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Literatura Africana em Lingua Portuguesa II

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<p>UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MOÇAMBIQUE</p><p>Centro de Ensino à Distância</p><p>Manual do Curso de Licenciatura em Ensino da Língua Portuguesa</p><p>Literaturas Africanas em Língua Portuguesa II</p><p>Código: P0209</p><p>Módulo único</p><p>25 Unidades</p><p>Direitos de autor (copyright)</p><p>Este manual é propriedade da Universidade Católica de Moçambique, Centro de Ensino à</p><p>Distância (CED) e contém reservados todos os direitos. É proibida a duplicação ou</p><p>reprodução deste manual, no seu todo ou em partes, sob quaisquer formas ou por quaisquer</p><p>meios (electrónicos, mecânico, gravação, fotocópia ou outros), sem permissão expressa de</p><p>entidade editora (Universidade Católica de Moçambique-Centro de Ensino à Distância). O</p><p>não cumprimento desta advertência é passível a processos judiciais.</p><p>Elaborado Por: dr. Lourenço A. Covane,</p><p>Licenciado em ensino da Língua Portuguesa pela UP-Beira.</p><p>Colaborador do Curso de Licenciatura em ensino da Língua Portuguesa no Centro de Ensino</p><p>à Distância (CED) da Universidade Católica de Moçambique – UCM.</p><p>Universidade Católica de Moçambique</p><p>Centro de Ensino à Distância-CED</p><p>Rua Correia de Brito No 613-Ponta-Gêa</p><p>Moçambique-Beira</p><p>Telefone: 23 32 64 05</p><p>Cell: 82 50 18 44 0</p><p>Fax:23 32 64 06</p><p>E-mail: ced@ucm.ac.mz</p><p>Website: www.ucm.ac.mz</p><p>Agradecimentos</p><p>A Universidade Católica de Moçambique-Centro de Ensino à Distância e o autor do presente</p><p>manual, dr. Lourenço Covane, agradecem a colaboração dos seguintes indivíduos e</p><p>instituições:</p><p>Pela Coordenação e edição do Trabalho: dr. Armando Artur (Coordenador do Curso de</p><p>Licenciatura em Ensino da Língua Portuguesa);</p><p>Centro de Ensino à Distância i</p><p>Índice</p><p>Visão geral 1</p><p>Bem-vindo à cadeira de Literaturas Africanas em Português II ...................................... 1</p><p>Quem deveria estudar este módulo ................................................................................ 1</p><p>Como está estruturado este módulo? .............................................................................. 2</p><p>Ícones de actividade ...................................................................................................... 3</p><p>Habilidades de estudo .................................................................................................... 3</p><p>Precisa de apoio? ........................................................................................................... 3</p><p>Tarefas (avaliação e auto-avaliação) .............................................................................. 3</p><p>Avaliação ...................................................................................................................... 4</p><p>Unidade 01: Literatura Colonial Vs Literatura Nacional 5</p><p>Introdução ............................................................................................................ 5</p><p>Sumário ......................................................................................................................... 7</p><p>Exercícios...................................................................................................................... 8</p><p>Unidade 02: A Imprensa e o Ensino nas Colónias Portugesas 9</p><p>Introdução ............................................................................................................ 9</p><p>Exercícios.................................................................................................................... 12</p><p>Unidade 03: A Recuperação da Consciência Africana: Negritude e Panificanismo 13</p><p>Introdução .......................................................................................................... 13</p><p>Sumário ....................................................................................................................... 15</p><p>Exercícios.................................................................................................................... 15</p><p>Unidade 04: Precursores das Literaturas Africanas no domínio poético 16</p><p>Introdução .......................................................................................................... 16</p><p>Sumário ....................................................................................................................... 17</p><p>Exercícios.................................................................................................................... 18</p><p>Unidade 05: Literatura Moçambicana 19</p><p>Introdução .......................................................................................................... 19</p><p>Sumário ....................................................................................................................... 21</p><p>Exercícios.................................................................................................................... 22</p><p>Unidade 06: A Periodização da Literatura Moçambicana 23</p><p>Introdução .......................................................................................................... 23</p><p>Sumário ....................................................................................................................... 25</p><p>Exercícios.................................................................................................................... 25</p><p>Unidade 07: Perspectivas da Moçambicanidade e o Jornal Msaho 27</p><p>Introdução .......................................................................................................... 27</p><p>Centro de Ensino à Distância ii</p><p>Sumário ....................................................................................................................... 29</p><p>Exercícios.................................................................................................................... 29</p><p>Unidade 08: A Poesia da Negritude: Noémia de Sousa (Sangue Negro) 30</p><p>Introdução .......................................................................................................... 30</p><p>Sumário ....................................................................................................................... 33</p><p>Exercícios.................................................................................................................... 33</p><p>Unidade 09: Noções da Nações e Moçambicanidade: José Craveirinha 35</p><p>Introdução .......................................................................................................... 35</p><p>Sumário ....................................................................................................................... 38</p><p>Exercícios.................................................................................................................... 39</p><p>Unidade 10: Literatura e Resistência: Luís Bernardo Honwana (Nós matámos o Cão-</p><p>tinhoso) 40</p><p>Introdução .......................................................................................................... 40</p><p>Sumário ....................................................................................................................... 42</p><p>Exercícios.................................................................................................................... 42</p><p>Unidade 11: A Semântica do Ghetto: Geração de 70 (Rui Knopfli) 43</p><p>Introdução .......................................................................................................... 43</p><p>Sumário ....................................................................................................................... 45</p><p>Exercícios.................................................................................................................... 45</p><p>Unidade 12: A Renovação literária: Mia Couto 46</p><p>Introdução .......................................................................................................... 46</p><p>Sumário .......................................................................................................................</p><p>Alfredo</p><p>Margarido (1962) e outros.</p><p>O caderno é dedicado a dois amigos, um deles João Mendes, que</p><p>tem direito a uma secção própria, irmão do escritor moçambicano</p><p>Orlando Mendes, e significativamente tem duas epígrafes, uma de</p><p>Miguel Torga e outra de Carlos Oliveira, poeta do Novo</p><p>Cancioneiro coimbrão.</p><p>Torna-se imprescindível conhecer a organização do Caderno, para</p><p>quem pretender a leitura integral da obra (2). São as seguintes as</p><p>suas partes: «Nossa Voz», «Biografia», «Munhuana 1951», «Livro</p><p>de João» e «sangue Negro». Porque representam a melhor poesia</p><p>da autora e também a sua africanidade e moçambicanidade,</p><p>tornando-se consagrados, os seus mais divulgados e conhecidos</p><p>poemas são: «Nossa voz», «Se me quiseres conhecer», «Deixa</p><p>passar o meu povo», «Magaíça», «Negra», «Um dia», «Poema para</p><p>Rui de Noronha», «Godido», «A Billie Holliday, cantora» e</p><p>«sangue negro (3).</p><p>Antes de mais, convém salientar que a poesia de Noémia de</p><p>Sousa se organiza num discurso oralizado, exaltado, pleno de</p><p>emoção. Assim, a enunciação caracteriza-se por uma relação de</p><p>permanente diálogo e interpelação entre o locutor e o alocutário. As</p><p>expressões interjeicionais, as exclamações, as reticências, os</p><p>vocativos e apelativos, e outros discursos de proximidade entre os</p><p>interlocutores da enunciação, tipificam um discurso não analítico.</p><p>Vejamos alguns exemplos da sua poesia:</p><p>«Nossa voz» é dedicado a José Craveirinha (assim como outro</p><p>texto cultua o poeta Rui de Noronha). De imediato, salta à vista o</p><p>vincado anaforismo da retoma do título no corpo do texto. Essa</p><p>entrada sublinha a preponderância da voz colectiva, por sua vez a</p><p>voz figurando sinedoquicamente os corpos das pessoas do povo.</p><p>Repare-se, logo no primeiro verso, numa característica do</p><p>vocabulário de Noémia de Sousa, que pode entender-se como uma</p><p>parcial cedência à superficialidade do estereótipo herdado do</p><p>exotismo da literatura colonial(ista): o uso de qualificativos como</p><p>«bárbara», aqui aplicado à voz, que reaparecerá em « sangue</p><p>negro» (este, vincadamente apologético da raça, das raízes</p><p>específicas do ser negro). Depois, a referencialidade geo-social,</p><p>através de inequívocos antropónimo e topónimo, que indicam o</p><p>Centro de Ensino à Distância 32</p><p>personagem e o Continente: «Maguiguana» e «África». O uso de</p><p>referências étnicas, que circunscrevem um espaço físico e cultural</p><p>ligado ao mato, à ruralidade, isto é, à África profunda (não urbana):</p><p>o «atabaque» (instrumento musical, tambor); a lança (de</p><p>Maguiguana); os batuques de guerra; a «shipalapala» (instrumento</p><p>musical).</p><p>Todo o poema se constrói para a denúncia da violência contra o</p><p>colonizado, com especial incidência na «ESCRAVIDÃO», em</p><p>maiúsculas.</p><p>Em «Se me quiseres conhecer», assiste-se à comparação entre o</p><p>predicador e uma estátua ou estatueta maconde. O poema tem a</p><p>data de 25-12-1949, o que acrescenta um outro sentido às</p><p>potenciais leituras: nesse dia de fraternidade e alegria cristãs, para</p><p>conhecer os africanos é preciso olhar com profundidade e</p><p>compreensão a sua origem ancestral. Os «chicotes da escravatura»,</p><p>a «África da cabeça aos pés», a «minha alma de África», são frases</p><p>que reforçam a repetida ideia de um passado hediondo de</p><p>escravidão, que é sempre preciso recordar, para melhor tomar</p><p>consciência da origem da dominação, e de um Continente não</p><p>aculturado, que permanece ainda, em grande parte, ligado à</p><p>natureza.</p><p>A referência aos «batuques frenéticos dos muchopes» e à rebeldia</p><p>dos «machanganas» reafirma a tendência de a reivindicação neo-</p><p>realista se cruzar com o sentido de pertença étnica.</p><p>O poema «Negra», publicado na revista neo-realista Vértice (1950),</p><p>alem de, como se disse já, na Mensagem angolana (1952), é</p><p>também um dos mais conhecidos. O tema é a incapacidade de as</p><p>pessoas alheias à cultura moçambicana poderem cantar a mulher</p><p>negra. Grande parte dos epítetos de que os poetas exotistas ou</p><p>coloniais usaram e abusaram nas suas composições, nos seus</p><p>«formais e rendilhados cantos», estão aqui expostos numa panóplia</p><p>que desconstrói o mito poético de negra sedutora e lúbrica:</p><p>«esfinge de ébano», «amante sensual», «jarra etrusca», «exotismo</p><p>tropical», «demência», «animalidade», etc.</p><p>A negra, no final do poema, surge como a mãe da predicadora,</p><p>podendo ler-se essa MÂE, em letras maiúsculas, como a Mãe-</p><p>Negra, mãe de todos os negros, ou seja, a Mãe-África. A mulher</p><p>negra, exaltada e elevada a esse cume da Mãe-África, recupera no</p><p>texto a integridade que o olhar cúpido do poeta exógeno vinha</p><p>lançando sobre ela.</p><p>No contexto da viragem dos anos 40, Noémia, como outros</p><p>africanos, percepcionava a poesia como testemunho de uma</p><p>condição humana e denúncia social e política, ainda que sob a</p><p>forma de lamento ou piedade. Nesse sentido, o Neo-realismo</p><p>confunde-se com a Negritude da reivindicação cultural e da</p><p>Centro de Ensino à Distância 33</p><p>apologia racial e pode dizer-se, mais do que em relação a outros</p><p>escritores, que a fusão das componentes estéticas dos dois</p><p>movimentos nunca foi tão completa e, por vezes, quase</p><p>indestrinçável.</p><p>Para os africanos de língua portuguesa, especialmente Noémia de</p><p>Sousa, nesses anos decisivos, a Negritude foi assumida como</p><p>refinamento negro, a especificidade rácica do Neo-realismo,</p><p>tornando-se, além de uma estética anti-burguesa, uma ética anti-</p><p>imperialista. É nesse ponto que, porém, a Negritude se afasta em</p><p>definitivo do Neo-realismo: quando se exclui o branco dos seus</p><p>textos e os engloba numa condenação que impossibilita distinguir</p><p>os aliados de classe ou condição.</p><p>Sumário</p><p>O Caderno sangue negro, de Noémia de Sousa está organizado da</p><p>seguinte maneira: «Nossa Voz», «Biografia», «Munhuana 1951»,</p><p>«Livro de João» e «sangue Negro» e, representam a melhor poesia</p><p>da autora e também a sua africanidade e moçambicanidade,</p><p>tornando-se consagrados, os seus mais divulgados e conhecidos</p><p>poemas são: «Nossa voz», «Se me quiseres conhecer», «Deixa</p><p>passar o meu povo», «Magaíça», «Negra», «Um dia», «Poema para</p><p>Rui de Noronha», «Godido», «A Billie Holliday, cantora» e</p><p>«sangue negro.</p><p>Exercícios</p><p>1. Apresente, em duas páginas A4, a análise que faz no poema</p><p>abaixo indicado, tendo em conta as seguintes linhas</p><p>mestras: aspectos estético-estilístico; marcas do neo –</p><p>realismo e a negritude; e o enquadramento no período</p><p>correspondente na perspectiva de LARANJEIRA3.</p><p>“Magaíça”</p><p>A manhã azul e ouro dos folhetos de propaganda</p><p>engoliu o mamparra,</p><p>entontecido todo pela algazarra</p><p>incompreensível dos brancos da estação</p><p>e pelo resfolegar trepidante dos comboios</p><p>Tragou seus olhos redondos de pasmo,</p><p>3 Cf. Periodização literária moçambicana, unidade 6.</p><p>Centro de Ensino à Distância 34</p><p>seu coração apertado na angústia do desconhecido,</p><p>sua trouxa de farrapos</p><p>carregando a ânsia enorme, tecida</p><p>de sonhos insatisfeitos do mamparra.</p><p>E um dia,</p><p>o comboio voltou, arfando, arfando...</p><p>oh nhanisse, voltou.</p><p>e com ele, magaíça,</p><p>de sobretudo, cachecol e meia listrada</p><p>e um ser deslocado</p><p>embrulhado em ridículo.</p><p>Ás costas - ah onde te ficou a trouxa de sonhos, magaíça?</p><p>trazes as malas cheias do falso brilho</p><p>do resto da falsa civilização do compound do Rand.</p><p>E na mão,</p><p>magaíça atordoado acendeu o candeeiro,</p><p>á cata das ilusões perdidas,</p><p>da mocidade e da saúde que ficaram soterradas</p><p>lá nas minas do Jone...</p><p>A mocidade e a saúde,</p><p>as ilusões perdidas</p><p>que brilharão como astros no decote de qualquer lady</p><p>nas noites deslumbrantes de qualquer City.</p><p>In O Brado Africano, n. 787, 25.12.1935</p><p>2. Explique a importância que Noémia de Sousa teve na</p><p>divulgação dos ideais da Negritude.</p><p>Centro de Ensino à Distância 35</p><p>Unidade 09: Noções da Nações e Moçambicanidade: José Craveirinha</p><p>Introdução</p><p>Como nos outros países, surge também em Moçambique um</p><p>número de escritores cuja obra poética é conscientemente</p><p>produzida tendo em conta o factor da nacionalidade, forjando a</p><p>consciência do que é ser moçambicano no contexto, primeiro da</p><p>África e, depois, do mundo. Estamos a falar de um José craveirinha</p><p>que, como vem sendo e vai ser dito ao longo deste manual, tanto se</p><p>rumou por uma poesia nacionalista. Sendo assim, vais ter, aqui, a</p><p>oportunidade de analisar a essência de Craveirinha.</p><p>Ao completar esta unidade / lição, você será capaz de:</p><p>Objectivos</p><p>.</p><p> Identificar a idelogia nacionalista presente na obra de</p><p>Craveirinha;</p><p> Conhecer as fases da Poesia de Craveirinha;</p><p> Relacionar os conceitos de africanidade, Negritude e</p><p>moçambicanidade patentes na poesia de Craveirinha</p><p>Poesia Nacionalista</p><p>A figura de maior destaque na poesia da moçambicanidade, e</p><p>referência obrigatória em toda a literatura africana, é José</p><p>Craveirinha. De facto, a poesia de Craveirinha engloba todas as</p><p>fases ou etapas da poesia moçambicana, desde os anos 40 até</p><p>praticamente aos nossos dias. Em Craveirinha vamos encontrar</p><p>uma poesia tipo realista, uma poesia da negritude, cultural, social,</p><p>política; há uma poesia de prisão; existe uma poesia carregada de</p><p>marcas da tradição oral, bem como muito poema com grande</p><p>pendor lírico e intimista.</p><p>1. Vida e Obra</p><p>José João Craveirinha nasceu em 28 de Maio 1922 em Maputo. É</p><p>considerado o poeta nacional moçambicano. Iniciou a sua carreira</p><p>como jornalista no "O Brado Africano", e colaborou/trabalhou com</p><p>Centro de Ensino à Distância 36</p><p>diversos orgãos de informação em Moçambique. Teve um papel</p><p>importante na vida da Associação Africana a partir dos anos 50</p><p>Craveirinha escreveu umam vasta obra poética.</p><p>Grande parte da sua poesia ainda se mantém dispersa na imprensa,</p><p>não tendo sido incluída nos livros que publicou até à data. Outra</p><p>parte permanece inédita.</p><p>Esteve preso pela Pide, de 1965 a 1969, na celebre Cela 1 com</p><p>Malangatana e Rui Nogar, entre outros.</p><p>Tem muitas obras publicadas, sendo considerado um dos grandes</p><p>poetas de Africa e da Língua Portuguesa.</p><p>Publicou as seguintes obras:</p><p>Chigubo (1964), Xigubo (1980)</p><p>Cantico a un dio de catrame (1966)</p><p>Karingana ua karingana (1974)</p><p>Cela I (1980)</p><p>Maria (1998).</p><p>A sua estreia em livro deu-se com Chigubo, editado em Lisboa em</p><p>1964 pela Casa dos Estudantes do Império e logo apreendido pela</p><p>PIDE, que o utilizou como prova nos processos de que foi vítima</p><p>durante o período em que esteve preso (na célebre cela 1 com</p><p>Malangatana e Rui Nogar, entre outros, entre 1965 e 1969). Foi o</p><p>Prémio Camões de 1991.</p><p>2. Fases Poéticas</p><p>1.ª Fase: de Neo-realismo, implicando uma tradição poética</p><p>narrativizada, de que é exemplo flagrante a primeira parte do livro</p><p>Karingana ua karingana, justamente datada de 1945-50 e intitulada</p><p>«Fabulário». Os poemas têm versos curtos. Cada poema é como</p><p>que um pequeno quadro pictórico (em geral, uma cena, um</p><p>ambiente, um tema). O fabulário alude, por outro lado, à tradição</p><p>popular, ancestral, tribal, de contar fábulas, aqui com personagens</p><p>humanas dentro, emersas em dramas sociais e pessoais. Há uma</p><p>denúncia em moldes alusivos, expositivos, em linguagem</p><p>descarnada, contida, não propriamente contundente. Por outro lado,</p><p>a composição do tema, a imagética, porque voltadas para uma</p><p>finalidade unívoca, baseadas em meios simples, apresentam-se sem</p><p>grande elaboração, denunciando uma fase cronológica ainda algo</p><p>incipiente, privilegiando a mensagem sobre os meios expressivos.</p><p>2.ª fase: Negritude, expressa com nitidez em Chigubo (1964) e</p><p>Cantico (1966). Os poemas têm versos de média ou mais extensa</p><p>medida. Os predicadores e os predicatários e predicatados, em</p><p>geral, são negros. A revolta e a denúncia agressiva pontificam. O</p><p>Centro de Ensino à Distância 37</p><p>«Manifesto» ou o «Grito negro» mostram como a cor e a raça</p><p>negras (isto é, o grupo étnico) comandam a visão dos predicadores,</p><p>que se enaltecem e têm orgulho nas suas raízes negras, africanas.</p><p>3.ª Fase: Moçambicanidade ou identidade nacional, de que as 2.ª</p><p>e 4.ª partes de Karingana ua karingana, respectivamente intituladas</p><p>«Karingana» e «Tingolé (Tindzolé)», são emblemáticas, e que se</p><p>caracteriza pela expansividade dos poemas mais longos e dos muito</p><p>longos, em que o humor e a ironia desempenham papel decisivo,</p><p>sendo bastante clara a interrogação sobre a identidade dos</p><p>predicadores, suas origens e herança cultural. A «Carta ao meu belo</p><p>pai ex-emigrante» demonstra todas essas possibilidades de</p><p>interrogar-se e interrogar o que é ser-se moçambicano.</p><p>4.ª Fase: de Libertação, de que resultaram dois livros diferentes,</p><p>sendo um de poemas da prisão, escrito ainda antes da</p><p>Independência, em reclusão, mas paradoxalmente respirando</p><p>liberdade. Anote-se um exemplo de absoluta liberdade sob o peso</p><p>do cadafalso: «Foi assim que eu subversivamente / clandestinizei o</p><p>governo / ultramarino português». O outro livro, de homenagem à</p><p>falecida mulher, é elegíaco como o anterior, de textos curtos,</p><p>expondo um sentimento, um ambiente, uma ideia, um episódio,</p><p>com circunspecção, concretude e lirismo, por vezes com</p><p>pormenores que iluminam As características gerais da obra de</p><p>Craveirinha podem resumir-se, do seguinte modo: Neo-realismo;</p><p>narratividade; adjectivação luxuriante; ironia; elementos</p><p>surrealizantes; Negritude; moçambicanidade.</p><p>Leia o poema e analise os diferentes aspectos ditos no</p><p>apontamento:</p><p>Karingana ua Karingana4</p><p>De hora a hora</p><p>e minuto a minuto cresce</p><p>cresce devagarinho a semente na terra escura.</p><p>E a vida curva-nos mais ao ritmo fantástico</p><p>do nosso chicomo relampejante áscua de chanfuta</p><p>subafricano amadurecendo as jejuadas manhãs</p><p>ao velho calor dos braçais intensos</p><p>4 Karingana wa Karingana é a expressão que os rongas utilizam para</p><p>iniciar as histórias tradicionais (xihitane) e que corresponde ao «era uma</p><p>vez» das narrativas luso-ocidentais. O narrador começa a história</p><p>dirigindo-se ao grupo ouvinte dizendo precisamente «karingana wa</p><p>karingana!» e o público responde em uníssono: «karingana!». No final da</p><p>narrativa, o contador de histórias tradicionais diz «Phu karingana!».</p><p>Centro de Ensino à Distância 38</p><p>na lavra das lavras de uma lua</p><p>esfarrapada no meio do chão.</p><p>E a semente de milho cresce</p><p>cresce na povoação que a semeou com ternura</p><p>desidratada à preto nos sovacos da machamba</p><p>e a estrada passando ao lado vai-se abrindo</p><p>como uma mulher vai-se abrindo quente e comprida</p><p>aos beijos das rodas duplas da Wenela de cus</p><p>e dorsos a germinar os pesadelos dos mochos</p><p>bacilarmente</p><p>imperceptivelmente</p><p>desabrochando os profilácticos</p><p>férteis sudoríperos cereais em manuração.</p><p>E depois...</p><p>de capulanas e tangas supersticiosa a vida</p><p>vai espiando no céu os indecifráveis agoiros</p><p>que hão-de rebentar a nhimba da missava culimada</p><p>e na mórbida vigília dos ouvidos ao - Karingana</p><p>ua Karingana!? - todos juntos prescrutando a mafurreira</p><p>longínqua no horizonte e as mãos batendo a forja dos mil</p><p>sóis da tingoma dos corações enroscados de mambas</p><p>de ansiedade à luz da fogueira, respondendo - Karingana!</p><p>Oh! Os Xicuembos a chamar a chamar</p><p>nas facas de esmeraldas de milhos verticais na terrra!</p><p>Ah, o dia bom da colheita destes milhos de amor</p><p>e tédio vai começar e recomeçar nos inumeráveis chicomos</p><p>desalgodoando os algodões a mais sofisticados</p><p>de tractores que deviam estar e não estão.</p><p>Sumário</p><p>Os temas fundamentais são: escravatura, raça,</p><p>crítica à civilização</p><p>ocidental, vitalismo, sensualidade, revalorização da tradição negra,</p><p>culto da Natureza, animização, etc., com recurso aos modelos da</p><p>Black Renaissance, Negritude e Neo-realismo, no intuito de</p><p>construir uma identidade poética moçambicana.</p><p>Centro de Ensino à Distância 39</p><p>Exercícios</p><p>1. Retome a leitura do apontamento. Faça o enquadramento do</p><p>poema Karingana Ua Karingana nas fases poéticas do autor.</p><p>2. Faça um levantamento pormenorizado das marcas do</p><p>nacionalismo presentes no Karingana ua Karingana.</p><p>3. Explique a simbologia presente no título do poema</p><p>Karingana ua Karingana.</p><p>4. Craveirinha, ao logo da sua poemática faz sérios</p><p>questionamentos à volta da identidade dos predicadores,</p><p>suas origens e herança cultural. Demonstre.</p><p>Centro de Ensino à Distância 40</p><p>Unidade 10: Literatura e Resistência: Luís Bernardo Honwana (Nós matámos o Cão-</p><p>tinhoso)</p><p>Introdução</p><p>LUÍS BERNARDO HONWANA nasceu em 1942, em Lourenço</p><p>Marques, dedicou-se ao jornalismo, muito amigo de Craveirinha a</p><p>quem dedicou seu único livro de contos, Nós matamos o cão-</p><p>tinhoso (1964), aos 22 anos de idade. Nunca mais publicou. Foi</p><p>Ministro de Cultura (representante de Moçambique no Acordo</p><p>Ortográfico).</p><p>Ao completar esta unidade / lição, você será capaz de:</p><p>Objectivos</p><p> Ter um visão sobre a literatura como instrumento de resistência;</p><p> Reconhecer, aspectos essenciais de segregração racial, de</p><p>distinção de classe e de eduação presentes no conto.</p><p>Simbologia do Cão, no conto Nós matámos o Cão-tinhoso</p><p>LUÍS BERNARDO HONWANA nasceu em 1942, em Lourenço</p><p>Marques, dedicou-se ao jornalismo, muito amigo de Craveirinha a</p><p>quem dedicou seu único livro de contos, Nós matámos o cão-</p><p>tinhoso (1964), aos 22 anos de idade. Nunca mais publicou. Foi</p><p>Ministro de Cultura (representante de Moçambique no Acordo</p><p>Ortográfico).</p><p>Nós Matámos o Cão-Tinhoso é um livro de sete contos da autoria</p><p>do escritor moçambicano Luís Bernado Honwana, publicado em</p><p>1964 e considerado uma obra fundamental da literatura</p><p>moçambicana moderna. Os contos incluídos no livro são “Nós</p><p>Matámos o Cão-Tinhoso”, “Dina”, “Papá, Cobra e Eu”, “As Mãos</p><p>dos Pretos”, "Inventário de Imóveis e Jacentes”, "A Velhota" e</p><p>"Nhinguitimo".</p><p>Centro de Ensino à Distância 41</p><p>Quando Honwana tinha vinte e dois anos, foi preso pela polícia</p><p>política. Foi durante o tempo passado na prisão que escreveu o seu</p><p>único livro, Nós Matámos o Cão-Tinhoso, com o objectivo de</p><p>demonstrar o racismo do poder colonial português. O livro chegou</p><p>a exercer uma influência importante na geração pós-colonial de</p><p>escritores moçambicanos. Muitos dos contos, escritos em português</p><p>europeu padrão, são narrados por crianças. O universo social e</p><p>cultural moçambicano durante a época colonial é o centro da</p><p>análise das narrativas de Nós Matámos o Cão-Tinhoso. De acordo</p><p>com Manuel Ferreira, “Os contos de Nós Mátamos o Cão-Tinhoso</p><p>apresentam-nos questões sociais de exploração e de segregação</p><p>racial de distinção de classe e de educação”. Cada personagem em</p><p>cada conto representa uma diferente posição social (branco,</p><p>assimilado, indígena e/ou mestiço).</p><p>O primeiro e o mais extenso dos contos incluídos no livro, "Nós</p><p>Matámos o Cão-Tinhoso5" é narrado através dos olhos de um</p><p>menino moçambicano negro, chamado Ginho. A história</p><p>desenvolve-se à volta de um cão vadio que está doente,</p><p>abandonado e a morrer. Ginho é objecto de troça da parte dos seus</p><p>colegas da escola, inclusive durante os jogos de futebol. Ele</p><p>começa a sentir pena do cão e desenvolve um sentimento de</p><p>empatia em relação a ele. Um dia, o Ginho e um grupo de rapazes</p><p>da sua idade são persuadidos e chantageados pelo Doutor da</p><p>Veterinária para matar o cão. O Senhor Duarte representa esta</p><p>acção como um jogo de caça e tenta convecê-los como um amigo.</p><p>Apesar do Ginho estar emocialmente ligado ao cão, ele sente-se</p><p>pressionado para matá-lo, de modo a ser aceite pelos seus colegas.</p><p>Apesar de muitas discussões e pedidos aos outros meninos, ele não</p><p>consegue convencê-los a não matar o cão. A história acaba com ele</p><p>a confessar com remorso a responsabilidade que sente, apesar de</p><p>não ter querido participar no crime.</p><p>Temas e simbolismo</p><p>O significado de Cão-Tinhoso</p><p>O conto mostra a situação política do tempo. De acordo com a</p><p>interpretação de Inocência Mata, o Cão-Tinhoso representa o</p><p>sistema colonial decadente, em vias de ser destruído, e o prelúdio</p><p>de uma nova sociedade purificada, sem discriminação de qualquer</p><p>tipo. Para esta crítica é significativo o facto de o Cão-Tinhoso ter</p><p>sido abatido numa apoteose de tiros - de igual modo Moçambique</p><p>haveria de se purificar pelo fogo das armas.</p><p>5 Ver o conto em anexo</p><p>Centro de Ensino à Distância 42</p><p>Os olhos azuis</p><p>Ginho descreve o cão como tendo olhos azuis. Em The Golden</p><p>Cage: Regeneration in Lusophone African Literature and Culture,</p><p>Niyi Afolabi argumenta que a cor dos olhos é ambígua, podendo</p><p>ser simbólica do negro colonial dominado ou do colonizador</p><p>europeu. Cláudia Pazos Alonso escreve que o simbolismo dos</p><p>olhos pode apontar para uma representação de um assimilado negro</p><p>O homicídio do cão</p><p>Quando os meninos matam o cão, este evento pode ser visto como</p><p>simbólico dum processo iniciático, de aprendidagem para a</p><p>personagem que encontra solidariedade afetiva.</p><p>Sumário</p><p>Nós matamos o cão-tinhoso constitui a tematização de um processo</p><p>iniciático, de aprendizagem, para a personagem-narrador, que</p><p>encontra a solidariedade afectiva em Isaura, a menina que gosta do</p><p>cão-tinhoso, e no próprio animal de olhos azuis sem brilho, mas</p><p>irónicos e impasssíveis, que irritam os outros. O cão-tinhoso</p><p>representa o sistema colonial decadente, em vias de ser destruído, e</p><p>o prelúdio de uma nova sociedade purificada, sem discriminação de</p><p>qualquer tipo. É significativo o facto do cão-tinhoso ter sido</p><p>abatido numa apoteose de tiros, assim como Moçambique haveria</p><p>de se purificar pelo fogo das armas.</p><p>Exercícios</p><p>1. Procure mostrar até ponto a obra de Honwana constui forte</p><p>instrumento de resistência.</p><p>2. Discorra sobre toda a simblogia presente na obra Nós</p><p>Matamos o Cão-tinhoso.</p><p>3. Diga por que a obra de Honwana é fundacional da literatura</p><p>moçambicana moderna.</p><p>4. Num texto corrido, faça uma análise pormenorizada do</p><p>conto Nós Matámos o Cão-Tinhoso, respondendo as</p><p>perguntas que aparecem abaixo do conto em anexo.</p><p>Centro de Ensino à Distância 43</p><p>Unidade 11: A Semântica do Ghetto: Geração de 70 (Rui Knopfli)</p><p>Introdução</p><p>O quarto período da literatura moçambicana, segundo</p><p>LARANJEIRA, que vai de 1964 até 1975, ou seja, do início da luta</p><p>armada de libertação nacional à independência do país (a</p><p>publicação de livros fundamentais coincide com estas datas</p><p>políticas) caracteriza-se pela coexistência de maciça actividade</p><p>cultural e literária no hinterland no ghetto, apresentando textos cuja</p><p>feição não explicita um carácter marcadamente político (em que</p><p>pontificavam intelectuais, escritores e artistas como Eugénio</p><p>Lisboa, Rui Knopfli, o portugués Antonio Quadros, entre outros) e,</p><p>por outro lado, poemas anti-colonialistas que incitavam à revolução</p><p>e tematizavam a luta armada. No caso particular, vamos falar da</p><p>obra de Rui Knopfil representando a poesia desta época.</p><p>Ao completar esta unidade / lição, você será capaz de:</p><p>Objectivos</p><p> Adquirir</p><p>conhecimenntos sobre a semântica do ghetto;</p><p> Estudar a poesia de Rui Knopfil como indicador da</p><p>nacionalidade literária de inclusão/exclusão.</p><p>A semântica do Gheto: “A Geração de 70”</p><p>A situaçao sócio – cultural de ghetto, que se vivia em todas as</p><p>cidades coloniais, teve uma expressão poética explícita em dois</p><p>livros, um angolano e outro moçambicano.</p><p>Rui Knopfli nasceu em 1932, em Inhambane, Moçambique, e</p><p>faleceu em 1997.</p><p>Desde finais dos anos 50, desenvolveu uma sólida obra poética que</p><p>não é facilmente incluída nas correntes literárias moçambicanas,</p><p>assumindo-se antes como continuadora da tradição lírica do</p><p>Ocidente. Camões, Carlos Drummond de Andrade, Fernando</p><p>Pessoa ou T. S. Eliot poderiam servir de referência para analisar a</p><p>poética de Knopfli.</p><p>Centro de Ensino à Distância 44</p><p>Rui Knopfli viveu em Moçambique até aos 43 anos, tendo</p><p>colaborado em diversos jornais e codirigido, com Eugénio Lisboa e</p><p>o jornalista Gouvêa Lemos, de quem tinha um quadro pintado por</p><p>Neves e Sousa, pintor angolano, no seu escritório em Londres,</p><p>quando Adido Cultural de Portugal, os suplementos literários do</p><p>semanário A Voz de Moçambique e do diário A Tribuna.</p><p>Bibliografia: O País dos Outros (1959), Reino Submarino (1962),</p><p>Máquina de Areia (1964), Mangas Verdes com Sal (1969), A Ilha</p><p>de Próspero (1972), O Escriba Acocorado (1978), Memória</p><p>Consentida (1982), O Corpo de Atena (1984) e O monhé da cobras</p><p>(1997).</p><p>O País dos Outros (1959), Reino Submarino (1962) e Máquina de</p><p>Areia (1964) foram os seus primeiros livros, mas é Mangas Verdes</p><p>com Sal o seu livro da maturidade enquanto poeta.</p><p>Nele escreve: «Eu trabalho, dura e dificilmente, / a madeira rija dos</p><p>meus versos, / sílaba a sílaba, palavra a palavra», verdadeiro</p><p>testemunho do despojamento e da precisão que caracteriza o seu</p><p>estilo.</p><p>Knopfli olhava as correntes literárias em voga nas décadas de 60</p><p>com distanciamento e até ironia.</p><p>Apesar de ter experimentado escrever poemas concretistas, foi</p><p>sobre um estilo de depuramento clássico e formal que sempre se</p><p>debruçou com maior interesse.</p><p>Por outro lado, é frequentemente classificado como poeta barroco,</p><p>contribuindo para tal não só o desenvolvimento de temas como o</p><p>tempo e o desengano, como o próprio uso da linguagem rigorosa</p><p>com que talha os seus versos.</p><p>Daí a sua independência e originalidade, daí a dificuldade em</p><p>integrá-lo nas correntes literárias. O desencanto do poeta não soa a</p><p>revolta, antes a uma passividade indiferente.</p><p>As imagens podem ser violentas ou ameaçadoras, mas isso</p><p>acontece quase que subliminarmente, já que o que prevalece é a</p><p>serenidade das coisas, bem harmonizada com um estilo sóbrio,</p><p>revelador de algo que está para além da dor.</p><p>Em 1975 teve que partir para Londres, onde em 1982 assumiu o</p><p>cargo de conselheiro de imprensa na Embaixada de Portugal.</p><p>Rui Knopfli, que desde sempre pautara a sua poesia por uma forte</p><p>incidência urbana, onde o artificial se sobrepunha à natureza, vê-se</p><p>agora mergulhado no mais intenso cosmopolitismo, facto esse que,</p><p>em vez de se harmonizar com o seu sentir, antes lhe intensifica o</p><p>sentimento de exílio e, consequentemente, de desolação.</p><p>Daí que, na senda de outros poetas de língua portuguesa, confesse,</p><p>em 1978, no livro O Escriba Acocorado : «pátria é só a língua em</p><p>que me digo».</p><p>Centro de Ensino à Distância 45</p><p>A sua carreira literária prosseguiu em 1982 com a edição coligida</p><p>de toda a sua poesia, reunida no livro Memória Consentida - Vinte</p><p>Anos de Poesia, e O Corpo de Atena, de 1984, para além da edição,</p><p>conjuntamente com Grabato Dias, dos cadernos de poesia Calibán.</p><p>Sumário</p><p>Os temas da poesia da “ Geração de 70” são marcadamente</p><p>irónicos desligados da intenção política e, por outro lado, anti-</p><p>colonialistas que incitavam à revolução e tematizam a luta armada.</p><p>Exercícios</p><p>1. Dê uma suncita, fala da semântica do ghetto.</p><p>2. Caracteriza a poesia de Rui Knopfil;</p><p>3. Procure ler um ou mais poemas de Knopfil e indque os</p><p>aspectos temáticos, ironia e do resgate à formas clássicicas</p><p>e barrocas de escrever.</p><p>Centro de Ensino à Distância 46</p><p>Unidade 12: A Renovação literária: Mia Couto</p><p>Introdução</p><p>A guerra civil que teve lugar em Moçambique, durante</p><p>quase toda a década de oitenta, é o cenário da maioria dos</p><p>autores que escrevem sobre a época. Mia Couto com Vozes</p><p>Anoitecidas revela esse sentido trágico, aproveitando essa</p><p>oportunidade introduzir na língua e na literatura uma nova</p><p>roupagem que, de uma forma, o singulariza e o identifica.</p><p>Nesta unidade didáctica, vamos fornecer-te uma informação</p><p>sobre a criatividade linguística pelo escritor moçambicano,</p><p>Mia Couto.</p><p>Ao completar esta unidade / lição, você será capaz de:</p><p>Objectivos</p><p> Ter conhecimentos profundos sobre o Estilo e Criatividade:</p><p>Inventabilidade, realismo, anismo e humor presentes na obra de</p><p>Mia Couto;</p><p> Reconher a multiplicidade etno-cultural na Obra Vozes</p><p>anoitecidas.</p><p>Criatividade textual em Vozes anoitecidas de</p><p>Mia Couto</p><p>MIA COUTO, Nasceu na cidade da Beira, em 1955. Em 1972 foi a</p><p>Lourenço Marques estudar medicina. Em 1974 começa a carreira</p><p>jornalística. Regressa à universidade de Eduardo Mondlane em</p><p>1985 para se formar em biologia. Em 1992 foi o responsável pela</p><p>preservação da Ilha de Inhaca.</p><p>Obra:</p><p>Raiz de orvalho (1983)</p><p>Vozes anoitecidas (1986)</p><p>Cronicando (1988)</p><p>Cada homem é uma raça (1990)</p><p>Terra sonâmbula (1992)</p><p>Estórias abensonhadas (1994)</p><p>A varanda de Frangipani (1996)</p><p>Contos do nascer da terra (1997)</p><p>O último voo do Flamingo (2000)</p><p>Analisa várias culturas e crenças do homem moçambicano.</p><p>Centro de Ensino à Distância 47</p><p>Humor incómodo. Os universos culturais variados são o melting-</p><p>pot afro-luso-sino-indo-arabe-goês: africano (bantu, negro), luso</p><p>(europeu, branco), chinês (amarelo), indo (indiano), arábico (árabe,</p><p>muçulmano), goês (indiano, português). São importantes os dois</p><p>paratextos a Vozes anoitecidas, o prefácio de José Craveirinha e</p><p>“Como se fosse um prefácio” de Luís Carlos Patraquim. Foi</p><p>criticado por construir uma linguagem própria. Como resposta</p><p>escreveu “Escrevências desinventosas” em Cronicando.</p><p>CRIATIVIDADE TEXTUAL</p><p>1. Criatividade e inventividade da linguagem para afirmar a</p><p>diferença linguística e literária no interior da língua do</p><p>colonizador. Ex. dois movimentos contraditórios: economia de</p><p>linguagem com elisão, o outro inflação com duplicações, ex.</p><p>deve ser talvez. Criatividade sintática: ex. os bois estão aqui,</p><p>perto comigo, colocação da vírgula desloca o significado.</p><p>2. Realismo em ações e personagens para dar um quadro do</p><p>social e particular.</p><p>3. Intromissão do imaginário ancestral, do fantástico, que</p><p>transforma o realismo num imprevisto realismo animista.</p><p>4. O Humor. Há vários tipos:</p><p>a. Humor de intriga, como a história improvável de Sidney</p><p>Poitier na barbearia de Firipe Beruberu.</p><p>b. Humor de situação/acontecimento, envolvendo apenas um</p><p>episódio e não uma intriga completa, ex. “A Rosa Caramela”</p><p>(Juca aluga seus sapatos para os outros poderem ir ao futebol).</p><p>c. Humor de personagem</p><p>d. Humor de nomes próprios: Ascolino do Perpétuo Socorro, um</p><p>indo-português; Benjamin Katikeze, um seminarista.</p><p>e. Humor de narração, ex. “O ex-futuro padre e sua pré-viúva”, a</p><p>beleza de Anabela, a pré-viúva, é anabelíssima.</p><p>f. Humor de enunciação, sintaxe a moda popular</p><p>g. Humor de linguagem, nível sintático e lexical.</p><p>Vejamos alguns exemplos sintomáticos presentes em Vozes</p><p>Anoitecidas</p><p>Aqui se narra o confronto</p><p>entre o mundo tradicional e o mundo</p><p>urbano, entre os valores míticos da cultura camponesa e a fria</p><p>racionalidade dos acontecimentos da guerra, caracterizados pela</p><p>tecnologia sofisticada das armas.</p><p>Por outro lado, descreve-se o choque constante entre a harmonia</p><p>gregária colectiva e a desordem caótica, que a miséria e o</p><p>desequilíbrio, sociais, provocaram nas margens urbanas e</p><p>suburbanas das populações.</p><p>Nestes contos há a procura de uma forma de ajustamento simbólico</p><p>para a situação referida, que se reveste de paradoxos aparentemente</p><p>inconciliáveis e que a língua procura actualizar. Assim, a língua</p><p>Centro de Ensino à Distância 48</p><p>que Mia Couto utiliza na escrita dos contos Vozes Anoitecidas</p><p>procura ser uma forma de mediatizar, de harmonizar a constante</p><p>crise que a sociedade moçambicana vive através das estórias</p><p>trágicas do seu quotidiano. A fim de conseguir tal intento a língua</p><p>é um dos processos escolhidos para recuperar a mundividência</p><p>mítica, as marcas culturais da oralidade da sociedade tradicional, o</p><p>onirismo e a simbólica a ela ligadas.</p><p>Aquilo que parece ser um recurso poético da língua, ou um estilo</p><p>de autor, como, por exemplo, o uso constante do</p><p>antropomorfismo, da animização, da concretização das noções</p><p>abstractas, da materialização do inefável e da sensibilização</p><p>relacional das personagens com os objectos- que já tínhamos</p><p>detectado na escrita de Craveirinha -, faz parte de um trabalho</p><p>maior que começa na língua, mas que a transcende.</p><p>Com efeito, a língua é o receptáculo das vozes que o narrador</p><p>ouviu e da forma como essas vozes pensam. O trabalho de escrita</p><p>do autor passa por essa espécie de filtragem da escuta, e posterior</p><p>criação e invenção. Na nota introdutória do livro Vozes Anoitecidas</p><p>este processo é explicado nos seguintes termos:</p><p>“Estas estórias desadormeceram em mim sempre a partir de</p><p>qualquer coisa que me foi contada como se tivesse ocorrido na</p><p>outra margem do mundo. Na travessia dessa fronteira de sombra</p><p>escutei vozes que vazaram o sol. Outras foram asas no meu voo de</p><p>escrever. A umas e outras dedico este desejo de contar e de</p><p>inventar.”</p><p>Interessa-nos analisar a forma como se processa essa combinatória</p><p>de vozes em escrita. Maria Lúcia Lepecki observou a este respeito:</p><p>“As vozes dos Narradores orais e a do Narrador por escrito,</p><p>ligando-se, formam superfície contínua. Logo a seguir surge uma</p><p>amálgama. Todas as vozes se juntam numa só e partilham a</p><p>experiência do contar e do reflectir sobre o contado.”</p><p>Esta partilha de saberes e experiências ouvidas é reformulada por</p><p>escrito em cada uma das histórias relatadas em Vozes Anoitecidas.</p><p>A Memória torna-se mais do que um elemento individual para se</p><p>transformar em Memória Ancestral (memória de muitas vozes e</p><p>muitos tempos), através da qual o autor (e as vozes nele</p><p>amalgamadas) procura exprimir uma Cultura Fundadora da</p><p>identidade moçambicana.</p><p>Ao escrever as vozes ouvidas, Mia Couto cenariza as suas</p><p>narrativas no confronto, por vezes trágico e constantemente</p><p>renovado, entre o passado e o presente de um país ainda</p><p>profundamente dividido entre Mito e História.</p><p>- Está falar, o gajo? (VA, p.33).</p><p>Centro de Ensino à Distância 49</p><p>As línguas bantu são essencialmente orais e veiculares de</p><p>culturas orais, e o seu contributo na configuração escrita da</p><p>literatura moçambicana, em língua portuguesa, revela-se ao nível</p><p>da oralização das estruturas dos estratos fónico-linguísticos, e da</p><p>incrustação lexical de elementos provenientes do imaginário das</p><p>culturas de que provêm.</p><p>Podemos, nos textos de Mia Couto, distinguir dois níveis de</p><p>trabalho da e na língua, cuja lógica se fundamenta também no</p><p>recurso à oralidade, e que o autor trabalha simultaneamente. Um</p><p>deles situa-se à superfície, no eixo da contiguidade, ou no plano</p><p>sintagmático, e implica transformações fonológicas, morfológicas,</p><p>sintácticas e lexicais. Podemos designá-lo por nível coloquial, mais</p><p>visível nos diálogos, e em que há uma proximidade maior da</p><p>captação do português oral moçambicanizado. Alguns destes</p><p>procedimentos, que o autor de Vozes Anoitecidas desenvolve,</p><p>tinham já sido experimentados na poesia de José Craveirinha, como</p><p>tivemos ocasião de referir na unidade didáctica referida ao poeta.</p><p>O outro nível, mais amplo, o plano associativo ou paradigmático,</p><p>abrange um conjunto de processos retóricos, que obsessivamente se</p><p>repetem, seja a personificação, a hipálage, a animização, a</p><p>metáfora, a comparação. Poderemos incluir, ainda, neste nível um</p><p>outro tipo de processos de recuperação de estratégias da oralidade,</p><p>como o recurso aos provérbios, a sentenças, a frases feitas e</p><p>portadoras de significação didáctico-filosófica. Semelhante</p><p>processo genotextual, alarga-se da palavra à frase e da frase à</p><p>narrativa, contaminando e estruturando uma dimensão de</p><p>significação mítico-cultural, que expande uma reconfiguração da</p><p>Memória e de seus sentidos didácticos.</p><p>De acordo com LARANJEIRA, as personagens de Vozes</p><p>Anoitecidas vivem este tipo de reajustamento, meio de reordenar o</p><p>equilíbrio, de “refazer” o mundo, recriando-o. Os velhos, que</p><p>representam a Memória e a sabedoria, são os protagonistas de A</p><p>Fogueira. Neste conto, deparamos com a necessidade de</p><p>preservação dos valores que expressam as relações entre homem e</p><p>mulher, homem e morte, e os valores comunitários. O fogo que</p><p>arrasta o velho homem para a morte, que deveria ser a da mulher,</p><p>repõe simbolicamente a fogueira comunitária, à volta da qual à</p><p>noite, antigamente, todos se juntavam para, com amor, ouvir as</p><p>estórias. A terra devolve-lhe essa quentura do coração,”alma”,</p><p>“anima”, esse equilíbrio que, não sendo possível com a vida, o é</p><p>com a morte. Uma vez mais nos deparamos com o processo de</p><p>“amálgama”; a morte ajusta-se à vida, a palavra Narrada ao fogo e</p><p>ao sonho, regeneradores de uma harmonia cultural.</p><p>Centro de Ensino à Distância 50</p><p>Sumário</p><p>A língua é o primeiro elemento a ser trabalhado no universo</p><p>ficcional de Mia Couto. A sobreposição de discursos, espaços e</p><p>tempos, permite conferir à língua a sua dinâmica de teia e tessitura,</p><p>num trabalho de reconfiguração cultural.</p><p>Exercícios</p><p>1. Explique o recurso constante da oralidade em Mia Couto.</p><p>2. “Assim, a língua que Mia Couto utiliza na escrita dos</p><p>contos Vozes Anoitecidas procura ser uma forma de</p><p>mediatizar, de harmonizar a constante crise que a</p><p>sociedade moçambicana vive através das estórias trágicas</p><p>do seu quotidiano.”</p><p>a) Comente.</p><p>Centro de Ensino à Distância 51</p><p>Unidade 13: A Épica e a Modernidade: Ungulani Ba Ka Khosa (Ualalapi)</p><p>Introdução</p><p>Outro escritor não menos importante na literatura moçambicana é</p><p>Ungulani Ba Ka Khosa, com o seu livro, Ualalapi, através do qual</p><p>moderniza a ficção moçambicana ao introduzir um género que se</p><p>enraíza no romance histórico. Nesta unidade didáctica importa-te</p><p>saberes até ponto a obra harmoniza a grande história de</p><p>Moçambique com a ficção.</p><p>Ao completar esta unidade / lição, você será capaz de:</p><p>Objectivos</p><p> Identificar o contributo da revista Charrua para a literatura após</p><p>a independência</p><p> Reconhecer as características estético-estilísticas em Ualalapi de</p><p>Ungulani Ba Khossa</p><p>O livro “Ualalapi” de Un­gulani Ba Ka Khossa, publicado pela</p><p>primei­ra vez em Maputo em 1987, já recebeu vários prémios</p><p>literá­rios. A obra é um conjunto de “contos contínuos” intitulados</p><p>“Fragmentos do Fim”.</p><p>Nestes fragmentos, combina-se o material histórico-factual, com</p><p>recurso a fontes tanto escri­tas como orais,</p><p>e os elementos fictícios.</p><p>Não é por acaso que a académica Ana Mafalda Leite (1998),</p><p>quando abordada sobre o livro, tenha referido que com esta obra a</p><p>ficção moçambicana “ introduz um género que se en­raíza no</p><p>romance histórico”.</p><p>A obra de Ba Ka Khosa questiona o passado e o presente, fazendo</p><p>uma releitura das fontes históricas do século passado. O autor</p><p>critica o poder político e tenta mostrar como a História pode</p><p>descrever o uso desses mesmos poderes. Num outro</p><p>desenvolvimento, Khosa faz uma reflexão sobre as noções de</p><p>cultura e de identidade cultural. Em “Ualalapi” acontece a</p><p>Centro de Ensino à Distância 52</p><p>desmistificação total de um grande herói nacional: o impe­rador</p><p>Ngungunhane, também conhecido por “Leão de Gaza”.</p><p>Narrativa</p><p>Do ponto de vista narrativo, “Ualalapi” é, como já foi indi­cado,</p><p>um texto genericamente complexo. O livro abre com uma “nota do</p><p>autor” em que se situa o protagonista Ngungunhane na história</p><p>colonial.</p><p>A “nota do autor” serve de aviso ao leitor, para que distinga na</p><p>his­tória do imperador Ngungunha­ne “a verdade irrefutável”</p><p>daquilo que ainda suscita dúvidas.</p><p>Por exemplo, na página 37 pode-se ler: “Tu és</p><p>Ngunhunha­ne!(...) Aterrorizarás as mulhe­res e os</p><p>homens!”, em referência ao próprio Ngungunhane e ao</p><p>império dos nguni. Este trecho representa uma introdução</p><p>si­nistra à história do personagem Ualalapi, que depois de</p><p>mandar executar Mafemane, o legítimo futuro rei, de noite</p><p>desapare­ceu na floresta.</p><p>Cronologia do Reinado</p><p>O livro faz um relato crono­lógico do reinado de Ngungu­nhane, a</p><p>sua figura e os eventos específicos que ocorriam no seu reino. O</p><p>sexto texto - que mais interessa na presente análise - dá-nos “o</p><p>último discurso de Ngungunhane”.</p><p>O histórico Ngungunhane era famoso pela resistência que opôs aos</p><p>portugueses e era con­siderado um líder muito perspi­caz. Foi o</p><p>último imperador de Gaza.</p><p>Na própria história apresen­tada no livro, desfilam vários exemplos</p><p>documentais como o relato semi-ficcional da vida de Ngungunhane</p><p>escrito por Kho­sa, mais os elementos míticos e sobrenaturais</p><p>rebuscados da cultura popular moçambicana.</p><p>De referir que o último de todos os capítulos da obra contém</p><p>ci­tações da Bíblia e de vários do­cumentos da época, de cunho</p><p>administrativo, bem como as “palavras últimas de Ngungu­nhane</p><p>antes do embarque”, re­feridas em língua tsonga e na tradução</p><p>portuguesa.</p><p>Prova da importância des­ta obra é que a mesma vai ser editada em</p><p>língua inglesa ainda este ano por uma das editoras do país,</p><p>pretendendo fazer che­gar o livro a outros países, neste caso de</p><p>língua inglesa</p><p>Ualalapi, de U.B.Khosa, é designado como romance, mas</p><p>organiza-se num conjunto de seis contos, que funcionam como</p><p>Centro de Ensino à Distância 53</p><p>unidades independentes, e ao mesmo tempo interdependentes. Cada</p><p>uma das narrativas é precedida de um pequeno texto em itálico</p><p>(muitas vezes com atribuição de autoria, outras vezes depreende-se</p><p>que são do autor da obra, e oscilando entre o testemunho histórico e</p><p>a ficção), intitulado, Fragmentos do fim, numerados de um a seis,</p><p>que estabelecem uma evolução e quadro cronológicos, até à queda</p><p>do império nguni.</p><p>Com o advento da independência de Moçambique, em 1975, a</p><p>figura de Ngungunhane foi recuperada como herói nacional e</p><p>figura mítica que representava o primeiro resistente moçambicano à</p><p>colonização portuguesa, anterior à luta de libertação pela</p><p>independência, levada a cabo pela Frelimo. Na sequência desta</p><p>reabilitação da personagem histórica, convém destacar, por</p><p>exemplo, o empenhamento dos moçambicanos na reabilitação do</p><p>“herói”, ao pedirem o envio, há poucos anos atrás, aos portugueses,</p><p>dos restos mortais do imperador que tinha sido exilado nos Açores,</p><p>no fim do século passado.</p><p>Acontece, no entanto, que o imperador, Ngungunhane, era um</p><p>invasor nguni, vindo do que é actualmente a África do Sul, que</p><p>ocupou os territórios do sul de Moçambique e escravizou os tsonga</p><p>e chope, grupos étnico-linguísticos do sul de Moçambique, quando</p><p>os portugueses iniciaram o processo de ocupação colonial.</p><p>Ungulani Ba Ka Khosa ao escrever o seu romance tenta</p><p>desmitificar esta figura, transformando o mítico herói naquilo que</p><p>ele era realmente, um ditador estrangeiro, prepotente, que manteve</p><p>sobre o seu domínio, escravizada, uma parte significativa do</p><p>território moçambicano. Este é o tema de que trata o romance de</p><p>Ungulani Ba Ka Khosa. Nesta medida é uma narrativa histórica,</p><p>que versa sobre as origens históricas e pré-coloniais, do actual país,</p><p>Moçambique.</p><p>Ualalapi organiza-se, assim, a partir destes textos de abertura, num</p><p>conjunto de seis contos que funcionam como unidades</p><p>independentes, e ao mesmo tempo interdependentes. Cada uma das</p><p>narrativas é precedida de um pequeno texto italicizado (muitas</p><p>vezes com atribuição de autoria, outras vezes deprende-se que são</p><p>do autor da obra, e oscilando entre o extracto escrito e oral),</p><p>intitulado, Fragmentos do fim, numerados de um a seis, e que</p><p>estabelecem um evolução cronológica até à queda do império. Os</p><p>contos sucedem-se a estes textos e a sua temporalidade situa-se</p><p>numa dimensão mais indefinida e mítica.</p><p>Na página anterior ao início dos contos, quatro deles são</p><p>precedidos de uma citação bíblica (Job 2), (Apocalipse 3), (Mateus</p><p>6) ou de frases tipo aforismo sobre Ngungunhane. Há de novo um</p><p>diálogo textual, agora triádico, entre os fragmentos e cada um dos</p><p>contos e as citações. Esse diálogo, provocatório, coloca os contos a</p><p>deconstruir as afirmações dos fragmentos, entrando as citações em</p><p>consenso, ou funcionando como mote às estórias. Tudo isto</p><p>visando a reconstrução da personagem histórica em personagem</p><p>Centro de Ensino à Distância 54</p><p>estórica, em simultâneo reconhecendo que a referida historicidade é</p><p>já estoricidade. Irreverência em relação à História pela inversão</p><p>parodicamente exagerada da representação histórica.</p><p>O primeiro conto, que dá título ao livro, conta como o guerreiro</p><p>Ualalapi foi incumbido de matar Mafemane, o herdeiro legítimo do</p><p>trono nguni, e a usurpação do poder que Ngungunhane pratica. A</p><p>partir desta transgressão inicial se conta o sucessivo declínio do</p><p>império, e os acontecimentos insólitos que se lhe seguiram.</p><p>Ngungunhane só surge como protagonista no conto final "O Último</p><p>discurso de Ngungunhane". Até aí, a sua personalidade, a forma de</p><p>governação, são referidos indirectamente através de outras</p><p>personagens que, similarmente, padecem de características anti-</p><p>heróicas. Os abusos de poder, a arbitrariedade, o despotismo, e a</p><p>covardia, são algumas das tendências mais marcadamente</p><p>assinaladas.</p><p>Há um percurso lento e paulatino de chegada ao protagonista,</p><p>quase à maneira de uma narrativa policial. As provas e as pistas</p><p>vão-se reunindo, conto a conto, através de uma focalização</p><p>múltipla. Outras fontes, forjadas pelo narrador, surgem no interior</p><p>dos textos, o testemunho oral e também o escrito. Uma vez que</p><p>Ualalapi é uma desmitificação das versão colonial e pós-</p><p>independência da figura de Ngungunhane (a colonial que é</p><p>paternalista e a revolucionária pós-independência — implícita, não</p><p>referida no texto — que lhe atribui um estatuto de herói) convida a</p><p>reflectir sobre a validade de uma e de outra, das fontes escritas e</p><p>das orais, e daquelas que o narrador convoca no seu próprio</p><p>discurso.</p><p>1. 4 Características linguísticas em Ualalapi</p><p>Ungulani Ba Ka Khosa valoriza nitidamente a oralidade, à qual</p><p>atribui poder e capacidade de permanência no tempo, como revela</p><p>esta passagem de “Ualalapi”, em que a propósito dos assuntos do</p><p>império, se diz que o imperador os resolvia “com a voz e os gestos,</p><p>pois papel não havia e as ordens eram escritas</p><p>pela voz tonitruante</p><p>que ressoava nas manhãs e tardes chuvosas e secas” (KHOSA.</p><p>1991: 62). O poder é aqui simbolizado pelo adjectivo que qualifica a</p><p>voz, enquanto a ideia de permanência é dada pela “metáfora irónica”</p><p>que destacámos com o itálico. Portanto estamos em presença do</p><p>contraste entre a escrita e a oralidade, mas no qual se estabelece a</p><p>valorização da oralidade que se exprime através de uma</p><p>desvalorização da escrita, simbolizada pelo papel, a que as</p><p>personagens se referem sempre em termos pejorativos, como</p><p>atestam estas palavras de Ngungunhane, no seu discurso</p><p>premonitório, antes de partir para o desterro:</p><p>Estes homens da cor do cabrito esfolado que hoje aplaudis</p><p>[...] Exigir-vos-ão papéis até na retrete, como se não</p><p>bastasse a palavra, a palavra que vem dos nossos</p><p>antepassados, a palavra que impôs a ordem nesta terras sem</p><p>Centro de Ensino à Distância 55</p><p>ordem, a palavra que tirou crianças dos ventres das vossas</p><p>mães e mulheres. O papel com rabiscos norteará a vossa</p><p>vida e a vossa morte, filhos das trevas</p><p>Para mostrar as diferenças linguístico-culturais entre vários países</p><p>ou no interior de cada país, Mafalda Leite prefere utilizar o termo</p><p>“oralidades”. Afirma ela que:</p><p>O facto de usarmos no plural a palavra “oralidade” visa</p><p>exactamente demonstrar que, por um lado, as tradições</p><p>orais são diferentes de país para país, embora com um</p><p>registo linguístico-cultural bantu comum, e dentro de cada</p><p>país, de etnia para etnia, apesar de ser possível encontrar</p><p>elementos unificadores na caracterização dos géneros e dos</p><p>mitos, por exemplo. E o plural serve-nos neste caso,</p><p>também, para significar o processo transformativo que a</p><p>urbe provocou nas tradições rurais, modelando-as e</p><p>recriando-as. E usamo-lo ainda, para acrescentar outros</p><p>elementos, provenientes de outras oralidades, de que a</p><p>língua matriz é portadora na sua origem cultural.</p><p>Ao trazer as formas e ao recriar um certo imaginário da tradição oral</p><p>na sua obra, o moçambicano Ungulani Ba Ka Khosa (1991) deseja</p><p>provavelmente chamar a atenção para a cultura anulada e</p><p>considerada como superstição nos primeiros anos de independência,</p><p>que procurou eliminar os valores do mundo tradicional.</p><p>Sumário</p><p>De um modo geral, podemos entender a p contexto do surgimento</p><p>da revista charrua a comunhão de ideias, por um lado, simples</p><p>reconhecimento, depois um arquivar de todo o legado histórico-</p><p>literário numa espécie de museu memorial colectivo, e, por outro,</p><p>distanciamento ou rejeição.</p><p>Exercícios</p><p>1. “O surgimento da Charrua é um momento de rejeição e</p><p>redefinição da literatura pós-independência”. Argumenta</p><p>esta afirmação.</p><p>2. Relacione o surgimento da revista charrua e a escrita de</p><p>Ualalapi.</p><p>Centro de Ensino à Distância 56</p><p>Unidade 14: Literatura Angolana:</p><p>O Livro de Maia Ferreira e o nascimento da Literatura angolana</p><p>Introdução</p><p>Nesta unidade, vai ter a opotunidade de aprender os aspectos</p><p>relacionados ao nascimento da literatura angolana.</p><p>Ao completar esta unidade / lição, você será capaz de:</p><p>Objectivos</p><p> Adquirir noções básicas sobre o nascimento da literatura</p><p>angolana.</p><p>O livro de Maia Ferreira e o nascimento da Literatura</p><p>angolana.</p><p>Pertence também à primeira metade do século XIX a publicação do</p><p>primeiro livro de poemas de um escritor angolano,</p><p>Espontaneidades da Minha Alma - As Senhoras Africanas, Por</p><p>José da Silva Maia Ferreira, natural de Benguela. O livro</p><p>Constitui a primeira obra da incipiente literatura angolana, posto</p><p>que apareceu no momento preciso em que se debilitaram os antigos</p><p>vínculos entre Angola e o Brasil.</p><p>Com a abolição do tráfico de escravos em 1836 e a substituição</p><p>gradual por uma colonização baseada na agricultura e no comércio,</p><p>a partir dessa época, começou a produzir-se na sociedade de</p><p>Luanda e Benguela, portos de saída de escravos para a América do</p><p>Sul, favorecendo uma maior estabilidade económica e social, o que</p><p>deu origem a uma primeira burguesia africana. Estas pessoas</p><p>desenvolviam suas actividades profissionais no comércio, na</p><p>função pública e nos tribunais; e encontravam no periodismo</p><p>nascente o primeiro grande veículo para a expressão de suas</p><p>principais aspirações. Rapidamente, a imprensa se transformaria</p><p>num lugar de privilégio para o debate sócio-político.</p><p>Centro de Ensino à Distância 57</p><p>Ao longo de quase toda a metade do século XIX, se assistiu ao</p><p>nascimento de diversas publicações. O Boletim Oficial, fundado</p><p>em 1845, foi o ponto de partida. Seguidor das funções oficiais para</p><p>as quais foi criado, desempenhava também as funções de um</p><p>periódico que, apoiado por uma pequena elite de europeus recém</p><p>ligados a Colónia, contribuía consideravelmente para o incremento</p><p>do periodismo em Angola.</p><p>Assim se sucederam várias publicações entre os anos 1845 e 1880.</p><p>Ali se foi esboçando uma primeira linha de homens que, sendo</p><p>europeus, viviam quotidianamente os problemas da colónia,</p><p>fazendo da imprensa uma ampla tribuna para a defesa de seus</p><p>interesses. O procedimento tornou-se tradição e, mais tarde, o</p><p>periodismo se converteria na principal arma de luta dos intelectuais</p><p>africanos.</p><p>O primeiro periódico editado por africanos, "O Hecho de Angola",</p><p>data de 1881. Sua aparição abriria caminho para o despertar de</p><p>novos órgãos daquela que se chamou a imprensa africana, que se</p><p>caracterizou por conter publicações redigidas ora em kimbundu ora</p><p>em português. Entre estas, destacam "O Futuro de Angola", 1882;</p><p>"O Farol do Povo", 1883; "O Arauto Africano", 1889; e "1</p><p>Muen'exi", 1889; "O Desastre", 1889; e "O Policial Africano",</p><p>1890.</p><p>Este periódico teve uma vida bastante curta, posto que não passou</p><p>do quarto número. Somente dois dos escritores deste primeiro</p><p>movimento nos deram livros. Pedro de Félix Machado e Cordeiro</p><p>da Matta.</p><p>Com a perda das colónias do Oriente primeiro e do Brasil depois, e</p><p>sobretudo, depois da abolição da escravatura, Portugal viu-se com a</p><p>necessidade de intensificar a exploração dos territórios africanos, a</p><p>qual não podia continuar da maneira como era feita então, de forma</p><p>puramente mercantilista, sem falar na ameaça de que eram objecto</p><p>os territórios portugueses por parte dos holandeses e ingleses.</p><p>Assim, de colónia penal, Angola se transforma em colónia de</p><p>ocupação. Quando os portugueses começaram a chegar em número</p><p>crescente, a partir de meados do século XIX, encontram já uma</p><p>burguesia nacional em pleno desenvolvimento, constituída, em sua</p><p>maioria, por negros e mestiços.</p><p>Naturalmente, o crescente número de europeus acentuou as tensões</p><p>existentes. A imprensa livre colonial começa progressivamente a</p><p>dirigir seus ataques contra os "negros indígenas", sobretudo pelo</p><p>modo com que estes não se haviam convertido todavia em</p><p>instrumentos dóceis de trabalho para o fácil e rápido</p><p>enriquecimento dos colonos contra os "negros e mestiços inativos",</p><p>pelo destacado lugar que ocupavam na estrutura social e</p><p>económica.</p><p>Centro de Ensino à Distância 58</p><p>A partir dos finais do século XIX, os ataques sobem de nível. Já em</p><p>1901, a "Gazeta de Luanda", único periódico que então se</p><p>publicava, publicou um artigo - "contra a lei", pela greve - cujo</p><p>autor manifestava o mais escandaloso reacionarismo colonialista,</p><p>ao afirmar a inferioridade do negro em relação ao branco e negando</p><p>ao primeiro o direito mais elementar: o de formar uma parte da</p><p>humanidade.</p><p>As respostas não se fizeram esperar. Uma obra colectiva de onze</p><p>autores, "Voz de Angola", e "Clamando no Deserto", foi publicada</p><p>em Maio de 1901. Entretanto a obra sobrepuja o âmbito</p><p>de uma</p><p>mera resposta e postula já alguns dos princípios que vão orientar a</p><p>vida das sucessivas gerações de intelectuais angolanos: a luta pela</p><p>auto-determinação.</p><p>Daquela que se chamou a primeira geração angolana de</p><p>intelectuais, até a geração de 1980, as obras que citamos são a</p><p>melhor indicação do que se produziu na segunda metade do século</p><p>XIX e na que o periodismo figura em um lugar destacado. Junto ao</p><p>periodismo, foi sem dúvida a poesia quem, como outra forma</p><p>literária merece ser destacada no final do século XIX.</p><p>Facto muito comum era também a aparição de numerosos</p><p>periodistas entre os poetas de maior renome, como é o caso de</p><p>Arcénio do Carpo, Faria Leal, Urbano de Castro e o já muito citado</p><p>Cordeiro da Matta.</p><p>No final do século XIX, por volta de 1896, é quando se assiste a</p><p>aparição de um novo grupo de jovens intelectuais, o grupo que</p><p>mais tarde se chamou de a geração de 1896. Talvez tenha sido esta</p><p>a geração de maior destaque entre os intelectuais angolanos, antes</p><p>da geração da mensagem, em 1948; esta última é a que estaria</p><p>presente no acontecimento da luta armada em 1961. Composta por</p><p>vigorosos pensadores, animados, como seus antecessores, pelas</p><p>melhores intenções e dispostos a tudo na luta em favor dos</p><p>interesses dos angolanos, a geração de 1896, impulsionada pelos</p><p>mais puros ideais, procurava elevar a sociedade a qual pertencia a</p><p>um estado mais alto de sua evolução.</p><p>Este grupo possuía uma orientação programática e como ponto de</p><p>apoio para sua actividade tinham a difusão da educação e da</p><p>instrução entre seus compatriotas. Desde esse momento, aqueles</p><p>pensadores compreenderam que na instrução do povo estava o</p><p>ponto de partida para o desenvolvimento socio-económico do país,</p><p>opondo-se desse modo a tendência acentuada do sistema</p><p>colonialista à desfiguração sócio-cultural e histórica de Angola.</p><p>Um nome muito importante que surge nesta época é o de António</p><p>de Assis Júnior, que apesar de pertencer a geração de 1896, só um</p><p>pouco mais tarde conseguiu alguma notoriedade. A sua importância</p><p>na literatura angolana é enorme. Além disso não existem outras</p><p>publicações importantes durante o período que vai de 1910 a 1940,</p><p>Centro de Ensino à Distância 59</p><p>adquirindo suas obras, desse modo, um ponto de referência</p><p>obrigatório. De facto, a geração de 1896, se silencia a partir de</p><p>1910.</p><p>Na esteira do trabalho desenvolvido por seus correligionários,</p><p>Assis Júnior defendia uma posição que pugnava pela defesa das</p><p>referências culturais e pela aspiração a um estabelecimento</p><p>definitivo de uma literatura própria, o que só se concretizaria mais</p><p>tarde com Castro Soromenho. Sua primeira obra, "Relato dos</p><p>acontecimentos de Dala Tando e Lucala", escrita no cárcere em</p><p>1917, retrata a amarga experiência pela qual passou em sua</p><p>tentativa de impedir que alguns indígenas fossem retirados seus</p><p>bens e fazendas. Logo foi acusado pelas autoridades coloniais de</p><p>ser o "autor ou dirigente de um movimento xenófobo". Por último,</p><p>o que lhe levou ao cárcere por duas vezes, em 1917 e 1922, foi sua</p><p>retitude de caráter, a honradez com que defendia os indígenas, por</p><p>meios legais, o que constituía um obstáculo a política de rapina e</p><p>espoliação, uma das grandes chaves para a implantação da ordem</p><p>econômica dirigida pelas grandes companhias agrícolas.</p><p>No transcurso destes acontecimentos, muitos outros intelectuais</p><p>angolanos foram encarcerados e deportados, a exemplo do que</p><p>aconteceu com o próprio Assis Júnior. É censurada a Liga</p><p>Angolana, que havia sido inaugurada em 1913 e se encerram os</p><p>periódicos africanos "O Imperial", "o Independente", "A Verdade"</p><p>e "O Angolense". A medida que a sociedade colonial se vai</p><p>estruturando, a pequena burguesia africana que tantos intelectuais</p><p>haviam constituído em seu país de origem vai consumindo-se, ao</p><p>mesmo tempo que se aniquilam as estruturas e a cultura nacional</p><p>angolanas.</p><p>E é só em 1928, depois de um exílio forçado de quatro anos, por</p><p>ocasião de uma estadia em Gabela, Amboim, onde "durante muito</p><p>tempo e várias vezes teve que contar sua história", que decide</p><p>reproduzir, e posteriormente publicar, primeiro nos folhetins do</p><p>periódico "A Vanguarda", em 1929, e reeditada mais tarde em 1925</p><p>em forma de livro: "O Segredo da Morta".</p><p>Esta novela se converteria em um marco notável no</p><p>encaminhamento da literatura angolana diante de sua identidade</p><p>nacional". Tendo escrito num período em que não existiam mais</p><p>registos de outra obra produzida por um autor angolano, esta</p><p>novela ocupa todo um vazio literário, formando uma ponte entre as</p><p>duas gerações dos escritores preocupados com a revitalização</p><p>angolana, as gerações que estavam anteriormente representadas por</p><p>Cordeiro da Matta e posteriormente, por Castro Soromenho. Por</p><p>um lado, a obra representa um início da ficção literária no século</p><p>XX, da qual Castro Soromenho é o mais ilustre representante; por</p><p>outro lado, uma continuidade: a geração de 1880, encabeçada por</p><p>Cordeiro da Matta, ao mesmo tempo que une como já dissemos a</p><p>todo o movimento, reflete sobre a angolanidade.</p><p>Centro de Ensino à Distância 60</p><p>É já ao largo dos anos 40 quando se reinicia, quase a partir do zero,</p><p>a elaboração da literatura angolana. Na verdade, toda a produção</p><p>literária deixada pelos intelectuais do século passado, salvo raras</p><p>excepções, se perdera. É a partir daqui que Castro Sormenho</p><p>começa a erigir uma obra monumental. Iniciando sua actividade</p><p>literária com temas que revelam a vida das sociedades tribais não</p><p>corrompidas pela presença do colonizador, publica os livros de</p><p>contos Ngári, "Calenga e Rajada" e as novelas "Noite de Angústia"</p><p>e "Homens sem Caminho".Entretanto a grande novela de Castro</p><p>Sormenho é sem dúvida "Terra Morta", publicada pela primeira vez</p><p>no Brasil em 1949, obra em que o autor aborda as relações dos</p><p>colonos com os africanos. Castro Soromenho é todavia um</p><p>paradigma no qual as nacionalidades biológicas e literária de um</p><p>autor não tem necessariamente que coincidir.</p><p>A partir da aparição das páginas literárias dominicais, primeiro, de</p><p>"A Província de Angola" e, mais tarde, do "Diário de Luanda",</p><p>começaram a revelar-se uma série de jovens escritores de certo</p><p>mérito no que diz respeito à época e ao meio no qual surgiram. No</p><p>entanto, mesmo que muitos deles tivessem descrito Angola com a</p><p>maior ternura, não conseguiram criar uma literatura de raiz</p><p>angolana que fugisse dos modelos da literatura colonial. Só em</p><p>1948, com o surgimento do movimento cultural "Vamos Descobrir</p><p>Angola", iniciado por Viriato da Cruz e com a publicação da</p><p>revista "Mensagem", três anos mais tarde, se abre uma nova página</p><p>na história da literatura angolana. Era um movimento no qual se</p><p>concentravam alguns expoentes da intelectualidade nacional, que,</p><p>lucidamente se volta face à realidade de então, propondo-se a</p><p>reconsiderar o conjunto da realidade angolana. Havia sido lançada</p><p>a semente a partir da qual começaria a germinar um grande</p><p>movimento literário que só se serenaria, triunfante, em Novembro</p><p>de 1975.</p><p>Exercícios</p><p>1. Relacione a obra Espontaneidades da Minha Alma - As</p><p>Senhoras Africanas com o surgimento da literatura</p><p>angolana.</p><p>2. A actividade literária angolana conhecera, a dado passo, um</p><p>interregno e depois recuperada mais tarde por Castro</p><p>Soromenho. Fale dos acontecimentos que ditaram tal facto.</p><p>Centro de Ensino à Distância 61</p><p>Unidade 15: Periodização da Literatura Angolana</p><p>Introdução</p><p>Estudar uma literatura implica analisar a progressão temporal do</p><p>cultivo de uma língua com fins estéticos e culturais, bem como o</p><p>modo de encarar essa progressão, através de perspectivas críticas e</p><p>metodológicas que a condicionam. Na presente unidade vamos</p><p>importa-te</p><p>essencilamente estudar à periodização da literatura</p><p>angolana.</p><p>Ao completar esta unidade / lição, você será capaz de:</p><p>Objectivos</p><p> Adquirir uma visão global sobre a periodização literária</p><p>angolana</p><p>Literatura Angolana: Periodização</p><p>Podemos dividir a literatura angolana em sete períodos, que a</p><p>seguir se listam:</p><p>1.° Período – das origens até 1848, o da Incipiência.</p><p>2.° Período – da publicação de Espontaneidades da minha alma, de</p><p>José da Silva Maia Ferreira, em 1849 até 1902, o dos Primórdios.</p><p>Destacam-se Alfredo Troni com Nga mutúri (1882). Cordeiro da</p><p>Matta. É o período da chamada imprensa livre.</p><p>3.° Período – séc. XX (1903-1947), o do Prelúdio. Período do</p><p>nacionalismo, da literatura colonial.</p><p>4.° Período – entre 1948 e 1960, o da Formação da literatura, com</p><p>movimentos culturais organizados: Movimento dos Novos</p><p>Intelectuais de Angola (MNIA) (1948), com o lema “Vamos</p><p>descobrir Angola”. Destaca-se Viriato da Cruz, Antonio Jacinto,</p><p>que editou em 1950, Antologia dos novos poetas angolanos.</p><p>Centro de Ensino à Distância 62</p><p>Em 1951 sai Mensagem. Mensagem marca, assim, o início da</p><p>poesia moderna de Angola. Nesta revista participa uma pleiade de</p><p>escritores que serão os responsáveis pela construção da literatura</p><p>do novo país. Na década de 50 há a influência do neo-realismo e da</p><p>Negritude:</p><p>a) Exaltação do povo (proletariado) , luta contra a burguesia</p><p>b) Busca da identidade nacional;</p><p>c) Integração no mundo negro. Destaca-se, neste período, a poesia</p><p>com influência do modernismo.</p><p>5.° Período – 1961-1971, incremento da atividade editorial ligada</p><p>ao Nacionalismo, surgem textos de temática guerrilheira. Em 1962,</p><p>Alfredo Margarido publica Poetas angolanos. Dois anos mais tarde,</p><p>em 1964, José Luandino Vieira recebe o Grande Premio de</p><p>Novelística por Luuanda (enquanto estava preso em Cabo Verde).</p><p>6.° Período – 1972 a 1980, o da Independência. Publica-se a</p><p>coletânea Angola, poesia 71. E em 1975 funda-se a União dos</p><p>Escritores Angolanos (UEA) e fundam a gazeta Lavra & Oficina.</p><p>7.° Período – 1981-1993, o de Renovação, que começa com a</p><p>formação da Brigada Jovem de Literatura, preparar os jovens para</p><p>os cursos superiores.</p><p>Exercícios</p><p>1. Complete essa informação, lendo LARANJEIRA, 1985.</p><p>Centro de Ensino à Distância 63</p><p>Unidade 16: O Neo-realismo: Castro Soromenho e a Trilogia romanesca (Terra Morta)</p><p>Introdução</p><p>Castro Soromenho desempenha um papel fundamental para a</p><p>literatura angola sobretudo por reiniciar uma actividade que se</p><p>perdera, por algum tempo. Desta vez, sobre carris neo-relistas</p><p>aborda temas sociais , repressão, abusos de administração do</p><p>homem angolano, etc, que se encontram em sua obra célebre –</p><p>trilogia de Camaxilo. Nesta unidade importa-te como Soromenho</p><p>abarca todos os níveis daquela sociedade, brancos, mestiços e</p><p>negros.</p><p>Ao completar esta unidade / lição, você será capaz de:</p><p>Objectivos</p><p> Adquirir conhecimentos sobre o neo-realismo angolano;</p><p> Interpretar temas e os grupos étnico-culturais em trilogia de</p><p>Camaxilo de Castro Soromenho.</p><p>Trilogia Romanesca: o Neo-Realismo</p><p>Castro Soromenho nasceu na Zambézia, Moçambique (1910) –</p><p>moçambicano de nascimento, cabo-verdiano de ascendência e</p><p>angolano de vivência. 2 fases: na 1a. destaca o sentido social,</p><p>lendário e histórico das comunidades tribalizadas dentro do</p><p>realismo mágico – Nhári, o drama da gente negra, 1938; Noite de</p><p>angústia, 1939; Homens sem caminho, 1941; Rajadas e outras</p><p>histórias, 1943; Calenga, 1945; Histórias da terra negra, 1960. 2a.</p><p>fase, neo-realista, aborda o espaço e os grupos humanos</p><p>modificados pela presença do europeu. Trabalha 3 grupos étnico-</p><p>culturais: negros brancos e mestiços (na anterior só o negro).</p><p>Temas: violência, repressão, abusos da administração,</p><p>sofrimento do homem angolano explorado, desencanto</p><p>existencial, com a trilogia – Terra morta, 1949; Viragem, 1957;</p><p>Chaga (póstumo), 1970.</p><p>É este, portanto, o contexto em que surge, em Angola, a produção</p><p>de Castro Soromenho e se estabelece a «matriz neo-realista» da</p><p>qual se destaca a chamada «Trilogia de Camaxilo». Terra Morta</p><p>(1949), Viragem (1957) e A Chaga, publicada postumamente em</p><p>Centro de Ensino à Distância 64</p><p>1970, são obras escritas sob o signo da ruína representada pelo</p><p>sistema colonial e a primeira manifestação de cunho nitidamente</p><p>realista/naturalista. Soromenho retoma as premissas do naturalismo</p><p>do século anterior e tece seus romances calcado no tripé</p><p>experiência, verdade e justiça que norteara a produção da chamada</p><p>geração de 1870.</p><p>Em perspectiva diacrónica, Soromenho descreve, em Terra Morta,</p><p>a decadência do sistema colonial metonimizado no fracasso dos</p><p>colonos em meio à crise mundial ocorrida durante as décadas de 20</p><p>e 30 do século XX. A queda da cotação da borracha no mercado</p><p>internacional ocasiona a bancarrota desses colonos, alguns deles</p><p>conhecidos como «brancos de segunda» por terem nascido em</p><p>África. A oposição racial descrita neste romance e nos demais da</p><p>trilogia abarca os três níveis existentes naquela sociedade: brancos,</p><p>negros e mestiços, todos envolvidos por um nível crescente de</p><p>apatia biológica e social. Tal qual os trabalhadores das minas do</p><p>norte da França, descritos no já mencionado Germinal, a atmosfera</p><p>reinante em Camaxilo é permeada pelo grisu, o gás tóxico e</p><p>imperceptível que ameaça e explode as minas de carvão descritas</p><p>no romance francês.</p><p>A questão social torna-se, deste modo, o fio condutor da trama, que</p><p>se ocupa ainda em evidenciar fissuras nos segmentos sociais que</p><p>compõem a narrativa. Os brancos, senhores ainda de uma terra à</p><p>deriva, são tomados pela hemiplegia de uma situação alienante.</p><p>Apresentam-se estáticos, parados de pé ou sentados defronte de</p><p>suas lojas, descalços e barbados à espera dos raros clientes que</p><p>sustentam seus negócios.</p><p>Irremediavelmente afastados da vida em Portugal, acabam por</p><p>desposar mulheres nativas, dando, com isso, origem a uma</p><p>descendência mestiça que lhes garantem mão-de-obra gratuita e a</p><p>perpetuação das relações imperialistas. Seus filhos assimilam</p><p>elementos culturais advindos da herança materna que se dá na</p><p>perpetuação dos mitos angolanos, os quais entram em conflito com</p><p>a necessidade premente de "embranquecimento", ou seja, de</p><p>adquirem status semelhante ao de seus pais e da cultura lusitana.</p><p>Deles herdam, sobretudo o tom de pele que, no entanto, não lhes dá</p><p>acesso ao universo dos brancos e que, por diversas vezes, interdita</p><p>seu pleno relacionamento com os outros negros. Estes, por sua vez,</p><p>são vítimas ainda de um sistema de desigualdade social que, pela</p><p>técnica de zoomorfização, os limita ao universo escravocrata que,</p><p>no presente enunciado permeia as relações entre Portugal e África.</p><p>Os cipaios negros a serviço dos brancos, criam fissuras na estrutura</p><p>social por serem os responsáveis pela manutenção da ordem que o</p><p>serviço e a necessidade de produção impõem, e que é</p><p>metonimizada pelo chicote que manipulam. Criam, assim, um</p><p>distanciamento de seus pares raciais, o que os leva a uma situação</p><p>Centro de Ensino à Distância 65</p><p>de estagnação: a natureza de seu trabalho não lhes franqueia</p><p>entrada no universo dos brancos, que os desprezam, e fomenta o</p><p>ódio racial por parte de outros negros que os renegam. Este</p><p>estilhaçamento se repete também na substituição sobas imposta</p><p>pelos portugueses. Líderes dos diversos kimbos angolanos e eleitos</p><p>pela ancestralidade nacional, foram, desde os primórdios da</p><p>colonização, despojados da hierarquia</p><p>primordial que possuíam em</p><p>favor de outros de sua raça que atendiam aos ideais colonialistas e</p><p>favoreciam a penetração lusitana.</p><p>Estas são algumas das muitas imagens excludentes que Soromenho</p><p>lança mão em seu projecto narrativo. A elas somam- se outras</p><p>como, por exemplo, a oposição noite e dia. Se o dia é o espaço do</p><p>trabalho burocrático para os oficiais do exército português e demais</p><p>brancos, para o negro é a representação do trabalho árduo e</p><p>incessante. A noite, contudo, torna-se a unidade temporal que os</p><p>beneficia, pois é nesse momento em que, reunidos, evocam seus</p><p>mitos e as narrativas orais que medulam seu saber. Sentados à beira</p><p>das fogueiras e dançando ao som de tambores, demandam de seus</p><p>antepassados o alento e a vingança impostos pelo equívoco das</p><p>relações sociais. É neste espaço que o branco se afastado poder que</p><p>a luz do sol lhe outorga e passa a temer a fúria da ancestralidade</p><p>rejeitada ao brilho do sol e das diversas divindades evocadas nas</p><p>senzalas.</p><p>É, pois, durante o transe da noite africana que se revelam ainda</p><p>algumas relações conflituosas, desta vez originada entre</p><p>semelhantes. Ao iniciar seu relato com uma partida de baralho, à</p><p>luz amarela do candeeiro de petróleo que lança sombra sobre o</p><p>rosto de seus participantes, Soromenho exacerba aspectos cruéis do</p><p>colonialismo para os brancos de Camaxilo e que se dá no</p><p>distanciamento filosófico existente entre o secretário Silva,</p><p>Américo, Valadas e Vasconcelos, metonímias do individualismo e</p><p>do blefe exigidos em um jogo de cartas.</p><p>De igual modo, a sede do poder colonial encontra-se em local</p><p>geograficamente elevado, o que permite ao poder uma visão global</p><p>do espaço circundante. Os demais habitantes retratados por</p><p>Soromenho estão restritos a partes mais baixas da província, que</p><p>reduzem sensivelmente seus horizontes e revigoram o sistema</p><p>político vivido. Laura Padilha evidencia um cómodo da casa que</p><p>apresenta uma possibilidade de interseção entre os universos</p><p>branco e negro. As varandas são construídas em um espaço que se</p><p>prolonga do lado de fora da casa, ou seja, projetam-se sobre o solo</p><p>africano. No entanto, por serem despojadas de paredes e da</p><p>proteção assegurada pela territorialidade do interior da residência,</p><p>servem de exemplo da miscigenação cultural resultante do sistema</p><p>colonial e que pode ser expressa, como já observamos, pelo</p><p>casamento inter-racial e a descendência mestiça. Esta pode ser a</p><p>representação de um novo traço neo-realista/naturalista decorrente</p><p>Centro de Ensino à Distância 66</p><p>da evolução que se deu entre a produção literária do século XIX em</p><p>que esta interseção era interdita e a representação social do século</p><p>XX.</p><p>Permanece, contudo, o maniqueísmo espacial que, em Terra Morta,</p><p>se dá no espaço circundante. Além da dicotomia alto X baixo, este</p><p>pode ser expresso também na oposição esquerda X direita: a prisão</p><p>está localizada à esquerda da província de Camaxilo e o cemitério,</p><p>à direita. No meio, há apenas o espaço destinado ao trabalho árduo</p><p>e a sugestão de que os trabalhadores representados tendem,</p><p>necessariamente, a um ou a outro.</p><p>Apesar de Soromenho criticar o imperialismo português e enfatizar</p><p>a impossibilidade de os negros se tornarem sujeitos do discurso</p><p>histórico, este autor aponta uma possível solução ao impasse</p><p>retratado no romance. Américo é a personagem que age segundo a</p><p>semântica de seu nome, alegoria da glória portuguesa adquirida,</p><p>mas não perpetuada. Representa novas ideias e possibilidades que</p><p>se articulam com a fecundidade do solo e da cultura brasileira e,</p><p>sobretudo, pela independência deste país da tutela portuguesa. Sua</p><p>defesa de negros e mestiços o conduz, no entanto, a uma dimensão</p><p>de desterritorialização em que é rejeitado pela administração</p><p>colonial e pelos próprios negros que procura defender, incapazes de</p><p>compreender o fundo humanitário de seu gesto. A personagem</p><p>evidencia, portanto, uma alternativa ao caos retratado ainda que,</p><p>como as novas terras, tenha de ser cultivada e fecundada.</p><p>Estes elementos são usados pelo autor para inquirir a mistificação</p><p>da colonização e, de modo a superar o dilema dela advindo,</p><p>Soromenho sugere uma nova ordem baseada no materialismo</p><p>histórico como possibilidade, pela revolução, do resgate político,</p><p>social e cultural de Angola, metonímia do império português em</p><p>África.</p><p>Exercícios</p><p>1. Apresente toda a simbologia patente na trilogia de</p><p>Camaxilo de Castro Soromenho.</p><p>2. A obra de Soromenho apresenta duas fases importantes.</p><p>Enquadre numa delas a trilogia.</p><p>3. Mostre até que ponto a obra de Soromenho é</p><p>realista/naturalista.</p><p>Centro de Ensino à Distância 67</p><p>Unidade 17: A Poesia Angolana : De (1849 – 1948)</p><p>Introdução</p><p>A emergência e o desenvolvimento de literaturas de povos</p><p>colonizados dependem de dois factores: “das etapas de</p><p>consciencialização nacional e da asserção de serem diferentes,</p><p>como temos vindo a dizer. Na primeira etapa, a literatura produzida</p><p>na colónia é escrita pelos próprios colonizadores. Na segunda, é</p><p>escrita pelos nativos mas apresenta uma total dependência em</p><p>relação ao modelo literário dopaís colonizador, e na terceira, há a</p><p>ruptura com o modelo literário e com a dependência cultural do</p><p>país colonizador. Na sequência desta divisão, vamos aqui falar da</p><p>primeira e segunda etapas correspondendo a 1849 a 1948 (1.º a 3.º</p><p>períodos da literatura angolana)6</p><p>Ao completar esta unidade / lição, você será capaz de:</p><p>Objectivos</p><p> Ter conhecimentos sobre a literatura angolana de 1849 - 1948</p><p>Poesia Angolana: (1849-1948)</p><p>Como apontamos, a primeira etapa, a literatura produzida na</p><p>colónia é escrita pelos próprios colonizadores. Esta etapa envolve</p><p>textos literários produzidos por representantes do poder</p><p>colonizador (viajantes, dministradores, soldados e esposas de</p><p>administradores coloniais). Tais textos e reportagens, com detalhes</p><p>sobre costumes, fauna, flora e língua, dão ênfase à metrópole em</p><p>detrimento da colónia; privilegiam o centro em detrimento da</p><p>periferia.</p><p>Na segunda, é escrita pelos nativos mas apresenta uma total</p><p>dependência em relação ao modelo literário dopaís colonizador, e</p><p>na terceira, há a ruptura com omodelo literário e com a</p><p>dependência cultural do país colonizador. Os textos literários</p><p>escritos sob supervisão imperial por nativos que receberam sua</p><p>educação na metrópole e que se sentiam gratificados em poder</p><p>escrever na língua do europeu (não há consciência de ela ser</p><p>6 Cf. Periodização angolana, Unidade 15</p><p>Centro de Ensino à Distância 68</p><p>também do colonizador). /.../Embora muitos dos temas (cultura</p><p>mais antiga do que a européia, a brutalidade do sistema colonial, a</p><p>riqueza de seus costumes, leis, cantos e provérbios) abordados por</p><p>esses autores estivessem carregados de subversão, sem dúvida não</p><p>podiam e não queriam perceber essa potencialidade.</p><p>A literatura angolana escrita em língua portuguesa, sendo um</p><p>produto derivado “das sequelas do colonialismo” (Laranjeira 1985,</p><p>p.10) europeu, não foge a essa regra. A sua primeira etapa de</p><p>desenvolvi mento engloba tudo o que foi produzido em Angola e</p><p>sobre Angola no período anterior a 1849. A segunda envolve os</p><p>textos produzidos a partir da publicação de Espontaneidades da</p><p>minha alma, de José da Silva Maia Ferreira, em 1849, indo até a</p><p>véspera da criação do Movimento Vamos Descobrir Angola em</p><p>1948, e a terceira começa com a eclosão desse movimento cultural</p><p>que fará surgir em Angola uma literatura de natyreza africana, livre</p><p>da dependência da metrópole.</p><p>O Moviemnto vamos Descobrir Angola</p><p>Angolanos</p><p>50</p><p>Exercícios.................................................................................................................... 50</p><p>Unidade 13: A Épica e a Modernidade: Ungulani Ba Ka Khosa (Ualalapi) 51</p><p>Introdução .......................................................................................................... 51</p><p>Sumário ....................................................................................................................... 55</p><p>Exercícios.................................................................................................................... 55</p><p>Unidade 14: Literatura Angolana: 56</p><p>O Livro de Maia Ferreira e o nascimento da Literatura angolana 56</p><p>Introdução .......................................................................................................... 56</p><p>Exercícios.................................................................................................................... 60</p><p>Unidade 15: Periodização da Literatura Angolana 61</p><p>Introdução .......................................................................................................... 61</p><p>Centro de Ensino à Distância iii</p><p>Exercícios.................................................................................................................... 62</p><p>Unidade 16: O Neo-realismo: Castro Soromenho e a Trilogia romanesca (Terra Morta)63</p><p>Introdução .......................................................................................................... 63</p><p>Exercícios.................................................................................................................... 66</p><p>Introdução .......................................................................................................... 67</p><p>Exercícios.................................................................................................................... 69</p><p>Unidade 18: Contexto Sócio- cultural de Angola: Revista Mensagem 70</p><p>Introdução .......................................................................................................... 70</p><p>Exercícios.................................................................................................................... 72</p><p>Introdução .......................................................................................................... 73</p><p>Exercícios.................................................................................................................... 76</p><p>Unidade 20: angolanidade: Continuidade de Mensagem – A Revista Cultura(II) 77</p><p>Introdução .......................................................................................................... 77</p><p>Exercícios.................................................................................................................... 80</p><p>Unidade 21: A Renovação Literária: Luandino Vieira (Luuanda) 81</p><p>Introdução .......................................................................................................... 81</p><p>Exercícios.................................................................................................................... 86</p><p>Unidade 22: A Nova poesia anagolana: Os Poetas da Geração de 70 na situação de</p><p>Ghetto 88</p><p>Introdução .......................................................................................................... 88</p><p>Exercícios.................................................................................................................... 91</p><p>Unidade 23: A História e a Tematização da Guerra: Yaka (Pepetela) 92</p><p>Introdução .......................................................................................................... 92</p><p>Exercícios.................................................................................................................... 95</p><p>Unidade 24: Novo rumo da Literatura angolana no período Pós-independência (crítica</p><p>social) 96</p><p>Introdução .......................................................................................................... 96</p><p>Exercícios.................................................................................................................... 98</p><p>Centro de Ensino à Distância 1</p><p>Visão geral</p><p>Bem-vindo à cadeira de Literaturas Africanas em</p><p>Português II</p><p>Você tem em suas mãos o módulo único da cadeira de Literaturas</p><p>Africanas em Língua Portuguesa II. A cadeira de Literaturas</p><p>Africanas em Língua Portuguesa II (LALP II) leccionada no quarto</p><p>ano do curso de Licenciatura em Ensino do Português, aborda</p><p>aspectos gerais das literaturas africanas em Língua Portuguesa, em</p><p>particular a de Moçambique e Angola. Trata também do quadro</p><p>periodológico da sua literariedade, bem como os principais factores</p><p>que a influenciaram. Sendo assim, abordar-se-ão matérias de</p><p>natureza teórica e analisar-se-ão textos que espelham a realidade</p><p>literária nos dois países.</p><p>Objectivos da cadeira:</p><p>Objectivos</p><p>Quando terminar o estudo de Literaturas Africanas em Língua</p><p>Portuguesa II, o estudante (cursante) será capaz de:</p><p> Compreender as circunstâncias do advento das Literaturas</p><p>Africanas de Expressão Portuguesa;</p><p> Distinguir a Literatura Colonial da Literatura Nacional;</p><p> Relacionar a Literatura Moçambicana com a Angolana;</p><p> Conhecer os aspectos formais e temáticos dos textos literários de</p><p>autores mais representativos nos dois países.</p><p>Quem deveria estudar este módulo</p><p>Este módulo foi concebido para todos aqueles Estudantes</p><p>candidatos ao Curso de Licenciatura em Ensino da Língua</p><p>Portuguesa, que devido a sua situação laboral, não têm a</p><p>oportunidade de poder estar num sistema de ensino totalmente</p><p>presencial. Espera-se que os futuros professores de Português</p><p>possam ensinar esta língua com correcção, tendo em atenção aos</p><p>Centro de Ensino à Distância 2</p><p>principais factores que influenciaram o surgimento das Literaturas</p><p>Africanas em Língua Portuguesa, virando um especial enfoque para</p><p>Moçambique e Angola.</p><p>Como está estruturado este módulo?</p><p>Todos os manuais das cadeiras dos cursos oferecidos pela</p><p>Universidade Católica de Moçambique-Centro de Ensino à</p><p>Distância (UCM-CED) encontram-se estruturados da seguinte</p><p>maneira:</p><p>Páginas introdutórias</p><p>Um índice completo.</p><p>Uma visão geral detalhada da cadeira, resumindo os aspectos-</p><p>chave que você precisa conhecer para completar o estudo.</p><p>Recomendamos vivamente que leia esta secção com atenção</p><p>antes de começar o seu estudo.</p><p>Conteúdo da cadeira</p><p>A cadeira está estruturada em unidades de aprendizagem. Cada</p><p>unidade incluirá, o tema, uma introdução, objectivos da unidade,</p><p>conteúdo da unidade incluindo actividades de aprendizagem,</p><p>um sumário da unidade e uma ou mais actividades para auto-</p><p>avaliação.</p><p>Outros recursos</p><p>Para quem esteja interessado em aprender mais, apresentamos uma</p><p>lista de recursos adicionais para você explorar. Estes recursos</p><p>podem incluir livros, artigos ou sites na internet.</p><p>Tarefas de avaliação e/ou Auto-avaliação</p><p>Tarefas de avaliação para esta cadeira, encontram-se no final de</p><p>cada unidade. Sempre que necessário, dão-se folhas individuais</p><p>para desenvolver as tarefas, assim como instruções para as</p><p>completar. Estes elementos encontram-se no final do manual.</p><p>Comentários e sugestões</p><p>Esta é a sua oportunidade para nos dar sugestões e fazer</p><p>comentários sobre a estrutura e o conteúdo da cadeira. Os seus</p><p>comentários serão úteis para nos ajudar a avaliar e melhorar este</p><p>manual.</p><p>Centro de Ensino à Distância 3</p><p>Ícones de actividade</p><p>Ao longo deste manual irá encontrar uma série de ícones nas</p><p>margens das folhas. Estes ícones servem para identificar</p><p>negros, brancos e mestiços iniciaram em 1948, em</p><p>Luanda, o movimento cultural Vamos Descobrir Angola, tendo em</p><p>mente o estudo da terra em que nasceram e que tanto amavam, e</p><p>que, no entanto, mal conheciam. Esses rapazes, totalmente</p><p>assimilados à cultura européia, eram ex-alunos do liceu Salvador</p><p>Correia, que por um motivo ou por outro não puderam ir à</p><p>metrópole em busca de uma formação universitária.Eles haviam</p><p>estudado toda a cultura portuguesa e sabiam tudo sobre o país</p><p>colonizador: a geografia, o clima, a fauna, a flora, a literatura e as</p><p>tradições culturais; ao mesmo tempo em que desconheciam</p><p>A partir do Movimento Vamos Descobrir Angola, segundo</p><p>Ervedosa (Op. cit.), começava a germinar uma literatura que seria a</p><p>expressão dos sentimentos e o veículo das aspirações angolanas.</p><p>Em 1950, esse movimento transformou-se no Movimento dos</p><p>Novos Intelectuais de Angola (MNIA), adquirindo um caráter</p><p>quase exclusivamente literário. O Movimento dos Novos</p><p>Intelectuais de Angola foi essencialmente um movimento de</p><p>poetas, virados para o seu povo e utilizando nas produções uma</p><p>simbologia que a própria terra exuberantemente oferece.</p><p>Década de 50</p><p>O MNIA e a CEI foram responsáveis pelas principais publicações</p><p>poéticas na década de 50. A CEI desempenhou papel de primordial</p><p>importância na divulgação dos autores angolanos silenciados</p><p>pelabarreira da censura e contribuiu de forma decisiva para chamar</p><p>Centro de Ensino à Distância 69</p><p>a atenção do mundo para os dramas que Angola vivia. Em 1948 a</p><p>CEI de Lisboa publicou o boletim literário Mensagem, enquanto</p><p>que a de Coimbra publicou o similar Meridiano. Dois anos depois</p><p>(1950), O MNIA publicou a Antologia dos novos poetas de</p><p>Angola, um modesto caderno artesanal contendo poemas de</p><p>António Jacinto, Viriato da Cruz e Maurício de Almeida Gomes. E</p><p>no ano seguinte, através do Departamento Cultural da Associação</p><p>dos Naturais de Angola (ANANGOLA), o movimento publicou a</p><p>revista Mensagem – A Voz dos Naturais de Angola, cujo projecto</p><p>vasto e ambicioso, era, a urgência de criar e levar a cultura</p><p>angolana além fronteiras.</p><p>Exercícios</p><p>1. Faz um pequeno resumo sobre a literatura produzida no</p><p>período compreendindo entre 1849 a 1948.</p><p>2. Fala dos princiapais momentos e acontecimentos desta</p><p>literatura.</p><p>Centro de Ensino à Distância 70</p><p>Unidade 18: Contexto Sócio- cultural de Angola: Revista Mensagem</p><p>Introdução</p><p>Como acontece com os outros países, a literatura de Angola</p><p>também não nasce por método espontâneo. Vários são os</p><p>antecedentes e os precursores que influenciam sobremaneira o</p><p>carácter social, cultural e estético da literatura e da poesia, em</p><p>particular. E não podemos nunca descurar, como factor de grande</p><p>influência, a tradição da oralidade em África, um dos antecedentes</p><p>de maior responsabilidade. É importante que nesta unidade</p><p>conheças o contexto sócio-cultual do surgimento da revista</p><p>Mensagem.</p><p>Ao completar esta unidade / lição, você será capaz de:</p><p>Objectivos</p><p> Adquirir conhecimentos sobre o contexto sócio-cultural de</p><p>Angola no período que inicia com a publicação da reista</p><p>Mensagem.</p><p> Caracterizar, especificamente, poesia produzida noo período</p><p>entre 1950 a 1970</p><p>O Contexto Socio-cultural de Angola (A Revista Mensagem)</p><p>Podemos considerar que a história da poesia de Angola divide-se</p><p>em duas fases, sendo a primeira a da escrita colonial, e a Segunda a</p><p>da poesia moderna e nacional, que inicia com a publicação da</p><p>revista Mensagem , em 1951.</p><p>Mensagem marca, assim, o início da poesia moderna de Angola.</p><p>Nesta revista participa uma pleiade de escritores que serão os</p><p>responsáveis pela construção da literatura do novo país. No</p><p>primeiro número de Mensagem colaboram, entre outros, Mário</p><p>António, Agostinho Neto, Viriato da Cruz, Alda Lara, António</p><p>Jacinto e Mário Pinto de Andrade. A publicação da revista , no</p><p>dizer de Ana Mafalda Leite, "foi o resultado concreto da ambição</p><p>desta nova geração de intelectuais de Angola de amplificar o</p><p>movimento cultural iniciado nos anos 40 por Viriato da Cruz."</p><p>Centro de Ensino à Distância 71</p><p>A produção poética angolana abrange três grandes períodos: de</p><p>1950 a 1970; o período de inovações - a década de 70; e a geração</p><p>de 80.</p><p>As duas décadas de 1950 a 1970, marcam a fase da viragem para a</p><p>conciencialização da problemática angolana, sobretudo em três</p><p>grandes vertentes - a terra, a gente, e as suas origens. A temática</p><p>dos escriotres da Mensagem gira à volta de tópicos que vão</p><p>caracterizar a poética que existe até aos nossos dias: a valorização</p><p>do homem negro africano e da sua cultura a sua capacidade de</p><p>auto-determinação, a nação africana que se antevê como estado</p><p>com autoridade e existência próprias. Muita da poesia é uma</p><p>poesia de protesto anti-colonial, sem deixar de ser humanista e</p><p>social. Agostinho Neto, Viriato Cruz e Mário António concentram</p><p>muito da sua produção nesta temática.</p><p>Quase todos estes poetas tratam os temas da identidade , da</p><p>fraternidade, da terra de Angola pátria de todos, negros, brancos e</p><p>mestiços; de grande importância é também o tópico da alienação (</p><p>sobretudo a que respeita ao estado de espírito do branco nascido e</p><p>criado em Angola). Muita da poesia é também de carácter intimista,</p><p>como é o caso da de Mário António.</p><p>Toda esta geração, utilizando recursos líricos e dramáticos,</p><p>consegue criar uma poesia de fundo e cariz emocional. Através da</p><p>poesia, descobre-se Angola, as suas origens , as suas tradições e</p><p>mitos. A poesia adquire uma intencionalidade pedagógica e</p><p>didáctica: com ela tenta-se recriar África e Angola, os valores</p><p>ancestrais do homem africano e da sua terra, bem como ensinar</p><p>esse mesmo homem a descobrir-se como individualidade. Esta</p><p>poesia põe em prática a reposição da tradição oral, onde as próprias</p><p>línguas nacionais ocupam um espaço importante. É, numa palavra,</p><p>a poesia da "angolanidade".</p><p>O autor que representa melhor toda esta problemática é, sem</p><p>dúvida, Agostinho Neto. A sua obra principal, Sagrada Esperança,</p><p>é uma amostra valiosa não só da poesia de combate e contestação</p><p>(sem ser panfletária, no entanto) mas também da poesia lírica e</p><p>intimista, frequentemente modulada por uma religiosidade</p><p>profunda.</p><p>Agostinho Neto revela um grande humanismo, em que são</p><p>evidentes o amor profundo pela vida e o conhecimento do sofrer</p><p>humano, que amiúde obriga o poeta a utilização de um realismo</p><p>feroz nos seus versos.</p><p>Na década de 70 surgem três nomes que vão ser os principais</p><p>responsáveis por uma mudança profunda na estética e na temática:</p><p>David Mestre, Ruy Duarte de Carvalho e Arlindo Barbeitos. Por</p><p>um lado, procura-se maior rigor literário; por outro, e como</p><p>Centro de Ensino à Distância 72</p><p>consequência do anterior, evita-se propositadamente o</p><p>panfletarismo. Entra-se também numa fase de maior</p><p>experimentalismo . Estes autores tentam também reconciliar os</p><p>temas políticos do passado com a procura de uma linguagem</p><p>poética mais universal. Por exemplo, Ruy Duarte de Carvalho é</p><p>autor de uma poesia que, ao lado de uma grande ambiência de</p><p>oralidade e de um apontar para as consequências da guerra constitui</p><p>também uma reflexão sobre o próprio discurso poético. É, no</p><p>entanto, Arlindo Barbeitos a voz poética que melhor assume a</p><p>viragem e a ruptura com a tradição da Mensagem.</p><p>Arlindo Barbeitos tem ,até o momento, dois livros publicados:</p><p>Angola Angolê Angolema (1976) e Nzoji (1979). Numa nota de</p><p>introdução a Angola Angolê Angolema, Barbeitos traça as linhas</p><p>mestras de sua poética. Assim, a sua poesia tenta ser uma</p><p>reconciliação</p><p>do homem com a sua condição; é um testemunho e</p><p>um instrumento de libertação.</p><p>A poesia tem como função primordial sugerir; ela é um</p><p>compromisso entre a palavra e o silêncio. A outra função é a de</p><p>relatar as formas culturais africanas e a vivência do autor. Arlindo</p><p>Barbeitos afirma, a propósito, que "só é poesia se sugere, só tem</p><p>expressão, só tem força, só é arte em forma de palavra, se</p><p>simultaneamente retém e transcende a palavra". Sobre as</p><p>características da sua poesia, devemos dizer que ela é religiosa na</p><p>medida em que nela se relata a experiência do ser humano que</p><p>procura sempre a perfeição; por outro lado, há sempre o desejo de</p><p>retorno à imanência, e a vontade de construir a irmandade</p><p>universal. É, também, uma poesia que reflecte a dor, a guerra , a</p><p>situação colonial. Em relação à língua, Arlindo Barbeitos tenta, e</p><p>consegue, africanizar a língua colonial, numa tentativa continuada</p><p>de repossuir todos os valores e tradições culturais do país.</p><p>A partir dos anos 80, surge uma nova geração de escritores cujo</p><p>ecletismo é a característica mais marcante. Digna de nota é uma</p><p>pequena antologia publicada em 1988, e intitulada no Caminho</p><p>Doloroso das Coisas. Na introdução, o organizador da antologia</p><p>deixa perceber o rumo de uma certa descontinuidade que a nova</p><p>poesia angolana vai tomando: "São jovens, mas dentre eles há</p><p>poetas que são artistas nos seus versos como carpinteiros nas</p><p>tábuas.</p><p>Exercícios</p><p>1. Identifica a temática principal veiculda nos textos</p><p>produzidos entre os anos 50 a 70.</p><p>2. Diferencia a poesia dos anos 70 e 80.</p><p>Centro de Ensino à Distância 73</p><p>Unidade 19: Negritude, Compromisso E Revolução: Agostinho Neto (Sagrada</p><p>Esperança)</p><p>Introdução</p><p>Um nome que não se pode esquecer na literatura de Angola é o de</p><p>Agostinho. Homem que não se deixou ultrapassar pela história de</p><p>Angola. Aliás, para além do enovolvimento físico, mostra através</p><p>da sua obra o poder de representar uma realidade social e rácica de</p><p>Angola. Por esta razão, importa-te nesta unidade estudar com</p><p>profundidade a obra deste valioso homem para a literatura</p><p>angolana.</p><p>Ao completar esta unidade / lição, você será capaz de:</p><p>Objectivos</p><p> Adquirir um conhecimento profundo sobre o compromisso</p><p>assumido pela literatura no período que integra a obra de</p><p>Agostinho Neto;</p><p> Analisar marcas da negritude e do espírito revolucionário</p><p>presents na obra netiana.</p><p>Negritude, compromisso e revolução</p><p>António Agostinho Neto foi um médico angolano, formado na</p><p>Universidade de Coimbra, que em 1975 se tornou o primeiro</p><p>presidente de Angola até 1979. Em 1975-1976 foi-lhe atribuído o</p><p>"Prémio Lenine da Paz". Fez parte da geração de estudantes</p><p>africanos que viria a desempenhar um papel decisivo na</p><p>independência dos seus países naquela que ficou designada como a</p><p>Guerra Colonial Portuguesa ou Guerra do Ultramar como também</p><p>é conhecida. Foi preso pela PIDE e deportado para o Tarrafal,</p><p>sendo-lhe fixada residência em Portugal, de onde fugiu para o</p><p>exílio. Aí assumiu a direcção do Movimento Popular de Libertação</p><p>de Angola (MPLA), do qual já era presidente honorário desde</p><p>1962.</p><p>Agostinho Neto morreu num hospital em Moscovo no decorrer de</p><p>complicações durante uma operação a um cancro hepático de que</p><p>sofria, poucos dias antes de fazer 57 anos de idade. Foi substituído</p><p>na presidência de Angola por José Eduardo dos Santos.</p><p>Centro de Ensino à Distância 74</p><p>Poesia</p><p>Escreveu em:</p><p> 1957 Quatro Poemas de Agostinho Neto, Póvoa do</p><p>Varzim, e.a.</p><p> 1961 Poemas, Lisboa, Casa dos Estudantes do Império</p><p> 1974 Sagrada Esperança, Lisboa, Sá da Costa (inclui os</p><p>poemas dos dois primeiros livros)</p><p> 1982 A Renúncia Impossível, Luanda, INALD (edição</p><p>póstuma)</p><p>Obras principais:</p><p>Sagrada esperança, poemas escritos aproximadamente entre o ano</p><p>de 1945 e o de 1960. Texto épico da angolanidade. Comparado em</p><p>valor aos Lusíadas. É a fase exortativa do povo angolano à</p><p>conquista da sua identidade e independência.</p><p>Esta obra tem 3 fases: De 1945 a 48-50, fase neo-realista, com</p><p>textos curtos, (excepção para “Sábado nos messeques”). Nesta fase</p><p>agrupam-se 16 poemas do livro, de “Adeus à hora da largada” até</p><p>“contratados”, situando-se algumas numa fase de ambiguidade</p><p>entre o realismo social e a Negritude, como “Partida para o</p><p>contrato” ou “Caminho do mato”. De 1949 a 1955, a fase da</p><p>Negritude, do negro genérico de todo o mundo, mas também</p><p>africano e angolano, sem demasiados pormenores regionais em que</p><p>aparecem algumas excepções (“Não me peças sorriso”). De 1956 a</p><p>1960, a fase do combate, do apelo à libertação nacional.</p><p>A Negritude assenta sobre o fundo do neo-realismo. O neo-</p><p>realismo convém à descrição de ambientes opressivos miseráveis,</p><p>com figuras-personagens: prostituta, contratado, carregador,</p><p>vendedeira, aos temas universais como a denúncia (exploração,</p><p>alienação, dominação, revolta) numa linguagem expositiva,</p><p>realista.</p><p>A Negritude convém à exaltação da raça e da cor negra, à recusa</p><p>da civilização e da superioridade ocidental, à revalorização da</p><p>história e da cultura pré-colonial, etc.</p><p>Finalmente temos no livro A renúncia impossível – inéditos.</p><p>A renúncia impossível – inéditos (1982). O texto mais longo. Tem</p><p>3 partes: introdução: “Não sou Nunca fui/Renuncio-me/Atingi o</p><p>Zero”; filosofia de imagens e desejos; Desenvolvimento:</p><p>exemplifica a vida dos outros, do trabalho escravo, forçado e</p><p>assalariado. Peroração: a assunção do Nada, da Negação da</p><p>existência e do mundo. Negando o mundo do Outro, do Branco,</p><p>anula sua eficácia. O mundo, a vida e o comportamento do branco,</p><p>do europeu e do cristão estariam legitimados, absolvido de culpa,</p><p>crime e pecado, se o negro, o africano e o pagão não existissem.</p><p>Centro de Ensino à Distância 75</p><p>Mas é a sua existência que torna a existência dos outros</p><p>ignominiosa ou, pelo menos, culposa…</p><p>Vejamos a seguinte análise, por LARANJEIRA, A poesia de</p><p>AGOSTINHO NETO como documento histórico,</p><p>plaranj@fl.uc.pt.</p><p>O verso fulcral do poema que abre o livro Sagrada esperança –</p><p>"sou aquele por quem se espera" - foi escrito por Neto e é</p><p>premonitório. António Jacinto ou Viriato da Cruz não puderam</p><p>escrever tal verso, nem tinham condições para escrever poesia</p><p>como a de Neto, também por não serem negros. Não tinham</p><p>condições Vivenciais, ideológicas, doutrinárias e culturais. Não</p><p>podiam fazer essa poesia épica, que mostrasse as condições de</p><p>sofrimento, de ansiedade e de potencialidade revolucionária do</p><p>povo. Puderam escrever alguns poemas revolucionários, tanto</p><p>estética quanto ideologicamente, mas não um conjunto semelhante</p><p>ao de Neto. A história veio provar que aquele verso de Neto é não</p><p>só um dizer sobre todos "aqueles" que estavam prontos para servir</p><p>os outros num ideal para o colectivo - "sou aquele por quem se</p><p>espera" -, podendo "ser" qualquer popular empenhado na defesa de</p><p>uma nova pátria, a angolana, como também um dizer sobre ele</p><p>próprio – Neto – "aquele" por quem se podia esperar, por quem se</p><p>esperava, que podia esperar ser o móbil e o mobilizador, activador</p><p>das esperanças, já não "místicas", mas realistas e reais, o líder</p><p>político, o líder da liderança política. De facto, se compararmos as</p><p>histórias de vida, os percursos políticos e a obra cultural dos quatro</p><p>principais intelectuais-militantes angolanos da geração da</p><p>Mensagem, ou seja, Viriato da Cruz, António Jacinto, Mário Pinto</p><p>de Andrade e Agostinho Neto, verifica-se que este é a única figura</p><p>que apresenta uma substância literária predominantemente negro-</p><p>africana, uma potencialidade de representação social e rácica, uma</p><p>estratégia épica, colectiva, para o povo angolano e um sentido</p><p>pragmático da história, expresso</p><p>em discurso poético, sem</p><p>idealismos, sentimentalismos exacerbados ou vacilações finalísticas</p><p>de mestiçagem conjuntural, como ele próprio explicou no poema</p><p>"O verde das palmeiras da minha mocidade". Haverá, então, um</p><p>Agostinho Neto messiânico, prometeico, um Moisés angolano?</p><p>Nesse poema "Adeus à hora da largada" acha-se explícita a</p><p>formulação de que a mística esperança já não consola o colonizado,</p><p>necessitado de uma certeza. Logo, o verso "sou aquele por quem se</p><p>espera" pode assim ser lido como decorrente da convicção pessoal</p><p>do autor, por sua vez sustentada na análise concreta da sociedade</p><p>angolana, de que reunia condições para se tornar o líder da luta de</p><p>libertação. De qualquer modo, e, ao contrário do que a sua filha</p><p>Irene sugeriu, ele não se via como um Moisés angolano, investido</p><p>das tábuas de uma lei sacralizada.</p><p>Centro de Ensino à Distância 76</p><p>Tal verso (e poema), que apresenta potencialidades</p><p>historiográficas, não pode ser apreciado exclusivamente como</p><p>poético, ou seja, estético, como que podendo significar</p><p>exclusivamente algo assim como o poeta por quem se espera. A</p><p>interpretação sociológica também não satisfaz: sou aquele ser de</p><p>palavras por quem o leitor espera. Não se trata de um messianismo</p><p>ou prometeísmo literário, inserto num mecanismo de leitura,</p><p>porque a poética de Neto não permite a concepção de um discurso</p><p>pós-modernista de fingimento, de mascaramento ou de colagem. A</p><p>sua poética é constituída por uma estratégia afinada pela política, a</p><p>ideologia e a intervenção histórica, no sentido mesmo de contribuir</p><p>para mudar o rumo da história, marcada por signos esvaziados de</p><p>ambiguidade e, portanto, plenos de verosimilhança, veracidade e</p><p>verdade, estando o desfecho da sua aventura pessoal e social</p><p>inscrito nesse verso, estava escrito nesse documento. É por isso que</p><p>a poesia de Neto tem capacidade de documentarismo histórico. Por</p><p>um lado, capacidade de expressão psicológica, social e cultural e,</p><p>por outro, de intervenção histórica, dado também o carácter</p><p>icónico, simbólico, referencial e exemplar do seu autor. Além</p><p>disso, não havendo, na época da sua produção, um discurso</p><p>historiográfico profissional suficiente segundo a perspectiva do</p><p>colonizado, esse discurso poético podia funcionar como discurso</p><p>historiográfico de duplo grau, ou seja, como discurso documental</p><p>que, avaliando a conjuntura histórica face ao passado, mostra, em</p><p>simultâneo, a subjectividade do sujeito: discurso da história de</p><p>longa duração e filigrana da história cultural e sentimental.</p><p>Exercícios</p><p>1. Apresenta um pequeno resumo acerca da obra de Agostinho</p><p>Neto.</p><p>2. De acordo com a temática analisada nesta obra, Sagrada</p><p>Esperança, enquadra-a no período correspondente.</p><p>3. De uma sintética, apresenta a simbologia do título do poema</p><p>“Sagrada Esperança”.</p><p>Centro de Ensino à Distância 77</p><p>Unidade 20: angolanidade: Continuidade de Mensagem – A Revista Cultura(II)</p><p>Introdução</p><p>Desaparecida Mensagem, os escritores angolanos buscam outros</p><p>meios de divulgar suas produções e encontram na revista Cultura</p><p>II uma continuação do espírito desbravador de Mensagem. É à</p><p>volta deste assunto que na presente unidade pretendemos que</p><p>conheças as circuntâncias fizeram com que a Mensagem</p><p>desapareça.</p><p>Ao completar esta unidade / lição, você será capaz de:</p><p>Objectivos</p><p> Conhecer o perfil de uma literatura reivindicatória trazida</p><p>para Angola pelos poetas da revista cultura II;</p><p> Discutir no sentido macro a questão da angolanidade</p><p>A geração de 50 e a modernidade literária angolana</p><p>“Vamos descobrir Angola” são as palavras de ordem da geração de</p><p>50. De acordo com os historiadores da literatura angolana, o</p><p>primeiro a lançar esse grito foi o poeta Viriato da Cruz, que, em</p><p>1948, reunia-se com um grupo de escritores, discutindo a</p><p>necessidade de se criar uma poesia nova voltada para a cultura</p><p>angolana. Retomava-se, assim, o espírito destemido e questionador</p><p>dos escritores e jornalistas angolanos do final do século XIX e</p><p>início do século XX, como Cordeiro da Matta, que haviam</p><p>trabalhado em favor do resgate e da cultura dos valores nativos.</p><p>Desaparecida Mensagem, os escritores angolanos buscam outros</p><p>meios de divulgar suas produções e encontram na revista Cultura</p><p>II uma continuação do espírito desbravador de Mensagem. Tendo</p><p>desempenhado, entre 1945 e 1954, um papel cultural apenas</p><p>superficial, Cultura recomeçou a ser publicada em 1957, como</p><p>Cultura II, adotando um novo perfil: divulga poemas, textos e</p><p>ensaios protestatários e conscientizadores da situação sócio</p><p>política. Ao mesmo tempo em que se abre mais ao que está</p><p>acontecendo no mundo, a revista discute, cada vez mais</p><p>intensamente, temas voltados para as línguas e as culturas locais.</p><p>Centro de Ensino à Distância 78</p><p>Russell Hamilton não nos deixa esquecer que Cultura II marca o</p><p>início de uma crítica literária já com inclinação para a polémica. O</p><p>debate “Poesia em Angolana ou poesia de Angola” suscitará várias</p><p>questões que envolvem desde a origem geográfica e cultural do</p><p>escritor, até a cor da sua pele, a sua fixação no solo africano e o seu</p><p>compromisso social. Antonio Cardoso, Mário Pinto de Andrade,</p><p>Mário Antonio e Agostinho Neto são nomes que se envolvem nesse</p><p>debate. Como aponta ainda Hamilton (1981, p. 87), a autenticidade</p><p>cultural será medida, sobretudo, pelo grau de consciencialização</p><p>sócio política. Por outro lado, as reivindicações da cultura angolana</p><p>e da cor da pele não deixam de ser expressões importantes,</p><p>havendo, diversas vezes, confusão entre a reivindicação racial e a</p><p>cultural.</p><p>Poderíamos resumir as posições críticas do momento (Hamilton,</p><p>1981, p. 88 e 89), citando, brevemente, alguns pontos de vista.</p><p>Enquanto para António Cardoso era preciso dar ênfase ao</p><p>comprometimento político se social, Mário Antonio parecia frisar</p><p>as ambivalências e impedimentos de uma literatura aculturada; já</p><p>Agostinho Neto salientava a responsabilidade social do escritor de</p><p>restaurar a tradição oral africana, buscando incorporá-la à poesia</p><p>em língua portuguesa.</p><p>Como já se pode notar, são inúmeras e em diversos níveis as</p><p>tensões que acompanharam essa literatura, naquele período,</p><p>aflorando nas antologias e publicações da Casa dos Estudantes do</p><p>Império (CEI). Através dessas publicações, assistiremos ao</p><p>desenvolvimento e à afirmação de uma literatura reivindicatória</p><p>angolana, que, pouco a pouco destruirá os mitos que haviam sido</p><p>construídos em torno das culturas tradicionais de origem banta. Um</p><p>deles, o de que as línguas africanas não se prestavam à produção</p><p>poética escrita, vem por terra, com a publicação pela CEI de</p><p>poemas angolanos de expressão banta e com as pesquisas em torno</p><p>da literatura tradicional, como a de C. Easterman (2), o qual tentou</p><p>entender e analisar a natureza dos poemas colhidos nas tradições</p><p>banto.</p><p>O papel da tradição oral e o trabalho de linguagem, envolvendo as</p><p>línguas de origem banta e o idioma português, passam a fazer parte</p><p>da consciência crítica da época e afloram em publicações e</p><p>palestras de críticos e escritores como Agostinho Neto, que</p><p>demonstrou uma profunda consciência em relação a essa questão</p><p>para a afirmação da moderna literatura angolana.</p><p>As mudanças e renovações serão percebidas, em primeiro lugar, no</p><p>campo da temática. A urgência da mensagem fará com que o tema</p><p>prevaleça sobre a inovação estilística. Por outro lado, de acordo</p><p>com Margarido (1975, p. 362), essa literatura não pode ser lida</p><p>apenas como inventário de novos valores estéticos, pois um de seus</p><p>maiores objetivos será o inventário de valores da cultura angolana.</p><p>Daí a organização de uma antologia temática como a</p><p>de Mário</p><p>Centro de Ensino à Distância 79</p><p>Pinto de Andrade (3), levantando os temas mais freqüentes da</p><p>poesia angolana de língua portuguesa.</p><p>A terra é o tema por excelência da poesia africana, podendo ligar-se</p><p>tanto ao desejo de retorno às origens, como na poesia de Alda Lara,</p><p>quanto à imagem perturbadora do trem, do comboio que leva os</p><p>contratados para longe de suas casa, como nota Russel Hamilton</p><p>(1981, p. 96), contribuindo para a desordem que se instaura no</p><p>espaço violentado da colonização. O retorno às origens, por sua</p><p>vez, evocará outro grande tema comum às demais literaturas</p><p>africanas: a homenagem à mãe negra, a mãe universal, sempre</p><p>telúrica, conforme Margarido (1975, p. 361), apontando, outras</p><p>vezes, para o desamparo e a exploração que separa precocemente a</p><p>criança do colo materno. A infância será também um tema bastante</p><p>recorrente, indicando um período preservado, em que as diferenças</p><p>sociais ainda não são tão acentuadas e apontando também para a</p><p>fase crioula de Luanda. Outro tema freqüente, segundo Hamilton,</p><p>se desenvolverá em torno da identidade cultural e da alienação. As</p><p>ambivalências do branco e do mestiço, que procuram identificar-se</p><p>com as aspirações populares, evidenciam-se, de forma criativa, em</p><p>poesias altamente reflexivas de Antonio Jacinto, Alda Lara, Ernesto</p><p>Lara ou Agostinho Neto.</p><p>Como podemos notar, muitos desses temas estão também bastante</p><p>ligados entre si e se estendem aos demais sistemas literários</p><p>africanos. Eles apontam não só para um conjunto de idéias e</p><p>valores africanos, mas também para uma linguagem africanizante</p><p>muitas vezes influenciada por correntes estético-ideológicas como</p><p>a Negritude, o Pan-africanismo e o Renascimento Negro.</p><p>Para Hamilton (1981, p. 103), na literatura angolana, esse processo</p><p>de reafricanização na linguagem se evidencia em diversos</p><p>momentos e pode ser facilmente exemplificado na produção</p><p>poética da Geração de 50: no esforço em combinar poesia narrativa</p><p>e ritmo sincopado, trazendo a estrutura musical da rebita – uma</p><p>dança popular de Luanda – para dentro da composição, como</p><p>vemos no Poema “Sô Santo”, de Viriato da Cruz; na inserção da</p><p>musicalidade da linguagem dos pregões dos bairros populares no</p><p>“Poema da alienação”, de Antonio Jacinto; e, principalmente, na</p><p>tentativa de Agostinho Neto de transmitir o ritmo acelerado da</p><p>música africana aos seus versos, seja pela abolição das pausas</p><p>marcadas, seja pela repetição de palavras, seja pela própria</p><p>acentuação das contradições lingüísticas e ideológicas.</p><p>Como vemos, o compromisso da Geração de 50 de “angolanizar” a</p><p>literatura levou os escritores a resgatar formas e valores da</p><p>oralidade, nos quais descobrem um modo de lutar contra o discurso</p><p>do opressor, afirmando a descolonização literária. As fontes da</p><p>cultura oral tornam-se, assim, um novo começo; o antiqüíssimo</p><p>passa a ser uma renovação. É o que mostra Laura Padilha,</p><p>pensando com Os filhos do barro de Otávio Paz: “o traço da</p><p>modernidade se pode encontrar no velho de milênios, se este rompe</p><p>Centro de Ensino à Distância 80</p><p>uma tradição, instaurando outra” (PADILHA, 2002, p. 49). Assim,</p><p>recuperar a tradição, segundo Padilha, significa trazer para o texto a</p><p>marca da alteridade, atingindo-se, a um só tempo, a afirmação</p><p>identitária e a modernidade.</p><p>O grito de “Vamos descobrir Angola” se fez ouvir, atualizando o</p><p>processo de desterritorialização de que fala Padilha (2002, p. 49),</p><p>procurando inverter os sinais de menos impostos às formas</p><p>culturais angolanas, abrindo um espaço para que elas pudessem se</p><p>expressar.</p><p>Nesse sentido, que, por sinal, não é exclusivo da literatura</p><p>angolana, podemos pensar que a produção literária da geração de</p><p>50, já nesse momento, acena para o desejo de intervenção no</p><p>próprio cânone ocidental. Ao radicalizar o comprometimento ético-</p><p>social e resgatar as fontes tradicionais da oralidade, a literatura</p><p>angolana contrapõe-se ao discurso hegemônico cristalizado. Traz</p><p>para a cena literária uma discussão em que valores como justiça</p><p>social e solidariedade não podem ser considerados secundários</p><p>frente aos padrões estéticos, incomodando uma boa parte da crítica</p><p>.O grito desses escritores é, portanto, um grito que termina por criar</p><p>novos caminhos para a discussão do próprio conceito de</p><p>modernidade literária.</p><p>Exercícios</p><p>1. De uma forma breve, apresenta a crítica que se faz aos</p><p>mensageiros e, ao mesmo tempo, os pontos fortes que</p><p>concorreram para a afirmação da angolanidade.</p><p>2. Discute o lema “ Vamos descobrir Angola” apresentado</p><p>pelos defensores da revista cultura II.</p><p>Centro de Ensino à Distância 81</p><p>Unidade 21: A Renovação Literária: Luandino Vieira (Luuanda)</p><p>Introdução</p><p>Luandino Vieira é profundo conhecedor da língua portuguesa dita</p><p>formal (e literária) e, por isso, conhecendo também a oratura</p><p>angolana, com suas tradições e maneira de falar do povo, foi capaz</p><p>de unir brilhantemente a concepção europeia de literatura à tradição</p><p>dos contos orais africanos. Também soube transformar em arte a</p><p>linguagem falada pelos luandinos, consequência do encontro de</p><p>culturas de colonizadores e colonizados. É este o motivo que nos</p><p>faz pensar em ti, estudante da Língua Portuguesa, e, ao mesmo</p><p>convidar-te para adquires um conhecimento sobre a re/criação que</p><p>Luandino, a estilo de Mia Couto, faz da língua.</p><p>Ao completar esta unidade / lição, você será capaz de:</p><p>Objectivos</p><p> Analisar o transcuro literário de Luandino Vieira e a renovação</p><p>que este faz da literatura;</p><p>Renovação Literária: José Luandino Vieira</p><p>José Luandino Vieira, Nasceu en Angola, em 1935, filho de</p><p>portugueses muito pobres. Anti-colonialista, foi preso em 1961 até</p><p>1972, no campo de concentração de Tarrafal (Cabo Verde), junto</p><p>com outros escritores. Hoje dirige sua editora em Luanda, participa</p><p>das Edições 70 (Lisboa) e Edições ASA (Porto). Em 1964 ganha o</p><p>Premio Motta Veiga em Luanda e no ano seguinte o Grande</p><p>Premio da Novelística da Sociedade Portuguesa de Escritores.</p><p>Livros:</p><p>A cidade e a infância (1960)</p><p>Duas histórias de pequenos burgueses (1961)</p><p>A vida verdadeira de Domingos Xavier (1974)</p><p>Vidas novas (1975)</p><p>Velhas estórias (1974)</p><p>No antigamente, na vida (1974)</p><p>Nós, os do Makulusu (1975)</p><p>Centro de Ensino à Distância 82</p><p>Macandumba (1978)</p><p>João Vêncio: os seus amores (1979)</p><p>Lourentinho, Dona Antonia de Sousa Neto & eu (1981).</p><p>Enquadra-e na geração da Cultura (anos 50), e da Mensagem</p><p>(1951-52).</p><p>Os livros mais importantes são Luuanda e Nós, os do Makulusu,</p><p>este autobiográfico.</p><p>A sua obra se divide em 2 fases: estórias escritas até 1962, mantém</p><p>o discurso clássico, perto da norma do português europeu e</p><p>narrativas curtas como Maupassant.</p><p>Começa com Luuanda, a angolinização da língua portuguesa, usa</p><p>gírias, neologismos, e outros recursos orais e tradicionais africanos;</p><p>A linguagem tem influência das línguas bantas, do quimbundo, que</p><p>são línguas prefixais, aglutinantes e tonais. Luuanda, 3 estórias com</p><p>os temas principais: fome e escassez de meios. Topografia é de</p><p>Luanda nas primeiras 2 estórias “Vavó Xixi e seu neto Zeca</p><p>Santos”e “Estória da galinha e do ovo”.</p><p>Luuanda foi escrita também logo após Luandino ler Sagarana, de</p><p>João Guimarães Rosa. Segundo ele, Guimarães Rosa o ensinou que</p><p>“era necessário aproveitar literariamente o instrumento falado dos</p><p>personagens”, e que “um escritor tem a liberdade de criar uma</p><p>linguagem que não seja a que os seus personagens utilizam.” Isso</p><p>quer dizer que as personagens, para serem vistas como seres reais,</p><p>precisam falar como os</p><p>seres reais falam; e o escritor, para utilizar</p><p>a linguagem informal, precisa conhecer a formal. Como se diz no</p><p>meio linguístico, o autor deve ser poliglota em sua própria língua.</p><p>A oralidade em Luuanda pode ser percebida especialmente em dois</p><p>aspectos: o da contação de histórias, decorrente da tradição oral, e o</p><p>linguístico, que tem a ver com o léxico, a sintaxe, a “mistura” do</p><p>quimbundo com o português etc.</p><p>O narrador surge nos três contos como contador de histórias.</p><p>Mesmo no primeiro conto, em que os traços da história contada de</p><p>acordo com a tradição oral estão menos visíveis (há quebras de</p><p>sequências temporais, há menos marcas de oralidade no narrador</p><p>etc.), é possível perceber algumas características de um contador de</p><p>histórias, como o uso do discurso indireto livre:</p><p>“Junto com os estalos da lenha a arder e o cantar da água</p><p>na lata, os soluços de Zeca Santos enchiam a cubata (…)</p><p>Mas também, Zeca não ganhava mais juízo, quando estava</p><p>ganhar o vencimento no emprego, que lhe correram, só</p><p>queria camisa, só queria calça de quinze embaixo, só</p><p>queria peúga vermelha, mesmo que lhe avisava para</p><p>guardar ainda um dinheiro, qual?!” (p.12)</p><p>Centro de Ensino à Distância 83</p><p>Nos outros contos, a ideia de contador aparece mais clara.</p><p>Começando pelas personagens, o fato de elas serem planas</p><p>demonstra, não uma incapacidade do autor em criar personagens</p><p>complexas, mas sim de uma intenção de Luandino em apresentar o</p><p>colectivo, e não o indivíduo. Além disso, nas narrativas orais não</p><p>aparece a complexidade dos seres sobre quem se conta a história, o</p><p>que interessa são os casos e as situações ocorridas com eles.</p><p>Outro discurso do qual Luandino se vale para mostrar que a história</p><p>escrita pode bem ser contada oralmente está na forma como o</p><p>narrador a inicia, isto é, ao estilo do “era uma vez…”: “A estória da</p><p>galinha e do ovo. Estes casos passaram no musseque Sambizanga,</p><p>nesta nossa terra de Luanda (EGO, p. 99). “Um tal Lomelino dos</p><p>Reis, Dosreis para os amigos e ex-Loló para as pequenas vivia com</p><p>a mulher dele e dois filhos no musseque Sambizanga.” (ELP, p.</p><p>39).</p><p>A palavra estória foi criada por Guimarães Rosa, numa tentativa de</p><p>diferenciar os casos que não ocorreram daqueles que ocorreram de</p><p>facto (história). Assim, o autor procura deixar claro que aqueles</p><p>factos não ocorreram, enquanto o narrador tenta convencer o leitor</p><p>de que tudo aquilo é verdade: “Minha estória. Se é bonita, se é feia,</p><p>vocês é que sabem. Eu só juro não falei mentira e estes casos</p><p>passaram nesta nossa terra de Luanda.”</p><p>Pode-se também notar a influência da tradição oral na obra a partir</p><p>da aproximação dos contos com histórias fantásticas, apesar de eles</p><p>narrarem situações verossímeis, passíveis de acontecer. Nesse caso,</p><p>vê-se uma certa mistura do género literário preocupado em relatar a</p><p>realidade e o gênero das histórias contadas, que necessitam de um</p><p>toque fantástico.</p><p>Em Angola, essas histórias sobrenaturais são chamadas de mi-</p><p>sosso. O mi-sosso é parecido com a fábula: há animais falantes e</p><p>pensantes, e uma “moral da história”, constituída geralmente da</p><p>vitória do mais fraco sobre o mais forte. Os contos de Luuanda não</p><p>são propriamente mi-sossos, mas possuem algumas características</p><p>comuns a esse gênero.</p><p>O primeiro conto é mais literário, está relatando mais a realidade,</p><p>isto é, o que realmente e literalmente (entenda-se que não se trata</p><p>de uma história metafórica) está acontecendo com o povo de</p><p>Luanda diante da colonização, e o colonizador (considerado mais</p><p>forte) é quem sai vencedor. O segundo conto já possui alguns</p><p>elementos mais difíceis de aceitar como fatos realmente ocorridos,</p><p>como é o caso da relação do papagaio e Inácia. Se na fábula</p><p>aparece um animal falante, o conto de Luandino apresenta um</p><p>papagaio que, apesar de não falar racionalmente, e sim apenas</p><p>repetindo os sons emitidos por sua dona, chega-se a desconfiar por</p><p>alguns momentos se esse animal não tem consciência do que fala e</p><p>Centro de Ensino à Distância 84</p><p>faz: “Logo Jacó abriu a asa e pôs um barulho que parecia riso de</p><p>pessoa, antes de falar.”</p><p>Porém, as próprias personagens do conto, mesmo que às vezes por</p><p>alguns motivos pensem na humanidade do papagaio, não aceitam o</p><p>bicho como ser pensante: “Verdade é que os monas lhe xingavam</p><p>de ouvir o papagaio, mas quem ensinou foi a Inácia, ela é quem</p><p>inventou. Papagaio não pensa, só fala o que ouve, o que estão lhe</p><p>dizer.”</p><p>O terceiro conto também possui um animal como elemento</p><p>importante na história. Há um final feliz, como nos contos de fadas,</p><p>e o problema é resolvido entre as partes envolvidas, porém apenas</p><p>depois de uma tentativa inútil de se buscar a solução do lado</p><p>externo ao problema: na luta entre nga Zefa e Bina pela posse do</p><p>ovo botado pela galinha (propriedade de Zefa) no quintal de Bina,</p><p>buscou-se ajuda de vavó Bebeca que, por sua vez, pediu ajuda de</p><p>várias pessoas da cidade, que tentaram solucionar o problema de</p><p>forma a se beneficiarem de alguma forma com a situação.</p><p>Por fim, numa ameaça de perderem a galinha e o ovo, Zefa, Bina e</p><p>os moradores do musseque uniram suas forças contra aqueles que</p><p>queriam tomar o que lhes pertenciam. Mesmo aparentemente mais</p><p>fraco, foi o povo quem saiu vencedor. Uma maneira de se</p><p>interpretar esse conto é pensar nesse povo do musseque como</p><p>representante do povo angolano, e os interessados em se</p><p>beneficiarem da galinha e do ovo como os “invasores”. Pensando</p><p>dessa forma, o conto seria uma grande metáfora e se aproximaria</p><p>do mi-sosso neste sentido. Não há animais se comportando como</p><p>humanos, e sim o contrário. A grande salvação da galinha e a</p><p>vitória do povo do musseque só ocorrem quando os dois filhos de</p><p>Bina imitam a “fala”, isto é, o som da galinha, e esta foge das mãos</p><p>dos que a tomavam, indo até onde o barulho que ouve está sendo</p><p>emitido. Assim, vê-se o contrário do que ocorre na fábula, mas isso</p><p>não significa que o conto seja o contrário do gênero, mas ele em</p><p>seu inverso, ou seja, é uma fábula contada sob o ponto de vista dos</p><p>animais. Entenda-se: se para os humanos é sobrenatural um animal</p><p>reproduzir a fala humana (o que ocorre na fábula), para os animais,</p><p>seria sobrenatural um humano imitar sua linguagem e se fazer</p><p>compreender pelo animal, como ocorreu no conto em questão. Do</p><p>ponto de vista dos animais, portanto, o conto seria uma fábula</p><p>porque há o fantástico, que é o fato de os meninos conseguirem se</p><p>comunicar com a galinha, na linguagem dela. Os meninos</p><p>entendiam o que a galinha falava:</p><p>- Sente, Beto! – sussurrou-se Xico. – Sente só a cantiga dela!</p><p>E desataram a rir, ouvindo o canto da galinha, eles sabiam bem as</p><p>palavras, velho Petelu tinha-lhes ensinado.</p><p>(…)</p><p>Centro de Ensino à Distância 85</p><p>O miúdo esquivou para não lhe puxarem as orelhas ou porem</p><p>chapada, mas Xico defendeu-lhe:</p><p>- Não é, vavó! É a galinha, está falar conversa dela!</p><p>Este exemplo prova também certa humanidade da galinha, pois ela</p><p>diz em sua língua, ideias racionais, próprias de seres humanos.</p><p>Quando os meninos traduzem a linguagem da galinha à vavó, eles o</p><p>azem em quimbundo, e não em português:</p><p>- A galinha fala assim, vavó:</p><p>Ngêxile kua ngana Zefa</p><p>Ngala ngó ku kakela</p><p>Ka… ka… ka… kakela, kakela…</p><p>Nas fábulas, são os seres inferiores (animais) que precisam se</p><p>adaptar ao sistema linguístico e intelectual dos superiores</p><p>(humanos). Na EGO, a vitória do povo vem justamente na</p><p>adaptação dos superiores ao sistema linguístico dos inferiores.</p><p>Assim, pode-se pensar que uma possível vitória dos colonizados</p><p>sobre os colonizadores seria a adaptação do português ao</p><p>quimbundo e não o contrário, como ocorre na realidade. É por isso</p><p>que se diz que</p><p>na Angola, a história remete àquilo que poderia ter</p><p>sido a História e não àquilo que ela realmente é.</p><p>Pensando nesse desejo do autor em que a cultura colonizadora se</p><p>adaptasse à colonizada, e sabendo que ocorre o contrário, é possível</p><p>perceber uma ironia nos contos, já que o texto é escrito em</p><p>português, mas incorpora algumas construções quimbundas e</p><p>léxicas dessa língua. Esse é um dos traços encontrados em outra</p><p>maneira de se perceber a oralidade na obra: a análise da estrutura</p><p>linguística decorrente do discurso informal.</p><p>No que diz respeito às construções sintáticas do quimbundo no</p><p>discurso em português, é possível encontrar vários exemplos nos</p><p>contos:</p><p>(1) “licença já não pede” p.7</p><p>(2) “Fome é muita, vavó!” p.8</p><p>(3) “Você lembra esse gajo, não é?” p. 46</p><p>(4) “você queria mesmo a galinha ia te pôr um ovo?” p. 104</p><p>(5) “Juro não fiz de propósito” p. 106</p><p>Essas expressões não são ouvidas no português falado, em sua</p><p>estrutura normal. Provavelmente o que ocorre é o uso da língua</p><p>portuguesa dentro de uma estrutura sintática quimbunda. Em (1)</p><p>vê-se a troca de posição da palavra licença. A expressão</p><p>equivalente em português seria: “já não pede licença.” Em (2), (3),</p><p>(4) e (5) vemos a omissão de artigos, preposições e conjunções,</p><p>respectivamente. Em português diria-se: “a fome é muita”, “você</p><p>só lembra desse gajo”, “juro que não fiz de propósito.”</p><p>Centro de Ensino à Distância 86</p><p>O quimbundo também é usado com o português no discurso no que</p><p>diz respeito ao léxico. Vemos frequentemente palavras como:</p><p>musseque, cubata, nga, sukuama, cap’verde, makutu, muximar, etc.</p><p>Isso sem dizer de ocasiões em que a personagem fala português e</p><p>quimbundo no mesmo instante de fala:</p><p>“- Sente, menina! Mu muhatu mu! Mbia! mu tunda uazele, mu</p><p>tunda uaxikelela, mu tunda uakusuka…” p. 19</p><p>(A mulher é como a panela: dela sai o que é branco, o que é preto,</p><p>o que é vermelho…)”</p><p>Além da presença do quimbundo dentro do português, é posível</p><p>também observar outras estruturas características da língua falada.</p><p>Abaixo segue um quadro com as ocorrências mais fortes do</p><p>discurso informal em Luuanda:</p><p>Caso Exemplo</p><p>Variação pronominal tu/você na mesma oração “Então, você,</p><p>menino, não tens mas é vergonha?” p.8“Você és bandido, não é?”</p><p>p. 40“Você pensa que eu não te conheço, Bina? Oensas?” p. 102.</p><p>Repetição de palavras numa mesma oração ou período (também</p><p>pode ser um recurso literário) “As pessoas que estão a morar</p><p>lá dizem é o Sambizanga, a polícia que anda patrulhar lá, quer já é</p><p>lixeira mesmo.” P. 39</p><p>Omissão da preposição a entre verbos de ligação e de ação (no</p><p>Brasil, o fenômeno não ocorre, já que a forma verbal utilizada é o</p><p>gerúndio) “É a galinha, está falar conversa dela” (está a falar =</p><p>está falando). P. 107“Se eu fico dormir…” (se eu fico a dormir =</p><p>fico dormindo). P. 40</p><p>Objetos antepostos ao sujeito (trata-se de um fenômeno muito</p><p>comum no discurso oral, inclusive no português brasileiro)</p><p>“O ovo foi meu milho que lhe fez, pápulas!” p. 103 (Em</p><p>lugar de “foi meu milho que lhe fez o ovo”.)</p><p>Luuanda é riquíssima em presença de discurso oral (o próprio título</p><p>tem Luanda escrito com dois UU, procurando reproduzir a maneira</p><p>de o povo pronunciar o nome da cidade). Não é possível neste</p><p>trabalho enumerar todas as ocorrências dessa oralidade na literatura</p><p>e na obra analisada.</p><p>Exercícios</p><p>1. Faça um comentário sobre alguns aspectos linguísticos</p><p>apresentados por Luandino Vieira.</p><p>2. A obra de Luandino é veículo de valores sociais e</p><p>expressões próprias de uma sociedade que pouco domina</p><p>Centro de Ensino à Distância 87</p><p>regras da língua portuguesa ou marcas do discurso</p><p>coloquial. Defenda a tese.</p><p>Centro de Ensino à Distância 88</p><p>Unidade 22: A Nova poesia anagolana: Os Poetas da Geração de 70 na situação de</p><p>Ghetto</p><p>Introdução</p><p>Em geral, os poetas da "Geração de 70" escrevem textos que</p><p>reflectem uma situação de intensificação da repressão e da censura</p><p>colonial, assistidas no "ghetto", que dificultava a circulação dos</p><p>mesmos. Através de um discurso caracterizado pelo rigor e pela</p><p>concisão das palavras, discurso mais implícito do que explícito, por</p><p>força da censura, esses textos, com tiragens muito reduzidas,</p><p>reflectiam, então, a esperança de uma vitória certa, capaz de</p><p>conduzir Angola à liberdade.</p><p>Ao completar esta unidade / lição, você será capaz de:</p><p>Objectivos</p><p> Compreender que o rigor e o discurso mais implícito presentes</p><p>nas obras reflectem a situação vivida na época.</p><p> Comparar a temática dos textos de Angola, desta época, com os</p><p>de Moçambique.</p><p>Os Poetas da Geração de 70 na Situação do Ghetto</p><p>Poeta e advogado angolano, João Maria Vilanova é, de acordo com</p><p>a convicção de alguns ensaístas e críticos de literatura, o</p><p>pseudónimo literário de João Guilherme Fernandes de Freitas,</p><p>nascido em 1933. Contudo, mantêm-se ainda algumas reservas</p><p>quanto à sua verdadeira identidade civil, na medida em que sempre</p><p>a manteve com algum "segredo". A aceitar esta correspondência</p><p>entre o poeta Vilanova e o cidadão João Guilherme, podemos</p><p>afirmar que feitos os primeiros estudos na missão católica de São</p><p>Paulo, em Luanda, onde frequentou também o ensino liceal, se</p><p>licenciou em Direito e exerceu a magistratura. Depois da</p><p>proclamação da independência de Angola, em 1975, veio para</p><p>Portugal, onde continua a viver sem franquear a sua identidade. Foi</p><p>funcionário público na região leste angolana e, em 1974, exerceu o</p><p>cargo de director da revista Ngoma. Intelectual empenhado e</p><p>preocupado com o seu país, colaborou em vários suplementos</p><p>literários e revistas, nomeadamente na revista Cultura, no</p><p>Centro de Ensino à Distância 89</p><p>suplemento "Artes e Letras" do jornal A Província de Angola assim</p><p>como noutros órgãos moçambicanos e latino-americanos. Em 1971,</p><p>foi contemplado com o prémio "Mota Veiga" pelo seu livro de</p><p>poesia Vinte Canções para Ximinha, não tendo comparecido para o</p><p>receber.</p><p>Como poeta da "Geração de 70", os seus textos germinam numa</p><p>situação de intensificação da repressão e da censura colonial, numa</p><p>situação de "ghetto", que dificultava a circulação dos mesmos.</p><p>Através de um discurso caracterizado pelo rigor e pela concisão das</p><p>palavras, discurso mais implícito do que explícito, por força da</p><p>censura, esses textos, com tiragens muito reduzidas, reflectiam,</p><p>então, a esperança de uma vitória certa, capaz de conduzir Angola à</p><p>liberdade. Poesia com uma forte componente ideológica, enquanto</p><p>espelho do empenhamento do povo, ela exalta a euforia</p><p>revolucionária e a reconstrução da Pátria totalmente dilacerada.</p><p>Ao lado de David Mestre, João Maria Vilanova, que</p><p>obstinadamente se mantém no anonimato silencioso, é considerado</p><p>um dos poetas que permite definir em toda a plenitude o chamado</p><p>"espírito de ghetto", enquanto espírito caracterizador de uma</p><p>vivência escondida, marginal, irreverente e inventiva que se</p><p>projecta para além do período colonial. A sua obra figura em</p><p>diversas antologias conceituadas, tais como:</p><p>Angola Poesia 71; Cancioneiro Angolano (1972); Presença de</p><p>Ideialeda. Poetas Angolanos (1973); Kuzuela II (1974);</p><p>Monangola.A Jovem Poesia Angolana (1976); Antologia da Poesia</p><p>Pré-Angolana (1976); Literatura Africana de Expressão Portuguesa</p><p>(1976); Poesia de Angola (1976); No Reino de Caliban.Antologia</p><p>Panorâmica da Poesia Africana de Expressão Portuguesa,II (1976);</p><p>Textos Africanos de Expressão Portuguesa (1977); e Antologia do</p><p>Mar na Poesia Africana de Língua Portuguesa do Século XX</p><p>(2000). São suas as seguintes</p><p>obras: Vinte Canções para Ximinha</p><p>(1971) - Poesia; Caderno de um Guerrilheiro (1974) - Poesia.</p><p>eles te levavam</p><p>eles te levaram</p><p>na noite encoberta eles te levaram</p><p>irmãos te chorarm</p><p>irmãos te choraram</p><p>no lodo do rio irmãos te choraram</p><p>armas te velaram</p><p>armas te velaram</p><p>na manhã nascida armas te velaram</p><p>Poema da pági. nº 2, in «Caderno de um guerrilheiro», 1974</p><p>João Maria Vilanova, poeta da geração de 70, é um nome que</p><p>esconde o maior enigma da literatura angolana, um heterónimo que</p><p>Centro de Ensino à Distância 90</p><p>encobre muito bem o seu autor biológico-histórico, continua</p><p>fictício até hoje.</p><p>Na linha do pensamento teórico que vai de Stephane Mallarmé a</p><p>Jonathan Culler “interessa reflectir sobre a teoria da textualidade: a</p><p>noção de que é a palavra que constrói a realidade, e, portanto, é</p><p>responsável pela criação daquele espaço criador que é o autor.</p><p>Nesta linha de pensamento, o autor desaparece para dar lugar a</p><p>palavras, cuja acção não só cria a obra, mas também o próprio</p><p>autor. Roland Barthes identifica esse fenómeno como o “espaço</p><p>discursivo de individuação” o qual estabelece certa unidade textual</p><p>que nos permite ultrapassar as contradições, nas quais se</p><p>neutralizam os dados biográficos (Barthes, Roland, «Roland</p><p>Barthes par lui-même», Paris: Seuil (1975)”, teorização</p><p>desenvolvida pela ensíata Joanna Courteau (Ames), ler o texto</p><p>intitulado «D´A varanda do frangipani à morte dos heterónimos»,</p><p>in Lusorama, nr. 50 (Juni 2002).</p><p>Jorge Macedo garante que conheceu o poeta quando esteve a</p><p>trabalhar no Kuanza Norte, ou seja, suspeita que tenha sido “um</p><p>juiz branco que gostava da poesia angolana, que conhecia as</p><p>diversas propostas poéticas”. Muitos são os escritores dessa</p><p>geração que lançam suspeitas para todas as direcções.</p><p>Galadoardo em 1971 com o Prémio Mota Veiga, atribuído a «Vinte</p><p>canções para Ximinha», nunca apareceu para receber o merecido</p><p>prémio. Mas não deixou de aparecer, em 1974, através da revista</p><p>Ngoma, mantendo-se na mesma no meio de uma «grande nuvem».</p><p>Em 1974, edita «Cadernos de um guerrilheiro».</p><p>João - Maria Vilanova é um poeta que usa o bilinguismo como seu</p><p>recurso de escrita e por ser assim “marcadamente bilinguista,</p><p>regionalista, vanguardista, intraduzível, e, portanto,</p><p>inequivocamente pré-angolana, a poesia de João Vilanova paga o</p><p>preço do desconhecimento mundial, enquanto a poesia de</p><p>Agostinho Neto, retórica, grandiloquente, alegórica, aristotélica,</p><p>aspirante ao universalismo, aufere fama de múltiplas traduções.</p><p>Vilanova realiza na poesia algo como José Luandino Vieira na</p><p>prosa: retira à História da Literatura Portuguesa poder de</p><p>anexação”, são palavras do crítico Pires Laranjeira.</p><p>O ensaísta vai mais longe na sua análise estrutural quando afirma</p><p>que “Não há recorrência ao empolamento do metaforismo e da</p><p>ruptura abrupta da ritmia do discurso, como seria usual nas</p><p>concepções poéticas latino-europeias. As rupturas e empolamentos</p><p>situam-se em níveis do discurso diferentes da literatura portuguesa.</p><p>A inovação é, por isso, de sinal radicalmente anticolonialista. O</p><p>discurso não pode ser apropriado pelas instâncias colonialistas por</p><p>se inscrever nos antípodas da sua boa consciência. A forma</p><p>dialógica é também inalienável da condição de herdeiro da</p><p>estrutura da narrativa bantu.”.</p><p>Centro de Ensino à Distância 91</p><p>Pires Laranjeira não deixa de realçar na sua crítica o apuramento</p><p>estilístico de Vinanova que foge do discurso directo: “A denúncia</p><p>do paternalismo, como de outras sequelas do colonialismo, quase</p><p>nunca se faz em linguagem expositiva, panfletária. A força, o</p><p>propósito do discurso poético não é do mesmo género do discurso</p><p>político.”</p><p>Os quimbos quietos pensados no silêncio (...) Da Evangélica os</p><p>cânticos se derramando na voz do vento: povo</p><p>Excerto de um poema in Vinte Canções para Ximinha.</p><p>Para o professor Manuel Ferreira, o poeta anónimo "será o que</p><p>mais conscientemente prolonga e renova as experiências dos poetas</p><p>da Mensagem e da Cultura (II). Tudo leva a crer que Vilanova</p><p>venha dos tempos da Mensagem, notadamente quando o seu</p><p>enunciado é a expressão de um certo quotidiano povoado de</p><p>rememorações; nelas e na narração evocativa um mundo de anseios</p><p>e suspensões significativas nos povoa a imaginação".</p><p>Ainda segundo Manuel Ferreira, em Caderno de um guerrilheiro, o</p><p>poeta elege como temática "o povo angolano crescendo na luta</p><p>armada." e considera-o como o poeta do "rigor e da elaborada</p><p>interiorização da gesta do povo angolano, com uma fala para cada</p><p>tema, uma gramática pessoal na fusão de níveis e áreas linguísticas,</p><p>mesmo quando o real é momentâneo e no seu verbo se trtansfigura</p><p>e dimensiona".</p><p>Exercícios</p><p>1. Apresente, em 1 página A4, a análise comparativa sobre os</p><p>textos de escritores angolanos e moçambicanos na mesma</p><p>época.</p><p>Centro de Ensino à Distância 92</p><p>Unidade 23: A História e a Tematização da Guerra: Yaka (Pepetela)</p><p>Introdução</p><p>Escritor angolano, Pepetela é um dos nomes mais relevantes da</p><p>literatura contemporânea de língua portuguesa. Conhecer a sua</p><p>obra implica conhecer um pouco mais da história de Angola. À</p><p>semelhaça do que aprendeste em Ungulani Ba Ka Khossa, obra</p><p>histórica, nesta unidade vais poder ver como Pepetela tematiza a</p><p>história de angola.</p><p>Ao completar esta unidade / lição, você será capaz de:</p><p>Objectivos</p><p> Ter uma visão sobre a história de Angola e a Guerra de</p><p>libertação, a partir das obras Yaka e Mayombe, respectivamente.</p><p>História e a Tematizaão da Guerra: em Yaka e Mayombe</p><p>PEPETELA Nasce em Benguela em 1941. Tem um único nome, o</p><p>verdadeiro é Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos. Em 1958</p><p>vai estudar em Lisboa, depois exílio na França e Argélia. Seu</p><p>segundo romance Mayombe é sobre a guerrilha na floresta do</p><p>mesmo nome. Curioso é que ocupa cargos de poder, como o de</p><p>vice-ministro da Educação. Escreve também teatro histórico, A</p><p>revolta da Casa dos Ídolos. Escreve sobre os povos do grupo</p><p>umbundo (ou ovimbundos), os mais numerosos de Angola.</p><p>Algumas obram publicadas:</p><p>MUANA PUÓ- A obra foi escrita em 1969 e publicado 1978</p><p>MAYOMBE- Escrito em 70/ 71, em Cabinda e publicado em 80</p><p>O CÃO E OS CALÚS - Escrito de 1978 a 82, foi trabalhado para</p><p>publicação em 1984 e publicado em 1985.</p><p>YAKA- Escrito em 1983 e publicado em 84 no Brasil e em 85 em</p><p>Portugal e em Angola.</p><p>Centro de Ensino à Distância 93</p><p>Yaka</p><p>" A ideia do Yaka nasce em Benguela em 1975, estávamos</p><p>numa "espera " nocturna do inimigo e eu disse que tinha</p><p>que escrever um livro que aproveitasse o privilégio que eu</p><p>tive de ter nascido de uma família colonial, numa cidade</p><p>colonial, de ter lutado contra esse sistema colonial e de</p><p>estar na minha cidade natal quanto termina o</p><p>colonialismo...Foi aí que nasceu a ideia e a partir daí eu</p><p>juntei todos os textos sobre Benguela e sobre a região</p><p>centro sul, quando saí do governo, uma semana depois</p><p>comecei a escrever o livro, a dois de janeiro de 1983. Tive</p><p>que escrever o livro de pé. "Eu estava completamente preso</p><p>à história quando escrevi o Yaka"- Pepetela.</p><p>É um livro sobre a história da colonização em Angola e,</p><p>simultaneamente a história da luta pela queda dessa colonização.</p><p>Uma saga sobre cem anos da história do país vistos através da</p><p>evolução de uma família e do seu percurso por Angola. Pepetela</p><p>acompanha a vida de personagens idos de Portugal para Angola no</p><p>século XIX, com personagens idos do Brasil, essencialmente</p><p>deportados, e pessoas descontentes com descontentes com a</p><p>independência do Brasil.</p><p>A história vai até à independência</p><p>de Angola em 1975. Termina em</p><p>Benguela. Na última geração, como foi comum a muitas famílias</p><p>há histórias de vidas com opções diferentes dentro dos diferentes</p><p>partidos angolanos.</p><p>Toda a história é acompanhada por Yaka, a estátua que acompanha</p><p>toda a história da família e que no fim é entendida na sua</p><p>mensagem pelo último dos membros da família.</p><p>Nesta obra Pepetela assume em absoluto a sua função de</p><p>romancista-historiador:</p><p>" Nesse livro eu pretendia mostrar uma vertente</p><p>europeia na cultura que existe nas cidades da costa</p><p>angolana. Há a intenção de dizer que há um legado</p><p>cultural da colonização. Custou-me muito escrevê-lo</p><p>porque eu estava demasiado amarrado á história. É um</p><p>livro onde acredito não hajam muitos erros históricos."</p><p>Outra obra de maior destaque é Mayombe. Em Mayombe, romance</p><p>destacado na obra de Pepetela, a luta de libertação é palco de</p><p>glorificação de heróis nacionais, fenómeno que será relativizado</p><p>em A geração da utopia, quando o mesmo autor procura fazer um</p><p>balanço do período que vai do começo dos anos 60 até o tempo</p><p>indicado como “a partir de Julho de 1991”. Em A parábola do</p><p>cágado velho, Pepetela denuncia o absurdo dos combates que se</p><p>Centro de Ensino à Distância 94</p><p>prolongam para além da lógica de seus motivos iniciais e arrasam o</p><p>país.</p><p>Vejamos o Trecho do livro A geração da utopia, de Pepetela</p><p>“Costumo pensar que nossa geração se devia chamar a</p><p>geração da utopia. Tu, eu, o Laurindo, o Vítor antes, para só</p><p>falar dos que conheceste. Mas tantos outros, vindos antes ou</p><p>depois, todos nós a um momento dado éramos puros e</p><p>queríamos fazer uma coisa diferente. Pensávamos que</p><p>íamos construir uma sociedade justa, sem diferenças, sem</p><p>privilégios, sem perseguições, uma comunidade de</p><p>interesses e pensamentos, o Paraíso dos cristãos, em suma.</p><p>A um momento dado, mesmo que muito breve nalguns</p><p>casos, fomos puros, desinteressados, só pensando no povo e</p><p>lutando por ele. E depois...tudo se adulterou, tudo</p><p>apodreceu, muito antes de se chegar ao poder. Quando as</p><p>pessoas se aperceberam que mais cedo ou mais tarde era</p><p>inevitável chegarem ao poder.</p><p>Cada um começou a preparar as bases de lançamento para</p><p>esse poder, a defender posições particulares, egoístas. A</p><p>utopia morreu. E hoje cheira mal, como qualquer corpo em</p><p>putrefação. Dela só resta um discurso vazio.”</p><p>O Mayombe começa com um comunicado de guerra. “Eu escrevi o</p><p>comunicado e...o comunicado pareceu-me muito frio, coisa para</p><p>jornalista, e eu continuei o comunicado de guerra para mim, assim</p><p>nasceu o livro." - Pepetela.</p><p>Escrito em 1970/71, em Cabinda e publicado em 1980. Se outras</p><p>obras têm o ir buscar à história a explicação para problemas</p><p>diversos, Mayombe conta história. é um livro de construção da</p><p>história.</p><p>Pepetela é, com esta obra, um dos primeiros sinais de critica interna</p><p>no MPLA, ao racismo, corrupção, machismo, isto levou a que</p><p>vários problemas se levantassem à publicação do livro. O escritor</p><p>teve que fazer muitas explicações e palestras sobre a obra. Ela foi o</p><p>primeiro testemunho público e assumido por um militante, de que o</p><p>MPLA não era perfeito embora tenhamos sempre que ter em conta</p><p>que é uma crítica feita dentro do limite possível de quem vê as</p><p>coisas do ponto de vista do participante.</p><p>Será um livro de história na medida em que é a realidade vivida</p><p>pelo autor tornada ficção. O único documento escrito que legitima</p><p>a presença do MPLA em Cabinda é esta obra de Pepetela - diz a</p><p>história oficial que o MPLA teria mandado os seus melhores</p><p>guerrilheiros para Cabinda.</p><p>Centro de Ensino à Distância 95</p><p>A publicação da obra tem também a sua história. Pepetela havida</p><p>dado a obra a Agostinho Neto para que este a lê-se, à semelhança</p><p>do que havia feito com outros trabalhos seus. Durante muito tempo</p><p>o próprio autor hesitou em publicar a obra, as razões eram políticas,</p><p>"será que é útil, a revolução era ainda muito recente... Poderia o</p><p>livro servir os inimigos?" - Pepetela.</p><p>Conteúdo em Mayombe</p><p>Quanto ao conteúdo de Mayombe em Mayombe temos o traço</p><p>filosófico do homem como indivíduo e o seu comportamento como</p><p>guerrilheiro. É a história do guerrilheiro, da guerrilheira, mas</p><p>sempre dos indivíduos nas suas ideias.</p><p>Pepetela joga, nesta obra com outro tipo de legados, os culturais.</p><p>Veja-se a dedicatória do livro: a ogum o prometeu africano - Ogum</p><p>é Yoruba e foi para o Brasil na rota dos escravos, em Angola não é</p><p>conhecido. É com estes diversos legados culturais que o autor joga.</p><p>Mayombe é uma grande epopeia, a épica dos guerrilheiros.</p><p>Relembra alguns escritores franceses que escreveram sobre a</p><p>guerrilha da Indochina, especialmente " A condição Humana" de</p><p>André Malraux.</p><p>Mayombe é a primeira obra angolana que dessacraliza os heróis.</p><p>"É uma obra também contra o dogmatismo, o Sem-Medo era um</p><p>Anarquista, não podia ser mas de facto era. A obra tem já uma série</p><p>de advertências sobre o partido único mas a grande contribuição do</p><p>Sem-Medo foi a da religião na política." - Pepetela</p><p>A Parábola do Cágado Velho</p><p>Nesta obra Pepetela volta a um caminho que se anuncia em Muana</p><p>Puó e que é o percurso de dialogar com os velhos mitos angolanos.</p><p>É novamente um trabalho muito ligado às tradições angolanas.</p><p>Outra analogia que podemos encontrar é o facto de voltarmos a ter,</p><p>nesta obra, uma estória de amor num cenário de luta, o cenário</p><p>angolano depois das eleições de 1992 com o eclodir da guerra, é a</p><p>marca que o autor transporta nesta obra embora o livro não se refira</p><p>nunca a uma época específica.</p><p>Exercícios</p><p>1. Apresenta a simbologia dos títulos das obras: Yaka e</p><p>Mayombe;</p><p>2. Procura ler toda a obra Mayombe e apresenta a análise que</p><p>faz dela em quatro páginas A4.</p><p>Centro de Ensino à Distância 96</p><p>Unidade 24: Novo rumo da Literatura angolana no período Pós-independência (crítica</p><p>social)</p><p>Introdução</p><p>O ano de 1975 representa as independências dos países africanos de</p><p>língua portuguesa (exceto Guiné-Bissau, que já era independente</p><p>desde 1973). A literatura nestes países, no período anterior à</p><p>independência, representava armas de denúncia do oprimido ao</p><p>modelo colonizador, fazendo política e filosoficamente, através da</p><p>escrita, o terreno para a revolução. Abordava a relação colonizador</p><p>/ colonizado que enfrentava.</p><p>Ao completar esta unidade / lição, você será capaz de:</p><p>Objectivos</p><p> Compreender o percurso literário de Angola no período pós-</p><p>independência.</p><p>Literatura angola no período pós-independência</p><p>O ano de 1975 representa as independências dos países africanos</p><p>de língua portuguesa (exceto Guiné-Bissau, que já era</p><p>independente desde 1973). A literatura nestes países, no período</p><p>anterior à independência, representava armas de denúncia do</p><p>oprimido ao modelo colonizador, fazendo política e</p><p>filosoficamente, através da escrita, o terreno para a revolução.</p><p>Abordava a relação colonizador / colonizado que enfrentava.</p><p>De 1975 a 1980, ocorre o momento da utopia, da busca de um novo</p><p>homem na opção socialista. A Guerra Fria encabeçada pelos</p><p>Estados Unidos e pela ex-URSS é combatida em território africano,</p><p>através do estímulo aos movimentos anti-governos no continente.</p><p>Em Moçambique, a FRELIMO combatia a RENAMO (África do</p><p>Sul), em Angola os partidos políticos também brigavam. Estas</p><p>guerrilhas acabam com a utopia socialista nestes países (distopia),</p><p>que se desarticulam formando os “senhores da guerra” – que</p><p>ganham dinheiro com a guerra. Neste processo, os intelectuais</p><p>começam a fazer uma crítica feroz, mas agora ao governo</p><p>burocrático, havendo assim um “senso de missão” – a poesia</p><p>continua sendo “arma de combate”, mas realizada de forma</p><p>Centro de Ensino à Distância 97</p><p>diferenciada daquela no período colonial. Há então, poesia concreta</p><p>e crítica após as independências dos países africanos de língua</p><p>portuguesa. A poesia não fala mais, apenas do país. O leque da</p><p>temática se abre para mais subjetividade, para o eu-lírico falar</p><p>também de coisas mais subjectivas. Da mesma forma, fala da</p><p>tradição africana (na escrita) e da tradição ocidental também. A</p><p>literatura, escrita em língua portuguesa, busca demonstrar as</p><p>diversidades das etnias nos textos. Quebra-se a fronteira entre prosa</p><p>e poesia.</p><p>Só que agora porque o meu espaço e tempo foi agredido para o</p><p>defender por vezes dessituo do espaço e tempo e tempo mais total.</p><p>O emendo não sou eu só. O mundo somos nós e os outros. E</p><p>quando minha literatura transborda minha identidade é arma de luta</p><p>e deve ser ação de interferir no mundo total para que se conquiste</p><p>então o mundo universal. Escrever então é viver. Escrever assim é</p><p>lutar. Literatura e identidade. Princípio e fim. Transformador.</p><p>Dinâmico. Nunca estático para que além da defesa de mim me</p><p>reconheça sempre que sou eu a partir de nós também para a</p><p>desalienação do outro até que um dia virá e “os portos do mundo</p><p>sejam portos de todo o mundo”. (RUI, 1987, p. 30).</p><p>Será apresentada agora, uma breve análise do poema “A Manga”</p><p>(1984) de Paula Tavares, escritora angolana (Luanda) do período</p><p>pós-independência. Sendo escritora do período, demonstra, através</p><p>de seus versos, as características da literatura dessa época, marcada</p><p>de subjectividade. Levanta ainda, especificamente, a subjectividade</p><p>feminina, considerando a identidade angolana. Questiona o</p><p>momento da utopia que precedeu a independência de Angola,</p><p>através dessa subjetividade, ao mesmo tempo em que não perde a</p><p>utopia da igualdade. Assim, procura reiterar a subjetividade na</p><p>construção de um sujeito feminino (dotado de sentimentos</p><p>individuais). Especificamente no poema “A Manga”, apresenta de</p><p>forma individualista (subjetiva), uma visão do sexo própria dos</p><p>angolanos, contrastando a diferença da visão católica europeia.</p><p>A MANGA</p><p>Fruta do paraíso</p><p>companheira dos deuses</p><p>as mãos</p><p>tiram-lhe a pele</p><p>dúctil</p><p>como, se, de mantos</p><p>se tratasse</p><p>surge a carne chegadinha</p><p>fio a fio</p><p>ao coração:</p><p>leve</p><p>morno</p><p>mastigável</p><p>o cheiro permanece</p><p>Centro de Ensino à Distância 98</p><p>para que a encontrem</p><p>os meninos</p><p>pelo faro.</p><p>Percebe-se, logo nos primeiros versos, uma referência à Bíblia</p><p>católica (“fruta do paraíso companheira dos deuses”), aqui</p><p>representada pela manga (ao invés da maçã comida por Eva no</p><p>paraíso, como ocorre na Bíblia). Logo após, a referência à “tiram-</p><p>lhe a pele dúctil como se de mantos se tratasse”, leva o leitor a</p><p>identificar o ato de descascar a manga (“a pele” da manga), com o</p><p>ato de despir uma pessoa (“como se de mantos se tratasse”). Isso é</p><p>reafirmado nos versos seguintes: “surge a carne chegadinha fio a</p><p>fio”. A “carne da manga” é a imagem utilizada para representar a</p><p>carne (o corpo) humano jovem. Em seguida: “ao coração leve,</p><p>morno, mastigável”, caracterizam a narração da imagem de uma</p><p>pessoa sendo despida com muito prazer e carinho. “o cheiro</p><p>permanece” compara o cheiro da manga com o cheiro do sexo.</p><p>“Para que a encontrem os meninos pelo faro”, define finalmente, o</p><p>gênero feminino, ou seja, a manga é a imagem utilizada para</p><p>representar a mulher, sendo despida para o ato sexual com muito</p><p>prazer e carinho (contrariando a visão da sexualidade feminina do</p><p>catolicismo europeu, em que o sexo é somente para procriar). A</p><p>autora apresenta, portanto, sob um ponto de vista feminino e</p><p>angolano, a sexualidade da mulher, construindo com uma temática</p><p>subjectiva (a sexualidade), um sujeito feminino em forma de</p><p>poesia.</p><p>Exercícios</p><p>1. Faz uma ficha de leirura, apresentando os temas abordados</p><p>nesta fase da litertura angolana.</p><p>2. Apresenta a simbologia do título A MANGA</p><p>Centro de Ensino à Distância 99</p><p>Bibliográfia</p><p>ANDRADE, Mário de. Prefácio a Cadernos de Poesia Negra de Expressão</p><p>Portuguesa, C.E.I.,Lisboa, 1980.</p><p>FERREIRA, Manuel. No Reino de Caliban III, Antologia Panorâmica da</p><p>Poesia africana de Expressão Portuguesa, Lisboa, Plátano Editora, 1976</p><p>FIGUEIREDO, Fidelino, História de Literatura De Portugal, São Paulo,</p><p>Editora Nacional, 1996</p><p>LARANJEIRA, Pires, Lteraturas africanas de expressão Portuguesa, 1995</p><p>LOPES, Óscar. Manual Elementar de Literatura Portuguesa, Lisboa,</p><p>Livraria Didáctica, S/d.</p><p>MARRILHO, Maria. Sociologia da Negritude. Edições 70, Lisboa, 1976.</p><p>MENDES, Orlando. Sbre aLiteratura Moçambicana. INLD, Maputo, 1978</p><p>SARAIVA, António José. História da Literatura Portuguesa, Lisboa,</p><p>Publicações Europa América</p><p>Centro de Ensino à Distância 100</p><p>Anexo</p><p>Nós Matamos o Cão-Tinhoso</p><p>O Cão-Tinhoso tinha uns olhos azuis que não tinham brilho nenhum, mas eram</p><p>enormes e estavam sempre cheios de lágrimas, que lhe escorriam pelo focinho.</p><p>Metiam medo aqueles olhos, assim tão grandes, a olhar como uma pessoa a pedir</p><p>qualquer coisa sem querer dizer.</p><p>Eu via todos os dias o Cão-Tinhoso a andar pela sombra do muro em volta do</p><p>pátio da Escola, a ir para o canto das camas de poeira das galinhas do Senhor</p><p>Professor. As galinhas nem fugiam, porque ele não se metia com elas, sempre a</p><p>andar devagar, à procura de uma cama de poeira que não estivesse ocupada.</p><p>O Cão-Tinhoso passava o tempo todo a dormir, mas às vezes andava, e então eu</p><p>gostava de o ver, com os ossos todos à mostra no corpo magro. Eu nunca via o</p><p>Cão-Tinhoso a correr e nem sei mesmo se ele era capaz disso, porque andava todo</p><p>a tremer, mesmo sem haver frio, fazendo balanço com a cabeça, como os bois e</p><p>dando uns passos tão malucos que parecia uma carroça velha.</p><p>Houve um dia que ele ficou o tempo todo no portão da Escola a ver os outros cães</p><p>a brincar no capim do outro lado da estrada, a correr, a correr, e a cheirar debaixo</p><p>do rabo uns aos outros. Nesse dia o Cão-Tinhoso tremia mais do que nunca, mas</p><p>foi a única vez que o vi com a cabeça levantada, o rabo direito e longe das pernas</p><p>e as orelhas espetadas de curiosidade.</p><p>Os outros cães às vezes deixavam de brincar e ficavam a olhar para o Cão-</p><p>Tinhoso. Depois zangavam-se e punham- se a ladrar, mas como ele não dissesse</p><p>nada e só ficasse para ali a olhar, viravam-lhe as costas e voltavam a cheirar</p><p>debaixo do rabo uns aos outros e a correr.</p><p>Duma dessas vezes, o Cão-Tinhoso começou a chiar com a boca fechada e</p><p>avançou para os outros quase que a correr, mas com a cabeça muito direita e as</p><p>orelhas mais espetadas do que nunca. Quando os outros se viraram para ver o que</p><p>ele queria, teve medo e parou no meio da estrada.</p><p>Os outros cães ficaram um bocado a pensar no que haviam de fazer por ele estar a</p><p>olhar para eles daquela maneira. E que o Cão-Tinhoso queria ir meter-se com</p><p>eles. Depois o cão do Senhor Sousa, o Bobí, disse qualquer coisa aos outros e</p><p>avançou devagar até onde estava o Cão- Tinhoso. O Cão-Tinhoso fingiu não ver e</p><p>nem se mexeu mando o Bobí lhe foi cheirar o rabo: olhava sempre em frente. O</p><p>Bobí, depois de ficar uma data de tempo a andar em volta do Cão-Tinhoso, foi a</p><p>correr e disse qualquer coisa aos outros — o Leão, o Lobo, o Mike, o Simbi, a</p><p>Mimosa e o Luiu — e puseram-se todos a ladrar muito zangados para o Cão-</p><p>Tinhoso. O Cão-Tinhoso não respondia, sempre muito direito, mas eles zangaram-</p><p>se e avançaram para ele a ladrar cada vez mais de alto. Foi então que ele recuou</p><p>com medo, e voltando-lhes as costas, veio para a Escola, com o rabo todo enfiado.</p><p>Quando passou por mim ouvi-o</p><p>a chiar com a boca fechada e vi-lhe os olhos azuis,</p><p>cheios de lágrimas e tão grandes a olhar como uma pessoa a pedir qualquer coisa</p><p>sem querer dizer. Mas ele nem olhou para mim e foi pela sombra do pátio da</p><p>Escola, sempre com a cabeça a fazer balanço como os bois e a andar como uma</p><p>carroça velha, para o canto das camas de poeira das galinhas do Senhor Professor.</p><p>Os outros cães ainda ficaram um bocado a ladrar para o portão da Escola, todos</p><p>zangados, mas voltaram para o capim do outro lado da estrada para continuar a</p><p>Centro de Ensino à Distância 101</p><p>correr, a rebolar, a fingir que se mordiam uns aos outros, a correr, a correr e a</p><p>cheirar debaixo do rabo uns dos outros.</p><p>De vez em quando o Bobí olhava para o portão da Escola e, lembrando-se do Cão-</p><p>Tinhoso, punha-se a ladrar outra vez. Os outros, ao ouvi-lo, deixavam de brincar e</p><p>punham-se também a ladrar, muito zangados, para o portão da Escola.</p><p>O Cão-Tinhoso tinha a pele velha, cheia de pêlos brancos cicatrizes e muitas</p><p>feridas. Ninguém gostava dele porque era um cão feio. Tinha sempre muitas</p><p>moscas a comer-lhe as crostas das feridas e quando andava, as moscas iam com</p><p>ele a voar em volta e a pousar nas crostas das feridas. Ninguém gostava de lhe</p><p>passar a mão pelas costas como aos outros cães. Bem, a Isaura era a única que</p><p>fazia isso.</p><p>O Quim disse-me um dia que o Cão-Tinhoso era muito velho, mas que quando</p><p>ainda era novo devia ter sido um cão com o pelo a brilhar como o do Mike. O</p><p>Quim disse-me também que as feridas do Cão-Tinhoso eram por causa da guerra e</p><p>da bomba atómica, mas isso é capaz de ser pêta. O Quim diz muitas coisas que a</p><p>gente nem pensa que podem não ser verdadeiras, porque quando ele as conta a</p><p>gente fica tudo de boca aberta. A malta gosta de ouvir o Quim a contar coisas de</p><p>outras terras e os filmes que vai ver lá em Lourenço Marques, no Scala, e as coisas</p><p>do El Índio Apache a jogar luta-livre e a fazer tourada, e aquilo que El Índio</p><p>Apache fez ao Zé Luís no Continental. O Quim diz que El Índio Apache só não</p><p>vai ao focinho ao Zé Luís porque não quer.</p><p>O Quim disse-me isso de o Cão-Tinhoso ser muito velho quando um dia o vimos a</p><p>bocejar sem dentes na boca. Foi nesse dia que me contou a história da bomba</p><p>atómica com os japoneses pequeninos a morrer todos que era uma beleza e o Cão-</p><p>Tinhoso a fugir depois de ela rebentar e a correr uma distância monstra para não</p><p>morrer. O Quim não me contou a história toda logo de uma vez e disse que só a</p><p>acabava se eu me portasse bem lá dentro, na prova. Eu passei-lhe quase toda a</p><p>prova mas a Senhora Professora topou e deu-lhe 8 reguadas no rabo. Quando</p><p>saímos eu não lhe pedi para acabar a história da bomba atómica porque ele era</p><p>capaz de se lembrar do que a Senhora Professora lhe tinha feito lá dentro e zangar-</p><p>se comigo. Ele só a acabou à tarde no Sá, antes de começarmos a jogar o sete-e-</p><p>meio a cigarros.</p><p>Todos ficaram de boca aberta a ouvir. Até o Sá deixou de atender os fregueses</p><p>para ouvir o Quim a contar.</p><p>Ele contou tudo desde o princípio sem ninguém pedir, mas era diferente daquilo</p><p>que tinha começado a contar na Escola, porque já não metia Cão-Tinhoso. Eu não</p><p>disse nada porque ele era capaz de se zangar comigo.</p><p>O Cão-Tinhoso tinha a pele velha, cheia de pêlos brancos, cicatrizes e muitas</p><p>feridas, e em muitos sítios não tinha pêlos nenhuns, nem brancos nem pretos e a</p><p>pele era preta e cheia de rugas como a pele de um gala-gala. Ninguém gostava de</p><p>lhe passar a mão pelas costas como aos outros cães.</p><p>A Isaura era a única que gostava do Cão-Tinhoso e passava o tempo todo com ele,</p><p>a dar-lhe o lanche dela para ele comer e a fazer-lhe festinhas, mas a Isaura era</p><p>maluquinha, todos sabiam disso.</p><p>A Senhora Professora já tinha dito que ela não regulava lá muito bem e que o pai a</p><p>havia de tirar da Escola pelo Natal.</p><p>A Isaura não brincava com as outras meninas e era a mais velha da segunda classe.</p><p>A Senhora Professora zangava-se por ela não saber nada e dar erros na cópia, e</p><p>Centro de Ensino à Distância 102</p><p>dizia-lhe que só não lhe dava reguadas porque sabia que ela não tinha tudo lá</p><p>dentro da cabeça.</p><p>Quando ia para o estrado ler a lição não se ouvia nada e a gente dizia — «Não se</p><p>ouve nada, não se ouve nada» —, e a Senhora Professora dizia que os meninos da</p><p>quarta classe não tinham nada que ouvir. Então os meninos da segunda classe</p><p>começavam a dizer: «Não se ouve nada, não se ouve nada». A Senhora Professora</p><p>zangava-se e fazia uma bronca dos diabos. Por isso, no intervalo, as outras</p><p>meninas faziam uma roda com a Isaura no meio e punham-se a dançar e a cantar:</p><p>«Isaura-Cão-Tinhoso, Cão-Tinhoso, Cão-Tinhoso, Tinhoso, Isaura-Cão-Tinhoso,</p><p>Cão-Tinhoso, Tinhoso». A Isaura parecia que não ouvia e ficava com aquela cara</p><p>de parva, a olhar para todos os lados à procura de não sei quê, como dizia a</p><p>Senhora Professora.</p><p>Houve um dia em que falei com a Isaura. Foi assim:</p><p>Estava sentado nas escadas da Escola, mesmo em frente ao portão, a comer o</p><p>lanche. Era o intervalo do lanche. A Senhora Professora estava a ler um livro e</p><p>passeava pela varanda, indo até uma ponta, virando-se e vindo para a outra. Como</p><p>ela passava por mim (ouvia os sapatos, cóc, cóc, cóc, no chão) eu estava para</p><p>saber se me havia de levantar ou não quando ela passava, porque era chato</p><p>levantar-me todas as vezes que ela passava por mim. De resto, era mesmo capaz</p><p>de estar a pensar que eu não dava por ela, por estar de costas para o sítio por onde</p><p>passeava, e não me perguntar depois, na aula, se os meus pais não me davam</p><p>educação.</p><p>Eu estava a pensar nisso e a comer o lanche, quando vi que a Isaura andava à</p><p>procura do Cão-Tinhoso. Depois foi lá para fora e espreitou a rua toda. Como não</p><p>visse o Cão- Tinhoso, ficou no portão a olhar para todos os lados até que me viu.</p><p>Ficou uma quantidade de tempo a olhar para mim e, depois, veio até às escadas, a</p><p>andar devagarinho e de lado, subiu-as, e quando chegou perto de mim voltou-se</p><p>para uma coluna e pôs-se lá a riscar qualquer coisa, muito distraída. Perguntou-me</p><p>como se estivesse a falar com outra pessoa que eu não via:</p><p>— Viste o meu cão? Heim? Viste?</p><p>Como eu não desse nenhuma resposta, porque era a primeira vez que ela falava</p><p>comigo, insistiu:</p><p>— Não passou lá para fora?...</p><p>Nisto, o Cão-Tinhoso apareceu no portão. Parou um bocado, e depois, em vez de</p><p>ir para as camas de poeira das galinhas do Senhor Professor, veio para as escadas.</p><p>Eu disse:</p><p>— Está ali.</p><p>A Isaura voltou-se logo:</p><p>— Aonde? Ah! Meu cãozinho... Tinhas ido passear?</p><p>A Senhora Professora parou mesmo atrás de mim (ouvi o cóc, cóc, cóc dela a vir e</p><p>um cóc mais forte mesmo atrás de mim. De resto, senti o perfume dela em cima de</p><p>mim).</p><p>A Isaura tinha corrido logo, escadas abaixo, a agarrar-se ao Cão-Tinhoso, quando</p><p>a Senhora Professora disse:</p><p>— Ó menina, que pouca vergonha é essa? Vai já lavar as mãos!</p><p>Eu estava ainda a pensar para saber se me havia de levantar ou não, porque ouvia-</p><p>a mesmo por sobre as minhas costas, embora não a estivesse a ver.</p><p>Centro de Ensino à Distância 103</p><p>A Isaura afastou-se do Cão-Tinhoso e virou-se para a Senhora Professora. O Cão-</p><p>Tinhoso ficou também a o para ela. Foi aí que a Senhora Professora disse para o</p><p>Cão-Tinhoso:</p><p>— Suca!</p><p>O Cão-Tinhoso ainda ficou um bocado a olhar para a Senhora Professora, com os</p><p>olhos grandes a olhar como uma pessoa a pedir qualquer coisa sem querer dizer.</p><p>Eu vi-lhe lágrimas a brilhar em riscos no focinho. A Senhora Professora deu um</p><p>grito para o Cão-Tinhoso ouvir bem:</p><p>— Suca daqui!</p><p>O Cão-Tinhoso voltou-lhes as costas e desapareceu portão fora, sem dizer nada,</p><p>com o seu andar de carroça velha e com a cabeça a fazer balanço como os bois.</p><p>A Senhora Professora continuou</p><p>diferentes</p><p>partes do processo de aprendizagem. Podem indicar uma parcela</p><p>específica de texto, uma nova actividade ou tarefa, uma mudança</p><p>de actividade, etc.</p><p>Habilidades de estudo</p><p>Caro estudante, procure reservar no mínimo 2 (duas) horas de</p><p>estudo por dia e use ao máximo o tempo disponível nos finais de</p><p>semana. Lembre-se que é necessário elaborar um plano de estudo</p><p>individual, que inclui, a data, o dia, a hora, o que estudar, como</p><p>estudar e com quem estudar (sozinho, com colegas, outros).</p><p>Lembre-se que o teu sucesso depende da sua entrega, você é o</p><p>responsável pela sua própria aprendizagem e cabe a se planificar,</p><p>organizar, gerir, controlar e avaliar o seu próprio progresso.</p><p>Evite plágio.</p><p>Precisa de apoio?</p><p>Caro estudante:</p><p>Os tutores têm por obrigação monitorar a sua aprendizagem, dai o</p><p>estudante ter a oportunidade de interagir objectivamente com o</p><p>tutor, usando para o efeito os mecanismos apresentados acima.</p><p>Todos os tutores têm por obrigação facilitar a interacção. Em caso</p><p>de problemas específicos, ele deve ser o primeiro a ser contactado,</p><p>numa fase posterior contacte o coordenador do curso e se o</p><p>problema for da natureza geral, contacte a direcção do CED, pelo</p><p>número 825018440.</p><p>Os contactos só se podem efectuar nos dias úteis e nas horas</p><p>normais de expediente.</p><p>Tarefas (avaliação e auto-avaliação)</p><p>O estudante deve realizar todas as tarefas (exercícios), contudo nem</p><p>todas deverão ser entregues, mas é importante que sejam</p><p>realizadas. Só deverão ser entregues os exercícios que forem</p><p>indicados pelo Tutor. Isto, antes do período presencial.</p><p>Podem ser utilizadas diferentes fontes e materiais de pesquisa,</p><p>contudo os mesmos devem ser devidamente referenciados,</p><p>respeitando os direitos do autor.</p><p>Centro de Ensino à Distância 4</p><p>Avaliação</p><p>A avaliação da cadeira será controlada da seguinte maneira:</p><p> Três (3) Trabalhos realizados pelos estudantes, sendo</p><p>divididos em três sessões presenciais de acordo com a</p><p>programação do Centro.</p><p> Dois (2) Testes escritos em presença e um (1) exame no fim</p><p>do ano.</p><p>Centro de Ensino à Distância 5</p><p>Unidade 01: Literatura Colonial Vs Literatura Nacional</p><p>Introdução</p><p>Nesta unidade introdutória, vai-se aprender uma breve noção sobre</p><p>o aparecimento da literatura de expressão portuguesa em África,</p><p>por forma de perceber melhor os traços comuns e descomuns que</p><p>há na história literária dos países africanos de expressão em língua</p><p>portuguesa.</p><p>Ao completar esta unidade / lição, você será capaz de:</p><p>Objectivos</p><p> Adquirir uma breve noção sobre o surgimento da litetautura</p><p>Africana de expressão portuguesa;</p><p> Distinguir a literatura colonial da literatura nacional</p><p>Literatura Colonial Vs Literatura Nacional</p><p>As literaturas africanas em língua portuguesa tiveram seu</p><p>desenvolvimento a partir da segunda metade do século XIX, como</p><p>não poderia deixar de ser, tratando-se de países africanos, dotados</p><p>em sua maioria por culturas de tradição oral (embora não</p><p>exclusivamente). Diferentemente da produção colonial africana, as</p><p>literaturas africanas adotam um ponto de vista do colonizado, “de</p><p>dentro para fora”</p><p>.</p><p>Marcadas pelo colonialismo português, os conflitos e relações que</p><p>esta forma administrativa acarreta, foram com o passar do tempo,</p><p>inspiração constante na literatura das então colónias de Portugal,</p><p>actuais países de Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau,</p><p>Angola e Moçambique. Por ter sido, o fazer literário nestes países,</p><p>muitas das vezes, formas de resistência e militância, serão</p><p>exactamente estas nuances que marcam as relações colonizador x</p><p>colonizado e as demais buscas de afirmação identitária que elas</p><p>acarretam. A literatura, então, passa a construir em forma de</p><p>militância política, de denúncia, de busca de uma identidade, a</p><p>ideologia para a independência e afirmação de identidades nestes</p><p>países.</p><p>Centro de Ensino à Distância 6</p><p>Quatro anos apenas após a instalação do prelo em Angola ocorre a</p><p>publicação do livro Espontaneidades da minha alma (1849), do</p><p>angolano, mestiço ao que parece, José da Silva Maia Ferreira, o</p><p>primeiro livro impresso na África lusófona.</p><p>O primeiro livro impresso, mas não a mais antiga obra literária de</p><p>autor africano. Por pesquisas que recentemente que se levam a</p><p>cabo, é anterior àquele, pelo menos, o poemeto da cabo-verdiana</p><p>Antónia Gertrudes Pusich, Elegia à memória das infelizes vítimas</p><p>assassinadas por Francisco de Mattos Lobo, na noite de 25 de</p><p>Junho de 1844, publicado em Lisboa no mesmo ano. Entretanto não</p><p>será deslocado citar-se o Tratado breve dos reinos da Guiné, escrito</p><p>em 1594, da autoria do cabo-verdiano André Alvares de Almada; e</p><p>de origem cabo-verdiana se supõe ser André Dornelas, autor do</p><p>século XVI, que assina uma descrição da Guiné.</p><p>Tal, porém, não se autoriza a remontar as origens da poesia</p><p>angolana a tão recuados tempos, como já, com alguma</p><p>intemperança, se se quer insinuar. Repondo, por isso, a questão</p><p>com certa objectividade pode afirmar-se que a literatura africana</p><p>chama a si mais de um século de existência. Este longo período de</p><p>mais de um século de actividade literária está, porém, contido em</p><p>duas grandes linhas: a literatura colonial e a literatura africana de</p><p>expressão portuguesa.</p><p>A primeira, a literatura colonial, define-se essencialmente pelo</p><p>facto de o centro do universo narrativo ou poético se vincular ao</p><p>homem europeu e não ao homem africano.</p><p>No contexto da literatura colonial, por décadas exaltadas, o homem</p><p>negro aparece como que por acidente, por vezes visto</p><p>paternalisticamente e, quando tal acontece, é já um avanço, porque</p><p>a norma é a sua animalização ou coisificação. O branco é elevado à</p><p>categoria de herói mítico, o desbravador das terras inóspitas, o</p><p>portador de uma cultura superior. Exemplo: 'o único país que pode</p><p>explorar seriamente a África, é Portugal' (prefácio de Manuel</p><p>Pinheiro Chagas a Os sertões d’África, 1880, de Alfredo de</p><p>Sarmento, onde aliás se pode ler sobre o negro: 'É um homem na</p><p>forma, mas os instintos são de fera', p. 87). Paradoxalmente, o</p><p>branco é eleito como o grande sacrificado.</p><p>A aplicação do ponto de vista colonialista tem no europeu o agente</p><p>dinâmico e não o opressor: 'Fiel aos nossos deveres de dominador,</p><p>grata ao nosso orgulho, útil às populações', escrevia um homem</p><p>anti-fascista, Augusto Casimiro (Nova largada, 1929).</p><p>Predominavam, então, as ideias da inferioridade do homem negro,</p><p>que teóricos racistas, como Gobineau, haviam derramado e para as</p><p>quais teria contribuído o filósofo Lévy-Bruhl com a sua tese da</p><p>mentalidade pre-lógica, ― sendo certo, embora, que a renunciou</p><p>pouco antes de morrer.</p><p>Logo no último quartel do século XIX encontram os pioneiros</p><p>Centro de Ensino à Distância 7</p><p>desta literatura. Mas é no período 20/30 do século XX que ela vai</p><p>atingir o ponto mais alto, na quantidade, na marca colonialista, na</p><p>aceitação do público que esgota algumas edições, com certeza</p><p>motivado pelo exótico. Aí se destaca um naipe todo ele incapaz de</p><p>apreender o homem africano no seu contexto real e na sua</p><p>complexa personalidade. É certo que justo será destacar pela</p><p>qualidade de sua escrita João de Lemos, “Almas negras”, 1937,</p><p>porque nele, apesar de uma deficiente visão, se denota um</p><p>meritório esforço de análise e intenção humanística. Mas, escritor</p><p>português, manietado pela distanciação colonialista, por norma, dá</p><p>ao seu discurso um sentido racista, hoje de inconcebível aceitação.</p><p>O tempo histórico, o tempo cultural, para quem, ideologicamente,</p><p>era incapaz de se furtar à insidiosa</p><p>a andar (cóc, cóc, cóc, de uma ponta da varanda</p><p>para a outra) e a Isaura ficou um bocado a olhar com aquela cara de parva para o</p><p>sítio atrás de mim onde a cara da Senhora Professora devia ter estado, e depois</p><p>veio devagarinho e a andar de lado e encostou-se outra vez à coluna, muito</p><p>distraída a riscar na cal. Daí a um bocado disse-me:</p><p>— Viste?...</p><p>E eu disse:</p><p>— Vi.</p><p>E ela:</p><p>— Correu com ele...</p><p>E eu:</p><p>— Sim.</p><p>Ficámos um bocado sem falar e depois ela veio numa corridinha pôr-se-me em</p><p>frente para me olhar com força. Os cantos dos olhos dela começaram a encher-se</p><p>de lágrimas e quando os olhos estavam cheios elas rebentaram e caíram-lhe pela</p><p>cara abaixo, a fazer dois riscos grossos. Perguntou-me:</p><p>— Viste?... Viste o que ela fez?...</p><p>Eu respondi:</p><p>— Vi.</p><p>E ela:</p><p>— Ela é má... É má...</p><p>Eu não disse nada e ela continuou:</p><p>— Todos são maus para o Cão-Tinhoso...</p><p>Os olhos dela não eram azuis, mas eram grandes e olhavam como os olhos do</p><p>Cão-Tinhoso como uma pessoa a pedir qualquer coisa sem querer dizer.</p><p>Depois ela foi-se embora, lá para trás, onde os outros estavam a comer os lanches</p><p>e a brincar.</p><p>O Senhor Administrador cuspiu para nós os dois e disse aquilo do Cão-Tinhoso,</p><p>mas era só porque ele e o parceiro tinham levado uma limpa-quatro-bolas:</p><p>O Cão-Tinhoso costumava aparecer no Clube aos sábados à tarde para ver a malta</p><p>a treinar futebol. Eu não sei porque é que o Cão-Tinhoso gostava disso, mas a</p><p>verdade é que ele estava lá todos os sábados à tarde.</p><p>Houve um dia que a malta quis fazer um desafio a sério e não me deixou jogar. O</p><p>Gulamo nem me deixou jogar à baliza. Ele disse-me: «Aguenta um bocado na</p><p>varanda do Clube. Ficas como suplente. Daqui a pouco entras, mas há-de ser</p><p>quando estivermos à rasca ou a perder, porque aí entras tu e a gente resolve o</p><p>jogo». Eu vi logo que eles não me haviam de deixar jogar porque o jogo era a</p><p>dinheiro e quando é assim eles não me deixam jogar. Isso de eu ficar como</p><p>Centro de Ensino à Distância 104</p><p>suplente era o que eles diziam quando não queriam que eu jogasse, mas eu não</p><p>disse nada e fui para a varanda do clube. O Cão-Tinhoso estava lá.</p><p>O Senhor Administrador e os outros estavam na varanda do Clube, a jogar à sueca</p><p>como também era hábito todos os sábados à tarde. Eu estava a olhar para o Senhor</p><p>Administrador quando ele e o parceiro levaram um capote e ele disse ao Doutor da</p><p>Veterinária, que se estava a rir todo satisfeito, por lhe ter dado o capote: «Não</p><p>acho graça nenhuma... Isso foi leiteira»... Depois olhou para mim e viu que eu</p><p>também me estava a rir. Olhou para o Cão-Tinhoso e viu-o também a rir-se. Por</p><p>isso zangou-se e perguntou aos outros: «Eh! Quem é que disse que isto não era a</p><p>Arca de Noé?».</p><p>Depois continuaram a jogar à sueca e o Senhor Administrador e o parceiro</p><p>levaram uma limpa-quatro-bolas. Eu estava a olhar para ele quando ele disse ao</p><p>Doutor da Veterinária que se estava a rir por lhe ter dado a limpa-quatro-bolas:</p><p>«Mas qual é a piada, porra? Com os trunfos todos na mão quem é que não fazia o</p><p>que vocês fizeram? Olha filho, toma! Toma! Chupa!... Eu chamo-lhe leiteira...».</p><p>Depois olhou para mim e zangou-se. Ele sabia que eu sabia que ele estava a</p><p>perder. Olhou para mim e para o Cão-Tinhoso sem saber com qual de nós os dois</p><p>havia de correr primeiro. Enquanto pensava para resolver isso cuspiu para nós os</p><p>dois, isto é, para um sítio entre nós os dois. Está-se mesmo a ver que o cuspo tanto</p><p>era para mim como para o Cão-Tinhoso.</p><p>O Doutor da Veterinária ainda se estava a rir por lhe ter dado a limpa-quatro-bolas</p><p>e ele acabou com aquilo de uma vez:</p><p>— Ouve lá, o que é que este cão está a fazer ainda vivo? Está tão podre que é um</p><p>nojo, caramba! Bolas para isto! Ai que eu tenho de me meter em todos os lados</p><p>para pôr muita coisa em ordem...</p><p>O Senhor Chefe dos Correios, que era o parceiro do Senhor Administrador, já</p><p>estava a dar as cartas nessa altura, e por isso ficaram todos a ver quantos trunfos é</p><p>que lhes haviam de sair. Eu fiquei um momento a olhar para aquilo tudo até</p><p>compreender o que o Senhor Administrador queria dizer: — O Cão-Tinhoso vai</p><p>morrer! Olhei para ele: estava a dormir com a cabeça entre as patas, muito</p><p>descansado da vida.</p><p>Fui a correr para o campo de futebol para avisar a malta: «O Cão-Tinhoso vai</p><p>morrer». — O Gulamo disse-me: «Fora daqui!». — Agarrei-me a ele e voltei a</p><p>dizer-lhe que o Cão-Tinhoso ia morrer: «Larga-me». Ele só dizia isso. — «Larga-</p><p>me». Mas estava quieto.</p><p>Ficamos os dois a ver uma avançada do grupo do Quim. O Faruk, que era o ponta</p><p>direita deles, foi com a bola até ao canto, depois de ter batido o Narotamo em</p><p>corrida, e de lá centrou. O Quim passou por nós a correr para a baliza, mas o</p><p>Gulamo só dizia: «Larga-me». O Quim meteu o golo com uma cabeçada. O</p><p>Gulamo foi logo a correr: «Este golo não valeu porque este tipo estava a agarrar-</p><p>me». O Quim e os outros não quiseram saber: «Isso é que vale, estás a ouvir?».</p><p>Depois o Gulamo veio ter comigo:</p><p>— Ó filho da mãe, suca daqui para fora e não voltes a chatear, estás a ouvir? Suca</p><p>daqui antes que eu te rebente o focinho!</p><p>Bem, como o Gulamo dizia aquilo muito zangado eu fui-me embora para fora do</p><p>campo, mas fiquei chateado porque os outros não queriam saber do Cão-Tinhoso.</p><p>Quando ia já a sair do campo, o Telmo correu para mim e pôs-se a bater-me na</p><p>cabeça e a gritar:</p><p>— Só, só, só mais um! Só, só, só mais um!...</p><p>Centro de Ensino à Distância 105</p><p>Agarrei-lhe os braços e disse-lhe o que ia acontecer ao Cão-Tinhoso, mas ele</p><p>continuava: — Só, só, só mais um, só, só, só mais um...</p><p>Tive vontade de bater no Telmo, mas o Gulamo estava ali perto a olhar para mim</p><p>com os braços cruzados no peito e tive mesmo de me ir embora.</p><p>Quando passei pela varanda do Clube, o Senhor Administrador e os outros</p><p>estavam muito entretidos a jogar à sueca, e o Cão-Tinhoso estava muito quieto, a</p><p>dormir com a cabeça entre as patas sem ter percebido o que lhe havia de</p><p>acontecer.</p><p>Na segunda-feira de manhã fui ver o Cão-Tinhoso logo que cheguei à Escola. A</p><p>Isaura estava ao pé dele e dava-lhe o lanche dela, partindo o pão aos bocadinhos e</p><p>espalhando-os perto da boca do Cão-Tinhoso, que ia comendo devagar, porque</p><p>levava muito tempo a mastigar. Quando tocou para entrar, a Isaura despediu-se</p><p>dele e veio a correr para a chamada.</p><p>Lá dentro, enquanto fazia as contas e o desenho, e mesmo durante o ditado, fui</p><p>pensando no Cão-Tinhoso a ser morto pelo Doutor da Veterinária, depois de ter</p><p>escapado da bomba atómica e tudo, depois de ter corrido uma distância monstra</p><p>para não morrer por causa da bomba atómica. O Doutor da Veterinária se calhar</p><p>não tinha vontade nenhuma de matar o Cão-Tinhoso, mas como é que ele havia de</p><p>fazer, coitado, se foi o Senhor Administrador que mandou?</p><p>Perguntei ao Quim como é que o Doutor da Veterinária havia de matar o</p><p>Cão-Tinhoso, e ele disse-me: «Um cão mata-se com antibióticos». Eu perguntei-</p><p>lhe o que era isso de antibióticos e ele zangou-se e disse: «Ó seu burro!». E depois</p><p>de se calar um bocado e continuar a fazer o desenho, voltou a falar, mas já sem</p><p>estar zangado: «Meu Deus, quem é que te manda ser tão besta? E quem é que me</p><p>manda ter tanta paciência para te aturar. E que ainda por cima não sei</p><p>em que língua é que te hei-de falar porque não percebes nada de português,</p><p>chiça?! Um cão mata-se com uma bala de Ponto 22. Sim, para ti tem de ser assim.</p><p>E uma bala de Ponto 22 e pronto, arre!». Calou-se mas continuou: «Ou com</p><p>antibióticos...». E pouco depois: «A não ser que o Doutor da Veterinária seja tão</p><p>burro como tu que só o possa matar com uma bala de Ponto 22».</p><p>— Ó meninos, isto não é um bazar, heim...</p><p>Era a Senhora Professora.</p><p>— O que é que o Quim te estava a dizer? Sim, tu, Ginho, responde!</p><p>Eu ia a responder mas o Quim deu-me um beliscão.</p><p>— Não queres dizer? Será preciso</p><p>usar a régua no teu rabinho?</p><p>— Não era nada, Senhora Professora, era por causa do Cão-Tinhoso. O Doutor da</p><p>Veterinária vai matá-lo.</p><p>— Vocês não têm tempo para tratar desses sigilosos negócios de estado durante a</p><p>hora do intervalo?</p><p>— Temos, sim, Senhora Professora.</p><p>— Então toca a fazer o desenho e bico calado.</p><p>Ficamos de bico calado a fazer o desenho.</p><p>Quando chegou a hora do intervalo a Isaura veio ter comigo, muito aflita:</p><p>— O que é que tu e o Quim estavam para ali a dizer?</p><p>Eu já tinha falado com ela uma vez, mas era como se fosse a primeira vez, porque</p><p>fiquei sem saber o que lhe havia de responder.</p><p>— O que é que tu e o Quim estavam para ali a falar do Cão-Tinhoso?</p><p>— Nada...</p><p>— Vão matá-lo? O Doutor da Veterinária vai matá-lo?</p><p>Centro de Ensino à Distância 106</p><p>— Não, isso é mentira do Quim...</p><p>— Então, porque é que estavam a falar nisso?</p><p>— Para passar o tempo. É que o desenho era chato...</p><p>— Vocês não sabem que não devem dizer mentiras? (Ela estava a armar em</p><p>Senhora Professora ou qualquer outra pessoa já crescida).</p><p>— O Quim é que disse mentiras, foi o Quim...</p><p>A Isaura respirou fundo (ainda a armar em pessoa crescida) e foi a correr para o</p><p>canto das camas de poeira das galinhas do Senhor Professor. Antes de chegar lá</p><p>parou e voltou-se para mim com as mãos a tapar a boca, mas como visse que eu</p><p>ainda estava a olhar para ela voltou-me as costas.</p><p>O Cão-Tinhoso viu-a chegar e pôs-se logo a abanar o rabo e a balancear a cabeça,</p><p>embora não estivesse a andar. A Isaura ajoelhou-se diante dele, agarrou-lhe a</p><p>cabeça e pôs-se a dizer-lhe uma data de coisas que não ouvi.</p><p>Depois sentou-se sobre os calcanhares, cruzou os dedos no regaço e pôs-se a olhar</p><p>para as mãos. Eu estava mesmo atrás dela quando ela disse:</p><p>— Não ligues a isso tudo porque é pêta do Quim, o Doutor da Veterinária não te</p><p>quer matar nem nada, isso é pêta. Nós ainda vamos falar das nossas coisas, e eu</p><p>hei-de dar-te de comer todos os dias. Também posso vir à tarde depois da hora do</p><p>lanche e trazer-te de comer, a minha mãe não diz nada, Cão-Tinhoso! Não sejas</p><p>malcriado! O que é que estás a querer ver debaixo das minhas saias? — E puxa a</p><p>saia para tapar os joelhos. — Oh! Desculpa-me, Cão-Tinhoso! Estás a ver a barra</p><p>da minha saia nova! Desculpa-me, eu devia saber que não és como esses meninos</p><p>malcriados que andam por aí. Não tinhas visto ainda a minha saia nova? Tem</p><p>muita roda, queres ver? — Levantou-se e esticou a saia pelos lados. Estava a fazer</p><p>uma voltinha quando me viu mesmo atrás dela. Ficou de boca aberta a olhar-me</p><p>depois virou-se para mim com a boca muito fechada e de mãos nas ancas: — O</p><p>que é que você quer daqui?</p><p>Fingi que estava a apanhar qualquer coisa com que tivesse estado a brincar e</p><p>tivesse ido parar ali sem ser de propósito, e depois fui-me embora a fingir que</p><p>metia a coisa ao bolso.</p><p>Um dia, o Senhor Duarte da Veterinária veio ter connosco quando estávamos no</p><p>Sá a contar filmes e anedotas e disse-nos:</p><p>— O rapazes, tenho uma coisa para vocês.</p><p>Claro que fomos todos atrás dele até ao muro da Veterinária.</p><p>— Oiçam, ó rapazes, tenho uma coisa para vocês — repetiu — depois de se sentar</p><p>ao alto do muro, com a malta em volta.</p><p>— É mesmo uma coisa para a malta.</p><p>Calou-se por um bocado e olhou para as nossas caras. «É uma coisa de malta,</p><p>mesmo de malta (agora só olhava para as unhas com os olhos quase fechados por</p><p>causa do fumo do cigarro). É coisa que eu com a vossa idade não deixaria de</p><p>fazer, se me pedissem para fazer. Bem, vocês sabem, o Doutor mandou-me dar</p><p>cabo de um cão, aquele, vocês conhecem-no, aquele que anda aí todo podre que é</p><p>um nojo, vocês não o conhecem?... Ora bem, o Doutor mandou-me dar cabo dele.</p><p>Bem, eu já o devia ter liquidado há mais tempo, mas o Doutor só me disse esta</p><p>manhã. Bem, acontece que eu tenho visitas em casa e é bera estar agora a pegar</p><p>em armas e zuca-zuca atrás de um cão, vocês compreendem, não é rapazes?... Mas</p><p>eu nem me afligi porque pensei cá para comigo — que diabo, os rapazes estão sem</p><p>fazer pêva e é para as ocasiões que a gente conta com os amigos — e pensei logo</p><p>em vocês, porque já se vê, vocês até devem gostar de mandar uns tiritos, hem?</p><p>Bem, calem-se não digam mais, eu já sabia que vocês são malta fixe. Olhem</p><p>Centro de Ensino à Distância 107</p><p>rapazes, vocês pegam aí numa corda qualquer, procuram lá o cão e levam-no para</p><p>o mato sem grandes alaridos e aí ferram-lhe uns tiritos nos cornos, que tal?... Está</p><p>bem, está bem, calma, deixem-me acabar de falar...</p><p>O Quim bateu-me na boca:</p><p>— Deixa ouvir o Senhor Duarte, caramba!</p><p>— Olhem, vocês, eu sei que vocês andam por aí aos tiros às rolas e aos coelhos,</p><p>olhem que eu sei... Mas deixem lá que eu não levo a mal, malta é malta, isto é</p><p>assim mesmo, eu só não quero é que façam as coisas à minha frente porque tenho</p><p>responsabilidades, vocês sabem. Ora vocês já têm armas e por isso não tenho de</p><p>vos emprestar as Ponto 22 daqui da Repartição, aliás uma chega, mas se vocês</p><p>quiserem fazer tiro ao alvo, eu não tenho nada com isso... Mas, pst, sem fazer um</p><p>cagaçal que se oiça aqui na vila!... Pronto, rapazes, ide, ido divertir-vos um</p><p>pedaço, mas cuidado lá com as armas, hem? Nada de desatar a ferrar tiros nos</p><p>cornos uns dos outros...</p><p>A malta pôs-se logo a correr, e o Senhor Duarte teve de se pôr de pé ao alto do</p><p>muro da Veterinária para nos chamar de novo. Depois esperou que chegássemos</p><p>bem ao pé dele para nos olhar bem na cara antes de falar com os olhos outra vez</p><p>quase fechados por causa do fumo do cigarro:</p><p>— Oiçam, rapazes, eu estou a falar entre homens, porra! Isto escusa de ser</p><p>propalado por aí aos quatro ventos, estão a ouvir? Eu só quis dar um prazer à</p><p>malta porque sei que vocês gostam de dar uns tiritos de vez em quando e eu não</p><p>levo a mal. ...Sim, sei que vocês gostam de dar por aí uns tiritos às rolas e aos</p><p>coelhos, mesmo sem terem licença de uso o porte de arma, para não falar na</p><p>licença de caça, e vocês sabem que se são apanhados por mim ou por um fiscal de</p><p>caça, chupam uns meses de prisão que se lixam. Mas deixa lá que eu não levo a</p><p>mal nem digo a ninguém que vocês usam as armas dos vossos pais ilegalmente.</p><p>Eu só quero que não me façam essas coisas mesmo debaixo do nariz, porque tenho</p><p>responsabilidades, vocês sabem. Eu não levo isso a mal, porque conheço bem a</p><p>malta, mas isto não é para ser espalhado por aí, vocês não acham?</p><p>De resto isto nem tinha de ser dito, porque estou a falar entre homens...</p><p>— Fique descansado. Senhor Duarte...</p><p>Foi o Quim.</p><p>— Pronto, rapazes, ide divertir-vos, mas pouco alarido...</p><p>O Sá, da varanda da loja, fazia-nos sinais para lhe irmos contar o que o Senhor</p><p>Duarte nos tinha dito, mas nós nem olhámos para lá. Fomos logo para a escola, e</p><p>no canto das camas de poeira das galinhas do Senhor Professor lá estava o Cão-</p><p>Tinhoso a dormir. Quando nos viu, levantou-se e veio por ali fora a cobrejar, todo</p><p>cansado, com as patas a tremer. Olhou para todos nós com os olhos azuis, sem</p><p>saber que nós queríamos matá-lo e veio encostar-se às minhas pernas. Depois de</p><p>estar um bocado assim encostado, deixou escorregar o traseiro e sentou-se. Eu</p><p>senti-o a tremer como não sei o quê, enquanto os outros combinavam, e via os</p><p>meus sapatos a brilhar onde ele os lambia.</p><p>— Ouve lá, tu deixas esse cão todo podre que é um nojo encostar-se a ti? — O</p><p>Faruk estava</p><p>sempre a meter-se comigo, mas o Quim queria combinar as coisas e não queria</p><p>ouvir o que ele dizia:</p><p>— Deixa lá, é preto e basta, deixa lá... Bem, malta, o cão não sai daqui e a gente</p><p>vai cada um para a sua casa buscar as armas e depois levamo-lo para a mata atrás</p><p>do matadouro e damos cabo dele, óquêi?</p><p>— Como é que o levamos? Eu é que não o levo às costas...</p><p>Centro de Ensino</p><p>à Distância 108</p><p>— Ó minha besta! — O Quim não gostava daquelas piadinhas. — E isso seria</p><p>demais? — Como é que vocês, os quadrúpedes, costumam levar as coisas? —</p><p>Depois virou-se para mim:</p><p>— Toucinho, tu trazes aquela corda que tens na tua casa debaixo do canhueiro.</p><p>— E quem é que leva o Cão? — (Eu não queria levar o Cão-Tinhoso).</p><p>— A gente depois atira uma moeda ao ar e vê quem é que o leva.</p><p>— Não me digam que este gajo também atira...</p><p>— Ó malta, vamos fazer o que o Senhor Duarte mandou ou não?</p><p>Fomos todos a correr para ir buscar as armas.</p><p>Quando cheguei a casa, a minha mãe estava sentada numa esteira mesmo à porta.</p><p>Escondi-me atrás de uma árvore para pensar como é que havia de levar a minha</p><p>Ponto 22 de um tiro sem ela se zangar, mas ela viu-me logo e chamou-me:</p><p>«Ginho! O que é que estás aí a fazer todo escondido?» — Corri para ela e entrei</p><p>em casa saltando-lhe por cima das pernas. «Eh! Que brincadeira é essa?» — Mas</p><p>eu já não a ouvia. Fui buscar a arma e voltei muito devagar, sem fazer barulho</p><p>nenhum, até ao corredor. Depois corri com força. — O que é isso? Para onde é</p><p>que levas a espingarda? Anda cá! Olha que eu faço queixa ao teu pai!</p><p>Só parei um bocado para levar o rolo de corda debaixo do canhueiro. Depois não</p><p>ouvi mais os berros dela. Enquanto corria para a escola fui pensando que afinal até</p><p>era bom matar o Cão-Tinhoso porque andava todo cheio de feridas que era um</p><p>nojo. E até era bem feito para a Isaura que andava cheia de manias por causa dele.</p><p>Quando cheguei à escola, apalpei o bolso da camisa para sentir as balas a</p><p>esfregarem-se umas nas outras. Bem, esqueci-me de dizer que, quando fui buscar</p><p>a espingarda, também levei algumas balas. Se as não levasse, como é que havia de</p><p>matar o Cão-Tinhoso?</p><p>Nós éramos 12 quando fomos para a estrada do Matadouro com o Cão-Tinhoso</p><p>O Quim, o Gulamo, o Zé, o Xangai, o Carlinhos, o Issufo e o Chico, iam pelo</p><p>meio da estrada com as espingardas apontadas para a frente. Atrás deles ia o</p><p>Faruk, que não tinha espingarda, a arrastar o Cão-Tinhoso pela corda. O Cão-</p><p>Tinhoso não queria andar e chiava que se danava, com a boca fechada. Nós, eu e o</p><p>Telmo de um lado, o Chichorro e o Norotamo do outro lado, íamos também</p><p>armados, meio metidos no capim, como o Quim tinha mandado, a bater o mato.</p><p>Eu não entrava muito pelo capim, porque, quando me aparecia uma micaia pela</p><p>frente, eu contornava-a pelo lado da estrada do Matadouro, por onde o resto da</p><p>malta ia, e volta e meia o Quim tinha de me perguntar se eu ia a bater o mato ou</p><p>quê, porque eu só queria era olhar para o Cão-Tinhoso, a chiar, que se danava e</p><p>mais aquele barulho de ossos lá dentro dele que às vezes ouvia quando o Faruk o</p><p>puxava com força, e mesmo lá na escola, no canto das camas de poeira das</p><p>galinhas do Senhor Professor, quando ele andava.</p><p>Quando chegámos ao matadouro os muleques do Costa vieram ver a malta a</p><p>passar:</p><p>— Onde vai jimininu? Leva xipingar, vai no caça? Mas aquele cão num prrêsta!</p><p>— Fora daqui, negralhada! — Era o Quim.</p><p>Os muleques julgaram que o Quim falava na brincadeira e não se mexeram, mas o</p><p>Quim apontou-lhes a arma e repetiu:</p><p>— Fora daqui, negralhada, fora daqui cabroada escura!</p><p>Desapareceram todos num instante, a correr, que batiam com os calcanhares no</p><p>cú, como dizia o Quim.</p><p>Avançámos para o mato, mas eu tinha a certeza de que eles nos estavam a seguir.</p><p>Centro de Ensino à Distância 109</p><p>— Ó pá, vocês ajudem-me, — era o Faruk — venha outro tipo puxar o sacana do</p><p>cão...</p><p>— Ó pá, mas a gente mandou uma moeda ao ar e ficaste tu...</p><p>— Então mandem outra vez...</p><p>— Bolas, assim não! Nós tínhamos combinado... Bem, óquêi... — O Quim</p><p>olhou para mim:</p><p>— Toucinho, anda tu!</p><p>— O pá, mas eu vou a bater o mato como tu disseste...</p><p>— O Faruk fica a bater o mato!</p><p>— O pá, não há o direito...</p><p>— Não há uma ova! Vai tu e não refiles! Dá a tua arma ao Faruk!</p><p>Os outros pararam um pouco atrás. Eu sabia disso, mas não fui capaz de parar. O</p><p>Cão-Tinhoso agora ia à frente de mim e eu é que andava devagar. Eu via-o de</p><p>cabeça esticada para a frente e de rabo espetado. Andava todo inclinado para a</p><p>frente, com as pernas a fazer músculos com o esforço de fugir da corda que lhe</p><p>apertava o pescoço.</p><p>Tínhamos entrado muito pelo mato adentro mas estávamos num sítio onde não</p><p>havia árvores e só havia capim. As árvores estavam à nossa frente e o Cão-</p><p>Tinhoso queria ir para lá. As vezes ele nem se via no capim alto, mas de vez em</p><p>quando andava tão depressa, que a corda se esticava e então eu tinha de andar um</p><p>pouco mais depressa para não sentir na mão, na cabeça, aqui dentro, no corpo</p><p>todo, a força dos ossos dele a chiar, a chiar e a chiar.</p><p>— Ei, para onde é que levas isso?</p><p>Parei e o peso veio todo na corda para dentro de mim.</p><p>Virei-me devagar e vi o Quim a meter um cartucho na Calibre 12 de Dois Canos.</p><p>— Ó Chico, o que é que dizes, SG ou 3A? — Agora falava com o Chico, com o</p><p>cartucho meio metido num dos canos e com o dedo a empurrá-lo devagarinho lá</p><p>para dentro da câmara.</p><p>— Ó Quim, pá, põe-lhe o número 4, não sejas bera que com isso escangalhas o</p><p>cão todo, pá...</p><p>— Ouve lá, para onde é que levas isso? — Eu estava parado, a sentir tudo aquilo</p><p>do Cão-Tinhoso que vinha pela corda esticada. O Cão-Tinhoso virou-se para mim</p><p>e atirou-se para trás de recuo a chiar por todos os lados. Eu sabia que ele me</p><p>estava a olhar com os olhos azuis, mas não pude deixar de olhar para a malta, que</p><p>estava a fazer meia roda, andando devagar e sem fazer barulho, sempre a armar e a</p><p>desarmar as espingardas. O Quim, em cima de uma pedra, olhava para mim com o</p><p>cartucho meio metido num dos canos da Calibre 12. 0 Faruk agarrava com força a</p><p>minha Ponto 22 de Um Tiro, e já lhe tinha metido uma bala expansiva na câmara.</p><p>Ele era o único que não estava sempre a mexer na culatra para armar e desarmar a</p><p>espingarda.</p><p>— Ó Quim, não atires com SG nem com 3A que isso é chato...</p><p>— Não atires, Quim, isso é bera...</p><p>— Assim, o gajo quina logo...</p><p>— O Quim, mete-lhe o número 4 ou outro número qualquer, o Senhor Duarte</p><p>disse que nós também podíamos atirar...</p><p>— Poça, Quim, isso não!</p><p>O Cão-Tinhoso já não fazia força e de repente senti a corda lassa. Daí a pouco o</p><p>Cão-Tínhoso encostava-se às minhas pernas, todo a tremer e a chiar baixinho.</p><p>Centro de Ensino à Distância 110</p><p>O Quim acabou de meter o cartucho num dos canos da espingarda e endireitou-a</p><p>devagar até fechar a câmara. A arma ficou voltada para mim. Eu não pude olhar</p><p>mais para lá, mas era por causa dos olhos do Quim, que me olhavam quase</p><p>fechados, a brilhar sem ele estar a chorar.</p><p>Eu é que tinha uma danada vontade de chorar mas não podia fazer isso com</p><p>aqueles todos a olhar para mim.</p><p>— Quim, a gente pode não matar o cão, eu fico com ele, trato-o das feridas e</p><p>escondo-o para não andar mais pela vila com estas feridas que é um nojo...</p><p>O Quim olhou para mim como se nunca me tivesse visto em nenhum lado, mas</p><p>respondeu aos outros:</p><p>— Vocês que se lixem, eu atiro com o cartucho que quero e pronto!</p><p>— Atiras um raio é que atiras! Não julgues que temos medo de ti!</p><p>O Quim olhou para o Gulamo e perguntou devagar e em voz baixa:</p><p>— Ó meu filho da mãe, queres que eu te rebente o focinho?</p><p>— Rebentas uma ova, tu aqui não armes em mandão que eu não tenho medo de ti!</p><p>O Gulamo tinha-se virado para o Quim, com arma e tudo.</p><p>— Ouve lá, queres ter alguma coisa comigo, monhé de um raio?</p><p>O Quim não teve medo da arma de Gulamo.</p><p>— Isso era o teu avô, meu labreguinho ordinário! Nunca te contaram isso lá na tua</p><p>aldeia? Seu maguerre!...</p><p>— Monhé! Filho de um corno!</p><p>— Ó Quim, não atires com SG nem 3A que isso é ser chato...</p><p>— Não atires, Quim, isso é bera...</p><p>O Quim tinha descido da pedra e avançava para o Gulamo.</p><p>— Ó Quim, mete-lhe o número 4 ou outro número qualquer, o Senhor Duarte</p><p>disse que</p><p>nós também podíamos atirar...</p><p>— Poça, Quim, isso não!</p><p>O Cão-Tinhoso chiava baixinho e roçava-se pelas minhas pernas a tremer. O</p><p>Faruk agarrava a minha espingarda com força e apontava-a para mim com as</p><p>pernas afastadas, mas olhava para o Cão-Tinhoso, com os olhos grandes de medo.</p><p>Os outros todos ficavam também com os olhos cheios de medo quando olhavam</p><p>para os olhos azuis do Cão-Tinhoso.</p><p>— Eh, malta, vamos acabar com isto que é tarde e está quase escuro. Vocês não</p><p>desatem aqui aos tiros para os cornos um do outro... O Quim parou e virou-se para</p><p>o Xangai:</p><p>— Cornos tem o teu pai, estás a ouvir? Eu não deixo que um monhé abuse sem</p><p>levar na cara! De mim ninguém se fica a rir... E se ladras mais também comes no</p><p>focinho... Tu ou qualquer outro! Vocês todos estão a ouvir?</p><p>O Quim gritava como um doido, mas o Gulamo não tinha medo dele porque</p><p>começou a arregaçar as mangas da camisa.</p><p>Já estava quase escuro e o Cão-Tinhoso tremia contra as minhas pernas como não</p><p>sei quê.</p><p>— Eh pá, vamos deixar isto para o outro dia — o Faruk olhava para o brilho do</p><p>cano da Ponto 22 de Um Tiro — vamos deixar isto para amanhã ou outro dia...</p><p>Ele talvez ficasse por aqui, mas como o Quim deixasse de berrar para ouvir o que</p><p>ele dizia, continuou:</p><p>— E que já está quase escuro e podíamos ferir alguém sem querer, no escuro, com</p><p>tantas espingardas...</p><p>O Quim gritou logo:</p><p>— Ó meus filhos da mãe, vocês estão com medo?</p><p>Centro de Ensino à Distância 111</p><p>Só eu é que respondi:</p><p>— Eu estou com medo — custou-me dizer aquilo porque mais ninguém estava</p><p>com medo, mas foi melhor assim — Eu estou com medo, Quim...</p><p>Apesar de já estar quase escuro eu via os meus sapatos a brilhar nos sítios onde o</p><p>Cão-Tinhoso os lambia. Mesmo com o capim e tudo. O Quim e a outra malta</p><p>riam-se com força e o Gulamo rebolava no capim de tanto se rir por eu ter medo.</p><p>— Esta é forte, malta — dizia o Quim, com a boca toda aberta com os olhos a</p><p>chorar de tanto rir.</p><p>— Esta é que foi — dizia o Gulamo que nem se via por estar a rebolar no capim.</p><p>Os outros riam-se muito, também.</p><p>Parece que eu tive muita vergonha por ter dito aquilo.</p><p>Voltei a sentir um peso monstro dentro de mim e no pescoço.</p><p>Eu não me mexia para os outros não se rirem mais de mim, mas as pernas</p><p>tremiam-me por causa do Cão-Tinhoso, a tremer encostado a elas.</p><p>— Esta é forte! — O Quim berrava outra vez.</p><p>— Esta é forte! O Gulamo dizia isto enquanto rebolava no capim de tanto se rir de</p><p>mim. — Esta é forte...</p><p>Os outros, às vezes calavam-se, e só o Quim é que se ria sempre, sempre e cada</p><p>vez com mais força. Os outros ouviam-no quando se calavam e voltavam a rir-se</p><p>com força como ele. E riam-se, riam-se, riam-se enquanto o peso no meu pescoço</p><p>e cá dentro aumentava cada vez mais. Parece que nunca mais acabavam de se rir, e</p><p>eu com aquilo só tinha vontade de chorar ou de fugir com o Cão-Tinhoso, mas</p><p>também tinha medo de voltar a sentir a corda a tremer de tão esticada, com o chiar</p><p>dos ossos a querer fugir da minha mão, e com os latidos que saíam a chiar,</p><p>afogados na boca fechada como ainda há bocado. Sim, eu nunca mais queria</p><p>voltar a sentir isso.</p><p>O Quim estava de novo em cima da pedra mas ainda se ria de vez em quando e</p><p>dizia esta é forte, esta é forte.</p><p>O Gulamo estava ajoelhado, sentado sobre os calcanhares e com a camisa limpava</p><p>a cara das lágrimas que saltaram dos olhos de tanto se rir de mim por eu ter medo</p><p>e também dizia esta é forte, esta é forte.</p><p>Os outros já não se riam mas de vez em quando concordavam com o Quim e com</p><p>o Gulamo nisso de esta é forte, esta é forte.</p><p>Já estava quase escuro e o Quim, do alto da pedra, disse para a malta:</p><p>— Eh, malta, agora é que vai ser: Eh! Toucinho, desata a corda!</p><p>Mas eu não era capaz de me mexer, todo envergonhado e com o pescoço a doer</p><p>como não sei o quê.</p><p>— Eh, malta, vocês nunca me viram a matar um preto?</p><p>— O Quim aproximou-se de mim: «Eh, Toucinho, desata a corda!»</p><p>O Gulamo aproximou-se também. «Eh, Toucinho, desata a corda».</p><p>O nó estava feito de tal maneira que custava a desatar, e eu não tinha força</p><p>nenhuma nos dedos. Tinha vontade de chorar ou fugir com o cão e tudo.</p><p>— Anda lá, senão rebentamos contigo, preto de um raio!</p><p>— Anda lá com isso, caramba, — agora era o Faruk — anda lá com isso, preto de</p><p>um raio!...</p><p>No pescoço, as feridas do Cão-Tinhoso já não tinham crosta por causa da corda,</p><p>mas só saía delas uma aguadilha vermelha que me molhava as mãos.</p><p>— Anda lá, não tentes ser besta,Toucinho!</p><p>Quando acabei de desapertar o nó, agarrei a corda com força para ela não cair e</p><p>continuei a mexer no pescoço do cão, mesmo com os olhos fechados.</p><p>Centro de Ensino à Distância 112</p><p>— Eu tenho medo, desculpa-me Cão-Tinhoso — eu disse aquilo tão baixinho que</p><p>só o Cão-Tinhoso me podia ouvir— eu tenho medo, Cão-Tinhoso. — Eu vou</p><p>pedir isso ao Quim e à malta, e eles deixam com certeza, e eu levo-te e trato-te e</p><p>depois vais outra vez dormir para as camas de poeira das galinhas do Senhor</p><p>Professor. Eu vou pedir ao Quim e à malta e eles deixam. Mas, não me olhes</p><p>como se eu tivesse culpa, Cão-Tinhoso! Desculpa, mas eu tenho medo dos teus</p><p>olhos...</p><p>Abri os olhos e o Cão-Tinhoso estava com os olhos em cima de mim, como se não</p><p>tivesse percebido o que eu tinha pedido. Tive de desviar a cara depressa e por isso</p><p>a corda caiu-me das mãos...</p><p>— Ei, o que é que estás para aí a dizer? O quê, já acabaste?</p><p>— Quim, a gente pode não matar o cão, eu fico com ele, trato-lhe as feridas e</p><p>escondo-o para não andar mais pela vila com estas feridas que é um nojo!...</p><p>O Quim não queria saber do que eu estava a dizer e, por isso, agarrou-me pela</p><p>gola da camisa e perguntou-me o que é que eu estava para ali a dizer.</p><p>O Cão-Tinhoso tremia, cada vez mais enfiado nas minhas pernas com o rabo a dar</p><p>e a dar e eu empurrei o Quim para voltar a agarrar a corda no pescoço do cão para</p><p>os outros não verem.</p><p>— O que é que estás a dizer? — Era o Gulamo.</p><p>O Cão-Tinhoso olhava-me com força. Os seus olhos azuis não tinham brilho</p><p>nenhum, mas eram enormes e estavam cheios de lágrimas que lhe escorriam pelo</p><p>focinho. Metiam medo aqueles olhos, assim tão grandes, a olhar como uma pessoa</p><p>a pedir qualquer coisa sem querer dizer. Quando eu olhava agora para dentro</p><p>deles, sentia um peso muito maior do que quando tinha a corda a tremer de tão</p><p>esticada, com os ossos a querer fugir da minha mão e com os latidos que saíam a</p><p>chiar, afogados na boca fechada.</p><p>Eu tinha uma danada vontade de chorar mas não podia fazer isso com a malta toda</p><p>a olhar para mim.</p><p>O meu braço estava todo molhado pelo sangue das feridas do pescoço do Cão-</p><p>Tinhoso, mas tinha de me abaixar um pouco mais, só mais um bocadinho, para</p><p>apanhar a corda.</p><p>O Faruk falava muito baixinho e depressa. Devia estar outra vez a olhar para o</p><p>brilho do cano da espingarda:</p><p>— Vamos deixar isto para outro dia, pá... Damos cabo do cão amanhã ou</p><p>outro dia...</p><p>Calou-se mas continuou logo:</p><p>— E que já está quase escuro e podíamos ferir alguém sem querer, no escuro com</p><p>tantas</p><p>espingardas...</p><p>— Quim, eu não quero dar o primeiro tiro... (Eles queriam que eu desse o primeiro</p><p>tiro).</p><p>— Anda lá, anda lá, não tenhas medo...</p><p>— Sabes, Quim, é que eu não quero matar o Cão-Tinhoso... O meu pai é</p><p>capaz de me bater quando souber... eu não quero, não...</p><p>— Vamos, pá. Eu disse-te que só davas o primeiro tiro, e é só isso o que vais</p><p>fazer.</p><p>— E que, sabes, pá... O meu pai lá em casa... Eu vou-me embora, ele está à minha</p><p>espera... Se chego tarde, ele bate-me... Bate-me, Quim, da outra vez bateu-me...</p><p>Centro de Ensino à Distância 113</p><p>— Vamos, vamos, deixa-te dessas coisas, não sejas medroso... Já viram isto,</p><p>malta, um de nós a borrar-se todo por causa do cão... E</p><p>que eu não sei porque é</p><p>que este tipo anda connosco se não é macho de verdade... Já viram?</p><p>— Eu não me estou a borrar todo, Quim, eu só não quero dar o primeiro tiro... E</p><p>que eu sou um bocado amigo do cão e é chato ser eu a dar o primeiro tiro...</p><p>— Isso são desculpas, isso são desculpas... Tu não és macho, como a gente...</p><p>Maricas! Não tens vergonha? Dá lá o tiro, anda...</p><p>— Merda para ti, caramba! — Era o Gulamo — Preto de merda!</p><p>— Dispara, pá, não sejas medroso... Até parece que é a primeira vez que agarra</p><p>numa arma...</p><p>— Quim, eu não quero dar o primeiro tiro...</p><p>— Se continuas assim a gente depois conta lá na escola que tu tiveste medo de</p><p>matar o cão, que começaste com cagufas... A gente vai dizer que te borraste todo...</p><p>A gente vai contar isso, palavra que vai contar...</p><p>— Quim, eu não tenho cagufa nem nada, não tenho medo de matar o cão... É só</p><p>porque o meu pai está à espera lá em casa...</p><p>— Se em vez de estares aí a falar tivesses dado o tiro, já estaríamos despachados.</p><p>Anda lá, não sejas medroso!</p><p>— Medroso, me-dro-so! me-dro-so!</p><p>— Eu não sou medroso! Já disse, não sou medroso!</p><p>— És, és, és... Atira se não és! Atira!</p><p>— Atiro, sim, e depois? Eu mando já um tiro no sacana do cão...</p><p>— Isso é que é falar!... O Quim abraçou-me.</p><p>Eu tinha a arma apontada mas o Cão-Tinhoso fartava-se de dançar no ponto de</p><p>mira. O Quim não saía do meu lado:</p><p>— Não atires a matar, estás a ouvir? Mas se quiseres, podes atirar... Sabes, é só</p><p>porque tu estavas todo cheio de cagufa e era preciso mostrar à malta que não és</p><p>maricas. E por isso que tu és o gajo que vai dar o primeiro tiro... Eu se fosse a ti</p><p>atirava a matar e despachava o gajo logo... Não há azar nenhum nisso, foi o</p><p>Senhor Duarte que mandou... E assim poupavas o trabalho à malta. E que um tipo</p><p>chega para matar o cão, e escusávamos de encher o gajo de chumbo, que isso é</p><p>ser maldoso e se o Padreca souber disso é capaz de andar para aí a dizer que nós</p><p>somos ordinários. Sabes, Ginho... Eu acho que o Doutor da Veterinária devia ter</p><p>liquidado o sacana do cão com uma droga qualquer... Eu li numa revista que na</p><p>América os cães matam-se com drogas... Sim, lá na América, quando um Doutor</p><p>da Veterinária quer matar um cão que anda lá nas ruas cheio de feridas que é um</p><p>nojo, dá-lhe uma droga qualquer... Só para mostrar ao Doutor que ele não percebe</p><p>nada disto a malta devia não matar o cão... Não era por medo nem por nada, mas</p><p>era para o gajo ver... Ginho, não achas que devia ser assim? Não, não achas?</p><p>Hem?</p><p>— O Quim, pá, não podes conversar mais tarde com esse tipo? — Era o Gulamo.</p><p>— Sabes, pá... Eu estava a dizer aqui ao Ginho uma coisa bestial!.,. Não era,</p><p>Ginho? E uma coisa que a malta devia fazer, não era Ginho?</p><p>— Está bem, está bem, contas isso depois, agora vai para o teu lugar e deixa o tipo</p><p>dar o primeiro tiro para a malta atirar também... Ou será que o gajo voltou a ficar</p><p>com medo de atirar?</p><p>— Eu não estou com medo, já disse! — Eu virei-me para o Gulamo — Eu atiro</p><p>já...</p><p>— Está bem, está bem, eu só queria saber... Vamos, Quim, vai para o teu lugar...</p><p>Ou também estás com medo?</p><p>Centro de Ensino à Distância 114</p><p>O Quim riu-se como se aquilo fosse uma piada e foi com a arma dele para cima da</p><p>pedra. Quando lá chegou, gritou para mim:</p><p>— Então, atiras ou não?</p><p>A minha Ponto 22 de Um Tiro (a que estava com o Faruk) estava com um peso</p><p>danado, e por isso o Cão-Tinhoso fartava-se de dançar no ponto de mira. Só os</p><p>olhos dele é que não se mexiam nada e olhavam sempre para mim. Comecei a</p><p>puxar o gatilho muito devagar.</p><p>«Desculpa-me, Cão-Tinhoso, mas não vou atirar a matar»... Eu disse aquilo muito</p><p>baixinho, e só o Cão-Tinhoso é que ouvia. Eu só havia de dar o primeiro tiro</p><p>porque a malta queria que fosse eu, mas não havia de matar o Cão-Tinhoso! «E</p><p>que eu tenho medo, eu tenho medo, Cão-Tinhoso, mas eu vou atirar para a malta</p><p>não dizer que eu tenho cagufa».</p><p>Depois vi que afinal não estava a puxar o gatilho, porque tinha o dedo no guarda-</p><p>mato. Comecei a puxar o gatilho devagar para ter tempo de dizer tudo ao Cão-</p><p>Tinhoso: «Eu não tenho outro remédio, Cão-Tinhoso, eu tenho de atirar... Eu estou</p><p>cheio de medo, desculpa, Cão-Tinhoso... Deixa-me atirar e não me olhes dessa</p><p>maneira... Eu estou é com medo, estás a ouvir?... Estou com medo!... Se pudesse,</p><p>fugia e levava-te comigo. E depois tratava-te e nunca mais aparecias pela vila com</p><p>essas feridas que é um nojo, mas o Quim...»</p><p>A folga do gatilho acabou de repente e o peso da mola era tal, que o Cão-Tinhoso</p><p>dançava ainda mais sob o ponto de mira da minha arma. Tive de fechar os olhos e</p><p>era por causa dos olhos do Cão-Tinhoso, que estavam parados e olhavam para</p><p>mim muito quietos, mesmo quando ele dançava no ponto de mira.</p><p>— Vamos, pá, atira lá que nós estamos à espera de ti; mostra que és teso e que</p><p>podes continuar com a malta!...</p><p>A mola ia cedendo aos poucos e cada vez estava mais pesada. A tensão iria</p><p>aumentar até o cão saltar e perfurar a bala. Então não haveria mais resistência e o</p><p>gatilho viria até ao fim, com o estoire do cartucho na câmara e o ligeiro coice da</p><p>coronha. Tinha de falar mais depressa para acabar de dizer tudo antes do estoire, e</p><p>não podia abrir os olhos senão veria os olhos do Cão-Tinhoso e não seria capaz de</p><p>atirar.</p><p>«Não vais sofrer nada, porque o Quim meteu na Calibre 12 mais um cartucho SG,</p><p>e os outros também vão atirar ao mesmo tempo. Não te vai doer, tu ainda estás a</p><p>pensar em qualquer coisa e já estás morto e não sentes mais nada, nem as feridas a</p><p>doer por causa da corda nem nada...»</p><p>— Porra, atiras ou não, preto de merda?</p><p>«Tu morres e vais para o Céu, direitinho ao Céu... Vais gozar lá no Céu... Mas</p><p>antes disso eu hei-de enterrar o teu corpo e hei-de pôr uma cruz branca... E tu vais</p><p>para o limbo...</p><p>Sim, antes de ires para o Céu, vais para o limbo, como uma criança pequena...</p><p>Estás a ouvir, Cão-Tinhoso?»</p><p>A Senhora Professora perguntou se os nossos pais não nos davam educação lá em</p><p>casa e nós nunca mais falámos sobre o Cão-Tinhoso, mesmo quando estávamos no</p><p>Sá.</p><p>Logo depois do esteiro ouvi um grito monstro e nada mais. O meu tiro devia ter</p><p>mgoado muito o Cão-Tinhoso para ele gritar como uma pessoa. Fiquei sem saber</p><p>o que havia de fazer porque logo depois, o Cão-Tinhoso começou a gemer como</p><p>uma criança.</p><p>Centro de Ensino à Distância 115</p><p>Fui afastando as mãos da cara e depois abri os olhos. A Isaura estava agarrada ao</p><p>Cão-Tinhoso e era ela quem estava a gemer, mas não sei se não teria sido mesmo</p><p>o Cão-Tinhoso quem gritara ainda há bocado. A malta estava toda de boca aberta</p><p>a olhar para aquilo e só se ouvia a Isaura a gemer muito alto e a olhar para todos</p><p>os lados com os olhos todos saídos e muito agarrada ao Cão-Tinhoso.</p><p>O Quim foi o primeiro a falar:</p><p>— O que é que esta tipa veio para aqui fazer?</p><p>O Gulamo também tinha a voz rouca:</p><p>— Se calhar foram os pretos do Costa que lhe disseram...</p><p>Os muleques do Costa estavam por detrás da malta, disfarçados no escuro dos</p><p>troncos das árvores, e com as mãos cruzadas sobre o peito e os olhos todos saídos.</p><p>Todos eles iam dizendo «Hi!» e «He!», a olhar para a malta. O capataz dos</p><p>moleques do Costa escondeu-se ainda mais no tronco de uma micaia e falou com</p><p>os braços a voar para todos os lados:</p><p>—A nós não tem curpa! Ele que veio pruguntar, e gente veio com ele para ver</p><p>jimininu cum cão! A nós não tem curpa, só veio ver matar cão! Não tem curpa!...</p><p>— Ah, negros cabrões! — O Quim apontou-lhes a Calibre 12 de Dois Canos.</p><p>— Num mata nós, num tira, patrão... Hi! — e desapareceram todos com um</p><p>cagaçal medonho pelas micaias, a gritar «HÍ!» e «Hi!».</p><p>O Quim virou-se para a Isaura, que estava meio escondida no capim e com os</p><p>olhos todos de fora, a olhar para a malta e a gemer:</p><p>— Ó tipinha, não te disseram que nós não queremos fêmea a esta hora? O que é</p><p>que</p><p>vieste para aqui fazer? Não queremos gajas a atrapalhar o que nos mandaram</p><p>fazer, ouviste?</p><p>A Isaura não dizia nada e só gemia para a malta.</p><p>Ficou tudo calado por um instante e a malta a olhar uns para os outros, sem saber</p><p>o que fazer.</p><p>— Eh, malta, temos de matar o cão... Foi o Senhor Duarte quem mandou... Ele</p><p>disse que contava connosco... — O Quim já não estava rouco. — Estamos aqui a</p><p>demorar isto não sei porquê...</p><p>— Quem é que está com cagaço? Quem é que se borra nas calças?...</p><p>— Eu não!...</p><p>— Eu não!...</p><p>— Eu não!...</p><p>Toda a malta disse eu não e ficaram a olhar para mim a ver o que eu dizia.</p><p>— Eu não estou com cagaço, Quim... Eu não me vou borrar nas calças, Quim... —</p><p>Eu estava a tremer todo quando disse aquilo, mas garanto que não estava com</p><p>medo nem nada. Então a gente não tinha vindo para matar o cão que andava todo</p><p>podre que era um nojo? Foi o Senhor Duarte que disse, e porque é que não</p><p>havíamos de dar uns tirites? Eu estava era com pena de o matar depois de ele</p><p>correr uma distância monstra para não morrer por causa da bomba atómica e mais</p><p>nada.</p><p>— Ginho, tira a gaja de cima do cão!</p><p>O Quim falava sem olhar para mim.</p><p>O Faruk veio buscar a Ponto 22 de Um Tiro, que me tinha caído das mãos quando</p><p>disparei, e voltou para o lugar dele.</p><p>— Então, Ginho, estás com cagaço ou quê?</p><p>—Não, Quim, não estou com cagaço, nem nada... Estou só a pensar...</p><p>Centro de Ensino à Distância 116</p><p>— Pensas depois. Agora vai tirar a gaja do cão. — O Quim falava sem olhar para</p><p>mim, só a malta é que não tirava os olhos de cima de mim, para ver se eu tinha</p><p>cagaço ou não.</p><p>— Anda lá depressa, que já está escuro... O Senhor Duarte disse para</p><p>despacharmos o cão num instante...</p><p>A Isaura gemia e olhava para a malta com os olhos todos de fora. Fui andando</p><p>para onde a Isaura e o Cão-Tinhoso estavam, e ela, quando me via a ir para lá,</p><p>gemia cada vez mais de alto.</p><p>— Isaura, sai daí...</p><p>— Tira a gaja, não vês que ela não quer sair?...</p><p>— Isaura... A gente quer fazer o que nos mandaram fazer... Sai daí...</p><p>— Mas que burro que ele é!... Arranca a tipa, não ouves?</p><p>Agarrei-a por debaixo dos braços e ela sacudiu-se toda para que eu a deixasse. Fiz</p><p>mais força mas ela dobrava as pernas e não ficava de pé. Mas já não lutava como</p><p>no princípio e só gritava como se eu lhe estivesse a bater.</p><p>— Isaura, não vês que foi o Senhor Duarte que mandou?</p><p>— O Xangai também queria explicar aquilo à Isaura.</p><p>Puxei-a devagarinho e ela largou o pescoço do Cão--Tínhoso, que ficou a olhar</p><p>para ela e a ganir com a boca fechada como ainda há pouco.</p><p>— Isaura...</p><p>O Quim estava em cima da pedra e toda a malta apontava as espingardas para o</p><p>cão.</p><p>— Isaura... — Eu queria dizer-lhe qualquer coisa mas não sabia o quê.</p><p>— Ummmm... — O Quim começou a contar.</p><p>Todos haviam de atirar ao mesmo tempo e por isso as balas não haviam de ser</p><p>muito custosas para o Cão-Tinhoso.</p><p>Ele estava ainda a pensar em qualquer coisa e já estava morto.</p><p>— Isaura... O Cão-Tinhoso deve já ter visto que os outros cães não querem brincar</p><p>com ele... Ninguém gosta dele... Eu nunca vi ninguém a passar-lhe a mão pelas</p><p>costas como se faz com os outros cães...</p><p>— Dooooooiiiis... (O Quim levou um tempo enorme a dizer dois).</p><p>— Ele deve saber que é melhor morrer do que aturar aquilo tudo, os miúdos de</p><p>primeira classe a atirar-lhe pedras e a fazer rodinhas para lhe chamar Cão-</p><p>Tinhoso, a Senhora Professora a dizer-lhe suca e o Senhor Administrador a</p><p>mandar o Doutor da Veterinária matá-lo por ele ter feridas por causa da bomba</p><p>atómica...</p><p>— liiiii...</p><p>A Isaura gemia e estava toda mole, a não querer andar e com os olhos todos saídos</p><p>a olhar o Cão-Tinhoso. Eu também tinha pena de ver o Cão-Tinhoso a morrer, mas</p><p>não adiantava nada levá-lo para casa e tratar-lhe as feridas e fazer uma casinha</p><p>para ele dormir, porque ele era capaz de não gostar disso. Eu sabia que ele já sabia</p><p>de muitas coisas para só querer o que qualquer cão podia ter. O Cão-Tinhoso</p><p>devia estar à espera de qualquer coisa diferente do que os outros cães costumam</p><p>ter, sempre com os olhos azuis a olhar, mas tão grandes que parecia uma pessoa a</p><p>pedir qualquer coisa sem querer dizer. E mesmo quando olhava para os outros</p><p>cães, para as árvores, para os carros a passar, para as galinhas do Senhor Professor</p><p>a debicar no chão por entre as patas dele, para os miúdos de primeira classe a</p><p>jogar berlindes ou outra coisa qualquer, para o Senhor Administrador e para os</p><p>outros a jogar à sueca na varanda do Clube</p><p>Centro de Ensino à Distância 117</p><p>aos sábados à tarde, para o Quim a contar coisas na loja do Sá, para a Isaura a dar-</p><p>lhe o lanche e a falar com ele, sempre quando olhava, estava a pedir qualquer</p><p>coisa que eu não entendia mas que não devia ser só para lhe tratarem as feridas,</p><p>para lhe darem de comer ou para lhe fazerem uma casinha.</p><p>— TRÊS!</p><p>Ficou tudo parado e até a Isaura calou-se e ficou dura.</p><p>— Atirem, porra!</p><p>— Isaura... — Eu queria dizer-te qualquer coisa, queria dizer-te tudo o que estava</p><p>a pensar.</p><p>— Poça, ninguém atira?</p><p>— Hum?... — A Isaura olhava para mim com aqueles olhos todos.</p><p>— A gente não pode dar nada ao Cão-Tinhoso... A gente não sabe o que ele quer.</p><p>Palavra que a gente não sabe...</p><p>A Isaura ficou a olhar para mim sem ter compreendido, porque eu falei muito</p><p>depressa.</p><p>— Eu vou contar outra vez até três, mas ai do gajo que não atirar!...</p><p>— Isaura!...</p><p>— Um... Dói... zi... Três!...</p><p>Logo ao primeiro tiro a Isaura agarrou-se-me de tal maneira que caímos, e eu</p><p>fiquei com tanto medo que lhe gritei: «Tapa-me os ouvidos!» Ela meteu-se toda</p><p>no meu peito e procurou-me as orelhas com as mãos. Os tiros rebentavam por</p><p>todos os lados e mesmo com os olhos fechados eu via fogo a saltar dos canos das</p><p>espingardas. O corpo da Isaura estava duro e estremecia a cada esteiro.</p><p>Os tiros rebentavam sem parar, mas quando a Calibre 12 de Dois Canos do Quim</p><p>disparava, o chão tremia e as árvores faziam «Haa!..,» até ao longe. O cão já devia</p><p>estar morto mas eles continuaram a atirar. Sentia o ar quente como o corpo da</p><p>Isaura e tinha a boca cheia de pólvora, e isso dava--me uma danada vontade de</p><p>tossir, mas não conseguia fazer isso porque estava cheio de medo do assobiar das</p><p>balas que passavam por cima de nós; é que esse assobiar só acabava noutro</p><p>esteiro, que também não tinha eco porque mesmo antes de a bala acabar de</p><p>assobiar o mato rebentava com outro estoiro.</p><p>Os tiros acabaram de repente e a Isaura ficou como morta, por cima de mim, mas</p><p>muito rija. Quando ia a sacudi-la, vi por entre o capim o Quim a meter um</p><p>cartucho na câmara e a fechá-la. O mato todo estava ainda cheio do barulho dos</p><p>tiros a afastar-se de nós, quando do buraco escuro do cano da Calibre 12 brilhou</p><p>um fogo rápido e quase branco e ao mesmo tempo se ouviu o esteiro. A Isaura deu</p><p>um berro com toda a força e voltou a enfiar-se pelo meu corpo.</p><p>Depois, ao mesmo tempo que o estoiro ia rebentando pelo mato fora, cada vez</p><p>mais longe, ouviam-se outra voz os gemidos da Isaura. Eu sentia a barriga dela</p><p>muito quente e suada, toda colada à minha.</p><p>— Chega, malta, vamos embora — O Quim estava mais rouco do que ainda há</p><p>bocado. A nossa volta o capim fazia «fff-fff» quando eles andavam.</p><p>— Ó pá, quando mandei o SG, o tipo comeu em cheio no peito... Eu vi-o levantar-</p><p>se todo do chão e a enterrar-se todo no capim... Ainda ressaltou como se fosse de</p><p>borracha, vocês não viram?</p><p>— Eu acertei-lhe no olho esquerdo quando o tipo ainda estava de pé. O focinho</p><p>até lhe ficou todo para o lado com a força da bala...</p><p>Centro de Ensino à Distância 118</p><p>— ... E depois meti dois as e mandei-os quase ao mes-mo tempo para os cornos</p><p>do gajo. O tipo deve ter ficado com a cabeça toda rebentada...</p><p>— Ó pá, tu com o SG mataste-o logo... A gente atirou para um alvo já</p><p>morto...</p><p>— E depois? O que é que tens com isso?... Eu atiro com o que bem me apetece...</p><p>A Isaura gemia para mim e chorava baixinho, sem lhe saírem lágrimas dos olhos.</p><p>O cabelo dela estava cheio de capim mas só cheirava à pólvora quando se me</p><p>metia pelo</p><p>nariz adentro.</p><p>— Isaura...</p><p>A barriga dela ficou dura, toda colada à minha.</p><p>— Vamos embora...</p><p>As unhas dela furavam-me o pescoço, mas eu gostava e não me mexia.</p><p>— Isaura...</p><p>A cara dela estava quente como a barriga.</p><p>— Eu só gostava de saber o que é que aqueles dois estão para ali a fazer</p><p>escondidos no capim há uma data de tempo...</p><p>— Foi o Quim.</p><p>A Isaura levantou-se logo e pôs-se a compor o vestido, toda envergonhada. Depois</p><p>olhou para mim e fugiu para as árvores. Durante algum tempo ainda ouvimos o</p><p>barulho do vestido dela a rasgar-se pelas micaias, mas depois ficou tudo em</p><p>silêncio.</p><p>— Vamos embora!...</p><p>O Quim veio ter comigo no intervalo do lanche. Eu vi que era ele mesmo sem</p><p>deixar de olhar para os cães a brincar do outro lado da estrada.</p><p>— Ginho...</p><p>—Diz.</p><p>— Isto é uma chatice...</p><p>—É...</p><p>Sentou-se nas escadas ao pé do mim e ficou também a olhar para os cães.</p><p>— Eles não queriam brincar com o Cão-Tínhoso — apontava para eles — eles não</p><p>queriam brincar com o Cão-Tinhoso !...</p><p>Falava com muita força e espalhava os braços para todos os lados. — Foste tu que</p><p>me contaste isso, não foste?...</p><p>Os sapatos da Senhora Professora faziam «cóc, cóc, cóc», atrás de nós, mas como</p><p>eu estava a conversar com o Quim e a olhar para outra coisa, não precisava de me</p><p>levantar.</p><p>— Sabes?... A Isaura foi dizer ao pai que nós...</p><p>— O quê?</p><p>— Ela pediu ao pai para nos bater...</p><p>— Bater?... Porquê?</p><p>— Porque nós matamos, o Cão-Tinhoso !...</p><p>E ria-se com força, todo torcido. — Não é tramada? E esta, heim?... Bater-nos</p><p>porque nós matamos o Cão-Tinhoso !...</p><p>Depois calou-se. Aí falou a Senhora Professora:</p><p>— Meninos, para a aula!</p><p>— Ginho... Tu passas-me a prova? — O Quim abraçou-me pelos ombros. —</p><p>Deixas-me</p><p>Centro de Ensino à Distância 119</p><p>copiar?...</p><p>— Está bem.</p><p>— Ginho... Tu estás zangado comigo? A gente não devia ter liquidado o cão?...</p><p>Foi o Senhor Duarte que mandou... Tu também estavas lá...</p><p>— Eu não estou zangado nem nada...</p><p>— Então passas-me os problemas?... Passas-me?.,. Eu faço-te o desenho...</p><p>— Está bem.</p><p>— Meninos! Para a aula! Para a aula, já disse!</p><p>E fomos para a aula.</p><p>Interpretação global do conto</p><p>A Estrutura Interna</p><p>1. Divida o conto em três partes:</p><p>A – Antes da morte do Cão –Tinhoso.</p><p>B – A morte do Cão- Tinhoso.</p><p>C – Depois da morte do Cão- Tinhoso.</p><p>A – Antes da morte do Cão –Tinhoso.</p><p>1. As Personagens</p><p>1.1. Indique as personagens desta parte do conto.</p><p>1.2. Refira quais as principais.</p><p>1.3. Aponte as personagens secundárias.</p><p>2. Proceda à caracterização da(s) personagem(ns) principal(is).</p><p>2.1. Recolha do texto as expressões que fundamentam as suas afirmações.</p><p>2.2. A caracterização das personagens é directa ou indirecta? Justifique a</p><p>resposta.</p><p>3. O espaço</p><p>3. Indique o(s) espaço(s) onde decorre a acção.</p><p>3.1. Caracterize esse(s) espaço(s).</p><p>4. O tempo</p><p>4.1. Retire do texto expressões que permitam localizar os acontecimentos no</p><p>tempo (quer o histórico, quer o cronológico).</p><p>5. A acção</p><p>5.1Escolha um ou dois parágrafos que mais o/a impressionaram. Justifique a sua</p><p>escolha.</p><p>5.2O conto tem as suas sequências organizadas por encadeamento, alternância ou</p><p>encaixe? Justifique.</p><p>6. O Narrador</p><p>6.1. Classifique o narrador quanto à presença e à ciência.</p><p>B – A morte do Cão- Tinhoso</p><p>1. As Personagens</p><p>1.1. Indique as personagens desta parte do conto.</p><p>1.2. Refira quais as principais.</p><p>1.3. Aponte as personagens secundárias.</p><p>Centro de Ensino à Distância 120</p><p>2. Proceda à caracterização da(s) personagem(ns) principal(is).</p><p>2.1. Recolha do texto as expressões que fundamentam as suas afirmações.</p><p>2.2. A caracterização das personagens é directa ou indirecta? Justifique a</p><p>resposta.</p><p>3. O espaço</p><p>3. Indique o(s) espaço(s) onde decorre a acção.</p><p>3.1. Caracterize esse(s) espaço(s).</p><p>4. O tempo</p><p>4.1. Retire do texto expressões que permitam localizar os acontecimentos no</p><p>tempo (quer o histórico, quer o cronológico).</p><p>5. A acção</p><p>5.1Escolha um ou dois parágrafos que mais o/a impressionaram. Justifique a sua</p><p>escolha.</p><p>5.2. O conto tem as suas sequências organizadas por encadeamento, alternância ou</p><p>encaixe? Justifique.</p><p>6. O Narrador</p><p>Classifique o narrador quanto à presença e à ciência.</p><p>C – Após a morte do Cão- Tinhoso</p><p>1. As Personagens</p><p>1.1. Indique as personagens desta parte do conto.</p><p>1.2. Refira quais as principais.</p><p>1.3. Aponte as personagens secundárias.</p><p>2. Proceda à caracterização da(s) personagem(ns) principal(is).</p><p>2.1. Recolha do texto as expressões que fundamentam as suas afirmações.</p><p>2.2. A caracterização das personagens é directa ou indirecta? Justifique a</p><p>resposta.</p><p>3. O espaço</p><p>3. Indique o(s) espaço(s) onde decorre a acção.</p><p>3.1. Caracterize esse(s) espaço(s).</p><p>4. O tempo</p><p>4.1. Retire do texto expressões que permitam localizar os acontecimentos no</p><p>tempo (quer o histórico, quer o cronológico).</p><p>5. A acção</p><p>5.1. Escolha um ou dois parágrafos que mais o/a impressionaram. Justifique a sua</p><p>escolha.</p><p>5.2. O conto tem as suas sequências organizadas por encadeamento, alternância ou</p><p>encaixe? Justifique.</p><p>6. O Narrador</p><p>6.1. Classifique o narrador quanto à presença e à ciência.</p><p>7. Modos de Expressão</p><p>7.1. Retire do texto exemplos de: • narração • descrição • diálogo • monólogo</p><p>interior</p><p>8. Indique o tema do conto de Luís Bernardo Honwana. Justifique a sua opção.</p><p>9. O que entende por parábola?</p><p>9.1. Poderá este conto ser considerado uma parábola? Justifique.</p><p>10. Imagine um final diferente para o conto.</p><p>11. A linguagem</p><p>11.1. Retire do texto palavras próprias do vocabulário moçambicano</p><p>Centro de Ensino à Distância 121</p><p>11.2. Encontre vocábulos, no português de Portugal, que possam explicar esses</p><p>termos.</p><p>11.3. Retire construções sintácticas próprias do português de Moçambique.</p><p>11.4. Aponte os níveis de língua presentes no texto.</p><p>11.5. Aponte alguns dos recursos estilísticos presentes no conto e refira a sua</p><p>expressividade.</p><p>11.6. Identifique onomatopeias no conto.</p><p>A Mulher do Padeiro de Arnaldo Santos</p><p>instauração do fascismo em</p><p>Portugal e à inscrição legal do assimilacionismo (aí vinha já o</p><p>célebre Acto Colonial, de 1930), não permitia ou não ajudava a</p><p>uma tarefa de tal monta, que rejeita meros propósitos e exige uma</p><p>reformulação da mentalidade do europeu. Hoje, não há lugar para</p><p>dúvidas: muitas dessas obras estão condenadas ao esquecimento,</p><p>salvando-se aquelas que, apesar de prejudicadas pelas</p><p>contingências de uma época e de uma mentalidade coloniais,</p><p>evidenciam contudo um certo esforço humanístico e uma real</p><p>qualidade estética. Mas, no conjunto, a história vai ser de uma</p><p>severidade implacável e arrumará a quase totalidade desta literatura</p><p>no discurso da acção colonizadora ou no nacionalismo imperial,</p><p>saudosista e deslumbrado.</p><p>Sumário</p><p>De uma forma geral, o percurso da Literatura de expressão</p><p>portuguesa divide-se em cinco momentos. No primeiro momento, o</p><p>escritor está em estado quase absoluto de alienação, inteiramente</p><p>absorvido pela cultura colonizadora, reproduzindo seus ideais. Os</p><p>seus textos poderiam ter sido produzidos em qualquer outra parte</p><p>do mundo: é o menosprezo e a alienação cultural. O segundo</p><p>momento corresponde à fase em que o escritor ganha a percepção</p><p>da realidade, apontando distinções geográficas, sociais etc. em</p><p>relação à “metrópole”. O seu discurso revela influência do meio,</p><p>bem como os primeiros sinais de sentimento nacional: é a dor de</p><p>ser negro; o negrismo e o indigenismo. O terceiro momento é</p><p>aquele em que o escritor adquire a consciência nacional de</p><p>colonizado. Liberta-se, promovendo um pensamento dialético entre</p><p>raízes profundas e coibição de sujeição colonial. A prática literária</p><p>enraízase no meio sócio-cultural e geográfico: é a desalienação e o</p><p>discurso da revolta. O quarto momento corresponde à fase histórica</p><p>da independência nacional, quando se dá a reconstituição da</p><p>Centro de Ensino à Distância 8</p><p>individualidade plena do escritor africano: é a fase da produção do</p><p>texto em liberdade, da criatividade.</p><p>Finalmente, há o quinto momento, marcado, ora, pela</p><p>despreocupação em valorizar-se excessivamente a africanidade: as</p><p>fragilidades humanas, as vulnerabilidades é que são, agora,</p><p>enfatizadas.</p><p>Exercícios</p><p>1. De uma forma sucinta, fale dos momentos da literatura nas</p><p>colónias portuguesas.</p><p>2. Distingue a literatura colonial da nacional.</p><p>Centro de Ensino à Distância 9</p><p>Unidade 02: A Imprensa e o Ensino nas Colónias Portugesas</p><p>Introdução</p><p>Nesta unidade, vai estudar os aspectos marcantes que deram maior</p><p>impulso ao surgimento da literatuta escrita nas colónias africanas</p><p>de expressão em língua portuguesa.</p><p>Ao completar esta unidade / lição, você será capaz de:</p><p>Objectivos</p><p> Conhecer aspectos importantes que ditaram o surgimento</p><p>da literatura escrita nas colónias africanas;</p><p> Caracterizar o ensino nas colónias;</p><p> Indicar, em cada colónia, a data em que foi introduzida a</p><p>imprensa;</p><p> Indicar, em cada colónia, os primeiros órgãos de</p><p>comunicação social.</p><p>2. A Imprensa e o Ensino nas Colónias Portuguesas</p><p>A imprensa e o ensino contribuiram sobremaneira para a eclosão</p><p>da literatura escrita nas colónias portuguesas, embora fosse mais</p><p>importentes numas e noutras não devido a repreensão e censura</p><p>intensificadas.</p><p>2.1 A Imprensa</p><p>A imprensa foi introduzida nas colónias nas seguintes datas: Cabo</p><p>Verde (1842); Angola (1845); Moçambique (1854); São Tomé e</p><p>Príncipe (1857) e Guiné-Bissau (1879).</p><p>Os primeiros órgãos de comunicação social foram o Boletim</p><p>Oficial de cada colónia, que dava abrigo à legislação, noticiário</p><p>oficial e religioso, mas que também incluía textos literários</p><p>(poemas e crónicas).</p><p>Em geral, no século passado, excepto em Angola, a imprensa foi</p><p>menos importante devido à repressão. O semanário O progresso</p><p>(1868), de Moçambique, religioso, instrutuvo, comercial e agrícola,</p><p>teve apenas um número, porque, dois dias depois, era obrigado a ir</p><p>Centro de Ensino à Distância 10</p><p>à censura prévia, que o proibiu. Um militante republicano chamado</p><p>Carvalho e Silva fundou quatro jornais, todos fechados, o último</p><p>dos quais foi assaltado, a tipografia destruída e o director agredido,</p><p>de que resultou sua morte. De facto, a história da imprensa não</p><p>oficial de Moçambique foi geralmente de oposição aos governos,</p><p>da colónia e de Lisboa.</p><p>Com a República, até ao advento da lei de João Belo (1926) contra</p><p>a liberdade de imprensa, floresceu uma imprensa operária. Mas os</p><p>mais célebres, e justamente celebrados, pelo seu papel na</p><p>consciencialização da moçambicanidade, foram os jornais fundados</p><p>pelos irmãos José e João Albasini: O Africano (1909 - 1918), O</p><p>Brado Africano (1918) e O Itinerário (1919), o penúltimo</p><p>sobrevivendo durante décadas e o último reaparecendo noutros</p><p>moldes (1941 - 55).</p><p>Na Guiné, o primeiro jornal, Ecos da Guiné, só apareceu em 1920.</p><p>Em Cabo Verde e São Tomé a imprensa contribuiu decisivamente</p><p>para o incentivo à criação literária no quadro da limitação insular.</p><p>No século XIX foi intensa e brilhante a actividade jornalística em</p><p>Angola. Depois da criação do Boletim Oficial (1845), surge A</p><p>Aurora (1855), jornal recreativo e literário. Mais tarde, aparece um</p><p>jornal pugnado pela abolição da escravatura, A civilização da</p><p>África Portuguesa (1866), dirigido por Urbano de Castro e</p><p>Alfredo Mântua, europeus identificados com Angola.</p><p>De 1860 até 1900, surge cerca de meia centena de títulos de</p><p>jornais, artesanais e epsódicos, mas de grande importância para o</p><p>fomento da actividade literária e intelectual. Desde o jornal de</p><p>Luanda (1878), que marca a transição do jornalismo de cariz mais</p><p>colonial para o proto-nacionalista, até O Pharol do Povo (Futuro de</p><p>Angola), muitos contribuiram para a informação, elevação cultural</p><p>e promoção das línguas locais.</p><p>O primeiro jornal de africanos chamava-se Echo de Angola (1881),</p><p>inauguando duas décadas de frenética actividade jornalística(até</p><p>aos anos 20) e que ficaria conhecida por período da imprensa livre</p><p>africana, terminando com a fundação de A Província de Angola</p><p>(1923), primeiro jornal do tipo moderno, que passou a quotidiano</p><p>em 1926, perdurando ainda hoje as intalações ao serviço do Jornal</p><p>de Angola. Algumas publicações marcaram o desejo de</p><p>emancipação dos filhos do país: Voz d'Angola (1901) e revista Luz</p><p>e Crença (1902).</p><p>É, pois, através de jornais que os letrados fazem a aprendizagem da</p><p>escrita. Esse desígnio jornalístico marcaria decisivamente os</p><p>escritors de África, que quase sempre assistiam a divulgação de</p><p>seus textos através de antologia, antes de os poderem ver</p><p>estampados em um livro, objeto que poucas vezes tinham acesso</p><p>por várias dificuldades (censura, perseguição, pobreza, desleixo</p><p>etc. que foram aumentando e crescendo até a independência)".</p><p>Centro de Ensino à Distância 11</p><p>2.2 O Ensino nas Colónias Portuguesas</p><p>A educação nas colónias portuguesas registava, ainda a entrada dos</p><p>anos 60, níveis baixíssimos. O analfabetismo atingia, em Angola,</p><p>quase 97%; em Moçambique, quase 98%; na Guiné-Bissau, perto</p><p>dos 100 %; só em Cabo Verde o nível era mais elevado, rondando</p><p>os 78,5%. O analfabetismo devia-se à política portuguesa de criar</p><p>uma elite muito restrita de assimilados para servirem no sector</p><p>terciário, ao mesmo tempo que deixava as populações entregues a</p><p>si próprias, sem permitir o seu auto-desenvolvimento ou, no pior</p><p>dos casos, usando-as como mão-de-obra escrava ou barata.</p><p>Como escreveu o poeta angolano António Jacinto, em «Carta dum</p><p>contratado» (1950):</p><p>Mas ah meu amor, eu</p><p>não sei compreender</p><p>por que é, por que é, por que é, meu bem</p><p>que tu não sabes ler.</p><p>e eu — Oh! Desespero! — não sei escrever também!</p><p>No começo do século XIX, os padres e párocos eram escassos nas</p><p>colónias. Com o liberalismo, o ensino passou, em 1834, para o</p><p>domínio do Estado, tomando-se laico. A partir de 1869, voltou a ser</p><p>apoiado nas Missões. Todavia, o seu progresso foi lentíssimo.</p><p>Em Angola, os grandes centros populacionais tinham escolas</p><p>oficiais e particulares para brancos e nas zonas rurais havia as</p><p>missões para negros. O ensino manteve-se, durante muitos séculos,</p><p>exclusivamente a nível primário.</p><p>Três anos depois da instauração da República, deu-se a separação</p><p>da Igreja e do Estado, substituindo-se as missões religiosas por</p><p>laicas, para, seis anos mais tarde, as missões católicas serem</p><p>auxiliadas financeiramente pelo Estado, altura em que, em Luanda,</p><p>foi fundado o Liceu Salvador Correia. Em 1926, as «missões</p><p>civilizadoras» foram abolidas devido ao seu fracasso no terreno.</p><p>A língua usada nas escolas e fora delas, por professores,</p><p>missionários e auxiliares, era a portuguesa, que, com as línguas</p><p>nativas, servia para o ensino da religião. Mas, até II Guerra</p><p>Mundial, o objectivo da assimilação, perseguido em teoria pelas</p><p>autoridades, não teve expressão. Após 1945, a política</p><p>governamental procurou acelerar a assimilação, fazendo um</p><p>esforço para generalizar o ensino primário, desenvolver o</p><p>secundário, sobretudo técnico, a educação agrícola e criando</p><p>instituições para a formação de professores. Todavia, o ensino</p><p>superior, ao contrário de outras colónias, inglesas ou francesas,</p><p>apenas estava ao alcance de um número muito reduzido de</p><p>estudantes, sobretudo brancos e mestiços. Com a fundação e a</p><p>pressão exercida pelos movimentos nacionalistas, e logo depois do</p><p>início da luta de libertação nacional armada (Luanda, 1961), foram</p><p>instalados os Estudos Gerais, de nível universitário, a partir de</p><p>1963, nas cidades angolanas de Luanda, Sá da Bandeira e Nova</p><p>Centro de Ensino à Distância 12</p><p>Lisboa, e na capital moçambicana, até hoje os únicos territórios que</p><p>deles beneficiaram.</p><p>Os próprios movimentos de libertação nacional, de que resultariam</p><p>os partidos no poder, após 1975, criaram o seu ensino e</p><p>alfabetização, que não tiveram um verdadeiro alcance de</p><p>massificação, devido a apenas atingirem os escassos milhares de</p><p>militantes na clandestinidade e faixas de população que os</p><p>apoiavam. O MPLA, FNLA e UNITA (Angola), o PAIGC (Guiné-</p><p>Bissau e Cabo Verde) e a FRELIMO (Moçambique) não tiveram</p><p>tempo nem meios para, antes da independência, poderem substituir</p><p>a escola colonial. MPLA (1956), PAIGC (1956) e FRELIMO</p><p>(1962) tinham essencialmente preocupações políticas e militares,</p><p>mas dedicavam uma atenção especial às questões culturais. Os</p><p>outros movimentos, nascidos de dissensões, nunca tiveram</p><p>qualquer preocupação nesse sentido. O MLSTP (de São Tomé e</p><p>Príncipe) nasceu pouco antes da independência..</p><p>Exercícios</p><p>1. Identifique os factores ligados ao surgimento da literatura</p><p>nas colónias africanas de expressão portuguesa.</p><p>2. Caracterize o ensino no período colonial.</p><p>3. Preencha a tabela seguinte:</p><p>Colónia Ano da introdução da</p><p>tipografia</p><p>Moçambique 1854</p><p>Angola</p><p>1857</p><p>Guiné-Bissau</p><p>4. Diga por que é que em algumas colónias a imprensa foi</p><p>menos importante.</p><p>Centro de Ensino à Distância 13</p><p>Unidade 03: A Recuperação da Consciência Africana: Negritude e Panificanismo</p><p>Introdução</p><p>Nesta unidade, portanto, conhecerá profundamente os grandes</p><p>marcos que diferenciam a negritude e o pan-africanismo, bem</p><p>como falar dos seus percursores.</p><p>Ao completar esta unidade / lição, você será capaz de:</p><p>Objectivos</p><p> Ter conhecimentos sobre os principais movimentos de</p><p>consciencialização dos negros;</p><p> Ter uma perspectiva sumária da Negritude;</p><p> Conhecer os percursores da Negritude;</p><p> Distinguir as fases pelas quais o movimento negro passou</p><p>(Renascimento dos negros, indigenismo e negrismo).</p><p>Movimentos de consciencialização dos negros: Negritude;</p><p>Indigenismo e Negrismo</p><p>A ideia de Renascimento, indigenismo e Negrismo surge nas</p><p>américas, principalmente nos EUA e nas Caraíbas, como como</p><p>consequência das Luzes e do Romantismo que levaram á abolição</p><p>da escravatura que culminou com o surgimento dos movimentos de</p><p>liberdade dos povos.</p><p>A Negritude lançou as suas raízes até aos movimentos culturais</p><p>protagonizados por negros, brancos e mestiços que, desde as</p><p>décadas de 10, 20 e 30, vinham pugnando por uma busca e</p><p>revalorização das raízes culturais africanas, crioulas e populares,</p><p>principalmente em três países das Américas, Haiti, Cuba e Estados</p><p>unidos da América, mas também um pouco por todo o lado.</p><p>Nas Caraíbas, esse movimento para a revalorização do negro e do</p><p>índio, espoliados na sua condição de seres humanos pela</p><p>prepotência do homem branco, esclavagista ou de mentalidade</p><p>afim, teve particular incidência em Porto Rico (através da escrita de</p><p>Luís Pales Matos), no Haiti (sob o nome de Indiginismo e a acção</p><p>de escritores como Jean Price Mars e Jacques Roumain) e em</p><p>Centro de Ensino à Distância 14</p><p>Cuba, onde adoptou a designação Negrismo Cubano e ganharam</p><p>extrema relevância, entre outros, os nomes dos poetas Regino</p><p>Pedroso, Marcelino Avozocena, Rodriguez Mendez e, em</p><p>particular, Nicolás Guillen, escritor e compositor, com grande</p><p>influência nos meios intelectuais neo-realistas, africanos e</p><p>modernistas brasileiros e cuja obra " Motivos de Son " (1930)</p><p>revoluciona por completo a poesia cubana. Na América do Sul,</p><p>mais concretamente no Brasil, o movimento tomou a designação de</p><p>Modernismo e teve nos poetas Castro Alves, Jorge de Lima, Lino</p><p>Guedes e outras figuras de grande destaque.</p><p>Esse grande movimento de renascimento e de revalorização do</p><p>negro, esse grito de revolta anti-colonialista que apelava à união e à</p><p>solidariedade dos negros de todo o mundo e que se denominou nos</p><p>seus primórdios Pan-africanismo1 (anos 10 e 20), chegaria à</p><p>Europa através da França (1935), onde permanecia uma</p><p>significativa comunidade de estudantes africanos e caribenhos, que</p><p>na diáspora se manifestavam profundamente apreensivos com a</p><p>situação dos negros a nível mundial. Ali ganharia o nome</p><p>universalmente consagrado de Negritude (1939) e para a sua</p><p>eclosão e afirmação contou com a profícua acção de escritores</p><p>como Léopold Sedar Senghor ( Senegal ), Aimé Césaire</p><p>(Martinica) e Leon Damas (Guiana), através, respectivamente, de</p><p>obras como " Chants d' Ombre ", " Cahiers d' un Retour au Pays</p><p>Natal" e " Pigments " bem como dos jornais "Légitime Defense "</p><p>e " L' Etudiant Noir" e a revista "Présence Africaine ".</p><p>Numa breve síntese, pode dizer-se que a Negritude consistia, para</p><p>além de tudo, na recusa pelo negro da assimilação e, para tal, era</p><p>necessário que este se reconhecesse nos elementos de uma cultura</p><p>enraizada no solo nacional, orgulhar-se dela, dos seus valores.</p><p>Buscava-se com ela o ressurgimento da consciência histórica,</p><p>cultural e política e do orgulho de ser negro, o que contribuiu para</p><p>despoletar no mundo negro um surto nacionalista sem precedentes.</p><p>Considera Pires Laranjeira que pela poesia da Negritude " perpassa</p><p>a decadência da civilização ocidental, o triunfo da raça negra... o</p><p>triunfo do riso, do canto e da esperança. Trata-se da recusa da</p><p>civilização ocidental, da evocação continuada dos negreiros e sua</p><p>repressão (tema maior do sofrimento do passado ), do cortejo da</p><p>violência, com a consequente ameaça de revolta, o despertar da</p><p>África, a reivindicação da Negritude, que levou o negro-objecto a</p><p>assumir-se como Negro-sujeito."</p><p>Constituem</p><p>seus temas fundamentais a exaltação ou mitificação do</p><p>país distante, a ânsia de regresso à terra natal, a relevância</p><p>fundamental da raça e da cor da pele, a condição do negro em</p><p>1 O pan-africanismo é uma ideologia que propõe a união de todos os povos de</p><p>África como forma de potenciar a voz do continente no contexto internacional.</p><p>Centro de Ensino à Distância 15</p><p>África e fora dela, o país como um paraiso perdido da infância que</p><p>se opõe à frieza, agressividade e decadência da cultura dominadora</p><p>europeia.</p><p>Outro movimento não menos importante, aludido na nota anterior,</p><p>a referenciar é o pan-africanismo dada a sua irmanidade com a</p><p>negritude, como a seguir se realciona: “ pan-africanismo</p><p>propriamente dito não tivesse existido sem a conjugação de três</p><p>factores primordiais. O primeiro e o que lhe dá razão de ser; é o</p><p>esclavismo ocidental e a exploração das pessoas negras na América</p><p>e África bem como a carreira colonialista da Europa, na África. O</p><p>segundo factor será a presença nos Estados Unidos (de emigrados e</p><p>estudantes procedentes das Antilhas), uma área geográfica com</p><p>uma longa tradição de movimentos de emancipação e auto</p><p>libertação de escravos. Por último, cabe destacar a actividade e</p><p>produção de intelectuais negros como Du Bois”.</p><p>Sumário</p><p>Senghor foi um dos maiores divulgadores da negritude, que se</p><p>consolidava como um movimento cultural de resgate/construção da</p><p>identidade negra, buscando desvelar a alma negra cuja</p><p>característica essencial seria a emoção: "A emoção é negra, assim</p><p>como a razão é helênica". A atitude do negro frente ao mundo e aos</p><p>outros é de abandono e comunhão. Em si o negro é um campo de</p><p>impressão, que através da sensibilidade descobre o outro. Da</p><p>mesma forma que nesta interação ele não vê o objeto, mas o sente,</p><p>"é na sua subjetividade, no limite de seus órgãos sensoriais que ele</p><p>descobre o outro".</p><p>Exercícios</p><p>1. Diferencie Negritude de Pan-africanismo.</p><p>2. Relacione os movimentos de Negritude e Pani-africanismo</p><p>e as independências das colónias africanas de expressão</p><p>portuguesa.</p><p>3. Destaque os papéis de Sengor e Du Bois na criação de</p><p>movimentos de revalorização das cutltura do negro e</p><p>africanos, em geral.</p><p>Centro de Ensino à Distância 16</p><p>Unidade 04: Precursores das Literaturas Africanas no domínio poético</p><p>Introdução</p><p>Nesta unidade vai falar dos percursores das literaturas africanas,</p><p>sobretudo Rui de Noronha.</p><p>Ao completar esta unidade / lição, você será capaz de:</p><p>Objectivos</p><p> Identificar percusores da literatura africana de expressão</p><p>portuguesa na arena poética.</p><p>Aparecidos em duas épocas distantes, e portadores de experiências</p><p>diferentes, Costa Alegre, originário de S. Tomé, e Rui de Noronha,</p><p>de Moçambique, podem ser considerados como os precursores da</p><p>literatura africana de expressão portuguesa, no domínio poético.</p><p>A obra de Costa Alegre, vinda a lume em 1916, foi inteiramente</p><p>escrita em Portugal, por volta de 1880. O arquipélago de S. Tomé</p><p>encontrava-se na fase decisiva de mutação das suas estruturas</p><p>sociais, em que a iniciativa da direcção económica e o controle das</p><p>riquezas agrícolas eram intensamente disputados pelos colonos aos</p><p>«filhos da terra». A poesia de Costa Alegre não regista nenhum eco</p><p>dessa tensão e não faz nenhuma menção precisa à conjuntura</p><p>insular. Ela reflecte uma forma de tomada de consciência da</p><p>condição do negro ferido na sua cor. Atingido no mais íntimo do</p><p>seu ser pelas humilhações que sofreu num meio social que lhe era</p><p>hostil, dilacerado pelo isolamento e por decepções amorosas, Costa</p><p>Alegre refugia-se num universo de autocondenação racial.</p><p>Tu tens horror de mim, bem sei, Aurora,</p><p>Tu és o dia, eu sou a noite espessa,</p><p>Onde eu acabo é que o teu ser começa.</p><p>Não amas!... flor, que esta minha alma adora.</p><p>És a luz, eu a sombra pavorosa,</p><p>Centro de Ensino à Distância 17</p><p>Eu sou a tua antítese frisante,</p><p>Mas não estranhes que te aspire formosa,</p><p>Do carvão sai o brilho do diamante.</p><p>(Costa Alegre, «Aurora», in Versos, 1946, p.26)</p><p>Rui de Noronha exprime timidamente, nos anos trinta, os conflitos</p><p>suscitados pela sociedade em que se desenrolou a sua existência.</p><p>Sensível ao espectáculo da opressão, mas isolado na sua démarche,</p><p>prisioneiro do seu misticismo, o poeta viveu o drama da sua</p><p>impossível realização, em tanto que assimilado.</p><p>Traduz em tom brando de lamentação contemplativa a dor que lhe</p><p>causava a vida das massas africanas, mas professa claramente a</p><p>resignação. Rui da Noronha apela, à sua maneira, para a libertação</p><p>africana, como testemunha o seu soneto «Surge et ambula»:</p><p>"Dormes! e o mundo marcha, ó pátria do mistério.</p><p>Dormes! e o mundo rola, o mundo vai seguindo...</p><p>O progresso caminha ao alto de um hemisfério</p><p>E tu dormes no outro o sono teu infinito...</p><p>A selva faz de ti sinistro eremitério</p><p>Onde sozinha à noite, a fera anda rugindo...</p><p>Lança-te o Tempo ao rosto estranho vitupério</p><p>E tu, ao Tempo alheia, ó África, dormindo...</p><p>Desperta! Já no alto adejam negros corvos</p><p>Ansiosos de cair e de beber aos sorvos</p><p>Teu sangue ainda quente em carne de sonâmbula.</p><p>Desperta! O teu dormir já foi mais que terreno</p><p>Ouve a voz do Progresso, este outro nazareno</p><p>Que a mão te estende e diz: África, surge et ambula!"</p><p>Rui de Noronha esteve, contudo, longe de lançar as bases de uma</p><p>completa identificação com o seu povo.</p><p>Sumário</p><p>Rui de Noronha e Costa Alegre são considerados os mentores da</p><p>literatura africana de expressão no domínio poético.</p><p>Centro de Ensino à Distância 18</p><p>Exercícios</p><p>1. Num texto corrido (mínimo uma página) apresente a análise</p><p>comparativa dos poemas Surge et ambula de Rui de</p><p>Noronha e Aurora de Costa Alegre, tendo em conta os</p><p>aspectos da africanidade e da negritude. Não se esqueça de</p><p>falar dos aspectos temático-ideológicos, estético-estilísticos.</p><p>Centro de Ensino à Distância 19</p><p>Unidade 05: Literatura Moçambicana</p><p>Introdução</p><p>Esta unidade debruça-se especificamente sobre o processo de</p><p>formação da literatura moçambicano, se compararmos com o de</p><p>outras colónias portuguesas.</p><p>Ao completar esta unidade / lição, você será capaz de:</p><p>Objectivos</p><p> Adquirir conhecimentos básicos sobre o surgimento da literatura</p><p>moçambicana;</p><p> Reconhecer os percursores da literatura moçambicana nas</p><p>diferentes fases da sua história.</p><p> Identificar em textos dados as marcas da poesia de combate.</p><p>Literatura Moçambicana</p><p>De acordo com as pesquisas, a literatura moçambicana é incipiente,</p><p>em relação à literatura angolana e de Cabo Verde. No entanto, “não</p><p>será arriscar demasiado dizer que a actividade cultural de</p><p>Moçambique naquele período deve ter sido sobretudo orientada</p><p>para o jornalismo”. Mas para perceberes melhor este assunto, vais</p><p>estudar profundamente, nesta unidade didáctica, os marcos</p><p>importantes que estiveram na origem desta jovem literatura.</p><p>O processo de formação da literatura de Moçambique segue os</p><p>mesmos trâmites que o de Angola. A formação, sobretudo nas</p><p>zonas urbanas da Beira e Lourenço Marques (agora, Maputo), de</p><p>uma elite de alguns negros, mestiços e brancos que se apoderou,</p><p>aos poucos, dos canais e centros de administração e poder, é factor</p><p>preponderante na emergência de uma literatura que passa pelas</p><p>mesmas fases para Angola: pré-colonial e colonial, afro-cêntrica e</p><p>luso-tropicalista, nacional</p><p>e pós-colonial.</p><p>Em termos de precursores desta literatura, há que referir Rui de</p><p>Noronha, João Dias e Augusto Conrado. Entre eles merece realce</p><p>Rui de Noronha, cujo livro de Sonetos foi publicado seis anos após</p><p>a sua morte. A sua poesia reveste-se de algum pioneirismo, não</p><p>pela forma, mas pelo conteúdo, uma vez que alguns dos sonetos</p><p>mostram sensibilidade para a situação dos mestiços e negros, o que</p><p>Centro de Ensino à Distância 20</p><p>constitui a primeira chamada de atenção para os problemas</p><p>resultantes do domínio colonial. Rui de Noronha representa</p><p>também uma das primeiras tentativas de sistematizar, em termos</p><p>poéticos, o legado da tradição oral africana. Sirva, como exemplo,</p><p>o poema carregado de imagens do mundo mítico africano,</p><p>intitulado "Quenguelequêze!</p><p>Uma parte significativa da produção literária moçambicana deve-se</p><p>aos poetas da "literatura européia" ou seja, aqueles que, sendo</p><p>brancos, centram toda, ou quase toda a sua temática nos problemas</p><p>de Moçambique; foram eles que contribuíram decisivamente para a</p><p>formação da identidade nacional moçambicana. Merecem especial</p><p>realce: Alberto de Lacerda , Reinaldo Ferreira, Rui Knopfli, Glória</p><p>Sant'Anna, Sebastião Alba, Luis Carlos Patraquim e António</p><p>Quadros. Alguns destes poetas escrevem poesia de carácter mais</p><p>pessoal, enquanto os outros estão virados para o aspecto "social".</p><p>Por exemplo, Reinaldo Ferreira e Rui Knopfli são poetas cuja obra</p><p>se debruça fundamentalmente sobre a África, a "Mãe África" e o</p><p>povo que vive e sofre as consequências do colonialismo. Por muita</p><p>desta poesia perpassa também a centelha da esperança da</p><p>libertação. São estes autores que contribuíram deum modo decisivo</p><p>para a emergência da literatura da "moçambicanidade". Em muitos</p><p>destes poetas podemos detectar a alienação em que se encontram</p><p>perante a sociedade africana a que pertencem. Veja-se este exemplo</p><p>de Rui Knopfli:</p><p>Europeu me dizem.</p><p>Eivam-me de literatura e doutrina</p><p>europeias</p><p>e europeu me chamam.</p><p>Não sei se o que escrevo tem raiz de algum</p><p>pensamento europeu,</p><p>É provável...Não. É certo,</p><p>mas africano sou.</p><p>A poesia política e de combate em Moçambique foi cultivada</p><p>sobretudo por escritores que militavam na Frelimo. Entre eles,</p><p>destaque para Marcelino dos Santos, Rui Nogar e Orlando Mendes.</p><p>Este tipo de poesia preocupa-se sobretudo com comunicar uma</p><p>mensagem de cunho político e, algumas vezes , partidário. Como</p><p>literatura, e salvo raras excepções (como é o caso de Rui Nogar,</p><p>com alguns belos poemas de carácter intimista, no seu livro</p><p>Silêncio escancarado, de 1982), esta poesia é pouco ou nada</p><p>inovadora.</p><p>Como nos outros países, surge também em Moçambique um</p><p>número de escritores cuja obra poética é conscientemente</p><p>produzida tendo em conta o factor da nacionalidade, anterior, como</p><p>é evidente, à realidade do país que mais tarde se concretiza. São</p><p>eles que forjam a consciência do que é ser moçambicano no</p><p>Centro de Ensino à Distância 21</p><p>contexto, primeiro da África e, depois, do mundo. Entre os</p><p>principais autores deste tipo de poesia, encontram-se Noémia de</p><p>Sousa, José Craveirinha, Jorge Viegas, Sebastião Alba, Mia Couto</p><p>e Luis Carlos Patraquim.</p><p>A figura de maior destaque na poesia da moçambicanidade, e</p><p>referência obrigatória em toda a literatura africana, é José</p><p>Craveirinha. De facto, a poesia de Craveirinha engloba todas as</p><p>fases ou etapas da poesia moçambicana, desde os anos 40 até</p><p>praticamente aos nossos dias. Em Craveirinha vamos encontrar</p><p>uma poesia tipo realista, uma poesia da negritude, cultural, social,</p><p>política; há uma poesia de prisão; existe uma poesia carregada de</p><p>marcas da tradição oral, bem como muito poema com grande</p><p>pendor lírico e intimista.</p><p>Uma breve referência faz-se à poesia do período pós-independência</p><p>. Os poetas desta geração (é evidente que não me refiro aos</p><p>"grandes" de antes de 1975, como Reinaldo Ferreira , Knopfli e</p><p>Sebastião Alba) desviaram-se da poesia de cariz colectivo,</p><p>preferindo o individual e o intimista com que relatam a sua</p><p>experiência pós-colonial. Entre estes poetas , é obrigatória a</p><p>referência a Mia Couto, mas sobretudo a Luis Carlos Patraquim.</p><p>São dois grandes construtores da palavra, preocupados com a</p><p>linguagem poética. No caso de Mia Couto, penso que ele acaba por</p><p>transferir todo o seu potencial poético para a ficção. Luis Carlos</p><p>Patraquim revela influências de Craveirinha e Knopfli, sobretudo</p><p>nos seus poemas de maior pendor pessoal e lírico, a sua poesia</p><p>revela-se de certo modo, caótica, sensual e, por vezes, surrealista.</p><p>Patraquim desenvolve uma poesia que, em parte, é inovadora,</p><p>focalizada sobretudo no amor e no erotismo. Nota-se também uma</p><p>grande preocupação de ligar a sua experiência ao mundo universal</p><p>dos poetas para além das fronteiras africanas. Autor de três livros</p><p>(Monção, A inadiável viagem; e Vinte e tal Formulações e Uma</p><p>Elegia Carnívora) , Luis Carlos Patraquim representa a fusão entre</p><p>as duas grandes vertentes da poesia moçambicana: a da</p><p>moçambicanidade e a da linguagem lírica e sensual do "estar em</p><p>Moçambique".</p><p>Sumário</p><p>A literatura moçambicana é incipiente, em relação à literatura</p><p>angolana e de Cabo Verde. No entanto, não será arriscar demasiado</p><p>dizer que a actividade cultural de Moçambique naquele período</p><p>deve ter sido sobretudo orientada para o jornalismo.</p><p>A literatura moçambicana segue os mesmos carris tais como seguiu</p><p>a angolana: pré-colonial e colonial, afro-cêntrica e luso-tropicalista,</p><p>nacional e pós-colonial.</p><p>Centro de Ensino à Distância 22</p><p>Exercícios</p><p>1. Fale do valioso contributo da poesia de Noronha no âmbito</p><p>da literatura moçambicana.</p><p>2. Debruce-se sobre a literatura política e de combate, tendo</p><p>em conta</p><p>3. Fazendo um enquadramento do texto abaixo na poesia de</p><p>combate, refira-se do valor da repetição, da anáfora e do</p><p>paralelismo aí presentes.</p><p>Canto dos guerrilheiros</p><p>Nós nascemos do sangue dos que morreram,</p><p>porque o sangue</p><p>é terra onde cresce a liberdade.</p><p>Os nossos músculos</p><p>São fardos de algodão</p><p>Amarrados de ódio.</p><p>O nosso passo</p><p>Sincronizou-se nas fábricas</p><p>Onde as máquinas nos torturam.</p><p>Foi na profundidade das minas,</p><p>Onde o ar foge espavorido</p><p>Que os nossos olhos se abriram.</p><p>Nós, filhos de Moçambique</p><p>Pela pátria que nos levou no ventre,</p><p>Nosso grito de vingança das mulheres,</p><p>Pela viuvez gerada pelo chibalo</p><p>Nós juramos</p><p>Que a luta continua,</p><p>Pelo sangue de Fevereiro,</p><p>Juramos que as nossas bazzokas</p><p>Beberão mais aço.</p><p>Pela explosão de Fevereiro</p><p>Juramos que as nossas minas</p><p>Devorarão mais corpos</p><p>Pela ferida de Fevereiro,</p><p>Juramos que as nossas metralhadoras</p><p>Abrirarão clareiras de esperança.</p><p>Sérgio Vieira, poesiade combate 2, 1979</p><p>Centro de Ensino à Distância 23</p><p>Unidade 06: A Periodização da Literatura Moçambicana</p><p>Introdução</p><p>Como acaba de ver na unidade anterior, a literatura moçambicana</p><p>segue os mesmos caminhos que a de Angola, todavia, vai aqui</p><p>falar, especilamente, dos principais momentos literários , bem</p><p>como os factos que marcam o seu advento.</p><p>Ao completar esta unidade / lição, você será capaz de:</p><p>Objectivos</p><p> Conhecer o quadro cronológico da literature em Moçambique</p><p> Destacar os aspectos essenciais em cada período (preparação,</p><p>formação, desenvolvimento e consolidação)</p><p>Periodização da Literatura Moçambicana</p><p>Estudando e firmando uma periodização para a Literatura</p><p>Moçambicana, LARANJEIRA reconhece e define cinco diferentes</p><p>períodos, organizados do seguinte modo: um primeiro e um</p><p>segundo períodos que ele chama de preparação, um terceiro</p><p>período que ela</p><p>chama de formação, um quarto período de</p><p>desenvolvimento, e um quinto período, de consolidação.</p><p>O 1.°período tem suas origens na permanência dos portugueses na</p><p>região índica e estende-se até o ano de 1924, ano anterior à</p><p>publicação de O livro da dor de João Albasini. Foi chamado pelo</p><p>autor período de Incipiência, por ser “um quase deserto secular,</p><p>que se modifica com a introdução do prelo, no ano de 1854, mas</p><p>sem os resultados literários verificados em Angola.” Campos</p><p>Oliveira (1847-1911), na poesia, e João Albasini, na prosa, são,</p><p>segundo o historiador, os nomes mais representativos desse</p><p>período.</p><p>O 2.° período, nomeado Prelúdio, estende-se da publicação de O</p><p>livro da dor até o final da II Guerra Mundial, e inclui o livro do</p><p>jornalismo João Albasini, os poemas dispersos, nos anos 30, de</p><p>Rui Noronha, depois publicados em livro, com o título de sonetos</p><p>(1946).</p><p>Centro de Ensino à Distância 24</p><p>A partir do início do século XX, escritores e jornalistas africanos</p><p>publicaram seu próprio jornal na capital. Apesar dos problemas de</p><p>censura colonial, a publicação actuou como um fórum para</p><p>escritores e intelectuais africanos ao longo do século. Desde então,</p><p>começou a ser estruturada a consciência da “moçambicanidade”.</p><p>Relacionados aos primeiros passos do nacionalismo, virão os</p><p>nomes de Noémia de Sousa, Marcelino dos Santos, Craveirinha,</p><p>Orlando Mendes, Rui Nogar, Virgílio de Lemos, Rui Guerra,</p><p>Fonseca Amaral, e outros. Está implantado o que LARANJEIRA,</p><p>chama de 3.°período.</p><p>O 3.° período abrangendo o intervalo de 1945-48 a 1963,</p><p>caracteriza-se pela intensiva Formação da literatura moçambicana.</p><p>Uma inaugural consciência de grupo instala-se no seio dos</p><p>escritores, tocados pelo Neo-realismo e, a partir dos primeiros anos</p><p>de 50, pela Negritude.</p><p>O 4.° período, que vai de 1964 até 1975, ou seja, do início da luta</p><p>armada de libertação nacional à independência do país (a</p><p>publicação de livros fundamentais coincide com estas datas</p><p>políticas), é denominado “período de Desenvolvimento da</p><p>literatura”, e se caracteriza pela coexistência de maciça actividade</p><p>cultural e literária no hinterland, no ghetto, apresentando textos</p><p>cuja feição não explicita carácter marcadamente político (em que</p><p>pontificavam intelectuais, escritores e artistas como Eugénio</p><p>Lisboa, Rui Knopfli, o português António Quadros, entre outros) e,</p><p>por outro lado, poemas anti-colonialistas que incitavam à revolução</p><p>e tematizavam a luta armada.</p><p>Nós matamos o cão-tinhoso, livro de contos de Luís Bernardo</p><p>Honwana, publicado em 1964, torna-se marco da ampliação dos</p><p>horizontes da produção ficcional em Moçambique. Portagem, de</p><p>Orlando Mendes, escrito em 1966, ficará, contudo, registrado como</p><p>o primeiro romance moçambicano.</p><p>Um outro facto, todavia, vai modificar o quadro da literatura</p><p>moçambicana: a migração de muitos intelectuais e artistas antes e</p><p>depois da independência. Essa migração vai ampliar a natureza</p><p>híbrida da cultura moçambicana, pois muitos desses autores</p><p>passarão a sofrer influência mais incisiva da cultura europeia,</p><p>chegando mesmo àquilo de LARANJEIRA (1995:350) chama de</p><p>“identidade nacional indefinida, vacilante ou dupla”.</p><p>O último período definirá a situação atual da Literatura</p><p>Moçambicana, o 5.° período, inscrito entre 1975 e 1992, chamado</p><p>de Consolidação. A partir desse momento passou a não haver</p><p>dúvidas quanto à autonomia e extensão da literatura moçambicana.</p><p>Da independência até 1982, foi notável a divulgação de textos</p><p>engavetados ou dispersos. Texto típico foi Silêncio escancarado</p><p>Centro de Ensino à Distância 25</p><p>(1982), primeiro e único livro de Rui Nogar (1935-1993). Também</p><p>são encontrados textos de exaltação patriótica, de culto dos heróis</p><p>da luta de libertação nacional e de temas marcadamente</p><p>doutrinários, militantes ou empenhados, no tempo da</p><p>independência.</p><p>Sumário</p><p>LARANJEIRA reconhece e define cinco diferentes períodos,</p><p>organizados do seguinte modo: um primeiro e um segundo</p><p>períodos que ele chama de preparação, um terceiro período que ela</p><p>chama de formação, um quarto período de desenvolvimento, e um</p><p>quinto período, de consolidação.</p><p>Exercícios</p><p>1. Leia o seguinte trecho e diga o que simboliza a personagem</p><p>cão-tinhoso2.</p><p>O Cão-Tinhoso tinha uns olhos azuis que não tinham brilho nenhum, mas eram</p><p>enormes e estavam sempre cheios de lágrimas, que lhe escorriam pelo focinho.</p><p>Metiam medo aqueles olhos, assim tão grandes, a olhar como uma pessoa a</p><p>pedir qualquer coisa sem querer dizer.</p><p>Eu via todos os dias o Cão-Tinhoso a andar pela sombra do muro em volta do</p><p>pátio da Escola, a ir para o canto das camas de poeira das galinhas do Senhor</p><p>Professor. As galinhas nem fugiam, porque ele não se metia com elas, sempre a</p><p>andar devagar, à procura de uma cama de poeira que não estivesse ocupada.</p><p>O Cão-Tinhoso passava o tempo todo a dormir, mas às vezes andava, e então eu</p><p>gostava de o ver, com os ossos todos à mostra no corpo magro. Eu nunca via o</p><p>Cão-Tinhoso a correr e nem sei mesmo se ele era capaz disso, porque andava</p><p>todo a tremer, mesmo sem haver frio, fazendo balanço com a cabeça, como os</p><p>bois e dando uns passos tão malucos que parecia uma carroça velha.</p><p>Houve um dia que ele ficou o tempo todo no portão da Escola a ver os outros</p><p>cães a brincar no capim do outro lado da estrada, a correr, a correr, e a cheirar</p><p>debaixo do rabo uns aos outros. Nesse dia o Cão-Tinhoso tremia mais do que</p><p>nunca, mas foi a única vez que o vi com a cabeça levantada, o rabo direito e</p><p>longe das pernas e as orelhas espetadas de curiosidade.</p><p>Os outros cães às vezes deixavam de brincar e ficavam a olhar para o Cão-</p><p>Tinhoso. Depois zangavam-se e punham- se a ladrar, mas como ele não dissesse</p><p>nada e só ficasse para ali a olhar, viravam-lhe as costas e voltavam a cheirar</p><p>debaixo do rabo uns aos outros e a correr.</p><p>Duma dessas vezes, o Cão-Tinhoso começou a chiar com a boca fechada e</p><p>avançou para os outros quase que a correr, mas com a cabeça muito direita e as</p><p>2 Para completar a leitura deste conto, ver em anexo.</p><p>Centro de Ensino à Distância 26</p><p>orelhas mais espetadas do que nunca. Quando os outros se viraram para ver o</p><p>que ele queria, teve medo e parou no meio da estrada.</p><p>Os outros cães ficaram um bocado a pensar no que haviam de fazer por ele estar</p><p>a olhar para eles daquela maneira. E que o Cão-Tinhoso queria ir meter-se com</p><p>eles. Depois o cão do Senhor Sousa, o Bobí, disse qualquer coisa aos outros e</p><p>avançou devagar até onde estava o Cão- Tinhoso. O Cão-Tinhoso fingiu não ver</p><p>e nem se mexeu mando o Bobí lhe foi cheirar o rabo: olhava sempre em frente.</p><p>O Bobí, depois de ficar uma data de tempo a andar em volta do Cão-Tinhoso, foi</p><p>a correr e disse qualquer coisa aos outros — o Leão, o Lobo, o Mike, o Simbi, a</p><p>Mimosa e o Luiu — e puseram-se todos a ladrar muito zangados para o Cão-</p><p>Tinhoso. O Cão-Tinhoso não respondia, sempre muito direito, mas eles</p><p>zangaram-se e avançaram para ele a ladrar cada vez mais de alto. Foi então</p><p>que ele recuou com medo, e voltando-lhes as costas, veio para a Escola, com o</p><p>rabo todo enfiado.</p><p>2. Classifique, a partir do trecho que se lhe apresenta, o narrador</p><p>quanto à presença e à ciência.</p><p>3. Identifique o autor deste conto e enquadre-o no respectivo</p><p>período literário</p><p>Centro de Ensino à Distância 27</p><p>Unidade 07: Perspectivas da Moçambicanidade e o Jornal Msaho</p><p>Introdução</p><p>Tendo em vista o que terá visto na periodização literária em</p><p>Moçambique, vai nesta unidade estudar</p><p>as condições criadas pela</p><p>imprensa para as novas perpectivas técnico-ideológicas e temáticas</p><p>na literatura moçambicana.</p><p>.</p><p>Ao completar esta unidade / lição, você será capaz de:</p><p>Objectivos</p><p> Conhecer a primeira publicação referente a poesia e à</p><p>moçambicanidade;</p><p> Salientar a poesia de Noémia de Sousa, compreendendo a</p><p>fusão do Neo-realismo com a Negritude;</p><p> Destacar algumas características de poemas seleccionados.</p><p>Msaho</p><p>O jornal cultural, poético, intitulado Msaho (1952), tinha como</p><p>objectivo, à maneira da angolana Mensagem (1951-52), criar</p><p>condições para a produção e promoção da literatura moçambicana</p><p>segundo perspectivas de moçambicanidade (nativismo, telurismo,</p><p>casticismo, etc.), sem que o lirismo abstraccionista ou</p><p>transcendental fosse postergado. É importante que, nesta unidade,</p><p>conheças a relação existente entre o jornal Msaho e as perspectivas</p><p>de moçambicanidade.</p><p>Os próprios promotores da folha poética tiveram consciência,</p><p>explícita na apresentação, de que esse primeiro e único número</p><p>ainda não tinha possibilidade de se constituir como artefacto da</p><p>moçambicanidade no sentido de uma ideologia e estética</p><p>autonomizarem os textos num corpus literário diferenciado de</p><p>outros de língua portuguesa. Tratou-se de um projecto parcialmente</p><p>falhado.</p><p>Centro de Ensino à Distância 28</p><p>Não se pode todavia menorizar Msaho, que, desde logo, pela</p><p>escolha, em título, do nome de um canto do povo chope, e a</p><p>participação, com um poema cada, de Noémia de Sousa, Virgílio</p><p>de Lemos (1) e Rui Guerra, deixou entrever preocupações</p><p>intelectuais de empenho na formação da literatura moçambicana,</p><p>procurando fundamentar-se nas raízes da cultura tradicional e</p><p>abrindo-se à participação comprometida com um projecto de</p><p>mudança popular.</p><p>Por outro lado, desde o fim da II Guerra Mundial que a actividade</p><p>literária dos moçambicanos se podia considerar, pela primeira vez,</p><p>mais do que simplesmente individual, isolada, episódica, dispersa.</p><p>Para além de Orlando Mendes, a viver em Portugal desde 1944,</p><p>para poder estudar na Universidade, o qual publicou as «Cinco</p><p>poesias do mar Índico» na Seara Nova (1947), é fundamental</p><p>compreender que a escrita dos 43 poemas do caderno policopiado</p><p>Sangue Negro, de Noémia de Sousa, nos anos de 1948-51, em</p><p>Lourenço Marques (hoje Maputo), integrada no grupo intelectual</p><p>que englobava portugueses residentes (Augusto dos Santos</p><p>Abranches, João Fonseca Amaral, Afonso Ribeiro, Cordeiro de</p><p>Brito e outros), e moçambicanos (Noémia de Sousa, José</p><p>Craveirinha, Virgílio de Lemos), transforma radicalmente a</p><p>percepção da literatura que se fazia em Moçambique, passando a</p><p>haver, de imediato, nesses e noutros círculos (de Angola e</p><p>Portugal), a ideia clara de que a moçambicanidade sem</p><p>ambiguidades acabava de nascer.</p><p>Dois poemas de Noémia de Sousa foram seleccionados para a</p><p>Mensagem angolana, «Sangue Negro» e «Negra», que haviam</p><p>saído, respectivamente, em 1949 e 50, na revista Vértice. Nítida</p><p>intencionalidade negrista, negróide, determinando a irrupção da</p><p>Negritude naquela latitude. O texto de apresentação, da autoria de</p><p>Craveirinha (2), considera-a «o primeiro poeta verdadeiramente</p><p>moçambicano no alto sentido da sua poesia e pelo nascimento»,</p><p>saudando na conterrânea a «herança negra» e exactamente a</p><p>consciência de estar a lançar os fundamentos decisivos da poesia</p><p>moçambicana. Podem tomar-se essas palavras como uma alusão</p><p>aos poetas Rui de Noronha e Reinaldo Ferreira, do primeiro</p><p>conhecendo-se somente poemas de técnica perfeccionista, segundo</p><p>o modelo clássico, ainda que, num ou noutro caso, pudesse</p><p>apresentar uma imagética africanizante, como em</p><p>«Quenguelequêze!...». O segundo, nascido em Barcelona (filho do</p><p>célebre Repórter X), alinhava por uma estética devedora</p><p>especialmente do presencismo. Ambos como se nunca tivesse</p><p>existido a revolução futurista (sobretudo o segundo) e, em relação a</p><p>África, como se ela não pudesse ultrapassar, na poesia, o papel de</p><p>cenário étnico ou de fantasma expulso, quando não inconvocado.</p><p>Craveirinha considera Noémia, neste texto mensageiro, uma</p><p>poetisa verdadeiramente moçambicana, com uma «mensagem</p><p>Centro de Ensino à Distância 29</p><p>única rescendendo a seiva de cajueiros e micaias quando ela diz</p><p>‘nossa voz shipalapala’» e o «mocharisse dja péla dambo» (pássaro</p><p>que na hora do crepúsculo solta o seu mais belo canto), devido à</p><p>sua «devoção e orgulho de africana», porque a sua poesia é «cem</p><p>por cento africana» e «seus poemas é ela cantando para sua mãe</p><p>África» e todos os seus «irmãos de destino». Sem equívocos,</p><p>Craveirinha especifica o porquê da africanidade de Noémia,</p><p>inovadora em relação à poesia mais universal e cosmopolita dos</p><p>antecessores.</p><p>Sumário</p><p>O jornal cultural, poético, intitulado Msaho (1952), tinha como</p><p>objectivo criar condições para a produção e promoção da literatura</p><p>moçambicana segundo perspectivas de moçambicanidade</p><p>(nativismo, telurismo, casticismo, etc.), sem que o lirismo</p><p>abstraccionista ou transcendental fosse postergado.</p><p>Exercícios</p><p>1. Estabeleça a relação existente entre a imprensa (jornal</p><p>Msaho) e as perspectivas de moçambicanidade.</p><p>2. Identifique os percursores do jornal Msaho</p><p>3. Fale das circunstâncias que estiveram por detrás da criação</p><p>do jornal Msaho.</p><p>Centro de Ensino à Distância 30</p><p>Unidade 08: A Poesia da Negritude: Noémia de Sousa (Sangue Negro)</p><p>Introdução</p><p>Noémia de Sousa nasceu em 20 de Setembro de 1926, em</p><p>Moçambique (Catembe/Maputo). Sem livro publicado, rumou a</p><p>Lisboa. Mais tarde, mudou-se para Paris. Regressaria a Portugal,</p><p>onde foi jornalista da agência noticiosa portuguesa, em Lisboa.</p><p>Morreu em 4 de Dezembro de 2002, Cascais, Portugal.</p><p>Ao completar esta unidade / lição, você será capaz de:</p><p>Objectivos</p><p> Conhecer a vida e obra de Noémia;</p><p> Indicar as características formais, ideológicas e estéticas do</p><p>Poema;</p><p>A Poesia da Negritude</p><p>A poesia de Noémia de Sousa situa-se na intersecção do Neo-</p><p>realismo com a Negritude. Embora a poetisa não conhecesse a</p><p>Negritude francófona quando escreveu os poemas (segundo seu</p><p>testemunho), a específica situação colonial de Moçambique, mas</p><p>dada à discriminação racial do que Angola, e o seu conhecimento</p><p>de língua francesa e inglesa, permitiram que as mesmas fontes</p><p>(Black Renaissance norte-americana, Indigenismo haitiano e</p><p>Negrismo cubano), associadas à divulgação de Neo-realismo e do</p><p>Modernismo em Moçambique, originassem um discurso de</p><p>Negritude intuitiva.</p><p>Assim, o caderno Sangue Segro foi entregue aos promotores da</p><p>Mensagem, em Luanda, por um intermediário ou quando a autora</p><p>por lá passou, em 1951, a caminho da Europa. De imediato, o</p><p>impacto dos 43 poemas foi enorme, tendo António Jacinto</p><p>recordado há poucos anos (1), o fascínio que despertaram,</p><p>indiciando a via pela qual a própria poesia angolana poderia seguir:</p><p>a valorização da herança negra e a revolta contra a dominação</p><p>colonial. O impacto dos poemas propagou-se à Casa dos Estudantes</p><p>Centro de Ensino à Distância 31</p><p>do Império. Noémia de Sousa nunca publicou qualquer livro, para</p><p>além desse caderno policopiado, de divulgação clandestina, pois</p><p>nem todos os textos poderiam circular sem problemas. Uma parte</p><p>dos poemas foi saindo em jornais, revistas e colectâneas,</p><p>nomeadamente em O Brado Africano, Itinerário, Vértice e</p><p>Mensagem (CEI) e nas mostras antológicas levadas a cabo, em</p><p>revista, jornal ou livro, por Mário de Andrade (1953,</p><p>1954,1958,1961,1969,etc.), Luís Polanah (1960),</p>

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