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JAIME BALMES
,
O CRITERIO
Edicão patrocinada pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo,
em comemoracão ao centenário da
morte do insigne filósofo espanhol
*
EDITôRA ANCHIETA
S. PAULO, MCMXLVIII
NIHIL OBSTAT
S. Paulo, 12 de outubro de 1948
Pe. José Varani
CENSOR
IMPRIMATUR
t Paulo Rolim Loureiro
BISPO A UXTI..IAR
São Paulo, 13-X-1948
EXPLICAÇAO NECESSARIA
Partindo para a Europa com a caravama de es
tudantes da Faeuldade: de Direito da Pontifícia Uni
versidade Católica de São Paulo, deixou-me o dilecto
armigo Prof. Dr. J. P. Galvão de Sousa a honrosa
incumbência de cuidar da publicação do O Critério
de Jaime Balmes com que celebrasse a dita Univer
sidade o centenário do falecimento do insigne filó
sofo espanhol.
Exíguo o templO par-a uma tradução imediata e
actual da afamada obra, houve que a;proveitar c
versão antiga de João Vieira, editada p·or Chardron
em 1877 (2.a edição) e por tantos atributos notável.
Prestando-se o dr. João Payão Luz ao sacrifí
cio do exempla1· da sua biblioteca como original para
a tipografia aviámo-nos ao coteio com o texto cas
telhano. Baseara-se, porém, o tradutor na versão
frfkncesa de M. Manec, alegando que "nela se aper-
1 eiçoara o texto original".
Não convimos com o juízo de João Vieira.
Para ganha.r tempo, todavia, fomos obrigados
a ater-nos apenas à revisão de eertas pequenas
VI O CRITÉRIO
infidelidades em que com razão se pudera dizer ser
o "traduttore" um "traditore", e à actualização da
ortografia.
Para esta operação urgente e melindrosa, so
corremo-nos também dos préstimos da distinta Prof.a
Maria Ricardina Mendes de Almeida e, mercê de to
dos esses passos, pudemos entregar o� originais à
Editôra Anchieta, a qual generosamente se prontifi�
cara a ser a publicadora da obra, em tempo hábil
para que o volume viesse a surgir à luz na data
convencionada, que é esta.
Do Prof. J. P. Galvão de Souza, ainda na
Europa, recebemos as páginas pospostas a estas
explicações.
A todos quantos nos auxiliaram a>ara que a pu
b licação saísse a contento, deixamos aqui expresso o
nosso "muito obrigado " .
Arlindo VEIGA DOS SANTOS
São Paulo, 28 de j ulho de 1948.
PREFACIO
1848 foi um ano eminentemente revolucionário.
Enquanto o judeu Karl Marx redigia o Manifesto Comu
nista; traçando a diretriz da revolução mundial, movimen
tos subversivos alastravam-se pela Europa derrubando
governos e fazendo sossobrar regimes.
Naquêle mesmo ano, jovem ainda, entregava a alma
ao Criador um ilustre filósofo e publicista espanhol cuja
pena estivera sempre a serviço da Igreja e da Pátria, os
dois alvos contra que se voltavam as arremetidas da im
piedade e do internacionalismo revolucionãrio. Fizera-se
paladino das tradições do seu povo então postas em cheque.
E com 38 anos apenas passaria à hist'ória como um dos
maiores pensadores dre sua época. Assim foi que o Cardeal
Joaquim Pecci, futuro Papa Leão. XIII, considerou Jaime
Balmes, com quem travara relações na Bélgica.
Homem de gabinete e de ação, Balmes nunca esteve
alheio aos problemas do seu tempo. Soube dividir-se entre
as especulações da metafísica e as questões candentes da
atualidade social. Participou da vida polit'ica da Espanha
procurando harmonizar as correntes tradicionalistas que se
degladiavam numa incompreensão da gravidade do mo··
mento quando deviam estar unidas em face da maré
montante das fôrças da Revolução.
2 P R E F A C I O
Sua obra, espelhando um talento polimorfo de pas·
mosa fecundidade, se diria de alguém já avançado em
anos de estudo, de meditação e de experiência. Dominou
todos os sistemas filosóficos modernos com uma
penetração genial, sabendo colher aqui e ali fragmentos
de verdade como faz a abelha ao extrair o mel das mais
variadas flôres. Não se deixou, porém, levar pelas águas
turvas do ecletismo. E por outro lado evifando com
maestria os escolhos do idealismo e do empirismo, que
haviam feito naufragar a tantas inteligências de escol,
assentou um dos marcos iniciais da restauração da filo
sofia perene, à qual seria dado decidido impulso depois
da Encíclica Aeterni Patris de Leão XIII.
Metafísico sereno enquanto, nas páginas da Filosofia
Fundamental, aprofundava o estudo do valor do conheci·
mento, Balmes se transformava num jornalista vibrante
ao escrever para as colunas de El Pensamiento de la
Nación.
Título bem expressivo o dêste periódico, para indicar
o sentido da doutrinação cívica de quem soube com tanta
clarividência interpretar o pensamento da nação espa·
nhola, sent'indo perfeitamente os imperativos da unidade
nacional e ao mesmo tempo dos particularismos regio
nais.
Já se tem notado que há, em Balmes, num grau emi·
nente, as qualidades próprias do gênio catalão. Mas o
seu espírito excedeu os limites da Catalúnia, fundindo-se,
por assim dizer, com a complexidade do gênio espanhol.
E transpôs ainda\ as fronteiras de sua pátria, integrando·
-se na cultura européia, ou melhor, na universidade da
civilização cristã.
O redator de El Pensamiento de la Nación foi tam·
bem um dos fundadores de La Civilización: teve sempre
voltadas as preocupações para os destinos da Espanha e
P R E F A C I O
da Cristàndade. Dai o nos ter deixado aquela magnífica
síntese histórico-filosófica El Protestantismo comparado
con el Catolicismo, que Menendez y Pelayo não hesifou
em classificar como o maior livro espanhol do século.
Estudando o catolicismo e o protestantismo nas suas re·
!ações com a civilização européia, focalizou problemas que
ainda hoje se revestem da mais viva oportunidade. Obra
definitiva e clássica no assunto, apesar do seu carácter
polêmico, motivada que foi por um livro de Guizot.
Balmes, manejando a pena de jornalista ou a de pole·
mista, não perdia a objetividade, a lucidez, o equilíbrio
do filósofo.
A razão dêsse domínio sôbre si mesmo está no modo
por que entendeu a filosofia. Admirável a plasticidade
de sua inteligência, capaz de se alçar aos grandes vôos
da metafísica e logo após tornar ao terra-a-terra do quo·
tidiano sem perder o senso da realidade· e das coisas prá·
ticas!
Muita gente imagina os filósofos tipos exóticos e
infensos ao convivia social, vivendo numa esfera diferente
da que é habitada pelo comum dos mortais . . . E quantas
vezes os culpados deste juizo são os próprios cultores da
filosofia! Não temos visto grandes espíritos afeitos a
elucubrações filosóficas tornarem-se, de um momento para
outro, irreconhecíveis pela falta de lógica ou as divaga·
ções abstractas e sem nenhum contacto com o real, quando
se põem a tratar de assuntos sociais ou políticos de ordem
prática ? Perturba-lhes a visão das coisas uma filosofia mal
compreendida que não serve para a vida. A êstes pode
caber muito bem o sentido pejorativo que chegou a ad·
quirir a palavra "filósofo". Não, porém, a quantos com·
preendam a �ilos_�fia como amor à sabedoria; disciplina
mental,· escola de formação da inteligência e da vontade
na procura da verdade objetiva� Assim a compreendeu
4 P R E F Á C I O
sempre Balmes, e se quisermos a chave do seu segrêdo,
êle mesmo no-la dará : acha-se nas páginas de um livrinho
maravilhoso e único no gênero - El Criterio.
Alguém procurou desfazer no valor filosófico da obra
de Balmes. Escandalizou-se, talvez, com a simplicidade
dêste livrinho e não pôde conformar-se em ver a filosofia
reduzida a uma linguagem accessível, popular. Não admira
que os homens habituados ás excentricidades da filosofia
moderna pensem de tal forma. Mas o facto é que a sã
filosofia tem por vestíbulo o senso comum. A simplicidade
é marca de um espirit'o objectivo, de uma inteligência que
sabe tirar das mais comesinhas e triviais afirmações os
mais profundos ensinamentos.
Aos que se comprazem com a linguagem abstrusa de
certos filósofos de hoje, Balmes desagradará. Aos que pro
curam na filosofia os inebriamentos de um licor altamente
fermentado, serão insípidas as páginas de Balmes.Mas
aos espíritos sedentos da água pura, cristalina e bem
fazeja da verdade, serão sempre de valor inestimável :
um depurativo para a mente, um eliminant'e das toxinas
que contaminam o intelectualismo hodierno.
Não sei de livro mais necessário do que O Critério
de Balmes para a mocidade de hoje.
Com efeito, pareoe que nunca houve, como nos dias
correntes, tanta falta de . . . critério.
Os homens dão-nos a impressão de não raciocinar,·
mais com a lógica natural do espírito humano. E quando ·
raciocinam, não sabem tirar das grandes verdades reli
giosas, morais e sociais as conseqüências tôdas em que
importam para a vida.
Além disso, o subjetivismo mais desenfreado impera
na filosofia moderna desde Descartes e sobretudo Kant.
Passou da filosofia à moral, à· estética, à politica. Não
admira, pois, que se tivesse chegado a perder até mesmo
P R E FACI O
, 1 o senso da distinção entre o bem e o mal, entre o betv
�l e o extravagante, entre a liberdade e o arbitrio.
Tudo isso por um desequilibrio profundo, a atingir a
própria estrutura mental e com efeitos irremediáveis no
que concerne à formação do carácter e à educação da
vontade.
Bem outra seria a situação se todos seguissem as
regras tão simples ensinadas por Balmes no O Critério,
uma espécie de lógica prática que deveria andar de mão
em mão servindo de livro de cabeceira para a mocidade
estudiosa.
Certamente a muitos causará extranheza o conteúdo
destas páginas. Coisas de senso comum, coisas que todo
o mundo sabe desde que começa a pensar. E' verdade.
Pois aí está precisamente o grande valor dêste compên
dio numa época em que nada é mais necessário do que
saber pensar.
Enquanto os adeptos da revolução social festejam
o centenário do Manifesto Comunist'a e dos movimentos
subversivos de 1848, tratemos nós de ouvir as lições de
Balmes, propugnador da ordem nas idéias e na sociedade,
filósofo restaurador do senso comum e publicista mestre
do pensamento contra-revolucionário. Comemorando o
centenário de Balmes, aprendamos com o Autor do
O CRITÉRIO a pensar bem e querer o bem para bem
viver.
J. P. GALVÃO DE SOUSA
(Professor da Pontiflcla Univer
sidade Católica de São Paulo).
o
,
CRITERIO
CAPiTULO I
Considerações preliminares
I
EM QUE CONSISTE O PENSAR BE'M.
QUE É A VERDADE?
Pensar .bem consiste ou em conhecer a verdade,
ou em dirigir o entendimento pelo caminho que a
ela conduz. A verdade é a realidade das coisas .
Conhecer as coisas tais como são em si é possuir a
verdade ; de modo diferente, é êrro. Sabemos que
há Deus, e este conhecimento é uma verdade, por
que realmente Deus existe . Sabemos que a variedade
das estações depende do sol, e este conhecimento é
uma verdade, porque realmente assim é. Sabemos
que a obediência às leis, a boa fé nos contractos, a
fidelidade aos amigos, são virtudes : saber isto é
conhecer outras tantas verdades ; da mesma sorte
O CRITÉRIO
fora cair em erro j ulgar boas e dignas de louvor a
perfídia, a ingratidão, a inj ustiça.
Para pensar bem, busque-se conhecer a verdade,
isto é, a realidade das coisas. De que serve discor
rer com subtileza, ou aparentar profundeza, sem o
pensamento conforme à realidade ? Um lavrador,
um modesto artista que conheçam bem os obji:ldos de
sua profissão, pensam e falam melhor sobre estes
objectos do que um filósofo que, revestindo sua igno
r.ância de elevados conceitos e palavras altissonantes,
pretende ensinar o que ignora.
li
DIFERENTES MODOS DE CONHECER A VERDADE
As vezes só imperfeitamente conhecemos a ver
dade. A realidade apresenta-se-nos então, não tal
como efectivamente é, mas incompleta, aument·ada ou
mudada. Assim, se a certa dist.ância desfila uma
coluna de homens, de sorte que vemos brilharem as
armas, mas sem distinguir os traj es, o que podemo::,
concluir é haver gente armada ; mas será um ajunta
mento popular, ou um corpo de tropas ? a que parte
do exército pertence ? Não o podemos saber. A
verdade não se nos apresenta toda ; só temos um
conhecimento imperfeito ; falta-nos ver distintamen
te o uniforme.
ú CRITÉRIO 9
Se, iludidos pela distância ou qualquer outra
causa, supomos gratuitamente que tais homens estão
fardados de modo que realmente não estão, ainda
neste caso há imperfeição de conhecimento; ajunta
mos alguma coisa que na realidade não existe.
Enfim, se tomamos uma cousa por outra, como,
por exemplo, um vestido amarelo por branco, alte
ramos ainda a verdade ; mudamos um obj ecto em um
outro.
O entendimento que possui uma verdade em
toda a sua extensão é como estes bons espelhos que
representam os obj ectos exactainente como são. �a
posse do erro, o entendimento pode ser coinparado
coin os caleidoscópios que enganain a vista oferecen
do-lhe imagens sein realidade. Finalmente, nos ca
sos em que só possui parte da verdade, é coino os
espelhos Inal estanhados ou dispostos de certa ma
neira, os quais apresentain os objectos reais, Inas de
modo que eles não são, porque lhes alteram as
proporções e a figura.
III
DIVERSIDADE DOS ESPíRITOS
O bom pensador procura ver nos objectos tudo o
que contêin, e nada mais. Homens há que têm o
talento de ver muito em tudo ; porém, cabe-lhes a
lÓ O CRITtRIO
desgraça de verem o que aí não há e não verem o
que realmente há. O sucesso mais indiferente, uma
circunstância qualquer lhes fornece matéria abun
dante para discorrer profusamente-; para, como se
costuma dizer, levantar castelos no ar. Grandes
fazedores de projectos, belos palradores !
Outros padecem do defeito contrário; vêem bem,
mas pouco. Penetram as coisas dum só lado, e se
este lhes desaparece não vêem mais nada. Estes
são propensos a sentenciosos e obstinados. Como
caipiras que j amais saíram de sua roça, p·ara eles
o mundo termina no horizonte.
Um entendimento lúcido, capaz e exacto abarca
em seu estudo o obj ecto plenamente; encara-o sob
todas as faces, em todas as suas relações. A con
versação e os escritos dos homens assim dotados
distinguem-se por sua clareza, precisão, exactidão.
Cada palavra sua põe em relevo uma ideia e esta
ideia corresponde à realidade das coisas; elucidam
-nos e persuadem, deixam-nos plenamente satisfeitos.
Dizemos com assentimento sem reserva : sim, é ver
dade, tem razão. Nenhum esforço é mister para
os seguir em seus raciocínios. C aminhamos por ca
minho plano, no qual o que nos conduz nos faz notar
a propósito as maravilhas que se encontram na pas
sagem. - Se a matéria é abstracta e difícil, e o ca
minho é escuro e se some nas entranhas da terra,
não importa! O nosso guia é mais prático; sabe
O CRITtRIO 11
como s� diminui a fadiga e economiza o tempo; tem
nas mãos um archote de vivíssima claridade.
IV
A PERFEIÇÃO DAS PROFISSõES DEPENDE DA
PERFEIÇÃO COM QUE SE CONHECEM OS
OBJECTOS DELAS
O conhecimento perfeito das coisas na ordem
científica forma os verdadeiros sábios ; na ordem
prática e para a direcção da vida, faz. os prudentes ;
na administraç.ão dos negócios públicos, forma os
grandes estadistas. Enfim, em todas as profissões,
o mais hábil é o que conhece melhor as matérias de
que trata e de que se serve. Este conhecimento, po
rém, há-de ser prático e abranger também os por
menores da execução que, por assim dizer, são pe
quenas verdades, de que se não pode prescindir para
o conhecimento completo das coisas. Estas verda
des são numerosas, até nas profissões mais simples.
Um exemplo : qual será o melhor agricultor ? O que
melhor conhecer as qualidades dos terrenos, das se
mentes e das plantas, os melhores métodos e os me
lhores instrumentos de lavoura ; o que à terra fizer
produzir melhores frutos, com menos despesas, em
menos tempo e com mais quantidade, finalmente que
possuir mais verdades relativas à prática da agri
cultura.
12 b CiUTtRIÓ
O mBsmo acontece com o carpinteiro, com o
comerciante : o mais hábil deles será o que possuir
maior número de verdades concernentes a sua
arte ; o que mais a fundo conhecera realidade
das coisas que o ocupam.
v
A TODOS INTERESSA PENSAR BEM
A arte de bem pensar interessa não somente aos
filósofos, senão a todos os homens, por mais simples
que sejam. O entendimento é um dom precioso ou
torgado pelo Criador, é a luz que nos deve guiar, é,
portanto, para o homem o dever por excelência ;
se se apaga, ficamos às escuras, caminhamos às
apalpadelas. Não devemos ter o entendimento em
inacç.ão, sob pena de se embotar e tornar estúpido ;
porém, alimentando-a, avivando-a, convém que a sua
chama nada se altere na bondade. Deve esclarecf'r
sem deslumbrar, mostrar o caminho sem extravios.
VI
COMO SE DEVE ENSINAR A ARTE DE PENSAR BEM?
A ârte de pénsar bern não sé aprende t::1nto
com regras como com exemplos. Aos que profes·
O CRIT�RIÓ 13
sam esta arte multiplicando os preceitos e observa
ções analíticas, perguntamos o que pensariam de
uma ama que, para ensinar os meninos a falar ou
nadar, empregasse semelhante método ? Mas não
se infira que condeno tod·as as regras. O que sus
tentamos é que s-e deve usar delas com sobriedade,
sem pretensão filosófica e sobretudo que hão-de ser
simples e práticas. Ao lado da regra, o exemplo.
Um menino pronuncia defeituosamente certas pala
vras ; que fazem os pais ou mestres para o corrigir ?
Pronunciam-nas como devem ser pronunciadas, e lhas
mandam repetir em seguida. " Escuta bem como
digo . . . vai, agora tu . . . não ponhas os lábios desse
modo, não faças tanto esforço com a língua ", e ou
tras coisas assim. Eis o exemplo ao lado do pre
ceito; a regra e logo a maneira de a pôr em prática.
CAPíTULO II
A atenção
Assim como há meios conducentes ao conheci
mento da verdade, também há obstáculos que nos
impedem chegar a ela. Ensinar a empregar uns
e desviar dos outros, eis a arte de bem pensar.
I
DEFINIÇÃO DA ATENÇÃO, SUA NECESSIDADE
A atenção é a aplicação do espírito a um objecto
qualquer. Para bem pensar, é mister, antes de tudo,
saber ser atento. O machado não corta, se não é
aplicado à árvore ; a foucinha é inútil nas mãos do
ceifador, se não encontra espigas.
Algumas vezes, os obj ectos se apresentam ao
espírito, sem que ele lhes atente, de modo que su
cede vermos sem olhar, ouvir sem escutar ; porém
o conhecimento adquirido por tal modo é sempre li-
16 O CRIT�RIO
geiro, superficial, muitas vezes inexacto ou comple
tamente erróneo. O espírito inatento fica por assim
dizer fora de si, não vê o que se lhe mostra. Esfor
cemo-nos por ·adquirir o hábito da atenção, quer no
movimento dos negócios, quer na quietação dos
estudos. Temos tido muitas vezes ocasião de obser
var que o que nos falta para compreender é menos
a inteligência suficiente, do que suficiente aplicação
do espírito, a atenção.
Se escutamos a narração dum sucesso qualquer,
distraídos e deixando flutuar ao acaso a imagina
ção, interrompendo o narrador com mil questões e
digressões estranhas, o que daqui resulta é que
circunstâncias importantes nos escapam, que traços
essenciais passam sem nos impressionar, e que, se
depois quisermos contar o facto, ou meditàr snbre
ele afim de formarmos nosso j uízo, ele se apresenta.
à reminiscência incompleto e desfigurado. Proce
derá o êrro de nossa incapacidade, ou de não termos
prestado suficiente atenção ao narrador ?
li
VANTAGENS DA ATENÇÃO E INCONVENIENTES
DE SUA FALTA
A atenção multiplica as forças do espírito de
um modo incrível, e como que alonga o tempo.
O CRITtRIO 17
Por meio da atenção o homem ilustra-se incessan
temente ; é à atenção que ele deve a precisão e ela�
reza de suas idéias ; deve-lhe até as maravilhas da
memória, pois que em virtude da atenção é que as
idéias se classificam no cérebro com ordem e método.
Os que só frouxamente atendem, passeiam seu
entendimento por lugares distintos ao mesmo tem
po ; aqui recebem uma impressão, além uma mui
diferente ; acumulam deste modo cem coisas inco�
nexas que, longe de os aj udar para a aclaração e
retenção, se confundem, se embaralham, se destróem
umas às outras. Não há leitura, conversação, es�
pectáculo, que não possam, por mais insignificantes
que pareçam, oferecer algum obj ecto de instrução.
A atenção toma nota e recolhe as coisas mais insig�
nificantes, a distracção deixa cair ao chão, como re
fugo, o ouro e as pedras preciosas.
III
COMO SE PRESTA ATENÇÃO. ESPíRITOS
FRíVOLOS E CONCENTRADOS
Poder-se-á crer que tal atenção demanda muita
fadiga, mas é um êrro. Quando digo atenção, não
�ntendo a fixidez dum espírito que, por assim dizer,
18 O CRITÉRIO
se crava nos obj ectos, mas sim uma aplicação serena,
repousada, que permite que cada coisa tenha a sua
hora e. nos deixa a agilidade necessária para passar
de um trabalho ao outro. Esta atenç.ão não é in
compatível com as diversões ou recreio. Com ef-eito,
recrear-se a gente não é deixar de pensar, é dar
tréguas •aos assuntos de estudo laborioso e consagrar
-se a estudos mais fáceis. O sábio que interrompe
os seus estudos árduos e p-rofundos para ir saborear
um momento os encantos do campo compraz-se em
observar o estado das coisas ; atende aos trabalhos
dos lavradores, ao murmúrio das fontes, ao canto das
aves ; esta atenção distrai-o, não o fatiga.
Estou tão longe de considerar a atenç.ão como
. abstracção severa e contínua, que conto -como ho
. mens distraídos não somente os estouvados, mas
ainda os ·absorvidos em si mesmos. Aqueles dissi
pam-se fora de si ; estes p-erdem-se dentro de si
mesmos, nas vagas profundezas de suas divagaç.ões.
Tanto uns como os outros carecem de conveniente
atenção, isto é, aquela que se deve aplicar ao objecto
de que se ocupa.
O homem atento é também o que tem mais
urbanidade e cortesia. Feris o amor próprio da·
queles a quem não escutais. E'' de notar aqui que
um acto de urbanidade ou um acto contrário se cha·
mam atenção ou falta d-e atenção.
O CRITÉRIO 19
IV
AS INTERRUPÇõES
Acrescentemos que até os estudos mais profun
dos, raramente exigem uma atenção tal que os não
possamos interromper sem grave dano. Pessoas há
que se queixam amargamente se a desoras uma vi
sita ou um ruído qualquer inesperado lhes vem cor
tar o fio das idéias. Fracos cérebros ! verdadeiros
. daguerreótipos em que o mais leve movimento, a
interrupção mais passageira basta para confundir
tudo. Este defeito, natural em algumas pessoas,
em outras, afectação vaidosa e pueril, acusa sempre
completa ausência de concentração ou recolhimento
interior. Como quer que seja, esforcemo-nos por
adquirir uma atenção que seja ao mesmo tempo
forte e flexível. E' mister que nossas concepções
não sejam a guisa de imagens daguerreotípicas, mas
sim quadros bem desenhados. Interrompido o pin
tor, deponha seus pincéis para os retomar quando
puder prosseguir em sua obra. Se um corpo es
tranho lhe faz sombra, desvia-o e tudo fica reparado.
CAPíTULO III
Escolha da carreira
I
VAGA SIGNIFICAÇÃO DA PALAVRA TALENTO
Cada um deve consagrar-se inteiramente à pro
fissão para a qual sentir maior aptidão. Esta re
gra é da maior importância ; muitas vezes tem sido
esquecida ou desprezada, e daí vem, segundo a mi
nha convicção, que as artes e as ciências não têm
ainda feito os progressos decisivos de ·que são sus
ceptíveis. Para alguns a palavra talento significa
cap·acidade absoluta ; um espírito fadado para uma
coisa deve sê-lo igualmente para todas. Erro capital.
Um homem pode ser duma capacidade prodigiosa
num ramo de conhecimentos humanos, e mostrar-se
medíocre ou completamente nulo em outros. Certa
mente Napoleão e Descartes são dois grandes espíritos
22 O CRITÉRIO
e todavia nenhum ponto de semelhança têm. Supo
nhamos que mudavam seus pensamentos : o gênio da
guerra não compreenderia o gênio da filosofia ; o
conquistador colocaria o pensador em o número da
queles que com desdém chamava ideólogos.
Poder-se�ia escrever um livro sobre os talentos
comparados, assinalando as diferenças radicais que
osdistinguem. A cada um sua parte de força e de
fraqueza. Há poucos homens, não há talvez nenhum,
que chegue a uma igual superioridade em todas as
coisas. Não nos mostra a observação que certas apti
dões se contrariam e prejudicam mutuamente ? Com
efeito um espírito generalizador raramente possui a
exactidão minuciosa. Pedi ao poeta que vive de ins
pirações e imagens grandiosas, que se suj eite à re
gularidade compassada das matemáticas !
li
O INSTINTO NOS INDICA A CARREIRA QUE
MELHOR SE NOS ADAPTA
Às faculdades que o Criador nos distribui em
graus diferentes, acrescenta um instinto preciso que
nos indica o seu emprego. Se um espírito se com
praz com certos trabalhos, ele os. busca com perseve
rança ; outro, pelo contrário, experimenta repugnân
cia quase invencível e constante para a esses trab-a-
O CRITÉRIO 23
lhos se dedicar. Não nos enganamos nisto. A natu
reza nos adverte que recebemos, no primeiro caso,
disposições felizes, e, no segundo, inaptidão para tal
mister. O sentido do gosto, se não está alterado por
alguma doença ou maus hábitos, distingue os alimen
tos sãos dos que o não estão. O mesmo acontece
com o olfacto. Deus não podia ter menos cuidado
pela alma que pelo corpo.
Os pais, os mestres, os directores de estabeleci
mentos de educação farão bem se prestarem a devida
atenção a esta verdade. Quantos talentos, com efeito,
que, bem dirigidos, teriam dado os mais precisos
frutos, se consomem inutilmente, pelo facto de terem
sido consagrados à carreira para que não haviam
sido feitos !
Todos podem fazer este exame. O mesmo alu
no, desde a idade de doze anos por diante, está nos
casos de compreender quais são os trabalhos que lhe
custam menos e os estudos em que se acha com mais
aptidão e inteligência.
III
MEIOS PARA DISCERNIR AS APTIDõES
PARTICULARES DUM MENINO
Fazei passar diante dos meninos produtos di
versos, obras notáveis da indústria e da inteligência
24 O CRITtiUO
humana ; conduzi-os aos lugares em que o instinto ele
cada um possa ser posto em presença de objectos de
sua escolha. Tal método vos será muito útil, muito
seguro. · Na revelação das aptidões, a natureza faz
aqui o que seria incapaz de conseguir o estudo mais
atento.
Um mecanismo engenhoso atrai a atenção dum
grupo de meninos de doze anos. O maior número
admira um momento e passa ; um só se detém e pa
rece longo tempo esquecido do mais. A curiosidade
de seu exame, as questões cheias de senso que dirige,
a compreensão rápida do maquinismo que assim o
interessa, tudo isto não terá alguma significação
para o observador atento ?
Ledes o trecho duma bela poesia e se entre eles
está algum Lope de Vega, um Ercilla, um Calderon,
vedes brilharem os seus olhos, altear-lhe o peito; e
a imaginação do menino sente-se inflamada por um
sopro que nem compreende. Falou a natureza; desig
na-vos um poeta.
É mister não contrariar as aptidões, não as for
çar. De dois meninos extraordinários, confiados à
vossa conduta, podeis não dar à sociedade senão dois
homens de extrema mediocridade. A águia e a ando·
rinha distinguem-se pela força e agilidade de suas
asas, porém jamais a águia lançou o seu vôo à
b CRITtRIÓ 25
maneira da andorinha, nem a andorinha à maneira
do rei dos ares :
. . . Tenta te diu quid ferre recusent
Quid valeant humeri.
Este conselho de Horácio, dirigido aos escrito
res, nós o dirigimos a todo o homem que se decide
a abraçar uma profissão qualquer.
éAPfTULO IV
Da possibilidade
I
CLASSIFICAÇÃO DOS ACTOS DE NOSSO ENTENDI
MENTO. QUESTCES A PROPOR
Para dar a meu assunto toda a clareza de que
o julgo susceptível, dividirei os actos de nosso enten
dimento em duas classes : actos especulativos e actos
práticos. Chamo especulativos os que param no co
nhecimento, e práticos os que conduzem à acção ou a
determinam.
Quando simplesmente se trata de conhecer uma
coisa, podemo-nos propor as questões seguintes :
t.a tal coisa é ou não P'ossível ? Existe ou não
existe ? Qual é a sua natureza? As regras, com
28 O CRITÉRIO
cuja aj uda se podem resolver satisfatoriamente
estas três questões abrangem tudo o que diz respeito
à ciência especulativa.
Em toda e qualquer acção, é evidente qne nos ·
propomos um fim. Daí as questões: 1." qual é esse
fim ? qual o melhor meio de o conseguir ?
Peço instantemente ao leitor que fixe a aten
ção e, se puder, grave na memória as prereden
tes divisões. Facilitar-lhe-ão a inteligência do que
deve seguir-se e serão de grande auxílio para.
estabelecer a ordem em seus pensamentos.
li
O POSSíVEL E O IMPOSSíVEL. CLASSIFICAÇÃO
Possibilidade. A idéia contida nesta palavra é
correlativa à de impossibilidade. Com efeito, a afir
mação duma arrasta à negação da outra.
As palavras possibilidade e impossibilidade ex
primem idéias diferentes, segundo se aplicam às cou
sas em si mesmas ou sõmente à ·causa que as pode
produzir. Todavia estas idéias têm relações muito
íntimas, como vamos ver. Consideradas relativa
mente a um ser, independente da causa, a possibili
dade e impossibilidade chamam-se intrínsecas ; ex-
O CRITtlUO 29
trínsecas se se aplicam às causas. Apesar da sim
plicidade e clareza aparente desta definiç.ão, para
completamente alcançar o sentido, é indispensável
seguir-me nas diferentes classificaç.ões que vou expor
nos seguintes parágrafos.
Poder-se-á estranhar que definamos a impossi
bilidade antes de definir a possibilidade. Mas um
pouco de reflexão fará ver que este método é lógico.
A palavra impossibilidade, não obstante ter sentido
negativo, não deixa de apresentar uma idéia positiva,
a i déia de contradiç.ão entre as cousas, de exclusão,
de oposição, de luta, por assim dizer ; de modo que,
vindo a desaparecer esta contradição, concebemos a
possibilidade. Daí vêm estes modos de dizer: tal
cousa é possível, pois que nada se lhe opõe, não tem
contradição. Como quer que seja, o conhecimento
do impossível dá o de possível e vice-versa.
Alguns filósofos distinguem três espécies de im
possibilidade : impossibilidade metafísica, física e
moral. Adoptarei esta divisão, acrescentando-lhe um
novo membro : a impossibilidade do senso comum. Em
seu lugar se verá em que me fundo. Talvez, melhor
seria dar à impossibilidade metafísica o nome de
impossibilidade absoluta; o nome de impossibilidade
natural à impossibilidade física, e à impossibilidade
moral o nome de impossibilidade ordinár-ia.
O CRITÉRIO
III
EM QUE CONSISTE A IMPOSSIBILIDADE
METAFíSICA OU ABSOLUTA
A impossibilidade metafísica ou absoluta é a
que se refere à mesma essência das coisas ; por
outra, um facto é absolutamente impossível, quando
sua existênci'a envolver consigo o absurdo : ser e
não ser ao mesmo tempo. Um círculo triangular é
um impossível absoluto ; porque seria e não seria
ao mesmo tempo um círculo ; porque seria e não
seria um triângulo. Cinco igual a seis é impossível
absoluto, porque cinco seria cinco e não cinco, e o
seis seria seis e não seis. Um vício virtuoso é im
possível absoluto, porque seria vício e não vício ao
mesmo tempo.
IV
A IMPOSSIBILIDADE ABSOLUTA E A
OMNIPOT:f:NCIA DIVINA
O que é absolutamente impossível não poderia
oocistir em caso algum. Quando dizemos que Deus
é omnipotente, não queremos dizer que haja nele o
poder de fazer absurdos. A existência e a não exis-
O CRITÉRIO 31
lencia ao mesmo tempo, do mundo, de Deus, o v1c10
virtuoso e outras incoerências desta ordem, eviden
temente não podem estar debaixo da acção da omni
potência. Como muito bem observou Sto. Tomás,
devemos dizer que tais coisas não podem ser feitas
e não que . Deus as não pode f'azer : segue-se daí
que a impossibilidade intrínseca envolve igualmente
a impossibilidade extrínseca absoluta, isto é, que
nenhuma coisa é capaz de produzir o que de si
mesmo é absolutamente impossível. \ ·
v
A IMPOSSIBILIDADE ABSOLUTA E OS DOGMAS
A afirmaÇ-ão duma impossibilidade absoluta
implica idéia perfeitamenteclara de termos j ulgados
contraditórios. Declarar uma cousa impossível, só
porque a não podemos compreender, é simultânea
mente dar a conhecer o orgulho e a impotência de
nossa razão. Relevemos a este propósito a sem
razão dos que rejeitam certos mistérios do cristia
nismo, argüindo-os de pretendida impossibilidade.
O dogma da Trindade, o da Incarnação, seguramente
estão acima da fraca inteligência do homem ; mas que
podemos nós concluir da nossa impotência ? Deus
trino e uno ; uma mesma natureza e três pessoas
distintas, como pode ser isso ? Não o sei ; porém
32 O CRITtRIO
minha ignorância não me permite o inferir que haja
contradição. Por ventura compreendo o que é essa
natureza, o que são essas pessoas de que me falam ?
Não : logo quando quero j ulgar se é possível ou não .
o que delas dizem, acho-me com o desconhecido.
Que sabemos nós dos segredos da Divindade ?
O Eterno quis pronunciar algumas palavras miste
riosas para exercitar nossa obediência e humilhar
nosso orgulho, porém não quis levantar o denso véu
que separa esta vida mortal do oceano de .luz e de
verdade.
VI
IMPOSSIBILIDADE FíSICA OU NATURAL
A impossibilidade física ou natural eonsiste em
um facto estar fora das leis da natureza. E' natural
mente impossível que uma pedra, deixada de ser
sustida no ar, não caia ; que a água, abandonada a
si mesma, não tome o seu nível ; que um corpo, mer
gulhado num fluido de menos densidade, não afunde ;
que o sol pare em sua carreira, etc . . . , porque as
leis da natureza prescrevem a queda dos graves, o
nivelamento das águas, e assim por diante. Deus,
que estabeleceu estas leis, tem poder para as sus
pender ; o homem é que o não pode. O que natural
mente é possível para Deus, não o é para a criatura.
.
O CRITÉRIO
VII
MODO DE JULGAR DA IMPOSSIBILIDADE
NATURAL
33
Podemos afirmar que um facto qualquer é na
turalmente impossível, quando saibamos que existe
lei que se oponha à realização deste facto, e que esta
oposição não é destruída ou neutralizada por ne
!,huma outra lei. É lei da natureza que o homem,
deixando de ter ponto de apoio, caia para o chão,
porque é mais pesado que o ar ; porém existe uma
. outra lei, em virtude da qual um corpo formado de
diversas partes e e3pecialmente menos pesado do
que o meio em que se acha mergulhado, aí se sus
tenha ou eleve, mesmo quando uma das suas partes
seja mais pesada que o fluido, ambiente. Assim um
homem colocado num balão aerostático, conveniente
mente construído, eleva-se aos ares, e este fenómeno
está perfeitamente em harmonia com as leis. da na
tureza. A extrema pequenez de certos insectos imped�
que a sua imagem se pinte na retina de nossos olhos
de modo perceptível para nós ; mas, em virtude das
leis a que a luz está submetida, a direcção dos raios
pode ser modificada de tal modo que, por meio duma
lente microscópica, esses raios, partidos dum objeeto
pequeníssimo, se desviam em seu ponto de contacto
34 O CRl'rnRIO
com a retina, e aí tracem uma imagem muito maior
que a realidade ; de modo que não será naturalmente
impossível que certos seres imperceptíveis à vista
d€sarmada, se nos apresentem, com auxílio do mi- ·
croscópio, com proporções consideráveis .
. Por estas considerações se vê quanto importa
não proclamar tal ou tal fenómeno como natural
mente impossível, senão depois de maduro exame.
A natureza é prodigiosamente poderosa e a
maior parte de seus segredos nos são desconhecidos.
Se no século V se dissesse que ainda havi·a de vir.
tempo em que, por acção dum pouco de vapor compri
mido, se haviam de vencer distâncias em uma hora
que então levariam um dia inteiro a vencer, esta facto
seria declarado naturalmente impossív€1 ; e, todavi-a
o menino que hoje viaj a em caminho de ferro com
preende perfeitamente que é levado na rápida car
reira por agentes puramente naturais. Quem sabe
as descobertas destinadas ao futuro e qual o aspecto
que apresentará o mundo da:qui a dez séculos ?
Sej amos embora cautos em crer a existência de fenó
menos extraordinários ; não nos deixemos embalar por
sonhos dourados ; porém não classifiquemos de natu
ralmente impossível o que um descobrimento feliz
poderá mostrar mui realizável. Não prestemos fé
levianamente a transformações inconcebíveis, mas
não as malsinemos de extrava.g;âncias e absurdos.
O CRITÉRIQ
VIII
SOLUÇÃO DUMA DIFICULDADE SOBRE OS
MILAGRES
35
Destas observações surge aparentemente uma
dificuldade de que os incrédulos não se têm esque
cido de lançar mão. E i-la em toda a sua força :
" Os fenômenos chamados milagres são produzidos
por causas desconhecidas, mas naturais ; de modo
algum provam a intervenção divina, e, portanto, em
nada apoiam a verdade da religião cristã. "
Este argumento é tão especioso quanto fútil.
Um homem de nascimento obscuro, sem letrBs,
perdido na multidão, sem meios humanos de atrair
a si a atenção dos outros, não possuindo ao menos
um lugar em que repousar a cabeça, este homem
apresenta-se à sua nação, trazendo-lhe uma doutrina
tão nova quanto sublime. Pedem-lhe os testemu
nhos de sua missão e ele os dá. A sua voz, os cegos
vêem, os surdos ouvem, os mudos falam, os paralí
ticos andam ; as mais rebeldes enfermidades desapa
recem repentinamente ; os que hão expirado, os que
desceram ao túmulo levantam-se de seu esquife;
até os que há dias jaziam, lançando já 'as exalações
empestadas da morte, saem de seus túmulos obedien
tes à voz que lhes diz : Levantai-vos ! - Eis o con
junto dos factos.
36 O CRITtRIO
Empenhar-se-á o mais obstinado naturalista PN
descobrir aqui a acção das leis naturais ocultas ?
Com boa fé, ousar-se-á taxar de imprudência o�
cristãos que crerem que tais prodígios se não podiam .
operar sem intervenção divina? Credes que com o
tempo se descubra o segredo de ressuscitar os mortos,
e não por meio da ciência, mas ao chamamento duma
voz que manda ? A operação da cataracta terá al
guma semelhança com a acção de abrir os olhos a
um cego de nascimento ? Os processos empregad0s
para dar movimento a um membro paralisado asse:.
melham-se por ventura a este outro : Levanta-te,
toma o teu leito e volta para tua casa ? Virá c..'ia em
que as ciências hidrostáticas e hidráulicas dêm à
simples palavra humana o poder de acalmar as va
gas enfurecidas e forçá-las a tornarem-se· mansas
debaixo dos pés de quem caminha sobre elas, como
um rei sobre prateadas alfombras ?
E que diremos se a tão imponente testemunho
se aj untam o cumprimento das profecias, a santi
dade duma vida sem manchas, a elevação da dou
trina e a pureza da moral ; enfim o sacrifício da
vida, uma morte heroica no meio· de tormentos e ul
trajes ; o ensinamento sustentado, proclamado até
ao fim com uma serenidade, uma doçura cheia de
majesíaJe, até ao último suspiro que exala nestas
solenes pa}avras deixadas à terra : Amor e perdão ?
O CRITÉRIO 37
Não se nos fale, pois, de leis ocultas, de impos
sibilidades aparentes ; não se oponha a tão convin
cente evidência esta palavra desconsoladora " que'm,
sab e ? " Esta dificuldade, que seria razoável s e se
tratasse dum facto isolado, envolto em obscuridades,
sujeito a mil combinações diferentes, se se obj ecta
contra o cristianismo é não só infundada, senão
também contrária ao senso comum.
IX
IMPOSSIBILIDADE MORAL OU ORDINARIA
A impossibilidade moral ou ordinária é a que
está em oposição com o curso regular dos sucessos.
Esta definição é susceptível de numerosas interpre·
tações ; pois que a idéia de curso ordinário é tão
el ástica, é aplicável e tão difenmtes objectos, que
pouco pode dizer-se em geral que seja proveitoso
na prática. Esta impossibilidade nada tem que ver
com a absoluta ou a natural ; as cousas moralmente
impossíveis não deixam por isso de ser muito pos
síveis absoluta e naturalmente.
Daremos uma idéia mui clara e simples da im
possibilidade ordinária, se dissermos que um facto
é impossível desta maneira, quando,no curso regular
das coisas, tal facto raras vezes ou nunca se dá.
Vejo um grande personagem cujo nome e títulos
38 O CRITÉRlO
andam na boca de todos e a quem se tributam as
honras devidas à sua dignidade. É moralmente im
poosível que o nome seja suposto, que o personagem
seja um impostor ; e todavia tem havido enganos .
desta ordem.
Vemos a cada passo que a impossibilidade moral
desaparece por intervenção duma causa extraordiná
ria ou imprevista que muda o curso dos aconteci
mentos. Um comandante que acaudilha um punhado
de soldados, partidos de longes terras, aborda a pla
gas desconhecidas e se encontra com um imenso con:
tinente povoado por milhões de habitantes. Lança
fogo às naus e diz : Marchemos. Aonde vai ? con
quistar vr.stos reinos com alguns soldados. É im
possível, este aventureiro é um louco ! Deixai-o ! sua
demência é a do heroísmo e do gênio. . A impossibi
lidade vai tornar-se um sucesso histórico. O aven·
tureiro chama-se Fernando Cortês, e a sua loucura
dá à Espanha um novo mundo.
X
IMPOSSIBILIDADE DO SENSO COMUM, IMPRO·
FRIAMENTE CONFUNDIDA COM A
IMPOSSIBILIDADE MORAL
A pal·avra impossibilidade moral tem algumas
vezes um sentido muito diferente do que lhe have-
O CRlTtRIO
mos dado até aqui. Há factos impossíveis, cuj a im
possibilidade absoluta ou natural se não pode afirmar ;
e com tudo nós estamos de tal modo certos de que
são irrealizáveis que nem a impossibilidade absoluta
produziria certeza mais completa . Um homem tem
encerrado numa urna uma grande quantidade de
caracteres de imprensa, que supomos todos cúbicos
p·ara que não haj a mais probabilidade de que caiam e
fiquem sobre tal ou tal face. Mistura-os, agita-os
muitas vezes sem ordem e os lança enfim ao acaso.
Será possível que em sua queda estes caracteres com
ponham o episódio de Dido ?
Não, responde instantâneamente todo o homem
de senso . Esperar seria loucura. Estamos tão pro
fundamente convencidos da impossibilidade do facto,
que apostaríamos a vida com a maior tranqüilidade.
É de notar que nenhuma impossibilidade me
tafísica há aqui, porque nos caracteres nenhuma
repugnância existe a colocarem-se do modo desej ado .
Um compositüi· os distribuiria desta maneira em pou
co tempo e com a maior facilidade. Nenhuma lei da
natureza se opõe a. que estes caracteres caiam sobre
uma ou sobre outra face, ao lado uns dos outros, de
modo que produzissem o efeito desej ado ; não se pod e
invocar a impossibilidade natural. Existe por tanto
uma impossibilidade doutra ordem, que nada tem de
comum com as du·as primeiras e que igualmente difere
da que apelidamos impossibilidade moral, p·elo único
40 O CRITfRIÓ
facto de que ela está fora do curso regular dos su
cessos. Damos-lhe o nome de impossibilidade do
senso comum.
A teoria das probabilidades e das combinações
evidenciam esta impossibilidade, medindo, por assim
dizer, distância imensa que separa a possibilidade
dum fenómeno da sua realização. Não quis o Autor
da natureza que certas convicções de soberana im
portância precisassem de ser meditadas ; pois que.
doutro modo, muitos homens ficariam delas privados.
Eis porque no-las deu sob a forma de instinto. Em·
vão vos esforçaríeis por as combater, nem ainda aos
mais rudes. Não saberiam responder-vos ; porém,
meneando a cabeça, diriam de si para si : Este fi
lósofo, que crê na possibilidade de tais despropósitos,
deve não estar são do j uízo.
Quando a natureza fala do fundo de nossa alma
com voz tão clara, tão imperiosa, seria toleima não
a escutar. Só à� vezes alguns homens chamados
filósofos se obstinam nesse labor ingrato. Esquecem
que fora do senso comum não há filosofia e que o
absurdo é mau caminho para chegar à sabedoria.
CAPíTULO V
Da existencia ; conhecimentos adquiridos pelo
testemunho imediato dos sentidos
I
NECESSIDADE DO TESTEMUNHO DOS SENTIDOS ;
DIFERENTES MODOS COM QUE NOS
APRESENTAM AS COISAS
Depois de termos estabelecido os princípios e
as regras ·que nos dev·em guiar nas questões da pos
sibilidade, passemos às questões da existência, que
nos oferecem um campo muito mais vasto e de mais
úteis e freqüentes aplicações.
Por duas maneiras distintas pódemos adquirir
a certeza da1 existência ou não existência de um ser,
a certeza de que uma coisa existe ou não existe :
por nós mesmos ou por meio doutrem.
42
------------------------------------------�-
O conhecimento que •adquirimos por meio dos
sentidos pode ser mediato ou imediato. Ou os sen
tidos nos apresentam os objectos à nossa inteligência,
ou, das imagens que estes, objectos proC..'uzem, a inte�
lig.ência infere a existência de uma ordem de fenó
menos e de factos; colocados acima da esfera dos sen
tidos. A vista me adverte imediatamente da exis
tência de um edifício que aparece diante de mim.
O pedaço de uma coluna, alguns restos de mosaico,
uma inscrição me fazem saber que no lugar onde
descubro estes obj ectos se elevava outrora um temp1o
romano. Em ambos os casos devo ·aos sentidos o
conhecimento adquirido : imediatamente no primeiro,
de modo mediato no segundo.
Sem o auxílio dos sentidos o homem nem ao me
nos chegaria a conhecer a existência dos entes ima
teriais. Na verdade, a inteligência merguÍhad·a num
eterno adormecimento não poderia ad·quirir este con
nhecimento, a menos que Deus viesse em seu auxílio
por meios sobrenaturais, meios de que não temos de
ocupar-nos aqui.
À distinção que acabamos de expor em nada obs
tam os sistemas que possam adoptar-se sobre a origem
das idéias. Quer elas sejam inatas ou adquiridas, quer
provenham directamente dos sentidos, ou somente des
pertadas por estes, é evidente que nada poderíamos,
que nada saberíamos sem que previamente esses po
derosos auxiliares da inteligência tenham sido
O CRITtRIO 43
postos em acção. Deixemos os ideólogos imaginarem
o que quiserem sobre as operações intelectuais de
um homem privado de todos os seus órgãos ; como
verificar o erro ou a verdade de seus sistemas ?
O infeliz não poderia comunicar nem pela palavra,
nem mesmo por sinais. De mais não se trata aqui
de um ente excepcional, mas do homem, do homem
dotado de órgãos, e a experiência nos ensina que,
nestas condições, o homem conhece, e que conhece
o que sente e por meio de que o sente.
II
ERROS A QUE ESTAMOS SUJEITOS POR OCASIÃO
DOS SENTIDOS. MEIOS DE OS REMEDIAR.
EXEMPLOS
Se o conhecimento imediato que os sentidos nos
dão da existência de uma coisa é algumas vezes afec
tado de erro, é porque não sabemos servir-nos destes
admiráveis instrumentos. Quando os objectos mate
riais obrarem sobre nossos órgãos, excitando impres
sões em nossa alma, procuremos descobrir de onde
vem esta impressão, e até que ponto ela corresponde
à existência do objecto que parece produzi-la. Eis
a regra. Alguns exemplos melhor a farão compre
ender.
44 O CRITÉRIO
Vislumbro ao longe uma coisa que se move, e
digo : Acolá está um homem. Aproximando-me po
rém do obj ecto, vej o que tomei por um homem um
arbusto agitado pelo vento. Enganou-me o sentido .
da vista ? não, porque a impressão que me trans
mitira. não era outra qu€ a de um corpo em movi
mento, e se eu tivesse dado à impressão suficiente
atenção teria reconhecido que não me apresentava
um homem. Havia transformado minha impressão.
O erro pertence portanto à insuficiência da. atenção
e não ao sentido da vista.
Pelo facto de achar certa semelhança entre um
objecto confuso em movimento e um homem visto ao
longe, passei da semelhança para o homem e con
cluí de uma coisa para outra, €squecendo que a
aparência e a realidade são duas coisas inteiramente
distintas.
Tendes algumas razões para cr€r que se deve
dar uma batalha a certa distância do lugar em que
vos achais, e por isso parece-vos ouvir o troar do
canhão € credes abertas as hostilidades. Todavia
não há nada disso . Quem deveis acusar de vosso
erro ? o ouvido ? De nenhum modo. Acusai a vós
mesmos. Havia um ruído,com efeito ; mas era o
que, numa floresta próxima, produziam as macha
dadas de um lenhador ; era o ruído de uma porta
que se fechava ou qualquer outro que de algum modo
semelhava o troar do canhão ao longe. Estáveis
Ó CRITÉRIO 45
por ventura bem seguros de que a causa da ilusão não
estava junta de vós? Tínheis o ouvido suficiente
mente exercitado para discernir a verd·ade, atenta a
distância em que se deviam dar as descargas de arti
lheria, a posição do lugar, a direcção do vento? Não
foi o sentido da audição que vos enganou, foi a levian
dade, a precipitação. A sensaç.ão era o que devia ser :
vós é que lhe fizestes dizer o que realmente não dizia.
Suponhamos que se apresenta a alguém um man
jar delicioso ; prova-o e afirma ser mau, detest�vel ;
o seu paladar estragado assim lho faz sentir. Onde
está a causa do erro? não no órgão do gosto qut>
apenas foi ocasião, senão na importância que lhe
deu, devendo ter em vista que só quando o paladar
está bem disposto é que pode indicar as qualidades
do alimento.
III
É MISTER, EM CERTOS CASOS, EMPREGAR MAIS DE
UM SENTIDO A FIM DE COMPARAR SEU
TESTEMUNHO
Observemos que para chegar a conhecer por
meio dos sentidos a existência de um objecto qual
quer, é preciso algumas vezes empregar mais de um
sentido, e que sempre é mister estar premunido con-
46 O CRITtRIO
tra a ilusão. Discenir até que ponto a existência
de um objecto corresponde à sensação recebida, é
evidentemente a obra da comparação, fruto da expe
nencia. Um cego a quem se faz a operação da ca
taracta não precisa as distâncias, e só depois de ter
adquirido a conveniente prática da vista é que pode
j ulgar das formas e das proporções. Tal prática
nós a adquirimos desde a infância, sem dar por isso.
e eis por que cr€mos que basta abrir os olhos para
conhecermos os objectos tais quais eles são. Uma
bem simples experiência, e que podemos renovar
muitas vezes, nos convencerá do contrário.
Um adulto e um menino vêem, através de um
vidro de óptica, algumas pinturas representando
uma paisagem, animais ferozes, uma batalha, et�.
Ambos recebem a mesma impressão, porém nem a
I
batalha, nem os animais ferozes amedrontam o adul-
to, que bem sabe que não tem a realidade diante dos
olhos. Não é sem esforço que conserva a ilusão, e
por vezes pr€cisa de suprir por meio da imaginação
as imperfeições do instrumento ou dos quadros; para
melhor saborear o espectáculo.
Pelo contrário, o menino que não compara, que ! ·
. I
atende só á sensação isolada, e que nela se absorve, ·
agita-se e chora à vista dos soldados que se degolam,
e dos animais ferozes de que tem medo.
O CRITÉRIO ·17
IV
OS SÃOS DO CORPO E DOENTES DO ESPíRITO
Costumam os que tratam do .bom uso dos sen
tidos adv·ertir que é mister cuidar em que alguma
jndisposição nos afecte os órgãos, de modo que assim
nos transmitam sensações enganosas. Ê sem dúvida
conselho prudente ; porém não dá a utilidade que
se crê. Os enfermos raramente se dedicam a estu
dos sérios, e ·assim os seus erros são de mínima im
portância ; além de que a doença de um órgão logo
adverte que se não deve confiar em seu testemunho.
Mas, sobretudo, precisam de advertência e de regras
os que, sendo sãos do corpo, o não são da inteligência;
que põem ao serviço de uma idéia que os preocupa
todos os sentidos ao mesmo tempo, e os forçam a
perceber ( quem sabe ? de boa fé talvez ) tudo que
venha em auxílio do sistema que adoptam. Que não
d escobrirá nos corpos celestes o astrónomo, que se
arma com telescópio, não para escrutar serenamente
as profundezas dos céus, mas para neles achar a
todo o custo -as provas que apoiem alguma asserção
aventurada ?
Disse eu intencionalmente que semelhantes erros
podiam ser de boa fé. Efectivamente, muitas vezes
48 O CRinRlO
o homem se engana a si, antes de enganar os outros.
Dominado por sua opinião favorita, atormentado pe
lo desej o de ·achar provas que dela estabeleçam a
verdade, e{>tuda os o bjectos, não para cornpreende1:,
rnas para ter razii,Q., __ Deste modo, descobre tudo o que
busca ; o mais das vezes, os sentidos lhe dizem outra
coisa ou não dizem nada ; não importa : as mais leves
aparências bastam para sua preocupação. "É isto ! "
exclama ele com transporte. E sufoca com cuiC.'ado as
dúvidas que se levantam em seu espírito. Imputa
-as à falta de fé em seu incontrastável saber e se ·
impõe a obrigação de estar satisfeito, fechando os
olhos à luz afim de enganar os outros, sem se ver
na necessidade de mentir.
Basta ter estudado o coração do homem para
reconhecer a verdade destas observações : · debate
mos em nós certas questões com deplorável parcia
lidade. Se temos falta de convicção, trabalhamos
para a formar em nosso espírito. O labor é penoso
a princípio, a tarefa é difícil, porém logo o hábito
vem fortalecer os fracos, se o orgulho intervém a
não permitir retrocesso ; e o ·que começou lutando
contra si mesmo com um engano que se lhe não
ocultava de todo, acaba por ser realmente enganado
e se abisma em sua ilusão com obstinação invencível.
O CRITÉRIO 49
v
SENSAÇõES REAIS, MAS SEM OBJECTO EXTERNO
Nem sempre os nossos erros provêm das exa
gerações dos j uízos, ou das transformações que fa
zem experimentar à sensação : há outra espécie deles.
Sob impulso de uma idéia fixa a imaginação solici
tando incessantemente o mesmo órgão, acaba por
dominar, por alterar a acção vital, e por criar sen
sações reais, que não têm outra causa que a mesma
imaginação. Chega-se a sentir o que não existe.
Para compreender este fenómeno, lembremo-nos que
a sensação não se verifica no órgão, mas sim no
cérebro, posto que a força do hábito nos leve a re
ferir a impressão à parte afectada do organismo.
Perderemos a vista se se der lesão grave no nervo
óptico, e todavia o olho fica são. Toda a sensibili.:.
dade se extingue no membro que deixa de estar em
comunicação com o cérebro. Infere-se destes fenô
menos que o cérebro é o centro das sensações e que,
se a impressão que um órgão exterior costumava aí
produzir é excitada, após um acto interno, a sensação
dá-se independentemente da impressão exterior.
Suponhamos que um órgão recebe de um corpo
qualquer uma impressão e a comunica ao cérebro
por meio do nervo A, produzindo neste nervo a vi-
50 O CRIT�R!O
braç.ão B. Se por qualquer outra causa, puramente
interior e moral, se produzir no mesmo nervo A a
mesma vibração B, experimentar-emos necessària
mente o que experimentaríamos se o órgão fosse
materialmente afectado.
A razão e a observação acham-se acordes neste
ponto. A alma adquire conhecimento dos objectos
exteriores por meio dos sentidos, mediatamente, ou
imediatamente por meio do cérebro ; por tanto, logo
que este recebe tal ou tal impressão, a alma não
pode deixar de a referir ao ó1·gão do qual ordinària
mente procede, e ao objecto que a costuma produzir. ·
Se ela advertir que o corpo está doente, saberá tomar
as devidas precauções contra o erro ; mas não d-ei
xará de receber a sensação, pelo facto de desconfiar
de seu testemunho. Quando Pascal via ante si um
abismo aberto, embora a razão lhe . dissesse . que es
tava no império da ilusão, experimentava a sensação
que se experimenta à beira de um abismo ; seu&
esforços não logravam subj ugar a ilusão. O fenó
meno nada tem de estranho para os que têm algu
mas noções sobr-e estas matérias.
VI
OS MANíACOS E OS CISMATICOS
A exaltação é uma espécie de loucura intermi
tente e parcial. Uma imaginação exaltada pode cair
O CRITÉRIO 51
nos mesmos erros que um cérebro doente. As ma
nias são um fenômeno deste gênero ; contínuas ou
momentâneas, extravagantes ou sérias, diferem tan
to em suas espécies como em sua intensidade. O
\,cavaleiro da Mancha via formidáveis exércitos em
: simples rebanhos de ovelhas ; e gigantes desmesura' dos nos moinhos de vento. Levado por sua imagina-
ção, por sua fantasia, pela mania que o domina,
talsábio, tal astrónomo, tal naturalista verá em seu
telescópio, em suas retortas, em seu microscópio, os
mais bizarros e estranhos fenômenos.
Os grandes pensadores, os homens absorvidos
em si mesmos estão mais arriscados a cair em ma
nias científicas ou ilusões sublimes. A triste huma
nidade sempre arrasta após si a sua herança
de fraqueza. O próprio gênio está a ela suj eito.
Uma mulher nervosa ouve, no murmúrio das brisas,
lamentosos gritos, vê espectros num raio da lua brin
cando através das clareiras, os gritos estridentes
das aves noturnas são para ela vocações de demônios .
. · \ Infelizmente, nem só as mulheres são dotadas dessas
: 'imaginações ardentes que tomam por realidades -as
extravagâncias de suas fantasias.
CAPíTULO VI
Conhecimentos adquiridos mediatamente
pelos sentidos
I
TRANSIÇÃO DO CONHECIDO PARA O DESCONHECIDO,
DO QUE É PERCEBIDO PELOS SENTIDOS
PARA O QUE ELES NÃO PERCEBEM
Aos sentidos devemos o conhecimento imediato
de grande número de objectos ; mas maior é ainda
o daqueles que os sentidos não atingem, porque es
tes são incorpóreos ou fora de seu alcance. O edi
fício levantado sobre a base estreita dos conheci
mentos adquiridos por meio dos sentidos é tão gi
gantesco, que o espírito hesita assombrado à sua
vista, e só lhe resta crer em sua solidez.
Onde os sentidos não podem chegar, supre
o entendimento passando do conhecido ao desconhe-
54 O CRITtRIO
cido, dos obj ectos sensíveis aos que o não são . A
lava derramada por sobre o solo nos revela a exis
tência de um vulcão que não vimos ; as conchas e
outros mariscos, achados no alto das montanhas,
fazem crer a existência de um transbordo de águas
e nos indicam uma catástrofe de que estamos longe
de ser testemunhas. Certos trabalhos subterrâneos
mostram que em tempos anteriores se exploravam
minas nos lugares que visitamos. Asruínas de uma
cidade antiga assjnalam habitações de homens há
muito desaparecidos da cena do mundo. Deste modo
os sentidos nos apresentam objectos, e, por meio des
tes obj ectos, o entendimento nos leva ao conhecimento
de outros diferentes.
Mas é mister ter em vista, que esta transição do
conhecido para o desconhecido supõe uma idéia p,rê
via, mais ou menos geral, do obj ecto desconhecido,
e que ao mesmo tempo conheçamos tal ou qual de
pendência entre os dois. Assim nos exemplos da
dos, se é certo que não conheoemos . precisamente
nem o vulcão, nem os minérios, nem os habitantes
da cidade em ruínas, ao menos conhecemos de uma
maneira geral estes obj ectos e as suas relações com
os objectos que os sentidos nos apresentam. Da con
templação do admirável maquinismo do universo,
o homem não poderia elevar-se ao conhecimento do
Criador, se não possuísse as idéias de efeito e de
causa, de ordem e inteligência. Diga-se de passa-
O CRITÉRIO 55
gem : só esta observação destrói o sistema dos qut:
não querem ver no entendimento senão sensaçõeE
transformadas.
li
COEXISTl!:NCIA E SUCESSÃO
Não estamos autorizados a inferir a existência
simultânea de dois fenómenos senão de sua mútua
dependência. E portanto preciso conhecer esta
dependênci'a ; toda a dificuldade está aí. Se pu
déssemos penetrar nas profundezas onde se oculta
a natureza das coisas, bastar-nos-ia fixar-nos sobre
um objecto para conhecer logo todas as proprieda
des, todas as relações que ligam estes objectos aos
outros. Infelizmente não é assim. Tanto na ordem
física como na moral, as idéias que possuímos so
bre os princípios constitutivos dos seres são poucas
e incompletas : segredos preciosos cuidadosamente
velados pela mão do Criador. Assim a natureza
oculta nas profundezas de seu seio os seus tesouros
mais raros e mais preciosos.
Esta carência de luzes relativamente à essên
cia das coisas nos leva muitas vezes a concluir a
dependência de fenómenos do simples facto de sua
existência ou sucessão. Inferimos que uma coisa
depende de outra só porque existem simultânea-
56 O CRlTÊRIO
mente, ou porque uma se produz em seguida à outra.
Daí freqüentes erros. E quem é que possui espírito
assás seguro e esclarecido para conhecer sempr-e
em que caso ou em que circunstância a coexistência
e sucessão são ou não sinais de dependência ?
Estabeleçamos em primeiro lugar como in
contestável que nem a existência simultânea de dois
entes ou factos, nem sua sucessão imediata, consi
deradas em si mesmas, provam suficientemente, nes
tes entes ou factos, relação de dependência.
As plantas venenosas e empestadas entrelaçam
algumas vezes as suas flores com as flores de plantas
medicinais e aromáticas ; um réptil carregado de ve
neno arrasta-se às vezes ao lado da borboleta com asas
de ouro ; o assassino que foge à justiça humana oculta
-se nas matas onde caça o honest0 caçador ; uma brisa
· fagueira passa e rar€faz o ar, e logo muge o furacão,
trazendo em suas negras asas tremenda tempestade.
E ' portanto temerário julgar das relações que
dois fenómenos têm entre si p elo simples facto de que
algumas vezes os vimos unidos ou suced€ndo com
curtos intervalos. Não será a tal sofisma que �e
vemos imputar as predições sempre renovadas e
sempre desmentidas sobre as variações atmosféricas ;
as conj ecturas aventuradas sobre fontes, metais pre
ciosos, etc. ? Algumas vezes tem acontecido que as
nuvens depois de' terem afectado tal ou tal posição se
dissolvem em chuva ; a tal ou tal direcção dos ventos
0 CRITtRIO 57
ou nevoeiros sobrevenha tempestade, e há logo quem
se apresse a concluir que havia relação entre os dois
fenómenos ; toma-se um como indicação do outro, e
esquece-se que a coexistência, aqui, podia S·er intei
ramente indiferente ou casual.
III
DUAS REGRAS SôBRE A COEXISTJ!:NCIA E A
SUCESSÃO
A importância da matéria exige que estabele
çamos algumas regras.
1. a Quando a experiência prolongada nos mos
tra dois fenómenos cuj a existência é simultânea, de
modo que a aparição ou ausência de um arrasta
constantemente a aparição ou ausência do outro,
podemos legltimamente afirmar que tais f€nómenos
têm entre si certa ligação, e partindo da existência
de um inferir a existência do outro.
2.a S,e dois fenómenos se sucedem invariàvel
mente, de sorte que o primeiro seja sempre seguido
do segundo, tendo a existência deste sempre assina
lado a existência daquele, concluamos sem medo de
errar que eles estão ligados entre si por certa de
pendência.
58 O CRITtRIO
Seria difícil talvez demonstrar filosOficamente
estas proposições ; porém os que tentarem pô-l'as em
dúvida devem observar que o bom senso, razão su
perior da humanidade, as toma por regras ; que a
ciência, em grande número de casos, se inclina dian
te delas, e que, na maior parte de suas investigações,
o nosso entendimento não tem outro guia.
Está universalmente reconhecido que certo ta
manho, forma, cor, etc., são para os frutos sinais
de niaturidade. Como é que o camponês que os co
lhe sabe esta relação ? Como é que da forma, da
cor e outras apar.ências que percebe por meio dos
sentidos, infere uma qualidade que não experimen
ta, o sabor ? Se lhe pedirdes que vos explique
a teoria deste encadeamento de idéias, não saberá
responder ; mas esforçai-vos por lhe provar que ele
se engana e ele rirá da vossa filosofia ; inabalável
em sua crença, pela simples razão " de que ele tem
visto sempre a coisa assim. "
Sabe-se que certo grau de frio congela os lí
qüidos, que certo grau de calor os reduz ao estado
primitivo.
A razão destes fenómenos é geralmente igno
rada, e todavia ninguém põe em dúvida a relação
que existe entre a col).gelação e · o frio, entre a li
qüefação e o calor. Talvez se poderiam suscitar
algumas- dificuldades sobre as causas que os físi
cos assinam a esses factos, porém vulgarmente não
O CiUTtRIÓ 59
&e atende ao parecer dos sábios para formar opi
nião. Os dois factos existem, sempre reunidos ; con
soante se diz, portanto estão ligados por alguma
relação.
Será fácilfazer inúmeras aplicações desta re
gra ; porém as que precedem bastarão para que qual
quer as encontre de per si. Somente direi que a
maior parte dos nossos actos se baseiam sobre o prin
cipio seguinte : a existência simultânea de dois fe
nómenos, observad·a durante tempo considerável, nos
autoriza a concluir que, produzindo-se um, o outro
se dew�rá produzir também. Se esta regra não fos
se tida eomo certa, o comum dos homens não poderia
obrar, e os mesmos filosófos se achariam mais em
baraçados do que talvez cuidem. Pouco mais lon
ge iriam do que o vulgo.
A segund·a regra tem grande analogia com a
primeira ; repousa sobre os mesmos principias e
aplica-se à mesma ordem de factos. A constante
experiência nos ensina que as aves saem dos ovos.
Ninguém até hoje explicou satisfatOriamente como
do líqüido encerrado na casca se forma aquele pe
queno ser tão admiràvelmente organizado. Se a
ciênda conseguisse dar explicação completa do fe
nómeno, tal explicação não seria para uso do povo ;
e todavia, nem o comum da gente, nem os sábios he
sitam em crer que existe relação de dependência
entre o aludido líqüido e a ave ; não se duvida que
60 O CRIT�RlO
essa maravilha animada teve origem em uma subs
tância informe contida na casca do ovo.
Poucos homens compreendem, ou para melhor
dizer, todos ignoramos de que modo a terra vegetal
concorre para a .germinação das sementes, para o
desenvolvimento das plantas, e qual é a causa que
apropria certas qualidades de terrenos, ·antes que
outros, a produções determinadas ; mas isso é cons
tantem�mte observado ; temos dados bastantes para
crer que uma coisa depende da outra ; para, pela
presença da segunda, podermos inferir seguramente
a existência da primeira .
IV
CAUSALIDADE, OBSERVAÇOES. UMA REGRA
DE DIALÉCTICA
Importa no entanto distinguir entre a suces
são uma só vez observada e a que o é muitas vezes.
No primeiro caso, a sucessão não implica causali
dade, nem relação de espécie alguma ; no segundo, se
não supõe S·empre dependência de causa e efeito, in
dica pelo menos uma causa comum� Se o fluxo e o
refluxo das águas do mar, tão sõmente algumas ve
zes, coincidisse com tal ou tal posição da lua, não
se poderia legitimamente concluir existência da re-
b CRITtRIÓ 61
lação entre os dois f.enómenos ; porém sendo cons
tante a coincidência, com razão se conclui desta
persistência que, se um destes dois factos não tem o
outro por causa, ambos têm, pelo menos, uma causa
idêntica, e que andam ligados em sua origem.
Como quer que seja, com razão os dialécticos
taxam de sofisma o raciocínio seguinte : Post hoc,
ergo pro<pter hoc. " Depois disto, logo por causa disto
mesmo " : porque, em primeiro lugar, não se trata da
sucessão produzindo-se duma maneira constante ; e,
em segundo lugar, bem pode esta sucessão indicar
dependência duma causa comum, mas não que dos
dois fenómenos um seja a causa do outro.
Em nossos juízos sobre os fenómenos da natu
reza, procedemos exactamente como nas cousas da
vida, modificando a aplicação da regra segundo a
importância do obj ecto. Em certos casos con
tentamo-nos com uma ou poucas experiências ; em
outros, queremos numerosas e repetidas ; aliás so
mos sempre conduzidos pelo mesmo princípio : dois
factos que se sucedem invariàvelmente têm entre si
certa dependência ; a existência dum revela a exis
tência do outro. A simultaneidade supõe um laço,
uma relação entre os factos, ou. uma relação de dois
factos com um terceiro.
62 O CRITÉRIO
v
RAZÃO DE UM ACTO QUE NOS PARECE
PURAMENTE INSTINTIVO
A inclinação natural que nos leva a inferir da
coexistência ou sucessão de dois factos uma relação
entre esses factos, inclinação que nos parece uma
cega inspiração do instinto, é na realidade a aplica
ção inteligente, ainda que despercebida, dum prin�
cípio primitivo gravado no fundo de nossa alma.
Podemos considerar como acidental a coincidência
que se dá algumas vezes, e portanto não lhe ligar
idéia alguma de relação ; mas, quando a coincidên�
cia se repete e se renova incessantemente, " há
aqui encàdeamento, diz,emos nós sem hesitar, há
mistério. O poder do acaso não vai tão longe ! "
Desse modo, estudando a fundo as faculdades
do homem, reconhecemos em tudo a mão poderosa
da Providência que se comprazeu em enriquecer
nosso entendimento com os dons mais preciosos e
diversos.
CAPíTULO VII
A lógica de acordo com a caridade
I
SABEDORIA DA LEI QUE PROíBE OS JUíZOS
TEMERÁRIOS
A lei cristã, que proíbe os J Uizos temerários,
nã.o é somente caridade, é também uma lei de pru
dência e boa lógica. Nadá mais temerário do que
j ulgar, por simples aparências, duma acção qual
quer, e principalmente da intenção que a produziu.
No curso ordinário das coisas os menores su
cessos são tão complicados, os homens acham-se co
locados em situações tão diversas, obram por moti
vos tão diferentes, querem as coisas sob pontos de
vista tão opostos, que, muitíssimas vezes, nos bas
taria mudar de lugar para passar da cólera à
64 O CRIT�RIO
indulgência, para compreender, para desculpar uma
acção, um modo de pensar ou de obrar de que antes
nos tínhamos admirado e escandalizado, e que es
távamos resolvidos a condenar sem apelo.
II
EXAME DA MAXIMA: "JULGA MAL DAS COIS AS
E NAO TE ENGANARAS"
Crêm alguns dar uma regra de proceder muito
sábia dizendo : Pensa mal e não te enganarás, e cor
rigir d·este modo a moral do Evangelho. " E' preciso
não ser demasiado ingênuo, dizem a cada passo ; é
tolice fiar-se a gente em palavras. Os homens são
maus. A amizade está nas acções e não em boas pa
]avras " : como se o Evangelho aconselhasse a impru
dência e imbecilidade ; como se Cristo, recomendan
do-nos que fôssemos simples como a pomba, nos não
advertisse logo que fôssemos prudentes como a ser
pente ; como se não ensinasse a não crer em todo o
espírito, e que pelos frutos se conhecessem as árvo·
res ; como se, nas primeiras páginas da Sagrada
Escritura, a propósito da malícia humana, não
lêssemos : "O espírito do homem inclina-se ao mal
desde a sua adolescência ! "
Esta máxima perniciosa, que arvoraria em meio
de chegar à verdade a malignidade de nosso coração,
O CRITÉRIO 65
é tão contrária à sã razão como à cariuade evangélica.
Não nos ensina com efeito 'a experiência que ainda
o maior mentiroso sempre diz mais verdades que
mentiras ? que o mais depravado ente pr�tica mais
acções boas que más ? Por natureza o homem ama a
verdade e o bem ; só pelo império das paixões se
desvia destes sentimentos. O mentiroso cede à sua
inclinação, quando a mentira favorece seus interes
ses ou serve sua vaidade. O ladrão rouba, o ho
mem de má fé falta à sua palavra, o rixoso disputét,
mas quando a ocasião solicíta ou a paixão arrasta
Se tais homens cedessem constantemente a seus maus
instintos, tornar-se-iam monstros ; seu vício degene
raria em demência, e a sociedade, para bem da or ..
dem e da moral, ver-se-ia forçada a expulsá-los de
...
seu seio.
Concluamos. Seria portanto contra a razão e
a j ustiça acreditar no mal sem razões suficientes,
e em nossos j uízos tomar nossa malícia como garan
tia da verdade.
Suponhamos que numa urna estão algumas es
feras negras misturadas com outras brancas, cem
vezes mais numerosas ; poder-se-á tirar, à primeira
vez, uma esfera negra ? - Pode ser . . . Mas vós
afirmais, e eis o erro !
66 O CRITtRIO
III
ALGUMAS REGRAS PARA JULGAR DO
PROCEDIMENTO DOS HOMENS
Estas regras são j udiciosas precauções . Filhas
da prudência, não alteram a simplicidade.
Regra Primeira
Não d�vemos fiar-nos da virtude do comum
dos homens posta a prova muito dura.
Resistir a tentações violentas é o triunfo das
almas fortes, da virtude passada pelo cadinho das
c<>ntrariedad.es, e poucos homens possuem seme
lhante virtude. A experiência nos ensina que, nas
situações extremas, quase sempre a fraqueza huma
na sucumbe ; os livros sagrados confirmamesta
experiência : " Quem ama o perigo, no perigo
morrerá".
Sabeis que um honrado comerciante se acha
nas circunstâncias mais precárias quando todos o
crêm em posição florescente. Sua reputação, o fu
turo de seus filhos depende duma operação pouco
delicada, mas muito lucrativa. Se a realiza, tudo
fica reparado ; no caso contrário, descobre-se o se-
O CRITÉRIO 67
gredo de sua postçao ; a ruína é inevitável. Q.ue
fará ele ? . . . - Se a operação vos pode prej udicar,
acautelai-vos a tempo. Afastai-vos dum edifício que,
nas circunstâncias ordinárias, resistiria sem dúvi
da, mas que poucas garantias terá de segurança, che
gando o furacão.
Duas pessoas jovens, de trato amável e bela fi
gura, travaram relações íntimas e freqüentes ; são
virtuosos, bem o sei ; quando não houvesse outros
motivos bastaria a honra para os manter nos limi
tes do dever, bem o sei também. Em todo o caso
se a coisa vos interessa, tornai imediatamente as
vossas medidas, senão calai-vos. Não julgueis te
meràriamente, mas pedi a Deus por eles, que bem
pode ser que as preces não sejam inúteis.
Fazeis parte do govêrno de vosso país ; os tem
pos correm maus, as circunstâncias críticas, um de
vossos subordinados, incumbido dum cargo impor
tante, está sendo sitiado noite e dia por um ini
migo que dispõe de inesgotáveis meios de ataque . . .
sonantes e de boa lei. Segundo se vos figura, o
empregado é homem honrado e -ãemais está ligado
à vossa causa por fortes e numerossos compromissos .
Sobretudo, é entusiasta em certos princípios e os de
fende com ardor. Não importa. Não percais este
negócio de vista. Fazeis bem em crer que a honra e
convicções do subordinado podem resistir a uma má
quina de guerra do peso de cinqüenta mil peças de
68 O CRITÉRIO
ouro ; porém o melhor será não o pôr à prova, prin
cipalmente se as conseqüências forem irreparáveis.
Vedes a autoridade em perigo ; querem impor
a seu representante um acto, a que ele não pode
subscrever sem se aviltar, sem faltar aos deveres
mais sagrados, sem comprometer interesses da pri
meira ordem. O magistrado é de um carácter natu
ralmente recto ; em toda a sua carreira não há que
exprobar-lhe nem uma só perfídia e sua rectidão é
acompanhada de certa firmeza. Os antecedentes
são os melhores ; em todo o caso, quando ouvirdes
roncar a tempestade, quando virdes a sedição subir
as escadas do pretório e o ousado demagogo bater à
porta, levando em uma mão o auto para assinar e
na outra o punhal ou trabuco, receai mais pela
honra do que pela vida do magistrado ! E' prová
vel que o· homem não morra ; a integridad€ não é
o heroísmo.
E' portanto permitido, e até muito prudente,
em certos casos, não confiar muito na virtude dos
homens, principalmente quando para praticar a
virtude precisam de uma superiorid-ade da alma que
a razão e a experiência nos apresentam muito rara
mente. E' de notar ainda que para suspeitar mal
não é preciso esperar ·que o apuro seja tal qual o
acabamos de pintar. Para os maus, uma simples
ocasião equivale a uma tentação violenta. Assim na
aplicação, antes de formar juízo (é a única regra
O CRITÉRIO 69
que se pode estabelecer) devemos considerar qual
é a pessoa, graduando as probabilidades de resis
tência ou de queda pela sua inclinação habitual de
fazer mal, ou pela longa prática do bem.
Estas considerações dão origem a novas regras.
Regra segunda
Inteligência, inclinações, carácter, moralidade,
interesses, numa palavra, tudo o que pode influir
sobre as determinações de um homem, eis o que nos
é preciso conhecer para conjecturar com alguma
probabilidade qual será o seu procedimento em dado
caso.
Ainda que dotado de livre arbítrio, o homem
não deixa de estar submetido a uma multidão de
influênci'as que poderosamente contribuem para de
terminar suas decisões, e o esquecimento de uma
destas influências pode levar os nossos j uízos a erro.
Por exemplo, um homem está colocado numa posi
ção que o expõe a trair seus deveres ; parece à pri
meira vista que basta conhecer a moralidade desse
homem e as dificuldades que à moralidade fazem con
trapeso, para prognosticar mal sobre o seu êxito ;
mas deixamos de ter em conta uma qualidade im
portante sem a qual, em semelhantes casos, todas
seriam comprometidas - firmeza de carácter. Que
provém do esquecimento desta qualidade ? serem nos-
70 O CBlTtBlO
sas esperanças algumas vezes enganadas com um
homem de bem, e excedê-las um homem mau. Na
luta que a virtude sustenta contra o mal, está longe
de ser inútil que as paixões enérgicas combatam por
ela. Uma alma ardente e fortemente temperada
exalta-se e adquire no perigo novas forças. O
orgulho vem em auxílio ao sentimento do dever. O
homem que se compraz em arrostar os perigos e
vencer as dificuldades sente-se mais resoluto, mais
ousado com os aplausos da própria con�ciência.
Para ele, ceder é fraqueza, recuar é covardia, e mos
trar que tem medo, é cobrir-se de infâmia.
O homem de intenção recta e coraç.ão puro, mas,
pusilânime olhará as coisas de modo muito dife
rente. A linha do dever está traçada, mas para
a seguir é
.
preciso arrostar a morte, " deixar uma
família ao abandono. O sacrifício, além de tudo, não
remediará o mal, quem sabe ? talvez o aumente.
É mister dar ·ao tempo o que o tempo exige ; demais,
o dever não é alguma coisa abstracta e absoluta.
As virtudes que a prudência não modera deixam de
merecer o nome de virtudes. "
Finalmente o homem honesto encontrou o que
buscava, um parl'amentário entre
.
o bem e o mal.
O medo com s·eu próprio traje não serviria para o
caso ; tomou a máscara da prudência, a capitula
ção não se fará esperar muito.
O CRIT�Riú 71
O exemplo é palpável e nada tem de imaginá
rio ; é preciso atender a todas as circunstâncias que
dizem respeito ao indivíduo, antes de formar j uízo
sobre ele. Desgraçadamente o conhecimento dos
homens é um dos mais difíceis estudo&_ Aprender
a j ulgar rectamente dos caracteres não é obra de um
só dia.
Regra terceira
Devemos cuidadosamente despoj ar-nos de nos
sas idéias e afeições particulares e guardar-nos de
crer que os outros obrarão necessàriamente como nós
obraríamos.
T'odos temos experimentado que o homem se
inclina a j ulgar dos outros, tomando-se por termo
de comparação. Daí o seguinte provérbio : " Quem
mal não faz, mal não pensa" ; e este outro : " O ladrão
desconfia da própria sombra". Esta inclinação na
tural constitui obstáculo quase invencível à impar
cialidade de nossos j ujzos . Expõe o homem de bem
a cair nas armadilhas do mau, e muitas vezes for
nece armas à maledicência contra a inocência mais
pura, contra as mais altas virtudes.
A reflexão, aj udada por custosos desenganos,
chega algumas vezes a curar este defeito, origem
de inúmeros males para o indivíduo e para a so
ciedade.
72 O CRIT�RiO
Mas, como tem raízes tanto no entendimento
como no coração do homem, é preciso sempre es
tar alerta para que se não reproduza incessante
mente.
Na maior parte dos raciocínios, o homem pro
cede por analogia. " Tem-se dado sempre um facto ;
por tanto continuará a dar-se ; tal fenómeno segue
-se comumente a tal causa, logo também hoje deve
seguir-se. " Quando temos de formar um j uízo, cha
mamos logo a comparação em nosso auxílio. · Se um
exemplo isolado confirma nosso modo de pensar,
temos mais segurança nele ; se a experiência nos
fornece muitos, temos logo a causa como demons
trada. Pois não é natural que, quando buscamos
comparações, as empreguemos dos objectos que nos
são mais �onhecidos e familiares ? Ora, como para
formar j uízo ou conj ecturas sobre o proceder dos ou
tros é nec.essário ter em conta os motivos que influ
em sobre as determinações da vontade, instintiva
mente atendemos ao que costumamos fazer em iguais
circunstâncias, e atribuímos aos outros as nossas
maneiras de ver e de apreciar os obj ectos.
Esta explicação, tão simples . quanto verdadei
ra,nos dá a razão das dificuldades que o homem
encontra sem se despoj ar de suas idéias e sentimen
tos particulares quando j ulga dos outros. E, no en
tanto, nada há mais indispensável.
O CRITÉRIO '73
O que só conhece os usos de seu país tem por
estranho tudo que deles S·e desvia ; quando pela pri
meira vez deixa ·a terra nata, cada novo objecto é
para ele ocasião de admiração e surpresa. Acontece
o mesmo na ordem moral. Com ninguém vivemos
em tanta intimidad·e como com nós mesmos ; o ho
mem mais irreflectido, forçosamente tem consciência
da direcção habitual de sua inteligência e vontade.
Dá-se ocasião de apreciar um acto de suas faculdades,
e esquecemos que o facto psicológico se realiza na
alma de outrem, em terra estranha ; por isso somos
naturalmente levados a julgar que tal acto se passará
aí, com. pouca diferença, como em nós, em nosso ter
ritório. Continuando a comparação : assim como os
que têm viajado muito se não espantam com a diver
sidade dos usos, conformando-se com eles sem repug
nância e sem hesitação ; assim também os que têm
estudado o coração humano estão mais aptos para
fazer abstracção de sua maneira de ver e de sentir,
colocando-se mais fàcilmente no ponto de vista de
outrem. Viajeiros experimentados, com facilidade
adoptaram os traj os, usos e maneiras dos naturais
do país que percorrem.
CAPíTULO VIII
Da autoridade humana em geral
I
DUAS CONDIÇõES PARA AVALIAR UM TESTEMUNHO
Nem sempre nos é possível assegurar-nos por
nós mesmos da existência das coisas, e portanto
somos forçados a recorrer ao testemunho alheio.
Duas condições são necessárias para avaliar
esse testemunho : t.n que o testemunho se não en
ganasse ; 2.a que não busque enganar-nos.
E' evidente que a ausência de uma destas con
dições tiraria ao testemuho todo o valor.
Que importa que o que fala conheça a verdade,
se os seus lábios proferem a mentira ? que importa
sua veracidade e boa fé se a si mesmo se enganou ?
76 O CRlTÉRIÓ
II
EXAME E APLICAÇõES DA PRIMEIRA CONDIÇlí.O
E' estudando os meios de que a testemunha dis
põe para chegar à verdade, que conheceremos se ela
se enganou ou não. Entre estes meios compreen
dem-se a capacidade e todas as qualidades pessoais
que a tornam mais ou menos digna de fé.
Um narrador conta um facto de que não foi
testemunha ocular. Talvez as leis de uma boa edu
cação nos impeçam perguntar-lhe a quem o ouviu ;
porém as leis da boa lógica nos prescrevem o dever
de ter em muita conta esta circunstância, e não
prescindir de escrúpulos a tal respeito.
Atravesso um país desconhecido e ouço dizer :
" O ano presente é muito abundante, há muito tem
po que não houve colheita assim. " Que devo eu
fazer antes de deter meu j uízo ? Inquirir em pri
meiro lugar quem é a pessoa que fala. - E' um
velho, proprietário, estabelecido em suas terras, além
de apaixonado pela estatística, de que muito se
ocupa. Seu interesse, profissão, gostos particulares
e longa experiência lhe fornecem todos os meios de
se esclarecer ; sabe o que afirma, devo acreditá-lo.
- E' o filho do velho ; este ocupa-se pouco das
cousas do campo, distrai-se pelas grandes cidades
b CRITÊRiú 77
� povoações. Bem pode saber o que assevera por
o ter ouvido dizer ; porém, à parte esta circunstân
cia, seu testemunho é pouco seguro.
- E' um viajeiro que de tempos a tempos per
corre este país, mas por negócios que nenhumas re
lações têm com a agricultura. O testemunho deste
merece pouca fé ; os meios que tivera de saber o que
dá como oerto, não têm valor. Fala à ventura.
III
EXAME DAS APLICAÇõES DA SEGUNDA CONDIÇÃO
Se devemos estar premunidos contra o erro in
voluntário em que uma testemunha pode cair, não
importa menos precaver contra a falta de veraci
dade. A este respeito, informemo-nos da opinião
que dela se faz sobre este ponto, e sobre tudo exa
minemos se alguma paixão ou interesse a levou a
mentir.
Quem prestaria inteira confiança a narraçõ�s
de feitos de armas, em recompensa dos quais o nar
rador esperasse acesso de posto, emprego ou con
decoração ? E ' fácil de compreender o uso que de
tal meio poderia fazer o ·aventureiro sem honra e
sem delicadeza. Tende por suspeita a testemunha
fortemente interessada pela admissão de seu teste-
78 O CRITÉRIO
munho. Crer em sua veracidade sob sua palavra
fora, pelo menos, andar muito de leve.
Quando queremos calcular a probabilidade de
qualquer acontecimento, que só conhecemos por tes
temunho de outrem, é indispensável ter em conta
simultâneamente as duas condições de que falamo:,;; :
conhecimento de facto e veracidade da parte da tes
temunha. Além do testemunho de outrem, possuí
mos muitas vezes certos dados que nos aj udam a
apreciar o que nos contam, dados de que . devemos
fazer uso para diminuir as probabilidades do erro.
Experiência e reflexão, eis os melhores mestres.
IV
UMA OBSERVAÇÃO
Há circunstâncias em que, por mais que a tes
temunha pareça interessada em mentir, não o ou
saria; quando, por exemplo, descoberta abertamen
te a mentira, caísse sobre a mesma testemunha toda
a sua ignomínia.
Neste caso, uma obj ecção : Devemos admitir o
depoimento da testemunha interessada em enganar ?
Se as circunstâncias são tais que o engano deve apa
recer quase logo em sua nudez e em sua vergonha,
sem que o mentiroso possa dar por desculpa que o
enganaram ou que se enganou a si mesmo, admita-se
O CRITtRIO 79
o facto ; poder-nos-emos enganar talvez, mas há pro
babilidade para a opinião contrária e em grau su
perior.
v
E' DIFíCIL CHEGAR A VERDADE, QUANDO ELA
ESTA LONGE PELO TEMPO E PELA DISTANCIA
Se é dificil discernir a verdade da falsidade nos
sucessos contemporâneos acontecidos em nosso país,
o que ser.á dos acontecimentos realizados há séculos,
e em países longínquos, ou dos que simult.âneamente
estão afastados de nós pelo tempo e pelo espaço ?
Como verificar a sinceridade das narrações de
um viajeiro, ou de um historiador ? Em que estado
nos apresentarão a verdade ?
Sente-se a gente desanimad-a, depois de obser
var como os factos sucedidos à nossa vista apare
cem aumentados, exagerados, atenuados, desfigura
dos ou confundidos, e tem de buscar a verdade em
livros de história ou de viagens, nos jornais, prin
cipalmente estrangeiros.
O que vive no país e no tempo em que se dão
os factos que estud-a, ainda possui certos meios de
evitar os erros. Vê as coisas de per si ; ouve e lê
diferentes relações que pode comparar ; como sabe
os anteoedentes das pessoas e das coisas, como está
80 O CRITtRIO
em constantes 1·elações com homens de interesses
e opiniões opostas, como segue os sucessos em sua
marcha geral, não lhe é impossível, à força de tra
balho e j uízo, verificar certos factos e chegar de al
gum modo à verdade. Mas que acontecerá a quem
um hemisfério inteiro e talvez muitos séculos sepa
ram da verdade que busca ; que não tem outro guia
sE-não os j ornais ou alguns livros encontrados numa
biblioteca, num gabinete de leitura, obras e jornais
que adopta com confiança pelo simples facto de lhe
haverem sido recomendados, ou gabados diante dele ?
Jornais, relações de viagens, histórias : três
meios pelos quais se costuma buscar instruir-se dos
sucessos em tempos e lugares afastados. Direi al
guma coisa de cada um destes meios.
CAPíTULO IX
Os jornais
I
UMA ILUSÃO
Persuadem-se alguns de que, nos países onde
floresce a liberdade de imprensa, onde os negócios
gerais se discutem em toda a luz, onde cada um
pode livremente emitir sua opinião, é fácil chegar
à verdade pelo menos a respeito das pessoas e das
coisas. " Lá todos os interesses, todos os sistemas
se produzem simultâneamente ; os contrários se cor
rigem mutuamente e se fazem contrapeso. A luz
ressalta do choque das opiniões. Uma só opinião
apenas diria uma parte da verdade ; podendo todas
as opiniões levantar a voz, dirão a verdade toda. "
82 O . CRITÉRIO
Pura ilusão ! Os jornais não dizem,não podem
dizer a verdade toda, nem a respeito das pessoas,
nem a respeito das coisas, mesmo nos países mais
livres.
li
OS JORNAIS NÃO DIZEM A VERDADE TODA
SOBRE AS PESSOAS
Exaltar ou rebaixar sem medida, prodigalizar
louvores ou vitupério, fazer de um personagem po
lítico, segundo os interesses ou as circunstâncias
- um gênio raro, um herói, um salvador, - um
homem sem talentos, um homem incapaz, um fla
gelo da humanidade ; tais são, não se ignora, as
obras da imprensa soprada pelo espírito de partido .
Que se há-de crer ou deixar de crer nesse con
junto de opiniões encontradas, sempre que o ho
nem que se agride ou glorifica se nos não apresen
ta bem acentuado por feitos ruidosos fáceis de ca
racterizar ? Onde procurar a verdade ? Como é que
o estrangeiro, principalmente, forçado a escolher en
tre estes extremos, chegar.á a formar a sua opinião ?
Coisa estranha ! não é raro ouvir certos círculos
professarem ao mesmo tempo, a respeito do mesmo
personagem, duas opiniões diferentes, a opinião ver
dadeira e a de circunstância ; e, como se tem
O CRITÉRIO 83
visto, pode dar-se o mesmo num país inteiro em
que uma opulênoia irritante e apaixonada sobre
excita o amor próprio e perturba a razão.
Os j uízos opostos ou contraditórios não os po
derão os estrangeiros conhecer, nem compreender ;
para eles a imprensa é nesse sentido defeituosa,
insuficiente para chegar à verdade, e também para
os nacionais que tão sõmente pelos periódicos aj uí
zam dos homens e das coisas.
Quase sempre os escritores separam o homem
público do particular, e bem é que assim sej a. Sem
esta distinção, a polêmica cotidiana, desabrida e
violenta já em excesso, tornar-se-ia por último arena
impura onde as mais vergonhosas paixões viriam
patentear suas negruras ou digladiar-se. No en
tanto, é certo que a vida privada de um homem
fornece bons dados para se julgar seu proceder nos
destinqs públicos. O que nas transacções ordinárias
não atende e respeita o bem dos outros, é natural
que também na administração dos dinheiros públicos
não conserve as mãos muito puras. Também o
homem de má-fé, sem convicções, sem moralidadf>,
sem religião, não é muito crível que seja conseqüente
nos princípios políticos que aparenta professar, e
que o governo que se serve de seus serviços possa
descansar tranqüilo em suas palavras e promessas.
O epicurista por sistema, que no seu povo insultava
sem pudor a moral pública, mau esposo, mau pai ,
84 O CRITÉRIO
crer-se-á que, assumindo a magistratura, deponha
suas paixões, e que a inocência inj ustamente per
seguida, que a fortuna da gente honesta nada tenha
a recear da insolência e inj ustiça dos maus ? E to
davia os j ornais nada dizem, nada podem dizer
dessas coisas, ainda mesmo que sejam perfeitamente
conhecidas pelo escritor.
III
OS JORNAIS NÃO DIZEM A VERDADE TODA A
RESPEITO DAS COISAS
Até nos acontecimentos políticos não é verdade
que os jornais digam a verdade toda. As grandes
cenas representam-se com um pequeno número de
actores ou interessados ; só por incidente aí intervém
a multidão ; além disso todos sabem como a expres
são das opiniões manifestadas nas conversações fa
miliares difere da que se entrega à discussão pú
blica por meio da imprensa.
Há mil considerações particulares . a que forço
samente se curva um publicista. Entre os que fa
lam em público, muitos dizem o contrário do que
sentem, e os mais rígidos em matéria de veracidade
se vêem obrigados, senão a dizer o que não sentem,
pelo menos a calar a melhor parte do que pensam.
Importa não esquecer estas consid-erações, se que-
O CRITÉRIO 85
remos ver um pouco mais longe e melhor do que
vulgarmente se vê.
Há no mundo político uma como espécie de
moeda corrente reconhecida falsa, mas que tàcita
mente se convencionou receber. Os iniciados é que
se não enganam sobre o seu verdadeiro peso e va
lor real.
CAPfTULO X
Relações de viagens
I
DUAS PARTES MUI DIFERENTES NAS
RELAÇõES DE VIAGENS
Este gênero de escritos contém duas ordens
de factos que é mister cuidadosamente distinguir :
a descrição das cenas e obj ectos que o viajante ob
servou, e as noções e observações de toda a espécie
que faz entrar no corpo da obra e a completam.
Aos primeiros apliquem-se as regras que esta
belecemos sobre a veracidade, acrescentando as duas
seguintes observações : V que a desconfiança da
fidelidade dos quadros deve· guardar alguma propor
ção com a distância do lugar da cena ; como diz o
provérbio : " longas terras, longas mentiras " ; 2.a que
os viaj antes correm risco de exagerar, desfigurar e
até fingir, fazendo formar idéias muito equívocas
sobre o país que descrevem, pelo vaidoso prurido
88 O CRITÉRIO
d� s� tornarem interessantes, e dar-se importância,
contando peregrinas aventuras.
Difícil será, se não impossível, estabelecer re
gras para discernir a verdad� do erro entre os factos
e observações de todo o gênero que podem entrar nas
relações de viagem.
Encheremos esta lacuna com algumas observa
ções que servirão, segundo espero, para que se não
deposite d�masiada confiança no que a não merece.
li
ORIGEM E COMPOSIÇÃO DE CERTAS
RELAÇõES DE VIAGENS
A maior parte das viagens fazem-se atraves
sando os lugares mais famosos, detendo-se· alguns
dias em alguns pontos notáveis, e o resto atravessa
-se tão rápido quanto possível, em harmonia com a
economia de tempo, de dinheiro e de enfado. Se o
país visitado é culto, se está sulcado de c:aminhos
em bom estado, de canais e de rios, _ se as costas
são de fácil navegação, o viajante passa de uma à
outra capital com a rapidez da flecha, dormindo ao
balanceio do na vi o, encostado à portinhola de uma
carruagem para admirar alguma pais·agem, ou pas
seando na coberta de um paquete, contemplando as
margens do rio, em cuja corrente navega. Os espa-
O CRITÉRIO 89
ços intermediários não existem para ele. Costumes,
leis, usos, religião, carácter físico e moral dos homens
ou do país, nada disso viu. Que é o que ele conhece ?
Apenas pode formar, na passagem, uma idéia vaga
do aspecto das terras, e observar com a vista al
gumas paisagens fugitivas.
Então em que conceito, em que apreço devemos
nós ter essas notícias circunstanciadas sobre países
de muitas mil léguas quadradas visitados do modo
que acabamos de dizer ?
O que conta viu, portanto é verdade. Assim
raciocinais, persuadidos de que, para recolher esta
multidão de factos, o guia arrostou inúmeros perigos,
suportou imensas fadigas, consagrando anos labo
riosos ao serviço da ciência e da humanidade. Su
pondes o que deveria ser, mas como estais longe da
realidade !
Chegando à capital do país, cuj a língua conhece
pouco ou nada, o vi·aj eiro pára como estupefacto ante
mil maravilhas. Está no termo de sua viagem ; tocon
as colunas de Hércules. Rápidas visitas aos palácios,
aos monumentos, aos teatros, aos museus, às ricas
colecções, cuj a lista encontra no Guia, dos via,ja,ntes,
eis seu programa e as suas horas estão contadas.
A via-se ; outra capital, outros palácios, outros mo
numentos, outras maravilhas o esperam. Enfim,
carregado de experiência, de saber e de poeira, de
pois de alguns meses de ausência, volta a v·er sua
90 O CRlT�RIO
terra natal ;consagra o inverno a pôr em ordem, a
completar as suas observações, seus estudos, suas
impressões, suas pesquisas, suas confidências de
viajeiro, e nos primeiros dias da primavera aparece
pompeando nas livrarias uma magnífica brochura
em oitavo.
Agricultura, artes, comércio, ciênci'a, política,
crenças populares, religião, costumes, tradições, ca
racteres, tudo aí está ; o autor viu tudo, observou
tudo, Com o seu livro tendes a estatística universal
do país que ele percorreu. Acreditai-o sob palavra,
ficais dispensados de vos levantardes de vossa pol
trona e vos pordes à janela.
Mas tantas minudências, conhecimentos tão
variados ! como é que ele os pôde recolher ? como
pôde saber o que se passavanos lugares aonde não
foi ? Em tão pouco tempo, um Ãrgus não seria ca
paz de ver tantas coisas.
- Eis o segredo.
Da carruagem pública em que ia assentado, o
nosso viaj eiro vê desenrolar-se a seus olhos uma
paisagem que atrai sua atenção, e trava com seu
vizinho o seguinte diálogo : " O senhor conhece este
país que atravessamos ? -Alguma coisa. - Como
se chama aquele povo acolá ao fundo da colina ? -
Se me não engano é o povo de . . . - E quais são os
recursos principais desta província ? - A indústria.
- E que tal é o carácter dos habitantes ? - Flegmá-
O CRITÉRIO 91
ticos como os cavalos que puxam esta carruagem.
- E de riqueza ? . . . - Como j udeus. "
Pára a c-arruagem ; o homem de respostas lacó
nicas sai e ausenta-se, talvez sem se despedir, e as
indicações que ele deu, anónimas como a sua pessoa,
figuram entre os factos positivos, nas notas do
viajante.
Em verdade, tais livros também não têm pouco
de tradução e plagiato, porque as viagens de maior
fôlego, as mais carregadas de aventuras terríveis,
ou narrações pitorescas e sábias fazem-se muitas
vezes nas bibliotecas, através de inocentes e passí
veis volumes em oitavo.
Não é intenção minha rebaixar, em geral, o
mérito que exige um trabalho sério de exploração ;
mas quantas idéias falsas não correm aí, quantos
absurdos vulgarizados, criados por pretendidas rela
ções de viagens ! . Quantas vezes as cidades, povos
inteiros têm sido bem ou mal tratados, criticados
com furor· ou elogiados, consoante o humor, o carác
ter, o capricho de pintores indiscretos: e frívolos que
ousam dar cópias de originais que jamais viram !
III
MANEIRA DE ESTUDAR UM PAíS
Habitar longo tempo nos mesmos lugares, for
mar aí relações numerosas, conhecer a fundo a lín-
92 b CRITÉRIO
gua do país, não perder nunca ocas1 ao de observar
e enriquecer-se, tais são as condições necessárias
para se formar idéia de um país, sob o ponto de
vista moral e material. Fora dos conhecimentos
adquiridos deste modo não vej o senão banalidades,
incertezas, erros . A maior parte das descrições que
se acham pelos livros assemelham-se a cartas geo.
gráficas sem escala de proporção. Estão cheias de
nomes, o papel está. coberto de sinais de toda a es
pécie, cadeias de montanhas, rios, canais, etc. ; mas
tornai o compasso pa�a medir as distâncias, e vereis .
cQmo as coisas estão deslocadas ; a cada passo jul
gareis estar perto de uma cid·ade, de um rio, de um
monte que dista nada menos de cem léguas .
Em suma, quereis adquirir notícias exactas sobre
um país e formar de seu estado cabal e verdadeiro
conceito ? estudai-o do modo que indicamos ou consul
tai os autores que assim o estudaram.
Se isto se vos não proporcionar, contentai-vos
com alguns conhecimentos gerais, de modo a sair
airosamente em qualquer conversa relativa a essas
coisas com pessoas de iguais conhecimentos ; mas
nunca pretendais estabelecer sobre tais dados um
sistema filosófico, económico, ou político . Evitai sobre
tudo alardear saber a tal respeito ; tornar-vos-íeis
objecto de riso.
CAPíTULO XI
H i s t ó r i a
I
IMPORTÂNCIA DOS ESTUDOS HISTóRICOS.
MODO DE ESTUDAR A HISTóRIA
O estudo da história não é sõmente útil, e m
dispensável. Quando a história não fosse conside
rada como meio de chegar à verdade, a sua impor
tância, como ornamento do espírito, seria incontes
tável. Acrescentemos que há grande número de
factos, contra os quais a ninguém é permitido levan
tar-se, sem se pôr em luta com o senso comum.
Assim, uni dos primeiros cuidados que deve
ter-se nesta classe de estudos é distinguir o que
nele há de absolutamente certo. Não confiando à
memória senão verdades incontestáveis, deixai ao
espírito, livre de peias, a liberdade de classificar o
94 O CRITÉRIO
resto segundo o grau de probabilidade, de certeza
ou de erro, como lhe aprouver.
Que grandes impérios floresceram no Oriente ;
quEJ as artes e a civilização da Grécia foram levadas
a grau mui alto de perfeição ; que Alexandre fez
grandes conquistas na Asia ; que os romanos sub
meteram quase todo o mundo conhecido em seu tem
po ; que Cartago foi rival de Roma ; que o império
dos senhores do mundo foi a seu tempo assolado por
invasões de bárbaros vindos do Norte ; que . os mus
sulmanos invadiram a África septentrional, sendo
em .Espanha destruído o poder dos godos e amea
çado o resto da Europa ; que o feudalismo foi na
idade média a forma soci al, verdades são estas de
que estamos tão certos como da existência de Paris
ou Londres.
11
DISTINÇõES ENTRE O FACTO E AS CIRCUNSTÂNCIAS
DO FACTO. APLICAÇõES.
Há factos universalmente admitidos ; todavia pe
las particularidades e circunstâncias com que o his
toriador os acompanhou estes mesmos factos reve
lam erudição, crítica, filosofia de história, em suma.
Vasto campo aberto à discussão.
Não se pode pôr em dúvida a existência das
lutas sangrentas em que Roma e Cartago se dispu-
O CRITÉRIO 95
taram o império do Mediterrâneo, das costas de
África, d·a .Espanha e da Itália, e cuj o desfecho foi
o triunfo dos Cipiões, a derrota de Aníbal e a ruína
da cidade de Dido. Mas ser-nos-ão bem conhecidas
as circunstâncias destas lutas ?
No retrato que se nos faz da fé púnica, na ex
posiç.ão das causas que provocaram o rompimento
entre as duas repúblicas rivais, em a narração das
batalhas, das negociações, etc., será impossível que
tenhamos sido enganados ? Não terão os historia
dores romanos, que nos transmitiram o maior nú
mero de factos, lisonj eado a própria naç.ão em detri
mento da inimiga ? Aqui entra a dúvida, o discer
nimento ; há que admitir com desconfiança, que re
jeitar sem hesitaç.ão, e o mais das vezes cumpre
suspender o j uízo.
Que seria da verdade aos olhos das gerações
vindouras se, por exemplo, a história das lutas entre
duas nações modernas fosse exclusivamente escrita
pelos historiadores de uma das rivais ? Entretanto,
hoje, por assim dizer, os historiadores escrevem em
presenç.a uns dos outros ; potiem desmentir-se e cor
rigir-se mutuamente, e, graças aos meios fáceis de
comunicação e difusão, é muito mais difícil que ou
trora sustentar erros evidentes. Que será, portanto,
destas narrações que nos vieram por uma via única ;
via muito suspeita como interessada, narrações de
factos passados em tempos tão remotos, em que eram
96 O CRITÉRIO
tão raras as comunicaçõBs e desconhecidos os actuais
mBios de publicidade ?
E aquelas legendas maravilhosas em que os histo
riadores gregos nos apresentam um punhado de es
pártacos e de atenienses desbaratando milhares de
persas e propõem à nossa admiração o heroísmo desin
teressado, a dedicaç.ão sublime de seus guerreiros.
devemos adoptá-las sem exame ? Bem observamos
como em nossos tempos se desnaturam, como se exa
geram os factos mais simples. O homem sensato dará
o desconto devido ao entusiasmo e patriotismo do es
critor : esperemos, dirá ele antes de formar o seu j uízo,
esperemos que também os persas se levantem dos
plainos de Maratónia ou das Termópilas para contar
as circunstâncias do combate.
Esta regra de prudência é de uma aplicaç.ão fre
qüente ; no �studo da história, não -a percamos de vis
ta, e evitaremos numerosos erros em que de outro
mo do poderíamos cair. Pelo menos, nos ensinará a
n�o nos transviarmos em particularidades inúteis.
III
ALGUMAS REGRAS PARA O ESTUDO DE HISTóRIA
Sendo a história um dos assuntos que não devep1
ficar em silêncio, quando se trata da -arte de chegar à
O CRITtRIO 97
verdade, darei alguns conselhos simples e breves, -
mas sem p retender tratar a fundo a matéria, o que
exigiria um grosso volume.
Regra primeira
Consoante o que atrás havemos estabelecido
(capítulo VIII) , é mister ter em grande conta os
meios de que o escritor dispunha para chegar à
verdade, e as probabilidades favoráveis ou desfavo
ráveis de sua veracidade.
Regra segunda
Em igualdade de circunstâncias, devemos prefe
rir a testemunhaocular.
Sempre a ve1·dade corre algum perigo com os
intermediários. As narrações sucessivamente trans
mitidas são como corrtmtes, cujas águas sempre le
vam alguma coisa do canal por onde passam ;
, ·
n�s
canais da história abundam a paixão e o erro.
Regra terceira
Entre as testemunhas oculares, escolham-se, se
no resto houver igualdade, as que não tiverem to
mado parte no sucesso, e que nada perderam ou ga
nharam com ele,
98 O CRITÉRIO
César conta as próprias campanhas e seu teste
munho é sem dúvida uma autoridade. E, todavia,
é evidente que o general romano não pode denegar
coragem aos povos por ele vencidos, que não pode
representá-los inferiores em número aos exércitos
que comandava sem diminuir as dificuldades da em
presa e portanto da sua glória. Os prodígios de
Aníbal contados pelos próprios inimigos têm outro
valor histórico.
Regra quarta
Prefiram-se os historiadores contemporâneos,
mas examine-se o seu testemunho pelo de outros da
mesma época que defendam opiniões c interesses
diferentes, c haja cuidado em separar, nos seus es
critos, o facto das causas que lhe assinam, os resulta
dos que lhe atribuem c os j uízos que lhes são pessoais.
Quase sempre há nos sucessos um facto dominante
que sobressai com muita evidência para que a parciali
dade do escritor ouse negá-lo. Em tais casos, o histo
riador exagera ou atenua ; prodigaliza cores favorá
veis ou desfavoráveis ; busca explicações, inventa
causas, assinala conseqüências, etc . ; porém o facto
persiste, e os esforços da má fé devem advertir o
leitor j udicioso para que não atenda senão ao facto
não veja senão o facto, e o vej a tal qual ele é.
Os admiradores apaixonados de Napoleão fala
rão à posteridade do fanatismo e crueldade da na-
O CRITÉRIO 99
ção espanhola, nação bárbara e sem inteligência,
que recusou viver feliz debaixo do ceptro glorioso
de um herói, referirão os mil favoráveis motivos
que forçaram o grande caudilho a intervir na penín
sula, e assinarão mil causas favoráveis para expli
car os resultados pouco satisfatórios, concluindo que
em caso algum se empanam as glórias do herói .
Apesar de tudo, o leitor judicioso, se qui ser
prestar a devida atenção, descobrirá fàcilmente a
verdade sob os véus que a encobrem. Com efeito,
qualquer que seja a sua repugnância, o historiador
será forçado a ouvir que ·antes de principiar a luta,
e enquanto as forças do marquês de la Romana ser··
viam a França no Norte, o chefe dos franceses
sob pretextos de amizade mandou passar para Es
panha um numeroso exército, que se apoderou das
principais cidades e fortes, inclusa a capital do reino ;
que colocou no trono seu irmão José, e que enfim,
depois de seis anos de encarniçadas lutas, o exército
francês e José, repelidos do solo espanhol, se viram
obrigados a passar a fronteira.
Eis o facto ; dêm-se as cores que se quiserem
às circunstâncias que o acompanharam ; o leitor sen
sato é que nunca deixará de dizer : " O historiador
defende com talento a reputação de seu herói ; porém
da própria narração se depreende : 1.0 que ocupou
um país amigo sob pretextos cavilosos ; 2.0 que o in
vadiu sem motivos ; 3.0 que atacou aliados fiéis no
100 O CRITÉRIO
próprio coração de seu país ; 4,0 que usou de traição
para arrebatar de seu trono um infeliz monarca ;
5.0 que combateu durante seis anos, sem poder im
plantar sobre os montes ibéricos a sua inv€ncível
bandeira. Portanto temos de uma parte a boa fé
do aliado, a lealdade do vassalo, a intrépida cons
tância do guerreiro patriota ; o heroísmo e a justiça ;
de outra parte, o gênio e o valor. mas também a má
fé, a usurpação, as estéreis desgraças de uma guerra
longa e ruinosa. Inj ustiça e astúcia na concepção
da empresa ; calamidades na execução dehi. "
Regra quinta
Os escritos anónimos merecem pouca confiança .
. Talvez o autor ocultasse o nome por modéstia ;
mas o público que o ignora não está obrigado a crer
na veracidade de um livro que, para assim dizer,
cobre a cara com um véu.
Se um dos freios mais poderosos, qual é o temor
de perder a boa reputação, não é todavia bastante
para manter os homens nos limites da verdade, como
nos havemos de fiar em quem carece dele ?
Regra sexta
Antes de ler uma história convém estudar a
vida do historiador.
O CRIURIO 101
Ouso afirmar que esta regra é da maior impor
tância. Verdade é que ela está compreendida no
que dissemos no capítulo VIII ; porém não será inútl
estabelecê-la aqui separadamente, fazendo-a seguir
de algumas observações.
Como se há-de apreciar a veracidade de um
historiador "'u os meios de que dispunha para chegar
à verdade, se ignoramos sua vida ?
Quereis possuir a chave de suas exclamações
ou reticências ? Quereis saber por que sobre tais
cenas tão levemente passa o pincel, ao passo que car
rega certos quadros com as mais negras cores ?
Indagai as suas virtudes ou seus vícios, estudai sua
posição particular, o espírito de seu tempo, as for
mas políticas de sua pátria ; o mais das vezes, tudo
aí se encontra.
Não se escrevia a história durante os revoltosos
tempos da Liga, como no reinado regular e glorioso
de Luís XIV.
Desçamos a tempos mais afastados de nós, à
revolução francesa, ao império, à restauração, ou à
dinastia d'Orleans ; acharemos que em cada uma
destas épocas se escreve a história, por assim dizer,
com a cor das circunstâncias. Cada tempo com sua
linguagem. Se conheceis a época e o país em que
tal ou tal livro viu a luz, isto é, as influências que
presidiram a seu autor, se vos fazeis cargo da si
tuação do escritor ; aqui tereis que suprimir, além
:W2 O CRITÉRIO
que ampliar ; numa parte decifrareis uma palavra
obscura, noutra compreendereis uma perífrase ; nes
ta página apreciareis em seu j usto valor um protesto,
um elogio, uma restrição ; em outra adivinhareis
a omissão de uma censura, de uma confissão, ou de
terminareis o verdadeiro sentido de uma proposição
demasiadamente arrojada.
Poucos são os homens que sobrepuj am comple
tamente o domínio das circunstâncias ; há poucos
que saibam arrostar os grandes perigos na defesa
da verdade ; há poucos que, nas circunstâncias crí
ticas, não busquem transacção entre seu interesse e
a consciência. Permanecer fiel à virtude nos mo
mentos de crise, eis o que é heroísmo, mas o heroís
mo é raro .
. De mais, nem sempre é acto culpável o confor
mar-se o escritor com o tempo, uma ve:t; que não fira
os direitos imprescritíveis da justiça e da verdade.
Há casos em que o silêncio é prudente e quase obri
gatório ; e é exactamente nestes casos que se deve
perdoar ao escritor o não ter dito todo o seu pensa
mento, contanto que contra o seu pensamento nada
tenha dito. Quaisquer que fossem as convicções de
Belarmino sobre o poder indirecto dos Papas, exigí
reis que ele as expusesse em Paris, com a mesma
liberdade que o faria em Roma ? Fora o mesmo que
dizer-lhe : " Escrevei : e desde que o parlamento
tiver conhecimento do vosso livro, os exemplares
O CRITÉRIO 103
serão recolhidos à mão armada e queimados, e vós
provàvelmente expulso da França ou lançado numa
prisão. "
Regra sétima
As obras póstumas editadas por desconhecidos
e tendo passado por mãos pouco seguras, devem
ser consideradas como apócrifas, e recebidas com
reserva ; pouco serve em tais casos a autoridade de
um ilustre falecido ; não é ele que nos fala, mas o
editor, seguro de que o interessado o não poderá
desmentir.
Regra oitava
As histórias fundadas em memórias secretas ou
desconhecidas e documentos inéditos ; os manuscri ·
tos em que o editor afirma nada ter feito senão pôr
em ordem, corrigir o estilo e esclarecer certas pas
sagens, não merecem mais crédito que a que nos
inspira o editor.
Regra nona
As relações de negociações secretas, segredos
de estado, anecdotas picantes sobre a vida privada
de personagens célebres, sobre tenebrosas intrigas
1ó4 6 CRIT�Riú
e outros factos deste gênero, não devem ser admitidas senão depois de severo exame. Se dificilmente
descobrimos a verdade à luz do sol e sobre a face
da terra, pouco podemos contar com a verdade do
que se passa nas sombras da noite e nas entranhas
da terra.
Regra décima
Tratando-se de povos antigos ou muito remotos,
é mister dar pouco crédito a quanto se nos refere
sobre riquezas do país, número de habitantes, te
souros de monarcas, idéias religiosas e costumes do
mésticos.
Efectivamente, como se há-de verificar a exacti
dão · destas relações ? A distância, o tempo, a igno
rância da língua, tudo se nos opõe. Como chegar
à verdade em coisas muitas vezes ocultas, desconhe
cidas aos próprios indígenas ? Acaso se penetrou
no interior da família, nas confidências íntimas do
lar para que se possam descrever os costumes do
mésticos ?
CAPíTULO XII
Considerações gerais sobre os meios de
,conhecer a natureza dos seres. su·as
propriedades e relações
I
UMA CLASSIFICAÇÃO DAS CmNCIAS
Conhecidas as regras que nos podem guiar para
conhecermos a existência de um obj ecto, resta-nos
formular as que nos podem ser úteis · ao investigar
a natureza, propriedade e relações dos seres.
Chamaremos seres ou factos naturais tudo o que
pertence à ordem natural, isto é, sem excepção, todos
os factos submetidos às leis necessárias da criação.
Chamamos morais os factos pertencentes à ordem
moral ; históricos ou sociais os que pertencem à or
dem social ; e religiosos, os que derivam de uma pro
vidência superior e extraordinária.
106 O CRITtRIO
Não insistirei sobre a exactidão desta divisão,
confessando até que, em rigor, pode ser contestada ;
em todo o caso, não se poderá negar que é fundada
sobre a própria natureza das coisas e em harmonia
com elas, e pelo modo com que o entendimento hu
mano costuma distinguir os principais pontos de
vista.
A fim de pôr em relevo as razões em que se
apoia, apresentarei em poucas palavras a filiação
das idéias.
Criou Deus o universo, e tudo que nele se con
tém, submetendo-o a leis constantes e necessárias.
Daqui a ordem natural : ao estudo desta ordem po
der-se-ia chamar filosofia da natureza.
Deus criou o homem racional e livre, suj eito
a certos deveres, leis que, sem o forçar, o 'obrigam.
Daqui a ordem moral, objecto da filosofia moral.
A sociedade humana dá origem a uma série de
f'actos e relações ; daí a ordem social ; o estudo desta
ordem de factos poder-se-ia chamar filosofia social,
ou, se assim o quereis, filosofia da história.
Deus não está ligado pelas leis a que submeteu
a obra de suas mãos, por conseqüência pode obrar
em harmonia com estas leis, e também contrària
mente a elas ; eis por que admitimos a existência
de uma ordem de factos e revelações superiores à
O CRITÉRIO 107
ordem natural e social. Daqui o estudo da religião
ou a filosofia religiosa.
Demonstrada a existência de um objecto, perten
ce à filosofi·a estudá-lo a fundo, apreciá-lo, judgá-lo .
Filósofo, na accepção comum, significa - homem
versado no estudo das leis que regem os entes, no
estudo de suas propriedades e relações.
li
PRUD:í!::NCIA CIENTíFICA ; MEIOS DE A ADQUIRIR
O verdadeiro espírito filosófico' é inseparável do
espírito de prudência ; prud€ncia mui semelhante à
que deve presidir às nossas relações com os homens
e as coisas na prática da vida. Eis algumas obser
vações que nos poderão aj udar a adquiri-la.
Observação primeira
A natureza íntima das coisas nos é quase sem
pre inteiramente desconhecida. Sabemos pouco e
mal.
Não esqueçamos jamais esta verdade, que nos
fará ver a necessidade de trabalho enérgico e perse
verante em nossas pesquisas sobre a natureza dos
entes. Tornar-nos-á modestos e circunspectos, pre
servando-nos desta curiosidade irreflectida que leva
1Ó8 Ó CRITÉRIO
o homem a sondar segredos, para ele cobertos de
véu impenetrável.
Verdade pouco lisonj eira para o nosso orgulho,
mas !Verdade incontestável, verdade perfeitamente
evidente para quem tenha meditado sobre a ciência :
o homem sabe poucas coisas. Recebemos do Cria
dor uma inteligência em harmonia com as nossas
necessidades físicas e morais, pois que esta inteli
gência está em estado de conhecer, para a satisfa
ção de nossas necessidades, o uso que podemos fazer
dos seres colocados ao nosso alcance.
Mas o resto, aprouve à sabedoria divina ocultar
-no-lo ; reservou para si o privilégio de, mais tarde,
ela própria levantar o véu que oculta a nossos olhos
.
o inefável espectáculo da criação. Para que lastimar
i\ -mo-nos ? Se a ignorância é a prova da vida, a es
; 1'perança é a consolação da morte.
A ciência fornece algumas noções sobre as pro
priedades da luz ; nós aplicamos muitas vezes essas
propriedades ; mas a essência da luz, qual é ela ?
sabemos dirigir, até apressar a vegetação ; mas que
sabemos da natureza e segredos deste maravilhoso
fenómeno ?
Fazemos uso dos nossos sentidos, conservamo
-los e ajudamo-los ; porém os mistérios da sensação
nos são desconhecidos. Conhecemos, em geral, oa s
substâncias nocivas ou salutares ao corpo ; mas igno
ramos por que é que tais substâncias são úteis ou
O CRITÉRIO 109
prej udiciais. Temos acabado ? Calculamos o tempo
de mil modos, e no entanto a metafísica ainda não
logrou definir o tempo. Existe uma ciência cha
mada geometria, ciência elevada a um alto grau de
perfeição, e a idéia fundamental desta ciência, a
extensão não se pode compreender. Vivemos no
espaço ; todo o universo se move no espaço ; medi
mo-lo ; submetemo-lo a rigorosos cálculos ; e nem
a metafísica, nem a ideologia sabem dizer em que
o espaço consiste, se é cousa distinta dos corpos,
se é simplesmente uma idéia, se tem natureza pró
pria. Não sabemos se ele é um ser, ou se não é
coisa alguma. Pensamos, e não sabemos o que vem
a ser o pensamento ; as idéias geram-se em nossa
inteligência, e não sabemos o que é uma idéia. O
espectáculo do universo, em toda a sua variedade, em
todo o seu esplendor se desenrola em nosso cérebro
como em magnífico teatro. Aí, uma força incom
preensível cria, segundo nossos caprichos, mundos
fantásticos, ora sublimes e cheios de belezas, ora
cheios de extravagâncias, e não sabemos nem o que
é a imaginação, nem o que são estas prodigiosas
cenas, nem como aparecem ou se esvaem.
Há uma multidão de afeições de que temos cons
ciência íntima, profunda, invencível, a que chama
mos sentimentos. Mas que é um sentimento ? Po
demos dizê-lo ? O que ama sente amor, e não sabe
o que é o amor.
110 O CRITtRlO
O filósofo que pretende analisar esta afeição
assina a sua origem, suas tendências e seu fim ; dá
regras para a dirigir ; porém, quanto à natureza
íntima do amor, permanece na mesma ignorância
que o vulgo.
Os sentimentos são como o fluido que circula
por canais inaccessíveis à vista. Conhecem-se-lhes
alguns efeitos exteriores ; em certos casos, sabe-se
onde vão ou donde vêm estes fluidos ; pode-se até
acelerar ou retardar seu giro, mudar a di reção ; po
rém a vista não pode sondar o mistério de seu mo
vimento ; o agente permanece incógnito.
Nosso próprio corpo, todos os que nos rodeiam,
sabemos por ventura o que eles são ? Há filósofo
que possa explicar o que é um corpo ? e todavia vi
vemos no meio de substâncias corpóreas ; usamos
delas a cada instante. Conhecemos muitas de suas
propriedades, definimos as leis que as regem, um
corpo faz parte da nossa própria natureza.
Não percamos, pois, de vista estas considerações,
quando tivermos de estud·ar os princípios constitu
tivos de qualquer ser, sua essência. Atentos e cheios
de ardor em nossas pesquisas, sej amos sóbrios e ri
gorosos nas definições. Se não exercitarmos com
rigoroso escrúpulo esta qualidade, acontecer-nos-á
muitas vezes colocar na ordem das realidades vãs
criações da fantasia.
O CRITÉRIO 111
Observação segunda
Nas matemáticas há duas maneiras de resolver
os problemas : a demonstração directa, e a prova por
impossibilidade.
O mesmo aconteceem toda e qualquer questão.
Para o maior número das dificuldades, provar que
nos achamos na impossibilidade de as resolver se
ria a melhor das soluções. E que se não creia que
tal maneira de raciocinar seja desprovida de mérito,
ou que seja sempre fácil discernir o possível do
impossível .
Um espírito cap-az deste discernimento mani
festa que conhecia a fundo a matéria e que sondou
seriamente as dificuldades.
O conhecimento da impossibilidade em que nos
achamos de resolver certas dificuldades é mais ve
zes histórico e de experiência, que científico. Lo
go que um homem competente declara que tal ou
tal solução é impossível, ou que toca o impossível,
nem sempre se segue que ele esteja em estado dE'\
o demonstrar ; mas a inutilidade dos esforços que
tentou, a história dos esforços antes dele tentados
por homens especiais, confirmam nesta questão a
impotência do espírito humano. Algumas vezes a
impossibilidade ressalta da própria natureza do pro·
blema ; todavia, para o afirmar com certeza, é mis-
112 0 CRITÉRIO
ter abranger, com a mesma vista de olhos, o conhe
cimento desta impossibilidade e o conhecimento que
seria preciso ter para a fazer desaparecer.
Observação terceira
Como os entes diferem muito em sua natureza,
propriedades e relações, igualmente as nossas apre
ciações a seu respeito devem ser mui variadas.
Imaginam alguns que, sabendo-se pensar sobre
uma elas objectos, está aberto o caminho para
e lograr o m;mo a respeito de todos ; bastando
dirigir a atenção�a o que se quer estudar de
novo. �ouvir-se da boca de muitos, e
ler-se em alguns autores, a insigne falsidade de que
a �lhor lógica são as matemáticas, por isso que
acost� a pensar em todas as matérias com rigor
e exactidão.
Para ver desvanecida esta pretensão ilusória e
fatal, basta observar que os objectos que se oferece
cem a nosso espírito são de mui diferentes ordens ;
que os meios de que dispomos para observar nada
têm de comum entre si, que as relações em que nos
achamos para com eles variam infinitivamente, e
que finalmente a experiência nos mostra muitas ve
zes, tanto nas artes como nas ciências, talentos es
peciais e nunca talentos universais.
O CRITÉRIO 113
Há verdades matemáticas, verdades físicas,
ideológicas, metafísicas ; há verdades morais, re
ligiosas, políticas, históricas, literárias ; verdades
da razão pura e outras que são um misto de senti
mento e imaginação. Há verdades especulativas e
há outras práticas ; algumas que só se podem adquii'
rir com auxílio do raciocínio, e outras que se adqui{
rem por intuiç,ão ; outras, enfim, que só a experiên
cia nos ensina. Poder-se-iam dividir em tantas clas
ses que fora impossível contá-las.
UI
OS GRANDES HOMENS. EVOCAÇÃO.
Evoquemos, com auxílio desta potência mais
forte que a própria morte, com auxílio da imagina
ção, os homens ilustres que foram o ornamento de
seu século e cuj os nomes a humanidade conserva
com orgulho. Mandemos ao túmulo que no-los res
titua tais quais ele os recebeu, com seu gênio, suas
paixões, suas faculdades diversas, e em morada dig
na de tais personagens, em um novo Eliseu, no qual
todas as artes, todos os produtos do espírito humano
estejam reunidos, onde cada qual encontre o que
fora obj ecto de sua paixão e sua glória ; sigamos com
o pensamento estes indivíduos privilegiados. O se-
114 O CRITÉRIO
gredo de seus gostos nos revelará o segredo de seu
g-ênio.
Que imponente assembléia l Gonçalo de Córdo
va, Richelieu, Cristóvão Colombo, Fernando Cor
tês, Napoleão, Torquato Tasso, Mílton, Corneille,
Racine, Boileau, Calderon, Moliere, Bossuet, Mas
sillon, Bacon, Kepler, Galileu, Pascal, Newton,
Leibnitz, Miguel Ângelo, Rafael, Lineu, Buffon, e
mil outros, que, por títulos diferentes, mereceram
ser colocados em o número dos reis da inteligência.
Gonçalo deleita-se com a narração das · campa
nhas de Cipião em Espanha. ! Napoleão medita na
passagem dos Alpes por Aníbal. Indigna-se com a
hesitação de César depois de passar o Rubicão : mas
quando vê o futuro ditador marchar sobre Roma,
vencer em Farsália, subjugar a Africa, apoderar-se
do poder supremo, e com a ponta da sua espada
traçar estas célebres palavras - cheguei, vi e · venci,
-, então a sua vista parece cintilar.
Tasso e Milton inspiram-se na Bíblia, em Ho
mero e Vergílio ; Corneille e Racine buscam modelo
em Eurípides e Sófocles ; Moliere em Aristófanes
e em Oalderon ; Bossuet e Massillon estudam com
amor a Santo Agostinho e S. Crisóstomo : e no en
tretanto Erasmo e Mabillon, envolvidos no pó dos
manuscritos, folheiam com ardor os arquivos.
Cada um tem o seu herói, seu entusiasmo, seu
estudo apaixonado. Este, com o telescópio na mão,
O CRinRIO 115
surpreende o segredo de Deus na criação ; aquE>le
outro, curvado sobre o microscópio, descobre um
mundo de viventes num grão de pó. Mecânicos, ar
tistas, naturalistas, Lineu no meio das flores, Rafael
nas galerias de quadros, Watt entre as máquinas,
todos escolheram seu lugar no meio que lhes con
vém, e desenvolvem, no prosseguimento do seu ideal,
as mais altas faculdades.
Mas deslocai estas grandes inteligências, ponde
em contacto os gênios opostos, as aptidões diversas,
trocai-lhes a ocupação, o poeta com o mecânico, o
filósofo com o poeta, o guerreiro com o filósofo, 'J
pintor com o geómetra, o homem dado a fantasias
com o homem positivo, o homem de movimento e
acção com o pensador, e vereis como a cena muda.
O gênio toma-se mediocridade, e quem sabe ? a sa
bédoria em toleima.
Ainda que Boileau tenha lido mil vezes a epís
tola aos Pisões ou as sátiras de Horácio, não deixa
de sempre descobrir novas belezas, e de cada vez
admirar mais o seu predilecto.
Descartes medita sobre as cores, e prova inven
civelmente que elas não passam de sensações. Esta
descoberta o enche de alegria. Aproximai no en
tanto estes dois grandes espíritos ; suponde que eles
se comunicam em seus pensamentos : o filósofo terá
por homem superficial e frívolo o que assim se deixa
mover por uma palavra ou por uma imagem bonita ;
116 o crunRIO
ao passo que o poeta, sorrindo com desdém, prepa
ra um verso mordente contra o que ele chama so
nhador, e cujas doutrinas a seu ver ofendem o sen
so comum e tendem a desencantar a natureza.
Eis Mabillon com um velho pergaminho nas
mãos ; recorrendo mil vezes ao vidro de aumento,
recomeça suas indagações. Pretende restabelecer
uma linha apagada, em que espera achar uma
palavra, um texto perdido. Totalmente absorvido
neste trabalho, esquece o resto do mundo ; quando
sobrevém um naturalista que, dirigindo o micros
cópio, se põe a huscar com não menos ardor e pai
xão, no pergaminho que disputa ao erudito, os ovos
dum insecto roedor.
Tasso e Mílton, declamando suas estrofes subli
mes, calcam com os pés, sem até duvidar que des
troem num instante a obra paciente de muitos dias,
as plantas microscópicas, das quais Lineu fazia a
análise. Enfim brilha a guerra entre estes semi
-deuses, que se não entendem. Cuidai em reenviá-los
a seu túmulo, sob pena de comprometerem sua glória.
O que um rejeita com desdém, o outro o busca
e admira ; o que um vê com clareza, o outro nem
ao menos o entrevê. Gênio sublime para o primei
ro, visionário absurdo para o segundo ; inapreciáveis
tesouros para este, miseráveis bagatelas para aque
le. E por que ? De onde vem que estes espíritos
privilegiados estão entre si em tal desacordo ? Como
O CRI'NRIO 117
é que as verdades se não apresentam a todos os
olhos da mBsma maneira ? E' que a verdade, em
bora una em Deus, é multíplice na criação ; é que
a régua e o compasso são inúteis para apreciar as
coisas do coração ; é que o sentimento nada tem que
ver com os cálculos da geometria ; é que as abstrac
ções metafísicas nehuma relação têm com a ciência
social ; é que a vBrdade pertence a ordens tão di
versas como a mesma natureza ; é que a verdade é
a realidade das coisas.
A pretensão de pensar e raciocinar, sobre todos os objectos, do mesmo modo, é uma abundante
fonte de erros ; aplicadas as faculdadBs inconvenien
tes tornam-se inúteis, porque se submete a uma o
que unicamente convém à outra. Até os homens
de inteligência privilegiada, a quem Deus dotou de
compreBnsão universal, tornam estéril este dom, se,
quando se aplicam a qualquer objecto particular não
sabem despojar-se, por assim dizer, de uma parte
de si mesmos, não deixando funcionar senão as fa
culdades de que precisam para o objecto de que se
trata.
CAPíTULO XIII
A percepção
I
IDÉIA
Perceber com clareza, exactidão e viveza, j ul
gar com verdade, discorrer com rigor e solidez, eis
os tres dotes do bom pensador ; examinemo-los se
paradamente, emitindo sobre cada um deles algu
mas observações.
Não definirei idéia ou percepção. Basta dizer,
sem aspirar à precisão rigorosa da linguagem filo
sófica, que percepção é este acto interior pelo qual
concebemos uma coisa ; e que a idéia é a imagem,
a representação que serve como de alimento à per
cepç.ão. Assim, nós percebemos o círculo, oa elipse ;
percebemos a resultante de um sistema de forças,
a razão inversa destas forças nos braços duma ala-
120 O CRITtRió
vanca, a gravitação dos corpos, a lei de aceleração
em sua queda, o equilíbrio dos fluidos, a contradi
ção que implica ser e não ser ao mesmo tempo, a
diferença entre a essência e o acidente ; percebemos
os principios d·a moral ; percebemos nossa existência
e a do mundo exterior, percebemos as belezas ou os
defeitos num quadro, num poema ; percebemos a
simplicidade ou a complicação em um negócio, a im
pressão favorável ou desfavorável que sobre os nos
sos semelhantes fazem uma palavra, um gesto, um
sucesso ; finalmente, concebemos tudo o que o nosso
espírito concebe ; e este espelho interior no qual os
objectos parecem pintar-se para se oferecerem aos
olhos do espírito, esta coisa que ora enche o entendi
mento com sua presença, ora se oculta ou adormece,
esperando, para reaparecer, que alguma ocasião a
desperte ou que nós mesmos a chamemos, este não
sei quê, esta incógnita cuj a existência não podemos
de modo algum pôr em dúvida, é o que chamamos
Idéia.
As opiniões dos ideólogos sobre a origem das
idéias são aqui de pouca importância . Para bem
pensar, que necessidade há de saber se a idéia é ou
não distinta da percepção ; se é ou não uma sensação
transformada ; enfim, donde provém e se é inata
ou adquirida ? A solução destas questões sobre que
sempre se disputou e disputará exigiria observações
psicológicas, às quais nos não podemos consagrar
O CRITÉRIO 121
sem dar de mão a qualquer outro trabalho, sob pena
de embaraçar ou transviar a inteligência. O que
pensa não pode estar continuamente a pensar que
pensa e comó pensa. Nosso entendimento não pre
encheria seu fim. Não se ocuparia de sua missão,
ocupando-se somente de si próprio.
II
BEM PENSAR. REGRAS.
Perceberemos com clareza e viveza, se nos ha
bituamos a ser atentos ao que se nos oferece, e se
além disso procur.ámos adquirir o necessário tino
para empregar, em cada caso, as faculdades conve
nientes, e só elas.
Trata-se, por exemplo, de uma definição mate
mática ? nada de vago, nada de abstracções, nada
de sentimental, nada de fantástico, nada do mundo
em sua complicação e variedade. A imaginação de
ve calar-se ou, quando muito, fazer ofício das telas
sobre que se traçam sinais e figuras. Esclarece
rei a regra, dando uma das definições mais elemen
tares da geometria. "A circunferência é uma linha
curva, fechada, cuj os pontos são eqüidistantes de
um ponto comum chamado centro. " Vê-se imedia
tamente que não se trata aqui da circunferência en
tendida em sentido metafórico, em sentido vago e
122 O CRITÉRIO
indeterminado, mas sim de uma definição rigorosa,
definição que deve ser considerada como ·a expres
são de um ideal de que a realidade se aproxima
mais ou menos. ..
Todavia, como as figuras geométricas se sub
metem à vista e à imaginação, valer-me-ei de uma
destas faculdades ou delas ambas para me repre
sentar o que quero conceber. Traço pois uma cir
cunferência ou numa pedra, suponhamos, ou na
imaginação, e vej o ou imagino esta figura. M�s _y�r
!l_IP.� co�sa __ não - � cg_mpreend�_r_ a su� natureza. O
homem menos inteligente vê ou imagina uma circun
ferência tão bem como o mais hábil matemático, e
não sabe dar conta do que vê. Se bastasse ver, o
próprio animal teria idéias geométricas tão perfei
tas como Newton ou Lagrange.
Que é pois preciso para que haj a percepção in
telectual ? Conhecer as condições indispensáveis pa
ra a existência da coisa. E" o que explica a defi
mçao. A percepção não é exacta e completa senão
quando concebemos cada uma de suas condições ; o
conj unto del-as forma, em nosso entendimento, a
idéia verdadeira, a idéia que devemos ter do obj ecto
definido.
Interrogai sobre a definição que demos de cir
cunferência a um homem rude, e vereis por suas
respostas que não sabe dar-se conta do conj unto das
condições necessárias para a existência desta figura.
O CRinRtO 123
Ver e conceber estão longe de ser uma e a mesma
coisa.
Se · um geómetra a analisa por sua vez, que
diferença !
- Na definição da circunferência pode empre
gar ·a palavra linha ?
- Sim, porque não obstante não se tratar de
linhas nesta parte de geometria, não se poderia di
zer simplesmente cur/Va, visto que curva também
se aplica às superfícies.
- Exprimindo a palavra linha, é mister expri
mir também o qualificativo curva ?
- Parece-me que não ; porque, aj untando a pa
lavra reintrante, a distinguimos de linha recta, que,
além disso, não poderia ter todos os seus pontos
eqüidistantes do centro.
- E a palavra fechada, não se poderia passar
em silêncio ?
- Não ; porque se a curva não reentra sobre
si mesma, se não é fechada deixa de ser circunfe
rência, etc. , etc.
Eis uma percepção clara, exacta, completa, pela
qual o espírito entrou na posse da realidade.
Passemos à análise de uma idéia literária, e
procuremos determinar a maior ou menor perfeição
que pode ter.
Ainda aqui há a percepção de uma verdade ; a
atenção, isto é, a aplicação do espírito ao obj ecto de
124 O CRIT�RIO
seu estudo é portanto necessana. Precisamos de
insistir sobre a seguinte observação : As mesmas
faculdades estão longe de ser igualmente úteis em
todas as espécies de trabalhos : e, por exemplo, o
espírito de classificação e divisão, faculdade im
portante no geómetra, tornar-se-á um defeito no
literato ?
Dois homens eminentes, mas por títulos diver
sos, lêm conj untamente uma obra prima poética ou
oratória ; um deles não pode conter o entusiasmo :
" Que sublimes imagens ! - exclama - que fogo !
que delicadeza de sentimentos ! que profundeza ! que
inimitável enlace de concisão, de abundância, de
regularidade, de vigor ! "
E os seus olhos derramarão lágrimas de admi
ração.
" Contudo está conforme às regras - respon
der.á o ·companheiro - isto é que é para admirar ! "
Um percebe as belezas da obra que acaba de
ler ; todavia, raciocina pouco, apenas analisa, só
pronuncia palavras entrecortadas. O outro não
as percebe ; raciocina e disserta, sempre encostado
às regras de retórica : o primeiro vê toda a verda
de que o segundo só em parte percebe. E por que ?
Porque a verdade, aqui, é um conjunto de relações
entre o entendimento, a imaginação e o coração ;
porque estas faculdades devem ser postas em acção
O CRITtRlO 125
ao mesmo tempo, naturalmente, sem esforço, sem
violência, sem serem distraídas ou empuxadas pela
lembrança de tal ou tal regra . Era mister deixar
o raciocínio, a análise, a crítica, só se lembrar destas
coisas depois de as ter sentido.
O que se embara:;a em definições, e chama em
seu auxílio os preceitos, antes de se haver penetra
do da obra que se julga, como que pensa a alma ;
quando mais precisava de dilatar, de desenvolver
todas as suas faculdades, obriga-a a não empregar
senão uma ;quando devia levantar mais arroj ado
voo, priva-a de suas asas.
III
ESCOLHOS DA ANALISE
Até nos assuntos em que nenhum papel de
sempenha o sentimento e a imaginação, convém não
comprimir a inteligência obrigando-·a a seguir um
método qualquer determinado, quando por earácter
particular precise da independência e liberdade.
E' inegável que a análise ou decomposição serve em
muitos casos para dar às idéias precisão e clarezn ;
porém , h.ão esqueçamos que a maior parte dos seres
são compostos, são um conj unto e que o melhor mo
do de os perceber é ver com uma só vista geral as
partes que o constituem.
126 O CRITÉRIO
Sem dúvida uma máquina desmontada apresen
ta de maneira mais distinta as peças que a com
põem ; mas p·ara bem compreender o uso destas par
tes, para apreciar o seu curso particular no movi
mento geral, é preciso que elas tenham sido tornadas
a pôr em seu lugar. À força de decompor, de di
vidir, de analisar, Condillac e sua escola veio a não
reconhecer no homem senão sensações transformadas.
Pelo contrário, Descartes e Mallebranche não viram
nele senão idéias puras : tendência, duma parte,
pam o materialismo, de outra parte, para o espiri
tualismo exagerado. Condillac pretende dar a ra
zão de todos os fenômenos da alma partindo deste
facto : o perfume de uma rosa percebido por um ho
mem-máquina privado de todos os sentidos à excep
ção do olfacto. Mallebranche, buscando a explicação
dos mesmos fenômenos e, não a encontrando nas
criaturas, não hesita em fazer intervir em tudo a
essência divina.
A cada passo vemos homens inteligentes afun
darem-se de raciocínio em raciocínio com aparente
rigor de dedução, nas mais estranhas extravagâncias
e dislates. E' que não souberam ver a questão se
não por um dos lados. Será o espírito de análise
que lhes falta ? Não. Apenas um objecto está em
suas mãos, logo o decompõem. Mas um só ponto
negligenciado compromete seu trabalho ; e, nos ra
ros casos em que sua análise é completa, esquecem
O CRITtRlO 127
que o objecto decomposto é um, que cada uma das
suas partes está unida a outra por relações estreitas,
e que, se não tiverem em conta este facto essencial,
uma obra prima pode em suas mãos tornar-se um
absurdo.
IV
O TINTUREIRO E O FILóSOFO
Um hábil tintureiro estava em seu laboratório,
entregue aos trabalhos de sua profissão ; aconteceu
entrar um filósofo, grande pensador, apaixonado
admirador da análise. Travou-se entre eles uma
discussão a respeito das cores, e o filósofo, analisan
do em particular cada uma d'as substâncias que o
artista misturava e combinava, lhe demonstrava que
por tais meios não poderia obter os resultados que
esperava. A análise era exacta, as provas numero
sas, as razões evidentes, os raciocínios sem réplica.
- Terá o senhor muita razão - respondeu o ar
tista ao fim dos argumentos - tudo o que afirma
é possível, mas queira voltar amanhã.
O filósofo voltou efectivamente, e o tintureiro
apresenta-lhe ricos tecidos, que tira fumegantes das
caldeiras. Que é feito da infabilidade da análise ? O
azul, o alaranjado, o vermelho, as mais vivas e deli
cadas cores cintilam nos ricos estofos.
128 O CRITÉRIO
Conhecer a parte isolada do todo, ou combina
da com o todo, não é pois a mesma coisa. Decom
por e dividir não é senão uma parte da ciência.
E' preciso também saber reunir e compor.
v
__.. OS OBJECTOS VISTOS DE UM Só LADO
Há certos espíritos, aliás muito lúcidos e pene
trantes, que se transviam às vezes deploràvelmente.
Já demos a razão. Não encaram as coisas senão
por um lado, e estabelecem sobre o conhecimento
assim adquirido, sobre esta base imperfeita, uma
série de raciocínios que conduzem fora de termos
e o resultado é chegarem a conclusão absurdas.
Daí a opinião de que com auxílio do raciocínio tudo
se pode impugnar, tudo defender. Muitas vezes,
com efeito, posto que o homem tenha por seu lado
a verdade e o bom senso, vê-se forç·ado a calar-se,
espantado, ainda que não convencido, por sofismas
que, penetrando pelas menores frestas, como água
através dos poros, superam as mais impenetráveis
defesas. O excesso de agilidade faz com que certas
pessoas não possam caminhar a passo regular e
grave ; o excesso de espírito é um defeito do mesmo
gênero.
O CRITtRIO 129
VI
INCONVENIENTES DE UMA PERCEPÇÃO MUITO
RAPIDA
A rapidez de percepção é uma qualidade pre
ciosa ; porém é preciso precaver-se a gente contra
o efeito ordinário desta rapidez, a inexactidão.
Freqüentemente acontece aos que percebem com
m uita presteza, não perceber senão as exteriorida
des dos obj ectos. A andorinha, tocando em seu rá
pido vôo a superficíe das águas, só consegue apa
nhar os insectos que sobrenadam ; as aves mergulha
doras vão até ao fundo procurar sua preza.
Os homens dotados de percepção mui rápida
fazem-se notar por uma facilidade cheia de seduções
e atractivo. Sabem dar aos objectos de que tratam
certa aparência de método, de clareza, de precisão
que ilude os espíritos desatentos. Nas ciências pri
mam pela simplicidade das definições, pela feliz
aplicação dos princípios que põem ; esta qualidade
caracteriza os espíritos de concepções fortes e pro
fundas, mas pode também mascarar a impotênc ia
da frivolidade . Também as águas pouco profun
das encantam a vista, porque deixam ver a areia
de seu leito em que cintilam algumas palhetas d e
ouro.
CAPiTULO XIV
O juízo
I
QUE E' JUíZO ? CAUSAS DE ERROS
Será o juízo um acto distinto da percepção ?
Será simplesmente a percepção das relações que
duas idéias têm entre si ? Não era nosso plano o
resolver estas questões abstractas, as quais subtitui
remos vantajosamente, segundo creio, por definições
práticas. Julgar é afirmar mentalmente que uma
coisa é ou não é ; que é ou não de certa maneira.
Proposição é a expressão de um j uízo.
Os axiomas falsos, as proposições tomadas em
sentido muito extenso, as definições incompletas, as
expressões vagas, as suposições gratuitas, os prejuí
zos, tais são . as fontes dos erros de nosso juízo .
132 O CRIT�RIO
II
AXIOMAS FALSOS
Toda a ciência precisa de um ponto de apoio.
E' o fundamento sobre que o arquitecto levanta o
edifício. Mas nem todos os arquitectos do pensa
mento encontram, da primeira vez que lançam a
sonda, o fundo sólido ; e o homem não sabe esperar.
O que exigiria a experiência e labor de muitos sécu
los, ele o quer produzir num só dia ; se o não en
contra, inventa. Se a realidade lhe falha, levanta
suas frágeis construções sobre os sonhos da fantasia,
e à força de sofismas chega a iludir-se a si próprio.
Converte em verdades incontestáveis o que bem
sabia não ter sido, a princípio, senão uma forma
vaga de seu pensamento, senão uma aparência sem
fixidez. As excepções embaraçariam o sistema que
inventa, formula portanto uma proposição geral ,
que erige em axioma. Este axioma deve prestar-se
a mil interpretações, contrair-se ou distender-se à
vontade, segundo as necessidades das circunstâncias
e da caus-a, por isso ele o eoncebe em termos vagos,
gerais, confusos, ininteligíveis. Se em seu espírito
se levantam escrúpulos tocantes às verdades que
desta sorte estabeleceu, se teme ver desabar intei
ramente o edifício construído com tanto trabalho,
O CRITI!RIO 133
coisa estranha ! esquecendo seu ponto de partida,
tranqüiliza-se dizendo : não há perigo, o meu edifício
está fundado sobre base segura, sobre um axioma,
e um axioma é uma verdade eterna !
Um axioma deve tocar nosso espírito, arrastar
nossa adesão, como os raios do sol tocam nossos olhos
e nos f'azem crer na luz. A toda a proposição que
se não apresente com esta ·evidência não se confira
tal nome. Se compreendeis cada um dos termos da
proposição e não estais convencidos, não há axioma ;
desconfiai de vós. Viciadas as idéias por um axioma
falso, todas as coisas se v.Bem de modo mui diverso do
que realmente são, e os erros são tanto mais perigo
sos quanto o entendimento descansa em maisenga
nosa segurança.
III
PROPOSIÇõES DEMASIADO GERAIS
Se nos fosse conhecida a essência das coisas,
poderíamos com respeito a el'as estabelecer proposi
ções gerais sem excepção alguma ; porque, sendo a
essência a mesma em toda a espécie, o que afirmás
semos de um só indivíduo seria. igualmente afirmado
de todos. Mas o mais das vezes só temos das coisas
conhecimentos imperfeitos, ou nada sabemos delas ;
eis por que não podemos avaliar dos seres senão
134 O CRITÉRIO
pelas suas propriedades que estão ao nosso alcance ;
ignoramos até se estas propriedades têm sua raiz
na essência das coisas, ou se são puramente aci
dentais. As proposições gerais que nós estabelece
mos ressentem-se desta impotência do nosso espí
rito ; e, como enfim elas não exprimem senão nossas
concepções e j uízos, não podem estender-se além do
círculo que a nossa inteligência abraça. Daí tantas
excepções imprevistas, daí também a excepção to
mada muitas vezes como regra. Quem estabelece
uma proposição geral está suj eito ao erro, qualquer
que sej a a aplicação do seu espírito. Que será en
tão das proposições de tanta leveza no fundo como
imperfeição na forma ?
IV
DEFINIÇõES INEXACTAS
O que deixamos dito dos axiomas, pode igual
mente aplicar-se à definição. A definição é o ar
chote da percepção e do juízo ; gra<;..as à sua luz, o
raciocínio pode prosseguir confiadamente.
Uma boa definição é cousa dificílima, impossí
vel até em grande número de casos. Definir é ex
plicar a essência da coisa definida ; ora como se
há-de explicar o que se não conhece ? Não obstan
te esta dificuldade, não há ciência que se não va-
O CRITÉRIO 135
lha de uma multidão de definições postas em circu
lação como moeda de boa lei. Coisa estranha !
Tem-se visto escritores levantarem-se contra este
abuso, combaterem as definições dos outros, mas,
para as substituir por definições novas, acabam por
reedificar, sobre hipótese de sua escolha, o edifício
de erros por eles derribado'. Se a clefinição se
propõe dar a conhecer a essência das coisas, e se
tão difícil é chegar a este resultado, para que nos
apressaremos tanto a definir ? Sendo o fim de nos
sas indagações o conhecimento da natureza dos en
tes, e devendo a definição expor o resultado dessas
indagações, como se há-de começar pela conclusão ?
Definir é pôr a equação donde se deduza a incógnita,
e na solução do problema esta equação é a última.
O que podemos mui bem definir é o puramente
convencional, porque a natureza do ente convencio
nal é aquela que nós mesmos lhe damos por motivos
que bem nos parecem. Assim, j.á que em muitos
casos nos não é possível definir a coisa, ao menos
devemos fixar bem o que entendemos quando dela
falamos ; por outra, devemos definir a palavra com
que pretendemos exprimir a coisa. Não sei o que é
o sol, não conheço a sua natureza, ser-me-á impos
sível defini-lo. Todavia, como sei o que entendo
pela palavra sol, deve-me ser fácil explicar o sentido
que ligo a esta palara. Que é o sol ? não sei. Que
entendo pelo sol ? Entendo este astro cuja presença
136 O CRITtRlO
nos traz o dia e cuja ausência nos tira o dia. Isto
me leva a falar das expressões vagas e mal definidas,
v
EXPRESSõES MAL DEFINIDAS. EXAME DA
PALAVRA "IGUALDADE"
Aparentemente, nada menos difícil do que definir
uma palavra, pois que é natural que quem fala saiba
o que diz ; todavia, prov·a a experiência que nem
sempre é assim. Raros são os homens capazes de
apreciar o sentido das palavras que empregam.
A confusão dos termos nasce da confusão das idéias,
e aumenta esta confusão. Uma questão animadís�
sima se debate em nossa presença, de ambas as par
tes sustentada com talento pouco comum. Verdade
é que a cada instante a questão se desloca e muda
de objecto ; mas nem por isso a luta é menos encar�
niçada e ardente : dir-se-iam dois inimigos mortais
em campo de batalha .
Quereis apagar este ardor ? notai a palavra sobre
que versa a discussão e perguntai aos campeões em
que sentido a empregam. Vereis como eles tergi
versam, atacados por lado que não esperavam ; tal
vez deste modo os forçareis a dar conta, pela pri
meira vez, do verdadeiro sentido de uma expressão
de que se têm feito inúmeras aplicações. Se por ven�
O CRITÉRIO 137
tura acontece que cada qual dê fàcilmente e de
pronto a definição pedida, estai certos de que um
não aceitará a definição do outro, e que ·a discor
dância que antes versava ou parecia versar sobre o
fundo da questão, se trasladará de repente a novo
terreno entabolando-se disputa sobre o sentido da
palavra. Disse parecia versar, porque quem houvesse
observado o giro da questão, bem acharia que de
baixo do nome da �oisa se ocultava freqüentemente
a significação da palavra.
Em todas as línguas há ·expressões vagas, muito
gerais, mal definidas. Cada um as traduz segundo
o seu modo de ver ; múltiplas como o sentimento ou
a paixão que as interpreta, fazem o desespero da
lógica e parecem inventadas para confundir tudo.
Demos um exemplo :
" A igualdade - dirá um declamador - é obra
do mesmo Deus, lei por Ele estabelecida. Todos
nascemos chorando e todos morremos suspirando :
a natureza não faz diferença entre pobres e ricos,
nobres e plebeus ; também a religião nos ensina que
todos temos a mesma origem e o mesmo destino.
A igualdade é obra de Deus ;a desigualdade é obra
do homem ; só a maldade pôde introduzir no mundo
essas horríveis desigualdades de que o gênero hu
mano é vítima ; só a ignorância e ausência do senti
mento da própria dignidade as tem podido tolerar. "
138 O CRIT�RlO
Esta definição declamatória não deixa de soar
bem ao ouvido de certos amores-próprios ; não se
pode negar que alguma coisa apresenta de precioso,
e também estranha mistura de erros e verdades,
sem relação e sem ligação ; ridícula confusão de pa
lavras para o pensador. É que na mesma frase se
dão à palavra igualdade diferentes significações ; é
que ela se aplica em um mesmo sentido a assuntos
tão afastados como o céu e a terra ; é que, passan
do-se resolutamente de um conjunto de contradições
a conclusões gerais, se eleva um sofisma a axioma,
e se impõe aos espíritos fracos e entenebrecidos.
Defini - diria eu - a palavra igualdade.
Esta palavra define-se a si mesma.
Em todo o caso . . .
A igualdade é o princípio em virtude do qual
um homem não é mais nem menos que outro homem
- Definição mui vaga, na verdade. Dois ho
mens são iguais na esta!ura ; segue-se daqui que o
devem ser em tudo mais ? Um, por exemplo, é obeso
como o ilustre governador da ilha de Barataria, o
outro magro como o C"avaleiro da Triste-Figura ;
demais os homens são iguais ou desiguais em saber,
em virtude, em nobreza da alma e em mil outros
acidentes ; convém, portanto, que acordemos no sen
tido exacto, positivo, que convém dar à palavra
igualdade.
O CRlTtRlO 139
- Falo da igualdade da natureza, desta igual
dade que o próprio Criador estabeleceu e contra cujas
leis nada podem os homens.
- O que certamente quer dizer é que por na
tureza todos somos iguais . . . Porém a natureza nos
faz nascer feios ou bonitos, fracos ou robustos, ágeis
ou pesados ; somos naturalmente violentos ou pací
ficos, inteligentes ou faltos de inteligência, e assim
indefinidamente. Contai as ondas do mar e sa
bereis então o número das desigualdades naturais.
- Mas estas desigualdades não tiram a igual
dade de direitos.
- A questão muda de face. Abandonamos a
igualdade natural, ou a restringimos consideràvel
mente. Talvez não tardemos também a conhecer que
a igualdade de direitos também tem seu lado defei
tuoso. Haverá quem conceda ao menino, por exem
plo, o direito de repreender e castigar o próprio
pai ?
Para que supõe absurdos ?
Não há tal ; apenas exponho uma conseqüên
cia forçada da igualdade absoluta dos direitos ; se
não é assim, assinalai-me então aqueles de que fa
lais ; quais são os direitos para os quais deve ser
ou não ser admitida?
- É evidente que quero falar dos direitos ci
vis, da igualdade social.
140
- Breve tomaremos esta palavra em sentido
geral e mais absoluto ; mas o facto é que você, expulso
de uma trincheira, pretende refugiar-se noutra. Não
importa. Igualdade social quer dizer, certamente, que
na sociedade todos os homens são ou devem ser iguais.
Iguais em que ? Em autoridade ? Não haveria go
verno possível. Em fortuna ? Deixemos de lado a
j ustiça e procedamos à partilha ; no fim de uma hora,
de um dia, com fortuna igual, um achar-se-ia arrui
nado, outro com dobrado capital ; reaparece a desigual-
dade. Faça-se mil vezes a partilha, acontecerá sem
pre o mesmo. Iguais em consideração ? É impos
sível consagrar igual estima a um infame e a um
homem de bem. Tendes a mesma confiança em cada
um deles ? Encarregareis indiferentemente de ne
gócios públicos a um homem sem capacidade alguma
e a um Richelieu ? Além disso, todo o homem será
apto para tudo ?
- Não, reconheço que não, mas o que me não
podereis negar pelo menos é a igualdade perante a lei .
- Nova questão ; todavia sigamo-la. A lei diz :
o transgressor será submetido à multa ; e, no caso de
ser insolvente, à prisão. O rico paga e ri-se da lei ; o
pobre expia de ferros a dentro tanto o seu crime como
a sua pobreza. Onde está aqui a igualdade perante a
lei ?
O CRITÉRIO 141.
- Mas estas desigualdades é preciso acabar com
elas. O castigo deve chegar a todos os culpados, pesar
igualmente sobre todos.
- Aboli então as multas, única maneira de cas
tigar certos culpados e algumas vezes também pre
ciosa fonte de receita para o tesouro ; e, com tudo,
;:�, desigualdade no castigo ficará sempre uma impos
sibilidade. Admitamos que para um certo e deter
minado delito, a multa sej a fixa ; multam-se dois cul
pados ; um deles paga e continua opulento, o outro
fica arruinado . . .
- E será impossível remediar estas imperfei
ções da lei ?
- Pode ser ; mas eu só quero provar que a
desigualdade no mundo é irremediável.
No caso de os castigos serem corporais, temos
a mesma desigualdade. O homem despido de digni
dade pessoal sofre indiferentemente a ignomínia,
a exposição pública, etc . , ao passo que, para certos
culpados, tais castigos seriam mais cruéis que a
morte. A pena deve ser apreciada não em si, mas
em relação a quem a sofre ; sem isso, não se tocariam
os dois fins que ela se propõe, a expiação e o exem
plo. Em um mesmo castigo aplicado a criminosos
de classe diferente não há de igual senão o nome.
Reconheçamos estas imperfeições das coisas humanas
e deixemo-nos de sonhar loucamente sobre a igualdade
142 O CRITÉRIO
absoluta, porque tal igualdade é absolutamente impos
sível.
A definição de uma palavra e o exame das apli
cações diversas que dela se podem fazer, nos fornece
rão ocasião de sondar um especioso sofisma e de
provar, até à evidência, que este texto de declama
ções, tantas vezes emprr.,gado, não é, no fundo, senão
uma verdade trivial, um pretensioso absurdo. Pois
não se reduz, com efeito, a esta descoberta : que
todos nascemos e morr·emos da mesma maneira ?
VI
SUPOSIÇõES GRATUITAS
À mingua de princípios gerais, estabelecemos
às vezes nossos raciocínios sobre factos cuj a certeza
só repousa em nossa credulidade., Declaramo-los
certos, porque precisamos que eles o sejan1. Daí a
multidão de sistemas a propósito de certas leis e cer
tos fenómenos da natureza, fundando cada inventor
o edifício de seus conhecimentos sobre suposições
gratuitas. Até os talentos de primeira ordem se
deixam arrastar por esse defeito, sempre que care
çam de dados positivos sobre a natureza e origem
das coisas, e não obstante queiram - explicar tudo.
Um efeito pode proceder de uma infinidade de cau-
O CRITÉRIO 143
sas ; mas saber ·que pode proceder não é ter achado
a. verdade ; é preciso saber que procede. Se uma hi
pótese explica satisfatOriamente certos fenómenos
que tenho à vista, poderei admirar o talento de seu
.inventor ; porém pouco adianto para o conhecimento
da realidade das coisas.
Atribuir um efeito a uma causa em virtude da
possibilidade, principalmente quando se pode invo
car a coexistência ou sucessão, é um sofisma mais
comum do que se pensa. O mais das vezes nem ao
menos se inquire da existência do fenómeno desig
nado como causa ; basta que tenha podido existir,
e que ·em sua existência pudesse produzir o efeito,
cuja explicação se busca.
Achou-se no fundo de um precipício o cadáver
de uma pessoa conhecida. Muitas suposições Bxpli
cam essa morte : uma queda, um suicídio, um assas
sinato. Em qualquer destes casos, o efeito seria o
mesmo, e na ausência de dados não se pode dizer
que um o explique mais satisfatoriamente que o
outro. Numerosos espectadores estão contemplando
a desastrosa cena, e todos anseiam por descobrir a
causa. Ao mais leve indício aparecem mil conj ec
turas. Algumas circunstâncias que acompanham a
suposição gratuita lhe darão carácter de verossimi
lhança. Já se não duvida, afirma-se. Esta supo
sição cai diant� de uma observação mais atenta ; su
cede-lhe outra e outra e os factos invocados em apoio
144 O CRITÉRIO
da primeira servem algumas vezes para estabelecer
a segunda. o homem é o joguete do próprio pen
samento.
VII
PRECONCEITOS
Fonte inesgotável de erros, verdadeiro escolho
das ciências, e um dos maiores obstáculos a seus
progressos ! DifJ.cilmente imaginaríamos quão gran
de é a influência que os preconceitos exerc·em, se
a história do espírito humano a não atestara a cada
página.
O homem a quem um preconceito domina não
vê nos livros nem nas coisas o que os livros e as
coisas contêm, mas só vê aquilo de que precisa para
apoiar suas opiniões ; e muitas vezes procede de boa
fé : crê amar a verdade. A educação, os mestres
que nos deram as primeiras noções das ciências, os
amigos, a profissão, a posição social, eis as origens
de nossos preconceitos. Estas influências reunidas
contribuem para criar em nós o hábito de ver as
t:oisas sempre debaixo do mesmo aspecto e vê-las
sempre da mesma maneira.
Nos primeiros passos que damos na carreira
das ciências, apresentam-nos certos axiomas, certas
proposições, como verdades eternas, incontestáveis,
O CRIT�RlO 145
e nós as aceitamos com plena confiança e sem hesi
tação. As razões que militam em f'avor das opini
ões contrárias, longe de nos serem submetid·as à aten
ção como argumentos, são taxadas de sofismas ou
dificuldades a resolver. É preciso impugnar, e as
provas são abundantes e a escolher ; e, na luta desi
gual, a arma que o mestre maneja ao abrigo de peri
go fere sempre o calcanhar do Aquiles inimigo.
Fácil vitória em que os vencidos são a nossa inex
periência e boa fé.
É fácil de observar : nas discussões das escolas,
ou antes em todas as discussões, trata-se menos de
convencer que de vencer. O amor-próprio entra na
liça ; e que armas não fornecerá ele à discussão !
Exagera-se o favorável ; o desfavorável atenua-se,
desfigura-se ou se cala. Se a boa fé alguma vez
protesta do fundo do coração, impõe-se-lhe silêncio ;
abafa-se a sua voz como se abafam as palavras de
paz em um combate d-e morte.
Eis a razão por que, durante séculos, certas es
colas existiram disciplinadas como exércitos à som
bra da respectiva b-andeira, e por que, quase sempre,
para conhecer a opinião de certos autores, basta
saber a que ordem religiosa pertenceram e de que
escola saíram. Seu erro não pode provir de igno
rância ; consagram ao estudo a vida inteira ; os 1 i
vros dos adversários não lhes eram desconhecidos ;
consultavam-nos cotidianamente . . . mas para os
146 O CRITtRIO
combater. Seria má fé ? Estes hom€ns eram sin
ceros cristãos.
Temos nos preconceitos uma das principais
fontes do erro. O homem precisa enganar-se a si
antes de enganar os outros. Chega às vezes a to
mar a sua importância e miséria por en€rgia e gran
deza d'alma ; obstina-se num sistema, entrincheira-se nele, fortifica-se com todos os ·argumentos que
favorecem sua opinião, e fecha os olhos a tudo mais.
Seu espírito se inflama e exalta à proporção da vi
vacidade do ataque, até que enfim, não contando
nem o número nem o valor dos adversários, parece
dizer-se : " Estás em teu posto, deves def.endê-lo ;
mais vale morrer com glória que viver com desonra ! "
Eis por que muito importa, quando se trata de
convencer e persuadir, S€parar cuidadosamente a
causa do amor-próprio da verdade . Há certas fór
mulas de cortesia e deferência que convém não pro
digalizar muito. Não ponh'ais em dúvida a exten
são e penetração de espírito do adv€rsário, e prin
cipalmente fazei-lhe compreender que, cedendo, nada
perderá da boa opinião de que goza. - Se deixais
de ter esta precaução , a luta se tornará pessoal, e ,
portanto, encarniçada ; tê-lo-eis debaixo dos pés, a
espada apontada à garganta, e ele sem se confessar
vencido.
CAPfTULO XV
O raciocínio
I
O QUE V ALEM AS REGRAS DA DIALÉCTICA
Costumam os autores que tratam desta opera
ção do entendimento amontoar muitas regras para
dirigi-la, apoiando-as em alguns axiomas. Admito
a verdade dos axiomas, mas não posso crer que a
utilidade das regras seja tanta quanto se supõe.
Com efeito ninguém ousará pôr em dúvida os se
guintes princípios : duas coisas iguais a uma terceira
são iguais entre si ; de duas coisas iguais, se uma
difere de uma terceira, a outra difere igualmente ;
o que se afirma, ou o que se nega do gênero ou da
espécie, é igualmente afirmado ou negado do indi
víduo. As regras de argumentação fundadas sobre
tais princípios são infalíveis ; concordo. Porém es-
148 O CRIT�RIO
tas regras é preciso aplicá-las, e da teoria à prática
•vai muito longe.
Diz-se que têm a vantagem de habituar o es
pírito à precisão, e de em certos casos dar a conhe
cer os defeitos das proposições, cuja fraqueza vag;:,.
mente sentíamos ; seja assim : mas estas vantagens
não raro são neutralizadas pela presunção que este
gênero de estudos inspira. Persuadem-se alguns
que saber as regras do raciocínio é saber raciocinar,
como se bastasse para ser artista conhecer as regras
da arte. Pode haver quem receite, de memória, to
dos os preceitos da retórica, e não seja capaz de es
crever uma página, já não digo sem ofender as rl?
gras do bom gosto, mas as do senso comum.
II
DO SILOGISMO ; OBSERVAÇõES
Quando prosseguimos em um raciocínio sem
precisão de empregar a forma escolástica (prática
hoje caída em desuso) , teremos presentes ao pensa
mento as regras do silogismo ? A resposta dará a
medida da utilidade prática destas regras. Apren
de-se a conhecer se tal ou tal silogismo está composto
segundo os princípios, e eis a forma ordinária dos
exemplos propostos : - Toda virtude é louvável ;
ora a justiça é uma virtude, logo a justiça é louvá-
O CRITÉRIO 149
vel. - Suponhamos, todavia, que, por um acto parti
cular submetido a vosso exame, tendes de decidir
se a j ustiça se acha ou Iião ofendida, e se a lei deve
punir ; na indagação do em que consiste a j ustiça,
no exame profundo dos princípios em que ela re
pousa, na consideração dos benefícios que presta ao
indivíduo e à sociedade, de que utilidade vos será o
exemplo citado e mil outros do mesmo gênero ? Que
nos digam os teólogos e j uristas, se, em seus escritos,
se serviram muito das decantadas regras silogísticas.
Nenhum animal é insensível ; ora o peixe é um
animal ; logo o peixe não é insensível. O que é bom
é adorável ; ora Deus é bom, logo Deus é adorável.
Esta peça de ouro não tem o peso desejado ; ora
esta é a peça que Pedro me deu ; portanto a peça
de ouro que Pedro me deu não tem o peso desej a do.
Semelhantes raciocínios poderão por ventura for
mar o espírito e desenvolver o j uízo ? Não, certa
mente. Não é em futilidades desta ordem que se
aprende a difícil arte de raciocinar. A prática nada
oferece de semelhante, e quando se chega às aplica
ções, ou esquecemos completamente as regras, ou,
depois de termos tentado servir-nos delas, abando
namos este método tão penoso como ingrato.
Analisemos o último exemplo que demos, com
parando a prática à teoria.
" Uma moeda que não reúne as condições pres
critas pela lei deve ser recusada ; ora esta peça de
150 O CRIT�RIO
ouro não reúne as condições prescritas pela lei, por
.tanto deve ser recusada. " Raciocínio concludente,
mas inútil.
Se bem conheci'a a lei que rege o sistema mo
netário, se verificasse que a moeda não era con
forme às perscrições da lei, de certo a recusaria
sem discorrer. Se aconteceu levantar-se questão,
de nenhum modo pôde versar sobre a legitimidade
das conseqüências que tirei das premissas, mas sim
sobre o peso, sobre o título da peça de ouro, ou coi
sas deste gênero.
O homem que desenvolve uma proposição não
se absorve no estudo retrospectivo do próprio pen
samento, do mesmo modo que os olhos que vêem o�
objectos exteriores não procuram simultâneamente
ver-se a si próprios. Se uma idéia se nos apresenta,
percebemo-la com mais ou menos clareza. Esta
idéia encerra uma ou muitas outras que, a seu tur
no, despertam novas idéias . E deste modo o espí
rito prossegue serenamente, sem subtilezas, sem ter
a cada instante de se preocupar do porquê de cada
evoluç.ão da inteligência.
III
O ENTIMEMA
A evidência destas verdades levou os dialécti
cos a colocarem em o número dos argumentos o
O CRITÉRIO 151
entimema, silogismo truncado, em que se subenten
de uma das premissas. O entimema é um produto
da experiência. Na prática, não se formulam silo
gismos em todas as suas partes. O que demos, por
extenso, no princípio deste capítulo, se o quisésse
mos converter em entimema, traduzí-lo-íamos da se
guinte maneira : Esta peça de ouro, não está nas
condições exigidas pela lei, portanto não a posso
receber. Ou estilo vulgar e mais conciso : Não a
recebo, é Í'alsa.
IV
REFLEXõES SOBRE O TERMO MÉDIO
Todo o artifício do silogismo está na compara
ção que deve mostrar a relação que os extremos
têm entre si. Conhecidos os extremos e o termo
médio, é facílimo estabelecer a comparação ; mas
nesse caso a regra torna-se inútil, porque imedia
tamente a conseqüência buscada se ·apresenta de
per si. Achar este termo médio, que deve servir
ao raciocínio como de pedra de toque, reconhecer
os extremos, quando se averigúe dum objecto, cuja
natureza se ignora, eis a dificuldade : se um dado
metal fosse ouro, sei que devia ter certas qualida
des ; mas eu não sei se realmente é ouro, e, portanto,
falta-me um dos extremos. O juiz sabe que, se o
152 O CRITéRIO
homem que tem diante de si fosse o assassino que
" procura, o devia condenar ; mas nada lhe indica que
ele é o culpado : ainda que suspeite, sem provas não
o pode condenar. Está de posse dos dois extremos ;
mas falta-lhe o termo médio.
Podemos afirmá-lo ; este termo não se lhe apre
sentará sob a forma dialéctica. Os antecedentes
do acusado, sua maneira de viver, as testemunhas
que o acusam, o punhal que se lhe encontrou oculto,
os vestígios de sangue no vestuário, certos obj ectos
que lhe foram apreendidos, a inimizade que o cul
pado alimentava contra a vítima, suas contradições,
sua perturbação quando, poucos momentos depois
da execução do crime, entraram em sua casa e ou
tras circunstâncias dessa ordem, eis o termo médio,
ou antes, eis as circunstâncias que devem designar
o culpado. Estas circunstâncias pesá-las-á o j uiz
escrupulosamente em particular e no seu conj unto ;
multiplicará a sua atenção para a exercer em todos
os sentidos, para a dividir entre mil diversos obj ec
tos, e aplicá-la...á toda simultâneamente a cada um
dos objectos ; nada negligenciará que o possa .condu
zir à verdade ; todos os pormenores serão recolhi
dos, classificados, estudados. Que distânci'a entre
preocupações deste gênero e a do silogismo em for
ma ! Que utilidade teriam aqui as regras do silo
gismo ?
O CRITÉRIO 153
v
UTILIDADE DA DIALÉCTICASem embargo do que havemos dito, não nega
remos que as formas dialécticas se podem frutuo
samente empregar ainda hoje, sempre que se trate
de apresentar com exactidão e rigor um encadea
mento de idéias. Se a forma silogística não tem
valor como meio de invenção, não deve ser despre
zada como método de ensino. Assim, longe de pre
tender banir este estudo das escolas elementares,
entendo que se deve conservar cuidadosamente, senão
em toda a sua secura, pelo menos em todo o seu ri
gor. Os silogismos são os nervos e os ossos do
raciocínio. Saibamos revesti-los de earne e dar-lhe
as formas graciosas de vida. Outrora abusoQ-se
deles ; nós caímos no excesso contrário ; e este ex.
cesso é prej udicial ao progresso das ciências e à
causa da verdade.
Dantes, os discursos eram demasiadamente des
carnados a ponto de deixarem ver o esqueleto ; hoj e,
tal é o cuidado do exterior e esquecimento do interior,
que, na maior parte das obras oratórias, as pala
vras fazem as vezes das coisas.Frases bonitas, pom
posas, cintilantes de beleza, se palavras ôcas podem
ser belas. Pelo abuso da dialéctica antiga, os espí-
154 O CRITtRIO
ritos sofísticos e subtis iam transviando a verdade
em inextricáveis subdivisões ; os espíritos falsos ou
vazios a abafam, a submergem, a tornam inaccessí
vel sob a pujança dos ornatos oratórios. Est modus
in rebus.
CAPíTULO XVI
O raciocínio não é o único meio de achar
a verdade
I
A INSPIRAÇÃO
Os grandes pensamentos não são filhos do ra
ciocínio. Quase todas as descobertas felizes, as mais
sublimes, e as mais preciosas conquistas do espírito
humano, são devidas à inspiração - a esta luz es
pontânea, misteriosa, qu€ repentinamente ilumina a
inteligência do homem, sem que saiba de onde lhe
venha. Digo inspiração, porque me parece que ne
nhuma outra palavra exprime este admirável fenó
meno com mais exactidão.
Um matemático busca com ardor a solução de
um problema ; nada negligenciou, lançou mão de to-
dos os dados, e conhece perfeitamente o enunciado,
156 b CRITÉRIO
e, no entanto, os seus esforços permanecem impo
tentes, não chega à solução desej ada. Muda de fi
guras, de processo, opera sobre quantidades dife
rentes, mas tudo em vão. Acha-se cansado ; a ca
beça se lhe inclina, a pena cai-lhe da mão, abandona
por fim o trabalho e j á nem sabe se pensa. Dir-se-ia
um homem que, desanimado com as tentativas inú
teis que havia feito para abrir uma porta que lhe
estava fechada, se assent::r sobre a soleira, esperando
que lha venham abrir de dentro. De repente faz
-se a luz ; a verdade que ele deixara de prosseguir
apresenta-se-lhe espontâneamente, de per si mesma ;
o problema está resolvido. Este matemático é Ar
quimedes saindo do banho para as ruas de Siracusa
e exclamando para a multidão : " Encontrei, en
contrei ! "
Acontece freqüentes vezes, que, depois de lon
gas horas de meditação, o espírito cam'lado suspen
de seus esforços, ainda, aparentemente, muito lon
ge do fim a que se propunha ; ora é exactamente
no meio desse estado de repouso, de distracção ou
mui diferente ocupação que ·a verdade, antes vãmen
te buscada, se lhe apresenta de improviso. Parece
que as almas meditativas têm o privilégio de j a
mais interromperem o estudo, e ainda quando têm
deixado a meditação em que estavam embebidas,
lhes ocorre freqüente o ponto em questão, como se
viesse chamar à porta e perguntar se ainda lhe não
O CRITÉRiO i 57
toca a vez. Todos sabem que, estando Sto. Tomás
de Aquino à mesa do rei de França, rompeu, invo
hmtàriamente, nesta exclamação : " Isto é uma pro
va incontestável contra a heresia dos maniqueus ! . . . "
II
A MEDITAÇÃO
Não se creia que o homem que estuda uma ques
tão difícil ande como com a régua e o compasso na
mão a dirigir sua meditação. Absorvido no pró
prio trabalho, esquecido até da própria existência,
medita, por assim dizer, sem o saber. Vê e revê o
objecto que trata de examinar j á no seu conj unto,
j á nas circunstâncias ; pronuncia interiormente o
nome deste objecto ; passa do ponto -essencial aos
accessórios ; não prossegue, como por caminho tra
çado, direito à meta determinada ; mas antes, seme
lhante ao que busca um tesouro escondido cuj o lu
gar ignora, vai excavando aqui, além, em toda a
parte.
Nem pode ser de outra maneira, a não ser que
a verdade que se procura seja conhecida de ante
mão. O que tem à vista um mineral cuja natureza
conhece, quando trata de manifestar aos outros o
que dele sabe, serve-se do processo mais simples
e mais adequado. Potérrt se o mesmo metal lhe fos·
158 O CRITÉRIO
se desconhecido, examiná-lo-ia com atenção, uma e
muitas vezes ; por tais ou tais indícios formaria
suas conjecturas, e por fim lançari·a mão de várias
expenencias, não para provar de que espécie é o
metal, senão para descobrir o que ele é.
IH
A INVENÇÃO E ENSINO
Temos pois uma diferença radical entre o mé
todo de ensino e o método de invenção. O que
ensina sabe aonde se dirige e conhece o caminho ·que
deve seguir, porque j á o tem percorrido : o que des
cobre talvez não tenha obj ecto algum determinado,
se não examinar o que há no obj ecto que o ocupa ;
talvez se dirija a um alvo, porém ignorando se é
possível alcançá-lo, ou, duvidando se existe, receia que
seja mero capricho de sua imaginação ; e aind·a no
�aso de estar seguro de sua existência desconhece a
senda que a ele conduza.
Eis por que os princípios que se empregam no
ensino das ciências diferem quase sempre dos que
emprega o inventor. Deve-se à geometria a desco
berta do cálculo infinitesimal, e todavia é por uma
série de processos algébricos que hoj e em dia se
chega à aplicação desse cálculo.
O CRITÉRIO 159
No meio de uma cadeia de montanhas se eleva
aos ares um pico isolado, sobre o qual se avistam
confusamente as ruínas de um antigo edifício. Um
ousado viaj eiro forma o projecto de o subir. As
ervazinhas suspensas nos flancos dos precipícios, n::. ;
tronco carunchoso, uma pedra movediça, tudo lhe
serve de ponto de apoio ; trepa, salta, arras
ta-se, e finalmente, coberto de suor e fatigado, che
ga ao desejado vértice ; e levantando o braço ao céu,
exclama cheio de orgulho : " Sempre venci ! " Toda
a cadeia de montanhas se desenrola a seus pés, os
mais belos horizontes se abrem diante dele. O que
só via em parte; agora o abraça e domina com uma
só vista. Em baixo, ao longe vê os obstacúlos con
trá os quais se quebraram seus primeiros esforços,
e ri-se de sua inexperiência ; ao pé contempla os
que finalmente vencera, e admira-se da própria au
dácia. Os companheiros, muito fracos para vencer
as inextricáveis dificuldades do caminho, não o pu
deram seguir senão com a vista . Mas até este dia
ficara desconhecido um atalho porque só é visível
do alto da montanha, tem numerosos circuitos, ser
peia e se alonga muito abaixo do plano, porém
está ao alcance dos menos vigorosos e atrevidos ; a
vista penetrante do viaj eiro o percebe ; é por aí que
ele vai descer ; é por aí ·que, caminhando à frente
oos companheiros, dizendo-lhe : segui-me ! os há-de
conduzir sem perigo, sem fadiga, até ao vértice cuj a
160 O CRITÉRIO
conquista tanto lhe custara. Graças a ele, j á a
montanha é accessível. Todo viaj eiro pode admi
rar por sua vez as pitorescas ruínas, as vistas su
blimes e os magníficos horizontes que dali se des
cobrem.
IV
A INTUIÇÃO
Não se j ulgue todavia que as invenções do gê
nio sejam sempre tão laboriosas e pesadas. Uma
de suas prerrogativas é a intuição, isto é a facul
dade de ver sem esforços o que outrem só com tra
balho penoso e aturado descobre. É ainda noite
escura para os demais, e é já sol nado, para o que
possui esta faculdade. Uma idéia, um facto apa
rentemente insignificante, lhe revelam mil relações,
mil circunstâncias, desconhecidas. Um ponto insig
nificante, fitado pela vista do homem de gênio en
grandece-se, dilata-se e distende-se como a aurora
ao levantar do sol. Vêde ! apenasno horizonte ha
via uma pequena nesga de luz, e j á o firmamento
brilha com imensas madeixas de prata e ouro, tor
rentes de fogo inundam a abóbada celeste desde o
Oriente ao Ocidente, desde o Septentrião ao
Meio-dia !
O CRITÉRIO 161
v
A DIFICULDADE NAO ESTA EM COMPREENDE"R,
SENAO ATINAR. O JOGADOR DE XADREZ. SOBIESKI
Assinalemos aqui uma particularidade notável,
e é que certas verdades, aliás accessíveis de per si,
só ocorrem a inteligências privilegiadas. Quando
estas as apresentam ou as fazem advertir, a todos
parecem tão claras, tão simples, tão fáceis de com
preender, que se espantam por ter pass-ado tanto
tempo sem as ter visto antes.
Dois j ogadores de xadrez estão empenhados em
uma complicada partida. Um deles parece desviar
-se em insignificantes combinações ; abandona uma
peça que teria podido defender, e parece preocupar
-se com a defesa de um ponto que não é atacado. -
Tempo perdido ! - murmuram os circunstantes. -
A cada um seu jogo - responde o jogador - e con
tinua como distraído. O adversário não penetrara
suas intenções ; não vê o perigo em que está a cair ;
de repente o j ogador inábil, o que estava perdendo
seu tempo e peças, o ataca pelo flanco descoberto, e
d iz com maligno sorriso : - Até que ganhei ! - Ti
nha razão ! - exclamaram os assistentes - o que
parece impossível é que não o houvéssemos adver
tido. Era bem simples !
162 O CRITÉRIO
Os turcos acampam em volta de Viena, e na
"
c idade sitiada disputa-se com ardor sobre que pon
to se poderá atacar à chegada de Sobiéski. São inu
meráveis os planos de batalha e todos diferentes.
Chega o herói polaco ; lança uma vista de olhos so
bre o exército inimigo, e diz : "É meu. " No dia
seguinte dá batalha : os turcos foram postos em de
bandada. Viena é livre . Depois de visto o plano
de ataque todos diziam : os turcos cometeram gran
de erro ; o rei tinha raz.ão. A verdade oferecia-se
a todos, todos a achavam facílima ; mas depois do
sucesso.
Que coisa mais simples do que o sistema de nu
meração ? e toda via não foi conhecido nem dos gre
gos nem dos romanos na mais alta civilização da an
tigüidade. Que fenómeno mais simples que o da fre
qüente tendência que têm os fluidos a pôrem-se ao
nível, e subirem à mesma altura de onde descem ?
Observa-se nas retortas dos químicos, em todos os
vasos de um ou muitos tubos de comunicação. -
Não era tão fácil aplicar esta lei natural a obj ecto
de tanta utilidade como é a condução de águas ? E
todavia muitos séculos se passaram antes que o ho
mem aproveitasse a importante lição que a natu
reza todos os dias punha diante de seus olhos.
Conhecer e utilizar qualquer relação evidente,
mas que ao geral passava despercebida, eis um dos
caracteres distintivos do gênio. Nenhuma dificul-
O CRI�RIO 163
dade oferece de per si esta relação ; o que a descobre
como que a amostra ao dedo, dizendo : Olhai ! e to
dos os olhos parecem abrir-se ao mesmo tempo ad
mirados de previamente a não verem. Eis por que,
arrastados pela força das coisas, damos a esta or·
dem de descobertas os nomes de acasos, fortuna.�,
inspirações; dando a entender deste modo que ne·
nhum trabalho custaram, antes se apresentaram de
per si ao espírito.
VI
REGRAS SOBRE A MEDITAÇÃO
Do que deixamos dito se pode concluir que para
bem pensar não é bom sistema torturar o espírito ;
antes mais vale deixá-lo em desafogo e certa liberda
de. Medita, e parece que sem fruto algum, a mes
ma atenção parece dormitar, afrouxa desalentado ;
não importa, é melhor não o violentar. Durante
estacionamento aparente, procura indício que lhe sir
va de guia. Assim o que pretende abrir um destes
cofres, que parecem inventados para exercer simul
tâneamente a sagacidade e a paciência, o volteia
muitas vezes nas mãos, apalpando com os dedos cada
uma de suas faces e ângulos até que enfim parando
um momento pensativo, exclama : Eis o segredo !
está ab-erto !
164 O CRITÉRIO
VII
CARACTER DAS INTELIGl!:NCIAS ELEVADAS.
NOTAVEL DOUTRINA DE STO. TOMAS DE AQUINO.
Por que será que certas verdades simples se não
apresentam a todas as inteligências ? Como é que
o gênero humano admira como homem extraordiná
rio o que sabe ver certas coisas que, parece, todos
poderiam ver como ele ? É perguntar a razão de
um segredo da Providência ; é perguntar por que o
Criador concede a alguns espíritos privilegiados
grande força de intuição, ou, se assim o querem, uma
visão intelectual imediata, por que concede a estes
o que denega ao maior número.
Sto. Tomás desenvolve sobre este particular uma
admirável doutrina. Segundo o santo doutor, a fa.
culdade de raciocinar é um sinal de fraqueza. Foi
-nos dado o raciocínio para suprir a intuição, que é
uma força. Os anjos compreendem e não racioci.
nam. Quanto mais uma inteligência é elevada, me
nor é o número de suas idéias, porque esta inteli
gência privilegiada encerra em pequeno número de
idéias o que as inteligências inferiores distribuem
em maior número. Assim, os anjos de mais alta
jerarquia abraçam, com limitadíssimo número de
idéias, um círculo imenso de conhecimentos.
O CRITÉRIO 165
O número das idéias vai-se reduzindo nas inte
ligências criadas, à medida que estas inteligências
se aproximam do Criador, e Ele, a Idéia por exce
lência, o Ente infinito, a Inteligência infinita vê
tudo numa únic·a idéia, idéia simples, imensa, única,
que é a sua mesma essência.
Que sublime teoria ! só ela vale um livro : mos
tra profundo conhecimento dos segredos do espírito,
8Ugerindo-nos inumeráveis aplicações com respeito
às faculdades do homem.
Com efeito, os gênios superiores não se distin
guem pela quantidade de suas idéias. Em pequeno
número abrangem o mundo. A ave rasteira fati
ga-se, revoluieando no mesmo terreno ; não ultra
passa j amais as angústias e sinuosidades do vale
natal. A águia, arrojando-se aos espaços, sobe, sobe
sempre ; não pousa senão nos mais elevados cimos, e
de lá contempla com a sua vista penetrante as monta
nhas, o curso dos rios, as. vastas planícies, os verdes
prados e as ricas messes !
Em todas as questões há um ponto de vista prin
cipal, dominante ; nele se coloca o gênio. Daí do
mina e abraça o conj unto das causas . Se ao comum
dos homens não é dado chegar até esse ponto ao pri
meiro tentamen, nem por isso deixa de envidar to
dos os meios possíveis para a ele chegar. Os resul
tados pagam centuplicadamente os esforços. Tem-se
observado que toda 3.1 questão ou mesmo toda a ciên-
166 O CRITÉRIO
cia, se resume em pequeno número de princípios es
senciais, de onde todos os outros se derivam. É mis
ter compreender estes princípios : o resto torna-se
simples e fácil. Apresentai ao espírito os objectos
simplificados o mais possível, e, por ·assim dizer, de
sembaraçados de toda a folhagem inútil. Para con
seguir multiplicar a atenção, cumpre não exigir de
masiado dele e sabê-lo circunscrever. Este método
facilita ·a inteligência das coisas, dá às percepções
exactidão e lucidez, e aj uda poderosamente a me
mória.
VIII
NECESSIDADE DO TRABALHO
Das doutrinas expostas neste capítulo sobre a
inspiração e a intuição, poder-se-á concluir que deve
mos renunciar ao raciocínio e ao estudo e entregar
-nos a uma espécie de quietismo intelectual ? Não,
certamente. O trabalho € condição indispensável ao
progresso. Na ordem intelectual, assim como na
física, um membro que não funciona adorrrienta-se
e perde uma porção de sua vida : o membro que não
se move paralisa.
Os gênios mais bem nascidos não entram plena ·
mente na posse de suas forças, senão por meio de
tra.balho penoso e aturado.
O CRITÉRIO 167
A inspiração não desce sobre os indolentes,
ex·ige par·a se produzir uma, espécie de fermcnta,ção
de idéias e sentimentos elevados. A intuição, o ve·r
do entendimento, exige longo hábito de olhar. A
vista rápida, segura e delicada de um grande pintor
não é só um dom gratuito da natureza ; este dom
dP.ve-o em grande parte à contemplaçãoapaixonada,
à observação, ao estudo paciente dos bons modelos.
O divino sentimento da harmonia não se desenvolve
ria jamais na organização ainda mais feliz com ou
vir tão sbmente sons ásperos e . destemperados.
CAPíTULO XVII
O ensino
I
DOIS OBJECTOS DE ENSINO ; OS PROFESSORES
Os dialécticos estabelecem distinção entre o mé
todo de invenção e o método de ensino. Emitirei
algumas observações sobre um e outro.
O ensino tem dois obj ectos : 1.0 instruir os alu
nos nos elementos das ciências ; 2.0 desenvolver suas
faculdades, afim de que ao sair das escolas estej am
em estado de progredir, conforme sua capacidad€,
na carreira que haj am escolhido.
Poder-se-ia j ulgar que estes dois obj ectos são
idênticos ; mas não é assim. Para realizar-se o pri
meiro basta um mestre mediocremente instruído ;
para o segundo não são bastantes os homens de ver
dadeiro mérito. O saber, para o primeiro caso, pode
170 O CRITÉRIO
hmitar-se a certo encadeamento de factos e de prin
cípios cujo conjunto forma o corpo da ciência ; para
o segundo é mister saber como é formada esta cadeia
cuj as extremidades se reúnem. Para primeiro
bastam os homens que conheçam os livros ; para o
�egundo são necessários homens que conheçam as
coisas.
Não obstante, algumas vezes um professor me
diocremente instruído pode ser mais apto para o
ensino elementar do que um . homem de saber pro
fundo, sendo este mais atre�to a deixar-se arrastar
por digressões pouco compatíveis com a simplicidade
que devem ter os primeiros princípios de uma ciên
cia ensinada a inteligências pouco desenvolvidas.
A explicação clara dos termos, exposição cor
rente e simples dos elementos sobre que a ciência re
pousa, o arranj o metódico dos teoremas e seus coro
lários, eis o carácter especial do ensino elementar.
Porém ao que eleva mais alto suas vistas e con·
sidera a inteligência dos j ovens, não unicamente como
telas onde se lançam alguns traços que aí permane
ç·am para sempre, mas como terreno que pode e deve
tornar-se fértil com a preciosa semente, a este in
cumbe mais elevada tarefa, mais difícil labor. Ser
ao mesmo tempo claro e profundo, interessar e ins
truir, unir as combinações à simplicidade, conduzir as
inteligências por caminhos fáceis, e ensinar-lhes ao
mesmo tempo a vencer as dificuldades de que a senda
O CRITtRIO 171
das ciências está sempre erriçada, notar as dificul
dades por que passaram os inventores, os obstáculos
que venceram ; inspirar o gosto, o entusiasmo do belo,
que é o esplendor da verdade ; dar ao talento a cons
ciência de suas forças, sem sobre-excitar o orgulho ;
animar os fracos e descobrir até na deficiência os ger
mens do bem, tais são as atribuições do professor que
considera o ensino elementar não como fruto, senão
como sementeira de futuro.
11
Gl!:NIOS DESCONHECIDOS DOS OUTROS E DE SI
PRóPRIOS
Quão poucos são os professores dotados desta
preciosa habilidade ! Mas como é possível que os haja
no lastimoso abandono em que se acha este ramo ?
Quem cuida em verificar se os homens encarregados
desta nobre missão possuem, com a ciência, a eleva
ção do espírito e do coração, o amor simpático do belo
e da verdade ? E entretanto é sabido quão grande e
formidável é a influência que os professores podem
exercer sobre as jovens inteligências. Afectam, por
assim dizer, gerações inteiras. Se o passado se nos
mostra tão cheio de ruínas, se o presente anda tão
p�rturbado, ser-nos-ia impossível achar a causa disto ?
172 O CRITtRlO
As cadeiras que às vezes são regidas por
homens de talento, são por eles olhadas como degrau
para subir mais acima ; tratam como distracção o que
deveria absorver sua vida inteira, e o essencial tor
na-se accessório.
Assim, quando entre os j ovens aparece algum em
cujo espírito se sente arder o fogo sagrado do gênio,
nenhum guia o dirige, nenhum apoio aj uda seus pri
meiros passos. Sabe ele, por ventura, quais são suas
forças ? já as ensaiou alguma vez sob uma direcção in
teligente e paternal ? O acaso decide de seus desti
nos. E no entanto quantas inteligências privilegia
das passam despercebidas ! Deixastes dormir, por
toda uma vida, um foco fértil de luzes ; e que seria
preciso para o acender ? apenas um sopro amigo.
Quantas vezes dons preciosos, intelectuais ou físicos
não têm sido revelados casualmente àquele que os pos
suía ! Teria Hércules aprendido a servir-se da mas
sa, se j amais não tivesse manejado senão uma cana ?
III
MEIOS DE DESCOBRIR OS TALENTOS OCULTOS
E APRECIAR SEU VALOR
Um professor de direito explica a seus alunos os
deveres e os direitos do pai de família, e as obriga
ções dos filhos. Para conhecer os talentos do j ovem
b CRITÉRIO 173
auditório, termo médio, eis como tenta a experiência :
" Parece-vos que o coração nos diz alguma coisa rela
tivamente aos deveres de IJUe acabamos de falar ? As
luzes da filosofia estaráo de acordo com as inspira
ções da natureza ? " A estas perguntas saberão res
ponder os mais medíocres alunos, que os pais amam
naturalmente os filhos e os filhos os pais ; e que deste
modo os nossos sentimentos se confundem com os de
veres, os primeiros aj udam o cumprimento dos segun
dos. Até aqui, nenhuma diferença entre os alunos
inteligentes e não inteligentes. Mas o mestre acres
centa :
- Que pensais do filho que desconhece .estas leis
�antas de família e corresponde com ingratidões ao
a.mor que seus pais lhe consagram ?
- Que viola um dever sagrado ; que fecha os
ouvidos à voz da natureza.
- Mas como é que os filhos se tornam tantas
vezes culpáveis para com seus pais, ao passo que, .em
geral, só há que censurar, nestes, excessos de indu�
gência ?
- Os homens esquecem fàcilmente o bem que
recebem. Os jovens caminham na estrada da vida,
distraídos deste dever sagrado por mil ocupações di
versas. As afeições novas que neles se geram, quan
do chegam a ser também chefes de família, neutrali
zam a afeição que têm a seus pais : assim cada um as
sinalará alguma razão, mais ou menos ligada com o
174 O CRITÉRIO
assunto, mais ou menos sólida, sem penetrar no ín
timo da questão. Ouvi agora uma inteligência esco
lhida : " É certo que os filhos faltam muitas vezes
ao que devem a seus pais ; mas se não me engano, é
mister buscar a razão deste facto doloroso na própria
natureza das coisas. Quanto mais o cumprimento de
um dever é necessário à conservação dos entes e à or
dem que os rege, tanto mais numerosas são também
a.s garantias dadas pelo Criador ao cumprimento des
te dever. Não obstante o mau comportamento dos
filhos, a família e a sociedade . se perpetuam ; mas, no
dia em que os pais se negligenciassem em prestar a
seus meninos os cuidados indispensáveis, estaria em
perigo a espécie humana. Eis por que os filhos, ain
da os mais reconhecidos e ternos, não têm para com
aqueles a quem devem a vida a ardente ternura que
estes têm para com eles. Sem dúvida, o Criador po
dia estabelecer de ambos os lados a mesma afeição, o
mesmo amor apaixonado ; s·e o não fez, é porque isso
não era necessário. Coisa notável ! as mães que pre
cisam maior grau deste amor e ternura, o levam às
vezes até os limites do frenesi ; parece que o Criador
a� quis fortificar deste modo contra o cansaço que
podem ocasionar-lhes os primeiros cuidados da infân
cia. Portanto, se os filhos faltam a seus deveres, nãQ
é porque tenham degenerado ; chegada a sua vez de
serem pais, amarão como foram amados. Se o amor
filial se quebranta com mais facilidade, e não arrosta
O CRITÉRIO 175
tão fàcilmente os obstáculos, é porque este amor é me
nos intenso que o amor paternal ; é porque exerce me
nor ascendente e predomínio sobre o coração ; é por
que tem sobre nossas acções influência menos activa. "
As primeiras respostas revelam apenas jovens
inteligentes ; este revela-nos o filósofo. Deste modo.
entre os tenros arbustos se distingue, pelo seu precoce
vigor, o carvalho, cujos ramos um dia devem assom
brara floresta e cuj o tronco desafiará as tempes
tades .
IV
NECESSIDADE DOS ESTUDOS ELEMENTARES
Todo o que quiser possuir uma ciência a fundo,
deve impor-se o tirocínio dos estudos elementares.
É sabido o peso e valor que têm aqueles.
.
sábios
formados pelos artigos dos dicionários e das revis
tas, sábios que falam de tudo sem saber de nada.
Toda a ciência, assim como toda a profissão,
repousa sobn: um conj unto de noções primordiais
de termos, de locuções, de princípios que lhe são
próprios e que só nas obras elementares e especiais
se podem aprender. À mingoa de outras conside
raçõ·es, bastar-nos-ia esta, para mostrar os incon
venientes de qualquer outro método que não fosse
176 O CRITÉIUO
este. Estes primeiros princ1p1os, estas locuções,
estes termos consagrados, convém olhá-los -e empre·
gá-los com certo respeito. No domínio da ciência
é que principalmente o passado tem direito à nossa
veneração. Se o neófito da ciência desconfia dos
predecessores, e visa a reformar, ou mesmo a trans
formar radicalmente o que estuda, andará pruden
temente se inquire o que escreveram, praticaram
e pensaram os antigos. Temerária é a empresa de
tudo criar de per si. O que por louco orgulho re
cusa recorrer aos trabar'.nos dos outros, arrisca-se,
pelo menos, a perder muito . tempo. Não é raro
que o mais hábil mecânico faça seu aprendizado na
oficina de um modesto artista onde, ap-esar de suas
brilhantes disp<>sições, não deixa de aprender o
nome e manejo dos instrumentos de trabalho. Com
o decorrer do tempo, os modificará talvez ; muda
rá a forma, a matéria, o nome ; mas no entanto os
aceita tais como eles são ; deles se serve até que a
�xperiência, até que a reflexão lhe faça ver, com
seus defeitos, os melhoramentos ae que sao :suscep
tíveis.
Costumam os que começam o estudo da · histó
ria, servir-se de um compêndio ; o imortal autor do
Discurso sobre a história universal, Bossuet, faz a
respeito notável comparação. " Este modo de es
tudar a história é, diz -ele, com relação às histórias
de cada país e de cada povo, o que uma carta de
O CRITÉRIO 177
geografia geral é em relação às cartas particula
res. Nas cartas particulares se vê miudamente o
que é um reino ou uma província em si mesma ;
nas cartas gerais aprende-se a localizar as partes
do mundo em seu todo ; v.ê-se o lugar que Paris ou
a ilha de França ocupa no reino, o que o reino ocupa
na Europa, o que a Europa ocupa no mundo. "
A comparação do mapa-múndi com as cartas
particulares aplica-se perfeitamente ao estudo das
ciências. Com efeito, cada ciência forma um todo
que é mister possuir, para aprec.
iar o valor dos
elementos que a compõem ; espécie de quadro em
que se coordena cada parte, marcando seu valor e
seu lugar. Verdade é que as idéias do conjunto
são quase sempre incompletas e muitas vezes
inexactas ; mas este inconveniente é menos grave do
que o de caminhar como às apalpadelas, sem ponto
de apoio, sem noções, sem nenhum guia que nos
esclareça. Dir-se-iá que as obras elementares são
o esqueleto da ciência. De acôrdo ; mas tal como
é, nos poupa penosíssimo trabalho ; achando-o já
formado, fácil nos será corrigir seus defeitos, co
bri-lo de nervos, músculos e carne ; dar-lhe calor,
movimento e vida.
Entre os que hão estudado por princípios uma
ciência, e os que, por assim dizer, colheram suas
noções a vôo, em enciclopédias e dicionários, há
sempre uma diferença que não é difícil de verificar.
178 O CRITÉRIO
Os primeiros distinguem-se pela precisão das idéias
e propriedade na linguagem ; os outros brilham tal
vez com abundantes e selectas notícias ; porém na
melhor ocasião dão solene tropeço que bem mani
festa sua ignorante superficialidade.
CAPíTULO XVIII
A invenção
I
O QUE DEVE FAZER O QUE NÃO ll': DOTADO DO
TALENTO CRIADOR
Creio haver dito o suficiente com respeito aos
métodos de ensinar a aprender ; passo a tratar do
método de invenção. À juventude sucede a idade
madura, aos estudos elementares sucedem também
estudos mais profundos e extensos. Chegado a tal
ponto, pode o homem tentar mais altas empresas,
caminhos menos trilhados. Se a natureza os não
dotou do talento de criar, preciso lhes será contentar
-se com o método elementar, alargando todavia o
quadro de seus trabalhos. Nas obras magistrais en
contrará guias e modelos. Mas não se creia, em
todo o caso, que deve ficar condenado a cego servi-
180 O CRITÉRIO
lismo, e que não possa afoutar-se até ao ponto de
se pôr em desacordo com a ·autoridade dos mestres.
Na milícia literária e científica, não é tão severa a
- disciplina. O soldado pode dirigir observações aos
chefes.
II
AUTORIDADE CIENTíFICA
Poucos são os homens capazes de alçar e levar
por diante uma bandeira. Mais vale alistar-se a ·
gente nas fileiras de um acreditado general, do que
ir, miserável guerreiro, afectando a importância
de insigne caudilho.
Mas não se colija que somos em matéria literária
e científica intolerante apóstolo da autoridade.
Parece-me haver provado o contrário. Menciono
uma necessidade para o geral das inteligências ; nada
mais. A hera, aferrando ao carvalho a sua haste
delgada, eleva-se com ele aos ares ; se vegetar iso
lada, não consegue levantar-se do chão. Ademais,
a nossa observação nada mudará ao curso das coisas ;
é menos um conselho do que a demonstração de um
facto. Digo um facto ; porque, apesar de nossas
pretensões de independência, ninguém poderá negar
que uma grande parte da humanidade caminha e
sempre caminhará sob a conduta de alguns chefes,
O CRITÉRIO 181
e que estes a seu talante eonduzem pelo caminho da
verdade ou do erro.
É este um facto de todos os tempos e lugares,
porque tem o seu princípio na própria natureza do
homem. O fraco reconhece a superioridade do forte
e humilha-se diante dele. O gênio não é o patri
mónio de toda a espéeie humana, é privilégio de al
guns. Tem-se notado que as massas têm tendência
para o despotismo ; sentindo sua incapacidade para
se dirigirem, natural e instintivamente buscam chefe.
Ora, o que se passa na guerra e na política o vemos
igualmente no mundo das letras. A maior parte dos
que as profess·am são também massas, são verdadeiro
vulgo ·que, entregue a si mesmo, não saberia como
conduzir-se ; por isso se reúne em torno dos mais
eloqüentes e mais hábeis. O entusiasmo penetra
também a plebe sábia, e por isso, como a outra,
cheia de dedicação, aplaude como chefes aqueles em
quem vê dotes superiores de inteligência, saber e bom
gosto.
III
MODIFICAÇõES QUE EM NOSSOS DIAS TEM
SOFRIDO A AUTORIDADE CIENTíFICA
À medida que a imprensa vulgariza prodigiosa
mente a ciência, poder-se-ia crer que o facto de que
182 O CRITÉRIO
falamos havia desaparecido ; porém, não é tanto
assim ; o que fez foi modificar-se. No tempo em
que os chefes eram pouco numerosos e a autoridade
se concentrava em algumas escolas, as inteligências
disciplinadas sob uma autoridade comum se dividiam
como exércitos, em dois ou tres campos rivais.
Hoje em dia as coisas passam-se de modo mui dife
rente, são mais numerosas as escolas e os chefes ; a
disciplina acha-se mais relaxada ; os soldados pas
sam de um para outro campo ; estes se adiantam
um pouco, aqueles permanecem retardados ; alguns
se separam e se empenham em escaramuças sem ins
truções nem ordens dos chefes ; dir-se-á que os gran
des exércitos deixaram de existir e que cada qual
marcha para seu lado : porém não vos iludais ; os
exércitos existem apesar desta desordem, todos bem
sabem a qual pertencem ; , se desertam de um ir-se-ão
reunir a outro, e, quando se vej am em aperto, todos
tomarão a direcção de onde saibam que está o corpo
principal para cobrir sua retirada.
Talvez que em última análise acharemos que
os chefes são pouco mais numerosos do que outrora.
Formando um quadro de classificações literárias e
científicas, fàcilmente encontraremos que em cada
gênero são mui poucos os quelevam a bandeira, e
que sobre seus passos se precipita a multidão agora
como sempre.
O CRITÉRIO 183
No gênero dramático, no romance, não se atro
pela a turba dos imitadores atrás de tão raras nota
bilidades ? A política, a história, a filosofia tem seus
mestres, cujo estilo e opiniões todos adoptam servil
mente. Não são as escolas da independente Alema
nha tão distintas, tão separadas como foram as de
Sto. Tomás, de Scott e de Suárez ? Que é na França
a turba dos filósofos universitários, senão humildes
discípulos de Cousin ? e que é este também, por sua
vez, senão sucessor de Hégel e de Schelling ? Os que
pretendem ensinar a filosofia da história, fazem por
ventura mais do que apresentar trechos e idéias de
Guizot ou de qualquer outro chefe de escola ? Os
que se comprazem em declamações sobre elevados
princípios de legislação não são freqüentemente pla
giários de Beccaria e Filangieri ? Dizem por ven
tura os utilitários alguma coisa mais do que aquilo
que lêm em Bentham ? Os escritores de direito
constitucional não têm sempre na boca a Benjamim
Constant ?
Reconheçamos pois este facto, muito saliente
para que se possa negar ou desconhecer. Não nos
li sonj eemos de destruir um instinto mais forte que
nossa vontade e mais forte que nós mesmos ; mas,
quanto ser possa, saibamos neutralizar-lhe as más
influências. Se a insuficiência de nossas luzes nos
força a recorrer às luzes de outrem, seja a nossa
submissão inteligente ! Não abdiquemos o nosso
184 O CRIT�RIÓ
direito de exame. O gênio do homem, por grande
que seja, é falível. Desconfiemos de nosso entu
siasmo, e tenhamos cautela em não conceder ou atri
buir à criatura o que só a Deus pertence.
IV
O TALENTO DE INVENÇÃO.
CARREIRA DO G�NIO
Se o homem é capaz de se conduzir suficiente
mente à luz do próprio entendimento, independente
do exame das obras dos grandes mestres, e longe
de se sentir pigmeu entre eles, se sente a eles igual,
então convém-lhe de modo particular o método de
invenção. Nesse caso não deve limitar-se a saber
os livros, deve conhecer as coisas. Não são para
ele os caminhos trilhados ; há atalhos que o condu
zem mais depressa e mais acima. Idéias, proposi
ções, raciocínio, tudo deve discutir, tudo analisar, tudo
submeter a seu exame. Nada de lembranças pla
giárias, mas observações, pensamentos, criações ; sua
ciência deve ser a sua própria substância !
As regras que se devem seguir, j á as havemos
estabelecido. É inútil, se não impossível, entrar em
pormenores : traçar o caminho que o gênio deve se
guir é circunscrever em alguns gestos as infinitas
expressões da fisionomia humana. Quando virdes
O CRITÉRIO 185
o homem de gênio abalançar-se brioso à sua gigan
tesca carreira, não lhe dirijais vãs palavras, estéreis
conselhos. Dizei somente : " Imagem da Divindade,
vai cumprir os destinos que te assinalou o Criador ;
mas não esqueças teu princípio e fim ! Despregas
o vôo e não sabes aonde vais ; levanta os olhos ao
céu e pede a quem te deu o ser que te mostre Sua
Vontade : A vontade de Deus I eis a tua grandeza,
eis a tua glória ! "
CAPíTULO XIX
A inteligência, o coração e a imaginação
I
DIRECÇÃO E USO DAS FACULDADES DA ALMA.
DIDO. ALEXANDRE
Disse eu no capítulo XII que, em certos casos,
é necessário, para chegar à verdade, exercer simul
tâneamente muitas faculd·ades diferentes, entre as
quais nomeei o sentimento. Efectivamente assim é,
quando se trata de· verdades que tenham alguma re
lação com esta faculdade, como o belo, o sublime e
outras ; mas é certo também que esta observação se
não aplica às verdades de uma outra ordem, às ver
dades que em nada dizem respeito às faculdades de
sentir.
Se quero apreciar as belezas que V ergílio se
meou no episódio de Dido, não é ao raciocínio que
188 O CRITÉRIO
eu recorro, mas ao sentimento, mas à imaginação ;
ao passo que, para j ulgar, sob o moral, o procedimento
desta famosa rainha de Cartago, imponho silêncio
àquelas faculdades, e aplico friamente, com aj uda da
razão, os eternos princípios da virtude.
Ao ler em Quinto Cúrcio a vida de Alexandre,
vejo com admiração o herói macedônio abalançar
-se às aguai.l do Gr.ânico, vencer em Arabela, aniqui
lar os exércitos do grande rei, e submeter logo o
Oriente a seu poder. Há nestes factos certa gran
deza, certos rasgos de heroísmo que mal apreciaria
fechando minha alma ao sentimento. A sublime
narração do texto sagrado ( I. Mach. , cap. I ) não se
ria avaliada em seu justo valor por quem não fizes
se mais que analisar com frialdade. "E sucedeu
que Alexandre, filho de Filipe, primeiro rei mace
dônio da Grécia, saindo da terra de Cetim, derrotou
Dario, rei dos persas e dos medos, deu numerosas
batalhas, conquistou todas as praças fortes e, com
seu gládio, matou os reis da terra. Avançou até aos
confins do mundo, apoderou-se dos despoj os das na
ções, e a te1·ra emudeceu em sua. presença. " Quando
se chega a esta última expressão, o livro ·cai das
mãos, e o assombro se apodera da alma. Em pre
sença de um homem, a terra emudece. Aqui, ana
lisar, discutir, epilogar, não é compreender. N ão,
certamente ; esqueço a filosofia e seus preceitos ; a
minha imaginação se inflama ; deixo minha alma
b CRIT!tRIO 189
sentir ; vej o o filho de Filipe sair da terra de Cetim
e marchar a passos de gigante até aos confins do mun
do ; e, se o ouso dizer, ouço o silêncio da terra tomada
de espanto, emudecer diante dele. Agora, se me pro
ponho examinar a j ustiça e utilidade das conquistas
do príncipe macedónio, corto as asas à imaginação,
imponho silêncio ao entusiasmo ; esqueço o jovem
monarca e seus imortais companheiros de armas,
acima dos quais ele se eleva como o Júpiter da fá
bula entre os deuses que lhe fazem cortej o ; já não
vej o, já não escuto senão os princípios eternos da
justiça e os direitos imprescritíveis da humanidade.
Afasto de mim o que poderia ser grande obstáculo,
a imparcialidade da razão ; a auréola do conquista
dor me encobriria o agressor. inj usto, e me inclina
ria a indulgência para com tanta glória e tanto hero
ísmo, e lhe perdoaria que no auge da sua glória, na
idade de trinta e tres anos, se prostre no leito e co
nheça que vai morrer : Et post hcec deciclit in lectum
et cognovit quia moreretur. ( Mach., li v. I, cap . I ) .
II
INFLU1tNCIA DO CORAÇÃO SOBRE A RAZÃO.
CAUSAS E E:FEITOS
É incontestável a influência das paixões sobre
o coração ; procurarei portanto demonstrar esta re-.
190 O CRITÉRIO
conhecida verdade ; mas o que não há sido bastante
observado é a influência que exercem sobre o espí
rito relativamente às verdades que parecem nada
ter que ver com nossas acç.ões. No entanto, talvez
seja este um dos pontos mais importantes da arte
de pensar, e eis por que me proponho expô-lo com al·
guma extensão.
Se a nossa alma fosse unicamente dotada de in�
teligência, se pudesse pôr-se em relaç.ão com os ob
jectos sem por eles ser afectada, sucederia que sendo
estes obj ectos os mesmo.�., nós. os veríamos sempre do
mesmo modo. No caso em que a vista, a distância,
a quantidade e dir8cçào da luz são as mesmas, tam
bém a impressão é a me.Jma ; porém, se uma destas
condições muda, a impressão muda igualmente. O
objecto que a excita nos parece maior ou menor, de
uma cor m.ais ou merws viva, modifica-se ou trans
forma-se inteiramente. A lua conserva sempre a
mesma f).ge:;:·a, e Dão obstante nos apresenta conti
nuamente variedade de fases ; um rochedo informe
e desigual se nos apresenta ao longe como uma
cúpula que coroa um soberbo edifício, e um monu.
mento que visto ao longe é uma maravilha de arte,
a distância se nos afigm·a uma penha irregular, lan
çada ao acaso na encosta do monte.
O mesmo acontece com o espírito ; os mesmos
c-bjectos se mostram com aspectos diferentes, não
só a pessoas diversas, mas até à mesma pessoa. Em
O CRITÉRIO 191
um instante, um véu se estende sobre nossos olhos ;
muda a cena, e nós somostransportados a um outro
mundo, tudo tomou outras formas, outras cores.
Dir-se-ia que os obj ectos foram tocados pela vara
de um mágico.
O mágico somos nós mesmos, é nosso próprio
coração ; nós é que mudamos, por isso tudo muda em
volta de nós. Quando nos embarcamos, o porto de
onde partimos, a praia, as casas, os montes, tudo
parece fugir de nós, e na realidade só a embarcação
é que se moveu.
E note-se que esta mudança não se realiza tão
sõmente quando a alma está comovida e as paixões
exaltadas ; no meio de uma tranqüilidade aparente
sofremos freqüentemente esta altéraç.ão no modo
de sentir e j ulgar, alteração tanto mais perigosa,
quanto menos se fazem sentir as causas que a pro
duzem. Tem-se dividido as paixões em muitas clas
ses, mas, ou porque esta classificação filosófica as
não compreenda a todas, ou porque de umas se de
ri vam outras, filhas ou transformações das primei
ras, o certo é que quem observa atentamente a gra
dação e variedade de nossos sentimentos, julgará
estar assistindo às mudáveis ilusões de uma visão
fantasmagórica. Há momentos de bonança e mo
mentos de mau humor e momentos de bondade, mo
mentos de dureza e de doçura, de abatimento e de
fi rmeza, de entusiasmo e de desalento, de alegria e
192 O CRITÉRIO
de tristeza, de orgulho e de humilhação ; há momen
tos de esperança e de desespero, momentos de paci
ência e de cólera, de prostração e de actividade, de
expansão e de recolhimento, de generosidade e de
avareza, de perdão e de vingança, de indulgência e
d-e severidade, de bem-estar e de indisposição, de té
dio e de receiu, de gravidade e de leveza, de eleva
ção e frivolidade, momentos sérios e outros cheios
de chistes . . . Mas onde iremos p-arar ? Quem po
deria enumerar as modificações que pode experimen
tar a nossa alma ? Menos mudável é o mar, o mar
açoutado pelos tufões, movido pelos zéfiros ou enru
gado pelas brisas da manhã, ou imóvel sob uma at
mosfera de chumbo, dourado pelos raios do sol nas
cente, branqueado com a luz do astro das noites, mar
chetado com as estrelas do firmamento, plúmbeo
como o rosto d·a morte, brilhante como os fulgorel'\
do sol do meio dia, tenebroso e negro como a boca
de uma sepultura.
III
UM Só DIA DA VIDA
É numa bela manhã de Abril ; o sol levanta-se no
horizonte, matizando com as tintas mais finas as
nuvenzinhas que em torno dele flutuam nos ares, e
em todas direcções espalha as suas madeixas de luz,
O CRITÉRIO 193
----- --------------------------------------
semelhante à dourada cabeleira de um menino ; os
pássaros despertam cantando, como para festejar a
chegada do dia. Tudo respira paz e: harmonia ; tudo
fala de uma Providência benfazeja.
Um homem contempla este -espectáculo e a sua
alma expande-se às doces e reconhecidas emoções ;
sopram-lhe favoráveis as auras da fortuna ; todos o:.
que o rodeiam se empenham em fazer-lhe a vontade ;
nenhuma paixão violenta inquieta seu coração, só a
vinda da alva no céu interrompeu seu plácido sono.
Abre por distracção um livro que tomou ao aca
so ; é um romance como se tem escrito muitos hoj e
em dia. " Um desgraçado maldiz a sociedade que
o não tem sabido compreender. Maldiz a terra e o
céu, maldiz o passado, o presente e o futuro ; maldiz
a Deus. e a si mesmo, e cansado de ver sobre sua ca
beça um sol sombrio e gelado, uma terra árida e de
solada, de arrastar uma existência que pesa sobre
o seu coração e o esmaga, o infeliz trata de pôr fim,
à p rópria existência. Pela última vez, antes de se
atirar ao abismo, medita sobre a natureza, sobre os
destinos do homem, sobre as injustiças da sociedade
e mais cousas destas".
-- Absurdas exagerações ! -- exclama com im
paciência o herói de que falamos. -- Sem dúvida, o
mal existe no mundo, mas também há alguma coisa
que não é o mal. Não ; a virtude não foi banida :
ainda há corações nobres, estou certo disso. Gra-
194 O CRITtRIO
ças ao céu, os grandes crimes são excepções. A
maior parte de nossos erros e crimes provém de
nossa fraqueza, além de que estes erros e crimes pre:
j udicam menos a outrem do que a nós mesmos. Não !
a felicidade não é impossível . Embora os infortú
nios sej am numerosos, inj usto seria imputá-los to
dos à maldade do homem. A própria natureza daE
coisas dá a razão destes misérias, que em todo o caso
estão longe de ser horríveis como alguns se compra·
zem em pintá-las. Esta literatura é falsa debaixo
de todos os pontos de vista !
Dizendo isto, fecha o livro, e afastando de si os
tristes pensamentos, abandona-se de novo às doces
distracções que o encanto da paisagem nele desperta.
Decorre o tempo, chega a hora das ocupações.
O dia não será tão belo como a manhã parecia pro
metê-lo ; o céu começa a toldar-se. O nosso opti
mista foi chamado fora de casa ; a chuva cai a tor
rentes, e numa rua estreita e lamacenta, um cava
leiro que passa a trote, não atende a que deixa os
pedestres todos enlameados dos pés até à cabeça.
Como ! acaso por tão pouco mudaria de opiniões !
Não ; mas j á a vida lhe não é tão risonha, a sua filo··
sofia ensombrou-se como o céu. Todavia o sol não
desaparecera para sempre, e posto que o benigno fi
lósofo desta manhã não encomende muito caridosa
mente o sinistro cavaleiro, nem por isso acusa ah1-
da assim a humanidade inteira.
O CRinRlO 195
Depois procura um amigo por causa de um ne
gócio da mais alta importância. Recebem-no com
frieza e dão-lhe poucas esperanças sobre a petição.
Retira-se desanimado e trist€. As suspeitas não tar
dam a tornarem-se em certeza. A verigúa que está
sendo vítima de um trama odioso, que seu amigo o
traiu. Não falta quem o lastime, quem lhe prodiga
lize exortações e conselhos, mas ninguém trata de
lhe ministrar auxílio ; além disso é já tarde para pre
�aver o perigo !
A perda é imensa, a ruína é completa. Toda a
t-)Sperança está para sempre perdida. Alquebrado
pela dor, entra em casa para se entregar inteiramen
te nos braços do desespero. O livro que lia de ma
nhã está ainda sobre a mesa ; à sua vista lembram
-lhe as p rimeiras impressões do dia . " Oh ! - excla
ma ele em seu interior - quanto me enganava re
putando em exageração as infernais pinturas que os
homens fazem do mundo ! Não pode negar-se, têm
razão, isto é horrível, desesperador, desalentador ;
mas • é a realidade. O homem é um animal depra
vado, a sociedade é uma cruel madrasta, melhor direi
um verdugo que se compraz em atormentar-nos, que
nos insulta e mofa de nossas angústias, ao mesmo
tempo que nos cobre de ignomínia e nos dá a morte.
Não há boa fé, não há amizade, não há gratidão,
não há generosidade, não há virtude sobre a terra ;
tudo é egoísmo, traição, mentira. Bara tanto so-
196 O CRITÉRIO
frer, porque se nos há dado a vida ? Onde está a
Providência ? Onde está a j ustiça de Deus ?
Como se vê, a doce, pacífica e j udiciosa filoso
fia da manhã trocara-se no mais atroz pessimismo
de sentimentos satânicos. E todavia todas as coi
sas prosseguem na sua marcha ordinária, nada se
mudou. Não se pode dizer que a humanidade se
tornou peor, pelo facto de um homem cair na des
graça. Só ele é que mudou, sua maneira de sentir
já não é a mesma. A amargura de que o seu co
ração está cheio transborda sobre sua inteligência.
Obedecendo às inspirações da dor e do desespero,
vinga-se do mundo pintando-o com as mais negras
cores. E não se creia que procede de má fé. Ele
vê as coisas tais como as p inta, assim como de ma
nhã as pintava tais como as julgava ver.
Quando este homem está sepultado amargamente
nas mais desesperadas considerações, e com a blas
fêmia j á na boca, como última solução dos proble-
•
mas que medita, um amigo entra eu seu quarto, e as-
sim interrompe deste modo o seu monólogo :
- Soube, meu amigo, da traição que se tramou
t:ontra ti.
- Pois o mundo é isto ; é para que vej as o que
vale a amizade.
- Agora o que importa é o remédio.
O CRITÉRIO 197
- Remédio ? . . . É impossível . . .
- Verás que não ; escuta.A notícia da tua
infelicidade chegou ao meu conhecimento na ocasião
em que eu tratava um negócio importante. Podes
avaliar a profunda impressão que me causou. Pedi
logo aos sócios para retirar meus fundos e vir-tos
oferecer. Vê ! o exemplo do bem comunica-se
como o exemplo do mal. Os meus amigos quiseram
seguir-me, também te oferecem os seus recursos.
Estudamos o negócio. É preciso que não haj a perda
de tempo. Previne por tua actividade os manej os
do inimigo. Nesta carteira estão as somas neces
sárias. Adeus, amigo.
A carteira foi cair perto do livro fatal, e tudo
de novo tomou uma face nova. Não, a virtude, a
amizade, o desinteresse não são palavras ôcas e so
noras ! Na manhã seguinte, o sol se levantará puro
e radioso, os passarinhos cantarão ao ar fresco da
manhã a chegada da aurora. A Providência terá
sorrisos, a vida esperanças. Em um só dia, a filo
sofia de um homem, filosofia móvel como o seu co
ração, descreve um círculo inteiro. Como os astros
no céu, depois de uma revolução, ei-la chegada a seu
ponto de partida.
198 O CRITÉRIO
IV
UMA OPINIÃO POLíTICA
Verificaram-se umas eleições em que as forças
musculares tiveram tanto ou mais emprego do que
o vigor do raciocínio e das convicções políticas ; ao
menos assim o opina o partido vencido. Em vão
a campainha do presidente lutou contra as vozes de
estentor e os peitos de bronze ; as discussões dege
neram em pugilato. O nosso herói não pertence
ao partido vencedor ; teve que fugir e esconder-se.
Em todo o caso, não acuseis sua coragem. É pre
ciso não esquecer as considerações de prudência e
decoro.
Seu amor-próprio e suas esperanças foram con
trariadas. A bandeira liberal hasteada ao entrar
n os comícios perdeu a cor sob a tormenta popular,
como estes estofos de medíocre valor que não supor
tam a prova da água. " Isto é uma triste comédia,
iliz ele com ar de convicção profunda ; estamos dan
do ao mundo um espectáculo de bárbaros. o· despo
tismo tem seus inconvenientes, bem o s·ei ; mas entre
dois males p refira-se o menor . O governo repre
�entativo, governo da razão esclarecida e da vontad8
livre, admiro-o eu nos tratados de direito constitu
ci onal ou nas páginas dos jornais. Na realidade, só
O CRITÉRIO 199
aproveita à intriga, à impudência, à audácia.
Estou desenganado. "
Em conseqüência dos distúrbios, declara-se es
tado de sítio, e domina a força militar. Desapa
rece o motim e a cidade recobra a antiga tranqüili
dade. O bom do eleitor toma de novo seus hábitos
pacíficos ; renasce a segurança pública ; insensivel
mente esquece o tumulto das eleições, as vozes de
estentor que abafaram a sua e os perigos em que
havia incorrido.
No entanto, circunstâncias o obrigam a fazer
uma viagem e precisa para isso de passaporte.
À entrada da casa municipal há numerosa guarda
de tropa. Vai a entrar por uma das portas, e a
sentinela o detém bruscamente com maneiras rudes,
pedindo-lhe explicações. Explica-se coono pode, e
pede para que lhe permitam penetrar no interior.
A hora adiantada urge, e ele pede instantemente
qu e o conduzam ao empregado respectivo. Não terá
por ventura direito a alguns favores, ele, o amigo
da ordem, o zeloso defensor do poder ? Mas os em
pregados inferiores, que medem sua polidez pela
importância que se dão no tempo de crise, respon
dem secamente : " E spere pela sua vez. "
Chega enfim a sua vez ; o magistrado o recebe
com desconfiança. Os cabeças do último motim são
activamente procurados. Para que deixar a cidade '?
O magistrado apoquenta-o com mil modos frios,
200 O CRITÉRtO
abaixa a cabeça e não se digna responder ao adeus
que lhe dirige ao partir.
Não importa. Os dissabores que ac·abamos de
descrever não conseguiram modificar suas convic..
ções políticas ; não ; mas quem sabe ? Talvez j á se
não encontre nele a mesma dedicação pelo poder
absoluto. E' bom, diz o despeitado agora, que todo
o governo atenda à dignidade humana, e não se
pode pôr em dúvida qeu o governo absoluto tem certa
rigidez que até nas últimas ramificações da admi
nistração se faz sentir .
Desgraçadamente o magistrado tinha levado
muito longe as suas suspeitas. Denunciado por ele
como homem suspeito, o nosso herói, no momento
de subir à carruagem, é preso, conduzido à prisão,
posto incomunicável, e, apesar das fortes presun
ções de inocência que proélamam um exterior de
cente, uma presença respeitável e aparências de ho
mem pacífico, aí é retido por oito dias. Não era
preciso tanto para bater em brecha, para arruinar
de alto a baixo as suas novas opiniões absolutistas,
j á fortemente abaladas pelas dec·epções anteriores.
A brutalidade da captura, o enfado dos interroga
tórios, o aspecto sombrio da prisão bastam para fa
zer rej uvenescer o seu liberalismo moribundo.
Estuda os direitos do homem, detesta o arbítrio,
abomina o poder absoluto ; faz ardentes votos ( bem
que baixinho e discretamente) para que a liberdade
b CRlTtRíO 2ól
individual, para que a constituição se torne enfim
uma verdade.
Hoj e é muito viva a sua fé política ; será de
Jonga duração ? Aguardemos ; aguardemos que um
novo motim se levante na rua entre clamorosos gri
tos e que venham novas eleições. Difícil será que
as novas convicções resistam a tão dura prova.
v
ANSELMO E AS SUAS VARIAÇõES SóBRE A
PENA DE MORTE ( * )
Anselmo, j ovem dado a o estudo das altas ques
tões de legislação, acaba de ler eloqüente discmso
contra a pena de morte. O irreparável da condena
ção do inocente, o repugnante e horroroso suplício,
ainda quando o sofra o verdadeiro culpado ; a inu
tilidade de tal castigo para extirpar ou diminuir o
crime, tudo está pintado com vivas cores, com pin
celadas magníficas, tudo realçado com descrições
patéticas, com casos que fazem estremecer.
Acha-se o j ovem profundamente comovido, crê
meditar e não faz mais do que sentir; acredita ser
( * ) Este parágrafo falta na tradução de João Vieira.
Traduzimo-lo do original castelhano. (Nota do revisor) .
202 O CRITÉRIO
filósofo que j ulga, quando não passa de homem que
se compadece. Em seu conceito é inútil a pena de
mort€ ; e, ainda quando não fora inj usta, a inutili
dade é o bastante para fazer altamente criminosa a
�ua aplicação. É este um ponto em que há-de a so
ciedade reflectir seriamente para libertar-se do cos
tume cruel que lhe hão testado gerações menos ilus
tradas. Nada deixam para desej ar as convicções
do novo adepto ; nelas se combinam razões sociais e
humanitárias ; segundo parece, nada fora capaz de
comovê-las.
Fala o j ovem filósofo sôbre o assunto com um
magistrado de profundo saber e larga experiência,
o qual opina ser a abolição da pena de morte uma
ilusão irrealizável . Desenvolve primeiramente os
princípios de j ustiça em que se fundamenta, pinta
com vivas cores as fatais conseqüências que resul
tariam de semelhante providência, retrata os ho
mens desalmados zombando de toda outra pena que
não sej a o último suplício ; recorda as obrigações da
sociedade na protccção do fraco e do inocente ; relata
alguns casos desastrosos em que ressaltam a cruel
dade do malvado e os padecimentos da · vítima.
Já o coração do j ovem novas impressões experimenta ;
santa indignação exalta o seu peito, infl'ama-o o zelo
da j ustiça ; identifica-se e eleva-se com a do magis
trado a sua alma sensível ; ufana-se de dominar os
sentimentos de compaixão inj usta, e de sacrificá-los
O CRlTtRIO 203
nas aras dos grandes interesses da humanidade ; e,
imaginando-se sentado já em um tribunal, revestido
da toga de magistrado, parece o coração dizer-lhe :
" Sim, também tu saberias ser j usto ; também saberias
vencer-te a ti mesmo, saberias também tu, se neceR
sário fosse, obedecer aos impulsos da tua consciên
cia e, com a mão no coração e a vista em Deus, pro
nunciar ·a sentença fatal em homenagem à justiça ".
VI
DEVEMO-NOS PREMUNIR CONTRA AS INFLUJ!:NCIAS
QUE O CORAÇÃO EXERCE SOBRE O JUíZO
As disp osições da alma influem poderosamentesobre a razão. Importa não esquecer jamais esta ver
dade. E ' esta a razão por que tão poucos homens che
gam a subtrair-se ao espírito do seu tempo e dominar
-as circunstând,ias particulares que sobre eles im
peram, os p rej uízos da educação, a influência do in
teresse pessoal ; a pôr suas acções e até seus pensa
mentos em harmonia com as prescrições da lei di
vina ; a compreender o que se eleva acima das re
giões do tempo ; a preferir o futuro ao presente.
O que impressiona nossa vista, o interesse ou a
paixão do dia, da hora, do momento, eis o que decide
de nossos actos e mesmo de nossas opiniões.
204 O CRITÉRIO
O que procura e quer possuir a verdade estude
-se e possua-se a si próprio primeiramente ; recolha-
-se diante da sua consciência, e interrogue-se " Tua
alma não está perturbada por alguma p aixão ? Não
oculta em seu seio alguma paixão que o domine ?
Não formas teus pensamentos, j uízos e conj ecturas
sob ·a influência de recentes impressões que, modifi
cando teus sentimentos, modifique também a forma,
a cor, as aparências das coisas ? Pensas e vês as
coisas há muito tempo da mesma maneira ? Não é
desde ontem que pensas e vês assim, desde um ins
tante talvez ; desde que um acontecimento favorável
ou contrário mudou tua fortuna ? Adquiriste luzes
mais intensas e novas provas, ou sõmente novos in
teresses ? Onde se operou a mudança ? na razão ou
nos desej os ? Parecem-te infalíveis os j uízos que
hoj e tens ; se te colocarem em situação diferente, em
outro tempo, j ulgarás da mesma maneira ? "
É fácil d e V·er que este método está ao alcance
de todos, e é o melhor para dirigir o entendimento
e regular o procedimento. Verdade é que às vezes
as paixões se exaltam a ponto de perverterem a ra
zão : nesse caso o homem fica numa espécie de alie
nação mental ; todas as regras se lhe tornam inúteis.
Mas tal não é o efeito ordinário das paixões ; o mais
das vezes não fazem mais do que ofuscarem a inteli
gência ; p ermanece no fundo de nossa alma uma luz
frouxa e vacilante, mas que se não extingue. O bri-
O CRITÉRIO 205
lho desta luz se proporciona à nossa vigilância ; e a
despeito das mais espessas trevas, na maior força
da tormenta, ela é como um farol de verdade que
nos indica o porto, uma vez que tenhamos aprendido
a reflectir, a duvidar de nós mesmos, a não conside
rar os afectos do coração, estes fogos fátuos, como
guias que possam suprir a razão e conduzir-nos por
caminhos rectos.
VII
UM EXEMPLO
As paixões cegam ; verdade é esta que ninguém
ousa contestar. Não é o conhecimento do princípio
abstracto e vago que nos é preciso, mas sim a obser
vação perseverante da influência das paixões., o co
nhecimento prático e minucioso dos ef.eitos desta
influência sobre o entendimento-. Este conhecimen-
to só se adquire por longo e penoso exercício. E is
por que insisto, por que multiplico os ex,emplos.
Pois não se resume toda a filosofia em chamar a
atenção da alma sobre si mesma ?
Temos um amigo cujas belas qualidades nos
encantam. Não perdemos ensej o de exaltar seu
mérito ; não podemos duvidar de sua amizade ; as
provas dá-as ele. Todavia, uma vez nos dá motivos
de nos queixarmos dele : desde esse momento tudo
muda. Nem seu espírito é tão brilhante, nem seu
206 O CRITtRIO
carácter tão doce, nem sua alma tão bela, nem seu
trato tão amável, nem seu acolhimento tão benévolo ;
temos o que lhe exprobar em todas as coisas. O gol
pe que nos fere rasgou o véu : os nossos olhos abrem
-se finalmente.
E como ! haviam-nos enganado a este respeito ?
Não : mas a amizade de ontem nos impedia o ver as
imperfeições que nosso ressentimento hoj e exagera.
Não havíamos imaginado que tal am igo nos pudesse
1·ecusar um favor, testemunhar pouco desvelo para
nos obrigar, esquecer, num momento de mau humor,
a habitual cortesia. .Em todo o caso, se nos tivés
semos interrogado previamente sobre a possibilidade
do facto : " Ele é homem, teríamos nós respondido,
sujeito às leis da fraqueza humana ; portanto a coisa
é possível. " Para que pois hoje tanta severidade ?
Quem o não vê ? fomos feridos. O que pensa, o que
aprecia em nós j.á não é a razão esclarecida por factos
novos, sim o coração irritado, ulcerado ; cremos j ul
gar e não fazemos mais que sentir.
Há um meio de j ulgar nosso próprio juízo.
Imaginemos que a ofensa se não dirige a nós. As
circunstâncias serão as mesmas, as relações igual
mente afectuosas, igualmente íntimas entre o ofensor
e o ofendido ; não importa ! do mesmo facto não tira
remos as mesmas conseqüências. Reconheceremos as
inj ustiças do amigo, censurar-lhas-emos, talvez com
certa emoção ; descobriremos em seu carácter um
O CRITÉRIO 207
dt:>feito que nos era desconhecido ; mas nem por isso
deixaremos de apreciar as suas boas qualidades ;
não o j ulgaremos indigno da nossa estima, não serão
menos estreitos os laços de nossa amizade.
Se portanto as mudanças de nossa opinião po
dem ser, como efectivamente são, não um defeito,
um erro, uma inj ustiça ou um capricho de nosso
amigo, mas sim um defeito, uma injustiça, um erro,
um capricho de nosso próprio coração, convenhamos
que o sentimento é base bem pouco sólida__ para esta
belecer nossos j uízos. Quantas vezes bastaria, para
os rectificar, estudar as coisas com desinteresse e a
sangue frio !
VIII
CA VILOSAS V ARIAÇóES DOS JUíZOS POLíTICOS
Estão no poder nossos amigos políticos ou os
que mais nos convêm, e dão algumas providências
contrárias à lei . " As circunstâncias, dizemos nós,
podem mais que os homens e as leis ; nem sempre
o governo pode ajustar-se a estricta legalidade : às
vez€s, o mais legal é o mais ilegítimo ; demais, como
os indivíduos, os povos e os governos têm um ins
tinto de conservação que tudo sobrepuj a, uma ne
cessidade, a cuja presença cedem todas as considera
ções e direitos. "
208 O CRI�RIO
Se os nossos amigos confessam abertamente a
infracção da lei, logo os desculpamos com razões
destas : "É franqueza ; a franqueza é o primeiro de
ver dos governos. Para que se há-de enganar os
povos ? Que de mais imoral do que um governo
de ficções e enganos ? " Se pelo contrário iludem
a lei por meio de uma interpretação derrisória, aber
tamente em oposição com o espírito do legislador :
" Tal é, dizemos, o respeito que consagram às leis,
que se inclinam reverentes perante elas, até nas
mais extremas necessidades. A legalidade é coisa
sagrada ; não faz pouco o governo que, não podendo
salvar o fundo, salva pelo menos as formas e sabe
disfarçar o que o arbítrio tem de irritante. "
S e eo:�tão n o poder os nossos adversârios, tudo
muda. A violação da lei torna-se crime irremissível.
" Respeito às leis ! as leis em primeiro lugar ! onde ire
mos nós parar se o governo se arroga o direito de as
infringir a seu talante ? todo o poder que viola as
leis pretende j ustificar as suas infracções com esta
palavra banal : a necessidade. "
S e confessam francamente a ilegalidade : \' Isto
é aj untar o insulto ao sacrilégio, exclamamos nós ;
ainda se empregassem alguma dissimulação ! mas
não ! o último extremo da impudência é a ostenta
ção da arbitrariedade mais repugnante. Isto não
se tolera".
O ClUTÉRIO 209
Quis o governo salvar as aparências conser
vando as formas legais ? " O pior dos despotismos
é o que se exerce em nome da lei. Por ventura
seria a infracção menos culpável pelo facto de ser
acompanhada de hiprocrisia ? Quando em circuns
tâncias extremas o governo lança publicamente u:m
véu sobre as tábuas da lei, parece por sua franqueza
pedir perdão ao povo e "Prometer que o abuso não
será repetido ; mas, cometer ilegalidades à sombra
da mesma lei, é profanar, é aviltar a lei ; é abusar
da boa fé dos povos, é abrir a porta a todas as de�
sordens ! Quem nao respeita o espírito da lei, tudo
pode fazer em seu nome. Basta que se interprete
a bel-prazer uma expressão duvidosa ou ambígua,
para audacios·amente se violarem as intenções do
legislador."
IX
PERIGOS DE UMA EXCESSIVA SENSIBILIDADE.
OS GRANDES TALENTOS. OS POETAS
Há erros de tal modo evidentes, j uízos tão ma
rdf.estamente impregnados de paixão, que só logram
enganar os que querem ser enganados.
Não é aí que está o perigo ; temam-se muito
mais os sofismas, armados com tanta arte e adorna
dos com tantas seduções que quase se torna impo�·
210 O CRlTtRIO
sível def�nder-se a gente deles. Desgraçadamente
este perigo oculta freqüentemente na palavra e nos
escritos dos homens superiores, como sob as mimo
sas e perfumadas flores, o veneno qu€ causa a morte.
Como estes homens são dotados de sensibilidade
esquisita, as impressões que recebem, vivas, pro
fundas, apaixonadas, decidem soberanamente da
direcção de suas idéias e opiniões ; sua inteligência
penetrante fàcilmente encontra razões €fi apoio da
causa que adoptaram ; fascinam o vulgar das inteli
gências e as dirigem a seu gosto.
Esta será sem dúvida a causa da volubilidade
que se nota nos homens de reconh�cido gênio.
Adoram hoj e o que amanhã detestarão ; o erro que
ora condenam o defendiam ontem como dogma sa
grado. Na mesma obra, associam as mais encon
tradas proposições, ou estawlecem conclusões incon
ciliáveis com os princípios p ostos. Não imputeis
à sua intenção estas estranhas anomali'as ; susten
tam o pró e o contra com a mesma convicção, e
tal convicção a tiram eles da exaltação de um sen
timento. Quando seu gênio se desentranha em ima
gens, em pensamentos grandiosos, não é mais do que
escravo do coração, porém escravo hábil, engenhoso,
que corresponde aos caprichos do senhor oferecen
do-lhe obras primorosas, maravilhas de arte.
Os poetas, os verdadeiros poetas, estes homens
dotados pelo Criador de inteligência elevada, ima-
O CRITÉRIO 211
ginação poderosa, almas de fogo, são os mais atrei
tos a se deixarem levar por estas impressões de mo
mento. Colocados embora nas altas regiões do p c· - ..
samento, não lhes é absolutamente impossível mo
derar seu vôo e j ulgar com prudência e discerni
mento ; mas é inegável que �ecisam de reflexão e
decidida força de vontade mai� do que o geral dos
homens.
IX
NECESSIDADE DE TER IDÉIAS FIXAS
As reflexões precedentes mostram a necessidade
de ter idéias fixas e opiniões formadas sobre as prin
cipais matérias ; e, quando isto não seja dado, muito
importa abstermo-nos de as improvisar e nos abando
narmos às inspirações repentinas . Tem-se dito : os
grandes pensamentos vêm-nos do coração ; acrescen
temos : e também os grandes erros. - O coração não
reflecte nem j ulga ; sente. O sentimento é uma
mola chei·a de potência que põe em movimento e mul
tiplica as faculdades da alma ; quando a inteligência
está de posse da verdade, quando s·egue por bom ca
minho, os sentimentos nobres e puros aumentam
suas forças e aceleram seu impulso ; do mesmo mo
do que os sentimentos ignóbeis ou depravados podem
extraviar o entendimento mais recto. Até os sen-
212 O CRI'rnRIO
timentos bons, exaltados em demasia, são capazes
de nos conduzir aos erros mais deploráveis.
XI
O POETA E O MOSTEIRO
Um viajeiro poeta, indo a atravessar uma so
lidão, ouve o toque de um sino que o distrai das
meditações em que estava absorvido. Não obstan
te sua alma não estar acostumada ao ensino e prá
ticas da fé, era no entanto accessível às inspira
ções religiosas. Esta plangent-e voz do bronze no
meio do deserto lhe comunica indizível melancolia,
grave e severa. Em seguida avista através da ra
magem de grandes carvalhos, e como oculta em
sua sombra, a casa de paz em que a inoc ência ou
o arrependimento encontram ·asilo contra as vãs
agitações do mundo. Aproxima-se, e pede com res
peito e curiosidade que lhe permitam entrar na santa
habilitação. Um velho, cuj a fisionomia transpira
a paz e serenidade, o recebe com doce e simples
cordialidade ; condu-lo à capela, aos claustros, à
biblioteca, a toda a parte em que o viaj eiro pos
sa achar inter.esse de ciência e de prazer. Ser
v-e-lhe de guia o velho monge. Em sua conversação
dá p rova de bom gosto e saber, mostra-se tolerante
para com as opiniões do estrangeiro, sorri docemente
O CRITÉRIO 213
aos seus gracej os e só o deixa para ir modesto e gra
ve onde os seus deveres o chamam. Está docemente
movido o coração do poeta ; o silêncio dos claustros,
oomente interrompido pelo cântico dos salmos, os ob
j ectos piedosos que a c:ada passo se llle apresentam,
o recolhimento e a paz que, por assim dizer, descem
das abóbadas silenciosas, com a luz escassa coada
através das vidraças, as amáveis qualidades, a bonda
de, a condescendência do velho que o acolhe, tudo
o penetra com um sentimento profundo que não sabe
definir ; acha-se subj ugado : Cristo venceu. Bem a
seu pesar chega o momento de partir ; afasta-se pen
sando no mosteiro e levando consigo gratas lembran
ças que por muito tempo viverão em seu pensamento.
Se em tal situação de espírito compraz ao nosso
poeta intercalar em suas relações de viagem algumas
reflexões sobre os institutos religiosos, que vos pa
rece que dirá ? E' bem claro. Para ele as instituições
monásticas ser.ão personificadas naquele mosteiro, e
o mosteiro personificado no venerando velho, cuj a
imagem e lembrança tem presente ao espírito. Contai
com algumas estrofes eloqüentes em favor das ordens
religiosas, anátemas contra a filosofia que as conde
na, imprecações contra as revoluções que as destruí
ram, lágrimas derramadas sobr·e as ruínas e sobre
os túmulos.
Mas, ai do mosteiro e de todas as instituições
monásticas se o monge que recebera o nosso viaj eiro
214 O CRITtRlO
fosse de conversação seca e severa, pouco afeiçoad'J
a belezas literárias e artísticas e de humor nada bom
para acompanhar os curiosos ! Aos olhos do poeta,
o monge desagradável seria a personificação do ins
tituto ; e, em castigo de o haver recebido mal, acusa
do de abater o esp·írito e o coração, apartar os homens
da sociedade, produzir inumeráveis males e nenhum
bem.
E no entanto, em qualquer das suposições, a rea
lidade das coisas permaneceria a mesma. A diferença
estaria tão sõmente no acolhirr.ento frio ou benévolo
que por acaso o viajeiro encontrasse no instituto vi
sitado.
XII
DEVERES DO ESCRITOR, DO POETA, DO ORADOR
E DO ARTISTA
Teríam'os que desenvolver aqui considerações de
alta gravidade sobre o emprego do talento de escre
ver, sobre a dignidade da arte em geral, e principal
mente sobre a elevada missão das artes que, servindo
-se das paixões como de auxiliar, reagem por meio de
coração sobre a inteligencia. A pintura , a escultura,
a música, a poesia, todos os ramos da literatura têm
deveres sagrados que freqüentemente se esquecem.
A verdade e o bem ; a verdade para o espírito, o bem
O CRITéRIO 215
para o coração, ei� os dois obj ectos essenciais da arte,
eis o ideal que as artes devem oferecer ao homem por
meio das impressões que despertam. Esquecendo sua
missão e limitando-se tão sõmente à simples produção
do prazer, tornam-se estéreis para o bem e fecundas
para o mal.
Pôr a arte ao serviço das paixões más ! Não
foi para isso que o artista reoebeu do Criador os pri
vilégios sagrados do gênio ! O orador que se serve
do encanto de sua palavra, que outra coisa é senão um
víl envenenador ? - tanto mais vil, mais odioso,
quanto os meios que emprega são mais pérfidos e
menos se podem garantir. Se a convicção deve ser
um erro, o persuadir é uma traição. Parecerá se
vera esta doutrina, mas é verdadeira. É a lingua
gem da razão submetida às prescrições da lei eterna
que também é severa, porque é imutável e j usta.
Os artistas, os poetas, os oradores, os escritores
que desviam de seu fim os dons que receberam, são
verdadeira peste pública. Faróis enganadores, acen
didos sobre escolhos, perdem aqueles a quem deviam
alumiar ; devem mostrar o porto e mostram o abismo.
Não terão as nações modernas desconhecido os
seus verdadeiros interesses fazendo reviver a elo
qüência popular com queas antigas repúblicas tanto
tiveram que sofrer ? Nas grandes assembleias em
que se debatem os negócios do estado e os grandes
216 ú CRITiRlO
------ - - ·--·-------------
interesses da sociedade, nenhuma voz devia ser es
cutada senão a voz do bom senso, a voz da razão
judiciosa, austera e clara. A verdade não é menos
verdade, a realidade das coisas não muda, por isso
que um orador hábil, excitando o entusiasmo, arras
ta o voto de uma maioria seduzida. O que se de
fende ou impugna é ou não é útil ; ai está a questão ;
o resto não passa de brinco de meninos em que são
envolvidos os mais graves interesses, muitas vezes
sacrificados ao vão prazer de ostentar talentos ora
tórios, e arrancar aplau.'!os.
Tem-se observado que as assembleias deliberan
tes, mormente no começo d·as revoluções, são muitas
vezes como tocadas por um espírito de invasão e se
inclinam a resoluções violentas. As discussões, a
princípio plácidas e moderadas, tomam repentina
mente feições perigosas ; excitam-se os ânimos, obs
curecem-se as inteligências, apodera-se dos espíritos
a exaltação, a exaltação. que vai até ao delírio. Con
sultai, interrogai em particular até um dos membros
da ass0mbleia ; em graus diferentes todos compre
endem, amam e buscam a verdade ; como é q,ue en
tão a assembleia parece uma reunião de homens no
estado de demência ? Eis a razão. A impressão
de momento domina tudo, venc·e tudo, arrasta tudo ;
esta impressão apaixonada, ardente, propaga-se pela
simpatia com a rapidez da electricidade ; adquire
progressivamente uma força irresistível, e a centelha
O Cti.ITtRIO 217
torna-se em alguns segundos em espantosa confla
gração.
O tempo, os desenganos, a experiência e a des
graça instruem algumas vezes os povos. Sua sensibi
lidade, como no indivíduo, se embota ; a fascinação da
palavra torna-se menos temível para eles. Triste re
médio que não cura o mal senão pelo excesso do mal.
Enfim, como nos não é dado mudar o coração do ho
mem, tributemos os nossos respeitos àqueles que ao
serviço da j ustiça e da verdade empregam as armas
que tantos outros têm posto ao serviço do erro e do
mal. Ao lado do veneno costuma a Providência colo
car o antídoto .
XIII
PENSAMENTOS REVESTIDOS DE IMAGENS.
FONTE DE ERROS
Os erros do sentimento não são os únicos contra
que nos tenhamos de premunir ; há outra espécie de
les, menos temidos, talvez, e não menos perigosos :
são os pensamentos revestidos de imagens brilhantes.
É indizível o poder dos artifícios da linguagem e o
perigo que podem ocultar. Um pensamento superfi
cial, apresentado com traj e grave e filosófico, adquire
a aparência da profundeza. Uma trivial vulgaridade,
nobremente ataviada, chega a disfarçar seu plebeís-
218 ú CRIT:éRiú
mo ; e tal proposição falsa que, secamente enunciada,
mostraria logo a sua falsidade, coloca-se, graças ao
véu engenhoso com que a cobrem, entre as verd·ades
incontestáveis.
Os escritores profundos, sentenciosos, ou que
visam à profundeza, freqüentemente oferecem este
defeito. Como a sua palavra é escutada com tanto
mais assentimento e respeito, quanto mais parecem
profundamente convencidos, segue-se daí que o leitor
toma por axiomas inabaláveis, por máximas de eter
na verdade, o que não é às vezes senão o sonho
do filósofo, um l'aço armado à boa fé dos imprudentes.
CAPíTULO XX
Filosofia da história
I
FILOSOFIA DA HISTóRIA ; O QUE :1!:.
DIFICULDADES DESTA CI:I!:NCIA
Consideramos aqui a história, não sob o ponto de
vista crítico, mas sim sob o ponto de vista filosófico.
Os princípios que nos devem guiar na crítica dos
factos foram expostos no capítudo XI.
Qual é o método mais a propósito para compre·
ender o espírito de uma época, formar idéias claras
e exactas sobre o seu carácter, penetrar as causas
dos acontecimentos e assinalar a cada um seus pró
prios resultados ? Isto equivale a perguntar qual é
o método conveniente para se adquirir a verdadeira
filosofia da história.
220 O CRITÊRIO
-- --- - - ----- - -- - · · - · ·--------------
Será com a lição dos bons autores ? mas quais
são eles ? quem nos assegura de que os não guiara a
paixão ? quem há-de ser o fiador de sua imparciali
dade ? onde estão os historiadores euj os escritos en
sinem ou contenham a filosofia da história ?
Batalhas, negociações, intrigas da corte, vida e morte
dos príncipes, mudança de dinastias ou de governos ;
eis o fundo comum de todas as narrações históricas.
Do indivíduo, de suas idéias, sentimentos, necessi
dades, gostos, caprichos, costumes, nem palavra ;
nada que nos faça assistir à- vida íntima das famí
lias e dos povos ; nada que no estudo da história nos
faç·a compreender a marcha da humanidade.
Sempre na política, isto é, na superfície ; sempre no
a v ultado e ruidoso, jamais nas entranhas da socie
dade, na natureza das coisas, naqueles sucessos que,
por Tecônditos e de pouca aparência, não deixam de
ser da maior importância.
Na actualidade conhece-se esta lacuna e traba
lha-se para a pl'eencher. Não se escreve a história
sem que se procure filosofar sobre ela. Ora isto,
que em si é muito bom, tem outro inconveniente,
qual é, que em vez da verdadeira filosofia da história
se nos propina não raro a filosofia do historiador.
Mais vale não filosofar que filosofar mal ; se para
profundar a história a transtorno, melhor fora que
me limitasse ao sistema de nomes e datas .
O CRITÉRIO
II
UM MEIO DE PROGREDIR NA FILOSOFIA DA
HISTóRIA
221
É mister ler os historiadores, e à míngua dos
bons, áqueles que tenhamos, não obstante seus de
feitos. Mas isso não basta. Há um método que
mai s seguramente conduz ao fim : o estudo imediato
dos monumentos ; digo imediato, porque cumpre não
se contentar com o que deles diz a tradição falada
ou escrita, mas sim vê-los com os próprios olhos.
Dir-me-ão que tal trabalho é penosíssimo ; im
possível para muitos ; difícil para todos. De acordo ;
e todavia ouso afirmar que em muitos casos este
método poupará muito tempo e fadiga. A vista
de um edifício, a leitura de um documento original,
um facto, uma palavra, na aparência insignifican
tes, e passados despercebidos ao historiador, nos
dizem mais, nos falam com mais clareza, verdade
E' exactidão, que as mais longas narrações.
Um historiador quer, por exemplo, pintar a
simplicidade dos costumes patriarcais : com muita fa
diga e cuidado recolhe abundantes notícias sobre os
tempos mais remotos, e esgota o cabedal de sua eru
dição, filosofia e eloqüência para fazer compreen
der o que eram aqueles tempos e aqueles homens, e
222 O CRITÉRIO
me oferece o que se chama uma descrição completa.
Apesar de quanto nos diz, encontro outro meio mais
simples, qual é assistir às cenas onde se me apre
senta em movimento e vida o que trato de conhecer.
Recorro aos escritores daquelas épocas, que não são
muitos nem muito volumosos, e aí encontro retratos
fiéis que me deleitam e instruem. A B íblia e Ho
mero nada deixam a desej ar.
111
APLICAÇÃO DESTES PRINCíPIOS A HISTóRIA DO
ESPíRITO HUMANO
O espírito humano tem a sua história, assim
como a têm os sucessos exteriores. História tanto
mais preciosa, quanto nos deve revelar o fundo de
nossa natureza e as causas que sobre ela podem obrar.
Muito se tem escrito sobre as diversas escolas que
pertencem ao domínio da filosofia, e sobre o carácter
� tendências do espírito humano em certas épocas
Assim não faltam os historiadores de inteligência ;
porém, se quereis saber mais que algumas generali·
dades sempre incompletas e não raro totalmente
falsas, preciso vos será aplic·ar a regra estabelecida :
ler os autores da época que se pretende conhecer.
Mas não se entenda que é preciso lê-los todos ; este
O CRITÉRIO 223
método seria impraticável para o geral dos leitores ;
uma só página origin'al nos dará a conhecer mais
ao vivo o espírito de um escritor, o espírito de uma
época, que o mais minucioso historiador.
IV
EXEMPLO TIRADO DA FISIONOMIA DO HOMEMUm homem estudioso pode, sem ter visto as
coisas de per si, chegar a conhecimentos históricos .
Todavia vão longe destes conhecimentos aqueles que
chamaremos intuitivos. Sabe mas não viu. Estará
em estado de contar, mas não saberá p intar. Expli
quemo-nos por meio de uma comparação. Fala-se
de um personagem importante que não conhecemos ;
e, curioso de saber alguma coisa da figura e ma
neiras deste personagem, indagamos dos que o viram.
Dir-nos-ão, por exemplo, que ele é de estatura mais
que regular ; que tem a fronte larga e descoberta,
cabelos negros caindo com certa negligência, olhos
grandes, vista penetrante e viva, o rosto pálido c
cheio de expressão ; que freqüentemente mostra nos
lábios amável sorriso, sorriso às vezes malicioso ;
que sua palavra é grave e pausada, mas que, logo
que se anima, se torna rápida, incisiva, cheia de
fogo. Deste modo, para nos darem uma idéia tão
224 O CRlTtRIO
aproximada como possível da realidade, fazem-nos
um retrato físico e moral.
Se estas indicações são exactas, se o retrato se
parece com o original, temos uma idéia da pessoa
e estamos nos casos de satisfazer por nossa vez a
curiosidade doutrem. Mas será o nosso conhecimen
to perfeito ? Poderemos pelo esboço criar uma ima
gem exactamente semelhante à realidade ? Supo
nhamos que efectivamente um pintor de talento se
propõe reproduzir esta imagem na tela ; apresentará
retrato parecido ?
Se nos falam circunstanciadamente da fisiono
mia de uma pessoa, logo nossa imaginação cria uma
figura que cremos como copiada do modêlo. Ao
aparecimento do original, vemos tão grandes dif•' . .
renças, que somos forçados a retocá-la em mil traços
essenciais, ou a fazer de novo a obra de nosso pen
samento. É que há coisas de que se não pode for
mar idéia clara e precisa, independentemente de as
ver com os olhos, e estas coisas são mui numerosas
e sumamente delicadas, imperceptíveis em separado,
e cuj o conj unto forma o que chamamos fisionomia.
Como explicareis vós a diferença de duas pessoas
muito parecid·as ? Por meio da vista, não há outro.
Não sereis capazes de dizer em que duas pessoas di
ferem ; todavia, há entre elas não sei quê que não
permite que as confundamos ; este não sei quê vê
-se, não se pode definir.
O CRITÉRIO 225
Eis meu pensamento : nas obras de crítica, en-·
contramos descrições sábias, extensas, escrupulosas,
mesmo exactas, do estado do espírito humano em
certas épocas ; e, todavia, apesar das descrições não
logramos conhecer estas épocas. Se depois da lei
tura de um livro deste gênero, submetemos à nossa
apreciação fragmentos tirados de diferentes aub
res e escritos em épocas diferentes, não saberemos
classificá-los segundo suas datas, nem a que autorefl
pertencem. Em vão evocamos as idéias e aprecia
ções que a tal respeito havíamos recolhido, não fl
camos menos arriscados a cair em equívocos
grosseiros e nos mais estranhos anacronismos.
Quanto não seria menor a dificuldade, se tivéssemos
lido, se tivéssemos -estudado os originais ! Bem pode
ser que· mostrássemos menos erudição, crítica menos
sábia ; o que ousamos afirmar no entanto é que nossos
j u ízos lograriam ser mais nítidos e decisivos . " Os
pensamentos, diríamos nós, o estilo, a linguagem, reve
Iam-nos um escritor de tal época. Este fragmento
é apócrifo, este outro tem o cunho de outro tempo " ;
e assim os iríamos classificando com acerto, sem
medo de nos enganarmos, bem qu e nem sempre
pudéssemos explicar o porquê de nossos j uízos àque
les que , como nós, não tivessem freqüentado e visto
com os próprios olhos esses ilustres defuntos.
" Como é que encontramos aqui tal qualidade ?
e como é que não encontramos uma outra ? É-nos
226 O CRITtRIO
impossível, diríamos nós, satisfazer a todos os es
crúpulos ; mas o que podemos afirmar é que os per
sonagens de que se trata nos são perfeitamente co
nhecidos. .. Como se diria : " Não me posso enga,
nar sobre sua fisionomia ; vi-os muitas vezes . ..
CAPfTULO XXI
Religião
I
INSENSATOS RACIOCíNIOS DOS INDIFERENTES EM
MATI:RIA DE RELIGIÃO
Não pretendo apresentar aqui um tratado com
pleto de religião ; bastará ao plano que me propus
fazer umas reflexões tendentes a dirigir o entendi
mento nesta importante matéria, e espero que
estas reflexões provem até à evidência que os indi
ferentes ou incrédulos são maus pensadores .
A vida é curta, a morte certa ; daqui a poucos
anos o homem que hoje desfruta a saúde mais ro
busta e louçã, haverá descido ao túmulo, e saberá
por experiência o que há de verdade nos ensina
mentos da religião sobre os destinos da vida fu-
228 O CRITÉRIO
tura. Nem sua incredulidade, nem suas dúvidas,
nem suas invectivas e sátiras, nem sua indiferença,
nem seu insensato orgulho destroem a realidade dr:. ·::
coisas. Se existe outro mundo, onde se darão prê
mios aos bons e castigos aos maus, não deixará de
existir, por isso que ao homem compraz negá-lo ; de
mais, esta caprichosa negativa não melhorará o des
tino que segundo as leis eternas me haj a de caber.
Quando soar a última hora, forçoso me será morrer
e encontrar-me com o nada ou com a eternidade.
Este negócio é exclusivamente meu ; ninguém se
porá em meu lugar na outra vida privando-me do
bem ou livrando-me do mal. Estas considerações
me mostram, com toda a evidência, a máxima im
portância da religião ; a necessidade que tenho de sa
ber o que nela há de verdade. O homem que diz :
" Não me importa saber ! ou sej a verdade ou men
tira, não quero pensar nisso ! " não é uma criatura
bem insensata ?
Um viaj eiro encontra em sua rota um caudalo
so rio que precisa atravessar. Poderá passar a
vau ? Não sabe. Como ele muitos viaj eiros para
dos na margem ponderam a profundidade das · águas
e são acordes em declarar que uma morte certa es
pera o imprudente que ousar atravessá-lo. Que me
importam essas questões ? diz o insensato ; e se ar
roj a ao rio, sem olhar por onde. E is-aqui o indife
rente em matéria de religião.
O CRITÉRIO 229
II
O INDIFERENTE E O Gf::NERO HUMANO
A religião sempre foi e ainda é a preocupaçã0
geral d·a humanidade. Os legisladores fizerarn dei�
a base de suas constituições ; os sábios tomaram-na
por obj ecto de seus -estudos mais profundos ; os mo
numentos, as leis, os escritos dos séculos passados
atestam as tendências religiosas do espírito huma
n o ; as obras teológicas enchem as bibliotecas, e ain
da hoj e em dia a imprensa não cessa de as multipli
car. Mas eis o parecer do indiferente : " T empo
perdido ! diz ele, questões fúteis ! Para j ulgar, que
preciso eu conhecer ? Estes sábios são uns insen
satos, estes legisladores são uns néscios, a human i
dade inteira é uma miserável ilusa, todos perdem
lastimosamente o tempo em questões que nad'a im
portam. " Oh ! orgulhosa fraqueza ! deplorável degra-
dação do espírito humano ! Parece-me ver os sá
bios e legisladores de todos os tempos levantarem-se
e responder : " Quem és tu para assim nos ultraj ar,
para desprezar os mais profundos sentimentos do
coração, as mais queridas tradições da humanida
de, para declarar sem importância o que sem�foi
·a .p-reocupação da terra inteira ? Quem és tu ? Des-
230 O CRITÉRIO
cobririas por ventura o segredo de vencer a morte.
pó que o vento dispersará amanhã ? Sabes a sorte
que te espera na região desconhecida, ou esperas
poder mudá-la a teu bel-prazer ? São para ti coisa
indiferente o castigo ou a recompensa ? E se exis
tir esse j uiz, de quem não queres ocupar-te, quando
te chamar perante seu tribunal responder-lhe-ás que
não te importas de suas determinações e existência ?
Antes de soltar ess·as palavras insensatas, passa
uma vista sobre ti mesmo, pensa nessa débil orga
nização que o mais débil acidente é capaz de trans
tornar, e que breve tempo basta para consumir !
Assenta-se então sobre um túmulo, concentra-te e
medita !
III
PASSAGEM DA INDIFERENÇA AO EXAME
Curado o pensador da doença do indiferentis
mo, convencidode que a religião é o mai& ponderoso
interesse da vida, deverá prosseguir ainda e · racio
cinar assim : Será provável que todas as religiõE>s
não sej am mais que um montão de erros, e que a
doutrina, que as rejeita a todas, seja a verdadeira ?
Deus ! eis o que todas as religiões estabelecem
ou supõem em primeiro lugar. Há um Deus ? O
0 CRITÉRIO 231
t��iverso foi criado- e por quem ? Levanta os olhos
ao céu, distende a vista pela face da terra, e_stud�te.
�Ui _mesmo, e, vendo em tudo uma ordem e' grandeza
admirável, dize, se assim o ousas : "O acaso é que
fez o mundo, eu sou obra do acaso ; <i obra me es
panta, porém o obreiro não existe ; o edifício é ad
mirável, mas construiu-se a si mesmo e sem arqui
tecto. Reina a ordem sem ordenador, sem sabedo
ria para conceber o plano, sem poder para exe
cutá-lo . ., Este raciocínio que é manifestamente ab
surdo, ainda quando se aplica às obras mais insig
nificantes, será admissível quando se trata das estu
pendas maravilhas do universo ? Loucura nas obras
do homem ! Sabedoria nas grandes obras de Deus !
IV
NÃO É POSSíVEL QUE TODAS AS RELIGiõES SEJAM
VERDADEIRAS
São muitas e muito várias as religiões que do
minam nos diferentes pontos da terra. Será possí
vel que todas sej am verdadeiras ? O sim e o não,
com respeito a uma coisa, não podem simultânea
mente ser a verdade. Os j udeus ainda esperam o
Messias ; os cristãos afirmam que j á veio à terra e
cumpriu a missão que tinha de cumprir.
232 O CRIT:éRlO
Os mussulmanos proclamam Maomet como gran
de profeta ; os cristãos acusam-no de impostor. Os
católicos admitem a infalibilidade d'as discussões da
Igrej a em matérias de dogma e de moral ; os protes
tantes negam esta infalibilidade. Ora, a verdade
não pode ser e deixar de ser ao mesmo tempo : ou
uns ou outros se enganam. Pretender que todas as
religiões são verdadeiras é portanto um absurdo .
Ainda mais ; todas as religiões se proclamam desci
das do céu. A que conseguir provar esta origem
essa será a verdadeira ; as outras não passam de
ilusão e engano.
v
É IMPOSSíVEL QUE TODAS AS RELIGI6ES SEJAM
IGUALMENTE AGRADA VEIS A DEUS
Será possível, que todas as religiões, que todos
os cultos sejam agradáveis a Deus ? Mas a Verda
de infinita não pode amar o erro ; mas o mal não
pode agradar à infinita Bondade. Afirmar, por
tanto, que todas as religiões são igualmente boas,
que por meio de um culto, qualquer que ele sej a, o
homem preenche seus deveres para com Deus, é blas
femar da verdade, é insultar a sabedoria e bondade
do Criador.
O CRITÉRIO 233
VI
É IMPOSSíVEL QUE TODAS AS RELIGióES SEJAM
INVENÇÃO HUMANA
" Filhas da superstição, do interesse ou do
método, todas as religiões, diz o incrédulo, são in
venções humanas. " E quem foi o inventor ? A ori- j ' i
gem das religiões perde-se na noite dos tempos. Por :
toda a parte aonde chega a sociedade dos homens, aí
vemos também aparecer lh'-1 sacerdote, um altar, um
culto. Quem foi pois este gênio inventor cuj o nome
se apagou da memória dos homens, e do qual as ge
rações, por toda a face da terra, transmitiram as
. doutrinas ? Se a invenção teve origem num povo
· civilizado, como é que os povos bárbaros e até os sel
vagens a adaptaram ? E, se a barbaria foi seu berço,
então como entrou no coração das nações cultas ?
Di reis :" A religião é uma necessidade, data das
mais antigas sociedades ." Mas a quem foi revelada
esta necessidade ? Quem primeiro achou os meios
de corresponder a este profundo instinto ? por quem
foi concebido este sistema tão próprio a domar e d i
rigir o homem ? e uma vez feito o descobrimento,
quem teve em sua mão todos os entendimentos, to
dos os corações para lhes comunicar essas idéias e
sentimentos que fizeram da religião uma verdadeira
234 O CRitiRIO
necessidade, e, para assim dizer, uma segunda na
tureza ?
As descobertas mais úteis e necessárias perma
necem, por séculos, privilégio de certos povos ; ainda
com auxílio das relações, só se transmitem com ex
trema lentidão, mesmo às nações mais vizinhas ; por
que não se deu o mesmo com a religião ? Como é
que, desta maravilhosa invenção, todos os povos ti
veram conhecimento, sem distinção de língua, de
costumes, país, de clima, de civiliz:ação ou barbaria ?
Aqui não há meio termo. O u a religião proce
dt- de uma revelação primitiva ou de uma inspira
ção da natureza. Se há revelação, Deus f•alou ao
homem ; se não há, escrevera Deus a religião no fun
do de nossa alma. Não ; a religião não é invenção
humana ; e, posto que, em diferentes séculos, em di
ferentes países, esta filha do céu tenha sido desfigu
rada, aviltada, desacreditada, conserva sempre algo
de sua origem imortal. Nossa alma a guarda como
celeste perfume. No meio das monstruosidades que
nos apresenta a história, não deixam de ser visíveis
os vestígios de uma revelação primitiva.
VII
A REVELAÇÃO É POSSíVEL
É possível que Deus haja revelado ao homem cer
tas verdades ? Tanto vale perguntar se aquele que
O CRIT�RIO 235
nos deu o dom da palavra, o Verbo unido à inteli
gência, é inferior à obra de suas mãos. Se o ho
mem dispõe de meios de comunicar aos outros seus
pensamentos e afeições, também o Ente infinito, po
deroso e sábio deve poder comunicar com a sua cria
tura e transmitir-lhe sua vontade . Ele criou as in
teligências, e não as poderá esclarecer ?
VIII
SOLUÇÃO DE UMA DIFICULDADE CONTRA A
REVELAÇÃO
Mas Deus, obj ectará o incrédulo, é demasiado
grande para se humilhar a ponto de conversar com
a criatura ; mas então objecte-se também que Deus é
demasiado grande para haver-se ocupado em criar
-nos. A criação nos tirou do nada ; a revelação
completa a obra. Terá, o obreiro menos mérito, por
isso que aperfeiçoa a obra ? Todos os nossos conhe
cimentos nos provêm de Deus ; é dele que recebemos . ·
a faculdade de conhecer, quer tenha gravado as :
idéias em nosso entendimento, quer tenha dado o
poder de as adquirir por meios que nos são incógni
tos. Se Deus, sem nada perder de sua grandeza,
nos pode comunicar uma certa ordem de idéias, não
será absurdo pretender que ele se rebaixaria, comu
nicando-nos verdades de ordem diferente por meios
O CRITÊRlO
sobrenaturais ? Portanto, negar esta possibilidade
é negar a omnipotência e até a existência do mesmo
Deus.
IX
CONSEQü�NCIAS DOS PARA GRAFOS PRECEDENTES
Infinitamente nos importa conhecer a verdade
em matéria de religião (parág. 1 e 2) . Não podem
ser verdadeiras todas as religiões · (parág. 4) . Se
há uma religião revelada, deve esta ser a verdadeira
{ parág. 4) .
A religião não pode ser uma invenção humana
( parág. 6 ) . A revelação é possível ( parág. 7 ) . Res
ta-nos saber se ela existe, e onde se deve procurar.
X
EXISTÊNCIA DA REVELAÇÃO
Existe a revelação ? Verifiquemos primeiro que
tudo um facto que, só de per si, constitui poderosa
presunção em favor da afirmativa. Todos os po
vos da terra têm conservado a lembrança de uma re
velaç.ão ; ora, a humanidade não pôde concertar-se
para tramar uma impostura. Não provará este facto
uma tradição primitiva, transmitida de pais a fi-
O CRITÉRIO 237
lhos, e que, posto que profundamente alterada, pos
to que desfigurada pelo tempo e p elas paixões, não
deS'apareceu j amais inteiramente da memória dos
homens ?
Obj ectar-se-á que a imaginação pode converter
em vozes o ruído do vento, em aparições misterio
sas os fenómenos da natureza ; e do mesmo modo o
fraco mortal se creu rodeado de seres desconheci
dos que lhe dirigiam a palavra, e lhe descobriam ar
canos de outros mundos. Não se poderá negar que
é especiosa a obj ecção ; sem embargo, não será di
fícil mostrar que é de todo insubsistente e fútil.
É possível que um homem na crença de que exis
tem seres desconhecidos que se possam pôr em re
lação con� ele, se incline a supor ou a crer que ouve
sons proféticos, e que vê espectros vindos de outros
mundos. Mas não é assim ; não poderia tal acontt:
cer ao homem que nem s.equersuspeitasse a exis
tência de seres desta espécie. Neste caso de onde
procederia a ilusão ? Não as compreende.
Ensina-nos a experiência que as criações de nos
so cérebro, as mais incoerentes, são formadas de uma
reunião de imagens cuj a realidade existe, e com que
temos sido imp1·essionaclos aqui e além, em tempos
diversos. Nossa imaginação sobre�excitacla ou do
ente não faz mais que evocá-las, reuni-las, formar
com elas um todo extravagante. Os palácios encan
tados elos romances ele cavalaria, com suas castelãs,
238 O CRITÉRIO
geus anões, salões vastos, seus subterrâneos, encantos
e mil extravagâncias devem sua existência a esta fa
culdade do espírito. - Sobre um fundo verdadeiro,
com auxílio de circunstâncias conhecidas, abstraídas
do mundo real, o romancista arquitecta maravilhas.
Acontece o mesmo no facto de que nos ocupamos . A
razão e a experiência estão de acordo na explicação
deste fenómeno ideológico.
Se não tivéramos idéia de outra vida, além da
presente, ou de· um mundo diferente do nosso, se não
conhecêramos outros viventes além dos que povoam a
terra, poderíamos inventar ou imaginar gigantes,
anões, monstros e outras entidades fantasmagóricas,
mas nunca seres invisíveis, nunca revelações vindas
de um céu qu-e não conheceríamos.
Este novo mundo, ideal, fantástico nem sequer
nos ocorreria, porque, para assim dizer, tal ocorrên
cia não teria ponto de partida ; além disso admitamos,
contra toda a possibilidade, que esta ordem de idéias
se oferecess·e a um indivíduo ; como havia a humani
dade inteira de chegar a participar desta descoberta ?
Viu-se j amais semelhante contágio intelectual e
moral ?
Qualquer que sej a o valor destas reflexões, pas
semos aos factos, deixemos o que poderia ter sido e
examinemos o que realmente foi.
O CRITÉRIO
XI
PROVAS HISTóRICAS DA EXISTJ'!:NCIA DA
REVELAÇÃO
239 -
Existe uma sociedade que pretende ser a umca
depositária, a única intérprete das revelac;ões com
que o céu favoreceu a raça humana. Pretensão tão
alta dev e chamar a atenção do filósofo que aspire à
verdade.
Que sociedade é essa ? dura há pouco tempo ?
Conta dezoito séculos de duração, e estes séculos
não os considera senão como um período da sua exis
tência, e, subindo mais acima, vai explicando sua
ininterrompida genealogia, e se remonta até ao prin
cípio do mundo. Que esta socierlade conta dezoito
séculos de existência, que sua história se confund�
com a de um povQ cuj� origem se perde na mais re
mota ·antigüidade, verdades são estas tão certas como
a existência das repúblicas de Roma e da Grécia.
Que provas apresenta ela em apoio da sua dou
trina ? - Está de posse do livro mais antigo que se
conhece ; este livro contém a mais pura moral, um ad-1 ' .
ijjmirável sistema de legislac;ão, uma história cheia de' j
1prodígios.
Até ao presente, ninguém tem posto em dúvida
o mérito eminente deste livro, o que deve espantar
240 O CRITtRIO
tanto mais, quanto ele nos foi transmitido por um
povo cuja civilização esteve longe de igualar a de mui
tas outras nações da antigüidade.
E não oferece. a aludida sociedade outros títulos
que j ustifiquem suas p retensões ? Independente
mente dos mais numerosos e imponentes testemu
nhos, eis um que só de per si bastaria : afirma que a \\ transição da sociedade antiga para a moderna se Qfec
\ tuou do modo que anunciava o livro misterioso ; que
no tempo predito apareceu sobre a terra um Homem
-Deus, que foi ao mesmo tempo o complemento da lei
antiga e o autor da nova lei ; que a antigüidade não
era mais que sombras e figuras e que este Homem-
Deus foi a r€'alidade ; que fundou a sociedade que cha
mamos Igrej a católica, prometeu-lhe sua assistência • '
até à consumação dos séculos, selou com seu sangue
a doutrina que trouxe à terra, quebrou, ao terceiro
dia depois de seu suplício, as cadeias da morte, enviou
seu Espírito, como prometera, e que há-de vir no fim
dos séculos para j ulgar os vivos e mortos.
É verdade que neste homem se cumpriram as
antigas profeci'as ? - É inegável. Ao ler algumas
delas parece estar-se lendo as narrações evangélicas.
Este homem deu provas da sua divindade ? -
Atestam-na numerosos milagres ; e o que ele próprio
profetizou aconteceu ou vai acontecendo com mara
vilhosa exactidão.
O CRITtRlO 241
Qual foi sua vida ? - Passou sobre a terra es
palhando o bem a mãos largas ; desprezou as rique
zas e o fausto, suportou com serenidade as privaçõE-s,
os ultrajes, os tormentos, a morte afrontosa, enfim :
tanto a sua vida, como a sua morte foram superio
res à fraca humanidade.
E sua doutrina ? - Jamais o espírito humano se
elevara tão alto ; tal é a sua moral, que os seus mai.s
violentos inimigos se têm visto forçados a fazer-lhe
j ustiça e a inclinar-se diante dela.
Que mudança operou este homem na sociedade ?
- Rccordai-vos do que era o antigo mundo romano ,
c vede o que o mundo é hoj e. C omparai os povos ·
nos quais ainda não p enetrou o cristianismo, aos \
que, desde séculos, têm vivido debaixo da sua influ
ência e conservam ainda seus preceitos, bem que
entre alguns se achem desfigurados.
De que meios dispôs ele ? - Não tinha de seu
onde repousar a cabeça ; enviou doze homens esco
lhidos entre a ínfima classe do povo, nas mais humil
des condições ; estes dispersaram-se aos quatro ven
tos da terra, e a terra ouviu sua voz e teve fé !
Esta religião passou pelo crisol das perseguições ?
Não sofreu contrariedades de nenhuma espécie ? -
Aí está o sangue de infinitos mártires, aí os escritos
de numerosos filósofos que a examinaram, aí os mui
tos monumentos que atestam as tremendas lutas
que sustentou com os príncipes, com os sábios, com
242 . O CRITÉRIO
as paixões, com todos os elementos de resistência que
era possível combinarem-oo na terra.
De que meios se valeram os propugnadores do
cristianismo ? - O exemplo e 'a prédica, confirmados
pelos milagres. E estes milagres não pode a crítica
mais escrupulosa r-efutá-los ; e se os refutara, resul
taria disso 0 maior dos milagres, - a conversão do
mundo sem milagres.
O cristianismo sempre contou, e ainda hoj e no
número de seus filhos conta inteligências das ma is
elevadas, corações dos mais nobres. A civilização
cristã foi muitíssimo além da civilização dos mais
célebres povos antigos. Não há r-eligião sobre que
tanto se tenha disputado e escrito . As bibliotecas
estão cheias de obras críticas, dogmáticas, filosóficas,
científicas, literárias, obras capitais devidas a ho
mens que humildemente submeteram a sua inteligên
cia à disciplina da fé . Não se pode acusar o cristia
nismo de não ter florescido senão entre povos igno
rantes e bárbaros ; possui todos os caracteres de re
ligião verdadeira, de procedência divina.
XII
OS DISSIDENTES E A IGREJA CATóLICA
Nestes últimos séculos, romperam-se entre os
cri stãos os laços da unidade ; uns permaneceram li-
O CRITéRIO 243
gados à Igr.ej a católica ; outros, repelindo certos dog
mas, só conservaram do cristianismo o que lhes. para
ceu ; mas, em virtude do livre exame, estabelecido por
eles como princípio fundamental, princípio que deixa
a fé à discrição .do crente, fraccionaram-s.e em inu
meráveis seitas.
Onde estar.á a verdade ? Os dissidentes datam
1 de ontem ; a Igrej a prova a sucessão de seus pasto
res, remontando até Cristo. Os primeiros variaram
e variam incessantemente em seu ensino e doutrina ;
a Igrej a católica sempre conservou e conserva, única,
invariável, intacta, a fé recebida dos Apóstolos. De
uma parte a novidade, a mobilidade, isto é, a dúvida
e inquietação ; de outra parte, a unidade, a antigüida
de, isto é, o repouso na fé, a consagração da razão
dos séculos e do respeito dos antepassados às nossas
crenças. Bendito sej a Deus pelo benefício que nos
fez !
Ainda mais � a Igrej a católica ensina que só ela
tem o depósito da verdade ; que só ela pode condu
zir o homem pelo caminho da salvação. Os dissiden
tes r.econhecem que entrenós outros nada se crê nem
pratica que possa acarretar-nos a condenação eterna
Uns só têm a sua opinião em favor da possibilidade
de salvação na Reforma ; os outros têm duas, a da
própria Igrej a e a dos mesmos dissidentes. Ainda
quando não houvesse motivos mais poderosos, bastaria
244 O CRITtRIO
a prudência humana para nos aconselhar a perseve
rança na fé de nossos pais.
Esta breve resenha nos parece conter a substân
cia dos raciocínios que pode fazer qualquer católico,
que, dando razão de sua fé, queira provar que seguin
do os ensinamentos da Igreja não se desvia da lógica
e bom senso. Asinalemos no entanto certos esco
lhos contra os quais freqüentemente naufragam os
incautos.
XIII
MJ!:TODO EMPREGADO POR ALGUNS IMPUGNADORES
DA RELIGIÃO
No exame das matérias r·eligiosas seguem mui
tos o errado caminho de tomar como obj ecio de suas
investigações um dogma particular, separá-lo do con
junto dogmático a que pertence, e as dificuldades que
levantam sobre uma verdade p·articular as crêm su
ficientes para concluir a negação absoluta de todo o
sistema religioso. Este modo de proceder prova não
menos presunção que ignorância.
Com efeito, não se trata de saber se a nossa in;
teligência está à altura dos dogmas revelados, ou se
estamos em estado de resolver todas as dificuldades
que se possam levantar contra tal ou tal dogma. A
própria religião nos adverte que os segredos de Deus,
os mistérios, estão acima da nossa razão, que durante
O CRITtRIO 245
nossa curta passagem sobre a terra, nos devemos re
signar a não ver as verdades senão através de som
bras. É por isso mesmo que de nós se exige a fé.
Dizer : não creio, porque não compreendo, é
enunciar uma contradição. Se compreendêssemos, a
fé deixaria de ser uma virtude ou qualquer outra
coisa. Fazer arma contra a religião da incompre
ensibilidade de seus dogmas, e voltar contra ela uma
verd·ade que ela reconhece, que aceita, verdade sobre
a qual, digamos assim, assenta o .edifício inteiro, ofe
rece por ventura garantias de veracidade ? Está ao
abrigo de erro em seus ensinos ? Eis o que se deve
examinar. Estabelece a infalibilidade da religião, €:
todas as dificuldades se esvaem. Não conseguirá dar
um passo quem se não apoiar sobre este princípio.
Um viaj eiro digno de fé conta-nos coisas que não com-·
preendemos ; devemos por isso negar-lhe confiança ·:·
Não, sem dúvida . Pois assim deve ser a respeito da
Igreja. Sabemos que não pode enganar-nos, que im
porta que seus ensinos sejam superiores à nossa ra
zão ? Basta que tais ensinos não repugnem ou não
sejam contrários à razão.
Se a impotência do nosso espírito em resolver
certas dificuldades fosse suficiente para j ustificar a
dúvida, em que poderíamos nós crer ? Onde esta
ria a verdade ? É sabido quanto é difícil desembara
çar dos laços de um hábil sofista . A seu bel-prazer
poderiam pois certos espíritos semear a incerteza e a
246 O CRlTtRlO
dúvida ! A Providência ter-lhes-ia outorgado como
mero j oguete a consciência e fé do resto dos ho
mens ! . . .
Nas ciências, nas artes, até nas coisas mais sim
ples da vida, a cada passo topamos com o incompre
ensível. Duvidamos por isso ? Não compreendemos
tal fenómeno, mas testemunhas fidedignas atestam
sua existência ; curvamos a cabeça lembrados dos es
treitos limites do nosso entendimento.
Nada mais trivial do que ouvir-se estas pala
vras : - O que conta este homem é impossível ; mas
é verídico : ele sabe o que diz ; não acreditaria se ou
tro o dissesse ; mas como ele o afirma, a coisa é ver.
dade . Ora, o que dizemos de um homem hesitaremos
em o dizer da Igrej a ?
XIV
A MAIS ALTA FILOSOFIA DEi ACORDO COM A FÉ
Imaginam alguns passar por grandes pensadores
quando recusam crer o que não compreendem. Es
tes j ustificam o famoso dito de Bacon : - pouca filo
sofia aparta da religião, muita filosofia condu:z; a ela .
Na verdade, se houvessem penetrado nas profun
dezas da ciência, veriam que no fundo de todas as
coisas está o mistério ; que a natureza nos oculta o
maior número de seus segredos, que os seres, aparen
temente os mais fáceis de compreender, nos escapam
O CRITÉRIO 247
em sua essência e em seus princípios constitutivos.
Ignoramos o que é o universo, esta imensidade que
::tssombra nossa inteligência ; ignoramos o que é o
nosso corpo, o que é o espírito que o anima ; somos
nm enigma para nós mesmos. Saberiam que a ciên
cia, apesar de todos os seus esforços, não logrou, até
hoje, penetrar os fenómenos que constituem e nos fa
zem sentir a vida. Reconheceriam que o mais pre
cioso fruto de nossas indagações, meditações e traba
lhos de toda a sorte, é a profunda convicção de nossa
fraqueza e ignorância ; que moderar o desejo de sa
ber e conhecer, não ter em muito as forças e luzes
de nosso espírito, é tão conforme às lições da sã
filosofia c
'
omo às da fé ! Saberiam, finalmente,
que o ensino religioso nos eleva desde a infância aon
de nunca chegariam os esforços da sabedoria hu
mana.
XV
O QUE ABANDONA A RELIGIÃO CATóLICA NÃO SABE
ONDE REFUGIAR·SE
Temos seguido o caminho que conduz à religião
católica ; vejamos ainda o que fora deste caminho se
encontra. Abandonando a fé da Igreja, onde nos re
fugiaremos ? Para qual das numerosas seitas dissi
dentes ? Que razões se nos oferecem para preferir-
248 O CRITtRIO
mos uma às outras ? Decidiremos às cegas ? Seria
testemunhar igual desprezo a todas. Recorrer ao fi
losofismo ? Mas que é o filosofismo ? Dúvidas, ne
gações, trevas, desespero. Buscaremos um símbolo
fora do dogma cristão ? Mas qual ? a menos que o
islamismo ou a idolatria seduzam nossa razão.
Portanto, abandonar o catolicismo é abjurar im
plicitamente toda a crença dogmática ; é deixar que
corram os anos, que nossa vida chegue ao termo fa
tal, sem guia para o presente, sem luz· para o porvir ;
é tapar os olhos, abaixar a cabeça e arrojar-se a um
abismo sem fundo.
Todas as garantias de verdade que a razão pode
oferecer à fé ; todas as garantias de verdade que as
necessidades do coração, os instintos religiosos, as
necessidades individuais e sociais podem dar à razão,
nós as achamos no catolicismo ; a lei que nos impõe
é suave, j usta, recta, e ao mesmo tempo benfazeja. O
que a cumpre torna-se semelhante aos anj os. Apro
xima-se da beleza ideal, realiza em si a mais alta poe
sia que a humanidade possa sonhar. Esta lei con
sola-nos no infortúnio, cerra nossos olhos em. paz ;
apresenta-se-nos tanto mais indubitável, tanto mais
radiante de verdade, quanto nos aproximamos da
hora extrema. Em sua bondade, quis a Providência
colocar à borda do túmulo aquelas santas inspirações
como arautos que nos avisam de que vamos pisar os
umbrais da eternidade ! . . .
CAPíTULO XXII
Do entendimento prático
I
CLASSIFICAÇÃO DOS ACTOS
Os actos práticos do entendimento são aqueles em
virtude dos quais obramos. Daí duas questões : Que
fim nos propomos na acção ? Quais os melhores meios
para o conseguir ?
Nossas acções podem exercer-se, ou sobre os ob
j ectos da natureza submetidos à lei da necessidade, e
aqui se compreendem todas as artes ; ou sobre a na
tureza moral e o que pertence ao livre arbítrio, e
isto compreende as regras de proceder relativamente
a nós mesmos -e aos demais, abraçando a . moral, a
urbanidade, a administração doméstica e a política .
25ó 0 CRITÉRIO
As regras dadas sobre a arte de p-ensar, em ge
ral, me dispensam de tratar em particular cada um
destes diferentes assuntos. Com efeito, quem esti
v-er bem compenetrado destas regras, deve saber, an
tes de praticar a acção, qual o fim que se propõe, e
quais os melhores meios de o realizar. Todavia, sem
sair dos limites postos à natureza desta obra, ajun
taremos algumas reflexões que talvez não sejam
inúteis.
11
NEM SEMPRE É FÁCIL PROPOR-SE O FIM DESEJADO
Não falo aqui do fim último, da felicidade da ou
tra vida ; à religião pertence conduzir-nos a ele. Só
trato dos fins secundários, como,por exemplo : al
cançar conveniente posição na sociedade, levar a bom
termo um negócio qualquer , sair airosamente de si
tuação difícil, granj ear a amizade de uma pessoa, or
ganizar um sistema político, administrativo ou do
méstico, destruir costumes prej udiciais e outras coi
l'as deste gênero.
À primeira vista, parec-e que todos os actos su
põem, no pensamento do agente dotado de razão que
o produz, um fim determinado ; porém a observação
nos ensina que são raros, muito raros os homens, ain-
0 CRIT�RlO 251
da os mais activos e enérgicos que não confiem ao
acaso uma parte de sua fortuna e de si mesmos.
Sucede mil vezes que aos homens chegados ao
fastígio do poder e da glória atribuímos planos pre
meditados em todas as coisas, proj ectos vastos e pro
fundos, maravilhosa previsão dos obstáculos remo
vidos, apreciação cheia de sabedoria nos meios de
que dispõem ; e como nos enganamos ! Em todas as
condições, em todas as circunstâncias da vida, não
importa o brilho ou humildade ; o homem permanece
o que é, coisa muito pequena, muito limitada ; não co
nhecendo nem a si próprio� não tendo j amais idéia
verdadeira do que vale, exagerando ora sua força, ora
sua fraqueza, não sabendo aonde vai nem aonde deve
ir, vivendo na dúvida e na incerteza. Ignora muitas
vezes os seu seus interesses mais caros, e a dúvida
sobre o que por ventura possa valer aumenta com a
dúvida do que deva desejar.
III
EXAME DO PROVÉRBIO: "CADA QUAL É FILHO DE
SUAS OBRAS"
� falso que o interesse particular seja um guia
infalível, e que sempre preserve do erro o que segue
suas inspirações. Nisto, como em muitas outras coi-
252 O CRITÉRIO
sas, caminhamos nas trevas. Pois não trabalhamos
às vezes para a própria desgraça ? Triste experiên
cia que deveria dissipar nossas ilusões !
No entanto o provérbio é verdadeiro : - feliz ou
desgraçado, o homem é filho de suas obras.
No mundo moral, como no físico, o acaso não é
mais do que uma palavra. Verdade é que o fluxo e
refluxo das coisas humanas desconcertam algumas ve
zes os planos mais bem concertados, arrebatando-nos
os frutos das mais engenhosas combinações, dos tra
balhos mais merecedores, ao passo que favorecem ou
tros planos, outras combinações, outros trabalhos sem
valor ; mas isso não é tão comum como vulgarmente
se diz e crê. O trato da sociedade, acompanhado da
conveniente observação, rectifica muitos j uízos que se
haviam formado ligeiramente' sobre as causas da boa
ou má fortuna que cabe a diferentes pessoas.
Não há desgraçado que se não julgue vítima dos
homens ou da sorte. No entanto, estudando a fundo
o carácter, os costumes, o j uízo, o procedimento do
maior número ; seus hábitos, suas conversações, suas
relações de família ou de amizade, não será raro que
descubramos muitas, senão todas as causas que con
tribuem para o infortúnio.
Só sabemos ver o acontecimento que decide da
sorte da pessoa, sem reflectir que este último facto es
tava preparado por muitos outros anteriores, ou que
deve sua influência decisiva e funesta à posição par-
O CRITÉRIO 253
ticular em que o infeliz se havia colocado pela sen<'
de seus erros passados, seus defeitos ou faltas.
Raríssimas vezes a boa ou má fortuna tem só
uma causa. Em geral complicam-se com uma infi
nidade de causas mui diversas. Mas como não po
demos seguir o fio dos sucessos através das formas
móveis e múltiplas da vida, consignamos como facto
único, principal ou dominante, o que apenas é oca
sião, a gota de água em um vaso cheio.
IV
O HOMEM ABORRECIDO
Vedes este homem de quem os amigos de outrora
se desviam, ou o tratam com indiferença ; que os pa
rentes aborrecem ; que não encontra na sociedade
quem se interesse por .ele, cujo nome desperta ani
madversão geral ? a explicação que dá do seu isola
mento é - a inj ustiça dos homens ; é a inveja que
não pode sofrer o brilho do mérito, é o egoísmo uni
versal que sacrifica a si a família, a amizade, o re
conhecimento. Acusa o gênero humano de haver
conspirado contra ele, de se obstinar em não reconhe
cer seu mérito, suas virtudes, a elevação de seu cora
ção e espírito. O que há de verdade nesta apologia
se verá talvez da mesma apologia. Não será difícil
254 b CillTtRIO
notar aí a vaidade insofrida, o carácter áspero, a pe
tulância, a maledicência que terão atraído o ódio de
uns, o desvio dos outros, enfim o insulamento de que
injustamente este homem se queixa.
v
O HOMEM ARRUINADO
Queixa-se este outro de que a sua excessiva bon
dade, a infidelidade de um amigo, desgraças impre
vistas arruinaram sua fortuna, malogrando as mais
prudentes e seguras combinações.
A bondade do coraç.ão, a infidelidade de um
amigo, as suas desgr.aças, tudo o que afirma é verda
de. Mas não está aí a causa de sua desgraça ; pro
cure-se em suas concepções superf.iciais e rápidas,
na nobreza de seus j uízos, em seu ardor em formar
projectos, em sua precipitação e temeridade.
Assás numerosas são estas causas, para que seja
supérfluo fazer intervir as boas qualidades. A ruína
deste homem, longe de ser um capricho do acaso, é a
conseqüência última de uma série de desatinos que
há muito tempo a preparavam. Pudera fàcilmente
evitar a desgraça, se tivesse prevenido a infidelidade
do amigo, posto ao abrigo das tristes circunstân-
cias desta infidelidade, se tivesse sido mais discreto,
O CRITÉRIO
se menos imprudentemente tivesse prestado sua con,
fiança, se tivesse velado sobre si mesmo, se tivesse
tido mais cuidado, mais vigilância em seus negócios.
VI
O HOMEM INSTRUíDO INSOLVENTE E O
RúSTICO RICO
Inteligência, espírito, sa:ber, tudo tem por sua
parte. Como é então que não só não tem aumen
tado os seus haveres, mas até se tem deitado a per
der ; ao passo que o vizinho, homem grosseiro <::)
desprovido de toda a cultura, tem centuplicado a
sua fortuna ? Acaso, fatalidade, má estrela !
Assim dizem, sem reflectir que se confundem de
ploràvelmente as idéias mais opostas ; que se as
sociam uns aos outros, que se faz. depender uns dos
outros factos que nenhuma relação têm entre si.
Na verdade o primeiro é homem de espírito,
cheio de instrução, homem de representação na
sociedade : o outro completamente ignorante. Mas
o que se trata não é de obras de arte, é de negócios ;
de compras e vendas e não de obras literárias.
Convenho em que o primeiro dispõe de mais fácil
locução, idéias mais variadas, observações mais pi
cantes, réplicas mais prontas e incisivas ; porém,
256 O CRITtRlO
nenhuma relação existe entre essa ordem de coisas
e aquilo de que tratamos, a habilidade em negócios.
Passemos de um facto particular a factos inteira
mente diferentes.
Observai com atenção estes dois homens, e fic0
certo que não tardareis a reconhecer que tanto a
prosperidade de um como a ruína do outro têm
causas muito naturais.
Um, concordo nisso, fala, escreve, forma pro
jectos, calcula com extrema facilidade ; aprecia tu
do, responde a tudo, vantagens, inconvenientes,
alternativas prósperas e adversas, tudo viu, tudo
disse, tudo previu : a matéria está esgotada.
O outro tem a palavra, o j uízo, a penetração
menos rápidos ; mas em compensação, vê mais cla
ro, mais profundamente, com mais justeza e segu ..
rança. Não sabe opor cálculos a cálculos, raciocí
nios a raciocínios ; mas o tacto, o discernimento,
desenvolvidos nele pela observação, pela experiên·
cia, como que o advertem de modo infalível . Todas
as suas faculdades se resumem numa só, o bom
senso. Não importa que a vista deste homem abra
co menor horizonte, uma vez que veja melhor o que
deve ver. Que importa carecer dessa facilidade
em pensar e falar, qualidades tão a propósito para
brilhar, quanto inúteis e inconducentes para o ob
jecto de que se trata ?
O CRITÉRIO 257
VII
OBSERV AÇ6ES. O ESPíRITO DE SOFISMA E O
BOM SENSO
A vivacidade não é penetração ; a abundância
de idéias nem sempre súpõe clareza nas mesmas
idéias, e ·a exactidão do espírito ; é comrazão sus
peito o j uízo muito rápido ; o sofisma oculta-se
muitas vezes em seus raciocínios onde a subtileza
derrota a razão e toma insenslvelmente seu lugar.
Distinguir e assinalar o sofisma envolto nos
encantos da palavra ou do estilo constitui um tra
balho cheio de dificuldades. Infinitos são os re
cursos do espírito ; homens hi.. que possuem quali
dades tão atraetivas, sabem apresentar os obj ectos
com tanta arte, que o bom senso, o saber, o juízo
mais seguro, reduzidos ao silêncio, vêem-se algu
mas vezes forç·ados a apelarem para o tempo, para
a experiência, para ensej o oportuno, a fim de da
rem a razão de seus sofismas.
Efectivamente, há coisas que melhor se sentem
do que se compreendem ; vêem-se e não se provam.
Há circunstâncias minuciosas, relações cheias de
delic·adeza, que não se podem demonstrar e perma·
necem para sempre ocultas, se à primeira vista
se não compreendem. Há pontos de vista tão fu-
258 O CRITÉRIO
gazes, que em vão se buscam por quem não logrou
colocar-se neles em momento oportuno.
VIII
Só A PRÁTICA REVELA CERTOS FENóMENOS
INTELECTUAIS
Revelam-se no exercício da inteligência, ou
mesmo em qualquer das outras faculdades da alma,
fenômenos que as palavras não podem exprimir.
Para compreender a quem deles fala, é mister havê
-los experimentado em si mesmo. Tentar tornar-se
inteligível a quem de modo algum os não httj a sen
tido, é tentar dar ao cego de nascimento idéia das
cores.
Estes fenómenos particulares, estes matizes,
se assim me posso exprimir, abundam em todos os
actos práticos do espírito. Não deve pois abando
nar-se o espírito a vãs abstracções, nem formar sis
temas fantásticos, puramente co-qvencionais ; pre
cisa de tomar as cousas, não como as imagina ou
deseja, senão como elas são ; do contrário, ao pas
sar da idéia para os objectos, encontrar-se-á em
desacordo com a realidade, e verá desconcertados
todos os seus planos.
Observamos ainda que na prática, e mõrmente
no que toca às relações que os homens têm entre
O CRITtRIO 259
si , a influência do entendimento não é isolada, e
que as outras faculdades se desenvolvem simultâ
neamente com esta f'aculdade. Não há somente
comunicação de inteligência com inteligência, mas
de coração com coração. Além da influência recí
proca das idéias, há a influência não menos viva
dos sentimentos.
IX
OS ABSURDOS
Não esqueçamos, e esta observação nos será uti
líssima na prática da vida, que há homens mal do
tados, a quem faltam certas faculdades do espírito
e do coração. São, relativamente aos que possuem
estas faculdades, o que é o infeliz privado de um
ou muitos órgãos para o homem bem construído.
Quem não tem sorrido alguma vez dos esforços
tentados pelos espíritos de boa fé sobre certas in
telig€ncias refractárias ? Um homem enuncia a
sangue frio um absurdo ; trava-se discussão e vós
esforçai-vos por provar, a quem vos não pode compre
ender, verdade incontestável. Trabalho inútil. E' a in
teligência que falta a vosso adversário ? Não, falta
-lhe o senso comum. Suas disposições naturais, seus
hábitos fizeram o que ele é ; vereis que um espírito
capaz de admitir e sustentar um absurdo não estará
260 O CRITtRIO
em estado de se compenetrar da força dos argumen
tos dirigidos contra este absurdo.
X
ESPíRITOS FALSOS
Há homens, cujo espírito é naturalmente defei
tuoso (pelo menos parece-o ) , porque nada vêem sob
verdadeira luz. Será isto loucura ? ·ausência com
pleta de j uízo ? Não. Estéreis por excesso de abun
dância, caracteriza-os insuportável loquacidade ; li
gam e desligam, com desesperada facilidade, argu
mentos sem valor ; pronunciam-se ousadamente sobre
todas as coisas, e quase sempre falsamente. Se
por acaso encontram o bom caminho, passam sem
se deterem ; o sofisma os arrasta. Uma ou outra
vez sucede entrever-se em seus raciocínios sedutoras
persp.ectivas, miragens que enganam a eles próprios,
porque as tomam por realidades solidamente esta
belecidas. O segredo de seus erros, ei-lo : assertam
como incontestável um facto duvidoso, inexacto ou
· completamente erróneo, estabelecem como princípio
de eterna verdade uma suposição gratuita ; tomam
a hipótese como realidade. Impetuosos, precipitados,
não fazendo caso das observações dos que os ouvem,
sem outro guia que a próp:ria falseada razão, leva
dos pelo prurido de discorrer e falar, arrastados,
O CRITÉRIO 261
por assim dizer, na turva corrente de suas próprias
palavras e idéias, esquecem-se completamente do seu
ponto de partida, não notando que tudo quanto edi
ficam é puramente fantástico, por carecer de cimento.
XI
SUA INCAPACIDADE PARA OS NEGóCIOS
Desgraçados dos negócios em que entram estes
homens, e desgraçados também deles se se abando
nam à sua própria direcção. As qualidades essen
ciais para o entendimento prático são a madureza
de j uízo, o bom senso, o tacto ; e estas qualidades
lhes f'altam. Para chegar à verdade é preciso passar
das idéias às coisas, e eles se esquecem geralmente
das coisas para não se ocuparem senão das idéias.
Na prática da ·vida importa raciocinar, não sobre o
que as coisas deveriam ou poderi·am ser, mas sim
sobre o que são, e eles não se ocupam do que as
coisas são, mas do que poderiam ou deveriam ser.
O que um espírito recto vê claramente, não logra le
modo algum percebê-lo um espírito falso. Factos,
fora de toda a dúvida para um, parecem muito con
testáveis para outro. O primeiro expõe uma questão
muito simples, e naturalmente o segundo encara-a
logo debaixo de um outro aspecto. Um destes ho
mens, como afectado de estrabismo intelectual, des-
262 O CRITtRlO
concerta e confunde o que vê os obj ectos em sua ver
dadeira direcção.
XII
ESTE DEFEITO INTELECTUAL NASCE ORDINARIA
MENTE DE UMA CAUSA MORAL
Se buscarmos o porquê desta aberração, achá
-la-emos muitas, muitíssimas vezes, antes no coração
que no cérebro. A vaidade é o vício dominante que
mais aflige os espíritos desta ordem. Um mal enten
dido amor-próprio os leva a singularizarem-se em
todas as coisas ; e, não querendo pensar nem falar
como o resto dos homens, insensivelmente chegam a
pôr-se em luta com o s-enso comum.
A mesma constância de sua oposição prova que,
só entregues à sua razão, contrariam mais freqüen
temente a verdade ; prova que suas extravagâncias
são menos er,ros do j uízo que ridículo desejo de se
singularizarem, convertido em hábito. Se este de
feito fosse só do juízo, não tomariam eles a contra
ditória em todas as questões. Coisa notável ! Um
meio seguro de os trazer à v-erdade, é sustentar o erro
em sua presença.
Convenho em que o mais das vezes os homens _
deste carácter não se dêm conta de seu modo de
ser ; que não tenham consciência bastante clara desta
O CRITÉRIO 263
inspiração da vaidade que os subj uga e dirige ; mas
nem por isso ela deixa de existir� Se dão por tal
vício, natural é que o mal não fique sem remédio,
principalmente se a idade, a posição social, a lisonja
ainda não têm pervertido sua razão. Muitas vezes
amargos desgostos, 'Cruéis humilhações resultam do
abuso que têm feito de seu espírito. Abatidos pela
adversidade, instruídos pela experiência e pela dor,
costumam ter intervalos lúcidos de que pode apro
veitar-se um amigo sincero, para fazer-lhes ouvir
os conselhos de uma razão j udiciosa.
Mas quando a realidade ainda não tem conse
guido desenganar seu amor-próprio ; quando, no
acesso da paixão, estes homens se entregam à vai
dade de seus projectos, de suas paixões e de suas
fantasias, não lhes resistais : isso seria inútil ; guar
dai silêncio, e, com os braços inclinados e a fronte
abaixada, esperai com impassibilidade estoica que
passe a avalancHe. Esta frieza produzirá talvez
salutares efeitos ; o silêncio remove todo o motivo
de disputa ; ninguém faz obj ecção, quando não tem
adversário. Não é raro ver estes intratáveis alter
e-adores, reduzidos a sangue frio pelo silêncio, en
trarem
·
em si mesmos destituídos desua vivacidade.
Espíritos ardentes, inquietos, vivendo da contradição,
precisando de a ensaiar a seu turno, desgostam-se
logo que não há ocasião de luta ; mormente se che
gam a compreender que longe de terem em sua pre-
264 O CRITtRiú
sença um adversário resolvido, sempre prestes a
combater, só têm perante si uma vítima involuntária,
imolando-se cotidianamente a s·eu triste defeito.
XIII
A HUMILDADE CRISTÃ EM SUAS RELAÇõES COM
OS NEGóCIOS MUNDANOS
A humildade cristã, essa virtude que nos faz
conhecer o limite de nossas forças, que nos revela
os próprios defeitos, que não permite exagerar nosso
mérito, nem exalçar-nos acima dos demais, que não
consente que a ninguém depreciemos, que nos inclina
a aproveitar os conselhos de todos, ainda os infe
riores, que nos f'az ver como frivolidades indignas
de um espírito sério o andar à busca de aplausos, o
saborear o fumo da lisonja ; que jamais nos deixa
crer que havemos chegado ao cume da perfeição em
nenhum sentido, nem cegar-nos tté ao ponto de não
vermos o muito que nos resta adiantar, e a vantagem
que nos levam os outros ; essa virtude, que bem en
tendida é a verdade, porém a verdade aplicada ao
conhecimento do que somos, de nossas relações para
com Deus e para com os homens ; a verdade guiando
nosso proceder para que nos não extruviem as exa
gerações do amor-próprio ; essa virtude, repito, é de
0 CRiTÉRIO 265
suma utilidade em tudo quanto diz respeito à prática,
ainda nas coisas puramente mundanas.
Sim, a humildade cristã, em troca de alguns sa
crifícios, produz grandes vantagens, ainda nos assun
tos mais distantes da devoção. O soberbo compra
mui caro a própria satisfação ; e não adverte que a
vítima que imola a esse ídolo levantado em seu cora
ção, são às vezes seus mais caro·s interesses, sua re
putação, talvez sua glória que com tão inquieto ardor
prosseguia.
XIV
PERIGOS DA VAIDADE E DO ORGULHO
Quantas reputações menoscabadas ou perdidas
pela miserável vaidade ! Quão prontamente se dis
sipa a emoç.ão respeitosa que nos inspira um grande
nome, se no indivíduo que dele goza encontramos um
homem que só fala de si, que tudo· refere a si ! A ser
modesto tê� lo-íamos admirado ; porém o próprio or
gulho o perde, provoca a st:tira. A afectação de su
perioridade, ainda quando legítima, tem alguma
coisa de irritante e ridículo ao mesmo tempo ; a lou
cura é filha do orgulho. O orgulhoso aventura-se
a empresas desastrosas ; desacredita-se e perde-se
porque não tem confiança senão nos próprios pensa
mentos. Que lhe importam as reflexões, o saber, os
266 O ClUTtRlO
ensinamentos doutrem ? Se por ventura se digna
escutar um conselho, teme rebaixar-se em o seguir ;
o falso deus não desce às regiões onde vegetam os
humildes mortais.
Vede ! sua fronte altiva parece ameaçar o céu,
sua vista imperiosa exige o respeito ; nos lábios res
pira o desdém ; em toda a sua fisionomia se pinta
um contentamento supremo, confiança absoluta ; seus
gestos afectados, compassados, revelam o homem
cheio de si mesmo, e que quer sustentar a própria
superioridade com ciosa e respeitosa veneração. Se
toma a palavra, exige que vos caleis ! se tentais res
ponder-lhe, ele vos interrompe e prossegue. Se in
sistis pela vossa vez, o mesmo desdém ; mas desta
vez acompanhado de uma vista que impõe a atenção
e comanda o silêncio. Cala-se, finalmente, cansado e
esgotado ; se quereis aproveitar o ensej o, há muit0
tempo esperado, de expor vossa opinião, vãos esfor
ços ! o semi-deus não vos escuta, está distraído ; di
rige-se a outros ; a menos que, absorvido em pro
funda meditação, sobrancelhas carregad·as e os lábios
entre-abertos, o oráculo se prepare para desenrolar
de novo as solenes maravilhas da sua eloqüência.
Como não cairia em grandes enos um homem
tão profundamente enfatuado com seu mérito ? Mas
note-se ; há orgulhosos desta laia, se bem que nem>
sempre o orgulho assuma estas deploráveis propor ..
ções. Desgraçado daquele que desde os primeiros
O CRI'r:tRIO 267
ànos se não acostuma a repelir a lisonja e a avaliar
quanto vale o louvor ; que não sabe entrar em si
mesmo e estar precavido contra os pérfidos conse
lhos do amor-próprio ! Quando chega para ele a
idade da acção e independência, quando se acha feita
sua reputação benemérita ou demérita, quando chega
a ter inferiores, e os amigos se tornam menos inde
pendentes e sinceros, os lisonjeadores mais numero
sos ; abandonado à vaidade que deixou germinar em
seu coração, deixa-se ir cegamente por onde o levam
suas inspirações, embrenha-se cada vez mais em seu
isolamento, na confiança absoluta de si próprio e
em suas luzes : j á não é o amor-próprio o de que
está possuído, é de idolatria.
XV
O ORGULHO
A vanglória nem sempre se revela sob os mes
mos aspectos. Nos homens de têmpera forte e in
teligência elevada, este sentimento torna-se orgu
lho ; permanece vaidade nos espíritos e caracteres
medíocres. O objecto é o mesmo ; os meios são di
ferentes. O orgulho é uma espécie de hipocrisia da
virtude ; a vaidade tem a franqueza d� sua fraqueza.
O orgulhoso repele o louvor com medo de prej udicar
268 O CRITÉRIO
pelo ridículo o seu renome. Com grande verdade se
tem dito do orgulhoso que é muito altivo para ser
vão. No fundo, não deixa de experimentar pelo lou
vor grande atracção ; porém conhece que o louvor
deixa de ser honroso a quem por ele se deixa em
briagar. Assim j amais vos meterá o turíbulo na
mão, antes saberá exigil" que lho tenham a distância.
O deus permite que se lhe erijam templos mag
níficos ; ama o culto esplêndido, mas quer ficar oculto
nas misteriosas profundezas do santuário.
Esta paixão, mais culpável aos olhos de Deus
do que a própria vaidade, está todavia menos expos
ta ao ridículo. Somente digo menos exposta, por
que é bem difícil que o orgulho se apodere de um
coração sem degenerar em vaidade ; não pode a fic
ção prolongar-se indefinidamente. Estimar os lou
vores e testemunhar que se desprezam, ter como ob
j ecto principal os gozos da glória e fingir sentimen
tos inteiramente diferentes : tal _dissimulação está
acima das forças humanas. Cedo ou tarde se rasga
enfim o véu e se deixa ver a verdade em toda a
sua vergonhosa nudez.
O orgulhoso não pode pois confundir-se com o
homem vão. Inspira-nos um sentimento ainda mais
desfavorável : pois o homem vão provoc·a a zombaria,
e também a indignação.
Ó CRIT�il.lú 269
XVI
A VAIDADE
A_ vaidade não irrita, desperta compa1xao, e
fornece o pábulo à sátira. . Longe de desprezar os
outros homens, o vaidoso os respeita, admira-os tal
vez e aceita suas opiniões. Mas é devorado p ela
sede de louvores.
E stes louvores, pr.ecisa ele ouvi-los sem inter
mediário ; precisa saber que é ele, exactamente ele,
o elogiado ; comprazer-se longamente neste supremo
gozo, mostrar-se reconhecido às almas benévolas que
assim lisonj eiam sua fraqueza ; exprimir-lhe com
inocente sorriso sua íntima alegria, sua felicidade,
sua profunda gratidão. Praticou uma acção boa ?
por piedade, falai . . . que ele saiba que vos é conhe
cida e que admirais essa acção ; não o façais consu
mir-se ; não vedes que morre por fazer cair a con
versação sobre o assunto amado ? Cruel ! não que
reis compreender que o bom do homem vos põe em
caminho ; que o obrigais, com vossas distracções, a
tornar-se mais explícito, a vos suplicar, enfim ! . . .
Aprovastes o que €le diz, escreve ou faz : que
alegria ! Mas notai que tudo ele deve à inspiração,
à fecundidade de sua veia, que não houve preparação !
Não notais tantas belezas, tantos traços felizes ? Por
270 O CRlTÉRIO
piedade, não aparteis a vista de tantas maravilhas ;
não faleis de outra coisa ; deixai-o gozar a sua feli
cidade ! ele não é altivo, nem desdenhoso, nem mesmo
exclusivo. Não se irrita com os outros serem elo
giados, contanto que ele tenha a sua parte.
Com que ingênua complacência conta seus tra
balhos, suas aventuras ! sua vida é uma verdadeiraepopéia. Os factos mais insignificantes tornam-se
episódios do maior interesse ; as vulgaridades, rasgos
de gênio ; as soluções mais naturais, o resultado de
combinações profundas. Tudo refere a si, a história
de seu país e de seu tempo é um grande drama de
que ele é o herói ; só lhe agrada aquilo em que entra
o seu nome.
XVII
NOS NEGóCIOS É MAIS FUNESTA A INFLU:í!:NCIA
DO ORGULHO DO QUE A DA VAIDADE
Este defeito não tem, na prática, os nomes in
convenientes, ainda que é mais ridículo. Como é
antes uma inclinação para o louvor do que paixão de
superioridade, não exerce sobre o entendimento tão
maléfica influência. E� o cunho dos caracteres fra
cos, como o prova a facilidade com que ó homem
vão se deixa ir ao seu pendor. Longe de repelir os
conselhos como o orgulhoso, busca-os por vezes :
um, nada quer dever senão a si próprio e desprezt.
O CRITÉRIO
toda a honra partilhada ; o outro aceita de tod·as as
mãos, e respiga de boa mente no sulco alheio.
Algumas lisonjarias colhidas depois de um sucesso ,
um perfume de louvores, qualquer que s.eja, eis o
bastante para o vanglorioso.
XVIII
COMPARAÇÃO DO ORGULHO COM A VAIDADE
O orgulho encerra mais malícia, a vaidade mais
fraqueza ; um concentra as faculdades da alma, a
outra as dissipa ; o orgulho pode inspirar grandes
crimes, a vaidade sugere ridículas pequenezas ; o
orgulho é acompanh·ado de um sentimento enérgico
de independência e superioridade, a vaidade alia-se
com a desconfiança de si, e até com a submissão ;
o orgulho torna inflexíveis as molas da alma, a vai
dade as relaxa ; o orgulho é violento, a vaidade é
carinhosa ; o orgulho busca glória, mas com certa
dignidade, com lentidão, com império : não se degra
da ; a vaidade a busca também, mas com abandono,
com moleza, com certa lan guidez ; a vaidade é, se
assim me posso expressar, a efeminação do orgulho ;
assim é mormente particular às mulheres. A in
fância tem mais vaidade que orgulho ; o orgulho é,
por excelência, o defeito viril, o defeito da idade
madura.
272 O CRITÉRIO
Bem que teõricamente estes dois vícios se dis
tingam pelos caracteres que acabamos de assinalar,
não se deve crer, todavia, que na prática se encon
trem com sinais tão característicos.
Comumente manifestam-se no coração humano
misturados, confundidos, tendo cada qual não só suas
épocas, senão seus dias, suas horas, seus momentos.
Dir-se-iam duas cores apenas distintas ; somente por
certos matizes, certas irregularidades, reflexos pal
ticulares, as distinguem os olhos exercitados.
Em suma, o orgulho e a vaidade não são senão
uma e a mesma coisa : a forma, a aparência mudam
segundo os irradiamentos da claridade, os reflexos
da luz ; no fundo, ambos são a exageração do amor;..
-próprio, o culto de si mesmo. O ídolo ou se cobre
com um véu, ou se apresenta à adoração com rosto
afável e risonho, mas é o mesmo ídolo, o homem ! o
homem que, num altar que levanta em seu coração,
se queima o incenso dos louvores, e quereria ver a
seus pés o resto dos mortais.
XIX
DE QUANTO ESTA PAIXÃO É GERAL
Podemo-lo afirmar, o orgulho é a mais geral de
todas as paixões. À parte algumas almas privile
giadas, submersas nos ardores do amor divino, não
O CRITÉRIO 273
há excepção. O orgulho cega tanto o ignorante
como o sábio, tanto o pobre como o rico, tanto o
fraco corno o forte, tanto o j ovem como o velho.
Tudo verga sob o peso de sua lei. Domina o liber
tino e perturba o coração do homem austero ; domh:l
nas classes altas, e penetra nos mais humildes e re
tirados claustros ; resplende na fisionomia da nn
lher altiva que reina nos salões por nascimento, b �-
1eza e talentos, e se deixa perceber na palavra tí
mida ou sob o véu da reclusa, que, saída de uma
família obscura, se internou em uma casa de paz,
e aí, ignorada dos homens, só espera as sombras de
um túmulo humilde.
IIá corações castos, corações isentos de cobiça,
de invej a, de ódio, de vingança ; mas não há cora
ção inteiramente livre desta exageração de amor
-próprio que, segundo a forma que reveste, se ape·
lida orgulho ou vaidade ! O sábio cornpraz-se em sua
ciência ; o ignorante saboreia a própria parvoíce ; o
homem corajoso gosta de contar suas proezas, o ho
nern do mundo suas aventuras, o · avaro sua econo
mia, o pródigo sua generosidade, o leviano sua viva
cidade, o espírito tardio o seu peso ; o libertino alar
deia suas desordens ; o homem austero deleita-se na
idéia de que o seu semblante mostre aos homens a
mortificação e o j ej um.
E' universal esta paixão ; é a mais insaciável das
paixões quando se lhe largam as rédeas, a mais in-
274 O CRITÉRIO
sidiosa ou a mais hábil em se subtrair ao j ugo. Se
pela elevaç,ão, pela maturidade de espírito, pela
energia de carácter, o homem chega a senhorear-se
dela, logo o orgulho volta suas nobres qualidades
contra si mesmas : impele o coração vitorioso a se
comprazer na comtemplação das próprias virtudes.
Ainda quando resistis ao orgulho com a única arma
verdadeiramente poderosa, a abnegação cristã, ele se
não confessa vencido : temei suas traições, suas em
boscadas. Até na humildade ele sei oculta ; o réptil
arrancado de vosso seio se arrasta e rola ainda a
vossos pés : esmagais-lhe a cabeça e ele vos morde
o calcanhar.
XX
NECESSIDADE DE LUTA CONTíNUA
Visto que o orgulho é uma das imperfeições da
nossa humanidade ; visto que devemos viver com
este inimigo em luta sem tréguas, não o percamos
jamais de vista ; encerremo-lo no mais estreito cír
culo ; levantemos incessantemente contra ele novas
barreiras . Se o mal é incurável, saibamos pelo me
nos deter seus progressos e colocar-nos ao abrigo da
última desgraça. Senhor do orgulho, o homem é
senhor de si mesmo ; seu j uízo se amadurece e se
aperfeiçoa ; faz progressos mais rápidos no conheci-
o crunruo 275
mento das coisas e dos. homens ; a mesma glória, gló
ria tanto mais meritória quanto menos ele a pro
cura, torna-se muitas vezes o fruto desta conquista.
XXI
O ORGULHO NÃO É O úNICO DEFEITO QUE NOS
INDUZ AO ERRO AO PROPOR-NOS UM FIM
A fim de nos não enganarmos na escolha do
fim a que devemos tender, para que nos proponha
mos um fim realizável, é mister antes de tudo co
nhec·ermo-nos a nós mesmos. Já o dissemos : a maior
parte dos homens caminham à ventura, ou porque não
fixam a seus esforços um fim determinado, ou por
que o que se propõem não está em relação com seus
meios. Tanto na vida particular como na pública
não . é fácil conhecer bem o que se pode. O homem
ilude-se imensamente sobre o alcance das próprias
forças, sobre o uso que delas deve fazer, sobre o
·momento em que delas se deve servir. A vaidade as
exagera, assim como a pusilanimidade as atenua além
dos limites da verdade. O nosso coração é um abis
mo de contradições. Com extrema facilidade levan
tamos imensas torres de Babel na insensata espe
rança de atingir o céu. Passa-se um dia ; a timidez
sucede à audacia, e nem ao menos ousamos edificar
uma choupana. Verdadeiras cri'anças. que ora es.
276 O CRITtRIO
peram, subindo a colina, tocar com a mão a abóbada
dos céus, ora tomam por estrelas que brilham a
imensa distância no n:rais elevado do firmamento,
baixas e passageiras exalações da atmosfera sublu
nar. Talvez que estas crianças ousem às vezes mais
do que podem, mas também não é raro que nada pos-
sam, porque nada ousam.
,
Qual é pois aqui o meio de chegar à verdade ?
pergunta difícil de responder e sobre a qual só ca
bem reflexões mui vagas. O homem ignora-se a si
mesmo ; como conhecerá pois o que pode ou deixa
de poder ? Com a experiência, dir-se-á. A expe
riência é com efeito um hábil mestre, mas não se
adquire senão vagarosamente e muitas vezes só dá
frutos ao declinar da vida. Não digo que esta ver
dade esteja fora de nosso alcance ; pelo contrário
tenho indicado em muitos lugares desta obra os meios
de a conseguir. Assinalo a dificuldade, não a im
possibilidade ; ora, esta dificuldade, longe de nos
abater,deve encoraj ar nosso ardor e inspirar-nos
diligência.
XXII
DESENVOLVIMENTOS DE FORÇAS LATENTES
Há no espírito humano certas faculdades que
permanecem no estado de forças latentes até qu�
O ·CRIT�RIO 277
alguma ocasião as desperte e ponha em movimento.
Os que as possuem nem ao menos as suspeitam.
A maior p·arte dos homens desoem ao túmulo sem
ter dado por este tesouro, sem que um raio de sol
se tenha reflectido sobre este diamante puro que
um acaso feliz pudera colocar, como primeiro talvez,
em brilhante diadema.
Quantas vezes uma cena, uma leitura, uma in
dicação, remove o fundo da alma e dela faz brotar
inspirações misteriosas ! Fria, insensível, inerte, um
momento depois quando ninguém o suspeitava é como
cratera aberta, lançando turbilhões de fogo. Que
aconteceu ? Foi removido um pequeno obstáculo que
impedia a comunicação com o ar livre ; apresentou
-se à massa eléctrica um corpo atraente e o fluido
se lançou ; saltou com a rapidez do raio.
O espírito desenvolve-se com o contacto dos ou
tros espíritos, pela leitura, pelas viagens, pela con
templação das grandes cenas da natureza ou das
grandes obras d'arte, e, coisa notável, menos em vir
tude do que recebe de fora do que das descobertas
que faz dentro em si mesmo. Se a faculdade que
um feliz encontro revelou ao homem se conserva
nele viva e inteira, pouco importa que esqueça o
que por ventura tem ouvido ou lido nos livros. A
luz está acesa ; arde sem se extinguir : que precisão
tem ele da centelha que a acendeu ?
278 O CRITÉRIO
Uma alma experimentada dorme o sono da ino
cência : seus pensamentos são os pensamentos do
anjo sob a vista de Deus ; suas ilusões ou sonhos têm
a pureza destes flocos de neve que o vento de in·
verno amontoa no flanco das serras ; mas soou uma
hora, hora fatal : cai o véu, a ilusão cede a vez à rea
lidade, desaparece o mundo plácido da inocência e o
horizonte calmo e sereno cobre-se com um mar de
fogo e tempestades. Uma leitura, uma conversação
imprud{'mte, a presença de obj ectos sedutores, eis
a história do despertar de nossas paixões ; esta é
também a história do despert·ar de grande número
de nossas faculdades. Ligada ao corpo por incom
preensíveis laços, nossa inteligência foi criada para
estar em contacto, com as outras inteligênci-as ; certas
de seu poder, permanecem encadeadas até que algum
impulso exterior venha quebrar os seus laços.
Se nossas aptidões particulares nos fossem co
nhecidas, ser-nos-ia fácil, aplic'ando-as aos obj ectos
de sua escolha, desenvolv.ê-las e tirar delas todo o
partido. Mas acontece freqüentemente que uma vez
tomada a carreira da vida, não pode o homem volver
atrás e desf-azer o caminho que a educação, a profis
são escolhida ou imposta lhe haj am feito percorrer ;
é preciso que aceite as coisas tais como elas são,
aproveitando-se do bem e evitando o mal : nisto se
cifra toda a sabedoria humana.
O CRITÉRIO 279
XXIII
AO PROPOR-NOS UM FIM DEVEMOS GUARDAR-NOS
AO MESMO TEMPO DA PRESUNÇÃO E DA
EXCESSIVA DESCONFIANÇA
Em todas as carreiras, em todas as posu;oes, e
quaisquer que sej am seus talentos, seus gostos, seu
carácter, deve o homem servir-se da razão, quer para
descobrir e propor-se um fim realizável, quer para
buscar e empregar os meios convenientes para chegar
a esse fim.
O fim deve ser proporcional aos meios, e estes
são as forças intelectuais, morais ou físicas e os de
mais recursos de que possa dispor. Visar a um fim
fora de seu alcance é despender inutilmente as for
ças ; porém permanecer em inacção, ou não aspirar
ao que a experiênciq e a razão nos mostram como
fim legítimo, é de algum modo desconhecer as vistas
da Providência ; é resistir a seus desígnios sobre nós.
XXIV
A PREGUIÇA
Se é prudente desconfiar da presunção, se con
vém não andar de leve ao resolver empresas difíceis
280 O CRITÉRIO
e perigosas, importa do mesmo modo não esquecer
que a preguiça se pode ocultar soL urna aparência.
de resistência às inspirações do orgulho e da vai
dade.
O orgulho é mau conselheiro e mau guia ; difícil
é preservarmo-nos de seus embustes. Pois na pregui
ça acha um digno rival dele. O homem ama as ri
quezas, a glória, os prazeres ; mas ama também o
não fazer nada; v.erdadeiro gozo a que algumas vezes
sacrifica sua reputação e bem-estar. Bem conhe
cia Deus a natureza humana, quando a puniu com
trabalho. Comer o pão com o suor do rosto é para
o homem c·astigo contínuo e freqüentemente mui duro.
XXV
UMA VANTAGEM DA PREGUIÇA SOBRE AS
OUTRAS P AIXóES
A preguiça, isto é, a paixão do repouso, tem,
para triunfar, uma vantagem sobre as demais pai
xões ; é que nada exige áe nós. Com efeito, o obj ecto
da inacção é puramente negativo. Não se pode con
seguir uma posi�ão elevada sem muita actividade,
esforços e constância. Um nome glorioso supõe tí
tulos que o mereçam, e estes títulos não se adquirem
sem fadiga. O amor das riquezas impõe trabalho
perseverante, combinações hábeis ; até os prazeres
O CRITI1RIO 281
mais efeminados se não alcançam sem os procurar ;
são o prêmio de certos esforços. Toda a paixão de
manda labor, só a preguiça é que nada exige. Sa
tisfá-la-eis melhor assentados que de pé, melhor
deitados que assentados, melhor a dormir que acor
dados. A sua tendência é o nada ; o nada é seu
limite extremo. Quanto mais o preguiçoso se ani
quila em sua existência, tanto mais é feliz.
XXVI
ORIGEM DA PREGUIÇA
Em nossa organização e no modo com
'
o se exer
cem em nós as funções vitais encontraremos a origem
da preguiça. Toda a acção demanda certo emprego
de forças, de maneira que contém um princípio de
fadiga e portanto de dor. Quando a despesa de
força é insignificante ou não se exerce senão durante
o tempo necessário ao desenvolvimento das forças
orgânicas, o sofrimento é nulo ; pode até haver pra
zer. Mas logo que a perda se torna sensível começa
a fadiga. E is por que os mesmos preguiçosos não
raro empreendem certos trabalhos com alegria .
Note-se que dizemos empreendem. É talvez por igual
razão que os homens mais vivos raramente são labo
riosos. O ardor e intensidade de seus esforços de
vem excitar neles, antes que nas organizações calmas,
282 O CRITtRIÚ
a sensação do cansaço ; acostumam-se mais fàcilmen
te a olhar o trabalho com aversã.o.
XXVII
PREGUIÇA DO ESPíRITO
Como todo o exercício d'as faculdades intelectuais
é acompanhado de certos actos orgânicos, a preguiça
desempenha notável papel nos fenómenos activos da
inteligência, como nos do corpo ; não él o espírito que
se cansa, mas sim os órgãos corporais que dele estão
ao serviço. Daí vem que às vezes se experimenta,
para pensar ou querer, a mesma repugnância que
para os mais pesados trabalhos manuais. Note-se que
estas preguiças não são necessàriamente simultâneas
e pode existir uma sem a outra.
A fadiga do corpo, a fadiga puramente muscu
lar, nem sempre produz prostração intelectual ou
moral ; todos temos observado isto. Do mesmo mo
do, depois de intensos ou demorados trabalhos do
espírito, quando se acham completamente esgotadas
as forças intelectuais, exercemos algumas vezes as
forças físicas com verdadeiro prazer. Este fenó
meno explica-se por este facto : as alterações do sis
tema muscular estão longe de ser proporcionadas
às alterações do sistema nervoso.
O CRITÉRIO 283
XXVIII
RAZõES QUE CONFffiMAM O QUE DEIXAMOS DITO
SOBRE A ORIGEM DA PREGUIÇA
Para confirmar que a preguiça é um instinto
de precaução contra o sofrimento, podemos fazer
as seguintes observações : 1. o Que a acção, longe de
repugnar, se torna atraente quando tem por obj ecto
o prazer ; 2 .0 qu� ao fim de um trabalho a repug
nância é maior, porque, para pôr os órgãos em acção,
é preciso particular esforço ; 3.0 que a repugnância
é nula quando, feitos j á os movimentos, ainda não
tem decorrido bastante tempo para fazer-se sentir
o cansaço que nasce do esgotamento das forças ; 4.0
a r�pugnância reaparece e aumentaà medida que
o cansaço se produz ; 5. o que os homens de grande - -
vivacidade são mais atreitos a experimentar esta
repugnância , porque são os primeiros a experimentar
a dor ; 6.0 que os caracteres móveis e ligeiros rara
mente são isentos deste defeito, por isso que o es
forço exigido p�lo trabalho não é o único que lhes
é imposto, pois têm de vencer também a inclinação
a mudar de objecto.
284 O CRlTtRIO
·---------
XXIX
A INCONSTANCIA ; SUA NATUREZA E ORIGEM
A inconstância, aparentemente excesso de acti
vidade, pois que nos impele incessantemente para
novos objectos, não é, no fundo, senão uma preguiça
disfarçada. A inconstância substitui um trabalho
a outro para evitar se eximir à continuidade de acção
determinada. Assim é que, geralmente, os pregui
çosos são grandes forjadores de proj ectos. Os pro
jectos, vasta carreira aberta a divagações, nenhuma
sujeição exigem do espírito . É também por isso que
sucessiva ou simultâneamente gostam de empreender
muitas coisas, com a condição, todavia, de nenhuma
levar a cabo.
XXX
PROVAS E APLICAÇÃO
Quantos homens não sacrificam à sua incons
tância os interesses e deveres mais sagrados ! São
-lhes impostos certos trabalhos : - abandonam-nos
por outros, talvez mais penosos, mas que eles mesmos
escolheram ; - um negócio importante os chama ;
o tempo urge : - esquecem-se em inúteis conversá·
O CRIT�RIO
ções. Deve-se tratar em sua presença questões do
mais alto interesse ; com algumas horas de estudo,
alguns esforços, pôr-se-iam em estado de dar o seu
parecer com conhecimento de causa : - estas horas,
que o dever reclama, empregam-nas eles em vãs
discussões. A política, a guerra, as ciências, a
literatura, tudo lhes serve de agradável assunto, uma
vez que não sej a obrigatório.
Mas, passear, conversar, discutir, é obrar ; é
exercer as faculdades do corpo, ou as do espírito ;
e no entanto os passeadores e os faladores abundam,
ao passo que os homens verdadeiramente laboriosos
são raríssimos. E por que ? E' que o passeio, a dis
cussão, a conversa não contrariam a inconstância,
não exigem esforço e admitem variedade e mudança,
trazem consigo alternativas de exercício e de repousv,
inteiramente sujeitos à vontade e ao capricho.
XXXI
O JUSTO MEIO ENTRE OS EXTREMOS
Evitar a pusilanimidade sem fomentar a pre
stmção, sustentar, excitar a actividade sem desper·
tar o amor-próprio, dar ao espírito o sentimento de
suas forças sem o cegar pelo orgulho : ciência é mui
difícil quando se trata de outrem, bem mais difícil
286 O CRITÉRIO
ainda quando se trata de si mesmo. É esta a ciência
que o Evangelho ensina ; é o triunfo da razão. Os
escolhos que assinalamos, nós os devemos costear
incessantemente, não com esperanças de os evitar
todos e de lhes escapar sempre, mas com desej o e
esperança de sobreviver aos naufrágios.
A virtude é difícil, mas não é impossível. O
homem não a alcança aqui na terra sem mescla de
muitas dificuldades que a deslustram ; porém não
carece dos meios suficientes para a aperfeiçoar. A
razão é um monarca condenado a uma luta sem tré
guas contra vassalos revoltados ; mas Deus lhe deu
as forças necessárias para combater e vencer : luta
terrível, cheia de asares e perigos, mas, por issG
mesmo, mais digna de tentar as almas generosas.
Em vão neste século se tenta proclamar a omnipotên
cia ou ascendente irresistível das paixões sobre a
razão humana. Emanação sublime da Divindade,
não foi a alma imortal abandonada por seu Criador.
Não, não é dado a poder algum extinguir o senti
mento da moral, quer no indivíduo, quer na� socie
dades : no indivíduo, sobrevive este sentimento a to
dos os crimes ; nas sociedades sobrevive a todos os
tempos. No criminoso, o remorso reclama e vinga
todos os seus direitos esquecidos nas sociedades, pro
testam em comum os votos de heróicas dedicações.
O CRITÉRIO 287
XXXII
A MORAL É O MELHOR. GUIA DO ENTENDIMENTO
PRATICO
A moral ! eis o guia por excelência do enten
dimento prático. No governo dos povos, a política
pequena é a dos interesses bastardos, da intriga,
da corrupção ; a grande política é a do interesse
geral, da razão e do direito. Na vida particular, o
proceder tacanho é o dos manejos ignóbeis, das vis
tas mesquinhas, do vício ; o proceder largo é o que
a generosidade e a virtude inspiram.
Ó justo e o útil parecem às vezes andarem se
parados, mas esta separação não é muito duradoura ;
aparentemente! seguem caminhos opostos, mas o fim
a que se dirigem é o mesmo. Assim quer Deus ex
perimentar a constância do homem, bem que nen.
sempre remeta para a outra vida a recompensa de
seus esforços. E, se acontece uma - ou· outra vez, será
pequena recompe·nsa o descer ao túmulo com a alma
tranqüila, sem remorsos, e com o coração cheio de
esperanças ?
Sim, a arte de governar não é outra coisa que
a moral e a razão aplicada ao governo dos Estados.
Sim, a arte de bem se conduzir não é outra coisa
que o Evangelho em acção. Nem as sociedades, nem
288 O CRITÉRIO
os indivíduos esquecem impunemente os eternos prin
cípios da moral ; s-e a estes princípios opõem os vis
conselhos do interesse, cedo ou tarde se perderão
nas próprias combinações. O interesse que se erige
em ídolo não tarda a tornar-se vítima : a experiência
aí está para o atestar. Esta verdade acha-se escri
ta em todas as páginas da história com caracteres
de sangue !
XXXIII
A HARMONIA DO UJ'.J"l:VERSO PROTEGIDA PELO
CASTIGO
Tod·a a culpa recebe um castigo. O universo
está submetido a uma lei de harmonia ; quem pertur
ba esta harmonia sofrerá em · sua organização ou no
seu coração. Ao abuso das faculdades físicas segue
-se a dor material ; às prevaricações do espírito su
cedem o arrependimento e o remorso. Tal que pros
seguia a glória com excessivo ardor encontra o ridí
culo e a V€rgonha ; tal outro que, em seu desmesurado
orgulho, queria ver o universo a seus pés, subleva
contra si a indignação, a resistência, as humilhações
e o insulto. O preguiçoso adormece na inacção, mas
esta inacção devora seus recursos ; bate-lhe à porta
a necessidade ; é mister que o excesso do trabalho e
actividade venha .substituir o repouso culpável. O
O CRIT:tRIO 289
pródigo dissipa seus haveres nos prazeres e osten
tação ; porém não tarda a chegar um vingador de
seus desvarios na pobreza andrajosa e famélica, que
lhe impõe em vez do. gozo privações, em vez do luxo
e ostentação, escassez e vergonha. O avaro acumula
tesouros com medo da pobr,eza, e no meio de suas
riquezas sofre os rigores dessa mesma pobreza que
tanto o amedronta. A nada se aventura para nada
perder, desconfia até das pessoas de quem é mais
amado ( isto se o avaro pode ser amado) ; no silêncio
da noite, no seio das trevas visita os tesouros, afim
de se assegurar de que seu ouro, isto é, sua alma
está no mesmo sítio. Mas eis que um vizinho, um
criado infiel, penetrou seu segr·edo, o tesouro desa
parece, e a pobreza em toda a sua realidade entra em
sua casa.
Nas artes, na literatura, no trato quem muito
quer agradar arrisca-se a desagradar : o excesso da
delicadeza degenera em mau gosto ; o sublime to
ca o ridículo ; a fineza torna-se afectação, o excessivo
amor da simetria produz os contrastes mais discor
dantes.
No governo das sociedades, o abuso do poder
arrasta à ruína do mesmo poder ; o abuso da liber
dade conduz à servidão. O povo que pretende es
tender demasiado suas fronteiras, vê-se obrigado a
recuar muito para dentro das naturais ; o conquista
dor que se obstina em acumular coroas sobre a ca-
290 O CRITtRlO
.beça arrisca-se sempre a perdê-las todas, e tal que
não pode contentar-se com o domínio de gigantescos
impérios, vai finar-se sobre uma árida rocha soli
tária na imensidade do oceano. Dos que ambicio
nam o poder supremo, o maior número encontra a
proscrição ou 'a morte. Apetecem o palácio de um
monarca, e ficam s·em lar doméstico ; sonham com
um trono e encontram o patíbulo.XXXIV
OBSERVAÇõES SOBRE AS VANTAGENS OU DES
VANTAGENS DA VIRTUDE NOS NEGóCIOS
Não deixou Deus indefesas as suas leis ; deu
-lhes por escudo o castigo que segue o crime, até
neste mundo. Eis por que os cálculos baseados em
interesses opostos à moral, geralmente, são enga
nosos. A imoralidade cairá nos laços que da pró
pria arma. Mas entendamo-nos bem ; não quero di
zer que as condições de luta entre o homem de bem
e o mau não sejam muitas vezes desvantaj osas ao
primeiro. Sim, aquele a quem nenhuma considera
ção detém, para quem todos os meios são legítimos,
uma vez que levem :ao fim desej ado, convenho nisso,
tem grandes vantagens sobre o homem de bem, a
quem só a idéia da inj ustiça torna espavorido. Não
ter senão um meio para se defender é arriscar-se a
O CRITÉRIO 291
ser vencido : mas se é verdade que em certos casos
isolados a vantagem pertence aos maus, não o é me
nos que com o tempo a balança se restabelece ; a Pro
vidência encarrega-se do contrapeso, e ouso afirmar
que não é raro ver, afinal, o homem recto em suas
vistas e proceder conseguir o fim que discretamente
se propôs, ao passo que o imoral expia, ·a hora mar
cada, as suas iniqüidades ou seus crimes, encon
trando 3.1 própria perda no fim de seus tortuosos ca
minhos.
XXXV
UMA ACUSAÇÃO INJUSTA CONTRA A VIRTUDE
Os homens virtuosos e desgraçados têm certa
propensão para assinalar suas virtudes como ori
gem de suas desgraças ; pois que a isto os inclina
o desej o de ostentar sua virtude e ocultar suas im
prudências ; que mui grandes imprudências se come
tem também com a intenção mais recta e mais pura.
A virtude não é responsável pelos males que a im
previdência e leviandade arrastam ; e todavia acu
sam-na com extrema facilidade. Minha boa fé me
perdeu, exclama o homem de bem, vítima de uma
perfídia. O que o p.erdeu não foi a sua boa fé, mas
sim uma confiança irreflectida e absurda, quando
tudo o advertia a que tivesse cuidado. Acaso os
292 O CRITÉRIO
maus não são também vítima dos outros maus ? e
os pérfidos dos outros pérfidos ? A virtude nos
ensina o caminho que devemos seguir, mas não se
encarrega de descobrir os laços que neles podemos
encontrar : isto pertence à penetração, à previdência,
ao bom j uízo, isto é, a um entendimento claro e ati
lado. Estes dotes não excluem a virtude, vivem com
e!a em perfeita harmonia, mas não são uma e a
mesma coisa. Como fiel amigo da humanidade, al
berga-se sem repugnância no coração de toda a clas
se de homens, quer neles brilhe esplendente e puro
o sol da inteligência, quer o obscureçam densas nu
vens.
XXXVI
UMA ACUSAÇÃO INFUNDADA CONTRA A CI11'.:NCIA
Crêem alguns que os grandes talentos propen
dem naturalmente para o mal : isto é uma como
blasfêmia contra a bondade do Criador. Acaso a
virtude necessita de trevas ? PDr ventura os éonhe
cimentos e virtude da criatura não. emanam da mes
ma origem, do pélago de luz e santidade� que é Deus ?
Se a elevação da inteligência conduzisse ao mal, a
maldade dos entes estaria em proporção com sua
altura ; adivinhais a conseqüência ? por que não tirá-
O CRinRIO 293
-la ? A sabedoria infinita seria a maldade infinita :
eis-nos no erro dos maniqueus, estabelecendo no alto
da escala dos bons um princípio mau : mas que digo ?
pior fora este erro do que o de Manes ; pois que nele
não se poderia admitir um princípio bom. O gênio
do mal presidiria sem rival e inteiramente só aos
destinos do mundo ; o rei do A verno deveria colocar
seu trono de negra lava nas esplendentes regiões do
empíreo.
Não, não deve o homem fugir da luz com medo
de cair no mal, a verdade não teme a luz e o bem
moral é uma .grande verdade. Quanto mais ilustra
do esteja o entendimento, melhor conhecerá a ine
fável beleza da virtude, e, conhecendo-a melhor, me
nos dificuldades terá em praticá-la. Rara vez há
grande elevação nas idéias, sem que dela participem
os sentimentos ; e os sentimentos elevados ou nas
cem da mesm� virtude ou são uma disposição muito
a propósito para a alcançar.
Até há em favor do talento e do saber uma
razão fundada em a natureza das faculdades d·a al
ma. Sabe-se que certas faculdades não se aperfei
çoam em nós senão à custa doutras faculdades me
nos cuidadosamente desenvolvidas. Ora, cultivar as
qualidades superiores é diminuir ·a força das paixões
grosseiras, fonte dos vícios.
A história do espírito humano confirma esta
verdade : geralmente falando, os homens de enten-
294 O CRITÉRIO
dimento muito elevado não têm sido perversos ; muitos
se distinguiram por suas eminentes virtudes ; ou
tros foram débeis como homens, mas não malvados ;
e se um ou outro chegou a este extremo deve ser
considerado como excepção, e não como regra.
Sabeis porque um malvado de grande talento
compromete, por assim dizer, a reputação dos de
mais, ocasionando que de alguns casos particulares
se tirem deduções gerais ? Porque num malvado de
grande talento todos pens·am, e dum malvado néscio
ninguém se lembra ; porque formam um vivo con
traste a iniqüidade e o· grande saber, e este contras
te torna mais sensível o extremo feio ; pela mesma
razão que se repara muito mais na relaxação de
um sacerdote que na de um secular. Assim, nin
guém repara nas manchas de um cristal desluzido,
ao passo que num c ristal puro e brilhante o mais leve
defeito atrai as atenções de todos.
XXXVII
AS PAIXóES SÃO BONS INSTRUMENTOS, l\'IAS
PÉSSIMOS CONSELHEIROS
Vimos no capítulo XIX quão pernicioso é o in·
fluxo d·as paixões para impedir-nos o conhecimento
da verdade, ainda a especulativa ; porém o que ali
O CRITÉRIO 295
se disse em geral tem muito mais aplicação refe�
rindo-se à prática.
Quando tratamos de executar alguma coisa, as
paixões são às vezes excelente auxiliar, mas para
prepará�la em nosso entendimento, são conselheiros
mui perigosos.
O homem sem paixões seria frio, teria alguma
coisa de inerte, por c·arec!1r de um dos princípios
tnais poderosos de acção que Deus concedeu à natu
reza humana ; porém, em troca, o homem dominado
pelas paixões é cego, desaia e procede à maneira
dos brutos.
Examinando atentamente o modo de obrar de
nossas faculdades, vê�se que a razão é própria para
dirigir e as paixões para executar ; e assim é que
aquela atende não só ao p1·esente, mas também ao
passado e futuro, ao passo que estas só conside
ram o obj ecto no momento actual e pelo modo como
nos afecta.
A razão como verdadeira directora faz-se cargo
de conhecer tudo o que pode danar ou favorecer,
as paixões unicamente encarregadas de executar, só
cuidam do momento e das impressões actuais. A ra�
zão não se detém só no prazer, senão em utilidade,
moralidade e no decoro ; as paixões prescindem do
decoro, da moralidade e da utilidade, de tudo que
"�ão sej a impressão agradável ou desagradável, que
TIO acto se experimenta.
296 O CRITÉRIO
XXXVIII
A HIPOCRISIA DAS PAIXõES
Pela palavra paixões não entendo tão sõmeJJt"
estas afecções violentas e cheias de tormento, que
s:io em nossa alma o mesmo que as tempestades n1
Dceano, mas ·ainda essas inclinações mais doces t
mais espiritualizadas, que parecem aproximar-se da:::.
regiões superiores\ da alma e a que se dá o nome de
s�ntimentos. Tempestuosas ou ternas, as paixões
no fundo são o mesmo : não diferem senão na forma,
na intensidade, no modo de se aplicarem ao obj ecto.
Tanto mais formidáveis quanto menos inspiram te
mor, sua delicadeza é demais uma sedução.
Quando a paixão se apresenta em toda a sub.
�isformidade e violência, ab·alando brutalmente u
espírito e empenhado-se por o arrastar por maus
caminhos, este toma as devidas precauções contra
o adversário, prepara-se para a luta, resultando tal
vez que a impetuosidade do ataque provoque heróica
defensão. Porém se a paixão depõe seus modos
violentos, se se despoj a, por assim dizer, de seus
traj es grosseiros, cobrindo-se com o manto da ra
zão ; se suas sugestões se chamam conhecimentos, e
suas inclinaçõesvontade ilustrada, porém decidida,
O CRlTtRlO 297
então tomará por traição a praça que não pudera.
tomar por assalto.
XXXIX
EXEMPLO. DUAS FORMAS DE VINGANÇA
Um homem tem nas mãos a solução de um ne
gócio importante de que depende a sorte de um seu
inimigo ; este homem pensa nas ofensas recebida:>,
e o ressentimento se desperta em sua alma, ao res
sentimento sucede a cólera, e à cólera a sede de
vingança. Porque se não vingará ele ? A ocasião
não pode ser mais favorável. Que prazm· ! ver com
os próprios olhos o desespero do inimigo ! o inimigo
traído em suas esperanças, escarnecido pela sorte,
mergulhado na miséria ou obscuridade ! - Vingan
ça ! e que este homem detestado saiba que a vingança
parte de ti ! Retribui-lhe o mal com o mal. Rego
zij ou-se com a tua desgraça, triunfa agora da sua :
ressacia-te com suas lágrimas. Tem inocentes fi
lhos que partilham a sua desgraça ; - não importa !
que eles morram, e com eles toda a sua raç·a inteira !
O seu pai já encarnecido morrerá de pesar ! - poi:;
que morra também ! Deste modo mais numeroso:;
serão os golpes vibrados no teu inimigo ; assim der
ramarás em sua alma toda a amargura, todo o fel
que um dia derramara na tua. Vingança ! nada de
298 O CRITÉRIO
piedade para quem tão desapiedado foi ! nada de
generosidade par quem tão longe esteve de ser ge
neroso !
Assim fala o ódio exaltado pela cólera ; mas
essa linguagem é muito dura, muito violenta ; não
a poderá ouvir um coração generoso ; o mesmo
amor-próprio se revolta�á contra os odiosos conse
lhos. Pois que ! regozij'ar-me-ei com a ruína de uma
família ! precipitarei na miséria os filhos inocentes !
levarei ao túmulo um miserando velho ! Não ! não
são estes os ensinamentos da honra ! A vingança
é um prazer baixo e cruel ; a generosidade é a vir
tude das grandes almas. Se meu amigo procedeu
sem piedade, serei generoso para com ele ; a sua vista
se abaixará diante de mim, subir-lhe-á o rubor às
faces, seu c:oração sentirá remorsos : f ar-me-á
justiça.
O espírito de vingança havia-se mostrado im
perioso, duro, exigente, absoluto, a alma portanto
revoltou-se. A piedade, a justiça, um nobre orgu
lho, vieram em seu auxílio : estes sentimentos fize
ram pender a balança. Outro talvez teria sido o
resultado, se a vinganç-a tivesse disfarçado seu as
pecto repugnante ; se, oculta nas dobras mais secre
tas do coração, e distilando de lá seu mortal veneno,
tivesse adoçado sua voz e falasse em nome da justiça :
" Ele ! merecer tal favor ! é mil vezes indigno dele.
A indignidade de teu inimigo, eis o único motivo de
O CRITÉIUO 299
tua oposição ! Talvez experimentes secreto e vivo
prazer em poder contrariá-lo, abatê-lo, perdê-lo, porém
este sentimento não te domina ; o bem público pede,
tu obedeces. Se, a pesar teu, tens naturais rancores,
a prudência, a j ustiça, a razão, são pelo menos con
cordes com o pendor de teu coração ; e o mal não é
grande, uma vez que procedas com precauç.ão. Pro
cede com serenidade afim de que se veja que não
obras com espírito de ódio e parcialidade, antes que
usas de um direito, e procedes segundo a voz impe
riosa do dever. "
A vingança impetuosa, violenta, francamente
inj usta, fora vencida ; a vingança pacífica, insidiosa,
hipõcritamente disfarçada sob a máscara da razão,
áa justiça e do dever triunfa sem esforços.
Eis por que tão funestos são os ódios exercidos
em nome do zelo. Uma alma odienta, iludindo-se
a si mesma e crendo obedecer a inspirações legítimas,
talvez, à mesma caridade, é como a ave fascinada
pela serpente ; fascinação tanto · mais perigosa,
quanto menos a alma dá por ela.
É então que a invej·a calunia sem remorsos as
mais puras e brilhantes reputações ; os rancores tor
nam-se inexoráveis e avançam denodadamente ao fim
que se propõe ; então a vingança implacável se com··
praz nas agonias, nas convulsões, no desespero de
suas vítimas.
300 O CRITÉRlO
O Salvador do mundo cumpre sua missão sobre
a terra, os povos se atropelam seguindo seus pas
sos ; Ele pass·a por entre os homens derramando
o bem. Afável para com os pequenos, cheio de com
paixão para com os infelizes, indulgente para com
os criminosos, espalha a mãos-cheias os tesouros da
sua omnipotência e de seu amor. Só palavras de
perdão e doçura tem para todas -as misérias do co
ração ; dir-se-ia que só para os hipócritas reserva
a linguagem de uma santa e terrível indignação ;
sua vista maj estosa e severa penetrou no fundo de
seu coração e pôs a descoberto su-a falsidade. Os
hipócritas não podem perdoar-lhe a confusão com
que os cobriu ; devora-os a sede de vingança. Mas
falarão eles em nome do ódio ? Obrarão em nome
da vingança ? Não ! " Este homem é um blasfema
dor, dizem eles ao príncipe dos sacerdotes, seduz
o povo ; é inimigo de César. A fidelidade ao prín
cipe, a tranqüilidade pública, a religião exige que
ele morra. " Mercadej a-se a traição de um discí
pulo : o inocente cordeiro é arrastado perante um
tribunal. Sua tranqüilidade sublime, suas ·respos
tas de verd·ade redobram a raiva dos falsos dou
tores ; o chefe da sinagoga despedaça os vestidos
exclamando : Blasfemou ! e o povo enganado pede
a morte do j usto . "
O CHlTÉRIÜ 301
XL
PRECAUÇõES
Nunca o homem medita demasiado sobre os
mistérios do coração ; nunca vela com demasiada
vigilância às portas por ondB a iniqüidade se insi
nua ; nunca se guarda demasiado dos laços que se
arma a si próprio. Não é pois quando as paixões
se aprBsentam tais como realmente são, de rosto
descoberto, que elas se devem temer. Se o senso
moral, se os germes de virtude não se acham ainda
�xtintos no homem, à vista do vício, do vício hedion
do B desnudado, ouve levantar-se em sua alma m1t
como grito de indignação e de espanto. Mas que
perigos se não corre quando as paixões, mudando
de nome, disfarçando as feições, se nos apresentam
à sombra da razão, do direito, do dever, quando nos
aplicam aos olhos um prisma enganador, através do
qual as coisas serão vistas diferentemente do que
na realidade são !
O escolho mais perigoso para a inocência não
é pois o arrastamento brutal de paixões grosseiras ;
temei antes o enlevo dos sentimentos que encan
; tam por sua delicadeza e seduzem pela doçura. O
medo penetra nos corações nobres sob a máscara
da prudência ; com o nome de economia, de sábia
302 O CRITÉRIO
previdência se insinua a avareza nas almas gene
rosas e as avilta ; o orgulho oculta-se à sombra
da dignidade pessoal ; a vaidade respinga seus go
zos pueris, sob o vão pretexto de ouvir e fazer
crítica ; a vingança adorna-se com o nome de j us
tiça ; a cólera chama-se santa indignação ; a pre
guiça invoca a necessidade do repouso ; e a inveja,
implacável abutre, a inveja que atassalha as repu
tações de mais mérito, que mancha com seu hálito
impuro as mais santas virtudes, ex:erce seu da
nado mister falando de justiça, de amor, de ver
dade, dos perigos d.e uma admiração ignorante e
de um entusiasmo pueril.
XLI
HIPOCRISIA DO HOMEM PARA CONSIGO MESMO
O homem emprega a hipocrisia talvez mais
para consigo mesmo do que para com os outros ; é
raro que se dê conta exacta e escrupulosa do mó
bil de suas acções ; é por isto que aind·a as virtu
des mais puras têm alguma coisa de escóría. O ·
amor divino, eis o ouro sem liga ! mas este amor
puro não é da terra, Em nossas provações no mun
do, nutrimos em nós um princípio mau que mata,
enfraquece ou vicia nossas virtudes. Obstar a que
este germen fatal nos invada, é a obra , ê o labor
O CRITÉRIO 303
d€ toda a vida, obra difícil, labor penoso e cheio
de angústia. Todavia, qualquer que seja nossa
fraqueza, recebemos d·a mesma mão de Deus uma
luz para nos guiar ; luz que j amais se extingue e
nos aj uda a distinguir o bem do mal ; razão que
nos esclarece ou consciência que nos pune. Procu
ramos iludir-nos a nós mesmos, porque receamos
esta luz, isto é, a oposição da consciência a nos
sas inclinações, fechamosos ouvidos para não ou
vir os queixumes desta inflexível conselheira a que
nada corrompe, procuramo-nos persuadir, pelo me
nos, que os princípios que ela impõe não são aplicá
veis às circunstâncias presentes. NBste intento,
correm as nossas paixões a ajudar-nos de modo
deplorável, prestando-nos o apoio de seus sofismas.
O homem não se resigna a parecer mau, mesmo a
seus próprios olhos ; falta-lhe ânimo para isso, tor
na-se hipócrita.
XLII
CONHECIMENTO DE SI MESMO
O d€feito que acabamos de assinalar reveste
todas as formas e se modifica até ao infinito. Eis
por que muito convém nunca perder de vista este
preceito dos antigos, tão profundamente sábio : Co
nhece-te a ti mesmo ! Se há certas qualidades co-
304 O CRIT�RIO
muns a todos os homens, tomam estas um carácter
particular em cada um deles. Cada um de nós
tem, para assim dizer, uma mola secreta a que
obedece e que importa conhecer. Esta mola é a
inclinaç.ão dominante. Todas as nossas paixões par
ticipam desta inclinação ; €la se subordina e as
submete todas a seu obj ecto ; entra em todos os
actos da vida e constitui o que se chama carácter.
Se nos é necessario descobrir esta mola em outrem
para regular nossas relações com o mundo, quanto
nos não é vantajoso descobri-la antes em nós ? Es
te conhecimento é o segredo das grandes coisas,
boas ou más.
XLIII
O HOMEM FOGE DE SI MESMO
Se não tivéssemos a funesta inclinação de fu
gir de nós mesmos, se a contemplação de nosso in
terior nos não repugnara em tão alto grau, não nos
fora difícil descobrir qual a paix.ão que em nós ou
tros pr.€domina. Desgraçadamente de nada fugimos
tanto como de nós mesmos, nada evitamos tant'J
como a vista de nossa alma : o primeiro de nossos
interesses é apenas a nossa última preocupação.
Quantos homens descem ao túmulo não somente
sem se conhecerem, mas sem jamais se procurarem
O CRITtRIO 305
conhecer ! Deveríamos ter sempre a vista fixa so
bre nosso coração para conhecer suas inclinações,
penetrar seus segredos, refrear seus ímpetos, cor
rigir seus vícios, evitar seus extravios ; deveríamos
viver nesta vida íntima em que o homem se dá
conta de seus pensamentos e afectos, e não se põe
em relação com os objectos exteriores, senão de
pois de haver consultado sua razão e dado à sua
vontade a direcção conveniente. Mas isto não se
faz ; o homem consagra-se aos obj ectos que o inci
tam, vivendo tão somente esta vida exterior que
não lhe deixa tempo para pensar em si mesmo.
Vêem-se entendimentos claros, corações belíssimos
que não guardam para si nenhuma das preciosid·a
des com que o Criador os enriquecera : que derra
mam, para assim dizer, nas ruas e nas praças, o
aroma esquisito, que guardado no fundo de seu in
terior poderia servir-lhe de conforto e regalo.
Refere-se de Pascal que, tendo-se dedicado com
grande afinco às ciências matemáticas e naturais,
se enfadou deste estudo pela razão de encontrar
poucas pessoas com ·que conversar sobre o obj ecto
de suas ocupações favoritas. Desej oso por encon
trar materia que não tivesse este inconveniente, se
dedicou ao estudo do homem ; porém depressa co
nheceu por experiência, que os que se ocupavam em
estudar o homem eram ainda em menor número que
os afeiçoados às ciências matemáticas.
306 O CRlTtRlO
Isto se verifica na actualidade como no tempo
de Pascal. Observe-se o que se passa no mundo, e
veremos qu8o raros são os que se dedicam a este
gênero de estudos, principalmente para deles fa
zerem aplicaç.ão a si mesmos.
XLIV
BONS RESULTADOS DO ESTUDO SOBRE AS
PAIXóES
Conhecer as paixõ,es, analisá-las, determinar
suas tendências, não é vencê-las. Pode o homem
ter consciência e envergonhar-se de suas fraquezas
e ceder no entanto a suas paixões. Todavia, se as
conhece, desconfia de sua cegueira ; é este um prin
cípio de sabedoria. O que j amais entra em si mes
mo, o que se entrega, de olhos fechados, a todol)
os caprichos de seu coração, esse corre necessària
mt-nte à sua perda. O instinto, a vontade, os con
selhos da razão, os impulsos do organismo tornam-·
-se para ele uma e a mesma coisa. A razão não
manda, obedece ; em vez de dirigir, de moderar,
àe corrigir as inclinações revoltadas, torna-se cúm
plice de suas desordens, escrava aviltada, provisio
neiro sem repouso e sem pudor de seus insaciáveis
caprichos !
O CRITtRIO 307
XLV
SABEDORIA DA RELIGIÃO CRISTÃ NA CONDUTA
DAS ALMAS
A religião cristã, convidando-nos a reflectir
sobre nossas inclinações, a nos estudarmos, está de
acordo com a mais sã filosofia e revela profundo
conhecimento do coração humano. O que, em geral,
falta ao homem não é o conhecimento especulativo
do bem, mas sim a ciência prática, o conhecimento
circunstanciado do benfazer. Quem não s.abe e
não tem repetido mil vezes que as paixões, nos trans
viam e nos perdem ? Mas bastará saber isso ?
Conhecer a paixãOi que em tal ou tal caso faz pender
a balança, a paixão que em nós predomina ; conhecer
o disfarce sob o qual ela se apresenta ao espírito
que pretende seduzir ; saber como é preciso repelir
seus ataques ou livrar de seus estratagemas ; e sa
bê-lo, não mais ou menos, mas de modo exacto, nítido,
preciso ; de sorte que tenhamos sempre, para assim
dizer, as armas prontas, e assim possamos, instan
tâneamente, tomar resolução, qualquer que seja a cir
cunstância ; eis o que muito importa. Arte difícil na
verdade, mas a primeira de todas as artes.
Nas ciências, o que distingue o homem supe
rior do homem medíocre, é que o primeiro possui
a fundo e pràticamente o que o outro não sabe se-
308 O CRITÉRIO
não confusa e imperfeitamente. A superioridade
não está pois no número, mas na qualidade das
idéias . Com efeito, o primeiro nada sabe que não
seja conhecido do segundo ; ambos têm as vistas
voltadas para o mesmo obj ecto ; mas a vista de um
é mais perfeita que a do outro, um vê melhor que
o outro.
Acontece ·assim na prática da vida. Um homem
profundamente imoral pode falar da moral de mo
do que prove que bem conhece suas regras ; mas
destas regras é que ele nunca fez aplicação. Não
tem experimentado de per si os obstáculos que po
dem embaraçar a prática. Não logra reconhecer
com bastante segurança o momento decisivo de se
servir delas. Nem sua vontade escuta, nem sua
inteligência compreende outra voz que a voz das
paixões. Tem os princípios morais encerrados no
mais fundo de seu coração como em arquivos, e
nem sequer por curiosidade para aí lança os olhos
com medo de ·acordar os remorsos.
Mas, quando a virtude tem lançado em uma
alma vivas e profundas raízes, estas mesmas re
gras tornam-se uma espécie de gênio fami liar que
preside a todos os pensamentos como a todos os
actos da vida ; este gênio desperta-se e s-e põe aler
ta ao menor perigo ; promr2te recompensas antes
da luta, e atormenta a consciência logo que ela
desobedece. A presença permanente das regras mo-
O CRITtRlO 309
rais no espírito é o benefício da virtude, a qual
deve também a esta intimidade sua força e dura
ção ; assim a religião recomenda instantemente esta
prática na persuasão de que cedo ou tarde dará
bons frutos.
XLVI
OS SENTIMENTOS MORAIS COMO AUXILIARES DA
VIRTUDE
Em ajuda das idéias morais vêm os sentimen
tos que também os há muito morais, poderosos e
belíssimos. Se Deus permite às tempestades que
se desencadeiem em nosso coração, também faz SO·
prar as brisas com que caem e se esvaecem as
vagas sublevadas. O hábito de obediência às re
gras morais desenvolve e vivifica os sentimentos
morais.
E1' então que em seus esforços para o bem po ·
de o homem opor as boas inclinações às inclina
ções más. A luta deixa de oferecer tantos peri
gos para ele, e deixa principalmente de ser dolo
rosa. A influência de uma paixão combate a paixão
contrári'a ; a alegria de um triunfo compensa a dor
de um sacrifício, e fica-se ao abrigo das dilacerações
que a alma experimenta quando a razão se acha
só na luta contra as inclinações do coração.310 O CRITÉRIO
Desenvolver os sentimentos morais, chamar em
auxílio da virtude as mesmas paixões, e, por sua
intervenção, dissipar as trevas que os maus instin
tos levantam na inteligênci'a, é fazer guerra à custa
do inimigo, e em seu próprio território : regra de
conduta de incontestável sabedoria .
Nesta oposição de paixões, as combinações são
infinitas. A dignidade p essoal contrabalança o amor
dos prazeres ; o temor de se tornar odioso encadeia
o orgulho ; a vaidade refreia-se com medo de se tor
nar ridícula ; o amor de glória estimula a pregui
ça ; a cólera se apaga para não parecer descompos
ta ; a honra que segue a generosidade tempera a
sede de vingança. O bem serve de contrapeso ao mal.
Neutralizam-se os germes impuros que fermentam
no coração humano, e o homem é virtuoso sem dei
xar de ser sensível.
XLVII
UMA REGRA PARA OS JUíZOS PRATICOS
Conhecida a mola principal do nosso coração,
tendo os sentimentos nobres e generosos recebido
o desenvolvimento de que são susceptíveis, resta
-nos ainda conhecer a maneira de dirigir nosso en·
tendimento para a verdade nos j uízos práticos.
O CRITÉRIO 311
A primeira regra que se deve ter presente é
não j ulgar nem deliberar com respeito a obj ecto
algum enquanto o espírito esteja debaixo da in
fluência de paixão relativa ao mesmo objecto. Se
estamos encolerizados, qualquer palavra, qualquer
gesto, qualquer facto insignificante nos faz desati
nar. " Não sõmente o ofensor teve intenção de nos
ferir, mas ajunta o insulto ao mal que nos faz. Só
o sangue pode lavar tal afronta : sem dúvida, con
vém conter-nos e perdoar ; mas a honra tem suas
exigências ! sem dúvida, é bom ser prudente ; mas
deixar-se calcar aos pés está long€ de ser prudên
cia ". Assim raciocina a cólera. Dir-nos-ão : a có
lera não raciocina, erra ! a cólera raciocina, por
que subj uga a inteligência e a força a servir seus
interesses ; e os serviços que dela recebe os retri
bui a seu turno com usura. Sabe-se a energia que
as pa1xoes dão ao espírito, e os imprevistos recur
sos que o espírito desenvolve debaixo de sua ins
piração.
Aplacada a cólera, o edifício dos raciocínios que
ela havia levantado ruirá de per si ; o que prova
que esta paixão nos ocultava a verdade. Julgare
mos do mesmo modo antes e depois ? O coração rec
to acabará por reconhecer com franqueza o pró
prio erro diante do homem, de que, pouco antes,
se pedia a vida.
312 O CIUTÉRÍO
XLVIII
OUTRA REGRA
Destas observações nasce outra regra, e é que
ao sentir-nos debaixo da influênci'a de uma paixão,
devemos esforçar-nos por imaginar, um momento
sequer, qual seria o nosso proceder, se estivésse
mos no estado normal. Semelhante reflexão, por
rápida que seja, muito contribui para acalmar a
paixão e excitar no ânimo idéi'as diferentes das su
geridas pela inclinação cega.
Por rápida que seja a reflexão, lançando a al
ma em uma nova ordem de idéias e sentimentos, e,
por assim dizer, em uma outra atmosfera, deve
acalmá-la. Uma impulsão quebranta-se ao choque
de impulsão contrária. Suprimir em nós tudo o
que lhes faça oposição, sobrexcitar tudo o que as
favoreça, eis o segredo das paixões, o segredo de
seus sucessos e poder. Logo que a atenção se di
rige a outra ordem de idéias, vem a comparação, e
por conseguinte cessa o exclusivismo. Entretanto
se desenvolvem outras forças intelectuais e mo
rais não subordinadas à paixão, e esta perde de
sua primitiva energia por ter de compartir com ou
tras faculdades o império que antes desfrutava só.
O CRIT:éRIO 313
Não é somente sobre a experiência, mas sobre
a mesma natureza de nossa organização que se
apoia a regra prática que acabamos de indicar.
Todo o acto de nossas faculdades intelectuais ou
morais é logo seguido de um acto orgânico. Ora nos
sos órgãos materiais receberam certa soma de força
vital que despendem em diferentes proporções, de
tal sorte que uns vão enfraquecendo à medida que
outros se fortalecem. Se é verdade que a energia
das paixões diminui em proporção com a actividade
dada aos órgãos da inteligência, é útil exercer estes
como contrapeso das paixões.
Observemos todavia que para obter o resulta
do pretendido, deve o esforço da inteligência ser
dirigido em sentido contrário d·as más inclinações ;
que, se a inteligência em vez de lutar contra es
tas inclinações, as segue, semelhante cooperação a
sobrexcita excessivamente. O que nesse caso po
dem perder, por diversão, em energia puramente
órgânica, o conseguem centuplicadamente em energia
moral, pela multiplicação de meios próprios para
alcançar o obj ecto, e por esta espécie de hábeas-cór
pus que o espírito parece dar-lhes apoiando-as em
vez de as combater.
Este trabalho sobre paixões não é uma simples
teoria. A experiência o confirma. Verdade é que
nem sempre se encontra meio seguro para mode
rar, conduzir, abafar a paixão, já senhora domi-
314 O CRITÉRIO
nante ; que, mesmo depois de se haver encontrado,
pode tal meio permanecer inútil em mãos inábeis ;
porém, o que o procura vai exercendo grande vi
gilância sobre si ; aprende a resistir aos primeiros
movimentos e possui, em seus juízos práticos, uma
regra de verdade que falta aos que jamais apren
deram a reagir sobre seu próprio coração.
XLIX
O HOMEM RINDO-SE DE SI PRóPRIO
Há uma arma que a observação nos ensina a
empregar utilmente contra nós mesmos. Esta arma
temível às paixões é o ridículo ; o ridículo, sal co
locado no coração e nos lábios do homem como
preservativo contra a corrupção intelectual e mo
ral ; o ridículo, que não somente corrige os defei
tos alheios, mas que, estigmatizando nossos pró
prios defeitos, amendronta nosso amor-próprio e nos
inspira aversão ao mal, pelo medo da sátira. Au
tor e espectador simultâneamente, o homem vê
desapiedadamente desvelados seus defeitos e· extra
vagâncias, flagelados desapiedadamente por um
adversário mordaz e de bom humor ; este adversá
rio é ele próprio. A vítima é ele também. E não
é certo que sobre os outros recai a zombaria que
empregamos contra nós mesmos ?
O CRlTtRlO 315
Há dois homens em cada homem que j amais
acordam entre si, que em luta incessante, encar
niçada, disputam o império. Depois de ter em vão
oposto a força da vontade, a autoridade da ra
zão ao homem cego, imoral, insensato, que se re
volta, o homem inteligente, moral, sábio, prudente,
chama a sátira em seu auxílio : sátira que deve ser
tanto mais graciosa e livre, quanto carece de tes
temunhas, não fere a reputação, nada faz perder
na reputação dos demais, pois que não chega a ser
expressada com palavras, e o sorriso mofador que
faz assomar ·àos lábios se extingue ao nascer.
Um pensamento mofador, lançado no meio da
exaltação das paixões, é como estes traços incisi
vos, penetrantes, irónicos, cheios de sal e a propó
sito, atirados por um orador hábil ao meio de uma
assembléia em tumulto. O efeito é o mesmo. Quan
tas vezes se não tem visto um simples olhar ex
pressivo mudar o estado do espírito de um dos cir
cunstantes, moderar ou extinguir uma paixão exal
tada ? E que exprimia este olhar ? Um apelo ao
sentimento das conv·eniências, ao respeito, ao lu
gar, ou às pessoas ; uma lembrança de amizade,
uma ironia delicada, talvez nenhuma outra coisa
que uma apelação ao senso comum. A paixão caiu
como a espuma logo que as ondas cessam de ser
batidas pelos ventos. Ora, esta influência que dei-
316 () CRITÉRIO
xamos a outrem ter sobre nós, por que a não exer
ceremos sobre nós mesmos ?
L
PERPÉTUA MENINICE DO HOMEM
Se o homem fàcilmente se deixa extraviar, é
também certo que pouco basta para o reconduzir
a bom caminho.
Mais fraco que mau, não se obstina no mal pe
lo único facto de ter começado a fazer o mal ; não,
entra, com deplorável facilidade, em uma ou outra
via, segundo a impulsão que recebe. Menino até a
velhice quer principalmente passar por sério exte
riormente, por isso disfarç'a como pode, sob exte
rioresde gravidade, a sua eterna_ meninice, bem
que no fundo conheça o que vale, e se envergonha
de si mesmo. Disse alguém que não há homem
grande para o seu criado de quarto. Isto é uma in
contestável verdade ; o homem visto de perto per
de o seu prestígio . As virtudes humanas exigem
certa perspectiva. E' também certo que o homem
se conhece a si melhor do que o conhecem os ou
tros ; eis por que, até em seus melhores anos, ele
precisa de se ocultar a puerilidade do seu coraçãú.
O menino ri, brinca, salta, e logo geme e se
enfurece, chora muitas vezes sem saber pelo quE:.
O CRITÉR1Ó 31'7
O menino sofre a influência de seu organismo, do
bom ou mau estado de sua saúde, do vento, do sol,
das nuvens que passam ; esquece o momento pas
sado, e o futuro é para ele como se não existira.
Não acontece o mesmo ao homem sério e grave, ao
mais sábio dos homens, bem que seus caprichos to
mem outro nome ? E' um perfeito menino, menos
as graças da infância.
Inteligência unida a um corpo que mil influên
cias modificam, móbil como a folha, o homem cede
a qualquer influência do vento ; suas impressões
sucedem-se com incrível rapidez ; muda incessan
temente e supõe que os objectos é que têm mu
dado, atribui-lhes a própria inconstância.
LI
UMA MUDANÇA NA VIDA
X entrou, passado certo número de anos de
que faz mistério, em idade madura. Homem de
juízo, saber e experiência, não se deixa jamais le
var pelas impressões do momento . . . pesando todas
as coisas na balança de uma razão plácida, e só
dando às paixões a influência que não consegue ti
rar-lhes.
Tem a seu cargo o projecto de uma especulação
considerável, para o que se conta com sua habili-
318 O CRITÉRIO
dade particular neste gênero de negocias. Entra
resolutamente no projecto que lhe apresentam, ofe
recendo uma p·arte notável de sua fortuna. Que
tem ele de temer com efeito ? Os obstáculoo ? Sabe
como os desviar ; os rivais ? tem vencido outros
mais poderosos. Além disso, negócios têm passado
por suas mãos, e jamais em sua honra ficou a mais
leve mancha. Embebido no pensamento que o li
sonjeia, exprime-se com maravilhosa facilidade, as
idéias abundam, os gestos se multiplicam acende
-se-lhe a vista, sua fisionomia torna-se expressiva ;
dir-se-ia ter voltado às suas vinte e cin<w primaveras,
se algumas cãs indiscretas, espreitando por debai
xo da cabeleira que as oculta, não revelassem trai
çoeiramente os troféus dos anos.
O negócio acha-se concluído ; faltam ainda al
guns promenores ; mas ficais emprazado para os
completar em próxima entrevista. Amanhã ? Não,
nada de dilações ; é preciso que sej a hoje. E ' assim
que X concebe e dirige os negócios ; portanto, esta
tarde !
À hora marcada compareceis fielmente no lu
gar designado. Está um calor de asfixiar, por
isso ides encontrar o bom do homem com o vestuá
rio em bastante descompostura. Meio estendido so
bre um sofá, vos saúda com áfectuoso esforço ; po
rém com evidente sinais de lassidão.
O CRITtRIO 319
- Vamos, senhor, se ficamos concordes defini
tivamente . . .
- Temos tempo de falar . . .
E a lassidão se retrata de cada vez mais na
fisionomia do interlocutor.
- Como o sr. me havia indicado esta tarde . . .
- Vej o que é de grande pontualidade, mas
enfim . . .
- Será quando o sr. quiser.
- Sem dúvida . . . E ' bom reflectir madura-
mente, e . . .
- Dificuldades; bem sei que as há ; mas como
estava tão resolvido esta manhã, entendi que tudo
se arranj aria.
- Resolvido, sim ! é ainda o estou . . . Todavia ,
não nos apressemos . . . é preciso ver . . . Enfim fa.l
laremos logo - acrescenta ele com expressão de
quem deseja que o não comprometam.
X já não é o mesmo. Exprime esta tarde o
que sente, como o exprimia esta manhã : a audá
cia, a actividade, os meios de levar a empresa a seu
fim, tudo desapareceu ! Os obstáculos de nada que
eram, tornaram-se insuperáveis. Os rivais não ti
nham valor algum e tornaram-se invencíveis.
Tomaria informações ? - não viu ninguém de
quem as tomar. Meditaria sobre o negócio ? - não
tinha pensado em tal antes, de vossa chegada. -
Mas então qual a causa de revolução tão repentina ?
320 O CRITtRIO
Que aconteceu ? - nada ; a explicação do fenómeno
é mui simples : não procureis grandes causas, são
muito pequenas. Em primeiro lugar 'a atmosfera
está pesada, faz um calor atroz, ao passo que de
manhã uma fresca brisa circulava no ar. X está
sumamente abatido. Escolhestes má hora para
falar. O céu cobre-se de nuvens e ameaça tem
pestade. A comida era alguma coisa indigesta ; o
sono da sesta foi demasiado breve. Que mais se
quer ? Não são bastante poderosos estes motivos
para transtornar o- espírito de um homem grave c
modificar suas opiniões ? Apesar de todas as ur
gências, quem vos levou a sua casa debaixo de tão
infausta constelação ?
Tal é o homem : a menor coisa o desconcerta
e muda. A vontade de que se julga senhor, obede
ce à nuvem que encobre a luz do sol e à brisa que
passa fagueira.
LII
OS SENTIMENTOS DE PER SI SóS SÃO POUCO
SEGURO GUIA
Entregar-se o homem só à mercê do sentimento,
é lançar o na vi o sem piloto para cima das ondas agi
tadas ; é proclamar a infalibilidade das paixões ; é
dizer ao homem : "Escuta tão somente os conselhos
O CRITÉRIO 321
do instinto, e obedece cegamente a todos os movimen
tos do coração " ; é despojar-se de sua inteligência e
seu livre arbítrio ; é converter-se em instrumento paR
sivo da sensibilidade.
Os .grandes pensamentos vêem do coração, disse
um escritor célebre ; é do coração que vêm igual
mente os grandes erros, as grandes extravagâncias,
os grandes crimes. Todas as coisas aí têm sua ori
gem. Harpa maravilhosa que desfere todos os sons,
desde os ruídos lúgubres e temíveis da habitação da
morte e do espanto, até às mais delicadas, às mais
suaves harmonias das regiões da paz e do repouso
eterno.
O homem que não tem outro guia que o seu
coração torna-se joguete das mais contraditórias
inclinações. Como a palha seca que o vento leva,
ele vai, vem, volta-se, levanta-se e torna a cair sem
tréguas e sem repouso. Contai os sentimentos que,
em poucas horas, podem atropelar-se em sua alma :
menos numerosas são as areias do mar e as estrelas
do céu. O homem passa, repentinamente, e sem co
nhecer a causa da simpatia ou antipatia, do amor
ao ódio ; agora cheio de coragem e ardor, logo inde
ciso, abatido, tímido. Quem desconhece a influên
cia que sobre ele ex·erce a idade, o tempo, o estado,
a posição social e muitas outras circunstâncias ?
Tudo que afecta sua inteligência e seu organismo,
como quer que isto se faça, modifica ao mesmo tem-
322 O CRIT�RIO
po sua maneira de sentir. Daí vem a inconstância
dos que se abandonam a suas paixões ; daí, esta mo
bilidade das organizações muito sensíveis, que não
souberam vigiar sobre si mesmas, reagir corajosa
mente sobre si mesmas, domar as próprias paixões.
As paixões foram dadas ao homem como esti
mulantes, como meios de acção e não para esclarecer
sua inteligência, para regular seu proceder. Diz-se
freqüentemente : - o coração não engana ! - Erro
deplorável ! Que é então a vida ? Um tecido M
ilusões urdido por nosso coração. Se algumas vezes,
entregando-nos às inspirações do sentimento, encon
tramos a verdade, quantas mais vezes estas inspira
ções nos seduzem e nos extraviam !
Sabeis por que ao coração se atribui tão seguro
instinto ? É porque seus menores sucessos têm, por
sua mesma raridade, o privilégio de excitar no mais
alto grau a nossa admiração ; é porque nos maravi
lhamos de o ver, no meio da própria cegueira, achar
a verdade, quando a temos procurado em vão à luz
do entendimento. Deslumbra-nos a excepção ; es
quecemos os errores a que nos leva o coração e da·
mos-lhe a honra de um discernimento que não tem
nem pode ter.
Dar por base à moral o sentimento, é edificar
sobre a areia movediça ; regular o procedimento pelas
inspirações do sentimento, é condenar-sea caminhar
ao acaso, e muitas vezes por maus caminhos. Em
O CRITtRIO 323
nossa época a literatura francesa, literatura que se
esforça por se introduzir na Esp anha, diviniza as
paixões : este sensualismo é gravíssimo perigo. Que
são, com efeito, as paixões divinizad·as, senão extra
vagância, imoralidade, corrupção ?
A desgraça e ·o crime são pela maior parte os
frutos amargos desta árvore maldita.
LIII
NÃO AS IMPRESSõES SENSíVEIS SENÃO A MORAL
E A RAZÃO
'
O proceder do homem, assim com respeito à
moral como com relação ao útil, não deve governar
-se por meras impressões, senão por regras seguras
e constantes ; nos actos morais, pelas máximas eter
nas da V€rdade ; no que toca aos interesses materiais,
pelos conselhos de uma razão sábia e previdente.
O homem é criatura limitada ; só relativamente
as coisas nele são perfeítas. As impressões que
recebe, modificações de sua própria natureza, em
nada alteram as leis eternas. Uma coisa justa não
deixa de o ser pelo facto de lhe desagradar ; uma
injustiça não deixa de ser inj ustiça por isso que ele
a aprova. O homem implacáv€1 que se vinga sente
feroz prazer enterrando um punhal no peito do ini
migo ; todavia esta acção não deixa de ser um crime .
324 O CRITÉRIO
O anj o da caridade que, sob o doce nome de irmã
vela à cabeceira do doente, experimenta muitas vezes
cruéis desgostos e no entanto a sua acção não deixa
de ser um acto heróico de virtude.
Até fora da ordem moral, é preciso encarar as
coisas não pelo modo com que elas nos afectam, mas
segundo o que realmente são. A verdade não está
essencialmente em nossas impressões, mas sim nas
coisas. Se nossas impressões estão em desacordo
com as coisas, tais impressões nos enganam e nos
extraviam. O mundo real não é o dos poetas e roman
cistas . Saibamos vê-lo tal qual ele é, e regulemos
nosso procedimento por esta vista. Nada de vãs
fantasias ; o positivo, o prático, o prosaico, eis o
que é o mundo.
LIV
A EXAGERAÇÃO PODE A UM SENTIMENTO BOM
TORNAR MAU
A religião não procura destruir e suprimir os
sentimentos ; modera-os e dirige-os. A prudência
não repele o auxílio das paixões ; sõmente recusa
dar-lhes o império. A harmonia estabelece-se no
coração do homem não pela elevação absoluta, não
pelo desenvolvimento simultâneo de suas inclinações,
mas por sua repressão.
O CRITÉRIO 325
Não é somente nas paixões contrárias que acha
remos um contrapeso aos sentimentos que deixamos
obrar em nós ; é principalmente na razão e na moral.
A oposição das inclinações boas às inclinações más
deixa de ser salutar, quando a razão não preside a
esta luta ; as inclinações boas não são tais, senão tanto
quanto a razão as modera : abandonadas a si mesmas,
exageram-se e pervertem-se.
Um militar está encarregado da defesa de um
ponto perigoso ; o perigo aumenta de instante para
instante ; em volta dele caem os companheiros ame-
'
tralhados, como espigas sob a fouce do ceifador ; apro-
ximam-se os inimigos ; é impossível a resistência, e
não chega a ordem de retirar. O desânimo está
prestes a entrar no coração do bravo : " Para que
morrer sem utilidade para a sua causa ? Exigirá
por ventura a disciplina e a honra um sacrifício
inútil ? Não valerá mais abandonar seu posto, in
vocando junto do general a imperiosa lei da neces
sidade ? Não, não ! responde o seu coração generoso,
seria a fraqueza a encobrir-se com o nome de pru
dência ! Que diriam os amigos ? que diria o exér
cito ? Entre a morte e a vergonha, a morte ! sem
hesitação, a morte ! "
Pode-se culpar essa reflexão com que o bravo
oficial procurara sustentar-se a si mesmo contra as
tentações da cobardia ? Esse desej o da honra, esse
horror à ignomínia de passar por cobarde, não foi
326 O CRIT�RlO
nele um sentimento ? Sim, um sentimento nobre,
generoso, cuj o ascendente fez pender a balança do
lado do dever. Sob a metralha e a vista da morte,
entre os gemidos dos feridos, o bravo teve um mo
mento de hesitação. A razão. entregue a si mesma,
teria sucumbido talvez ; mas e le chamou em seu au
xílio uma paixão mais poderosa que o temor da mor
te ; o sentimento da honra e n razão triunfaram ; a
paixão dirigida para um fim lP.gítimo produziu feliz
resultado.
Chegada a ordem de retirada, o oficial se reúne
a seu corpo, havendo perdido lll' posto fatal a quase
todos os seus soldados. - Já o tínhamos por morto
- lhe diz sorrindo um companheiro de armas -
mas j á vemos que soube guardar o tal respeito às
leis da Providência . O oficial crê-se ultraj ado ; pede
uma satisfação ao imprudente mofador, e poucos
momentos depois deixa este de existir. O mesmo
sentimento que gerara um acto heróico ocasiona
agora uma espécie de assassinato. A honra e o te
mor de passar por cobarde, tingem em fim as mãos
deste homem com o sangue de um amigo. A pai
xão, regulada, dominada pela razão, engrandecera
-se até ao heroísmo ; entregue à sua cega impetuosi
dade, degradou-se até ao crime.
A emulação luta vantajosamente contra a pre
guiça, contra o abandono de si mesmo, contra todas
O CRITtRIO 327
as inclinações que servem de obstáculo ao desenvol
vimento de nossas faculdades. Com auxílio deste
sentimento, o mestre estimula seus discípulos, o pai
de família combate as más inclinações de seu filho ;
um grande caudilho obtém de su·as tropas prodígios
de constância, de bravura, de dedicação. Desej o de
progredimento legítimo, amor do sucesso e do dever,
temor das censuras, vergonha de nos vermos excedi
dos por aqueles que podíamos exceder, são senti
mentos mui j ustos, mui nobres, excelentes para nos
fazer progredir no caminho do bem. Na da há neles
de repreensível ; são o manancial de muitas acções
virtuosas e sublimes inspirações.
Porém, este sentimento que fortifica a alma e
a eleva, por assim dizer, acima de si mesma, se se
exagera torna-se em veneno mortífero que a rói e
corrompe. A emulação converte-se em inveja ; o
sentimento no fundo é o mesmo, porém exagerado
no segundo caso. O desejo legítimo do progredi
menta torna-se em devoradora sede de sucesso ; o
pesar de se ver excedido, em rancor mortal contra
o vencedor. Já não é esta nobre rivalidade suscep
tível de se olhar com amizade, que se esforçava por
adoçar a humilhação do vencido com provas de ter
nura e sinceros louvores, que ficava satisfeita com
ter conquistado os louros, e os ocultava para poupar
o amor-próprio dos vencidos : é um verdadeiro furor ;
328 0 CRITÊRIO
é um pesar que compunge menos pelos próprios re
veses, do que pelos triunfos alheios ; é um ódio pro
fundo contra o rival feliz ; um desej o ardente de
rebaixar seu mérito : é uma maledicência amarga,
um desdém falso e mau, sobre o qual a custo se
encobre um ódio mal comprimido ; é um sorriso sar
dónico que não chega a dissimular os tormentos
da alma.
Que coisa mais conforme à razão do que o sen
timento da dignidade pessoal ? sentimento que se
revolta contra o conselho das paixões degradadas,
que chama o homem ·ao dever da honra ; sentimento
que, segundo as circunstâncias e em todas as con
dições da vida, inspira ao homem d.e coração a ati
tude conveniente ; sentimento que enche de majes
tade ao magistrado encarregado de pronunciar as
sentenças da j ustiça ; que dá à fisionomia de um
pontífic-e a unção augusta e a gravidade santa ; que
brilha na vista de fogo dos grandes capitães e em
sua atitude ousada e imponente ; sentimento que nem
à prosperidade permite desregrada alegria, nem ao
infortúnio ignóbil abatimento ; que assinala a opor
tunidade com prudente silêncio, ou sugere uma pa
lavra decorosa e firme ; que estabelece os j ustos li
mites entre a afabilidade e a excessiva familiari
dade, entre a franqueza e o abandono, entre a natu
ralidade dos modos e a grosseira liberc.'ade ; senti·
O CRITÊRIO 329
mento enfim que fortifica o homem sem o endurecer,
que lhe ensina a docilidade sem fraqueza, a flexibi
lidade sem inconstância,a constância sem obstinação.
Porém este mesmo sentimento, se deixa de se1·
regulado e dirigido pela razão, torna-se em orgulho,
o orgulho que incha o coração ; o orgulho que dá à .
fisionomia um carácter agressivo, às maneiras. uma
afectação tão irritante como ridícula ; o orgulho, cheio
de presunção que se cria obstáculos e torna
impossív.eis os sucesso�J ; o orgulho, pai de todos os
vícios ; o orgulho, que p ;::_· v oca o ódio e o desprezo,
que torna o homem insuportável aos outros e muitas
vezes insuportável também a si mesmo.
Haverá sentimento mais razoável que o que nos
leva a assegurar-nos do necessário, e preparar o
bem-estar dos que nos são caros, dos que o dever
confia a nossos cuidados ? Este sentimento previne
a prodigalidade e o excesso ; ensina a sobriedade e
a moderação nos desejos ; favorece o gosto do tra
balho . Levado além dos limites, este mesmo senti
mento impõe mortificações que Deus não pede nem
aceita ; inspira culpável negligência para a saúde,
aconselha o desprezo dos parentes em suas doenças ;
enche a família de privações, fecha o coração à
amizade, o coração e a mão às miserias dos poh.res ;
torna-se insensível a todos os infortúnios ; atormenta
o espírito com suspeitas e vãos terrores ; prolonga
330 O CRITÉRIO
as vigílias, gera as insónias e persegue com sinistras
aparições os curtos momentos do sono do avarento.
Desperta o rico avaro no seu leito,
Banhado no suor que dá o terror.
El rico avaro en el angosto lecho,
Y que sudando con terror despierta.
A virtude acaba onde o excesso principia.
Os melhores sentimentos tornam-se maus pela exa
geração ; o s€ntimento só de per si é guia pouco
seguro e muitas vezes perigoso. À razão incumbe
o conduzir consoante os eternos princípios da moral,
e guiá-los para o bom e para o útil. Jamais o ho
mem se estuda com todo o devido cuidado. Nenhum
esforço é de mais para adquirir aqu€le critério moral
e acertado que nos ensina a verdade prática, a ver
dade que deve presidir a todos os àctos de nossa
vida. Proceder à ventura, abandonar-se c€gamente
às inspirações do coração, é expor-se a todos os pe
rigos e a todas as máculas ; é lançar-se de erro em
erro, de queda em queda, até às bordas deste abismo
de onde o homem caído não mais se levanta, porque
a vertigem lhe passa do coração à razão ; criatura
tanto mais miserável depois de sua queda quanto
não vê, não conta, não sent€ ainda assim as próprias
feridas.
O CRITÉRIO 331
LV
UTILIDADE DO SABER RELATIVAMENTE À PRATICA
Em tudo que diz respeito aos obj ectos submeti
dos às leis necessári'as, isto é, à matéria, é evidente
que o conheCimento das leis a que estes objectos estão
sujeitos é pelo menos de grande utili dade , se tal
conhecimento não é indispensável. Considerar a
teoria como inútil e não ter em conta senão a prática,
é privar-se de poderoso meio de progresso. A ciên
cia, quando digna deste nome, propõe-se descobrir as
leis que regem a natureza. O auxílio da ciência por
tanto pode e deve ser em todas as coisas de decisiva
importância. Temos desta verdade irrefragável
prova em o que se tem passado na Europa, de três
séculos a esta parte. Desde que se começou a cul
tivar as matemáticas e as ciências naturais, os pro
gressos das artes têm sido assombrosos. No século
actual vão-se fazendo continuamente engenhosos des
cobrimentos ; e que são estes, senão aplicações da
ciência ?
A rotina que desdenha da ciência, mostra com
semelhante proceder néscio orgulho, filho da igno
rância.
O homem distingue-se dos brutos pela razão com
que o dotou o autor da natureza ; e não querer em-
332 O CRITÊRIO
pregar as luzes do entendimento para a direcção das
operações, ainda as mais simples, é mostrar-se in
grato à bondade do Criador. Para que nos foi dado
este archote iluminador do espírito ? Se à ciência
devemos tão grandes concepções, por que a não con
sultaremos ? por que lhe não pediremos que nos guie
na prática ?
Verdade é que todas as ciências parecem ter
partes puramente especulativas, e por assim C:izer
de luxo, que alguns têm crido inúteis ; porém, pene
trando-se nas pretendidas inutilidades, fàcilmente se
perceberá que se não pode destacá-las do conjunto
sem destruir toda a ciência, ou que elas têm com a
arte relações imediatas que estávamos longe de sus
peitar. A inutilidade é só na superfície ; não raro
o tempo e o gênio se encarregam de tirar, destas
partes obscuras, ondas de luz e conseqüências práti
cas tão úteis como inesperadas.
Poderíamos citar inúmeros exemplos compro
vativos desta verdade. Nada mais puramente es
peculativo e mais estéril, aparentemente, que as frac
ções contínuas ; e todavia é com seu auxílio que
Huygens chegou a determinar as dimensões das ro
das dentadas na construção da sua máquina plane
tária.
A prática sem teoria permanece estacionária
ou só marcha com extrema lentidão ; assim como
também a teoria sem a prática
·
fica estéril. A
O CRITtRlO
teoria não se consolida sem o concurso da observação,
e a observação apoia-se na prática. Que seria da
ciência agrícola sem ·a experiência do lavrador ?
Os que se destinam pois à profissão de uma
arte devem, se for possível, estar preparados com. os
princípios da ciência em que aquela se funda.
Quanto mais hábeis não · foram os nossos artistas se
estabelecessem sua experiência sobre os elementos
bem compreendidos da química, da geometria, da
mecânica c outras ciências correlativas ! se empi·e
gassem no estudo preparatório das ciências em re
lação à carreira que devam abraçar, o tempo mi
seràvelmente perdido nas escolas públicas em exer
cícios que para: nada servem ! Pense-se nisto seria
mente e, ousamos afirmá-lo, o Estado, os indivíduos,
a família, a sociedade inteira virão a tirar mais
frutos dos sacrifícios que se impõem.
Bom é que um mancebo cultive as letras ; mas
de que lhe servirão os conhecimentos unicamente
literários, quando, num estabelecimento comer·cial
ou manufacturário, tiver precisão de apreciar as
qualidades ou defeitos de uma máquina, as vanta
gens ou inconvenientes de tal ou tal processo ? A
cada coisa seu lugar, a cada árvore seu fruto, a
cada uma sua obra e sua especialidade ; é esta uma
lei de harmonia tanto na ordem moral como na or
dem material, e principalmente na ordem prática.
O arquitecto, o engenheiro aprenderão, por ventura,
334 o CRin;mo
em estudos literários, filosóficos ou políticos, a cons
tituir um edifício elegante, sólido, próprio para o
fim a que se destina, a traçar hàbilmente o plano
para uma estrada ou canal, a dirigir as obras com
inteligência, a levantar uma calçada, a suspender
uma ponte ?
LVI
INCONVENIENTES DA UNIVERSALIDADE
Lenta e penosamente se adquire a ciência, e -a
vida é curta. Não obstante o homem dispersa as
suas faculdades sobre mil diversos objectos, acari
ciando destarte a vaidade e a preguiç•a simultânea
mente : a vaidade porque esta aparente universali
dade lhe dá um certo verniz de saber, a preguiça
porque é muito mais difícil e mais penoso o fixar-se
numa ciência, aprofundá-la, abraçá-la inteiramente,
que adquirir algumas noções vagas e gerais sobre
todos os ramos dos conhecimentos humanos.
Todos os dias se apreciam na indústria as van
tagens da divisão do trabalho, e não se pondera que
este princípio é igualmente aplicável à ciência.
Raríssimos são os homens nascidos com felizes dis
posições para todas as coisas. E alguns que pode
ri'am vir a ser brilhantes especialistas entregando
-se particular ou mesmo exclusivamente a certos es-
O CRITÉRIO 335
tudos, tornam-se inúteis por afectação da universa
lidade. Assim se consomem sem fruto as forças que,
postas em acção convenientemente, poderiam prestar
bons serviços à sociedade. Vaucanson e Watt fize
ram prodígios na mecânica ; nas belas-artes ou na
poesia, indubitàvelmente não teriam passado de me
diocridades. La Fontaine imortalizou-se com suas fá
bulas, e como negociante fôra sem dúvidaum dos mais
inábeis .
Verdade é, todavia, que os conhecimentos ad
quiridos são como degraus por meio dos quais nos
elevamos a novos conhecimentos, e que a luz que
se projecta de uma ciência sobre outra facilita n
trabalho da inteligência abrindo-lhe novos horizon
tes. As diferentes partes da ciência como que for
mam uma cadeia cuj os elos, apesar de sua diversi
dade, compõem um todo harmonioso e completo ;
mas poucos homens há capazes de congregar estes
elos esparsos, de percorrer toda a cadeia, e persisto
em pensar que o maior número deve circunscrever
e concentrar seus esforços.
Assim nas ciências como nas artes, importa
escolher, segundo a aptidão particular, a carreira
que se deve seguir, e, feita a escolha, dedicar-se a
ela particular ou exclusivamente .
A multiplicidade de meios de instrução, livros,
jornais, enciclopédias, não faz de algum modo senão
multiplicar a ignorância, convidando a tudo tocar
336 O CRlTtRIO
pela superfície. A abundância, herança dos séculos
que deveram sua glória ao trabalho, tornou-se um
escolho em vez de vantagem. Muitos espíritos per
dem em profundeza o que ganham em extensão.
Quantos falsos sábios se comprazem em sua ciência
univ€rsal, que em última análise só tem de univer
sal a presunção e a ignorância !
Uma só ciência, que se queira saber a fundo,
basta para absorver a mais longa vida. Dá-se o
mesmo nas profissões. Esquecida esta verdade, as
forças do espírito vão-se disseminando sem ordem
e se consomem sem r·esultado ; dá-se o mesmo numa
máquina mal construída ; a força motriz se paralisa
pelo defeito de concentração ou pela disposição de
feituosa das molas encarregadas de distribuir esta
forç-a a cada uma das partes do mecanismo.
Pergunta-se a causa da triste esterilidade do
movimento intelectual em nossa época, apesar da
actividade sempre crescente dos espíritos. Talvez
que as observações que deixamos feitas levem à razã0
desse facto. As forç·as excessivamente individua
lizadas, fraccionadas até ao infinito, dissipam-se e
perdem-se, à mingua de direcção ; as inteligências
marcham sem fim determinado e como à ventura.
Os que professam com fruto uma carreira, aban
donam-na por outra que pareça apresentar mais
vantagens, ou que mais lisonjeie sua vaidade. Daí
a desordem, a deslocação. O ·advogado aspira à di-
O CRITÉRIO 337
plomacia, o militar à vida política, o banqueiro ao
governo do Estado ; o j uiz torna-se economista ; o
homem do nada que era torna-se omnipotente. A ver
tigem das idéias, e da ambição, que ora vai aumen
tando de dia para dia, opõe gravíssimos obstáculos
a todos os progressos.
LVII
FORÇA DA VONTADE
Quase sempre há no homem grande soma de
forças que ele deixa inactivas . O explorar-se acerta
damente constitui um maravilhoso segredo para
fazer muitas e grandes coisas. A gente fica con
fundida de espanto diante de certos trabalhos reali
zados pela necessidade. Sob o império da n·ec�ssi
dade, o homem se transforma e muda para assim
dizer de natureza. A inteligência se engrandece ;
adquire uma penetração, uma lucidez, uma precisão
maravilhosas ; o coração se dilata ; nada assombra
sua audácia ; até o corpo adquire mais vigor.
E por que ? Criaram-se por ventura novas faculda
des no homem ? Não, mas nele se despertaram facul
dades que a'ormiam. Onde tudo era repouso tudo se
tornou movimento, tudo convergiu para um fim de
terminado. Aguilhoado pelo perigo, a vontade se
338 O CRITtRlO
desenvolve em sua irresistível potência ; ordena im
periosamente a todas as faculdades que concorram
para a acção comum ; presta-lhe sua energia e sua
decisão. Espanta-se o homem ao sentir-se inteira
mente mudado ; o que apenas ousaria imaginar, o
impossível de ontem, torna-se o facto realiz·ado do
presente.
O que pratica nas · circunstâncias extremas e
sob o império da necessidade nos deixa ver o que
podemos no curso ordinário da vida. Para obter, é
mister querer; mas querer com vontade decidida,
resoluta, inconcussa ; coin vontade que caminha para
o fim sem desanimar com os obstáculos ou fadigas .
Mas parece-nos ter vontade, quando só temos velei
dades. Quereríamos, mas não queremos. Querería
mos, se não fora preciso romper com nossa preguiça,
afrontar certos perigos, vencer certas dificuldades.
Escasseando de energia a nossa vontade, molemente
desenvolveremos nossas faculdades e cairemos des·
falecidos a meio do caminho.
LVIII
FIRMEZA DA VONTADE
Querer com firmeza ! Esta firmeza assegura o
sucesso nas empresas difíceis ; por meio dela nos
O CRil'ÉIUO 339
dominamos a nós mesmos, condição indispensável
para dominar as coisas. Há dois homens em cada
homem : um, inteligente, activo, elevado, nobre em
seus pensamentos e em seus desej os, submetido às
leis da razão, cheio de ousadia e generosidade ; outro
inteligente, sem arroj o, sem expediente, não se atre
vendo a levantar nem a cabeça nem o coração acima
do pó da terra, envolvido inteiramente nos instintos
e nos interesses materiais. O último é um ser de
sensações e de gozos ; nem lembrança de ontem, nem
previsão de amanhã ; para ele, a hora presente, o
gozo presente é que constituem . a felicidade ; tudo
o mais é nada. Pelo contrário, o primeiro instrui
-se com as lições do passado, sabe ler no futuro, há
para ele outros interesses que os de momento ; não
circunscreve em tão estreito círculo o que se chama
a vida, a aspiração da alma imortal. Sabe que o
homem é uma criatura formada à imagem de Deus ;
levanta o pensamento e o coração para o céu ; conhe
ce a sua dignidade ; compenetra-se da nobreza da sua
origem e de seus destinos, paira acima d'a região dos
sentidos. Que direi ainda ? ao gozo prefere o dever.
Nenhum progresso sólido e permanente é possí
vel se não se favorece a parte nobre da alma suj ei
tando-lhe o homem inferior. O que se domina a si
mesmo, fàcilmente domina as circunstâncias. Uma
vontade firme e perseverante, além de outras quali
dades, liga ou subj uga as vontades mais fracas, e
340 Ó CRlT�RIO
lhes impõe naturalmente e sem esforço a sua supe
L_rioridade.
A obstinação é defeito gravíssimo, pois que fe
cha nossos ouvidos ·aos conselhos ; porque, a despeito
de toda a consideração de prudência ou de j ustiça,
nos encadeia a nossos sentimentos, pensamentos e
resoluções : planta vivaz cuja raiz é o orgulho.
Entretanto, os perigos da obstinação são meno
res talvez que os da inconstância : se uma nos cega
concentrando nossas faculdades em um só ponto,
às vezes em um erro, a outra enerva estas facul
dades, já deixando-as ociosas, já aplicando-as, com
mobilidade sem repouso, a mil diversos obj ectos.
r--
i A inconstância torna-nos incapazes de terminar qual-
quer empresa ; colhe o fruto antes da maturidade,
recua diante dos mais insignificantes obstáculos :
uma leve fadiga, um leve perigo a amedronta ; dei
xa-nos à mercê de todas as paixões, de: todo o suces
so, de todo o homem que possa ter interesse em nos
dominar ; finalmente fecha os ouvidos aos conselhos
�a j ustiça, da razão e do dever.
Quereis adquirir vontade perseverante e firme
e premunir-vos contra a inconstância ? formai con
vicções firmes, traçai-vos um sistema de vida, e
nada confieis ao acaso do que lhe puderdes subtrair.
Os sucessos, as circunstâncias, a vossa previdência
de curto alcance não raro vos obrigarão a modificar
\ os planos que houverdes concebido ; não importa :
O CRITÉRIO 341
não deve esse ser motivo para de novo os não for
mar ; isto não vos autoriza a vos entregardes cega
mente ao curso das cois·as e a caminhar à ventura.
Pois não nos foi dada a razão como um guia e como
apoio ?
Traçar-se de ante-mão a linha de proceder e só
obrar depois de maduras reflexões, é proceder com
notável superioridade sobre
·
os que se conduzem ao
acaso. O homem que se guiar por estes princípios,
ouso afirmá-lo, levará incontestável vantagem sobre
os que se portem de outro modo. Se estes são seus
auxiliares, naturalmenteos porá debaixo de suas
ordens, e se verá constituído seu chefe sem que eles
o pensem nem ele próprio o pretenda ; se são seus
adversários ou inimigos, os desbaratará, ainda que
com menos recursos.
Consciência recta e tranqüila, vontade firme,
pl'ano bem concebido, eis os meios para levar a bom
termo as empresas difíceis. Isto pede-nos alguns
sacrifícios, convenho nisso ; supõe trabalho interior,
enérgico e perseverante, pois que é mister começar
por se vencer a si próprio ; mas, assim na ordem
intelectual e moral, como na física, nas coisas do
tempo, como nas da eternidade, só merece e obtém
a coroa o que sabe na luta afrontar as fadigas e os
perigos.
342 O CRITBRIO
LIX
FIRMEZA, ENERGIA, IMPETUOSIDADE
Vontade firme, vontade enérgica, vontade im
petuosa não são a mesma coisa. A primeira difere
da segunda e ainda mais da terceira, que difere
também das outras duas.
Tou'as tres distintas, todas tres independentes,
não é mesmo raro que estas vontades se excluam.
A impetuosidade é um acesso de paixão, uma con
vulsão da vontade, arrastada pela paixão ; é, por
assim dizer, a mesma paixão. Um acesso momen
tâneo não constitui a energia ; e energia supõe a
força com certa duração.
Na impetuosidade há explosão : dispara-se o
tiro, mas o projéctil cai a menos distância. Há
igualmente explosão na energia, talvez com menos
fracasso, mas o arremesso vai mais longe.
A firmeza não requer nem impetuosidade, nem
en-ergia, e algumas vezes as repele a ambas ; toda
via admite a paixão, ou antes exige-a geralmente,
mas a p·aixão constante, fixa em sua direcção, a
paixão regular. A impetuosidade num momento ou
destrói todos os obstáculos, ou se despedaça ; a ener
gia prolonga mais ;;t luta, mas despedaça-se igual
mente, depois de certos esforços. A firmeza, se
O CRITÊRIO 343
lhe é possível, desvia as dificuldades ; senão, as
evita ou as rodeia. Se por acaso as não pode evitar
nem rodear, detém-se e espera. Não se creia no
entanto que, em certos casos, a firmeza não possa
tornar-se energia ou impetuosidade. Depois de ter
longo tempo contemporizado, acaba por se irritar.
Uma resolução extrema é tanto mais formidável
quanto mais de espaço tem sido premeditada. Os
homens frios na aparência , mas em que arde com
primido um fogo interior, são terríveis quando chega
o momento decisi•vo, quando dizem : " E ' agora ! "
E ' então que no objecto cravam a vista clamejante,
e a ele se lançam rápidos como um raio, certeiros
como uma flecha.
As forças morais são como as físicas ; neces
sitam ser economizadas. Os que as economizam e
as têm em reserva as acham mais poderosas no
momento oportuno. As vontades mais fortes não
são as que se chocam de contínuo contra qualquer
coisa ; pelo contrário, os muito impetuosos cedem
quando se lhes resiste, e atacam quando se lhes cede.
; A firmeza não se prodigaliza, nem faz a coisas de '
pouca monta a honra de se medir com ela. Assim,
na prática da vida, os homens fortes são, g-eral
mente, condescenu'entes, fáceis, prontos a ceder ; aco
modam-se sem repugnância à vontade de outrem.
Porém, che�ada a ocasião, quer por se apresentar
negócio importante em que convenha empregar as
344 O CRITÉRIO
forças, quer porque algum dos pequenos tenha sido
levado a extremo em que se não possa mais con
descender, e seja preciso dizer basta, então não é
mais impetuoso o leão, se se trata de atacar, nem
é mais firme a rocha, se se trata de resistir.
Esta força de vontade que dá a bravura nos
combates, a firmeza na dor, que triunfa de todas
as resistências, que não receia diante de obstáculo
algum, que os reveses não removem, que os mais
duros choques não são capazes de quebrar ; esta
vontade que, segundo o tempo e as circunstâncias,
se torna gelo ou vulcão ; que desenha na fisionomia
as t€mpestades que vão r; a alma, ou na mesma fisio
nomia imprime uma serenidade ainda mais ater
radora ; esta força de vontade que é hoje o que
era ontem, e que o será amanhã, e sem a qual im
possível fora terminar empresa difícil ou de longa
duração ; esta força de vontade, carácter distintivo
dos homens que deixaram na humanidade o vestí
gio de seus passos, dos homens que vivem ainda nos
monumentos que levantaram, nas instituições que
fundaram, nas revoluções que fizeram ; esta força
de vontade que possuíram os fundadores de impé
rios, os chefes de seitas, os descobridores de novos
mundos, os inventores que consumiram a vida em
busca de seu invento, os políticos que com mão de
ferro moldaram a sociedade em novas formas, im
primindo-lhe um selo que, depois de }argos séculos,
O CRITÉRIO 345
ainda se conserva ; esta força de vontade que, de
um humilde monge, faz um Sixto V ou um Ximenes ;
esta força de vontade que detém como um muro de
bronze o protestantismo no cume dos Pirineus, que
arroj a sobre Inglaterra uma armada gigantesca, que
escuta impassível a nova da ruína desta armada,
que submete Portugal, vence: em S . Quintino, levanta
o Escurial, e que do sombrio ângulo de um mosteiro
contempla com vista serena a morte que se aproxi
ma ; enquanto
Estranha agitação, tristes clamores
Ecoam no palácio de Filipe ;
Pelo claustro e no povo ao mesmo tcwpo
Com pranto angustioso se difundem.
Esta força de vontade, digo eu, exige duas con
dições, ou antes resulta da acção combinada de duas
coisas : uma idéia e um s·entimento : uma idéia clara,
viva, fixa, poderosa, que absorve o entendimento,
que o possui, que o penetra inteiramente ; um senti
mento forte, enérgico, senhor exclusivo do coração,
e complemento subordinado à idéia. Se falta uma
destas condições, a vontade enfraquece e vacila.
Quando a idéia não é auxiliada pelo sentimen
to, a vontade é nula ; também se o sentimento se
não apoia sobre uma idéia, a vontade flutua, é in-
346 O CRITÉRIO
constante. A idéia é a luz que indica o caminho ;
é o ponto luminoso que fascina e atrai ; o senti
mento é o impulso, a força que põe em movimen
to e lança a vontade.
Logo que a idéia carece de vivacic.'ade, a atrac- ·
ção diminui, a incerteza começa, 1a vontade fica
suspensa ; quando a idéia não é fixa, permanente,
quando o ponto luminoso muda de lugar, a vonta
de flutua incerta ; ofuscada ou substituída a idéia,
a vontade muda de objectos, torna-se inconstante ;
e quando o sentimento não é suficientemente forte,
quando não está em justa proporção com a idéia,
o entendimento contempla esta idéia com prazer,
com amor, com entusiasmo talvez, mas a alma não
ousa medir-se com ela e se acha inferior ; não pode
seu vôo elevar-se até lá ; a vontade nada tenta ou
desanima e cai à primeira tentativa.
E' incrível o que podem estas forças unidas, e
o que é estranho é que seu poder não é só com res
peito ao que as possui ; é mormente expansivo e
simpático. Que maravilhoso ascendente não exer
cem os homens que dele são dotados sobre os ou
tros homens ! A força da vontade, sustentada, di
rigida pela potência de uma idéia tem alguma coisa
de misterioso que parece investir o homem de um
direito superior e dar-lhe o mando. E' ela que ins�
pira a confiança sem limites, a obediência cega aos
heróis assinalados com este carácter ; as ordens que
o CRITtRIÓ 347
eles dão, embora desacertadas, ninguém ousaria
tê-las como tais ; atribuem-se a plano secreto que
os profanos não compreendem. " Ele bem sabe o
que faz ", diziam os soldados de Napoleão, e corriam
à morte.
Nos actos ordinários da vida, as qualidades de
que falamos não são precisas em grau eminente ;
mas possuí-las em justa medida, proporcionalmente
ao talento, ao carácter, à posição social, coisa é
utilíssima e muitas vezes indispensável. Certos
homens dew�m a este dom a sua superioridade no
amanho dos negócios, e podemos afirmar que a au
sência completa destas qualidades acusa radical
incapacidad·e.
As grandes coisas exigem grandes forças ;
para as coisas pequenas, pequenas forças bastam ;
mas o que é certo é que nada se faz sem o