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A FORMAÇÃO DA “CULINÁRIA BAIANA”: SOB UMA ÓTICA “AFRICANA” ÉRICO DA SILVA FRANÇA∗∗∗∗ INTRODUÇÃO O presente trabalho tem por finalidade “trazer à luz” aspectos inerentes e relevantes da “culinária baiana”, por sua vez, influenciada pelos modos de preparo e condimentação “africanos”. É preciso ressaltar que a “culinária baiana” é uma terminologia utilizada para nomenclaturar a cozinha da cidade Salvador e do Recôncavo Baiano, regiões marcadas por um número significativo de negros – principalmente bantos e iorubas – nos períodos colonial e imperial e, seus descendentes na contemporaneidade. Entretanto, é preciso considerar que os negros não conseguiram reproduzir inteiramente, os sabores da terra distante e, que a cozinha africana compreende as multiplicidades regionais “correspondentes aos numerosos grupos étnicos africanos que ajudaram a formar a fisionomia racial e cultural do Brasil contemporâneo – a cozinha, portanto, das várias nações africanas introduzidas no Brasil pelo sistema de escravidão”. (LIMA, 2010, p. 34). O centro de alimentação afro-brasileira mais importante é a Bahia, diz Freyre. Para ele, a doçaria de rua baiana se desenvolveu como em nenhuma cidade do Brasil, “estabelecendo-se verdadeira guerra civil entre o bolo de tabuleiro e o doce feito em casa. Aquele, o das negras forras, algumas tão boas doceiras que conseguiam juntar dinheiro vendendo bolo”. (FREYRE, 2004, p. 543). ∗ Estudante do Programa de Pós Graduação em Estudos Africanos e Representações da África pela Universidade do Estado da Bahia – UNEB. Graduado em Licenciatura Plena em História pela Universidade do Estado da Bahia – UNEB. Outros alimentos confeccionados pelas negras também se impuseram, como o acarajé (prato precioso na Bahia) feito com feijão-fradinho, cebola, sal; a massa é aquecida em tachos onde se derrama um bocado de azeite de dendê. Além de saborosa, a “culinária baiana” está intimamente ligada aos cultos de origem africana. Nesse sentido, a confecção dos alimentos devem atender as exigências dos deuses originários da África, os orixás. “Elaboradas, requintadas na forma, no ordenamento do preparo, ou na simplicidade aparente prescrito pelo mito. Vez que atrás de cada oferenda alimentar, está o mito que a prescreve pelas praticas divinatórias” (LIMA, 2006, p. 323). 2 É preciso destacar que, graças ao conservadorismo dos deuses africanos, não só a cozinha como também alguns traços culturais oriundos África mantiveram-se preservados, uma vez que os cerimoniais religiosos são marcados por dança, música cânticos, iniciação, sacrifício e a oferenda. Outro aspecto que não se pode deixar de elucidar é a relação existente entre a “culinária baiana” e o turismo, uma vez que, a gastronomia consiste em um produto e/ou atrativo turístico capaz de captar correntes turísticas e, a partir da daí promover uma determinada localidade. Com destaque para Salvador, a Bahia, pôde descobrir a força cultural que possui e que as manifestações culturais poderiam atrair o turismo. A comida baiana, também conhecida “comida étnica” ou “comida de azeite” foi uma das manifestações culturais de maior destaque nesse processo. CULINÁRIA BAIANA: VERSÕES E CONTROVÉRSIAS Denomina-se “culinária baiana” aquela produzida na cidade de Salvador e no Recôncavo Baiano, marcada pela influência africana e condimentada pelo azeite de dendê. De acordo com Querino, a culinária baiana exerce uma primazia em relação à confecção de alimentos em outras regiões do Brasil, uma vez que o africano modificou profundamente as “iguarias portuguesas, resultando daí um produto todo nacional, saboroso, agradável ao paladar mais exigente, o que excede a justificada fama que precede a cozinha baiana”. (QUERINO, 1957, p. 23). É preciso ressaltar que mesa baiana de “origem africana” relaciona-se com aspectos históricos, uma vez que não se pode negar que a presença de africanos na Bahia fora notadamente maior que em outras regiões do Brasil. Sobre esse aspecto declara Veiga: A cidade do Salvador foi fundada para atender as necessidades de expansão do mercantilismo português e ali se implantar a capital do Brasil por mais de dois séculos. A cidade se torna o mais importante entreposto comercial na colônia. A monocultura agrícola principalmente com a cana de açúcar no nordeste brasileiro ou a extração de minerais formaram ciclos expressivos na exploração dos recursos das terras descobertas. Este tipo de apropriação teve suas bases na mão- de-obra escrava trazida aos milhares das diversas regiões africanas. A cidade chegou a comportar uma população de negros maior do que o contingente de brancos formados pelas elites econômicas, clero, administradores e brancos pobres. Não obstante o movimento comercial com Portugal estivesse centralizado em Salvador e seu recôncavo; o empreendimento colonialista penetrou também nas áreas de clima quente e úmido do Sul e na ampla região conhecida como 3 Sertão caracterizado pela presença de caatingas, campinas, serras e vales. (VEIGA, p. 8) Marcante como a presença dos negros na Bahia, os seus condimentos, principalmente azeite de dendê1, favoreceram a formação do sistema culinário da cozinha baiana. A inserção desse produto na cozinha brasileira ocorreu, segundo Querino, pelo fato dos comerciantes portugueses destinarem sempre um africano ou africana para o serviço culinário em suas casa. Isso possibilitou que usos e costumes vindo da África fossem introduzidos e incorporados na culinária a “moda Reino”, daí, modificando o preparo das carnes, aves, mariscos e animais domésticos consumidos. (BORGES, 2008, p. 27) Apesar de sua importância e sabores, a cozinha afro-brasileira encontrou críticos ferrenhos. Vilhena – por exemplo – a considerava repugnante, além de “denunciar” a existência de um consumo público de diversos pratos africanos, tais como: mocotós, carurus, vatapás, mingau, pamonha, canjica, acaçá e acarajé. Querino – ao contrário de Vilhena – revela que muitos senhores – no período colonial – concediam cartas de alforria, fascinados com os sabores das iguarias preparadas pelos negros escravizados. Os senhorios de eras afastadas, muitas vezes, em momentos de regozijo, concediam cartas de liberdade aos escravizados que lhes saciavam a intemperança da gula com a diversidade de iguarias, cada qual mais seleta, quando não preferiam contempla-la ou dar expansão aos sentimentos de filantropia em algumas das verbas do testamento (...) Era vulgar nos jantares da burguesia uma saudação, acompanhada de cânticos, em honra da cozinheira, que era convidada a comparecer á sala do festim e assistir à homenagem dos convivas. (QUERINO, 1957, p. 24-25). Pode-se salientar que a culinária baiana – devido a sua força cultural – atende as exigências da globalização e por ser original é tida como um importante instrumento das relações públicas, dessa maneira, contribuindo para a disseminação da cultura baiana e do turismo. Os meios de comunicação e as pessoas públicas (escritores e artistas baianos) são os responsáveis pelas propagandas relacionadas à cozinha e a alegria do povo baiano. Atraídos pelos “comerciais”, os turistas se deslocam de suas localidades de origem para os turistas se deslocam de suas localidades de origem para experimentarem os sabores, os aromas e os prazeres baianos. A respeito disso Veiga diz o seguinte: 1 O azeite de dendê é originário da palmeira africana denominada de Elaesis Guineensis e foi introduzida no Brasil durante o período do tráfico negreiro no final do século XVI. Do produto da palmeira é possível produzir dos tipos de óleo: um feito com a polpa (mesocarpo) e outro retirado da amêndoa (óleo de coco). O azeite largamente utilizado na culinária baiana é extraído dapolpa da fruta. 4 A metade do século XX é o limítrofe temporal em que se estabelece a imagem da Bahia como terra que cultiva tradições. Salvador, capital do Estado, ainda conserva o orgulho do status de ser a “rainha do Atlântico” cimentado pela sua posição comercial para o Atlântico Sul: “Oropa, França e Bahia” é uma expressão do folclore brasileiro, provavelmente inventada no século XIX, denunciadora do lugar da Bahia. Uma analogia traduzida como querendo dizer, Paris para a Europa e Bahia (Salvador ou a cidade da Bahia) para o Novo Mundo (América). (VEIGA, p. 11). É preciso dizer que na música, a culinária de matriz africana também se fez presente. Por exemplo, quem nunca ouviu a música Vatapá de Dorival Caymmi? Nela, o poeta, “bom cozinheiro e grande conhecedor dos mistérios da culinária baiana” (VAINSENCHER, 2006) conseguiu “trazer à luz” aspectos inerentes da “apimentada e adubada” culinária produzida na Bahia. Veja. Que procure fazer Primeiro o fubá Depois o dendê Procure uma nêga baiana, ô Que saiba mexer Que saiba mexer Procure uma nêga baiana, ô Que saiba mexer Que saiba mexer Que saiba mexer Bota castanha de caju Um bocadinho mais Pimenta malagueta Um bocadinho mais Bota castanha de caju Um bocadinho mais Pimenta malagueta Um bocadinho mais Amendoim, camarão, rala um coco Na hora de machucar Sal com gengibre e cebola, iaiá Na hora de temperar Não para de mexer, ô Que é pra não embolar Panela no fogo Não deixa queimar Com qualquer dez mil réis e uma nêga ô Se faz um vatapá Se faz um vatapá Que bom vatapá Bota castanha de caju Um bocadinho mais Pimenta malagueta Um bocadinho mais Bota castanha de caju Um bocadinho mais Pimenta malagueta Um bocadinho mais Amendoim, camarão, rala um coco Na hora de machucar Sal com gengibre e cebola Apesar de saborosa e fascinante, a culinária da Bahia não se resume a pratos produzidos apenas sob a influência de africanos ou condimentada com o azeite de dendê e pimenta malagueta ou pimenta de cheiro. A cozinha da Bahia é diversificada e saborosa, como explica Veiga: (...) na cozinha da região sul da Bahia banhada pelo Oceano Atlântico: caranguejadas e peixadas e, seguindo para o oeste, na fronteira com o Estado de Minas Gerais, encontra-se comidas à base de carne e os frutos do mar 5 procedentes das localidades marítimas do Leste. Já a culinária típica do sertão baiano é apresentada por Vianna como sóbria e reflexo da pobreza do ambiente. Na bacia do rio São Francisco a mesa cotidiana é marcada pela presença da farinha de mandioca e a carne de bode, feijão verde e pirões em que a farinha é escaldada no leite, no caldo da carne, ou do peixe. (VEIGA, p. 8). Para Radel, a cozinha sertaneja está presente em todo território baiano, sendo sua presença menos intensa nas regiões de Salvador, Recôncavo Baiano e o litoral. A comensalidade no interior da Bahia está relacionada à ingestão de alimentos como feijão, carne e vários tipos de legumes. A estrutura da cozinha sertaneja – segundo Radel – contribuiu de maneira significativa para a confecção da culinária da Bahia, todavia não tem “divulgação digna, deixando que a cozinha afro-baiana constitua a chamada cozinha baiana, como se somente os africanos tenham contribuído para sua formação” (RADEL, 2002, p. 19). A “CULINÁRIA BAIANA” EM CONFLUÊNCIA COM AS RELIGIÕES AFRO- BRASILEIRAS Durante o século XIX – no Brasil – africanos escravos, libertos e crioulos passaram a se organizar a fim de promover cultos aos seus ancestrais (orixás). Nesse sentido, foi organizado um sistema de representação de caráter religioso, cujos rituais eram marcados por “dança, musica, cânticos, iniciação, sacrifício e a oferenda se transformam na pura expressão da religiosidade africana, em território brasileiro”. (BORGES, 2008, p. 19). É preciso ressaltar que os cultos as divindades africanas somente foram possíveis graças aos africanos mais velhos, que por sua vez, conservaram na memória os mitos e os ritos do seu povo, podendo assim, transmiti-los. Além disso, a cozinha das “casas dos senhores e nos sobrados eram, em geral, filhas dos deuses. Assim, elas enriqueceram a cozinha europeia com os pratos mais apetitosos e deliciosos, para todos aqueles que sabem apreciar a boa mesa”. (BASTIDE, 2001, p. 333). Segundo Lima, nas confrarias religiosas de diferentes matrizes étnicas, agrupados sob uma égide ideológica bem definida e etnocêntrica – na Bahia – prevaleciam os aspectos simbólicos, bem como os doutrinários dos grupos fon e ioruba, chamados na Bahia, de jejes e nagôs. No que se refere à relação existente entre culinária baiana e os cultos de origem africana, Bastide diz: “Se a cozinha africana pôde manter-se fielmente na Bahia, contra a cozinha portuguesa ou indígena, com base na mandioca, foi porque se encontrou ligada ao culto dos deuses e que os deuses não gostam de mudar de hábitos” (BASTTDE, 1960, p. 464). 6 Segundo Costa, alguns terreiros em Salvador – ainda hoje – são bastantes conservadores. Eles mantêm em suas cozinhas, técnicas, acessórios e ingredientes tradicionais. Dessa maneira, preservam a fidedignidade em relação ao preparo das comidas dos orixás. Nesses terreiros, o pesquisador (Vivaldo da Costa e Lima) encontrou, além da pedra de ralar, fogões alimentados por carvão vegetal ou lenha, panelas de barro, além de condimentos importados diretamente da África, tudo isso, na intenção de se manter a tradição genuinamente africana, além da boa qualidade da comida. Contudo, a seu ver os fogões alimentados a lenha, ou a carvão vegetal, estavam em vias de serem substituídos, pelos fogões a gás, muito mais práticos e fáceis de manusear. Além dessas motivações apontadas pelo autor, o desmatamento e a destruição das reservas naturais provocadas pela extração da madeira, para fabricação de carvão também contribuíram para que este fosse menos produzido, e consequentemente, se tornasse mais caro que o gás mineral, dessa forma, ficando economicamente inviável o seu consumo. (BORGES, p.14). Nos cerimoniais religiosos dedicados aos orixás e “regados” a comidas sagradas, os deuses podem alimentar-se com suas iguarias prediletas. Sobre a “ingestão” dos alimentos pelos orixás, Borges declara: São através das oferendas, dos ritos e dos cânticos que os homens demonstram e reforçam sua fé nos Orixás e se auto-identificam. Os Orixás, divindades do candomblé ligados às forças da natureza e a aspectos da vida humana, assim como os homens, têm seus gostos e preferências. Muito mais que relacionada a um sistema nutricional, a comida é também chamada de Axé do Orixá, indispensável para a conservação da vida. (BORGES, 2008, p. 21). É preciso ressaltar que as cerimônias dedicadas aos deuses atraem um número significativo de pessoas, estas, nem sempre pertencentes à religião, vão apenas com o intuito de participarem do banquete que é servido nos terreiros. Para Bastide, os estranhos a religião frequentam os candomblés apenas por gulodice. CONSIDERAÇÕES FINAIS Sobre o exposto, pode-se dizer que a “culinária baiana” – graças aos negros trazidos da África e dos seus descendentes – é considerada parte integrante do patrimônio cultural imaterial brasileiro, uma vez que não se destacou apenas em função dos quitutes e das travessas. Estudar a “culinária baiana” é uma tarefa deveras importante e saborosa, uma vez que referir-se a mesma não se resume a buscar respostas apenas sobre a sua importância nutricional. A comida e a sua preparação simbolizam uma prática cultural, que, por sua vez envolve relações sociais, crenças e classificações. 7 O presente trabalho faz-se importante na medida em que projeta algumas possibilidades de problemáticas a serem desbravadas pela historiografia em geral, dada a importância do tema para os estudos da formação da cultura baiana e brasileira, a partir de um novorecorte, a culinária. Os conteúdos discutidos podem contribuir para que outros estudos históricos sejam realizados sobre um tema ainda a ser desbravado pelos historiadores, já que a culinária – a partir de Freyre – tornara-se um tema bastante discutido pela ciência antropológica. 8 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BASTTDE, R. A. A Cozinha dos Deuses: alimentação e candomblés. Rio de Janeiro: Saps, 1960. BASTIDE, Roger. O Candomblé da Bahia. São Paulo: Cia das Letras, 2001. BORGES, Florismar Menezes. Acarajé : tradição e modernidade. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Programa de Pós Graduação em Estudos Étnicos e Africanos, 2008. FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala: Formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 49. ed. São Paulo: Global, 2004. LIMA, Vivaldo da Costa. As Dietas africanas no sistema alimentar brasileiro. In: CARDOSO, C.;BACELAR, J. (orgs) Faces da tradição afro - brasileira religiosidade, sincretismo, anti-sincretismo, reafricanização. Salvador: 2 ªed. 2006. Pallas. LIMA, Vivaldo da Costa. A anatomia do acarajé e outros escritos. Salvador: Corrupio, 2010. QUERINO, Manoel. A arte culinária na Bahia. Salvador: Progresso, 1957. RADEL, Guilherme. A cozinha sertaneja da Bahia: as origens, a evolução e as receitas da cozinha sertaneja baiana. Salvador, Guilherme Radel, 2002. VAINSENCHER, Semira Adler. Dorival Caymmi. Pesquisa Escolar Online, Fundação Joaquim Nabuco, Recife. Disponível em: <http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar/>. Acesso em: abr. 2014. VEIGA, Ericivaldo. A essência do sabor brasileiro: segredos da Bahia. Disponível em: <http://dc.itamaraty.gov.br/imagens-e-textos/SaborBrasil01-AEssenciadoSabor.pdf>. Acesso em: abr. 2014. SITE <http://letras.mus.br/dorival-caymmi/924247/>. Acesso em: abr. 2014.