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<p>HEBER CARLOS DE CAMPOS JR TRIUNFO FE LIDANDO COM O DO MAL</p><p>DISCURSO SOBRE CONCURSUS Martyn Lloyd-Jones traz importante lição ao mundo evangélico brasileiro quando afirma que a salvação de cada indivíduo está inserida num contexto maior de uma história dirigida por Deus. A Bíblia tem "uma profunda filosofia da história". Em outras palavras, a redenção em Jesus Cristo não se trata simplesmente de transformar corações, mas de um dia transformar tudo que foi criado (veja 2 Pe 3.10-13). Cristo veio a este mundo para reconciliar consigo mesmo todas as coisas 1.20). A Bíblia apresenta o Senhor não criando, mas re-criando tudo. A história, do princípio ao fim, e escrita e dirigida por Deus. Ela chega ao fim determinado por ele, e por isto lhe traz glória. Toda a história glorifica ao Senhor, não só as campanhas evangelísticas, ou os cultos de domingo, ou 1 Lloyd-Jones, From Fear to Faith, 9.</p><p>76 Triunfo da Fé Lidando Com O Problema os atos de caridade. Deus consegue fazer com que até mesmo X manifestação da ira humana, de alguma forma, tragam glória a a ele 76.10). De fato, a Bíblia apresenta uma filosofia da historia sur- preendente, muito diferente de a que estamos acostumados ouvir. Esta história não é feita por homens, apenas desenrola- a da por eles. Deus se mostra em total controle dela. Ele mesmo afirma: Lembrai-vos das coisas passadas da antiguidade; que eu sou Deus, e não há outro, eu sou Deus, e não há ou- tro semelhante a mim; que desde princípio anuncio que há de acontecer e desde a antiguidade, as coisas que ainda não sucederam; que digo: meu conselho permanecerá de pé, farei toda a minha vontade; que chamo a ave de rapina desde Oriente e de uma terra longínqua, homem do meu Eu disse, eu também o cumprirei; tomei este propósito, também executarei. Is 46.9-11 Eis aí uma declaração rasgada acerca da soberania do Se- nhor em relação à história. Nesta história, até os livres atos dos homens - sejam eles atos bons ou maus - cooperam para fim desejado por Deus. Na teologia, este controle do Senhor sobre a história é chamada de "providência". Popularmente, usamos esse termo para nos referir a eventuais intervenções de Deus para 0 nosso bem como se a participação divina na história fosse pon- tilhada. Teologicamente, porém, tudo o que acontece na história está sob o governo providente de Deus.</p><p>DISCURSO SOBRE CONCURSUS 77 livro de Habacuque trata não só de justiça, mas também de providência. A maioria dos evangélicos não tem receio em afirmar a sua crença no cuidado de Deus em pre- servar a nossa existência (At 17.25, 28; 1.17). Nem mesmo de afirmar que Deus é soberano, e de que as coisas aconte- cem conforme a sua vontade (Ef 1.11). Não costuma haver muitos deístas em nossas igrejas, que entendem Deus tendo criado este mundo e depois deixado o seu funcionamento a cargo das leis por ele instituídas, como se ele fosse o relojo- eiro e nós o relógio que funciona sozinho porque foi dado corda. Nós fomos ensinados a crer num Deus que governa este mundo, sempre atuante na história, razão pela qual nós apresentamos nossos pedidos em oração na esperança de que ele aja em nosso favor. É na oração que nós nos submetemos mais facilmente à soberania do Senhor. Reconhecemos o seu domínio até sobre os mais poderosos neste mundo (Pv 21.1; Ed 6.22) e lhe clamamos por socorro, assim como fez o pro- feta Habacuque. Porém, esses conceitos de soberania e providência que te- mos são misturados com a dificuldade em falar de Deus tendo qualquer tipo de participação nas catástrofes mundiais ou nas maldades humanas. Proclama-se uma soberania, mas ela é en- tendida de forma limitada. Crentes afirmam que Deus é Rei, mas crêem que precisam dar a ele permissão para reinar em seus co- rações como se na monarquia o rei fosse eleito pelo povo. conceito de liberdade fala tão alto que somos capazes de restrin- gir o controle que Deus tem da história. É como se cada criatura tivesse um poder inerente, autônomo, uma esfera de ação na qual Deus não interfere.</p><p>78 Triunfo da Fé Lidando Com Problema Do Mal O CONCURSUS DIVINO NA HISTÓRIA Em meio a essas contradições - de um Rei que precisa nossa permissão para reinar -, precisamos voltar a nossa de para um aspecto da providência pouco conhecido dos atenção no Brasil: a doutrina do concursus A tradução desta palavra latina (concursus) para "concurso" ou nos esclarece o que está contida nesta doutrina. Ela afirma não ha- ver uma cooperação, um paralelo entre as atitudes dos homens e a ação Isto é, há participação conjunta de Deus e do ser humano em cada atitude nossa. Nesta concorrência, Deus é visto como causa primária enquanto o homem é a causa Isto não significa que Deus faz uma parte da obra e nós fazemos outra. Cada realização, em sua inteireza, é tanto uma realização de Deus como do ser 4 Deus é o causador logicamente anterior (veja 1 Co 12.6; Fp 2.13), por isso é causa primária, mas a atuação de ambas as partes é A ação de Deus tanto precede (em ordem lógica e causal) quanto concorre com as ações dos homens; ela é tanto anterior, porque é a primeira causa que sustenta a segunda causa, quanto 2 Heber Carlos de Campos acertadamente explica que o concursus não é uma forma ou parte da mas o modo em que Deus age para preservar, sustentar e dirigir mundo. A Provi- dência e a sua realização 263. 3 A Confissão de Fé de composta por vários teólogos no século 17, afirma: "Posto que, em relação à presciência e ao decreto de Deus, que é a causa primária, todas as coisas aconte- cem imutável e infalivelmente, contudo, pela mesma providência, Deus ordena que elas sucedam, necessária, livre ou contingentemente, conforme a natureza das causas secundárias." (V.2) 4 Louis Berkhof, Teologia traduzido por Odayr Olivetti (Campinas: Luz Para Ca- minho, 1990), 171. Berkhof define concorrência como "a cooperação do poder divino com todos os poderes em harmonia com as leis pré-estabelecidas de sua operação, fazendo-os agir, e agir precisamente como agem." (p. 170). 5 Cf. Campos, A Providência e a sua realização histórica, 263-318; Berkhof, Teologia Sistemática, 170-174; Heinrich Heppe, Reformed Dogmatics (Wakeman Great Reprints, s.d.), 258-261.</p><p>DISCURSO SOBRE CONCURSUS 79 Diante dessa explicação complicada, as primeiras guntas que surgem são: "você não acabou de anular a liberdade per- do homem, fazendo de cada ser humano uma máquina, mero robô? Você não está tornando Deus o autor do pecado?" um De modo nenhum! Deus move os homens a ações, tanto boas quanto más, de tal forma que ele trabalha dentro da ação de cada criatura6 de tal forma que a mesma ação é dita ter sido feita por Deus e pela criatura. Ele os incita a agir de forma natural, isto é, sem privar os homens de sua vontade e Não há força externa que coaja o homem a decidir por algo. Ninguém faz nada forçado por Deus. Os homens sempre fazem exata- mente o que querem fazer, exatamente o que lhes agrada. E é por causa dessa livre agência no homem é que Deus não pode ser culpado pelos atos maus. Por fazerem exatamente o que querem, os homens são responsabilizados por seus pecados. A responsabilidade humana, portanto, está calcada no poder de fazer escolhas e não em uma suposta autonomia do controle 6 "Quando Deus age nos seres humanos, ele o faz numa esfera em que eles não têm acesso, que é 0 próprio coração deles. As suas vontades sempre haverão de obedecer aos impulsos do coração deles, onde Deus trabalha. Deus não precisa pedir licença ao homem para agir dentro dele. Essa é uma obra divina que não deixa o homem ser autônomo nem independente. Infelizmente, mesmo em meios há aqueles que insistem no fato de o homem deixar Deus agir em sua vida, nas mais variadas áreas. Deus tem de ter a licença humana para poder trabalhar na sua criatura. Essa teologia fica expressa em vários hinos e cânticos que nossas igrejas cantam." Campos, A Pro- vidência e a sua realização histórica, 269, 280-281. 7 "Desde toda a eternidade e pelo mui sábio e santo conselho de sua própria vontade, Deus do ordenou livre e inalteravelmente tudo quanto acontece, porém de modo que nem Deus é autor pecado, nem violentada é a vontade da criatura, nem é tirada a liberdade ou a contingência das causas secundárias, antes estabelecidas." Confissão de Fé de Westminster (III.1). 8 "De acordo com essa perspectiva, as pessoas realizam ações livres quando fazem o que querem fazer, não quando elas têm poder autocausativo, ou qualquer outro tipo de versão não-determi- nada, isto é, elas não são constrangidas nem compelidas em suas ações, mas o que elas fazem, fazem-no desimpedidamente a partir de suas próprias vontades, desejos e preferências, objetivos e Helm, A Providência de Deus, 58.</p><p>80 Triunfo da Fé Lidando Com O Problema Do Mal Essa explicação é difícil de ser aceita pela maioria evangélicos não porque seja difícil de entender ou porque dos "caiba na cabeça". É verdade que essa doutrina é difícil de não compreendida, nem devemos jactar-nos de que a compreende- ser mos plenamente. Porém não é a dificuldade de compreensão que nos leva a rejeitá-la ou a ter receio de A Trindade é impossível de ser entendida. Não cabe em nossa mente como três pessoas que se relacionam e possuem funções diferentes são apenas um Deus. A encarnação do Verbo é de ser expressa sem cometermos erros cristológicos. Ao descrever as ações de Jesus somos inclinados a pensar que ora ele age como Deus ora como homem, como se ele tivesse duas personalida- des ou fosse composto de duas partes estanques. Mesmo que as doutrinas da Trindade e da encarnação sejam difíceis de enten- der, nós não deixamos de crer nelas. Então o problema não é de ordem racional. Trata-se de uma dificuldade de aceitar que não temos liberdade total, que não temos autonomia. Somos seres que desde o princípio quisemos ser iguais a Deus, ter total liberdade de ação sem que estivéssemos sujeitos a um Senhor. Todavia, quando o primeiro casal foi tentado a buscar tal autonomia ele abriu as portas para outro tipo de servidão: a escravidão a Sata- nás (Jo 8.41, 44). Mas nem mesmo ao tornarmo-nos escravos de nós ficamos isentos do controle de Deus. O anseio por autonomia é pecaminoso. Ele é o que dificulta aceitarmos a doutrina da concorrência. Faço essa dura afirmação porque crer em tal doutrina nos ajuda a entender o porquê a história chega ao fim determi- nado por Deus. Se ele não estivesse por detrás dos atos livres</p><p>DISCURSO SOBRE CONCURSUS 81 dos homens ele não teria como conduzir cada ser humano 0 alvo que ele projeta. "Se Deus não agisse no interior para inclinando-lhes as disposições para cumprirem os deles, viamente traçados por Deus, ninguém poderia garantir planos pre- seus planos seriam cumpridos. Nem o próprio Deus poderia que os predizer coisa alguma."9 Deus não é somente adivinho das coisas futuras. Elas chegam no seu propósito porque ele tem controle delas. Portanto, essa doutrina é racionalmente lógica para quem crê que no fim todas as coisas irão cooperar para nosso bem (Rm 8.28). Mas além de fazer sentido para o controle de Deus da história, essa doutrina tem amplo respaldo Não quero exemplificar a concorrência divina nos atos bons dos primeiro porque não temos problema com esse conceito e, segun- do, este não foi o dilema apresentado por Habacuque. É preciso focar nos exemplos em que Deus alega ter algum tipo de partici- pação nos atos maus dos homens. Afinal, Deus não tem receio de que a sua palavra afirme: "Acaso, não procede do Altíssimo tanto 0 mal como o bem?" (Lm 3.38); "Sucederá algum mal à cidade, sem que o Senhor o tenha feito?" (Am 3.6). Um exemplo clássico dessa concorrência nos atos maus é 0 exemplo dos assírios em Isaías 10. Deus levantou os assírios como "cetro da minha ira", "instrumento do meu furor" para punir outras nações (v. 5-6). Mas ao conquistarem outros po- vos, os assírios não o faziam em obediência ao decreto divino. 9 Campos, A Providência e a sua realização histórica, 279. 10 Um exemplo clássico é o de Ciro, um homem descrente, sendo chamado de "pastor", "ungido" de Deus para libertar os judeus do cativeiro (Is 44.28-45-7). Deus, então, usa as boas ações até de sua homens maus para benefício do seu povo. Para outros exemplos, veja Campos, A Providência e a realização 293-297.</p><p>82 Triunfo da Fé Lidando Com O Problema Do Mal Na verdade, eles nem se viam sendo usados por Deus. A nação Assíria se gabava de conquistar tudo pelo seu poder, pela força (v. 7-11). Pela soberba e pela impressão de um sucesso sua autônomo, a Assíria seria punida por Deus (v. 12), como de fato aconteceu (veja 2 Rs 19.35-37). "Será que o machado se exalta acima daquele que o maneja, ou a serra se vangloria contra aquele que a usa? Seria como se uma vara manejasse quem a ergue, ou o bastão levantasse quem não é madeira!" (v. 15; NVI). Perceba que Deus puniu o orgulho dos assírios que achavam que tinham autonomia. Eles fizeram exatamente 0 que o seu coração violento e mau lhes ditava, porém em cumpriram o propósito de Deus em usá-los como castigo para outras nações. A mesma coisa Deus fez com a Babilônia, objeto do pa- vor de Habacuque. profeta Jeremias registra, anos após a profecia de seu contemporâneo Habacuque, o que Deus faria através e com a Babilônia. Observe a atuação de Deus através da maldade da Babilônia: "Tu, Babilônia, eras meu martelo e minhas armas de guerra; por meio de ti, despedacei nações e destruíreis" (Jr 51.20). Isto se tornou verdade até em relação a Judá, o povo de Deus (veja Jr 52.4-30), como Habacuque soube de antemão. A maldade da Babilônia contra o povo de Deus a transformaram no ícone de inimigo a ser destruído (Ap 14.8; 16.19; 17.5; 18.2, 10, 21). Todas as atrocidades cometidas em suas conquistas foram precisamente os pro- pósitos de seus corações maus. Fizeram conforme os seus desejos impuros. Por isso Deus resolve puni-los: "Pagarei, ante os vossos próprios olhos, à Babilônia e a todos os mo- radores da Caldéia toda a maldade que fizeram em Sião, diz</p><p>DISCURSO SOBRE CONCURSUS 83 o Senhor." (Jr 51.24). Jeremias estava registrando a mesma atuação divina através e contra a que Habacuque tinha ouvido. Deus levantara os babilônicos para servirem de castigo para com o seu povo, mas isto não isentava os caldeus de responsabilidade pelos seus atos maus (veja Jr 25.8-14). Os babilônicos a quem Deus suscitara (Hc 1.5) são descritos como culpados (Hc 1.11). Vale ressaltar que Deus não está por detrás do mal da mesma forma como ele está por detrás do Quando fa- zemos o bem Deus recebe o louvor, mas quando fazemos o mal ele não pode receber a culpa. Tiago nos ensina: ao ser tentado, diga: Sou tentado por Deus; porque Deus não pode ser tentado pelo mal e ele mesmo a ninguém tenta. Ao contrário, cada um é tentado pela sua própria cobiça, quando esta o atrai e seduz." (Tg 1.13-14). Embora Deus trabalhe nos homens de forma que eles obedeçam ao seu decreto, embora ele dirija as disposições das pessoas (Pv 21.1), nossos pecados são resultados de nossas próprias disposições pecaminosas. Quão complicado é este assunto! É difícil perscrutarmos além do que já foi dito. Contudo, o que a Bíblia Sagrada nos revela é que Deus faz uso da instrumentalidade de suas criaturas com respeito ao cumprimento dos decretos de atos maus. Deus usa meios tanto humanos quanto demoníacos. Quando Davi pecou con- tra o Senhor por levantar o censo (2 Sm 24.10), o livro de Samuel nos diz que Deus "incitou" a Davi contra os israelitas (2 Sm 24.1). Isto é, Deus agiu de tal forma que o pecado de Davi trouxesse um castigo para 'os israelitas a quem Deus que- 11 Helm, A Providência de Deus, 169-170.</p><p>84 Triunfo da Fé Lidando Com O Problema Do Mal ria disciplinar. escritor de Crônicas, porém, nos diz Satanás quem "incitou a Davi a levantar o censo de Israel" que foi Cr 21.1). Não se trata de uma contradição, mas de um exemplo (1 do concursus de Deus. Deus usou a para expor tentação e consequente pecado. Deus também usou um to maligno que traria engano aos profetas de Acabe, para este chegasse à sua ruína (1 Rs 22.20-23). No caso da que de Jó, o Senhor não só permitiu que o atormentasse (Jó 1.12), mas usou o maligno e as suas maldades para lapidar a vida daquele servo. O PROPÓSITO BENÉFICO DO CONCURSUS DIVINO Na teologia cristã, a providência divina é sempre direcio- nada, isto é, ela tem um Na atuação concursiva de Deus existe um propósito benéfico para o seu povo. A Escritura diz que os atos maus realizados ao povo de Deus acabam traba- lhando para o seu bem-estar (não necessariamente um bem-estar físico ou emocional, mas certamente saúde espiritual). A Confis- são de Fé de Wesminster (1647) se pronuncia a esse respeito: muitíssimo sábio, justo e gracioso Deus muitas vezes deixa, por algum tempo, seus filhos entre- gues a muitas tentações e à corrupção de seus próprios corações, para castigá-los pelos seus pe- cados anteriores ou fazer-lhes conhecer o poder oculto da corrupção e dolo de seus corações, a fim 12 Helm, A Providência de Deus, 20.</p><p>DISCURSO SOBRE CONCURSUS 85 de que eles sejam humilhados; para animá-los a dependerem mais íntima e constantemente do apoio dele e torná-los mais vigilantes contra as futuras ocasiões de pecar, bem como para vários outros fins justos e (V.5) Foi assim no caso de Jó, Ezequias (2 Cr 32.25-26, 31), Pedro (Mc 14.66-72; Jo 21.15-17), e Habacuque também apren- deria a esse respeito. A história da monarquia em Israel é outro testemunho dessa verdade. Desde que Salomão introduziu ídolos no culto, os hebreus seja no Reino do Norte (Israel) ou no Reino do Sul (Judá) se deixaram ser levados por idolatria. cativeiro nico foi o castigo decorrente dessa idolatria, e acabou cooperando para que imagens não fossem mais um problema crônico para os judeus pós-exílio. Esse é mais um exemplo de que nem mesmo os nossos pecados são sem propósito. A Bíblia contém vários exemplos de atos maus que con- tribuíram para o benefício dos seus amados. José entendeu que Deus o havia enviado ao Egito (Gn 45.7), embora tivesse sido por intermédio da inveja dos irmãos. Ele só pôde salvar a sua família, a descendência de porque um dia os seus irmãos o venderam como escravo. Mesmo quando os irmãos duvidavam da genuinidade do perdão de José, ele os ensinou que Deus transforma mal em bem (Gn 50.20). apóstolo Pedro também nos ensina que todos os atos vis que acarretaram no assassinato do nosso Senhor Jesus Cristo foram predetermina- dos por Deus. Embora Pilatos, Herodes, os líderes judeus e o povo tenham crucificado a Cristo conforme o ódio em seus cora-</p><p>86 Triunfo da Fé Lidando Com O Problema Do Mal ções, (At Deus asseverou que tudo o que fora planejado se bem 2.23; 4.27-28). Não houve maldade maior transformada cumpriu em Um belo exemplo de como Deus conduz a forma redentora está registrado na epístola aos de apóstolo Paulo ficou pasmo com a sabedoria de Deus quando 0 ele refletiu sobre a rejeição dos judeus promovendo evan- gelho entre os gentios (Rm 11.11-12). Ele afirma que "veio endurecimento em parte a Israel, até que haja entrado a ple- nitude dos gentios" (Rm 11.25); isto é, Deus fez com que a incredulidade de Israel promovesse o seu glorioso plano para a igreja. Mas, posteriormente, a vinda dos gentios ao Senhor tornará os Israelitas enciumados (Rm 11.11) e, assim, abrirá a porta para que todo o Israel seja salvo (Rm Um exem- plo de como a rejeição dos judeus foi benéfica para a igreja é o da perseguição em Jerusalém, quando a igreja foi espalhada por todo o Império Romano; por onde foram, o evangelho foi pregado (At 8.1-8). Então, quando Paulo vê a triste rejeição do seu próprio povo (Rm 9.1-5) trabalhando para o bem da igreja, e a salvação de inúmeros gentios sendo o instrumento para 0 retorno de muitos judeus, Paulo balança a cabeça e se prostra em adoração: 13 John Frame cita uma série de exemplos onde o mal moral acaba trazendo benefícios para os crentes. "Na Escritura, Deus usa o mal para testar os seus servos (Jó; 1 Pe 1.7; Tg 1.3), para discipliná-los (Hb 12.7-11), para preservar suas vidas (Gn 50.20), para ensiná-los paciência e perseverança (Tg 1.3-4), para redirecionar suas atenções ao que é mais importante 37), para capacitá-los a confortar outros (2 Co 1.3-7), para capacitá-los a trazer testemunho poderoso da verdade (At 7), para dá-los maior alegria quando o sofrimento é substituído pela glória (1 para julgar o ímpio, tanto na história (Dt 28.15-68) quanto na vida porvir (Mt 27.41-46), para trazer recompensa a crentes perseguidos (Mt 5.10-12), e para demonstrar a obra de Deus (Jo 9.3; cf. Ex 9.16; Rm 9.17)." John Frame, The Doctrine of God (Phillipsburg: P&R, 2002), 170. 14 Aqui, Israel deve ser entendido como judeus étnicos, e não figuradamente.</p><p>DISCURSO SOBRE CONCURSUS 87 profundidade da riqueza, tanto da sabedoria como do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e quão os seus caminhos! Quem, pois, conheceu a mente do Senhor? Ou quem foi 0 seu conselheiro? (Rm Quando afirmo que até a maldade dos homens coopera para o nosso bem, é bom que se entenda que isso não significa que as coisas têm que dar certo nessa vida. Há muitos crentes que confortam outros usando chavões do tipo: "Deus tem um propósito na sua vida" ou "Deus tem um plano maravilhoso para você" ou "Onde Deus fecha uma porta ele abre uma Com esse tipo de linguajar, muitos evangélicos transmitem o ensinamento de que Deus só tem o melhor para nós (seja um emprego, um cônjuge ou uma cura de enfermidade). Todavia, a Escritura não faz promessa nenhuma de que a maré vai melho- rar ainda nesta vida. Não é verdade que a todos os cristãos está reservado um bom emprego, o privilégio do casamento ou uma cura. Deus frequentemente frustra essas expectativas. Ele não nos isenta de aflições. É verdade que Deus tem um propósito em nossa vida, mas tudo o que a Bíblia diz acerca desse propósito é que ele é redentor (Rm 8.28-30). Todas as coisas cooperam para o bem, mas esse bem nada mais é do que a nossa redenção: ele nos predestinou, nos chamou, nos justificou e há de nos glorificar. Esse deve ser 0 nosso descanso! Não de que as coisas vão ficar bem aqui nesta vida. Mas de que aconteça o que acontecer, seja a maldade dos homens contra nós ou a nossa própria maldade, nada poderá nos separar do amor de Deus que está em Cristo Jesus (Rm 8.31-39).</p><p>88 Triunfo da Fé - Lidando Com O Problema Do Mal Só com essa perspectiva em mente é que nós não ficamos deses- perados com o sofrimento presente (Rm 8.18). compositor evangélico Március conseguiu expres- Stênio sar de maneira bem poética o controle amoroso de Deus sobre a nossa vida na música "Tapeceiro": Tapeceiro Grande artista Vai fazendo o seu trabalho Incansável, paciente No seu tear Tapeceiro Não se engana Sabe o fim desde o começo Trança voltas, mil desvios Sem perder o fio Minha vida é obra de tapeçaria É tecida de cores alegres e vivas Que fazem contraste no meio das cores Nubladas e tristes Se você olha do avesso Nem imagina o desfecho No fim das contas Tudo se explica Tudo se encaixa Tudo coopera pro meu bem</p><p>DISCURSO SOBRE CONCURSUS 89 Quando se vê pelo lado certo Muda-se logo a expressão do rosto Obra de arte pra honra e glória Do Tapeceiro Quando se vê pelo lado certo Todas as cores da minha vida Dignificam a Jesus Cristo Tapeceiro. Nossa vida é assim mesmo. Quando vemos de nossa pers- pectiva ela é pode ser cheia de cores nubladas e Mas quando se enxerga com a perspectiva do Senhor, quando se vê pelo lado certo, então ela é obra de arte para o louvor do tapeceiro. 15 Cf. Herbert Lockyer, Dark Threads the Weaver Needs (Revell, 1979), 37-47. Na página 37, Lockyer traz uma poesia de um autor desconhecido: My Life is but a weaving Between my Lord and me; I cannot choose the colours He worketh steadily. Ofttimes He weaveth sorrow And I in foolish pride, Forget that He seeth the upper, And I the under side. Not till the loom is silent And the shuttles cease to fly, Shall God unroll the canvas And explain the reason why. The dark threads are as needful In the Weaver's skillful hand, As the threads of gold and silver In the pattern He has planned.</p>