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11/12/2014 A esquerda encapuçada | piauí_99 [revista piauí] pra quem tem um clique a mais
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Edição 99 > _tribuna livre da luta de classes > Dezembro de 2014
11/12/2014 A esquerda encapuçada | piauí_99 [revista piauí] pra quem tem um clique a mais
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A esquerda encapuçada
por Ruy Fausto
As cegueiras do niilismo neomarxista de Paulo Arantes
Paulo Eduardo Arantes é um intelectual brasileiro fora de série. Até mais ou menos o final da
década de 80, quando já contava bem mais de 40 anos, seu perfil não se distinguia muito do de seus
colegas. Especialista em Hegel, sua tese, defendida na Universidade de Paris X – Nanterre, tornou-
se um clássico da bibliografia filosófica brasileira. Excelente professor, homem de esquerda como
muitos dos seus pares, a partir daquela quadra enveredou por um caminho original.
Primeiro, o que então pareceu insólito, lançou um livro sobre o próprio Departamento de Filosofia
da Universidade de São Paulo (USP), onde lecionava – um livro sem dúvida excessivo, pelo
tratamento um pouco desmedido que ele deu ao objeto, mas muito bem escrito e que teve grande
repercussão. Depois, embora professor de filosofia, ou justo por isso, ao mesmo tempo que
publicava excelentes livros que fugiam do ramerrão universitário, foi manifestando uma postura
explicitamente antifilosófica. Para dar só um exemplo: ele andou criticando Theodor Adorno, o
grande pensador de Frankfurt, porque este ainda era filósofo. Ele, Arantes, caía fora da teia, indo
parar aproximadamente lá onde estava o Marx da Ideologia Alemã (um Marx que opunha à
filosofia uma certa ciência e a práxis).
Politicamente, também, ia mudando. Na juventude, Arantes era um homem de esquerda, radical
como todo mundo nos meios universitários da época, mas era também, se posso dizer assim,
moderado em seu radicalismo. O Arantes nouvelle manière, por outro lado, passa a professar um
esquerdismo extremo, porém paradoxalmente mais ou menos desabusado, porque marcado – mais
do que “temperado”– por um elemento quase niilista. Algo assim como a atitude de alguém que se
alinha sob a bandeira revolucionária, mas, ao mesmo tempo, supõe que o capital ganhou e
continuará ganhando.
Fui tomando distância em relação aos trabalhos de Arantes, meu velho amigo, a partir de seu
livro O Fio da Meada: Uma Conversa e Quatro Entrevistas sobre Filosofia e Vida Nacional (1996),
cujo tom me pareceu afetado, e o conteúdo, de um antifilosofismo um pouco sumário. Levei essas
observações a público, o que, como se poderia esperar, foi muito mal recebido por sua torcida
uniformizada, que nunca mais me perdoou.
 
O Novo Tempo do Mundo e Outros Estudos sobre a Era da Emergência, o livro mais recente de
Arantes, publicado neste ano pela editora Boitempo, é uma coleção de ensaios (mais algumas
entrevistas) que culmina com uma longa análise das mobilizações de rua em junho de 2013. Os
textos ali reunidos tratam do fim das grandes esperanças revolucionárias, da revolta nos subúrbios
parisienses, do neoliberalismo e do nazismo, do golpe de 64 e do pós-golpe, do tempo (um tempo
de longas esperas) no cotidiano das sociedades contemporâneas, das “insurgências” e de sua
repressão nas periferias, para não falar de outros aspectos da vida nas sociedades contemporâneas,
com o Brasil e o mundo exterior aí reunidos. O que é novo em relação aos livros políticos anteriores
de Arantes talvez seja a atitude, senão de otimismo, pelo menos de júbilo diante das mobilizações
de 2013, visível no último ensaio. Uma atitude que se destaca do tom em geral cinzento das obras
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anteriores, e mesmo dos outros estudos nesse livro.
Do ponto de vista teórico, em particular, a novidade me parece estar na relação do autor com a
filosofia. Se é complicado dizer precisamente onde ele se situa hoje, acho que em alguma medida
sua atitude mudou. Se não chega a repor a carapuça, por ele execrada, do “filósofo”, agora seu
discurso toma, muito mais do que antes – antifilósofo ou não, nunca foi fácil escapar de todo das
garras da velha senhora –, a forma de uma espécie de filosofia da história.
Arantes parece ter-se livrado, além disso, de certas fórmulas fáceis (do tipo Auschwitz + Gulag +
Hiroshima, “fórmula trinitária do Apocalipse da civilização capitalista”), cujo simplismo alguns
críticos apontaram. Mas O Novo Tempo do Mundo, que certas rodas universitárias e meios
políticos transformaram em algo como um texto de referência, é ainda, de algum modo, uma
melodia de uma nota só: as críticas remetem sempre ao capital e ao capitalismo. O procedimento
implica uma espécie de simplificação estratégica, que acaba ameaçando a força crítica da
mensagem.
No plano político, uma das principais insuficiências do livro é a de que o comunismo está muito
pouco presente na discussão, o que se justifica mal, dadas as pretensões da obra. Na realidade, O
Novo Tempo do Mundo aponta para um deciframento da significação geral da história dos últimos
100 anos, o que torna aquela quase omissão um déficit sério. As dificuldades do texto, no plano
político, não ficam por aí. Há nele uma espécie de carta branca para a violência, que,
“revolucionária” ou não, é uma arma perigosa, cujo emprego tem de ser rediscutido. As qualidades
formais do texto, indiscutíveis, não atenuam essas dificuldades. Em alguns casos, podem até
agravá-las.
 
 
GRANDES ESPERANÇAS
A
ideia central do primeiro ensaio, que dá o nome ao livro, se constrói com as noções de “espaço de
experiência” e de “horizonte de expectativa”. O espaço de experiência indica a percepção do passado
(ou dos estratos do passado) que se tem no presente; o horizonte de expectativa, também dado no
presente, trata do conjunto dos conteúdos (esperanças, temores, utopias) do que se espera para o
futuro histórico. Com o advento da modernidade – escreve Arantes, na esteira de um clássico –,
estabeleceu-se um grande distanciamento entre a experiência do presente (com seu passado), que
passa a ser lido muito criticamente, e a expectativa do futuro, em verdadeira ruptura com o
presente.
Essa distância, com suas “grandes esperanças”, se manteve até mais ou menos o início dos anos 70.
A partir daí, ela encolheu, e passou-se a viver em uma era de “expectativas decrescentes”. O futuro
já é presente, e o presente se prolonga em futuro. Como escreve o historiador e sociólogo Immanuel
Wallerstein, a partir de ideias do teórico da história Reinhart Koselleck – os dois servem como
referências fundamentais para o ensaio de Paulo Arantes –, “hoje a tensão entre a experiência
presente, desvalorizadora do passado, e a espera de um futuro cada vez melhor foi largamente
abolida”.
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“A certa altura do curso contemporâneo do mundo”, diz Arantes, “a distância entre expectativa e
experiência passou a encurtar cada vez mais numa direção surpreendente, como se a brecha do
tempo novo fosse reabsorvida, e se fechasse em nova chave, inaugurando uma nova era, que se
poderia denominar das expectativas decrescentes.” De fato, qualquer coisa de novo na relação com
o futuro se estabeleceu no pós-68, e sobretudo depois de 1989. Mas, admitido o fato, seria preciso
refletir se as noçõesde “espaço de experiência” e de “horizonte de expectativa”, bem como a ideia de
“expectativas decrescentes”, descrevem, de forma suficientemente elucidativa, o que ocorreu. Não
se trata de questionar a tese de que houve mudança, nem parte da descrição que dela se faz. O
problema é saber se podemos ficar por aí. Porque, por trás das alterações do regime do tempo, há
evidentemente mutação no conteúdo das crenças (até aí dirão que é evidente, porém é preciso
explorar bem esse conteúdo). Mais do que isso, é preciso indagar as causas da transformação,
causas que têm muito a ver com aquele conteúdo.
Por outras palavras, “espaço de experiência” e “horizonte de expectativa” são categorias formais
(formais transcendentais, se se quiser, do que, aliás, Koselleck está plenamente consciente), mas
com as quais não deixa de surpreender que um teórico que se diz “materialista” se contente. Porque
se ficarmos por aí, no registro das formas, e por brilhante que seja a teorização que as introduz, elas
não nos dizem muito sobre o conteúdo que as preenche, suas bases efetivas e sua história. Caíram
as “grandes esperanças”, é verdade. Mas qual era o teor dessas esperanças? Arantes o indica por
meio de uma palavra hipostasiada: “Revolução”. (Pelo lado da direita, esperava-se antes o
Progresso, mas, aqui, nos interessa mais a esquerda.) A hipóstase conotava uma grande
transformação socioeconômica, mediada por um movimento violento, e que instauraria uma
espécie de reino da igualdade.
Esse movimento não veio? De certo modo, sim. Aconteceu alguma coisa que a teorização formal
sabe, mas explora muito pouco: ocorreu um movimento violento. Pelo menos, supôs-se que o que
se teve no mundo, na forma das chamadas revoluções russa, chinesa, cubana etc., era bem aquele
movimento pelo qual se esperara. Assim, a partir do final de 1917, o futuro já existiria sur terre, isto
é, no presente, mesmo se longe, e em processo de realização. O futuro estava “lá”, ainda que a
alguns milhares de quilômetros de distância, e como futuro em devir.
 
Esse fato é em si mesmo importante, e não pode ser esquecido quando se descreve o que aconteceu.
Porém, para além disso – eis aqui o ponto mais importante –, durante anos a realidade desses
países mostrou objetivamente o contrário do que representava o conteúdo das grandes esperanças.
A coletivização stalinista custou uns 6 ou 7 milhões de mortos; o Grande Salto para a Frente
maoista, uns 30 milhões.
Ora, apesar dos horrores, durante anos a crença – por parte da maioria – persistiu. De fato, no
momento em que, numa das duas grandes pátrias da Revolução, se perpetravam algumas das
maiores matanças da história, continuava-se a ver o futuro em pleno processo de realização. A
esperança não diminuíra, até aumentara. Só mais tarde, com a crise desses regimes, revelou-se o
enorme engano. A terra prometida foi pulando de país para país, da URSS para a China, da China
para Cuba e assim por diante, até sumir do mapa.
Por trás do “encurtamento das expectativas” e da instauração de um tempo de “expectativas
decrescentes”, houve um grande fenômeno histórico, até certo ponto inédito, e que a teorização
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formal, abandonada a si mesma, oculta: um grande movimento de libertação e emancipação se
tornou o seu contrário, a saber, desembocou em poderes autocráticos e “totalitários” – palavra de
que Arantes não gosta, mas que vale, sim, usar. Poderes que superam de longe o que os séculos
imediatamente anteriores haviam conhecido em matéria de violência e autoritarismo.
Essa grande inversão (nos seus três momentos: as revoluções, a própria inversão e a crença ilusória
de que o futuro chegara) é um fato decisivo, senão o fato decisivo, para entender a história do
século XX. Ora, o livro de Arantes – que, malgré lui ou não, oferece uma espécie de filosofia da
história do século XX (mais o começo do XXI) – trata pouco disso. A história do comunismo está
presente, mas apenas como um contraponto pálido, mesmo se recorrente.
Sem dúvida, a esse respeito o leitor dos livros anteriores de Arantes pode registrar um progresso. Lá
onde ele se referia a “estados policiais” (felizmente, o autor nunca foi stalinista, mas esses “estados
policiais” eram pouco mais do que deuses ex machina, sobre cuja origem não se dizia nada), agora
fala (quando fala) em “ditadura burocrática” ou “burocracia stalinista”. Mas mesmo isso é
insuficiente. Dizer, por exemplo, que houve “derrapagens fatais” do lado de lá da Cortina de Ferro
pode ser bem simpático, mas fica muito aquém do que se exigiria de um livro que esboça uma teoria
da história dos últimos séculos.
 
Dada a importância do tema, eu diria que um livro como esse, com mais de 460 páginas, deveria
dedicar pelo menos umas 200 ao estudo daquele fenômeno. Fica evidente que o autor não vê com
muita clareza o tamanho e o alcance do que ocorreu. Há uma passagem que é suficientemente
expressiva a esse propósito, apesar de se situar numa nota, e de ser muito breve e alusiva. Falando
sobre hierarquias e, em primeiro lugar, sobre as do capitalismo, Arantes se dispõe a introduzir uma
referência ao “socialismo real”. “É que o capitalismo”, ele diz, “tem necessidade de uma hierarquia,
ou melhor, assim como o capitalismo não inventou o mercado e o consumo, ele não inventa as
hierarquias, pelo contrário, estas o precedem e o comandam de antemão.” E continua: “Daí o
fracasso do socialismo real: não basta suprimir a hierarquia econômica, supondo-se que isso tenha
acontecido.”
No estilo do que se lê em suas obras anteriores, nas quais se explica o fiasco do “socialismo real”
pelo fato de que se quis construir o socialismo em duas etapas (como se o problema fosse o das
“etapas”), o presente texto nos diz que o “socialismo real” fracassa porque não suprimiu a
hierarquia política preexistente (aquela que estava presente sob o capitalismo). Ora, não foi isso o
que aconteceu, ou não foi precisamente isso. O que ocorreu não foi que as sociedades burocrático-
totalitárias emergentes deixaram de suprimir a hierarquia preexistente. Elas, na realidade, criaram
uma nova hierarquia, e uma hierarquia que, sob muitos aspectos, era de base muito mais
autoritária do que a anterior. E mais: a nova hierarquia nasceu liquidando os elementos
democráticos que despontavam no interior das formas antigas ou que haviam surgido no interior
do processo revolucionário.
Esse movimento tem de ser pensado e estudado para entender o que significam exatamente o
“encurtamento das expectativas” ou as “expectativas decrescentes”, sem o que não saímos de uma
espécie de formalismo, mesmo se inteligente. Com a crise final cai certa mitologia. É verdade que
com a queda dos mitos pseudorrevolucionários (a suposição de que a sociedade burocrático-
totalitária era uma sociedade pré-socialista), surgem outros. Brota uma atitude mais conciliadora
em relação à realidade presente no Ocidente, que é a do capitalismo. Mas essa realidade é também a
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da democracia. Há assim um movimento de perdas e ganhos que deve ser estudado de perto e
criticamente, sem dissolvê-lo numa teoria abstrata do tempo.
 
 
DEMOCRACIA E CAPITALISMO
A
história do capitalismo, tal como ela é apresentada em O Novo Tempo do Mundo, não atribui
nenhum lugar mais ou menos autônomo ao “político” (refiro-me ao Estado e ao governo). O
político, no estilo da tradição marxista, aparece sempre como que “arrastado” pela história do
capital. E a “política”, entendida como luta política, é sempre, ou quase sempre, a luta contra o
capital. Mais particularmente, nem no planodo político nem no registro da política há alguma
autonomia para a democracia. Há um lugar, mas só como um pendant político do capital.
Fica fora da perspectiva de Arantes que as lutas do século XIX tenham sido em considerável
proporção lutas pela democracia (ver o exemplo dos cartistas ingleses) e, mais que isto, que tenha
havido uma oposição fundamental entre capital e democracia, mesmo se o primeiro conseguiu
inserir a última no seu “contexto” – mas essa inserção é sempre instável. Pode-se dizer, cum grano
salis, que a “democracia” é para ele o que é para Bush, só que com sinais trocados. Um significante
puramente ideológico, verniz político do capitalismo. Como acontece com o conceito de
“totalitarismo”, Arantes parece supor que o uso ideológico de um termo exclui a possibilidade de
que esse termo tenha paralelamente um significado crítico e rigoroso.
De novo aparece aqui, na obliteração do significante “democracia”, uma das expressões do
procedimento geral operado por Paulo Arantes de hiperbolização do papel do capital e do
capitalismo. Não se trata de negar o peso que teve e tem o movimento do capital e o capitalismo,
enquanto força social, que ocupa grandes territórios da história moderna e contemporânea. Mas, no
livro que examinamos, o capital e o capitalismo estão em toda parte, são uma espécie de “Sésamo”
que abre todas as portas, que explica ou deve explicar tudo. E, se acontecer de o capital não explicar
o objeto, é que este não deve existir. É fantasma ideológico, percepção errada ou coisa semelhante.
Apesar de tudo o que representam capital e capitalismo, insisto, há aí erro de fato e erro de lógica.
O capital e o capitalismo estão presentes quase por toda parte no mundo, no século XIX e mais
ainda no XX. Resta saber como. Arantes trata o capital como se ele fosse a essência ou o
fundamento de tudo. Ora, apesar da sua hegemonia, a rigor, o capital não é essência. Pelo menos
não o é por toda parte. Eu diria – omitindo aqui referências mais extensas à Ciência da Lógica de
Hegel, para não sobrecarregar o leitor – que ele é antes base do que essência. Ele está “por baixo”
de quase tudo, como uma espécie de solo, mas esse solo não diz sempre o que circula por sobre ele.
 
Um exemplo interessante desse procedimento permanente de hiperbolização do capital aparece na
discussão sobre a natureza do nazismo e dos campos de extermínio nazistas. Arantes opõe duas
teses: a dos que aproximam o nazismo do capitalismo, e a dos que, como o historiador marxista
Moishe Postone, professor da Universidade de Chicago, acentuam o lado anticapitalista, mesmo se
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simbólico, no nazismo. “O campo de extermínio nazista”, escreve Postone, “não representa uma
versão terrível da fábrica capitalista [...], mas, muito pelo contrário, precisa ser visto como a sua
grotesca negação‘anticapitalista’.” (A tese de Postone é a de que os nazistas procedem a uma
espécie de morte ritual do capitalismo. Eles liquidam em massa os judeus, de quem eles haviam
feito previamente a própria encarnação do dinheiro e do capital.)
Não vou discutir em detalhe essas teses. O que quero ressaltar é como, com esse deslocamento
explicativo, finalmente nos deslocamos muito pouco. Ou os campos nazistas seriam homólogos das
fábricas capitalistas, ou então eles seriam o seu oposto. Vê-se o que há de comum nas duas teses
(que aliás poderiam coexistir, e que são, ambas, de extração marxista). A referência é sempre o
capitalismo. Mas, se nazismo e capitalismo se “tocam” de algum modo (tudo se toca de algum modo
na história contemporânea e, no caso, o laço vai mesmo, sem dúvida, além dessa afinidade geral),
isso não quer dizer, seja o sinal positivo, seja negativo, que o nazismo possa ser definido
rigorosamente através do capitalismo.
O nazismo se define muito melhor pela democracia. De fato, ele não é anticapitalista, mas ele
também não é essencialmente (no sentido de que o capitalismo daria a sua definição) pró-
capitalista. Ele é, sim, antidemocrático. Os chefes nazistas afirmaram e reafirmaram que sua tarefa
era liquidar de vez a revolução igualitária dos liberais e dos socialistas, revolução que teve início no
ano maldito de 1789. Ora, quem não é capaz de pensar a democracia senão como ideologia não
pode entender nem definir o nazismo.
Partindo de um livro extraordinariamente interessante, Souffrance en France (1998), do psiquiatra
Christophe Dejours, e de alguns outros textos, Arantes se dispõe a pensar o nacional-socialismo a
partir da noção de “trabalho”. É possível. Mas o resultado é precisamente o de operar uma
aproximação excessiva entre o nazismo e outras formas sociais (o capitalismo, em particular), o que
convém a certa leitura marxista. Num dos raros textos em que o autor compara os campos nazistas
aos campos stalinistas, ele contrapõe o “genocídio como trabalho” praticado pelos nazistas ao
“extermínio pelo trabalho”, que caracterizaria a versão stalinista dos campos. Ora, o denominador
comum a obter dessas fórmulas, apesar das aparências literais, não é o significante “trabalho”, mas
os outros dois, quase sinônimos: “genocídio” e “extermínio”. Para chegar até aí, entretanto, seria
preciso se libertar um pouco mais da “grade” (no duplo sentido do termo) marxista, que o
aprisiona.
 
 
A GUERRA CIVIL MUNDIAL
S
e a história moderna e contemporânea é, num registro estrutural, mais ou menos reduzida à
história do capital e do capitalismo, no plano das lutas (mas, finalmente, há pouca “luta” no livro de
Arantes) ela é, senão “luta de classes”, pelo menos “guerra civil” (sem que fique muito claro até
onde vai uma, até onde vai outra, ou se o autor assimila esta àquela). Bem entendido, houve muita
guerra civil e também luta de classes no século XX, mas o século teve muito mais do que isso. O
mínimo que se poderia dizer é o que escreve Orlando Figes no prefácio do seu muito importante A
Tragédia de um Povo: a Revolução Russa 1891–1924: “A revolução [foi] todo um complexo de
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diferentes revoluções, desencadeadas em meio à Primeira Guerra Mundial, e que provocaram uma
reação em cadeia de mais revoluções, guerras civis, [guerras] étnicas e guerras entre nações.”
Ora, no esquema arantiano (que, bem entendido, deve ao filósofo e jurista Carl Schmitt, mas com
inflexão materialista) a realidade é mais simples. Ele diz: “[...] as ‘potências’ vitoriosas na Primeira
Guerra Mundial formaram uma outra Santa Aliança sob liderança norte-americana para esmagar a
revolução europeia iniciada em 1917 e que nos anos 20 já assumira as proporções de uma Guerra
Civil Mundial em que se confrontavam revolução e contrarrevolução.” A ideia aparece novamente
numa referência às “marchas e contramarchas da luta de classes ao longo da Guerra Civil Europeia
da primeira metade do século XX”. Em outro exemplo, a “guerra social havia se convertido em uma
Guerra Civil Europeia, como ficaria claro depois de 1917”.
Assim, a história da primeira metade do século XX seria a história da “guerra civil”, na qual se
reconhece a presença da luta de classes. Vê-se o alcance negativo da redução. O choque entre
poderes de Estado, que foi um dos elementos maiores da história do século XX, se transforma em
epifenômeno, simples ilusão fenomenal, nada mais do que uma aparência. Ele é substituído por
uma suposta essência: a Guerra Civil dos poderes contrarrevolucionários lutando contra a
Revolução. Repito: claro que houve guerra civil ou mesmo luta de classes no século XX, mas nada
justifica reduzir toda a história do século ao confronto entre uma frente de poderes
contrarrevolucionários,o dos vencedores da guerra de 1914–18, e uma frente revolucionária
popular.
 
Na Espanha, por exemplo, houve uma verdadeira guerra civil, mas os contrarrevolucionários não
eram aliados dos grandes vitoriosos da Primeira Guerra, mas da Alemanha e da Itália. As lutas no
Terceiro Mundo, no mesmo século, tiveram uma dimensão classista, mas muito mediada por outros
elementos, entre os quais o peso da Terceira Internacional, pretenso comando mundial do
proletariado. Quando os dados empíricos confirmam pouco uma tese, tanto pior para esses dados e
para a boa empiria. Entre o esquema ditado pela visão “revolucionária” dos fatos e a realidade,
quem tem sempre a última palavra é o esquema, e não a realidade.
O mesmo poderia ser dito da forma pela qual é tratado o jogo de forças mundial no nosso presente.
O quadro é o de um domínio esmagador do capital, na forma transfigurada do capital financeiro e
também da dominação política. E, apesar de umas poucas referências à China, a dominação
aparece, tanto do ponto de vista financeiro quanto do ponto de vista político, como essencialmente
americana e, apesar de tudo, numa figura que lembra muito a do antigo imperialismo.
Mas a verdade é que nem o domínio americano é assim tão incontestável, nem representa ele hoje,
sem mais e sempre, o lado “pior” (mesmo se ele está longe de ser “bom”). Sim, porque há
atualmente muitos focos de opressão e de exploração do lado dos “pequenos poderes”. O sinistro
Califado Islâmico, onde vendem mulheres e degolam e crucificam prisioneiros, é o último e melhor
exemplo. O esquema de leitura do autor é simplista no balanço das forças e no julgamento político.
Lembra o discurso de esquerda da época em que se travavam guerras coloniais.
Claro que Arantes não elogia nenhum califado, mas a impressão que se tem, lendo as passagens do
seu livro relativas a esses temas, é a de um cenário de assimetria radical. O que simplifica muito o
processo, e o deforma. Na mesma linha de ideias, há uma curiosa tendência a reduzir diferentes
agências e organizações internacionais humanitárias a simples instrumentos do capital. Isso às
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vezes é o caso, mas nem sempre. A primeira coisa a observar aqui é que os erros e crimes dos
ocidentais não estão sempre no fato de intervir – às vezes eles residem justamente na não
intervenção, como no massacre de Srebrenica, na Bósnia, ou no genocídio em Ruanda, ambos nos
anos 90. Pode parecer um detalhe, mas não é, porque mostra a complexidade da situação. E, nesse
contexto, seria importante lembrar que, no caso do massacre dos tútsis em Ruanda, o Médicos Sem
Fronteiras fez apelos dramáticos em favor de uma intervenção, apelos, aliás, que foram finalmente
ouvidos, mesmo se tardia e limitadamente. Um exemplo importante que mostra o quanto o mote
“intervenção internacional e filantropia” é simplificador e, por isso mesmo, falso.
 
 
“ESTADO DE EXCEÇÃO”
S
e a narrativa oferecida por Arantes padece de uma compreensão melhor das relações entre
democracia e capitalismo, insuficiência que vem do impacto, apesar de tudo poderoso, do modelo
marxista, a análise da história dos séculos XX e XXI, sobre a qual já falei alguma coisa, vem
dominada por uma tese cada vez mais em voga, tese que tem sua origem nas ideias de Carl Schmitt
– replicada depois por Walter Benjamin e, mais recentemente, pelo filósofo italiano Giorgio
Agamben. Trata-se da ideia de que a política do século XX pode e deve ser decifrada a partir da
noção de “estado de exceção”: “[Há um] argumento geral desenvolvido por Giorgio Agamben na
forma de um diagnóstico de época formulado nos anos 1990”, escreve Arantes, “segundo o qual o
‘estado de exceção’ – [...] état de siège [...], emergency powersou martial law [...] – tende cada vez
mais a se apresentar como paradigma de governo dominante na época contemporânea.”
Em O Novo Tempo do Mundo, o “estado de exceção” ou de “urgência” – figura jurídica que
suspende direitos e garantias constitucionais dos cidadãos, a ser adotada em princípio
provisoriamente em situações de emergência, como guerras ou calamidades públicas, para
aumentar a eficácia do Estado – aparece como uma fórmula que encerra uma verdadeira teoria
geral da história do século passado e do que já se viveu do século atual, fórmula que vale para o
capitalismo liberal-democrático, para os regimes mais ou menos autoritários, mas também para o
nazismo. Quaisquer que sejam as aparências de um desses regimes políticos, o “estado de
emergência” é sempre o seu segredo.
Para mostrar a universalidade do seu papel e o caráter, senão derrisório, pelo menos adjetivo de
certas distinções entre regimes tidos como mais democráticos e outros claramente autoritários,
invoca-se frequentemente a passagem da República de Weimar ao nazismo. Hitler pôde proclamar
a lei marcial em 1933, após o incêndio do Reichstag, porque a Constituição da República de Weimar
reconhecia essa possibilidade no seu capítulo sobre o estado de exceção. Reconstituir-se-ia assim a
linha de continuidade entre a República de Weimar e o regime nazista.
Mas de que vale a tão falada tese de que o “estado de exceção” define a soberania na época
contemporânea? Mais importante do que isso, até onde vai o poder explicativo da tese? Em
primeiro lugar, seria preciso definir melhor o que a “exceção” representa. A primeira questão é a de
saber se devemos considerá-la enquanto efetiva ou como virtual. O livro cita um texto de Agamben,
que comenta Schmitt: “O funcionamento da ordem jurídica baseia-se, em última instância, em um
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dispositivo – o estado de exceção – que visa tornar a norma aplicável suspendendo,
provisoriamente, sua eficácia.”
E Arantes observa que seria falso afirmar, como escreve um comentador, que, segundo a tese
schmittiana sobre o estado de exceção, “toda a ordem legal ‘seria como que uma latente e
intermitente ditadura’”. Muito bem. O estado de exceção tem de permanecer latente para se efetuar.
Com isso, diz-se de fato alguma coisa. Porém, se ele se efetuar, o que acontece? A máquina não
funciona, escreve Agamben, ou, como sugere Arantes, passar-se-ia à ditadura.
De novo, eu diria, muito bem. Porém, entre essas duas situações, de que ordem é a diferença?
Apesar de suas explicações, Arantes (a partir de Schmitt e de Agamben, pelo menos tal como ele os
lê) não vê certamente aí uma grande ruptura. Na realidade, a despeito das advertências, quer se
trate do Brasil, quer se trate da Europa, o livro não cessa de aproximar os períodos democráticos
dos períodos de ditadura. A ditadura militar no Brasil e os governos que a sucederam seriam
diferentes, mas não essencialmente diferentes. Sugere-se uma “substituição’’ de violências, fala-se
de um “primeiro” e de um “segundo regime de violência”, um pouco como se, no primeiro caso,
tivesse havido “matança seletiva” na cidade, e, no segundo, assassinatos “indistintos” na periferia.
Mas a verdade é que não houve substituição de massacres: sob a ditadura, os dois morticínios
coexistiam e se acumulavam.
 
Se o tema das afinidades entre a ditadura e a pós-ditadura no Brasil é do autor, o da quase
continuidade entre Weimar e o nazismo é introduzido a partir de Schmitt e de Agamben. Enfim, a
famosa teoria sobre “estado de exceção”, para tomá-la na sua expressão geral – teoria que é pobre
na forma e errada no conteúdo –, tem antes de tudo a função de obscurecer a distância entre as
democracias e as ditaduras, o que evidentemente limpa a barra das últimas e suja a das primeiras.
Tal é, no fundo, o segredo da tão falada tese.
O primeiro resultado,desastroso, de tal teoria é que ela não vê o que há de radicalmente novo no
nazismo. Este não é um avatar, mesmo extremo, do estado geral de exceção. O nazismo é uma
forma social original, monstruosa, bem entendido, mas que se revela essencialmente diferente dos
regimes de capitalismo liberal-democrático, e mesmo de capitalismo autocrático. A referência à lei
marcial de Hitler, proclamada com base no artigo sobre o estado de exceção contido na
Constituição de Weimar, ou, antes, as consequências que se pretende tirar disso são um engodo.
Que Hitler se tenha valido daquele artigo para declarar a lei marcial não explica nem a gênese do
nazismo nem a sua essência.
Quanto às limitações sucessivas da liberdade sob Weimar, se derivam em parte dos projetos
antidemocráticos das forças conservadoras, elas se explicam também, e muito, na origem,
precisamente pela ameaça que representavam os nazistas para a República. Mas não só os nazistas,
também os comunistas. Comunistas e nazistas sabotaram a República de Weimar. O que se
costuma dizer é que a democracia de Weimar, como a democracia em geral, é “fraca”. E do “fraco”
desliza-se para o “culpado”. Se a democracia é fraca, há que fortalecê-la, e não liquidá-la, como se
pretende nos meios neoschmittianos... de esquerda.
Voltando ao tema geral. Talvez o mais interessante na crítica daquela, a meu ver, muito miserável
teoria sobre a história contemporânea, teoria que enquanto esquema jurídico e único acaba
apagando as descontinuidades presentes nessa história, seja insistir no fato de que ela tem como
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base, e não muito oculta, a crítica da democracia. A saber, a ideia de que a democracia é apenas
uma variante de um mesmo poder autocrático.
Mas aqui essa indicação ganha um interesse particular, levando-se em conta o que escrevi sobre o
peso do marxismo na leitura da história do capitalismo que o livro oferece, em particular sobre o
eclipse do lugar das lutas democráticas e da democracia em geral. É que a tese schmittiana-
agambeniana vem reforçar o déficit marxista em matéria de análise da democracia. Se a democracia
aparecera antes, na esteira teórica do marxismo, como pouco mais ou menos do que como um
epifenômeno do capitalismo, agora ela desponta como um simples avatar da trajetória do “estado
de exceção”.
 
Para não prolongar muito mais esse ponto, essencial entretanto, faço apenas mais duas
observações. Uma, a de que o nazismo e a Shoah acabam passando literalmente para um segundo
plano, reduzidos a uma espécie de episódios do “caminho alemão”. Paulo Arantes escreve:
“Entendido o antissemitismo nazi como uma tentativa paranoica de ultrapassar violentamente a
história percebida como uma perene ameaça de descontrole e degenerescência, e ultrapassá-la por
meio do Terror, o Holocausto passa para um discreto segundo plano, e o Nazismo, por sua vez,
entra na conta das aberrações regressivas da via prussiana [...].”
Em segundo lugar, voltando ao belo livro de Christophe Dejours, que se ocupa do sofrimento no
trabalho, observemos que Arantes extrapola muito as teses do autor. Dejours analisa a banalização
do “sofrimento social” sob o neoliberalismo, banalização que se tornou célebre em outro contexto, a
saber, a propósito do “mal” que praticaram os atores do projeto nazista. Entretanto, a comparação
(nos dois casos, trata-se de “banalização”, melhor do que “banalidade”), que é perfeitamente válida
dentro dos limites do que escreve Dejours, não permite afirmar que só com o neoliberalismo
“podemos enfim atinar com a mola secreta do poder nazi”. A mola do nazismo era outra.
É importante ressaltar ainda, a propósito do livro de Dejours, o fato de que ele introduz uma
espécie de fundamento para a crítica de esquerda, a ideia de “sofrimento social”. Fundamento que,
bem entendido, é heterodoxo em relação a Marx (ao Marx maduro de O Capital, em todo caso) e se
relaciona, como assinala Arantes, com a ideia de “alienação”. O “sofrimento social” é tratado por
Dejours como uma “injustiça”, o que também nos leva para longe de Marx, que, como se sabe, era
muito avesso aos termos “moralizantes”.
Mas, se ter dado destaque ao que escreveu Dejours é certamente um mérito de O Novo Tempo do
Mundo, pode-se perguntar em que medida Arantes incorporou esses elementos heterodoxos como
fundamentos gerais para uma crítica do capitalismo, em particular, e da exploração e opressão, em
geral. Claro que aquelas noções estão de alguma forma presentes, pelo próprio fato de que o autor
se utiliza abundantemente do que escreveu Dejours. Mas elas não “informam” ou, em todo caso,
certamente não informam de um modo suficientemente claro e não contraditório, o conjunto do
texto.
 
 
“NÃO QUEREMOS MAIS SER GOVERNADOS”
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O
 Novo Tempo do Mundo confere um lugar importante a certa literatura sociológica e crítica que
trata da miséria e da violência nas periferias, nas favelas e em outros espaços do mesmo tipo. A
questão central é a da violência policial. A realidade desta é indiscutível, e é com razão que o autor
dá um relevo especial ao tema. Entretanto, também aqui há hipérbole. E esta corre o risco de
enfraquecer o argumento, quando não de liquidá-lo.
Para dar um exemplo, muito característico, não posso deixar de comentar o que Arantes escreve
sobre as UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora), forças de intervenção policial que atuam nas
favelas do Rio, combinando ocupação do território e trabalho social. Não estou em condições de
fazer uma avaliação precisa do que significaram e significam as UPPs. Elas obtiveram certamente
alguns resultados na luta contra o tráfico. Mas sua atividade ficou marcada ou manchada por
violências contra a população, além do fato de que, frequentemente, os traficantes abandonavam a
zona sob intervenção para se instalar em outros pontos do território. Porém, o que de qualquer
modo parece chocante no texto de Arantes é que ele vê as UPPs como um simples elemento de
repressão policial, “trabalho social armado” que visa pacificar as populações. E da dualidade
repressão/trabalho social (ecoando o arcuseano welfare/warfare) passamos à Batalha de Argel, à
Guerra da Indochina ou às ações imperialistas na América.
Ora, quaisquer que tenham sido as violências praticadas pela polícia em diferentes situações, e
independentemente do que escreve tal ou qual ideólogo, do lado de cá ou do lado de lá, que Arantes
gosta de citar, as intervenções do tipo UPP não são de forma alguma comparáveis, mesmo mutatis
mutandis, a eventos como as intervenções norte-americanas ou europeias na América, África e
Ásia. Por uma simples razão: é que, de uma forma ou de outra, mesmo se concluirmos por uma
condenação geral das UPPs, existe um fator, aí presente, que estava ausente nos outros casos, do
qual o autor esquece (ou quase esquece, porque há menções, mas tão poucas e tão escondidas nas
notas que a gente perde de vista). Este elemento é a criminalidade.
Ele cita um texto em que se afirma que “a presença de grupos armados é [...] um pesadelo para o
conjunto da população carioca”. Há outras breves referências. Mas nada disso o impede de incluir
as intervenções do tipo UPP num esquema mundial de intervenções imperialistas. E, talvez ainda
mais importante, a intervenção do Estado acaba sendo reduzida a pouco mais do que um tipo
especial de banditismo. A partir de operações como a das UPPs, Arantes chega à “evidência de que
o Estado está voltando a ser a relíquia que sempre foi, um bando armado que vende proteção”. Ora,
se é verdade que ações brutais de uma polícia arquicorrupta tendema fazer do Estado algo como
um poder de gangue entre outros poderes de gangues, nem de direito nem mesmo de fato o Estado,
e mesmo o Estado brasileiro, representa hoje rigorosamente tal coisa.
Exagero na crítica? Arantes não quis dizer exatamente isto? A verdade é que, afinal, a gente
pergunta: o autor acredita ou não que, de uma forma ou de outra, só através do Estado será possível
combater a grande criminalidade? Porque finalmente não se sabe bem se Arantes é a favor ou
contra o Estado. Existe, aliás, uma antinomia na palavra de ordem (que ele aprecia): “Não
queremos mais ser governados, ou não mais assim.” Não queremos mais ser governados? Ou não
queremos mais ser governados assim? Vai aí uma diferença que não é pequena.
 
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Há um modo mais universal de desconstruir a hipérbole da explicação pelo capital, pelo capitalista,
ou pela “forma atual de acumulação do capital”. Eu o insiro aqui, no final dessa sucessão de topos
críticos, como um argumento que, de certa maneira, os resume. Arantes não cessa de denunciar as
aberrações e violências do capitalismo contemporâneo. No que ele, em geral, tem certamente razão.
Tudo é objeto de crítica. Mas aqui seriam necessárias algumas observações.
Há na realidade social – a distinção é utilizada por Marx, que, no seu sentido geral, a tomou de
empréstimo de seu mestre Aristóteles – uma forma e uma matéria. Há uma base tecnológica, ligada
a certo nível de desenvolvimento da ciência, além de certos pressupostos demográficos etc., o que,
tudo junto, representa a matéria do social. Mas há também uma forma social, que, no caso das
nossas sociedades ocidentais (e hoje, bem mais do que isso), é a forma capitalista. Bem entendido, a
forma impregna a matéria, modifica-a, dá-lhe um caráter particular. De qualquer modo, não
desapareceu a distinção entre forma e matéria. Perdê-la de vista é operar um movimento
simetricamente inverso, mas não menos redutor, ao da crítica reacionária que transforma a forma
em matéria (transforma o capitalismo em “sociedade industrial”). Aqui, pelo contrário, é a matéria
que vira forma (a forma capitalista faz perder de vista a matéria).
Escamoteia-se, assim, o desafio que representa tentar pensar uma sociedade altamente
desenvolvida do ponto de vista tecnológico como uma sociedade – o que ela poderia ser –
emancipada. Que não se diga que a crítica não está obrigada a tanto. Ela não estava, de certo modo,
no tempo de Marx, ou para Marx. O comunismo havia de resolver (quase) todos os problemas, e era
melhor não abarrotar as “panelas do futuro”. Argumento válido, dentro de um certo quadro de
pensamento, mas que não serve mais. Se é que alguma vez serviu.
Para dar um exemplo, a partir de certos autores, e no contexto de uma análise dos territórios em
que domina uma ordem disciplinar, o autor escreve: “As companhias aéreas [...] são antes de tudo
instituições disciplinares.” Em geral, não duvido, embora haja exagero nisso. Mas não se trata
apenas de exagero. Há aí um problema maior. Arantes não discute o que poderia ser uma sociedade
emancipada em que, por exemplo existiriam aviões. Sim, porque podemos – e até devemos –
imaginar uma sociedade emancipada em que haveria aviões. De fato, um projeto de emancipação
não deve propor a liquidação de grandes conquistas tecnológicas, pelo menos na sua forma geral. E
se é assim – independentemente da disciplinarização que existe, certamente, no nosso tempo –, é
evidente que a presença daquela tecnologia implicaria um certo número de exigências, do tipo
hierarquia de comando, organização da espera, e mesmo, conforme a situação, inspeção do que se
embarca a bordo dos aviões etc.
Alguém pode dizer que me ocupo de banalidades, mas é a partir das banalidades que se pode ver o
que não funciona na obra que examinamos. Minha tese é a de que Arantes confunde crítica da
forma e crítica da matéria. Ou, antes, atribui à forma todos os problemas, inclusive aqueles que se
devem à matéria. Isso certamente facilita as coisas para ele, mas não serve à crítica. Um ponto
curioso é a denúncia que ele faz da fila, em particular da “fila para comer”. Esta remeteria, em
última instância, às prisões e aos campos, como afirmaram sociólogos críticos.
Ah, que horror fazer fila para comer! Horror banalizado, já que, no que se refere a essa forma de
disciplina, ter-se-ia perdido ou recalcado a reação original, que era de repulsa. Ora, a fila (incluindo
a fila para comer) decorre muitas vezes de condições e exigências, por assim dizer, técnicas, que
pouco ou nada têm a ver com a opressão. Faz-se fila na cantina de uma escola. A cantina é uma
instituição repressiva? É opressivo, que, na cantina, cada um se sirva obedecendo a uma fila? Claro
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que poderia ser de outro jeito, mas o arranjo seria mais livre? Pode haver fila até em piquenique de
amigos, quando somos suficientemente numerosos, e alguém prepara uma sopa para todo o grupo.
Na realidade, apesar dos horrores das filas imensas à espera de alimentos escassos ou outros
produtos de primeira necessidade, e das filas para fazer pedidos às autoridades, pedidos que não
serão satisfeitos e nem sequer respondidos, a fila, em si mesma, não tem nada de opressivo ou
irracional. Pelo contrário, eu diria que ela é um procedimento igualitário, que serve a uma
sociedade democrática. Nunca me esqueço da minha primeira volta ao Brasil, quando em vez de
esperar a minha vez, à maneira europeia, fazendo democrática e pacificamente uma (pequena) fila,
fui obrigado a lutar contra um bando de gente agressiva, amontoada em torno de um balcão.
Tudo isso pode parecer insignificante, repito, mas importa mostrar o caráter hiperbólico e por isso
inoperante do estilo crítico do livro que examinamos. Aliás, a propósito de filas, diria ainda que
também quando se fala em público, em discussões, mesas-redondas ou colóquios, é preciso fazer
fila, isto é, aguardar a vez e respeitar democraticamente o tempo de palavra. Quem quiser falar
mais, que espere primeiro, na fila, os minutos de intervenção de cada um dos outros. É pelo menos
o que fazem os que têm o mau hábito de respeitar a disciplina democrática.
 
 
DEPOIS DE JUNHO
É
hora de examinar o que representa propriamente a política em O Novo Tempo do Mundo. Como já
observei, o que desde o início incomoda na política de Arantes, tal como aparece no presente livro, é
que ela se constrói tendo como fundo uma entidade hipostasiada, a “Revolução” (com maiúscula).
Uma tese importante nesse contexto é a de que hoje não se é fiel à Revolução. O lugar dessa
entidade teria sido tomado por outras, em primeiro lugar a “Urgência” (também com maiúscula).
Se antes se falava em Revolução, o grande evento que a esquerda desejava e a direita execrava, hoje
não se fala mais dela, e seu lugar foi tomado por algo assim como a “grande catástrofe” – nuclear,
climática, biológica –, que alguns temem e outros denunciam como mito.
Só que as coisas não se passaram exatamente desse modo. Essa descrição da mudança é acrítica. A
mudança real (porque houve uma), do ponto de vista crítico pelo menos, que é o daqueles que
privilegiam o destino das lutas emancipatórias, se escreveria mais ou menos deste jeito: as lutas
contemporâneas pela emancipação passaram a ter múltiplos objetivos; elas deixaram de visar
apenas à igualdade e à liberdade (aliás, esta última, à luz do que ocorreu no século XX, ganhou uma
força inédita), e a elas se somou a luta pela “melhor sobrevivência” da espécie no planeta. Para não
falar em outras lutas. Todo o problema da esquerda atual é saber como articularessas diferentes
frentes.
Ora, Paulo Arantes não desce até aí. Em vez de tentar combinar elementos, ele prefere colocá-los
em oposição. Em vez da “Revolução”, que visaria à igualdade, teria surgido uma nova entidade, a
“Urgência”. E aí, ai da Revolução. E que não se diga que houve uma nova distribuição de forças, de
um lado os que acreditam na Urgência e que temem catástrofes mais ou menos iminentes, de outro
os que não acreditam nela. Em O Novo Tempo do Mundo, a diferença entre uns e outros,
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“catastrofistas” e “integrados” (é essa a sua terminologia), não é fundamental. Uns se somariam aos
outros no mesmo gesto de repúdio à Revolução, ou ao seu equivalente à direita, o Progresso.
Por esse caminho é muito difícil entender os problemas contemporâneos, em particular os que
tocam às lutas de emancipação. Em primeiro lugar, seria necessário precisar bem o que o autor
considera real, e o que, para ele, é fictício em matéria de catástrofes eventuais. As fronteiras entre
realidade e ficção seriam imprecisas? Não creio. Ou nem tanto assim. De qualquer modo, se não
distinguirmos bem o que é real do que é aparente, é impossível lutar, senão sobreviver.
Ora, o livro de Arantes evolui numa zona cinzenta, às vezes não sabemos bem se o objeto (ou o
evento possível) a que ele se refere seria real ou imaginário, se para ele o risco da catástrofe seria
mesmo real (acho que sim, mas há passagens ambíguas). No que me concerne pelo menos – e
muita gente pensa do mesmo modo –, o risco é real, muito real, quer se trate da acumulação de
co2 na atmosfera, do “acidente” nuclear ou da proliferação de certos vírus. Mas, se tal é o caso,
parece também, salvo melhor juízo, que devemos tomar posição diante dele, assumir nossas
responsabilidades, como se costumava dizer, pelo menos no plano do discurso, e não se refugiar nas
delícias e no brilho do nosso discurso.
 
Descrevi o lado dos que afirmam que o perigo é real. E eles não se limitam a afirmar. Muitos se
dispõem a lutar (em organizações diversas, ONGs, partidos políticos) para que o pior não aconteça.
Estão aí, em nível mundial, manifestações importantes contra a utilização da energia nuclear e
contra todos os atentados graves ao meio ambiente. Essa gente, seja lembrado, invoca muitas vezes
o chamado “princípio de precaução”. Pois, coerente com o curso geral dos seus argumentos,
Arantes joga fora o “princípio de precaução”, junto com o seu contrário, que se poderia chamar
talvez de “princípio de audácia”, ou melhor, “de temeridade”, o que professam aqueles que não
acreditam em perigo nuclear e quejandas ficções. Como vimos, tudo vai para a mesma lata. Um
pouco como uma nova versão da famosa “lata de lixo da história”, de tão triste memória. Só que
nessa nova versão entra todo mundo. Este me parece ser, infelizmente, o contexto geral da política
arantiana.
Mas vamos ao particular. E aí há que falar principalmente das mobilizações de junho de 2013. Ah,
as mobilizações de junho! Como já sugeri, Paulo Arantes professa em geral um pessimismo teórico-
prático. Ele descreve o mundo capitalista como uma realidade mais ou menos fechada, uma
“máquina do mundo” no interior da qual não há lugar nem para a reforma, nem a rigor para a
“Revolução”, nem, ainda, para o “reformismo radical”. Até aí, alguma verdade. Mas respiremos. Se
é meia-noite no século, é também meio-dia. Os jovens se mobilizaram. Não se trata do velho
proletariado, nem do proletariado em geral, mas de uma camada nova, sui generis. Certo. Enfim,
eles se mobilizaram, e com isso entramos num novo registro, o do “depois de Junho”.
Deixo claro que simpatizo com as manifestações de junho e que, além disso, estou convencido de
sua importância. O problema é saber o que elas significaram, que perspectivas têm, e o que se
poderia dizer da maneira pela qual foram conduzidas. Arantes as teoriza a partir de Agamben, o que
significa em geral fazer uso de fórmulas pedantes e, tudo somado, superficiais.
Devo sublinhar que nem tudo o que ele escreve sobre essas mobilizações me parece falso. Por
exemplo, é feliz ao insistir sobre a coexistência de reivindicações bem precisas e aparentemente
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minúsculas – abaixo o aumento de 20 centavos –, de um lado, e de outro uma perspectiva implícita
ou explicitamente mais ampla, além de aberta para um leque virtual de exigências. Mas o tema
central é o da “profanação”: profanar, segundo Agamben, significa “restituir ao livre uso o que antes
estava indisponível, confiscado e preservado fora do alcance em sua aura”, nos diz Arantes.
 
A
 tese geral que está por trás do mantra da profanação é a de que o capitalismo, hoje, não se afirma
mais “unicamente através da repressão”. O autor começa por citar um texto do coletivo Passa
Palavra, segundo o qual o capitalismo quer que “os de baixo” sejam “engajados e participativos”,
mas desde que engajamento e participação aconteçam “dentro de espaços preestabelecidos”. Agora
é Arantes quem fala: “Um dos choques insurgentes de junho consistiu justamente na profanação
desse confinamento.” Vê-se mal o quanto se avança – ou não avança – com esse mote da
“profanação”.
Mas o pior é que, entre as “profanações” atribuídas ao movimento, e que constituiriam a sua
originalidade e grandeza, está a profanação... “da estratégia da não violência”. Sim, pois Arantes
incorpora o movimento, por assim dizer, em bloco. Ele o saúda, não só sem fazer restrições aos atos
de violência que, em alguns momentos, o acompanharam, mas considerando esses atos, ao que
parece, como um dos pontos fortes e originais do movimento.
Em mais de um momento O Novo Tempo do Mundo abre alas para os black blocs: “Mais uma vez:
jamais esquecer, como se esqueceu na hora em que a tática black bloc tornou-se a bola da vez, a
dimensão inédita assumida pela tática da ação direta adotada pelo Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra (MST) – ocupar, resistir, produzir –, o que lhe rendeu de volta a fúria assassina
dos proprietários e seu braço estatal.” Ou ainda: “O fenômeno black bloc nos acontecimentos de
junho não era trivial.”
Tocamos aqui no problema da violência. As manifestações de junho foram violentas? E, se o foram,
por iniciativa de quem? Qual a atitude primeira do Movimento Passe Livre diante da violência?
Ora, se estudarmos as primeiras declarações de seus membros (já que, por definição, eles não têm
chefes), veremos que havia uma tendência evidente, por parte deles, em direção à não violência.
Havia até um exagero nesse direcionamento: os MPL se dispunham a dançar nas manifestações, e
não queriam nem carro de som – para não “oprimir” os manifestantes –, nem, ao que parece,
serviço de ordem. Não posso exibir documentos, mas creio que foi essa a atitude deles.
 
Depois as coisas mudaram um pouco. Claro, houve violência, e grande violência por parte da polícia
militar. Alguns manifestantes reagiram. Mas, principalmente, apareceu um grupo, os famosos black
blocs, ativistas encapuçados, que se propuseram a enfrentar a polícia e também a destruir peças do
patrimônio público ou privado. Com os resultados que conhecemos: alguns feridos, também do
lado de lá, e mais prisões. Deixo de lado outros problemas, como o da presença de elementos que se
podem considerar como “de direita” no interior das manifestações, o que, sem dúvida, complicou o
quadro.
Mas o que me impressiona, em sentido negativo, é que os militantes dos grupos que estão na
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origem das mobilizações de junho (e, em parte, das manifestações anteriores) foram
progressivamente definindo uma atitude de quase respeito, respeito político, ou talvez até mais do
que isso, pelo grupo violento dos encapuçados. Insisti, em textos anteriores, sobre o quanto isso
representou um engano lamentável, fruto sem dúvida do fetichismo da violência que domina parte
da esquerda desde pelo menos um século. Ora, Arantes não distingue as atitudes presentes nas
práticas dos manifestantes, tampouco assume uma posição crítica diante do que é uma concessão,
de gente que na origem tinha uma postura não violenta, às ações de um grupo notoriamente
violento. O que me parece extremamente grave.
Eu distinguiria sim, na contramão do discurso arantiano (oh, ilusões reformistas e angelistas, dirão
eles!), os manifestantes pacíficos dos quebradores de ônibus e incendiários de automóveis. Explico-
me: não se trata de afirmar que, no frigir dos ovos, seja sempre possível impedir a um manifestante
que ele reaja à violência com um gesto de defesa mais ou menos brusco. Isso pode ocorrer, e de fato
ocorreu. Mas não se trata disso. A questão é que se constituiu um “bloco” de violentos e, através
deles, um éthos de violência, cujas consequências, estou convencido, são funestas para o
movimento. Bem entendido, a violência maior vem do lado de lá. Mas não é esse o ponto. Haja ou
não violência do outro lado da barreira, devemos coibi-la do lado de cá, e não adotá-la como
bandeira. Isso, por duas ordens de razões. Na linguagem antiga, razões táticas e razões estratégicas.
Táticas, porque as reações violentas levam a violências ainda maiores do outro lado, e
evidentemente não somos os mais fortes, não venceremos nessa luta hiperdesigual. E o preço que se
paga por ela, em termos de prisões, ferimentos e mortes, é muito alto. No outro plano, há dois
argumentos decisivos. É absurdo pensar que chegaremos ao poder ou a algum tipo de vitória maior,
em médio ou longo prazo, apelando para aqueles gestos violentos. Sem dúvida houve, é claro, na
história movimentos violentos que foram vitoriosos. Mas isso se deu em circunstâncias muito
particulares e muito diferentes das nossas.
Para além disso, parece evidente que a formação de um grupo violento é a pior coisa que pode
acontecer para manifestantes que pregam a autonomia, isto é, que têm uma agenda libertária. O
grupo “armado”, como todos os grupos armados, vai se cristalizando em “grupo de vanguarda”, isto
é, em grupo dirigente – e, com isso, a autonomia do movimento vai por água abaixo.
 
 
LÓGICA E POLÍTICA
N
ão faço concessão a uma fórmula convencional ao ressaltar tudo o que se pode encontrar em O
Novo Tempo do Mundo. Já falei da prosa de ensaio, sob muitos aspectos invejável, da riqueza da
bibliografia, das análises sobre o tempo e a tortura da espera sob o capitalismo contemporâneo –
análises que culminam com o recurso às obras literárias de Kafka e de Beckett –, da presença de um
livro tão importante como Souffrance en France, de Christophe Dejours. Não é pouca coisa. E
entretanto...
O Novo Tempo do Mundo sofre de um déficit lógico e de um déficit político. Esses dois déficits se
cruzam e se refletem. O livro tem alguma coisa de errado também num registro que se poderia
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chamar de retórico. Começo por esse último ponto. Apesar da beleza do estilo, ou talvez por causa
dele, o tom de O Novo Tempo do Mundo não convence. O brilho da prosa incomoda às vezes, e por
várias razões. Um conteúdo que se revela deficiente, envolto numa prosa brilhante, é muitas vezes
uma solução pior do que um conteúdo imperfeito, expresso em prosa sem brilho. A primeira
situação, que é, em geral, a do livro, é muito mais mistificante. Depois, o virtuosismo da prosa às
vezes passa do limite. E, em alguns casos – veja-se o capítulo com a entrevista “Tempo de exceção”
–, o virtuosismo degenera em prosa de “piloto automático”, numa avalanche de palavras.
De forma geral, o tom de O Novo Tempo do Mundo é eminentemente elitista, senão aristocrático. O
narrador encarna, de certo modo, o “espírito absoluto” hegeliano. (O hegelianismo de Arantes,
infelizmente e de forma surpreendente na pena de um tão bom conhecedor de Hegel, é menos o da
dialética, como discurso crítico, do que o do idealismo dogmático.) Ele oficia demasiadamente “lá
de dentro”, ou do alto demais, o que vem a ser a mesma coisa. Às vezes nos perguntamos se esse
tom é de alguém que está realmente preocupado com a sorte da humanidade. Lendo a prosa
arantiana, tem-se a impressão não só de que ele prega para convertidos, mas de que ele fala tendo
diante de si algo assim como uma mesa... posta.
Passemos aos problemas propriamente substantivos. O Novo Tempo do Mundo é na realidade uma
formidável máquina identitária. Tudo corresponde a tudo, e tudo leva finalmente ao “novo regime
de acumulação” do capital. O que não conduz a isso não é real. Dir-se-ia, parafraseando uma frase
célebre – e frequentemente mal entendida –, que no livro “tudo o que é real é capital (remete ao
capital), e tudo o que é capital (remete ao capital) é real”. Poder-se-ia dizer também: “Tudo o que é
racional é capital”, porque não haveria racionalidade fora do âmbito de efetividade do capital.
A isso se soma o grande déficit político do livro: a história do comunismo está ausente
como tema. Isto é, a análise dessa história está ausente. E como o comunismo, praticamente morto
no final do século XX, é entretanto um fantasma arquipresente no XXI sob a forma dos populismos
autocráticos e, em geral, pela presença maciça, embora muitas vezes insuspeitada, do leninismo,
principalmente nas esquerdas do Terceiro Mundo, essa ausência condena in limine toda tentativa
de esboçar uma teoria da história dos últimos 100 anos. E tanto mais porque a ausência do
comunismo vai junto – em parte coincide – com o esquecimento da maior parte da história das
lutas sociais nesse período. O Novo Tempo do Mundo é um livro com pouca memória, um texto
que, no que se refere aos movimentos sociais, joga a carta da ruptura, uma ruptura que é em grande
parte ilusória.
Mas, precisamente, o que o livro não enxerga? Ele não enxerga em todo o seu alcance – volto ao
ponto porque resume o argumento – a formidável inversão que se opera no século XX. Um grande
movimento de emancipação que desemboca em ditadura totalitária. Porém o pior é que a
incapacidade de pensar a grande inversão se manifesta não só na leitura do passado, mas também
com relação ao futuro. Se Arantes não vê – ou vê pouco – a grande catástrofe que foi a história de
um movimento de emancipação conduzindo a um neodespotismo genocida, ele também não
enxerga (ou, antes, lhe é indiferente) a possibilidade de que esse fenômeno (ou um fenômeno
aparentado com aquele, por exemplo um populismo autoritário) possa ocorrer também no futuro.
Para Arantes, “populismo” é “entidade fantasmagórica” – assim, autoritarismo “de esquerda”, como
cenário político presente ou futuro para a América Latina, também deve ser.
 
Em resumo, o que o autor de O Novo Tempo do Mundo não percebe com olho crítico é que os
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atuais movimentos que, em princípio, vão no sentido da emancipação podem, sob certas condições,
se tornar o seu contrário, isto é, levar a regimes, se não totalitários, pelo menos populistas e
autoritários.
As condições a que me refiro podem ser várias, mas uma delas pode ser identificada examinando os
meios de que se valem esses movimentos. E aí somos reconduzidos ao problema da violência. A
escolha e a prática de meios intencionalmenteviolentos são, pelas razões que indiquei, um índice
do risco de que movimentos emancipatórios se transformem em projetos autocráticos.
Existe assim, para os dois casos – passado e futuro –, um déficit lógico-político, que é o de uma
leitura pouco dialética da realidade histórica – observe-se que o termo “dialética”, não raro
vulgarizado, tem aqui um uso rigoroso –, uma leitura insuficientemente aberta às inversões de
sentido que podem se produzir na história.
Há, em O Novo Tempo do Mundo, um problema geral de fundamentação. Mais precisamente – mas
as duas coisas vão na mesma direção – uma dificuldade no nível dos fins que ele propõe, na medida
em que é um texto político. Pode-se perguntar: quais são os objetivos políticos do discurso? Porque,
por um lado, o livro revela uma tendência a recusar os problemas que, em princípio, poderiam ser
resolvidos dentro do capitalismo. Um exemplo extremo da liquidação, fácil, de um problema desse
tipo está no tratamento dado à questão dos automóveis na cidade, isto é, da necessidade de
promover o transporte coletivo. Pensando, talvez, em fazer um trabalho de desmistificação, o autor
remete à descrição de um projeto de cidade sem automóveis que estaria sendo feito em um emirado
hiperautocrático. Não bastasse o caráter caricatural do argumento, acabamos sendo informados,
depois de três páginas de leitura, que o tal projeto não se realizou, nem se realizará... E fica tudo por
aí.
O objetivo seria então a revolução? Nada menos claro. Tem-se a impressão de que Arantes põe e
tira a “Revolução” do bolso do colete. Ele utiliza o termo quando lhe convém (para opô-lo a
“Urgência”, por exemplo), e o retira quando não lhe serve (quando fala das ilusões do passado, por
exemplo). Alguém pode argumentar que a ambiguidade e a indefinição são objetivas. O autor só as
refletiria. Não é assim. Ainda que difíceis, as respostas existem, e podemos chegar a elas; mas só se
formos capazes de recusar as ambiguidades retóricas.
Como vimos, o livro de Dejours fornece alguns conceitos que poderiam representar verdadeiros
fundamentos e fins, conceitos de resto muito pouco ortodoxos. Em primeiro lugar, a ideia de
“sofrimento social” (também a ideia de “injustiça”, que tem a originalidade de não ser nada
original). Se tivesse realmente servido como fundamento do projeto teórico-prático que o livro
encerra, esse tipo de conceituação permitiria construir uma crítica muito mais aberta ao real e
muito menos dogmática. Afinal o “sofrimento social” não vem só do capitalismo; há, mesmo hoje –
basta ver o Oriente Médio, e até, em parte, a China e a Rússia –, muito sofrimento social que não
tem propriamente origem no capitalismo.
Mas, fora o capítulo mais diretamente afinado com o livro de Dejours, O Novo Tempo do
Mundonão vai exatamente por aí. Ele antes mistura “sofrimento social” com “revolução”, e
“revolução” com o seu contrário, “o fim das grandes expectativas”. O resultado é uma espécie de
niilismo, mas niilismo apesar de tudo marxista, ou neomarxista.
Aliás, às vezes o livro descamba para o pior marxismo ou, antes, vai do marxismo para algo pior do
que ele. Arantes não hesita em utilizar – sem advertir o leitor sobre a perspectiva geral dos autores
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que cita – teóricos notoriamente stalinistas, do tipo dos italianos Domenico Losurdo – que escreve
livros contra “a lenda negra (sic) de Stálin” – ou Luciano Canfora – que toma a defesa da falecida
República Democrática Alemã (para Canfora, esta era democrática mesmo). Também se dispõe a
fazer um elogio discreto do populista Chávez, e a chamar o homem político de esquerda (anti-
Chávez) venezuelano Teodoro Petkoff de “renegado”.
 
Se nos fixarmos sobre a ausência do topos crítico, fundamental, da inversão do movimento
histórico a que me referi; se notarmos o dualismo simplista na leitura da política internacional, por
exemplo; e ainda a ausência desse grande instrumento crítico que é a contra-história, uma vez que
o autor raramente pensa na possibilidade de que outra coisa pudesse ter acontecido – então, para
além da complexidade dos argumentos, da sofisticação do raciocínio e da multiplicidade e riqueza
das referências, O Novo Tempo do Mundo se revelará, finalmente, como um livro cuja filosofia é, no
fundo, um progressismo mais ou menos vulgar.
Eu não hesitaria em dizer que, no plano teórico-crítico, o livro naufraga. Fico tentado a afirmar que
ele é teoricamente “torto”, no sentido de que abandona aquele que por razões subjetivas e objetivas
poderia e deveria ser seu curso, o da crítica dialética, a rigor ausente. Quanto a seus efeitos no plano
prático-político, se pensarmos no entusiasmo pela violência que parte da juventude manifesta, na
confiança ingênua que não raro deposita nela, parece evidente que O Novo Tempo do Mundo, obra
de um grande intelectual que abraça sem crítica a chamada violência revolucionária –
principalmente se o livro for adotado por certa juventude politizada, como parece que já vem
acontecendo –, certamente fará, naquele registro, muito mais mal do que bem. Não direi mais.

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