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JAIME BALMES 
, 
O CRITERIO 
Edicão patrocinada pela Pontifícia 
Universidade Católica de São Paulo, 
em comemoracão ao centenário da 
morte do insigne filósofo espanhol 
* 
EDITôRA ANCHIETA 
S. PAULO, MCMXLVIII 
NIHIL OBSTAT 
S. Paulo, 12 de outubro de 1948 
Pe. José Varani 
CENSOR 
IMPRIMATUR 
t Paulo Rolim Loureiro 
BISPO A UXTI..IAR 
São Paulo, 13-X-1948 
EXPLICAÇAO NECESSARIA 
Partindo para a Europa com a caravama de es­
tudantes da Faeuldade: de Direito da Pontifícia Uni­
versidade Católica de São Paulo, deixou-me o dilecto 
armigo Prof. Dr. J. P. Galvão de Sousa a honrosa 
incumbência de cuidar da publicação do O Critério 
de Jaime Balmes com que celebrasse a dita Univer­
sidade o centenário do falecimento do insigne filó­
sofo espanhol. 
Exíguo o templO par-a uma tradução imediata e 
actual da afamada obra, houve que a;proveitar c 
versão antiga de João Vieira, editada p·or Chardron 
em 1877 (2.a edição) e por tantos atributos notável. 
Prestando-se o dr. João Payão Luz ao sacrifí­
cio do exempla1· da sua biblioteca como original para 
a tipografia aviámo-nos ao coteio com o texto cas­
telhano. Baseara-se, porém, o tradutor na versão 
frfkncesa de M. Manec, alegando que "nela se aper-
1 eiçoara o texto original". 
Não convimos com o juízo de João Vieira. 
Para ganha.r tempo, todavia, fomos obrigados 
a ater-nos apenas à revisão de eertas pequenas 
VI O CRITÉRIO 
infidelidades em que com razão se pudera dizer ser 
o "traduttore" um "traditore", e à actualização da 
ortografia. 
Para esta operação urgente e melindrosa, so­
corremo-nos também dos préstimos da distinta Prof.a 
Maria Ricardina Mendes de Almeida e, mercê de to­
dos esses passos, pudemos entregar o� originais à 
Editôra Anchieta, a qual generosamente se prontifi� 
cara a ser a publicadora da obra, em tempo hábil 
para que o volume viesse a surgir à luz na data 
convencionada, que é esta. 
Do Prof. J. P. Galvão de Souza, ainda na 
Europa, recebemos as páginas pospostas a estas 
explicações. 
A todos quantos nos auxiliaram a>ara que a pu­
b licação saísse a contento, deixamos aqui expresso o 
nosso "muito obrigado " . 
Arlindo VEIGA DOS SANTOS 
São Paulo, 28 de j ulho de 1948. 
PREFACIO 
1848 foi um ano eminentemente revolucionário. 
Enquanto o judeu Karl Marx redigia o Manifesto Comu­
nista; traçando a diretriz da revolução mundial, movimen­
tos subversivos alastravam-se pela Europa derrubando 
governos e fazendo sossobrar regimes. 
Naquêle mesmo ano, jovem ainda, entregava a alma 
ao Criador um ilustre filósofo e publicista espanhol cuja 
pena estivera sempre a serviço da Igreja e da Pátria, os 
dois alvos contra que se voltavam as arremetidas da im­
piedade e do internacionalismo revolucionãrio. Fizera-se 
paladino das tradições do seu povo então postas em cheque. 
E com 38 anos apenas passaria à hist'ória como um dos 
maiores pensadores dre sua época. Assim foi que o Cardeal 
Joaquim Pecci, futuro Papa Leão. XIII, considerou Jaime 
Balmes, com quem travara relações na Bélgica. 
Homem de gabinete e de ação, Balmes nunca esteve 
alheio aos problemas do seu tempo. Soube dividir-se entre 
as especulações da metafísica e as questões candentes da 
atualidade social. Participou da vida polit'ica da Espanha 
procurando harmonizar as correntes tradicionalistas que se 
degladiavam numa incompreensão da gravidade do mo·· 
mento quando deviam estar unidas em face da maré 
montante das fôrças da Revolução. 
2 P R E F A C I O 
Sua obra, espelhando um talento polimorfo de pas· 
mosa fecundidade, se diria de alguém já avançado em 
anos de estudo, de meditação e de experiência. Dominou 
todos os sistemas filosóficos modernos com uma 
penetração genial, sabendo colher aqui e ali fragmentos 
de verdade como faz a abelha ao extrair o mel das mais 
variadas flôres. Não se deixou, porém, levar pelas águas 
turvas do ecletismo. E por outro lado evifando com 
maestria os escolhos do idealismo e do empirismo, que 
haviam feito naufragar a tantas inteligências de escol, 
assentou um dos marcos iniciais da restauração da filo­
sofia perene, à qual seria dado decidido impulso depois 
da Encíclica Aeterni Patris de Leão XIII. 
Metafísico sereno enquanto, nas páginas da Filosofia 
Fundamental, aprofundava o estudo do valor do conheci· 
mento, Balmes se transformava num jornalista vibrante 
ao escrever para as colunas de El Pensamiento de la 
Nación. 
Título bem expressivo o dêste periódico, para indicar 
o sentido da doutrinação cívica de quem soube com tanta 
clarividência interpretar o pensamento da nação espa· 
nhola, sent'indo perfeitamente os imperativos da unidade 
nacional e ao mesmo tempo dos particularismos regio­
nais. 
Já se tem notado que há, em Balmes, num grau emi· 
nente, as qualidades próprias do gênio catalão. Mas o 
seu espírito excedeu os limites da Catalúnia, fundindo-se, 
por assim dizer, com a complexidade do gênio espanhol. 
E transpôs ainda\ as fronteiras de sua pátria, integrando· 
-se na cultura européia, ou melhor, na universidade da 
civilização cristã. 
O redator de El Pensamiento de la Nación foi tam· 
bem um dos fundadores de La Civilización: teve sempre 
voltadas as preocupações para os destinos da Espanha e 
P R E F A C I O 
da Cristàndade. Dai o nos ter deixado aquela magnífica 
síntese histórico-filosófica El Protestantismo comparado 
con el Catolicismo, que Menendez y Pelayo não hesifou 
em classificar como o maior livro espanhol do século. 
Estudando o catolicismo e o protestantismo nas suas re· 
!ações com a civilização européia, focalizou problemas que 
ainda hoje se revestem da mais viva oportunidade. Obra 
definitiva e clássica no assunto, apesar do seu carácter 
polêmico, motivada que foi por um livro de Guizot. 
Balmes, manejando a pena de jornalista ou a de pole· 
mista, não perdia a objetividade, a lucidez, o equilíbrio 
do filósofo. 
A razão dêsse domínio sôbre si mesmo está no modo 
por que entendeu a filosofia. Admirável a plasticidade 
de sua inteligência, capaz de se alçar aos grandes vôos 
da metafísica e logo após tornar ao terra-a-terra do quo· 
tidiano sem perder o senso da realidade· e das coisas prá· 
ticas! 
Muita gente imagina os filósofos tipos exóticos e 
infensos ao convivia social, vivendo numa esfera diferente 
da que é habitada pelo comum dos mortais . . . E quantas 
vezes os culpados deste juizo são os próprios cultores da 
filosofia! Não temos visto grandes espíritos afeitos a 
elucubrações filosóficas tornarem-se, de um momento para 
outro, irreconhecíveis pela falta de lógica ou as divaga· 
ções abstractas e sem nenhum contacto com o real, quando 
se põem a tratar de assuntos sociais ou políticos de ordem 
prática ? Perturba-lhes a visão das coisas uma filosofia mal 
compreendida que não serve para a vida. A êstes pode 
caber muito bem o sentido pejorativo que chegou a ad· 
quirir a palavra "filósofo". Não, porém, a quantos com· 
preendam a �ilos_�fia como amor à sabedoria; disciplina 
mental,· escola de formação da inteligência e da vontade 
na procura da verdade objetiva� Assim a compreendeu 
4 P R E F Á C I O 
sempre Balmes, e se quisermos a chave do seu segrêdo, 
êle mesmo no-la dará : acha-se nas páginas de um livrinho 
maravilhoso e único no gênero - El Criterio. 
Alguém procurou desfazer no valor filosófico da obra 
de Balmes. Escandalizou-se, talvez, com a simplicidade 
dêste livrinho e não pôde conformar-se em ver a filosofia 
reduzida a uma linguagem accessível, popular. Não admira 
que os homens habituados ás excentricidades da filosofia 
moderna pensem de tal forma. Mas o facto é que a sã 
filosofia tem por vestíbulo o senso comum. A simplicidade 
é marca de um espirit'o objectivo, de uma inteligência que 
sabe tirar das mais comesinhas e triviais afirmações os 
mais profundos ensinamentos. 
Aos que se comprazem com a linguagem abstrusa de 
certos filósofos de hoje, Balmes desagradará. Aos que pro­
curam na filosofia os inebriamentos de um licor altamente 
fermentado, serão insípidas as páginas de Balmes.Mas 
aos espíritos sedentos da água pura, cristalina e bem­
fazeja da verdade, serão sempre de valor inestimável : 
um depurativo para a mente, um eliminant'e das toxinas 
que contaminam o intelectualismo hodierno. 
Não sei de livro mais necessário do que O Critério 
de Balmes para a mocidade de hoje. 
Com efeito, pareoe que nunca houve, como nos dias 
correntes, tanta falta de . . . critério. 
Os homens dão-nos a impressão de não raciocinar,· 
mais com a lógica natural do espírito humano. E quando · 
raciocinam, não sabem tirar das grandes verdades reli­
giosas, morais e sociais as conseqüências tôdas em que 
importam para a vida. 
Além disso, o subjetivismo mais desenfreado impera 
na filosofia moderna desde Descartes e sobretudo Kant. 
Passou da filosofia à moral, à· estética, à politica. Não 
admira, pois, que se tivesse chegado a perder até mesmo 
P R E FACI O 
, 1 o senso da distinção entre o bem e o mal, entre o betv 
�l e o extravagante, entre a liberdade e o arbitrio. 
Tudo isso por um desequilibrio profundo, a atingir a 
própria estrutura mental e com efeitos irremediáveis no 
que concerne à formação do carácter e à educação da 
vontade. 
Bem outra seria a situação se todos seguissem as 
regras tão simples ensinadas por Balmes no O Critério, 
uma espécie de lógica prática que deveria andar de mão 
em mão servindo de livro de cabeceira para a mocidade 
estudiosa. 
Certamente a muitos causará extranheza o conteúdo 
destas páginas. Coisas de senso comum, coisas que todo 
o mundo sabe desde que começa a pensar. E' verdade. 
Pois aí está precisamente o grande valor dêste compên­
dio numa época em que nada é mais necessário do que 
saber pensar. 
Enquanto os adeptos da revolução social festejam 
o centenário do Manifesto Comunist'a e dos movimentos 
subversivos de 1848, tratemos nós de ouvir as lições de 
Balmes, propugnador da ordem nas idéias e na sociedade, 
filósofo restaurador do senso comum e publicista mestre 
do pensamento contra-revolucionário. Comemorando o 
centenário de Balmes, aprendamos com o Autor do 
O CRITÉRIO a pensar bem e querer o bem para bem 
viver. 
J. P. GALVÃO DE SOUSA 
(Professor da Pontiflcla Univer­
sidade Católica de São Paulo). 
o 
, 
CRITERIO 
CAPiTULO I 
Considerações preliminares 
I 
EM QUE CONSISTE O PENSAR BE'M. 
QUE É A VERDADE? 
Pensar .bem consiste ou em conhecer a verdade, 
ou em dirigir o entendimento pelo caminho que a 
ela conduz. A verdade é a realidade das coisas . 
Conhecer as coisas tais como são em si é possuir a 
verdade ; de modo diferente, é êrro. Sabemos que 
há Deus, e este conhecimento é uma verdade, por­
que realmente Deus existe . Sabemos que a variedade 
das estações depende do sol, e este conhecimento é 
uma verdade, porque realmente assim é. Sabemos 
que a obediência às leis, a boa fé nos contractos, a 
fidelidade aos amigos, são virtudes : saber isto é 
conhecer outras tantas verdades ; da mesma sorte 
O CRITÉRIO 
fora cair em erro j ulgar boas e dignas de louvor a 
perfídia, a ingratidão, a inj ustiça. 
Para pensar bem, busque-se conhecer a verdade, 
isto é, a realidade das coisas. De que serve discor­
rer com subtileza, ou aparentar profundeza, sem o 
pensamento conforme à realidade ? Um lavrador, 
um modesto artista que conheçam bem os obji:ldos de 
sua profissão, pensam e falam melhor sobre estes 
objectos do que um filósofo que, revestindo sua igno­
r.ância de elevados conceitos e palavras altissonantes, 
pretende ensinar o que ignora. 
li 
DIFERENTES MODOS DE CONHECER A VERDADE 
As vezes só imperfeitamente conhecemos a ver­
dade. A realidade apresenta-se-nos então, não tal 
como efectivamente é, mas incompleta, aument·ada ou 
mudada. Assim, se a certa dist.ância desfila uma 
coluna de homens, de sorte que vemos brilharem as 
armas, mas sem distinguir os traj es, o que podemo::, 
concluir é haver gente armada ; mas será um ajunta­
mento popular, ou um corpo de tropas ? a que parte 
do exército pertence ? Não o podemos saber. A 
verdade não se nos apresenta toda ; só temos um 
conhecimento imperfeito ; falta-nos ver distintamen­
te o uniforme. 
ú CRITÉRIO 9 
Se, iludidos pela distância ou qualquer outra 
causa, supomos gratuitamente que tais homens estão 
fardados de modo que realmente não estão, ainda 
neste caso há imperfeição de conhecimento; ajunta­
mos alguma coisa que na realidade não existe. 
Enfim, se tomamos uma cousa por outra, como, 
por exemplo, um vestido amarelo por branco, alte­
ramos ainda a verdade ; mudamos um obj ecto em um 
outro. 
O entendimento que possui uma verdade em 
toda a sua extensão é como estes bons espelhos que 
representam os obj ectos exactainente como são. �a 
posse do erro, o entendimento pode ser coinparado 
coin os caleidoscópios que enganain a vista oferecen­
do-lhe imagens sein realidade. Finalmente, nos ca­
sos em que só possui parte da verdade, é coino os 
espelhos Inal estanhados ou dispostos de certa ma­
neira, os quais apresentain os objectos reais, Inas de 
modo que eles não são, porque lhes alteram as 
proporções e a figura. 
III 
DIVERSIDADE DOS ESPíRITOS 
O bom pensador procura ver nos objectos tudo o 
que contêin, e nada mais. Homens há que têm o 
talento de ver muito em tudo ; porém, cabe-lhes a 
lÓ O CRITtRIO 
desgraça de verem o que aí não há e não verem o 
que realmente há. O sucesso mais indiferente, uma 
circunstância qualquer lhes fornece matéria abun­
dante para discorrer profusamente-; para, como se 
costuma dizer, levantar castelos no ar. Grandes 
fazedores de projectos, belos palradores ! 
Outros padecem do defeito contrário; vêem bem, 
mas pouco. Penetram as coisas dum só lado, e se 
este lhes desaparece não vêem mais nada. Estes 
são propensos a sentenciosos e obstinados. Como 
caipiras que j amais saíram de sua roça, p·ara eles 
o mundo termina no horizonte. 
Um entendimento lúcido, capaz e exacto abarca 
em seu estudo o obj ecto plenamente; encara-o sob 
todas as faces, em todas as suas relações. A con­
versação e os escritos dos homens assim dotados 
distinguem-se por sua clareza, precisão, exactidão. 
Cada palavra sua põe em relevo uma ideia e esta 
ideia corresponde à realidade das coisas; elucidam­
-nos e persuadem, deixam-nos plenamente satisfeitos. 
Dizemos com assentimento sem reserva : sim, é ver­
dade, tem razão. Nenhum esforço é mister para 
os seguir em seus raciocínios. C aminhamos por ca­
minho plano, no qual o que nos conduz nos faz notar 
a propósito as maravilhas que se encontram na pas­
sagem. - Se a matéria é abstracta e difícil, e o ca­
minho é escuro e se some nas entranhas da terra, 
não importa! O nosso guia é mais prático; sabe 
O CRITtRIO 11 
como s� diminui a fadiga e economiza o tempo; tem 
nas mãos um archote de vivíssima claridade. 
IV 
A PERFEIÇÃO DAS PROFISSõES DEPENDE DA 
PERFEIÇÃO COM QUE SE CONHECEM OS 
OBJECTOS DELAS 
O conhecimento perfeito das coisas na ordem 
científica forma os verdadeiros sábios ; na ordem 
prática e para a direcção da vida, faz. os prudentes ; 
na administraç.ão dos negócios públicos, forma os 
grandes estadistas. Enfim, em todas as profissões, 
o mais hábil é o que conhece melhor as matérias de 
que trata e de que se serve. Este conhecimento, po­
rém, há-de ser prático e abranger também os por­
menores da execução que, por assim dizer, são pe­
quenas verdades, de que se não pode prescindir para 
o conhecimento completo das coisas. Estas verda­
des são numerosas, até nas profissões mais simples. 
Um exemplo : qual será o melhor agricultor ? O que 
melhor conhecer as qualidades dos terrenos, das se­
mentes e das plantas, os melhores métodos e os me­
lhores instrumentos de lavoura ; o que à terra fizer 
produzir melhores frutos, com menos despesas, em 
menos tempo e com mais quantidade, finalmente que 
possuir mais verdades relativas à prática da agri­
cultura. 
12 b CiUTtRIÓ 
O mBsmo acontece com o carpinteiro, com o 
comerciante : o mais hábil deles será o que possuir 
maior número de verdades concernentes a sua 
arte ; o que mais a fundo conhecera realidade 
das coisas que o ocupam. 
v 
A TODOS INTERESSA PENSAR BEM 
A arte de bem pensar interessa não somente aos 
filósofos, senão a todos os homens, por mais simples 
que sejam. O entendimento é um dom precioso ou­
torgado pelo Criador, é a luz que nos deve guiar, é, 
portanto, para o homem o dever por excelência ; 
se se apaga, ficamos às escuras, caminhamos às 
apalpadelas. Não devemos ter o entendimento em 
inacç.ão, sob pena de se embotar e tornar estúpido ; 
porém, alimentando-a, avivando-a, convém que a sua 
chama nada se altere na bondade. Deve esclarecf'r 
sem deslumbrar, mostrar o caminho sem extravios. 
VI 
COMO SE DEVE ENSINAR A ARTE DE PENSAR BEM? 
A ârte de pénsar bern não sé aprende t::1nto 
com regras como com exemplos. Aos que profes· 
O CRIT�RIÓ 13 
sam esta arte multiplicando os preceitos e observa­
ções analíticas, perguntamos o que pensariam de 
uma ama que, para ensinar os meninos a falar ou 
nadar, empregasse semelhante método ? Mas não 
se infira que condeno tod·as as regras. O que sus­
tentamos é que s-e deve usar delas com sobriedade, 
sem pretensão filosófica e sobretudo que hão-de ser 
simples e práticas. Ao lado da regra, o exemplo. 
Um menino pronuncia defeituosamente certas pala­
vras ; que fazem os pais ou mestres para o corrigir ? 
Pronunciam-nas como devem ser pronunciadas, e lhas 
mandam repetir em seguida. " Escuta bem como 
digo . . . vai, agora tu . . . não ponhas os lábios desse 
modo, não faças tanto esforço com a língua ", e ou­
tras coisas assim. Eis o exemplo ao lado do pre­
ceito; a regra e logo a maneira de a pôr em prática. 
CAPíTULO II 
A atenção 
Assim como há meios conducentes ao conheci 
mento da verdade, também há obstáculos que nos 
impedem chegar a ela. Ensinar a empregar uns 
e desviar dos outros, eis a arte de bem pensar. 
I 
DEFINIÇÃO DA ATENÇÃO, SUA NECESSIDADE 
A atenção é a aplicação do espírito a um objecto 
qualquer. Para bem pensar, é mister, antes de tudo, 
saber ser atento. O machado não corta, se não é 
aplicado à árvore ; a foucinha é inútil nas mãos do 
ceifador, se não encontra espigas. 
Algumas vezes, os obj ectos se apresentam ao 
espírito, sem que ele lhes atente, de modo que su­
cede vermos sem olhar, ouvir sem escutar ; porém 
o conhecimento adquirido por tal modo é sempre li-
16 O CRIT�RIO 
geiro, superficial, muitas vezes inexacto ou comple­
tamente erróneo. O espírito inatento fica por assim 
dizer fora de si, não vê o que se lhe mostra. Esfor­
cemo-nos por ·adquirir o hábito da atenção, quer no 
movimento dos negócios, quer na quietação dos 
estudos. Temos tido muitas vezes ocasião de obser­
var que o que nos falta para compreender é menos 
a inteligência suficiente, do que suficiente aplicação 
do espírito, a atenção. 
Se escutamos a narração dum sucesso qualquer, 
distraídos e deixando flutuar ao acaso a imagina­
ção, interrompendo o narrador com mil questões e 
digressões estranhas, o que daqui resulta é que 
circunstâncias importantes nos escapam, que traços 
essenciais passam sem nos impressionar, e que, se 
depois quisermos contar o facto, ou meditàr snbre 
ele afim de formarmos nosso j uízo, ele se apresenta. 
à reminiscência incompleto e desfigurado. Proce­
derá o êrro de nossa incapacidade, ou de não termos 
prestado suficiente atenção ao narrador ? 
li 
VANTAGENS DA ATENÇÃO E INCONVENIENTES 
DE SUA FALTA 
A atenção multiplica as forças do espírito de 
um modo incrível, e como que alonga o tempo. 
O CRITtRIO 17 
Por meio da atenção o homem ilustra-se incessan­
temente ; é à atenção que ele deve a precisão e ela� 
reza de suas idéias ; deve-lhe até as maravilhas da 
memória, pois que em virtude da atenção é que as 
idéias se classificam no cérebro com ordem e método. 
Os que só frouxamente atendem, passeiam seu 
entendimento por lugares distintos ao mesmo tem­
po ; aqui recebem uma impressão, além uma mui 
diferente ; acumulam deste modo cem coisas inco� 
nexas que, longe de os aj udar para a aclaração e 
retenção, se confundem, se embaralham, se destróem 
umas às outras. Não há leitura, conversação, es� 
pectáculo, que não possam, por mais insignificantes 
que pareçam, oferecer algum obj ecto de instrução. 
A atenção toma nota e recolhe as coisas mais insig� 
nificantes, a distracção deixa cair ao chão, como re­
fugo, o ouro e as pedras preciosas. 
III 
COMO SE PRESTA ATENÇÃO. ESPíRITOS 
FRíVOLOS E CONCENTRADOS 
Poder-se-á crer que tal atenção demanda muita 
fadiga, mas é um êrro. Quando digo atenção, não 
�ntendo a fixidez dum espírito que, por assim dizer, 
18 O CRITÉRIO 
se crava nos obj ectos, mas sim uma aplicação serena, 
repousada, que permite que cada coisa tenha a sua 
hora e. nos deixa a agilidade necessária para passar 
de um trabalho ao outro. Esta atenç.ão não é in­
compatível com as diversões ou recreio. Com ef-eito, 
recrear-se a gente não é deixar de pensar, é dar 
tréguas •aos assuntos de estudo laborioso e consagrar­
-se a estudos mais fáceis. O sábio que interrompe 
os seus estudos árduos e p-rofundos para ir saborear 
um momento os encantos do campo compraz-se em 
observar o estado das coisas ; atende aos trabalhos 
dos lavradores, ao murmúrio das fontes, ao canto das 
aves ; esta atenção distrai-o, não o fatiga. 
Estou tão longe de considerar a atenç.ão como 
. abstracção severa e contínua, que conto -como ho­
. mens distraídos não somente os estouvados, mas 
ainda os ·absorvidos em si mesmos. Aqueles dissi­
pam-se fora de si ; estes p-erdem-se dentro de si 
mesmos, nas vagas profundezas de suas divagaç.ões. 
Tanto uns como os outros carecem de conveniente 
atenção, isto é, aquela que se deve aplicar ao objecto 
de que se ocupa. 
O homem atento é também o que tem mais 
urbanidade e cortesia. Feris o amor próprio da· 
queles a quem não escutais. E'' de notar aqui que 
um acto de urbanidade ou um acto contrário se cha· 
mam atenção ou falta d-e atenção. 
O CRITÉRIO 19 
IV 
AS INTERRUPÇõES 
Acrescentemos que até os estudos mais profun­
dos, raramente exigem uma atenção tal que os não 
possamos interromper sem grave dano. Pessoas há 
que se queixam amargamente se a desoras uma vi­
sita ou um ruído qualquer inesperado lhes vem cor­
tar o fio das idéias. Fracos cérebros ! verdadeiros 
. daguerreótipos em que o mais leve movimento, a 
interrupção mais passageira basta para confundir 
tudo. Este defeito, natural em algumas pessoas, 
em outras, afectação vaidosa e pueril, acusa sempre 
completa ausência de concentração ou recolhimento 
interior. Como quer que seja, esforcemo-nos por 
adquirir uma atenção que seja ao mesmo tempo 
forte e flexível. E' mister que nossas concepções 
não sejam a guisa de imagens daguerreotípicas, mas 
sim quadros bem desenhados. Interrompido o pin­
tor, deponha seus pincéis para os retomar quando 
puder prosseguir em sua obra. Se um corpo es­
tranho lhe faz sombra, desvia-o e tudo fica reparado. 
CAPíTULO III 
Escolha da carreira 
I 
VAGA SIGNIFICAÇÃO DA PALAVRA TALENTO 
Cada um deve consagrar-se inteiramente à pro­
fissão para a qual sentir maior aptidão. Esta re­
gra é da maior importância ; muitas vezes tem sido 
esquecida ou desprezada, e daí vem, segundo a mi­
nha convicção, que as artes e as ciências não têm 
ainda feito os progressos decisivos de ·que são sus­
ceptíveis. Para alguns a palavra talento significa 
cap·acidade absoluta ; um espírito fadado para uma 
coisa deve sê-lo igualmente para todas. Erro capital. 
Um homem pode ser duma capacidade prodigiosa 
num ramo de conhecimentos humanos, e mostrar-se 
medíocre ou completamente nulo em outros. Certa­
mente Napoleão e Descartes são dois grandes espíritos 
22 O CRITÉRIO 
e todavia nenhum ponto de semelhança têm. Supo­
nhamos que mudavam seus pensamentos : o gênio da 
guerra não compreenderia o gênio da filosofia ; o 
conquistador colocaria o pensador em o número da­
queles que com desdém chamava ideólogos. 
Poder-se�ia escrever um livro sobre os talentos 
comparados, assinalando as diferenças radicais que 
osdistinguem. A cada um sua parte de força e de 
fraqueza. Há poucos homens, não há talvez nenhum, 
que chegue a uma igual superioridade em todas as 
coisas. Não nos mostra a observação que certas apti­
dões se contrariam e prejudicam mutuamente ? Com 
efeito um espírito generalizador raramente possui a 
exactidão minuciosa. Pedi ao poeta que vive de ins­
pirações e imagens grandiosas, que se suj eite à re­
gularidade compassada das matemáticas ! 
li 
O INSTINTO NOS INDICA A CARREIRA QUE 
MELHOR SE NOS ADAPTA 
Às faculdades que o Criador nos distribui em 
graus diferentes, acrescenta um instinto preciso que 
nos indica o seu emprego. Se um espírito se com­
praz com certos trabalhos, ele os. busca com perseve­
rança ; outro, pelo contrário, experimenta repugnân­
cia quase invencível e constante para a esses trab-a-
O CRITÉRIO 23 
lhos se dedicar. Não nos enganamos nisto. A natu­
reza nos adverte que recebemos, no primeiro caso, 
disposições felizes, e, no segundo, inaptidão para tal 
mister. O sentido do gosto, se não está alterado por 
alguma doença ou maus hábitos, distingue os alimen­
tos sãos dos que o não estão. O mesmo acontece 
com o olfacto. Deus não podia ter menos cuidado 
pela alma que pelo corpo. 
Os pais, os mestres, os directores de estabeleci­
mentos de educação farão bem se prestarem a devida 
atenção a esta verdade. Quantos talentos, com efeito, 
que, bem dirigidos, teriam dado os mais precisos 
frutos, se consomem inutilmente, pelo facto de terem 
sido consagrados à carreira para que não haviam 
sido feitos ! 
Todos podem fazer este exame. O mesmo alu­
no, desde a idade de doze anos por diante, está nos 
casos de compreender quais são os trabalhos que lhe 
custam menos e os estudos em que se acha com mais 
aptidão e inteligência. 
III 
MEIOS PARA DISCERNIR AS APTIDõES 
PARTICULARES DUM MENINO 
Fazei passar diante dos meninos produtos di­
versos, obras notáveis da indústria e da inteligência 
24 O CRITtiUO 
humana ; conduzi-os aos lugares em que o instinto ele 
cada um possa ser posto em presença de objectos de 
sua escolha. Tal método vos será muito útil, muito 
seguro. · Na revelação das aptidões, a natureza faz 
aqui o que seria incapaz de conseguir o estudo mais 
atento. 
Um mecanismo engenhoso atrai a atenção dum 
grupo de meninos de doze anos. O maior número 
admira um momento e passa ; um só se detém e pa­
rece longo tempo esquecido do mais. A curiosidade 
de seu exame, as questões cheias de senso que dirige, 
a compreensão rápida do maquinismo que assim o 
interessa, tudo isto não terá alguma significação 
para o observador atento ? 
Ledes o trecho duma bela poesia e se entre eles 
está algum Lope de Vega, um Ercilla, um Calderon, 
vedes brilharem os seus olhos, altear-lhe o peito; e 
a imaginação do menino sente-se inflamada por um 
sopro que nem compreende. Falou a natureza; desig­
na-vos um poeta. 
É mister não contrariar as aptidões, não as for­
çar. De dois meninos extraordinários, confiados à 
vossa conduta, podeis não dar à sociedade senão dois 
homens de extrema mediocridade. A águia e a ando· 
rinha distinguem-se pela força e agilidade de suas 
asas, porém jamais a águia lançou o seu vôo à 
b CRITtRIÓ 25 
maneira da andorinha, nem a andorinha à maneira 
do rei dos ares : 
. . . Tenta te diu quid ferre recusent 
Quid valeant humeri. 
Este conselho de Horácio, dirigido aos escrito­
res, nós o dirigimos a todo o homem que se decide 
a abraçar uma profissão qualquer. 
éAPfTULO IV 
Da possibilidade 
I 
CLASSIFICAÇÃO DOS ACTOS DE NOSSO ENTENDI­
MENTO. QUESTCES A PROPOR 
Para dar a meu assunto toda a clareza de que 
o julgo susceptível, dividirei os actos de nosso enten­
dimento em duas classes : actos especulativos e actos 
práticos. Chamo especulativos os que param no co­
nhecimento, e práticos os que conduzem à acção ou a 
determinam. 
Quando simplesmente se trata de conhecer uma 
coisa, podemo-nos propor as questões seguintes : 
t.a tal coisa é ou não P'ossível ? Existe ou não 
existe ? Qual é a sua natureza? As regras, com 
28 O CRITÉRIO 
cuja aj uda se podem resolver satisfatoriamente 
estas três questões abrangem tudo o que diz respeito 
à ciência especulativa. 
Em toda e qualquer acção, é evidente qne nos · 
propomos um fim. Daí as questões: 1." qual é esse 
fim ? qual o melhor meio de o conseguir ? 
Peço instantemente ao leitor que fixe a aten­
ção e, se puder, grave na memória as prereden­
tes divisões. Facilitar-lhe-ão a inteligência do que 
deve seguir-se e serão de grande auxílio para. 
estabelecer a ordem em seus pensamentos. 
li 
O POSSíVEL E O IMPOSSíVEL. CLASSIFICAÇÃO 
Possibilidade. A idéia contida nesta palavra é 
correlativa à de impossibilidade. Com efeito, a afir­
mação duma arrasta à negação da outra. 
As palavras possibilidade e impossibilidade ex­
primem idéias diferentes, segundo se aplicam às cou­
sas em si mesmas ou sõmente à ·causa que as pode 
produzir. Todavia estas idéias têm relações muito 
íntimas, como vamos ver. Consideradas relativa­
mente a um ser, independente da causa, a possibili­
dade e impossibilidade chamam-se intrínsecas ; ex-
O CRITtlUO 29 
trínsecas se se aplicam às causas. Apesar da sim­
plicidade e clareza aparente desta definiç.ão, para 
completamente alcançar o sentido, é indispensável 
seguir-me nas diferentes classificaç.ões que vou expor 
nos seguintes parágrafos. 
Poder-se-á estranhar que definamos a impossi­
bilidade antes de definir a possibilidade. Mas um 
pouco de reflexão fará ver que este método é lógico. 
A palavra impossibilidade, não obstante ter sentido 
negativo, não deixa de apresentar uma idéia positiva, 
a i déia de contradiç.ão entre as cousas, de exclusão, 
de oposição, de luta, por assim dizer ; de modo que, 
vindo a desaparecer esta contradição, concebemos a 
possibilidade. Daí vêm estes modos de dizer: tal 
cousa é possível, pois que nada se lhe opõe, não tem 
contradição. Como quer que seja, o conhecimento 
do impossível dá o de possível e vice-versa. 
Alguns filósofos distinguem três espécies de im­
possibilidade : impossibilidade metafísica, física e 
moral. Adoptarei esta divisão, acrescentando-lhe um 
novo membro : a impossibilidade do senso comum. Em 
seu lugar se verá em que me fundo. Talvez, melhor 
seria dar à impossibilidade metafísica o nome de 
impossibilidade absoluta; o nome de impossibilidade 
natural à impossibilidade física, e à impossibilidade 
moral o nome de impossibilidade ordinár-ia. 
O CRITÉRIO 
III 
EM QUE CONSISTE A IMPOSSIBILIDADE 
METAFíSICA OU ABSOLUTA 
A impossibilidade metafísica ou absoluta é a 
que se refere à mesma essência das coisas ; por 
outra, um facto é absolutamente impossível, quando 
sua existênci'a envolver consigo o absurdo : ser e 
não ser ao mesmo tempo. Um círculo triangular é 
um impossível absoluto ; porque seria e não seria 
ao mesmo tempo um círculo ; porque seria e não 
seria um triângulo. Cinco igual a seis é impossível 
absoluto, porque cinco seria cinco e não cinco, e o 
seis seria seis e não seis. Um vício virtuoso é im­
possível absoluto, porque seria vício e não vício ao 
mesmo tempo. 
IV 
A IMPOSSIBILIDADE ABSOLUTA E A 
OMNIPOT:f:NCIA DIVINA 
O que é absolutamente impossível não poderia 
oocistir em caso algum. Quando dizemos que Deus 
é omnipotente, não queremos dizer que haja nele o 
poder de fazer absurdos. A existência e a não exis-
O CRITÉRIO 31 
lencia ao mesmo tempo, do mundo, de Deus, o v1c10 
virtuoso e outras incoerências desta ordem, eviden­
temente não podem estar debaixo da acção da omni­
potência. Como muito bem observou Sto. Tomás, 
devemos dizer que tais coisas não podem ser feitas 
e não que . Deus as não pode f'azer : segue-se daí 
que a impossibilidade intrínseca envolve igualmente 
a impossibilidade extrínseca absoluta, isto é, que 
nenhuma coisa é capaz de produzir o que de si 
mesmo é absolutamente impossível. \ · 
v 
A IMPOSSIBILIDADE ABSOLUTA E OS DOGMAS 
A afirmaÇ-ão duma impossibilidade absoluta 
implica idéia perfeitamenteclara de termos j ulgados 
contraditórios. Declarar uma cousa impossível, só 
porque a não podemos compreender, é simultânea­
mente dar a conhecer o orgulho e a impotência de 
nossa razão. Relevemos a este propósito a sem 
razão dos que rejeitam certos mistérios do cristia­
nismo, argüindo-os de pretendida impossibilidade. 
O dogma da Trindade, o da Incarnação, seguramente 
estão acima da fraca inteligência do homem ; mas que 
podemos nós concluir da nossa impotência ? Deus 
trino e uno ; uma mesma natureza e três pessoas 
distintas, como pode ser isso ? Não o sei ; porém 
32 O CRITtRIO 
minha ignorância não me permite o inferir que haja 
contradição. Por ventura compreendo o que é essa 
natureza, o que são essas pessoas de que me falam ? 
Não : logo quando quero j ulgar se é possível ou não . 
o que delas dizem, acho-me com o desconhecido. 
Que sabemos nós dos segredos da Divindade ? 
O Eterno quis pronunciar algumas palavras miste­
riosas para exercitar nossa obediência e humilhar 
nosso orgulho, porém não quis levantar o denso véu 
que separa esta vida mortal do oceano de .luz e de 
verdade. 
VI 
IMPOSSIBILIDADE FíSICA OU NATURAL 
A impossibilidade física ou natural eonsiste em 
um facto estar fora das leis da natureza. E' natural­
mente impossível que uma pedra, deixada de ser 
sustida no ar, não caia ; que a água, abandonada a 
si mesma, não tome o seu nível ; que um corpo, mer­
gulhado num fluido de menos densidade, não afunde ; 
que o sol pare em sua carreira, etc . . . , porque as 
leis da natureza prescrevem a queda dos graves, o 
nivelamento das águas, e assim por diante. Deus, 
que estabeleceu estas leis, tem poder para as sus­
pender ; o homem é que o não pode. O que natural­
mente é possível para Deus, não o é para a criatura. 
. 
O CRITÉRIO 
VII 
MODO DE JULGAR DA IMPOSSIBILIDADE 
NATURAL 
33 
Podemos afirmar que um facto qualquer é na­
turalmente impossível, quando saibamos que existe 
lei que se oponha à realização deste facto, e que esta 
oposição não é destruída ou neutralizada por ne­
!,huma outra lei. É lei da natureza que o homem, 
deixando de ter ponto de apoio, caia para o chão, 
porque é mais pesado que o ar ; porém existe uma 
. outra lei, em virtude da qual um corpo formado de 
diversas partes e e3pecialmente menos pesado do 
que o meio em que se acha mergulhado, aí se sus­
tenha ou eleve, mesmo quando uma das suas partes 
seja mais pesada que o fluido, ambiente. Assim um 
homem colocado num balão aerostático, conveniente­
mente construído, eleva-se aos ares, e este fenómeno 
está perfeitamente em harmonia com as leis. da na­
tureza. A extrema pequenez de certos insectos imped� 
que a sua imagem se pinte na retina de nossos olhos 
de modo perceptível para nós ; mas, em virtude das 
leis a que a luz está submetida, a direcção dos raios 
pode ser modificada de tal modo que, por meio duma 
lente microscópica, esses raios, partidos dum objeeto 
pequeníssimo, se desviam em seu ponto de contacto 
34 O CRl'rnRIO 
com a retina, e aí tracem uma imagem muito maior 
que a realidade ; de modo que não será naturalmente 
impossível que certos seres imperceptíveis à vista 
d€sarmada, se nos apresentem, com auxílio do mi- · 
croscópio, com proporções consideráveis . 
. Por estas considerações se vê quanto importa 
não proclamar tal ou tal fenómeno como natural­
mente impossível, senão depois de maduro exame. 
A natureza é prodigiosamente poderosa e a 
maior parte de seus segredos nos são desconhecidos. 
Se no século V se dissesse que ainda havi·a de vir. 
tempo em que, por acção dum pouco de vapor compri­
mido, se haviam de vencer distâncias em uma hora 
que então levariam um dia inteiro a vencer, esta facto 
seria declarado naturalmente impossív€1 ; e, todavi-a 
o menino que hoje viaj a em caminho de ferro com­
preende perfeitamente que é levado na rápida car­
reira por agentes puramente naturais. Quem sabe 
as descobertas destinadas ao futuro e qual o aspecto 
que apresentará o mundo da:qui a dez séculos ? 
Sej amos embora cautos em crer a existência de fenó­
menos extraordinários ; não nos deixemos embalar por 
sonhos dourados ; porém não classifiquemos de natu­
ralmente impossível o que um descobrimento feliz 
poderá mostrar mui realizável. Não prestemos fé 
levianamente a transformações inconcebíveis, mas 
não as malsinemos de extrava.g;âncias e absurdos. 
O CRITÉRIQ 
VIII 
SOLUÇÃO DUMA DIFICULDADE SOBRE OS 
MILAGRES 
35 
Destas observações surge aparentemente uma 
dificuldade de que os incrédulos não se têm esque­
cido de lançar mão. E i-la em toda a sua força : 
" Os fenômenos chamados milagres são produzidos 
por causas desconhecidas, mas naturais ; de modo 
algum provam a intervenção divina, e, portanto, em 
nada apoiam a verdade da religião cristã. " 
Este argumento é tão especioso quanto fútil. 
Um homem de nascimento obscuro, sem letrBs, 
perdido na multidão, sem meios humanos de atrair 
a si a atenção dos outros, não possuindo ao menos 
um lugar em que repousar a cabeça, este homem 
apresenta-se à sua nação, trazendo-lhe uma doutrina 
tão nova quanto sublime. Pedem-lhe os testemu­
nhos de sua missão e ele os dá. A sua voz, os cegos 
vêem, os surdos ouvem, os mudos falam, os paralí­
ticos andam ; as mais rebeldes enfermidades desapa­
recem repentinamente ; os que hão expirado, os que 
desceram ao túmulo levantam-se de seu esquife; 
até os que há dias jaziam, lançando já 'as exalações 
empestadas da morte, saem de seus túmulos obedien­
tes à voz que lhes diz : Levantai-vos ! - Eis o con­
junto dos factos. 
36 O CRITtRIO 
Empenhar-se-á o mais obstinado naturalista PN 
descobrir aqui a acção das leis naturais ocultas ? 
Com boa fé, ousar-se-á taxar de imprudência o� 
cristãos que crerem que tais prodígios se não podiam . 
operar sem intervenção divina? Credes que com o 
tempo se descubra o segredo de ressuscitar os mortos, 
e não por meio da ciência, mas ao chamamento duma 
voz que manda ? A operação da cataracta terá al­
guma semelhança com a acção de abrir os olhos a 
um cego de nascimento ? Os processos empregad0s 
para dar movimento a um membro paralisado asse:. 
melham-se por ventura a este outro : Levanta-te, 
toma o teu leito e volta para tua casa ? Virá c..'ia em 
que as ciências hidrostáticas e hidráulicas dêm à 
simples palavra humana o poder de acalmar as va­
gas enfurecidas e forçá-las a tornarem-se· mansas 
debaixo dos pés de quem caminha sobre elas, como 
um rei sobre prateadas alfombras ? 
E que diremos se a tão imponente testemunho 
se aj untam o cumprimento das profecias, a santi­
dade duma vida sem manchas, a elevação da dou­
trina e a pureza da moral ; enfim o sacrifício da 
vida, uma morte heroica no meio· de tormentos e ul­
trajes ; o ensinamento sustentado, proclamado até 
ao fim com uma serenidade, uma doçura cheia de 
majesíaJe, até ao último suspiro que exala nestas 
solenes pa}avras deixadas à terra : Amor e perdão ? 
O CRITÉRIO 37 
Não se nos fale, pois, de leis ocultas, de impos­
sibilidades aparentes ; não se oponha a tão convin­
cente evidência esta palavra desconsoladora " que'm, 
sab e ? " Esta dificuldade, que seria razoável s e se 
tratasse dum facto isolado, envolto em obscuridades, 
sujeito a mil combinações diferentes, se se obj ecta 
contra o cristianismo é não só infundada, senão 
também contrária ao senso comum. 
IX 
IMPOSSIBILIDADE MORAL OU ORDINARIA 
A impossibilidade moral ou ordinária é a que 
está em oposição com o curso regular dos sucessos. 
Esta definição é susceptível de numerosas interpre· 
tações ; pois que a idéia de curso ordinário é tão 
el ástica, é aplicável e tão difenmtes objectos, que 
pouco pode dizer-se em geral que seja proveitoso 
na prática. Esta impossibilidade nada tem que ver 
com a absoluta ou a natural ; as cousas moralmente 
impossíveis não deixam por isso de ser muito pos­
síveis absoluta e naturalmente. 
Daremos uma idéia mui clara e simples da im­
possibilidade ordinária, se dissermos que um facto 
é impossível desta maneira, quando,no curso regular 
das coisas, tal facto raras vezes ou nunca se dá. 
Vejo um grande personagem cujo nome e títulos 
38 O CRITÉRlO 
andam na boca de todos e a quem se tributam as 
honras devidas à sua dignidade. É moralmente im­
poosível que o nome seja suposto, que o personagem 
seja um impostor ; e todavia tem havido enganos . 
desta ordem. 
Vemos a cada passo que a impossibilidade moral 
desaparece por intervenção duma causa extraordiná­
ria ou imprevista que muda o curso dos aconteci­
mentos. Um comandante que acaudilha um punhado 
de soldados, partidos de longes terras, aborda a pla­
gas desconhecidas e se encontra com um imenso con:­
tinente povoado por milhões de habitantes. Lança 
fogo às naus e diz : Marchemos. Aonde vai ? con­
quistar vr.stos reinos com alguns soldados. É im­
possível, este aventureiro é um louco ! Deixai-o ! sua 
demência é a do heroísmo e do gênio. . A impossibi­
lidade vai tornar-se um sucesso histórico. O aven· 
tureiro chama-se Fernando Cortês, e a sua loucura 
dá à Espanha um novo mundo. 
X 
IMPOSSIBILIDADE DO SENSO COMUM, IMPRO· 
FRIAMENTE CONFUNDIDA COM A 
IMPOSSIBILIDADE MORAL 
A pal·avra impossibilidade moral tem algumas 
vezes um sentido muito diferente do que lhe have-
O CRlTtRIO 
mos dado até aqui. Há factos impossíveis, cuj a im­
possibilidade absoluta ou natural se não pode afirmar ; 
e com tudo nós estamos de tal modo certos de que 
são irrealizáveis que nem a impossibilidade absoluta 
produziria certeza mais completa . Um homem tem 
encerrado numa urna uma grande quantidade de 
caracteres de imprensa, que supomos todos cúbicos 
p·ara que não haj a mais probabilidade de que caiam e 
fiquem sobre tal ou tal face. Mistura-os, agita-os 
muitas vezes sem ordem e os lança enfim ao acaso. 
Será possível que em sua queda estes caracteres com­
ponham o episódio de Dido ? 
Não, responde instantâneamente todo o homem 
de senso . Esperar seria loucura. Estamos tão pro­
fundamente convencidos da impossibilidade do facto, 
que apostaríamos a vida com a maior tranqüilidade. 
É de notar que nenhuma impossibilidade me­
tafísica há aqui, porque nos caracteres nenhuma 
repugnância existe a colocarem-se do modo desej ado . 
Um compositüi· os distribuiria desta maneira em pou­
co tempo e com a maior facilidade. Nenhuma lei da 
natureza se opõe a. que estes caracteres caiam sobre 
uma ou sobre outra face, ao lado uns dos outros, de 
modo que produzissem o efeito desej ado ; não se pod e 
invocar a impossibilidade natural. Existe por tanto 
uma impossibilidade doutra ordem, que nada tem de 
comum com as du·as primeiras e que igualmente difere 
da que apelidamos impossibilidade moral, p·elo único 
40 O CRITfRIÓ 
facto de que ela está fora do curso regular dos su­
cessos. Damos-lhe o nome de impossibilidade do 
senso comum. 
A teoria das probabilidades e das combinações 
evidenciam esta impossibilidade, medindo, por assim 
dizer, distância imensa que separa a possibilidade 
dum fenómeno da sua realização. Não quis o Autor 
da natureza que certas convicções de soberana im­
portância precisassem de ser meditadas ; pois que. 
doutro modo, muitos homens ficariam delas privados. 
Eis porque no-las deu sob a forma de instinto. Em· 
vão vos esforçaríeis por as combater, nem ainda aos 
mais rudes. Não saberiam responder-vos ; porém, 
meneando a cabeça, diriam de si para si : Este fi­
lósofo, que crê na possibilidade de tais despropósitos, 
deve não estar são do j uízo. 
Quando a natureza fala do fundo de nossa alma 
com voz tão clara, tão imperiosa, seria toleima não 
a escutar. Só à� vezes alguns homens chamados 
filósofos se obstinam nesse labor ingrato. Esquecem 
que fora do senso comum não há filosofia e que o 
absurdo é mau caminho para chegar à sabedoria. 
CAPíTULO V 
Da existencia ; conhecimentos adquiridos pelo 
testemunho imediato dos sentidos 
I 
NECESSIDADE DO TESTEMUNHO DOS SENTIDOS ; 
DIFERENTES MODOS COM QUE NOS 
APRESENTAM AS COISAS 
Depois de termos estabelecido os princípios e 
as regras ·que nos dev·em guiar nas questões da pos­
sibilidade, passemos às questões da existência, que 
nos oferecem um campo muito mais vasto e de mais 
úteis e freqüentes aplicações. 
Por duas maneiras distintas pódemos adquirir 
a certeza da1 existência ou não existência de um ser, 
a certeza de que uma coisa existe ou não existe : 
por nós mesmos ou por meio doutrem. 
42 
------------------------------------------�-
O conhecimento que •adquirimos por meio dos 
sentidos pode ser mediato ou imediato. Ou os sen­
tidos nos apresentam os objectos à nossa inteligência, 
ou, das imagens que estes, objectos proC..'uzem, a inte� 
lig.ência infere a existência de uma ordem de fenó­
menos e de factos; colocados acima da esfera dos sen­
tidos. A vista me adverte imediatamente da exis­
tência de um edifício que aparece diante de mim. 
O pedaço de uma coluna, alguns restos de mosaico, 
uma inscrição me fazem saber que no lugar onde 
descubro estes obj ectos se elevava outrora um temp1o 
romano. Em ambos os casos devo ·aos sentidos o 
conhecimento adquirido : imediatamente no primeiro, 
de modo mediato no segundo. 
Sem o auxílio dos sentidos o homem nem ao me­
nos chegaria a conhecer a existência dos entes ima­
teriais. Na verdade, a inteligência merguÍhad·a num 
eterno adormecimento não poderia ad·quirir este con­
nhecimento, a menos que Deus viesse em seu auxílio 
por meios sobrenaturais, meios de que não temos de 
ocupar-nos aqui. 
À distinção que acabamos de expor em nada obs­
tam os sistemas que possam adoptar-se sobre a origem 
das idéias. Quer elas sejam inatas ou adquiridas, quer 
provenham directamente dos sentidos, ou somente des­
pertadas por estes, é evidente que nada poderíamos, 
que nada saberíamos sem que previamente esses po­
derosos auxiliares da inteligência tenham sido 
O CRITtRIO 43 
postos em acção. Deixemos os ideólogos imaginarem 
o que quiserem sobre as operações intelectuais de 
um homem privado de todos os seus órgãos ; como 
verificar o erro ou a verdade de seus sistemas ? 
O infeliz não poderia comunicar nem pela palavra, 
nem mesmo por sinais. De mais não se trata aqui 
de um ente excepcional, mas do homem, do homem 
dotado de órgãos, e a experiência nos ensina que, 
nestas condições, o homem conhece, e que conhece 
o que sente e por meio de que o sente. 
II 
ERROS A QUE ESTAMOS SUJEITOS POR OCASIÃO 
DOS SENTIDOS. MEIOS DE OS REMEDIAR. 
EXEMPLOS 
Se o conhecimento imediato que os sentidos nos 
dão da existência de uma coisa é algumas vezes afec­
tado de erro, é porque não sabemos servir-nos destes 
admiráveis instrumentos. Quando os objectos mate­
riais obrarem sobre nossos órgãos, excitando impres­
sões em nossa alma, procuremos descobrir de onde 
vem esta impressão, e até que ponto ela corresponde 
à existência do objecto que parece produzi-la. Eis 
a regra. Alguns exemplos melhor a farão compre­
ender. 
44 O CRITÉRIO 
Vislumbro ao longe uma coisa que se move, e 
digo : Acolá está um homem. Aproximando-me po­
rém do obj ecto, vej o que tomei por um homem um 
arbusto agitado pelo vento. Enganou-me o sentido . 
da vista ? não, porque a impressão que me trans­
mitira. não era outra qu€ a de um corpo em movi­
mento, e se eu tivesse dado à impressão suficiente 
atenção teria reconhecido que não me apresentava 
um homem. Havia transformado minha impressão. 
O erro pertence portanto à insuficiência da. atenção 
e não ao sentido da vista. 
Pelo facto de achar certa semelhança entre um 
objecto confuso em movimento e um homem visto ao 
longe, passei da semelhança para o homem e con­
cluí de uma coisa para outra, €squecendo que a 
aparência e a realidade são duas coisas inteiramente 
distintas. 
Tendes algumas razões para cr€r que se deve 
dar uma batalha a certa distância do lugar em que 
vos achais, e por isso parece-vos ouvir o troar do 
canhão € credes abertas as hostilidades. Todavia 
não há nada disso . Quem deveis acusar de vosso 
erro ? o ouvido ? De nenhum modo. Acusai a vós 
mesmos. Havia um ruído,com efeito ; mas era o 
que, numa floresta próxima, produziam as macha­
dadas de um lenhador ; era o ruído de uma porta 
que se fechava ou qualquer outro que de algum modo 
semelhava o troar do canhão ao longe. Estáveis 
Ó CRITÉRIO 45 
por ventura bem seguros de que a causa da ilusão não 
estava junta de vós? Tínheis o ouvido suficiente­
mente exercitado para discernir a verd·ade, atenta a 
distância em que se deviam dar as descargas de arti­
lheria, a posição do lugar, a direcção do vento? Não 
foi o sentido da audição que vos enganou, foi a levian­
dade, a precipitação. A sensaç.ão era o que devia ser : 
vós é que lhe fizestes dizer o que realmente não dizia. 
Suponhamos que se apresenta a alguém um man­
jar delicioso ; prova-o e afirma ser mau, detest�vel ; 
o seu paladar estragado assim lho faz sentir. Onde 
está a causa do erro? não no órgão do gosto qut> 
apenas foi ocasião, senão na importância que lhe 
deu, devendo ter em vista que só quando o paladar 
está bem disposto é que pode indicar as qualidades 
do alimento. 
III 
É MISTER, EM CERTOS CASOS, EMPREGAR MAIS DE 
UM SENTIDO A FIM DE COMPARAR SEU 
TESTEMUNHO 
Observemos que para chegar a conhecer por 
meio dos sentidos a existência de um objecto qual­
quer, é preciso algumas vezes empregar mais de um 
sentido, e que sempre é mister estar premunido con-
46 O CRITtRIO 
tra a ilusão. Discenir até que ponto a existência 
de um objecto corresponde à sensação recebida, é 
evidentemente a obra da comparação, fruto da expe­
nencia. Um cego a quem se faz a operação da ca­
taracta não precisa as distâncias, e só depois de ter 
adquirido a conveniente prática da vista é que pode 
j ulgar das formas e das proporções. Tal prática 
nós a adquirimos desde a infância, sem dar por isso. 
e eis por que cr€mos que basta abrir os olhos para 
conhecermos os objectos tais quais eles são. Uma 
bem simples experiência, e que podemos renovar 
muitas vezes, nos convencerá do contrário. 
Um adulto e um menino vêem, através de um 
vidro de óptica, algumas pinturas representando 
uma paisagem, animais ferozes, uma batalha, et�. 
Ambos recebem a mesma impressão, porém nem a 
I 
batalha, nem os animais ferozes amedrontam o adul-
to, que bem sabe que não tem a realidade diante dos 
olhos. Não é sem esforço que conserva a ilusão, e 
por vezes pr€cisa de suprir por meio da imaginação 
as imperfeições do instrumento ou dos quadros; para 
melhor saborear o espectáculo. 
Pelo contrário, o menino que não compara, que ! · 
. I 
atende só á sensação isolada, e que nela se absorve, · 
agita-se e chora à vista dos soldados que se degolam, 
e dos animais ferozes de que tem medo. 
O CRITÉRIO ·17 
IV 
OS SÃOS DO CORPO E DOENTES DO ESPíRITO 
Costumam os que tratam do .bom uso dos sen­
tidos adv·ertir que é mister cuidar em que alguma 
jndisposição nos afecte os órgãos, de modo que assim 
nos transmitam sensações enganosas. Ê sem dúvida 
conselho prudente ; porém não dá a utilidade que 
se crê. Os enfermos raramente se dedicam a estu­
dos sérios, e ·assim os seus erros são de mínima im­
portância ; além de que a doença de um órgão logo 
adverte que se não deve confiar em seu testemunho. 
Mas, sobretudo, precisam de advertência e de regras 
os que, sendo sãos do corpo, o não são da inteligência; 
que põem ao serviço de uma idéia que os preocupa 
todos os sentidos ao mesmo tempo, e os forçam a 
perceber ( quem sabe ? de boa fé talvez ) tudo que 
venha em auxílio do sistema que adoptam. Que não 
d escobrirá nos corpos celestes o astrónomo, que se 
arma com telescópio, não para escrutar serenamente 
as profundezas dos céus, mas para neles achar a 
todo o custo -as provas que apoiem alguma asserção 
aventurada ? 
Disse eu intencionalmente que semelhantes erros 
podiam ser de boa fé. Efectivamente, muitas vezes 
48 O CRinRlO 
o homem se engana a si, antes de enganar os outros. 
Dominado por sua opinião favorita, atormentado pe­
lo desej o de ·achar provas que dela estabeleçam a 
verdade, e{>tuda os o bjectos, não para cornpreende1:, 
rnas para ter razii,Q., __ Deste modo, descobre tudo o que 
busca ; o mais das vezes, os sentidos lhe dizem outra 
coisa ou não dizem nada ; não importa : as mais leves 
aparências bastam para sua preocupação. "É isto ! " 
exclama ele com transporte. E sufoca com cuiC.'ado as 
dúvidas que se levantam em seu espírito. Imputa­
-as à falta de fé em seu incontrastável saber e se · 
impõe a obrigação de estar satisfeito, fechando os 
olhos à luz afim de enganar os outros, sem se ver 
na necessidade de mentir. 
Basta ter estudado o coração do homem para 
reconhecer a verdade destas observações : · debate­
mos em nós certas questões com deplorável parcia­
lidade. Se temos falta de convicção, trabalhamos 
para a formar em nosso espírito. O labor é penoso 
a princípio, a tarefa é difícil, porém logo o hábito 
vem fortalecer os fracos, se o orgulho intervém a 
não permitir retrocesso ; e o ·que começou lutando 
contra si mesmo com um engano que se lhe não 
ocultava de todo, acaba por ser realmente enganado 
e se abisma em sua ilusão com obstinação invencível. 
O CRITÉRIO 49 
v 
SENSAÇõES REAIS, MAS SEM OBJECTO EXTERNO 
Nem sempre os nossos erros provêm das exa­
gerações dos j uízos, ou das transformações que fa­
zem experimentar à sensação : há outra espécie deles. 
Sob impulso de uma idéia fixa a imaginação solici­
tando incessantemente o mesmo órgão, acaba por 
dominar, por alterar a acção vital, e por criar sen­
sações reais, que não têm outra causa que a mesma 
imaginação. Chega-se a sentir o que não existe. 
Para compreender este fenómeno, lembremo-nos que 
a sensação não se verifica no órgão, mas sim no 
cérebro, posto que a força do hábito nos leve a re­
ferir a impressão à parte afectada do organismo. 
Perderemos a vista se se der lesão grave no nervo 
óptico, e todavia o olho fica são. Toda a sensibili.:. 
dade se extingue no membro que deixa de estar em 
comunicação com o cérebro. Infere-se destes fenô­
menos que o cérebro é o centro das sensações e que, 
se a impressão que um órgão exterior costumava aí 
produzir é excitada, após um acto interno, a sensação 
dá-se independentemente da impressão exterior. 
Suponhamos que um órgão recebe de um corpo 
qualquer uma impressão e a comunica ao cérebro 
por meio do nervo A, produzindo neste nervo a vi-
50 O CRIT�R!O 
braç.ão B. Se por qualquer outra causa, puramente 
interior e moral, se produzir no mesmo nervo A a 
mesma vibração B, experimentar-emos necessària­
mente o que experimentaríamos se o órgão fosse 
materialmente afectado. 
A razão e a observação acham-se acordes neste 
ponto. A alma adquire conhecimento dos objectos 
exteriores por meio dos sentidos, mediatamente, ou 
imediatamente por meio do cérebro ; por tanto, logo 
que este recebe tal ou tal impressão, a alma não 
pode deixar de a referir ao ó1·gão do qual ordinària­
mente procede, e ao objecto que a costuma produzir. · 
Se ela advertir que o corpo está doente, saberá tomar 
as devidas precauções contra o erro ; mas não d-ei­
xará de receber a sensação, pelo facto de desconfiar 
de seu testemunho. Quando Pascal via ante si um 
abismo aberto, embora a razão lhe . dissesse . que es­
tava no império da ilusão, experimentava a sensação 
que se experimenta à beira de um abismo ; seu& 
esforços não logravam subj ugar a ilusão. O fenó­
meno nada tem de estranho para os que têm algu­
mas noções sobr-e estas matérias. 
VI 
OS MANíACOS E OS CISMATICOS 
A exaltação é uma espécie de loucura intermi­
tente e parcial. Uma imaginação exaltada pode cair 
O CRITÉRIO 51 
nos mesmos erros que um cérebro doente. As ma­
nias são um fenômeno deste gênero ; contínuas ou 
momentâneas, extravagantes ou sérias, diferem tan­
to em suas espécies como em sua intensidade. O 
\,cavaleiro da Mancha via formidáveis exércitos em 
: simples rebanhos de ovelhas ; e gigantes desmesura­' dos nos moinhos de vento. Levado por sua imagina-
ção, por sua fantasia, pela mania que o domina, 
talsábio, tal astrónomo, tal naturalista verá em seu 
telescópio, em suas retortas, em seu microscópio, os 
mais bizarros e estranhos fenômenos. 
Os grandes pensadores, os homens absorvidos 
em si mesmos estão mais arriscados a cair em ma­
nias científicas ou ilusões sublimes. A triste huma­
nidade sempre arrasta após si a sua herança 
de fraqueza. O próprio gênio está a ela suj eito. 
Uma mulher nervosa ouve, no murmúrio das brisas, 
lamentosos gritos, vê espectros num raio da lua brin­
cando através das clareiras, os gritos estridentes 
das aves noturnas são para ela vocações de demônios . 
. · \ Infelizmente, nem só as mulheres são dotadas dessas 
: 'imaginações ardentes que tomam por realidades -as 
extravagâncias de suas fantasias. 
CAPíTULO VI 
Conhecimentos adquiridos mediatamente 
pelos sentidos 
I 
TRANSIÇÃO DO CONHECIDO PARA O DESCONHECIDO, 
DO QUE É PERCEBIDO PELOS SENTIDOS 
PARA O QUE ELES NÃO PERCEBEM 
Aos sentidos devemos o conhecimento imediato 
de grande número de objectos ; mas maior é ainda 
o daqueles que os sentidos não atingem, porque es­
tes são incorpóreos ou fora de seu alcance. O edi­
fício levantado sobre a base estreita dos conheci­
mentos adquiridos por meio dos sentidos é tão gi­
gantesco, que o espírito hesita assombrado à sua 
vista, e só lhe resta crer em sua solidez. 
Onde os sentidos não podem chegar, supre 
o entendimento passando do conhecido ao desconhe-
54 O CRITtRIO 
cido, dos obj ectos sensíveis aos que o não são . A 
lava derramada por sobre o solo nos revela a exis­
tência de um vulcão que não vimos ; as conchas e 
outros mariscos, achados no alto das montanhas, 
fazem crer a existência de um transbordo de águas 
e nos indicam uma catástrofe de que estamos longe 
de ser testemunhas. Certos trabalhos subterrâneos 
mostram que em tempos anteriores se exploravam 
minas nos lugares que visitamos. Asruínas de uma 
cidade antiga assjnalam habitações de homens há 
muito desaparecidos da cena do mundo. Deste modo 
os sentidos nos apresentam objectos, e, por meio des­
tes obj ectos, o entendimento nos leva ao conhecimento 
de outros diferentes. 
Mas é mister ter em vista, que esta transição do 
conhecido para o desconhecido supõe uma idéia p,rê­
via, mais ou menos geral, do obj ecto desconhecido, 
e que ao mesmo tempo conheçamos tal ou qual de­
pendência entre os dois. Assim nos exemplos da­
dos, se é certo que não conheoemos . precisamente 
nem o vulcão, nem os minérios, nem os habitantes 
da cidade em ruínas, ao menos conhecemos de uma 
maneira geral estes obj ectos e as suas relações com 
os objectos que os sentidos nos apresentam. Da con­
templação do admirável maquinismo do universo, 
o homem não poderia elevar-se ao conhecimento do 
Criador, se não possuísse as idéias de efeito e de 
causa, de ordem e inteligência. Diga-se de passa-
O CRITÉRIO 55 
gem : só esta observação destrói o sistema dos qut: 
não querem ver no entendimento senão sensaçõeE 
transformadas. 
li 
COEXISTl!:NCIA E SUCESSÃO 
Não estamos autorizados a inferir a existência 
simultânea de dois fenómenos senão de sua mútua 
dependência. E portanto preciso conhecer esta 
dependênci'a ; toda a dificuldade está aí. Se pu­
déssemos penetrar nas profundezas onde se oculta 
a natureza das coisas, bastar-nos-ia fixar-nos sobre 
um objecto para conhecer logo todas as proprieda­
des, todas as relações que ligam estes objectos aos 
outros. Infelizmente não é assim. Tanto na ordem 
física como na moral, as idéias que possuímos so­
bre os princípios constitutivos dos seres são poucas 
e incompletas : segredos preciosos cuidadosamente 
velados pela mão do Criador. Assim a natureza 
oculta nas profundezas de seu seio os seus tesouros 
mais raros e mais preciosos. 
Esta carência de luzes relativamente à essên­
cia das coisas nos leva muitas vezes a concluir a 
dependência de fenómenos do simples facto de sua 
existência ou sucessão. Inferimos que uma coisa 
depende de outra só porque existem simultânea-
56 O CRlTÊRIO 
mente, ou porque uma se produz em seguida à outra. 
Daí freqüentes erros. E quem é que possui espírito 
assás seguro e esclarecido para conhecer sempr-e 
em que caso ou em que circunstância a coexistência 
e sucessão são ou não sinais de dependência ? 
Estabeleçamos em primeiro lugar como in­
contestável que nem a existência simultânea de dois 
entes ou factos, nem sua sucessão imediata, consi­
deradas em si mesmas, provam suficientemente, nes­
tes entes ou factos, relação de dependência. 
As plantas venenosas e empestadas entrelaçam 
algumas vezes as suas flores com as flores de plantas 
medicinais e aromáticas ; um réptil carregado de ve­
neno arrasta-se às vezes ao lado da borboleta com asas 
de ouro ; o assassino que foge à justiça humana oculta­
-se nas matas onde caça o honest0 caçador ; uma brisa 
· fagueira passa e rar€faz o ar, e logo muge o furacão, 
trazendo em suas negras asas tremenda tempestade. 
E ' portanto temerário julgar das relações que 
dois fenómenos têm entre si p elo simples facto de que 
algumas vezes os vimos unidos ou suced€ndo com 
curtos intervalos. Não será a tal sofisma que �e­
vemos imputar as predições sempre renovadas e 
sempre desmentidas sobre as variações atmosféricas ; 
as conj ecturas aventuradas sobre fontes, metais pre­
ciosos, etc. ? Algumas vezes tem acontecido que as 
nuvens depois de' terem afectado tal ou tal posição se 
dissolvem em chuva ; a tal ou tal direcção dos ventos 
0 CRITtRIO 57 
ou nevoeiros sobrevenha tempestade, e há logo quem 
se apresse a concluir que havia relação entre os dois 
fenómenos ; toma-se um como indicação do outro, e 
esquece-se que a coexistência, aqui, podia S·er intei­
ramente indiferente ou casual. 
III 
DUAS REGRAS SôBRE A COEXISTJ!:NCIA E A 
SUCESSÃO 
A importância da matéria exige que estabele­
çamos algumas regras. 
1. a Quando a experiência prolongada nos mos­
tra dois fenómenos cuj a existência é simultânea, de 
modo que a aparição ou ausência de um arrasta 
constantemente a aparição ou ausência do outro, 
podemos legltimamente afirmar que tais f€nómenos 
têm entre si certa ligação, e partindo da existência 
de um inferir a existência do outro. 
2.a S,e dois fenómenos se sucedem invariàvel­
mente, de sorte que o primeiro seja sempre seguido 
do segundo, tendo a existência deste sempre assina­
lado a existência daquele, concluamos sem medo de 
errar que eles estão ligados entre si por certa de­
pendência. 
58 O CRITtRIO 
Seria difícil talvez demonstrar filosOficamente 
estas proposições ; porém os que tentarem pô-l'as em 
dúvida devem observar que o bom senso, razão su­
perior da humanidade, as toma por regras ; que a 
ciência, em grande número de casos, se inclina dian­
te delas, e que, na maior parte de suas investigações, 
o nosso entendimento não tem outro guia. 
Está universalmente reconhecido que certo ta­
manho, forma, cor, etc., são para os frutos sinais 
de niaturidade. Como é que o camponês que os co­
lhe sabe esta relação ? Como é que da forma, da 
cor e outras apar.ências que percebe por meio dos 
sentidos, infere uma qualidade que não experimen­
ta, o sabor ? Se lhe pedirdes que vos explique 
a teoria deste encadeamento de idéias, não saberá 
responder ; mas esforçai-vos por lhe provar que ele 
se engana e ele rirá da vossa filosofia ; inabalável 
em sua crença, pela simples razão " de que ele tem 
visto sempre a coisa assim. " 
Sabe-se que certo grau de frio congela os lí­
qüidos, que certo grau de calor os reduz ao estado 
primitivo. 
A razão destes fenómenos é geralmente igno­
rada, e todavia ninguém põe em dúvida a relação 
que existe entre a col).gelação e · o frio, entre a li­
qüefação e o calor. Talvez se poderiam suscitar 
algumas- dificuldades sobre as causas que os físi­
cos assinam a esses factos, porém vulgarmente não 
O CiUTtRIÓ 59 
&e atende ao parecer dos sábios para formar opi­
nião. Os dois factos existem, sempre reunidos ; con­
soante se diz, portanto estão ligados por alguma 
relação. 
Será fácilfazer inúmeras aplicações desta re­
gra ; porém as que precedem bastarão para que qual­
quer as encontre de per si. Somente direi que a 
maior parte dos nossos actos se baseiam sobre o prin­
cipio seguinte : a existência simultânea de dois fe­
nómenos, observad·a durante tempo considerável, nos 
autoriza a concluir que, produzindo-se um, o outro 
se dew�rá produzir também. Se esta regra não fos­
se tida eomo certa, o comum dos homens não poderia 
obrar, e os mesmos filosófos se achariam mais em­
baraçados do que talvez cuidem. Pouco mais lon­
ge iriam do que o vulgo. 
A segund·a regra tem grande analogia com a 
primeira ; repousa sobre os mesmos principias e 
aplica-se à mesma ordem de factos. A constante 
experiência nos ensina que as aves saem dos ovos. 
Ninguém até hoje explicou satisfatOriamente como 
do líqüido encerrado na casca se forma aquele pe­
queno ser tão admiràvelmente organizado. Se a 
ciênda conseguisse dar explicação completa do fe­
nómeno, tal explicação não seria para uso do povo ; 
e todavia, nem o comum da gente, nem os sábios he­
sitam em crer que existe relação de dependência 
entre o aludido líqüido e a ave ; não se duvida que 
60 O CRIT�RlO 
essa maravilha animada teve origem em uma subs­
tância informe contida na casca do ovo. 
Poucos homens compreendem, ou para melhor 
dizer, todos ignoramos de que modo a terra vegetal 
concorre para a .germinação das sementes, para o 
desenvolvimento das plantas, e qual é a causa que 
apropria certas qualidades de terrenos, ·antes que 
outros, a produções determinadas ; mas isso é cons­
tantem�mte observado ; temos dados bastantes para 
crer que uma coisa depende da outra ; para, pela 
presença da segunda, podermos inferir seguramente 
a existência da primeira . 
IV 
CAUSALIDADE, OBSERVAÇOES. UMA REGRA 
DE DIALÉCTICA 
Importa no entanto distinguir entre a suces­
são uma só vez observada e a que o é muitas vezes. 
No primeiro caso, a sucessão não implica causali­
dade, nem relação de espécie alguma ; no segundo, se 
não supõe S·empre dependência de causa e efeito, in­
dica pelo menos uma causa comum� Se o fluxo e o 
refluxo das águas do mar, tão sõmente algumas ve­
zes, coincidisse com tal ou tal posição da lua, não 
se poderia legitimamente concluir existência da re-
b CRITtRIÓ 61 
lação entre os dois f.enómenos ; porém sendo cons­
tante a coincidência, com razão se conclui desta 
persistência que, se um destes dois factos não tem o 
outro por causa, ambos têm, pelo menos, uma causa 
idêntica, e que andam ligados em sua origem. 
Como quer que seja, com razão os dialécticos 
taxam de sofisma o raciocínio seguinte : Post hoc, 
ergo pro<pter hoc. " Depois disto, logo por causa disto 
mesmo " : porque, em primeiro lugar, não se trata da 
sucessão produzindo-se duma maneira constante ; e, 
em segundo lugar, bem pode esta sucessão indicar 
dependência duma causa comum, mas não que dos 
dois fenómenos um seja a causa do outro. 
Em nossos juízos sobre os fenómenos da natu­
reza, procedemos exactamente como nas cousas da 
vida, modificando a aplicação da regra segundo a 
importância do obj ecto. Em certos casos con­
tentamo-nos com uma ou poucas experiências ; em 
outros, queremos numerosas e repetidas ; aliás so­
mos sempre conduzidos pelo mesmo princípio : dois 
factos que se sucedem invariàvelmente têm entre si 
certa dependência ; a existência dum revela a exis­
tência do outro. A simultaneidade supõe um laço, 
uma relação entre os factos, ou. uma relação de dois 
factos com um terceiro. 
62 O CRITÉRIO 
v 
RAZÃO DE UM ACTO QUE NOS PARECE 
PURAMENTE INSTINTIVO 
A inclinação natural que nos leva a inferir da 
coexistência ou sucessão de dois factos uma relação 
entre esses factos, inclinação que nos parece uma 
cega inspiração do instinto, é na realidade a aplica­
ção inteligente, ainda que despercebida, dum prin� 
cípio primitivo gravado no fundo de nossa alma. 
Podemos considerar como acidental a coincidência 
que se dá algumas vezes, e portanto não lhe ligar 
idéia alguma de relação ; mas, quando a coincidên� 
cia se repete e se renova incessantemente, " há 
aqui encàdeamento, diz,emos nós sem hesitar, há 
mistério. O poder do acaso não vai tão longe ! " 
Desse modo, estudando a fundo as faculdades 
do homem, reconhecemos em tudo a mão poderosa 
da Providência que se comprazeu em enriquecer 
nosso entendimento com os dons mais preciosos e 
diversos. 
CAPíTULO VII 
A lógica de acordo com a caridade 
I 
SABEDORIA DA LEI QUE PROíBE OS JUíZOS 
TEMERÁRIOS 
A lei cristã, que proíbe os J Uizos temerários, 
nã.o é somente caridade, é também uma lei de pru­
dência e boa lógica. Nadá mais temerário do que 
j ulgar, por simples aparências, duma acção qual­
quer, e principalmente da intenção que a produziu. 
No curso ordinário das coisas os menores su­
cessos são tão complicados, os homens acham-se co­
locados em situações tão diversas, obram por moti­
vos tão diferentes, querem as coisas sob pontos de 
vista tão opostos, que, muitíssimas vezes, nos bas­
taria mudar de lugar para passar da cólera à 
64 O CRIT�RIO 
indulgência, para compreender, para desculpar uma 
acção, um modo de pensar ou de obrar de que antes 
nos tínhamos admirado e escandalizado, e que es­
távamos resolvidos a condenar sem apelo. 
II 
EXAME DA MAXIMA: "JULGA MAL DAS COIS AS 
E NAO TE ENGANARAS" 
Crêm alguns dar uma regra de proceder muito 
sábia dizendo : Pensa mal e não te enganarás, e cor­
rigir d·este modo a moral do Evangelho. " E' preciso 
não ser demasiado ingênuo, dizem a cada passo ; é 
tolice fiar-se a gente em palavras. Os homens são 
maus. A amizade está nas acções e não em boas pa­
]avras " : como se o Evangelho aconselhasse a impru­
dência e imbecilidade ; como se Cristo, recomendan­
do-nos que fôssemos simples como a pomba, nos não 
advertisse logo que fôssemos prudentes como a ser­
pente ; como se não ensinasse a não crer em todo o 
espírito, e que pelos frutos se conhecessem as árvo· 
res ; como se, nas primeiras páginas da Sagrada 
Escritura, a propósito da malícia humana, não 
lêssemos : "O espírito do homem inclina-se ao mal 
desde a sua adolescência ! " 
Esta máxima perniciosa, que arvoraria em meio 
de chegar à verdade a malignidade de nosso coração, 
O CRITÉRIO 65 
é tão contrária à sã razão como à cariuade evangélica. 
Não nos ensina com efeito 'a experiência que ainda 
o maior mentiroso sempre diz mais verdades que 
mentiras ? que o mais depravado ente pr�tica mais 
acções boas que más ? Por natureza o homem ama a 
verdade e o bem ; só pelo império das paixões se 
desvia destes sentimentos. O mentiroso cede à sua 
inclinação, quando a mentira favorece seus interes­
ses ou serve sua vaidade. O ladrão rouba, o ho 
mem de má fé falta à sua palavra, o rixoso disputét, 
mas quando a ocasião solicíta ou a paixão arrasta 
Se tais homens cedessem constantemente a seus maus 
instintos, tornar-se-iam monstros ; seu vício degene­
raria em demência, e a sociedade, para bem da or .. 
dem e da moral, ver-se-ia forçada a expulsá-los de 
... 
seu seio. 
Concluamos. Seria portanto contra a razão e 
a j ustiça acreditar no mal sem razões suficientes, 
e em nossos j uízos tomar nossa malícia como garan­
tia da verdade. 
Suponhamos que numa urna estão algumas es­
feras negras misturadas com outras brancas, cem 
vezes mais numerosas ; poder-se-á tirar, à primeira 
vez, uma esfera negra ? - Pode ser . . . Mas vós 
afirmais, e eis o erro ! 
66 O CRITtRIO 
III 
ALGUMAS REGRAS PARA JULGAR DO 
PROCEDIMENTO DOS HOMENS 
Estas regras são j udiciosas precauções . Filhas 
da prudência, não alteram a simplicidade. 
Regra Primeira 
Não d�vemos fiar-nos da virtude do comum 
dos homens posta a prova muito dura. 
Resistir a tentações violentas é o triunfo das 
almas fortes, da virtude passada pelo cadinho das 
c<>ntrariedad.es, e poucos homens possuem seme­
lhante virtude. A experiência nos ensina que, nas 
situações extremas, quase sempre a fraqueza huma­
na sucumbe ; os livros sagrados confirmamesta 
experiência : " Quem ama o perigo, no perigo 
morrerá". 
Sabeis que um honrado comerciante se acha 
nas circunstâncias mais precárias quando todos o 
crêm em posição florescente. Sua reputação, o fu­
turo de seus filhos depende duma operação pouco 
delicada, mas muito lucrativa. Se a realiza, tudo 
fica reparado ; no caso contrário, descobre-se o se-
O CRITÉRIO 67 
gredo de sua postçao ; a ruína é inevitável. Q.ue 
fará ele ? . . . - Se a operação vos pode prej udicar, 
acautelai-vos a tempo. Afastai-vos dum edifício que, 
nas circunstâncias ordinárias, resistiria sem dúvi­
da, mas que poucas garantias terá de segurança, che­
gando o furacão. 
Duas pessoas jovens, de trato amável e bela fi­
gura, travaram relações íntimas e freqüentes ; são 
virtuosos, bem o sei ; quando não houvesse outros 
motivos bastaria a honra para os manter nos limi­
tes do dever, bem o sei também. Em todo o caso 
se a coisa vos interessa, tornai imediatamente as 
vossas medidas, senão calai-vos. Não julgueis te­
meràriamente, mas pedi a Deus por eles, que bem 
pode ser que as preces não sejam inúteis. 
Fazeis parte do govêrno de vosso país ; os tem­
pos correm maus, as circunstâncias críticas, um de 
vossos subordinados, incumbido dum cargo impor­
tante, está sendo sitiado noite e dia por um ini­
migo que dispõe de inesgotáveis meios de ataque . . . 
sonantes e de boa lei. Segundo se vos figura, o 
empregado é homem honrado e -ãemais está ligado 
à vossa causa por fortes e numerossos compromissos . 
Sobretudo, é entusiasta em certos princípios e os de­
fende com ardor. Não importa. Não percais este 
negócio de vista. Fazeis bem em crer que a honra e 
convicções do subordinado podem resistir a uma má­
quina de guerra do peso de cinqüenta mil peças de 
68 O CRITÉRIO 
ouro ; porém o melhor será não o pôr à prova, prin­
cipalmente se as conseqüências forem irreparáveis. 
Vedes a autoridade em perigo ; querem impor 
a seu representante um acto, a que ele não pode 
subscrever sem se aviltar, sem faltar aos deveres 
mais sagrados, sem comprometer interesses da pri­
meira ordem. O magistrado é de um carácter natu­
ralmente recto ; em toda a sua carreira não há que 
exprobar-lhe nem uma só perfídia e sua rectidão é 
acompanhada de certa firmeza. Os antecedentes 
são os melhores ; em todo o caso, quando ouvirdes 
roncar a tempestade, quando virdes a sedição subir 
as escadas do pretório e o ousado demagogo bater à 
porta, levando em uma mão o auto para assinar e 
na outra o punhal ou trabuco, receai mais pela 
honra do que pela vida do magistrado ! E' prová­
vel que o· homem não morra ; a integridad€ não é 
o heroísmo. 
E' portanto permitido, e até muito prudente, 
em certos casos, não confiar muito na virtude dos 
homens, principalmente quando para praticar a 
virtude precisam de uma superiorid-ade da alma que 
a razão e a experiência nos apresentam muito rara­
mente. E' de notar ainda que para suspeitar mal 
não é preciso esperar ·que o apuro seja tal qual o 
acabamos de pintar. Para os maus, uma simples 
ocasião equivale a uma tentação violenta. Assim na 
aplicação, antes de formar juízo (é a única regra 
O CRITÉRIO 69 
que se pode estabelecer) devemos considerar qual 
é a pessoa, graduando as probabilidades de resis­
tência ou de queda pela sua inclinação habitual de 
fazer mal, ou pela longa prática do bem. 
Estas considerações dão origem a novas regras. 
Regra segunda 
Inteligência, inclinações, carácter, moralidade, 
interesses, numa palavra, tudo o que pode influir 
sobre as determinações de um homem, eis o que nos 
é preciso conhecer para conjecturar com alguma 
probabilidade qual será o seu procedimento em dado 
caso. 
Ainda que dotado de livre arbítrio, o homem 
não deixa de estar submetido a uma multidão de 
influênci'as que poderosamente contribuem para de­
terminar suas decisões, e o esquecimento de uma 
destas influências pode levar os nossos j uízos a erro. 
Por exemplo, um homem está colocado numa posi­
ção que o expõe a trair seus deveres ; parece à pri­
meira vista que basta conhecer a moralidade desse 
homem e as dificuldades que à moralidade fazem con­
trapeso, para prognosticar mal sobre o seu êxito ; 
mas deixamos de ter em conta uma qualidade im­
portante sem a qual, em semelhantes casos, todas 
seriam comprometidas - firmeza de carácter. Que 
provém do esquecimento desta qualidade ? serem nos-
70 O CBlTtBlO 
sas esperanças algumas vezes enganadas com um 
homem de bem, e excedê-las um homem mau. Na 
luta que a virtude sustenta contra o mal, está longe 
de ser inútil que as paixões enérgicas combatam por 
ela. Uma alma ardente e fortemente temperada 
exalta-se e adquire no perigo novas forças. O 
orgulho vem em auxílio ao sentimento do dever. O 
homem que se compraz em arrostar os perigos e 
vencer as dificuldades sente-se mais resoluto, mais 
ousado com os aplausos da própria con�ciência. 
Para ele, ceder é fraqueza, recuar é covardia, e mos­
trar que tem medo, é cobrir-se de infâmia. 
O homem de intenção recta e coraç.ão puro, mas, 
pusilânime olhará as coisas de modo muito dife­
rente. A linha do dever está traçada, mas para 
a seguir é
. 
preciso arrostar a morte, " deixar uma 
família ao abandono. O sacrifício, além de tudo, não 
remediará o mal, quem sabe ? talvez o aumente. 
É mister dar ·ao tempo o que o tempo exige ; demais, 
o dever não é alguma coisa abstracta e absoluta. 
As virtudes que a prudência não modera deixam de 
merecer o nome de virtudes. " 
Finalmente o homem honesto encontrou o que 
buscava, um parl'amentário entre 
. 
o bem e o mal. 
O medo com s·eu próprio traje não serviria para o 
caso ; tomou a máscara da prudência, a capitula­
ção não se fará esperar muito. 
O CRIT�Riú 71 
O exemplo é palpável e nada tem de imaginá­
rio ; é preciso atender a todas as circunstâncias que 
dizem respeito ao indivíduo, antes de formar j uízo 
sobre ele. Desgraçadamente o conhecimento dos 
homens é um dos mais difíceis estudo&_ Aprender 
a j ulgar rectamente dos caracteres não é obra de um 
só dia. 
Regra terceira 
Devemos cuidadosamente despoj ar-nos de nos­
sas idéias e afeições particulares e guardar-nos de 
crer que os outros obrarão necessàriamente como nós 
obraríamos. 
T'odos temos experimentado que o homem se 
inclina a j ulgar dos outros, tomando-se por termo 
de comparação. Daí o seguinte provérbio : " Quem 
mal não faz, mal não pensa" ; e este outro : " O ladrão 
desconfia da própria sombra". Esta inclinação na­
tural constitui obstáculo quase invencível à impar­
cialidade de nossos j ujzos . Expõe o homem de bem 
a cair nas armadilhas do mau, e muitas vezes for­
nece armas à maledicência contra a inocência mais 
pura, contra as mais altas virtudes. 
A reflexão, aj udada por custosos desenganos, 
chega algumas vezes a curar este defeito, origem 
de inúmeros males para o indivíduo e para a so­
ciedade. 
72 O CRIT�RiO 
Mas, como tem raízes tanto no entendimento 
como no coração do homem, é preciso sempre es­
tar alerta para que se não reproduza incessante­
mente. 
Na maior parte dos raciocínios, o homem pro­
cede por analogia. " Tem-se dado sempre um facto ; 
por tanto continuará a dar-se ; tal fenómeno segue­
-se comumente a tal causa, logo também hoje deve 
seguir-se. " Quando temos de formar um j uízo, cha­
mamos logo a comparação em nosso auxílio. · Se um 
exemplo isolado confirma nosso modo de pensar, 
temos mais segurança nele ; se a experiência nos 
fornece muitos, temos logo a causa como demons­
trada. Pois não é natural que, quando buscamos 
comparações, as empreguemos dos objectos que nos 
são mais �onhecidos e familiares ? Ora, como para 
formar j uízo ou conj ecturas sobre o proceder dos ou­
tros é nec.essário ter em conta os motivos que influ­
em sobre as determinações da vontade, instintiva­
mente atendemos ao que costumamos fazer em iguais 
circunstâncias, e atribuímos aos outros as nossas 
maneiras de ver e de apreciar os obj ectos. 
Esta explicação, tão simples . quanto verdadei­
ra,nos dá a razão das dificuldades que o homem 
encontra sem se despoj ar de suas idéias e sentimen­
tos particulares quando j ulga dos outros. E, no en­
tanto, nada há mais indispensável. 
O CRITÉRIO '73 
O que só conhece os usos de seu país tem por 
estranho tudo que deles S·e desvia ; quando pela pri­
meira vez deixa ·a terra nata, cada novo objecto é 
para ele ocasião de admiração e surpresa. Acontece 
o mesmo na ordem moral. Com ninguém vivemos 
em tanta intimidad·e como com nós mesmos ; o ho­
mem mais irreflectido, forçosamente tem consciência 
da direcção habitual de sua inteligência e vontade. 
Dá-se ocasião de apreciar um acto de suas faculdades, 
e esquecemos que o facto psicológico se realiza na 
alma de outrem, em terra estranha ; por isso somos 
naturalmente levados a julgar que tal acto se passará 
aí, com. pouca diferença, como em nós, em nosso ter­
ritório. Continuando a comparação : assim como os 
que têm viajado muito se não espantam com a diver­
sidade dos usos, conformando-se com eles sem repug­
nância e sem hesitação ; assim também os que têm 
estudado o coração humano estão mais aptos para 
fazer abstracção de sua maneira de ver e de sentir, 
colocando-se mais fàcilmente no ponto de vista de 
outrem. Viajeiros experimentados, com facilidade 
adoptaram os traj os, usos e maneiras dos naturais 
do país que percorrem. 
CAPíTULO VIII 
Da autoridade humana em geral 
I 
DUAS CONDIÇõES PARA AVALIAR UM TESTEMUNHO 
Nem sempre nos é possível assegurar-nos por 
nós mesmos da existência das coisas, e portanto 
somos forçados a recorrer ao testemunho alheio. 
Duas condições são necessárias para avaliar 
esse testemunho : t.n que o testemunho se não en­
ganasse ; 2.a que não busque enganar-nos. 
E' evidente que a ausência de uma destas con­
dições tiraria ao testemuho todo o valor. 
Que importa que o que fala conheça a verdade, 
se os seus lábios proferem a mentira ? que importa 
sua veracidade e boa fé se a si mesmo se enganou ? 
76 O CRlTÉRIÓ 
II 
EXAME E APLICAÇõES DA PRIMEIRA CONDIÇlí.O 
E' estudando os meios de que a testemunha dis­
põe para chegar à verdade, que conheceremos se ela 
se enganou ou não. Entre estes meios compreen­
dem-se a capacidade e todas as qualidades pessoais 
que a tornam mais ou menos digna de fé. 
Um narrador conta um facto de que não foi 
testemunha ocular. Talvez as leis de uma boa edu­
cação nos impeçam perguntar-lhe a quem o ouviu ; 
porém as leis da boa lógica nos prescrevem o dever 
de ter em muita conta esta circunstância, e não 
prescindir de escrúpulos a tal respeito. 
Atravesso um país desconhecido e ouço dizer : 
" O ano presente é muito abundante, há muito tem­
po que não houve colheita assim. " Que devo eu 
fazer antes de deter meu j uízo ? Inquirir em pri­
meiro lugar quem é a pessoa que fala. - E' um 
velho, proprietário, estabelecido em suas terras, além 
de apaixonado pela estatística, de que muito se 
ocupa. Seu interesse, profissão, gostos particulares 
e longa experiência lhe fornecem todos os meios de 
se esclarecer ; sabe o que afirma, devo acreditá-lo. 
- E' o filho do velho ; este ocupa-se pouco das 
cousas do campo, distrai-se pelas grandes cidades 
b CRITÊRiú 77 
� povoações. Bem pode saber o que assevera por 
o ter ouvido dizer ; porém, à parte esta circunstân­
cia, seu testemunho é pouco seguro. 
- E' um viajeiro que de tempos a tempos per­
corre este país, mas por negócios que nenhumas re­
lações têm com a agricultura. O testemunho deste 
merece pouca fé ; os meios que tivera de saber o que 
dá como oerto, não têm valor. Fala à ventura. 
III 
EXAME DAS APLICAÇõES DA SEGUNDA CONDIÇÃO 
Se devemos estar premunidos contra o erro in­
voluntário em que uma testemunha pode cair, não 
importa menos precaver contra a falta de veraci­
dade. A este respeito, informemo-nos da opinião 
que dela se faz sobre este ponto, e sobre tudo exa­
minemos se alguma paixão ou interesse a levou a 
mentir. 
Quem prestaria inteira confiança a narraçõ�s 
de feitos de armas, em recompensa dos quais o nar­
rador esperasse acesso de posto, emprego ou con­
decoração ? E ' fácil de compreender o uso que de 
tal meio poderia fazer o ·aventureiro sem honra e 
sem delicadeza. Tende por suspeita a testemunha 
fortemente interessada pela admissão de seu teste-
78 O CRITÉRIO 
munho. Crer em sua veracidade sob sua palavra 
fora, pelo menos, andar muito de leve. 
Quando queremos calcular a probabilidade de 
qualquer acontecimento, que só conhecemos por tes­
temunho de outrem, é indispensável ter em conta 
simultâneamente as duas condições de que falamo:,;; : 
conhecimento de facto e veracidade da parte da tes­
temunha. Além do testemunho de outrem, possuí­
mos muitas vezes certos dados que nos aj udam a 
apreciar o que nos contam, dados de que . devemos 
fazer uso para diminuir as probabilidades do erro. 
Experiência e reflexão, eis os melhores mestres. 
IV 
UMA OBSERVAÇÃO 
Há circunstâncias em que, por mais que a tes­
temunha pareça interessada em mentir, não o ou­
saria; quando, por exemplo, descoberta abertamen­
te a mentira, caísse sobre a mesma testemunha toda 
a sua ignomínia. 
Neste caso, uma obj ecção : Devemos admitir o 
depoimento da testemunha interessada em enganar ? 
Se as circunstâncias são tais que o engano deve apa­
recer quase logo em sua nudez e em sua vergonha, 
sem que o mentiroso possa dar por desculpa que o 
enganaram ou que se enganou a si mesmo, admita-se 
O CRITtRIO 79 
o facto ; poder-nos-emos enganar talvez, mas há pro­
babilidade para a opinião contrária e em grau su­
perior. 
v 
E' DIFíCIL CHEGAR A VERDADE, QUANDO ELA 
ESTA LONGE PELO TEMPO E PELA DISTANCIA 
Se é dificil discernir a verdade da falsidade nos 
sucessos contemporâneos acontecidos em nosso país, 
o que ser.á dos acontecimentos realizados há séculos, 
e em países longínquos, ou dos que simult.âneamente 
estão afastados de nós pelo tempo e pelo espaço ? 
Como verificar a sinceridade das narrações de 
um viajeiro, ou de um historiador ? Em que estado 
nos apresentarão a verdade ? 
Sente-se a gente desanimad-a, depois de obser­
var como os factos sucedidos à nossa vista apare­
cem aumentados, exagerados, atenuados, desfigura­
dos ou confundidos, e tem de buscar a verdade em 
livros de história ou de viagens, nos jornais, prin­
cipalmente estrangeiros. 
O que vive no país e no tempo em que se dão 
os factos que estud-a, ainda possui certos meios de 
evitar os erros. Vê as coisas de per si ; ouve e lê 
diferentes relações que pode comparar ; como sabe 
os anteoedentes das pessoas e das coisas, como está 
80 O CRITtRIO 
em constantes 1·elações com homens de interesses 
e opiniões opostas, como segue os sucessos em sua 
marcha geral, não lhe é impossível, à força de tra­
balho e j uízo, verificar certos factos e chegar de al­
gum modo à verdade. Mas que acontecerá a quem 
um hemisfério inteiro e talvez muitos séculos sepa­
ram da verdade que busca ; que não tem outro guia 
sE-não os j ornais ou alguns livros encontrados numa 
biblioteca, num gabinete de leitura, obras e jornais 
que adopta com confiança pelo simples facto de lhe 
haverem sido recomendados, ou gabados diante dele ? 
Jornais, relações de viagens, histórias : três 
meios pelos quais se costuma buscar instruir-se dos 
sucessos em tempos e lugares afastados. Direi al­
guma coisa de cada um destes meios. 
CAPíTULO IX 
Os jornais 
I 
UMA ILUSÃO 
Persuadem-se alguns de que, nos países onde 
floresce a liberdade de imprensa, onde os negócios 
gerais se discutem em toda a luz, onde cada um 
pode livremente emitir sua opinião, é fácil chegar 
à verdade pelo menos a respeito das pessoas e das 
coisas. " Lá todos os interesses, todos os sistemas 
se produzem simultâneamente ; os contrários se cor­
rigem mutuamente e se fazem contrapeso. A luz 
ressalta do choque das opiniões. Uma só opinião 
apenas diria uma parte da verdade ; podendo todas 
as opiniões levantar a voz, dirão a verdade toda. " 
82 O . CRITÉRIO 
Pura ilusão ! Os jornais não dizem,não podem 
dizer a verdade toda, nem a respeito das pessoas, 
nem a respeito das coisas, mesmo nos países mais 
livres. 
li 
OS JORNAIS NÃO DIZEM A VERDADE TODA 
SOBRE AS PESSOAS 
Exaltar ou rebaixar sem medida, prodigalizar 
louvores ou vitupério, fazer de um personagem po­
lítico, segundo os interesses ou as circunstâncias 
- um gênio raro, um herói, um salvador, - um 
homem sem talentos, um homem incapaz, um fla­
gelo da humanidade ; tais são, não se ignora, as 
obras da imprensa soprada pelo espírito de partido . 
Que se há-de crer ou deixar de crer nesse con­
junto de opiniões encontradas, sempre que o ho­
nem que se agride ou glorifica se nos não apresen­
ta bem acentuado por feitos ruidosos fáceis de ca­
racterizar ? Onde procurar a verdade ? Como é que 
o estrangeiro, principalmente, forçado a escolher en­
tre estes extremos, chegar.á a formar a sua opinião ? 
Coisa estranha ! não é raro ouvir certos círculos 
professarem ao mesmo tempo, a respeito do mesmo 
personagem, duas opiniões diferentes, a opinião ver­
dadeira e a de circunstância ; e, como se tem 
O CRITÉRIO 83 
visto, pode dar-se o mesmo num país inteiro em 
que uma opulênoia irritante e apaixonada sobre­
excita o amor próprio e perturba a razão. 
Os j uízos opostos ou contraditórios não os po­
derão os estrangeiros conhecer, nem compreender ; 
para eles a imprensa é nesse sentido defeituosa, 
insuficiente para chegar à verdade, e também para 
os nacionais que tão sõmente pelos periódicos aj uí­
zam dos homens e das coisas. 
Quase sempre os escritores separam o homem 
público do particular, e bem é que assim sej a. Sem 
esta distinção, a polêmica cotidiana, desabrida e 
violenta já em excesso, tornar-se-ia por último arena 
impura onde as mais vergonhosas paixões viriam 
patentear suas negruras ou digladiar-se. No en­
tanto, é certo que a vida privada de um homem 
fornece bons dados para se julgar seu proceder nos 
destinqs públicos. O que nas transacções ordinárias 
não atende e respeita o bem dos outros, é natural 
que também na administração dos dinheiros públicos 
não conserve as mãos muito puras. Também o 
homem de má-fé, sem convicções, sem moralidadf>, 
sem religião, não é muito crível que seja conseqüente 
nos princípios políticos que aparenta professar, e 
que o governo que se serve de seus serviços possa 
descansar tranqüilo em suas palavras e promessas. 
O epicurista por sistema, que no seu povo insultava 
sem pudor a moral pública, mau esposo, mau pai , 
84 O CRITÉRIO 
crer-se-á que, assumindo a magistratura, deponha 
suas paixões, e que a inocência inj ustamente per­
seguida, que a fortuna da gente honesta nada tenha 
a recear da insolência e inj ustiça dos maus ? E to­
davia os j ornais nada dizem, nada podem dizer 
dessas coisas, ainda mesmo que sejam perfeitamente 
conhecidas pelo escritor. 
III 
OS JORNAIS NÃO DIZEM A VERDADE TODA A 
RESPEITO DAS COISAS 
Até nos acontecimentos políticos não é verdade 
que os jornais digam a verdade toda. As grandes 
cenas representam-se com um pequeno número de 
actores ou interessados ; só por incidente aí intervém 
a multidão ; além disso todos sabem como a expres­
são das opiniões manifestadas nas conversações fa­
miliares difere da que se entrega à discussão pú­
blica por meio da imprensa. 
Há mil considerações particulares . a que forço­
samente se curva um publicista. Entre os que fa­
lam em público, muitos dizem o contrário do que 
sentem, e os mais rígidos em matéria de veracidade 
se vêem obrigados, senão a dizer o que não sentem, 
pelo menos a calar a melhor parte do que pensam. 
Importa não esquecer estas consid-erações, se que-
O CRITÉRIO 85 
remos ver um pouco mais longe e melhor do que 
vulgarmente se vê. 
Há no mundo político uma como espécie de 
moeda corrente reconhecida falsa, mas que tàcita­
mente se convencionou receber. Os iniciados é que 
se não enganam sobre o seu verdadeiro peso e va­
lor real. 
CAPfTULO X 
Relações de viagens 
I 
DUAS PARTES MUI DIFERENTES NAS 
RELAÇõES DE VIAGENS 
Este gênero de escritos contém duas ordens 
de factos que é mister cuidadosamente distinguir : 
a descrição das cenas e obj ectos que o viajante ob­
servou, e as noções e observações de toda a espécie 
que faz entrar no corpo da obra e a completam. 
Aos primeiros apliquem-se as regras que esta­
belecemos sobre a veracidade, acrescentando as duas 
seguintes observações : V que a desconfiança da 
fidelidade dos quadros deve· guardar alguma propor­
ção com a distância do lugar da cena ; como diz o 
provérbio : " longas terras, longas mentiras " ; 2.a que 
os viaj antes correm risco de exagerar, desfigurar e 
até fingir, fazendo formar idéias muito equívocas 
sobre o país que descrevem, pelo vaidoso prurido 
88 O CRITÉRIO 
d� s� tornarem interessantes, e dar-se importância, 
contando peregrinas aventuras. 
Difícil será, se não impossível, estabelecer re­
gras para discernir a verdad� do erro entre os factos 
e observações de todo o gênero que podem entrar nas 
relações de viagem. 
Encheremos esta lacuna com algumas observa­
ções que servirão, segundo espero, para que se não 
deposite d�masiada confiança no que a não merece. 
li 
ORIGEM E COMPOSIÇÃO DE CERTAS 
RELAÇõES DE VIAGENS 
A maior parte das viagens fazem-se atraves­
sando os lugares mais famosos, detendo-se· alguns 
dias em alguns pontos notáveis, e o resto atravessa­
-se tão rápido quanto possível, em harmonia com a 
economia de tempo, de dinheiro e de enfado. Se o 
país visitado é culto, se está sulcado de c:aminhos 
em bom estado, de canais e de rios, _ se as costas 
são de fácil navegação, o viajante passa de uma à 
outra capital com a rapidez da flecha, dormindo ao 
balanceio do na vi o, encostado à portinhola de uma 
carruagem para admirar alguma pais·agem, ou pas­
seando na coberta de um paquete, contemplando as 
margens do rio, em cuja corrente navega. Os espa-
O CRITÉRIO 89 
ços intermediários não existem para ele. Costumes, 
leis, usos, religião, carácter físico e moral dos homens 
ou do país, nada disso viu. Que é o que ele conhece ? 
Apenas pode formar, na passagem, uma idéia vaga 
do aspecto das terras, e observar com a vista al­
gumas paisagens fugitivas. 
Então em que conceito, em que apreço devemos 
nós ter essas notícias circunstanciadas sobre países 
de muitas mil léguas quadradas visitados do modo 
que acabamos de dizer ? 
O que conta viu, portanto é verdade. Assim 
raciocinais, persuadidos de que, para recolher esta 
multidão de factos, o guia arrostou inúmeros perigos, 
suportou imensas fadigas, consagrando anos labo­
riosos ao serviço da ciência e da humanidade. Su­
pondes o que deveria ser, mas como estais longe da 
realidade ! 
Chegando à capital do país, cuj a língua conhece 
pouco ou nada, o vi·aj eiro pára como estupefacto ante 
mil maravilhas. Está no termo de sua viagem ; tocon 
as colunas de Hércules. Rápidas visitas aos palácios, 
aos monumentos, aos teatros, aos museus, às ricas 
colecções, cuj a lista encontra no Guia, dos via,ja,ntes, 
eis seu programa e as suas horas estão contadas. 
A via-se ; outra capital, outros palácios, outros mo­
numentos, outras maravilhas o esperam. Enfim, 
carregado de experiência, de saber e de poeira, de­
pois de alguns meses de ausência, volta a v·er sua 
90 O CRlT�RIO 
terra natal ;consagra o inverno a pôr em ordem, a 
completar as suas observações, seus estudos, suas 
impressões, suas pesquisas, suas confidências de 
viajeiro, e nos primeiros dias da primavera aparece 
pompeando nas livrarias uma magnífica brochura 
em oitavo. 
Agricultura, artes, comércio, ciênci'a, política, 
crenças populares, religião, costumes, tradições, ca­
racteres, tudo aí está ; o autor viu tudo, observou 
tudo, Com o seu livro tendes a estatística universal 
do país que ele percorreu. Acreditai-o sob palavra, 
ficais dispensados de vos levantardes de vossa pol­
trona e vos pordes à janela. 
Mas tantas minudências, conhecimentos tão 
variados ! como é que ele os pôde recolher ? como 
pôde saber o que se passavanos lugares aonde não 
foi ? Em tão pouco tempo, um Ãrgus não seria ca­
paz de ver tantas coisas. 
- Eis o segredo. 
Da carruagem pública em que ia assentado, o 
nosso viaj eiro vê desenrolar-se a seus olhos uma 
paisagem que atrai sua atenção, e trava com seu 
vizinho o seguinte diálogo : " O senhor conhece este 
país que atravessamos ? -Alguma coisa. - Como 
se chama aquele povo acolá ao fundo da colina ? -
Se me não engano é o povo de . . . - E quais são os 
recursos principais desta província ? - A indústria. 
- E que tal é o carácter dos habitantes ? - Flegmá-
O CRITÉRIO 91 
ticos como os cavalos que puxam esta carruagem. 
- E de riqueza ? . . . - Como j udeus. " 
Pára a c-arruagem ; o homem de respostas lacó­
nicas sai e ausenta-se, talvez sem se despedir, e as 
indicações que ele deu, anónimas como a sua pessoa, 
figuram entre os factos positivos, nas notas do 
viajante. 
Em verdade, tais livros também não têm pouco 
de tradução e plagiato, porque as viagens de maior 
fôlego, as mais carregadas de aventuras terríveis, 
ou narrações pitorescas e sábias fazem-se muitas 
vezes nas bibliotecas, através de inocentes e passí­
veis volumes em oitavo. 
Não é intenção minha rebaixar, em geral, o 
mérito que exige um trabalho sério de exploração ; 
mas quantas idéias falsas não correm aí, quantos 
absurdos vulgarizados, criados por pretendidas rela­
ções de viagens ! . Quantas vezes as cidades, povos 
inteiros têm sido bem ou mal tratados, criticados 
com furor· ou elogiados, consoante o humor, o carác­
ter, o capricho de pintores indiscretos: e frívolos que 
ousam dar cópias de originais que jamais viram ! 
III 
MANEIRA DE ESTUDAR UM PAíS 
Habitar longo tempo nos mesmos lugares, for­
mar aí relações numerosas, conhecer a fundo a lín-
92 b CRITÉRIO 
gua do país, não perder nunca ocas1 ao de observar 
e enriquecer-se, tais são as condições necessárias 
para se formar idéia de um país, sob o ponto de 
vista moral e material. Fora dos conhecimentos 
adquiridos deste modo não vej o senão banalidades, 
incertezas, erros . A maior parte das descrições que 
se acham pelos livros assemelham-se a cartas geo. 
gráficas sem escala de proporção. Estão cheias de 
nomes, o papel está. coberto de sinais de toda a es­
pécie, cadeias de montanhas, rios, canais, etc. ; mas 
tornai o compasso pa�a medir as distâncias, e vereis . 
cQmo as coisas estão deslocadas ; a cada passo jul­
gareis estar perto de uma cid·ade, de um rio, de um 
monte que dista nada menos de cem léguas . 
Em suma, quereis adquirir notícias exactas sobre 
um país e formar de seu estado cabal e verdadeiro 
conceito ? estudai-o do modo que indicamos ou consul­
tai os autores que assim o estudaram. 
Se isto se vos não proporcionar, contentai-vos 
com alguns conhecimentos gerais, de modo a sair 
airosamente em qualquer conversa relativa a essas 
coisas com pessoas de iguais conhecimentos ; mas 
nunca pretendais estabelecer sobre tais dados um 
sistema filosófico, económico, ou político . Evitai sobre 
tudo alardear saber a tal respeito ; tornar-vos-íeis 
objecto de riso. 
CAPíTULO XI 
H i s t ó r i a 
I 
IMPORTÂNCIA DOS ESTUDOS HISTóRICOS. 
MODO DE ESTUDAR A HISTóRIA 
O estudo da história não é sõmente útil, e m­
dispensável. Quando a história não fosse conside­
rada como meio de chegar à verdade, a sua impor­
tância, como ornamento do espírito, seria incontes­
tável. Acrescentemos que há grande número de 
factos, contra os quais a ninguém é permitido levan­
tar-se, sem se pôr em luta com o senso comum. 
Assim, uni dos primeiros cuidados que deve 
ter-se nesta classe de estudos é distinguir o que 
nele há de absolutamente certo. Não confiando à 
memória senão verdades incontestáveis, deixai ao 
espírito, livre de peias, a liberdade de classificar o 
94 O CRITÉRIO 
resto segundo o grau de probabilidade, de certeza 
ou de erro, como lhe aprouver. 
Que grandes impérios floresceram no Oriente ; 
quEJ as artes e a civilização da Grécia foram levadas 
a grau mui alto de perfeição ; que Alexandre fez 
grandes conquistas na Asia ; que os romanos sub­
meteram quase todo o mundo conhecido em seu tem­
po ; que Cartago foi rival de Roma ; que o império 
dos senhores do mundo foi a seu tempo assolado por 
invasões de bárbaros vindos do Norte ; que . os mus­
sulmanos invadiram a África septentrional, sendo 
em .Espanha destruído o poder dos godos e amea­
çado o resto da Europa ; que o feudalismo foi na 
idade média a forma soci al, verdades são estas de 
que estamos tão certos como da existência de Paris 
ou Londres. 
11 
DISTINÇõES ENTRE O FACTO E AS CIRCUNSTÂNCIAS 
DO FACTO. APLICAÇõES. 
Há factos universalmente admitidos ; todavia pe­
las particularidades e circunstâncias com que o his­
toriador os acompanhou estes mesmos factos reve­
lam erudição, crítica, filosofia de história, em suma. 
Vasto campo aberto à discussão. 
Não se pode pôr em dúvida a existência das 
lutas sangrentas em que Roma e Cartago se dispu-
O CRITÉRIO 95 
taram o império do Mediterrâneo, das costas de 
África, d·a .Espanha e da Itália, e cuj o desfecho foi 
o triunfo dos Cipiões, a derrota de Aníbal e a ruína 
da cidade de Dido. Mas ser-nos-ão bem conhecidas 
as circunstâncias destas lutas ? 
No retrato que se nos faz da fé púnica, na ex­
posiç.ão das causas que provocaram o rompimento 
entre as duas repúblicas rivais, em a narração das 
batalhas, das negociações, etc., será impossível que 
tenhamos sido enganados ? Não terão os historia­
dores romanos, que nos transmitiram o maior nú­
mero de factos, lisonj eado a própria naç.ão em detri­
mento da inimiga ? Aqui entra a dúvida, o discer­
nimento ; há que admitir com desconfiança, que re­
jeitar sem hesitaç.ão, e o mais das vezes cumpre 
suspender o j uízo. 
Que seria da verdade aos olhos das gerações 
vindouras se, por exemplo, a história das lutas entre 
duas nações modernas fosse exclusivamente escrita 
pelos historiadores de uma das rivais ? Entretanto, 
hoje, por assim dizer, os historiadores escrevem em 
presenç.a uns dos outros ; potiem desmentir-se e cor­
rigir-se mutuamente, e, graças aos meios fáceis de 
comunicação e difusão, é muito mais difícil que ou­
trora sustentar erros evidentes. Que será, portanto, 
destas narrações que nos vieram por uma via única ; 
via muito suspeita como interessada, narrações de 
factos passados em tempos tão remotos, em que eram 
96 O CRITÉRIO 
tão raras as comunicaçõBs e desconhecidos os actuais 
mBios de publicidade ? 
E aquelas legendas maravilhosas em que os histo­
riadores gregos nos apresentam um punhado de es­
pártacos e de atenienses desbaratando milhares de 
persas e propõem à nossa admiração o heroísmo desin­
teressado, a dedicaç.ão sublime de seus guerreiros. 
devemos adoptá-las sem exame ? Bem observamos 
como em nossos tempos se desnaturam, como se exa­
geram os factos mais simples. O homem sensato dará 
o desconto devido ao entusiasmo e patriotismo do es­
critor : esperemos, dirá ele antes de formar o seu j uízo, 
esperemos que também os persas se levantem dos 
plainos de Maratónia ou das Termópilas para contar 
as circunstâncias do combate. 
Esta regra de prudência é de uma aplicaç.ão fre­
qüente ; no �studo da história, não -a percamos de vis­
ta, e evitaremos numerosos erros em que de outro 
mo do poderíamos cair. Pelo menos, nos ensinará a 
n�o nos transviarmos em particularidades inúteis. 
III 
ALGUMAS REGRAS PARA O ESTUDO DE HISTóRIA 
Sendo a história um dos assuntos que não devep1 
ficar em silêncio, quando se trata da -arte de chegar à 
O CRITtRIO 97 
verdade, darei alguns conselhos simples e breves, -
mas sem p retender tratar a fundo a matéria, o que 
exigiria um grosso volume. 
Regra primeira 
Consoante o que atrás havemos estabelecido 
(capítulo VIII) , é mister ter em grande conta os 
meios de que o escritor dispunha para chegar à 
verdade, e as probabilidades favoráveis ou desfavo­
ráveis de sua veracidade. 
Regra segunda 
Em igualdade de circunstâncias, devemos prefe­
rir a testemunhaocular. 
Sempre a ve1·dade corre algum perigo com os 
intermediários. As narrações sucessivamente trans­
mitidas são como corrtmtes, cujas águas sempre le­
vam alguma coisa do canal por onde passam ; 
, ·
n�s 
canais da história abundam a paixão e o erro. 
Regra terceira 
Entre as testemunhas oculares, escolham-se, se 
no resto houver igualdade, as que não tiverem to­
mado parte no sucesso, e que nada perderam ou ga­
nharam com ele, 
98 O CRITÉRIO 
César conta as próprias campanhas e seu teste­
munho é sem dúvida uma autoridade. E, todavia, 
é evidente que o general romano não pode denegar 
coragem aos povos por ele vencidos, que não pode 
representá-los inferiores em número aos exércitos 
que comandava sem diminuir as dificuldades da em­
presa e portanto da sua glória. Os prodígios de 
Aníbal contados pelos próprios inimigos têm outro 
valor histórico. 
Regra quarta 
Prefiram-se os historiadores contemporâneos, 
mas examine-se o seu testemunho pelo de outros da 
mesma época que defendam opiniões c interesses 
diferentes, c haja cuidado em separar, nos seus es­
critos, o facto das causas que lhe assinam, os resulta­
dos que lhe atribuem c os j uízos que lhes são pessoais. 
Quase sempre há nos sucessos um facto dominante 
que sobressai com muita evidência para que a parciali­
dade do escritor ouse negá-lo. Em tais casos, o histo­
riador exagera ou atenua ; prodigaliza cores favorá­
veis ou desfavoráveis ; busca explicações, inventa 
causas, assinala conseqüências, etc . ; porém o facto 
persiste, e os esforços da má fé devem advertir o 
leitor j udicioso para que não atenda senão ao facto 
não veja senão o facto, e o vej a tal qual ele é. 
Os admiradores apaixonados de Napoleão fala­
rão à posteridade do fanatismo e crueldade da na-
O CRITÉRIO 99 
ção espanhola, nação bárbara e sem inteligência, 
que recusou viver feliz debaixo do ceptro glorioso 
de um herói, referirão os mil favoráveis motivos 
que forçaram o grande caudilho a intervir na penín­
sula, e assinarão mil causas favoráveis para expli­
car os resultados pouco satisfatórios, concluindo que 
em caso algum se empanam as glórias do herói . 
Apesar de tudo, o leitor judicioso, se qui ser 
prestar a devida atenção, descobrirá fàcilmente a 
verdade sob os véus que a encobrem. Com efeito, 
qualquer que seja a sua repugnância, o historiador 
será forçado a ouvir que ·antes de principiar a luta, 
e enquanto as forças do marquês de la Romana ser·· 
viam a França no Norte, o chefe dos franceses 
sob pretextos de amizade mandou passar para Es­
panha um numeroso exército, que se apoderou das 
principais cidades e fortes, inclusa a capital do reino ; 
que colocou no trono seu irmão José, e que enfim, 
depois de seis anos de encarniçadas lutas, o exército 
francês e José, repelidos do solo espanhol, se viram 
obrigados a passar a fronteira. 
Eis o facto ; dêm-se as cores que se quiserem 
às circunstâncias que o acompanharam ; o leitor sen­
sato é que nunca deixará de dizer : " O historiador 
defende com talento a reputação de seu herói ; porém 
da própria narração se depreende : 1.0 que ocupou 
um país amigo sob pretextos cavilosos ; 2.0 que o in­
vadiu sem motivos ; 3.0 que atacou aliados fiéis no 
100 O CRITÉRIO 
próprio coração de seu país ; 4,0 que usou de traição 
para arrebatar de seu trono um infeliz monarca ; 
5.0 que combateu durante seis anos, sem poder im­
plantar sobre os montes ibéricos a sua inv€ncível 
bandeira. Portanto temos de uma parte a boa fé 
do aliado, a lealdade do vassalo, a intrépida cons­
tância do guerreiro patriota ; o heroísmo e a justiça ; 
de outra parte, o gênio e o valor. mas também a má 
fé, a usurpação, as estéreis desgraças de uma guerra 
longa e ruinosa. Inj ustiça e astúcia na concepção 
da empresa ; calamidades na execução dehi. " 
Regra quinta 
Os escritos anónimos merecem pouca confiança . 
. Talvez o autor ocultasse o nome por modéstia ; 
mas o público que o ignora não está obrigado a crer 
na veracidade de um livro que, para assim dizer, 
cobre a cara com um véu. 
Se um dos freios mais poderosos, qual é o temor 
de perder a boa reputação, não é todavia bastante 
para manter os homens nos limites da verdade, como 
nos havemos de fiar em quem carece dele ? 
Regra sexta 
Antes de ler uma história convém estudar a 
vida do historiador. 
O CRIURIO 101 
Ouso afirmar que esta regra é da maior impor­
tância. Verdade é que ela está compreendida no 
que dissemos no capítulo VIII ; porém não será inútl 
estabelecê-la aqui separadamente, fazendo-a seguir 
de algumas observações. 
Como se há-de apreciar a veracidade de um 
historiador "'u os meios de que dispunha para chegar 
à verdade, se ignoramos sua vida ? 
Quereis possuir a chave de suas exclamações 
ou reticências ? Quereis saber por que sobre tais 
cenas tão levemente passa o pincel, ao passo que car­
rega certos quadros com as mais negras cores ? 
Indagai as suas virtudes ou seus vícios, estudai sua 
posição particular, o espírito de seu tempo, as for­
mas políticas de sua pátria ; o mais das vezes, tudo 
aí se encontra. 
Não se escrevia a história durante os revoltosos 
tempos da Liga, como no reinado regular e glorioso 
de Luís XIV. 
Desçamos a tempos mais afastados de nós, à 
revolução francesa, ao império, à restauração, ou à 
dinastia d'Orleans ; acharemos que em cada uma 
destas épocas se escreve a história, por assim dizer, 
com a cor das circunstâncias. Cada tempo com sua 
linguagem. Se conheceis a época e o país em que 
tal ou tal livro viu a luz, isto é, as influências que 
presidiram a seu autor, se vos fazeis cargo da si­
tuação do escritor ; aqui tereis que suprimir, além 
:W2 O CRITÉRIO 
que ampliar ; numa parte decifrareis uma palavra 
obscura, noutra compreendereis uma perífrase ; nes­
ta página apreciareis em seu j usto valor um protesto, 
um elogio, uma restrição ; em outra adivinhareis 
a omissão de uma censura, de uma confissão, ou de­
terminareis o verdadeiro sentido de uma proposição 
demasiadamente arrojada. 
Poucos são os homens que sobrepuj am comple­
tamente o domínio das circunstâncias ; há poucos 
que saibam arrostar os grandes perigos na defesa 
da verdade ; há poucos que, nas circunstâncias crí­
ticas, não busquem transacção entre seu interesse e 
a consciência. Permanecer fiel à virtude nos mo­
mentos de crise, eis o que é heroísmo, mas o heroís­
mo é raro . 
. De mais, nem sempre é acto culpável o confor­
mar-se o escritor com o tempo, uma ve:t; que não fira 
os direitos imprescritíveis da justiça e da verdade. 
Há casos em que o silêncio é prudente e quase obri 
gatório ; e é exactamente nestes casos que se deve 
perdoar ao escritor o não ter dito todo o seu pensa­
mento, contanto que contra o seu pensamento nada 
tenha dito. Quaisquer que fossem as convicções de 
Belarmino sobre o poder indirecto dos Papas, exigí­
reis que ele as expusesse em Paris, com a mesma 
liberdade que o faria em Roma ? Fora o mesmo que 
dizer-lhe : " Escrevei : e desde que o parlamento 
tiver conhecimento do vosso livro, os exemplares 
O CRITÉRIO 103 
serão recolhidos à mão armada e queimados, e vós 
provàvelmente expulso da França ou lançado numa 
prisão. " 
Regra sétima 
As obras póstumas editadas por desconhecidos 
e tendo passado por mãos pouco seguras, devem 
ser consideradas como apócrifas, e recebidas com 
reserva ; pouco serve em tais casos a autoridade de 
um ilustre falecido ; não é ele que nos fala, mas o 
editor, seguro de que o interessado o não poderá 
desmentir. 
Regra oitava 
As histórias fundadas em memórias secretas ou 
desconhecidas e documentos inéditos ; os manuscri · 
tos em que o editor afirma nada ter feito senão pôr 
em ordem, corrigir o estilo e esclarecer certas pas­
sagens, não merecem mais crédito que a que nos 
inspira o editor. 
Regra nona 
As relações de negociações secretas, segredos 
de estado, anecdotas picantes sobre a vida privada 
de personagens célebres, sobre tenebrosas intrigas 
1ó4 6 CRIT�Riú 
e outros factos deste gênero, não devem ser admiti­das senão depois de severo exame. Se dificilmente 
descobrimos a verdade à luz do sol e sobre a face 
da terra, pouco podemos contar com a verdade do 
que se passa nas sombras da noite e nas entranhas 
da terra. 
Regra décima 
Tratando-se de povos antigos ou muito remotos, 
é mister dar pouco crédito a quanto se nos refere 
sobre riquezas do país, número de habitantes, te­
souros de monarcas, idéias religiosas e costumes do­
mésticos. 
Efectivamente, como se há-de verificar a exacti­
dão · destas relações ? A distância, o tempo, a igno­
rância da língua, tudo se nos opõe. Como chegar 
à verdade em coisas muitas vezes ocultas, desconhe­
cidas aos próprios indígenas ? Acaso se penetrou 
no interior da família, nas confidências íntimas do 
lar para que se possam descrever os costumes do­
mésticos ? 
CAPíTULO XII 
Considerações gerais sobre os meios de 
,conhecer a natureza dos seres. su·as 
propriedades e relações 
I 
UMA CLASSIFICAÇÃO DAS CmNCIAS 
Conhecidas as regras que nos podem guiar para 
conhecermos a existência de um obj ecto, resta-nos 
formular as que nos podem ser úteis · ao investigar 
a natureza, propriedade e relações dos seres. 
Chamaremos seres ou factos naturais tudo o que 
pertence à ordem natural, isto é, sem excepção, todos 
os factos submetidos às leis necessárias da criação. 
Chamamos morais os factos pertencentes à ordem 
moral ; históricos ou sociais os que pertencem à or­
dem social ; e religiosos, os que derivam de uma pro­
vidência superior e extraordinária. 
106 O CRITtRIO 
Não insistirei sobre a exactidão desta divisão, 
confessando até que, em rigor, pode ser contestada ; 
em todo o caso, não se poderá negar que é fundada 
sobre a própria natureza das coisas e em harmonia 
com elas, e pelo modo com que o entendimento hu­
mano costuma distinguir os principais pontos de 
vista. 
A fim de pôr em relevo as razões em que se 
apoia, apresentarei em poucas palavras a filiação 
das idéias. 
Criou Deus o universo, e tudo que nele se con­
tém, submetendo-o a leis constantes e necessárias. 
Daqui a ordem natural : ao estudo desta ordem po­
der-se-ia chamar filosofia da natureza. 
Deus criou o homem racional e livre, suj eito 
a certos deveres, leis que, sem o forçar, o 'obrigam. 
Daqui a ordem moral, objecto da filosofia moral. 
A sociedade humana dá origem a uma série de 
f'actos e relações ; daí a ordem social ; o estudo desta 
ordem de factos poder-se-ia chamar filosofia social, 
ou, se assim o quereis, filosofia da história. 
Deus não está ligado pelas leis a que submeteu 
a obra de suas mãos, por conseqüência pode obrar 
em harmonia com estas leis, e também contrària­
mente a elas ; eis por que admitimos a existência 
de uma ordem de factos e revelações superiores à 
O CRITÉRIO 107 
ordem natural e social. Daqui o estudo da religião 
ou a filosofia religiosa. 
Demonstrada a existência de um objecto, perten­
ce à filosofi·a estudá-lo a fundo, apreciá-lo, judgá-lo . 
Filósofo, na accepção comum, significa - homem 
versado no estudo das leis que regem os entes, no 
estudo de suas propriedades e relações. 
li 
PRUD:í!::NCIA CIENTíFICA ; MEIOS DE A ADQUIRIR 
O verdadeiro espírito filosófico' é inseparável do 
espírito de prudência ; prud€ncia mui semelhante à 
que deve presidir às nossas relações com os homens 
e as coisas na prática da vida. Eis algumas obser­
vações que nos poderão aj udar a adquiri-la. 
Observação primeira 
A natureza íntima das coisas nos é quase sem­
pre inteiramente desconhecida. Sabemos pouco e 
mal. 
Não esqueçamos jamais esta verdade, que nos 
fará ver a necessidade de trabalho enérgico e perse­
verante em nossas pesquisas sobre a natureza dos 
entes. Tornar-nos-á modestos e circunspectos, pre­
servando-nos desta curiosidade irreflectida que leva 
1Ó8 Ó CRITÉRIO 
o homem a sondar segredos, para ele cobertos de 
véu impenetrável. 
Verdade pouco lisonj eira para o nosso orgulho, 
mas !Verdade incontestável, verdade perfeitamente 
evidente para quem tenha meditado sobre a ciência : 
o homem sabe poucas coisas. Recebemos do Cria­
dor uma inteligência em harmonia com as nossas 
necessidades físicas e morais, pois que esta inteli­
gência está em estado de conhecer, para a satisfa­
ção de nossas necessidades, o uso que podemos fazer 
dos seres colocados ao nosso alcance. 
Mas o resto, aprouve à sabedoria divina ocultar­
-no-lo ; reservou para si o privilégio de, mais tarde, 
ela própria levantar o véu que oculta a nossos olhos 
. 
o inefável espectáculo da criação. Para que lastimar­
i\ -mo-nos ? Se a ignorância é a prova da vida, a es­
; 1'perança é a consolação da morte. 
A ciência fornece algumas noções sobre as pro­
priedades da luz ; nós aplicamos muitas vezes essas 
propriedades ; mas a essência da luz, qual é ela ? 
sabemos dirigir, até apressar a vegetação ; mas que 
sabemos da natureza e segredos deste maravilhoso 
fenómeno ? 
Fazemos uso dos nossos sentidos, conservamo­
-los e ajudamo-los ; porém os mistérios da sensação 
nos são desconhecidos. Conhecemos, em geral, oa s 
substâncias nocivas ou salutares ao corpo ; mas igno­
ramos por que é que tais substâncias são úteis ou 
O CRITÉRIO 109 
prej udiciais. Temos acabado ? Calculamos o tempo 
de mil modos, e no entanto a metafísica ainda não 
logrou definir o tempo. Existe uma ciência cha­
mada geometria, ciência elevada a um alto grau de 
perfeição, e a idéia fundamental desta ciência, a 
extensão não se pode compreender. Vivemos no 
espaço ; todo o universo se move no espaço ; medi­
mo-lo ; submetemo-lo a rigorosos cálculos ; e nem 
a metafísica, nem a ideologia sabem dizer em que 
o espaço consiste, se é cousa distinta dos corpos, 
se é simplesmente uma idéia, se tem natureza pró­
pria. Não sabemos se ele é um ser, ou se não é 
coisa alguma. Pensamos, e não sabemos o que vem 
a ser o pensamento ; as idéias geram-se em nossa 
inteligência, e não sabemos o que é uma idéia. O 
espectáculo do universo, em toda a sua variedade, em 
todo o seu esplendor se desenrola em nosso cérebro 
como em magnífico teatro. Aí, uma força incom­
preensível cria, segundo nossos caprichos, mundos 
fantásticos, ora sublimes e cheios de belezas, ora 
cheios de extravagâncias, e não sabemos nem o que 
é a imaginação, nem o que são estas prodigiosas 
cenas, nem como aparecem ou se esvaem. 
Há uma multidão de afeições de que temos cons­
ciência íntima, profunda, invencível, a que chama­
mos sentimentos. Mas que é um sentimento ? Po­
demos dizê-lo ? O que ama sente amor, e não sabe 
o que é o amor. 
110 O CRITtRlO 
O filósofo que pretende analisar esta afeição 
assina a sua origem, suas tendências e seu fim ; dá 
regras para a dirigir ; porém, quanto à natureza 
íntima do amor, permanece na mesma ignorância 
que o vulgo. 
Os sentimentos são como o fluido que circula 
por canais inaccessíveis à vista. Conhecem-se-lhes 
alguns efeitos exteriores ; em certos casos, sabe-se 
onde vão ou donde vêm estes fluidos ; pode-se até 
acelerar ou retardar seu giro, mudar a di reção ; po­
rém a vista não pode sondar o mistério de seu mo­
vimento ; o agente permanece incógnito. 
Nosso próprio corpo, todos os que nos rodeiam, 
sabemos por ventura o que eles são ? Há filósofo 
que possa explicar o que é um corpo ? e todavia vi­
vemos no meio de substâncias corpóreas ; usamos 
delas a cada instante. Conhecemos muitas de suas 
propriedades, definimos as leis que as regem, um 
corpo faz parte da nossa própria natureza. 
Não percamos, pois, de vista estas considerações, 
quando tivermos de estud·ar os princípios constitu­
tivos de qualquer ser, sua essência. Atentos e cheios 
de ardor em nossas pesquisas, sej amos sóbrios e ri­
gorosos nas definições. Se não exercitarmos com 
rigoroso escrúpulo esta qualidade, acontecer-nos-á 
muitas vezes colocar na ordem das realidades vãs 
criações da fantasia. 
O CRITÉRIO 111 
Observação segunda 
Nas matemáticas há duas maneiras de resolver 
os problemas : a demonstração directa, e a prova por 
impossibilidade. 
O mesmo aconteceem toda e qualquer questão. 
Para o maior número das dificuldades, provar que 
nos achamos na impossibilidade de as resolver se­
ria a melhor das soluções. E que se não creia que 
tal maneira de raciocinar seja desprovida de mérito, 
ou que seja sempre fácil discernir o possível do 
impossível . 
Um espírito cap-az deste discernimento mani­
festa que conhecia a fundo a matéria e que sondou 
seriamente as dificuldades. 
O conhecimento da impossibilidade em que nos 
achamos de resolver certas dificuldades é mais ve­
zes histórico e de experiência, que científico. Lo­
go que um homem competente declara que tal ou 
tal solução é impossível, ou que toca o impossível, 
nem sempre se segue que ele esteja em estado dE'\ 
o demonstrar ; mas a inutilidade dos esforços que 
tentou, a história dos esforços antes dele tentados 
por homens especiais, confirmam nesta questão a 
impotência do espírito humano. Algumas vezes a 
impossibilidade ressalta da própria natureza do pro· 
blema ; todavia, para o afirmar com certeza, é mis-
112 0 CRITÉRIO 
ter abranger, com a mesma vista de olhos, o conhe­
cimento desta impossibilidade e o conhecimento que 
seria preciso ter para a fazer desaparecer. 
Observação terceira 
Como os entes diferem muito em sua natureza, 
propriedades e relações, igualmente as nossas apre­
ciações a seu respeito devem ser mui variadas. 
Imaginam alguns que, sabendo-se pensar sobre 
uma elas objectos, está aberto o caminho para 
e lograr o m;mo a respeito de todos ; bastando 
dirigir a atenção�a o que se quer estudar de 
novo. �ouvir-se da boca de muitos, e 
ler-se em alguns autores, a insigne falsidade de que 
a �lhor lógica são as matemáticas, por isso que 
acost� a pensar em todas as matérias com rigor 
e exactidão. 
Para ver desvanecida esta pretensão ilusória e 
fatal, basta observar que os objectos que se oferece­
cem a nosso espírito são de mui diferentes ordens ; 
que os meios de que dispomos para observar nada 
têm de comum entre si, que as relações em que nos 
achamos para com eles variam infinitivamente, e 
que finalmente a experiência nos mostra muitas ve­
zes, tanto nas artes como nas ciências, talentos es­
peciais e nunca talentos universais. 
O CRITÉRIO 113 
Há verdades matemáticas, verdades físicas, 
ideológicas, metafísicas ; há verdades morais, re­
ligiosas, políticas, históricas, literárias ; verdades 
da razão pura e outras que são um misto de senti­
mento e imaginação. Há verdades especulativas e 
há outras práticas ; algumas que só se podem adquii' 
rir com auxílio do raciocínio, e outras que se adqui{ 
rem por intuiç,ão ; outras, enfim, que só a experiên­
cia nos ensina. Poder-se-iam dividir em tantas clas­
ses que fora impossível contá-las. 
UI 
OS GRANDES HOMENS. EVOCAÇÃO. 
Evoquemos, com auxílio desta potência mais 
forte que a própria morte, com auxílio da imagina­
ção, os homens ilustres que foram o ornamento de 
seu século e cuj os nomes a humanidade conserva 
com orgulho. Mandemos ao túmulo que no-los res­
titua tais quais ele os recebeu, com seu gênio, suas 
paixões, suas faculdades diversas, e em morada dig­
na de tais personagens, em um novo Eliseu, no qual 
todas as artes, todos os produtos do espírito humano 
estejam reunidos, onde cada qual encontre o que 
fora obj ecto de sua paixão e sua glória ; sigamos com 
o pensamento estes indivíduos privilegiados. O se-
114 O CRITÉRIO 
gredo de seus gostos nos revelará o segredo de seu 
g-ênio. 
Que imponente assembléia l Gonçalo de Córdo­
va, Richelieu, Cristóvão Colombo, Fernando Cor­
tês, Napoleão, Torquato Tasso, Mílton, Corneille, 
Racine, Boileau, Calderon, Moliere, Bossuet, Mas­
sillon, Bacon, Kepler, Galileu, Pascal, Newton, 
Leibnitz, Miguel Ângelo, Rafael, Lineu, Buffon, e 
mil outros, que, por títulos diferentes, mereceram 
ser colocados em o número dos reis da inteligência. 
Gonçalo deleita-se com a narração das · campa­
nhas de Cipião em Espanha. ! Napoleão medita na 
passagem dos Alpes por Aníbal. Indigna-se com a 
hesitação de César depois de passar o Rubicão : mas 
quando vê o futuro ditador marchar sobre Roma, 
vencer em Farsália, subjugar a Africa, apoderar-se 
do poder supremo, e com a ponta da sua espada 
traçar estas célebres palavras - cheguei, vi e · venci, 
-, então a sua vista parece cintilar. 
Tasso e Milton inspiram-se na Bíblia, em Ho­
mero e Vergílio ; Corneille e Racine buscam modelo 
em Eurípides e Sófocles ; Moliere em Aristófanes 
e em Oalderon ; Bossuet e Massillon estudam com 
amor a Santo Agostinho e S. Crisóstomo : e no en­
tretanto Erasmo e Mabillon, envolvidos no pó dos 
manuscritos, folheiam com ardor os arquivos. 
Cada um tem o seu herói, seu entusiasmo, seu 
estudo apaixonado. Este, com o telescópio na mão, 
O CRinRIO 115 
surpreende o segredo de Deus na criação ; aquE>le 
outro, curvado sobre o microscópio, descobre um 
mundo de viventes num grão de pó. Mecânicos, ar­
tistas, naturalistas, Lineu no meio das flores, Rafael 
nas galerias de quadros, Watt entre as máquinas, 
todos escolheram seu lugar no meio que lhes con­
vém, e desenvolvem, no prosseguimento do seu ideal, 
as mais altas faculdades. 
Mas deslocai estas grandes inteligências, ponde 
em contacto os gênios opostos, as aptidões diversas, 
trocai-lhes a ocupação, o poeta com o mecânico, o 
filósofo com o poeta, o guerreiro com o filósofo, 'J 
pintor com o geómetra, o homem dado a fantasias 
com o homem positivo, o homem de movimento e 
acção com o pensador, e vereis como a cena muda. 
O gênio toma-se mediocridade, e quem sabe ? a sa­
bédoria em toleima. 
Ainda que Boileau tenha lido mil vezes a epís­
tola aos Pisões ou as sátiras de Horácio, não deixa 
de sempre descobrir novas belezas, e de cada vez 
admirar mais o seu predilecto. 
Descartes medita sobre as cores, e prova inven­
civelmente que elas não passam de sensações. Esta 
descoberta o enche de alegria. Aproximai no en­
tanto estes dois grandes espíritos ; suponde que eles 
se comunicam em seus pensamentos : o filósofo terá 
por homem superficial e frívolo o que assim se deixa 
mover por uma palavra ou por uma imagem bonita ; 
116 o crunRIO 
ao passo que o poeta, sorrindo com desdém, prepa­
ra um verso mordente contra o que ele chama so­
nhador, e cujas doutrinas a seu ver ofendem o sen­
so comum e tendem a desencantar a natureza. 
Eis Mabillon com um velho pergaminho nas 
mãos ; recorrendo mil vezes ao vidro de aumento, 
recomeça suas indagações. Pretende restabelecer 
uma linha apagada, em que espera achar uma 
palavra, um texto perdido. Totalmente absorvido 
neste trabalho, esquece o resto do mundo ; quando 
sobrevém um naturalista que, dirigindo o micros­
cópio, se põe a huscar com não menos ardor e pai­
xão, no pergaminho que disputa ao erudito, os ovos 
dum insecto roedor. 
Tasso e Mílton, declamando suas estrofes subli­
mes, calcam com os pés, sem até duvidar que des­
troem num instante a obra paciente de muitos dias, 
as plantas microscópicas, das quais Lineu fazia a 
análise. Enfim brilha a guerra entre estes semi­
-deuses, que se não entendem. Cuidai em reenviá-los 
a seu túmulo, sob pena de comprometerem sua glória. 
O que um rejeita com desdém, o outro o busca 
e admira ; o que um vê com clareza, o outro nem 
ao menos o entrevê. Gênio sublime para o primei­
ro, visionário absurdo para o segundo ; inapreciáveis 
tesouros para este, miseráveis bagatelas para aque­
le. E por que ? De onde vem que estes espíritos 
privilegiados estão entre si em tal desacordo ? Como 
O CRI'NRIO 117 
é que as verdades se não apresentam a todos os 
olhos da mBsma maneira ? E' que a verdade, em­
bora una em Deus, é multíplice na criação ; é que 
a régua e o compasso são inúteis para apreciar as 
coisas do coração ; é que o sentimento nada tem que 
ver com os cálculos da geometria ; é que as abstrac­
ções metafísicas nehuma relação têm com a ciência 
social ; é que a vBrdade pertence a ordens tão di­
versas como a mesma natureza ; é que a verdade é 
a realidade das coisas. 
A pretensão de pensar e raciocinar, sobre to­dos os objectos, do mesmo modo, é uma abundante 
fonte de erros ; aplicadas as faculdadBs inconvenien­
tes tornam-se inúteis, porque se submete a uma o 
que unicamente convém à outra. Até os homens 
de inteligência privilegiada, a quem Deus dotou de 
compreBnsão universal, tornam estéril este dom, se, 
quando se aplicam a qualquer objecto particular não 
sabem despojar-se, por assim dizer, de uma parte 
de si mesmos, não deixando funcionar senão as fa­
culdades de que precisam para o objecto de que se 
trata. 
CAPíTULO XIII 
A percepção 
I 
IDÉIA 
Perceber com clareza, exactidão e viveza, j ul­
gar com verdade, discorrer com rigor e solidez, eis 
os tres dotes do bom pensador ; examinemo-los se­
paradamente, emitindo sobre cada um deles algu­
mas observações. 
Não definirei idéia ou percepção. Basta dizer, 
sem aspirar à precisão rigorosa da linguagem filo­
sófica, que percepção é este acto interior pelo qual 
concebemos uma coisa ; e que a idéia é a imagem, 
a representação que serve como de alimento à per­
cepç.ão. Assim, nós percebemos o círculo, oa elipse ; 
percebemos a resultante de um sistema de forças, 
a razão inversa destas forças nos braços duma ala-
120 O CRITtRió 
vanca, a gravitação dos corpos, a lei de aceleração 
em sua queda, o equilíbrio dos fluidos, a contradi­
ção que implica ser e não ser ao mesmo tempo, a 
diferença entre a essência e o acidente ; percebemos 
os principios d·a moral ; percebemos nossa existência 
e a do mundo exterior, percebemos as belezas ou os 
defeitos num quadro, num poema ; percebemos a 
simplicidade ou a complicação em um negócio, a im­
pressão favorável ou desfavorável que sobre os nos­
sos semelhantes fazem uma palavra, um gesto, um 
sucesso ; finalmente, concebemos tudo o que o nosso 
espírito concebe ; e este espelho interior no qual os 
objectos parecem pintar-se para se oferecerem aos 
olhos do espírito, esta coisa que ora enche o entendi­
mento com sua presença, ora se oculta ou adormece, 
esperando, para reaparecer, que alguma ocasião a 
desperte ou que nós mesmos a chamemos, este não 
sei quê, esta incógnita cuj a existência não podemos 
de modo algum pôr em dúvida, é o que chamamos 
Idéia. 
As opiniões dos ideólogos sobre a origem das 
idéias são aqui de pouca importância . Para bem 
pensar, que necessidade há de saber se a idéia é ou 
não distinta da percepção ; se é ou não uma sensação 
transformada ; enfim, donde provém e se é inata 
ou adquirida ? A solução destas questões sobre que 
sempre se disputou e disputará exigiria observações 
psicológicas, às quais nos não podemos consagrar 
O CRITÉRIO 121 
sem dar de mão a qualquer outro trabalho, sob pena 
de embaraçar ou transviar a inteligência. O que 
pensa não pode estar continuamente a pensar que 
pensa e comó pensa. Nosso entendimento não pre­
encheria seu fim. Não se ocuparia de sua missão, 
ocupando-se somente de si próprio. 
II 
BEM PENSAR. REGRAS. 
Perceberemos com clareza e viveza, se nos ha­
bituamos a ser atentos ao que se nos oferece, e se 
além disso procur.ámos adquirir o necessário tino 
para empregar, em cada caso, as faculdades conve­
nientes, e só elas. 
Trata-se, por exemplo, de uma definição mate­
mática ? nada de vago, nada de abstracções, nada 
de sentimental, nada de fantástico, nada do mundo 
em sua complicação e variedade. A imaginação de­
ve calar-se ou, quando muito, fazer ofício das telas 
sobre que se traçam sinais e figuras. Esclarece­
rei a regra, dando uma das definições mais elemen­
tares da geometria. "A circunferência é uma linha 
curva, fechada, cuj os pontos são eqüidistantes de 
um ponto comum chamado centro. " Vê-se imedia­
tamente que não se trata aqui da circunferência en­
tendida em sentido metafórico, em sentido vago e 
122 O CRITÉRIO 
indeterminado, mas sim de uma definição rigorosa, 
definição que deve ser considerada como ·a expres­
são de um ideal de que a realidade se aproxima 
mais ou menos. .. 
Todavia, como as figuras geométricas se sub­
metem à vista e à imaginação, valer-me-ei de uma 
destas faculdades ou delas ambas para me repre­
sentar o que quero conceber. Traço pois uma cir­
cunferência ou numa pedra, suponhamos, ou na 
imaginação, e vej o ou imagino esta figura. M�s _y�r 
!l_IP.� co�sa __ não - � cg_mpreend�_r_ a su� natureza. O 
homem menos inteligente vê ou imagina uma circun­
ferência tão bem como o mais hábil matemático, e 
não sabe dar conta do que vê. Se bastasse ver, o 
próprio animal teria idéias geométricas tão perfei­
tas como Newton ou Lagrange. 
Que é pois preciso para que haj a percepção in­
telectual ? Conhecer as condições indispensáveis pa­
ra a existência da coisa. E" o que explica a defi­
mçao. A percepção não é exacta e completa senão 
quando concebemos cada uma de suas condições ; o 
conj unto del-as forma, em nosso entendimento, a 
idéia verdadeira, a idéia que devemos ter do obj ecto 
definido. 
Interrogai sobre a definição que demos de cir­
cunferência a um homem rude, e vereis por suas 
respostas que não sabe dar-se conta do conj unto das 
condições necessárias para a existência desta figura. 
O CRinRtO 123 
Ver e conceber estão longe de ser uma e a mesma 
coisa. 
Se · um geómetra a analisa por sua vez, que 
diferença ! 
- Na definição da circunferência pode empre­
gar ·a palavra linha ? 
- Sim, porque não obstante não se tratar de 
linhas nesta parte de geometria, não se poderia di­
zer simplesmente cur/Va, visto que curva também 
se aplica às superfícies. 
- Exprimindo a palavra linha, é mister expri­
mir também o qualificativo curva ? 
- Parece-me que não ; porque, aj untando a pa­
lavra reintrante, a distinguimos de linha recta, que, 
além disso, não poderia ter todos os seus pontos 
eqüidistantes do centro. 
- E a palavra fechada, não se poderia passar 
em silêncio ? 
- Não ; porque se a curva não reentra sobre 
si mesma, se não é fechada deixa de ser circunfe­
rência, etc. , etc. 
Eis uma percepção clara, exacta, completa, pela 
qual o espírito entrou na posse da realidade. 
Passemos à análise de uma idéia literária, e 
procuremos determinar a maior ou menor perfeição 
que pode ter. 
Ainda aqui há a percepção de uma verdade ; a 
atenção, isto é, a aplicação do espírito ao obj ecto de 
124 O CRIT�RIO 
seu estudo é portanto necessana. Precisamos de 
insistir sobre a seguinte observação : As mesmas 
faculdades estão longe de ser igualmente úteis em 
todas as espécies de trabalhos : e, por exemplo, o 
espírito de classificação e divisão, faculdade im­
portante no geómetra, tornar-se-á um defeito no 
literato ? 
Dois homens eminentes, mas por títulos diver­
sos, lêm conj untamente uma obra prima poética ou 
oratória ; um deles não pode conter o entusiasmo : 
" Que sublimes imagens ! - exclama - que fogo ! 
que delicadeza de sentimentos ! que profundeza ! que 
inimitável enlace de concisão, de abundância, de 
regularidade, de vigor ! " 
E os seus olhos derramarão lágrimas de admi­
ração. 
" Contudo está conforme às regras - respon­
der.á o ·companheiro - isto é que é para admirar ! " 
Um percebe as belezas da obra que acaba de 
ler ; todavia, raciocina pouco, apenas analisa, só 
pronuncia palavras entrecortadas. O outro não 
as percebe ; raciocina e disserta, sempre encostado 
às regras de retórica : o primeiro vê toda a verda­
de que o segundo só em parte percebe. E por que ? 
Porque a verdade, aqui, é um conjunto de relações 
entre o entendimento, a imaginação e o coração ; 
porque estas faculdades devem ser postas em acção 
O CRITtRlO 125 
ao mesmo tempo, naturalmente, sem esforço, sem 
violência, sem serem distraídas ou empuxadas pela 
lembrança de tal ou tal regra . Era mister deixar 
o raciocínio, a análise, a crítica, só se lembrar destas 
coisas depois de as ter sentido. 
O que se embara:;a em definições, e chama em 
seu auxílio os preceitos, antes de se haver penetra­
do da obra que se julga, como que pensa a alma ; 
quando mais precisava de dilatar, de desenvolver 
todas as suas faculdades, obriga-a a não empregar 
senão uma ;quando devia levantar mais arroj ado 
voo, priva-a de suas asas. 
III 
ESCOLHOS DA ANALISE 
Até nos assuntos em que nenhum papel de­
sempenha o sentimento e a imaginação, convém não 
comprimir a inteligência obrigando-·a a seguir um 
método qualquer determinado, quando por earácter 
particular precise da independência e liberdade. 
E' inegável que a análise ou decomposição serve em 
muitos casos para dar às idéias precisão e clarezn ; 
porém , h.ão esqueçamos que a maior parte dos seres 
são compostos, são um conj unto e que o melhor mo­
do de os perceber é ver com uma só vista geral as 
partes que o constituem. 
126 O CRITÉRIO 
Sem dúvida uma máquina desmontada apresen­
ta de maneira mais distinta as peças que a com­
põem ; mas p·ara bem compreender o uso destas par­
tes, para apreciar o seu curso particular no movi­
mento geral, é preciso que elas tenham sido tornadas 
a pôr em seu lugar. À força de decompor, de di­
vidir, de analisar, Condillac e sua escola veio a não 
reconhecer no homem senão sensações transformadas. 
Pelo contrário, Descartes e Mallebranche não viram 
nele senão idéias puras : tendência, duma parte, 
pam o materialismo, de outra parte, para o espiri­
tualismo exagerado. Condillac pretende dar a ra­
zão de todos os fenômenos da alma partindo deste 
facto : o perfume de uma rosa percebido por um ho­
mem-máquina privado de todos os sentidos à excep­
ção do olfacto. Mallebranche, buscando a explicação 
dos mesmos fenômenos e, não a encontrando nas 
criaturas, não hesita em fazer intervir em tudo a 
essência divina. 
A cada passo vemos homens inteligentes afun­
darem-se de raciocínio em raciocínio com aparente 
rigor de dedução, nas mais estranhas extravagâncias 
e dislates. E' que não souberam ver a questão se­
não por um dos lados. Será o espírito de análise 
que lhes falta ? Não. Apenas um objecto está em 
suas mãos, logo o decompõem. Mas um só ponto 
negligenciado compromete seu trabalho ; e, nos ra­
ros casos em que sua análise é completa, esquecem 
O CRITtRlO 127 
que o objecto decomposto é um, que cada uma das 
suas partes está unida a outra por relações estreitas, 
e que, se não tiverem em conta este facto essencial, 
uma obra prima pode em suas mãos tornar-se um 
absurdo. 
IV 
O TINTUREIRO E O FILóSOFO 
Um hábil tintureiro estava em seu laboratório, 
entregue aos trabalhos de sua profissão ; aconteceu 
entrar um filósofo, grande pensador, apaixonado 
admirador da análise. Travou-se entre eles uma 
discussão a respeito das cores, e o filósofo, analisan­
do em particular cada uma d'as substâncias que o 
artista misturava e combinava, lhe demonstrava que 
por tais meios não poderia obter os resultados que 
esperava. A análise era exacta, as provas numero­
sas, as razões evidentes, os raciocínios sem réplica. 
- Terá o senhor muita razão - respondeu o ar­
tista ao fim dos argumentos - tudo o que afirma 
é possível, mas queira voltar amanhã. 
O filósofo voltou efectivamente, e o tintureiro 
apresenta-lhe ricos tecidos, que tira fumegantes das 
caldeiras. Que é feito da infabilidade da análise ? O 
azul, o alaranjado, o vermelho, as mais vivas e deli­
cadas cores cintilam nos ricos estofos. 
128 O CRITÉRIO 
Conhecer a parte isolada do todo, ou combina­
da com o todo, não é pois a mesma coisa. Decom­
por e dividir não é senão uma parte da ciência. 
E' preciso também saber reunir e compor. 
v 
__.. OS OBJECTOS VISTOS DE UM Só LADO 
Há certos espíritos, aliás muito lúcidos e pene­
trantes, que se transviam às vezes deploràvelmente. 
Já demos a razão. Não encaram as coisas senão 
por um lado, e estabelecem sobre o conhecimento 
assim adquirido, sobre esta base imperfeita, uma 
série de raciocínios que conduzem fora de termos 
e o resultado é chegarem a conclusão absurdas. 
Daí a opinião de que com auxílio do raciocínio tudo 
se pode impugnar, tudo defender. Muitas vezes, 
com efeito, posto que o homem tenha por seu lado 
a verdade e o bom senso, vê-se forç·ado a calar-se, 
espantado, ainda que não convencido, por sofismas 
que, penetrando pelas menores frestas, como água 
através dos poros, superam as mais impenetráveis 
defesas. O excesso de agilidade faz com que certas 
pessoas não possam caminhar a passo regular e 
grave ; o excesso de espírito é um defeito do mesmo 
gênero. 
O CRITtRIO 129 
VI 
INCONVENIENTES DE UMA PERCEPÇÃO MUITO 
RAPIDA 
A rapidez de percepção é uma qualidade pre­
ciosa ; porém é preciso precaver-se a gente contra 
o efeito ordinário desta rapidez, a inexactidão. 
Freqüentemente acontece aos que percebem com 
m uita presteza, não perceber senão as exteriorida­
des dos obj ectos. A andorinha, tocando em seu rá­
pido vôo a superficíe das águas, só consegue apa­
nhar os insectos que sobrenadam ; as aves mergulha­
doras vão até ao fundo procurar sua preza. 
Os homens dotados de percepção mui rápida 
fazem-se notar por uma facilidade cheia de seduções 
e atractivo. Sabem dar aos objectos de que tratam 
certa aparência de método, de clareza, de precisão 
que ilude os espíritos desatentos. Nas ciências pri­
mam pela simplicidade das definições, pela feliz 
aplicação dos princípios que põem ; esta qualidade 
caracteriza os espíritos de concepções fortes e pro­
fundas, mas pode também mascarar a impotênc ia 
da frivolidade . Também as águas pouco profun­
das encantam a vista, porque deixam ver a areia 
de seu leito em que cintilam algumas palhetas d e 
ouro. 
CAPiTULO XIV 
O juízo 
I 
QUE E' JUíZO ? CAUSAS DE ERROS 
Será o juízo um acto distinto da percepção ? 
Será simplesmente a percepção das relações que 
duas idéias têm entre si ? Não era nosso plano o 
resolver estas questões abstractas, as quais subtitui­
remos vantajosamente, segundo creio, por definições 
práticas. Julgar é afirmar mentalmente que uma 
coisa é ou não é ; que é ou não de certa maneira. 
Proposição é a expressão de um j uízo. 
Os axiomas falsos, as proposições tomadas em 
sentido muito extenso, as definições incompletas, as 
expressões vagas, as suposições gratuitas, os prejuí­
zos, tais são . as fontes dos erros de nosso juízo . 
132 O CRIT�RIO 
II 
AXIOMAS FALSOS 
Toda a ciência precisa de um ponto de apoio. 
E' o fundamento sobre que o arquitecto levanta o 
edifício. Mas nem todos os arquitectos do pensa­
mento encontram, da primeira vez que lançam a 
sonda, o fundo sólido ; e o homem não sabe esperar. 
O que exigiria a experiência e labor de muitos sécu­
los, ele o quer produzir num só dia ; se o não en­
contra, inventa. Se a realidade lhe falha, levanta 
suas frágeis construções sobre os sonhos da fantasia, 
e à força de sofismas chega a iludir-se a si próprio. 
Converte em verdades incontestáveis o que bem 
sabia não ter sido, a princípio, senão uma forma 
vaga de seu pensamento, senão uma aparência sem 
fixidez. As excepções embaraçariam o sistema que 
inventa, formula portanto uma proposição geral , 
que erige em axioma. Este axioma deve prestar-se 
a mil interpretações, contrair-se ou distender-se à 
vontade, segundo as necessidades das circunstâncias 
e da caus-a, por isso ele o eoncebe em termos vagos, 
gerais, confusos, ininteligíveis. Se em seu espírito 
se levantam escrúpulos tocantes às verdades que 
desta sorte estabeleceu, se teme ver desabar intei­
ramente o edifício construído com tanto trabalho, 
O CRITI!RIO 133 
coisa estranha ! esquecendo seu ponto de partida, 
tranqüiliza-se dizendo : não há perigo, o meu edifício 
está fundado sobre base segura, sobre um axioma, 
e um axioma é uma verdade eterna ! 
Um axioma deve tocar nosso espírito, arrastar 
nossa adesão, como os raios do sol tocam nossos olhos 
e nos f'azem crer na luz. A toda a proposição que 
se não apresente com esta ·evidência não se confira 
tal nome. Se compreendeis cada um dos termos da 
proposição e não estais convencidos, não há axioma ; 
desconfiai de vós. Viciadas as idéias por um axioma 
falso, todas as coisas se v.Bem de modo mui diverso do 
que realmente são, e os erros são tanto mais perigo­
sos quanto o entendimento descansa em maisenga­
nosa segurança. 
III 
PROPOSIÇõES DEMASIADO GERAIS 
Se nos fosse conhecida a essência das coisas, 
poderíamos com respeito a el'as estabelecer proposi­
ções gerais sem excepção alguma ; porque, sendo a 
essência a mesma em toda a espécie, o que afirmás­
semos de um só indivíduo seria. igualmente afirmado 
de todos. Mas o mais das vezes só temos das coisas 
conhecimentos imperfeitos, ou nada sabemos delas ; 
eis por que não podemos avaliar dos seres senão 
134 O CRITÉRIO 
pelas suas propriedades que estão ao nosso alcance ; 
ignoramos até se estas propriedades têm sua raiz 
na essência das coisas, ou se são puramente aci ­
dentais. As proposições gerais que nós estabelece­
mos ressentem-se desta impotência do nosso espí­
rito ; e, como enfim elas não exprimem senão nossas 
concepções e j uízos, não podem estender-se além do 
círculo que a nossa inteligência abraça. Daí tantas 
excepções imprevistas, daí também a excepção to­
mada muitas vezes como regra. Quem estabelece 
uma proposição geral está suj eito ao erro, qualquer 
que sej a a aplicação do seu espírito. Que será en­
tão das proposições de tanta leveza no fundo como 
imperfeição na forma ? 
IV 
DEFINIÇõES INEXACTAS 
O que deixamos dito dos axiomas, pode igual­
mente aplicar-se à definição. A definição é o ar­
chote da percepção e do juízo ; gra<;..as à sua luz, o 
raciocínio pode prosseguir confiadamente. 
Uma boa definição é cousa dificílima, impossí­
vel até em grande número de casos. Definir é ex­
plicar a essência da coisa definida ; ora como se 
há-de explicar o que se não conhece ? Não obstan­
te esta dificuldade, não há ciência que se não va-
O CRITÉRIO 135 
lha de uma multidão de definições postas em circu­
lação como moeda de boa lei. Coisa estranha ! 
Tem-se visto escritores levantarem-se contra este 
abuso, combaterem as definições dos outros, mas, 
para as substituir por definições novas, acabam por 
reedificar, sobre hipótese de sua escolha, o edifício 
de erros por eles derribado'. Se a clefinição se 
propõe dar a conhecer a essência das coisas, e se 
tão difícil é chegar a este resultado, para que nos 
apressaremos tanto a definir ? Sendo o fim de nos­
sas indagações o conhecimento da natureza dos en­
tes, e devendo a definição expor o resultado dessas 
indagações, como se há-de começar pela conclusão ? 
Definir é pôr a equação donde se deduza a incógnita, 
e na solução do problema esta equação é a última. 
O que podemos mui bem definir é o puramente 
convencional, porque a natureza do ente convencio­
nal é aquela que nós mesmos lhe damos por motivos 
que bem nos parecem. Assim, j.á que em muitos 
casos nos não é possível definir a coisa, ao menos 
devemos fixar bem o que entendemos quando dela 
falamos ; por outra, devemos definir a palavra com 
que pretendemos exprimir a coisa. Não sei o que é 
o sol, não conheço a sua natureza, ser-me-á impos­
sível defini-lo. Todavia, como sei o que entendo 
pela palavra sol, deve-me ser fácil explicar o sentido 
que ligo a esta palara. Que é o sol ? não sei. Que 
entendo pelo sol ? Entendo este astro cuja presença 
136 O CRITtRlO 
nos traz o dia e cuja ausência nos tira o dia. Isto 
me leva a falar das expressões vagas e mal definidas, 
v 
EXPRESSõES MAL DEFINIDAS. EXAME DA 
PALAVRA "IGUALDADE" 
Aparentemente, nada menos difícil do que definir 
uma palavra, pois que é natural que quem fala saiba 
o que diz ; todavia, prov·a a experiência que nem 
sempre é assim. Raros são os homens capazes de 
apreciar o sentido das palavras que empregam. 
A confusão dos termos nasce da confusão das idéias, 
e aumenta esta confusão. Uma questão animadís� 
sima se debate em nossa presença, de ambas as par­
tes sustentada com talento pouco comum. Verdade 
é que a cada instante a questão se desloca e muda 
de objecto ; mas nem por isso a luta é menos encar� 
niçada e ardente : dir-se-iam dois inimigos mortais 
em campo de batalha . 
Quereis apagar este ardor ? notai a palavra sobre 
que versa a discussão e perguntai aos campeões em 
que sentido a empregam. Vereis como eles tergi­
versam, atacados por lado que não esperavam ; tal­
vez deste modo os forçareis a dar conta, pela pri­
meira vez, do verdadeiro sentido de uma expressão 
de que se têm feito inúmeras aplicações. Se por ven� 
O CRITÉRIO 137 
tura acontece que cada qual dê fàcilmente e de 
pronto a definição pedida, estai certos de que um 
não aceitará a definição do outro, e que ·a discor­
dância que antes versava ou parecia versar sobre o 
fundo da questão, se trasladará de repente a novo 
terreno entabolando-se disputa sobre o sentido da 
palavra. Disse parecia versar, porque quem houvesse 
observado o giro da questão, bem acharia que de­
baixo do nome da �oisa se ocultava freqüentemente 
a significação da palavra. 
Em todas as línguas há ·expressões vagas, muito 
gerais, mal definidas. Cada um as traduz segundo 
o seu modo de ver ; múltiplas como o sentimento ou 
a paixão que as interpreta, fazem o desespero da 
lógica e parecem inventadas para confundir tudo. 
Demos um exemplo : 
" A igualdade - dirá um declamador - é obra 
do mesmo Deus, lei por Ele estabelecida. Todos 
nascemos chorando e todos morremos suspirando : 
a natureza não faz diferença entre pobres e ricos, 
nobres e plebeus ; também a religião nos ensina que 
todos temos a mesma origem e o mesmo destino. 
A igualdade é obra de Deus ;a desigualdade é obra 
do homem ; só a maldade pôde introduzir no mundo 
essas horríveis desigualdades de que o gênero hu­
mano é vítima ; só a ignorância e ausência do senti­
mento da própria dignidade as tem podido tolerar. " 
138 O CRIT�RlO 
Esta definição declamatória não deixa de soar 
bem ao ouvido de certos amores-próprios ; não se 
pode negar que alguma coisa apresenta de precioso, 
e também estranha mistura de erros e verdades, 
sem relação e sem ligação ; ridícula confusão de pa­
lavras para o pensador. É que na mesma frase se 
dão à palavra igualdade diferentes significações ; é 
que ela se aplica em um mesmo sentido a assuntos 
tão afastados como o céu e a terra ; é que, passan­
do-se resolutamente de um conjunto de contradições 
a conclusões gerais, se eleva um sofisma a axioma, 
e se impõe aos espíritos fracos e entenebrecidos. 
Defini - diria eu - a palavra igualdade. 
Esta palavra define-se a si mesma. 
Em todo o caso . . . 
A igualdade é o princípio em virtude do qual 
um homem não é mais nem menos que outro homem 
- Definição mui vaga, na verdade. Dois ho­
mens são iguais na esta!ura ; segue-se daqui que o 
devem ser em tudo mais ? Um, por exemplo, é obeso 
como o ilustre governador da ilha de Barataria, o 
outro magro como o C"avaleiro da Triste-Figura ; 
demais os homens são iguais ou desiguais em saber, 
em virtude, em nobreza da alma e em mil outros 
acidentes ; convém, portanto, que acordemos no sen­
tido exacto, positivo, que convém dar à palavra 
igualdade. 
O CRlTtRlO 139 
- Falo da igualdade da natureza, desta igual­
dade que o próprio Criador estabeleceu e contra cujas 
leis nada podem os homens. 
- O que certamente quer dizer é que por na­
tureza todos somos iguais . . . Porém a natureza nos 
faz nascer feios ou bonitos, fracos ou robustos, ágeis 
ou pesados ; somos naturalmente violentos ou pací­
ficos, inteligentes ou faltos de inteligência, e assim 
indefinidamente. Contai as ondas do mar e sa­
bereis então o número das desigualdades naturais. 
- Mas estas desigualdades não tiram a igual­
dade de direitos. 
- A questão muda de face. Abandonamos a 
igualdade natural, ou a restringimos consideràvel­
mente. Talvez não tardemos também a conhecer que 
a igualdade de direitos também tem seu lado defei­
tuoso. Haverá quem conceda ao menino, por exem­
plo, o direito de repreender e castigar o próprio 
pai ? 
Para que supõe absurdos ? 
Não há tal ; apenas exponho uma conseqüên­
cia forçada da igualdade absoluta dos direitos ; se 
não é assim, assinalai-me então aqueles de que fa­
lais ; quais são os direitos para os quais deve ser 
ou não ser admitida? 
- É evidente que quero falar dos direitos ci­
vis, da igualdade social. 
140 
- Breve tomaremos esta palavra em sentido 
geral e mais absoluto ; mas o facto é que você, expulso 
de uma trincheira, pretende refugiar-se noutra. Não 
importa. Igualdade social quer dizer, certamente, que 
na sociedade todos os homens são ou devem ser iguais. 
Iguais em que ? Em autoridade ? Não haveria go­
verno possível. Em fortuna ? Deixemos de lado a 
j ustiça e procedamos à partilha ; no fim de uma hora, 
de um dia, com fortuna igual, um achar-se-ia arrui­
nado, outro com dobrado capital ; reaparece a desigual-
dade. Faça-se mil vezes a partilha, acontecerá sem­
pre o mesmo. Iguais em consideração ? É impos­
sível consagrar igual estima a um infame e a um 
homem de bem. Tendes a mesma confiança em cada 
um deles ? Encarregareis indiferentemente de ne­
gócios públicos a um homem sem capacidade alguma 
e a um Richelieu ? Além disso, todo o homem será 
apto para tudo ? 
- Não, reconheço que não, mas o que me não 
podereis negar pelo menos é a igualdade perante a lei . 
- Nova questão ; todavia sigamo-la. A lei diz : 
o transgressor será submetido à multa ; e, no caso de 
ser insolvente, à prisão. O rico paga e ri-se da lei ; o 
pobre expia de ferros a dentro tanto o seu crime como 
a sua pobreza. Onde está aqui a igualdade perante a 
lei ? 
O CRITÉRIO 141. 
- Mas estas desigualdades é preciso acabar com 
elas. O castigo deve chegar a todos os culpados, pesar 
igualmente sobre todos. 
- Aboli então as multas, única maneira de cas­
tigar certos culpados e algumas vezes também pre­
ciosa fonte de receita para o tesouro ; e, com tudo, 
;:�, desigualdade no castigo ficará sempre uma impos­
sibilidade. Admitamos que para um certo e deter­
minado delito, a multa sej a fixa ; multam-se dois cul­
pados ; um deles paga e continua opulento, o outro 
fica arruinado . . . 
- E será impossível remediar estas imperfei­
ções da lei ? 
- Pode ser ; mas eu só quero provar que a 
desigualdade no mundo é irremediável. 
No caso de os castigos serem corporais, temos 
a mesma desigualdade. O homem despido de digni­
dade pessoal sofre indiferentemente a ignomínia, 
a exposição pública, etc . , ao passo que, para certos 
culpados, tais castigos seriam mais cruéis que a 
morte. A pena deve ser apreciada não em si, mas 
em relação a quem a sofre ; sem isso, não se tocariam 
os dois fins que ela se propõe, a expiação e o exem­
plo. Em um mesmo castigo aplicado a criminosos 
de classe diferente não há de igual senão o nome. 
Reconheçamos estas imperfeições das coisas humanas 
e deixemo-nos de sonhar loucamente sobre a igualdade 
142 O CRITÉRIO 
absoluta, porque tal igualdade é absolutamente impos­
sível. 
A definição de uma palavra e o exame das apli­
cações diversas que dela se podem fazer, nos fornece­
rão ocasião de sondar um especioso sofisma e de 
provar, até à evidência, que este texto de declama­
ções, tantas vezes emprr.,gado, não é, no fundo, senão 
uma verdade trivial, um pretensioso absurdo. Pois 
não se reduz, com efeito, a esta descoberta : que 
todos nascemos e morr·emos da mesma maneira ? 
VI 
SUPOSIÇõES GRATUITAS 
À mingua de princípios gerais, estabelecemos 
às vezes nossos raciocínios sobre factos cuj a certeza 
só repousa em nossa credulidade., Declaramo-los 
certos, porque precisamos que eles o sejan1. Daí a 
multidão de sistemas a propósito de certas leis e cer­
tos fenómenos da natureza, fundando cada inventor 
o edifício de seus conhecimentos sobre suposições 
gratuitas. Até os talentos de primeira ordem se 
deixam arrastar por esse defeito, sempre que care­
çam de dados positivos sobre a natureza e origem 
das coisas, e não obstante queiram - explicar tudo. 
Um efeito pode proceder de uma infinidade de cau-
O CRITÉRIO 143 
sas ; mas saber ·que pode proceder não é ter achado 
a. verdade ; é preciso saber que procede. Se uma hi­
pótese explica satisfatOriamente certos fenómenos 
que tenho à vista, poderei admirar o talento de seu 
.inventor ; porém pouco adianto para o conhecimento 
da realidade das coisas. 
Atribuir um efeito a uma causa em virtude da 
possibilidade, principalmente quando se pode invo­
car a coexistência ou sucessão, é um sofisma mais 
comum do que se pensa. O mais das vezes nem ao 
menos se inquire da existência do fenómeno desig­
nado como causa ; basta que tenha podido existir, 
e que ·em sua existência pudesse produzir o efeito, 
cuja explicação se busca. 
Achou-se no fundo de um precipício o cadáver 
de uma pessoa conhecida. Muitas suposições Bxpli­
cam essa morte : uma queda, um suicídio, um assas­
sinato. Em qualquer destes casos, o efeito seria o 
mesmo, e na ausência de dados não se pode dizer 
que um o explique mais satisfatoriamente que o 
outro. Numerosos espectadores estão contemplando 
a desastrosa cena, e todos anseiam por descobrir a 
causa. Ao mais leve indício aparecem mil conj ec­
turas. Algumas circunstâncias que acompanham a 
suposição gratuita lhe darão carácter de verossimi­
lhança. Já se não duvida, afirma-se. Esta supo­
sição cai diant� de uma observação mais atenta ; su­
cede-lhe outra e outra e os factos invocados em apoio 
144 O CRITÉRIO 
da primeira servem algumas vezes para estabelecer 
a segunda. o homem é o joguete do próprio pen­
samento. 
VII 
PRECONCEITOS 
Fonte inesgotável de erros, verdadeiro escolho 
das ciências, e um dos maiores obstáculos a seus 
progressos ! DifJ.cilmente imaginaríamos quão gran­
de é a influência que os preconceitos exerc·em, se 
a história do espírito humano a não atestara a cada 
página. 
O homem a quem um preconceito domina não 
vê nos livros nem nas coisas o que os livros e as 
coisas contêm, mas só vê aquilo de que precisa para 
apoiar suas opiniões ; e muitas vezes procede de boa 
fé : crê amar a verdade. A educação, os mestres 
que nos deram as primeiras noções das ciências, os 
amigos, a profissão, a posição social, eis as origens 
de nossos preconceitos. Estas influências reunidas 
contribuem para criar em nós o hábito de ver as 
t:oisas sempre debaixo do mesmo aspecto e vê-las 
sempre da mesma maneira. 
Nos primeiros passos que damos na carreira 
das ciências, apresentam-nos certos axiomas, certas 
proposições, como verdades eternas, incontestáveis, 
O CRIT�RlO 145 
e nós as aceitamos com plena confiança e sem hesi­
tação. As razões que militam em f'avor das opini­
ões contrárias, longe de nos serem submetid·as à aten­
ção como argumentos, são taxadas de sofismas ou 
dificuldades a resolver. É preciso impugnar, e as 
provas são abundantes e a escolher ; e, na luta desi­
gual, a arma que o mestre maneja ao abrigo de peri­
go fere sempre o calcanhar do Aquiles inimigo. 
Fácil vitória em que os vencidos são a nossa inex­
periência e boa fé. 
É fácil de observar : nas discussões das escolas, 
ou antes em todas as discussões, trata-se menos de 
convencer que de vencer. O amor-próprio entra na 
liça ; e que armas não fornecerá ele à discussão ! 
Exagera-se o favorável ; o desfavorável atenua-se, 
desfigura-se ou se cala. Se a boa fé alguma vez 
protesta do fundo do coração, impõe-se-lhe silêncio ; 
abafa-se a sua voz como se abafam as palavras de 
paz em um combate d-e morte. 
Eis a razão por que, durante séculos, certas es­
colas existiram disciplinadas como exércitos à som­
bra da respectiva b-andeira, e por que, quase sempre, 
para conhecer a opinião de certos autores, basta 
saber a que ordem religiosa pertenceram e de que 
escola saíram. Seu erro não pode provir de igno­
rância ; consagram ao estudo a vida inteira ; os 1 i­
vros dos adversários não lhes eram desconhecidos ; 
consultavam-nos cotidianamente . . . mas para os 
146 O CRITtRIO 
combater. Seria má fé ? Estes hom€ns eram sin­
ceros cristãos. 
Temos nos preconceitos uma das principais 
fontes do erro. O homem precisa enganar-se a si 
antes de enganar os outros. Chega às vezes a to­
mar a sua importância e miséria por en€rgia e gran­
deza d'alma ; obstina-se num sistema, entrincheira­-se nele, fortifica-se com todos os ·argumentos que 
favorecem sua opinião, e fecha os olhos a tudo mais. 
Seu espírito se inflama e exalta à proporção da vi­
vacidade do ataque, até que enfim, não contando 
nem o número nem o valor dos adversários, parece 
dizer-se : " Estás em teu posto, deves def.endê-lo ; 
mais vale morrer com glória que viver com desonra ! " 
Eis por que muito importa, quando se trata de 
convencer e persuadir, S€parar cuidadosamente a 
causa do amor-próprio da verdade . Há certas fór­
mulas de cortesia e deferência que convém não pro­
digalizar muito. Não ponh'ais em dúvida a exten­
são e penetração de espírito do adv€rsário, e prin­
cipalmente fazei-lhe compreender que, cedendo, nada 
perderá da boa opinião de que goza. - Se deixais 
de ter esta precaução , a luta se tornará pessoal, e , 
portanto, encarniçada ; tê-lo-eis debaixo dos pés, a 
espada apontada à garganta, e ele sem se confessar 
vencido. 
CAPfTULO XV 
O raciocínio 
I 
O QUE V ALEM AS REGRAS DA DIALÉCTICA 
Costumam os autores que tratam desta opera­
ção do entendimento amontoar muitas regras para 
dirigi-la, apoiando-as em alguns axiomas. Admito 
a verdade dos axiomas, mas não posso crer que a 
utilidade das regras seja tanta quanto se supõe. 
Com efeito ninguém ousará pôr em dúvida os se­
guintes princípios : duas coisas iguais a uma terceira 
são iguais entre si ; de duas coisas iguais, se uma 
difere de uma terceira, a outra difere igualmente ; 
o que se afirma, ou o que se nega do gênero ou da 
espécie, é igualmente afirmado ou negado do indi­
víduo. As regras de argumentação fundadas sobre 
tais princípios são infalíveis ; concordo. Porém es-
148 O CRIT�RIO 
tas regras é preciso aplicá-las, e da teoria à prática 
•vai muito longe. 
Diz-se que têm a vantagem de habituar o es­
pírito à precisão, e de em certos casos dar a conhe­
cer os defeitos das proposições, cuja fraqueza vag;:,.­
mente sentíamos ; seja assim : mas estas vantagens 
não raro são neutralizadas pela presunção que este 
gênero de estudos inspira. Persuadem-se alguns 
que saber as regras do raciocínio é saber raciocinar, 
como se bastasse para ser artista conhecer as regras 
da arte. Pode haver quem receite, de memória, to­
dos os preceitos da retórica, e não seja capaz de es­
crever uma página, já não digo sem ofender as rl?­
gras do bom gosto, mas as do senso comum. 
II 
DO SILOGISMO ; OBSERVAÇõES 
Quando prosseguimos em um raciocínio sem 
precisão de empregar a forma escolástica (prática 
hoje caída em desuso) , teremos presentes ao pensa­
mento as regras do silogismo ? A resposta dará a 
medida da utilidade prática destas regras. Apren­
de-se a conhecer se tal ou tal silogismo está composto 
segundo os princípios, e eis a forma ordinária dos 
exemplos propostos : - Toda virtude é louvável ; 
ora a justiça é uma virtude, logo a justiça é louvá-
O CRITÉRIO 149 
vel. - Suponhamos, todavia, que, por um acto parti­
cular submetido a vosso exame, tendes de decidir 
se a j ustiça se acha ou Iião ofendida, e se a lei deve 
punir ; na indagação do em que consiste a j ustiça, 
no exame profundo dos princípios em que ela re­
pousa, na consideração dos benefícios que presta ao 
indivíduo e à sociedade, de que utilidade vos será o 
exemplo citado e mil outros do mesmo gênero ? Que 
nos digam os teólogos e j uristas, se, em seus escritos, 
se serviram muito das decantadas regras silogísticas. 
Nenhum animal é insensível ; ora o peixe é um 
animal ; logo o peixe não é insensível. O que é bom 
é adorável ; ora Deus é bom, logo Deus é adorável. 
Esta peça de ouro não tem o peso desejado ; ora 
esta é a peça que Pedro me deu ; portanto a peça 
de ouro que Pedro me deu não tem o peso desej a do. 
Semelhantes raciocínios poderão por ventura for­
mar o espírito e desenvolver o j uízo ? Não, certa­
mente. Não é em futilidades desta ordem que se 
aprende a difícil arte de raciocinar. A prática nada 
oferece de semelhante, e quando se chega às aplica­
ções, ou esquecemos completamente as regras, ou, 
depois de termos tentado servir-nos delas, abando­
namos este método tão penoso como ingrato. 
Analisemos o último exemplo que demos, com­
parando a prática à teoria. 
" Uma moeda que não reúne as condições pres­
critas pela lei deve ser recusada ; ora esta peça de 
150 O CRIT�RIO 
ouro não reúne as condições prescritas pela lei, por 
.tanto deve ser recusada. " Raciocínio concludente, 
mas inútil. 
Se bem conheci'a a lei que rege o sistema mo­
netário, se verificasse que a moeda não era con­
forme às perscrições da lei, de certo a recusaria 
sem discorrer. Se aconteceu levantar-se questão, 
de nenhum modo pôde versar sobre a legitimidade 
das conseqüências que tirei das premissas, mas sim 
sobre o peso, sobre o título da peça de ouro, ou coi­
sas deste gênero. 
O homem que desenvolve uma proposição não 
se absorve no estudo retrospectivo do próprio pen­
samento, do mesmo modo que os olhos que vêem o� 
objectos exteriores não procuram simultâneamente 
ver-se a si próprios. Se uma idéia se nos apresenta, 
percebemo-la com mais ou menos clareza. Esta 
idéia encerra uma ou muitas outras que, a seu tur­
no, despertam novas idéias . E deste modo o espí­
rito prossegue serenamente, sem subtilezas, sem ter 
a cada instante de se preocupar do porquê de cada 
evoluç.ão da inteligência. 
III 
O ENTIMEMA 
A evidência destas verdades levou os dialécti­
cos a colocarem em o número dos argumentos o 
O CRITÉRIO 151 
entimema, silogismo truncado, em que se subenten­
de uma das premissas. O entimema é um produto 
da experiência. Na prática, não se formulam silo­
gismos em todas as suas partes. O que demos, por 
extenso, no princípio deste capítulo, se o quisésse­
mos converter em entimema, traduzí-lo-íamos da se­
guinte maneira : Esta peça de ouro, não está nas 
condições exigidas pela lei, portanto não a posso 
receber. Ou estilo vulgar e mais conciso : Não a 
recebo, é Í'alsa. 
IV 
REFLEXõES SOBRE O TERMO MÉDIO 
Todo o artifício do silogismo está na compara­
ção que deve mostrar a relação que os extremos 
têm entre si. Conhecidos os extremos e o termo 
médio, é facílimo estabelecer a comparação ; mas 
nesse caso a regra torna-se inútil, porque imedia­
tamente a conseqüência buscada se ·apresenta de 
per si. Achar este termo médio, que deve servir 
ao raciocínio como de pedra de toque, reconhecer 
os extremos, quando se averigúe dum objecto, cuja 
natureza se ignora, eis a dificuldade : se um dado 
metal fosse ouro, sei que devia ter certas qualida­
des ; mas eu não sei se realmente é ouro, e, portanto, 
falta-me um dos extremos. O juiz sabe que, se o 
152 O CRITéRIO 
homem que tem diante de si fosse o assassino que 
" procura, o devia condenar ; mas nada lhe indica que 
ele é o culpado : ainda que suspeite, sem provas não 
o pode condenar. Está de posse dos dois extremos ; 
mas falta-lhe o termo médio. 
Podemos afirmá-lo ; este termo não se lhe apre­
sentará sob a forma dialéctica. Os antecedentes 
do acusado, sua maneira de viver, as testemunhas 
que o acusam, o punhal que se lhe encontrou oculto, 
os vestígios de sangue no vestuário, certos obj ectos 
que lhe foram apreendidos, a inimizade que o cul­
pado alimentava contra a vítima, suas contradições, 
sua perturbação quando, poucos momentos depois 
da execução do crime, entraram em sua casa e ou­
tras circunstâncias dessa ordem, eis o termo médio, 
ou antes, eis as circunstâncias que devem designar 
o culpado. Estas circunstâncias pesá-las-á o j uiz 
escrupulosamente em particular e no seu conj unto ; 
multiplicará a sua atenção para a exercer em todos 
os sentidos, para a dividir entre mil diversos obj ec­
tos, e aplicá-la...á toda simultâneamente a cada um 
dos objectos ; nada negligenciará que o possa .condu­
zir à verdade ; todos os pormenores serão recolhi­
dos, classificados, estudados. Que distânci'a entre 
preocupações deste gênero e a do silogismo em for­
ma ! Que utilidade teriam aqui as regras do silo­
gismo ? 
O CRITÉRIO 153 
v 
UTILIDADE DA DIALÉCTICASem embargo do que havemos dito, não nega­
remos que as formas dialécticas se podem frutuo­
samente empregar ainda hoje, sempre que se trate 
de apresentar com exactidão e rigor um encadea­
mento de idéias. Se a forma silogística não tem 
valor como meio de invenção, não deve ser despre­
zada como método de ensino. Assim, longe de pre­
tender banir este estudo das escolas elementares, 
entendo que se deve conservar cuidadosamente, senão 
em toda a sua secura, pelo menos em todo o seu ri­
gor. Os silogismos são os nervos e os ossos do 
raciocínio. Saibamos revesti-los de earne e dar-lhe 
as formas graciosas de vida. Outrora abusoQ-se 
deles ; nós caímos no excesso contrário ; e este ex. 
cesso é prej udicial ao progresso das ciências e à 
causa da verdade. 
Dantes, os discursos eram demasiadamente des­
carnados a ponto de deixarem ver o esqueleto ; hoj e, 
tal é o cuidado do exterior e esquecimento do interior, 
que, na maior parte das obras oratórias, as pala­
vras fazem as vezes das coisas.Frases bonitas, pom­
posas, cintilantes de beleza, se palavras ôcas podem 
ser belas. Pelo abuso da dialéctica antiga, os espí-
154 O CRITtRIO 
ritos sofísticos e subtis iam transviando a verdade 
em inextricáveis subdivisões ; os espíritos falsos ou 
vazios a abafam, a submergem, a tornam inaccessí­
vel sob a pujança dos ornatos oratórios. Est modus 
in rebus. 
CAPíTULO XVI 
O raciocínio não é o único meio de achar 
a verdade 
I 
A INSPIRAÇÃO 
Os grandes pensamentos não são filhos do ra­
ciocínio. Quase todas as descobertas felizes, as mais 
sublimes, e as mais preciosas conquistas do espírito 
humano, são devidas à inspiração - a esta luz es­
pontânea, misteriosa, qu€ repentinamente ilumina a 
inteligência do homem, sem que saiba de onde lhe 
venha. Digo inspiração, porque me parece que ne­
nhuma outra palavra exprime este admirável fenó­
meno com mais exactidão. 
Um matemático busca com ardor a solução de 
um problema ; nada negligenciou, lançou mão de to-
dos os dados, e conhece perfeitamente o enunciado, 
156 b CRITÉRIO 
e, no entanto, os seus esforços permanecem impo­
tentes, não chega à solução desej ada. Muda de fi­
guras, de processo, opera sobre quantidades dife­
rentes, mas tudo em vão. Acha-se cansado ; a ca­
beça se lhe inclina, a pena cai-lhe da mão, abandona 
por fim o trabalho e j á nem sabe se pensa. Dir-se-ia 
um homem que, desanimado com as tentativas inú­
teis que havia feito para abrir uma porta que lhe 
estava fechada, se assent::r sobre a soleira, esperando 
que lha venham abrir de dentro. De repente faz­
-se a luz ; a verdade que ele deixara de prosseguir 
apresenta-se-lhe espontâneamente, de per si mesma ; 
o problema está resolvido. Este matemático é Ar­
quimedes saindo do banho para as ruas de Siracusa 
e exclamando para a multidão : " Encontrei, en­
contrei ! " 
Acontece freqüentes vezes, que, depois de lon­
gas horas de meditação, o espírito cam'lado suspen­
de seus esforços, ainda, aparentemente, muito lon­
ge do fim a que se propunha ; ora é exactamente 
no meio desse estado de repouso, de distracção ou 
mui diferente ocupação que ·a verdade, antes vãmen­
te buscada, se lhe apresenta de improviso. Parece 
que as almas meditativas têm o privilégio de j a­
mais interromperem o estudo, e ainda quando têm 
deixado a meditação em que estavam embebidas, 
lhes ocorre freqüente o ponto em questão, como se 
viesse chamar à porta e perguntar se ainda lhe não 
O CRITÉRiO i 57 
toca a vez. Todos sabem que, estando Sto. Tomás 
de Aquino à mesa do rei de França, rompeu, invo­
hmtàriamente, nesta exclamação : " Isto é uma pro­
va incontestável contra a heresia dos maniqueus ! . . . " 
II 
A MEDITAÇÃO 
Não se creia que o homem que estuda uma ques­
tão difícil ande como com a régua e o compasso na 
mão a dirigir sua meditação. Absorvido no pró­
prio trabalho, esquecido até da própria existência, 
medita, por assim dizer, sem o saber. Vê e revê o 
objecto que trata de examinar j á no seu conj unto, 
j á nas circunstâncias ; pronuncia interiormente o 
nome deste objecto ; passa do ponto -essencial aos 
accessórios ; não prossegue, como por caminho tra­
çado, direito à meta determinada ; mas antes, seme­
lhante ao que busca um tesouro escondido cuj o lu­
gar ignora, vai excavando aqui, além, em toda a 
parte. 
Nem pode ser de outra maneira, a não ser que 
a verdade que se procura seja conhecida de ante­
mão. O que tem à vista um mineral cuja natureza 
conhece, quando trata de manifestar aos outros o 
que dele sabe, serve-se do processo mais simples 
e mais adequado. Potérrt se o mesmo metal lhe fos· 
158 O CRITÉRIO 
se desconhecido, examiná-lo-ia com atenção, uma e 
muitas vezes ; por tais ou tais indícios formaria 
suas conjecturas, e por fim lançari·a mão de várias 
expenencias, não para provar de que espécie é o 
metal, senão para descobrir o que ele é. 
IH 
A INVENÇÃO E ENSINO 
Temos pois uma diferença radical entre o mé­
todo de ensino e o método de invenção. O que 
ensina sabe aonde se dirige e conhece o caminho ·que 
deve seguir, porque j á o tem percorrido : o que des­
cobre talvez não tenha obj ecto algum determinado, 
se não examinar o que há no obj ecto que o ocupa ; 
talvez se dirija a um alvo, porém ignorando se é 
possível alcançá-lo, ou, duvidando se existe, receia que 
seja mero capricho de sua imaginação ; e aind·a no 
�aso de estar seguro de sua existência desconhece a 
senda que a ele conduza. 
Eis por que os princípios que se empregam no 
ensino das ciências diferem quase sempre dos que 
emprega o inventor. Deve-se à geometria a desco­
berta do cálculo infinitesimal, e todavia é por uma 
série de processos algébricos que hoj e em dia se 
chega à aplicação desse cálculo. 
O CRITÉRIO 159 
No meio de uma cadeia de montanhas se eleva 
aos ares um pico isolado, sobre o qual se avistam 
confusamente as ruínas de um antigo edifício. Um 
ousado viaj eiro forma o projecto de o subir. As 
ervazinhas suspensas nos flancos dos precipícios, n::. ; 
tronco carunchoso, uma pedra movediça, tudo lhe 
serve de ponto de apoio ; trepa, salta, arras­
ta-se, e finalmente, coberto de suor e fatigado, che­
ga ao desejado vértice ; e levantando o braço ao céu, 
exclama cheio de orgulho : " Sempre venci ! " Toda 
a cadeia de montanhas se desenrola a seus pés, os 
mais belos horizontes se abrem diante dele. O que 
só via em parte; agora o abraça e domina com uma 
só vista. Em baixo, ao longe vê os obstacúlos con­
trá os quais se quebraram seus primeiros esforços, 
e ri-se de sua inexperiência ; ao pé contempla os 
que finalmente vencera, e admira-se da própria au­
dácia. Os companheiros, muito fracos para vencer 
as inextricáveis dificuldades do caminho, não o pu­
deram seguir senão com a vista . Mas até este dia 
ficara desconhecido um atalho porque só é visível 
do alto da montanha, tem numerosos circuitos, ser­
peia e se alonga muito abaixo do plano, porém 
está ao alcance dos menos vigorosos e atrevidos ; a 
vista penetrante do viaj eiro o percebe ; é por aí que 
ele vai descer ; é por aí ·que, caminhando à frente 
oos companheiros, dizendo-lhe : segui-me ! os há-de 
conduzir sem perigo, sem fadiga, até ao vértice cuj a 
160 O CRITÉRIO 
conquista tanto lhe custara. Graças a ele, j á a 
montanha é accessível. Todo viaj eiro pode admi­
rar por sua vez as pitorescas ruínas, as vistas su­
blimes e os magníficos horizontes que dali se des­
cobrem. 
IV 
A INTUIÇÃO 
Não se j ulgue todavia que as invenções do gê­
nio sejam sempre tão laboriosas e pesadas. Uma 
de suas prerrogativas é a intuição, isto é a facul­
dade de ver sem esforços o que outrem só com tra­
balho penoso e aturado descobre. É ainda noite 
escura para os demais, e é já sol nado, para o que 
possui esta faculdade. Uma idéia, um facto apa­
rentemente insignificante, lhe revelam mil relações, 
mil circunstâncias, desconhecidas. Um ponto insig­
nificante, fitado pela vista do homem de gênio en­
grandece-se, dilata-se e distende-se como a aurora 
ao levantar do sol. Vêde ! apenasno horizonte ha­
via uma pequena nesga de luz, e j á o firmamento 
brilha com imensas madeixas de prata e ouro, tor­
rentes de fogo inundam a abóbada celeste desde o 
Oriente ao Ocidente, desde o Septentrião ao 
Meio-dia ! 
O CRITÉRIO 161 
v 
A DIFICULDADE NAO ESTA EM COMPREENDE"R, 
SENAO ATINAR. O JOGADOR DE XADREZ. SOBIESKI 
Assinalemos aqui uma particularidade notável, 
e é que certas verdades, aliás accessíveis de per si, 
só ocorrem a inteligências privilegiadas. Quando 
estas as apresentam ou as fazem advertir, a todos 
parecem tão claras, tão simples, tão fáceis de com­
preender, que se espantam por ter pass-ado tanto 
tempo sem as ter visto antes. 
Dois j ogadores de xadrez estão empenhados em 
uma complicada partida. Um deles parece desviar­
-se em insignificantes combinações ; abandona uma 
peça que teria podido defender, e parece preocupar­
-se com a defesa de um ponto que não é atacado. -
Tempo perdido ! - murmuram os circunstantes. -
A cada um seu jogo - responde o jogador - e con­
tinua como distraído. O adversário não penetrara 
suas intenções ; não vê o perigo em que está a cair ; 
de repente o j ogador inábil, o que estava perdendo 
seu tempo e peças, o ataca pelo flanco descoberto, e 
d iz com maligno sorriso : - Até que ganhei ! - Ti­
nha razão ! - exclamaram os assistentes - o que 
parece impossível é que não o houvéssemos adver­
tido. Era bem simples ! 
162 O CRITÉRIO 
Os turcos acampam em volta de Viena, e na 
"
c idade sitiada disputa-se com ardor sobre que pon­
to se poderá atacar à chegada de Sobiéski. São inu­
meráveis os planos de batalha e todos diferentes. 
Chega o herói polaco ; lança uma vista de olhos so­
bre o exército inimigo, e diz : "É meu. " No dia 
seguinte dá batalha : os turcos foram postos em de­
bandada. Viena é livre . Depois de visto o plano 
de ataque todos diziam : os turcos cometeram gran­
de erro ; o rei tinha raz.ão. A verdade oferecia-se 
a todos, todos a achavam facílima ; mas depois do 
sucesso. 
Que coisa mais simples do que o sistema de nu­
meração ? e toda via não foi conhecido nem dos gre­
gos nem dos romanos na mais alta civilização da an­
tigüidade. Que fenómeno mais simples que o da fre­
qüente tendência que têm os fluidos a pôrem-se ao 
nível, e subirem à mesma altura de onde descem ? 
Observa-se nas retortas dos químicos, em todos os 
vasos de um ou muitos tubos de comunicação. -
Não era tão fácil aplicar esta lei natural a obj ecto 
de tanta utilidade como é a condução de águas ? E 
todavia muitos séculos se passaram antes que o ho­
mem aproveitasse a importante lição que a natu­
reza todos os dias punha diante de seus olhos. 
Conhecer e utilizar qualquer relação evidente, 
mas que ao geral passava despercebida, eis um dos 
caracteres distintivos do gênio. Nenhuma dificul-
O CRI�RIO 163 
dade oferece de per si esta relação ; o que a descobre 
como que a amostra ao dedo, dizendo : Olhai ! e to­
dos os olhos parecem abrir-se ao mesmo tempo ad­
mirados de previamente a não verem. Eis por que, 
arrastados pela força das coisas, damos a esta or· 
dem de descobertas os nomes de acasos, fortuna.�, 
inspirações; dando a entender deste modo que ne· 
nhum trabalho custaram, antes se apresentaram de 
per si ao espírito. 
VI 
REGRAS SOBRE A MEDITAÇÃO 
Do que deixamos dito se pode concluir que para 
bem pensar não é bom sistema torturar o espírito ; 
antes mais vale deixá-lo em desafogo e certa liberda­
de. Medita, e parece que sem fruto algum, a mes­
ma atenção parece dormitar, afrouxa desalentado ; 
não importa, é melhor não o violentar. Durante 
estacionamento aparente, procura indício que lhe sir­
va de guia. Assim o que pretende abrir um destes 
cofres, que parecem inventados para exercer simul­
tâneamente a sagacidade e a paciência, o volteia 
muitas vezes nas mãos, apalpando com os dedos cada 
uma de suas faces e ângulos até que enfim parando 
um momento pensativo, exclama : Eis o segredo ! 
está ab-erto ! 
164 O CRITÉRIO 
VII 
CARACTER DAS INTELIGl!:NCIAS ELEVADAS. 
NOTAVEL DOUTRINA DE STO. TOMAS DE AQUINO. 
Por que será que certas verdades simples se não 
apresentam a todas as inteligências ? Como é que 
o gênero humano admira como homem extraordiná­
rio o que sabe ver certas coisas que, parece, todos 
poderiam ver como ele ? É perguntar a razão de 
um segredo da Providência ; é perguntar por que o 
Criador concede a alguns espíritos privilegiados 
grande força de intuição, ou, se assim o querem, uma 
visão intelectual imediata, por que concede a estes 
o que denega ao maior número. 
Sto. Tomás desenvolve sobre este particular uma 
admirável doutrina. Segundo o santo doutor, a fa. 
culdade de raciocinar é um sinal de fraqueza. Foi­
-nos dado o raciocínio para suprir a intuição, que é 
uma força. Os anjos compreendem e não racioci. 
nam. Quanto mais uma inteligência é elevada, me­
nor é o número de suas idéias, porque esta inteli­
gência privilegiada encerra em pequeno número de 
idéias o que as inteligências inferiores distribuem 
em maior número. Assim, os anjos de mais alta 
jerarquia abraçam, com limitadíssimo número de 
idéias, um círculo imenso de conhecimentos. 
O CRITÉRIO 165 
O número das idéias vai-se reduzindo nas inte­
ligências criadas, à medida que estas inteligências 
se aproximam do Criador, e Ele, a Idéia por exce­
lência, o Ente infinito, a Inteligência infinita vê 
tudo numa únic·a idéia, idéia simples, imensa, única, 
que é a sua mesma essência. 
Que sublime teoria ! só ela vale um livro : mos­
tra profundo conhecimento dos segredos do espírito, 
8Ugerindo-nos inumeráveis aplicações com respeito 
às faculdades do homem. 
Com efeito, os gênios superiores não se distin­
guem pela quantidade de suas idéias. Em pequeno 
número abrangem o mundo. A ave rasteira fati­
ga-se, revoluieando no mesmo terreno ; não ultra­
passa j amais as angústias e sinuosidades do vale 
natal. A águia, arrojando-se aos espaços, sobe, sobe 
sempre ; não pousa senão nos mais elevados cimos, e 
de lá contempla com a sua vista penetrante as monta­
nhas, o curso dos rios, as. vastas planícies, os verdes 
prados e as ricas messes ! 
Em todas as questões há um ponto de vista prin­
cipal, dominante ; nele se coloca o gênio. Daí do­
mina e abraça o conj unto das causas . Se ao comum 
dos homens não é dado chegar até esse ponto ao pri­
meiro tentamen, nem por isso deixa de envidar to­
dos os meios possíveis para a ele chegar. Os resul­
tados pagam centuplicadamente os esforços. Tem-se 
observado que toda 3.1 questão ou mesmo toda a ciên-
166 O CRITÉRIO 
cia, se resume em pequeno número de princípios es­
senciais, de onde todos os outros se derivam. É mis­
ter compreender estes princípios : o resto torna-se 
simples e fácil. Apresentai ao espírito os objectos 
simplificados o mais possível, e, por ·assim dizer, de­
sembaraçados de toda a folhagem inútil. Para con­
seguir multiplicar a atenção, cumpre não exigir de­
masiado dele e sabê-lo circunscrever. Este método 
facilita ·a inteligência das coisas, dá às percepções 
exactidão e lucidez, e aj uda poderosamente a me­
mória. 
VIII 
NECESSIDADE DO TRABALHO 
Das doutrinas expostas neste capítulo sobre a 
inspiração e a intuição, poder-se-á concluir que deve­
mos renunciar ao raciocínio e ao estudo e entregar­
-nos a uma espécie de quietismo intelectual ? Não, 
certamente. O trabalho € condição indispensável ao 
progresso. Na ordem intelectual, assim como na 
física, um membro que não funciona adorrrienta-se 
e perde uma porção de sua vida : o membro que não 
se move paralisa. 
Os gênios mais bem nascidos não entram plena · 
mente na posse de suas forças, senão por meio de 
tra.balho penoso e aturado. 
O CRITÉRIO 167 
A inspiração não desce sobre os indolentes, 
ex·ige par·a se produzir uma, espécie de fermcnta,ção 
de idéias e sentimentos elevados. A intuição, o ve·r 
do entendimento, exige longo hábito de olhar. A 
vista rápida, segura e delicada de um grande pintor 
não é só um dom gratuito da natureza ; este dom 
dP.ve-o em grande parte à contemplaçãoapaixonada, 
à observação, ao estudo paciente dos bons modelos. 
O divino sentimento da harmonia não se desenvolve­
ria jamais na organização ainda mais feliz com ou­
vir tão sbmente sons ásperos e . destemperados. 
CAPíTULO XVII 
O ensino 
I 
DOIS OBJECTOS DE ENSINO ; OS PROFESSORES 
Os dialécticos estabelecem distinção entre o mé­
todo de invenção e o método de ensino. Emitirei 
algumas observações sobre um e outro. 
O ensino tem dois obj ectos : 1.0 instruir os alu­
nos nos elementos das ciências ; 2.0 desenvolver suas 
faculdades, afim de que ao sair das escolas estej am 
em estado de progredir, conforme sua capacidad€, 
na carreira que haj am escolhido. 
Poder-se-ia j ulgar que estes dois obj ectos são 
idênticos ; mas não é assim. Para realizar-se o pri­
meiro basta um mestre mediocremente instruído ; 
para o segundo não são bastantes os homens de ver­
dadeiro mérito. O saber, para o primeiro caso, pode 
170 O CRITÉRIO 
hmitar-se a certo encadeamento de factos e de prin­
cípios cujo conjunto forma o corpo da ciência ; para 
o segundo é mister saber como é formada esta cadeia 
cuj as extremidades se reúnem. Para primeiro 
bastam os homens que conheçam os livros ; para o 
�egundo são necessários homens que conheçam as 
coisas. 
Não obstante, algumas vezes um professor me­
diocremente instruído pode ser mais apto para o 
ensino elementar do que um . homem de saber pro­
fundo, sendo este mais atre�to a deixar-se arrastar 
por digressões pouco compatíveis com a simplicidade 
que devem ter os primeiros princípios de uma ciên­
cia ensinada a inteligências pouco desenvolvidas. 
A explicação clara dos termos, exposição cor­
rente e simples dos elementos sobre que a ciência re­
pousa, o arranj o metódico dos teoremas e seus coro­
lários, eis o carácter especial do ensino elementar. 
Porém ao que eleva mais alto suas vistas e con· 
sidera a inteligência dos j ovens, não unicamente como 
telas onde se lançam alguns traços que aí permane­
ç·am para sempre, mas como terreno que pode e deve 
tornar-se fértil com a preciosa semente, a este in­
cumbe mais elevada tarefa, mais difícil labor. Ser 
ao mesmo tempo claro e profundo, interessar e ins­
truir, unir as combinações à simplicidade, conduzir as 
inteligências por caminhos fáceis, e ensinar-lhes ao 
mesmo tempo a vencer as dificuldades de que a senda 
O CRITtRIO 171 
das ciências está sempre erriçada, notar as dificul­
dades por que passaram os inventores, os obstáculos 
que venceram ; inspirar o gosto, o entusiasmo do belo, 
que é o esplendor da verdade ; dar ao talento a cons­
ciência de suas forças, sem sobre-excitar o orgulho ; 
animar os fracos e descobrir até na deficiência os ger­
mens do bem, tais são as atribuições do professor que 
considera o ensino elementar não como fruto, senão 
como sementeira de futuro. 
11 
Gl!:NIOS DESCONHECIDOS DOS OUTROS E DE SI 
PRóPRIOS 
Quão poucos são os professores dotados desta 
preciosa habilidade ! Mas como é possível que os haja 
no lastimoso abandono em que se acha este ramo ? 
Quem cuida em verificar se os homens encarregados 
desta nobre missão possuem, com a ciência, a eleva­
ção do espírito e do coração, o amor simpático do belo 
e da verdade ? E entretanto é sabido quão grande e 
formidável é a influência que os professores podem 
exercer sobre as jovens inteligências. Afectam, por 
assim dizer, gerações inteiras. Se o passado se nos 
mostra tão cheio de ruínas, se o presente anda tão 
p�rturbado, ser-nos-ia impossível achar a causa disto ? 
172 O CRITtRlO 
As cadeiras que às vezes são regidas por 
homens de talento, são por eles olhadas como degrau 
para subir mais acima ; tratam como distracção o que 
deveria absorver sua vida inteira, e o essencial tor­
na-se accessório. 
Assim, quando entre os j ovens aparece algum em 
cujo espírito se sente arder o fogo sagrado do gênio, 
nenhum guia o dirige, nenhum apoio aj uda seus pri­
meiros passos. Sabe ele, por ventura, quais são suas 
forças ? já as ensaiou alguma vez sob uma direcção in­
teligente e paternal ? O acaso decide de seus desti­
nos. E no entanto quantas inteligências privilegia­
das passam despercebidas ! Deixastes dormir, por 
toda uma vida, um foco fértil de luzes ; e que seria 
preciso para o acender ? apenas um sopro amigo. 
Quantas vezes dons preciosos, intelectuais ou físicos 
não têm sido revelados casualmente àquele que os pos­
suía ! Teria Hércules aprendido a servir-se da mas­
sa, se j amais não tivesse manejado senão uma cana ? 
III 
MEIOS DE DESCOBRIR OS TALENTOS OCULTOS 
E APRECIAR SEU VALOR 
Um professor de direito explica a seus alunos os 
deveres e os direitos do pai de família, e as obriga­
ções dos filhos. Para conhecer os talentos do j ovem 
b CRITÉRIO 173 
auditório, termo médio, eis como tenta a experiência : 
" Parece-vos que o coração nos diz alguma coisa rela­
tivamente aos deveres de IJUe acabamos de falar ? As 
luzes da filosofia estaráo de acordo com as inspira­
ções da natureza ? " A estas perguntas saberão res­
ponder os mais medíocres alunos, que os pais amam 
naturalmente os filhos e os filhos os pais ; e que deste 
modo os nossos sentimentos se confundem com os de­
veres, os primeiros aj udam o cumprimento dos segun­
dos. Até aqui, nenhuma diferença entre os alunos 
inteligentes e não inteligentes. Mas o mestre acres­
centa : 
- Que pensais do filho que desconhece .estas leis 
�antas de família e corresponde com ingratidões ao 
a.mor que seus pais lhe consagram ? 
- Que viola um dever sagrado ; que fecha os 
ouvidos à voz da natureza. 
- Mas como é que os filhos se tornam tantas 
vezes culpáveis para com seus pais, ao passo que, .em 
geral, só há que censurar, nestes, excessos de indu�­
gência ? 
- Os homens esquecem fàcilmente o bem que 
recebem. Os jovens caminham na estrada da vida, 
distraídos deste dever sagrado por mil ocupações di­
versas. As afeições novas que neles se geram, quan­
do chegam a ser também chefes de família, neutrali­
zam a afeição que têm a seus pais : assim cada um as­
sinalará alguma razão, mais ou menos ligada com o 
174 O CRITÉRIO 
assunto, mais ou menos sólida, sem penetrar no ín­
timo da questão. Ouvi agora uma inteligência esco­
lhida : " É certo que os filhos faltam muitas vezes 
ao que devem a seus pais ; mas se não me engano, é 
mister buscar a razão deste facto doloroso na própria 
natureza das coisas. Quanto mais o cumprimento de 
um dever é necessário à conservação dos entes e à or­
dem que os rege, tanto mais numerosas são também 
a.s garantias dadas pelo Criador ao cumprimento des­
te dever. Não obstante o mau comportamento dos 
filhos, a família e a sociedade . se perpetuam ; mas, no 
dia em que os pais se negligenciassem em prestar a 
seus meninos os cuidados indispensáveis, estaria em 
perigo a espécie humana. Eis por que os filhos, ain­
da os mais reconhecidos e ternos, não têm para com 
aqueles a quem devem a vida a ardente ternura que 
estes têm para com eles. Sem dúvida, o Criador po­
dia estabelecer de ambos os lados a mesma afeição, o 
mesmo amor apaixonado ; s·e o não fez, é porque isso 
não era necessário. Coisa notável ! as mães que pre­
cisam maior grau deste amor e ternura, o levam às 
vezes até os limites do frenesi ; parece que o Criador 
a� quis fortificar deste modo contra o cansaço que 
podem ocasionar-lhes os primeiros cuidados da infân­
cia. Portanto, se os filhos faltam a seus deveres, nãQ 
é porque tenham degenerado ; chegada a sua vez de 
serem pais, amarão como foram amados. Se o amor 
filial se quebranta com mais facilidade, e não arrosta 
O CRITÉRIO 175 
tão fàcilmente os obstáculos, é porque este amor é me­
nos intenso que o amor paternal ; é porque exerce me­
nor ascendente e predomínio sobre o coração ; é por­
que tem sobre nossas acções influência menos activa. " 
As primeiras respostas revelam apenas jovens 
inteligentes ; este revela-nos o filósofo. Deste modo. 
entre os tenros arbustos se distingue, pelo seu precoce 
vigor, o carvalho, cujos ramos um dia devem assom­
brara floresta e cuj o tronco desafiará as tempes­
tades . 
IV 
NECESSIDADE DOS ESTUDOS ELEMENTARES 
Todo o que quiser possuir uma ciência a fundo, 
deve impor-se o tirocínio dos estudos elementares. 
É sabido o peso e valor que têm aqueles.
. 
sábios 
formados pelos artigos dos dicionários e das revis­
tas, sábios que falam de tudo sem saber de nada. 
Toda a ciência, assim como toda a profissão, 
repousa sobn: um conj unto de noções primordiais 
de termos, de locuções, de princípios que lhe são 
próprios e que só nas obras elementares e especiais 
se podem aprender. À mingoa de outras conside­
raçõ·es, bastar-nos-ia esta, para mostrar os incon 
venientes de qualquer outro método que não fosse 
176 O CRITÉIUO 
este. Estes primeiros princ1p1os, estas locuções, 
estes termos consagrados, convém olhá-los -e empre· 
gá-los com certo respeito. No domínio da ciência 
é que principalmente o passado tem direito à nossa 
veneração. Se o neófito da ciência desconfia dos 
predecessores, e visa a reformar, ou mesmo a trans­
formar radicalmente o que estuda, andará pruden­
temente se inquire o que escreveram, praticaram 
e pensaram os antigos. Temerária é a empresa de 
tudo criar de per si. O que por louco orgulho re­
cusa recorrer aos trabar'.nos dos outros, arrisca-se, 
pelo menos, a perder muito . tempo. Não é raro 
que o mais hábil mecânico faça seu aprendizado na 
oficina de um modesto artista onde, ap-esar de suas 
brilhantes disp<>sições, não deixa de aprender o 
nome e manejo dos instrumentos de trabalho. Com 
o decorrer do tempo, os modificará talvez ; muda­
rá a forma, a matéria, o nome ; mas no entanto os 
aceita tais como eles são ; deles se serve até que a 
�xperiência, até que a reflexão lhe faça ver, com 
seus defeitos, os melhoramentos ae que sao :suscep­
tíveis. 
Costumam os que começam o estudo da · histó­
ria, servir-se de um compêndio ; o imortal autor do 
Discurso sobre a história universal, Bossuet, faz a 
respeito notável comparação. " Este modo de es­
tudar a história é, diz -ele, com relação às histórias 
de cada país e de cada povo, o que uma carta de 
O CRITÉRIO 177 
geografia geral é em relação às cartas particula­
res. Nas cartas particulares se vê miudamente o 
que é um reino ou uma província em si mesma ; 
nas cartas gerais aprende-se a localizar as partes 
do mundo em seu todo ; v.ê-se o lugar que Paris ou 
a ilha de França ocupa no reino, o que o reino ocupa 
na Europa, o que a Europa ocupa no mundo. " 
A comparação do mapa-múndi com as cartas 
particulares aplica-se perfeitamente ao estudo das 
ciências. Com efeito, cada ciência forma um todo 
que é mister possuir, para aprec.
iar o valor dos 
elementos que a compõem ; espécie de quadro em 
que se coordena cada parte, marcando seu valor e 
seu lugar. Verdade é que as idéias do conjunto 
são quase sempre incompletas e muitas vezes 
inexactas ; mas este inconveniente é menos grave do 
que o de caminhar como às apalpadelas, sem ponto 
de apoio, sem noções, sem nenhum guia que nos 
esclareça. Dir-se-iá que as obras elementares são 
o esqueleto da ciência. De acôrdo ; mas tal como 
é, nos poupa penosíssimo trabalho ; achando-o já 
formado, fácil nos será corrigir seus defeitos, co­
bri-lo de nervos, músculos e carne ; dar-lhe calor, 
movimento e vida. 
Entre os que hão estudado por princípios uma 
ciência, e os que, por assim dizer, colheram suas 
noções a vôo, em enciclopédias e dicionários, há 
sempre uma diferença que não é difícil de verificar. 
178 O CRITÉRIO 
Os primeiros distinguem-se pela precisão das idéias 
e propriedade na linguagem ; os outros brilham tal­
vez com abundantes e selectas notícias ; porém na 
melhor ocasião dão solene tropeço que bem mani­
festa sua ignorante superficialidade. 
CAPíTULO XVIII 
A invenção 
I 
O QUE DEVE FAZER O QUE NÃO ll': DOTADO DO 
TALENTO CRIADOR 
Creio haver dito o suficiente com respeito aos 
métodos de ensinar a aprender ; passo a tratar do 
método de invenção. À juventude sucede a idade 
madura, aos estudos elementares sucedem também 
estudos mais profundos e extensos. Chegado a tal 
ponto, pode o homem tentar mais altas empresas, 
caminhos menos trilhados. Se a natureza os não 
dotou do talento de criar, preciso lhes será contentar­
-se com o método elementar, alargando todavia o 
quadro de seus trabalhos. Nas obras magistrais en­
contrará guias e modelos. Mas não se creia, em 
todo o caso, que deve ficar condenado a cego servi-
180 O CRITÉRIO 
lismo, e que não possa afoutar-se até ao ponto de 
se pôr em desacordo com a ·autoridade dos mestres. 
Na milícia literária e científica, não é tão severa a 
- disciplina. O soldado pode dirigir observações aos 
chefes. 
II 
AUTORIDADE CIENTíFICA 
Poucos são os homens capazes de alçar e levar 
por diante uma bandeira. Mais vale alistar-se a · 
gente nas fileiras de um acreditado general, do que 
ir, miserável guerreiro, afectando a importância 
de insigne caudilho. 
Mas não se colija que somos em matéria literária 
e científica intolerante apóstolo da autoridade. 
Parece-me haver provado o contrário. Menciono 
uma necessidade para o geral das inteligências ; nada 
mais. A hera, aferrando ao carvalho a sua haste 
delgada, eleva-se com ele aos ares ; se vegetar iso­
lada, não consegue levantar-se do chão. Ademais, 
a nossa observação nada mudará ao curso das coisas ; 
é menos um conselho do que a demonstração de um 
facto. Digo um facto ; porque, apesar de nossas 
pretensões de independência, ninguém poderá negar 
que uma grande parte da humanidade caminha e 
sempre caminhará sob a conduta de alguns chefes, 
O CRITÉRIO 181 
e que estes a seu talante eonduzem pelo caminho da 
verdade ou do erro. 
É este um facto de todos os tempos e lugares, 
porque tem o seu princípio na própria natureza do 
homem. O fraco reconhece a superioridade do forte 
e humilha-se diante dele. O gênio não é o patri­
mónio de toda a espéeie humana, é privilégio de al­
guns. Tem-se notado que as massas têm tendência 
para o despotismo ; sentindo sua incapacidade para 
se dirigirem, natural e instintivamente buscam chefe. 
Ora, o que se passa na guerra e na política o vemos 
igualmente no mundo das letras. A maior parte dos 
que as profess·am são também massas, são verdadeiro 
vulgo ·que, entregue a si mesmo, não saberia como 
conduzir-se ; por isso se reúne em torno dos mais 
eloqüentes e mais hábeis. O entusiasmo penetra 
também a plebe sábia, e por isso, como a outra, 
cheia de dedicação, aplaude como chefes aqueles em 
quem vê dotes superiores de inteligência, saber e bom 
gosto. 
III 
MODIFICAÇõES QUE EM NOSSOS DIAS TEM 
SOFRIDO A AUTORIDADE CIENTíFICA 
À medida que a imprensa vulgariza prodigiosa­
mente a ciência, poder-se-ia crer que o facto de que 
182 O CRITÉRIO 
falamos havia desaparecido ; porém, não é tanto 
assim ; o que fez foi modificar-se. No tempo em 
que os chefes eram pouco numerosos e a autoridade 
se concentrava em algumas escolas, as inteligências 
disciplinadas sob uma autoridade comum se dividiam 
como exércitos, em dois ou tres campos rivais. 
Hoje em dia as coisas passam-se de modo mui dife­
rente, são mais numerosas as escolas e os chefes ; a 
disciplina acha-se mais relaxada ; os soldados pas­
sam de um para outro campo ; estes se adiantam 
um pouco, aqueles permanecem retardados ; alguns 
se separam e se empenham em escaramuças sem ins­
truções nem ordens dos chefes ; dir-se-á que os gran­
des exércitos deixaram de existir e que cada qual 
marcha para seu lado : porém não vos iludais ; os 
exércitos existem apesar desta desordem, todos bem 
sabem a qual pertencem ; , se desertam de um ir-se-ão 
reunir a outro, e, quando se vej am em aperto, todos 
tomarão a direcção de onde saibam que está o corpo 
principal para cobrir sua retirada. 
Talvez que em última análise acharemos que 
os chefes são pouco mais numerosos do que outrora. 
Formando um quadro de classificações literárias e 
científicas, fàcilmente encontraremos que em cada 
gênero são mui poucos os quelevam a bandeira, e 
que sobre seus passos se precipita a multidão agora 
como sempre. 
O CRITÉRIO 183 
No gênero dramático, no romance, não se atro­
pela a turba dos imitadores atrás de tão raras nota­
bilidades ? A política, a história, a filosofia tem seus 
mestres, cujo estilo e opiniões todos adoptam servil­
mente. Não são as escolas da independente Alema­
nha tão distintas, tão separadas como foram as de 
Sto. Tomás, de Scott e de Suárez ? Que é na França 
a turba dos filósofos universitários, senão humildes 
discípulos de Cousin ? e que é este também, por sua 
vez, senão sucessor de Hégel e de Schelling ? Os que 
pretendem ensinar a filosofia da história, fazem por 
ventura mais do que apresentar trechos e idéias de 
Guizot ou de qualquer outro chefe de escola ? Os 
que se comprazem em declamações sobre elevados 
princípios de legislação não são freqüentemente pla­
giários de Beccaria e Filangieri ? Dizem por ven­
tura os utilitários alguma coisa mais do que aquilo 
que lêm em Bentham ? Os escritores de direito 
constitucional não têm sempre na boca a Benjamim 
Constant ? 
Reconheçamos pois este facto, muito saliente 
para que se possa negar ou desconhecer. Não nos 
li sonj eemos de destruir um instinto mais forte que 
nossa vontade e mais forte que nós mesmos ; mas, 
quanto ser possa, saibamos neutralizar-lhe as más 
influências. Se a insuficiência de nossas luzes nos 
força a recorrer às luzes de outrem, seja a nossa 
submissão inteligente ! Não abdiquemos o nosso 
184 O CRIT�RIÓ 
direito de exame. O gênio do homem, por grande 
que seja, é falível. Desconfiemos de nosso entu­
siasmo, e tenhamos cautela em não conceder ou atri­
buir à criatura o que só a Deus pertence. 
IV 
O TALENTO DE INVENÇÃO. 
CARREIRA DO G�NIO 
Se o homem é capaz de se conduzir suficiente­
mente à luz do próprio entendimento, independente 
do exame das obras dos grandes mestres, e longe 
de se sentir pigmeu entre eles, se sente a eles igual, 
então convém-lhe de modo particular o método de 
invenção. Nesse caso não deve limitar-se a saber 
os livros, deve conhecer as coisas. Não são para 
ele os caminhos trilhados ; há atalhos que o condu­
zem mais depressa e mais acima. Idéias, proposi­
ções, raciocínio, tudo deve discutir, tudo analisar, tudo 
submeter a seu exame. Nada de lembranças pla­
giárias, mas observações, pensamentos, criações ; sua 
ciência deve ser a sua própria substância ! 
As regras que se devem seguir, j á as havemos 
estabelecido. É inútil, se não impossível, entrar em 
pormenores : traçar o caminho que o gênio deve se­
guir é circunscrever em alguns gestos as infinitas 
expressões da fisionomia humana. Quando virdes 
O CRITÉRIO 185 
o homem de gênio abalançar-se brioso à sua gigan­
tesca carreira, não lhe dirijais vãs palavras, estéreis 
conselhos. Dizei somente : " Imagem da Divindade, 
vai cumprir os destinos que te assinalou o Criador ; 
mas não esqueças teu princípio e fim ! Despregas 
o vôo e não sabes aonde vais ; levanta os olhos ao 
céu e pede a quem te deu o ser que te mostre Sua 
Vontade : A vontade de Deus I eis a tua grandeza, 
eis a tua glória ! " 
CAPíTULO XIX 
A inteligência, o coração e a imaginação 
I 
DIRECÇÃO E USO DAS FACULDADES DA ALMA. 
DIDO. ALEXANDRE 
Disse eu no capítulo XII que, em certos casos, 
é necessário, para chegar à verdade, exercer simul­
tâneamente muitas faculd·ades diferentes, entre as 
quais nomeei o sentimento. Efectivamente assim é, 
quando se trata de· verdades que tenham alguma re­
lação com esta faculdade, como o belo, o sublime e 
outras ; mas é certo também que esta observação se 
não aplica às verdades de uma outra ordem, às ver­
dades que em nada dizem respeito às faculdades de 
sentir. 
Se quero apreciar as belezas que V ergílio se­
meou no episódio de Dido, não é ao raciocínio que 
188 O CRITÉRIO 
eu recorro, mas ao sentimento, mas à imaginação ; 
ao passo que, para j ulgar, sob o moral, o procedimento 
desta famosa rainha de Cartago, imponho silêncio 
àquelas faculdades, e aplico friamente, com aj uda da 
razão, os eternos princípios da virtude. 
Ao ler em Quinto Cúrcio a vida de Alexandre, 
vejo com admiração o herói macedônio abalançar­
-se às aguai.l do Gr.ânico, vencer em Arabela, aniqui­
lar os exércitos do grande rei, e submeter logo o 
Oriente a seu poder. Há nestes factos certa gran­
deza, certos rasgos de heroísmo que mal apreciaria 
fechando minha alma ao sentimento. A sublime 
narração do texto sagrado ( I. Mach. , cap. I ) não se­
ria avaliada em seu justo valor por quem não fizes­
se mais que analisar com frialdade. "E sucedeu 
que Alexandre, filho de Filipe, primeiro rei mace­
dônio da Grécia, saindo da terra de Cetim, derrotou 
Dario, rei dos persas e dos medos, deu numerosas 
batalhas, conquistou todas as praças fortes e, com 
seu gládio, matou os reis da terra. Avançou até aos 
confins do mundo, apoderou-se dos despoj os das na­
ções, e a te1·ra emudeceu em sua. presença. " Quando 
se chega a esta última expressão, o livro ·cai das 
mãos, e o assombro se apodera da alma. Em pre­
sença de um homem, a terra emudece. Aqui, ana­
lisar, discutir, epilogar, não é compreender. N ão, 
certamente ; esqueço a filosofia e seus preceitos ; a 
minha imaginação se inflama ; deixo minha alma 
b CRIT!tRIO 189 
sentir ; vej o o filho de Filipe sair da terra de Cetim 
e marchar a passos de gigante até aos confins do mun­
do ; e, se o ouso dizer, ouço o silêncio da terra tomada 
de espanto, emudecer diante dele. Agora, se me pro­
ponho examinar a j ustiça e utilidade das conquistas 
do príncipe macedónio, corto as asas à imaginação, 
imponho silêncio ao entusiasmo ; esqueço o jovem 
monarca e seus imortais companheiros de armas, 
acima dos quais ele se eleva como o Júpiter da fá­
bula entre os deuses que lhe fazem cortej o ; já não 
vej o, já não escuto senão os princípios eternos da 
justiça e os direitos imprescritíveis da humanidade. 
Afasto de mim o que poderia ser grande obstáculo, 
a imparcialidade da razão ; a auréola do conquista­
dor me encobriria o agressor. inj usto, e me inclina­
ria a indulgência para com tanta glória e tanto hero­
ísmo, e lhe perdoaria que no auge da sua glória, na 
idade de trinta e tres anos, se prostre no leito e co­
nheça que vai morrer : Et post hcec deciclit in lectum 
et cognovit quia moreretur. ( Mach., li v. I, cap . I ) . 
II 
INFLU1tNCIA DO CORAÇÃO SOBRE A RAZÃO. 
CAUSAS E E:FEITOS 
É incontestável a influência das paixões sobre 
o coração ; procurarei portanto demonstrar esta re-. 
190 O CRITÉRIO 
conhecida verdade ; mas o que não há sido bastante 
observado é a influência que exercem sobre o espí­
rito relativamente às verdades que parecem nada 
ter que ver com nossas acç.ões. No entanto, talvez 
seja este um dos pontos mais importantes da arte 
de pensar, e eis por que me proponho expô-lo com al· 
guma extensão. 
Se a nossa alma fosse unicamente dotada de in� 
teligência, se pudesse pôr-se em relaç.ão com os ob­
jectos sem por eles ser afectada, sucederia que sendo 
estes obj ectos os mesmo.�., nós. os veríamos sempre do 
mesmo modo. No caso em que a vista, a distância, 
a quantidade e dir8cçào da luz são as mesmas, tam­
bém a impressão é a me.Jma ; porém, se uma destas 
condições muda, a impressão muda igualmente. O 
objecto que a excita nos parece maior ou menor, de 
uma cor m.ais ou merws viva, modifica-se ou trans­
forma-se inteiramente. A lua conserva sempre a 
mesma f).ge:;:·a, e Dão obstante nos apresenta conti­
nuamente variedade de fases ; um rochedo informe 
e desigual se nos apresenta ao longe como uma 
cúpula que coroa um soberbo edifício, e um monu. 
mento que visto ao longe é uma maravilha de arte, 
a distância se nos afigm·a uma penha irregular, lan­
çada ao acaso na encosta do monte. 
O mesmo acontece com o espírito ; os mesmos 
c-bjectos se mostram com aspectos diferentes, não 
só a pessoas diversas, mas até à mesma pessoa. Em 
O CRITÉRIO 191 
um instante, um véu se estende sobre nossos olhos ; 
muda a cena, e nós somostransportados a um outro 
mundo, tudo tomou outras formas, outras cores. 
Dir-se-ia que os obj ectos foram tocados pela vara 
de um mágico. 
O mágico somos nós mesmos, é nosso próprio 
coração ; nós é que mudamos, por isso tudo muda em 
volta de nós. Quando nos embarcamos, o porto de 
onde partimos, a praia, as casas, os montes, tudo 
parece fugir de nós, e na realidade só a embarcação 
é que se moveu. 
E note-se que esta mudança não se realiza tão 
sõmente quando a alma está comovida e as paixões 
exaltadas ; no meio de uma tranqüilidade aparente 
sofremos freqüentemente esta altéraç.ão no modo 
de sentir e j ulgar, alteração tanto mais perigosa, 
quanto menos se fazem sentir as causas que a pro­
duzem. Tem-se dividido as paixões em muitas clas­
ses, mas, ou porque esta classificação filosófica as 
não compreenda a todas, ou porque de umas se de­
ri vam outras, filhas ou transformações das primei­
ras, o certo é que quem observa atentamente a gra­
dação e variedade de nossos sentimentos, julgará 
estar assistindo às mudáveis ilusões de uma visão 
fantasmagórica. Há momentos de bonança e mo­
mentos de mau humor e momentos de bondade, mo­
mentos de dureza e de doçura, de abatimento e de 
fi rmeza, de entusiasmo e de desalento, de alegria e 
192 O CRITÉRIO 
de tristeza, de orgulho e de humilhação ; há momen­
tos de esperança e de desespero, momentos de paci­
ência e de cólera, de prostração e de actividade, de 
expansão e de recolhimento, de generosidade e de 
avareza, de perdão e de vingança, de indulgência e 
d-e severidade, de bem-estar e de indisposição, de té­
dio e de receiu, de gravidade e de leveza, de eleva­
ção e frivolidade, momentos sérios e outros cheios 
de chistes . . . Mas onde iremos p-arar ? Quem po­
deria enumerar as modificações que pode experimen­
tar a nossa alma ? Menos mudável é o mar, o mar 
açoutado pelos tufões, movido pelos zéfiros ou enru­
gado pelas brisas da manhã, ou imóvel sob uma at­
mosfera de chumbo, dourado pelos raios do sol nas­
cente, branqueado com a luz do astro das noites, mar­
chetado com as estrelas do firmamento, plúmbeo 
como o rosto d·a morte, brilhante como os fulgorel'\ 
do sol do meio dia, tenebroso e negro como a boca 
de uma sepultura. 
III 
UM Só DIA DA VIDA 
É numa bela manhã de Abril ; o sol levanta-se no 
horizonte, matizando com as tintas mais finas as 
nuvenzinhas que em torno dele flutuam nos ares, e 
em todas direcções espalha as suas madeixas de luz, 
O CRITÉRIO 193 
----- --------------------------------------
semelhante à dourada cabeleira de um menino ; os 
pássaros despertam cantando, como para festejar a 
chegada do dia. Tudo respira paz e: harmonia ; tudo 
fala de uma Providência benfazeja. 
Um homem contempla este -espectáculo e a sua 
alma expande-se às doces e reconhecidas emoções ; 
sopram-lhe favoráveis as auras da fortuna ; todos o:. 
que o rodeiam se empenham em fazer-lhe a vontade ; 
nenhuma paixão violenta inquieta seu coração, só a 
vinda da alva no céu interrompeu seu plácido sono. 
Abre por distracção um livro que tomou ao aca­
so ; é um romance como se tem escrito muitos hoj e 
em dia. " Um desgraçado maldiz a sociedade que 
o não tem sabido compreender. Maldiz a terra e o 
céu, maldiz o passado, o presente e o futuro ; maldiz 
a Deus. e a si mesmo, e cansado de ver sobre sua ca­
beça um sol sombrio e gelado, uma terra árida e de­
solada, de arrastar uma existência que pesa sobre 
o seu coração e o esmaga, o infeliz trata de pôr fim, 
à p rópria existência. Pela última vez, antes de se 
atirar ao abismo, medita sobre a natureza, sobre os 
destinos do homem, sobre as injustiças da sociedade 
e mais cousas destas". 
-- Absurdas exagerações ! -- exclama com im­
paciência o herói de que falamos. -- Sem dúvida, o 
mal existe no mundo, mas também há alguma coisa 
que não é o mal. Não ; a virtude não foi banida : 
ainda há corações nobres, estou certo disso. Gra-
194 O CRITtRIO 
ças ao céu, os grandes crimes são excepções. A 
maior parte de nossos erros e crimes provém de 
nossa fraqueza, além de que estes erros e crimes pre: 
j udicam menos a outrem do que a nós mesmos. Não ! 
a felicidade não é impossível . Embora os infortú­
nios sej am numerosos, inj usto seria imputá-los to­
dos à maldade do homem. A própria natureza daE 
coisas dá a razão destes misérias, que em todo o caso 
estão longe de ser horríveis como alguns se compra· 
zem em pintá-las. Esta literatura é falsa debaixo 
de todos os pontos de vista ! 
Dizendo isto, fecha o livro, e afastando de si os 
tristes pensamentos, abandona-se de novo às doces 
distracções que o encanto da paisagem nele desperta. 
Decorre o tempo, chega a hora das ocupações. 
O dia não será tão belo como a manhã parecia pro­
metê-lo ; o céu começa a toldar-se. O nosso opti­
mista foi chamado fora de casa ; a chuva cai a tor­
rentes, e numa rua estreita e lamacenta, um cava­
leiro que passa a trote, não atende a que deixa os 
pedestres todos enlameados dos pés até à cabeça. 
Como ! acaso por tão pouco mudaria de opiniões ! 
Não ; mas j á a vida lhe não é tão risonha, a sua filo·· 
sofia ensombrou-se como o céu. Todavia o sol não 
desaparecera para sempre, e posto que o benigno fi­
lósofo desta manhã não encomende muito caridosa­
mente o sinistro cavaleiro, nem por isso acusa ah1-
da assim a humanidade inteira. 
O CRinRlO 195 
Depois procura um amigo por causa de um ne­
gócio da mais alta importância. Recebem-no com 
frieza e dão-lhe poucas esperanças sobre a petição. 
Retira-se desanimado e trist€. As suspeitas não tar­
dam a tornarem-se em certeza. A verigúa que está 
sendo vítima de um trama odioso, que seu amigo o 
traiu. Não falta quem o lastime, quem lhe prodiga­
lize exortações e conselhos, mas ninguém trata de 
lhe ministrar auxílio ; além disso é já tarde para pre­
�aver o perigo ! 
A perda é imensa, a ruína é completa. Toda a 
t-)Sperança está para sempre perdida. Alquebrado 
pela dor, entra em casa para se entregar inteiramen­
te nos braços do desespero. O livro que lia de ma­
nhã está ainda sobre a mesa ; à sua vista lembram­
-lhe as p rimeiras impressões do dia . " Oh ! - excla­
ma ele em seu interior - quanto me enganava re­
putando em exageração as infernais pinturas que os 
homens fazem do mundo ! Não pode negar-se, têm 
razão, isto é horrível, desesperador, desalentador ; 
mas • é a realidade. O homem é um animal depra­
vado, a sociedade é uma cruel madrasta, melhor direi 
um verdugo que se compraz em atormentar-nos, que 
nos insulta e mofa de nossas angústias, ao mesmo 
tempo que nos cobre de ignomínia e nos dá a morte. 
Não há boa fé, não há amizade, não há gratidão, 
não há generosidade, não há virtude sobre a terra ; 
tudo é egoísmo, traição, mentira. Bara tanto so-
196 O CRITÉRIO 
frer, porque se nos há dado a vida ? Onde está a 
Providência ? Onde está a j ustiça de Deus ? 
Como se vê, a doce, pacífica e j udiciosa filoso­
fia da manhã trocara-se no mais atroz pessimismo 
de sentimentos satânicos. E todavia todas as coi­
sas prosseguem na sua marcha ordinária, nada se 
mudou. Não se pode dizer que a humanidade se 
tornou peor, pelo facto de um homem cair na des­
graça. Só ele é que mudou, sua maneira de sentir 
já não é a mesma. A amargura de que o seu co­
ração está cheio transborda sobre sua inteligência. 
Obedecendo às inspirações da dor e do desespero, 
vinga-se do mundo pintando-o com as mais negras 
cores. E não se creia que procede de má fé. Ele 
vê as coisas tais como as p inta, assim como de ma­
nhã as pintava tais como as julgava ver. 
Quando este homem está sepultado amargamente 
nas mais desesperadas considerações, e com a blas­
fêmia j á na boca, como última solução dos proble-
• 
mas que medita, um amigo entra eu seu quarto, e as-
sim interrompe deste modo o seu monólogo : 
- Soube, meu amigo, da traição que se tramou 
t:ontra ti. 
- Pois o mundo é isto ; é para que vej as o que 
vale a amizade. 
- Agora o que importa é o remédio. 
O CRITÉRIO 197 
- Remédio ? . . . É impossível . . . 
- Verás que não ; escuta.A notícia da tua 
infelicidade chegou ao meu conhecimento na ocasião 
em que eu tratava um negócio importante. Podes 
avaliar a profunda impressão que me causou. Pedi 
logo aos sócios para retirar meus fundos e vir-tos 
oferecer. Vê ! o exemplo do bem comunica-se 
como o exemplo do mal. Os meus amigos quiseram 
seguir-me, também te oferecem os seus recursos. 
Estudamos o negócio. É preciso que não haj a perda 
de tempo. Previne por tua actividade os manej os 
do inimigo. Nesta carteira estão as somas neces­
sárias. Adeus, amigo. 
A carteira foi cair perto do livro fatal, e tudo 
de novo tomou uma face nova. Não, a virtude, a 
amizade, o desinteresse não são palavras ôcas e so­
noras ! Na manhã seguinte, o sol se levantará puro 
e radioso, os passarinhos cantarão ao ar fresco da 
manhã a chegada da aurora. A Providência terá 
sorrisos, a vida esperanças. Em um só dia, a filo­
sofia de um homem, filosofia móvel como o seu co­
ração, descreve um círculo inteiro. Como os astros 
no céu, depois de uma revolução, ei-la chegada a seu 
ponto de partida. 
198 O CRITÉRIO 
IV 
UMA OPINIÃO POLíTICA 
Verificaram-se umas eleições em que as forças 
musculares tiveram tanto ou mais emprego do que 
o vigor do raciocínio e das convicções políticas ; ao 
menos assim o opina o partido vencido. Em vão 
a campainha do presidente lutou contra as vozes de 
estentor e os peitos de bronze ; as discussões dege­
neram em pugilato. O nosso herói não pertence 
ao partido vencedor ; teve que fugir e esconder-se. 
Em todo o caso, não acuseis sua coragem. É pre ­
ciso não esquecer as considerações de prudência e 
decoro. 
Seu amor-próprio e suas esperanças foram con­
trariadas. A bandeira liberal hasteada ao entrar 
n os comícios perdeu a cor sob a tormenta popular, 
como estes estofos de medíocre valor que não supor­
tam a prova da água. " Isto é uma triste comédia, 
iliz ele com ar de convicção profunda ; estamos dan­
do ao mundo um espectáculo de bárbaros. o· despo­
tismo tem seus inconvenientes, bem o s·ei ; mas entre 
dois males p refira-se o menor . O governo repre­
�entativo, governo da razão esclarecida e da vontad8 
livre, admiro-o eu nos tratados de direito constitu­
ci onal ou nas páginas dos jornais. Na realidade, só 
O CRITÉRIO 199 
aproveita à intriga, à impudência, à audácia. 
Estou desenganado. " 
Em conseqüência dos distúrbios, declara-se es­
tado de sítio, e domina a força militar. Desapa­
rece o motim e a cidade recobra a antiga tranqüili­
dade. O bom do eleitor toma de novo seus hábitos 
pacíficos ; renasce a segurança pública ; insensivel­
mente esquece o tumulto das eleições, as vozes de 
estentor que abafaram a sua e os perigos em que 
havia incorrido. 
No entanto, circunstâncias o obrigam a fazer 
uma viagem e precisa para isso de passaporte. 
À entrada da casa municipal há numerosa guarda 
de tropa. Vai a entrar por uma das portas, e a 
sentinela o detém bruscamente com maneiras rudes, 
pedindo-lhe explicações. Explica-se coono pode, e 
pede para que lhe permitam penetrar no interior. 
A hora adiantada urge, e ele pede instantemente 
qu e o conduzam ao empregado respectivo. Não terá 
por ventura direito a alguns favores, ele, o amigo 
da ordem, o zeloso defensor do poder ? Mas os em­
pregados inferiores, que medem sua polidez pela 
importância que se dão no tempo de crise, respon­
dem secamente : " E spere pela sua vez. " 
Chega enfim a sua vez ; o magistrado o recebe 
com desconfiança. Os cabeças do último motim são 
activamente procurados. Para que deixar a cidade '? 
O magistrado apoquenta-o com mil modos frios, 
200 O CRITÉRtO 
abaixa a cabeça e não se digna responder ao adeus 
que lhe dirige ao partir. 
Não importa. Os dissabores que ac·abamos de 
descrever não conseguiram modificar suas convic.. 
ções políticas ; não ; mas quem sabe ? Talvez j á se 
não encontre nele a mesma dedicação pelo poder 
absoluto. E' bom, diz o despeitado agora, que todo 
o governo atenda à dignidade humana, e não se 
pode pôr em dúvida qeu o governo absoluto tem certa 
rigidez que até nas últimas ramificações da admi­
nistração se faz sentir . 
Desgraçadamente o magistrado tinha levado 
muito longe as suas suspeitas. Denunciado por ele 
como homem suspeito, o nosso herói, no momento 
de subir à carruagem, é preso, conduzido à prisão, 
posto incomunicável, e, apesar das fortes presun­
ções de inocência que proélamam um exterior de­
cente, uma presença respeitável e aparências de ho­
mem pacífico, aí é retido por oito dias. Não era 
preciso tanto para bater em brecha, para arruinar 
de alto a baixo as suas novas opiniões absolutistas, 
j á fortemente abaladas pelas dec·epções anteriores. 
A brutalidade da captura, o enfado dos interroga­
tórios, o aspecto sombrio da prisão bastam para fa­
zer rej uvenescer o seu liberalismo moribundo. 
Estuda os direitos do homem, detesta o arbítrio, 
abomina o poder absoluto ; faz ardentes votos ( bem 
que baixinho e discretamente) para que a liberdade 
b CRlTtRíO 2ól 
individual, para que a constituição se torne enfim 
uma verdade. 
Hoj e é muito viva a sua fé política ; será de 
Jonga duração ? Aguardemos ; aguardemos que um 
novo motim se levante na rua entre clamorosos gri­
tos e que venham novas eleições. Difícil será que 
as novas convicções resistam a tão dura prova. 
v 
ANSELMO E AS SUAS VARIAÇõES SóBRE A 
PENA DE MORTE ( * ) 
Anselmo, j ovem dado a o estudo das altas ques­
tões de legislação, acaba de ler eloqüente discmso 
contra a pena de morte. O irreparável da condena­
ção do inocente, o repugnante e horroroso suplício, 
ainda quando o sofra o verdadeiro culpado ; a inu­
tilidade de tal castigo para extirpar ou diminuir o 
crime, tudo está pintado com vivas cores, com pin­
celadas magníficas, tudo realçado com descrições 
patéticas, com casos que fazem estremecer. 
Acha-se o j ovem profundamente comovido, crê 
meditar e não faz mais do que sentir; acredita ser 
( * ) Este parágrafo falta na tradução de João Vieira. 
Traduzimo-lo do original castelhano. (Nota do revisor) . 
202 O CRITÉRIO 
filósofo que j ulga, quando não passa de homem que 
se compadece. Em seu conceito é inútil a pena de 
mort€ ; e, ainda quando não fora inj usta, a inutili­
dade é o bastante para fazer altamente criminosa a 
�ua aplicação. É este um ponto em que há-de a so­
ciedade reflectir seriamente para libertar-se do cos­
tume cruel que lhe hão testado gerações menos ilus­
tradas. Nada deixam para desej ar as convicções 
do novo adepto ; nelas se combinam razões sociais e 
humanitárias ; segundo parece, nada fora capaz de 
comovê-las. 
Fala o j ovem filósofo sôbre o assunto com um 
magistrado de profundo saber e larga experiência, 
o qual opina ser a abolição da pena de morte uma 
ilusão irrealizável . Desenvolve primeiramente os 
princípios de j ustiça em que se fundamenta, pinta 
com vivas cores as fatais conseqüências que resul­
tariam de semelhante providência, retrata os ho­
mens desalmados zombando de toda outra pena que 
não sej a o último suplício ; recorda as obrigações da 
sociedade na protccção do fraco e do inocente ; relata 
alguns casos desastrosos em que ressaltam a cruel­
dade do malvado e os padecimentos da · vítima. 
Já o coração do j ovem novas impressões experimenta ; 
santa indignação exalta o seu peito, infl'ama-o o zelo 
da j ustiça ; identifica-se e eleva-se com a do magis­
trado a sua alma sensível ; ufana-se de dominar os 
sentimentos de compaixão inj usta, e de sacrificá-los 
O CRlTtRIO 203 
nas aras dos grandes interesses da humanidade ; e, 
imaginando-se sentado já em um tribunal, revestido 
da toga de magistrado, parece o coração dizer-lhe : 
" Sim, também tu saberias ser j usto ; também saberias 
vencer-te a ti mesmo, saberias também tu, se neceR­
sário fosse, obedecer aos impulsos da tua consciên­
cia e, com a mão no coração e a vista em Deus, pro­
nunciar ·a sentença fatal em homenagem à justiça ". 
VI 
DEVEMO-NOS PREMUNIR CONTRA AS INFLUJ!:NCIAS 
QUE O CORAÇÃO EXERCE SOBRE O JUíZO 
As disp osições da alma influem poderosamentesobre a razão. Importa não esquecer jamais esta ver­
dade. E ' esta a razão por que tão poucos homens che­
gam a subtrair-se ao espírito do seu tempo e dominar 
-as circunstând,ias particulares que sobre eles im­
peram, os p rej uízos da educação, a influência do in­
teresse pessoal ; a pôr suas acções e até seus pensa­
mentos em harmonia com as prescrições da lei di­
vina ; a compreender o que se eleva acima das re­
giões do tempo ; a preferir o futuro ao presente. 
O que impressiona nossa vista, o interesse ou a 
paixão do dia, da hora, do momento, eis o que decide 
de nossos actos e mesmo de nossas opiniões. 
204 O CRITÉRIO 
O que procura e quer possuir a verdade estude­
-se e possua-se a si próprio primeiramente ; recolha-
-se diante da sua consciência, e interrogue-se " Tua 
alma não está perturbada por alguma p aixão ? Não 
oculta em seu seio alguma paixão que o domine ? 
Não formas teus pensamentos, j uízos e conj ecturas 
sob ·a influência de recentes impressões que, modifi­
cando teus sentimentos, modifique também a forma, 
a cor, as aparências das coisas ? Pensas e vês as 
coisas há muito tempo da mesma maneira ? Não é 
desde ontem que pensas e vês assim, desde um ins­
tante talvez ; desde que um acontecimento favorável 
ou contrário mudou tua fortuna ? Adquiriste luzes 
mais intensas e novas provas, ou sõmente novos in­
teresses ? Onde se operou a mudança ? na razão ou 
nos desej os ? Parecem-te infalíveis os j uízos que 
hoj e tens ; se te colocarem em situação diferente, em 
outro tempo, j ulgarás da mesma maneira ? " 
É fácil d e V·er que este método está ao alcance 
de todos, e é o melhor para dirigir o entendimento 
e regular o procedimento. Verdade é que às vezes 
as paixões se exaltam a ponto de perverterem a ra­
zão : nesse caso o homem fica numa espécie de alie­
nação mental ; todas as regras se lhe tornam inúteis. 
Mas tal não é o efeito ordinário das paixões ; o mais 
das vezes não fazem mais do que ofuscarem a inteli­
gência ; p ermanece no fundo de nossa alma uma luz 
frouxa e vacilante, mas que se não extingue. O bri-
O CRITÉRIO 205 
lho desta luz se proporciona à nossa vigilância ; e a 
despeito das mais espessas trevas, na maior força 
da tormenta, ela é como um farol de verdade que 
nos indica o porto, uma vez que tenhamos aprendido 
a reflectir, a duvidar de nós mesmos, a não conside­
rar os afectos do coração, estes fogos fátuos, como 
guias que possam suprir a razão e conduzir-nos por 
caminhos rectos. 
VII 
UM EXEMPLO 
As paixões cegam ; verdade é esta que ninguém 
ousa contestar. Não é o conhecimento do princípio 
abstracto e vago que nos é preciso, mas sim a obser­
vação perseverante da influência das paixões., o co­
nhecimento prático e minucioso dos ef.eitos desta 
influência sobre o entendimento-. Este conhecimen-­
to só se adquire por longo e penoso exercício. E is 
por que insisto, por que multiplico os ex,emplos. 
Pois não se resume toda a filosofia em chamar a 
atenção da alma sobre si mesma ? 
Temos um amigo cujas belas qualidades nos 
encantam. Não perdemos ensej o de exaltar seu 
mérito ; não podemos duvidar de sua amizade ; as 
provas dá-as ele. Todavia, uma vez nos dá motivos 
de nos queixarmos dele : desde esse momento tudo 
muda. Nem seu espírito é tão brilhante, nem seu 
206 O CRITtRIO 
carácter tão doce, nem sua alma tão bela, nem seu 
trato tão amável, nem seu acolhimento tão benévolo ; 
temos o que lhe exprobar em todas as coisas. O gol­
pe que nos fere rasgou o véu : os nossos olhos abrem­
-se finalmente. 
E como ! haviam-nos enganado a este respeito ? 
Não : mas a amizade de ontem nos impedia o ver as 
imperfeições que nosso ressentimento hoj e exagera. 
Não havíamos imaginado que tal am igo nos pudesse 
1·ecusar um favor, testemunhar pouco desvelo para 
nos obrigar, esquecer, num momento de mau humor, 
a habitual cortesia. .Em todo o caso, se nos tivés­
semos interrogado previamente sobre a possibilidade 
do facto : " Ele é homem, teríamos nós respondido, 
sujeito às leis da fraqueza humana ; portanto a coisa 
é possível. " Para que pois hoje tanta severidade ? 
Quem o não vê ? fomos feridos. O que pensa, o que 
aprecia em nós j.á não é a razão esclarecida por factos 
novos, sim o coração irritado, ulcerado ; cremos j ul­
gar e não fazemos mais que sentir. 
Há um meio de j ulgar nosso próprio juízo. 
Imaginemos que a ofensa se não dirige a nós. As 
circunstâncias serão as mesmas, as relações igual­
mente afectuosas, igualmente íntimas entre o ofensor 
e o ofendido ; não importa ! do mesmo facto não tira­
remos as mesmas conseqüências. Reconheceremos as 
inj ustiças do amigo, censurar-lhas-emos, talvez com 
certa emoção ; descobriremos em seu carácter um 
O CRITÉRIO 207 
dt:>feito que nos era desconhecido ; mas nem por isso 
deixaremos de apreciar as suas boas qualidades ; 
não o j ulgaremos indigno da nossa estima, não serão 
menos estreitos os laços de nossa amizade. 
Se portanto as mudanças de nossa opinião po­
dem ser, como efectivamente são, não um defeito, 
um erro, uma inj ustiça ou um capricho de nosso 
amigo, mas sim um defeito, uma injustiça, um erro, 
um capricho de nosso próprio coração, convenhamos 
que o sentimento é base bem pouco sólida__ para esta­
belecer nossos j uízos. Quantas vezes bastaria, para 
os rectificar, estudar as coisas com desinteresse e a 
sangue frio ! 
VIII 
CA VILOSAS V ARIAÇóES DOS JUíZOS POLíTICOS 
Estão no poder nossos amigos políticos ou os 
que mais nos convêm, e dão algumas providências 
contrárias à lei . " As circunstâncias, dizemos nós, 
podem mais que os homens e as leis ; nem sempre 
o governo pode ajustar-se a estricta legalidade : às 
vez€s, o mais legal é o mais ilegítimo ; demais, como 
os indivíduos, os povos e os governos têm um ins­
tinto de conservação que tudo sobrepuj a, uma ne­
cessidade, a cuja presença cedem todas as considera­
ções e direitos. " 
208 O CRI�RIO 
Se os nossos amigos confessam abertamente a 
infracção da lei, logo os desculpamos com razões 
destas : "É franqueza ; a franqueza é o primeiro de­
ver dos governos. Para que se há-de enganar os 
povos ? Que de mais imoral do que um governo 
de ficções e enganos ? " Se pelo contrário iludem 
a lei por meio de uma interpretação derrisória, aber­
tamente em oposição com o espírito do legislador : 
" Tal é, dizemos, o respeito que consagram às leis, 
que se inclinam reverentes perante elas, até nas 
mais extremas necessidades. A legalidade é coisa 
sagrada ; não faz pouco o governo que, não podendo 
salvar o fundo, salva pelo menos as formas e sabe 
disfarçar o que o arbítrio tem de irritante. " 
S e eo:�tão n o poder os nossos adversârios, tudo 
muda. A violação da lei torna-se crime irremissível. 
" Respeito às leis ! as leis em primeiro lugar ! onde ire­
mos nós parar se o governo se arroga o direito de as 
infringir a seu talante ? todo o poder que viola as 
leis pretende j ustificar as suas infracções com esta 
palavra banal : a necessidade. " 
S e confessam francamente a ilegalidade : \' Isto 
é aj untar o insulto ao sacrilégio, exclamamos nós ; 
ainda se empregassem alguma dissimulação ! mas 
não ! o último extremo da impudência é a ostenta­
ção da arbitrariedade mais repugnante. Isto não 
se tolera". 
O ClUTÉRIO 209 
Quis o governo salvar as aparências conser­
vando as formas legais ? " O pior dos despotismos 
é o que se exerce em nome da lei. Por ventura 
seria a infracção menos culpável pelo facto de ser 
acompanhada de hiprocrisia ? Quando em circuns­
tâncias extremas o governo lança publicamente u:m 
véu sobre as tábuas da lei, parece por sua franqueza 
pedir perdão ao povo e "Prometer que o abuso não 
será repetido ; mas, cometer ilegalidades à sombra 
da mesma lei, é profanar, é aviltar a lei ; é abusar 
da boa fé dos povos, é abrir a porta a todas as de� 
sordens ! Quem nao respeita o espírito da lei, tudo 
pode fazer em seu nome. Basta que se interprete 
a bel-prazer uma expressão duvidosa ou ambígua, 
para audacios·amente se violarem as intenções do 
legislador." 
IX 
PERIGOS DE UMA EXCESSIVA SENSIBILIDADE. 
OS GRANDES TALENTOS. OS POETAS 
Há erros de tal modo evidentes, j uízos tão ma­
rdf.estamente impregnados de paixão, que só logram 
enganar os que querem ser enganados. 
Não é aí que está o perigo ; temam-se muito 
mais os sofismas, armados com tanta arte e adorna­
dos com tantas seduções que quase se torna impo�· 
210 O CRlTtRIO 
sível def�nder-se a gente deles. Desgraçadamente 
este perigo oculta freqüentemente na palavra e nos 
escritos dos homens superiores, como sob as mimo­
sas e perfumadas flores, o veneno qu€ causa a morte. 
Como estes homens são dotados de sensibilidade 
esquisita, as impressões que recebem, vivas, pro­
fundas, apaixonadas, decidem soberanamente da 
direcção de suas idéias e opiniões ; sua inteligência 
penetrante fàcilmente encontra razões €fi apoio da 
causa que adoptaram ; fascinam o vulgar das inteli ­
gências e as dirigem a seu gosto. 
Esta será sem dúvida a causa da volubilidade 
que se nota nos homens de reconh�cido gênio. 
Adoram hoj e o que amanhã detestarão ; o erro que 
ora condenam o defendiam ontem como dogma sa­
grado. Na mesma obra, associam as mais encon­
tradas proposições, ou estawlecem conclusões incon­
ciliáveis com os princípios p ostos. Não imputeis 
à sua intenção estas estranhas anomali'as ; susten­
tam o pró e o contra com a mesma convicção, e 
tal convicção a tiram eles da exaltação de um sen ­
timento. Quando seu gênio se desentranha em ima­
gens, em pensamentos grandiosos, não é mais do que 
escravo do coração, porém escravo hábil, engenhoso, 
que corresponde aos caprichos do senhor oferecen­
do-lhe obras primorosas, maravilhas de arte. 
Os poetas, os verdadeiros poetas, estes homens 
dotados pelo Criador de inteligência elevada, ima-
O CRITÉRIO 211 
ginação poderosa, almas de fogo, são os mais atrei­
tos a se deixarem levar por estas impressões de mo­
mento. Colocados embora nas altas regiões do p c· - .. 
samento, não lhes é absolutamente impossível mo­
derar seu vôo e j ulgar com prudência e discerni­
mento ; mas é inegável que �ecisam de reflexão e 
decidida força de vontade mai� do que o geral dos 
homens. 
IX 
NECESSIDADE DE TER IDÉIAS FIXAS 
As reflexões precedentes mostram a necessidade 
de ter idéias fixas e opiniões formadas sobre as prin­
cipais matérias ; e, quando isto não seja dado, muito 
importa abstermo-nos de as improvisar e nos abando­
narmos às inspirações repentinas . Tem-se dito : os 
grandes pensamentos vêm-nos do coração ; acrescen­
temos : e também os grandes erros. - O coração não 
reflecte nem j ulga ; sente. O sentimento é uma 
mola chei·a de potência que põe em movimento e mul­
tiplica as faculdades da alma ; quando a inteligência 
está de posse da verdade, quando s·egue por bom ca­
minho, os sentimentos nobres e puros aumentam 
suas forças e aceleram seu impulso ; do mesmo mo­
do que os sentimentos ignóbeis ou depravados podem 
extraviar o entendimento mais recto. Até os sen-
212 O CRI'rnRIO 
timentos bons, exaltados em demasia, são capazes 
de nos conduzir aos erros mais deploráveis. 
XI 
O POETA E O MOSTEIRO 
Um viajeiro poeta, indo a atravessar uma so­
lidão, ouve o toque de um sino que o distrai das 
meditações em que estava absorvido. Não obstan­
te sua alma não estar acostumada ao ensino e prá­
ticas da fé, era no entanto accessível às inspira­
ções religiosas. Esta plangent-e voz do bronze no 
meio do deserto lhe comunica indizível melancolia, 
grave e severa. Em seguida avista através da ra­
magem de grandes carvalhos, e como oculta em 
sua sombra, a casa de paz em que a inoc ência ou 
o arrependimento encontram ·asilo contra as vãs 
agitações do mundo. Aproxima-se, e pede com res­
peito e curiosidade que lhe permitam entrar na santa 
habilitação. Um velho, cuj a fisionomia transpira 
a paz e serenidade, o recebe com doce e simples 
cordialidade ; condu-lo à capela, aos claustros, à 
biblioteca, a toda a parte em que o viaj eiro pos­
sa achar inter.esse de ciência e de prazer. Ser­
v-e-lhe de guia o velho monge. Em sua conversação 
dá p rova de bom gosto e saber, mostra-se tolerante 
para com as opiniões do estrangeiro, sorri docemente 
O CRITÉRIO 213 
aos seus gracej os e só o deixa para ir modesto e gra­
ve onde os seus deveres o chamam. Está docemente 
movido o coração do poeta ; o silêncio dos claustros, 
oomente interrompido pelo cântico dos salmos, os ob­
j ectos piedosos que a c:ada passo se llle apresentam, 
o recolhimento e a paz que, por assim dizer, descem 
das abóbadas silenciosas, com a luz escassa coada 
através das vidraças, as amáveis qualidades, a bonda­
de, a condescendência do velho que o acolhe, tudo 
o penetra com um sentimento profundo que não sabe 
definir ; acha-se subj ugado : Cristo venceu. Bem a 
seu pesar chega o momento de partir ; afasta-se pen­
sando no mosteiro e levando consigo gratas lembran­
ças que por muito tempo viverão em seu pensamento. 
Se em tal situação de espírito compraz ao nosso 
poeta intercalar em suas relações de viagem algumas 
reflexões sobre os institutos religiosos, que vos pa­
rece que dirá ? E' bem claro. Para ele as instituições 
monásticas ser.ão personificadas naquele mosteiro, e 
o mosteiro personificado no venerando velho, cuj a 
imagem e lembrança tem presente ao espírito. Contai 
com algumas estrofes eloqüentes em favor das ordens 
religiosas, anátemas contra a filosofia que as conde­
na, imprecações contra as revoluções que as destruí­
ram, lágrimas derramadas sobr·e as ruínas e sobre 
os túmulos. 
Mas, ai do mosteiro e de todas as instituições 
monásticas se o monge que recebera o nosso viaj eiro 
214 O CRITtRlO 
fosse de conversação seca e severa, pouco afeiçoad'J 
a belezas literárias e artísticas e de humor nada bom 
para acompanhar os curiosos ! Aos olhos do poeta, 
o monge desagradável seria a personificação do ins­
tituto ; e, em castigo de o haver recebido mal, acusa­
do de abater o esp·írito e o coração, apartar os homens 
da sociedade, produzir inumeráveis males e nenhum 
bem. 
E no entanto, em qualquer das suposições, a rea­
lidade das coisas permaneceria a mesma. A diferença 
estaria tão sõmente no acolhirr.ento frio ou benévolo 
que por acaso o viajeiro encontrasse no instituto vi­
sitado. 
XII 
DEVERES DO ESCRITOR, DO POETA, DO ORADOR 
E DO ARTISTA 
Teríam'os que desenvolver aqui considerações de 
alta gravidade sobre o emprego do talento de escre­
ver, sobre a dignidade da arte em geral, e principal­
mente sobre a elevada missão das artes que, servindo­
-se das paixões como de auxiliar, reagem por meio de 
coração sobre a inteligencia. A pintura , a escultura, 
a música, a poesia, todos os ramos da literatura têm 
deveres sagrados que freqüentemente se esquecem. 
A verdade e o bem ; a verdade para o espírito, o bem 
O CRITéRIO 215 
para o coração, ei� os dois obj ectos essenciais da arte, 
eis o ideal que as artes devem oferecer ao homem por 
meio das impressões que despertam. Esquecendo sua 
missão e limitando-se tão sõmente à simples produção 
do prazer, tornam-se estéreis para o bem e fecundas 
para o mal. 
Pôr a arte ao serviço das paixões más ! Não 
foi para isso que o artista reoebeu do Criador os pri­
vilégios sagrados do gênio ! O orador que se serve 
do encanto de sua palavra, que outra coisa é senão um 
víl envenenador ? - tanto mais vil, mais odioso, 
quanto os meios que emprega são mais pérfidos e 
menos se podem garantir. Se a convicção deve ser 
um erro, o persuadir é uma traição. Parecerá se­
vera esta doutrina, mas é verdadeira. É a lingua­
gem da razão submetida às prescrições da lei eterna 
que também é severa, porque é imutável e j usta. 
Os artistas, os poetas, os oradores, os escritores 
que desviam de seu fim os dons que receberam, são 
verdadeira peste pública. Faróis enganadores, acen­
didos sobre escolhos, perdem aqueles a quem deviam 
alumiar ; devem mostrar o porto e mostram o abismo. 
Não terão as nações modernas desconhecido os 
seus verdadeiros interesses fazendo reviver a elo­
qüência popular com queas antigas repúblicas tanto 
tiveram que sofrer ? Nas grandes assembleias em 
que se debatem os negócios do estado e os grandes 
216 ú CRITiRlO 
------ - - ·--·-------------
interesses da sociedade, nenhuma voz devia ser es­
cutada senão a voz do bom senso, a voz da razão 
judiciosa, austera e clara. A verdade não é menos 
verdade, a realidade das coisas não muda, por isso 
que um orador hábil, excitando o entusiasmo, arras­
ta o voto de uma maioria seduzida. O que se de­
fende ou impugna é ou não é útil ; ai está a questão ; 
o resto não passa de brinco de meninos em que são 
envolvidos os mais graves interesses, muitas vezes 
sacrificados ao vão prazer de ostentar talentos ora­
tórios, e arrancar aplau.'!os. 
Tem-se observado que as assembleias deliberan­
tes, mormente no começo d·as revoluções, são muitas 
vezes como tocadas por um espírito de invasão e se 
inclinam a resoluções violentas. As discussões, a 
princípio plácidas e moderadas, tomam repentina­
mente feições perigosas ; excitam-se os ânimos, obs­
curecem-se as inteligências, apodera-se dos espíritos 
a exaltação, a exaltação. que vai até ao delírio. Con­
sultai, interrogai em particular até um dos membros 
da ass0mbleia ; em graus diferentes todos compre­
endem, amam e buscam a verdade ; como é q,ue en­
tão a assembleia parece uma reunião de homens no 
estado de demência ? Eis a razão. A impressão 
de momento domina tudo, venc·e tudo, arrasta tudo ; 
esta impressão apaixonada, ardente, propaga-se pela 
simpatia com a rapidez da electricidade ; adquire 
progressivamente uma força irresistível, e a centelha 
O Cti.ITtRIO 217 
torna-se em alguns segundos em espantosa confla­
gração. 
O tempo, os desenganos, a experiência e a des­
graça instruem algumas vezes os povos. Sua sensibi­
lidade, como no indivíduo, se embota ; a fascinação da 
palavra torna-se menos temível para eles. Triste re­
médio que não cura o mal senão pelo excesso do mal. 
Enfim, como nos não é dado mudar o coração do ho­
mem, tributemos os nossos respeitos àqueles que ao 
serviço da j ustiça e da verdade empregam as armas 
que tantos outros têm posto ao serviço do erro e do 
mal. Ao lado do veneno costuma a Providência colo­
car o antídoto . 
XIII 
PENSAMENTOS REVESTIDOS DE IMAGENS. 
FONTE DE ERROS 
Os erros do sentimento não são os únicos contra 
que nos tenhamos de premunir ; há outra espécie de­
les, menos temidos, talvez, e não menos perigosos : 
são os pensamentos revestidos de imagens brilhantes. 
É indizível o poder dos artifícios da linguagem e o 
perigo que podem ocultar. Um pensamento superfi­
cial, apresentado com traj e grave e filosófico, adquire 
a aparência da profundeza. Uma trivial vulgaridade, 
nobremente ataviada, chega a disfarçar seu plebeís-
218 ú CRIT:éRiú 
mo ; e tal proposição falsa que, secamente enunciada, 
mostraria logo a sua falsidade, coloca-se, graças ao 
véu engenhoso com que a cobrem, entre as verd·ades 
incontestáveis. 
Os escritores profundos, sentenciosos, ou que 
visam à profundeza, freqüentemente oferecem este 
defeito. Como a sua palavra é escutada com tanto 
mais assentimento e respeito, quanto mais parecem 
profundamente convencidos, segue-se daí que o leitor 
toma por axiomas inabaláveis, por máximas de eter­
na verdade, o que não é às vezes senão o sonho 
do filósofo, um l'aço armado à boa fé dos imprudentes. 
CAPíTULO XX 
Filosofia da história 
I 
FILOSOFIA DA HISTóRIA ; O QUE :1!:. 
DIFICULDADES DESTA CI:I!:NCIA 
Consideramos aqui a história, não sob o ponto de 
vista crítico, mas sim sob o ponto de vista filosófico. 
Os princípios que nos devem guiar na crítica dos 
factos foram expostos no capítudo XI. 
Qual é o método mais a propósito para compre· 
ender o espírito de uma época, formar idéias claras 
e exactas sobre o seu carácter, penetrar as causas 
dos acontecimentos e assinalar a cada um seus pró­
prios resultados ? Isto equivale a perguntar qual é 
o método conveniente para se adquirir a verdadeira 
filosofia da história. 
220 O CRITÊRIO 
-- --- - - ----- - -- - · · - · ·--------------
Será com a lição dos bons autores ? mas quais 
são eles ? quem nos assegura de que os não guiara a 
paixão ? quem há-de ser o fiador de sua imparciali­
dade ? onde estão os historiadores euj os escritos en­
sinem ou contenham a filosofia da história ? 
Batalhas, negociações, intrigas da corte, vida e morte 
dos príncipes, mudança de dinastias ou de governos ; 
eis o fundo comum de todas as narrações históricas. 
Do indivíduo, de suas idéias, sentimentos, necessi­
dades, gostos, caprichos, costumes, nem palavra ; 
nada que nos faça assistir à- vida íntima das famí­
lias e dos povos ; nada que no estudo da história nos 
faç·a compreender a marcha da humanidade. 
Sempre na política, isto é, na superfície ; sempre no 
a v ultado e ruidoso, jamais nas entranhas da socie­
dade, na natureza das coisas, naqueles sucessos que, 
por Tecônditos e de pouca aparência, não deixam de 
ser da maior importância. 
Na actualidade conhece-se esta lacuna e traba­
lha-se para a pl'eencher. Não se escreve a história 
sem que se procure filosofar sobre ela. Ora isto, 
que em si é muito bom, tem outro inconveniente, 
qual é, que em vez da verdadeira filosofia da história 
se nos propina não raro a filosofia do historiador. 
Mais vale não filosofar que filosofar mal ; se para 
profundar a história a transtorno, melhor fora que 
me limitasse ao sistema de nomes e datas . 
O CRITÉRIO 
II 
UM MEIO DE PROGREDIR NA FILOSOFIA DA 
HISTóRIA 
221 
É mister ler os historiadores, e à míngua dos 
bons, áqueles que tenhamos, não obstante seus de­
feitos. Mas isso não basta. Há um método que 
mai s seguramente conduz ao fim : o estudo imediato 
dos monumentos ; digo imediato, porque cumpre não 
se contentar com o que deles diz a tradição falada 
ou escrita, mas sim vê-los com os próprios olhos. 
Dir-me-ão que tal trabalho é penosíssimo ; im­
possível para muitos ; difícil para todos. De acordo ; 
e todavia ouso afirmar que em muitos casos este 
método poupará muito tempo e fadiga. A vista 
de um edifício, a leitura de um documento original, 
um facto, uma palavra, na aparência insignifican­
tes, e passados despercebidos ao historiador, nos 
dizem mais, nos falam com mais clareza, verdade 
E' exactidão, que as mais longas narrações. 
Um historiador quer, por exemplo, pintar a 
simplicidade dos costumes patriarcais : com muita fa­
diga e cuidado recolhe abundantes notícias sobre os 
tempos mais remotos, e esgota o cabedal de sua eru­
dição, filosofia e eloqüência para fazer compreen­
der o que eram aqueles tempos e aqueles homens, e 
222 O CRITÉRIO 
me oferece o que se chama uma descrição completa. 
Apesar de quanto nos diz, encontro outro meio mais 
simples, qual é assistir às cenas onde se me apre­
senta em movimento e vida o que trato de conhecer. 
Recorro aos escritores daquelas épocas, que não são 
muitos nem muito volumosos, e aí encontro retratos 
fiéis que me deleitam e instruem. A B íblia e Ho­
mero nada deixam a desej ar. 
111 
APLICAÇÃO DESTES PRINCíPIOS A HISTóRIA DO 
ESPíRITO HUMANO 
O espírito humano tem a sua história, assim 
como a têm os sucessos exteriores. História tanto 
mais preciosa, quanto nos deve revelar o fundo de 
nossa natureza e as causas que sobre ela podem obrar. 
Muito se tem escrito sobre as diversas escolas que 
pertencem ao domínio da filosofia, e sobre o carácter 
� tendências do espírito humano em certas épocas 
Assim não faltam os historiadores de inteligência ; 
porém, se quereis saber mais que algumas generali· 
dades sempre incompletas e não raro totalmente 
falsas, preciso vos será aplic·ar a regra estabelecida : 
ler os autores da época que se pretende conhecer. 
Mas não se entenda que é preciso lê-los todos ; este 
O CRITÉRIO 223 
método seria impraticável para o geral dos leitores ; 
uma só página origin'al nos dará a conhecer mais 
ao vivo o espírito de um escritor, o espírito de uma 
época, que o mais minucioso historiador. 
IV 
EXEMPLO TIRADO DA FISIONOMIA DO HOMEMUm homem estudioso pode, sem ter visto as 
coisas de per si, chegar a conhecimentos históricos . 
Todavia vão longe destes conhecimentos aqueles que 
chamaremos intuitivos. Sabe mas não viu. Estará 
em estado de contar, mas não saberá p intar. Expli­
quemo-nos por meio de uma comparação. Fala-se 
de um personagem importante que não conhecemos ; 
e, curioso de saber alguma coisa da figura e ma­
neiras deste personagem, indagamos dos que o viram. 
Dir-nos-ão, por exemplo, que ele é de estatura mais 
que regular ; que tem a fronte larga e descoberta, 
cabelos negros caindo com certa negligência, olhos 
grandes, vista penetrante e viva, o rosto pálido c 
cheio de expressão ; que freqüentemente mostra nos 
lábios amável sorriso, sorriso às vezes malicioso ; 
que sua palavra é grave e pausada, mas que, logo 
que se anima, se torna rápida, incisiva, cheia de 
fogo. Deste modo, para nos darem uma idéia tão 
224 O CRlTtRIO 
aproximada como possível da realidade, fazem-nos 
um retrato físico e moral. 
Se estas indicações são exactas, se o retrato se 
parece com o original, temos uma idéia da pessoa 
e estamos nos casos de satisfazer por nossa vez a 
curiosidade doutrem. Mas será o nosso conhecimen­
to perfeito ? Poderemos pelo esboço criar uma ima­
gem exactamente semelhante à realidade ? Supo ­
nhamos que efectivamente um pintor de talento se 
propõe reproduzir esta imagem na tela ; apresentará 
retrato parecido ? 
Se nos falam circunstanciadamente da fisiono­
mia de uma pessoa, logo nossa imaginação cria uma 
figura que cremos como copiada do modêlo. Ao 
aparecimento do original, vemos tão grandes dif•' . . 
renças, que somos forçados a retocá-la em mil traços 
essenciais, ou a fazer de novo a obra de nosso pen­
samento. É que há coisas de que se não pode for­
mar idéia clara e precisa, independentemente de as 
ver com os olhos, e estas coisas são mui numerosas 
e sumamente delicadas, imperceptíveis em separado, 
e cuj o conj unto forma o que chamamos fisionomia. 
Como explicareis vós a diferença de duas pessoas 
muito parecid·as ? Por meio da vista, não há outro. 
Não sereis capazes de dizer em que duas pessoas di­
ferem ; todavia, há entre elas não sei quê que não 
permite que as confundamos ; este não sei quê vê­
-se, não se pode definir. 
O CRITÉRIO 225 
Eis meu pensamento : nas obras de crítica, en-· 
contramos descrições sábias, extensas, escrupulosas, 
mesmo exactas, do estado do espírito humano em 
certas épocas ; e, todavia, apesar das descrições não 
logramos conhecer estas épocas. Se depois da lei­
tura de um livro deste gênero, submetemos à nossa 
apreciação fragmentos tirados de diferentes aub ­
res e escritos em épocas diferentes, não saberemos 
classificá-los segundo suas datas, nem a que autorefl 
pertencem. Em vão evocamos as idéias e aprecia­
ções que a tal respeito havíamos recolhido, não fl­
camos menos arriscados a cair em equívocos 
grosseiros e nos mais estranhos anacronismos. 
Quanto não seria menor a dificuldade, se tivéssemos 
lido, se tivéssemos -estudado os originais ! Bem pode 
ser que· mostrássemos menos erudição, crítica menos 
sábia ; o que ousamos afirmar no entanto é que nossos 
j u ízos lograriam ser mais nítidos e decisivos . " Os 
pensamentos, diríamos nós, o estilo, a linguagem, reve 
Iam-nos um escritor de tal época. Este fragmento 
é apócrifo, este outro tem o cunho de outro tempo " ; 
e assim os iríamos classificando com acerto, sem 
medo de nos enganarmos, bem qu e nem sempre 
pudéssemos explicar o porquê de nossos j uízos àque­
les que , como nós, não tivessem freqüentado e visto 
com os próprios olhos esses ilustres defuntos. 
" Como é que encontramos aqui tal qualidade ? 
e como é que não encontramos uma outra ? É-nos 
226 O CRITtRIO 
impossível, diríamos nós, satisfazer a todos os es­
crúpulos ; mas o que podemos afirmar é que os per­
sonagens de que se trata nos são perfeitamente co­
nhecidos. .. Como se diria : " Não me posso enga, 
nar sobre sua fisionomia ; vi-os muitas vezes . .. 
CAPfTULO XXI 
Religião 
I 
INSENSATOS RACIOCíNIOS DOS INDIFERENTES EM 
MATI:RIA DE RELIGIÃO 
Não pretendo apresentar aqui um tratado com­
pleto de religião ; bastará ao plano que me propus 
fazer umas reflexões tendentes a dirigir o entendi­
mento nesta importante matéria, e espero que 
estas reflexões provem até à evidência que os indi­
ferentes ou incrédulos são maus pensadores . 
A vida é curta, a morte certa ; daqui a poucos 
anos o homem que hoje desfruta a saúde mais ro­
busta e louçã, haverá descido ao túmulo, e saberá 
por experiência o que há de verdade nos ensina­
mentos da religião sobre os destinos da vida fu-
228 O CRITÉRIO 
tura. Nem sua incredulidade, nem suas dúvidas, 
nem suas invectivas e sátiras, nem sua indiferença, 
nem seu insensato orgulho destroem a realidade dr:. ·:: 
coisas. Se existe outro mundo, onde se darão prê­
mios aos bons e castigos aos maus, não deixará de 
existir, por isso que ao homem compraz negá-lo ; de­
mais, esta caprichosa negativa não melhorará o des­
tino que segundo as leis eternas me haj a de caber. 
Quando soar a última hora, forçoso me será morrer 
e encontrar-me com o nada ou com a eternidade. 
Este negócio é exclusivamente meu ; ninguém se 
porá em meu lugar na outra vida privando-me do 
bem ou livrando-me do mal. Estas considerações 
me mostram, com toda a evidência, a máxima im­
portância da religião ; a necessidade que tenho de sa­
ber o que nela há de verdade. O homem que diz : 
" Não me importa saber ! ou sej a verdade ou men­
tira, não quero pensar nisso ! " não é uma criatura 
bem insensata ? 
Um viaj eiro encontra em sua rota um caudalo­
so rio que precisa atravessar. Poderá passar a 
vau ? Não sabe. Como ele muitos viaj eiros para­
dos na margem ponderam a profundidade das · águas 
e são acordes em declarar que uma morte certa es­
pera o imprudente que ousar atravessá-lo. Que me 
importam essas questões ? diz o insensato ; e se ar­
roj a ao rio, sem olhar por onde. E is-aqui o indife­
rente em matéria de religião. 
O CRITÉRIO 229 
II 
O INDIFERENTE E O Gf::NERO HUMANO 
A religião sempre foi e ainda é a preocupaçã0 
geral d·a humanidade. Os legisladores fizerarn dei� 
a base de suas constituições ; os sábios tomaram-na 
por obj ecto de seus -estudos mais profundos ; os mo­
numentos, as leis, os escritos dos séculos passados 
atestam as tendências religiosas do espírito huma­
n o ; as obras teológicas enchem as bibliotecas, e ain­
da hoj e em dia a imprensa não cessa de as multipli­
car. Mas eis o parecer do indiferente : " T empo 
perdido ! diz ele, questões fúteis ! Para j ulgar, que 
preciso eu conhecer ? Estes sábios são uns insen­
satos, estes legisladores são uns néscios, a human i­
dade inteira é uma miserável ilusa, todos perdem 
lastimosamente o tempo em questões que nad'a im­
portam. " Oh ! orgulhosa fraqueza ! deplorável degra-­
dação do espírito humano ! Parece-me ver os sá­
bios e legisladores de todos os tempos levantarem-se 
e responder : " Quem és tu para assim nos ultraj ar, 
para desprezar os mais profundos sentimentos do 
coração, as mais queridas tradições da humanida­
de, para declarar sem importância o que sem�foi 
·a .p-reocupação da terra inteira ? Quem és tu ? Des-
230 O CRITÉRIO 
cobririas por ventura o segredo de vencer a morte. 
pó que o vento dispersará amanhã ? Sabes a sorte 
que te espera na região desconhecida, ou esperas 
poder mudá-la a teu bel-prazer ? São para ti coisa 
indiferente o castigo ou a recompensa ? E se exis­
tir esse j uiz, de quem não queres ocupar-te, quando 
te chamar perante seu tribunal responder-lhe-ás que 
não te importas de suas determinações e existência ? 
Antes de soltar ess·as palavras insensatas, passa 
uma vista sobre ti mesmo, pensa nessa débil orga­
nização que o mais débil acidente é capaz de trans­
tornar, e que breve tempo basta para consumir ! 
Assenta-se então sobre um túmulo, concentra-te e 
medita ! 
III 
PASSAGEM DA INDIFERENÇA AO EXAME 
Curado o pensador da doença do indiferentis­
mo, convencidode que a religião é o mai& ponderoso 
interesse da vida, deverá prosseguir ainda e · racio­
cinar assim : Será provável que todas as religiõE>s 
não sej am mais que um montão de erros, e que a 
doutrina, que as rejeita a todas, seja a verdadeira ? 
Deus ! eis o que todas as religiões estabelecem 
ou supõem em primeiro lugar. Há um Deus ? O 
0 CRITÉRIO 231 
t��iverso foi criado- e por quem ? Levanta os olhos 
ao céu, distende a vista pela face da terra, e_stud�te. 
�Ui _mesmo, e, vendo em tudo uma ordem e' grandeza 
admirável, dize, se assim o ousas : "O acaso é que 
fez o mundo, eu sou obra do acaso ; <i obra me es­
panta, porém o obreiro não existe ; o edifício é ad­
mirável, mas construiu-se a si mesmo e sem arqui­
tecto. Reina a ordem sem ordenador, sem sabedo­
ria para conceber o plano, sem poder para exe­
cutá-lo . ., Este raciocínio que é manifestamente ab­
surdo, ainda quando se aplica às obras mais insig­
nificantes, será admissível quando se trata das estu­
pendas maravilhas do universo ? Loucura nas obras 
do homem ! Sabedoria nas grandes obras de Deus ! 
IV 
NÃO É POSSíVEL QUE TODAS AS RELIGiõES SEJAM 
VERDADEIRAS 
São muitas e muito várias as religiões que do­
minam nos diferentes pontos da terra. Será possí­
vel que todas sej am verdadeiras ? O sim e o não, 
com respeito a uma coisa, não podem simultânea­
mente ser a verdade. Os j udeus ainda esperam o 
Messias ; os cristãos afirmam que j á veio à terra e 
cumpriu a missão que tinha de cumprir. 
232 O CRIT:éRlO 
Os mussulmanos proclamam Maomet como gran­
de profeta ; os cristãos acusam-no de impostor. Os 
católicos admitem a infalibilidade d'as discussões da 
Igrej a em matérias de dogma e de moral ; os protes­
tantes negam esta infalibilidade. Ora, a verdade 
não pode ser e deixar de ser ao mesmo tempo : ou 
uns ou outros se enganam. Pretender que todas as 
religiões são verdadeiras é portanto um absurdo . 
Ainda mais ; todas as religiões se proclamam desci­
das do céu. A que conseguir provar esta origem 
essa será a verdadeira ; as outras não passam de 
ilusão e engano. 
v 
É IMPOSSíVEL QUE TODAS AS RELIGI6ES SEJAM 
IGUALMENTE AGRADA VEIS A DEUS 
Será possível, que todas as religiões, que todos 
os cultos sejam agradáveis a Deus ? Mas a Verda­
de infinita não pode amar o erro ; mas o mal não 
pode agradar à infinita Bondade. Afirmar, por­
tanto, que todas as religiões são igualmente boas, 
que por meio de um culto, qualquer que ele sej a, o 
homem preenche seus deveres para com Deus, é blas­
femar da verdade, é insultar a sabedoria e bondade 
do Criador. 
O CRITÉRIO 233 
VI 
É IMPOSSíVEL QUE TODAS AS RELIGióES SEJAM 
INVENÇÃO HUMANA 
" Filhas da superstição, do interesse ou do 
método, todas as religiões, diz o incrédulo, são in­
venções humanas. " E quem foi o inventor ? A ori- j ' i 
gem das religiões perde-se na noite dos tempos. Por : 
toda a parte aonde chega a sociedade dos homens, aí 
vemos também aparecer lh'-1 sacerdote, um altar, um 
culto. Quem foi pois este gênio inventor cuj o nome 
se apagou da memória dos homens, e do qual as ge­
rações, por toda a face da terra, transmitiram as 
. doutrinas ? Se a invenção teve origem num povo 
· civilizado, como é que os povos bárbaros e até os sel­
vagens a adaptaram ? E, se a barbaria foi seu berço, 
então como entrou no coração das nações cultas ? 
Di reis :" A religião é uma necessidade, data das 
mais antigas sociedades ." Mas a quem foi revelada 
esta necessidade ? Quem primeiro achou os meios 
de corresponder a este profundo instinto ? por quem 
foi concebido este sistema tão próprio a domar e d i­
rigir o homem ? e uma vez feito o descobrimento, 
quem teve em sua mão todos os entendimentos, to­
dos os corações para lhes comunicar essas idéias e 
sentimentos que fizeram da religião uma verdadeira 
234 O CRitiRIO 
necessidade, e, para assim dizer, uma segunda na­
tureza ? 
As descobertas mais úteis e necessárias perma­
necem, por séculos, privilégio de certos povos ; ainda 
com auxílio das relações, só se transmitem com ex­
trema lentidão, mesmo às nações mais vizinhas ; por 
que não se deu o mesmo com a religião ? Como é 
que, desta maravilhosa invenção, todos os povos ti­
veram conhecimento, sem distinção de língua, de 
costumes, país, de clima, de civiliz:ação ou barbaria ? 
Aqui não há meio termo. O u a religião proce­
dt- de uma revelação primitiva ou de uma inspira­
ção da natureza. Se há revelação, Deus f•alou ao 
homem ; se não há, escrevera Deus a religião no fun­
do de nossa alma. Não ; a religião não é invenção 
humana ; e, posto que, em diferentes séculos, em di­
ferentes países, esta filha do céu tenha sido desfigu­
rada, aviltada, desacreditada, conserva sempre algo 
de sua origem imortal. Nossa alma a guarda como 
celeste perfume. No meio das monstruosidades que 
nos apresenta a história, não deixam de ser visíveis 
os vestígios de uma revelação primitiva. 
VII 
A REVELAÇÃO É POSSíVEL 
É possível que Deus haja revelado ao homem cer­
tas verdades ? Tanto vale perguntar se aquele que 
O CRIT�RIO 235 
nos deu o dom da palavra, o Verbo unido à inteli­
gência, é inferior à obra de suas mãos. Se o ho­
mem dispõe de meios de comunicar aos outros seus 
pensamentos e afeições, também o Ente infinito, po­
deroso e sábio deve poder comunicar com a sua cria­
tura e transmitir-lhe sua vontade . Ele criou as in­
teligências, e não as poderá esclarecer ? 
VIII 
SOLUÇÃO DE UMA DIFICULDADE CONTRA A 
REVELAÇÃO 
Mas Deus, obj ectará o incrédulo, é demasiado 
grande para se humilhar a ponto de conversar com 
a criatura ; mas então objecte-se também que Deus é 
demasiado grande para haver-se ocupado em criar­
-nos. A criação nos tirou do nada ; a revelação 
completa a obra. Terá, o obreiro menos mérito, por 
isso que aperfeiçoa a obra ? Todos os nossos conhe­
cimentos nos provêm de Deus ; é dele que recebemos . · 
a faculdade de conhecer, quer tenha gravado as : 
idéias em nosso entendimento, quer tenha dado o 
poder de as adquirir por meios que nos são incógni­
tos. Se Deus, sem nada perder de sua grandeza, 
nos pode comunicar uma certa ordem de idéias, não 
será absurdo pretender que ele se rebaixaria, comu­
nicando-nos verdades de ordem diferente por meios 
O CRITÊRlO 
sobrenaturais ? Portanto, negar esta possibilidade 
é negar a omnipotência e até a existência do mesmo 
Deus. 
IX 
CONSEQü�NCIAS DOS PARA GRAFOS PRECEDENTES 
Infinitamente nos importa conhecer a verdade 
em matéria de religião (parág. 1 e 2) . Não podem 
ser verdadeiras todas as religiões · (parág. 4) . Se 
há uma religião revelada, deve esta ser a verdadeira 
{ parág. 4) . 
A religião não pode ser uma invenção humana 
( parág. 6 ) . A revelação é possível ( parág. 7 ) . Res­
ta-nos saber se ela existe, e onde se deve procurar. 
X 
EXISTÊNCIA DA REVELAÇÃO 
Existe a revelação ? Verifiquemos primeiro que 
tudo um facto que, só de per si, constitui poderosa 
presunção em favor da afirmativa. Todos os po­
vos da terra têm conservado a lembrança de uma re­
velaç.ão ; ora, a humanidade não pôde concertar-se 
para tramar uma impostura. Não provará este facto 
uma tradição primitiva, transmitida de pais a fi-
O CRITÉRIO 237 
lhos, e que, posto que profundamente alterada, pos­
to que desfigurada pelo tempo e p elas paixões, não 
deS'apareceu j amais inteiramente da memória dos 
homens ? 
Obj ectar-se-á que a imaginação pode converter 
em vozes o ruído do vento, em aparições misterio­
sas os fenómenos da natureza ; e do mesmo modo o 
fraco mortal se creu rodeado de seres desconheci­
dos que lhe dirigiam a palavra, e lhe descobriam ar­
canos de outros mundos. Não se poderá negar que 
é especiosa a obj ecção ; sem embargo, não será di­
fícil mostrar que é de todo insubsistente e fútil. 
É possível que um homem na crença de que exis­
tem seres desconhecidos que se possam pôr em re­
lação con� ele, se incline a supor ou a crer que ouve 
sons proféticos, e que vê espectros vindos de outros 
mundos. Mas não é assim ; não poderia tal acontt:­
cer ao homem que nem s.equersuspeitasse a exis­
tência de seres desta espécie. Neste caso de onde 
procederia a ilusão ? Não as compreende. 
Ensina-nos a experiência que as criações de nos­
so cérebro, as mais incoerentes, são formadas de uma 
reunião de imagens cuj a realidade existe, e com que 
temos sido imp1·essionaclos aqui e além, em tempos 
diversos. Nossa imaginação sobre�excitacla ou do­
ente não faz mais que evocá-las, reuni-las, formar 
com elas um todo extravagante. Os palácios encan­
tados elos romances ele cavalaria, com suas castelãs, 
238 O CRITÉRIO 
geus anões, salões vastos, seus subterrâneos, encantos 
e mil extravagâncias devem sua existência a esta fa­
culdade do espírito. - Sobre um fundo verdadeiro, 
com auxílio de circunstâncias conhecidas, abstraídas 
do mundo real, o romancista arquitecta maravilhas. 
Acontece o mesmo no facto de que nos ocupamos . A 
razão e a experiência estão de acordo na explicação 
deste fenómeno ideológico. 
Se não tivéramos idéia de outra vida, além da 
presente, ou de· um mundo diferente do nosso, se não 
conhecêramos outros viventes além dos que povoam a 
terra, poderíamos inventar ou imaginar gigantes, 
anões, monstros e outras entidades fantasmagóricas, 
mas nunca seres invisíveis, nunca revelações vindas 
de um céu qu-e não conheceríamos. 
Este novo mundo, ideal, fantástico nem sequer 
nos ocorreria, porque, para assim dizer, tal ocorrên­
cia não teria ponto de partida ; além disso admitamos, 
contra toda a possibilidade, que esta ordem de idéias 
se oferecess·e a um indivíduo ; como havia a humani­
dade inteira de chegar a participar desta descoberta ? 
Viu-se j amais semelhante contágio intelectual e 
moral ? 
Qualquer que sej a o valor destas reflexões, pas­
semos aos factos, deixemos o que poderia ter sido e 
examinemos o que realmente foi. 
O CRITÉRIO 
XI 
PROVAS HISTóRICAS DA EXISTJ'!:NCIA DA 
REVELAÇÃO 
239 -
Existe uma sociedade que pretende ser a umca 
depositária, a única intérprete das revelac;ões com 
que o céu favoreceu a raça humana. Pretensão tão 
alta dev e chamar a atenção do filósofo que aspire à 
verdade. 
Que sociedade é essa ? dura há pouco tempo ? 
Conta dezoito séculos de duração, e estes séculos 
não os considera senão como um período da sua exis­
tência, e, subindo mais acima, vai explicando sua 
ininterrompida genealogia, e se remonta até ao prin­
cípio do mundo. Que esta socierlade conta dezoito 
séculos de existência, que sua história se confund� 
com a de um povQ cuj� origem se perde na mais re­
mota ·antigüidade, verdades são estas tão certas como 
a existência das repúblicas de Roma e da Grécia. 
Que provas apresenta ela em apoio da sua dou­
trina ? - Está de posse do livro mais antigo que se 
conhece ; este livro contém a mais pura moral, um ad-1 ' . 
ijjmirável sistema de legislac;ão, uma história cheia de' j 
1prodígios. 
Até ao presente, ninguém tem posto em dúvida 
o mérito eminente deste livro, o que deve espantar 
240 O CRITtRIO 
tanto mais, quanto ele nos foi transmitido por um 
povo cuja civilização esteve longe de igualar a de mui­
tas outras nações da antigüidade. 
E não oferece. a aludida sociedade outros títulos 
que j ustifiquem suas p retensões ? Independente­
mente dos mais numerosos e imponentes testemu­
nhos, eis um que só de per si bastaria : afirma que a \\ transição da sociedade antiga para a moderna se Qfec­
\ tuou do modo que anunciava o livro misterioso ; que 
no tempo predito apareceu sobre a terra um Homem­
-Deus, que foi ao mesmo tempo o complemento da lei 
antiga e o autor da nova lei ; que a antigüidade não 
era mais que sombras e figuras e que este Homem-
Deus foi a r€'alidade ; que fundou a sociedade que cha­
mamos Igrej a católica, prometeu-lhe sua assistência • ' 
até à consumação dos séculos, selou com seu sangue 
a doutrina que trouxe à terra, quebrou, ao terceiro 
dia depois de seu suplício, as cadeias da morte, enviou 
seu Espírito, como prometera, e que há-de vir no fim 
dos séculos para j ulgar os vivos e mortos. 
É verdade que neste homem se cumpriram as 
antigas profeci'as ? - É inegável. Ao ler algumas 
delas parece estar-se lendo as narrações evangélicas. 
Este homem deu provas da sua divindade ? -
Atestam-na numerosos milagres ; e o que ele próprio 
profetizou aconteceu ou vai acontecendo com mara­
vilhosa exactidão. 
O CRITtRlO 241 
Qual foi sua vida ? - Passou sobre a terra es­
palhando o bem a mãos largas ; desprezou as rique­
zas e o fausto, suportou com serenidade as privaçõE-s, 
os ultrajes, os tormentos, a morte afrontosa, enfim : 
tanto a sua vida, como a sua morte foram superio­
res à fraca humanidade. 
E sua doutrina ? - Jamais o espírito humano se 
elevara tão alto ; tal é a sua moral, que os seus mai.s 
violentos inimigos se têm visto forçados a fazer-lhe 
j ustiça e a inclinar-se diante dela. 
Que mudança operou este homem na sociedade ? 
- Rccordai-vos do que era o antigo mundo romano , 
c vede o que o mundo é hoj e. C omparai os povos · 
nos quais ainda não p enetrou o cristianismo, aos \ 
que, desde séculos, têm vivido debaixo da sua influ­
ência e conservam ainda seus preceitos, bem que 
entre alguns se achem desfigurados. 
De que meios dispôs ele ? - Não tinha de seu 
onde repousar a cabeça ; enviou doze homens esco­
lhidos entre a ínfima classe do povo, nas mais humil­
des condições ; estes dispersaram-se aos quatro ven­
tos da terra, e a terra ouviu sua voz e teve fé ! 
Esta religião passou pelo crisol das perseguições ? 
Não sofreu contrariedades de nenhuma espécie ? -
Aí está o sangue de infinitos mártires, aí os escritos 
de numerosos filósofos que a examinaram, aí os mui­
tos monumentos que atestam as tremendas lutas 
que sustentou com os príncipes, com os sábios, com 
242 . O CRITÉRIO 
as paixões, com todos os elementos de resistência que 
era possível combinarem-oo na terra. 
De que meios se valeram os propugnadores do 
cristianismo ? - O exemplo e 'a prédica, confirmados 
pelos milagres. E estes milagres não pode a crítica 
mais escrupulosa r-efutá-los ; e se os refutara, resul­
taria disso 0 maior dos milagres, - a conversão do 
mundo sem milagres. 
O cristianismo sempre contou, e ainda hoj e no 
número de seus filhos conta inteligências das ma is 
elevadas, corações dos mais nobres. A civilização 
cristã foi muitíssimo além da civilização dos mais 
célebres povos antigos. Não há r-eligião sobre que 
tanto se tenha disputado e escrito . As bibliotecas 
estão cheias de obras críticas, dogmáticas, filosóficas, 
científicas, literárias, obras capitais devidas a ho­
mens que humildemente submeteram a sua inteligên­
cia à disciplina da fé . Não se pode acusar o cristia­
nismo de não ter florescido senão entre povos igno­
rantes e bárbaros ; possui todos os caracteres de re­
ligião verdadeira, de procedência divina. 
XII 
OS DISSIDENTES E A IGREJA CATóLICA 
Nestes últimos séculos, romperam-se entre os 
cri stãos os laços da unidade ; uns permaneceram li-
O CRITéRIO 243 
gados à Igr.ej a católica ; outros, repelindo certos dog­
mas, só conservaram do cristianismo o que lhes. para­
ceu ; mas, em virtude do livre exame, estabelecido por 
eles como princípio fundamental, princípio que deixa 
a fé à discrição .do crente, fraccionaram-s.e em inu­
meráveis seitas. 
Onde estar.á a verdade ? Os dissidentes datam 
1 de ontem ; a Igrej a prova a sucessão de seus pasto­
res, remontando até Cristo. Os primeiros variaram 
e variam incessantemente em seu ensino e doutrina ; 
a Igrej a católica sempre conservou e conserva, única, 
invariável, intacta, a fé recebida dos Apóstolos. De 
uma parte a novidade, a mobilidade, isto é, a dúvida 
e inquietação ; de outra parte, a unidade, a antigüida­
de, isto é, o repouso na fé, a consagração da razão 
dos séculos e do respeito dos antepassados às nossas 
crenças. Bendito sej a Deus pelo benefício que nos 
fez ! 
Ainda mais � a Igrej a católica ensina que só ela 
tem o depósito da verdade ; que só ela pode condu­
zir o homem pelo caminho da salvação. Os dissiden­
tes r.econhecem que entrenós outros nada se crê nem 
pratica que possa acarretar-nos a condenação eterna 
Uns só têm a sua opinião em favor da possibilidade 
de salvação na Reforma ; os outros têm duas, a da 
própria Igrej a e a dos mesmos dissidentes. Ainda 
quando não houvesse motivos mais poderosos, bastaria 
244 O CRITtRIO 
a prudência humana para nos aconselhar a perseve­
rança na fé de nossos pais. 
Esta breve resenha nos parece conter a substân­
cia dos raciocínios que pode fazer qualquer católico, 
que, dando razão de sua fé, queira provar que seguin­
do os ensinamentos da Igreja não se desvia da lógica 
e bom senso. Asinalemos no entanto certos esco­
lhos contra os quais freqüentemente naufragam os 
incautos. 
XIII 
MJ!:TODO EMPREGADO POR ALGUNS IMPUGNADORES 
DA RELIGIÃO 
No exame das matérias r·eligiosas seguem mui­
tos o errado caminho de tomar como obj ecio de suas 
investigações um dogma particular, separá-lo do con­
junto dogmático a que pertence, e as dificuldades que 
levantam sobre uma verdade p·articular as crêm su­
ficientes para concluir a negação absoluta de todo o 
sistema religioso. Este modo de proceder prova não 
menos presunção que ignorância. 
Com efeito, não se trata de saber se a nossa in; 
teligência está à altura dos dogmas revelados, ou se 
estamos em estado de resolver todas as dificuldades 
que se possam levantar contra tal ou tal dogma. A 
própria religião nos adverte que os segredos de Deus, 
os mistérios, estão acima da nossa razão, que durante 
O CRITtRIO 245 
nossa curta passagem sobre a terra, nos devemos re­
signar a não ver as verdades senão através de som­
bras. É por isso mesmo que de nós se exige a fé. 
Dizer : não creio, porque não compreendo, é 
enunciar uma contradição. Se compreendêssemos, a 
fé deixaria de ser uma virtude ou qualquer outra 
coisa. Fazer arma contra a religião da incompre­
ensibilidade de seus dogmas, e voltar contra ela uma 
verd·ade que ela reconhece, que aceita, verdade sobre 
a qual, digamos assim, assenta o .edifício inteiro, ofe­
rece por ventura garantias de veracidade ? Está ao 
abrigo de erro em seus ensinos ? Eis o que se deve 
examinar. Estabelece a infalibilidade da religião, €: 
todas as dificuldades se esvaem. Não conseguirá dar 
um passo quem se não apoiar sobre este princípio. 
Um viaj eiro digno de fé conta-nos coisas que não com-· 
preendemos ; devemos por isso negar-lhe confiança ·:· 
Não, sem dúvida . Pois assim deve ser a respeito da 
Igreja. Sabemos que não pode enganar-nos, que im­
porta que seus ensinos sejam superiores à nossa ra­
zão ? Basta que tais ensinos não repugnem ou não 
sejam contrários à razão. 
Se a impotência do nosso espírito em resolver 
certas dificuldades fosse suficiente para j ustificar a 
dúvida, em que poderíamos nós crer ? Onde esta­
ria a verdade ? É sabido quanto é difícil desembara­
çar dos laços de um hábil sofista . A seu bel-prazer 
poderiam pois certos espíritos semear a incerteza e a 
246 O CRlTtRlO 
dúvida ! A Providência ter-lhes-ia outorgado como 
mero j oguete a consciência e fé do resto dos ho­
mens ! . . . 
Nas ciências, nas artes, até nas coisas mais sim­
ples da vida, a cada passo topamos com o incompre­
ensível. Duvidamos por isso ? Não compreendemos 
tal fenómeno, mas testemunhas fidedignas atestam 
sua existência ; curvamos a cabeça lembrados dos es­
treitos limites do nosso entendimento. 
Nada mais trivial do que ouvir-se estas pala­
vras : - O que conta este homem é impossível ; mas 
é verídico : ele sabe o que diz ; não acreditaria se ou­
tro o dissesse ; mas como ele o afirma, a coisa é ver. 
dade . Ora, o que dizemos de um homem hesitaremos 
em o dizer da Igrej a ? 
XIV 
A MAIS ALTA FILOSOFIA DEi ACORDO COM A FÉ 
Imaginam alguns passar por grandes pensadores 
quando recusam crer o que não compreendem. Es­
tes j ustificam o famoso dito de Bacon : - pouca filo­
sofia aparta da religião, muita filosofia condu:z; a ela . 
Na verdade, se houvessem penetrado nas profun­
dezas da ciência, veriam que no fundo de todas as 
coisas está o mistério ; que a natureza nos oculta o 
maior número de seus segredos, que os seres, aparen­
temente os mais fáceis de compreender, nos escapam 
O CRITÉRIO 247 
em sua essência e em seus princípios constitutivos. 
Ignoramos o que é o universo, esta imensidade que 
::tssombra nossa inteligência ; ignoramos o que é o 
nosso corpo, o que é o espírito que o anima ; somos 
nm enigma para nós mesmos. Saberiam que a ciên­
cia, apesar de todos os seus esforços, não logrou, até 
hoje, penetrar os fenómenos que constituem e nos fa­
zem sentir a vida. Reconheceriam que o mais pre­
cioso fruto de nossas indagações, meditações e traba­
lhos de toda a sorte, é a profunda convicção de nossa 
fraqueza e ignorância ; que moderar o desejo de sa­
ber e conhecer, não ter em muito as forças e luzes 
de nosso espírito, é tão conforme às lições da sã 
filosofia c
'
omo às da fé ! Saberiam, finalmente, 
que o ensino religioso nos eleva desde a infância aon­
de nunca chegariam os esforços da sabedoria hu­
mana. 
XV 
O QUE ABANDONA A RELIGIÃO CATóLICA NÃO SABE 
ONDE REFUGIAR·SE 
Temos seguido o caminho que conduz à religião 
católica ; vejamos ainda o que fora deste caminho se 
encontra. Abandonando a fé da Igreja, onde nos re­
fugiaremos ? Para qual das numerosas seitas dissi­
dentes ? Que razões se nos oferecem para preferir-
248 O CRITtRIO 
mos uma às outras ? Decidiremos às cegas ? Seria 
testemunhar igual desprezo a todas. Recorrer ao fi­
losofismo ? Mas que é o filosofismo ? Dúvidas, ne­
gações, trevas, desespero. Buscaremos um símbolo 
fora do dogma cristão ? Mas qual ? a menos que o 
islamismo ou a idolatria seduzam nossa razão. 
Portanto, abandonar o catolicismo é abjurar im­
plicitamente toda a crença dogmática ; é deixar que 
corram os anos, que nossa vida chegue ao termo fa­
tal, sem guia para o presente, sem luz· para o porvir ; 
é tapar os olhos, abaixar a cabeça e arrojar-se a um 
abismo sem fundo. 
Todas as garantias de verdade que a razão pode 
oferecer à fé ; todas as garantias de verdade que as 
necessidades do coração, os instintos religiosos, as 
necessidades individuais e sociais podem dar à razão, 
nós as achamos no catolicismo ; a lei que nos impõe 
é suave, j usta, recta, e ao mesmo tempo benfazeja. O 
que a cumpre torna-se semelhante aos anj os. Apro­
xima-se da beleza ideal, realiza em si a mais alta poe­
sia que a humanidade possa sonhar. Esta lei con­
sola-nos no infortúnio, cerra nossos olhos em. paz ; 
apresenta-se-nos tanto mais indubitável, tanto mais 
radiante de verdade, quanto nos aproximamos da 
hora extrema. Em sua bondade, quis a Providência 
colocar à borda do túmulo aquelas santas inspirações 
como arautos que nos avisam de que vamos pisar os 
umbrais da eternidade ! . . . 
CAPíTULO XXII 
Do entendimento prático 
I 
CLASSIFICAÇÃO DOS ACTOS 
Os actos práticos do entendimento são aqueles em 
virtude dos quais obramos. Daí duas questões : Que 
fim nos propomos na acção ? Quais os melhores meios 
para o conseguir ? 
Nossas acções podem exercer-se, ou sobre os ob­
j ectos da natureza submetidos à lei da necessidade, e 
aqui se compreendem todas as artes ; ou sobre a na­
tureza moral e o que pertence ao livre arbítrio, e 
isto compreende as regras de proceder relativamente 
a nós mesmos -e aos demais, abraçando a . moral, a 
urbanidade, a administração doméstica e a política . 
25ó 0 CRITÉRIO 
As regras dadas sobre a arte de p-ensar, em ge­
ral, me dispensam de tratar em particular cada um 
destes diferentes assuntos. Com efeito, quem esti­
v-er bem compenetrado destas regras, deve saber, an­
tes de praticar a acção, qual o fim que se propõe, e 
quais os melhores meios de o realizar. Todavia, sem 
sair dos limites postos à natureza desta obra, ajun­
taremos algumas reflexões que talvez não sejam 
inúteis. 
11 
NEM SEMPRE É FÁCIL PROPOR-SE O FIM DESEJADO 
Não falo aqui do fim último, da felicidade da ou­
tra vida ; à religião pertence conduzir-nos a ele. Só 
trato dos fins secundários, como,por exemplo : al­
cançar conveniente posição na sociedade, levar a bom 
termo um negócio qualquer , sair airosamente de si­
tuação difícil, granj ear a amizade de uma pessoa, or­
ganizar um sistema político, administrativo ou do­
méstico, destruir costumes prej udiciais e outras coi­
l'as deste gênero. 
À primeira vista, parec-e que todos os actos su­
põem, no pensamento do agente dotado de razão que 
o produz, um fim determinado ; porém a observação 
nos ensina que são raros, muito raros os homens, ain-
0 CRIT�RlO 251 
da os mais activos e enérgicos que não confiem ao 
acaso uma parte de sua fortuna e de si mesmos. 
Sucede mil vezes que aos homens chegados ao 
fastígio do poder e da glória atribuímos planos pre­
meditados em todas as coisas, proj ectos vastos e pro­
fundos, maravilhosa previsão dos obstáculos remo­
vidos, apreciação cheia de sabedoria nos meios de 
que dispõem ; e como nos enganamos ! Em todas as 
condições, em todas as circunstâncias da vida, não 
importa o brilho ou humildade ; o homem permanece 
o que é, coisa muito pequena, muito limitada ; não co­
nhecendo nem a si próprio� não tendo j amais idéia 
verdadeira do que vale, exagerando ora sua força, ora 
sua fraqueza, não sabendo aonde vai nem aonde deve 
ir, vivendo na dúvida e na incerteza. Ignora muitas 
vezes os seu seus interesses mais caros, e a dúvida 
sobre o que por ventura possa valer aumenta com a 
dúvida do que deva desejar. 
III 
EXAME DO PROVÉRBIO: "CADA QUAL É FILHO DE 
SUAS OBRAS" 
� falso que o interesse particular seja um guia 
infalível, e que sempre preserve do erro o que segue 
suas inspirações. Nisto, como em muitas outras coi-
252 O CRITÉRIO 
sas, caminhamos nas trevas. Pois não trabalhamos 
às vezes para a própria desgraça ? Triste experiên­
cia que deveria dissipar nossas ilusões ! 
No entanto o provérbio é verdadeiro : - feliz ou 
desgraçado, o homem é filho de suas obras. 
No mundo moral, como no físico, o acaso não é 
mais do que uma palavra. Verdade é que o fluxo e 
refluxo das coisas humanas desconcertam algumas ve­
zes os planos mais bem concertados, arrebatando-nos 
os frutos das mais engenhosas combinações, dos tra­
balhos mais merecedores, ao passo que favorecem ou­
tros planos, outras combinações, outros trabalhos sem 
valor ; mas isso não é tão comum como vulgarmente 
se diz e crê. O trato da sociedade, acompanhado da 
conveniente observação, rectifica muitos j uízos que se 
haviam formado ligeiramente' sobre as causas da boa 
ou má fortuna que cabe a diferentes pessoas. 
Não há desgraçado que se não julgue vítima dos 
homens ou da sorte. No entanto, estudando a fundo 
o carácter, os costumes, o j uízo, o procedimento do 
maior número ; seus hábitos, suas conversações, suas 
relações de família ou de amizade, não será raro que 
descubramos muitas, senão todas as causas que con­
tribuem para o infortúnio. 
Só sabemos ver o acontecimento que decide da 
sorte da pessoa, sem reflectir que este último facto es­
tava preparado por muitos outros anteriores, ou que 
deve sua influência decisiva e funesta à posição par-
O CRITÉRIO 253 
ticular em que o infeliz se havia colocado pela sen<' 
de seus erros passados, seus defeitos ou faltas. 
Raríssimas vezes a boa ou má fortuna tem só 
uma causa. Em geral complicam-se com uma infi­
nidade de causas mui diversas. Mas como não po­
demos seguir o fio dos sucessos através das formas 
móveis e múltiplas da vida, consignamos como facto 
único, principal ou dominante, o que apenas é oca­
sião, a gota de água em um vaso cheio. 
IV 
O HOMEM ABORRECIDO 
Vedes este homem de quem os amigos de outrora 
se desviam, ou o tratam com indiferença ; que os pa­
rentes aborrecem ; que não encontra na sociedade 
quem se interesse por .ele, cujo nome desperta ani­
madversão geral ? a explicação que dá do seu isola­
mento é - a inj ustiça dos homens ; é a inveja que 
não pode sofrer o brilho do mérito, é o egoísmo uni­
versal que sacrifica a si a família, a amizade, o re­
conhecimento. Acusa o gênero humano de haver 
conspirado contra ele, de se obstinar em não reconhe­
cer seu mérito, suas virtudes, a elevação de seu cora­
ção e espírito. O que há de verdade nesta apologia 
se verá talvez da mesma apologia. Não será difícil 
254 b CillTtRIO 
notar aí a vaidade insofrida, o carácter áspero, a pe­
tulância, a maledicência que terão atraído o ódio de 
uns, o desvio dos outros, enfim o insulamento de que 
injustamente este homem se queixa. 
v 
O HOMEM ARRUINADO 
Queixa-se este outro de que a sua excessiva bon­
dade, a infidelidade de um amigo, desgraças impre­
vistas arruinaram sua fortuna, malogrando as mais 
prudentes e seguras combinações. 
A bondade do coraç.ão, a infidelidade de um 
amigo, as suas desgr.aças, tudo o que afirma é verda­
de. Mas não está aí a causa de sua desgraça ; pro­
cure-se em suas concepções superf.iciais e rápidas, 
na nobreza de seus j uízos, em seu ardor em formar 
projectos, em sua precipitação e temeridade. 
Assás numerosas são estas causas, para que seja 
supérfluo fazer intervir as boas qualidades. A ruína 
deste homem, longe de ser um capricho do acaso, é a 
conseqüência última de uma série de desatinos que 
há muito tempo a preparavam. Pudera fàcilmente 
evitar a desgraça, se tivesse prevenido a infidelidade 
do amigo, posto ao abrigo das tristes circunstân-
cias desta infidelidade, se tivesse sido mais discreto, 
O CRITÉRIO 
se menos imprudentemente tivesse prestado sua con, 
fiança, se tivesse velado sobre si mesmo, se tivesse 
tido mais cuidado, mais vigilância em seus negócios. 
VI 
O HOMEM INSTRUíDO INSOLVENTE E O 
RúSTICO RICO 
Inteligência, espírito, sa:ber, tudo tem por sua 
parte. Como é então que não só não tem aumen­
tado os seus haveres, mas até se tem deitado a per­
der ; ao passo que o vizinho, homem grosseiro <::) 
desprovido de toda a cultura, tem centuplicado a 
sua fortuna ? Acaso, fatalidade, má estrela ! 
Assim dizem, sem reflectir que se confundem de­
ploràvelmente as idéias mais opostas ; que se as­
sociam uns aos outros, que se faz. depender uns dos 
outros factos que nenhuma relação têm entre si. 
Na verdade o primeiro é homem de espírito, 
cheio de instrução, homem de representação na 
sociedade : o outro completamente ignorante. Mas 
o que se trata não é de obras de arte, é de negócios ; 
de compras e vendas e não de obras literárias. 
Convenho em que o primeiro dispõe de mais fácil 
locução, idéias mais variadas, observações mais pi­
cantes, réplicas mais prontas e incisivas ; porém, 
256 O CRITtRlO 
nenhuma relação existe entre essa ordem de coisas 
e aquilo de que tratamos, a habilidade em negócios. 
Passemos de um facto particular a factos inteira­
mente diferentes. 
Observai com atenção estes dois homens, e fic0 
certo que não tardareis a reconhecer que tanto a 
prosperidade de um como a ruína do outro têm 
causas muito naturais. 
Um, concordo nisso, fala, escreve, forma pro­
jectos, calcula com extrema facilidade ; aprecia tu­
do, responde a tudo, vantagens, inconvenientes, 
alternativas prósperas e adversas, tudo viu, tudo 
disse, tudo previu : a matéria está esgotada. 
O outro tem a palavra, o j uízo, a penetração 
menos rápidos ; mas em compensação, vê mais cla­
ro, mais profundamente, com mais justeza e segu .. 
rança. Não sabe opor cálculos a cálculos, raciocí­
nios a raciocínios ; mas o tacto, o discernimento, 
desenvolvidos nele pela observação, pela experiên· 
cia, como que o advertem de modo infalível . Todas 
as suas faculdades se resumem numa só, o bom 
senso. Não importa que a vista deste homem abra­
co menor horizonte, uma vez que veja melhor o que 
deve ver. Que importa carecer dessa facilidade 
em pensar e falar, qualidades tão a propósito para 
brilhar, quanto inúteis e inconducentes para o ob­
jecto de que se trata ? 
O CRITÉRIO 257 
VII 
OBSERV AÇ6ES. O ESPíRITO DE SOFISMA E O 
BOM SENSO 
A vivacidade não é penetração ; a abundância 
de idéias nem sempre súpõe clareza nas mesmas 
idéias, e ·a exactidão do espírito ; é comrazão sus­
peito o j uízo muito rápido ; o sofisma oculta-se 
muitas vezes em seus raciocínios onde a subtileza 
derrota a razão e toma insenslvelmente seu lugar. 
Distinguir e assinalar o sofisma envolto nos 
encantos da palavra ou do estilo constitui um tra­
balho cheio de dificuldades. Infinitos são os re­
cursos do espírito ; homens hi.. que possuem quali­
dades tão atraetivas, sabem apresentar os obj ectos 
com tanta arte, que o bom senso, o saber, o juízo 
mais seguro, reduzidos ao silêncio, vêem-se algu­
mas vezes forç·ados a apelarem para o tempo, para 
a experiência, para ensej o oportuno, a fim de da­
rem a razão de seus sofismas. 
Efectivamente, há coisas que melhor se sentem 
do que se compreendem ; vêem-se e não se provam. 
Há circunstâncias minuciosas, relações cheias de 
delic·adeza, que não se podem demonstrar e perma· 
necem para sempre ocultas, se à primeira vista 
se não compreendem. Há pontos de vista tão fu-
258 O CRITÉRIO 
gazes, que em vão se buscam por quem não logrou 
colocar-se neles em momento oportuno. 
VIII 
Só A PRÁTICA REVELA CERTOS FENóMENOS 
INTELECTUAIS 
Revelam-se no exercício da inteligência, ou 
mesmo em qualquer das outras faculdades da alma, 
fenômenos que as palavras não podem exprimir. 
Para compreender a quem deles fala, é mister havê­
-los experimentado em si mesmo. Tentar tornar-se 
inteligível a quem de modo algum os não httj a sen­
tido, é tentar dar ao cego de nascimento idéia das 
cores. 
Estes fenómenos particulares, estes matizes, 
se assim me posso exprimir, abundam em todos os 
actos práticos do espírito. Não deve pois abando­
nar-se o espírito a vãs abstracções, nem formar sis­
temas fantásticos, puramente co-qvencionais ; pre­
cisa de tomar as cousas, não como as imagina ou 
deseja, senão como elas são ; do contrário, ao pas­
sar da idéia para os objectos, encontrar-se-á em 
desacordo com a realidade, e verá desconcertados 
todos os seus planos. 
Observamos ainda que na prática, e mõrmente 
no que toca às relações que os homens têm entre 
O CRITtRIO 259 
si , a influência do entendimento não é isolada, e 
que as outras faculdades se desenvolvem simultâ­
neamente com esta f'aculdade. Não há somente 
comunicação de inteligência com inteligência, mas 
de coração com coração. Além da influência recí­
proca das idéias, há a influência não menos viva 
dos sentimentos. 
IX 
OS ABSURDOS 
Não esqueçamos, e esta observação nos será uti­
líssima na prática da vida, que há homens mal do­
tados, a quem faltam certas faculdades do espírito 
e do coração. São, relativamente aos que possuem 
estas faculdades, o que é o infeliz privado de um 
ou muitos órgãos para o homem bem construído. 
Quem não tem sorrido alguma vez dos esforços 
tentados pelos espíritos de boa fé sobre certas in­
telig€ncias refractárias ? Um homem enuncia a 
sangue frio um absurdo ; trava-se discussão e vós 
esforçai-vos por provar, a quem vos não pode compre­
ender, verdade incontestável. Trabalho inútil. E' a in­
teligência que falta a vosso adversário ? Não, falta­
-lhe o senso comum. Suas disposições naturais, seus 
hábitos fizeram o que ele é ; vereis que um espírito 
capaz de admitir e sustentar um absurdo não estará 
260 O CRITtRIO 
em estado de se compenetrar da força dos argumen­
tos dirigidos contra este absurdo. 
X 
ESPíRITOS FALSOS 
Há homens, cujo espírito é naturalmente defei­
tuoso (pelo menos parece-o ) , porque nada vêem sob 
verdadeira luz. Será isto loucura ? ·ausência com­
pleta de j uízo ? Não. Estéreis por excesso de abun­
dância, caracteriza-os insuportável loquacidade ; li­
gam e desligam, com desesperada facilidade, argu­
mentos sem valor ; pronunciam-se ousadamente sobre 
todas as coisas, e quase sempre falsamente. Se 
por acaso encontram o bom caminho, passam sem 
se deterem ; o sofisma os arrasta. Uma ou outra 
vez sucede entrever-se em seus raciocínios sedutoras 
persp.ectivas, miragens que enganam a eles próprios, 
porque as tomam por realidades solidamente esta­
belecidas. O segredo de seus erros, ei-lo : assertam 
como incontestável um facto duvidoso, inexacto ou 
· completamente erróneo, estabelecem como princípio 
de eterna verdade uma suposição gratuita ; tomam 
a hipótese como realidade. Impetuosos, precipitados, 
não fazendo caso das observações dos que os ouvem, 
sem outro guia que a próp:ria falseada razão, leva­
dos pelo prurido de discorrer e falar, arrastados, 
O CRITÉRIO 261 
por assim dizer, na turva corrente de suas próprias 
palavras e idéias, esquecem-se completamente do seu 
ponto de partida, não notando que tudo quanto edi­
ficam é puramente fantástico, por carecer de cimento. 
XI 
SUA INCAPACIDADE PARA OS NEGóCIOS 
Desgraçados dos negócios em que entram estes 
homens, e desgraçados também deles se se abando­
nam à sua própria direcção. As qualidades essen­
ciais para o entendimento prático são a madureza 
de j uízo, o bom senso, o tacto ; e estas qualidades 
lhes f'altam. Para chegar à verdade é preciso passar 
das idéias às coisas, e eles se esquecem geralmente 
das coisas para não se ocuparem senão das idéias. 
Na prática da ·vida importa raciocinar, não sobre o 
que as coisas deveriam ou poderi·am ser, mas sim 
sobre o que são, e eles não se ocupam do que as 
coisas são, mas do que poderiam ou deveriam ser. 
O que um espírito recto vê claramente, não logra le 
modo algum percebê-lo um espírito falso. Factos, 
fora de toda a dúvida para um, parecem muito con­
testáveis para outro. O primeiro expõe uma questão 
muito simples, e naturalmente o segundo encara-a 
logo debaixo de um outro aspecto. Um destes ho­
mens, como afectado de estrabismo intelectual, des-
262 O CRITtRlO 
concerta e confunde o que vê os obj ectos em sua ver­
dadeira direcção. 
XII 
ESTE DEFEITO INTELECTUAL NASCE ORDINARIA­
MENTE DE UMA CAUSA MORAL 
Se buscarmos o porquê desta aberração, achá­
-la-emos muitas, muitíssimas vezes, antes no coração 
que no cérebro. A vaidade é o vício dominante que 
mais aflige os espíritos desta ordem. Um mal enten­
dido amor-próprio os leva a singularizarem-se em 
todas as coisas ; e, não querendo pensar nem falar 
como o resto dos homens, insensivelmente chegam a 
pôr-se em luta com o s-enso comum. 
A mesma constância de sua oposição prova que, 
só entregues à sua razão, contrariam mais freqüen­
temente a verdade ; prova que suas extravagâncias 
são menos er,ros do j uízo que ridículo desejo de se 
singularizarem, convertido em hábito. Se este de­
feito fosse só do juízo, não tomariam eles a contra­
ditória em todas as questões. Coisa notável ! Um 
meio seguro de os trazer à v-erdade, é sustentar o erro 
em sua presença. 
Convenho em que o mais das vezes os homens _ 
deste carácter não se dêm conta de seu modo de 
ser ; que não tenham consciência bastante clara desta 
O CRITÉRIO 263 
inspiração da vaidade que os subj uga e dirige ; mas 
nem por isso ela deixa de existir� Se dão por tal 
vício, natural é que o mal não fique sem remédio, 
principalmente se a idade, a posição social, a lisonja 
ainda não têm pervertido sua razão. Muitas vezes 
amargos desgostos, 'Cruéis humilhações resultam do 
abuso que têm feito de seu espírito. Abatidos pela 
adversidade, instruídos pela experiência e pela dor, 
costumam ter intervalos lúcidos de que pode apro­
veitar-se um amigo sincero, para fazer-lhes ouvir 
os conselhos de uma razão j udiciosa. 
Mas quando a realidade ainda não tem conse­
guido desenganar seu amor-próprio ; quando, no 
acesso da paixão, estes homens se entregam à vai­
dade de seus projectos, de suas paixões e de suas 
fantasias, não lhes resistais : isso seria inútil ; guar­
dai silêncio, e, com os braços inclinados e a fronte 
abaixada, esperai com impassibilidade estoica que 
passe a avalancHe. Esta frieza produzirá talvez 
salutares efeitos ; o silêncio remove todo o motivo 
de disputa ; ninguém faz obj ecção, quando não tem 
adversário. Não é raro ver estes intratáveis alter­
e-adores, reduzidos a sangue frio pelo silêncio, en­
trarem
· 
em si mesmos destituídos desua vivacidade. 
Espíritos ardentes, inquietos, vivendo da contradição, 
precisando de a ensaiar a seu turno, desgostam-se 
logo que não há ocasião de luta ; mormente se che­
gam a compreender que longe de terem em sua pre-
264 O CRITtRiú 
sença um adversário resolvido, sempre prestes a 
combater, só têm perante si uma vítima involuntária, 
imolando-se cotidianamente a s·eu triste defeito. 
XIII 
A HUMILDADE CRISTÃ EM SUAS RELAÇõES COM 
OS NEGóCIOS MUNDANOS 
A humildade cristã, essa virtude que nos faz 
conhecer o limite de nossas forças, que nos revela 
os próprios defeitos, que não permite exagerar nosso 
mérito, nem exalçar-nos acima dos demais, que não 
consente que a ninguém depreciemos, que nos inclina 
a aproveitar os conselhos de todos, ainda os infe­
riores, que nos f'az ver como frivolidades indignas 
de um espírito sério o andar à busca de aplausos, o 
saborear o fumo da lisonja ; que jamais nos deixa 
crer que havemos chegado ao cume da perfeição em 
nenhum sentido, nem cegar-nos tté ao ponto de não 
vermos o muito que nos resta adiantar, e a vantagem 
que nos levam os outros ; essa virtude, que bem en­
tendida é a verdade, porém a verdade aplicada ao 
conhecimento do que somos, de nossas relações para 
com Deus e para com os homens ; a verdade guiando 
nosso proceder para que nos não extruviem as exa­
gerações do amor-próprio ; essa virtude, repito, é de 
0 CRiTÉRIO 265 
suma utilidade em tudo quanto diz respeito à prática, 
ainda nas coisas puramente mundanas. 
Sim, a humildade cristã, em troca de alguns sa­
crifícios, produz grandes vantagens, ainda nos assun­
tos mais distantes da devoção. O soberbo compra 
mui caro a própria satisfação ; e não adverte que a 
vítima que imola a esse ídolo levantado em seu cora­
ção, são às vezes seus mais caro·s interesses, sua re­
putação, talvez sua glória que com tão inquieto ardor 
prosseguia. 
XIV 
PERIGOS DA VAIDADE E DO ORGULHO 
Quantas reputações menoscabadas ou perdidas 
pela miserável vaidade ! Quão prontamente se dis­
sipa a emoç.ão respeitosa que nos inspira um grande 
nome, se no indivíduo que dele goza encontramos um 
homem que só fala de si, que tudo· refere a si ! A ser 
modesto tê� lo-íamos admirado ; porém o próprio or­
gulho o perde, provoca a st:tira. A afectação de su­
perioridade, ainda quando legítima, tem alguma 
coisa de irritante e ridículo ao mesmo tempo ; a lou­
cura é filha do orgulho. O orgulhoso aventura-se 
a empresas desastrosas ; desacredita-se e perde-se 
porque não tem confiança senão nos próprios pensa­
mentos. Que lhe importam as reflexões, o saber, os 
266 O ClUTtRlO 
ensinamentos doutrem ? Se por ventura se digna 
escutar um conselho, teme rebaixar-se em o seguir ; 
o falso deus não desce às regiões onde vegetam os 
humildes mortais. 
Vede ! sua fronte altiva parece ameaçar o céu, 
sua vista imperiosa exige o respeito ; nos lábios res­
pira o desdém ; em toda a sua fisionomia se pinta 
um contentamento supremo, confiança absoluta ; seus 
gestos afectados, compassados, revelam o homem 
cheio de si mesmo, e que quer sustentar a própria 
superioridade com ciosa e respeitosa veneração. Se 
toma a palavra, exige que vos caleis ! se tentais res­
ponder-lhe, ele vos interrompe e prossegue. Se in­
sistis pela vossa vez, o mesmo desdém ; mas desta 
vez acompanhado de uma vista que impõe a atenção 
e comanda o silêncio. Cala-se, finalmente, cansado e 
esgotado ; se quereis aproveitar o ensej o, há muit0 
tempo esperado, de expor vossa opinião, vãos esfor­
ços ! o semi-deus não vos escuta, está distraído ; di­
rige-se a outros ; a menos que, absorvido em pro­
funda meditação, sobrancelhas carregad·as e os lábios 
entre-abertos, o oráculo se prepare para desenrolar 
de novo as solenes maravilhas da sua eloqüência. 
Como não cairia em grandes enos um homem 
tão profundamente enfatuado com seu mérito ? Mas 
note-se ; há orgulhosos desta laia, se bem que nem> 
sempre o orgulho assuma estas deploráveis propor .. 
ções. Desgraçado daquele que desde os primeiros 
O CRI'r:tRIO 267 
ànos se não acostuma a repelir a lisonja e a avaliar 
quanto vale o louvor ; que não sabe entrar em si 
mesmo e estar precavido contra os pérfidos conse­
lhos do amor-próprio ! Quando chega para ele a 
idade da acção e independência, quando se acha feita 
sua reputação benemérita ou demérita, quando chega 
a ter inferiores, e os amigos se tornam menos inde­
pendentes e sinceros, os lisonjeadores mais numero­
sos ; abandonado à vaidade que deixou germinar em 
seu coração, deixa-se ir cegamente por onde o levam 
suas inspirações, embrenha-se cada vez mais em seu 
isolamento, na confiança absoluta de si próprio e 
em suas luzes : j á não é o amor-próprio o de que 
está possuído, é de idolatria. 
XV 
O ORGULHO 
A vanglória nem sempre se revela sob os mes­
mos aspectos. Nos homens de têmpera forte e in­
teligência elevada, este sentimento torna-se orgu­
lho ; permanece vaidade nos espíritos e caracteres 
medíocres. O objecto é o mesmo ; os meios são di­
ferentes. O orgulho é uma espécie de hipocrisia da 
virtude ; a vaidade tem a franqueza d� sua fraqueza. 
O orgulhoso repele o louvor com medo de prej udicar 
268 O CRITÉRIO 
pelo ridículo o seu renome. Com grande verdade se 
tem dito do orgulhoso que é muito altivo para ser 
vão. No fundo, não deixa de experimentar pelo lou­
vor grande atracção ; porém conhece que o louvor 
deixa de ser honroso a quem por ele se deixa em­
briagar. Assim j amais vos meterá o turíbulo na 
mão, antes saberá exigil" que lho tenham a distância. 
O deus permite que se lhe erijam templos mag­
níficos ; ama o culto esplêndido, mas quer ficar oculto 
nas misteriosas profundezas do santuário. 
Esta paixão, mais culpável aos olhos de Deus 
do que a própria vaidade, está todavia menos expos­
ta ao ridículo. Somente digo menos exposta, por­
que é bem difícil que o orgulho se apodere de um 
coração sem degenerar em vaidade ; não pode a fic­
ção prolongar-se indefinidamente. Estimar os lou­
vores e testemunhar que se desprezam, ter como ob­
j ecto principal os gozos da glória e fingir sentimen­
tos inteiramente diferentes : tal _dissimulação está 
acima das forças humanas. Cedo ou tarde se rasga 
enfim o véu e se deixa ver a verdade em toda a 
sua vergonhosa nudez. 
O orgulhoso não pode pois confundir-se com o 
homem vão. Inspira-nos um sentimento ainda mais 
desfavorável : pois o homem vão provoc·a a zombaria, 
e também a indignação. 
Ó CRIT�il.lú 269 
XVI 
A VAIDADE 
A_ vaidade não irrita, desperta compa1xao, e 
fornece o pábulo à sátira. . Longe de desprezar os 
outros homens, o vaidoso os respeita, admira-os tal­
vez e aceita suas opiniões. Mas é devorado p ela 
sede de louvores. 
E stes louvores, pr.ecisa ele ouvi-los sem inter­
mediário ; precisa saber que é ele, exactamente ele, 
o elogiado ; comprazer-se longamente neste supremo 
gozo, mostrar-se reconhecido às almas benévolas que 
assim lisonj eiam sua fraqueza ; exprimir-lhe com 
inocente sorriso sua íntima alegria, sua felicidade, 
sua profunda gratidão. Praticou uma acção boa ? 
por piedade, falai . . . que ele saiba que vos é conhe­
cida e que admirais essa acção ; não o façais consu­
mir-se ; não vedes que morre por fazer cair a con­
versação sobre o assunto amado ? Cruel ! não que­
reis compreender que o bom do homem vos põe em 
caminho ; que o obrigais, com vossas distracções, a 
tornar-se mais explícito, a vos suplicar, enfim ! . . . 
Aprovastes o que €le diz, escreve ou faz : que 
alegria ! Mas notai que tudo ele deve à inspiração, 
à fecundidade de sua veia, que não houve preparação ! 
Não notais tantas belezas, tantos traços felizes ? Por 
270 O CRlTÉRIO 
piedade, não aparteis a vista de tantas maravilhas ; 
não faleis de outra coisa ; deixai-o gozar a sua feli­
cidade ! ele não é altivo, nem desdenhoso, nem mesmo 
exclusivo. Não se irrita com os outros serem elo­
giados, contanto que ele tenha a sua parte. 
Com que ingênua complacência conta seus tra­
balhos, suas aventuras ! sua vida é uma verdadeiraepopéia. Os factos mais insignificantes tornam-se 
episódios do maior interesse ; as vulgaridades, rasgos 
de gênio ; as soluções mais naturais, o resultado de 
combinações profundas. Tudo refere a si, a história 
de seu país e de seu tempo é um grande drama de 
que ele é o herói ; só lhe agrada aquilo em que entra 
o seu nome. 
XVII 
NOS NEGóCIOS É MAIS FUNESTA A INFLU:í!:NCIA 
DO ORGULHO DO QUE A DA VAIDADE 
Este defeito não tem, na prática, os nomes in­
convenientes, ainda que é mais ridículo. Como é 
antes uma inclinação para o louvor do que paixão de 
superioridade, não exerce sobre o entendimento tão 
maléfica influência. E� o cunho dos caracteres fra­
cos, como o prova a facilidade com que ó homem 
vão se deixa ir ao seu pendor. Longe de repelir os 
conselhos como o orgulhoso, busca-os por vezes : 
um, nada quer dever senão a si próprio e desprezt. 
O CRITÉRIO 
toda a honra partilhada ; o outro aceita de tod·as as 
mãos, e respiga de boa mente no sulco alheio. 
Algumas lisonjarias colhidas depois de um sucesso , 
um perfume de louvores, qualquer que s.eja, eis o 
bastante para o vanglorioso. 
XVIII 
COMPARAÇÃO DO ORGULHO COM A VAIDADE 
O orgulho encerra mais malícia, a vaidade mais 
fraqueza ; um concentra as faculdades da alma, a 
outra as dissipa ; o orgulho pode inspirar grandes 
crimes, a vaidade sugere ridículas pequenezas ; o 
orgulho é acompanh·ado de um sentimento enérgico 
de independência e superioridade, a vaidade alia-se 
com a desconfiança de si, e até com a submissão ; 
o orgulho torna inflexíveis as molas da alma, a vai­
dade as relaxa ; o orgulho é violento, a vaidade é 
carinhosa ; o orgulho busca glória, mas com certa 
dignidade, com lentidão, com império : não se degra­
da ; a vaidade a busca também, mas com abandono, 
com moleza, com certa lan guidez ; a vaidade é, se 
assim me posso expressar, a efeminação do orgulho ; 
assim é mormente particular às mulheres. A in­
fância tem mais vaidade que orgulho ; o orgulho é, 
por excelência, o defeito viril, o defeito da idade 
madura. 
272 O CRITÉRIO 
Bem que teõricamente estes dois vícios se dis­
tingam pelos caracteres que acabamos de assinalar, 
não se deve crer, todavia, que na prática se encon­
trem com sinais tão característicos. 
Comumente manifestam-se no coração humano 
misturados, confundidos, tendo cada qual não só suas 
épocas, senão seus dias, suas horas, seus momentos. 
Dir-se-iam duas cores apenas distintas ; somente por 
certos matizes, certas irregularidades, reflexos pal ­
ticulares, as distinguem os olhos exercitados. 
Em suma, o orgulho e a vaidade não são senão 
uma e a mesma coisa : a forma, a aparência mudam 
segundo os irradiamentos da claridade, os reflexos 
da luz ; no fundo, ambos são a exageração do amor;.. 
-próprio, o culto de si mesmo. O ídolo ou se cobre 
com um véu, ou se apresenta à adoração com rosto 
afável e risonho, mas é o mesmo ídolo, o homem ! o 
homem que, num altar que levanta em seu coração, 
se queima o incenso dos louvores, e quereria ver a 
seus pés o resto dos mortais. 
XIX 
DE QUANTO ESTA PAIXÃO É GERAL 
Podemo-lo afirmar, o orgulho é a mais geral de 
todas as paixões. À parte algumas almas privile­
giadas, submersas nos ardores do amor divino, não 
O CRITÉRIO 273 
há excepção. O orgulho cega tanto o ignorante 
como o sábio, tanto o pobre como o rico, tanto o 
fraco corno o forte, tanto o j ovem como o velho. 
Tudo verga sob o peso de sua lei. Domina o liber­
tino e perturba o coração do homem austero ; domh:l 
nas classes altas, e penetra nos mais humildes e re­
tirados claustros ; resplende na fisionomia da nn­
lher altiva que reina nos salões por nascimento, b �-
1eza e talentos, e se deixa perceber na palavra tí­
mida ou sob o véu da reclusa, que, saída de uma 
família obscura, se internou em uma casa de paz, 
e aí, ignorada dos homens, só espera as sombras de 
um túmulo humilde. 
IIá corações castos, corações isentos de cobiça, 
de invej a, de ódio, de vingança ; mas não há cora­
ção inteiramente livre desta exageração de amor­
-próprio que, segundo a forma que reveste, se ape· 
lida orgulho ou vaidade ! O sábio cornpraz-se em sua 
ciência ; o ignorante saboreia a própria parvoíce ; o 
homem corajoso gosta de contar suas proezas, o ho­
nern do mundo suas aventuras, o · avaro sua econo­
mia, o pródigo sua generosidade, o leviano sua viva­
cidade, o espírito tardio o seu peso ; o libertino alar­
deia suas desordens ; o homem austero deleita-se na 
idéia de que o seu semblante mostre aos homens a 
mortificação e o j ej um. 
E' universal esta paixão ; é a mais insaciável das 
paixões quando se lhe largam as rédeas, a mais in-
274 O CRITÉRIO 
sidiosa ou a mais hábil em se subtrair ao j ugo. Se 
pela elevaç,ão, pela maturidade de espírito, pela 
energia de carácter, o homem chega a senhorear-se 
dela, logo o orgulho volta suas nobres qualidades 
contra si mesmas : impele o coração vitorioso a se 
comprazer na comtemplação das próprias virtudes. 
Ainda quando resistis ao orgulho com a única arma 
verdadeiramente poderosa, a abnegação cristã, ele se 
não confessa vencido : temei suas traições, suas em­
boscadas. Até na humildade ele sei oculta ; o réptil 
arrancado de vosso seio se arrasta e rola ainda a 
vossos pés : esmagais-lhe a cabeça e ele vos morde 
o calcanhar. 
XX 
NECESSIDADE DE LUTA CONTíNUA 
Visto que o orgulho é uma das imperfeições da 
nossa humanidade ; visto que devemos viver com 
este inimigo em luta sem tréguas, não o percamos 
jamais de vista ; encerremo-lo no mais estreito cír­
culo ; levantemos incessantemente contra ele novas 
barreiras . Se o mal é incurável, saibamos pelo me­
nos deter seus progressos e colocar-nos ao abrigo da 
última desgraça. Senhor do orgulho, o homem é 
senhor de si mesmo ; seu j uízo se amadurece e se 
aperfeiçoa ; faz progressos mais rápidos no conheci-
o crunruo 275 
mento das coisas e dos. homens ; a mesma glória, gló­
ria tanto mais meritória quanto menos ele a pro­
cura, torna-se muitas vezes o fruto desta conquista. 
XXI 
O ORGULHO NÃO É O úNICO DEFEITO QUE NOS 
INDUZ AO ERRO AO PROPOR-NOS UM FIM 
A fim de nos não enganarmos na escolha do 
fim a que devemos tender, para que nos proponha­
mos um fim realizável, é mister antes de tudo co­
nhec·ermo-nos a nós mesmos. Já o dissemos : a maior 
parte dos homens caminham à ventura, ou porque não 
fixam a seus esforços um fim determinado, ou por­
que o que se propõem não está em relação com seus 
meios. Tanto na vida particular como na pública 
não . é fácil conhecer bem o que se pode. O homem 
ilude-se imensamente sobre o alcance das próprias 
forças, sobre o uso que delas deve fazer, sobre o 
·momento em que delas se deve servir. A vaidade as 
exagera, assim como a pusilanimidade as atenua além 
dos limites da verdade. O nosso coração é um abis­
mo de contradições. Com extrema facilidade levan ­
tamos imensas torres de Babel na insensata espe­
rança de atingir o céu. Passa-se um dia ; a timidez 
sucede à audacia, e nem ao menos ousamos edificar 
uma choupana. Verdadeiras cri'anças. que ora es. 
276 O CRITtRIO 
peram, subindo a colina, tocar com a mão a abóbada 
dos céus, ora tomam por estrelas que brilham a 
imensa distância no n:rais elevado do firmamento, 
baixas e passageiras exalações da atmosfera sublu­
nar. Talvez que estas crianças ousem às vezes mais 
do que podem, mas também não é raro que nada pos-
sam, porque nada ousam. 
, 
Qual é pois aqui o meio de chegar à verdade ? 
pergunta difícil de responder e sobre a qual só ca­
bem reflexões mui vagas. O homem ignora-se a si 
mesmo ; como conhecerá pois o que pode ou deixa 
de poder ? Com a experiência, dir-se-á. A expe­
riência é com efeito um hábil mestre, mas não se 
adquire senão vagarosamente e muitas vezes só dá 
frutos ao declinar da vida. Não digo que esta ver­
dade esteja fora de nosso alcance ; pelo contrário 
tenho indicado em muitos lugares desta obra os meios 
de a conseguir. Assinalo a dificuldade, não a im­
possibilidade ; ora, esta dificuldade, longe de nos 
abater,deve encoraj ar nosso ardor e inspirar-nos 
diligência. 
XXII 
DESENVOLVIMENTOS DE FORÇAS LATENTES 
Há no espírito humano certas faculdades que 
permanecem no estado de forças latentes até qu� 
O ·CRIT�RIO 277 
alguma ocasião as desperte e ponha em movimento. 
Os que as possuem nem ao menos as suspeitam. 
A maior p·arte dos homens desoem ao túmulo sem 
ter dado por este tesouro, sem que um raio de sol 
se tenha reflectido sobre este diamante puro que 
um acaso feliz pudera colocar, como primeiro talvez, 
em brilhante diadema. 
Quantas vezes uma cena, uma leitura, uma in­
dicação, remove o fundo da alma e dela faz brotar 
inspirações misteriosas ! Fria, insensível, inerte, um 
momento depois quando ninguém o suspeitava é como 
cratera aberta, lançando turbilhões de fogo. Que 
aconteceu ? Foi removido um pequeno obstáculo que 
impedia a comunicação com o ar livre ; apresentou­
-se à massa eléctrica um corpo atraente e o fluido 
se lançou ; saltou com a rapidez do raio. 
O espírito desenvolve-se com o contacto dos ou­
tros espíritos, pela leitura, pelas viagens, pela con­
templação das grandes cenas da natureza ou das 
grandes obras d'arte, e, coisa notável, menos em vir­
tude do que recebe de fora do que das descobertas 
que faz dentro em si mesmo. Se a faculdade que 
um feliz encontro revelou ao homem se conserva 
nele viva e inteira, pouco importa que esqueça o 
que por ventura tem ouvido ou lido nos livros. A 
luz está acesa ; arde sem se extinguir : que precisão 
tem ele da centelha que a acendeu ? 
278 O CRITÉRIO 
Uma alma experimentada dorme o sono da ino­
cência : seus pensamentos são os pensamentos do 
anjo sob a vista de Deus ; suas ilusões ou sonhos têm 
a pureza destes flocos de neve que o vento de in· 
verno amontoa no flanco das serras ; mas soou uma 
hora, hora fatal : cai o véu, a ilusão cede a vez à rea­
lidade, desaparece o mundo plácido da inocência e o 
horizonte calmo e sereno cobre-se com um mar de 
fogo e tempestades. Uma leitura, uma conversação 
imprud{'mte, a presença de obj ectos sedutores, eis 
a história do despertar de nossas paixões ; esta é 
também a história do despert·ar de grande número 
de nossas faculdades. Ligada ao corpo por incom­
preensíveis laços, nossa inteligência foi criada para 
estar em contacto, com as outras inteligênci-as ; certas 
de seu poder, permanecem encadeadas até que algum 
impulso exterior venha quebrar os seus laços. 
Se nossas aptidões particulares nos fossem co­
nhecidas, ser-nos-ia fácil, aplic'ando-as aos obj ectos 
de sua escolha, desenvolv.ê-las e tirar delas todo o 
partido. Mas acontece freqüentemente que uma vez 
tomada a carreira da vida, não pode o homem volver 
atrás e desf-azer o caminho que a educação, a profis­
são escolhida ou imposta lhe haj am feito percorrer ; 
é preciso que aceite as coisas tais como elas são, 
aproveitando-se do bem e evitando o mal : nisto se 
cifra toda a sabedoria humana. 
O CRITÉRIO 279 
XXIII 
AO PROPOR-NOS UM FIM DEVEMOS GUARDAR-NOS 
AO MESMO TEMPO DA PRESUNÇÃO E DA 
EXCESSIVA DESCONFIANÇA 
Em todas as carreiras, em todas as posu;oes, e 
quaisquer que sej am seus talentos, seus gostos, seu 
carácter, deve o homem servir-se da razão, quer para 
descobrir e propor-se um fim realizável, quer para 
buscar e empregar os meios convenientes para chegar 
a esse fim. 
O fim deve ser proporcional aos meios, e estes 
são as forças intelectuais, morais ou físicas e os de­
mais recursos de que possa dispor. Visar a um fim 
fora de seu alcance é despender inutilmente as for­
ças ; porém permanecer em inacção, ou não aspirar 
ao que a experiênciq e a razão nos mostram como 
fim legítimo, é de algum modo desconhecer as vistas 
da Providência ; é resistir a seus desígnios sobre nós. 
XXIV 
A PREGUIÇA 
Se é prudente desconfiar da presunção, se con­
vém não andar de leve ao resolver empresas difíceis 
280 O CRITÉRIO 
e perigosas, importa do mesmo modo não esquecer 
que a preguiça se pode ocultar soL urna aparência. 
de resistência às inspirações do orgulho e da vai­
dade. 
O orgulho é mau conselheiro e mau guia ; difícil 
é preservarmo-nos de seus embustes. Pois na pregui­
ça acha um digno rival dele. O homem ama as ri­
quezas, a glória, os prazeres ; mas ama também o 
não fazer nada; v.erdadeiro gozo a que algumas vezes 
sacrifica sua reputação e bem-estar. Bem conhe­
cia Deus a natureza humana, quando a puniu com 
trabalho. Comer o pão com o suor do rosto é para 
o homem c·astigo contínuo e freqüentemente mui duro. 
XXV 
UMA VANTAGEM DA PREGUIÇA SOBRE AS 
OUTRAS P AIXóES 
A preguiça, isto é, a paixão do repouso, tem, 
para triunfar, uma vantagem sobre as demais pai­
xões ; é que nada exige áe nós. Com efeito, o obj ecto 
da inacção é puramente negativo. Não se pode con­
seguir uma posi�ão elevada sem muita actividade, 
esforços e constância. Um nome glorioso supõe tí­
tulos que o mereçam, e estes títulos não se adquirem 
sem fadiga. O amor das riquezas impõe trabalho 
perseverante, combinações hábeis ; até os prazeres 
O CRITI1RIO 281 
mais efeminados se não alcançam sem os procurar ; 
são o prêmio de certos esforços. Toda a paixão de­
manda labor, só a preguiça é que nada exige. Sa­
tisfá-la-eis melhor assentados que de pé, melhor 
deitados que assentados, melhor a dormir que acor­
dados. A sua tendência é o nada ; o nada é seu 
limite extremo. Quanto mais o preguiçoso se ani­
quila em sua existência, tanto mais é feliz. 
XXVI 
ORIGEM DA PREGUIÇA 
Em nossa organização e no modo com
'
o se exer­
cem em nós as funções vitais encontraremos a origem 
da preguiça. Toda a acção demanda certo emprego 
de forças, de maneira que contém um princípio de 
fadiga e portanto de dor. Quando a despesa de 
força é insignificante ou não se exerce senão durante 
o tempo necessário ao desenvolvimento das forças 
orgânicas, o sofrimento é nulo ; pode até haver pra­
zer. Mas logo que a perda se torna sensível começa 
a fadiga. E is por que os mesmos preguiçosos não 
raro empreendem certos trabalhos com alegria . 
Note-se que dizemos empreendem. É talvez por igual 
razão que os homens mais vivos raramente são labo­
riosos. O ardor e intensidade de seus esforços de­
vem excitar neles, antes que nas organizações calmas, 
282 O CRITtRIÚ 
a sensação do cansaço ; acostumam-se mais fàcilmen­
te a olhar o trabalho com aversã.o. 
XXVII 
PREGUIÇA DO ESPíRITO 
Como todo o exercício d'as faculdades intelectuais 
é acompanhado de certos actos orgânicos, a preguiça 
desempenha notável papel nos fenómenos activos da 
inteligência, como nos do corpo ; não él o espírito que 
se cansa, mas sim os órgãos corporais que dele estão 
ao serviço. Daí vem que às vezes se experimenta, 
para pensar ou querer, a mesma repugnância que 
para os mais pesados trabalhos manuais. Note-se que 
estas preguiças não são necessàriamente simultâneas 
e pode existir uma sem a outra. 
A fadiga do corpo, a fadiga puramente muscu­
lar, nem sempre produz prostração intelectual ou 
moral ; todos temos observado isto. Do mesmo mo­
do, depois de intensos ou demorados trabalhos do 
espírito, quando se acham completamente esgotadas 
as forças intelectuais, exercemos algumas vezes as 
forças físicas com verdadeiro prazer. Este fenó­
meno explica-se por este facto : as alterações do sis­
tema muscular estão longe de ser proporcionadas 
às alterações do sistema nervoso. 
O CRITÉRIO 283 
XXVIII 
RAZõES QUE CONFffiMAM O QUE DEIXAMOS DITO 
SOBRE A ORIGEM DA PREGUIÇA 
Para confirmar que a preguiça é um instinto 
de precaução contra o sofrimento, podemos fazer 
as seguintes observações : 1. o Que a acção, longe de 
repugnar, se torna atraente quando tem por obj ecto 
o prazer ; 2 .0 qu� ao fim de um trabalho a repug­
nância é maior, porque, para pôr os órgãos em acção, 
é preciso particular esforço ; 3.0 que a repugnância 
é nula quando, feitos j á os movimentos, ainda não 
tem decorrido bastante tempo para fazer-se sentir 
o cansaço que nasce do esgotamento das forças ; 4.0 
a r�pugnância reaparece e aumentaà medida que 
o cansaço se produz ; 5. o que os homens de grande - - ­
vivacidade são mais atreitos a experimentar esta 
repugnância , porque são os primeiros a experimentar 
a dor ; 6.0 que os caracteres móveis e ligeiros rara­
mente são isentos deste defeito, por isso que o es­
forço exigido p�lo trabalho não é o único que lhes 
é imposto, pois têm de vencer também a inclinação 
a mudar de objecto. 
284 O CRlTtRIO 
·---------
XXIX 
A INCONSTANCIA ; SUA NATUREZA E ORIGEM 
A inconstância, aparentemente excesso de acti­
vidade, pois que nos impele incessantemente para 
novos objectos, não é, no fundo, senão uma preguiça 
disfarçada. A inconstância substitui um trabalho 
a outro para evitar se eximir à continuidade de acção 
determinada. Assim é que, geralmente, os pregui­
çosos são grandes forjadores de proj ectos. Os pro­
jectos, vasta carreira aberta a divagações, nenhuma 
sujeição exigem do espírito . É também por isso que 
sucessiva ou simultâneamente gostam de empreender 
muitas coisas, com a condição, todavia, de nenhuma 
levar a cabo. 
XXX 
PROVAS E APLICAÇÃO 
Quantos homens não sacrificam à sua incons­
tância os interesses e deveres mais sagrados ! São­
-lhes impostos certos trabalhos : - abandonam-nos 
por outros, talvez mais penosos, mas que eles mesmos 
escolheram ; - um negócio importante os chama ; 
o tempo urge : - esquecem-se em inúteis conversá· 
O CRIT�RIO 
ções. Deve-se tratar em sua presença questões do 
mais alto interesse ; com algumas horas de estudo, 
alguns esforços, pôr-se-iam em estado de dar o seu 
parecer com conhecimento de causa : - estas horas, 
que o dever reclama, empregam-nas eles em vãs 
discussões. A política, a guerra, as ciências, a 
literatura, tudo lhes serve de agradável assunto, uma 
vez que não sej a obrigatório. 
Mas, passear, conversar, discutir, é obrar ; é 
exercer as faculdades do corpo, ou as do espírito ; 
e no entanto os passeadores e os faladores abundam, 
ao passo que os homens verdadeiramente laboriosos 
são raríssimos. E por que ? E' que o passeio, a dis 
cussão, a conversa não contrariam a inconstância, 
não exigem esforço e admitem variedade e mudança, 
trazem consigo alternativas de exercício e de repousv, 
inteiramente sujeitos à vontade e ao capricho. 
XXXI 
O JUSTO MEIO ENTRE OS EXTREMOS 
Evitar a pusilanimidade sem fomentar a pre­
stmção, sustentar, excitar a actividade sem desper· 
tar o amor-próprio, dar ao espírito o sentimento de 
suas forças sem o cegar pelo orgulho : ciência é mui 
difícil quando se trata de outrem, bem mais difícil 
286 O CRITÉRIO 
ainda quando se trata de si mesmo. É esta a ciência 
que o Evangelho ensina ; é o triunfo da razão. Os 
escolhos que assinalamos, nós os devemos costear 
incessantemente, não com esperanças de os evitar 
todos e de lhes escapar sempre, mas com desej o e 
esperança de sobreviver aos naufrágios. 
A virtude é difícil, mas não é impossível. O 
homem não a alcança aqui na terra sem mescla de 
muitas dificuldades que a deslustram ; porém não 
carece dos meios suficientes para a aperfeiçoar. A 
razão é um monarca condenado a uma luta sem tré­
guas contra vassalos revoltados ; mas Deus lhe deu 
as forças necessárias para combater e vencer : luta 
terrível, cheia de asares e perigos, mas, por issG 
mesmo, mais digna de tentar as almas generosas. 
Em vão neste século se tenta proclamar a omnipotên­
cia ou ascendente irresistível das paixões sobre a 
razão humana. Emanação sublime da Divindade, 
não foi a alma imortal abandonada por seu Criador. 
Não, não é dado a poder algum extinguir o senti­
mento da moral, quer no indivíduo, quer na� socie­
dades : no indivíduo, sobrevive este sentimento a to­
dos os crimes ; nas sociedades sobrevive a todos os 
tempos. No criminoso, o remorso reclama e vinga 
todos os seus direitos esquecidos nas sociedades, pro­
testam em comum os votos de heróicas dedicações. 
O CRITÉRIO 287 
XXXII 
A MORAL É O MELHOR. GUIA DO ENTENDIMENTO 
PRATICO 
A moral ! eis o guia por excelência do enten­
dimento prático. No governo dos povos, a política 
pequena é a dos interesses bastardos, da intriga, 
da corrupção ; a grande política é a do interesse 
geral, da razão e do direito. Na vida particular, o 
proceder tacanho é o dos manejos ignóbeis, das vis­
tas mesquinhas, do vício ; o proceder largo é o que 
a generosidade e a virtude inspiram. 
Ó justo e o útil parecem às vezes andarem se­
parados, mas esta separação não é muito duradoura ; 
aparentemente! seguem caminhos opostos, mas o fim 
a que se dirigem é o mesmo. Assim quer Deus ex­
perimentar a constância do homem, bem que nen. 
sempre remeta para a outra vida a recompensa de 
seus esforços. E, se acontece uma - ou· outra vez, será 
pequena recompe·nsa o descer ao túmulo com a alma 
tranqüila, sem remorsos, e com o coração cheio de 
esperanças ? 
Sim, a arte de governar não é outra coisa que 
a moral e a razão aplicada ao governo dos Estados. 
Sim, a arte de bem se conduzir não é outra coisa 
que o Evangelho em acção. Nem as sociedades, nem 
288 O CRITÉRIO 
os indivíduos esquecem impunemente os eternos prin­
cípios da moral ; s-e a estes princípios opõem os vis 
conselhos do interesse, cedo ou tarde se perderão 
nas próprias combinações. O interesse que se erige 
em ídolo não tarda a tornar-se vítima : a experiência 
aí está para o atestar. Esta verdade acha-se escri­
ta em todas as páginas da história com caracteres 
de sangue ! 
XXXIII 
A HARMONIA DO UJ'.J"l:VERSO PROTEGIDA PELO 
CASTIGO 
Tod·a a culpa recebe um castigo. O universo 
está submetido a uma lei de harmonia ; quem pertur­
ba esta harmonia sofrerá em · sua organização ou no 
seu coração. Ao abuso das faculdades físicas segue­
-se a dor material ; às prevaricações do espírito su­
cedem o arrependimento e o remorso. Tal que pros­
seguia a glória com excessivo ardor encontra o ridí­
culo e a V€rgonha ; tal outro que, em seu desmesurado 
orgulho, queria ver o universo a seus pés, subleva 
contra si a indignação, a resistência, as humilhações 
e o insulto. O preguiçoso adormece na inacção, mas 
esta inacção devora seus recursos ; bate-lhe à porta 
a necessidade ; é mister que o excesso do trabalho e 
actividade venha .substituir o repouso culpável. O 
O CRIT:tRIO 289 
pródigo dissipa seus haveres nos prazeres e osten­
tação ; porém não tarda a chegar um vingador de 
seus desvarios na pobreza andrajosa e famélica, que 
lhe impõe em vez do. gozo privações, em vez do luxo 
e ostentação, escassez e vergonha. O avaro acumula 
tesouros com medo da pobr,eza, e no meio de suas 
riquezas sofre os rigores dessa mesma pobreza que 
tanto o amedronta. A nada se aventura para nada 
perder, desconfia até das pessoas de quem é mais 
amado ( isto se o avaro pode ser amado) ; no silêncio 
da noite, no seio das trevas visita os tesouros, afim 
de se assegurar de que seu ouro, isto é, sua alma 
está no mesmo sítio. Mas eis que um vizinho, um 
criado infiel, penetrou seu segr·edo, o tesouro desa­
parece, e a pobreza em toda a sua realidade entra em 
sua casa. 
Nas artes, na literatura, no trato quem muito 
quer agradar arrisca-se a desagradar : o excesso da 
delicadeza degenera em mau gosto ; o sublime to­
ca o ridículo ; a fineza torna-se afectação, o excessivo 
amor da simetria produz os contrastes mais discor­
dantes. 
No governo das sociedades, o abuso do poder 
arrasta à ruína do mesmo poder ; o abuso da liber­
dade conduz à servidão. O povo que pretende es­
tender demasiado suas fronteiras, vê-se obrigado a 
recuar muito para dentro das naturais ; o conquista­
dor que se obstina em acumular coroas sobre a ca-
290 O CRITtRlO 
.beça arrisca-se sempre a perdê-las todas, e tal que 
não pode contentar-se com o domínio de gigantescos 
impérios, vai finar-se sobre uma árida rocha soli­
tária na imensidade do oceano. Dos que ambicio­
nam o poder supremo, o maior número encontra a 
proscrição ou 'a morte. Apetecem o palácio de um 
monarca, e ficam s·em lar doméstico ; sonham com 
um trono e encontram o patíbulo.XXXIV 
OBSERVAÇõES SOBRE AS VANTAGENS OU DES­
VANTAGENS DA VIRTUDE NOS NEGóCIOS 
Não deixou Deus indefesas as suas leis ; deu­
-lhes por escudo o castigo que segue o crime, até 
neste mundo. Eis por que os cálculos baseados em 
interesses opostos à moral, geralmente, são enga­
nosos. A imoralidade cairá nos laços que da pró­
pria arma. Mas entendamo-nos bem ; não quero di­
zer que as condições de luta entre o homem de bem 
e o mau não sejam muitas vezes desvantaj osas ao 
primeiro. Sim, aquele a quem nenhuma considera­
ção detém, para quem todos os meios são legítimos, 
uma vez que levem :ao fim desej ado, convenho nisso, 
tem grandes vantagens sobre o homem de bem, a 
quem só a idéia da inj ustiça torna espavorido. Não 
ter senão um meio para se defender é arriscar-se a 
O CRITÉRIO 291 
ser vencido : mas se é verdade que em certos casos 
isolados a vantagem pertence aos maus, não o é me­
nos que com o tempo a balança se restabelece ; a Pro­
vidência encarrega-se do contrapeso, e ouso afirmar 
que não é raro ver, afinal, o homem recto em suas 
vistas e proceder conseguir o fim que discretamente 
se propôs, ao passo que o imoral expia, ·a hora mar­
cada, as suas iniqüidades ou seus crimes, encon­
trando 3.1 própria perda no fim de seus tortuosos ca­
minhos. 
XXXV 
UMA ACUSAÇÃO INJUSTA CONTRA A VIRTUDE 
Os homens virtuosos e desgraçados têm certa 
propensão para assinalar suas virtudes como ori­
gem de suas desgraças ; pois que a isto os inclina 
o desej o de ostentar sua virtude e ocultar suas im­
prudências ; que mui grandes imprudências se come­
tem também com a intenção mais recta e mais pura. 
A virtude não é responsável pelos males que a im­
previdência e leviandade arrastam ; e todavia acu­
sam-na com extrema facilidade. Minha boa fé me 
perdeu, exclama o homem de bem, vítima de uma 
perfídia. O que o p.erdeu não foi a sua boa fé, mas 
sim uma confiança irreflectida e absurda, quando 
tudo o advertia a que tivesse cuidado. Acaso os 
292 O CRITÉRIO 
maus não são também vítima dos outros maus ? e 
os pérfidos dos outros pérfidos ? A virtude nos 
ensina o caminho que devemos seguir, mas não se 
encarrega de descobrir os laços que neles podemos 
encontrar : isto pertence à penetração, à previdência, 
ao bom j uízo, isto é, a um entendimento claro e ati­
lado. Estes dotes não excluem a virtude, vivem com 
e!a em perfeita harmonia, mas não são uma e a 
mesma coisa. Como fiel amigo da humanidade, al­
berga-se sem repugnância no coração de toda a clas­
se de homens, quer neles brilhe esplendente e puro 
o sol da inteligência, quer o obscureçam densas nu­
vens. 
XXXVI 
UMA ACUSAÇÃO INFUNDADA CONTRA A CI11'.:NCIA 
Crêem alguns que os grandes talentos propen­
dem naturalmente para o mal : isto é uma como 
blasfêmia contra a bondade do Criador. Acaso a 
virtude necessita de trevas ? PDr ventura os éonhe­
cimentos e virtude da criatura não. emanam da mes­
ma origem, do pélago de luz e santidade� que é Deus ? 
Se a elevação da inteligência conduzisse ao mal, a 
maldade dos entes estaria em proporção com sua 
altura ; adivinhais a conseqüência ? por que não tirá-
O CRinRIO 293 
-la ? A sabedoria infinita seria a maldade infinita : 
eis-nos no erro dos maniqueus, estabelecendo no alto 
da escala dos bons um princípio mau : mas que digo ? 
pior fora este erro do que o de Manes ; pois que nele 
não se poderia admitir um princípio bom. O gênio 
do mal presidiria sem rival e inteiramente só aos 
destinos do mundo ; o rei do A verno deveria colocar 
seu trono de negra lava nas esplendentes regiões do 
empíreo. 
Não, não deve o homem fugir da luz com medo 
de cair no mal, a verdade não teme a luz e o bem 
moral é uma .grande verdade. Quanto mais ilustra­
do esteja o entendimento, melhor conhecerá a ine­
fável beleza da virtude, e, conhecendo-a melhor, me­
nos dificuldades terá em praticá-la. Rara vez há 
grande elevação nas idéias, sem que dela participem 
os sentimentos ; e os sentimentos elevados ou nas­
cem da mesm� virtude ou são uma disposição muito 
a propósito para a alcançar. 
Até há em favor do talento e do saber uma 
razão fundada em a natureza das faculdades d·a al­
ma. Sabe-se que certas faculdades não se aperfei­
çoam em nós senão à custa doutras faculdades me­
nos cuidadosamente desenvolvidas. Ora, cultivar as 
qualidades superiores é diminuir ·a força das paixões 
grosseiras, fonte dos vícios. 
A história do espírito humano confirma esta 
verdade : geralmente falando, os homens de enten-
294 O CRITÉRIO 
dimento muito elevado não têm sido perversos ; muitos 
se distinguiram por suas eminentes virtudes ; ou­
tros foram débeis como homens, mas não malvados ; 
e se um ou outro chegou a este extremo deve ser 
considerado como excepção, e não como regra. 
Sabeis porque um malvado de grande talento 
compromete, por assim dizer, a reputação dos de­
mais, ocasionando que de alguns casos particulares 
se tirem deduções gerais ? Porque num malvado de 
grande talento todos pens·am, e dum malvado néscio 
ninguém se lembra ; porque formam um vivo con­
traste a iniqüidade e o· grande saber, e este contras­
te torna mais sensível o extremo feio ; pela mesma 
razão que se repara muito mais na relaxação de 
um sacerdote que na de um secular. Assim, nin­
guém repara nas manchas de um cristal desluzido, 
ao passo que num c ristal puro e brilhante o mais leve 
defeito atrai as atenções de todos. 
XXXVII 
AS PAIXóES SÃO BONS INSTRUMENTOS, l\'IAS 
PÉSSIMOS CONSELHEIROS 
Vimos no capítulo XIX quão pernicioso é o in· 
fluxo d·as paixões para impedir-nos o conhecimento 
da verdade, ainda a especulativa ; porém o que ali 
O CRITÉRIO 295 
se disse em geral tem muito mais aplicação refe� 
rindo-se à prática. 
Quando tratamos de executar alguma coisa, as 
paixões são às vezes excelente auxiliar, mas para 
prepará�la em nosso entendimento, são conselheiros 
mui perigosos. 
O homem sem paixões seria frio, teria alguma 
coisa de inerte, por c·arec!1r de um dos princípios 
tnais poderosos de acção que Deus concedeu à natu­
reza humana ; porém, em troca, o homem dominado 
pelas paixões é cego, desaia e procede à maneira 
dos brutos. 
Examinando atentamente o modo de obrar de 
nossas faculdades, vê�se que a razão é própria para 
dirigir e as paixões para executar ; e assim é que 
aquela atende não só ao p1·esente, mas também ao 
passado e futuro, ao passo que estas só conside­
ram o obj ecto no momento actual e pelo modo como 
nos afecta. 
A razão como verdadeira directora faz-se cargo 
de conhecer tudo o que pode danar ou favorecer, 
as paixões unicamente encarregadas de executar, só 
cuidam do momento e das impressões actuais. A ra� 
zão não se detém só no prazer, senão em utilidade, 
moralidade e no decoro ; as paixões prescindem do 
decoro, da moralidade e da utilidade, de tudo que 
"�ão sej a impressão agradável ou desagradável, que 
TIO acto se experimenta. 
296 O CRITÉRIO 
XXXVIII 
A HIPOCRISIA DAS PAIXõES 
Pela palavra paixões não entendo tão sõmeJJt" 
estas afecções violentas e cheias de tormento, que 
s:io em nossa alma o mesmo que as tempestades n1 
Dceano, mas ·ainda essas inclinações mais doces t 
mais espiritualizadas, que parecem aproximar-se da:::. 
regiões superiores\ da alma e a que se dá o nome de 
s�ntimentos. Tempestuosas ou ternas, as paixões 
no fundo são o mesmo : não diferem senão na forma, 
na intensidade, no modo de se aplicarem ao obj ecto. 
Tanto mais formidáveis quanto menos inspiram te­
mor, sua delicadeza é demais uma sedução. 
Quando a paixão se apresenta em toda a sub. 
�isformidade e violência, ab·alando brutalmente u 
espírito e empenhado-se por o arrastar por maus 
caminhos, este toma as devidas precauções contra 
o adversário, prepara-se para a luta, resultando tal­
vez que a impetuosidade do ataque provoque heróica 
defensão. Porém se a paixão depõe seus modos 
violentos, se se despoj a, por assim dizer, de seus 
traj es grosseiros, cobrindo-se com o manto da ra­
zão ; se suas sugestões se chamam conhecimentos, e 
suas inclinaçõesvontade ilustrada, porém decidida, 
O CRlTtRlO 297 
então tomará por traição a praça que não pudera. 
tomar por assalto. 
XXXIX 
EXEMPLO. DUAS FORMAS DE VINGANÇA 
Um homem tem nas mãos a solução de um ne­
gócio importante de que depende a sorte de um seu 
inimigo ; este homem pensa nas ofensas recebida:>, 
e o ressentimento se desperta em sua alma, ao res­
sentimento sucede a cólera, e à cólera a sede de 
vingança. Porque se não vingará ele ? A ocasião 
não pode ser mais favorável. Que prazm· ! ver com 
os próprios olhos o desespero do inimigo ! o inimigo 
traído em suas esperanças, escarnecido pela sorte, 
mergulhado na miséria ou obscuridade ! - Vingan­
ça ! e que este homem detestado saiba que a vingança 
parte de ti ! Retribui-lhe o mal com o mal. Rego­
zij ou-se com a tua desgraça, triunfa agora da sua : 
ressacia-te com suas lágrimas. Tem inocentes fi­
lhos que partilham a sua desgraça ; - não importa ! 
que eles morram, e com eles toda a sua raç·a inteira ! 
O seu pai já encarnecido morrerá de pesar ! - poi:; 
que morra também ! Deste modo mais numeroso:; 
serão os golpes vibrados no teu inimigo ; assim der­
ramarás em sua alma toda a amargura, todo o fel 
que um dia derramara na tua. Vingança ! nada de 
298 O CRITÉRIO 
piedade para quem tão desapiedado foi ! nada de 
generosidade par quem tão longe esteve de ser ge­
neroso ! 
Assim fala o ódio exaltado pela cólera ; mas 
essa linguagem é muito dura, muito violenta ; não 
a poderá ouvir um coração generoso ; o mesmo 
amor-próprio se revolta�á contra os odiosos conse­
lhos. Pois que ! regozij'ar-me-ei com a ruína de uma 
família ! precipitarei na miséria os filhos inocentes ! 
levarei ao túmulo um miserando velho ! Não ! não 
são estes os ensinamentos da honra ! A vingança 
é um prazer baixo e cruel ; a generosidade é a vir­
tude das grandes almas. Se meu amigo procedeu 
sem piedade, serei generoso para com ele ; a sua vista 
se abaixará diante de mim, subir-lhe-á o rubor às 
faces, seu c:oração sentirá remorsos : f ar-me-á 
justiça. 
O espírito de vingança havia-se mostrado im­
perioso, duro, exigente, absoluto, a alma portanto 
revoltou-se. A piedade, a justiça, um nobre orgu­
lho, vieram em seu auxílio : estes sentimentos fize­
ram pender a balança. Outro talvez teria sido o 
resultado, se a vinganç-a tivesse disfarçado seu as­
pecto repugnante ; se, oculta nas dobras mais secre­
tas do coração, e distilando de lá seu mortal veneno, 
tivesse adoçado sua voz e falasse em nome da justiça : 
" Ele ! merecer tal favor ! é mil vezes indigno dele. 
A indignidade de teu inimigo, eis o único motivo de 
O CRITÉIUO 299 
tua oposição ! Talvez experimentes secreto e vivo 
prazer em poder contrariá-lo, abatê-lo, perdê-lo, porém 
este sentimento não te domina ; o bem público pede, 
tu obedeces. Se, a pesar teu, tens naturais rancores, 
a prudência, a j ustiça, a razão, são pelo menos con­
cordes com o pendor de teu coração ; e o mal não é 
grande, uma vez que procedas com precauç.ão. Pro­
cede com serenidade afim de que se veja que não 
obras com espírito de ódio e parcialidade, antes que 
usas de um direito, e procedes segundo a voz impe­
riosa do dever. " 
A vingança impetuosa, violenta, francamente 
inj usta, fora vencida ; a vingança pacífica, insidiosa, 
hipõcritamente disfarçada sob a máscara da razão, 
áa justiça e do dever triunfa sem esforços. 
Eis por que tão funestos são os ódios exercidos 
em nome do zelo. Uma alma odienta, iludindo-se 
a si mesma e crendo obedecer a inspirações legítimas, 
talvez, à mesma caridade, é como a ave fascinada 
pela serpente ; fascinação tanto · mais perigosa, 
quanto menos a alma dá por ela. 
É então que a invej·a calunia sem remorsos as 
mais puras e brilhantes reputações ; os rancores tor­
nam-se inexoráveis e avançam denodadamente ao fim 
que se propõe ; então a vingança implacável se com·· 
praz nas agonias, nas convulsões, no desespero de 
suas vítimas. 
300 O CRITÉRlO 
O Salvador do mundo cumpre sua missão sobre 
a terra, os povos se atropelam seguindo seus pas­
sos ; Ele pass·a por entre os homens derramando 
o bem. Afável para com os pequenos, cheio de com­
paixão para com os infelizes, indulgente para com 
os criminosos, espalha a mãos-cheias os tesouros da 
sua omnipotência e de seu amor. Só palavras de 
perdão e doçura tem para todas -as misérias do co­
ração ; dir-se-ia que só para os hipócritas reserva 
a linguagem de uma santa e terrível indignação ; 
sua vista maj estosa e severa penetrou no fundo de 
seu coração e pôs a descoberto su-a falsidade. Os 
hipócritas não podem perdoar-lhe a confusão com 
que os cobriu ; devora-os a sede de vingança. Mas 
falarão eles em nome do ódio ? Obrarão em nome 
da vingança ? Não ! " Este homem é um blasfema­
dor, dizem eles ao príncipe dos sacerdotes, seduz 
o povo ; é inimigo de César. A fidelidade ao prín­
cipe, a tranqüilidade pública, a religião exige que 
ele morra. " Mercadej a-se a traição de um discí­
pulo : o inocente cordeiro é arrastado perante um 
tribunal. Sua tranqüilidade sublime, suas ·respos­
tas de verd·ade redobram a raiva dos falsos dou­
tores ; o chefe da sinagoga despedaça os vestidos 
exclamando : Blasfemou ! e o povo enganado pede 
a morte do j usto . " 
O CHlTÉRIÜ 301 
XL 
PRECAUÇõES 
Nunca o homem medita demasiado sobre os 
mistérios do coração ; nunca vela com demasiada 
vigilância às portas por ondB a iniqüidade se insi­
nua ; nunca se guarda demasiado dos laços que se 
arma a si próprio. Não é pois quando as paixões 
se aprBsentam tais como realmente são, de rosto 
descoberto, que elas se devem temer. Se o senso 
moral, se os germes de virtude não se acham ainda 
�xtintos no homem, à vista do vício, do vício hedion­
do B desnudado, ouve levantar-se em sua alma m1t 
como grito de indignação e de espanto. Mas que 
perigos se não corre quando as paixões, mudando 
de nome, disfarçando as feições, se nos apresentam 
à sombra da razão, do direito, do dever, quando nos 
aplicam aos olhos um prisma enganador, através do 
qual as coisas serão vistas diferentemente do que 
na realidade são ! 
O escolho mais perigoso para a inocência não 
é pois o arrastamento brutal de paixões grosseiras ; 
temei antes o enlevo dos sentimentos que encan­
; tam por sua delicadeza e seduzem pela doçura. O 
medo penetra nos corações nobres sob a máscara 
da prudência ; com o nome de economia, de sábia 
302 O CRITÉRIO 
previdência se insinua a avareza nas almas gene­
rosas e as avilta ; o orgulho oculta-se à sombra 
da dignidade pessoal ; a vaidade respinga seus go­
zos pueris, sob o vão pretexto de ouvir e fazer 
crítica ; a vingança adorna-se com o nome de j us­
tiça ; a cólera chama-se santa indignação ; a pre­
guiça invoca a necessidade do repouso ; e a inveja, 
implacável abutre, a inveja que atassalha as repu­
tações de mais mérito, que mancha com seu hálito 
impuro as mais santas virtudes, ex:erce seu da­
nado mister falando de justiça, de amor, de ver­
dade, dos perigos d.e uma admiração ignorante e 
de um entusiasmo pueril. 
XLI 
HIPOCRISIA DO HOMEM PARA CONSIGO MESMO 
O homem emprega a hipocrisia talvez mais 
para consigo mesmo do que para com os outros ; é 
raro que se dê conta exacta e escrupulosa do mó­
bil de suas acções ; é por isto que aind·a as virtu­
des mais puras têm alguma coisa de escóría. O · 
amor divino, eis o ouro sem liga ! mas este amor 
puro não é da terra, Em nossas provações no mun­
do, nutrimos em nós um princípio mau que mata, 
enfraquece ou vicia nossas virtudes. Obstar a que 
este germen fatal nos invada, é a obra , ê o labor 
O CRITÉRIO 303 
d€ toda a vida, obra difícil, labor penoso e cheio 
de angústia. Todavia, qualquer que seja nossa 
fraqueza, recebemos d·a mesma mão de Deus uma 
luz para nos guiar ; luz que j amais se extingue e 
nos aj uda a distinguir o bem do mal ; razão que 
nos esclarece ou consciência que nos pune. Procu­
ramos iludir-nos a nós mesmos, porque receamos 
esta luz, isto é, a oposição da consciência a nos­
sas inclinações, fechamosos ouvidos para não ou­
vir os queixumes desta inflexível conselheira a que 
nada corrompe, procuramo-nos persuadir, pelo me­
nos, que os princípios que ela impõe não são aplicá­
veis às circunstâncias presentes. NBste intento, 
correm as nossas paixões a ajudar-nos de modo 
deplorável, prestando-nos o apoio de seus sofismas. 
O homem não se resigna a parecer mau, mesmo a 
seus próprios olhos ; falta-lhe ânimo para isso, tor­
na-se hipócrita. 
XLII 
CONHECIMENTO DE SI MESMO 
O d€feito que acabamos de assinalar reveste 
todas as formas e se modifica até ao infinito. Eis 
por que muito convém nunca perder de vista este 
preceito dos antigos, tão profundamente sábio : Co­
nhece-te a ti mesmo ! Se há certas qualidades co-
304 O CRIT�RIO 
muns a todos os homens, tomam estas um carácter 
particular em cada um deles. Cada um de nós 
tem, para assim dizer, uma mola secreta a que 
obedece e que importa conhecer. Esta mola é a 
inclinaç.ão dominante. Todas as nossas paixões par­
ticipam desta inclinação ; €la se subordina e as 
submete todas a seu obj ecto ; entra em todos os 
actos da vida e constitui o que se chama carácter. 
Se nos é necessario descobrir esta mola em outrem 
para regular nossas relações com o mundo, quanto 
nos não é vantajoso descobri-la antes em nós ? Es­
te conhecimento é o segredo das grandes coisas, 
boas ou más. 
XLIII 
O HOMEM FOGE DE SI MESMO 
Se não tivéssemos a funesta inclinação de fu­
gir de nós mesmos, se a contemplação de nosso in­
terior nos não repugnara em tão alto grau, não nos 
fora difícil descobrir qual a paix.ão que em nós ou­
tros pr.€domina. Desgraçadamente de nada fugimos 
tanto como de nós mesmos, nada evitamos tant'J 
como a vista de nossa alma : o primeiro de nossos 
interesses é apenas a nossa última preocupação. 
Quantos homens descem ao túmulo não somente 
sem se conhecerem, mas sem jamais se procurarem 
O CRITtRIO 305 
conhecer ! Deveríamos ter sempre a vista fixa so­
bre nosso coração para conhecer suas inclinações, 
penetrar seus segredos, refrear seus ímpetos, cor­
rigir seus vícios, evitar seus extravios ; deveríamos 
viver nesta vida íntima em que o homem se dá 
conta de seus pensamentos e afectos, e não se põe 
em relação com os objectos exteriores, senão de­
pois de haver consultado sua razão e dado à sua 
vontade a direcção conveniente. Mas isto não se 
faz ; o homem consagra-se aos obj ectos que o inci­
tam, vivendo tão somente esta vida exterior que 
não lhe deixa tempo para pensar em si mesmo. 
Vêem-se entendimentos claros, corações belíssimos 
que não guardam para si nenhuma das preciosid·a­
des com que o Criador os enriquecera : que derra­
mam, para assim dizer, nas ruas e nas praças, o 
aroma esquisito, que guardado no fundo de seu in­
terior poderia servir-lhe de conforto e regalo. 
Refere-se de Pascal que, tendo-se dedicado com 
grande afinco às ciências matemáticas e naturais, 
se enfadou deste estudo pela razão de encontrar 
poucas pessoas com ·que conversar sobre o obj ecto 
de suas ocupações favoritas. Desej oso por encon­
trar materia que não tivesse este inconveniente, se 
dedicou ao estudo do homem ; porém depressa co­
nheceu por experiência, que os que se ocupavam em 
estudar o homem eram ainda em menor número que 
os afeiçoados às ciências matemáticas. 
306 O CRlTtRlO 
Isto se verifica na actualidade como no tempo 
de Pascal. Observe-se o que se passa no mundo, e 
veremos qu8o raros são os que se dedicam a este 
gênero de estudos, principalmente para deles fa­
zerem aplicaç.ão a si mesmos. 
XLIV 
BONS RESULTADOS DO ESTUDO SOBRE AS 
PAIXóES 
Conhecer as paixõ,es, analisá-las, determinar 
suas tendências, não é vencê-las. Pode o homem 
ter consciência e envergonhar-se de suas fraquezas 
e ceder no entanto a suas paixões. Todavia, se as 
conhece, desconfia de sua cegueira ; é este um prin­
cípio de sabedoria. O que j amais entra em si mes­
mo, o que se entrega, de olhos fechados, a todol) 
os caprichos de seu coração, esse corre necessària­
mt-nte à sua perda. O instinto, a vontade, os con­
selhos da razão, os impulsos do organismo tornam-· 
-se para ele uma e a mesma coisa. A razão não 
manda, obedece ; em vez de dirigir, de moderar, 
àe corrigir as inclinações revoltadas, torna-se cúm­
plice de suas desordens, escrava aviltada, provisio­
neiro sem repouso e sem pudor de seus insaciáveis 
caprichos ! 
O CRITtRIO 307 
XLV 
SABEDORIA DA RELIGIÃO CRISTÃ NA CONDUTA 
DAS ALMAS 
A religião cristã, convidando-nos a reflectir 
sobre nossas inclinações, a nos estudarmos, está de 
acordo com a mais sã filosofia e revela profundo 
conhecimento do coração humano. O que, em geral, 
falta ao homem não é o conhecimento especulativo 
do bem, mas sim a ciência prática, o conhecimento 
circunstanciado do benfazer. Quem não s.abe e 
não tem repetido mil vezes que as paixões, nos trans­
viam e nos perdem ? Mas bastará saber isso ? 
Conhecer a paixãOi que em tal ou tal caso faz pender 
a balança, a paixão que em nós predomina ; conhecer 
o disfarce sob o qual ela se apresenta ao espírito 
que pretende seduzir ; saber como é preciso repelir 
seus ataques ou livrar de seus estratagemas ; e sa­
bê-lo, não mais ou menos, mas de modo exacto, nítido, 
preciso ; de sorte que tenhamos sempre, para assim 
dizer, as armas prontas, e assim possamos, instan­
tâneamente, tomar resolução, qualquer que seja a cir­
cunstância ; eis o que muito importa. Arte difícil na 
verdade, mas a primeira de todas as artes. 
Nas ciências, o que distingue o homem supe­
rior do homem medíocre, é que o primeiro possui 
a fundo e pràticamente o que o outro não sabe se-
308 O CRITÉRIO 
não confusa e imperfeitamente. A superioridade 
não está pois no número, mas na qualidade das 
idéias . Com efeito, o primeiro nada sabe que não 
seja conhecido do segundo ; ambos têm as vistas 
voltadas para o mesmo obj ecto ; mas a vista de um 
é mais perfeita que a do outro, um vê melhor que 
o outro. 
Acontece ·assim na prática da vida. Um homem 
profundamente imoral pode falar da moral de mo­
do que prove que bem conhece suas regras ; mas 
destas regras é que ele nunca fez aplicação. Não 
tem experimentado de per si os obstáculos que po­
dem embaraçar a prática. Não logra reconhecer 
com bastante segurança o momento decisivo de se 
servir delas. Nem sua vontade escuta, nem sua 
inteligência compreende outra voz que a voz das 
paixões. Tem os princípios morais encerrados no 
mais fundo de seu coração como em arquivos, e 
nem sequer por curiosidade para aí lança os olhos 
com medo de ·acordar os remorsos. 
Mas, quando a virtude tem lançado em uma 
alma vivas e profundas raízes, estas mesmas re­
gras tornam-se uma espécie de gênio fami liar que 
preside a todos os pensamentos como a todos os 
actos da vida ; este gênio desperta-se e s-e põe aler­
ta ao menor perigo ; promr2te recompensas antes 
da luta, e atormenta a consciência logo que ela 
desobedece. A presença permanente das regras mo-
O CRITtRlO 309 
rais no espírito é o benefício da virtude, a qual 
deve também a esta intimidade sua força e dura­
ção ; assim a religião recomenda instantemente esta 
prática na persuasão de que cedo ou tarde dará 
bons frutos. 
XLVI 
OS SENTIMENTOS MORAIS COMO AUXILIARES DA 
VIRTUDE 
Em ajuda das idéias morais vêm os sentimen­
tos que também os há muito morais, poderosos e 
belíssimos. Se Deus permite às tempestades que 
se desencadeiem em nosso coração, também faz SO· 
prar as brisas com que caem e se esvaecem as 
vagas sublevadas. O hábito de obediência às re­
gras morais desenvolve e vivifica os sentimentos 
morais. 
E1' então que em seus esforços para o bem po · 
de o homem opor as boas inclinações às inclina­
ções más. A luta deixa de oferecer tantos peri­
gos para ele, e deixa principalmente de ser dolo­
rosa. A influência de uma paixão combate a paixão 
contrári'a ; a alegria de um triunfo compensa a dor 
de um sacrifício, e fica-se ao abrigo das dilacerações 
que a alma experimenta quando a razão se acha 
só na luta contra as inclinações do coração.310 O CRITÉRIO 
Desenvolver os sentimentos morais, chamar em 
auxílio da virtude as mesmas paixões, e, por sua 
intervenção, dissipar as trevas que os maus instin­
tos levantam na inteligênci'a, é fazer guerra à custa 
do inimigo, e em seu próprio território : regra de 
conduta de incontestável sabedoria . 
Nesta oposição de paixões, as combinações são 
infinitas. A dignidade p essoal contrabalança o amor 
dos prazeres ; o temor de se tornar odioso encadeia 
o orgulho ; a vaidade refreia-se com medo de se tor­
nar ridícula ; o amor de glória estimula a pregui­
ça ; a cólera se apaga para não parecer descompos­
ta ; a honra que segue a generosidade tempera a 
sede de vingança. O bem serve de contrapeso ao mal. 
Neutralizam-se os germes impuros que fermentam 
no coração humano, e o homem é virtuoso sem dei­
xar de ser sensível. 
XLVII 
UMA REGRA PARA OS JUíZOS PRATICOS 
Conhecida a mola principal do nosso coração, 
tendo os sentimentos nobres e generosos recebido 
o desenvolvimento de que são susceptíveis, resta­
-nos ainda conhecer a maneira de dirigir nosso en· 
tendimento para a verdade nos j uízos práticos. 
O CRITÉRIO 311 
A primeira regra que se deve ter presente é 
não j ulgar nem deliberar com respeito a obj ecto 
algum enquanto o espírito esteja debaixo da in­
fluência de paixão relativa ao mesmo objecto. Se 
estamos encolerizados, qualquer palavra, qualquer 
gesto, qualquer facto insignificante nos faz desati­
nar. " Não sõmente o ofensor teve intenção de nos 
ferir, mas ajunta o insulto ao mal que nos faz. Só 
o sangue pode lavar tal afronta : sem dúvida, con­
vém conter-nos e perdoar ; mas a honra tem suas 
exigências ! sem dúvida, é bom ser prudente ; mas 
deixar-se calcar aos pés está long€ de ser prudên­
cia ". Assim raciocina a cólera. Dir-nos-ão : a có­
lera não raciocina, erra ! a cólera raciocina, por­
que subj uga a inteligência e a força a servir seus 
interesses ; e os serviços que dela recebe os retri­
bui a seu turno com usura. Sabe-se a energia que 
as pa1xoes dão ao espírito, e os imprevistos recur­
sos que o espírito desenvolve debaixo de sua ins­
piração. 
Aplacada a cólera, o edifício dos raciocínios que 
ela havia levantado ruirá de per si ; o que prova 
que esta paixão nos ocultava a verdade. Julgare­
mos do mesmo modo antes e depois ? O coração rec­
to acabará por reconhecer com franqueza o pró­
prio erro diante do homem, de que, pouco antes, 
se pedia a vida. 
312 O CIUTÉRÍO 
XLVIII 
OUTRA REGRA 
Destas observações nasce outra regra, e é que 
ao sentir-nos debaixo da influênci'a de uma paixão, 
devemos esforçar-nos por imaginar, um momento 
sequer, qual seria o nosso proceder, se estivésse­
mos no estado normal. Semelhante reflexão, por 
rápida que seja, muito contribui para acalmar a 
paixão e excitar no ânimo idéi'as diferentes das su­
geridas pela inclinação cega. 
Por rápida que seja a reflexão, lançando a al­
ma em uma nova ordem de idéias e sentimentos, e, 
por assim dizer, em uma outra atmosfera, deve 
acalmá-la. Uma impulsão quebranta-se ao choque 
de impulsão contrária. Suprimir em nós tudo o 
que lhes faça oposição, sobrexcitar tudo o que as 
favoreça, eis o segredo das paixões, o segredo de 
seus sucessos e poder. Logo que a atenção se di­
rige a outra ordem de idéias, vem a comparação, e 
por conseguinte cessa o exclusivismo. Entretanto 
se desenvolvem outras forças intelectuais e mo­
rais não subordinadas à paixão, e esta perde de 
sua primitiva energia por ter de compartir com ou­
tras faculdades o império que antes desfrutava só. 
O CRIT:éRIO 313 
Não é somente sobre a experiência, mas sobre 
a mesma natureza de nossa organização que se 
apoia a regra prática que acabamos de indicar. 
Todo o acto de nossas faculdades intelectuais ou 
morais é logo seguido de um acto orgânico. Ora nos­
sos órgãos materiais receberam certa soma de força 
vital que despendem em diferentes proporções, de 
tal sorte que uns vão enfraquecendo à medida que 
outros se fortalecem. Se é verdade que a energia 
das paixões diminui em proporção com a actividade 
dada aos órgãos da inteligência, é útil exercer estes 
como contrapeso das paixões. 
Observemos todavia que para obter o resulta­
do pretendido, deve o esforço da inteligência ser 
dirigido em sentido contrário d·as más inclinações ; 
que, se a inteligência em vez de lutar contra es­
tas inclinações, as segue, semelhante cooperação a 
sobrexcita excessivamente. O que nesse caso po­
dem perder, por diversão, em energia puramente 
órgânica, o conseguem centuplicadamente em energia 
moral, pela multiplicação de meios próprios para 
alcançar o obj ecto, e por esta espécie de hábeas-cór­
pus que o espírito parece dar-lhes apoiando-as em 
vez de as combater. 
Este trabalho sobre paixões não é uma simples 
teoria. A experiência o confirma. Verdade é que 
nem sempre se encontra meio seguro para mode­
rar, conduzir, abafar a paixão, já senhora domi-
314 O CRITÉRIO 
nante ; que, mesmo depois de se haver encontrado, 
pode tal meio permanecer inútil em mãos inábeis ; 
porém, o que o procura vai exercendo grande vi­
gilância sobre si ; aprende a resistir aos primeiros 
movimentos e possui, em seus juízos práticos, uma 
regra de verdade que falta aos que jamais apren­
deram a reagir sobre seu próprio coração. 
XLIX 
O HOMEM RINDO-SE DE SI PRóPRIO 
Há uma arma que a observação nos ensina a 
empregar utilmente contra nós mesmos. Esta arma 
temível às paixões é o ridículo ; o ridículo, sal co­
locado no coração e nos lábios do homem como 
preservativo contra a corrupção intelectual e mo­
ral ; o ridículo, que não somente corrige os defei­
tos alheios, mas que, estigmatizando nossos pró­
prios defeitos, amendronta nosso amor-próprio e nos 
inspira aversão ao mal, pelo medo da sátira. Au­
tor e espectador simultâneamente, o homem vê 
desapiedadamente desvelados seus defeitos e· extra­
vagâncias, flagelados desapiedadamente por um 
adversário mordaz e de bom humor ; este adversá­
rio é ele próprio. A vítima é ele também. E não 
é certo que sobre os outros recai a zombaria que 
empregamos contra nós mesmos ? 
O CRlTtRlO 315 
Há dois homens em cada homem que j amais 
acordam entre si, que em luta incessante, encar­
niçada, disputam o império. Depois de ter em vão 
oposto a força da vontade, a autoridade da ra­
zão ao homem cego, imoral, insensato, que se re­
volta, o homem inteligente, moral, sábio, prudente, 
chama a sátira em seu auxílio : sátira que deve ser 
tanto mais graciosa e livre, quanto carece de tes­
temunhas, não fere a reputação, nada faz perder 
na reputação dos demais, pois que não chega a ser 
expressada com palavras, e o sorriso mofador que 
faz assomar ·àos lábios se extingue ao nascer. 
Um pensamento mofador, lançado no meio da 
exaltação das paixões, é como estes traços incisi­
vos, penetrantes, irónicos, cheios de sal e a propó­
sito, atirados por um orador hábil ao meio de uma 
assembléia em tumulto. O efeito é o mesmo. Quan­
tas vezes se não tem visto um simples olhar ex­
pressivo mudar o estado do espírito de um dos cir­
cunstantes, moderar ou extinguir uma paixão exal­
tada ? E que exprimia este olhar ? Um apelo ao 
sentimento das conv·eniências, ao respeito, ao lu­
gar, ou às pessoas ; uma lembrança de amizade, 
uma ironia delicada, talvez nenhuma outra coisa 
que uma apelação ao senso comum. A paixão caiu 
como a espuma logo que as ondas cessam de ser 
batidas pelos ventos. Ora, esta influência que dei-
316 () CRITÉRIO 
xamos a outrem ter sobre nós, por que a não exer­
ceremos sobre nós mesmos ? 
L 
PERPÉTUA MENINICE DO HOMEM 
Se o homem fàcilmente se deixa extraviar, é 
também certo que pouco basta para o reconduzir 
a bom caminho. 
Mais fraco que mau, não se obstina no mal pe­
lo único facto de ter começado a fazer o mal ; não, 
entra, com deplorável facilidade, em uma ou outra 
via, segundo a impulsão que recebe. Menino até a 
velhice quer principalmente passar por sério exte­
riormente, por isso disfarç'a como pode, sob exte­
rioresde gravidade, a sua eterna_ meninice, bem 
que no fundo conheça o que vale, e se envergonha 
de si mesmo. Disse alguém que não há homem 
grande para o seu criado de quarto. Isto é uma in­
contestável verdade ; o homem visto de perto per­
de o seu prestígio . As virtudes humanas exigem 
certa perspectiva. E' também certo que o homem 
se conhece a si melhor do que o conhecem os ou­
tros ; eis por que, até em seus melhores anos, ele 
precisa de se ocultar a puerilidade do seu coraçãú. 
O menino ri, brinca, salta, e logo geme e se 
enfurece, chora muitas vezes sem saber pelo quE:. 
O CRITÉR1Ó 31'7 
O menino sofre a influência de seu organismo, do 
bom ou mau estado de sua saúde, do vento, do sol, 
das nuvens que passam ; esquece o momento pas­
sado, e o futuro é para ele como se não existira. 
Não acontece o mesmo ao homem sério e grave, ao 
mais sábio dos homens, bem que seus caprichos to­
mem outro nome ? E' um perfeito menino, menos 
as graças da infância. 
Inteligência unida a um corpo que mil influên­
cias modificam, móbil como a folha, o homem cede 
a qualquer influência do vento ; suas impressões 
sucedem-se com incrível rapidez ; muda incessan­
temente e supõe que os objectos é que têm mu­
dado, atribui-lhes a própria inconstância. 
LI 
UMA MUDANÇA NA VIDA 
X entrou, passado certo número de anos de 
que faz mistério, em idade madura. Homem de 
juízo, saber e experiência, não se deixa jamais le­
var pelas impressões do momento . . . pesando todas 
as coisas na balança de uma razão plácida, e só 
dando às paixões a influência que não consegue ti­
rar-lhes. 
Tem a seu cargo o projecto de uma especulação 
considerável, para o que se conta com sua habili-
318 O CRITÉRIO 
dade particular neste gênero de negocias. Entra 
resolutamente no projecto que lhe apresentam, ofe­
recendo uma p·arte notável de sua fortuna. Que 
tem ele de temer com efeito ? Os obstáculoo ? Sabe 
como os desviar ; os rivais ? tem vencido outros 
mais poderosos. Além disso, negócios têm passado 
por suas mãos, e jamais em sua honra ficou a mais 
leve mancha. Embebido no pensamento que o li­
sonjeia, exprime-se com maravilhosa facilidade, as 
idéias abundam, os gestos se multiplicam acende­
-se-lhe a vista, sua fisionomia torna-se expressiva ; 
dir-se-ia ter voltado às suas vinte e cin<w primaveras, 
se algumas cãs indiscretas, espreitando por debai­
xo da cabeleira que as oculta, não revelassem trai­
çoeiramente os troféus dos anos. 
O negócio acha-se concluído ; faltam ainda al­
guns promenores ; mas ficais emprazado para os 
completar em próxima entrevista. Amanhã ? Não, 
nada de dilações ; é preciso que sej a hoje. E ' assim 
que X concebe e dirige os negócios ; portanto, esta 
tarde ! 
À hora marcada compareceis fielmente no lu­
gar designado. Está um calor de asfixiar, por 
isso ides encontrar o bom do homem com o vestuá­
rio em bastante descompostura. Meio estendido so­
bre um sofá, vos saúda com áfectuoso esforço ; po­
rém com evidente sinais de lassidão. 
O CRITtRIO 319 
- Vamos, senhor, se ficamos concordes defini­
tivamente . . . 
- Temos tempo de falar . . . 
E a lassidão se retrata de cada vez mais na 
fisionomia do interlocutor. 
- Como o sr. me havia indicado esta tarde . . . 
- Vej o que é de grande pontualidade, mas 
enfim . . . 
- Será quando o sr. quiser. 
- Sem dúvida . . . E ' bom reflectir madura-
mente, e . . . 
- Dificuldades; bem sei que as há ; mas como 
estava tão resolvido esta manhã, entendi que tudo 
se arranj aria. 
- Resolvido, sim ! é ainda o estou . . . Todavia , 
não nos apressemos . . . é preciso ver . . . Enfim fa.l ­
laremos logo - acrescenta ele com expressão de 
quem deseja que o não comprometam. 
X já não é o mesmo. Exprime esta tarde o 
que sente, como o exprimia esta manhã : a audá­
cia, a actividade, os meios de levar a empresa a seu 
fim, tudo desapareceu ! Os obstáculos de nada que 
eram, tornaram-se insuperáveis. Os rivais não ti­
nham valor algum e tornaram-se invencíveis. 
Tomaria informações ? - não viu ninguém de 
quem as tomar. Meditaria sobre o negócio ? - não 
tinha pensado em tal antes, de vossa chegada. -
Mas então qual a causa de revolução tão repentina ? 
320 O CRITtRIO 
Que aconteceu ? - nada ; a explicação do fenómeno 
é mui simples : não procureis grandes causas, são 
muito pequenas. Em primeiro lugar 'a atmosfera 
está pesada, faz um calor atroz, ao passo que de 
manhã uma fresca brisa circulava no ar. X está 
sumamente abatido. Escolhestes má hora para 
falar. O céu cobre-se de nuvens e ameaça tem­
pestade. A comida era alguma coisa indigesta ; o 
sono da sesta foi demasiado breve. Que mais se 
quer ? Não são bastante poderosos estes motivos 
para transtornar o- espírito de um homem grave c 
modificar suas opiniões ? Apesar de todas as ur­
gências, quem vos levou a sua casa debaixo de tão 
infausta constelação ? 
Tal é o homem : a menor coisa o desconcerta 
e muda. A vontade de que se julga senhor, obede­
ce à nuvem que encobre a luz do sol e à brisa que 
passa fagueira. 
LII 
OS SENTIMENTOS DE PER SI SóS SÃO POUCO 
SEGURO GUIA 
Entregar-se o homem só à mercê do sentimento, 
é lançar o na vi o sem piloto para cima das ondas agi­
tadas ; é proclamar a infalibilidade das paixões ; é 
dizer ao homem : "Escuta tão somente os conselhos 
O CRITÉRIO 321 
do instinto, e obedece cegamente a todos os movimen­
tos do coração " ; é despojar-se de sua inteligência e 
seu livre arbítrio ; é converter-se em instrumento paR­
sivo da sensibilidade. 
Os .grandes pensamentos vêem do coração, disse 
um escritor célebre ; é do coração que vêm igual­
mente os grandes erros, as grandes extravagâncias, 
os grandes crimes. Todas as coisas aí têm sua ori­
gem. Harpa maravilhosa que desfere todos os sons, 
desde os ruídos lúgubres e temíveis da habitação da 
morte e do espanto, até às mais delicadas, às mais 
suaves harmonias das regiões da paz e do repouso 
eterno. 
O homem que não tem outro guia que o seu 
coração torna-se joguete das mais contraditórias 
inclinações. Como a palha seca que o vento leva, 
ele vai, vem, volta-se, levanta-se e torna a cair sem 
tréguas e sem repouso. Contai os sentimentos que, 
em poucas horas, podem atropelar-se em sua alma : 
menos numerosas são as areias do mar e as estrelas 
do céu. O homem passa, repentinamente, e sem co­
nhecer a causa da simpatia ou antipatia, do amor 
ao ódio ; agora cheio de coragem e ardor, logo inde­
ciso, abatido, tímido. Quem desconhece a influên­
cia que sobre ele ex·erce a idade, o tempo, o estado, 
a posição social e muitas outras circunstâncias ? 
Tudo que afecta sua inteligência e seu organismo, 
como quer que isto se faça, modifica ao mesmo tem-
322 O CRIT�RIO 
po sua maneira de sentir. Daí vem a inconstância 
dos que se abandonam a suas paixões ; daí, esta mo­
bilidade das organizações muito sensíveis, que não 
souberam vigiar sobre si mesmas, reagir corajosa­
mente sobre si mesmas, domar as próprias paixões. 
As paixões foram dadas ao homem como esti­
mulantes, como meios de acção e não para esclarecer 
sua inteligência, para regular seu proceder. Diz-se 
freqüentemente : - o coração não engana ! - Erro 
deplorável ! Que é então a vida ? Um tecido M 
ilusões urdido por nosso coração. Se algumas vezes, 
entregando-nos às inspirações do sentimento, encon­
tramos a verdade, quantas mais vezes estas inspira­
ções nos seduzem e nos extraviam ! 
Sabeis por que ao coração se atribui tão seguro 
instinto ? É porque seus menores sucessos têm, por 
sua mesma raridade, o privilégio de excitar no mais 
alto grau a nossa admiração ; é porque nos maravi­
lhamos de o ver, no meio da própria cegueira, achar 
a verdade, quando a temos procurado em vão à luz 
do entendimento. Deslumbra-nos a excepção ; es­
quecemos os errores a que nos leva o coração e da· 
mos-lhe a honra de um discernimento que não tem 
nem pode ter. 
Dar por base à moral o sentimento, é edificar 
sobre a areia movediça ; regular o procedimento pelas 
inspirações do sentimento, é condenar-sea caminhar 
ao acaso, e muitas vezes por maus caminhos. Em 
O CRITtRIO 323 
nossa época a literatura francesa, literatura que se 
esforça por se introduzir na Esp anha, diviniza as 
paixões : este sensualismo é gravíssimo perigo. Que 
são, com efeito, as paixões divinizad·as, senão extra­
vagância, imoralidade, corrupção ? 
A desgraça e ·o crime são pela maior parte os 
frutos amargos desta árvore maldita. 
LIII 
NÃO AS IMPRESSõES SENSíVEIS SENÃO A MORAL 
E A RAZÃO 
' 
O proceder do homem, assim com respeito à 
moral como com relação ao útil, não deve governar­
-se por meras impressões, senão por regras seguras 
e constantes ; nos actos morais, pelas máximas eter­
nas da V€rdade ; no que toca aos interesses materiais, 
pelos conselhos de uma razão sábia e previdente. 
O homem é criatura limitada ; só relativamente 
as coisas nele são perfeítas. As impressões que 
recebe, modificações de sua própria natureza, em 
nada alteram as leis eternas. Uma coisa justa não 
deixa de o ser pelo facto de lhe desagradar ; uma 
injustiça não deixa de ser inj ustiça por isso que ele 
a aprova. O homem implacáv€1 que se vinga sente 
feroz prazer enterrando um punhal no peito do ini­
migo ; todavia esta acção não deixa de ser um crime . 
324 O CRITÉRIO 
O anj o da caridade que, sob o doce nome de irmã 
vela à cabeceira do doente, experimenta muitas vezes 
cruéis desgostos e no entanto a sua acção não deixa 
de ser um acto heróico de virtude. 
Até fora da ordem moral, é preciso encarar as 
coisas não pelo modo com que elas nos afectam, mas 
segundo o que realmente são. A verdade não está 
essencialmente em nossas impressões, mas sim nas 
coisas. Se nossas impressões estão em desacordo 
com as coisas, tais impressões nos enganam e nos 
extraviam. O mundo real não é o dos poetas e roman­
cistas . Saibamos vê-lo tal qual ele é, e regulemos 
nosso procedimento por esta vista. Nada de vãs 
fantasias ; o positivo, o prático, o prosaico, eis o 
que é o mundo. 
LIV 
A EXAGERAÇÃO PODE A UM SENTIMENTO BOM 
TORNAR MAU 
A religião não procura destruir e suprimir os 
sentimentos ; modera-os e dirige-os. A prudência 
não repele o auxílio das paixões ; sõmente recusa 
dar-lhes o império. A harmonia estabelece-se no 
coração do homem não pela elevação absoluta, não 
pelo desenvolvimento simultâneo de suas inclinações, 
mas por sua repressão. 
O CRITÉRIO 325 
Não é somente nas paixões contrárias que acha­
remos um contrapeso aos sentimentos que deixamos 
obrar em nós ; é principalmente na razão e na moral. 
A oposição das inclinações boas às inclinações más 
deixa de ser salutar, quando a razão não preside a 
esta luta ; as inclinações boas não são tais, senão tanto 
quanto a razão as modera : abandonadas a si mesmas, 
exageram-se e pervertem-se. 
Um militar está encarregado da defesa de um 
ponto perigoso ; o perigo aumenta de instante para 
instante ; em volta dele caem os companheiros ame-
' 
tralhados, como espigas sob a fouce do ceifador ; apro-
ximam-se os inimigos ; é impossível a resistência, e 
não chega a ordem de retirar. O desânimo está 
prestes a entrar no coração do bravo : " Para que 
morrer sem utilidade para a sua causa ? Exigirá 
por ventura a disciplina e a honra um sacrifício 
inútil ? Não valerá mais abandonar seu posto, in­
vocando junto do general a imperiosa lei da neces­
sidade ? Não, não ! responde o seu coração generoso, 
seria a fraqueza a encobrir-se com o nome de pru­
dência ! Que diriam os amigos ? que diria o exér­
cito ? Entre a morte e a vergonha, a morte ! sem 
hesitação, a morte ! " 
Pode-se culpar essa reflexão com que o bravo 
oficial procurara sustentar-se a si mesmo contra as 
tentações da cobardia ? Esse desej o da honra, esse 
horror à ignomínia de passar por cobarde, não foi 
326 O CRIT�RlO 
nele um sentimento ? Sim, um sentimento nobre, 
generoso, cuj o ascendente fez pender a balança do 
lado do dever. Sob a metralha e a vista da morte, 
entre os gemidos dos feridos, o bravo teve um mo­
mento de hesitação. A razão. entregue a si mesma, 
teria sucumbido talvez ; mas e le chamou em seu au­
xílio uma paixão mais poderosa que o temor da mor­
te ; o sentimento da honra e n razão triunfaram ; a 
paixão dirigida para um fim lP.gítimo produziu feliz 
resultado. 
Chegada a ordem de retirada, o oficial se reúne 
a seu corpo, havendo perdido lll' posto fatal a quase 
todos os seus soldados. - Já o tínhamos por morto 
- lhe diz sorrindo um companheiro de armas -
mas j á vemos que soube guardar o tal respeito às 
leis da Providência . O oficial crê-se ultraj ado ; pede 
uma satisfação ao imprudente mofador, e poucos 
momentos depois deixa este de existir. O mesmo 
sentimento que gerara um acto heróico ocasiona 
agora uma espécie de assassinato. A honra e o te­
mor de passar por cobarde, tingem em fim as mãos 
deste homem com o sangue de um amigo. A pai­
xão, regulada, dominada pela razão, engrandecera­
-se até ao heroísmo ; entregue à sua cega impetuosi­
dade, degradou-se até ao crime. 
A emulação luta vantajosamente contra a pre­
guiça, contra o abandono de si mesmo, contra todas 
O CRITtRIO 327 
as inclinações que servem de obstáculo ao desenvol­
vimento de nossas faculdades. Com auxílio deste 
sentimento, o mestre estimula seus discípulos, o pai 
de família combate as más inclinações de seu filho ; 
um grande caudilho obtém de su·as tropas prodígios 
de constância, de bravura, de dedicação. Desej o de 
progredimento legítimo, amor do sucesso e do dever, 
temor das censuras, vergonha de nos vermos excedi­
dos por aqueles que podíamos exceder, são senti­
mentos mui j ustos, mui nobres, excelentes para nos 
fazer progredir no caminho do bem. Na da há neles 
de repreensível ; são o manancial de muitas acções 
virtuosas e sublimes inspirações. 
Porém, este sentimento que fortifica a alma e 
a eleva, por assim dizer, acima de si mesma, se se 
exagera torna-se em veneno mortífero que a rói e 
corrompe. A emulação converte-se em inveja ; o 
sentimento no fundo é o mesmo, porém exagerado 
no segundo caso. O desejo legítimo do progredi­
menta torna-se em devoradora sede de sucesso ; o 
pesar de se ver excedido, em rancor mortal contra 
o vencedor. Já não é esta nobre rivalidade suscep­
tível de se olhar com amizade, que se esforçava por 
adoçar a humilhação do vencido com provas de ter­
nura e sinceros louvores, que ficava satisfeita com 
ter conquistado os louros, e os ocultava para poupar 
o amor-próprio dos vencidos : é um verdadeiro furor ; 
328 0 CRITÊRIO 
é um pesar que compunge menos pelos próprios re­
veses, do que pelos triunfos alheios ; é um ódio pro­
fundo contra o rival feliz ; um desej o ardente de 
rebaixar seu mérito : é uma maledicência amarga, 
um desdém falso e mau, sobre o qual a custo se 
encobre um ódio mal comprimido ; é um sorriso sar­
dónico que não chega a dissimular os tormentos 
da alma. 
Que coisa mais conforme à razão do que o sen­
timento da dignidade pessoal ? sentimento que se 
revolta contra o conselho das paixões degradadas, 
que chama o homem ·ao dever da honra ; sentimento 
que, segundo as circunstâncias e em todas as con­
dições da vida, inspira ao homem d.e coração a ati­
tude conveniente ; sentimento que enche de majes­
tade ao magistrado encarregado de pronunciar as 
sentenças da j ustiça ; que dá à fisionomia de um 
pontífic-e a unção augusta e a gravidade santa ; que 
brilha na vista de fogo dos grandes capitães e em 
sua atitude ousada e imponente ; sentimento que nem 
à prosperidade permite desregrada alegria, nem ao 
infortúnio ignóbil abatimento ; que assinala a opor­
tunidade com prudente silêncio, ou sugere uma pa­
lavra decorosa e firme ; que estabelece os j ustos li­
mites entre a afabilidade e a excessiva familiari­
dade, entre a franqueza e o abandono, entre a natu­
ralidade dos modos e a grosseira liberc.'ade ; senti· 
O CRITÊRIO 329 
mento enfim que fortifica o homem sem o endurecer, 
que lhe ensina a docilidade sem fraqueza, a flexibi­
lidade sem inconstância,a constância sem obstinação. 
Porém este mesmo sentimento, se deixa de se1· 
regulado e dirigido pela razão, torna-se em orgulho, 
o orgulho que incha o coração ; o orgulho que dá à . 
fisionomia um carácter agressivo, às maneiras. uma 
afectação tão irritante como ridícula ; o orgulho, cheio 
de presunção que se cria obstáculos e torna 
impossív.eis os sucesso�J ; o orgulho, pai de todos os 
vícios ; o orgulho, que p ;::_· v oca o ódio e o desprezo, 
que torna o homem insuportável aos outros e muitas 
vezes insuportável também a si mesmo. 
Haverá sentimento mais razoável que o que nos 
leva a assegurar-nos do necessário, e preparar o 
bem-estar dos que nos são caros, dos que o dever 
confia a nossos cuidados ? Este sentimento previne 
a prodigalidade e o excesso ; ensina a sobriedade e 
a moderação nos desejos ; favorece o gosto do tra­
balho . Levado além dos limites, este mesmo senti­
mento impõe mortificações que Deus não pede nem 
aceita ; inspira culpável negligência para a saúde, 
aconselha o desprezo dos parentes em suas doenças ; 
enche a família de privações, fecha o coração à 
amizade, o coração e a mão às miserias dos poh.res ; 
torna-se insensível a todos os infortúnios ; atormenta 
o espírito com suspeitas e vãos terrores ; prolonga 
330 O CRITÉRIO 
as vigílias, gera as insónias e persegue com sinistras 
aparições os curtos momentos do sono do avarento. 
Desperta o rico avaro no seu leito, 
Banhado no suor que dá o terror. 
El rico avaro en el angosto lecho, 
Y que sudando con terror despierta. 
A virtude acaba onde o excesso principia. 
Os melhores sentimentos tornam-se maus pela exa­
geração ; o s€ntimento só de per si é guia pouco 
seguro e muitas vezes perigoso. À razão incumbe 
o conduzir consoante os eternos princípios da moral, 
e guiá-los para o bom e para o útil. Jamais o ho­
mem se estuda com todo o devido cuidado. Nenhum 
esforço é de mais para adquirir aqu€le critério moral 
e acertado que nos ensina a verdade prática, a ver­
dade que deve presidir a todos os àctos de nossa 
vida. Proceder à ventura, abandonar-se c€gamente 
às inspirações do coração, é expor-se a todos os pe­
rigos e a todas as máculas ; é lançar-se de erro em 
erro, de queda em queda, até às bordas deste abismo 
de onde o homem caído não mais se levanta, porque 
a vertigem lhe passa do coração à razão ; criatura 
tanto mais miserável depois de sua queda quanto 
não vê, não conta, não sent€ ainda assim as próprias 
feridas. 
O CRITÉRIO 331 
LV 
UTILIDADE DO SABER RELATIVAMENTE À PRATICA 
Em tudo que diz respeito aos obj ectos submeti­
dos às leis necessári'as, isto é, à matéria, é evidente 
que o conheCimento das leis a que estes objectos estão 
sujeitos é pelo menos de grande utili dade , se tal 
conhecimento não é indispensável. Considerar a 
teoria como inútil e não ter em conta senão a prática, 
é privar-se de poderoso meio de progresso. A ciên­
cia, quando digna deste nome, propõe-se descobrir as 
leis que regem a natureza. O auxílio da ciência por­
tanto pode e deve ser em todas as coisas de decisiva 
importância. Temos desta verdade irrefragável 
prova em o que se tem passado na Europa, de três 
séculos a esta parte. Desde que se começou a cul­
tivar as matemáticas e as ciências naturais, os pro­
gressos das artes têm sido assombrosos. No século 
actual vão-se fazendo continuamente engenhosos des­
cobrimentos ; e que são estes, senão aplicações da 
ciência ? 
A rotina que desdenha da ciência, mostra com 
semelhante proceder néscio orgulho, filho da igno­
rância. 
O homem distingue-se dos brutos pela razão com 
que o dotou o autor da natureza ; e não querer em-
332 O CRITÊRIO 
pregar as luzes do entendimento para a direcção das 
operações, ainda as mais simples, é mostrar-se in­
grato à bondade do Criador. Para que nos foi dado 
este archote iluminador do espírito ? Se à ciência 
devemos tão grandes concepções, por que a não con­
sultaremos ? por que lhe não pediremos que nos guie 
na prática ? 
Verdade é que todas as ciências parecem ter 
partes puramente especulativas, e por assim C:izer 
de luxo, que alguns têm crido inúteis ; porém, pene­
trando-se nas pretendidas inutilidades, fàcilmente se 
perceberá que se não pode destacá-las do conjunto 
sem destruir toda a ciência, ou que elas têm com a 
arte relações imediatas que estávamos longe de sus­
peitar. A inutilidade é só na superfície ; não raro 
o tempo e o gênio se encarregam de tirar, destas 
partes obscuras, ondas de luz e conseqüências práti­
cas tão úteis como inesperadas. 
Poderíamos citar inúmeros exemplos compro­
vativos desta verdade. Nada mais puramente es­
peculativo e mais estéril, aparentemente, que as frac­
ções contínuas ; e todavia é com seu auxílio que 
Huygens chegou a determinar as dimensões das ro­
das dentadas na construção da sua máquina plane­
tária. 
A prática sem teoria permanece estacionária 
ou só marcha com extrema lentidão ; assim como 
também a teoria sem a prática 
·
fica estéril. A 
O CRITtRlO 
teoria não se consolida sem o concurso da observação, 
e a observação apoia-se na prática. Que seria da 
ciência agrícola sem ·a experiência do lavrador ? 
Os que se destinam pois à profissão de uma 
arte devem, se for possível, estar preparados com. os 
princípios da ciência em que aquela se funda. 
Quanto mais hábeis não · foram os nossos artistas se 
estabelecessem sua experiência sobre os elementos 
bem compreendidos da química, da geometria, da 
mecânica c outras ciências correlativas ! se empi·e­
gassem no estudo preparatório das ciências em re­
lação à carreira que devam abraçar, o tempo mi­
seràvelmente perdido nas escolas públicas em exer­
cícios que para: nada servem ! Pense-se nisto seria­
mente e, ousamos afirmá-lo, o Estado, os indivíduos, 
a família, a sociedade inteira virão a tirar mais 
frutos dos sacrifícios que se impõem. 
Bom é que um mancebo cultive as letras ; mas 
de que lhe servirão os conhecimentos unicamente 
literários, quando, num estabelecimento comer·cial 
ou manufacturário, tiver precisão de apreciar as 
qualidades ou defeitos de uma máquina, as vanta­
gens ou inconvenientes de tal ou tal processo ? A 
cada coisa seu lugar, a cada árvore seu fruto, a 
cada uma sua obra e sua especialidade ; é esta uma 
lei de harmonia tanto na ordem moral como na or­
dem material, e principalmente na ordem prática. 
O arquitecto, o engenheiro aprenderão, por ventura, 
334 o CRin;mo 
em estudos literários, filosóficos ou políticos, a cons­
tituir um edifício elegante, sólido, próprio para o 
fim a que se destina, a traçar hàbilmente o plano 
para uma estrada ou canal, a dirigir as obras com 
inteligência, a levantar uma calçada, a suspender 
uma ponte ? 
LVI 
INCONVENIENTES DA UNIVERSALIDADE 
Lenta e penosamente se adquire a ciência, e -a 
vida é curta. Não obstante o homem dispersa as 
suas faculdades sobre mil diversos objectos, acari­
ciando destarte a vaidade e a preguiç•a simultânea­
mente : a vaidade porque esta aparente universali­
dade lhe dá um certo verniz de saber, a preguiça 
porque é muito mais difícil e mais penoso o fixar-se 
numa ciência, aprofundá-la, abraçá-la inteiramente, 
que adquirir algumas noções vagas e gerais sobre 
todos os ramos dos conhecimentos humanos. 
Todos os dias se apreciam na indústria as van­
tagens da divisão do trabalho, e não se pondera que 
este princípio é igualmente aplicável à ciência. 
Raríssimos são os homens nascidos com felizes dis­
posições para todas as coisas. E alguns que pode­
ri'am vir a ser brilhantes especialistas entregando­
-se particular ou mesmo exclusivamente a certos es-
O CRITÉRIO 335 
tudos, tornam-se inúteis por afectação da universa­
lidade. Assim se consomem sem fruto as forças que, 
postas em acção convenientemente, poderiam prestar 
bons serviços à sociedade. Vaucanson e Watt fize­
ram prodígios na mecânica ; nas belas-artes ou na 
poesia, indubitàvelmente não teriam passado de me­
diocridades. La Fontaine imortalizou-se com suas fá­
bulas, e como negociante fôra sem dúvidaum dos mais 
inábeis . 
Verdade é, todavia, que os conhecimentos ad­
quiridos são como degraus por meio dos quais nos 
elevamos a novos conhecimentos, e que a luz que 
se projecta de uma ciência sobre outra facilita n 
trabalho da inteligência abrindo-lhe novos horizon­
tes. As diferentes partes da ciência como que for­
mam uma cadeia cuj os elos, apesar de sua diversi­
dade, compõem um todo harmonioso e completo ; 
mas poucos homens há capazes de congregar estes 
elos esparsos, de percorrer toda a cadeia, e persisto 
em pensar que o maior número deve circunscrever 
e concentrar seus esforços. 
Assim nas ciências como nas artes, importa 
escolher, segundo a aptidão particular, a carreira 
que se deve seguir, e, feita a escolha, dedicar-se a 
ela particular ou exclusivamente . 
A multiplicidade de meios de instrução, livros, 
jornais, enciclopédias, não faz de algum modo senão 
multiplicar a ignorância, convidando a tudo tocar 
336 O CRlTtRIO 
pela superfície. A abundância, herança dos séculos 
que deveram sua glória ao trabalho, tornou-se um 
escolho em vez de vantagem. Muitos espíritos per­
dem em profundeza o que ganham em extensão. 
Quantos falsos sábios se comprazem em sua ciência 
univ€rsal, que em última análise só tem de univer­
sal a presunção e a ignorância ! 
Uma só ciência, que se queira saber a fundo, 
basta para absorver a mais longa vida. Dá-se o 
mesmo nas profissões. Esquecida esta verdade, as 
forças do espírito vão-se disseminando sem ordem 
e se consomem sem r·esultado ; dá-se o mesmo numa 
máquina mal construída ; a força motriz se paralisa 
pelo defeito de concentração ou pela disposição de­
feituosa das molas encarregadas de distribuir esta 
forç-a a cada uma das partes do mecanismo. 
Pergunta-se a causa da triste esterilidade do 
movimento intelectual em nossa época, apesar da 
actividade sempre crescente dos espíritos. Talvez 
que as observações que deixamos feitas levem à razã0 
desse facto. As forç·as excessivamente individua­
lizadas, fraccionadas até ao infinito, dissipam-se e 
perdem-se, à mingua de direcção ; as inteligências 
marcham sem fim determinado e como à ventura. 
Os que professam com fruto uma carreira, aban­
donam-na por outra que pareça apresentar mais 
vantagens, ou que mais lisonjeie sua vaidade. Daí 
a desordem, a deslocação. O ·advogado aspira à di-
O CRITÉRIO 337 
plomacia, o militar à vida política, o banqueiro ao 
governo do Estado ; o j uiz torna-se economista ; o 
homem do nada que era torna-se omnipotente. A ver­
tigem das idéias, e da ambição, que ora vai aumen­
tando de dia para dia, opõe gravíssimos obstáculos 
a todos os progressos. 
LVII 
FORÇA DA VONTADE 
Quase sempre há no homem grande soma de 
forças que ele deixa inactivas . O explorar-se acerta­
damente constitui um maravilhoso segredo para 
fazer muitas e grandes coisas. A gente fica con­
fundida de espanto diante de certos trabalhos reali­
zados pela necessidade. Sob o império da n·ec�ssi­
dade, o homem se transforma e muda para assim 
dizer de natureza. A inteligência se engrandece ; 
adquire uma penetração, uma lucidez, uma precisão 
maravilhosas ; o coração se dilata ; nada assombra 
sua audácia ; até o corpo adquire mais vigor. 
E por que ? Criaram-se por ventura novas faculda­
des no homem ? Não, mas nele se despertaram facul­
dades que a'ormiam. Onde tudo era repouso tudo se 
tornou movimento, tudo convergiu para um fim de­
terminado. Aguilhoado pelo perigo, a vontade se 
338 O CRITtRlO 
desenvolve em sua irresistível potência ; ordena im­
periosamente a todas as faculdades que concorram 
para a acção comum ; presta-lhe sua energia e sua 
decisão. Espanta-se o homem ao sentir-se inteira­
mente mudado ; o que apenas ousaria imaginar, o 
impossível de ontem, torna-se o facto realiz·ado do 
presente. 
O que pratica nas · circunstâncias extremas e 
sob o império da necessidade nos deixa ver o que 
podemos no curso ordinário da vida. Para obter, é 
mister querer; mas querer com vontade decidida, 
resoluta, inconcussa ; coin vontade que caminha para 
o fim sem desanimar com os obstáculos ou fadigas . 
Mas parece-nos ter vontade, quando só temos velei­
dades. Quereríamos, mas não queremos. Querería­
mos, se não fora preciso romper com nossa preguiça, 
afrontar certos perigos, vencer certas dificuldades. 
Escasseando de energia a nossa vontade, molemente 
desenvolveremos nossas faculdades e cairemos des· 
falecidos a meio do caminho. 
LVIII 
FIRMEZA DA VONTADE 
Querer com firmeza ! Esta firmeza assegura o 
sucesso nas empresas difíceis ; por meio dela nos 
O CRil'ÉIUO 339 
dominamos a nós mesmos, condição indispensável 
para dominar as coisas. Há dois homens em cada 
homem : um, inteligente, activo, elevado, nobre em 
seus pensamentos e em seus desej os, submetido às 
leis da razão, cheio de ousadia e generosidade ; outro 
inteligente, sem arroj o, sem expediente, não se atre­
vendo a levantar nem a cabeça nem o coração acima 
do pó da terra, envolvido inteiramente nos instintos 
e nos interesses materiais. O último é um ser de 
sensações e de gozos ; nem lembrança de ontem, nem 
previsão de amanhã ; para ele, a hora presente, o 
gozo presente é que constituem . a felicidade ; tudo 
o mais é nada. Pelo contrário, o primeiro instrui­
-se com as lições do passado, sabe ler no futuro, há 
para ele outros interesses que os de momento ; não 
circunscreve em tão estreito círculo o que se chama 
a vida, a aspiração da alma imortal. Sabe que o 
homem é uma criatura formada à imagem de Deus ; 
levanta o pensamento e o coração para o céu ; conhe­
ce a sua dignidade ; compenetra-se da nobreza da sua 
origem e de seus destinos, paira acima d'a região dos 
sentidos. Que direi ainda ? ao gozo prefere o dever. 
Nenhum progresso sólido e permanente é possí­
vel se não se favorece a parte nobre da alma suj ei ­
tando-lhe o homem inferior. O que se domina a si 
mesmo, fàcilmente domina as circunstâncias. Uma 
vontade firme e perseverante, além de outras quali­
dades, liga ou subj uga as vontades mais fracas, e 
340 Ó CRlT�RIO 
lhes impõe naturalmente e sem esforço a sua supe­
L_rioridade. 
A obstinação é defeito gravíssimo, pois que fe­
cha nossos ouvidos ·aos conselhos ; porque, a despeito 
de toda a consideração de prudência ou de j ustiça, 
nos encadeia a nossos sentimentos, pensamentos e 
resoluções : planta vivaz cuja raiz é o orgulho. 
Entretanto, os perigos da obstinação são meno­
res talvez que os da inconstância : se uma nos cega 
concentrando nossas faculdades em um só ponto, 
às vezes em um erro, a outra enerva estas facul­
dades, já deixando-as ociosas, já aplicando-as, com 
mobilidade sem repouso, a mil diversos obj ectos. 
r--
i A inconstância torna-nos incapazes de terminar qual-
quer empresa ; colhe o fruto antes da maturidade, 
recua diante dos mais insignificantes obstáculos : 
uma leve fadiga, um leve perigo a amedronta ; dei­
xa-nos à mercê de todas as paixões, de: todo o suces­
so, de todo o homem que possa ter interesse em nos 
dominar ; finalmente fecha os ouvidos aos conselhos 
�a j ustiça, da razão e do dever. 
Quereis adquirir vontade perseverante e firme 
e premunir-vos contra a inconstância ? formai con­
vicções firmes, traçai-vos um sistema de vida, e 
nada confieis ao acaso do que lhe puderdes subtrair. 
Os sucessos, as circunstâncias, a vossa previdência 
de curto alcance não raro vos obrigarão a modificar 
\ os planos que houverdes concebido ; não importa : 
O CRITÉRIO 341 
não deve esse ser motivo para de novo os não for­
mar ; isto não vos autoriza a vos entregardes cega­
mente ao curso das cois·as e a caminhar à ventura. 
Pois não nos foi dada a razão como um guia e como 
apoio ? 
Traçar-se de ante-mão a linha de proceder e só 
obrar depois de maduras reflexões, é proceder com 
notável superioridade sobre
· 
os que se conduzem ao 
acaso. O homem que se guiar por estes princípios, 
ouso afirmá-lo, levará incontestável vantagem sobre 
os que se portem de outro modo. Se estes são seus 
auxiliares, naturalmenteos porá debaixo de suas 
ordens, e se verá constituído seu chefe sem que eles 
o pensem nem ele próprio o pretenda ; se são seus 
adversários ou inimigos, os desbaratará, ainda que 
com menos recursos. 
Consciência recta e tranqüila, vontade firme, 
pl'ano bem concebido, eis os meios para levar a bom 
termo as empresas difíceis. Isto pede-nos alguns 
sacrifícios, convenho nisso ; supõe trabalho interior, 
enérgico e perseverante, pois que é mister começar 
por se vencer a si próprio ; mas, assim na ordem 
intelectual e moral, como na física, nas coisas do 
tempo, como nas da eternidade, só merece e obtém 
a coroa o que sabe na luta afrontar as fadigas e os 
perigos. 
342 O CRITBRIO 
LIX 
FIRMEZA, ENERGIA, IMPETUOSIDADE 
Vontade firme, vontade enérgica, vontade im­
petuosa não são a mesma coisa. A primeira difere 
da segunda e ainda mais da terceira, que difere 
também das outras duas. 
Tou'as tres distintas, todas tres independentes, 
não é mesmo raro que estas vontades se excluam. 
A impetuosidade é um acesso de paixão, uma con­
vulsão da vontade, arrastada pela paixão ; é, por 
assim dizer, a mesma paixão. Um acesso momen­
tâneo não constitui a energia ; e energia supõe a 
força com certa duração. 
Na impetuosidade há explosão : dispara-se o 
tiro, mas o projéctil cai a menos distância. Há 
igualmente explosão na energia, talvez com menos 
fracasso, mas o arremesso vai mais longe. 
A firmeza não requer nem impetuosidade, nem 
en-ergia, e algumas vezes as repele a ambas ; toda­
via admite a paixão, ou antes exige-a geralmente, 
mas a p·aixão constante, fixa em sua direcção, a 
paixão regular. A impetuosidade num momento ou 
destrói todos os obstáculos, ou se despedaça ; a ener­
gia prolonga mais ;;t luta, mas despedaça-se igual­
mente, depois de certos esforços. A firmeza, se 
O CRITÊRIO 343 
lhe é possível, desvia as dificuldades ; senão, as 
evita ou as rodeia. Se por acaso as não pode evitar 
nem rodear, detém-se e espera. Não se creia no 
entanto que, em certos casos, a firmeza não possa 
tornar-se energia ou impetuosidade. Depois de ter 
longo tempo contemporizado, acaba por se irritar. 
Uma resolução extrema é tanto mais formidável 
quanto mais de espaço tem sido premeditada. Os 
homens frios na aparência , mas em que arde com­
primido um fogo interior, são terríveis quando chega 
o momento decisi•vo, quando dizem : " E ' agora ! " 
E ' então que no objecto cravam a vista clamejante, 
e a ele se lançam rápidos como um raio, certeiros 
como uma flecha. 
As forças morais são como as físicas ; neces­
sitam ser economizadas. Os que as economizam e 
as têm em reserva as acham mais poderosas no 
momento oportuno. As vontades mais fortes não 
são as que se chocam de contínuo contra qualquer 
coisa ; pelo contrário, os muito impetuosos cedem 
quando se lhes resiste, e atacam quando se lhes cede. 
; A firmeza não se prodigaliza, nem faz a coisas de ' 
pouca monta a honra de se medir com ela. Assim, 
na prática da vida, os homens fortes são, g-eral­
mente, condescenu'entes, fáceis, prontos a ceder ; aco­
modam-se sem repugnância à vontade de outrem. 
Porém, che�ada a ocasião, quer por se apresentar 
negócio importante em que convenha empregar as 
344 O CRITÉRIO 
forças, quer porque algum dos pequenos tenha sido 
levado a extremo em que se não possa mais con­
descender, e seja preciso dizer basta, então não é 
mais impetuoso o leão, se se trata de atacar, nem 
é mais firme a rocha, se se trata de resistir. 
Esta força de vontade que dá a bravura nos 
combates, a firmeza na dor, que triunfa de todas 
as resistências, que não receia diante de obstáculo 
algum, que os reveses não removem, que os mais 
duros choques não são capazes de quebrar ; esta 
vontade que, segundo o tempo e as circunstâncias, 
se torna gelo ou vulcão ; que desenha na fisionomia 
as t€mpestades que vão r; a alma, ou na mesma fisio 
nomia imprime uma serenidade ainda mais ater­
radora ; esta força de vontade que é hoje o que 
era ontem, e que o será amanhã, e sem a qual im­
possível fora terminar empresa difícil ou de longa 
duração ; esta força de vontade, carácter distintivo 
dos homens que deixaram na humanidade o vestí­
gio de seus passos, dos homens que vivem ainda nos 
monumentos que levantaram, nas instituições que 
fundaram, nas revoluções que fizeram ; esta força 
de vontade que possuíram os fundadores de impé­
rios, os chefes de seitas, os descobridores de novos 
mundos, os inventores que consumiram a vida em 
busca de seu invento, os políticos que com mão de 
ferro moldaram a sociedade em novas formas, im­
primindo-lhe um selo que, depois de }argos séculos, 
O CRITÉRIO 345 
ainda se conserva ; esta força de vontade que, de 
um humilde monge, faz um Sixto V ou um Ximenes ; 
esta força de vontade que detém como um muro de 
bronze o protestantismo no cume dos Pirineus, que 
arroj a sobre Inglaterra uma armada gigantesca, que 
escuta impassível a nova da ruína desta armada, 
que submete Portugal, vence: em S . Quintino, levanta 
o Escurial, e que do sombrio ângulo de um mosteiro 
contempla com vista serena a morte que se aproxi­
ma ; enquanto 
Estranha agitação, tristes clamores 
Ecoam no palácio de Filipe ; 
Pelo claustro e no povo ao mesmo tcwpo 
Com pranto angustioso se difundem. 
Esta força de vontade, digo eu, exige duas con­
dições, ou antes resulta da acção combinada de duas 
coisas : uma idéia e um s·entimento : uma idéia clara, 
viva, fixa, poderosa, que absorve o entendimento, 
que o possui, que o penetra inteiramente ; um senti­
mento forte, enérgico, senhor exclusivo do coração, 
e complemento subordinado à idéia. Se falta uma 
destas condições, a vontade enfraquece e vacila. 
Quando a idéia não é auxiliada pelo sentimen­
to, a vontade é nula ; também se o sentimento se 
não apoia sobre uma idéia, a vontade flutua, é in-
346 O CRITÉRIO 
constante. A idéia é a luz que indica o caminho ; 
é o ponto luminoso que fascina e atrai ; o senti­
mento é o impulso, a força que põe em movimen­
to e lança a vontade. 
Logo que a idéia carece de vivacic.'ade, a atrac- · 
ção diminui, a incerteza começa, 1a vontade fica 
suspensa ; quando a idéia não é fixa, permanente, 
quando o ponto luminoso muda de lugar, a vonta­
de flutua incerta ; ofuscada ou substituída a idéia, 
a vontade muda de objectos, torna-se inconstante ; 
e quando o sentimento não é suficientemente forte, 
quando não está em justa proporção com a idéia, 
o entendimento contempla esta idéia com prazer, 
com amor, com entusiasmo talvez, mas a alma não 
ousa medir-se com ela e se acha inferior ; não pode 
seu vôo elevar-se até lá ; a vontade nada tenta ou 
desanima e cai à primeira tentativa. 
E' incrível o que podem estas forças unidas, e 
o que é estranho é que seu poder não é só com res­
peito ao que as possui ; é mormente expansivo e 
simpático. Que maravilhoso ascendente não exer­
cem os homens que dele são dotados sobre os ou­
tros homens ! A força da vontade, sustentada, di­
rigida pela potência de uma idéia tem alguma coisa 
de misterioso que parece investir o homem de um 
direito superior e dar-lhe o mando. E' ela que ins� 
pira a confiança sem limites, a obediência cega aos 
heróis assinalados com este carácter ; as ordens que 
o CRITtRIÓ 347 
eles dão, embora desacertadas, ninguém ousaria 
tê-las como tais ; atribuem-se a plano secreto que 
os profanos não compreendem. " Ele bem sabe o 
que faz ", diziam os soldados de Napoleão, e corriam 
à morte. 
Nos actos ordinários da vida, as qualidades de 
que falamos não são precisas em grau eminente ; 
mas possuí-las em justa medida, proporcionalmente 
ao talento, ao carácter, à posição social, coisa é 
utilíssima e muitas vezes indispensável. Certos 
homens dew�m a este dom a sua superioridade no 
amanho dos negócios, e podemos afirmar que a au­
sência completa destas qualidades acusa radical 
incapacidad·e. 
As grandes coisas exigem grandes forças ; 
para as coisas pequenas, pequenas forças bastam ; 
mas o que é certo é que nada se faz sem o

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