Prévia do material em texto
AN02FREV001/REV 4.0 1 PROGRAMA DE EDUCAÇÃO CONTINUADA A DISTÂNCIA Portal Educação CURSO DE PSICOLOGIA ESCOLAR Aluno: EaD - Educação a Distância Portal Educação AN02FREV001/REV 4.0 2 CURSO DE PSICOLOGIA ESCOLAR MÓDULO I Atenção: O material deste módulo está disponível apenas como parâmetro de estudos para este Programa de Educação Continuada. É proibida qualquer forma de comercialização ou distribuição do mesmo sem a autorização expressa do Portal Educação. Os créditos do conteúdo aqui contido são dados aos seus respectivos autores descritos nas Referências Bibliográficas. AN02FREV001/REV 4.0 3 SUMÁRIO MÓDULO I 1 BREVE REFLEXÃO A RESPEITO DO PAPEL DA EDUCAÇÃO 2 TENDÊNCIAS PEDAGÓGICAS NA PRÁTICA ESCOLAR 2.1 PEDAGOGIA LIBERAL 2.2 PEDAGOGIA PROGRESSISTA 3 A LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO NACIONAL (LDB): UMA REFLEXÃO DO SUJEITO FORMADO E FORMADOR 4 PEDAGOGIA DAS COMPETÊNCIAS: LIBERTADORA OU ADAPTACIONISTA MÓDULO II 5 A CRIANÇA E AS ABORDAGENS PSICOLÓGICAS – BREVE INTRODUÇÃO 6 ABORDAGEM INATISTA-MATURACIONISTA 6.1 A MEDIÇÃO DA INTELIGÊNCIA E OS ASPECTOS MATURACIONAIS DO DESENVOLVIMENTO 7 ABORDAGEM COMPORTAMENTALISTA 7.1 SKINNER E A MODELAGEM DO COMPORTAMENTO 8 ABORDAGEM PSICOGENÉTICA DE PIAGET 8.1 ADAPTAÇÃO E OS PROCESSOS DE ASSIMILAÇÃO E ACOMODAÇÃO 9 A ABORDAGEM HISTÓRICO-CULTURAL 10 UMA SÍNTESE DIDÁTICA: COSTURANDO A PEDAGOGIA E A PSICOLOGIA MÓDULO III 11 O QUE TANGE À PRÁTICA DO PSICÓLOGO ESCOLAR? 12 O PACIENTE DO PSICÓLOGO ESCOLAR: REFLEXÕES ACERCA DE UMA PRÁTICA 13 VISÃO SISTÊMICA SOBRE A QUEIXA ESCOLAR: O ALUNO, A FAMÍLIA E A ESCOLA AN02FREV001/REV 4.0 4 13.1 A FAMÍLIA SEGUNDO UMA PERSPECTIVA SISTÊMICA 14 QUAL PSICÓLOGO ESCOLAR É NECESSÁRIO PARA ATUAR EM QUAL ESCOLA? 15 DISCUSSÃO DE CASOS REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AN02FREV001/REV 4.0 5 MÓDULO I 1 BREVE REFLEXÃO A RESPEITO DO PAPEL DA EDUCAÇÃO Embora estejamos iniciando um curso de Psicologia Escolar, incidiríamos em um equívoco comum dos profissionais de psicologia que atuam nesse campo, que seria desconsiderá-lo. Antes de refletirmos sobre os aspectos práticos da atuação do psicólogo na escola, é necessário refletirmos sobre a educação, as tendências pedagógicas presentes no campo escolar, fruto de estudos e posicionamentos filosóficos, políticos, econômicos e culturais dos seus autores. Ao atuar em qualquer campo institucional – escola, hospital, empresa, etc. – o psicólogo precisa considerar o contexto em que se encontra, para que a análise dos problemas apresentados e oferecidos para sua intervenção seja aprofundada e leve em consideração os múltiplos aspectos intervenientes. A educação, e as leis que a regulamentam em um dado país, reflete as ideias e ideais dos sujeitos que a desenvolveu. Podemos começar por entender a etimologia da palavra ‘educação’. Do latim, educare, composto pelo prefixo ex (fora) somado a ducere (conduzir), podemos entendê-la como ‘conduzir para fora’. Indo um pouco além, a educação seria o processo pelo qual a criança sairia de um universo egocêntrico, próprio do primeiro ano de vida, para alcançar um conhecimento capaz de colocá-la em interação com o mundo, o qual, a partir de trocas sucessivas, permitiria o seu desenvolvimento. Ao entendermos a educação como ‘conduzir para fora’, pressupomos a necessidade de um sujeito que ‘conduz’ e outro que é ‘conduzido’. Creio, porém que a palavra ‘auxiliador’ ou ‘facilitador’, seria mais adequada nesse contexto. Estes sujeitos, na educação formal, se traduzem em professor e estudante. Logo, a relação entre estes sujeitos da aprendizagem guiará a formação e transformação do estudante. Na educação formal, este guia está pautado em um caminho a ser percorrido o qual damos o nome de currículo. Currículo este impregnado de valores, princípios e de uma compreensão de sujeito que pode ser libertadora ou adaptacionista. A seguir, algumas reflexões a respeito do currículo e sua execução AN02FREV001/REV 4.0 6 na realidade. Termo de difícil compreensão, o currículo não pode ser compreendido desvinculado de sua representação social, política, econômica e cultural. Ao ser compreendido como um projeto pedagógico encontra-se intimamente ligado às concepções e ideologias de quem o elaborou. A forma como este projeto é colocado em prática também indica quais interesses e que sociedade pretende formar o grupo que o concebe. Pretende-se que a ideia de currículo seja entendida aqui para além da concepção que o entende como um sistema de ações planejadas para a aquisição de experiência, ou como o caminho a ser percorrido pelo aluno para a aquisição de conhecimento, tendo nas disciplinas a sua fonte e nos métodos didáticos pedagógicos a sua forma. O que está inscrito no currículo não é apenas informação e sim a organização do conhecimento que corporifica formas diferentes de agir, sentir, falar e ver o mundo e o eu. Aprender informações no processo de escolarização é também aprender uma determinada maneira de agir, e maneiras de conhecer, compreender e interpretar a realidade (SILVA, 1994). A tendência em naturalizar os conhecimentos escolares, as práticas pedagógicas e avaliativas, característica da teoria educacional que podemos chamar de liberal, partia do pressuposto de que esses conhecimentos preexistiam ao currículo e que este era um instrumento para desenvolver apenas o pensamento conceitual do estudante (Silva, 1999). A sociologia do currículo busca romper essa visão quando explica que o currículo é um processo de construção social, contingente a um momento histórico e que para conhecer e transformar a realidade é necessário que se estabeleçam relações entre o currículo e a sociedade com seus valores inerentes. O currículo não é um conceito; é uma construção cultural, isto é, não é um conceito abstrato que possui alguma existência exterior e alguma experiência humana. Pelo contrário, é um modo de organizar um conjunto de práticas educacionais humanas (PACHECO, 1996: 18). Nesse sentido, o currículo não está pronto nem dado. Idealmente, deve ser continuamente construído e reinventado de acordo com as práticas pedagógicas, sustentadas por crenças e valores compartilhados entre diretores, professores e alunos. Segundo Pacheco (1996: 20), é uma prática pedagógica que resulta da AN02FREV001/REV 4.0 7 interação e confluência de várias estruturas (políticas, administrativas, econômicas, culturais, sociais, escolares etc.) na base das quais existem interesses concretos e responsabilidades compartilhadas. Na prática, entretanto, o que se constata, na maioria das vezes, são decisões e interesses centralizados ora na direção da escola, ora no corpo docente, enquanto as vozes e interesses dos estudantes parecem não serem ouvidos. As práticas pedagógicas e as responsabilidades raramente são compartilhadas com o corpo discente e, muitas vezes, também com o corpo docente – motivo que pode explicar a resistência dos professores às mudanças, uma vez que até agora eles têm sido considerados como executores de decisões e de propostas de mudança que lhes são exteriores. A reinvenção da escola exige que o professor, em vez de aplicar a reforma, possa emergir como um produtor de inovações. A centralização das decisões educativas, pedagógicas, políticas, sociais, entre tantas, por si só já aponta o perfil do futuro cidadão, produto desta escola: indivíduos alienados, despolitizados, distantes do poder decisório e manipulados pelos poucos que detêm esse poder; esses estudantes, e porque não os professores, aprendem a naturalizar essa ordem econômica e social desigual e a reproduzi-la nos espaços que ocupam:ou vivem em busca de alcançar o outro lado (do poder) e centralizá-lo ou se acomodam insatisfeitos do lado em que a escola os colocou. O currículo pode ser compreendido, portanto, como projeto e prática. Ou seja, a escola torna explícita o seu projeto pelo currículo que concretiza na prática. Logo, uma escola com um projeto inovador dificilmente alcançará seus objetivos se sua prática consistir em métodos tradicionais de ensino. As práticas pedagógicas devem dar sentido ao projeto curricular levando em conta que ele reflete a cultura predominante de um dado momento histórico. Dessa forma, um estudante com problema de aprendizagem que é levado ao psicólogo não pode ser encarado destituído das experiências vivenciadas na escola. Este estudante pode estar representando as incoerências presentes no dito currículo. Teoricamente, muitas instituições possuem currículos excepcionais e inovadores intimamente comprometidos com o respeito à diferença, porém na prática cobra a padronização dos estudantes, seja em virtude dos processos avaliativos que privilegiam apenas um aspecto do desenvolvimento do estudante, AN02FREV001/REV 4.0 8 seja em virtude de uma relação verticalizada entre professor e o estudante (o professor está acima do estudante, pois sabe mais, e o estudante, por pouco ou nada saber, deve obediência e ouvir atentamente a transmissão do conhecimento). Ao psicólogo cabe analisar profundamente as situações sempre multifacetadas a ele apresentadas. 2 TENDÊNCIAS PEDAGÓGICAS NA PRÁTICA ESCOLAR De forma a ampliarmos a concepção do leitor a cerca da realidade multifacetada em que consiste o trabalho com as questões ligadas à aprendizagem, convém apresentarmos as diferentes concepções pedagógicas desenvolvidas e ainda vigentes em grande parte das instituições de ensino nas quais o psicólogo atua. Muitas foram às concepções desenvolvidas a respeito do papel da escola, ao longo dos séculos, desde a sua criação enquanto instituição responsável pela educação formal dos indivíduos. Embora o tema possa ser considerado de extrema relevância, detalhá-lo extrapola os limites aqui traçados. Reconhecendo a importância, pois, de situar o leitor nesse contexto mais amplo que afeta a prática da psicologia escolar na atualidade, buscamos sintetizar em dois grandes grupos as tendências pedagógicas consideradas de maior expressão e influência nas escolas brasileiras. Tomando como base o autor José Carlos Libâneo e sua obra Democratização da escola pública (1985), podemos dividir as tendências pedagógicas em Pedagogia Liberal e Pedagogia Progressista: 1 - Pedagogia Liberal: a – tradicional; b - renovada progressista; c - renovada não diretiva; d – tecnicista. 2 - Pedagogia progressista: a – libertadora; b – libertária; c - crítico-social dos conteúdos. AN02FREV001/REV 4.0 9 2.1 PEDAGOGIA LIBERAL Embora o termo ‘liberal’ nos remeta a um sentido ligado a "avançado", "democrático", "aberto", contrapondo-se ao termo ‘tradicional’, não é bem assim que a pedagogia liberal deve ser entendida. A doutrina liberal aparece como justificativa do sistema capitalista que, ao defender a predominância da liberdade e dos interesses individuais na sociedade, estabelece uma forma de organização social baseada na propriedade privada dos meios de produção, também denominada sociedade de classes. Lembrando o que dissemos no início deste Módulo, não podemos separar a compreensão das teorias pedagógicas da sociedade na qual (ou para a qual) elas são produzidas. A pedagogia liberal é uma concepção própria daquilo que chamamos de ‘sociedade de classes’. Isso quer dizer que a maneira como a pedagogia liberal compreende o sujeito a ser formado é traduzida nas práticas, as quais são propostas e desenvolvidas pela escola junto aos estudantes. A educação brasileira tem sido marcada, nos últimos cinquenta anos pelas tendências liberais, nas suas formas ora conservadora, ora renovada. Tais tendências se manifestam, concretamente, nas práticas escolares e na concepção pedagógica de muitos docentes, ainda que esse fato não seja reconhecido por esses. A pedagogia liberal sustenta a ideia de que a escola tem por função preparar os indivíduos para o desempenho de papéis sociais, de acordo com as aptidões individuais. Para isso, os indivíduos precisam aprender a adaptar-se aos valores e às normas vigentes na sociedade de classes, por meio do desenvolvimento da cultura individual. A ênfase dada ao aspecto cultural esconde a realidade das diferenças de classes, pois embora esta tendência difunda a ideia de igualdade de oportunidades, não leva em conta a desigualdade de condições. Historicamente, a educação liberal iniciou-se com a pedagogia tradicional e, por razões que podem ser resumidas na necessidade de reacomodação da hegemonia da burguesia, evoluiu para a pedagogia renovada (também denominada escola nova ou ativa). O que não significou a substituição de uma pela outra, pois ambas conviveram e convivem com a prática escolar. AN02FREV001/REV 4.0 10 Na Escola Tradicional, a educação tem completa autonomia em relação à realidade social. Nela o professor é o centro de tudo: ele fala, os alunos ouvem e absorvem a sua ‘sabedoria’. A transmissão dos conteúdos é privilegiada, não havendo a preocupação quanto à assimilação real do conhecimento, apesar do objetivo primeiro ser o aprendizado. A Escola Nova, por sua vez, não se diferencia substancialmente da Escola Tradicional. Os estudiosos que desenvolveram as ideias enquadradas no que se convencionou chamar de Escola Nova, creem no poder da escola como elemento de harmonização e equilíbrio social. O importante aqui não seria mais o aprender, mas o aprender a aprender. No Brasil, historicamente, a Escola Nova exerceu um efeito negativo, na medida em que deslocou o eixo de preocupação da esfera política para a técnica e pedagógica, servindo, pois, aos interesses das classes dominantes. Demerval Saviani (1982) denominou este fenômeno de ‘mecanismo de recomposição da hegemonia da classe dominante’. John Dewey, educador norte americano, foi o primeiro a formular o ideal pedagógico próprio da Escola Nova. Para ele a educação continuamente construía a experiência concreta, ativa e produtiva de cada um. A educação preconizada por ele era essencialmente pragmática, instrumentalista. Embora buscasse a convivência democrática não colocava em questão a sociedade de classes sobre a qual nos falou Saviani. Para o autor Gadotti (2002, p. 144): Tratava-se de aumentar o rendimento da criança, seguindo os ‘próprios’ interesses vitais dela. Esta rentabilidade servia, acima de tudo, aos interesses da nova sociedade burguesa: a escola deveria preparar os jovens para o trabalho, para a atividade prática, para o exercício da competição. Neste sentido, sob muitos aspectos, acompanhou o desenvolvimento e o progresso capitalistas. Representou uma exigência desse desenvolvimento. Propunha a construção de um homem novo dentro do projeto burguês de sociedade. Poucos foram os pedagogos escolanovistas que ultrapassaram o pensamento burguês para evidenciar a exploração do trabalho e a dominação política, próprias da sociedade de classes. Nessa perspectiva, deixar a criança à educação espontânea da sociedade, conforme apregoa os teóricos escolanivistas, é também deixá-la ao autoritarismo de uma sociedade nada espontânea. Como aponta Gadotti (2002), o papel do educador AN02FREV001/REV 4.0 11 é intervir, se posicionar e não se omitir as influências, ora travestidas de democracia, de um ideal de homem traduzida nas práticas escolares, que se adapte, e não que transforme a sociedade em que vive. A omissão, ainda segundo esse autor, é uma forma de intervenção. 2.2 PEDAGOGIA PROGRESSISTA O termo é utilizado para designar as tendências que, partindode uma análise crítica das realidades sociais, sustentam implicitamente as finalidades sociopolíticas da educação. Parece claro, porém, que a Pedagogia Progressista não tem como se institucionalizar numa sociedade capitalista; mas pode ser um instrumento de luta dos professores ao lado de outras práticas sociais. Tomando esta tendência como base, a educação escolar deve recuperar sua unidade por meio de uma perspectiva integradora. Na verdade, é dessa integração que resultarão os princípios de um novo projeto de fazer pedagógico. Sem essa dimensão explícita da ação pedagógica escolar – a perspectiva integradora no ato educativo -, a escola deixa de ter sentido. Em uma perspectiva de educação crítica, direcionada para uma pedagogia social que privilegia uma educação de classe no rumo de um novo projeto de sociedade, a escola – principalmente pública - possui papel relevante e indispensável. Para isso, é preciso de organização: dar aulas, fazer planos, controlar a disciplina, manejar a classe, dominar o conteúdo e acima de tudo, entender o caráter social dos processos educativos, principalmente aqueles que acontecem na instituição escola. Para tanto, a instrumentação teórico-prática é necessária, para que os professores tomem consciência do lado político de sua prática. O leitor pode estar se questionando o que de tão importante tem a relação da escola com a sociedade em que vivemos e, consequentemente com a prática do psicólogo neste âmbito. Se o leitor compreende-se como um ator social, precisa ficar muito atento ao papel que desempenha neste cenário, sob o risco de – com um rótulo diferente – assinar laudos que ‘sentencie’ como problema emocional ou AN02FREV001/REV 4.0 12 psicológico, uma queixa ou um desequilíbrio do sistema no qual um suposto ‘estudante-problema’ não se ‘enquadre’. Não se pode perder de vista que em uma sociedade de classes, o saber (também produzido no e pelo sistema educacional) relaciona-se intrinsecamente com o poder e dominação. Se a educação apenas reproduzir essa sociedade, dificilmente possibilitará a ascensão da classe dominada ao poder, para que essas tenham, enfim uma vida digna, produto de sua luta consciente por oportunidades iguais. No tópico seguinte, tentaremos desvendar sobre qual sujeito nos fala a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional do nosso país. Antes, porém, com o intuito de facilitar o aprendizado, apresentamos um quadro resumido com as principais tendências pedagógicas, suas características e autores mais expressivos. AN02FREV001/REV 4.0 13 Quadro das tendências pedagógicas na prática escolar Nome da Tendência Pedagógica Papel da Escola Conteúdos Métodos Professor x aluno Aprendizagem Manifestações Pedagogia Liberal Tradicional. Preparação intelectual e moral dos alunos para assumir seu papel na sociedade. São conhecimentos e valores sociais acumulados por meio dos tempos e repassados aos alunos como verdades absolutas. Exposição e demonstração verbal da matéria e/ou por meios de modelos. Autoridade do professor que exige atitude receptiva do aluno. A aprendizagem é receptiva e mecânica, sem se considerar as características próprias de cada idade. Nas escolas que adotam filosofias humanistas clássicas ou científicas. Tendência Liberal Renovadora Progressiva. A escola deve adequar às necessidades individuais ao meio social. Os conteúdos são estabelecidos a partir das experiências vividas pelos alunos frente às situações problemas. Por meio de experiências, pesquisas e métodos de solução de problemas. O professor é auxiliador no desenvolvimento livre da criança. É baseada na motivação e na estimulação de problemas. Montessori Decroly Dewey Piaget Lauro de oliveira Lima Tendência Liberal Renovadora não diretiva (Escola Nova) Formação de atitudes. Baseia-se na busca dos conhecimentos pelos próprios alunos. Método baseado na facilitação da aprendizagem. Educação centralizada no aluno e o professor é quem garantirá um relacionamento de respeito. Aprender é modificar as percepções da realidade. Carl Rogers, "Sumermerhill" escola de A. Neill. Tendência É modeladora do São informações Procedimentos e Relação objetiva Aprendizagem Leis 5.540/68 AN02FREV001/REV 4.0 14 Liberal Tecnicista. comportamento humano por meio de técnicas específicas. ordenadas numa sequência lógica e psicológica. técnicas para a transmissão e recepção de informações. onde o professor transmite informações e o aluno vai fixá-las. baseada no desempenho. e 5.692/71. Tendência Progressista Libertadora Não atua em escolas, porém visa levar professores e alunos a atingir um nível de consciência da realidade em que vivem na busca da transformação social. Temas geradores. Grupos de discussão. A relação é de igual para igual, horizontalmente. Resolução da situação problema. Paulo Freire. Tendência Progressista Libertária. Transformação da personalidade num sentido libertário e autogestionário. As matérias são colocadas, mas não exigidas. Vivência grupal na forma de autogestão. É não diretiva. O professor é orientador e os alunos livres. Aprendizagem informal em grupo. C. Freinet Miguel Gonzales Arroyo. Tendência Progressista "crítico social dos conteúdos ou "histórico- crítica" Difusão dos conteúdos. Conteúdos culturais universais que são incorporados pela humanidade frente à realidade social. O método parte de uma relação direta da experiência do aluno confrontada com o saber sistematizado. Papel do aluno como participador e do professor como mediador entre o saber e o aluno. Baseadas nas estruturas cognitivas já estruturadas nos alunos. Makarenko B. Charlot Suchodoski Manacorda G. Snyders Demerval Saviani. FONTE: Disponível em: <www.manufaturademim.blogspot.com>. Acesso em: 08 dez.2011. AN02FREV001/REV 4.0 15 3 A LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO NACIONAL (LDB): UMA REFLEXÃO DO SUJEITO FORMADO E FORMADOR Antes de tecermos breves comentários a respeito da LDB mais recente, alguns trechos da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, considerados mais importantes ou que pelo menos se aproxime daquilo que é esperado da educação no Brasil, serão expostos a seguir. Com relação à educação básica: Seção I Das Disposições Gerais Art. 22. A educação básica tem por finalidades desenvolver o educando, assegurar- lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores. Os conteúdos curriculares da educação básica observarão, ainda, as seguintes diretrizes: I – a difusão de valores fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres dos cidadãos, de respeito ao bem comum e à ordem democrática; Com relação ao Ensino Fundamental: O ensino fundamental obrigatório, com duração de nove anos, gratuito na escola pública, iniciando-se aos seis anos de idade, terá por objetivo a formação básica do cidadão, mediante: I – o desenvolvimento da capacidade de aprender, tendo como meios básicos o pleno domínio da leitura, da escrita e do cálculo; II – a compreensão do ambiente natural e social, do sistema político, da tecnologia, das artes e dos valores em que se fundamenta a sociedade; AN02FREV001/REV 4.0 16 III – o desenvolvimento da capacidade de aprendizagem, tendo em vista a aquisição de conhecimentos e habilidades e a formação de atitudes e valores; IV – o fortalecimento dos vínculos de família, dos laços de solidariedade humana e de tolerância recíproca em que se assenta a vida social. Com relação ao Ensino Médio: Art. 35. O ensino médio, etapa finalda educação básica, com duração mínima de três anos, terá como finalidades: I – a consolidação e o aprofundamento dos conhecimentos adquiridos no ensino fundamental, possibilitando o prosseguimento de estudos; II – a preparação básica para o trabalho e a cidadania do educando, para continuar aprendendo, de modo a ser capaz de se adaptar com flexibilidade a novas condições de ocupação ou aperfeiçoamento posteriores; III – o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico; IV – a compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos dos processos produtivos, relacionando a teoria com a prática, no ensino de cada disciplina. Art. 36. I – destacará a educação tecnológica básica, a compreensão do significado da ciência, das letras e das artes; o processo histórico de transformação da sociedade e da cultura; a língua portuguesa como instrumento de comunicação, acesso ao conhecimento e exercício da cidadania; II – adotará metodologias de ensino e de avaliação que estimulem a iniciativa dos estudantes; III – será incluída uma língua estrangeira moderna, como disciplina obrigatória, escolhida pela comunidade escolar, e uma segunda, em caráter optativo, dentro das disponibilidades da instituição; IV – serão incluídas a Filosofia e a Sociologia como disciplinas obrigatórias em todas as séries do ensino médio. § 1o Os conteúdos, as metodologias e as formas de avaliação serão organizados de tal forma que ao final do ensino médio o educando demonstre: AN02FREV001/REV 4.0 17 I – domínio dos princípios científicos e tecnológicos que presidem a produção moderna; II – conhecimento das formas contemporâneas de linguagem; Com relação à Educação Superior Art. 43. A educação superior tem por finalidade: I – estimular a criação cultural e o desenvolvimento do espírito científico e do pensamento reflexivo; II – formar diplomados nas diferentes áreas de conhecimento, aptos para a inserção em setores profissionais e para a participação no desenvolvimento da sociedade brasileira, e colaborar na sua formação contínua; III – incentivar o trabalho de pesquisa e investigação científica, visando ao desenvolvimento da ciência e da tecnologia e da criação e difusão da cultura, e, desse modo, desenvolver o entendimento do homem e do meio em que vive; IV – promover a divulgação de conhecimentos culturais, científicos e técnicos que constituem patrimônio da humanidade e comunicar o saber por meio do ensino, de publicações ou de outras formas de comunicação; V – suscitar o desejo permanente de aperfeiçoamento cultural e profissional e possibilitar a correspondente concretização, integrando os conhecimentos que vão sendo adquiridos numa estrutura intelectual sistematizadora do conhecimento de cada geração; VI – estimular o conhecimento dos problemas do mundo presente, em particular os nacionais e regionais, prestar serviços especializados à comunidade e estabelecer com esta uma relação de reciprocidade; VII – promover a extensão, aberta à participação da população, visando à difusão das conquistas e benefícios resultantes da criação cultural e da pesquisa científica e tecnológica geradas na instituição. Fazendo uma breve análise, se por um lado parece haver certa liberdade para as instituições de ensino colocar em prática as diretrizes formuladas pela LDB, esta mesma liberdade pode também ser vista como falta de um norteador que busque delimitar os processos pedagógicos que facilite o desenvolvimento de um AN02FREV001/REV 4.0 18 projeto de cidadão. Embora defenda o desenvolvimento do educando e ainda “a difusão de valores fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres dos cidadãos, de respeito ao bem comum e à ordem democrática”, não explicita quais são esses interesses sociais nem os valores fundamentais que sustentam a ideia de homem presente no documento. Esta pseudoliberdade dá margem para que os agentes educacionais – diretores, professores, orientadores – interpretem o documento de maneira que melhor consolide seus interesses. Mesmo que se pretenda formar um sujeito consciente das questões colocadas pela realidade na qual se encontra inserido, não é missão fácil para o corpo docente, sem preparo e formação adequada, realizar este projeto. E, mais uma vez o documento não explicita ou dá pistas sobre os melhores caminhos de concretização da formação de um sujeito cônscio de seus direitos e deveres. Os professores como visto anteriormente, embora precisem ter formação superior para atuar na educação fundamental, por exemplo, não possuem preparo e conhecimento para abordar tantas questões colocadas pela prática escolar. Além disso, a baixa remuneração é um estímulo a menos na busca pelo seu aperfeiçoamento profissional. E, mais uma vez, o estudante que não aprende é interpretado à luz de suas dificuldades individuais, passando longe dos aspectos institucionais a compreensão de suas ‘queixas’. O conceito de competência pode iluminar um pouco os professores e coordenadores pedagógicos, na medida em que traz contribuições importantes a respeito do sujeito a ser formado pelas instituições de ensino e o sujeito formador. Este conceito encontra-se presente nas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN), documento oficial que orienta alguns cursos de graduação. É sobre o conceito de competência que nos debruçaremos a seguir. AN02FREV001/REV 4.0 19 4 PEDAGOGIA DAS COMPETÊNCIAS: LIBERTADORA OU ADAPTACIONISTA Como vimos anteriormente, qualquer processo educativo com suas diretrizes e leis fundamentais reflete o projeto de sociedade que uma nação possui. Muitas vezes, há um discurso muito bem estruturado e ‘maquiado’ e que, caso o leitor não esteja atento às entrelinhas, pode ser facilmente ludibriado com ideias aparentemente libertadoras e democráticas, mas na verdade extremamente ‘aprisionantes’. O conceito de competência, por ser polissêmico, é um claro exemplo nesta direção. Muitas modificações nas leis que regulamentam a educação formal no Brasil vêm ocorrendo e muitas propõem como eixo estruturante a ideia de formar profissionais, alunos, competentes. Mas vejamos com mais cuidado o que isso significa. Inegáveis são as mudanças que estão ocorrendo no mundo do trabalho, e importante é pensarmos de que maneira os trabalhadores devem responder a essas modificações. Nesse contexto, o conceito de competência ganha força como um caminho para desenvolvimento de uma “nova” pedagogia. Entretanto, o que muitos se perguntam é se a utilização do termo competência por educadores, gerências de pessoal nas empresas e no mundo do trabalho serve a um processo de transformação da realidade socioeconômica mundial, ou serve a um processo adaptativo ao capitalismo em tempos globalizados. Estaria vinculado a critérios de qualificação estabelecidos pela lógica, por vezes perversa, do sistema capitalista ou estaria, de fato, inaugurando uma reflexão sobre as práticas pedagógicas e seu papel no desenvolvimento de forças produtivas mais conscientes e autônomas? A noção de competência é, de fato, uma noção forte e deve ser recuperada, mas numa perspectiva que rompa (...) os critérios que a estão orientando na atualidade: o fatalismo da disputa competitiva (...). Do mundo do trabalho vem o “modelo de competência” com todas as contradições que ele suscita. Vem também a constatação de que ser competente representa, também, saber transgredir (MACHADO in: MARKERT, 2002, p. 205). AN02FREV001/REV 4.0 20 O termo competência vem ocupando espaço na reestruturação de práticas pedagógicas e pode ser entendido como eixo estruturante das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN), mas sua compreensão está longe de ser consensual e aí pode residir a sua força, como também sua fragilidade.Força, pois tem levado a inúmeras discussões, debates e reflexões o que já indica o potencial intrínseco que o termo traz no sentido da construção coletiva do conhecimento. No entanto, a falta de consenso pode levar à incorporação utilitária de seu significado por parte das instituições educacionais, governamentais e empresariais e a um consequente esvaziamento de seu sentido transformador. Por sua polissemia, a noção de competência é compreendida de diferentes maneiras pelas diversas correntes e tendências que jogam sobre ela inúmeras interpretações. Sem pretender esgotar este estudo, faz-se necessário apontar algumas das correntes que buscam explicar o significado do termo e os determinantes políticos e econômicos que se encontram presentes – de maneira, por vezes, velada - na sua compreensão. (...) esta polissemia se origina das diferentes visões teóricas que estão ancoradas em matrizes epistemológicas diversas e que expressam interesses, expectativas e aspirações dos diferentes sujeitos coletivos, que possuem propostas e estratégias sociais diferenciadas e buscam a hegemonia de seu projeto político (DELUIZ, 2001, p. 23). Deluiz (2001) reconhece quatro matrizes teórico-metodológicas referentes ao termo competência, a saber: a) matriz condutivista, que tem como objeto de análise o posto de trabalho e a tarefa para definir o currículo de formação, sendo os conteúdos da análise transpostos linearmente para o currículo ficando os processos de aprendizagem submetidos aos comportamentos e desempenhos observáveis na ação; b) matriz funcionalista, na qual o currículo é constituído com base em funções e tarefas especificadas nas normas de competência e a aprendizagem se restringe às atividades e não aos seus fundamentos científico-tecnológicos; relaciona-se com o produto (o trabalhador) esperado pela empresa em termos de desempenho de tarefas específicas; c) matriz construtivista, que atribui importância não só às competências voltadas para o mercado, mas direcionadas aos objetivos e potencialidades do trabalhador; considera a construção do conhecimento como algo individual e subjetivo, de desenvolvimento de estruturas cognitivas sem, no entanto, AN02FREV001/REV 4.0 21 considerar o papel do contexto social para além da esfera do trabalho na aprendizagem dos sujeitos; d) matriz crítico-emancipatória, a qual considera a noção de competência como multidimensional, envolvendo aspectos que vão desde o individual ao sociocultural, situacional e processual, não podendo ser concebida como mero desempenho; é uma construção balizada por parâmetros socioculturais e históricos. Utilizamos neste estudo, a noção de competência que traz em sua essência uma concepção dialética, uma vez que, por um lado, pode ser compreendida como uma adaptação às novas configurações do mundo globalizado do trabalho, mas por outro, como um dos caminhos capazes de transgredir e transformar as relações estabelecidas por este mundo. Entendemos que essa concepção se aproxima da matriz crítico-emancipatória sobre a qual se refere Deluiz. Dialeticamente, segundo Markert (2002), a formação do homem integral pode beneficiar-se do progresso do capitalismo; porém, esse só poderá ser superado pela associação de homens autoconscientes. Da mesma forma, os homens serão autoconscientes na medida em que as condições de sua produção apresentar-se como uma barreira à sua força produtiva, obrigando-os a administrar conflitos, a exercitar a reflexão e, em consequência, ampliar a consciência de si próprio e do mundo que os cerca. Logo, para o autor, o sistema capitalista, sob este aspecto, constitui-se em contexto que pode promover o desenvolvimento de homens integralmente competentes, considerando que a indústria moderna guarda em sua base um potencial revolucionário, por estar em constante transformação obriga os trabalhadores a terem mobilidade, a serem flexíveis, a desenvolverem novos potenciais ao ocuparem novas funções, enfim, produz dinamismo. No entanto, a utilização que se faz desse dinamismo - meio de produção/força produtiva - serve aos interesses lucrativos daqueles que detêm o capital e que concentram a renda. Voltemos ao nosso questionamento inicial a respeito do uso que se faz do conceito de competência. Markert (2000) afirma que podemos encontrar no termo competência um conceito pedagógico universal que reflete o novo patamar dos conceitos de produção, baseado na visão dialética do desenvolvimento das forças produtivas. AN02FREV001/REV 4.0 22 Nesse sentido, a qualificação depende não só de condições objetivas, mas de disposições subjetivas que servem de base para a construção da profissionalidade dos trabalhadores, na luta pelo seu reconhecimento e efetivação de seu poder. Para isso, tanto os aspectos cognitivos como os comportamentais, as posturas e os valores fazem-se valer (Machado apud Markert, 2000, p. 22). O trabalhador moderno não representa somente força de trabalho e conhecimento técnico específico para sua função; há um papel político e social a ser desempenhado: “o ponto crucial das novas competências deverá manifestar-se na capacidade e disposição do trabalhador para assumir a gestão autônoma e coletiva do processo de produção e de vida” (MARKERT, 2000). O autor coloca a competência técnica (trabalho) e a competência comunicativa, direcionadas às relações humanas como categorias centrais do conceito integral de competência. Dessa forma, ter conhecimento técnico e saber interagir com o grupo de trabalho constitui-se em requisitos indispensáveis para um bom desempenho profissional, e para garantir autonomia e poder de decisão aos trabalhadores no contexto produtivo, ou seja, na sua experiência concreta de trabalho. Para Negt (apud Markert, 2000), a experiência é a categoria central para a educação e a aprendizagem dos homens que, embora construída pelo homem em sua particularidade, é um momento coletivo, mediado pela linguagem em relação direta com a realidade social; a noção de experiência tem sempre um componente geral que extrapola os sentimentos particulares. Markert acredita que é com base na aprendizagem orientada pelas/para experiências que se conseguirá desenvolver competências-chave com o objetivo de superar o processo de dissolução e segmentação social, determinado, em muito, pela maneira fragmentada de olhar e pensar o mundo. Para que se estruture um currículo baseado em competência - o que aponta também para uma aprendizagem orientada para e pela experiência - importa que os docentes reflitam sobre suas práticas pedagógicas e suas formas de interlocução com os sujeitos da aprendizagem, estabelecendo uma relação dialógica com seu público. A aprendizagem orientada para experiência representa uma tentativa de resgate da capacidade de pensar e compreender integralmente o contexto social, sendo um projeto não só pedagógico como também político. Ser competente, AN02FREV001/REV 4.0 23 portanto, não é tão somente saber sobre algo, mas ser capaz de atuar sobre este algo, transformá-lo quando necessário, flexibilizá-lo, integrá-lo a outros saberes, a outras interlocuções sempre em busca de um saber e um fazer situados, teoricamente sustentados e socialmente úteis. As categorias norteadoras de um conceito de competência deveriam evitar que os conceitos pedagógicos aplicados se tornem uma nova moda pedagógica, ou ajustem somente as capacidades laborais e interações intersubjetivas dos homens à nova ideologia do “capital progressista”, mas ao contrário, contribuam para um entendimento de “politecnia”, de formação integral do homem (...) (MARKERT, 2002, p. 206). Ramos (2002) chama a atenção para as armadilhas que podem levar a uma compreensão equivocada de competência e do valor da experiência na construção das competências. Ao fazer uma crítica às Diretrizes e Referenciais CurricularesNacionais da Educação Profissional de Nível Técnico, a autora ressalta a existência de alguma confusão no que se refere à discriminação dos conceitos de habilidade, capacidade, atividade e competência. Competência, nesse caso, é compreendida como um mecanismo acionador de procedimentos e esquemas mentais, com estrutura e funcionamento dinâmicos, caracterizados pela inteligência prática e pela inteligência formalizadora: a inteligência prática configurada com base nas ações, enquanto a inteligência formalizadora entendida como o processo por meio do qual se desenvolve o pensamento abstrato. A autora por fim conclui que, nos documentos oficiais, a competência é descrita como ações específicas constituidoras das atividades profissionais, nas quais procedimentos e esquemas mentais são reunidos em uma única instância: a inteligência prática. Adiante, veremos que os aspectos cognitivos devem estar sempre em relação ao mundo que cerca o sujeito. São necessárias, principalmente, a inteligência, a percepção e a memória, mas não somente. Entendemos que competência tem a ver com esquemas mentais sim, mas que seu conceito fica incompleto se reduzido a isso. Assim, como a integralidade no cuidado, a competência só poderá ser “avaliada” na prática, circunscrita a um contexto sociopolítico, econômico e cultural. A armadilha sobre a qual fala Ramos (2002) é exatamente de retornarmos para uma concepção condutivista do conceito de competência, uma vez que é dessa concepção que mais se aproximam os documentos oficiais. Na tentativa de objetivar AN02FREV001/REV 4.0 24 a aprendizagem e a prática profissional, Ramos entende que as competências foram reduzidas às habilidades requeridas para a natureza do trabalho. Ramos (2002, p. 413) nos alerta que “(...) a concepção (neo) pragmática do conhecimento pode vir a legitimar construções curriculares centradas na prática, que subordinam os conceitos aos limites de sua instrumentalidade ou das formulações espontâneas”. O que observamos na fala anterior, entretanto, é menos essa subordinação, e mais a tendência em transformar a prática em algo burocrático e não em cenários de aprendizagem nos quais a teoria possa ser concretizada, discutida, reformulada de modo que essa díade - teoria/prática - seja garantida. De fato, não podemos conceber que as práticas pedagógicas estruturem-se exclusivamente com base na experiência do estudante, mas não há como discordar de que a aprendizagem que se constrói na inter-relação do conhecimento científico com a sua instrumentalização tem muito mais potência e possibilita uma compreensão integral do objeto do conhecimento. Mesmo que tenhamos um processo de ensino crítico, reflexivo e inovador, na maioria das vezes só fará sentido político e social para o estudante se romper os muros escolares; não com base em uma prática adaptativa, que aprisione, mas que seja transgressora, que liberte. Com isso, não queremos dizer que as ações (a experiência) devam ter preeminência sobre os conceitos (conhecimento teórico), mas que seja possível construir a inteligência formalizadora e a inteligência prática em conjunto, integradamente, buscando reduzir uma possível hierarquia de uma sobre a outra. A competência não se limita ao conhecer, mas vai além porque envolve o agir numa situação determinada. O agir competente, portanto, inclui decidir e agir em situações imprevistas, mobilizar conhecimentos, informações e hábitos, para aplicá-los com capacidade de julgamento, em situações reais e concretas, individualmente e com sua equipe de trabalho (RAMOS, 2001, p. 31). Portanto, a noção de competência discutida aqui é defendida como uma possibilidade de libertação, mas não de adaptação ao sistema capitalista que exacerba a desigualdade entre as classes pode significar uma nova perspectiva no âmbito educacional e, mais especificamente nas escolas onde o psicólogo escolar, presumidamente trabalha. Pensar a educação sob o viés da competência amplia a visão de todos os envolvidos no processo pedagógico. Ao ir além do simples saber sobre um objeto, passam a serem valorizadas as atitudes daquele que aprende, mas também daquele AN02FREV001/REV 4.0 25 que ensina. Essa talvez seja a maior dificuldade que os educadores, mesmo que concordes com esse referencial enfrentam. Como funcionar segundo uma lógica muito diferente da qual eles foram educados e, posteriormente, formados? Desenvolver estudantes competentes requer que os educadores sejam igualmente competentes, de acordo com a perspectiva aqui adotada. Para que isso aconteça é necessário que se faça uma reflexão a respeito do real objetivo das práticas pedagógicas. Se esse for ao encontro de cumprir um currículo recheado de disciplinas obrigatórias e, por vezes desinteressantes é fundamental uma ruptura de paradigma para que seja possível pensar as práticas pedagógicas com o intuito de desenvolver seres humanos, investigando suas virtudes e possibilidades e potencializando-as em busca de um melhor saber - e – fazer. Insiste-se, pois, que a própria prática docente seja questionada e a formação exigida para ocupar esse lugar, reavaliada. Sem isso, não adiantará a boa vontade de alguns de um lado e os documentos oficiais do outro. E, pelo que tem nos mostrado a realidade escolar, parece estarmos distantes de repensar ou reinventar as práticas pedagógicas e a sua finalidade. Nesse contexto complexo, vale acrescentar, que o psicólogo escolar precisa estar muito atento a respeito do que sua prática está a serviço. No próximo módulo ficará claro como por detrás das abordagens psicológicas esconde-se uma visão de mundo e de sujeito circunscrito ao contexto sociopolítico e econômico de uma dada sociedade. Os conhecimentos produzidos são produzidos em um dado momento histórico e, mesmo que, aparentemente neutros politicamente, não podemos ser ingênuos a ponto de não levarmos em conta as condições sobre as quais um conhecimento é produzido. Será possível perceber, por exemplo, que a abordagem inatista- maturacionista tem um olhar sobre o sujeito diferente da abordagem comportamentalista que também se diferencia das ideias de Piaget sobre o sujeito – mesmo que sua intenção primeira, como veremos, fosse buscar como se origina o conhecimento - que também é nitidamente distinta do sujeito compreendido por Vygotsky. Experimente, pois, fazer esse exercício. Tente responder, na medida em que vá construindo sua compreensão a respeito das abordagens apresentadas no módulo seguinte, qual compreensão de sujeito e de mundo está por trás daquele AN02FREV001/REV 4.0 26 posicionamento teórico. Talvez o leitor surpreenda-se com aquilo que está nas nossas vistas, mas nunca prestamos a atenção. FIM DO CURSO! AN02FREV001/REV 4.0 29 MÓDULO II 5 A CRIANÇA E AS ABORDAGENS PSICOLÓGICAS – BREVE INTRODUÇÃO Ao pensarmos em teorias da aprendizagem infantil é necessária uma breve situada no que se refere à relação da criança com o ensino formal, que tem na escola o seu locus principal. É importante lembrar que a concepção de criança que temos hoje começa a ser construída a partir do século XVII. Até esse momento histórico a criança era concebida como um pequeno adulto (homúnculo) e, portanto, deveria, a partir de certa idade, ter as mesmas funções do adulto ou pelo menos acompanhá-los em suas atividades cotidianas. Podemos observar esta afirmativa, a partir das pinturas da época, onde o corpo infantil era representado com as mesmas proporções e tamanho do corpo adulto. Não havia a noção de que a criança possuía uma série de peculiaridades que deveriam ser levadas em consideração para a sua compreensão e seu processo de desenvolvimento. Naquela época, as crianças que sobrevivessem, já que a expectativa de vida era bem baixa, já deveriaestar inserida no mundo adulto. Não havia, pois, o reconhecimento da infância como uma fase do desenvolvimento humano. O avanço das descobertas científicas permitiu o prolongamento da vida e a diminuição da mortalidade infantil. A partir do século XVII, passou-se a considerar o fato da criança ser diferente do adulto e que, portanto mereceria um maior preparo para a vida. Aos pais, então, cabia não apenas garantir a sua sobrevivência, mas também seriam responsáveis pela sua formação, entendida aqui como moral e espiritual. Esta concepção afasta a criança do convívio direto com os adultos – onde sua socialização acontecia, na medida em que ao auxiliar os mais velhos, ela aprendia seus valores e costumes - colocando-a junto à família e à escola; esses passam a ser os responsáveis pela formação da criança, neste momento histórico. A criança passa a ser objeto central de interesse, atenção e cuidado dos adultos. AN02FREV001/REV 4.0 30 Os pais que se preocupam com a educação de suas crianças merecem mais respeito do que aqueles que se contentam em pô-las no mundo. Eles lhes dão não apenas a vida, mas uma vida boa e santa. Por esse motivo, esses pais têm razão em enviar os filhos, desde a mais tenra idade, ao mercado da verdadeira sabedoria (o colégio), onde eles se tornarão os artífices de sua própria fortuna... (ARIÈS apud FONTANA e CRUZ, 1997: 7) O afastamento da criança do mundo adulto modificou a maneira da sociedade pensar sobre elas. Foi sendo reconhecido um mundo próprio a criança e que sua mente funcionava de modo diferente da mente do adulto. Refletir, mesmo que brevemente sobre isso, pode ser surpreendente, uma vez que somos levados a crer que todo conhecimento já é dado e não construído. Pode parecer óbvio com todo conhecimento do qual dispomos atualmente sobre a criança de que ela é diferente do adulto, que seu funcionamento mental e formas de organização do conhecimento são peculiares, mas foi somente no século XX que se iniciou efetivamente o estudo científico da criança e do desenvolvimento infantil. Diversas abordagens foram desenvolvidas com vistas a explicar o comportamento/funcionamento infantil que colocaram luz em diferentes aspectos, de acordo com o interesse científico em questão, tais como: a inteligência, a motivação, a maturação, a influência do meio, a aprendizagem, o processo de construção do conhecimento entre outros. Essas abordagens têm exercido considerável influência nos meios educacionais e levado a reflexões sobre as metodologias e conteúdos do ensino escolar. A psicologia é uma das ciências que estuda sobre a educação escolar. Sendo uma das ciências que estuda o homem, a psicologia se debruça sobre o estudo dos mais variados temas, tais como: a afetividade, o desenvolvimento da criança, a velhice, a psicopatologia, as relações institucionais etc. No entanto, todos os estes estudos psicológicos, que ‘alimentaram’ as práticas pedagógicas, não foram desenvolvidas com este objetivo, foram adaptadas para este fim. Entendemos que as contribuições da psicologia fundamentais à prática educativa são aquelas que podem lançar luz sobre aspectos do ensinar e aprender. A maior parte do conhecimento produzido nesta área diz respeito à relação entre desenvolvimento e aprendizagem, já que desenvolvimento e aprendizagem são processos, de alguma forma, inter-relacionados. AN02FREV001/REV 4.0 31 Quando dizemos que para uma criança aprender determinado conteúdo precisa amadurecer ou atinja certa idade, estamos subordinando a aprendizagem ao desenvolvimento. Por outro lado, não são raras as vezes que ouvimos que o ensino deve estimular o desenvolvimento da criança. Distintas abordagens lançam olhares também distintos sobre estas questões; questões estas que, dependendo do enfoque dado a um ou outro aspecto, influenciam sobremaneira as práticas pedagógicas de uma escola. A discussão sobre a evolução psíquica do ser humano é alvo de um debate que teve início no final do século XIX e continua até os dias de hoje. Diferentes autores, teorias e modelos explicativos tentaram formular uma explicação convincente, especialmente para a relação entre o desenvolvimento e aprendizagem humana. Dentre elas, três posições tornaram-se clássicas: • O desenvolvimento seria um processo relativamente independente e dissociado das diversas aprendizagens e, portanto, das práticas educativas. Como consequência do desenvolvimento biológico, seguiria um percurso de mudanças mais ou menos estável e, até certo ponto, pré-programado; • O desenvolvimento e a aprendizagem seriam processos coincidentes. A ênfase é dada à aprendizagem. O ambiente e a experiência são determinantes do comportamento. O desenvolvimento nada mais é do que o resultado das aprendizagens acumuladas durante a vida. Dessa forma, os dois processos não se distinguem; • O desenvolvimento e a aprendizagem são dois processos que se inter- relacionam. O desenvolvimento é visto como um processo mediado, ou seja, as mudanças que ocorrem ao longo da vida estão marcadas pela interação que as pessoas estabelecem com seu meio social e cultural. Considera-se o desenvolvimento biológico como um dos fatores do desenvolvimento psicológico, na medida em que este se relaciona com o meio sociocultural. Dito de outra maneira, o "programa biológico" das pessoas pode concretizar-se, porém, está submetido ao "filtro" social e cultural. Dentre estas posições, destacamos a abordagem inatista-maturacionista, a comportamentalista, a piagetiana e a histórico-cultural. É sobre estas abordagens que nos deteremos a seguir. AN02FREV001/REV 4.0 32 6 ABORDAGEM INATISTA-MATURACIONISTA FIGURA 1 - FILHO DE PEIXE, PEIXINHO É? FONTE: Disponível em: <www.minilua.com>. Acesso em: 30 ago. 2011. Muitos já ouviram este questionamento a respeito da herança genética. ‘Manuela é tão observadora, puxou a mãe’, ‘João tem uma incrível aptidão para línguas’, também são comentários que colocam em evidência a influência dos aspectos genéticos no comportamento dos descendentes. Maturidade, aptidão, AN02FREV001/REV 4.0 33 inteligência são temas estudados pela psicologia e que conferem um papel central aos aspectos biológicos no desenvolvimento da criança. A perspectiva chamada inatista-maturacionista (Fontana e Cruz, 1997) considera que os fatores hereditários ou maturacionais são mais importantes que a experiência e a aprendizagem para o desenvolvimento infantil e para determinação das capacidades da criança. Esta abordagem afirmaria sem duvidar que o fato de filhos de artistas tornarem-se artistas, filhos de esportistas tornarem-se esportistas, filhos de médicos, tornarem-se médicos estaria ligado à hereditariedade e à maturação. Mas o que entendemos por hereditariedade e maturação? Características da criança que foram herdadas de seus pais (cor dos olhos, dos cabelos, o tipo sanguíneo, dentre outras), fazem parte da herança genética individual que cada um de nós recebe desde a concepção. A hereditariedade pode ser entendida então, como o conjunto de características ou qualidades que estão fixadas na criança, já no nascimento. Já a maturação pode ser compreendida como o padrão comum de mudanças que se dão em todos os membros de uma mesma espécie. Estas mudanças ocorrem em uma sequência predeterminada que, de forma geral, independe de fatores externos. E qual a relação destes temas com a questão da inteligência e da aprendizagem? Teóricos desta abordagem acreditam que o desenvolvimento psicológico acontece do mesmo modo que o desenvolvimento biológico. Dessa forma, segundo esta perspectiva, • A inteligência e as aptidões individuais seriam herdadas dos pais e já estariam predeterminadas por ocasião do nascimento. Dessa forma, o comportamento e as habilidades das crianças seguiriampadrões mais ou menos fixos, governados pelos processos de maturação, que seriam independentes da aprendizagem ou da experiência. • Características psicológicas como nível de inteligência e habilidades de escrita, leitura, cálculo, entre outras, seriam transmitidas de pai para filho por meio da herança biológica. Voltemos um pouco em nossa introdução. Se até o século XVII, a criança não tinha grandes diferenças em relação ao adulto, aqui os pesquisadores começam AN02FREV001/REV 4.0 34 a perceber que além de serem diferentes do adulto, as crianças também são diferentes entre si, se transformando ainda em adultos com diferenças individuais. Estes pesquisadores passam a se interessar pela seguinte questão: Por que as pessoas/crianças diferem – quanto a traços de personalidade, de habilidades, de desempenho intelectual, etc. – uma das outras? O que determina esta diferença? Passaram a constatar que pessoas com uma aptidão especial geralmente tinham familiares com o mesmo tipo de aptidão. Comparando irmãos gêmeos, também constataram que estes possuíam nível intelectual com um grau de semelhança maior do que aquele encontrado entre irmãos não gêmeos. No entanto, (...) essas constatações foram interpretadas como indicadoras de que os fatores inatos são mais poderosos na determinação das aptidões individuais e do grau em que estas podem se desenvolver do que a experiência, o meio social e a educação. (FONTANA e CRUZ, 1997, p.12) Dessa forma, não fica difícil perceber que os pesquisadores desta abordagem delegavam um papel secundário ao meio no desenvolvimento das habilidades e inteligência da criança. Portanto, se o filho de um ator possui a mesma aptidão de seu pai e se transforma em um grande ator, isto está diretamente ligado à herança genética recebida por ele e ao seu processo de maturação, que, no seu tempo, fez surgir o ‘peixinho’. O fato de a criança ter se desenvolvido em um ambiente onde teve contato intenso com a profissão do pai, ter tido um meio cultural propício e oportunidade para tal, não são considerados por estes estudiosos. 6.1 A MEDIÇÃO DA INTELIGÊNCIA E OS ASPECTOS MATURACIONAIS DO DESENVOLVIMENTO AN02FREV001/REV 4.0 35 Com o objetivo principal de compreender as diferenças individuais, se desenvolveram os primeiros estudos psicológicos que visavam avaliar a inteligência. Alfred Binet (1857-1911), pioneiro nestes estudos, interessou-se principalmente pelo desenvolvimento de testes que pudessem medir a inteligência. Para Binet a inteligência era concebida como uma aptidão geral que independe das informações e experiências adquiridas ao longo da vida de um indivíduo. As principais características da inteligência, segundo este autor, seriam as capacidades de atenção, de julgamento e de adaptação do comportamento a objetivos; estaria também ligada ao bom-senso, ao ‘bom’ raciocínio. Dessa forma, o que define a inteligência, não é a quantidade de conhecimento que um indivíduo possui, mas sua capacidade de raciocinar, julgar e compreender. Todas estas características já se encontram presentes no indivíduo ao nascer, aguardando a maturação necessária para aparecer. Teorias mais modernas da inteligência ampliam sobremaneira a sua concepção, conferindo a esta inteligência definida por Binet, uma noção complementar, já que a entendem como uma inteligência entre muitas possíveis. Ao mesmo tempo em que os estudiosos pesquisavam a respeito das diferenças individuais, percebiam que também havia semelhanças no curso do desenvolvimento. Um bebê, por exemplo, possui fases desenvolvimentais que seguem mais ou menos um mesmo padrão: a maioria dos bebês torna-se capaz de sentar, antes de ser capaz de se arrastar, engatinhar e depois andar. Essas sequências parecem se repetir sempre em relação à maioria das crianças. Um dos primeiros psicólogos que se interessou por estes padrões no desenvolvimento infantil foi Arnold Gessel, nos Estados Unidos. Este teórico defendia a primazia dos fatores de maturação sobre os fatores de aprendizagem. Para ele o que explica a existência de um padrão no desenvolvimento das crianças seria o processo de maturação biológica. Da mesma forma que o desenvolvimento biológico, o psicológico também se daria na medida em que o cérebro e suas estruturas fossem se desenvolvendo e ampliando as possibilidades de novos padrões de comportamento, próprios a uma determinada faixa etária. Mas qual seria o papel do meio para estes estudiosos? Tanto fazia esta criança nascer em uma cultura ou em outra, em um meio social eu em outro? AN02FREV001/REV 4.0 36 FIGURA 2 FONTE: Disponível em: <www.baby-in-hollywood.blogspot.com>. Acesso em: 30 ago. 2011. FIGURA 3 FONTE: Disponível em: <www.ensaiosantropologicos.blogspot.com>. Acesso em: 30 ago. 2011. Para esta abordagem, a influência do meio social se dá apenas no sentido de facilitar ou dificultar o processo de maturação. Por exemplo, uma criança que raramente é retirada do berço terá retardado o seu processo de engatinhar, mas se a mesma estiver em condições adequadas, seu desenvolvimento aconteceria na sequência e ritmo determinados pela maturação. Tanto Binet quanto Gessel estavam interessados em definir comportamentos típicos a cada faixa etária, seguindo o padrão de maturação observado na infância e adolescência. AN02FREV001/REV 4.0 37 Binet interessou-se em observar comportamentos que indicassem o nível de inteligência numa determinada idade da criança, enquanto Gessel dedicou-se a observar a evolução ou o desenvolvimento de comportamentos considerados típicos. Esses autores acreditavam que os fatores hereditários e a maturação biológica seriam determinantes na evolução psicológica da criança. Os testes de inteligência e as escalas de desenvolvimento permitiriam construir padrões de "normalidade“, o que possibilitaria avaliar se uma criança está se desenvolvendo normalmente. Como para esses autores o desenvolvimento da criança independe dos fatores externos, dada à importância da hereditariedade no processo, não importava o lugar sociocultural e a época em que a criança viva ou as condições materiais e as possibilidades educacionais a que tenha acesso: a criança tida com ‘normal’ deve apresentar tais comportamentos. Vale ressaltar, no entanto, que eles chegaram à definição de padrões comportamentais de cada faixa etária, a partir de estudos realizados na primeira década do século XX com crianças francesas e norte-americanas. Foi a partir daí que se definiu o que é normal ou não. De acordo com esta abordagem, então, já que o desenvolvimento segue determinados padrões geneticamente e biologicamente orientados, uma criança que não se enquadra nas escalas de desenvolvimento dos comportamentos típicos, não pode ser considerada como se desenvolvendo ‘normalmente’, não importando se esta nasceu e cresceu na classe média europeia ou no interior do nordeste brasileiro. Estudos mais recentes realizados com crianças adotivas questionam essa ‘fatalidade’ genética, uma vez que têm mostrado que crianças com a mesma carga genética de seus pais, criadas em lares mais ‘nutritivos’ social e psicologicamente, possuem QI mais alto do que de seus pais biológicos, embora ainda assim menores que os filhos biológicos de seus pais adotivos. Daí, podemos nos perguntar: O desenvolvimento de uma criança é governado por um padrão inato no nascimento ou ele é moldado pelas experiências posteriores ao nascimento? Parece que a posição mais razoável frente o dilema influência genética X influência do meio é considerar que embora alguns padrões temperamentais e de AN02FREV001/REV 4.0 38 inteligência possam ser herdados, eles podem ser modificados pelo estilo de cuidado recebido pela criança; Ou seja, nenhum aspecto do desenvolvimento é inteiramenteuma coisa ou outra. Porém, retomando as ideias desenvolvidas na abordagem inatista- maturacionista, cabe perguntarmos: se o ritmo ou sequência do desenvolvimento são biologicamente determinados, qual a sua relação com a aprendizagem? Essa abordagem sustentou o que podemos denominar de “Ideologia do dom”, onde as diferenças no desempenho de determinada tarefa ocorrem em razão de uma herança genética ou mesmo de características étnicas, e não por causa de diferenças culturais ou de oportunidades. Segundo Patto (1984, p. 98), (...) a quantificação quase mágica, realizava o sonho da sociedade industrial capitalista de poder basear-se num critério numérico, objetivo, para classificar seus membros. (...) este foi o domínio em que a Psicologia americana mais se distinguiu: (...), explicar o insucesso escolar e garantir, assim, a crença no mito da igualdade de oportunidades. Os testes de ‘prontidão’ e de inteligência têm amplamente utilizado para a avaliação das crianças em idade escolar, muitas vezes, penalizando-as. O resultado destes testes tem afastado muitas crianças da escola, impedindo-a do acesso ao conhecimento, por fornecerem indicadores de que a criança ‘ainda não está pronta’ para aprender por ser ainda ‘imatura’, biologicamente falando. Essa ideia corrobora com o apontamento de Patto (1984), uma vez que desconsidera as diferentes oportunidades entre as crianças. Por outro lado, é necessário que reconheçamos que esta abordagem, inaugura o diálogo entre a psicologia científica e a educação. A construção dos testes de inteligência, por exemplo, responde a demanda emergente dos meios educacionais franceses de identificar as crianças mentalmente deficientes e estabelecer métodos de ensino acessíveis a elas. A ideia de que a criança possui atributos universais levou a crer que à escola caberia fazer aflorar estes atributos naturais, desenvolvendo as potencialidades do educando de forma ‘harmoniosa’. Isto colocou luz nas especificidades das crianças (bem diferente daquela concepção do século XVI), nas capacidades, potencialidades AN02FREV001/REV 4.0 39 e características da criança, colocando destaque nas noções de prontidão, maturidade e aptidão. No entanto, essa abordagem limita a possibilidade de aprendizagem a certo nível de desenvolvimento da criança, quando certas capacidades já estivessem desenvolvidas. Somente a partir daí o aprendizado poderia se dar. Ou seja, haveria uma idade bem precisa para aprender determinado conteúdo, ou ainda, que o proveito que a criança tira da aprendizagem estaria ligado ao seu nível de prontidão ou maturidade. De maneira resumida, o papel da escola, segundo esta abordagem, seria a de promover um desenvolvimento harmonioso das capacidades infantis, desde que não houvesse "imaturidade". Daí a ideia de que as crianças "não estão prontas" para a alfabetização ou mesmo que "não têm condições intelectuais" para acompanharem as classes de alunos ditos normais. 7 ABORDAGEM COMPORTAMENTALISTA AN02FREV001/REV 4.0 40 Ao contrário da abordagem anterior que coloca ênfase nos aspectos biológicos para o desenvolvimento das habilidades, a abordagem comportamentalista entende que estas habilidades são determinadas por suas relações como meio em que se encontram. Jonh B. Watson foi o fundador do movimento comportamentalista na psicologia, definindo-a como a ciência do comportamento, sendo este um ramo objetivo e experimental das ciências naturais. Ao enquadrar a psicologia como um ramo das ciências naturais, Watson considera a existência na continuidade entre o animal e o homem. Para os comportamentalistas, embora haja um maior requinte e complexidade no comportamento do homem em relação ao comportamento animal, ambos podem ser explicados pelos mesmos princípios. Dessa forma, o objeto de pesquisa do comportamentalismo é o comportamento, humano e animal. FIGURA 4 FONTE: Disponível em: <www.olharbeheca.blogspot.com>. Acesso em: 5 out. 2011. Para nortear as ideias desta abordagem é importante esclarecer o que os teóricos desta abordagem entendem por comportamento. Comportamento = resposta do organismo a um estímulo externo (meio ambiente). Estímulo = toda alteração do ambiente captada pelos órgãos receptores (dos sentidos). Resposta = alterações que ocorrem no organismo em função de estímulos externos. Exemplificando... AN02FREV001/REV 4.0 41 Imaginemos um gato bebendo água. Ao ouvir um latido, o gato sai correndo. Podemos dizer que ao ouvir o estímulo latido, o gato emitiu uma resposta: o ato de correr. Isto é, um determinado estímulo provocou uma determinada resposta. O que interessa à psicologia, portanto, é a relação entre estímulos e respostas, aspectos que podem ser empiricamente observados. Os comportamentalistas não desconsideram a existência de processos internos relacionados ao comportamento, mas atribuem o seu estudo à área da fisiologia, uma vez que não podem ser observados. Logo, a preocupação dos comportamentalistas pode ser resumida em: • Prever a resposta quando se conhece o estímulo; • Identificar o estímulo quando se conhece a resposta. O estudo do comportamento deve, pois, explicar a relação entre estímulo- resposta (S-R), das quais ele é resultado. Cabe aos comportamentalistas descobrir quais são os estímulos que provocam determinado comportamento. Para os estudiosos desta abordagem o comportamento – animal ou humano - é sempre uma adaptação aos estímulos, às alterações que se processam no ambiente. Então, qual seria o papel da aprendizagem para esta abordagem? Não fica difícil perceber que, se para os inatistas a aprendizagem ocupa pouco lugar no desenvolvimento de certas habilidades, para os comportamentalistas a aprendizagem ocupa um papel central. O mais importante na determinação do comportamento são as experiências, aquilo que foi aprendido durante a vida. A preocupação básica do comportamentalismo é explicar como os comportamentos são aprendidos. Burrhus Frederic Skinner, importante psicólogo comportamentalista, dando continuidade às ideias de Watson distinguiu dois tipos de aprendizagem: por condicionamento clássico e por condicionamento operante. Aprendizagem por condicionamento clássico: quando um determinado estímulo externo provoca um determinado comportamento; envolve uma reação do organismo ao meio e não uma ação do organismo sobre o meio. AN02FREV001/REV 4.0 42 Tomemos novo exemplo: Mônica é apaixonada pelo Renatinho. Numa determinada história (em quadrinhos), ele a convidou para tomar sorvete. Mônica, toda feliz, vai ao encontro de seu pretendente e o espera ansiosa. Mas ele não pode ir e lhe manda um recado pela Carminha Frufru, que é concorrente dela. Para criar um clima de ciúmes, Carminha diz que o Renatinho não pôde vir ao seu encontro e que o viu de mãos dadas com uma menina. Mônica começa a chorar, copiosamente. Na sorveteria tocava a música: "Diga que não sou o seu amor". Cebolinha, percebendo a situação, rapidamente elabora um plano para derrotar a Mônica. Quando esta se refaz e sai caminhando em direção à sua casa, encontra-se com Cebolinha, que liga um gravador onde toca a mesma música da sorveteria. Ao ouvir o estímulo musical, Mônica se derrete em lágrimas. Quanto mais a música toca, mais a Mônica chora. Cebolinha aproveita-se da situação e a obriga a dizer que não é mais a "dona da rua". Quando está prestes a ceder a liderança para o Cebolinha, chega o Renatinho, desculpando-se por não ter ido ao seu encontro. Mônica percebe que ele está de mãos dadas com uma menininha: sua irmãzinha caçula. Ela, então, compreende a provocação de Carminha e o final todos já sabem... sobra pancadaria para o Cebolinha. S (desprezo) – R (choro) Sc (música) – R (choro) Podemos dizer, comrelação ao exemplo dado, que o ‘desprezo’ é um estímulo externo que provoca a reação de choro do organismo. Esta reação não é considerada uma resposta aprendida. À medida que o desprezo é associado à música, essa música passa a servir de estímulo para provocar a resposta de chorar. Nesse caso, a música é chamada pelos comportamentalistas como estímulo condicionado, uma vez que provoca a reação de chorar por ter se associado ao desprezo, mas que sem esta associação não provocaria tal resposta; é um estímulo, pois, condicionado à reação de desprezo. Por condicionamento podemos entender o processo de associar, pela repetição, um estímulo a uma reação não natural dele, de tal modo que a exposição a tal estímulo passe a provocar essa reação (p.ex., se durante algum tempo se toca uma sineta toda vez que o alimento é servido a um animal, o soar da sineta sozinho passa a provocar no animal salivação e maior produção de suco gástrico, reações que são inatas quando o alimento é percebido pela visão, olfato ou gustação). AN02FREV001/REV 4.0 43 Este tipo de condicionamento, o clássico, não implica em nenhuma iniciativa por parte de quem aprende. Ou seja, a pessoa aprende a chorar ao ouvir uma determinada música, porque sua reação original acabou se associando a um novo estímulo. Diferente deste tipo de condicionamento, o condicionamento operante não se apoia em reações provocadas por estímulos, mas em comportamentos emitidos pelo próprio organismo que são seguidos de uma consequência. Se esta consequência é agradável, o comportamento tende a se repetir. Ao contrário, se a resposta for desagradável o comportamento tem menos probabilidade de se repetir. Essas consequências são chamadas pelos comportamentalistas de reforçadores e esses modelam o comportamento dos indivíduos, criando os hábitos. Segundo Skinner, grande parte do comportamento humano é aprendido por condicionamento operante. A birra de uma criança, por exemplo, segundo os comportamentalistas, é um comportamento aprendido. Se a criança, ao chorar, a mãe dar algo que ela goste (refrigerante, colo) o comportamento da criança é reforçado e o choro tende a se repetir, levando a um hábito e àquilo que conhecemos como birra. Caso seja repreendida, o comportamento tem menos chance de acontecer novamente. Para provar que os comportamentos e as habilidades dos indivíduos são sempre aprendidos a partir da influência do meio ambiente, muitas pesquisas foram desenvolvidas. Estas pesquisas tinham como objetivo desenvolver um método que permitisse prever e controlar cientificamente o comportamento humano e animal. Trataremos aqui, brevemente, das pesquisas mais famosas de Watson e Skinner. A pesquisa de Watson com a aprendizagem de comportamentos emocionais FIGURA 5 AN02FREV001/REV 4.0 44 FONTE: Disponível em: <www.comportamental-brasil.blogspot.com>. Acesso em: 4 out. 2011. Watson direcionou suas pesquisas na direção de descobrir como as crianças aprendiam comportamentos emocionais. Para isso, estudou crianças com idades entre quatro meses e um ano, criadas em hospitais, sem familiaridade alguma com animais ou objetos usados no experimento. Diversos animais foram apresentados às crianças não se verificando qualquer reação de medo nelas. Ele havia também observado que a exposição a um ruído forte, perda do equilíbrio ou sensação de dor provocavam reações de medo nas crianças. Na verdade estas seriam, segundo Watson, as sensações originais geradoras de medo. Para ele, os medos que verificamos em crianças grandes e até mesmo em adultos, de cachorro, escuridão, altura, são sentimentos aprendidos por condicionamento. Buscando verificar se era possível produzir em laboratório a reação de medo ele estudou uma criança de 11 meses que, inicialmente não expressava nenhuma reação de medo frente a animais peludos como o coelho e o rato branco. Quando, na situação de laboratório, era apresentado um rato branco à criança e ela o tocava um ruído forte era produzido. A criança apresentava, então, reações de medo: estremecia e chorava. Após várias repetições desse procedimento, a criança passou a expressar medo toda vez que via um rato branco quando este lhe era apresentado sem o ruído. Essa reação se estendia a outros animais e objetos que se assemelhassem ao rato branco. Concluiu-se que a reação de medo foi aprendida por condicionamento clássico. Com este experimento Watson buscava comprovar que a maioria das reações emocionais de um indivíduo é aprendida a partir da influência do meio. AN02FREV001/REV 4.0 45 7.1 SKINNER E A MODELAGEM DO COMPORTAMENTO Skinner focou seu interesse no papel dos reforçadores na modelagem do comportamento humano ou animal. Iniciou seus estudos em laboratório, inicialmente com ratos e pombos e, mais tarde, com seres humanos. O experimento de maior visibilidade de Skinner foi aquele no qual ele estuda o ratinho dentro de uma caixa, privado de água, condicionando seu comportamento com reforçadores até que o ratinho aprendesse a pressionar a alavanca para obter água. Este experimento ficou conhecido como a ‘Caixa de Skinner’, conforme representado na imagem abaixo. FIGURA 6 FONTE: Disponível em: <www.notapositiva.blogspot.com>. Acesso em: 20 set. 2011. Não convém aqui explicitar detalhadamente os procedimentos utilizados neste experimento. O que nos interessa, neste momento, é clarificar como Skinner e estudiosos desta abordagem conseguiram ‘provar’ com suas pesquisas a influência dos fatores ambientais na modelagem do comportamento humano, o que confere, pois, a pais e educadores papel central no desenvolvimento de certas habilidades e AN02FREV001/REV 4.0 46 ações nas crianças. A modelagem é obtida proporcionando-se reforçadores após respostas que gradativamente se aproximam da resposta que se deseja obter. Este método envolve nitidamente princípios do condicionamento operante, descrito aqui anteriormente. Que semelhanças podem perceber entre os experimentos de Watson e Skinner? Podemos dizer que há em comum a busca pelo controle do comportamento, manipulando elementos do ambiente que o precedem (os estímulos), como no caso do condicionamento clássico, ou que o sucedem (os reforçadores), como visto no condicionamento operante. Dessa forma, os princípios descobertos nas situações simuladas de laboratório se aplicam e explicam os comportamentos aprendidos nas situações cotidianas, ao longo da vida de um indivíduo. Segundo Fontana e Cruz (1997, p. 30), podemos dizer que “pais e educadores, por exemplo, modelam o comportamento da criança por meio de procedimentos que correspondem ao condicionamento operante”. De forma resumida, podemos afirmar que esta abordagem concebe o ser humano como nascendo como uma ‘folha em branco’, aonde vão sendo impressas as aprendizagens a partir da relação com o meio ambiente, moldando os comportamentos que observamos. Para os comportamentalistas, portanto, desenvolvimento e aprendizagem não se distinguem, são processos coincidentes; eu me desenvolvo, pois aprendo e aprender é desenvolver-se. O que chamamos de desenvolvimento é visto como o acúmulo de aprendizagens adquiridas ao longo da vida. A ideia de que os comportamentos são aprendidos em função de contingências externas/ambientais e a noção de modelagem do comportamento têm influenciado as práticas educativas até os dias atuais. Podemos elencar as seguintes características desta abordagem e sua influência no processo de aprendizagem: • Elaboração de uma maneira sistemática de planejar, conduzir e avaliar o processo total de ensino e aprendizagem com objetivos específicos, para produzir uma instrução mais eficiente; AN02FREV001/REV 4.0 47 • A individualização do ensino é possibilitada por uma adaptação de procedimentos paraque se ajustem às necessidades, ritmo e objetivos de cada aluno de forma a maximizar sua aprendizagem (especificação de objetivos, envolvimento do aluno, controle de contingências, feedback constante, apresentação do material em pequenos passos e respeito ao ritmo individual de cada aluno); • As estratégias desta abordagem visam permitir que um número maior de alunos atingisse altos níveis de desempenho; • Especificação dos objetivos em termos comportamentais, especificação dos meios para se determinar se o desempenho está de acordo com os níveis indicados de critérios, fornecimento de uma ou mais formas de ensino pertinentes aos objetivos; • Não há a preocupação em justificar porque o aluno aprende, mas em fornecer uma tecnologia capaz de fazê-lo estudar e produzir mudanças comportamentais. AN02FREV001/REV 4.0 48 8 ABORDAGEM PSICOGENÉTICA DE PIAGET Saindo dos dois extremos que vimos anteriormente, mas sem desconsiderar as suas valiosas contribuições para a construção do conhecimento a respeito da relação entre desenvolvimento e aprendizagem, veremos com a abordagem piagetiana o surgimento de uma compreensão que considera a multiplicidade de fatores que se relacionam para que o desenvolvimento aconteça. Longe de esgotar as ideias de Piaget, o objetivo maior é proporcionar uma visão ampliada sobre a teoria por ele desenvolvida, buscando marcar as diferenças entre ela e as abordagens inatistas e comportamentalista. Convêm nos determos brevemente sobre a formação de Piaget para que alcancemos o caminho que o mesmo percorreu até a construção de sua abordagem. Jean Piaget sempre se interessou por questões científicas, podemos dizer que foi um cientista prodígio. Graduou-se em Ciências Naturais e doutorou-se nesta área. Dedicou grande parte de sua vida para investigar a origem do conhecimento, como o ser humano elabora seus conhecimentos sobre a realidade, área conhecida como epistemologia. Diferente do que podemos pensar, Piaget não se interessou pela infância propriamente dita, e não elaborou sua teoria enfocando questões especificamente psicológicas; seu olhar buscava onde nascia e se desenvolvia o conhecimento, fato este que o levou a dedicar especial atenção à infância, fase onde esta construção iniciava-se. Piaget desenvolveu o que chamou de Psicologia Genética. Embora a palavra genética possa nos remeter à primeira abordagem por nós aqui estudada, justifica-se pela busca das origens e dos processos de formação do pensamento e do conhecimento. Em virtude de sua formação, Piaget buscou compreender o desenvolvimento do conhecimento com base na biologia. Na concepção deste autor, conhecer é ‘organizar, estruturar e explicar a realidade a partir daquilo que se vivencia nas experiências com os objetos do conhecimento’ (FONTANA e CRUZ, 1997: 45). Diferente do que nos leva a interpretar a abordagem comportamentalista, experiência não é a mesma coisa que conhecimento. Para conhecer é necessário AN02FREV001/REV 4.0 49 experienciar, mas a construção do conhecimento requer um conjunto de operações mentais complexas, as quais conforme o conhecimento também se dificulta. O conhecimento pressupõe a organização da experiência num sistema de relações. A ideia fundamental da teoria de Piaget é de que o conhecimento se desenvolve com base nas relações de troca que o indivíduo estabelece com o meio, logo, conhecer implica agir sobre a realidade, física ou mentalmente. A ação do sujeito é a principal fonte do conhecimento, quando o indivíduo incorpora a si elementos que pertencem ao meio, transformando-os. Daí surge às noções de assimilação, acomodação e adaptação, conforme veremos a seguir. 8.1 ADAPTAÇÃO E OS PROCESSOS DE ASSIMILAÇÃO E ACOMODAÇÃO Para Piaget não é possível conceber os indivíduos como uma ‘folha em branco’ conforme postulou a abordagem comportamentalista, nem que nascemos com nossas possibilidades prontas, aguardando o processo de maturação para desabrocharem, como defendia os inatistas-maturacionistas. Para ele, o desenvolvimento e a aprendizagem estão em contínuo processo de construção. Podemos afirmar que segundo a epistemologia genética de Piaget, nascemos com certo ‘aparelhamento’ cognitivo e alguns esquemas de ação e, a partir de nossa ação no meio, estas estruturas vão se desenvolvendo, ampliando-se, coordenando-se e tornando-se cada vez mais complexas. Existiria, pois, uma propensão inata do organismo de manter-se em equilíbrio e ao deparar-se com uma dificuldade proveniente do ambiente que desequilibra o organismo, este buscaria, aperfeiçoando as estruturas já existentes, superá-las visando alcançar um novo equilíbrio e, assim sucessivamente. Pensemos no caso do tema sobre o qual estamos falando. Desenvolvimento, aprendizagem, comportamento, inatistas, comportamentalistas, Piaget etc. Muitos de vocês já possuem dentro de vocês uma noção sobre alguns destes temas. Nesse momento estão assimilando novas informações e buscando relacioná-las com as já existentes no esquema mental ‘Desenvolvimento’, por exemplo. Porém, no processo de assimilar e incorporar estas informações nas AN02FREV001/REV 4.0 50 estruturas já existentes, também modificamos a estrutura/esquema ‘Desenvolvimento’, promovendo então uma acomodação. Todo esse processo que acontece o tempo todo em várias direções, damos o nome de Adaptação. O esquema abaixo exemplificará melhor: Mecanismo de Adaptação Mas como se dá esta adaptação? A partir dos mecanismos de Assimilação e Acomodação Dessa forma, podemos entender a inteligência como assimilação e acomodação. Segundo Azenha (apud Cruz e Fontana, 1997), a adaptação intelectual resulta do equilíbrio progressivo entre o mecanismo de assimilação e a acomodação complementar. Assim, ao adaptar-se ao meio, o funcionamento cognitivo vai se estruturando, se desenvolvendo e se organizando. Segundo Piaget, a primeira forma de organização cognitiva é o esquema. Podemos entender o esquema da seguinte forma: incorporação de coisas/fatos do meio que são inseridos num sistema de relações que adquirem significação para o indivíduo modificação que acontece nas estruturas de pensamento do indivíduo, após a assimilação de um novo objeto (coisas ou fatos) O funcionamento cognitivo é originado do modelo biológico no qual Piaget se baseou: o organismo vive administrando o desequilíbrio ocasionado por uma necessidade ainda não satisfeita, em busca da satisfação. Um organismo adaptado ao meio é aquele que mantém um equilíbrio em suas trocas com o meio. AN02FREV001/REV 4.0 51 Ao nascermos, já somos dotados de reflexos, que na relação com o mundo serão expressos como respostas a determinados estímulos. Reflexos como o sugar e a preensão intermediam as primeiras interações do bebê com o mundo. É a partir destes que elementos como a mamadeira, a chupeta e o próprio seio são assimilados pela criança. Estas assimilações sucessivas vão transformando estes reflexos originais, que vão se diferenciando e se tornando mais complexos, deixando de serem simples respostas estereotipadas para tornarem-se esquemas de ação como pegar, apertar, puxar, empurrar etc. FIGURA 7 FONTE: Disponível em: <www.construirnoticias.com.br>. Acesso em: 10 out. 2011. Um esquema de ação pode ser entendido como aquelas características que podem ser generalizáveis em uma ação, permitindo diferenciá-las de outras. Não são simplesmente ações e sim esquemas de ação, porque pressupõe um conjunto sutil de movimentos que se encadeiam e transforma-se naquilo que vemos como ação. Então, o esquema ‘puxar’ pressupõe certa pressão nos dedos, a preensão de um objeto e o movimentá-lo para si. Embora possua elementos do esquema ‘pegar’ é diferenciado deste porque possui também outroselementos. É por meio dos esquemas de ação que a criança começa a conhecer e a explorar a realidade e, consequentemente, atribuir-lhe significado. No primeiro contato com a mamadeira, por exemplo, a criança pega-a. Em seguida, percebe que é um objeto do meio que conjuga os esquemas ‘pegar e ‘sugar’. Ao assimilar este objeto, a criança processa transformações nos esquemas citados e estes acabam por se coordenar. AN02FREV001/REV 4.0 52 Mediante sucessivas assimilações e acomodações a criança vai organizando os objetos do seu mundo nos diferentes esquemas que foram se desenvolvendo, a partir de sua ação no meio. A organização do mundo real por meio dos esquemas de ação marca o início do desenvolvimento cognitivo da criança. De acordo com Piaget, “Os esquemas de ação ampliam-se, coordenam-se entre si, diferenciam-se e acabam por se interiorizar transformando-se em esquemas mentais dando origem ao pensamento” (FONTANA e CRUZ, 1997, p. 47). A partir das ideias expostas até aqui e traçando uma diferenciação no que se refere às abordagens estudadas anteriormente, podemos dizer que para Piaget o processo de desenvolvimento acontece em função de quatro fatores primordiais: • Fatores internos ligados à maturação; • Transmissão social; • Experiência adquirida pela criança no contato com o meio; • Processo de autorregulação = equilibração. Embora Piaget considerasse todos os aspectos acima, conferiu especial importância ao mecanismo de equilibração ou autorregulação do organismo. É por meio dele que se mantém um estado de equilíbrio ou de adaptação em relação ao meio. Toda vez que, em nossa relação com o meio, surgem conflitos, contradições e outros tipos de dificuldade, nossa capacidade de autorregulação ou equilibração entra em ação no sentido de superá-los. Logo, durante a exploração da criança sobre o meio, obstáculos irão se apresentar a ela o que gerará um estado momentâneo de desequilíbrio organísmico, já que ela não consegue, de início, superar aquela dificuldade, por ser nova para ela. Conforme a criança vai explorando o meio, ela descobrirá formas de superar as dificuldades encontradas, levando o organismo a retornar a um estado equilibrado, até que esse se confronte com novos desafios. Este ‘retorno’ não acontece voltando-se para o estado anterior, inicial, mas sempre a um estado superior. Neste processo o organismo já se desenvolveu um pouco mais, na medida em que assimilou novos elementos, acomodou-os aos esquemas existentes, transformando-os e ampliando-os. Para Piaget, o desenvolvimento seria então um processo de sucessivas adaptações e equilibrações que conduzem a formas mais e mais complexas de agir e de pensar. Esse processo é apresentado em períodos definidos caracterizados por AN02FREV001/REV 4.0 53 formas diferentes de organização mental. Os estágios se sucedem numa ordem fixa de desenvolvimento, sendo um estágio sempre integrado ao seguinte. Em cada estágio a criança apresenta uma maneira típica de agir e de pensar, constituindo uma forma especial de equilibração em relação ao meio. A criança passa, portanto, para um novo estágio, quando aquela maneira de agir e de pensar anterior é inadequada para enfrentar as dificuldades que surgem em relação com o meio, levando a um desequilíbrio do organismo. Isso leva a criança a desenvolver novos modos de agir e pensar mais elaborados. Como extrapola o objetivo deste curso detalhar a teoria piagetiana sobre a origem do conhecimento, citaremos brevemente os períodos destacados por Piaget, elencando algumas de suas características. Os quatro principais estágios que Piaget denominou a partir de seus estudos e observações foram: - Estágio sensório-motor (do nascimento até aproximadamente dois anos); Início do processo de diferenciação eu-mundo; Construção da noção da permanência do objeto (um objeto ou pessoa, ao desaparecer da visão da criança, continua existindo, percepção diferente daquela do período neonatal, onde um objeto ao desaparecer de sua vista, não existia mais); Início das primeiras imagens mentais do objeto ausente, proporcionando o desenvolvimento da função simbólica. FIGURA 8 FONTE: Disponível em: <www.mentedinamica.webnode.com>. Acesso em: 4 out. 2011. AN02FREV001/REV 4.0 54 FIGURA 9 FONTE: Disponível em: <www.silstarsil.blogspot.com>. Acesso em: 10 out. 2011. - Estágio pré-operatório (dos dois aos sete anos): Interiorização do mundo externo e de suas próprias ações; Centrada em seu próprio ponto de vista, ainda não consegue se colocar no lugar do outro nem avaliar seu próprio pensamento; Não considera mais de um aspecto de um problema ao mesmo tempo. AN02FREV001/REV 4.0 55 FIGURA 10 FONTE: Disponível em: <www.romenia-imaginaoviva.blogspot.com>. Acesso em: 5 out. 2011. - Estágio operatório concreto (dos 7 aos 11 anos): Pensamento começa a assumir a forma de operações intelectuais. Essas são ações mentais voltadas para a constatação e a explicação; Capaz de compreender o ponto de vista de outra pessoa; Reversibilidade do pensamento, possibilitando à criança construir a noção de conservação de massa, volume, etc. AN02FREV001/REV 4.0 56 FIGURA 11 FONTE: Disponível em: <www.construirnoticias.com.br>. Acesso em: 4 out. 2011. - Estágio operatório formal (dos 11 aos 15 anos): Desenvolvimento do pensamento abstrato, refletindo sobre situações hipotéticas, sem a necessidade do objeto concreto; Capacidade de transformar os dados concretos experienciados em formulações organizadas e desenvolve conexões lógicas entre elas; Capacidade de pensar sobre seu próprio pensamento, tornando-se cada vez mais consciente de sua forma de pensar e das operações mentais utilizadas para tal; O adolescente diante de um problema concreto, não considera somente os dados reais do presente, mas também prevê todas as situações e relações causais possíveis entre seus elementos. Uma vez analisadas de maneira lógica procurará contrastá-las com a realidade por meio da experimentação: real subordinado ao possível. Capacidade de combinar todos os elementos do problema de todas as maneiras possíveis, para determinar suas possíveis relações causais; AN02FREV001/REV 4.0 57 Caráter hipotético-dedutivo – pensamento teórico e abstrato. As abstrações adquirem a forma de hipóteses que serão mais tarde testadas por meio da confirmação empírica. Ação comprobatória requer um raciocínio dedutivo; Caráter proposicional – as proposições são basicamente afirmações sobre o que é possível, trabalhando não só com objetos reais, mas também com representações proposicionais dos objetos. A linguagem é o veículo ideal para estas representações; Esquemas operacionais formais - Esquema pode ser entendido como uma unidade básica por meio da qual representamos nosso conhecimento, uma realidade que vai se modificando conforme nossas experiências. Esquemas formais: combinatória, as proporções, o equilíbrio mecânico e as correlações. FIGURA 12 FONTE: Disponível em: <www.pixmac.com.br>. Acesso em: 5 out. 2011. Cabe uma consideração a respeito da teoria Piagetiana, principalmente com relação ao período operatório formal, fase que se chega a adolescência e a última a ser alcançada no que se refere ao desenvolvimento de maneiras de pensar a realidade e adquirir conhecimento. As crianças e especificamente os adolescentes sobre os quais Piaget se debruçou para suas observações, são sujeitos circunscritos a um dado país, num dado momento histórico. Ao desconsiderar o contexto no qual esses sujeitos se desenvolvem, pressupõe-se que o desenvolvimento acontecerá de forma mais ou menos igual, independente do contexto, já que essa é uma tendência AN02FREV001/REV4.0 58 natural do organismo. Entretanto, não é o que temos visto na prática. Essa realidade discordante tem dado margem a alguns estudos pós-piagetianos que produz alguns apontamentos que listamos a seguir: Demonstram que, de fato, na adolescência vai se adquirindo paulatinamente um tipo de pensamento cujas características se assemelhavam às descritas para o pensamento formal; Diferentes tarefas formais não apresentam a mesma dificuldade. Isso aponta que é difícil afirmar que o pensamento formal fosse uma estrutura de conjunto que pudesse ser aplicada igualmente sobre qualquer conteúdo; O conteúdo da tarefa se mostrou de fato como uma variável que influenciava em sua resolução, isto é, a utilização do pensamento formal é claramente influenciada pelos conteúdos concretos; Segundo estes estudos, apenas 50% dos alunos possuíam um pensamento claramente formal (resultados similares entre os adultos); Críticas à consideração do pensamento formal como o apogeu do funcionamento intelectual. Trabalhos recentes indicam formas de pensamento qualitativamente diferente do pensamento formal que seria o pensamento pós- formal. Diante do que vimos até agora, é possível que nos perguntemos qual a influência das ideias de Piaget na escola e qual a importância dada por este autor à aprendizagem. Embora não possamos comparar as ideias deste autor com aquelas vistas na abordagem inatista-maturacionista ou comportamentalista, Piaget coloca ênfase nos processos internos do desenvolvimento para a aquisição, ou melhor, construção do conhecimento na criança. No entanto, esses fatores internos e fundamentais para a construção do conhecimento são possibilitados pela interação da criança com o meio. Mas este ‘meio’ por si só e as vivências tidas nele, não configuram aprendizagem, como defenderia a abordagem comportamentalista. A assimilação deste meio e a aprendizagem que ele poderá produzir dependerão dos fatores internos ligados, principalmente, ao processo de equilibração. Para Piaget o desenvolvimento da criança ocorre em função das sucessivas equilibrações, entendida como a capacidade natural de autorregulação do AN02FREV001/REV 4.0 59 organismo. Logo, a aprendizagem praticamente não interfere no desenvolvimento, ela depende deste. Ao considerar a criança como um pequeno cientista, que já nasce com potencial para a investigação do mundo ao seu redor e, ao mesmo tempo, ao definir os quatro estágios do desenvolvimento infantil, pressupondo certas condições internas para a assimilação de determinados conhecimentos, Piaget deixa para a escola um papel pouco expressivo para a aprendizagem da criança. Porém, curiosamente, é um dos autores mais utilizados na estruturação das práticas pedagógicas. Ao destacar o papel ativo da criança no processo de construção do conhecimento, tem sido responsável por ideias dentro da escola, tais como: - O papel da escola é dar a criança oportunidade de agir sobre os objetos de conhecimento; - Papel do professor deve ser o de agente facilitador e desafiador dos seus processos de elaboração; - A criança é construtora do seu próprio conhecimento. 9 A ABORDAGEM HISTÓRICO-CULTURAL Diferentemente de todas as abordagens anteriores, a abordagem histórico- social privilegia a importância das interações sociais para o desenvolvimento do indivíduo. A aprendizagem obtida na relação das crianças com os adultos, outras crianças impulsionariam o desenvolvimento da criança. As outras abordagens não consideram de forma crucial a vivência da criança no meio social e cultural como fator indispensável para o desenvolvimento do ser humano. Lev Semenovich Vygotsky, que morreu prematuramente, vítima de tuberculose, foi o grande idealizador desta abordagem e dos estudos que buscaram comprovar a influência das interações sociais no desenvolvimento. Ele e seus colaboradores partiram do pressuposto de que o conhecimento é construído nas interações que o sujeito estabelece com seu meio sociocultural e passaram a investigar apor meio de quais processos o ser humano se apropria de sua cultura ao mesmo tempo em que a produz. AN02FREV001/REV 4.0 60 O princípio que orienta esta abordagem é de que desde o nascimento, a partir das interações com o outro, a criança vai se apropriando dos significados construídos socialmente e aprendemos a ser humanos, fazendo parte de uma cultura humana; isto não aconteceria naturalmente. O ser humano seria constituído do meio cultural em que nasce. Para Vygotsky existiriam duas linhas do desenvolvimento humano, a saber: - Desenvolvimento biológico – esse dependeria da herança natural da espécie humana. Faz parte desta herança o que Vygotsky denominou de funções mentais elementares que seriam compostas pela memória, inteligência prática, percepção, atenção etc. Operam espontaneamente, sem intencionalidade e independente da vontade da criança. Seria a expressão destas funções sem o controle que será obtido posteriormente, a partir da interação com o outro, característica da transformação do ser humano, de ser biológico em ser sociocultural; - Desenvolvimento sociocultural – por meio da interação com o meio cultural, mediado pelas pessoas, às funções elementares transformam-se em funções mentais superiores, que seriam processos psicológicos usados intencionalmente pelo ser humano ao longo de todo o seu desenvolvimento. Assim, o sujeito é capaz de controlar sua percepção, atenção e vontade. No entanto, para que haja esta interação do homem com o meio cultural e o seu desenvolvimento é necessário que haja uma mediação, outro conceito fundamental para esta teoria. Mas o que podemos entender como mediação, à luz desta abordagem? Mediar está ligado a algo que está no meio de. No que se refere à abordagem histórico-cultural, dizemos que há sempre um signo ou instrumento que está no meio da relação entre o sujeito e o mundo. Podemos clarear esta ideia, buscando uma analogia: ao nos comunicarmos com alguém que está distante de nós, atualmente usamos o telefone, embora já tenhamos usado o telégrafo, a carta etc. Estes instrumentos podem ser entendidos como mediadores. Da mesma forma que o homem usa instrumentos externos, também cria outros internos. Estes seriam os sistemas simbólicos. Os diferentes AN02FREV001/REV 4.0 61 tipos de linguagens (verbal, de gestos, de sinais, de trânsito, etc.) são considerados sistemas simbólicos. Segundo Vygotsky o uso dos sistemas de símbolos é que nos torna seres tipicamente humanos, pois com o uso dos símbolos somos capazes de ordenar nossas ações, regular nossa conduta de forma ativa, consciente e dar significado ao mundo que nos rodeia. As funções mentais superiores nos permitem ultrapassar o controle do ambiente e chegar ao controle do indivíduo, o que significa conseguir realizar esses processos de maneira consciente. Para Vygotsky, o desenvolvimento é entendido como a internalização dos modos de pensar e agir de uma dada cultura. É um processo que se inicia na infância a partir das interações com os adultos, crianças, nas brincadeiras, no cotidiano, onde são compartilhadas formas de agir e de pensar. Essas formas vão sendo progressivamente internalizadas. Segundo esta abordagem, existe a Lei do duplo desenvolvimento, na qual todas as funções no desenvolvimento da criança acontecem duas vezes: uma no nível interpsicológico (entre as pessoas) e outra no nível intrapsicológico (no interior da criança). FIGURA 13 FONTE: Disponível em: <www.sempredisposto-mestre.blogspot.com>. Acesso em: 5 out. 2011. AN02FREV001/REV 4.0 62 Tomemos como exemplo o ato de ‘pegar no ar’ da criança. A criança olha para um objeto interessante e move as mãos como se fosse pegá-lo. O adulto, intermediando essa relação, compreende que o ‘pegar no ar’ da criança refere-se ao ‘apontar’que a criança ainda não está apropriada. O ato indiscriminado de ‘pegar no ar’ em direção a algum objeto, é transformado, por intermédio da relação com o adulto, em ato de apontar. Em um próximo momento, a criança ao invés de ‘pegar no ar’ o objeto, interagirá com o adulto, apontando para um objeto, como quem diz ‘me dá aquele objeto’. FIGURA 14 FIGURA wwwwww FONTE: Disponível em: <www.pt.dreamstime.com>. Acesso em: 15 set. 2011. w Embora alguns possam interpretar desta forma, o nível de desenvolvimento intrapsicológico não é uma mera cópia da realidade cultural, mas uma atividade complexa interna, na qual o sujeito reconstrói a realidade, inserindo-a em um sistema de significações. Diante do que vimos, parece ter ficado claro que, diferente de Piaget, a abordagem histórico-cultural entende que o desenvolvimento é impulsionado pelas AN02FREV001/REV 4.0 63 aprendizagens que acontecem no meio cultural, mediadas pelos sistemas simbólicos. FIGURA 15 FONTE: Disponível em: <www.online.org.br>. Acesso em: 10 out. 2011. Assim, segundo Vygotsky, o conhecimento do mundo pela criança, passa necessariamente pelo outro, adquirindo então a educação um papel fundamental para esta teoria, uma vez que a considera: (...) o traço distintivo fundamental da história do pequeno ser humano. A educação pode ser definida como sendo o desenvolvimento artificial da criança. Ela é o controle artificial dos processos de desenvolvimento natural. A educação faz mais do que exercer influência sobre um certo número de processos evolutivos: ela reestrutura de modo fundamental todas as funções do comportamento (Vygotsky, 1985, p. 45). Desse modo, o desenvolvimento psicológico, sendo um processo culturalmente constituído, depende das condições sociais e culturais, além dos modos como as relações sociais cotidianas se organizam. Concepção essa bem distinta das outras, já que considera os atravessamentos produzidos pela organização social, cultural e podemos ir mais além, econômica, na qual o processo de desenvolvimento acontece. Ainda com relação ao desenvolvimento, Vygotsky compreendia que havia dois níveis de desenvolvimento: AN02FREV001/REV 4.0 64 1. Nível de desenvolvimento real que seria relativo a atividades ou tarefas que a pessoa é capaz de realizar sozinha; 2. Nível de desenvolvimento proximal relativo a atividades ou tarefas que a pessoa é capaz de realizar com a ajuda de alguém mais experiente. Segundo a análise de Vygotsky, a aprendizagem ao impulsionar o desenvolvimento, cria o que ele denominou de zona de desenvolvimento proximal, que pode ser entendida como a distância entre o que a criança pode fazer sozinha e o que faz com a ajuda de outra pessoa. “Zona de desenvolvimento proximal (...) é a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma determinar através da solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes.” (VYGOTSKY, 1994, p.112). Logo, aquilo que a criança faz com a ajuda de alguém hoje – nível de desenvolvimento proximal – será o nível de desenvolvimento real amanhã, ou seja, será capaz de fazer sozinha. Da mesma forma, a simples observação da criança da ação de um adulto, ou o mero contato com objetos de conhecimento e sua imersão em ambientes estimuladores, não garantem a aprendizagem, nem promovem necessariamente o desenvolvimento. Necessária, pois, é a participação do adulto como pai ou professor para que a criança consiga elaborar a aprendizagem. Qual é o papel da escolarização para esta abordagem? Quando a criança chega à escola, ela não é uma ‘folha em branco’. Já possui conhecimento adquirido, informalmente, na relação com as pessoas que fazem parte do seu universo social e cultural. Embora muitos destes conhecimentos não sejam intencionalmente desenvolvidos, eles são produtos da vivência da criança nos diversos ambientes que interage. Na escola inicia-se o processo de educação formal, onde uma gama de conhecimentos deve ser aprendida pela criança num determinado espaço de tempo. As interações que acontecem, principalmente entre professor e aluno, visam um objetivo maior que é promover o conhecimento ligado a determinados conteúdos. Dessa forma, a professora orienta a criança na sua atenção, destacando elementos que considera importante para a compreensão de determinados conhecimentos, analisa situações com a criança, levando-a a classificar, ordenar, comparar, estabelecer relações lógicas, ensina como utilizar o mapa, ou qualquer AN02FREV001/REV 4.0 65 outro instrumento que auxilie na aprendizagem. Essas ações levam a criança a aprender significados, formas diferentes de pensar e raciocinar e também de agir frente a determinadas situações. Também reestrutura significados e começa a se dar conta das atividades mentais que realiza. Fica clara, a importância do papel do professor no desenvolvimento do indivíduo. FIGURA 16 FONTE: Disponível em: <www.educador.brasilescola.com>. Acesso em: 2 nov. 2011. Fazendo junto, contribuindo com o novo aprendizado, colaborando, dando pistas, o professor interfere no desenvolvimento proximal, contribuindo com processos de elaboração e desenvolvimento que não aconteceriam espontaneamente. A escola, possibilitando o contato sistemático e intenso dos indivíduos com os sistemas organizados de conhecimento e fornecendo a eles instrumentos para elaborá-los, mediatiza seu processo de desenvolvimento. (FONTANA e CRUZ, 1997, p. 66) AN02FREV001/REV 4.0 1 5. Quadro comparativo entre as abordagens Abordagem inatista- maturacionista Abordagem comportamentalista Abordagem Piagetiana Abordagem histórico- cultural Papel dos fatores internos e externos no desenvolvimento Ênfase total nos fatores internos. O desenvolvimento é compreendido como um processo que acontece naturalmente, de acordo com nosso processo maturacional. Não considera os fatores internos como determinantes para o comportamento. Acredita que qualquer pessoa é capaz de desenvolver-se de um jeito ou de outro, a partir das aprendizagens acumuladas durante a vida nas relações com o ambiente. Tanto os fatores internos, quanto os fatores externos, seriam responsáveis pelo desenvolvimento e aprendizagem. Maior ênfase aos aspectos internos explicitados pelo processo de equilibração sucessivo e permanente. O meio (interações sociais, cultura e meio físico) teria uma relativa importância, Ênfase aos aspectos externos, sobretudo às interações sociais que se produzem entre os humanos e os significados culturais que são construídos por meio dos instrumentos e signos. AN02FREV001/REV 4.0 2 contribuindo com os instrumentos necessários para as equilibrações naturais do organismo. Relação entre desenvolvimento e aprendizagem A aprendizagem, no máximo, contribui para a harmonia daquele desenvolvimento pré- programado. Mesmo para determinado aprendizado era necessário estar pronto ou já estar desenvolvido. A noção de desenvolvimento e aprendizagem se confunde, já que nos desenvolvemos porque aprendemos. Sendo a criança uma ‘construtora natural’ do seu conhecimento a aprendizagem desta depende do nível de desenvolvimento de suas estruturas cognitivas, obtido naturalmente pelo processo de autorregulação do organismo. A aprendizagem suscita e estimula o desenvolvimento. O desenvolvimento ocorre primeiro num nível interpsicológico, na interação com um adulto e depois se internaliza. Principais representantes Binet, Simon, Gessel Watson, Skinner PiagetVygotsky AN02FREV001/REV 4.0 3 Contribuições para prática pedagógica Identificação de crianças mentalmente deficientes e desenvolver métodos para tornar o ensino acessível a elas. Teste para avaliar a prontidão para alfabetização das crianças. Valorização do planejamento de ensino, chamando a atenção para a necessidade de se definir com clareza os objetivos que se pretende atingir com o ensino, com base na modelagem do comportamento. Professor como agente facilitador dos seus processos de elaboração e a escola tem o papel de dar oportunidades à criança de agir sobre os objetos de conhecimento Grande importância colocada no desenvolvimento proximal que posteriormente se transforma naquilo que a criança é capaz de fazer, sempre mediada por um adulto, no caso da escola o professor. AN02FREV001/REV 4.0 69 10 UMA SÍNTESE DIDÁTICA: COSTURANDO A PEDAGOGIA E A PSICOLOGIA Após a apresentação das quatro principais correntes psicológicas que, mesmo com objetivos distintos, versam sobre a relação entre desenvolvimento e aprendizagem, podemos nos perguntar qual a relação de tudo isso com as práticas pedagógicas e também com a prática do psicólogo no campo escolar. Na verdade, isto nos remete à relação entre teoria e prática e convém deixarmos claro que a prática alimenta e é alimentada pela teoria e vice-versa. Quando estamos imersos no mundo prático, nossas ações não estão o tempo todo pautadas em uma determinada teoria. Por outro lado, seria ingenuidade não considerar que nossos atos e posicionamentos profissionais estão impregnados de nossa visão de mundo. No caso do trabalho na instituição escolar, nossas intervenções, posicionamentos e decisões estão norteados pela nossa forma de ver as pessoas, a sociedade e a própria educação. Dessa forma, ao lançarmos olhar sobre o nosso campo de trabalho (aluno, professor, escola, relações institucionais, etc.), utilizamos a lente teórica que mais se adéqua a nossa visão de mundo e de sujeito. No entanto, não podemos afirmar que a prática é aplicação de uma teoria. Na prática escolar, por exemplo, as crianças riem, brincam, choram, brigam, inventam e os professores perdem a paciência, divertem-se, passam tarefas, desentendem-se, estão satisfeitos ou não com o processo de trabalho, e todas as experiências são práticas cotidianas e não aplicação de uma teoria. Vivemos a prática cotidiana sem refletir a respeito dela. Só paramos para refletir quando nos deparamos com um problema. Um problema suscita questões que requerem explicações. Exigem, pois, que nos afastemos da realidade em questão buscando compreender seus aspectos e elementos essenciais. Buscamos organizar nosso processo de reflexão sobre nossas vivências num sistema explicativo coerente. Logo a prática não pode ser considerada aplicação da teoria, mas base para sua construção. E a teoria elaborada, por sua AN02FREV001/REV 4.0 70 vez, seria a sistematização sobre aspectos da prática que nos ajudam a problematizá-la e redefini-la, revelando o movimento dinâmico entre teoria e prática. A maneira como um professor lida com a complexidade da prática relaciona- se com a compreensão que ele tem dela, sendo esta compreensão, muitas vezes, mediada pela teoria, na articulação entre teoria e prática. Voltando às teorias anteriormente apresentadas, não precisamos nos posicionar de forma excludente, isto é, escolher entre uma e outra. Percebemos que cada teoria explica, se dedica a aspectos diferentes do tema desenvolvimento e aprendizagem. Se tomemos como exemplo as dificuldades de aprendizagem no âmbito escolar, lentes diferentes para apreendermos esta realidade nos farão olhar de formas diferentes para esta questão, produzindo intervenções também diferenciadas. Assim, se uma criança encontra-se com dificuldade em aprender determinado conteúdo e nos baseamos na abordagem maturacionista, diremos que isso se deve à falta de maturidade da criança ou a algum atraso no seu desenvolvimento. Mas, se utilizamos a abordagem histórico-cultural, compreenderíamos a dificuldade de aprendizagem não como algo inerente à criança, mas às suas condições de produção no contexto interativo na qual ela se insere, uma vez que para esta teoria tanto a aprendizagem como o desenvolvimento são processos que ocorrem no plano das interações sociais. Vimos que os problemas existentes no cotidiano escolar são compreendidos de forma bastante distintas, dependendo da abordagem que utilizamos. É conveniente, portanto, ao analisarmos as questões colocadas pela prática escolar, que utilizemos as diferentes abordagens teóricas para apurarmos nossa compreensão sobre suas idiossincrasias. No próximo módulo, nos debruçaremos sobre a prática do psicólogo na escola, entendendo que esta prática, longe de ser neutra, muitas vezes, contribui para a institucionalização de um problema emocional, que muitas vezes tem seu cerne nas relações estabelecidas no interior da própria escola. Portanto, o psicólogo para atuar neste campo, e em tantos outros, precisa ampliar o seu olhar clínico até incluir o contexto onde os ditos ‘problemas de aprendizagem’ acontecem, sob o sério risco de estigmatizar a criança. AN02FREV001/REV 4.0 71 FIM DO MÓDULO II AN02FREV001/REV 4.0 74 MÓDULO III 11 O QUE TANGE À PRÁTICA DO PSICÓLOGO ESCOLAR? Pela sua pouca idade, a psicologia escolar ainda está em busca de identidade. Os entraves colocados pela prática institucional requerem que os profissionais desta área se questionem cotidianamente a respeito do sentido de sua prática. Fica claro que o sujeito da clínica não é o mesmo sujeito da instituição, pois buscando ‘enquadrar’ o estudante nas teorias da personalidade o psicólogo escolar comete um grande equívoco ao descartar as interferências dos atores sociais presentes na escola. Durante o seu percurso institucional, a psicologia escolar reafirmou as ideologias próprias do sistema liberal que viam na sua prática a possibilidade de reforçar a função corretiva dos professores sobre os estudantes. A ideologia liberal defende a ideia de que todos possuem igualdade de oportunidade no mundo capitalista e que as diferenças existem em função de questões de ordem individual. A psicologia escolar, portanto, concentra seus esforços sobre os problemas de aprendizagem da criança. Sua prática corrobora com a ideia de que aluno-problema é problema do aluno. Testando, medindo, psicodiagnosticando, assinando laudos o psicólogo escolar profetiza destinos e estigmatiza indivíduos e delimita futuros. Ocupa-se, pois, em manter os excluídos, excluídos. Pode parecer algo contundente as afirmações feitas acima, mas é necessário que os profissionais que atuam na instituição tenham um conhecimento muito mais amplo do que aquele que nos fala dos desejos ou das fases do desenvolvimento infantil, ou de uma teoria do desenvolvimento. Ao atuar além dos muros do consultório particular, o psicólogo precisa reconhecer que seu arcabouço teórico não dá conta de ‘ler’ a realidade que lhe é apresentada. Após algum tempo atuando na zona de conforto de subjetivação das queixas escolares sobre o ponto de vista dos conflitos intrapsíquicos, o psicólogo começa a sentir um incômodo, uma vez que a sua atuação é pouco valorizada e compreendida por pais, estudantes, professores e diretores. Ao levantar-se da poltrona confortável AN02FREV001/REV 4.0 75 do consultório particular e circular por salas e corredores de uma escola, o psicólogo reconhece a diversidade do universo que a escola teima em reduzir à queixa ‘aluno- problema’. Podemos reconhecer fortemente que a ideologia liberal ao reduzir as diferençasa um problema individual reforça e é reforçada pelas ideias próprias da abordagem inatista-maturacionista sobre a qual falamos no módulo anterior. E, ao reconhecer que a ação dos professores deveria ser ‘corretiva’ também entra em concordância com a abordagem comportamentalista. Não se trata aqui de nos posicionarmos a favor ou contra qualquer teoria que busque compreender o processo de aprendizagem. A questão é polarizar nossa posição profissional. Quando nos encontramos em um polo ou em outro, perdemos a riqueza daquilo que está ‘entre’ os pólos. Porém, ao assumir um papel problematizador das queixas, o psicólogo, segundo Kupfer (In Machado e Souza, 1997) passa a enfrentar dois problemas: o da demanda e o da técnica. Como participar ativamente do universo escolar se o lugar escolhido para a psicóloga é o de testar, discriminar e expulsar as crianças com problemas comportamentais ou de aprendizagem? Além disso, como sustentar outra prática sem visualizar os instrumentos teóricos e metodológicos necessários para tal? Esses questionamentos são próprios ao processo de transição, onde sabemos que é necessário sair de um lugar conhecido, mas pouco funcional e migrar para outro lugar que não sabemos qual nem como é. É comum neste processo, recuarmos e voltarmos ao antigo lugar, pois pelo menos nele nós sabemos o que e como fazer. Podemos ilustrar esta ideia com a fala de Kupfer (In Machado e Souza, 1997, p. 52): (...) Sua voz oscila frequentemente de um registro grave para um agudo, o que decididamente não facilita sua participação no coro da escola! Ou seja, ora aceita o seu antigo lugar de psicometrista, ora deseja participar de uma reunião de professores, ‘interpreta-os’. Quer agora ocupar o lugar do maestro do coro... A escola se fecha, o trabalho do psicólogo escolar sofre uma retração. Por outro lado, a busca por uma teoria que propicie uma leitura não adaptacionista da realidade escolar e dos problemas a ela atrelados se faz urgente, pois o que esperar de uma instituição voltada para o igual? O que esperar de uma instituição que não considere as diferenças entre os seres, premissa básica do humano? O que esperar de uma instituição que busca a unificação dos desejos e AN02FREV001/REV 4.0 76 necessidades como se isso fosse realmente possível e predeterminado, como se houvesse um lugar certo para se chegar, igual para todos os estudantes, humanamente diferentes? As respostas a esses questionamentos não são nada animadoras. Quando só a repetição existir e os discursos estiverem cristalizados, os sujeitos não mais irão manifestar-se, não poderão oxigenar-se e morrerão asfixiados por uma pseudonecessidade de homogeneização para um maior controle dos sujeitos sociais permeados de desejos e necessidades. Não haverá a riqueza presente nos processos de mudança e de transformação, não havendo espaço para novas falas. Mais uma vez Kupfer (In Machado e Souza, 1997) completa nossas ideias: (...) O passo seguinte é a fixação das crianças em estereotipias, em modelos que lhe são prefixados; vem a inibição intelectual, o fracasso escolar. Para os demais grupos da instituição escolar onde não houver circulação discursiva, o resultado será a falta de oxigenação e a consequente necrose do tecido social. A falta de circulação discursiva é o início do fim de uma instituição, já que, não podendo jamais ficar parada, não lhe restará outra alternativa a não ser recuar, e iniciar a sua atrofia. Independente dos alvos a que se propõe esta instituição, eles não serão atingidos. FIGURA 17 FONTE: Disponível em: <www.psicofaces.blogspot.com>. Acesso em: 20 out. 2011. AN02FREV001/REV 4.0 77 Buscando responder à pergunta que titula este capítulo sobre o que tange à prática do psicólogo escolar, parece-nos claro, após estas reflexões, que o lugar do psicólogo neste campo de atuação ainda se encontra em construção, e, portanto, inacabado. No entanto, alguns apontamentos a respeito da prática do psicólogo na escola podem ser descritos, visando uma melhor compreensão para o nosso propósito. Necessidade de ampliar o arcabouço teórico para promover uma leitura sistêmica da realidade escolar; Compreensão da queixa escolar como bode expiatório de uma questão que é por si multideterminada; Negação do lugar profético da profissão que se reforça, a partir dos encaminhamentos nomeados de ‘problemas de aprendizagem’; Importância de ocupar o espaço da escola, onde as subjetividades são produzidas, levantando-se das ‘salas de atendimento’ e de ‘medição de normalidade’; Desenvolvimento de ações profiláticas, propiciadas pelas inter- relações presentes na escola; Ruptura com o que podemos chamar de certa ‘ingenuidade social’, compreendendo que nossos atos são sempre atos políticos. FIGURA 18 FONTE: Disponível em: <www.psico-coisas.blogspot.com>. Acesso em: 23 out. 2011. AN02FREV001/REV 4.0 78 12 O PACIENTE DO PSICÓLOGO ESCOLAR: REFLEXÕES ACERCA DE UMA PRÁTICA A partir do que apresentamos no capítulo anterior, podemos afirmar que existe o que Andaló (1984) nomeou de psicólogo clínico escolar, tendo como paciente o estudante com seus problemas de aprendizagem e que conta também com a participação dos familiares deste ‘inadaptado’. Mas podemos ter também, segundo a mesma autora, o psicólogo como agente de mudanças. Nesse caso, o paciente do psicólogo seria a análise das relações institucionais: professor- estudante, professor-professor, diretor-professor, diretor-estudante, currículo-sala de aula, currículo-estudante, currículo-professor, escola-família, professor-família e estudante-família. É necessário, porém, que o psicólogo no lugar de agente de mudanças, incorpore em sua compreensão sobre a realidade que irá intervir, a análise institucional, conhecimentos sobre o sistema educacional brasileiro, conhecimento das séries especiais, conhecimentos sobre os processos pedagógicos e, principalmente enxergar a realidade de forma sistêmica e integrada. Falaremos mais sobre a visão sistêmica no próximo capítulo. Andaló (1984) reforça esta perspectiva quando afirma que o psicólogo como agente de mudanças funcionaria como elemento catalizador de reflexões, um conscientizador dos papéis representados pelos vários grupos de compõem a instituição. Vale ressaltar, porém, que estar no lugar de psicólogo como agente de mudanças, não invalida e não descarta as contribuições que uma visão mais clínica nos fornece. Um conhecimento não exclui o outro. Diante da complexidade da tarefa, a maior gama de conhecimentos só auxiliará na prática deste profissional no campo escolar. Porém, este novo lugar precisa ser reformulado, delimitado e redefinido com muita disciplina, pois a tendência natural da própria instituição é encaminhar para o psicólogo ou para o serviço de psicologia mais próximo da escola os casos considerados desadaptados ou desviantes. Embora o psicólogo escolar faça parte, preferencialmente, do cotidiano escolar, os psicólogos clínicos, AN02FREV001/REV 4.0 79 continuam recebendo os ditos encaminhamentos e tratando-os como problemas individuais. A maioria das conclusões obtidas com o psicodiagnóstico é no sentido de encaminhar os pais para a orientação, a criança para a psicoterapia, não fazendo qualquer sugestão ou orientação a respeito de estratégias que podem ser desenvolvidas pelo professor ou pela escola no sentido de minimizar as dificuldades de aprendizagem, motivo da maioria das queixas e encaminhamentos. O psicólogo, em sua maioria, aceita e se seduz pelas queixas, psicologizando-as e não as contextualizando. Ora, qualquer sintoma que aparece em qualquer indivíduo, embora apareça no indivíduo, diz respeito a uma busca, mesmo que disfuncional, do indivíduo lidar com algum desequilíbrio. Se este sintoma está circunscritoao âmbito escolar (desatento, não consegue ler e/ou escrever, não faz dever, não se interessa, desconcentra a turma, é agressivo com os colegas, não aprende a matéria, etc.) ele só pode ser compreendido a partir do contexto no qual ele é produzido, entendendo este contexto como uma teia relacional do cotidiano da criança. Os laudos produzidos com base nos psicodiagnósticos a respeito das crianças com dificuldades escolares possuem muita força, na maioria das vezes, desconhecidas pelos psicólogos que o emitem. Alguns psicólogos acreditam inquestionavelmente nesse instrumento a ponto de escrever em seus relatórios sobre as avaliações feitas que a criança é definitivamente deficiente mental (???!!!!). Não é de se surpreender as consequências da utilização desses instrumentos na escola: todas elas contrárias ao fortalecimento do aprendizado e reforçadoras da estigmatização já sofrida pelas crianças na escola. Ao selar destinos com seus laudos, encaminhando as crianças para as classes especiais, o psicólogo com ênfase na clínica, sequer conhece essas classes e em quais condições ela deve ser indicada (uma criança precisa ter no mínimo duas repetências na mesma série e ser portadora de uma deficiência mental leve para pertencer a uma classe especial). Esses profissionais que emitem laudos que sugerem as classes especiais para certos alunos, imaginam uma classe especial hipotética com professores idealizados, muito diferentes daquela que encontramos na realidade da escola pública brasileira. Embora o lugar do psicólogo escolar como agente de mudanças nos pareça o mais adequado e coerente, na medida em que reconhecemos o papel da AN02FREV001/REV 4.0 80 psicologia como libertador que remeta o indivíduo ao encontro com as suas necessidades e desejos, ainda é comum vermos os psicólogos individualizando as queixas escolares e não buscando informações importantes sobre a história escolar do estudante encaminhado para avaliação e tratamento psicológico, como número de repetência, ano de ingresso naquela escola onde se produziu a queixa. Segundo Souza (1997, p. 27-28), (...) a causa do fracasso escolar na maioria das práticas pedagógicas é entendida como um problema de âmbito emocional, que revela no início do processo de escolarização em função dos desafios apresentados nesse momento do desenvolvimento da criança. Aquilo que se passa com a criança na escola é um sintoma dos conflitos vividos internamente por ela. Naturaliza-se, portanto, a ideia de que problemas de aprendizagem estão diretamente ligados a problemas emocionais. Essa visão causal não foi demonstrada de forma convincente por nenhuma pesquisa, porém é encarada como verdade por professores, diretores, pais e reforçada pelo psicólogo. Esta visão enfatiza a importância do mundo interno do indivíduo, constituído de fantasias, desejos, habitados por mecanismos de projeção e introjeção, determinado pelas relações vivenciadas no sistema familiar primário. O principal instrumento psicológico nesse processo avaliativo são os testes psicológicos: de nível intelectual, de percepção visomotora, projetivos ou ainda de prontidão. Logo, os procedimentos psicológicos para explicar e atender as queixas escolares são os mesmos instrumentos psicológicos utilizados para queixas de outra natureza. Dessa forma, os acontecimentos vividos pela criança na escola são interpretados como um sintoma de conflitos de seu mundo interno e de sua relação familiar que por ser insuficiente ou inadequada traz consequências que são manifestadas no processo de aprendizagem. Sobre este tema, Patto (1990, p. 296) sinaliza que: (...) mesmo no caso de identificação de uma psicodinâmica familiar dificultadora do bom rendimento escolar, não se pode entender o comportamento escolar de uma criança sem levar em conta a maneira como a escola se relaciona com sua subjetividade. AN02FREV001/REV 4.0 81 A adesão dos psicólogos a um modelo psicologizante ou medicalizante das queixas escolares é fato. Essa postura pode ser considerada como reflexo de uma visão de mundo que “explica a realidade a partir de estruturas psíquicas e nega as influências e/ou determinações das relações institucionais e sociais sobre o psiquismo encobrindo as arbitrariedades, os estereótipos e preconceitos” (...) (SOUZA, 1997, p. 31). FIGURA 19 FONTE: Disponível em: <www.ihaa.com.br>. Acesso em: 10 nov. 2011. Tomemos como exemplo o estudante que não aprende. Segundo Machado e Souza (1997), o destino dele é variado: pode ser aluno repetente, ser aluno especial ou parar de estudar (parar de ser aluno). A prática de encaminhamento de crianças com problemas de aprendizagem e comportamento para psicólogos se apoia em uma série de práticas paralelas, a saber: psicólogos fazendo avaliações diagnósticas para encaminhamento, professores compreendendo os problemas das crianças como algo individual que nada tem a ver com as práticas escolares, a exigência de um laudo psicológico para o encaminhamento às classes especiais, entre outros. Esta estrutura impede a emergência das diferenças, cristaliza atos e falas e asfixia o espaço escolar, local que deveria manter-se aberto à criatividade, própria das diferentes subjetividades. Estas subjetividades buscam ser AN02FREV001/REV 4.0 82 compreendidas dentro de uma lógica de objetividade que chama de problema ou desviante aqueles estudantes cujo comportamento não se adéqua ao que é esperado. Diante de inúmeros encaminhamentos das crianças aos consultórios psi, não deveria a escola se questionar a respeito de suas práticas? Será que estas estão de acordo com a realidade destas crianças? O que acontece que tantas crianças apresentem problemas de aprendizagem? Ou será mais fácil naturalizar esses problemas? Infelizmente, parece que a resposta é positiva para o último questionamento. Mas o que entendemos por naturalização das práticas e consequentemente das queixas escolares? Quando naturalizamos uma ideia entendemos que ela faz parte da natureza mesma das coisas e não da história. Tomando emprestados alguns conceitos da abordagem inatista-maturacionista, podemos afirmar que o problema de aprendizagem apresentado, sob esta ótica, é inato àquele indivíduo. Dessa forma, o diferente é aprisionado e vira uma deficiência adquirida desde o nascimento, herdada, quem sabe. Este ponto de vista é cristalizador, uma vez que ao sentirmos que é natural acontecer aquilo que nos incomoda, ficamos sem ideia do que fazer, como se houvesse algo externo que nos impõe um objeto a ser analisado. Ao nos questionarmos sobre o que fazer com a criança que não aprende, corporificamos de fato a criança que não aprende, como se essa existisse em si. Olhando desse modo, nada temos a fazer a não ser arranjar outro lugar para estas crianças que atrapalham a turma, os professores, o currículo, as disciplinas, e, por último, a própria escola. Cristalizam-se, assim, as relações. Para esclarecer, entendemos por relação cristalizada aquela onde as queixas são as mesmas há muito tempo, não produzindo movimentos. A sensação é de que nada se pode fazer, somente aguardar. Nas relações cristalizadas, pergunta- se muito o porquê das coisas. Acredita-se que a problematização das questões e das ideias leva, inevitavelmente, ao movimento: de pessoas, de falas e de atos. A seguir apresentamos a experiência de trabalho de Machado e Souza (1997), em uma classe especial de uma Escola Estadual. AN02FREV001/REV 4.0 83 Primeiramente o que chamou a atenção das autoras é a naturalização da classe especial pelas próprias crianças especiais. Não havia o menor questionamento sobre o que significava estar na classe especial, expressão nítida das relações de poder que se estabelecem na escola: de um lado aqueles que sabem e detém o poder e de outro aqueles, provenientesdas classes populares, que não sabem, pois assim nasceram, e, portanto, tornam-se excluídos sociais. FIGURA 20 FONTE: Disponível em: <www.g1.globo.com>. Acesso em: 10 nov. 2011. David, um menino de oito anos afirma ter ido para a classe especial, pois uma mulher me mandou pra cá, porque na classe normal eu não respeitava ninguém. Ao ser indagado sobre o que fazia, disse que não sentava, mas que na classe especial, senta. As autoras deduzem, incrédulas que quem não senta, vai para a classe especial (???). Outra criança afirma que é burra, pois não consegue fazer as lições. Quando questionada sobre quais lições, ela responde lição difícil, ora! Essas práticas potencializam a diferença para que seja vivida como negação, como algo ruim, qualitativamente ruim. Ao ressaltarmos a dificuldade de uma criança, desprezamos outras tantas virtudes que, com certeza, essa criança possui. Investigar quais são esses talentos, serviria de dica sobre um melhor caminho para o aprendizado daquela criança. Mas, ao focarmos o problema, o AN02FREV001/REV 4.0 84 sintoma, estigmatizamos a criança e a aprisionamos em um lugar agora, mais difícil ainda de sair. Juntar aquilo que julgamos homogêneo com a ideia de facilitar o aprendizado e o andamento das turmas, serve mais para produzir cristalizações do que imprimir movimento ao que está cristalizado. Ao impormos o que é bom para a criança, sem que ela possa também participar das escolhas sobre o seu caminho, corremos o risco de capturar o desejo desta criança (Machado e Souza, 1997). Fazendo ainda uma leitura das cristalizações, Machado e Souza (1997), acrescentam: (...) Essas cristalizações percorrem infinitas relações que constituem um campo de forças atravessado dominantemente pela política educacional. Se o sentido da força dominante desse campo de forças é o de estabelecer objetos e regras gerais, esse campo fica sedentarizado (...). É difícil pensarmos os acontecimentos singulares se ficarmos somente preocupados em saber se esta ou aquela atitude está dentro do método e do enquadre. Mas, se nos importamos com a maneira pela qual as coisas têm sido entendidas, então não basta apenas dizê-la. Assim, como não basta fazer um diagnóstico e encaminhar a criança para a classe especial. Tem-se que estar atento aos efeitos e processos dessas mudanças. Uma criança que consegue opinar sobre coisas da sua vida consegue aprender a ler e a escreve. Estamos falando de processos de mesma natureza. A diversidade presente no universo escolar que, embora sigam as orientações das instâncias políticas, coloca o trabalho do psicólogo em constante análise. Será que nossos conhecimentos são suficientes para abordar e atuar frente à complexidade que nos apresenta o cotidiano escolar? As práticas ‘psi’ frente às queixas escolares A psicologia tem utilizado um saber que, de maneira geral, estabelece seu recorte sobre o indivíduo, na sua relação com ele mesmo e com o outro. Analisa os significados do grupo primário e secundário para o indivíduo. No que se refere ao indivíduo e à escola seria necessário localizar as possíveis causas psíquicas que estariam interferindo em seu aprendizado, em seu ‘mau’ comportamento na sala de aula, vistos enquanto sintoma de algo mais profundo. As causas deste mau comportamento estariam diretamente ligadas a uma relação familiar inadequada para o bom desenvolvimento dessa criança, com inúmeras carências afetivas, nutricionais e cognitivas. Esse saber tem gerado diversas práticas psicológicas, tendo no psicodiagnóstico clínico seu principal instrumento, como já dito AN02FREV001/REV 4.0 85 anteriormente. E, durante a avaliação diagnóstica, busca-se ‘transitar’ pela subjetividade do indivíduo e nesse trajeto desvelar os aspectos inconscientes que justificariam um tratamento psicológico. A prática psicoterápica inclui a busca de sentido a existência, a consciência do como sou e estou no mundo, a busca pela superação das dificuldades visando a libertação e realização das necessidades e desejos. Conhecer o limite entre o eu e o outro e aqueles colocados pelo mundo, desenvolver formas saudáveis de lidar com estas impossibilidades. Mas podemos lidar da mesma forma com o indivíduo que traz como encaminhamento a queixa escolar? Os objetivos terapêuticos listados anteriormente são os mais apropriados para lidarmos com esta queixa? Pois se a prática psi inclui esses aspectos que citamos, há também aspectos que são excluídos e, sua exclusão pode levar aos equívocos nas intervenções dos psicólogos. E que exclusões seriam estas? Para Machado e Souza (1997, p. 46) esta prática exclui todo o contexto da escola onde esta criança se insere e onde a ‘queixa’ é produzida, “onde ora a criança é sujeito de seu saber, ora não é. Exclui a existência da diversidade escolar, de seus determinantes e variantes”. Ao atender uma criança com queixa escolar excluindo esses aspectos, o psicólogo concorda que o problema em questão é de ordem individual e acaba por reforçar a falta de consciência da instituição a respeito de sua participação na construção do sintoma. Se eu passo a bola e o outro a agarra, aquela bola não era definitivamente minha, poderá pensar os atores dessa cena social (professores, diretores, orientadores pedagógicos, administrativos e estudantes). E esse pensamento estaria bem coerente com a atitude do psicólogo em absorver o atendimento e compreender a queixa como individual. E assim a orquestra pode funcionar afinada, pois colocamos fora aquele que desafina e existe um lugar, fora, onde ele pode avaliar suas falhas e sua possibilidade em fazer parte dessa orquestra, ou não. Para não cairmos nessa armadilha é preciso que investiguemos o conjunto de tramas, relações e processos que vão muito além dos referenciais teóricos que os psicólogos têm utilizado. Novamente Machado e Souza (1997, p. 47) poderão ajudar nesses questionamentos. As queixas apresentadas pela escola encontram-se no conjunto de processos que constituem a tarefa escolar, envolvendo a prática docente, AN02FREV001/REV 4.0 86 tornando tais práticas centrais para a nossa análise. Ao invés de perguntarmos à mãe, numa anamnese a respeito de um dia na rotina da criança, precisamos conhecer como a professora entende os problemas de seus alunos, dando informações sobre o contexto de sala de aula. Ao invés de colhermos informações sobre os primeiros meses de vida da criança, podemos obter dados sobre sua história escolar, sobre a classe em que está (...), por exemplo, e o que pensa sobre as queixas feitas pela professora. Ao invés de aplicarmos testes de inteligência e projetivos, formamos pequenos grupos onde são criados espaços de expressão e comunicação, onde a criança fala de seu aprendizado, de sua vida escolar e mostram as suas potencialidades cognitivas e expressivas. Paralelamente trabalhamos com as professoras que encaminham as crianças. Os grupos de trabalho com crianças e professoras são feitos na própria escola. FIGURA 21 FONTE: Disponível em: <www.contra-faccao.blogspot.com>. Acesso em: 20 out. 2011. Retomando, pois, as ideias de Andaló (1983), expostas no início desse capítulo, em que propõe como tarefa do psicólogo escolar a ativação de mudanças, parecem-nos que as atividades desenvolvidas por Machado e Souza (1997) relatadas no trecho acima estão em concordância com o que podemos compreender por ‘ativador de processos de mudança’. Ao dar voz aos maiores interessados, as crianças, são possíveis que muito seja revelado, as cristalizações se desfaçam e a tendência em naturalizar os sintomas seja questionada. Ao permitirmos a circulação de falas e ideias, oxigenamos os espaços da escola e restabelecemos a vida. Mas vejamos com mais detalhes o que Andaló nos sugere. AN02FREV001/REV 4.0 87 Recuperando a ideia de que uma escola nunca é igualà outra, Andaló indica que o psicólogo como ativador de mudanças precisa conhecer a instituição que irá atuar, começando assim por um diagnóstico institucional. Já nesse momento de exploração do campo, produz-se o próprio tratamento. A partir desse diagnóstico é que as ações são planejadas. Em sua experiência, a autora atua junto com o corpo docente e discente, junto à direção e à equipe técnica, buscando a conscientização da realidade da escola em que trabalha, a reflexão sobre os objetivos institucionais, a concepção de educação que subjazem as práticas ali desenvolvidas, as expectativas sobre os alunos e sobre a relação professor-aluno existente, enfim sobre a instituição de forma geral. Com relação às queixas básicas encontradas, Andaló encontra comumente: dispersividade, desatenção, desinteresse, apatia, agitação, baixo rendimento, fraco nível de aprendizagem, rebeldia e agressividade e também dificuldades na relação professor-aluno e entre os próprios estudantes. Como essas queixas se repetem de forma mais ou menos comuns pelas instituições de ensino, não fica difícil perceber que a escola passa por uma crise aguda e profunda. Como temos visto, a tendência da escola é localizar as causas dessas queixas nos próprios alunos. As medidas observadas para enfrentar esses problemas podem ser, segundo a autora, resumidas em duas ações: 1. Encaminhar os casos-problema aos serviços de Orientação Educacional ou ao Serviço de Psicologia. 2. Criar mecanismos de controle cada vez mais rígidos e repressivos sobre o comportamento dos estudantes, inserindo inspetores de alunos, comunicações aos pais, reduções de notas, multiplicação das avaliações, etc. Após tudo o que discutimos não é difícil supor que essas medidas não são eficientes. Foi observado que com relação ao Serviço de Orientação Educacional, esse não consegue dar vazão ao crescente número de casos complicados encaminhados; Buscam contato com os pais, em uma busca de ‘transferir o abacaxi’ para o âmbito familiar; desenvolvimento de trabalhos junto aos estudantes por meio AN02FREV001/REV 4.0 88 de aulas tradicionais com conotação quase sempre moral, em uma tentativa dos estudantes atenderem às expectativas institucionais sobre eles. Para Andaló (1984), o trabalho mais indicado ao psicólogo escolar nessa perspectiva de agente de mudanças é o de realização de grupos operativos com estudantes, professores e equipe técnica, visando o exercício da reflexão crítica sobre a instituição “incluindo o processo de aprendizagem, a relação professor- aluno, as mudanças sociais que estão ocorrendo, evidenciando a defasagem cada vez maior entre a escola e a vida” (ANDALÓ, 1984, p. 46). Com isso, pretende-se tirar o foco dos alunos como explicação única dos sintomas e problemas apresentados e bode expiatório da crise pela qual passa a instituição escola, promovendo uma visão mais ampla desse momento crítico. Busca-se considerar todos os aspectos envolvidos na produção e reprodução dessa crise com vistas a encontrar formas alternativas para enfrentá-la, pois os mecanismos adotados até hoje não conseguiram conter o problema. FIGURA 22 FONTE: Disponível em: <www.novaiguacu.olx.com.br>. Acesso em: 25 out. 2011. AN02FREV001/REV 4.0 89 13 VISÃO SISTÊMICA SOBRE A QUEIXA ESCOLAR: O ALUNO, A FAMÍLIA E A ESCOLA Reconhecendo que o paradigma sistêmico vai além do paradigma linear de causa e efeito no qual um aluno não aprende porque possui uma deficiência, a compreensão que o sistema escolar dá aos problemas de aprendizagem pode ser virtuosamente transformada quando os elementos do sistema concebem-se como fazendo parte do mesmo e, portanto, também responsável pela sua construção e manutenção. É necessário, então, que sejam considerados, dentro dessa perspectiva o contexto e as relações estabelecidas com o aluno, assim como o sentido dado àquilo que chamamos de problema de aprendizagem. Podemos supor, dessa forma, que aquilo que a professora significa como problema de aprendizagem podem ser fruto de suas experiências prévias e apropriações geradas nas suas interações nos sistemas em que vive e viveu ao longo de sua história (ANDRADA, 2003, p. 172). Sendo assim, essa pode ser reestruturada ou reenquadrada. Assim como os significados construídos podem ser transformados, os sistemas movem-se através do tempo e se modificam, em uma perspectiva cíclica. A capacidade de mudança é decisiva para a saúde da família e também dos grupos e instituições. As mudanças acontecem porque as situações também são novas, exigem novas soluções. Cada sistema tem ciclos distintos que representam cada estágio de desenvolvimento. Como as famílias lidam com cada fase também é variável. É necessário que se inclua, também, os aspectos sociais, econômicos e culturais dentro das intervenções propostas pelo psicólogo escolar. A família, mas também a escola é transmissora de cultura, por esse motivo, a importância de se conhecer os valores religiosos, crenças, preconceitos, valores sociais, etc. Um psicólogo com visão sistêmica é parte sociólogo, parte antropólogo, parte filósofo e um observador a respeito das formas de funcionamento dos sistemas e de seu meio social. O pensamento sistêmico exige uma reflexão contextual, segundo Andrada AN02FREV001/REV 4.0 90 (2003), pois apresenta os seguintes princípios: Totalidade – onde se compreende o todo maior do que a soma de suas partes, ou seja, não podemos entender o funcionamento do sistema a partir do funcionamento de um indivíduo. Integridade de subsistemas – os sistemas possuem subsistemas integrados, relacionados uns aos outros. Circularidade – onde todos os elementos se influenciam mutuamente. Sob esse olhar, a compreensão de um sintoma precisa ser considerada de diversas maneiras, determinado por diversas causas, bem como reconhecer a função que um dado problema exerce no sistema, num dado momento. Para Andrada (2003, p. 173), portanto, o aluno “não pode mais ser visto como sujeito dotado de problemas, separado do sistema sala de aula, mas como um sujeito relacional cujo problema exerce uma função no sistema”. (...) é ainda preciso levar em conta que o problema manifestado por uma criança (...) é um conjunto importante da manutenção do equilíbrio (homeostasia) do sistema inteiro. É o que explica a persistência no tempo de algumas dificuldades e a pouca eficácia das medidas que tendem a fazer desaparecer o problema ao focar-se no indivíduo que o manifesta (CURONICI e MCCULLOCH In ANDRADA, 2003, p. 173). O trabalho do psicólogo na escola torna-se de fundamental importância, na medida em que abre espaço para discussões, para orientações colaborativas, para a reflexão e problematização dos problemas vividos. A utilização de uma só teoria para a compreensão dos fenômenos empobrece as intervenções e enfraquece seus efeitos. Quanto mais diversificadas forem as lentes que utilizamos na leitura e compreensão do significado de um problema, mais rica será nossa compreensão de mundo. No tópico seguinte refletiremos sobre a visão sistêmica do funcionamento familiar que nos oferece subsídios para uma compreensão mais ampliada dos elementos desse sistema, em especial, a criança, personagem central da cena escolar. AN02FREV001/REV 4.0 91 13.1 A FAMÍLIA SEGUNDO UMA PERSPECTIVA SISTÊMICA Carter e McGoldrick (In Andrada, 2003) classificam seis fases evolutivas na vida da família: o jovem solteiro; o casamento; família com filhos pequenos; famílias com filhos adolescentes; famílias no meio da vida e famílias no estado tardio da vida. É observado que o surgimento de um sintoma acontece nas passagens de estágio, pois o nível de estresse familiar aumenta nos períodos de transição. É de suma importância o reconhecimento desse processo na abordagemdos problemas escolares e dos comportamentos desviantes. Ter essa compreensão auxilia o psicólogo no diagnóstico situacional a partir de uma queixa escolar. Muitas vezes, o psicólogo pode atuar como mediador dos conflitos transgeracionais, principalmente relacionados com o choque cultural entre pais e filhos. Cada geração tem seus próprios comportamentos, jogos, linguagem, música, moda, arte e objetivos. O psicólogo pode solicitar o comparecimento da família para compreender melhor o comportamento do aluno e, nesse momento, pode realizar intervenções sistêmicas que ajudem a família a compreender seu processo de vida no ciclo vital. O psicólogo escolar não se configura como um terapeuta familiar, uma vez que seus objetivos são diferenciados. O papel do terapeuta familiar é também muito complexo. É preciso que a atenção esteja aguçada a todo o momento. Algumas atitudes ou reações são indícios de que algo está acontecendo com este terapeuta. Reagir rapidamente a um comentário ou opinião é um destes sinais. Sentimentos fortes como amor ou ódio por uma família, casal ou pessoa, também exige um foco especial. “Tomar partido” de um membro ou subsistema em detrimento de outro, demanda atenção. É saudável querer saber sobre as competências, dificuldades e a história passada de cada família. A maioria das famílias conhece mais seus defeitos e fracassos do que seus talentos e sucessos. Dentro das famílias há subsistemas dinâmicos e flexíveis. Quanto maior é o número de subsistemas mais saudável é esta família. Outra função do terapeuta é clarificar a estrutura e as qualidades dinâmicas desses subsistemas. Chamamos de AN02FREV001/REV 4.0 92 subsistemas as identificações e as alianças que vão se entrelaçando conforme os conflitos e as situações difíceis vão se apresentando. As relações pais e filhos denotam um capítulo extenso e a parte. Porém, uma coisa é evidente. O controle e o poder da família têm que estar nas mãos dos pais e quanto mais claro isso ficar, mais favorável será a dinâmica familiar. Famílias desorganizadas exigem que os terapeutas assumam mais poder e liderança até que possam assumir comportamentos mais adaptativos e coesos. As crianças não conseguem sustentar todo o medo (de crescer, de encarar o mundo etc.) sem a segurança de pais responsáveis. Quanto menor é a criança mais proteção ela exigirá. Um bebê morrerá se não for alimentado. Só que à medida que as famílias crescem, os filhos precisam cada vez menos desta proteção. Proteger demais é tão prejudicial quanto proteger de menos. Isso não significa que as famílias não errem esta medida. Pais saudáveis e atentos estão sempre reavaliando estas posições intermediárias na busca de uma construção mais correta. Muitas das ideias utilizadas na abordagem sistêmica das relações familiares podem ser aplicadas ao campo escolar, porém demanda mais trabalho, pois nesse sistema os elementos são mais numerosos, os subsistemas mais variados, as relações de poder mais aguçadas o que exige um profissional sempre atento às mais variadas manifestações comportamentais. 14 QUAL PSICÓLOGO ESCOLAR É NECESSÁRIO PARA ATUAR EM QUAL ESCOLA? Idealmente a escola deveria ser uma instituição que incluísse as diferenças e tirasse partido dela; fosse um laboratório de exercício de democracia e cidadania, ousando até em representar uma minissociedade onde valores éticos e a preocupação e respeito com outro fosse, antes de tudo, praticados e não discursados; onde as disciplinas, talvez até mudassem de nome, pois soa como algo autoritário, e pudesse estar intimamente relacionada com a realidade dos estudantes, mas para isso seria necessário conhecer essa realidade; fosse um lugar AN02FREV001/REV 4.0 93 onde as vozes têm lugar e ressonância. É bem provável que nessa escola a presença de um psicólogo não fosse tão necessária. Mas, sabemos que a realidade não é essa e com base na realidade escolar que temos, a presença do profissional de psicologia se torna bem oportuna. Viemos discutindo o lugar desse profissional em um campo de atuação complexo permeado de forças opostas, mas veladas. Já sabemos agora que esse profissional não pode desprezar certos conhecimentos que o habilitam a cumprir a sua função que não é, nem pode ser a de psicologizar as queixas escolares. A tarefa ainda está em construção, mas já temos uma ideia de em qual direção as intervenções devem acontecer. No entanto, os currículos dos cursos de psicologia fornecem esse arcabouço teórico e prático? Caso negativo, onde os psicólogos vão buscar esses conhecimentos? Se for para atuar na rede pública, via concurso, há obrigatoriedade de especialidade nessa área? Existe algum movimento dos órgãos reguladores da profissão, com vistas a garantir um mínimo de conhecimento do psicólogo para atuar em áreas específicas? Analisemos primeiro a grade de horários de uma faculdade particular de psicologia para que tenhamos uma ideia de como a universidade prepara os estudantes para as exigências do mercado de trabalho. Nome da Disciplina Créditos 1º PERÍODO FIL 0102** Optativas de Filosofia - Núcleo Básico do CTCH 4 NBH 0121** Optativas de Sociologia/História - Núcleo Básico do CTCH 4 PSI 1020 Fundamentos em Neurociências 8 PSI 1600 Método Científico em Psicologia 4 PSI 1817 História da Psicologia 6 2º PERÍODO CRE 1100 O Humano e o Fenômeno Religioso 4 LET 1910 Análise e Produção de Texto Acadêmico 4 PSI 1831 Métodos Quantitativos 4 PSI 1848 Processos Psicológicos Básicos 8 PSI 1910 Teoria Psicanalítica 4 AN02FREV001/REV 4.0 94 3º PERÍODO CRE 0700** Optativas de Cristianismo 4 PSI 1016 Metapsicologia Freudiana 4 PSI 1850 Psicologia e Desenvolvimento 6 PSI 1860 Psicopatologia 6 PSI 1899 Linguagem e Cognição 4 4º PERÍODO CRE 1141 Ética Cristã 2 PSI 1869 Abordagem Psiquiátrica dos Quadros Clínicos 4 PSI 1870 Psicologia Social 6 PSI 1900 Psicologia e Instituições 6 PSI 1981 Estágio Básico I 4 5º PERÍODO PSI 1839 Métodos Qualitativos 4 PSI 1903 Psicologia e Saúde 4 PSI 1930 Psicoterapias 6 PSI 1950 Psicologia, Trabalho e Organizações 6 PSI 1982 Estágio Básico II 4 6º PERÍODO PSI 1024 Avaliação Psicológica 6 PSI 1898 Linguagem e Subjetividade 4 PSI 1983 Estágio Básico III 4 7º PERÍODO PSI 1960 Psicologia e Educação 6 PSI 1984 Estágio Básico IV 4 8º PERÍODO CRE 1161 Ética Profissional 2 PSI 1970 Monografia I 6 9º PERÍODO PSI 1971 Monografia II 6 PSI 1985 Estágio Básico V 10 10º PERÍODO PSI 1986 Estágio Básico VI 10 AN02FREV001/REV 4.0 95 FONTE: Disponível em: <www.pucrj.com.br>. Acesso em: 5 nov. 2011. Tendo como base de análise o currículo acima, podemos perceber que, ao longo dos cinco anos mínimos para a habilitação na formação de psicólogo, temos uma disciplina mais específica ligada à educação (Psicologia e Educação), no sétimo período e outras duas mais ligadas às questões institucionais (Psicologia e Instituições e Psicologia, Trabalho e Organizações), respectivamente no quarto e quinto período. Os estágios podem ser feitos em instituições ou em clínica, com supervisão em ambos os casos. É claro que uma disciplina não dará conta de refletir sobre tantos aspectos envolvidos na prática de psicólogo escolar e, além disso, deduz-se que ao nomear a disciplina de Psicologia e Educação traça-se outro viés na abordagem das questões ligadas à educação. Portanto, a resposta à pergunta: Os currículos dos cursos de psicologia fornecem esse arcabouço teórico e prático? Com base no currículo dessa instituição, podemos dizer que não – a resposta é negativa também para a atuação em outros campos como saúde, esporte, justiça, empresas, etc. Podemos supor queo psicólogo ao trabalhar na área de educação (não há obrigatoriedade de especialização), transfere os conhecimentos de outra área para essa ou, vai buscar sozinho esse aperfeiçoamento em cursos extracurriculares, seja durante a graduação ou depois de formado. Retomando a pergunta que titula esse capítulo Qual psicólogo escolar é necessário para atuar em qual escola? Primeiramente temos que conhecer o contexto onde se dão as práticas educativas em nosso país para que a intervenção acompanhe a necessidade desse contexto, mas não a necessidade oferecida, muitas vezes, - a de exclusão do aluno com queixa escolar pela instituição. A necessidade que o psicólogo escolar deverá ser capaz de desvendar com base na queixa escolar é aquela que ele alcançará articulando os conhecimentos clínicos, institucionais e sistêmicos. Logo, embora precisemos que ele tenha uma especialidade, é necessário que tenha uma visão global do campo em questão. A ideia de pensar globalmente e agir localmente podem ser aplicados nesse caso. Embora os currículos ainda coloquem ênfase na formação clínica com foco no indivíduo e não em uma formação social com ênfase na coletividade presente nas instituições, o psicólogo escolar terá que galgar o caminho que amplie seu campo de AN02FREV001/REV 4.0 96 visão sob o risco de intervir individualmente, em um campo onde as queixas são produzidas coletivamente. Pensar que a escola, em especial a pública, é atravessada por questões de ordem política, social e administrativa resultado do gerenciamento, ou da falta dele, do Estado já norteia a problematização necessária ao psicólogo escolar frente às queixas a ele encaminhadas. Dessa forma, pensar no profissional de psicologia para atuar na área escolar é pensar que ele deva desenvolver os seguintes atributos: Olhar sistêmico a respeito das queixas escolares; Conhecimento sobre as variáveis políticas da prática pedagógica; Conhecimento sobre as leis que regem a educação no lugar em que atua; Capacidade de pensar globalmente e agir localmente; Capacidade para articular diversas informações e emitir um diagnóstico situacional; Capacidade em lidar com tensões ocasionadas por forças opositoras; Reconhecimento da função social e política de sua prática; Capacidade de articulação das diversas ‘vozes’ institucionais. 15 DISCUSSÃO DE CASOS Nesse capítulo pretende-se apresentar situações ocorridas no cotidiano escolar para pensarmos sobre as possíveis intervenções do psicólogo escolar e problematizar questões comuns e aparentemente simples, mas que se repetem e que podem comprometer a vida escolar dos estudantes. Não se pretende, pois, afirmar que um caminho é melhor do que outro, mas exercitar um olhar mais ampliado sobre as queixas. Portanto, visando esse exercício, antes de ler as discussões, vale o leitor exercitar o seu próprio olhar sobre os casos apresentados, pensando o que faria no lugar de um psicólogo escolar. AN02FREV001/REV 4.0 97 Caso 1 Durante uma aula, do 2º ano do ensino fundamental, um grupo de três crianças está falando demais, atrapalhando o aprendizado das demais. Após sucessivos pedidos para que elas se acalmem sem resultado, a professora precisa ser mais enérgica, assim solicita que os três dirijam-se a secretaria para conversar com a orientadora pedagógica. A partir daquele dia, a professora notou que um dos alunos deste grupo passou a se comportar de forma mais tímida, pouco se expressando durante a aula, pouco conversando. Seu rendimento apresentou queda considerável. Parece que a dimensão que a bronca teve para este aluno foi muito maior do que para os outros, embora a atitude da professora não tenha sido diferente daquela tomada em outras situações semelhantes nesta mesma turma. A psicóloga é chamada para resolver o problema do aluno. Breve discussão: Embora a atitude da professora seja a mesma para lidar com as situações de estresse na sala de aula e o aluno deveria estar acostumado, isso não aconteceu e o mesmo reagiu de forma sintomática. Podemos considerar que a professora, mesmo de forma inconsciente, possa nutrir uma resistência maior com o grupo dos bagunceiros e acaba por agir de modo a excluir os seus componentes ou não valorizá-los. Um dos elementos do sistema mostrou-se mais suscetível a essa situação desenvolvendo comportamento retraído. Podemos também tentar compreender se o sistema familiar do aluno encontra-se em processo de transição e crise. Para checarmos essas hipóteses levantadas com a análise e problematização do caso encaminhado por escrito, o psicólogo escolar precisa ouvir as vozes envolvidas (estudantes, professora, orientadora pedagógica, família) com vistas a traçar a sua intervenção. Só após essa escuta e reflexão com os envolvidos é que será possível desobstruir um comportamento disfuncional, mas compreendido com base na visão sistêmica, no qual o funcionamento de um torna explícito o comportamento do sistema. Abordar de forma unicamente punitiva a bagunça em sala de aula, desperdiça tantas outras possibilidades de compreender o comportamento em questão. AN02FREV001/REV 4.0 98 Caso 2 Bianca tem 12 anos e é aluna do 7°ano. Sempre teve muita dificuldade em assumir as responsabilidades pertinentes à sua idade, esquecendo material, tarefas e provas. A escola sempre percebeu essa dificuldade, mas como Bianca nunca repetiu o ano e não dava problema em sala de aula, seus pais nunca foram chamados. Porém, na metade do ano o rendimento escolar de Bianca caiu consideravelmente e o caso foi encaminhado ao psicólogo escolar. Breve discussão: Nesse caso, fica clara a omissão do colégio durante os anos que antecederam o ano do problema. Como o comportamento de Bianca não comprometia o andamento da turma e nem o seu desempenho esse não foi considerado importante a ponto de ser encaminhado para o psicólogo. Ao receber o caso, o psicólogo solicitou o comparecimento da família e, durante a entrevista, foi possível perceber que o casal havia tentado diversas vezes ter outro filho sem sucesso e, a relação entre o casal e a filha era de extrema dependência. O sistema não estava conseguindo evoluir, pois sem evoluir mantinha Bianca pequena. Porém, ao atingir uma idade em que as responsabilidades vão aumentando, a menina, sem a autorização da família para crescer, começa a comprometer suas tarefas escolares. Mantendo-se criança, ela mantém a família na mesma fase, porém não consegue dar conta das exigências do meio. Compreendido o caso, a família foi encaminhada para acompanhamento terapêutico e a escola levada a refletir sobre os critérios utilizados no encaminhamento dos casos e porque a escola pareceu negar o comportamento de Bianca, parecendo confluir como desejo da família de não crescimento. Caso 3 Júlia tem 10 anos e é aluna do quarto ano de uma escola particular. Está fazendo o quarto ano pela segunda vez. Morava no interior onde se alfabetizou. Sua mãe engravidou e a família voltou à capital no meio do ano passado, ano em que aconteceu a repetência de Júlia. Na reunião de pais foi compartilhada com seus AN02FREV001/REV 4.0 99 familiares que Júlia é uma criança de ótimo relacionamento, cooperativa e prestativa. No entanto, conversa muito em sala, é desatenta e isso tem refletido em seu baixo desempenho, principalmente em matemática e português. Júlia apresenta dificuldade em interpretar textos, fato reconhecido pelos seus pais. Foi sugerido, de forma velada, acompanhamento psicológico para a menina e aulas de reforço. Os pais solicitaram a avaliação da psicóloga da escola. Breve discussão: É comum que o ensino nas cidades do interior seja abordado de forma diferente do que na capital. É possível, pois, que a aluna apresentasse um nível de desenvolvimento diferenciado do restante da turma. Aisso se soma a mudança de colégio, de cidade, de casa e de configuração familiar. Todas essas alterações na sua vida podem justificar um desempenho escolar aquém dos demais, uma vez que seu mundo interno precisa assimilar essas mudanças e adaptar-se a essa nova vida. Todos esses fatos são conhecidos das professoras e da coordenadora do Ensino Fundamental, mas nenhuma metodologia diferenciada foi proposta de forma que atendesse às lacunas de Júlia. A solução estava fora do colégio: terapia e reforço escolar. Mas o que acontece dentro do colégio, local onde o sintoma fora produzido, ou pelo menos, intensificado? Nitidamente há a necessidade de valorizar Júlia, já que tantos lugares ‘seguros’ foram ameaçados com as mudanças ocorridas na sua família. A chegada de um irmão ameaça a segurança sobre o sentimento de ser amado pelos pais, pois outro passa a fazer parte da família e dividir o espaço e a atenção dos pais. A psicóloga, ao conversar com Júlia e seus pais percebeu a compreensão da família a respeito do momento de vida pelo qual estão passando e as possíveis consequências sobre o desempenho escolar da menina. Os pais observaram que ela vem progressivamente melhorando em suas notas, mas esperava uma melhor abordagem por parte da escola, já que conhecia o que estava acontecendo. Parece claro que a escola em questão não soube lidar com o aluno desadaptado. A solução para uma possível adaptação está fora da escola. A função do psicólogo, nesse caso, após ouvir a família, seria a de realizar grupos operativos para que fossem elaboradas atividades que pudessem aproveitar as potencialidades da aluna e que a mesma pudesse ser avaliada levando esses aspectos em consideração. É possível que, mesmo melhorando progressivamente, não haja tempo psíquico hábil para que AN02FREV001/REV 4.0 100 Júlia possa elaborar suas questões e acompanhar efetivamente a turma. Porém uma segunda repetência seria uma ferida em sua autoestima mais difícil de recuperar do que a compreensão de textos. Caso 4 Luiza tem sete anos e está concluindo o processo de alfabetização. É muito falante em sala de aula e algo aérea. Perdeu a madrinha e a avó no intervalo de um ano. Numa ocasião, a escola aplicou as provas à Luiza em uma sala separada do restante da turma. A mãe percebeu alteração no comportamento de Luiza durante esse período e questionou-a. Foi quando a menina relatou o ocorrido. A mãe, ao comparecer ao colégio, ouviu que aquela atitude foi com base em uma orientação da psicóloga. Breve discussão: Possivelmente a psicóloga em questão tem como base de sua ação na escola a compreensão da queixa escolar como produção individual e deixa claro em sua orientação que a escola não tem capacidade de lidar com tais queixas, excluindo o ‘aluno-problema’ do convívio com o restante ‘normal’ da turma. Será que essa orientação leva em conta o que é melhor para Luiza, para a turma ou para escola? Não é necessária grande elaboração para deduzirmos que essa intervenção tem um cunho extremamente adaptacionista onde o diferente não tem lugar. Estamos falando de um diferente que não corresponde ao diferente entendido como ‘especial’ pelos órgãos educacionais, mas diferentes porque somos humanos e diferentes. A ideia que parece estar por trás das ações dessa escola é aquela que compreende o ser humano cristalizado, parado no tempo e no espaço, onde não é produto e produtor de mudanças ocorridas pelo simples fato de estarmos vivos. Parece que a escola só sabe lidar com robôs pré-programados e não com pessoas que sofrem, perdem, ganham e desejam. E o psicólogo como elemento do sistema, muitas vezes sem perceber, reproduz em sua prática esse ideal. AN02FREV001/REV 4.0 101 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDALÓ, C. S. A. O papel do psicólogo escolar. Rev. Psicologia Ciência e Profissão, v.4, n.1, Brasília, 1984. ANDRADA, E. G. C. Família, escola e a dificuldade de aprendizagem: intervindo sistemicamente. Psicologia Escolar e Educacional, v.7, n. 2, 2003. BEE, H. A criança em desenvolvimento. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. DELUIZ, N. O modelo das competências profissionais no mundo do trabalho e na educação: implicações para o currículo. Boletim Técnico do SENAC, Rio de Janeiro, v. 27, n. 3, set-dez/2001. DESAULNIERS, J.B. Formação, competência e cidadania. Revista Educação e Sociedade, v.18, n. 60, Campinas, dez/1997. DIRETRIZES CURRICULARES NACIONAIS, Resolução CNE/CES/MEC n° 4, novembro/2001. FONTANA, M., da CRUZ, M. N. Psicologia e trabalho pedagógico. São Paulo: Atual, 1997. GADOTTI, M. História das ideias pedagógicas. São Paulo: Editora Ática, 2002. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Disponível em: <www.bd.camara.gov.br/bd/bitstream/handle/bdcamara/2762/ldb_5ed.pdf>. Acesso em: 10 nov. 2011. LOPES, A.C. Competências na organização curricular da reforma do ensino médio. Boletim técnico do SENAC, RJ, v.27, n. 3, set-dez/2001. MACHADO, A. M. e SOUZA, M. P. R. (orgs). Psicologia escolar: em busca de novos rumos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1997. AN02FREV001/REV 4.0 102 MACHADO, L. A institucionalização da lógica das competências no Brasil. Revista ProPosições, v. 13 n.1(37), Jan-Abr/2002. MARKERT, W. L. Novas competências no mundo do trabalho e suas contribuições pra a formação do trabalhador. Trabalho e Crítica, n. 2, set/2000. MARKERT, W. L. Trabalho e Comunicação: reflexões sobre um conceito dialético de competência. Revista Educação e Sociedade, ano XXIII, n°79, agosto/2002. MARKERT, W. L. Trabalho, universidade, comunicação e sensibilidade – aspectos teórico-metodológicos para um conceito dialético de competência. Trabalho e Crítica, Florianópolis, n°3, 2002. PACHECO, J.A. Currículo: teoria e práxis. Porto: Porto Ed., 1996. PATTO, A. M. A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: T. A. Queiroz, 1990. PATTO, M. H. S. Psicologia e ideologia. São Paulo: T. A. Queiroz, 1984. POLONIA, A. C. e DESSEN, M. A. Em busca de uma compreensão das relações família e escola. Rev. Psicologia Escolar e Educacional, v.9, n. 2, 2005. RAMOS, M.N. A educação profissional pela pedagogia das competências e a superfície dos documentos oficiais. Revista Educação e Sociedade, Campinas, v. 23, n°80, set/2002: 401-422. RAMOS, M.N. A pedagogia das competências: autonomia ou adaptação? São Paulo: Cortez, 2002. RAMOS. M. N. A pedagogia das competências e a psicologização das questões sociais. Boletim Técnico do SENAC. Rio de Janeiro, v. 27, n. 3, set/dez, 2001. SAVIANI, D. As teorias da educação e o problema da marginalidade na América Latina. Caderno de Pesquisa de São Paulo, SP, n 42, ago.1982: 8-18. AN02FREV001/REV 4.0 103 SILVA, M.A. Currículo: concepção, eixos, princípios norteadores, reformas e implantação e avaliação. Revista Educação em Foco. n. 7, p.13-21, 2003. SILVA, T.T. O currículo como construção social. SILVA, T.T. Documentos de identidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1994. ZINKER, J. A busca da Elegância em Psicoterapia. São Paulo: Summus, 2001. FIM DO CURSO psicologia_escolar_01.pdf psicologia_escolar_02.pdf psicologia_escolar_03.pdf