noção e percepção que o sujeito tem de si e do mundo vem sendo modifi - cada, juntamente com os grandes movimentos sociais que impulsionaram as discussões sobre as relações de poder. Sensíveis às questões de raça, classe social, gênero e ideologia, os estudos culturais refl etem sobre relações de poder, identidade, sexualidade e etnicidade. Os estudos pós-coloniais, por sua vez, que se ocupam do imperialismo, do pós-modernismo e do capitalismo tardio, vinculam-se aos estudos culturais para análises que integram esses diferentes aspectos, a fi m de compreender melhor os processos de formação de identidade e as relações existentes entre a margem e o centro. Desde a década de 1950 na Inglaterra, os estudos culturais vêm se de- bruçando incisivamente sobre discussões acerca do conceito de cultura, destacando seu significado político, porque “[...] trata[va]-se de considerar esta em sentido amplo, antropológico”, ou seja, “passar de uma reflexão centrada sobre o vínculo cultura–nação para uma abordagem da cultura dos grupos sociais” (MATTELART; NEVEU, 2006, p. 14, acréscimo nosso). Percebe-se que, desde então, houve rupturas significativas, em que velhas correntes de pensamento são rompidas e elementos novos se aliam aos velhos, reagrupando-se em torno de uma nova gama de premissas e temas (HALL, 2006). A partir daí, começam a surgir mudanças no modo de conceber certos 7Raça e cor nos textos em prosa conceitos que circulam por essa área do conhecimento, na forma de estudos que puseram em discussão questões de gênero, étnico-raciais, entre outras, a partir de um novo ângulo de análise, provocando efeitos que contribuíam para mudanças sociais e acadêmicas. Esses estudos surgiram a partir de visões não eurocêntricas, provavelmente vinculados à inserção na academia de sujeitos oriundos de fora dos centros europeus. Sendo assim, e voltando às questões de raça e cor na literatura, podemos perceber que as literaturas de etnias ainda não fazem parte do cânone literário, desconsiderando-se seu valor histórico, político e social, e as abordagensdos estudos culturais e pós-coloniais são válidas no sentido de melhor entender o papel da cultura dentro da obra literária e de analisar aspectos políticos, sociais e econômicos do universo ficcional e sua relação com o real extratex- tual, retratando relações entre culturas, entre centro e margem, oprimido e opressor, e desfazendo preconceitos das classes hegemônicas. Nesse sentido, Said (1999, p. 12) afirma que: [...] cultura designa todas as práticas, como as artes de descrição, comunicação e representação, com certa autonomia nos campos econômico, social e políti- co, e que existem sob formas estéticas, sendo o prazer um de seus principais objetivos. Formas culturais como o romance são fundamentais na formação de referências e experiências. No romance, por exemplo, os personagens da trama formam uma ideia de povo e de como a nação vê a si. Cabe verificar estereótipos, como co- mentamos na seção anterior, a fim de compreender a dinâmica das relações apresentadas nos textos e promover a reflexão acerca de questões relevantes para as sociedades retratadas. Em relação à literatura afro-brasileira, aqui entendida como aquela produ- zida por sujeitos que se afirmam ideológica e identitariamente como negros, a encontramos com vigor na contemporaneidade, mas cabe destacar que já no século XVIII identificamos exemplos desse tipo de escrita, como Domingos Caldas Barbosa (1739–1800), filho de pai português e mãe negra, escrava alforriada. Esse poeta e músico trazia em seus lundus e modinhas referências à África e à sua cultura. No início do século XX, destaca-se Lima Barreto (1881–1922), mulato, ficcionista da realidade social urbana e suburbana do Rio de Janeiro. Como exemplo disso, temos a dor realista carregada de vi- vência pessoal e muitos aspectos autobiográficos no romance Recordações de Isaías Caminha (1909), com temática do racismo, assim como o romance Clara dos Anjos, escrito em 1922, que conta a história de uma mulata, filha Raça e cor nos textos em prosa8 de um carreteiro de subúrbio, iludida, traída e sofrida por causa de sua cor. A fala final da personagem, impotente diante da injustiça, impacta pelo tom desesperançado: “— Nós não somos nada nesta vida”. No entanto, o posicio- namento engajado só começaria a se materializar a partir dos anos de 1930 e 1940, ganhando força nos anos 1970 e 1980 com a presença destacada de grupos de escritores assumidos ostensivamente como negros ou descendentes de negros, preocupados com marcar, em suas obras, a afirmação cultural da condição negra na realidade brasileira. Essas vozes perseveraram pelos nos anos 1990 até chegarem à atualidade. Para que pensemos possibilidades de interpretação de obras literárias a partir dos conceitos de cor e raça, podemos adotar a visão de Terry Eagleton (2006), que sustenta que a definição de literatura dependerá do olhar, da forma pela qual “[...] alguém resolve ler e não da natureza do que é lido” (EAGLETON, 2006, p. 12). Portanto, a interpretação não dependeria da materialidade do texto, mas do modo como as pessoas se relacionam com ele, como o enxergam. Para Eagleton (2006, p. 24), “[...] os juízos de valor que constituem a literatura são historicamente variáveis, mas esses juízos têm uma estreita relação com as ideologias sociais”. Na literatura afro-brasileira, tudo adquire um sentido político, e um caso individual liga-se a outros. Trata-se de uma literatura com implicações do pessoal no político, como, por exemplo, no feminismo. E aí inclui-se o resgate de obras que no passado não foram reconhecidas e por isso foram apagadas da historiografia literária afro-brasileira, como da escritora negra Maria Firmina dos Reis (1825–1917), primeira romancista negra brasileira, e seu romance Úrsula (1859). Maria Firmina transcendeu a formação das mulheres de seu tempo, o que se revela em seus escritos sobre a condição feminina e a constituição histórica da mulher no século XIX no Brasil. Professora e abolicionista, aos 54 anos a maranhense fundou uma escola mista e gratuita para alunos que não podiam pagar, e lecionava pessoalmente, no barracão de propriedade de um senhor de engenho, usando um carro de boi para chegar à escola todas as manhãs. Em Úrsula, há a denúncia de injustiças praticadas livremente em uma sociedade autoritária e patriarcal que, no Brasil, era percebida por alguns intelectuais e, sobretudo, pelas minorias mais afetadas, como o negro e a mulher. De acordo com Telles (1997), o que mais distingue o livro não é o enredo romântico de amor, dor, incesto e morte, temas comuns ao romance do século XIX, e sim o tratamento que foi dado à questão do escravo. Por essa razão, a obra se distingue das outras e, sobretudo, das produções literárias de seu tempo. 9Raça e cor nos textos em prosa Nos dias de hoje, os sujeitos são multifacetados, vivem em trânsito entre lugares, se veem a partir do olhar do outro, do que se esperam que sejam. O resultado desses deslocamentos, migrações e diásporas é o sujeito entre- cortado pelas culturas e identidades que o perpassam. E na discussão entre a forma de se construir e desconstruir os espaços e discursos a partir dos deslocamentos e estranhamentos com novas línguas e novas culturas, se situa o romance Um defeito de cor (2006), da escritora e pesquisadora Ana Maria Gonçalves. A obra é fruto de pesquisa acerca da sociedade brasileira escravista do século XIX. A história é narrada por Kehinde, que até os 8 anos de idade vivia em Savalu, África. Após a morte da mãe e do irmão, ela, junto da avó e de Taiwo, sua irmã gêmea, viaja sem rumo e chegam a Uidá. Nessa cidade, as três são capturadas e jogadas em um navio negreiro com destino ao Brasil. Ao fim da viagem, resta Kehinde como única sobrevivente da família. A nova escrava vai trabalhar em uma fazenda na ilha de Itaparica. O mar mapeia o trânsito da personagem. Pode-se notar que Kehinde, ao ser retirada de sua terra para ser escravi- zada, passa a se estranhar, a viver em busca de algo, a ver na travessia um motivo para viver. A condição de viajante leva a personagem a profundas reflexões sobre quem era e como a viam. A consciência de si passa sempre pelo olhar do outro. A cada novo lugar, surge uma nova concepção de vida e de personalidade. Assim, percebemos como sua identidade (ou a tentativa de compreende-la como algo sempre em construção) está associada à sua raça e, como o título dá a entender, a uma cor. No romance, a personagem-narradora explica essa concepção ao enfatizar o desejo de “[...] mudar de fase, mudar de lugar como se isso representasse um novo começo, em que as esperanças se renovam. Sempre fui assim [...] poder começar de novo, em outro lugar, com outras pessoas, com novos planos é algo que não recuso nunca” (GONÇALVES, 2006, p. 718). Pertencer a lugar nenhum é uma característica importante do estrangeiro diaspórico. Uma vez retirado de seu local, ela constrói e reconstrói vários locais, não vendo necessidade de se fixar em nenhum deles. Na próxima seção, examinaremos um pouco da obra das escritoras afro- descendentes Maria Firmina dos Reis, Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo. Raça e cor nos textos em prosa10 Se você quiser se aprofundar nos estudos de crítica literária das obras afro-brasileiras, leia o artigo “Literatura e afrodescendência no brasil: condições e possibilidades de emergência de um novo campo de estudos”, de Rafael Balseiro Zin. 3 Maria Firmina dos Reis, Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo Como analisamos na seção anterior, Maria Firmina dos Reis (1825–1917) escreveu sua obra no século XIX. Em 1859, a autora publicou o romance Úrsula, atribuindo aos escravos participação importante no enredo. A autora condenava a escravidão como instituição, remetendo ao discurso da religião, de que somos todos irmãos, porém mostrando como este refl etia a hegemonia branca, e o fato de que a própria igreja respaldava o sistema escravista. Senhor Deus! Quando calará no peitodo homem a tua sublime máxima — ama a teu próximo como a ti mesmo — e deixará de oprimir com tão repreensível injustiça ao seu semelhante!... a aquele que também era livre no seu país... aquele que é seu irmão?! E o mísero sofria; porque era escravo, e a escravidão não lhe embrutecera a alma; porque os sentimentos generosos, que Deus lhe implantou no coração, permaneciam intactos, e puros como sua alma. Era infeliz; mas era virtuoso; e por isso seu coração enterneceu-se em presença da dolorosa cena, que se lhe ofereceu à vista (REIS, 2004, p. 23). Para a época, em meados do século XIX, no Maranhão, era bastante ino- vador o combate aberto à escravatura, e também a representação do negro com protagonismo e valores nobres, em um período em que as teorias raciais afirmavam a supremacia branca e a inferioridade dos negros. Além do romance, segundo Zahidé Muzart (2000, p. 264), “Maria Firmina dos Reis colaborou assiduamente com vários jornais literários, tais como A Verdadeira Marmota, Semanário Maranhense, O Domingo, O País, Pacotilha, O Federalista e outros”. Sua vida foi dedicada a ler, escrever, pesquisar e ensinar. Atuou como folclorista, na coleta e preservação de textos da cultura e da literatura oral, e também como compositora, tendo composto um hino em louvor à abolição 11Raça e cor nos textos em prosa da escravatura. Quanto à ficção, além de Úrsula, publicou em capítulos, na imprensa local, Gupeva, de 1861, narrativa curta de temática indianista, e o conto “A escrava”, de 1887, texto abolicionista. Seu volume de poemas Cantos à beira-mar, cuja primeira edição é de 1871, traz textos marcados por forte inquietação e por uma subjetividade feminina às vezes melancólica diante da realidade oitocentista marcada pelo patriarcado escravocrata. Outra escritora de destaque é Carolina Maria de Jesus (1914–1977), que viveu boa parte de sua vida na favela do Canindé, na zona norte da cidade de São Paulo, sustentando a si e a seus três filhos como catadora de papéis. Leitora voraz de livros, logo começou a escrever. Assim, iniciou sua trajetória de memorialista, passando a registrar o cotidiano do “quarto de despejo” da capital nos cadernos que recolhia do lixo e que se transformariam mais tarde nos “diários de uma favelada”. Nesses diários, a autora contava o dia- -a-dia na favela e as condições de vida naquele lugar de extrema pobreza. As dificuldades de manter a si e aos filhos, e a fome, uma realidade constante, aparecem na sua escrita, que possui marcas de oralidade aliadas a um tom crítico, de denúncia, assim como poético: “17 de julho [...] Fui buscar agua. Fiz café. Tendo só um pedaço de pão e 3 cruzeiros. Dei um pedaço a cada um [...]. Os filhos pediram pão” (JESUS, 1960, p. 15). E nesse outro trecho: “Como é horrível ver um filho comer e perguntar: ‘tem mais?’. Esta palavra ‘tem mais’ fica oscilando dentro do cérebro de uma mãe que olha as panelas e não tem mais” (JESUS, 1960, p. 39). Em 1960, teve o seu diário publicado sob o nome Quarto de despejo, com auxílio do jornalista Audálio Dantas. O livro, de caráter documental e de contestação social, fez um enorme sucesso e chegou a ser traduzido para 14 línguas. Seus livros seguintes foram Casa de alvenaria (1961), Pedaços de fome (1963), Provérbios (1963) e, postumamente, Diário de Bitita (1986). Embora seus livros tenham tido boa aceitação, Carolina morreu pobre, es- quecida pelo público e pela imprensa. Estudos que resgataram a relevância da sua obra só começaram a se desenvolver em meados da década de 1990, com a publicação, em 1994, de Cinderela negra, de autoria do pesquisador José Carlos Sebe Bom Meihy, em que discute a vida e a obra da autora. Em 1997, Meihy reuniu e publicou um conjunto de seus poemas inéditos, sob o título Antologia pessoal. Por fim, Conceição Evaristo, hoje consagrada pelo público e pela crítica, tendo sido até indicada para a Academia Brasileira de Letras (ABL), nasceu em 1946 em Belo Horizonte, criada em família pobre, filha de lavadeira e a Raça e cor nos textos em prosa12 segunda de nove irmãos. Foi a primeira de sua família a obter um diploma universitário. Graduou-se em Letras pela UFRJ. Nos anos 1970, mudou- -se para o Rio de Janeiro, começando a escrever apenas na década de 1990, quando passou a publicar seus contos e poemas na série Cadernos negros. Ela concluiu seu mestrado em Literatura Brasileira na PUC-RJ em meados da década de 1990 e seu doutorado em Literatura Comparada pela UFF em 2010. Em suas pesquisas de doutorado, estudou as relações entre a literatura afro-brasileira e as literaturas africanas de língua portuguesa. No mestrado, havia estudado a produção literária de artistas negros brasileiros, e em seu artigo “Literatura negra: uma poética da nossa afrobrasilidade”, ela reflete criticamente sobre essa questão: A literatura brasileira é repleta de escritores afro-brasileiros que, no entanto, por vários motivos, permanecem desconhecidos, inclusive nos compêndios escolares. Muitos pesquisadores e críticos literários negam ou ignoram a existência de uma literatura afro-brasileira. Nomes como o de Solano Trin- dade, dentre outros, deveria figurar na história da literatura brasileira, como poeta modernista. Os vários estudos sobre o modernismo brasileiro não incorporam o nome desse importante poeta negro, a não ser a produção de pesquisadores isolados, tanto na área da literatura como na da história (EVARISTO, 2009, p. 27). A reflexão de Evaristo espelha a realidade das três escritoras aqui desta- cadas, a própria Evaristo, Maria Firmina dos Reis e Carolina de Jesus, que demoraram a ter suas obras estudadas e reconhecidas pela crítica literária. Em 2003, Evaristo publicou o romance Ponciá Vicêncio, que é uma narrativa que interliga história, tempo e espaço pela memória de Ponciá. Aqui temos a memória individual e a coletiva, com as lembranças da protagonista trazendo à tona fatos e circunstâncias históricas da população afrodescendente brasileira. Seu segundo romance, Becos da memória, foi escrito entre os anos 1970 e 1980 e ficou engavetado por mais de 20 anos. Seus fragmentos aliam denúncia social ao lirismo de um mundo íntimo trágico e terno. O texto mistura romance e escrita de si, e os dados autobiográficos constituem o que Evaristo chama de “escrevivência”, ou seja, a escrita de um corpo, de uma condição, de uma experiência da mulher negra no Brasil. O lugar de enunciação de Evaristo é solidário e identificado com as chamadas “minorias”, aqueles que não tiveram voz por um longo período, na história e na literatura, especialmente no caso da obra dessa escritora, as mulheres negras. 13Raça e cor nos textos em prosa Acessando o canal Instituto de Arte Tear no YouTube, procure pelo vídeo intitulado “Escrevivência - Episódio 01 da série Ecos da Palavra”. Nele você poderá assistir a um trecho de uma entrevista com Conceição Evaristo, em que ela explica o conceito de escrevivência, falando do resgate da tradição oral das mulheres negras como contadoras de história para as crianças brancas da casa grande. Segundo ela, essas histórias, que as faziam dormir, agora servem para fazer-nos acordar, despertando nossa atenção para discursos que unem uma vivência à possibilidade de reaproximar a oralidade da escrita. O livro conta a história dos moradores de uma favela em processo de ser demolida para a construção de um empreendimento imobiliário. A narração é feita a partir da perspectiva da menina Maria-Nova, que ouvia as histórias dos mais velhos, pensando que “[...] quem sabe escreveria esta história um dia? Quem sabe passaria para o papel o que estava escrito, cravado e gravado no seu corpo, na sua alma, na sua mente” (EVARISTO, 2006, p. 138). Além de poesia, Evaristo constrói narrativas em prosa com muito lirismo, ao utilizar uma linguagem poética e ao criar neologismos, a maioria deles por composição, como “sangue-raiz”, “vida-liberdade”, “útero-terra”, “escrevi- vência”, mencionado anteriormente,entre outros. BERND, Z. Introdução à literatura negra. São Paulo: Brasiliense, 1988b. BERND, Z. O que é Negritude. São Paulo: Brasiliense, 1988a. BROOKSHAW, D. Raça e cor na literatura brasileira. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983. EAGLETON, T. Teoria da literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2006. EVARISTO, C. Becos da memória. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2017. FONSECA, M. N. S.; DUARTE, E. de A. (org.). 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Assim, os editores declaram não ter qualquer responsabilidade sobre qualidade, precisão ou integralidade das informações referidas em tais links. Raça e cor nos textos em prosa16 Antropologia e Cultura_U4_C15 Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U4_C07 Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U4_C08 Literaturas Africanas em Língua Portuguesa_U3_C06