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<p>Coleção Pensar Político</p><p>C������� E��������</p><p>A�������� F�����</p><p>(Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ)</p><p>É���� C. A. W�����</p><p>(Universidade Federal de Sergipe – UFS)</p><p>G����� S������</p><p>(Universidad Nacional de Quilmes)</p><p>J��������� B�������-W�����</p><p>(The City College of New York)</p><p>J��� P���� Z������</p><p>(Universidade de Lisboa)</p><p>L��� M������� �� M������</p><p>(Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ)</p><p>N��� B������</p><p>(Universidade Federal do Rio de Janeiro – UERJ)</p><p>R��� B������ M�����</p><p>(Universidad Nacional Autónoma de México – UNAM)</p><p>S������ K���� M������</p><p>(Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP)</p><p>V��� M������� B������</p><p>(Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ)</p><p>© Adriano de Freixo et alii, 2019</p><p>© Oficina Raquel, 2019</p><p>EDITORA</p><p>Raquel Menezes</p><p>REVISÃO</p><p>Luis Maffei</p><p>CAPA</p><p>Thiago Pereira</p><p>FOTO DE CAPA</p><p>José Cruz/Agência Brasil</p><p>PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO</p><p>Daniella Riet – Voo Livre Editorial</p><p>PRODUÇÃO DE EBOOK</p><p>S2 Books</p><p>www.oficinaraquel.com</p><p>oficina@oficinaraquel.com</p><p>facebook.com/Editora-Oficina-Raquel</p><p>Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)</p><p>Brasil em transe: Bolsonarismo, Nova direita e Desdemocratização /</p><p>Rosana Pinheiro-Machado, Adriano de Feixo (organizadores) – Rio de</p><p>Janeiro : Oficina Raquel, 2019.</p><p>164 p.</p><p>Bibliografia</p><p>ISBN: 978-85-9500-039-1</p><p>1. Brasil – Política e governo 2. Ensaios brasileiros 3. Brasil –</p><p>Bolsonarismo – Nova Direita – Desdemocratização</p><p>16-1210</p><p>CDD 320.981</p><p>Índices para catálogo sistemático:</p><p>1. Brasil – Política e governo</p><p>http://www.s2books.com.br/</p><p>http://www.oficinaraquel.com/</p><p>mailto:oficina%40oficinaraquel.com?subject=</p><p>http://facebook.com/Editora-Oficina-Raquel</p><p>COLEÇÃO PENSAR POLÍTICO</p><p>O início da abertura política e da chamada “transição democrática”,</p><p>no período final da ditadura civil-militar, marcou também o começo</p><p>de um ciclo político caracterizado, por um lado, pela formação de</p><p>uma inédita sociedade civil e, por outro, por um processo de</p><p>construção institucional que perpassaria as décadas seguintes e</p><p>que teria um de seus principais marcos na promulgação da</p><p>Constituição de 1988. No entanto, mais de quarenta anos depois,</p><p>esse processo está longe de terminar.</p><p>Apesar de, ao longo dessas quatro décadas, inúmeros avanços</p><p>terem ocorrido, a jovem democracia brasileira se encontra longe de</p><p>estar consolidada. Em uma sociedade profundamente desigual —</p><p>mesmo com a notável melhora dos nossos indicadores sociais</p><p>nestes primeiros anos do século XXI —, fortemente hierarquizada e</p><p>marcada pela violência, real e simbólica, a tentação autoritária,</p><p>muitas vezes travestida em salvacionismos, continua a ser um</p><p>espectro a nos rondar e a cidadania plena ainda é um horizonte</p><p>distante.</p><p>Compreender a dinâmica política dessa sociedade tão complexa e</p><p>multifacetada e as complicadas tramas e teias nela presentes é</p><p>sempre um desafio para os acadêmicos e intelectuais que se</p><p>propõem a fazê-lo. Afinal, como assinala o historiador francês Pierre</p><p>Rosanvallon, em Por uma História do político (Alameda, 2010), o</p><p>político deve ser entendido como um processo social cuja natureza</p><p>não está dada de forma imediata, e ao qual devem ser restituídas a</p><p>espessura e a densidade das contradições a ele subjacentes —</p><p>para tentar apreendê-lo, é necessário reconstruir o modo por que</p><p>indivíduos e os grupos elaboraram a compreensão de suas</p><p>situações, enfrentar os rechaços e as adesões a partir dos quais</p><p>eles formularam seus objetivos e, fundamentalmente, retraçar de</p><p>algum modo a maneira pela qual suas visões de mundo limitaram e</p><p>organizaram o campo de suas ações.</p><p>É este desafio que a coleção Pensar político, da Oficina Raquel,</p><p>se propõe a enfrentar, ao levar a um amplo público leitor os</p><p>principais temas e debates da agenda política brasileira</p><p>contemporânea, situando-os dentro de processos históricos mais</p><p>longos e indo além das questões meramente conjunturais. Escritos</p><p>em linguagem menos formal, mas sem perda do rigor acadêmico e</p><p>da qualidade intelectual, os artigos que compõem cada um dos</p><p>volumes da coleção — sempre articulados em torno de um eixo</p><p>temático — são elaborados com o intuito de estimular a reflexão, o</p><p>pensamento crítico e o debate político qualificado, vetores que são</p><p>fundamentais para a construção de uma sociedade democrática e</p><p>plural.</p><p>Adriano de Freixo</p><p>(Coordenador da coleção)</p><p>Sumário</p><p>Capa</p><p>Folha de rosto</p><p>Créditos</p><p>Dias de um futuro (quase) esquecido: um país em transe, a</p><p>democracia em colapso</p><p>A cosmovisão da “nova” direita brasileira</p><p>Golpe de Estado: o conceito e sua história</p><p>Democracia genocida</p><p>Quem é o inimigo? Retóricas de inimizade nas rede sociais</p><p>no período 2014-2017</p><p>Há solução sem uma revolução?</p><p>Ninguém viu, ninguém vê: comentários sobre o estado da</p><p>violência na atual democracia (de poucos)</p><p>Cidadania, semi-cidadania e democracia no Brasil</p><p>contemporâneo</p><p>Sobre os autores</p><p>kindle:embed:0004?mime=image/jpg</p><p>Dias de um futuro (quase) esquecido: um país em</p><p>transe, a democracia em colapso</p><p>Adriano de Freixo</p><p>Rosana Pinheiro-Machado</p><p>A tradição dos oprimidos nos ensina que o “estado de exceção” em que</p><p>vivemos é na verdade a regra geral. Precisamos construir um conceito</p><p>de história que corresponda a essa verdade. Nesse momento,</p><p>perceberemos que nossa tarefa é originar um verdadeiro estado de</p><p>exceção; com isso, nossa posição ficará mais forte na luta contra o</p><p>fascismo. Este se beneficia da circunstância de que seus adversários o</p><p>enfrentam em nome do progresso, considerado como uma norma</p><p>histórica. O assombro com o fato de que os episódios que vivemos no</p><p>século XX “ainda” sejam possíveis não é um assombro filosófico. Ele</p><p>não gera nenhum conhecimento, a não ser o conhecimento de que a</p><p>concepção de história da qual emana semelhante assombro é</p><p>insustentável.</p><p>Walter Benjamin, Sobre o conceito de História, 1940</p><p>6 de junho de 2013. Na capital paulista, uma manifestação contra o</p><p>aumento das passagens dos ônibus urbanos, convocada pelo</p><p>Movimento Passe Livre (MPL) e por diversas organizações</p><p>estudantis, reúne cerca de quatro mil pessoas e é violentamente</p><p>reprimida pela polícia militar. No dia seguinte, um novo protesto</p><p>termina com quinze estudantes presos, ao mesmo tempo em que</p><p>manifestações similares começam a pipocar em outras capitais</p><p>brasileiras, como Rio de Janeiro e Goiânia. Dez dias depois, em 17</p><p>de junho, milhares de pessoas haviam tomado as ruas de diversas</p><p>cidades brasileiras, com pautas bastante heterogêneas e</p><p>perspectivas bastante distintas: os protestos localizados e</p><p>modestos, organizados por grupos e movimentos que desde a</p><p>década passada se articulavam em torno da questão do transporte</p><p>público urbano, deram lugar a um gigantesco movimento de massas</p><p>1)</p><p>2)</p><p>que culminou em algumas das maiores manifestações da história</p><p>recente do país.</p><p>Assim, nas semanas e meses seguintes, iniciar-se-ia uma</p><p>verdadeira “disputa pelas ruas” que colocou, de um lado, os</p><p>segmentos radicalizados da juventude − organizados em novos</p><p>grupos e coletivos −, mas também organizações e partidos de</p><p>esquerda, movimentos populares, sindicatos e organizações</p><p>estudantis tradicionais, e, do outro, setores mais à direita e partidos</p><p>da oposição conservadora que buscavam instrumentalizar aquelas</p><p>manifestações como forma de tentar enfraquecer a hegemonia</p><p>político-eleitoral do bloco articulado em torno do PT. Pode-se dizer,</p><p>portanto, que junho de 2013 trouxe duas grandes novidades para o</p><p>cenário político brasileiro:</p><p>o ciclo de manifestações que se iniciaria foi o primeiro desde o</p><p>início da chamada “transição democrática”, na segunda</p><p>metade da década de 1970, que não teve o Partido dos</p><p>Trabalhadores − ou os movimentos que estiveram no cerne de</p><p>sua formação como “Partido-Movimento” (KECK, 1991) −</p><p>como um de seus principais protagonistas. Pelo contrário:</p><p>quase sempre o PT e o seu modo de governar foram os</p><p>principais alvos de boa parte das críticas dos manifestantes;</p><p>a “descoberta” das ruas pela direita, que passaria a ocupar</p><p>também esses espaços, lócus por excelência das forças e</p><p>movimentos democráticos e progressistas, desde os anos da</p><p>ditadura. Esta direita</p><p>desses sujeitos como produtores de sentido, mas,</p><p>principalmente, para a identificação dos enquadramentos que</p><p>orientaram grande parte da população brasileira a se localizar no</p><p>espaço político, ao longo do período considerado.</p><p>O artigo acaba também por se inserir num plano de análise ainda</p><p>pouco explorado, o qual aponta para a exacerbação de</p><p>posicionamentos neofascistas em nosso país. Longe de ser uma</p><p>particularidade brasileira, esse fenômeno vem se desenrolando em</p><p>outras partes do planeta. Para Dardot & Laval (2016), o</p><p>recrudescimento dos movimentos conservadores e mesmo os de</p><p>caráter neofascista tem sua raiz nas transformações subjetivas</p><p>provocadas pela hegemonia neoliberal, no sentido do fortalecimento</p><p>do egoísmo social e da recusa à redistribuição e à solidariedade.</p><p>Para Fraser (2017), o avanço dos movimentos e dos governos de</p><p>direita no mundo sinalizam, em verdade, um colapso da hegemonia</p><p>neoliberal. Os motins eleitorais expressos na vitória de Donald</p><p>Trump nas eleições norte-americanas, o voto Brexit no Reino Unido</p><p>e o crescimento do apoio à Frente Nacional na França compartilham</p><p>entre si a rejeição de grande parte do eleitorado desses países “à</p><p>letal combinação de austeridade, livre comércio, dívida predatória e</p><p>trabalho precário e mal remunerado, que caracterizam o capitalismo</p><p>financeirizado contemporâneo” (FRASER, 2017). Segundo a autora,</p><p>tais insubordinações indicam, sobretudo, a débâcle de um tipo</p><p>particular de neoliberalismo, aquele que floresceu durante os últimos</p><p>governos democratas norte-americanos: é o “neoliberalismo</p><p>progressista”, que mesclou formas perversas de financeirização com</p><p>certos ideais de emancipação (feminismo, antirracismo,</p><p>multiculturalismo e direitos LGBTQ). É essa aliança complexa que</p><p>os eleitores norte-americanos, assim como de outros países,</p><p>passaram a rejeitar. Em outros termos e por estarem combinados, o</p><p>repúdio aos efeitos perversos da globalização acabou por</p><p>defenestrar o liberalismo cosmopolita identificado com ela.</p><p>Finalmente, a expansão dos movimentos de direita e até mesmo</p><p>fascistas no mundo e, em particular, no Brasil, nos conduz a</p><p>estarmos atentos, como nos lembra Foucault, ao fato “de que o</p><p>fascismo está em todos nós, assombrando nossos espíritos e</p><p>nossas condutas cotidianas (...), nos fazendo amar o poder e</p><p>desejar esta coisa que nos domina e nos explora” (FOUCAULT,</p><p>1977:12). As polarizações políticas assistidas nos últimos anos na</p><p>vida política brasileira e acirradas pelo aprofundamento da crise</p><p>econômica são exemplos ilustrativos dessa predição foucaultiana.</p><p>Elas acabam por inviabilizar o diálogo democrático, ao aprofundar a</p><p>distância entre “nós” e “eles” e impedir a construção de canais de</p><p>mediação que possibilitem a convivência respeitosa entre contrários.</p><p>Eis aí o caldo cultural ideal para o agravamento de experiências</p><p>autoritárias e a procura por saídas despóticas.</p><p>Referências Bibliográficas</p><p>ALDÉ, Alessandra. A construção da política: democracia, cidadania</p><p>e meios de comunicação de massa. Rio de Janeiro: FGV, 2004.</p><p>ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo, trad. Roberto Raposo.</p><p>São Paulo: Companhia das Letras, 1989.</p><p>AVRITZER, Leonardo. Impasses da democracia no Brasil. Rio de</p><p>Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.</p><p>BARTHES, Roland. Mitologias, trad. Rita Buongermino; Pedro de</p><p>Souza. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.</p><p>BOBBIO, Norberto. Direita e esquerda: razões e significados de uma</p><p>distinção politica, trad. Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Unesp,</p><p>1994.</p><p>BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento, trad.</p><p>Daniela Kern; Guilherme J.F Teixeira. São Paulo: Edusp; Porto</p><p>Alegre: Zouk, 2007.</p><p>CAVALCANTE, Sávio. Classe média e conservadorismo liberal. In:</p><p>CRUZ, Sebastião Velasco; KAYSEL, André; CODAS Gustavo</p><p>(Orgs.) Direita, volver!: o retorno da direita e o ciclo político</p><p>brasileiro. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2015,</p><p>pp.177-196.</p><p>DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio</p><p>sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.</p><p>ECO, Umberto. Folha de S. Paulo – Caderno Mais! 14/05/95.</p><p>ENTMAN, Robert M. Democracy without citizens: media and the</p><p>decay or american politics. New York: Oxford University Press,</p><p>1989.</p><p>FOUCAULT, Michel. O anti-édipo: uma introdução à vida não</p><p>fascista. Cadernos de Subjetividade/ Núcleo de Estudos e</p><p>Pesquisas da Subjetividade do Programa de Estudos Pós-</p><p>Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP. São Paulo; v.1, n.1,</p><p>1993, pp.197-200.</p><p>FRASER, Nancy. El final del neoliberalismo progressista. Disponível</p><p>em: <https://www.dissentmagazine.org/online_articles/progressive-</p><p>neoliberalism-reactionary-populism-nancy-fraser>. Acessso em: 12</p><p>jan. 2017.</p><p>GIRARDET, Raoul. Mitos e mitologias políticas. São Paulo:</p><p>Companhia das Letras, 1987.</p><p>GOFFMAN, Erving. Os quadros da experiência social: uma</p><p>perspectiva de análise. Petrópolis: Editora Vozes. 2012.</p><p>HIRSCHMAN, Albert. A retórica da intransigência: perversidade,</p><p>futilidade, ameaça. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.</p><p>MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do</p><p>discurso. Campinas: Pontes, 1993.</p><p>MCGANN, James G. Global Go To Think Tank Index Report.</p><p>Philadelphia: University of Pennsylvania, 2015.</p><p>ORTELLADO, Pablo; SOLANO, Ester. Pesquisa manifestação</p><p>política 12 de abril de 2015. Disponível em: <http://gpopai.usp.br>.</p><p>Acesso em 5 mai. 2015.</p><p>ORTELLADO, Pablo.; SOLANO, Ester.; NADER, L. Pesquisa</p><p>manifestação política 16 de agosto de 2015. Disponível em:</p><p><http://gpopai.usp.br/pesquisa/>. Acesso: em 25 ago. 2015.</p><p>PIERUCCI, Antônio Flávio. As bases da nova direita. Novos Estudos</p><p>Cebrap. São Paulo, n. 19, 1987, pp. 26-45.</p><p>______. Ciladas da diferença. Tempo Social, v.2, n.2, 1990, pp.7-37.</p><p>RAGO, M. & VEIGA-NETO, A. (Orgs). Para uma vida não facista.</p><p>Coleção Estudos Foucaultianos Belo Horizonte: Autêntica, 2009.</p><p>ROCHA, Camila. Direitas em rede: think tanks de direita na América</p><p>Latina. In: CRUZ, Sebastião Velasco; KAYSEL, André; CODAS</p><p>Gustavo (Orgs.) Direita, volver!: o retorno da direita e o ciclo</p><p>político brasileiro. Op. cit, pp. 261-278.</p><p>RIEDER,Bernhard. Studying Facebook via data extraction: the</p><p>Netvizz application. In: ANNUAL ACM WEB SCIENCE</p><p>https://www.dissentmagazine.org/online_articles/progressive-neoliberalism-reactionary-populism-nancy-fraser</p><p>http://gpopai.usp.br/</p><p>http://gpopai.usp.br/pesquisa/</p><p>CONFERENCE, 5., 2013, Paris. Proceedings…,2013. p.346-355.</p><p>Disponível em:</p><p><http://thepoliticsofsystems.net/permafiles/rieder_websci.pdf>.Ace</p><p>sso em:12 mai. 2017.</p><p>SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira ou como o país se</p><p>deixa manipular pela elite. São Paulo: LeYa, 2015.</p><p>TATAGIBA, Luciana; TRINDADE, Thiago; TEIXEIRA, Ana Claudia C.</p><p>Protestos à direita no Brasil (2007-2015). In: CRUZ, Sebastião</p><p>Velasco; KAYSEL, André; CODAS Gustavo (Orgs.) Direita, volver!:</p><p>o retorno da direita e o ciclo político brasileiro. Op. cit, pp. 197-</p><p>212.</p><p>TELLES, Helcimara de Souza. O que os protestos trazem de novo</p><p>para a política brasileira? Em Debate, Belo Horizonte, v.7, n.2, abr.</p><p>2015, pp.7-14.</p><p>WEBER, Max. A objetividade do conhecimento na Ciência Social e</p><p>na Ciência Política. Metodologia das Ciências Sociais, trad.</p><p>Augustin Wernet. São Paulo: Unicamp, v. 1, 1992, pp.107-154.</p><p>http://thepoliticsofsystems.net/permafiles/rieder_websci.pdf</p><p>Golpe de Estado: o conceito e sua história</p><p>Alvaro Bianchi</p><p>Desde 2016, a ciência política brasileira encontra-se dividida entre</p><p>quem considera que a presidenta Dilma Rousseff foi derrubada por</p><p>um golpe de Estado e quem nega essa hipótese [ 9 ]. Muitos</p><p>argumentos apresentados nessa discussão confundem-se,</p><p>simplesmente, com a exposição de preferências partidárias e</p><p>políticas. Outros tantos atêm-se à descrição de procedimentos</p><p>jurídicos viciados ou virtuosos, de acordo com a perspectiva. Pouca</p><p>atenção foi dada, entretanto, ao próprio conceito, ao seu significado</p><p>e sua história. Este é o objetivo aqui: refletir a respeito do conceito de</p><p>golpe de Estado, daquilo que ele quer nomear e das transformações</p><p>que sofreu ao longo do tempo.</p><p>Razão de Estado</p><p>O conceito de golpe de Estado</p><p>surge, já no século XVII, em um</p><p>tratado escrito por um autor pouco conhecido, Gabriel Naudè (1600-</p><p>1653), o bibliotecário dos cardeais Giovanni Francesco Guido di</p><p>Bagno (1578-1641) e Giulio Mazzarino (1602-1661) [ 10 ]. Influenciado</p><p>por Niccolò Machiavelli (1469-1527), Naudè escreveu suas</p><p>Considérations politiques sur les coups d’Estat assumindo</p><p>explicitamente o caráter científico de seu empreendimento: o “estudo</p><p>da política do governo dos povos sob a administração de uma só</p><p>pessoa ou de várias” (NAUDÈ, 1679 [1639], p. 97) [ 11 ]. O estudo se</p><p>dividia em três partes:</p><p>1)</p><p>2)</p><p>3)</p><p>A “ciência geral da fundação e conservação dos Estados”, a</p><p>qual “consiste de certas regras aprovadas e aceitas por todos”</p><p>(NAUDÈ, 1679 [1639], p. 98).</p><p>Aquilo que os franceses chamavam de “Máximes d’Etat e os</p><p>italianos ragion di stato”, e que Naudè considerava mais</p><p>apropriado definir como “excessum iuris communis propter</p><p>bonum comune [excesso do direito comum para o bem</p><p>comum]”, e que consiste naquelas regras “que não são</p><p>legítimas pelo direito das gentes, civil, ou natural; mas somente</p><p>pela consideração do bem e da utilidade pública” (NAUDÈ,</p><p>1679 [1639], p. 100-101) [ 12 ].</p><p>Por fim, os golpes de Estado, que poderiam ser definidos no</p><p>interior da chamada razão de estado, mas que o autor prefere</p><p>destacar definindo-os como “aquelas ações arrojadas e</p><p>extraordinárias que os príncipes são forçados a tomar em</p><p>situações difíceis e desesperadas, contrariamente à lei comum,</p><p>sem manter qualquer forma de ordem ou justiça, colocando de</p><p>lado o interesse particular em benefício do bem público”</p><p>(NAUDÈ, 1679 [1639], p. 110).</p><p>O que distingue a razão de Estado do golpe de Estado é que,</p><p>enquanto para a primeira a causa antecede o efeito, no coup d’État o</p><p>efeito aparece primeiro: “vê-se o raio antes de ouvir-se o trovão nas</p><p>nuvens, ante ferit quam flamma micet, os ofícios de Leituras são</p><p>recitados antes de serem tocados, a execução precede a sentença,</p><p>tudo se faz de modo judaico, repentina e inesperadamente” (NAUDÈ,</p><p>1679 [1639], p. 111). Excesso e ilegalidade caracterizam tanto a</p><p>razão de Estado como o golpe do Estado, mas este último é ainda</p><p>marcado pela imprevisibilidade: “Recebe o golpe quem pensava dá-</p><p>lo; morre quem acreditava estar seguro; que não o espera padece;</p><p>tudo é feito lá à noite, no escuro e entre os nevoeiros e a escuridão”</p><p>(NAUDÈ, 1679 [1639], p. 111).</p><p>O livro de Naudè já oferece uma pista para uma definição: um</p><p>conceito eficaz de golpe de Estado deve levar em conta seu sujeito e</p><p>os meios excepcionais que este utiliza para conquistar o poder.</p><p>Naudè ainda não fazia aquela distinção propriamente moderna entre</p><p>o príncipe e o Estado. Dai que o coup d’État fosse sempre retratado</p><p>como uma conspiração palaciana e seu protagonista fosse sempre o</p><p>soberano. Por essa razão, as ações que caracterizam os golpes de</p><p>Estado “nascem nos mais retirados gabinetes dos príncipes e não se</p><p>fala nem se delibera sobre elas no plenário do Senado ou no meio de</p><p>uma corte do parlamento e sim apenas entre dois ou três dos</p><p>ministros mais avisados e fiéis que tenha um príncipe” (NAUDÈ,</p><p>1679 [1639], p. 70-71).</p><p>A ideia de coup d’État foi usada com parcimônia pela literatura do</p><p>século seguinte. O declínio do discurso político da ragione di Stato</p><p>implicou o ocaso da ideia de coup d’État. A generalização dessa</p><p>ideia ocorre na França apenas durante o século XIX. A historiografia</p><p>desse século tendeu a interpretar a derrubada do Diretório e a</p><p>instituição do Consulado por Napoléon Bonaparte (1769-1821), no 18</p><p>brumário do ano VIII, como um golpe de Estado. Depois, em alguns</p><p>panfletos, como naqueles de Jules Failly (1830), Jean-Baptiste</p><p>Mesnard (1830) e Santo-Domingo (1830), os eventos que</p><p>culminaram com a ascensão de Louis Philippe (1773-1850) ao poder</p><p>foram pensados como um coup d’État. Mas foi depois do golpe de</p><p>Louis Bonaparte (1808-1873), em 1851, que a literatura referente ao</p><p>tema se difundiu. Karl Marx, com seu 18 brumário de Luís Bonaparte,</p><p>é o mais conhecido, mas a literatura existente sobre o golpe</p><p>promovido pelo sobrinho de Napoléon é muito mais vasta. O próprio</p><p>Marx lembra a respeito dois livros notáveis, um de Pierre-Joseph</p><p>Proudhon (1852) e outro de Victor Hugo (1852).</p><p>Uma mudança conceitual importante ocorreu no século XIX. O uso</p><p>da ideia de coup d’État na literatura política a partir desse século não</p><p>tinha por sujeito exclusivamente o soberano e os golpes retratados</p><p>não tinham seu lugar apenas nos palácios imperiais. A elevação de</p><p>Napoléon à condição de primeiro-cônsul, por exemplo, foi tramada</p><p>no interior do Conseil des Anciens e do Conseil des Cinq-Cents, e foi</p><p>decidida com a intervenção do exército. Além disso, seu sobrinho</p><p>não teria conseguido realizar seus propósitos sem a mobilização do</p><p>exército comandado pelo general Jacques Leroy de Saint Arnaud</p><p>(1798-1854).</p><p>Marx descreveu os episódios que levaram à entronização de Luis</p><p>Bonaparte como uma série de golpes e contragolpes. A lei que a</p><p>Assembleia preparava definindo as responsabilidades do presidente</p><p>da República foi descrita, por exemplo, como um golpe contra</p><p>Bonaparte (MARX, 2011 [1852], p. 51). Também eram denominadas</p><p>de “coup d’État da burguesia” a lei eleitoral de 31 de março de 1850,</p><p>a qual restringia a participação popular, e a lei de imprensa, que</p><p>proscreveu os jornais revolucionários (MARX, 2011 [1852], p. 86). Os</p><p>sujeitos mudavam, mas o caráter excepcional e imprevisível dos</p><p>recursos mobilizados eram uma constante.</p><p>A literatura do século XIX sobre o golpe de Estado distinguia-se do</p><p>modelo apresentado por Naudè. Naquelas obras que tinham por</p><p>objeto o golpe de Louis Bonaparte, evidentemente o sujeito da ação</p><p>ainda era o soberano. Mas as condições nas quais o golpe se</p><p>efetivou foram mais complexas do que as existentes nas</p><p>conspirações palacianas e o número de atores envolvidos era maior.</p><p>A trama que resultava no coup d’État tornava-se mais intrincada e</p><p>envolvia personagens que estavam fora do palácio, em especial os</p><p>que se encontravam na Assembleia Nacional e sem os quais o golpe</p><p>não teria sido possível. A literatura citada tendia a dar conta dessa</p><p>complexidade alargando o campo semântico do conceito.</p><p>Militares e burocratas</p><p>Uma pesquisa com o aplicativo Ngram Viewer do Google Books</p><p>permite vislumbrar a evolução do uso da expressão coup d‘État nos</p><p>séculos XIX e XX. O aplicativo busca e quantifica palavras ou</p><p>expressões indicando a fração percentual delas no total do corpus de</p><p>livros. Não é um mecanismo muito preciso porque o corpus</p><p>apresenta lacunas. Quando feita a pesquisa em livros em francês,</p><p>por exemplo, a expressão não aparece nenhuma vez entre 1850 e</p><p>1876, quando uma simples busca de livros na Biblioteca Nacional</p><p>Francesa já indica mais de 150 obras com a expressão no título. Mas</p><p>quando se faz a busca no corpus em inglês, o resultado é muito</p><p>interessante, como se pode ver no gráfico abaixo:</p><p>A partir da Primeira Guerra Mundial há um uso cada vez mais</p><p>intenso da expressão coup d’État na bibliografia em inglês. Com a</p><p>exceção de um declínio durante a Segunda Guerra Mundial e nos</p><p>anos imediatamente posteriores, o crescimento foi contínuo até</p><p>1969, seguindo-se por uma acentuada queda nos anos posteriores.</p><p>Essa queda é simétrica àquela que a expressão dictactorship</p><p>(ditadura) apresenta nos mesmos anos e coincide de certa maneira</p><p>com aquilo que Samuel Huntington (1991) chamou de terceira onda</p><p>de democratização, que teria ocorrido a partir de 1974.</p><p>Além de acompanhar o uso da expressão é importante</p><p>compreender os sentidos que ela passou a assumir no século XX.</p><p>Na obra clássica do escritor Curzio Malaparte, Technique du coup</p><p>d’État (1981 [1931]), também ela inspirada em Machiavelli, o golpe</p><p>de Estado é o próprio ato de conquista do poder político. Malaparte</p><p>generaliza o conceito, concebendo-o como um momento da</p><p>revolução e da contrarrevolução. O livro provocou a ira de Leon</p><p>Trotsky, que era amplamente citado como um dos artífices do golpe</p><p>que teria levado os bolcheviques ao poder.</p><p>A literatura que se debruçou sobre os golpes de Estado da</p><p>segunda metade do século XX</p><p>achou por bem seguir um caminho</p><p>diferente daquele de Malaparte e distinguir o coup d’État da</p><p>revolução. É o caso, por exemplo, do livro de Edward Luttwak, Coup</p><p>d’État: a practical handbook (1969). Luttwak é um conservador,</p><p>especialista em assuntos militares e já trabalhou como consultor do</p><p>Departamento de Estado nos Estados Unidos. Seu livro foi</p><p>interpretado por muitos como uma manual prático para a realização</p><p>de um golpe. Mas como o próprio autor alertou ironicamente, se isso</p><p>fosse verdade o livro não serviria de muita coisa. No único caso em</p><p>que foi comprovado seu uso o golpe fracassou e seu protagonista foi</p><p>preso e executado (LUTTWAK, 1991 [1969], p. 19).</p><p>Luttwak define o golpe de Estado como um fenômeno moderno,</p><p>decorrente da “ascensão do Estado moderno com sua burocracia</p><p>profissional e suas forças armadas” (LUTTWAK, 1991 [1969], p. 23).</p><p>O golpe se distinguiria da conspiração palaciana, que estaria</p><p>relacionada, exclusivamente, à pessoa do governante. Segundo</p><p>Luttwak, “o golpe é algo muito mais democrático. Pode ser conduzido</p><p>‘de fora’ e opera naquela área fora do governo mas dentro do</p><p>Estado, que é formada pelo funcionalismo público permanente, pelas</p><p>forças armadas e a polícia. O objetivo é desligar os funcionários</p><p>permanentes do Estado da liderança política” (LUTTWAK, 1991</p><p>[1969], p. 23).</p><p>A diferença entre o golpe a revolução estaria no sujeito desses</p><p>processos. Enquanto o coup d’État tem por sujeito a burocracia</p><p>estatal, a revolução tem como protagonista as “massas populares”.</p><p>Destaque-se que Luttwak considera que o golpe de Estado não é</p><p>uma técnica apropriada para uma orientação política particular, ou</p><p>seja, o golpe é uma tática “politicamente neutra” de conquista do</p><p>poder político, e seriam bastante frequentes os casos levados a cabo</p><p>por setores progressistas ou nacionalistas do aparelho estatal.</p><p>No século XX, a forma predominante do golpe foi a do</p><p>“pronunciamento”, o coup d’État promovido pelos militares. Em suas</p><p>origens, no século XIX, a forma do pronunciamento esteva</p><p>frequentemente associada a movimentos liberais, e o propósito do</p><p>golpe era expressar a “vontade geral” contra o governo. Com o</p><p>passar do tempo, esta forma adquiriu contornos mais conservadores,</p><p>e o golpe passou a ser visto como a manifestação da “vontade real”,</p><p>uma estrutura espiritual duradoura que nem sempre coincidiria com a</p><p>opinião pública e que teria como guardiã uma instituição igualmente</p><p>duradoura, o exército (ver p. ex. LUTTWAK, 1991 [1969], p. 28).</p><p>Ainda assim, Luttwak assinala as diversas ocasiões entre 1945 e</p><p>1978 nas quais o golpe teria tido como protagonistas frações</p><p>políticas ou militares “esquerdistas”. É o caso dos golpes</p><p>fracassados no Iraque (1959), Guatemala (1960), Egito (1966),</p><p>Sudão (1966), Iêmen (1968), Madagascar (1971) e República</p><p>Popular do Congo (1972). Haveria ainda o golpe bem sucedido de</p><p>uma “facção esquerdista” do exército sírio em 1966 e o golpe</p><p>promovido pelos comunistas na Tchecoslováquia, em 1948 (cf.</p><p>LUTTWAK, 1991 [1969], Tabela II). Embora o conceito de esquerda</p><p>que o autor utiliza possa ser questionado, esses eventos, nos quais</p><p>geralmente facções nacionalistas e modernizantes do exército</p><p>tiveram o protagonismo, já são suficientes para questionar a hipótese</p><p>de que a definição de um golpe de Estado passa por seu caráter</p><p>reacionário [ 13 ].</p><p>Repensando o conceito</p><p>A maior parte dos golpes de estado inventariados por Luttwak</p><p>tiveram por protagonistas facções do exército e seu livro considera o</p><p>golpe predominantemente como uma operação militar tática. O golpe</p><p>militar é, sem dúvida, a forma predominante durante o século XX.</p><p>Isso fez com que muitas vezes o coup d’État fosse identificado</p><p>exclusivamente com sua variante militar. É o que ocorre na definição</p><p>que David Robertson oferece em The Routdlege Dictionary of</p><p>Politics: “Coup d’État descreve a derrubada repentina e violenta de</p><p>um governo, quase invariavelmente por militares ou com a ajuda de</p><p>militares” (ROBERTSON, 2004, p. 125).</p><p>Mas uma definição tão limitada não permite considerar a hipótese</p><p>de golpes promovidos por grupos do poder Legislativo ou Judiciário</p><p>ou por uma combinação de vários grupos e facções. Esse parece ser</p><p>o caso brasileiro em 1964, quando a mobilização militar encontrou o</p><p>respaldo no Senado, que declarou “vaga a presidência da</p><p>República”, e no Supremo Tribunal Federal, que realizou uma sessão</p><p>na madrugada do dia 3 de abril para empossar Ranieri Mazzili na</p><p>presidência. Recentemente, os golpes que derrubaram Manuel</p><p>Zelaya em Honduras, no ano de 2009, e Fernando Lugo no</p><p>Paraguai, em 2012, tiveram por protagonistas facções do poder</p><p>legislativo. O conceito precisa, portanto, ser alargado. Aquela ideia</p><p>inicial de Naudè pode ser retomada com esse propósito, mas como</p><p>um ponto de partida. O conceito deve deixar claro quem é o</p><p>protagonista daquilo que se chama coup d’État, os meios que</p><p>caracterizam a ação e os fins desejados.</p><p>O sujeito do golpe de Estado moderno é, como Luttwak destacou,</p><p>uma fração da burocracia estatal. O golpe de Estado não é um golpe</p><p>no Estado ou contra o Estado. Seu protagonista se encontra no</p><p>interior do próprio Estado, podendo ser, inclusive, o próprio</p><p>governante. Os meios são excepcionais, ou seja, não são</p><p>característicos do funcionamento regular das instituições políticas.</p><p>Tais meios se caracterizam pela excepcionalidade dos</p><p>procedimentos e dos recursos mobilizados. O fim é a mudança</p><p>institucional, uma alteração radical na distribuição de poder entre as</p><p>instituições políticas, podendo ou não haver a troca dos governantes.</p><p>Sinteticamente, golpe de Estado é uma mudança institucional com</p><p>vistas à redistribuição do poder político, promovida sob a direção de</p><p>uma fração do aparelho de Estado que, para tal, utiliza medidas e</p><p>recursos excepcionais que não fazem parte das regras usuais do</p><p>jogo político.</p><p>Impeachment presidencial</p><p>A definição de golpe de Estado acima exposta evita formalismos ou</p><p>simplificações que têm sido recorrentes no debate contemporâneo.</p><p>Entre 1990 e 2016 oito presidentes latino-americanos sofreram</p><p>impeachments: Fernando Collor (Brasil, 1992), Carlos Andrés Pérez</p><p>(Venezuela, 1993), Raúl Cubas Grau (Paraguai, 1999), Abdalá</p><p>Bucaram (Equador, 1997), Lucio Gutiérrez (Equador, 2005),</p><p>Fernando Lugo (Paraguai, 2012), Otto Pérez Molina (Guatemala,</p><p>2015) e Dilma Rousseff (Brasil, 2016). Ao contrário da maior parte</p><p>dos golpes militares da história da América Latina, nestes casos a</p><p>deposição do presidente não implicou uma mudança no regime</p><p>político. Na maioria dos casos, as instituições politicas previamente</p><p>existentes continuaram a funcionar as usual. [ 14 ]</p><p>Esse funcionamento das instituições impede que processos nos</p><p>quais a deposição de um presidente legitimamente eleito ocorreu por</p><p>meio de um dispositivo constitucionalmente previsto – o</p><p>impeachment – sejam caracterizados como golpe de Estado? Não é</p><p>a ilegalidade, a força ou a mudança do regime político que</p><p>caracteriza o golpe, e sim o uso de recursos excepcionais por parte</p><p>de uma fração do aparelho de Estado. O fato de tais recursos serem</p><p>previstos constitucionalmente não anula sua excepcionalidade nem</p><p>seu caráter inusual. Formalismos e simplificações fizeram com que</p><p>uma parte importante do debate contemporâneo sobre golpes de</p><p>Estado se ativesse à análise institucional. Discutiu-se muito, por</p><p>exemplo, a respeito da existência ou não de regras constitucionais</p><p>que permitissem a remoção de governantes e sobre a maneira</p><p>correta ou incorreta como essas regras teriam sido aplicadas.</p><p>O impeachment, embora previsto em muitas Constituições, é</p><p>sempre um recurso excepcional estranho às regras usuais do jogo</p><p>político. Nem todo impeachment, entretanto, pode ser caracterizado</p><p>como um golpe de Estado. A excepcionalidade dos recursos</p><p>utilizados para depor um presidente é uma condição necessária, mas</p><p>não uma condição suficiente. Como visto, o que caracteriza um golpe</p><p>de Estado é esses recursos excepcionais serem mobilizados por</p><p>uma fração do aparelho estatal. A questão fundamental a ser</p><p>respondida é, portanto, quem dirige o processo; não o processo</p><p>legislativo do impeachment, e sim o processo político que culmina na</p><p>deposição.</p><p>Parte da confusão que caracterizou o debate contemporâneo</p><p>reside na redução do golpe de Estado ao processo legislativo de</p><p>impeachment, o qual é com frequência apenas um dos meios ou</p><p>recursos excepcionais mobilizados para a redistribuição forçada do</p><p>poder político. Obviamente a direção desse processo legislativo</p><p>pertence sempre a uma fração do aparelho estatal. Mas o</p><p>impedimento presidencial é apenas um momento de um intrincado</p><p>processo político, no qual setores da sociedade e outras frações não</p><p>legislativas do aparelho estatal podem participar. Se a direção do</p><p>processo político amplo for uma fração do aparelho estatal, com</p><p>predomínio dos legisladores ou não, então o impeachment, mesmo</p><p>quando previsto na Constituição, pode ser caracterizado, de acordo</p><p>com a definição exposta acima, como o momento culminante de um</p><p>coup d’État.</p><p>Referências Bibliográficas</p><p>ALMEIDA, Frederico de. O STF não vai barrar o golpe porque ele é</p><p>parte do golpe. Justificando, 29 de abril de 2016. Disponível em:</p><p><https://bit.ly/2NECabc>.</p><p>AUGERAUD, W. Le coup d’état du 18 brumaire et ses</p><p>conséquences. Bruxelles: J.-H. Briard. 1853.</p><p>BIANCHI, Alvaro. O que é um golpe de Estado? Blog Junho, 26 mar.</p><p>2016. Disponível em: <https://bit.ly/1ZOOsgB>.</p><p>FAILLY, Jules. Jugement du coup d’état et de la Révolution de 1830.</p><p>Paris: Delaunay, 1830.</p><p>HUGO, Victor. Napoléon le Petit. Bruxelles: A Mertens, 1852.</p><p>HUNTINGTON, Samuel P. The third wave: democratization in the late</p><p>twentieth century. Norman: University of Oklahoma, 1991.</p><p>LUTTWAK, Edward. Golpe de Estado: um manual prático. Trad.</p><p>Claudia Schillling. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991 [1969].</p><p>MALAPARTE, Curzio. Técnica do golpe de Estado. Lisboa: Europa-</p><p>América, 1983.</p><p>MARX, Karl. O 18 brumário de Luís Bonaparte. Trad. Nélio</p><p>Schneider. São Paulo: Boitempo, 2011 [1852].</p><p>MEINECKE, Friedrich. Machiavellism: the doctrine of raison d’Etat</p><p>and its place in modern history. New Haven: Yale University, 1957.</p><p>MESNARD, Jean-Baptiste. Le Coup d’état et la Révolution. Paris: de</p><p>Selligue. 1830</p><p>MIGUEL, Luís Felipe. Golpe. O blog do Demodê, 5 mar. 2018.</p><p>Disponível em: https://bit.ly/2L2QkRG</p><p>NAUDÉ, Gabriel. Considérations politiques sur les coups d’Estat.</p><p>Paris: s.e., 1679 [1639].</p><p>______. Science des princes, ou Considerations politiques sur les</p><p>coups d’Etat. Paris, Marie-Jacques Barrois, 1752 [1639].</p><p>OLIVEIRA, Tiago Bernardon de. O golpe de 2016: breve ensaio de</p><p>história imediata sobre democracia e autoritarismo. Historiæ, v. 7,</p><p>n. 2, p. 191-232, 2016.</p><p>https://bit.ly/2NECabc</p><p>https://bit.ly/1ZOOsgB</p><p>https://bit.ly/2L2QkRG</p><p>PEREZ-LIÑAN, Aníbal. Presidential impeachment and the new</p><p>political instability in Latin America. Cambridge: Cambridge</p><p>University, 2007.</p><p>PERISSINOTTO, Renato. Por que golpe? S.d. Disponível em:</p><p>https://bit.ly/2ukKgwH.</p><p>PINTARD, Rene. Le libertinage erudit dans la premiere moitie du</p><p>XVIIe siecle. Geneve; Paris: Slatkine, 1983.</p><p>PROUDHON, Pierre-Joseph. La Révolution sociale démontrée par le</p><p>coup d’état du 2 décembre. 2 ed. Paris: Garnier frères 1852.</p><p>ROBERTSON, David. The Routledge Dictionary of Politics. 3 ed.</p><p>London: Routledge, 2004.</p><p>SANTO-DOMINGO, Joseph-Hippolyte de. Les prêtres instigateurs du</p><p>coup d’état, ce qu’ils ont fait, ce qu’ils auraient fait, ce qu’ils peuvent</p><p>faire. Paris: A.-J.,1830.</p><p>VIROLI, Maurizio. Dalla politica alla ragion di stato: la scienza del</p><p>governo tra XIII e XVII secolo. Roma: Donzelli, 1994.</p><p>https://bit.ly/2ukKgwH</p><p>Democracia genocida</p><p>Ana Luiza Pinheiro Flauzina</p><p>No chão da resistência negra, falar do presente é sempre tratar do</p><p>passado. Não dos eventos que se amontoam na memória como</p><p>fontes estanques, mas da própria disputa do sentido das narrativas,</p><p>da recontagem dos feitos que divide o tabuleiro social entre</p><p>vencedores e vencidos, arrojados e passivos, dominadores e</p><p>dominados. Para nós, a passagem do tempo tem aportado a</p><p>atualização das tragédias, novas configurações para velhos dilemas,</p><p>reedição de livros sórdidos cujas edições não esgotam jamais.</p><p>Vivemos um “presente de longa duração”, pontua Edson Cardoso, e</p><p>a chegada a qualquer ponto que queira se dizer futuro passa pela</p><p>ruptura com esse estado perene de dor (CARDOSO, 2015, p.45).</p><p>Considerando essa perspectiva, a conjuntura política atual não</p><p>pode ser lida sob a lente da ruptura, como as análises formatadas</p><p>pelas dinâmicas da branquitude insistem em pontuar. Se a trajetória</p><p>é de continuidades, a demarcação desse cenário como exceção</p><p>parece sinalizar mais para o alcance dos corpos que passa a atingir</p><p>do que para a completa inovação das práticas em curso. Analisar o</p><p>que se tem qualificado como um golpe de Estado sob uma ótica que</p><p>considere a questão racial é, assim, desmobilizar os ares</p><p>estupefatos e o discurso raivoso pautado na ordem do dia,</p><p>inscrevendo a denúncia do genocídio negro como o centro nervoso</p><p>das disputas em curso.</p><p>A fim de contribuir com uma análise que situe as dinâmicas</p><p>políticas conservadoras que não se iniciam, mas se intensificam</p><p>com o impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff, proponho</p><p>uma reflexão que nos permita visualizar a convivência do que se</p><p>entende por democracia com as políticas de terror que ditam a</p><p>existência social da população negra no país. A ideia é promover</p><p>um deslocamento que nos ajude a entender a compatibilização dos</p><p>marcos constitucionais com as dinâmicas do genocídio negro, para</p><p>situar o golpe como categoria definidora dos meandros das elites,</p><p>com efeitos nefastos para os segmentos marginalizados.</p><p>Sobre o genocídio</p><p>A reivindicação do genocídio como categoria política e jurídica</p><p>definidora dos assaltos promovidos contra as populações negras na</p><p>Diáspora é tão antiga quanto ignorada. Em 1951, William Patterson</p><p>denunciava em We Charge Genocide, as atrocidades a que estava</p><p>submetido o segmento negro num contexto social de intensa</p><p>segregação racial nos Estados Unidos (PATTERSON, 1970). Em</p><p>1978, em O genocídio do negro brasileiro, Abdias do Nascimento</p><p>faz movimento semelhante ao apontar as mazelas sociais</p><p>racialmente orientadas para a mitigação da vida das pessoas negras</p><p>no Brasil. (NASCIMENTO, 1978). Apesar de estarem sob a órbita do</p><p>sistemático apagamento historiográfico que vige entre nós, esses</p><p>esforços denotam a consciência política em se pautar a</p><p>vulnerabilidade da vida como o marco fundante da existência social</p><p>negra na Diáspora.</p><p>Atentando para as múltiplas acepções e desdobramentos desse</p><p>estado patente de violação das comunidades negras, pontuo aqui</p><p>algumas dimensões que tenho destacado como fundamentais para</p><p>a compreensão do fenômeno do genocídio negro.</p><p>Em primeiro lugar, destaco que o processo genocida, que se</p><p>afirma nas pegadas na antinegritude, tem como uma de suas</p><p>principais características a naturalização da dor (VARGAS, 2016).</p><p>Se o racismo experimentado no processo escravista inscreve a</p><p>violação de corpos como prática sistemática, a desumanização é</p><p>seu legado mais caro. Esse padrão arraigado no imaginário é</p><p>ferramenta poderosa que materializa o vilipêndio, a tortura e a morte</p><p>como o destino natural do contingente negro. A incapacidade de se</p><p>reconhecer a dor quando ela é infligida diretamente em carne negra</p><p>é, portanto, um pressuposto fundamental do genocídio. Em outras</p><p>palavras, é preciso entender que as dinâmicas do terror racial</p><p>conseguiram expropriar o sentido de humanidade de forma tão</p><p>brutal dos corpos negros que o sofrimento imposto a esse segmento</p><p>populacional não é socialmente inteligível. É esse o mais dileto</p><p>trunfo das práticas genocidas que permitem que se acumulem os</p><p>massacres sem a implicação das consciências (FLAUZINA, 2016a).</p><p>Além dessa dimensão, um segundo aspecto que venho</p><p>problematizando no debate do genocídio é o que lança luzes sobre</p><p>o fato de este ser um processo desencadeado pelo racismo com</p><p>suas complexas dimensões de gênero e sexualidade.</p><p>Aqui, é importante sublinhar que a guerra de alta intensidade</p><p>travada contra as comunidades periféricas em todo o Brasil tem na</p><p>figura de uma mãe negra “ultrajada” sua imagem mais</p><p>bem-acabada</p><p>(ROCHA, 2017). Mulheres que choram a dor do aniquilamento e do</p><p>sequestro dos corpos de seus filhos e filhas para as barbaridades</p><p>em curso. Imagem reificada que não gera empatia, mas a</p><p>criminalização do sofrimento. Maternidades culpabilizadas,</p><p>responsabilizadas pelos “desvios” da prole. Mães de assassinos</p><p>fabricados, pelo descaso do Estado ou evidências plantadas, que</p><p>vão se mantendo de pé para dar conta da vida e de joelhos ou</p><p>cabeça no chão, buscando amparo espiritual para não sucumbirem</p><p>à sentença da indiferença (ROCHA, 2017).</p><p>Apesar de essa ser uma representação acurada de uma das</p><p>dimensões mais perversas do genocídio negro, é importante fazer</p><p>leituras que não submetam essas mulheres a um regime de</p><p>maternidade limitador de suas experiências sociais. Aqui, chamo</p><p>atenção para o fato de que as mulheres negras não sofrem dores</p><p>apenas derivadas das dores dos homens, mas também causadas</p><p>por eles. É preciso, portanto, se questionar o papel do racismo na</p><p>conformação das masculinidades negras cis-heretoconformes e</p><p>suas implicações políticas. Há que se perguntar qual o espaço</p><p>destinado às mulheres e à comunidade LGBT diante da afirmação</p><p>de masculinidades embrutecidas. O questionamento do que</p><p>representa ser um homem negro no centro de um genocídio que</p><p>tem dilapidado o sentido do amor, do comunitarismo e da valoração</p><p>da vida é, dessa maneira, fundamental para o enfrentamento do</p><p>genocídio. (FLAUZINA, 2016a)</p><p>Além dessas duas variáveis pontuadas, quero tratar de uma</p><p>terceira questão, ainda pouco articulada, que parece estar no centro</p><p>nervoso dessa engenharia genocida perversa. Na contramão do que</p><p>se apregoa como pressuposto inabalável, é importante compreender</p><p>o fato de que há uma flagrante compatibilização entre democracia e</p><p>genocídio. O quero problematizar, na esteira do que vem sendo</p><p>discutido por intelectuais negras e negros na Diáspora, é que a</p><p>armadura democrática no Brasil tem sido o veículo condutor das</p><p>ações genocidas em curso.</p><p>Considerando a pertinência dessa dimensão do genocídio para</p><p>uma melhor compreensão do contexto político atual − representado</p><p>como golpe −, passo a uma reflexão que nos permita visualizar a</p><p>forma como este é, em grande medida, um momento de acirramento</p><p>das disputas das elites que têm o racismo como o centro nervoso</p><p>dos embates.</p><p>O genocídio da democracia</p><p>A visão romantizada do Estado democrático de direito como aquele</p><p>balizador dos direitos humanos e das garantias fundamentais que</p><p>opera a partir da soberania popular, obedecendo rigorosamente à</p><p>divisão de poderes, é há muito criticada por diversas perspectivas</p><p>teóricas. Apesar disso, não há dúvidas de que foi sob a batuta dos</p><p>baluartes democráticos que se experimentaram os maiores avanços</p><p>sociais. Portanto, o enfrentamento da complexa relação entre</p><p>democracia e racismo aqui exposto, digo de antemão, não visa</p><p>somar com perspectivas aviltantes de legitimação da ditadura. O</p><p>que me interessa fazer é desnudar a promessa democrática para</p><p>que possamos nos libertar de suas retóricas de paz assentadas na</p><p>prática da violência.</p><p>Passo então a interpelar essa questão a partir de lentes de</p><p>análises lastreadas na discussão do racismo. Na esteira do que</p><p>propõem autores como Joy James e João Vargas, parece ser</p><p>importante aproximar esse debate da realidade brasileira</p><p>compreendendo que os arranjos constitucionais têm sido</p><p>instrumentalizados para a manutenção do genocídio. (VARGAS,</p><p>2016; JAMES, 2009)</p><p>Aqui, é preciso entender que o dito Estado democrático se</p><p>sustenta na base da desigualdade que, no horizonte do racismo, só</p><p>se consolida com o salvo-conduto do terror. (VARGAS, 2016).</p><p>Nessa dinâmica que confunde os sentidos, os arranjos</p><p>constitucionais estão pautados para a garantia de direitos, desde</p><p>que jamais se perturbe a ordem pragmática por controle. Ou seja, o</p><p>limite da atuação da ordem constitucional no Brasil passa pelo</p><p>respeito ao controle indiscutível da decretação da morte de pessoas</p><p>negras, que se constitui no item inegociável da agenda das elites</p><p>nacionais.</p><p>Essa afirmação certamente adquire um tom herético se</p><p>analisarmos a própria consolidação da Carta Magna, que contou</p><p>com a intensa participação de diversos movimentos sociais,</p><p>incluindo o movimento negro, nas intensas disputas travadas na</p><p>constituinte (PIRES, 2016). Esse movimento de pleitos por</p><p>igualdade consubstanciado em instrumentos estruturais do Estado</p><p>está lastreado nos esforços internacionais que se seguem à</p><p>Segunda Guerra Mundial. Desde então, o emprego do racismo de</p><p>forma aberta pelos Estados é não só vedado por instrumentos</p><p>jurídicos como também rechaçado pela consciência coletiva.</p><p>Num país de maioria negra, esse cenário redundou numa severa</p><p>criminalização do racismo, prática imprescritível e inafiançável. Além</p><p>disso, a partir das posturas potentes da militância negra, há</p><p>sinalizações efetivas na órbita da salvaguarda de direitos, assim</p><p>como na pauta das ações afirmativas, nos meandros das políticas</p><p>da saúde da população negra e na conquista de direitos</p><p>quilombolas. Há uma agenda positiva, portanto, que quer se projetar</p><p>como indicativo de que o Estado e suas instituições estão</p><p>vocacionados para a promoção de garantias coletivas e individuais.</p><p>Na narrativa da ordem do dia, o descaso político é decorrente da má</p><p>gestão dos recursos e da a corrupção endêmica, obstáculos à</p><p>efetiva promoção dos marcos de igualdade celebrados na carta</p><p>constitucional.</p><p>O que há que se considerar, entretanto, é que as práticas de</p><p>promoção de igualdade racial entre nós têm tido poucos resultados</p><p>no combate às estruturas do racismo (CARDOSO, 2015). Observa-</p><p>se a conquista de territórios de direitos que jamais tocam no centro</p><p>nervoso dos dilemas consolidados da população negra. São direitos</p><p>conquistados a pulso, pelas pressões dos movimentos sociais, e</p><p>que não conseguem se sedimentar, vigorando num quadro de</p><p>vulnerabilidade constante. Trata-se de direitos frágeis, por assim</p><p>dizer, passíveis de revogação diante da mudança da temperatura</p><p>política da vez.</p><p>Se olharmos para o plano da educação, em que se consolidam</p><p>grande parte dos avanços para a população negra da última</p><p>década, podemos constatar tal realidade. A edição da lei</p><p>12.711/2012, conhecida como lei de cotas, ocorre quase uma</p><p>década após a adoção da reserva de vagas para estudantes negros</p><p>e negras na UERJ, em 2003. É a partir da intensa agitação e</p><p>tensionamento nos espaços universitários que se consegue a</p><p>institucionalização retardatária dessa demanda de importância</p><p>central.</p><p>A avaliação do processo de implementação das ações afirmativas</p><p>para a educação superior no Brasil sinaliza a fragilidade do que se</p><p>entende como conquista nos embates em torno do racismo no país.</p><p>A entrada de estudantes cotistas nas universidades públicas</p><p>brasileiras não tem sido seguida por políticas de permanência</p><p>efetivas. Além disso, a universidade segue resistente a uma</p><p>transformação profunda trazida por esses indivíduos em termos do</p><p>fazer epistemológico, das pesquisas, das demandas urgentes da</p><p>extensão. Os ambientes seguem herméticos quanto à contribuição</p><p>de intelectuais negros e negras e há morosidade na implementação</p><p>de cotas nas pós-graduações e no ingresso de docentes negros e</p><p>negras em seus quadros em todo o país.</p><p>O sentimento em voga, mesmo após dez anos da presença de</p><p>alunos e alunas negras nas universidades brasileiras, é o de uma</p><p>espécie de concessão branca, que trabalha vigorosamente para</p><p>defender uma suposta excelência acadêmica − que não se vê em</p><p>parte alguma − da mácula que esses seres racionalmente</p><p>comprometidos podem gerar às instituições. Mais importante: essa é</p><p>uma presença ameaçada pela clara possibilidade de revogação dos</p><p>parâmetros estabelecidos, que está sempre à espreita nos discursos</p><p>conservadores.</p><p>Assim sendo, os avanços em termos de consolidação de direitos</p><p>para a população negra, fruto de intensa mobilização da militância,</p><p>não são lidos como parte de conteúdos que compõe um acervo</p><p>constitucional a ser preservado. Ao contrário, são taxados como</p><p>penduricalhos do politicamente correto que podem ser suprimidos a</p><p>qualquer</p><p>tempo.</p><p>A instabilidade dos direitos aportados constitucionalmente para o</p><p>segmento negro é contraposta pela garantia das violações que não</p><p>encontram espaço para a contestação efetiva em parte alguma.</p><p>Como pontuado anteriormente, o controle do direito à vida, ou</p><p>melhor, a disponibilidade de se decretar a morte das pessoas</p><p>negras, nos termos daquilo que Achille Mbembe entende por</p><p>necropolítica, é o item mais bem guardado da agenda política das</p><p>elites no país (MBEMBE, 2003). Nesse cenário, a artilharia do</p><p>sistema de justiça criminal aparece como peça-chave na produção</p><p>do genocídio, indicando o apetite incessante por carne negra.</p><p>O que se observa claramente é uma chancela social e jurídica</p><p>para uma atuação macabra do sistema de justiça criminal no Brasil.</p><p>Aqui, importante situar a indisponibilidade em se garantir uma leitura</p><p>constitucional que se oponha de frente às ações de extermínio</p><p>sistemático que vem assolando as comunidades periféricas em todo</p><p>o país. De forma incipiente, opera-se apenas a criminalização</p><p>pontual e precária de policiais sem qualquer implicação e censura</p><p>ao animus que baliza a produção do genocídio. Ou seja, há uma</p><p>conciliação do trato constitucional com a plataforma da segurança</p><p>pública, fazendo com que as mortes, as torturas e os desmandos</p><p>fiquem adstritos a uma interpretação que os situe como desvios</p><p>incidentais e não como padrão a ser desmobilizado.</p><p>O que se percebe, portanto, é que o racismo impede que qualquer</p><p>narrativa constitucional se aproxime dos massacres. Ou seja, é o</p><p>marco do direito constitucional que obstaculiza a proclamação do</p><p>terror de Estado, na medida em que não reconhece como um</p><p>ataque à ordem democrática os processos sistemáticos de</p><p>extermínio da população negra.</p><p>Essa constatação nos permite enxergar a complexidade com que</p><p>o genocídio se processa no Brasil. Trata-se de uma postura política</p><p>que, apesar de absorver parte das reivindicações da militância, tem</p><p>como baluarte essencial a mitigação da vida.</p><p>É essa dinâmica que torna compatível os dados aparentemente</p><p>paradoxais que acompanham a experiência social negra no país na</p><p>última década. De um lado, temos o ingresso de estudantes negros</p><p>e negras nas universidades pautando mudanças necessárias na</p><p>perspectiva de vida da juventude. De outro, esse mesmo</p><p>contingente experimenta uma vitimização homicida que só pode ser</p><p>comparada a locais que vivem guerras declaradas. (BRASIL, 2018).</p><p>De um lado, temos a edição de leis como a do feminicídio,</p><p>proclamada como um importante baluarte na defesa dos direitos das</p><p>mulheres (FLAUZINA, 2016b). De outro, vemos que, enquanto para</p><p>as mulheres brancas houve uma diminuição no número de mortes,</p><p>para as mulheres negras houve aumento substantivo dos</p><p>homicídios.</p><p>O que está em jogo, claramente, é a instalação de uma dualidade</p><p>fundamental para a consecução do genocídio. Esboça-se um</p><p>quadro em que se garante a imposição das sentenças de morte</p><p>como o trunfo inabalável da política de Estado, apesar das frestas</p><p>abertas pela militância em outras searas vendidas como prova da</p><p>benignidade da branquitude. Na terra da convivência pacífica das</p><p>raças, o terror genocida vai se consolidando com o uso de velhas</p><p>estratégias de distorção dos fatos, sendo as mazelas da população</p><p>negra narradas como fruto de sua inaptidão civilizatória, à despeito</p><p>do que se retrata como generosidade na cartela das supostas</p><p>concessões das elites.</p><p>É importante sinalizar que essa lógica se afirma inclusive em</p><p>momentos de ocupação institucional de setores ditos de “esquerda”,</p><p>celebrados como progressistas no contexto político brasileiro. Diante</p><p>dessa constatação, uma leitura implicada com as dinâmicas do</p><p>racismo no país necessariamente questiona os sentidos do que vem</p><p>sendo classificado como um estado de exceção. Na trajetória de</p><p>continuidades que tem balizado a relação entre a população negra e</p><p>a arena institucional, se pergunta: há que se falar de ruptura? O que</p><p>se entende por golpe? Em que medida o racismo estrutura esse</p><p>contexto político?</p><p>O racismo do golpe</p><p>Visualizar a dimensão da tragédia social brasileira passa</p><p>necessariamente por entender a forma como as elites operam para</p><p>a garantia de seus privilégios. Num desses raros, mas instrutivos</p><p>momentos da história do país, as disputas internas dos círculos do</p><p>poder extravasam as portas blindadas dos conchavos políticos e as</p><p>batalhas se dão a céu aberto.</p><p>No movimento do impeachment, que de maneira ilegal e ilegítima</p><p>usurpou a presidência de Dilma Rousseff, os embates se dirigiram</p><p>aos termos da concentração da renda; aos interesses ávidos do</p><p>agronegócio; às pretensões indisfarçáveis das plataformas</p><p>evangélicas; à privatização da riqueza do país. Todos esses</p><p>interesses escamoteados na retórica da corrupção que deu o salvo-</p><p>conduto para as arbitrariedades e distorções jurídicas que se</p><p>seguiram.</p><p>A manobra brusca e arriscada na tomada do poder por grupos</p><p>conservadores valeu-se de um vocabulário economicista, hermético,</p><p>pouco acessível às pessoas comuns. Assistimos ao golpe pela TV</p><p>estupefatos com os escândalos dos desvios de dinheiro</p><p>amontoados em apartamentos e contas no exterior, seguidos de</p><p>capítulos que tiveram desde ponderações jurídicas complexas de</p><p>pedaladas fiscais à comprovação de propriedade de apartamentos</p><p>decorados. O judiciário cumpriu seu papel em sentenciar</p><p>seletivamente os grupos derrotados e a mídia noticiou com prazer</p><p>cada operação espetaculosa da então redentora polícia federal.</p><p>Mas o golpe deixou um passivo de difícil superação, com um</p><p>governo ilegítimo, sem garantias de continuidade. Os</p><p>desdobramentos das delações fizeram com que a sangria da</p><p>perseguição política não estancasse como previsto e as peças do</p><p>quebra-cabeça geraram impaciência num mercado que vive de</p><p>resultados.</p><p>Dar inteligibilidade a esse processo e tentar de alguma forma</p><p>conferir legitimidade a um governo exposto pela sua decadência</p><p>ética passou a ser demanda da ordem do dia. Nos sucessivos</p><p>incidentes que abalam as bases da já frágil estrutura institucional, a</p><p>“crise” da segurança pública do Rio de Janeiro foi apropriada como</p><p>a cena perfeita para uma investida publicitária que pintasse o</p><p>quadro político com cores mais amenas.</p><p>O carnaval, rotulado como caótico em cada flash televisivo,</p><p>construiu a narrativa do caos. Apesar dos dados comprovarem que</p><p>não houve aumento dos incidentes criminais na capital fluminense</p><p>nas festividades de 2018 em relação ao ano anterior, as câmeras</p><p>relatavam o perigo iminente de se andar pelas ruas de uma cidade</p><p>tomada pela “bandidagem” (RAMOS, 2018). As imagens eram</p><p>muitas, eram perversas, eram negras. A saturação de flagrantes de</p><p>jovens negros no exercício da violência que lhes é creditada como</p><p>natural e intrínseca foi o ingrediente necessário para que a cultura</p><p>punitiva cumprisse seu papel.</p><p>No dia 16 de fevereiro de 2018, o presidente Michel Temer</p><p>decretou a intervenção militar das forças armadas no Rio,</p><p>reproduzindo uma fórmula desgastada, há muito sabida ineficiente,</p><p>na cartilha da segurança pública. Mas se os resultados em termos</p><p>da dita contenção da criminalidade se provaram pífios, o slogan da</p><p>punição operou com maestria. O terror deflagrado na direção da</p><p>população negra marginalizada da cidade pareceu finalmente dar os</p><p>sinais positivos que o governo tanto buscava.</p><p>Se os acordos de gabinetes e as intermináveis sessões do</p><p>Supremo Tribunal Federal traziam uma disputa política duvidosa</p><p>envolta num juridiquês de pouca apreensão, as medidas tomadas</p><p>no Rio traduziam a cara do golpe. Pôde-se, de forma pura e</p><p>cristalina, explicar que a agenda dos novos gestores do Brasil está</p><p>conectada com a suspensão das ações progressistas em curso,</p><p>dando conta da histórica demanda por controle e repressão. O</p><p>governo gritou em alto e bom som que a guinada conservadora</p><p>aprofundaria o muro gradeado em torno do segmento negro com a</p><p>garantia das armas. Se esses novos atores institucionais não</p><p>inventaram os termos dessa faceta do genocídio, que já vinha se</p><p>construindo por dentro da plataforma do dito governo popular, a</p><p>explicitação de que o derramamento de sangue</p><p>negro estava entre</p><p>as prioridades institucionais respondeu às demandas sociais</p><p>reprimidas. Nessa dinâmica, percebe-se que, nesse longo processo</p><p>de instabilidade política, o racismo opera como o bálsamo seguro a</p><p>que se pode recorrer para amainar as ansiedades sociais.</p><p>É essa faceta fundamental do que se entende por golpe que as</p><p>análises convencionais pautadas pelas lentes da branquitude</p><p>parecem não alcançar. As agendas da ordem econômica,</p><p>materializadas em propostas de reformas trabalhistas e tributárias</p><p>obscenas, em cortes nos orçamentos da saúde e da educação,</p><p>entre outras barbaridades anunciadas como progresso, não se</p><p>sustentam fora do crivo do racismo. Isso não só porque</p><p>concretamente as consequências das mudanças afetam de forma</p><p>desproporcional a população negra no Brasil, mas acima de tudo</p><p>porque sua própria enunciação só é possível pela sinalização de</p><p>que o país será retomado pelas mãos das quais nunca deveria ter</p><p>saído. A simbologia da ordem e do progresso passa</p><p>necessariamente por um discurso que declare sem reticências o</p><p>compromisso com a contenção da população negra no horizonte do</p><p>extermínio. É no casamento entre o discurso sedutor do liberalismo</p><p>de mercado e o terror racial que se encontram as formas de</p><p>legitimação desse empreendimento conservador.</p><p>Diante desse cenário, me interessa entender se, na perspectiva da</p><p>questão racial, a pavimentação desse contexto pode ser creditada</p><p>de forma exclusiva à tão denunciada ruptura política. Para tanto,</p><p>entendo ser necessário sublinhar o fato de que as bases</p><p>democráticas estão implicadas com dinâmicas que garantem uma</p><p>existência social diferenciada para brancos e negros.</p><p>Nesse tocante, a problematização das categorias antagonismo e</p><p>conflito, nos termos propostos por Frank Wilderson, ganha especial</p><p>relevância (WILDERSON III, 2003). Em sua obra, o autor sustenta</p><p>que as dinâmicas do terror de Estado se amoldam às prescrições do</p><p>racismo. Aqui, é importante pontuar que as disputas sangrentas</p><p>entre segmentos das elites têm um legado de violações e crueldade</p><p>de fácil comprovação histórica. Se atentarmos para o quadro</p><p>brasileiro, percebemos como a ditadura militar vulnerabilizou os</p><p>corpos politizados que ousaram desafiar suas estruturas. Nesse</p><p>processo brutal, o encarceramento, a tortura e o homicídio foram</p><p>direcionados a segmentos radicalizados das elites, maculando</p><p>corpos brancos de forma incontestável. Após anos de resistência, os</p><p>registros no âmbito da Comissão Nacional da Verdade reconhecem</p><p>a magnitude do terror imposto a esse segmento (PIRES, 2015) [ 15 ].</p><p>Esse processo, é importante sinalizar, foi em grande medida</p><p>desencadeado pela impressionante ascensão de Dilma Rousseff,</p><p>ex-combatente dos movimentos de resistência à ditadura, à</p><p>presidência da República.</p><p>Esse panorama é exemplificador daquilo que Wilderson denomina</p><p>por conflito, como marca da ruptura dos agrupamentos brancos na</p><p>órbita de sociedades estruturadas pelo racismo (WILDERSON III,</p><p>2003). O que se apreende da análise desse contexto é que as</p><p>oposições entre esses segmentos políticos têm a conciliação como</p><p>seu horizonte final. Isso porque se tratam de embates que tem a</p><p>perseguição de posturas políticas dissidentes como norte, não o</p><p>aviltamento gratuito de corpos taxados como perigosos à revelia de</p><p>sua atuação no mundo. A impressionante capacidade de</p><p>reabilitação de uma ex-guerrilheira identificada com o terror para a</p><p>ocupação do quadro mais significativo da República sinaliza a força</p><p>do sistema imunológico da branquitude. As sangrias internas não</p><p>comprometem a recuperação dos tecidos que sustentam as</p><p>plataformas de poder e a redenção de grupos e indivíduos é</p><p>possível com a emergência de novos arranjos e cenários políticos.</p><p>Se pautarmos essa realidade a partir das lentes decisivas da</p><p>questão racial, projeta-se um outro quadro. Nesse tocante, é</p><p>importante lembrar que as alcovas do sistema de justiça criminal no</p><p>período da ditadura militar aprofundaram os sentidos da barbárie</p><p>para os que passaram a ser classificados como “presos comuns”.</p><p>Tratam-se dos(as) encarcerados(as) cuja sangria não é</p><p>contabilizada nos registros históricos no universo das vítimas do</p><p>regime, e que têm suas trajetórias de dor naturalizadas como parte</p><p>da agenda de segurança pública do período. Aqui, não há a</p><p>politização do papel que o racismo cumpre naquele contexto de</p><p>restrições. A contenção dos corpos negros era, claramente, o</p><p>ingrediente que, ao lado do controle das dissidências políticas</p><p>declaradas, compunham a agenda da repressão. Entretanto, todo o</p><p>quinhão do terror do Estado dirigido a esse segmento social é lido</p><p>como dado natural, sem qualquer tipo de impacto nas lógicas de</p><p>reparação (FLAUZINA, FREITAS, 2017)</p><p>A análise desse contexto histórico abre espaço para</p><p>compreendermos o que Wilderson denomina como antagonismo em</p><p>sua formulação teórica (WILDERSON III, 2003). Diferentemente do</p><p>que ocorre com os corpos brancos, o desencadear de lógicas de</p><p>terror na direção de pessoas negras não carece de qualquer</p><p>justificativa fundada em práticas ilícitas ou contestatórias. Trata-se</p><p>de um tipo de “violência gratuita”, pontua o autor, que existe pela</p><p>ameaça que a negritude representa (WILDERSON III, 2003). Ou</p><p>seja, as pessoas negras não precisam estar engajadas em</p><p>performances de rebeldia política para serem consideradas</p><p>perigosas.</p><p>Essa leitura é chave explicativa do porquê o terror, materializado</p><p>em violência e brutalização, é, até hoje, o artigo mais vendido nas</p><p>comunidades periféricas do país, sem qualquer tipo de alteração</p><p>nas consciências. O racismo, em última instância, faz da presença</p><p>negra um crime que pode ser reprimido legitimamente pelas redes</p><p>truculentas do Estado. O “delito de ser negro”, como pontuou Abdias</p><p>do Nascimento, parece ser o grande crime imprescritível que</p><p>justifica a movimentação perversa do sistema de justiça criminal no</p><p>país (NASCIMENTO, 2014, p.290).</p><p>A compreensão das diferenças substanciais entre conflito e</p><p>antagonismo iluminam a debilidade das análises do golpe que não</p><p>tomam o racismo como variável central. Nessas teses míopes, o</p><p>processo de usurpação ilegal do poder é pintado como fruto de um</p><p>ataque ao Partido dos Trabalhadores e seus correligionários pela</p><p>latitude de suas ações engajadas. A conclusão é invariavelmente a</p><p>mesma: a derrota dessa plataforma política equivale à derrota do</p><p>povo e de suas aspirações.</p><p>Mesmo as conjecturas que oferecem uma visão mais sofisticada</p><p>desse contexto, sinalizando para a necessidade de uma autocrítica</p><p>ao modelo adotado pelos governos petistas − nas aviltantes</p><p>concessões econômicas ao mercado e na consolidação de alianças</p><p>políticas espúrias −, tendem a não problematizar o que está no</p><p>centro nervoso desse empreendimento: o fato de que as</p><p>deformidades pautadas pelos golpistas não estão em oposição</p><p>completa ao substrato da democracia cultivada pelos governos</p><p>anteriores.</p><p>Essa assertiva se sustenta se levarmos a sério o pensamento</p><p>engajado que, como vimos, situa o direito à vida como o termômetro</p><p>fundamental na avaliação da experiência social da população negra.</p><p>Se o farol da vida é a métrica que determina a viabilidade de se</p><p>afirmarem os marcos democráticos, é fácil compreender que o golpe</p><p>intensifica os ataques e inova sua metodologia, sem alterar</p><p>substantivamente o trato que já estava delineado.</p><p>O que fica claro é que a marca das gestões dos governos petistas</p><p>estava afinada com a afirmação da inclusão social. Inclusão essa</p><p>que se deu pelas inúmeras investidas dos movimentos sociais nas</p><p>brechas abertas a punho nos engessados edifícios institucionais. As</p><p>narrativas de cada “vitória” na Esplanada, no que se refere aos</p><p>direitos das mulheres, aos direitos indígenas, LGBT, quilombolas,</p><p>entre tantos outros, indicam a dificuldade de se fazer com que a</p><p>retórica se transmutasse em concretude. Por certo, não pactuo aqui</p><p>com o discurso cínico que nega os ganhos efetivos para a</p><p>população com as políticas sociais desenvolvidas no período. Estou</p><p>chamando atenção para o fato de que o fundamento da propaganda</p><p>política foi o de converter toda e qualquer conquista</p><p>em benesse</p><p>gratuita e natural das trincheiras do governo dito popular. Em</p><p>tempos de golpe, acentua-se a visão romântica que nos impede de</p><p>enxergar as dimensões conservadoras que progressivamente</p><p>conquistaram espaço nos celeiros que um dia se afirmaram como</p><p>de esquerda.</p><p>Mais importante para a presente reflexão, há que se compreender</p><p>que, apesar das investidas da militância negra, a plataforma do</p><p>direito à vida foi assumida de forma meramente performática,</p><p>permitindo aos Estados atuarem em suas agendas de segurança</p><p>pública na produção sistemática da morte. (FREITAS, 2015). Nessa</p><p>dinâmica, o centro nervoso do empreendimento genocida jamais foi</p><p>enfrentado. O que se tentou vender como possibilidade foi uma</p><p>espécie de conquista progressiva de direitos, em que o fim das</p><p>baixas figurou sempre como a próxima meta a ser atingida. Trata-se</p><p>de uma espécie de ressignificação da democracia racial no país, em</p><p>que a vocalização do racismo pelas instâncias governistas serviu de</p><p>escudo para a continuidade do extermínio. Nesse saldo, toda e</p><p>qualquer crítica era tomada como radical, todo avanço lido como</p><p>generosidade, toda morte como registro de uma tragédia inevitável.</p><p>É a apropriação dos termos dessa cartilha que os processos</p><p>golpistas vão aprofundar. O que ocorre nesse novo momento é uma</p><p>alteração fundamental da retórica institucional finalmente alinhada</p><p>com as ansiedades sociais conservadoras. Após uma década de</p><p>sufocamento, o discurso aberto das demandas do racismo, da</p><p>misoginia e das fobias LGBT pode ser bradado sem</p><p>constrangimento. A reação às conquistas periféricas dos</p><p>movimentos sociais em suas dimensões práticas e simbólicas está</p><p>dada. Nessa paisagem, as políticas públicas essenciais fragilmente</p><p>enraizadas na agenda institucional perecem, enquanto o centro</p><p>nervoso do ataque à vida, há muito pavimentado, é incrementado.</p><p>Diante disso, o que se pode constatar é que uma das disputas</p><p>essenciais do golpe é pela metodologia em que se processa o</p><p>genocídio. Não no sentido da ruptura com seus preceitos</p><p>fundamentais, como querem alardear os defensores do governo</p><p>deposto, mas pela forma em que esse será instrumentalizado. As</p><p>estruturas já ordenadas na dinâmica institucional permitem que a</p><p>gula da nova capangagem do Estado seja saciada de forma</p><p>impiedosa no extermínio da juventude, no encarceramento</p><p>vertiginoso das mulheres e em todas as outras mazelas deflagradas</p><p>pelo arrefecimento da agenda da segurança pública no país. Mais, a</p><p>fragilização de todas as outras arenas sociais implica o sufocamento</p><p>das comunidades negras, reclamando vidas em várias frentes a</p><p>partir da ampla latitude do genocídio.</p><p>Nesse cenário, o que se percebe são os distintos impactos dessa</p><p>guinada política devastadora no Brasil. Num primeiro plano, temos a</p><p>estigmatização das plataformas e dos partidos que se</p><p>autoidentificam como de esquerda, por meio da criminalização</p><p>seletiva dos atores envolvidos em esquemas de corrupção e a</p><p>humilhação pública de suas principais lideranças. Nesse processo</p><p>violento, a tentativa de desmobilização desses grupos políticos</p><p>passa pelo descredenciamento de biografias e agendas associadas</p><p>a tudo o que se entenda por popular. Como contraponto, entra em</p><p>cena a retórica da modernidade e do desenvolvimento, na venda do</p><p>agro como tech e da privatização como processo de moralização</p><p>das estruturas viciadas do Estado. No alvejamento de segmentos</p><p>políticos das elites, vemos a sangria de estruturas que levaram</p><p>décadas para se sedimentar. Apesar das baixas inevitáveis, o que</p><p>se pressente sem maiores surpresas é a busca por algum tipo de</p><p>composição que não tarda a chegar. Num ambiente de maior</p><p>polarização e embates acirrados, fica claro que a democracia</p><p>encontrará uma nova equação para acomodar as vocações de todos</p><p>os espectros políticos patentes, desde que sigam abrigando a</p><p>cartilha do não desafio do eixo dos privilégios mais caros às elites.</p><p>Do outro lado desse panorama, estão as mazelas pautadas para a</p><p>população negra e suas lideranças. Nessas trincheiras, a resposta</p><p>institucional se alinha ao antagonismo que não tem em seu</p><p>horizonte a possibilidade da conciliação. Nessa dinâmica perversa,</p><p>a morte é o registro que cala mais fundo na lógica do terror de</p><p>Estado que vige para esse segmento populacional em tempos de</p><p>ditadura declarada, oficiosa ou na democracia. Assim, fica fácil</p><p>concluir que há uma continuidade macabra na direção dos corpos</p><p>negros independentemente do regime político constituído. A</p><p>fungibilidade da negritude não representa uma marca pontual, mas</p><p>constituinte dos marcos democráticos (VARGAS, 2017).</p><p>Por isso, a demanda pela reabilitação da democracia nos termos</p><p>propostos pelos críticos do golpe é extremamente duvidosa para os</p><p>que politizam o racismo de forma consequente. Do ponto de vista da</p><p>construção de uma agenda que supere as entranhas do genocídio,</p><p>o passado próximo não é redentor do futuro que apavora. Se, de</p><p>forma compreensível, muitos(as) estiveram dispostos(as) a se</p><p>alinhar pragmaticamente às plataformas políticas “progressistas” no</p><p>conturbado processo eleitoral de outubro passado, no que diz</p><p>respeito à uma teorização comprometida da questão racial há que</p><p>se enfrentar as contradições postas sem vacilações.</p><p>Para um povo que vive sob a ameaça do extermínio, as perguntas</p><p>tornadas heréticas pelo senso comum crítico tem de prevalecer.</p><p>Afinal de contas, qual o real significado da democracia no Brasil?</p><p>Que tipo de implicações a assunção de seus preceitos tem para a</p><p>resistência ao racismo? Quais os obstáculos impostos pela cartilha</p><p>constitucional à um enfrentamento direto da violência “por todos os</p><p>meios necessários”?</p><p>São essas e outras tantas formulações desconcertantes que nos</p><p>interessam postular a fim de encarar os efeitos nefastos do golpe.</p><p>As rupturas políticas dos acordos selados das elites devem servir</p><p>para que possamos interpelar a espinha dorsal do empreendimento</p><p>que historicamente nos aniquila. Nas entranhas do genocídio, o</p><p>golpe é uma oportunidade de radicalização, não um chamado à</p><p>nostalgia de tempos duros que querem se apresentar como</p><p>pacíficos.</p><p>É assim, na vocalização sem reticências da nossa tragédia, que</p><p>se pode reconfigurar as estruturas sociais que tem feito do Brasil o</p><p>país do carnaval e dos cemitérios clandestinos. É no reclame dos</p><p>corpos aviltados pela sua negritude, dos jovens friamente</p><p>assassinados no Cabula e de Marielle Franco, que pautamos nossa</p><p>caminhada. É na certeza de que a resistência negra é força motriz</p><p>para a promoção da igualdade, que andamos firmes, apostando</p><p>sem vacilação nas pegadas efêmeras das utopias que nos ajudam a</p><p>sonhar, que nos fortalecem nas batalhas, que nos redimem da dor.</p><p>Referências Bibliográficas</p><p>BRASIL. Atlas da violência 2018. Brasilia: IPEA, Forum Brasileiro de</p><p>Segurança Pública, 2018.</p><p>CARDOSO, Edson Lopes. Negro, não. A opinião do jornal Irohin.</p><p>Brasilia: Brado Negro, 2015.</p><p>FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. A medida da dor: politizando o</p><p>sofrimento negro. In: FLAUZINA, Ana L. P.; PIRES, Thula R. O.</p><p>(Org.). Encrespando – Anais do I Seminário Internacional:</p><p>Refletindo a Década Internacional dos Afrodescendentes (ONU,</p><p>2015-2024). Brasília: Brado Negro, 2016a.</p><p>______. O feminicídio e os embates das trincheiras feministas.</p><p>Discursos Sediciosos. Ano 20, números 23/24, 2016b, pp. 95-106.</p><p>FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro; FREITAS, Felipe da Silva. Do</p><p>paradoxal privilégio de ser vítima: terror de estado e a negação do</p><p>sofrimento negro no Brasil. Revista Brasileira de Ciências</p><p>Criminais. vol.135, ano 25, São Paulo: RT, set. 2017, pp. 49- 71.</p><p>FREITAS, Felipe da Silva. Discursos e práticas das políticas de</p><p>controle de homicídios: uma análise do “pacto pela vida” do</p><p>Estado da Bahia. (2011-2014). Dissertação de mestrado.</p><p>Programa de pós-graduação em Direito. Universidade de Brasília,</p><p>2015.</p><p>JAMES, Joy. The Dead Zone: Stumbling at the Crossroads of Party</p><p>Politics, Genocide, and Postracial Racism, South Atlantic Quarterly</p><p>108, 459-481, ATLANTIC Q., n. 3, Summer 2009.</p><p>MBEMBE, A. Necropolitics, 11-40, Public Culture, Duke University,</p><p>2003.</p><p>NASCIMENTO, Abdias.</p><p>O Genocídio do negro brasileiro: processo</p><p>de um racismo mascarado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.</p><p>NASCIMENTO, Elisa Larkin. Abdias do Nascimento. Coleção</p><p>Grandes Vultos que Honraram o Senado. Brasília: Senado</p><p>Federal, 2014.</p><p>PATTERSON, William. We Charge Genocide: The Crime of</p><p>Government Against the Negro People. New York: International</p><p>Publishers, 1970.</p><p>PIRES, Thula Rafaela de Oliveira. Colorindo memórias e redefinindo</p><p>olhares: ditadura militar e racismo no Rio de Janeiro. (Relatório de</p><p>pesquisa). Rio de Janeiro: Comissão da Verdade do Rio, 2015.</p><p>______. Criminalização do racismo: entre política de</p><p>reconhecimento e meio de legitimação do controle social sobre os</p><p>negros. Brasília: Brado Negro, 2016.</p><p>RAMOS, Silvia (coord.). À deriva: sem programa, sem resultado,</p><p>sem rumo. Rio de Janeiro: Observatório da Intervenção/CESec,</p><p>abril de 2018.</p><p>WILDERSON III, Frank. Gramsci’s Black Marx: Whiter the Slave in</p><p>Civil Society? Social Identities, v.9, n.2, 2003, pp.225-240.</p><p>VARGAS, João H. “Desidentificação”: a lógica de exclusão antinegra</p><p>do Brasil. In: VARGAS, João; PINHO, Osmundo. Antinegritude: o</p><p>impossível sujeito negro na formação social brasileira. Cruz das</p><p>Almas: EDUFRB, 2016.</p><p>Quem é o inimigo? Retóricas de inimizade nas rede</p><p>sociais no período 2014-2017</p><p>Esther Solano Gallego</p><p>Introdução: o inimigo</p><p>Democracia e violência convivem. Contrariamente à retórica</p><p>democrática hegemônica, nas periferias do mundo impera a violência</p><p>em coexistência macabra com o extermínio. Instaura-se um estado</p><p>de exceção em escala global, com a guerra e a brutalidade se</p><p>tornando necessária para o funcionamento democrático na realidade</p><p>pós-colonial.</p><p>Para legitimar esta guerra planetária se faz necessária uma figura</p><p>que simbolize medos e angústias e justifique o terror que opera</p><p>cotidianamente nos países periféricos com o beneplácito social: o</p><p>“inimigo”. O “inimigo” torna-se a figura retórica que justifica todas as</p><p>violências e, assim, o medo torna-se o argumento central da política.</p><p>As sociedades pós-coloniais tornam-se sociedades de inimizade</p><p>(MBEMBE, 2017). A questão é que o poder retórico do “inimigo” é</p><p>imenso e as próprias populações periféricas assumem, adotam e</p><p>naturalizam esta ideia. O violentíssimo princípio “bandido bom é</p><p>bandido morto” simboliza este processo.</p><p>O inimigo é um ser inferiorizado, despojado de seus atributos de</p><p>cidadão, que passou por um processo de desumanização, de</p><p>descaracterização como sujeito de direitos; portanto, ele é matável,</p><p>agredível e descartável. O estigma faz com que o sujeito que é</p><p>enquadrado nele seja visto como diminuído ou estragado. A pessoa</p><p>e o coletivo estigmatizados são codificados como desviantes, como</p><p>sujeitos deteriorados que devem ser olhados com menosprezo</p><p>(GOFFMAN, 1980). O estigma afasta sujeitos e invalida a</p><p>interlocução, já que coloca o outro em posição de absoluta redução</p><p>social, de não sujeito, anulando sua identidade (MELO, 2000). As</p><p>relações sociais se resolvem desta forma na dicotomia social entre</p><p>salvadores e condenados, “homem de bem” e bandido.</p><p>Afinal, o inimigo é o indesejável para o capital, para uma sociedade</p><p>racista e para uma sociedade patriarcal. E o indesejável deve ser</p><p>exterminado. Para que este inimigo seja aniquilado pela máquina do</p><p>Estado penal permanente, o processo de criminalização contra o</p><p>indesejável é construído social e politicamente, numa lógica</p><p>higienista de compreensão hiperpunitiva da realidade, como a perda</p><p>da visão humanista do Estado e a proeminência de um modelo</p><p>policial e uma justiça penal cada vez mais rígidos, que sustentam as</p><p>práticas do mercado global. Uma cultura de violência punitiva que</p><p>resolve os desafios sociais mais complexos com base no</p><p>policiamento, numa dialética neoliberal de desmantelamento do</p><p>Estado social e fortalecimento do Estado penal. (WACQUANT, 2008).</p><p>Letalidade policial e encarceramento em massa são instrumentos de</p><p>uma política de Estado que criminaliza e apaga este inimigo-</p><p>indesejável.</p><p>Apesar dos diversos direitos humanos consagrados na Constituição</p><p>Federal de 1988, o Estado não tem obtido sucesso em efetivá-los, de</p><p>forma que apenas uma parcela diminuta da sociedade brasileira pode</p><p>exercer seus direitos, enquanto a maior parte torna-se o foco do controle</p><p>social penal, reforçando, por conseguinte, a seletividade do sistema penal</p><p>levada a cabo por meio do processo seletivo de criminalização (...)</p><p>Destarte, diante da necessidade de conter a massa de excluídos</p><p>proveniente do capitalismo globalizado, o Estado maximiza o seu poder</p><p>punitivo e minimiza a efetividade dos direitos humanos. (BOLDT;</p><p>KROHLING, 2011, p. 36).</p><p>O processo estatal de desqualificação e desumanização das</p><p>“classes perigosas” (COIMBRA, 2001), que conta com o apoio da</p><p>imprensa e do poder judiciário, legitima a violência do Estado contra</p><p>aqueles considerados não cidadãos, impondo uma política de</p><p>preservação do status quo que cria dispositivos de punição e</p><p>disciplinamento para os que estão fora dos padrões da norma</p><p>estabelecida pelo “cidadão de bem”, com o total protagonismo do</p><p>discurso do estabelecimento da ordem. O medo é gerenciado como</p><p>instrumento político, ampliando o controle sobre os segmentos</p><p>indesejados. A estratégia da securitização do conflito social diante da</p><p>ameaça contínua de quebra da ordem acaba sendo naturalizada</p><p>cotidianamente pelos cidadãos, a partir da elaboração pelo Estado</p><p>de um discurso de cidade do medo e da insegurança (ZANIN;</p><p>LISDERO, 2013) Ordem, autoridade, hierarquia, respeito às normas,</p><p>à moral e os “bons costumes”: em suma a militarização da vida em</p><p>sociedade:</p><p>Entenda-se por militarização o processo de adoção e uso de modelos</p><p>militares, conceitos e doutrinas, procedimentos e pessoal, em atividades</p><p>de natureza civil. A militarização é crescente quando os valores do</p><p>Exército se aproximam dos valores da sociedade. Quanto maior o grau de</p><p>militarização, mas tais valores se superpõem (ZAVERUCHA, 2006, p. 30).</p><p>O espaço urbano securitizado deriva na metrópole punitiva (DE</p><p>GIORGI, 2006), constituindo-se assim como espaço de controle ou</p><p>um novo panóptico em decorrência do regime de produção pós-</p><p>fordista no qual proliferam os mecanismos de vigilância, segregação,</p><p>punição preventiva, identificação de grupos de risco e obstáculo das</p><p>interações sociais.</p><p>Um dos grandes aliados do aparato estatal neste processo de</p><p>construção social do dissidente-inimigo é o poder judiciário, por meio</p><p>de um processo de utilização do instrumento legal da tipificação</p><p>como crime do conflito social. Lembramos, por exemplo, da Lei de</p><p>Segurança Nacional, que perpetua o ideário do inimigo interno,</p><p>próprio do período ditatorial, e cria espaços jurídicos de exceção</p><p>(AGAMBEN, 2004). Essa lei − a 7.170, de 1983, com base na qual</p><p>foram enquadrados dois ativistas em outubro de 2013 −, por</p><p>exemplo, é um dispositivo criado pela ditadura civil-militar como parte</p><p>da Doutrina de Segurança Nacional de combate ao inimigo interno, e</p><p>que tipifica como crime “incendiar, depredar, provocar explosão,</p><p>praticar atentado pessoal ou atos de terrorismo, por inconformismo</p><p>político ou para obtenção de fundos destinados à manutenção de</p><p>organizações políticas clandestinas ou subversivas”. O inimigo</p><p>interno de hoje não é mais o dissidente político. Esta categoria se</p><p>amplia a todos os indesejáveis que não se encaixam na lógica</p><p>capitalista de produção e consumo:</p><p>Uma nova ‘Doutrina de Segurança Nacional’ tem hoje como seu ‘inimigo</p><p>interno’ não mais os opositores políticos, mas os milhares de miseráveis</p><p>que perambulam por nossos campos e cidades. Os milhares de sem teto,</p><p>sem terra, sem casa, sem emprego que, vivendo miseravelmente, põem</p><p>em risco a “segurança” do regime (COIMBRA, 2001: 84).</p><p>Esse indesejável não segue os padrões de comportamento</p><p>socialmente aceitos, seus códigos de sociabilidade diferem, e,</p><p>portanto, deve ser condenado. A imprensa, então, deixa de ser</p><p>crítica das instituições para se transformar numa aliada do status</p><p>quo, reproduzindo um discurso de repressão e transformando-se em</p><p>juiz (RABINOVICH, MAGRINI, 2011) A imprensa como instrumento</p><p>essencial</p><p>na construção binária cidadão de bem vs. bandido, do</p><p>discurso moralista e sentenciador, da dialética do castigo, da</p><p>hiperexposição do público a programas policialescos, da exploração</p><p>do medo:</p><p>No se trata de una sustitución de funciones − el periodismo suplantando a</p><p>los magistrados −, sino de una serie de desplazamientos de prácticas que</p><p>antes operaban, al menos visiblemente, en sus respectivas esferas de</p><p>influencia, actuando sobre terrenos separados y separables. Se trata de un</p><p>modelo particular de investigación en que los conflictos son definidos,</p><p>enjuiciados y hasta castigados periodísticamente. Se han confundido los</p><p>roles, superpuesto las expectativas, entre la justicia y la prensa. Vemos</p><p>cómo los medios se arrogan ciertas funciones que antes permanecían</p><p>petrificadas en los tribunales; pero cómo también los magistrados se</p><p>pasean displicentemente por televisión para decir aquello que ni se</p><p>atreverían siquiera a balbucear en el expediente (RODRIGUEZ, 2000: 32).</p><p>Fica desta forma estabelecida a justiça do espetáculo. Um tipo de</p><p>justiça na qual os conflitos são definidos e julgados pela opinião</p><p>pública, conduzida pelos meios de comunicação hegemônicos, com</p><p>papéis confusos e sobrepostos entre imprensa e justiça. A imprensa</p><p>tem atribuições que eram específicas dos tribunais (RODRIGUEZ,</p><p>2000) e os julgamentos são televisados numa lógica de Big Brother.</p><p>O controle da justiça é exercido pela imprensa, ou seja, uma</p><p>entidade privada, e por uma sociedade que assiste à teatralização do</p><p>processo penal, a qual provoca, em última instância, anseios de</p><p>linchamento em praça pública. Do Mensalão à Lava Jato, show</p><p>business, audiência, Ibope são agora elementos desta justiça do</p><p>espetáculo:</p><p>No “processo penal do espetáculo”, os valores típicos da jurisdição penal</p><p>de viés liberal (“verdade” e “liberdade”) são abandonados e substituídos</p><p>por um enredo que aposta na prisão e no sofrimento imposto a</p><p>investigados e réus como forma de manter a atenção e agradar ao público;</p><p>isso faz com que a atividade processual cada vez mais limite-se a</p><p>confirmar a hipótese acusatória, que faz as vezes do roteiro do</p><p>espetáculo[...]. O direito, então, passa a estar subordinado à lógica da</p><p>hipercultura midiática-mercantil (CASARA, 2017, p. 160-161).</p><p>Afinal, quem é este inimigo, estigmatizado, rotulado,</p><p>desumanizado, vítima da imprensa-juiz e da justiça do espetáculo?</p><p>Qualquer um que as estruturas dominantes decidam: o jovem negro</p><p>periférico, o sem-teto, o pobre, a feminista, o manifestante, o</p><p>professor “esquerdopata”, o estudante “maconheiro”, o político</p><p>corrupto, o petista. Todos eles podem ser os “bandidos” porque</p><p>bandido, na verdade, é um conceito vazio, um conceito que nada</p><p>significa, visto que pode significar tudo. Bandido é um significante</p><p>vazio (LACLAU, 2013) que aglutina vários conteúdos que vão</p><p>mudando conforme mudam os processos históricos e sociais. Em um</p><p>contexto racista, bandido é o negro. Em tempos de lavajatismo,</p><p>bandido é o político corrupto, em especial o petista. Em tempos de</p><p>reorganização conservadora, bandida pode ser a mulher que luta por</p><p>seus direitos reprodutivos ou professores que se identificam com</p><p>posições políticas à esquerda...</p><p>O inimigo no Facebook</p><p>Alguns exemplos desta retórica do inimigo podem ser vistos no</p><p>levantamento realizado junto com os pesquisadores Márcio Moretto</p><p>Ribeiro e Pablo Ortellado, da Universidade de São Paulo, que</p><p>cartografa as páginas do Facebook com conteúdos políticos de</p><p>direita, cuja atuação foi intensa no período 2014-2017. Entre as</p><p>páginas com maior número de seguidores naquela rede social,</p><p>selecionamos as do campo conservador/ de direita no Brasil que,</p><p>durante o período citado, se organizaram em torno de uma forte</p><p>retórica antipetista. Cada ponto no diagrama abaixo representa uma</p><p>página, e seu tamanho é proporcional ao número de usuários que</p><p>interagiu com ela no período investigado. A ligação entre os pontos</p><p>representa o número de usuários que interagiram com cada uma das</p><p>páginas. As páginas com mais leitores em comum se aproximam e</p><p>formam agrupamentos (clusters) identificados pelas cores; eles</p><p>podem ser interpretados como comunidades de leitores.</p><p>Identificamos quatro comunidades: uma com as páginas mais</p><p>populares do campo, como Bolsonaro ou MBL (azul), que seriam</p><p>uma espécie de porta de entrada para novos leitores; um campo de</p><p>apoiadores de ações policiais (laranja); o campo de combate à</p><p>corrupção (verde); e, por fim, um campo que combina conservadores</p><p>no sentido moral com liberais no sentido econômico (roxo).</p><p>Figura 1. Direitas no Facebook. Janeiro 2017. Autoria de Márcio</p><p>Moretto</p><p>Escolhemos dois clusters para este estudo. O primeiro deles é o</p><p>cluster policial, que reúne páginas de exaltação ao trabalho da</p><p>polícia, e o segundo o cluster anticorrupção, que agrupa páginas de</p><p>denúncia sobre corrupção política e apoio ao combate à mesma.</p><p>Para o primeiro grupo, o inimigo é o “bandido”, o “criminoso”, o</p><p>“ladrão”. Para o segundo, o inimigo é o “corrupto”, o “petista”, o</p><p>“comunista”.</p><p>As páginas policiais</p><p>Apresentamos a seguir as principais páginas de Facebook neste</p><p>cluster. Cada ano foi dividido em dois bimestres, já que a</p><p>popularidade/ visibilidade de cada uma dessas páginas vai mudando</p><p>ao longo do tempo:</p><p>2014-1 Eu nasci para ser policia, Amigos da Rota, Clube dos</p><p>homens, Apoio a Polícia Militar, Campanha do Armamento,</p><p>Coronel Telhada;</p><p>2014-2 Apoio a Policia Militar, Eu nasci para ser Polícia, Amigos da</p><p>Rota, Sargento Alexandre, Apoio Policial, Coronel Telhada;</p><p>2015-1 Sargento Alexandre, Amigos da Rota, Eu nasci para ser</p><p>Polícia, Coronel Telhada, Rearme, Apoio Policial, Campanha do</p><p>Armamento;</p><p>2015-2 Campanha do Armamento, Eu nasci para ser Policia,</p><p>Sargento Alexandre, Apoio Policial, Coronel Telhada, Amigos da</p><p>Rota;</p><p>2016-1 Major Olímpio, Coronel Telhada, Sargento Alexandre,</p><p>Campanha do Armamento, Apoio Policial, Amigos da Rota,</p><p>Policia no Sangue, Rearme, Fortaleza online;</p><p>2016-2 Campanha do Armamento, Sargento Alexandre, Major</p><p>Olímpio, Orgulho de ser policia, homens diferenciados, Apoio</p><p>Policial, Coronel Telhada, Rearme, Fortaleza online;</p><p>2017-1 Apoio a Polícia Militar, Eu nasci para ser polícia, Amigos da</p><p>Rota, Sargento Alexandre, Apoio policial, Coronel Telhada, Major</p><p>Olímpio, Campanha do armamento;</p><p>Ao longo dos anos 2014-2017, a narrativa destes grupos é clara e</p><p>pode ser resumida na famosa frase “direitos humanos para humanos</p><p>direitos”. A política de direitos humanos estaria destinada a proteger</p><p>o bandido, o criminoso, enquanto os homens de bem e as forças de</p><p>segurança pública estariam desprotegidas, o que é considerado uma</p><p>absoluta inversão moral: “não sinta pena do bandido, pois o bandido</p><p>não sente pena de você. A única pena que ele merece é a pena de</p><p>morte”. Assim, os “marginais” não deveriam ser defendidos como se</p><p>fossem “coitados”, “excluídos da sociedade”. Deveriam, sim, ser</p><p>tratados como “vagabundos”, e não “valorizados”</p><p>Para estes grupos, os direitos humanos reproduzem a lógica do</p><p>bandido-vítima, quando, na verdade, a real vítima da violência</p><p>estrutural brasileira seria o homem de bem. Este cidadão de bem</p><p>estaria totalmente desprotegido pelo Estado, enquanto o “bandido”</p><p>seria excessivamente protegido por aqueles que defendem os</p><p>“direitos humanos”.</p><p>Portanto, a única saída imediata possível para esta desproteção</p><p>dos “cidadãos decentes” seria a liberação do porte de arma para que</p><p>cada cidadão garantisse sua própria segurança. O direito ao porte de</p><p>arma é uma política pública essencial para estes grupos: “se o</p><p>Estado não nos protege, nós deveríamos ter o direito de nos</p><p>protegermos”. Como? Com direito a ter uma arma.</p><p>A grande maioria dos posts destes grupos são vídeos de policiais −</p><p>principalmente policiais militares − em serviço, exaltando o preparo e</p><p>a eficácia dos mesmos no combate ao crime, em situações</p><p>totalmente adversas. Se o cidadão de bem “está desprotegido pelo</p><p>Estado”, o policial “o está ainda mais”, porque enfrenta situações de</p><p>risco diário, “abandonado” pelo aparelho estatal que o deveria</p><p>proteger e apoiar. O “Estado abandona”, a justiça</p><p>incluía desde organizações nacionalistas</p><p>extremistas até jovens manifestantes que mesclavam a</p><p>retórica de uma “antipolítica” rasa − “contra tudo e contra</p><p>todos” − com um liberalismo difuso, passando por grupos de</p><p>skinheads, monarquistas, defensores do retorno da ditadura</p><p>militar, grupos religiosos conservadores e cidadãos de classe</p><p>média com um extemporâneo e caricato discurso</p><p>anticomunista somado a um genérico sentimento</p><p>anticorrupção.</p><p>I –</p><p>2 –</p><p>Tal heterogeneidade dos manifestantes e dos atores políticos</p><p>envolvidos no processo possibilitou – e possibilita – uma</p><p>multiplicidade de narrativas sobre os sentidos e os significados de</p><p>junho, trazendo a disputa também para o campo simbólico. Nessa</p><p>disputa pela memória, algumas explicações e análises têm ganhado</p><p>centralidade e relevância nos debates do campo progressista, entre</p><p>as quais:</p><p>a percepção das “Jornadas de Junho” dentro de um contexto</p><p>global de desilusão com a democracia de matriz liberal e de</p><p>falência dos modelos clássicos de representação política, com</p><p>os questionamentos à “política tradicional” partindo</p><p>principalmente da juventude (GOHN, 2014). No Brasil, em</p><p>2013, essa desilusão aparecia, de forma distinta, tanto entre</p><p>os jovens da classe média tradicional quanto entre os das</p><p>regiões periféricas, vinculados aos segmentos que</p><p>ascenderam socialmente e se beneficiaram das políticas</p><p>implementadas durante os anos dos governos petistas;</p><p>o esgotamento do “modelo petista” ou “lulista”, baseado em</p><p>políticas distributivistas e no aumento do papel do Estado, que,</p><p>no entanto, tinha por limite a incapacidade − ou a falta de</p><p>vontade política – de realizar reformas estruturais ou de</p><p>radicalizar a democracia brasileira (IASI, 2013).</p><p>Neste sentido, pode-se afirmar que o ciclo de manifestações e</p><p>protestos de rua iniciado em 2013 demonstrou ser a expressão mais</p><p>visível do esgotamento de um modelo político que começou a se</p><p>estruturar durante o processo de transição democrática e atingiu o</p><p>seu auge nos anos Lula. Tal modelo combina, por um lado, a</p><p>conciliação entre as forças políticas que ocupam o executivo e</p><p>setores que controlam o congresso através da distribuição de</p><p>cargos, verbas públicas e emendas parlamentares, garantindo a</p><p>formação de uma maioria parlamentar − naquilo que Marcos Nobre</p><p>chamaria de “peemedebismo” − e a consequente blindagem do</p><p>executivo e, por outro, já nos anos Lula, um “reformismo fraco” que</p><p>aposta na redução da pobreza sem enfrentar a ordem, dentro de</p><p>uma lógica de conciliação de classes (ver NOBRE, 2013 e SINGER,</p><p>2012 e 2018).</p><p>Ao esgotamento desse modelo somam-se, externamente, os</p><p>impactos de uma prolongada crise econômica global, bem como os</p><p>rearranjos na ordem mundial, decorrente, dentre outros fatores, da</p><p>reação das potências centrais à relativa perda de influência por elas</p><p>sofrida desde a década passada (ver FERNANDES, 2016) e,</p><p>internamente, uma série de questões conjunturais, entre as quais a</p><p>incapacidade do governo petista em responder às demandas da</p><p>sociedade que vieram à tona em 2013 e de rearticular sua base de</p><p>apoio social, optando por manter a política conciliatória, traduzida,</p><p>por vezes, em escolhas econômicas extremamente questionáveis.</p><p>Porém, nas eleições presidenciais de 2014, as mais disputadas</p><p>desde 1989, a presidenta Dilma Rousseff acabaria sendo reeleita,</p><p>derrotando Aécio Neves, ex-governador de Minas Gerais,</p><p>contrariando assim inúmeras análises feitas a partir de 2013, que</p><p>identificavam nos protestos de junho um sentimento geral de</p><p>mudança que poderia se refletir nos resultados do pleito. Só que,</p><p>mais uma vez, o segundo turno acabou sendo disputado pelas</p><p>coligações lideradas pelo PT e pelo PSDB, respectivamente, com a</p><p>presidenta sendo vitoriosa por estreita margem (51,64 % a 48,36%)</p><p>e com o eleitorado profundamente dividido.</p><p>Com isto, nos primeiros meses após a reeleição, assiste-se, por</p><p>um lado, à tentativa da presidenta reeleita de recompor sua base de</p><p>apoio no congresso e de reeditar o pacto lulista, através da</p><p>indicação de inúmeros nomes de perfil mais conservador e/ ou</p><p>ligados ao campo do “peemedebismo” e, por outro, a manutenção</p><p>da polarização política existente na sociedade, alimentada pela</p><p>recusa de Aécio Neves e do PSDB em reconhecer o resultado das</p><p>eleições, contestando-os, inclusive, na justiça. O fracasso da</p><p>estratégia presidencial de recomposição da “governabilidade” e a</p><p>insatisfação das bases tradicionais do PT e da esquerda em geral</p><p>com essa política de conciliação, que levou, entre outras coisas, à</p><p>adoção de políticas de austeridade econômica que contrariavam os</p><p>compromissos assumidos por Dilma durante a campanha, acabaram</p><p>levando a presidenta para um crescente isolamento.</p><p>A continuidade e o aprofundamento da chamada Operação Lava</p><p>Jato, com novas denúncias sobre pagamento de propinas e outras</p><p>irregularidades na Petrobras, a clara postura oposicionista dos</p><p>principais meios de comunicação do país, a piora da crise</p><p>econômica e os inúmeros equívocos da articulação política do</p><p>governo Dilma agravariam ainda mais esse quadro. Isto levaria, já</p><p>nos primeiros meses de 2015, à ocorrência de grandes</p><p>manifestações contra o governo, que se estenderiam até o ano</p><p>seguinte, com o discurso anticorrupção assumindo cada vez mais</p><p>centralidade. No entanto, apesar da crença na corrupção</p><p>generalizada do sistema político, a indignação dos que foram às</p><p>ruas era dirigida quase exclusivamente contra o PT, havendo assim</p><p>a presença clara de um forte componente antipetista nas</p><p>manifestações. Essa “indignação seletiva” pode ser explicada pela</p><p>habilidade das lideranças desses protestos em canalizar o</p><p>descontentamento generalizado em direção a um único foco (o</p><p>Partido dos Trabalhadores), por certa blindagem midiática em torno</p><p>das forças de oposição –favorecendo o discurso recorrente do PT</p><p>como o “partido mais corrupto da história do Brasil” − e pela</p><p>disseminação de narrativas formuladas por colunistas de orientação</p><p>conservadora da grande imprensa e de inúmeras teorias</p><p>conspiratórias através das redes sociais e de grupos de WhatsApp.</p><p>O agravamento da crise política no início de 2016, com mais</p><p>acusações de corrupção, delações premiadas, vazamentos de</p><p>ligações telefônicas e um intenso bombardeio da grande imprensa,</p><p>isolou ainda mais o governo Dilma e deu fôlego aos protestos de rua</p><p>que exigiam o impeachment da presidenta, cujo admissibilidade</p><p>havia sido aceita no final de 2015 pelo então presidente da câmara,</p><p>Eduardo Cunha, deputado de base evangélica e um dos grandes</p><p>responsáveis pelo avanço das pautas conservadoras no Congresso</p><p>Nacional. Ao mesmo tempo, a polarização e a radicalização políticas</p><p>cresciam exponencialmente no país.</p><p>No quadro geral dessa crise, um fato de grande relevância foi a</p><p>crescente “politização” do judiciário, do Ministério Público Federal e</p><p>da Polícia Federal que, por inúmeras vezes, levou-os à extrapolação</p><p>de suas funções e à realização de atos e procedimentos</p><p>considerados ilegais por inúmeros juristas, no âmbito da Operação</p><p>Lava-Jato e em outros processos. Garantidos pela blindagem da</p><p>grande imprensa e pelo apoio de amplos segmentos da sociedade,</p><p>juízes de primeira instância e procuradores da república vêm sendo</p><p>recorrentemente acusados de atropelar a ordem jurídica e as</p><p>garantias constitucionais vigentes em nome de uma lógica</p><p>“salvacionista”, em que os fins justificariam os meios. Neste sentido,</p><p>a escalada conservadora dos últimos anos acabou por ter no</p><p>judiciário e nos meios jurídicos em geral – onde crescem cada vez</p><p>mais as perspectivas punitivistas – uma de suas principais</p><p>trincheiras, contribuindo sobremaneira para fragilizar ainda mais as</p><p>instituições e a democracia brasileiras.</p><p>O afastamento definitivo da presidenta da República pelo Senado</p><p>Federal em agosto de 2016, após um controvertido processo de</p><p>impeachment autorizado quatro meses antes pela Câmara de</p><p>Deputados, não poria fim à crise política. Ao contrário, ela se</p><p>agravaria ainda mais, visto que a maneira como foi conduzido esse</p><p>processo explicitou que, apesar da tentativa do parlamento, do</p><p>judiciário e da mídia empresarial</p><p>“solta bandido” e</p><p>neste estado de coisas caótico o policial “faz milagre” na luta contra a</p><p>“bandidagem”.</p><p>E se o termo “bandidagem” refere-se, principalmente, aos</p><p>criminosos, ele não deixa de ser utilizado também para denominar os</p><p>“manifestantes vândalos” ou os “jovens desocupados”. Enfim, todo</p><p>um conjunto de categorias identificadas como os “vagabundos” que</p><p>promovem o caos e a violência social, mas que em vez de serem</p><p>reprimidos pelo Estado são protegidos pela política de direitos</p><p>humanos. O reconhecimento ao trabalho policial e às mortes em</p><p>serviço de policiais são fundamentais para estes grupos. Numa visão</p><p>dicotómica e altamente moralista da realidade, o bandido representa</p><p>não só o mal, mas o mal protegido pelo Estado; já o policial</p><p>representa o bem, que é esquecido e abandonado pelo Estado, pela</p><p>justiça e pela imprensa. O policial, na verdade, seria uma vítima</p><p>desta inversão moral e, portanto, a letalidade policial não o problema,</p><p>mas sim um instrumento “da luta contra o mal”, na qual o policial</p><p>encontra-se abandonado</p><p>Neste sentido legitima-se o uso da força policial contra os bandidos</p><p>ao mesmo tempo em que se tenta humanizar a figura do policial</p><p>apresentando-o como próximo da comunidade, amigo dos homens</p><p>de bem, aquele que faz parto, que ajuda em tarefas de beneficência</p><p>ou assistenciais, que joga futebol ou capoeira com as crianças. A</p><p>visão dualista da sociedade entre bandidos e homens de bem</p><p>legitima um comportamento letal da polícia contra os primeiros, sobre</p><p>os quais não cabe uma política de direitos e sim de repressão. Neste</p><p>sentido os valores da masculinidade – “ser um homem” e a educação</p><p>como autoridade e disciplina são mobilizados todo o tempo como</p><p>únicas saídas para essa pretensa inversão de valores.</p><p>O corrupto</p><p>O segundo cluster escolhido, que apresentamos a seguir, é o que</p><p>reúne as páginas anticorrupção:</p><p>2014-1 Movimento quero me defender, Mobilização patriota, Sérgio</p><p>Moro 2018- presidente, O Brasil vai melhorar;</p><p>2014-2 Movimento quero me defender, Pátria amada Brasil,</p><p>Mobilização Patriota;</p><p>2015-1 Em defesa do Brasil, Pátria amada Brasil, Sérgio Moro</p><p>2018-presidente, Movimento Quero me defender, Movimento</p><p>Endireita Brasil, Mobilização patriota;</p><p>2015-2 Sérgio Moro 2018-presidente, Movimento quero me</p><p>defender, Mobilização Patriota, Movimento Endireita Brasil,</p><p>Consciência Patriótica, Pátria Amada Brasil;</p><p>2016-1 Pátria Amada Brasil, Movimento Endireita Brasil,</p><p>Movimento quero me defender, Cruzada pela Liberdade,</p><p>Mobilização Patriota, Em defesa do Brasil, FISCOP Fiscais da</p><p>conduta política, Anti-PT;</p><p>2016-2 Movimento quero me defender, o Brasil vai melhorar,</p><p>Mobilização Patriota, Pátria Amada Brasil, Cruzada pela</p><p>Liberdade, Movimento Endireita Brasil, Consciência Patriótica,</p><p>Republica de Curitiba, FISCOP, Anti-PT;</p><p>2017-1 Juiz Sergio Moro, o Brasil está com você, O pesadelo de</p><p>qualquer político 2.0, Mobilização patriota, Endireita Brasil, Em</p><p>defesa do Brasil, Pátria amada Brasil, Cruzada pela Liberdade,</p><p>FISCOP, Movimento Quero me Defender;</p><p>Este campo está inteiramente relacionado com a retórica</p><p>antipetista, fundamentada no discurso da anticorrupção. Para ele, o</p><p>PT seria o partido mais corrupto do país, e Lula, o “chefe da</p><p>quadrilha”. A corrupção petista, juntamente com a inabilidade da ex-</p><p>presidente Dilma Rousseff de governar, seriam os fatores</p><p>fundamentais da atual crise econômica, política e moral vivida pelo</p><p>país. Em 2014, as páginas tratavam fundamentalmente do Mensalão</p><p>e da crise da Petrobrás. Além de Lula e Dilma, as figuras de maior</p><p>relevância dentro do PT eram atacadas incessantemente: José</p><p>Dirceu, José Genoino, Delúbio Soares, João Paulo Cunha e outros</p><p>seriam os membros da suposta quadrilha petista que se apropriou da</p><p>máquina do Estado brasileiro para roubar.</p><p>A figura de Dilma também foi alvo das mais variadas críticas, que</p><p>iam da sua hipotética incompetência e equivocada política</p><p>econômica ao seu passado de guerrilheira, incluindo também seus</p><p>posicionamentos sobre “questões morais”, como o fato de que ela</p><p>seria pró-aborto, por exemplo. As críticas a Lula e Dilma passavam</p><p>por três pontos centrais: 1 – eles seriam os políticos mais corruptos</p><p>de Brasil e o PT, o partido mais corrompido; 2 – Dilma e o PT seriam</p><p>responsáveis pela crise econômica, inflação, aumentos “abusivos” de</p><p>juros e desemprego; 3 – foi construído todo um conjunto de</p><p>xingamentos desqualificadores que tentam caricaturar as figuras de</p><p>ambos.</p><p>Por outro lado, a retórica anticomunista em relação ao PT é</p><p>acionada o tempo todo. O PT faria parte de uma conspiração</p><p>comunista internacional, simbolizada pelo Foro de São Paulo e</p><p>representada pelas figuras de Cristina Kirschner, Nicolás Maduro e</p><p>Evo Morales. Juntos, estes atores formariam uma aliança</p><p>internacional bolivariana para implantar regimes comunistas na</p><p>América Latina. O caso do financiamento do BNDES para construir o</p><p>Porto de Mariel em Cuba, ou a vinda de médicos cubanos para o</p><p>Programa “Mais Médicos”, são citados como exemplos que</p><p>embasariam esta teoria da conspiração comunista. Neste sentido, a</p><p>retórica anticomunista, tão presente em tempos idos na legitimação</p><p>de golpes militares na América Latina, parece estar de volta (SÁ</p><p>MOTTA, 2002).</p><p>Também é interessante ressaltar que o antipetismo não se volta</p><p>somente contra o Partido dos Trabalhadores, mas também contra</p><p>sindicatos e movimentos sociais − principalmente CUT, MTST, MST</p><p>−, identificados como grupos cooptados e “braços armados” do PT</p><p>que legitimam a “bandidagem” por meio de ações de violência, como</p><p>as chamadas “invasões” do MST, e por um processo “lavagem</p><p>cerebral” na sociedade.</p><p>Ao longo de 2015 aparece o apoio explícito ao impeachment de</p><p>Dilma Rousseff (de novo fundamentado na ideia de que o governo</p><p>seria corrupto e incompetente) e vai se construindo uma retórica de</p><p>apoio à figura do juiz Sérgio Moro, que teria a “missão” de “limpar” o</p><p>Brasil dos corruptos. Neste sentido, constrói-se uma ideia moralista</p><p>da luta contra a corrupção, em que o PT e, fundamentalmente, Lula,</p><p>estariam representando o “mal” e, no polo oposto, o juiz Sérgio Moro</p><p>seria o representante do “bem”, cuja tarefa quase messiânica seria</p><p>salvar Brasil de corruptos. A prisão de Lula, portanto, seria a</p><p>conquista mais desejada desta luta moral anticorrupção.</p><p>Em 2017 apareceu um novo componente da narrativa</p><p>anticorrupção: a antipolítica. Depois do impeachment e conforme a</p><p>Operação Lava Jato ia aumentando seus alvos para além do PT,</p><p>cada vez mais posts surgiram com a ideia de que a corrupção já não</p><p>seria só um “mal” petista e sim um “câncer” que afeta o sistema</p><p>político-partidário no seu conjunto. Constrói-se uma identificação</p><p>clara entre a figura do partido tradicional (fundamentalmente PT,</p><p>PSDB e PMDB) e a corrupção. Os partidos tradicionais seriam</p><p>máquinas corruptas que se apropriaram da política para satisfazer</p><p>seus próprios interesses e obter benefícios pessoais.</p><p>O próprio STF passa a ser atacado recorrentemente por esta</p><p>retórica “moralista”, com os ministros do Supremo sendo vistos como</p><p>coniventes com a corrupção. Por exemplo, depois da libertação de</p><p>José Dirceu pelo STF, os ministros Gilmar Mendes, Dias Toffoli e</p><p>Ricardo Lewandowski, que votaram favoravelmente a ela, foram</p><p>duramente atacados. Chegou-se a pedir nestas páginas o</p><p>impeachment dos três como forma de “limpar o judiciário”. Da</p><p>mesma forma, durante o julgamento da chapa Dilma-Temer no TSE,</p><p>o ministro Gilmar Mendes também foi duramente atacado, com a</p><p>utilização, inclusive, da hashtag #vergonhaTSE.</p><p>Diversos outros atores aparecem na retórica deste campo</p><p>anticorrupção. A Rede Globo, por exemplo, é retratada como um</p><p>canal manipulador que esconde a realidade do povo brasileiro.</p><p>Renan Calheiros, então presidente do Senado Federal, também foi</p><p>alvo de críticas porque seria “amigo de Lula” ou da “turma de Lula”.</p><p>Em sentido oposto, figuras como o senador Magno Malta ou a</p><p>jornalista Raquel Sheherazade são exaltadas porque estariam sendo</p><p>honestas e informando “a realidade da política” aos brasileiros.</p><p>Nota final</p><p>O inimigo é o indesejável, o desumanizado, aquele que</p><p>se deseja</p><p>aniquilar. Assim, ele tanto pode ser o bandido que atenta contra uma</p><p>lógica racista e classista da ordem e da autoridade, simbolizada pelo</p><p>cidadão de bem, quanto o político corrupto, petista principalmente,</p><p>que na lógica lavajatista da justiça penal do espetáculo não merece</p><p>as mínimas garantias penais. Entre os dois, o mesmo processo de</p><p>estigmatização, que atua como legitimador social dos mais diversos</p><p>abusos e violações de direito. Porque o inimigo é o não sujeito,</p><p>aquele contra o qual podem ser perpetradas violências múltiplas com</p><p>o consentimento social, em uma lógica moralista e punitiva.</p><p>A lógica do inimigo enfraquece a democracia até esvaziá-la de</p><p>sentido e impõe a lógica do confronto de “nós” contra “eles”.</p><p>Construir a sociedade sobre a lógica da inimizade bloqueia a</p><p>convivência social, destrói os tecidos coletivos. Resta saber se</p><p>queremos ser cúmplices da sociabilidade da inimizade.</p><p>Referências Bibliográficas</p><p>AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Trad. Iraci D. Poleti, São</p><p>Paulo: Boitempo, 2004.</p><p>BOLDT, Raphael; KROHLING, Aloísio. Direitos humanos, tolerância</p><p>zero: paradoxos da violência punitiva no estado democrático de</p><p>direito Prisma Jurídico, vol. 10, núm. 1, janeiro-junho, 2011,</p><p>Universidade Nove de Julho São Paulo, Brasil. pp. 33-48.</p><p>CASARA, Rubens. Estado pós-democrático – Neobscurantismo e</p><p>gestão dos indesejáveis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,</p><p>2017.</p><p>COIMBRA, Cecilia. Operação Rio: o mito das classes perigosas. Rio</p><p>de Janeiro: Intertexto, 2001.</p><p>DE GIORGI, Alessandro. A miséria governada através do sistema</p><p>penal. Rio de Janeiro: Revan, 2006.</p><p>GARRELL, Martins Richard-Paul; OLIVEIRA, Emilio. Manifestações</p><p>Populares e os recentes Projetos de Lei “Antiterrorismo”: expansão</p><p>do Estado de Exceção?. Anais ANDHEP, USP, 2014.</p><p>GOFFMAN, Erving. Estigma: Notas sobre a manipulação da</p><p>identidade deteriorada. Trad. Mathias Lambert. Rio de Janeiro:</p><p>Zahar, 1980.</p><p>LACLAU, Ernesto. A razão populista. Trad. Carlos Eugênio</p><p>Marcondes de Moura. São Paulo: Três estrelas, 2013.</p><p>MARTINS, José de Souza. A sociedade vista do abismo: novos</p><p>estudos sobre exclusão, pobreza, classes sociais. Petrópolis:</p><p>Vozes, 2002.</p><p>MBEMBE, Achille. Políticas de inimizade. Trad. Marta Lança. Lisboa:</p><p>Antígona, 2017.</p><p>MELO, Zélia Maria de. Estigmas: Espaço para exclusão social.</p><p>Revista Symposium , v. 4, n. especial, dez. 2000. pp. 18-22.</p><p>RABINOVICH, Eleonora; MAGRINI, Ana Lucía; RINCÓN, Omar.</p><p>Vamos a portarnos mal. Bogotá: Friedrich Ebert Stiftung, 2011.</p><p>RODRIGUEZ, Esteban. Justicia Mediática. Buenos Aires: Ad Hoc,</p><p>2002.</p><p>SÁ MOTTA, Rodrigo Patto. Em guarda contra o perigo vermelho: o</p><p>anticomunismo no Brasil (1917-1964). São Paulo: Perspectiva,</p><p>2002.</p><p>SAINTOUT, Florencia. La criminalización de los jóvenes en la TV: los</p><p>pibes chorros. Bogotá: Signo y Pensamiento, 2002.</p><p>TORRES, Sergio Gabriel. Derecho Penal de Emergencia: lenguaje,</p><p>discurso y medios de comunicación, emergencia y política criminal,</p><p>consecuencias em la actualización legislativa. Buenos Aires: Ad-</p><p>Hoc, 2008.</p><p>WACQUANT, Loic. As duas faces do gueto. Trad. Paulo Castanheira.</p><p>São Paulo: Boitempo Editorial, 2008.</p><p>ZANIN, Emilio José, LISDERO, Pedro Matias. Estrategias de</p><p>policiación de la sociedad y prácticas de securitización ciudadana:</p><p>una mirada a la metamorfosis de los mecanismos represivos en</p><p>contextos neo-coloniales. Boletin Científico Sience Research, v.</p><p>3(1), 2013. pp. 19-24.</p><p>ZAVERUCHA, Jorge. Brazilian Army performing the role of police: the</p><p>emblematic case of Morro da Previdência. In: Centro de Estudios e</p><p>Investigaciones Militares. Armed Forces and society: new</p><p>challenges and environments. Santiago, 2008. pp. 57-68.</p><p>Há solução sem uma revolução?</p><p>Luis Felipe Miguel</p><p>O texto que se segue obedece a um roteiro simples. [ 16 ] Primeiro,</p><p>indica-se que a longa transição democrática brasileira, após uma</p><p>ditadura militar duradoura e bem sucedida em seus propósitos,</p><p>parecia destinada a ser um retumbante fracasso. Mais tarde, por</p><p>motivos nunca bem explicados, ela se tornou um exemplo de</p><p>sucesso e passamos a merecer, de analistas insuspeitos, o</p><p>cobiçado título de “democracia consolidada”. Eis que chega o golpe</p><p>de 2016 e aquela institucionalidade aparentemente tão sólida se</p><p>desmancha como um castelo de cartas. Nenhum dos anteparos</p><p>destinados a proteger a Constituição e o ordenamento democrático</p><p>liberal cumpriu o papel esperado. Diante disto, emerge a questão</p><p>que dá título a este capítulo: existe a possibilidade de recomposição</p><p>da ordem instaurada pela Constituição de 1988? Existe alguma</p><p>saída não traumática para a situação em que o Brasil foi lançado</p><p>pelo golpe de 2016? Em suma, há solução sem uma revolução?</p><p>Antecipo minha resposta (perdoem o spoiler): ela se inclina na</p><p>direção do “não”. Claro, da mesma maneira como o golpe que</p><p>guindou Michel Temer à cadeira de presidente não teve</p><p>protagonistas fardados nem tanques na rua, a revolução de que</p><p>estou falando não precisa passar por alguma tomada do Palácio de</p><p>Inverno. Mas o experimento democrático que foi fraturado com a</p><p>deposição de Dilma Rousseff se baseava num equilíbrio instável</p><p>entre regras democráticas e desigualdades sociais profundas,</p><p>idêntico ao que vigorou no período democrático anterior (1945-</p><p>1964), que dificilmente tem como ser reativado. Um novo equilíbrio</p><p>precisará ser alcançado. Ou ele reduzirá o espaço da democracia</p><p>formal para garantir a plena vigência das desigualdades, o que é o</p><p>projeto do governo que está aí e se alinha ao processo global de</p><p>“desdemocratização”, ou terá que radicalizar a democracia, com um</p><p>compromisso mais ambicioso com a justiça social. Este segundo</p><p>caminho, infelizmente o menos provável no curto prazo, exigirá uma</p><p>transformação revolucionária do padrão histórico de relacionamento</p><p>do Estado brasileiro com as elites e com as classes populares.</p><p>A transição insuficiente</p><p>O golpe de 1964 e a longa noite que ele inaugurou foram – entre</p><p>outras causas – efeito da compreensão de que estava cada vez</p><p>mais difícil manter “nos trilhos” o regime democrático inaugurado no</p><p>Brasil em 1945. As forças armadas assumiram o poder com a</p><p>missão de sufocar as crescentes demandas por maior igualdade,</p><p>lidas como manifestações da interferência comunista, e garantir a</p><p>vigência incontestada das hierarquias sociais do país. Mas convém</p><p>lembrar que a doutrina estadunidense de segurança nacional, que</p><p>orientou o pensamento militar sul-americano no período, ganhou</p><p>feições próprias no Brasil. A tradição do pensamento autoritário da</p><p>Primeira República e a doutrina geopolítica elaborada na Escola</p><p>Superior de Guerra levaram a um viés desenvolvimentista que</p><p>esteve em grande medida ausente de outras ditaduras latino-</p><p>americanas do período. O lema “segurança e desenvolvimento”</p><p>combinava o combate anticomunista ao “inimigo interno” com o</p><p>sonho do Brasil-potência. Isso fez com que os anos da ditadura</p><p>fossem anos de urbanização e industrialização aceleradas e de</p><p>grandes obras de infraestrutura, sobretudo na geração de energia,</p><p>nos transportes e nas telecomunicações. O regime de 1964 legou</p><p>ao país uma paisagem social profundamente modificada.</p><p>À luz de seus próprios objetivos, a ditadura foi um sucesso. Talvez</p><p>nem tanto no plano econômico: a modernização pretendida ficou</p><p>pela metade, o crescimento acelerado teve fôlego curto e o Brasil-</p><p>potência continuou tão distante quanto antes. Mas, do ponto de vista</p><p>da cena política interna, os objetivos foram em larga medida</p><p>alcançados. A oposição foi dizimada – a esquerda, presa ou exilada,</p><p>afastou-se de suas bases; o movimento sindical, entregue a</p><p>pelegos, demorou mais de uma década para se reerguer; a</p><p>imprensa e a cultura foram silenciados. Depois de mais de vinte</p><p>anos, quando as forças armadas finalmente devolveram o poder aos</p><p>civis, elas conservavam força suficiente para garantir sua própria</p><p>impunidade e prerrogativas alargadas.</p><p>No primeiro governo civil após a ditadura, o poder militar era</p><p>tamanho que se podia falar em “tutela”. O ministro do Exército,</p><p>general Leônidas Pires Gonçalves, e o ministro-chefe do Serviço</p><p>Nacional de Informações, general</p><p>Ivan de Souza Mendes, eram os</p><p>homens fortes do governo José Sarney. Note-se: não só o órgão de</p><p>espionagem criado pela ditadura continuava intacto como seu chefe</p><p>permanecia com status de ministro. Na Assembleia Nacional</p><p>Constituinte, foram barradas todas as iniciativas para estabelecer</p><p>um controle civil mais estrito. Os militares defenderam sua agenda,</p><p>tanto por meios comuns a outros grupos de interesse, como a</p><p>realização de lobby junto aos constituintes, quanto por meio de</p><p>declarações ameaçadoras e demonstrações de força. Era central,</p><p>nesta agenda, a manutenção da capacidade de intervenção política.</p><p>O artigo 142 da Constituição determinou que, entre as funções das</p><p>forças armadas, está a garantia “da lei e da ordem”. Mas no</p><p>momento em que a “ordem” é colocada como entidade à parte da lei</p><p>e, portanto, não remete simplesmente à ordem legal, ela se torna</p><p>um conceito abstrato que permite interpretações variadas. Isso</p><p>amplia o arbítrio dos militares. Uma autoridade legalmente</p><p>constituída, agindo dentro da lei, pode se opor a uma determinada</p><p>concepção da “ordem” que as forças armadas se sentem, então,</p><p>destinadas a proteger. Aliás, foi exatamente esse o discurso</p><p>justificador das inúmeras intervenções ao longo do período 1945-</p><p>1964.</p><p>O poderio dos quartéis no governo Sarney era tão grande que,</p><p>ainda durante os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte, um</p><p>dos decanos da ciência política brasileira, com inatacável folha</p><p>corrida de defesa da democracia, julgava que era necessário fixar</p><p>no texto constitucional os limites da tutela militar. Não fazê-lo seria</p><p>recair no “mero voluntarismo de proibi-los [os militares] de agir</p><p>politicamente, que deriva da velha ficção legal em que aparecem</p><p>como guardiães neutros e profissionais da legalidade e da soberania</p><p>nacional” (REIS, 1988, p. 35). Uma reação contrária à proposta</p><p>argumentava que a Constituição devia “exaltar” a desmilitarização</p><p>da política (GÓES, 1988, p. 247), mas sobretudo como posição de</p><p>princípio – não se acreditava que ela fosse se efetivar na pratica.</p><p>É importante observar também que a ditadura manteve em</p><p>funcionamento um simulacro de instituições representativas, com</p><p>partidos, eleições e Parlamento. Os militares decidiam quem podia e</p><p>quem não podia concorrer, as regras mudavam de acordo com suas</p><p>conveniências, mandatos eram cassados, o poder do Congresso era</p><p>muito limitado e, quando necessário, ele podia ser fechado. Mas,</p><p>ainda assim, o longo período autoritário permitiu o surgimento de</p><p>uma nova elite política civil. Uma elite formada sob o entendimento</p><p>de que é normal que a competição política seja tutelada pelos donos</p><p>do poder – uma característica que talvez ajude a explicar a rápida</p><p>adaptação ao cenário posterior ao golpe de 2016, mesmo por</p><p>muitos de seus opositores.</p><p>Tais transformações fizeram com que não houvesse qualquer</p><p>possibilidade de retomar, na redemocratização, o jogo político</p><p>interrompido pelo golpe de 1964. Alguns partidos recuperavam os</p><p>nomes daqueles do período anterior, mas eram simulacros. Algumas</p><p>lideranças voltaram ao proscênio, mas enfrentando a forte</p><p>concorrência da nova geração. As primeiras eleições diretas para a</p><p>Presidência da República colocaram Fernando Collor e Luiz Inácio</p><p>Lula da Silva no segundo turno, marcando de vez a mudança de</p><p>guarda.</p><p>Era um novo jogo. Os dilemas não resolvidos, no entanto,</p><p>permaneceram em grande medida os mesmos. Uma ordem</p><p>formalmente democrática se instalava sobre uma sociedade</p><p>marcada por padrões aberrantes de desigualdade. O hiato entre os</p><p>direitos consignados na letra da lei e a possibilidade de exercê-los</p><p>na vida vivida era abissal. Afinal, o quanto de democracia toda esta</p><p>desigualdade seria capaz de tolerar? E o quanto de desigualdade a</p><p>democracia poderia acomodar até não fazer mais jus a seu nome?</p><p>Da perspectiva das bandeiras de quem lutou contra o regime</p><p>militar, o balanço da transição, ao final do primeiro governo civil, era</p><p>pouco animador: uma democracia de baixa intensidade, com canais</p><p>limitados para a expressão popular e forte presença militar na</p><p>política. Não apenas um golpe do destino fez com que o primeiro</p><p>presidente civil fosse José Sarney, até o dia anterior chefe do</p><p>partido de sustentação à ditadura, como o primeiro presidente eleito,</p><p>em 1989, foi Fernando Collor, representante das velhas oligarquias</p><p>e também perene apoiador do regime militar. Incompetente e</p><p>corrupto, o governo Collor fracassou em sua promessa principal –</p><p>derrubar a inflação – e acabou melancolicamente, no impeachment</p><p>de 1992, sem que houvesse quem chorasse seu fim.</p><p>A maior insuficiência da transição, no entanto, era a dívida social</p><p>intocada. Afinal, a pressão pelo fim da ditadura combinou um eixo</p><p>especificamente político (em defesa da anistia, contra a tortura, pelo</p><p>retorno das liberdades civis, por eleições diretas) e outro econômico</p><p>e social, vinculado às lutas contra o rebaixamento do poder de</p><p>compra dos salários (“arrocho salarial”) e sua contraface, o aumento</p><p>do custo de vida (“carestia”). O discurso da oposição vinculava o</p><p>caráter autoritário do regime à política econômica concentradora de</p><p>renda; defesa da democracia e combate à desigualdade</p><p>caminhavam juntos. Após o retorno dos civis ao poder, porém, as</p><p>bandeiras de caráter igualitário foram desinfladas. A transição</p><p>democrática foi ressignificada como sendo a construção de uma</p><p>determinada institucionalidade política, sem qualquer incidência</p><p>sobre as desigualdades sociais. A maior parte da literatura</p><p>acadêmica seguiu este caminho e construiu a “transitologia” como</p><p>um campo de saber em que as instituições planavam integralmente</p><p>desconectadas do mundo social (VITULLO, 2001).</p><p>Para quem vivia fora desta bolha, no entanto, parecia vigorar o</p><p>lema irônico de uma personagem do romance Andamios, do</p><p>uruguaio Mario Benedetti (1996, p. 19): “Democracia es amnesia”.</p><p>Esquecimento dos crimes da ditadura, a serem mantidos impunes.</p><p>Esquecimento das divisões políticas fundamentais, já que antigas</p><p>vítimas e antigos carrascos devem se dar as mãos nas novas</p><p>alianças partidárias. Esquecimento da dívida social e do</p><p>compromisso com a justiça. Esquecimento, enfim, das promessas</p><p>da própria democracia, seguindo o conselho de Giovanni Sartori</p><p>(1994 [1987], v. 1, pp. 101-104), de que o ideal democrático deve</p><p>ser maximizado quando é “de oposição”, mas moderado depois que</p><p>a democracia foi conquistada, para não comprometer sua</p><p>estabilidade.</p><p>Um case de sucesso</p><p>Subitamente, a transição brasileira deixou de ser um fracasso e</p><p>pareceu ser um sucesso. Até o impeachment de Fernando Collor</p><p>passou a ser visto como uma prova da solidez das instituições. Um</p><p>presidente corrupto foi afastado do cargo de acordo com o que</p><p>estava previsto na Constituição, sem risco de golpe de Estado.</p><p>O equacionamento da questão militar ocorreu como um perfeito</p><p>milagre. A atuação política das forças armadas não tinha</p><p>sobressaltado apenas o governo Sarney. Tinha lançado sombra</p><p>sobre todo o experimento democrático de 1945-1964, que viveu com</p><p>incessantes ameaças de golpe, contragolpes e “golpes preventivos”,</p><p>culminando com o golpe de 1961, que implantou o parlamentarismo</p><p>para impedir o pleno governo de João Goulart, e finalmente a</p><p>tomada do poder em 1964. Mas quando Fernando Collor de Mello</p><p>assumiu a presidência, os militares simplesmente sumiram do</p><p>proscênio da política nacional.</p><p>Collor era um político conservador, mas com um histórico de</p><p>desavenças com os hierarcas das forças armadas – em episódio</p><p>significativo, ele chamou o ministro-chefe do SNI de “generaleco”,</p><p>atitude temerária para qualquer político naquele momento. Sua</p><p>presidência foi marcada pelo desprestígio das pastas militares; o</p><p>próprio Serviço Nacional de Informações foi transformado numa</p><p>secretaria sob comando de um civil. Em 1999, o presidente</p><p>Fernando Henrique Cardoso deu um passo adiante, fundindo as</p><p>pastas ministeriais destinadas a cada uma das três armas em um</p><p>único Ministério da Defesa, sob chefia civil. Uma das principais</p><p>medidas apontadas como necessárias para fortalecer o controle do</p><p>poder civil sobre os militares, ela foi tomada</p><p>como que de supetão e</p><p>não despertou quase nenhuma reação contrária.</p><p>O problema da inflação, que desde o final da ditadura militar era</p><p>apresentado como a prova de uma economia em descontrole e que</p><p>havia resistido a sucessivos tratamentos de choques, foi resolvido</p><p>no governo Itamar Franco, com o Plano Real. A economia podia</p><p>continuar patinando, com crescimento insuficiente e péssima</p><p>distribuição da riqueza, mas estava morto o “dragão” – como a</p><p>inflação foi representada, por mais de uma década, em incontáveis</p><p>cartuns.</p><p>Em 2002, enfim, Lula ganhou as eleições presidenciais. Se</p><p>consideramos que Collor se apresentou em 1989 como opositor ao</p><p>governo José Sarney, o Brasil promovia sua segunda transferência</p><p>do poder de um grupo político para outro por meio do voto, o que</p><p>corresponde ao “teste” da consolidação da democracia, segundo</p><p>Huntington (1994 [1991], p. 261). Mais importante ainda era</p><p>observar a plena integração do Partido dos Trabalhadores ao jogo</p><p>político institucional. O PT tinha sido uma agremiação que muitos</p><p>analistas consideravam “antissistêmica”. Seu ingresso no jogo</p><p>político mais convencional e o foco absoluto que ele passa a dar à</p><p>competição eleitoral seriam a comprovação definitiva de que todos</p><p>os atores relevantes estavam comprometidos com as “regras do</p><p>jogo”.</p><p>No entanto, a correção da definição do PT como partido</p><p>antissistêmico pode ser contestada. O cientista político italiano</p><p>Marco Damiani (2016) diferencia a extrema-esquerda</p><p>antissistêmica, a esquerda radical “anti-establishment” e a esquerda</p><p>moderada reformista. Aceita a classificação, a maioria do PT original</p><p>talvez se enquadrasse na categoria “anti-establishment” e o partido</p><p>seria a demonstração de que o sentimento contrário ao</p><p>establishment podia ser expresso dentro do sistema político em</p><p>vigor. Neste caso, sua conversão em partido da ordem, sem um</p><p>substituto para a posição que ocupava, poderia reduzir a</p><p>estabilidade do sistema, ao revelá-lo como mais impermeável a</p><p>interesses populares.</p><p>Seja como for, com Lula o Brasil redemocratizado mostrava que</p><p>era capaz de possuir um governo de centro-esquerda. Ainda que o</p><p>discurso de campanha tenha sido extremamente contido (o “Lulinha</p><p>paz e amor”), o arco de alianças tenha contemplado partidos</p><p>francamente à direita (e seria ainda mais ampliado na composição</p><p>do governo) e os compromissos com o capital afirmados com</p><p>absoluta clareza (a “Carta aos brasileiros”), a mudança não era</p><p>insignificante. A elite do Poder Executivo se renovou, com antigos</p><p>sindicalistas ocupando muitas das posições do núcleo central do</p><p>poder e cerca de metade do total de cargos de confiança</p><p>(D’ARAÚJO, 2009). E, embora muito moderadas, sem qualquer</p><p>traço de contestação à ordem capitalista, as políticas do PT no</p><p>poder indicavam uma prioridade, o combate à miséria extrema, que</p><p>até então nunca passara de um discurso sem lastro na prática.</p><p>Por vias tortas, o lulismo construiu uma versão tupiniquim e</p><p>abastardada do pacto social-democrata. No lugar do Estado de</p><p>bem-estar social, uma tímida viabilização do acesso ao mercado de</p><p>bens de consumo, graças à redução da pobreza e do aumento do</p><p>poder de compra dos salários, em particular do salário mínimo. Os</p><p>programas de garantia de renda foram o carro-chefe da política</p><p>social do governo e o diferencial que marcou as gestões petistas,</p><p>com os serviços públicos permanecendo num distante segundo</p><p>plano. Além de indicar o desinteresse pela construção de uma lógica</p><p>social alternativa ao capitalismo e a rendição ao modelo de</p><p>desenvolvimento vigente, essa política não desafiava a transferência</p><p>do fundo público para investidores privados.</p><p>E, em vez da incorporação negociada das classes trabalhadoras</p><p>ao pacto, como fez a social-democracia clássica, para a qual o</p><p>poder de pressão das organizações sindicais era uma parte central</p><p>da equação, optou-se pela desmobilização, que retirava capacidade</p><p>de reação dos trabalhadores e apaziguava o capital. Por fim, os</p><p>padrões buscados de redução da desigualdade e de segurança</p><p>existencial para os mais vulneráveis foram bastante modestos. O PT</p><p>no governo entendeu – de uma maneira que é preciso reconhecer</p><p>como realista – que os limites para a transformação social no Brasil</p><p>eram bem estreitos, dada a baixa tolerância de nossos grupos</p><p>dirigentes a qualquer desafio às hierarquias e privilégios seculares,</p><p>e optou por trabalhar dentro deles. O cálculo geral parecia ser:</p><p>conquistar pouco, mas com segurança, em vez de sonhar com</p><p>muito e nada conseguir.</p><p>Fica claro que a receita inclui, desde o princípio, a limitação da</p><p>própria democracia. No avesso da proposta democratizante que</p><p>marcou sua origem, o PT no poder precisava garantir que os velhos</p><p>caciques políticos não se sentiriam ameaçados, para conferirem o</p><p>suporte necessário à administração federal – a “governabilidade”. O</p><p>termo, que entrou no vocabulário corrente a partir da ciência política</p><p>conservadora, designa a ideia de que impulsos democratizantes</p><p>precisam ser refreados para não comprometerem a reprodução da</p><p>dominação social. [ 17 ] Se as democracias permitem a livre</p><p>expressão das demandas e concedem poder de pressão aos grupos</p><p>subalternos, estão sob risco de se tornar “ingovernáveis”. A</p><p>governabilidade exige a submissão à correlação de forças real e, em</p><p>nome dela, a democracia precisa controlar seus impulsos</p><p>igualitários. O discurso realista da governabilidade leva ao paradoxo</p><p>de uma democracia que deve negar a si mesma. Em troca, ela seria</p><p>inconteste, estável. Consolidada.</p><p>Só que não.</p><p>O sonho desfeito</p><p>O PT permaneceu no governo de 2003 a 2016. Após a primeira</p><p>vitória de Lula, venceu as três eleições presidenciais seguintes. A</p><p>despeito de todas as suas concessões, enfrentou oposição cerrada,</p><p>sobretudo da mídia corporativa – o que se explica um pouco pela</p><p>petite politique, um pouco pelo preconceito de classe e um pouco</p><p>pelo fato de que a redução da vulnerabilidade dos mais pobres</p><p>sempre acaba por prejudicar os interesses dos dominantes. O</p><p>partido perdeu boa parte de sua base entre as classes médias</p><p>urbanas, mas conquistou em troca os vastos setores pauperizados</p><p>que eram os beneficiários imediatos de suas políticas sociais</p><p>emblemáticas, como o Bolsa Família, o Luz para Todos e o Minha</p><p>Casa Minha Vida.</p><p>A ferocidade dos ataques da direita, que nunca foi pequena,</p><p>aumentou ainda mais a partir das manifestações de junho de 2013.</p><p>Fenômeno complexo e polifacetado, que mobilizou diferentes atores</p><p>e sofreu transformações em curto espaço de tempo, as chamadas</p><p>“jornadas de junho” encapsulam muitas das contradições da política</p><p>brasileira e ainda demandam muita pesquisa e reflexão para serem</p><p>decifradas por completo. As reações do establishment político,</p><p>porém, são de entendimento mais simples. Seja no governo, seja na</p><p>oposição conservadora, a preocupação primária era o impacto da</p><p>mobilização popular nas eleições do ano seguinte. Para o governo,</p><p>tratava-se de reduzir danos. Para a direita, o dado principal era que</p><p>as ruas mostraram que havia um hiato entre o PT e sua base social.</p><p>A popularidade da presidente Dilma Rousseff desabou e ficava claro</p><p>que as políticas compensatórias até então adotadas estavam sendo</p><p>vistas como insuficientes por uma larga fatia da população.</p><p>O baque na popularidade e a súbita deterioração da imagem</p><p>pública do projeto lulista abriam para a oposição uma inesperada</p><p>janela de oportunidade. No começo de 2014, foi deflagrada a</p><p>Operação Lava Jato, com apoio hoje irrefutável, mas cuja real</p><p>dimensão ainda precisa ser aferida, dos Estados Unidos. Polícia,</p><p>Ministério Público, Judiciário e mídia fizeram um trabalho articulado</p><p>e avassalador de demonização do petismo (e, por extensão, de toda</p><p>a esquerda). A vitória da direita no pleito de outubro parecia ao</p><p>alcance da mão.</p><p>Até aí, por mais que o jogo tenha sido muito pesado, ele ainda</p><p>estava ocorrendo dentro das regras. Havia um governo e a oposição</p><p>buscava desgastá-lo ao máximo, a fim de vencer as eleições</p><p>seguintes. Foi a derrota de Aécio Neves, em 2014, que desencantou</p><p>uma parte significativa da direita brasileira em relação à</p><p>possibilidade de</p><p>voltar ao poder por meio do voto. Não que a opção</p><p>pela derrubada da presidente reeleita estivesse decidida desde o</p><p>primeiro momento. Por exemplo, em março de 2015, em meio às</p><p>crescentes manifestações de rua contra o governo, o senador</p><p>Aloysio Nunes Ferreira, que fora candidato a vice na chapa</p><p>derrotada do PSDB, declarava: “Não quero que ela saia, quero</p><p>sangrar a Dilma” (TAQUARI, 2015). A Federação das Indústrias do</p><p>Estado de São Paulo (Fiesp) patrocinou o golpe desde o princípio,</p><p>mas até o final de 2015, importantes porta-vozes do setor financeiro</p><p>apoiaram a permanência da presidente, sinalizando que a</p><p>continuidade de um governo enfraquecido e rendido às suas</p><p>exigências era uma saída que não lhes desagradava</p><p>(FRIEDLANDER, 2015). Foi o desenrolar dos acontecimentos que</p><p>unificou, em torno do golpe, tanto a oposição parlamentar de direita</p><p>quanto o capital.</p><p>Mas a crença na institucionalidade vigente era tanta que, no</p><p>momento mesmo em que o golpe estava sendo desferido, outro</p><p>importante cientista político, também com credenciais democráticas</p><p>impolutas, abria seu livro com a seguinte frase: “O Brasil encontra-</p><p>se no rol das nações com democracias fortes e consolidadas”</p><p>(AVRITZER, 2016, p. 7). Creio que, mais do que um equívoco na</p><p>interpretação da conjuntura, o que se revela aqui é a inutilidade da</p><p>noção de consolidação democrática, com seu enquadramento</p><p>institucionalista subjacente. De maneira caricatural, mas não muito</p><p>longe da verdade, é possível dizer que uma democracia está</p><p>consolidada até o momento em que não está mais. Assim, Uruguai</p><p>e Chile eram os exemplos canônicos de democracias consolidadas</p><p>na América do Sul, até que os golpes de 1973 instalaram no poder</p><p>duas das mais sangrentas ditaduras da história do continente. Em</p><p>algum momento, a percepção das elites locais da concorrência</p><p>eleitoral como “único jogo disponível” se erodiu, demonstrando que</p><p>não se trata de algo tão perene. E a alternância de partidos rivais no</p><p>poder – blancos e colorados, radicais e democratas-cristãos – não</p><p>assegurou a continuidade do regime. [ 18 ]</p><p>Da mesma maneira, no Brasil a democracia “desconsolidou-se” no</p><p>momento em que grupos-chave concluíram que o jogo eleitoral não</p><p>lhes servia mais. Não cabe reconstruir aqui o passo a passo do</p><p>golpe, com seu enredo de traições, vinganças, cartinhas farsescas</p><p>de amor ferido e tudo mais a que dá direito nossa predileção</p><p>nacional pela chanchada. O importante é que a derrubada de Dilma</p><p>Rousseff dependeu da conjunção de dois fatores. Primeiro: erodiu-</p><p>se a capacidade que a presidência tinha de garantir a própria</p><p>“governabilidade” usando seus recursos (verbas, cargos) para obter</p><p>o apoio da maioria do Congresso nas questões vitais. Aquilo que</p><p>parecia ser a solução mágica para os problemas de engenharia</p><p>institucional que a Constituição de 1988 deixara irresolvidos – e que</p><p>passou à história com o nome de “presidencialismo de coalizão”, a</p><p>partir de uma leitura meio folclorizada da contribuição de Abranches</p><p>(1988) – dependia, para funcionar, de parlamentares que</p><p>estivessem dispostos a aceitar os incentivos que o Executivo lhes</p><p>apresentava. [ 19 ] Mas a fragilidade do governo Dilma, com incerteza</p><p>(justificada, como se viu) até sobre sua capacidade de chegar ao</p><p>final do mandato, deflacionava sua moeda de troca. Era necessário</p><p>conceder fatias cada vez maiores do Estado para obter apoios cada</p><p>vez mais vacilantes, gerando um círculo vicioso.</p><p>Segundo: uma grande parcela das instituições desenhadas para</p><p>proteger a Constituição e a democracia agiu, de forma orquestrada,</p><p>para golpeá-las. Não é necessário repisar a falta de base para o</p><p>afastamento da presidente. É matéria vencida; não há mais dúvida</p><p>de que as manobras fiscais que serviram de base para o pedido de</p><p>impeachment foram mero pretexto – fato, aliás, que a maior parte</p><p>dos protagonistas da deposição de Dilma nem se empenhou em</p><p>disfarçar. Tampouco cabe discutir se o “conjunto da obra”, para usar</p><p>a expressão com que muitos líderes do golpe tentavam justificar a</p><p>falta de base legal para seu intento, admitia que ela fosse retirada</p><p>do cargo. No arranjo presidencialista em vigor no Brasil, não há voto</p><p>de desconfiança do Congresso sobre o chefe do Executivo. Seu</p><p>mandato é inabreviável, exceto em caso de morte, renúncia ou</p><p>cometimento de crime de responsabilidade tipificado em lei.</p><p>Sem contar com a participação ostensiva das forças armadas, o</p><p>golpe foi caracterizado como “parlamentar”, “judicial”, “midiático”,</p><p>“empresarial” ou ainda uma combinação destes adjetivos. Sua</p><p>concretização se deu no Congresso Nacional, que obedeceu a todo</p><p>o ritual do julgamento político: a Câmara acolheu a denúncia,</p><p>formou comissão, votou o início do processo, encaminhou ao</p><p>Senado, que por sua vez formou sua própria comissão etc. Mas a</p><p>trama só foi possível com a construção do clima de opinião contrário</p><p>ao governo, para o que foi crucial a sucessão de escândalos trazida</p><p>à tona pela Operação Lava Jato – que formalmente nada tinha a ver</p><p>com o processo de impeachment.</p><p>O desenrolar da Lava Jato mostrou uma notável coincidência</p><p>entre as ações policiais e judiciais e o cronograma da agitação</p><p>política da direita. Polícia Federal e Ministério Público, órgãos que</p><p>haviam ganhado grande autonomia operacional e recursos materiais</p><p>ao longo dos governos do PT, tiveram participação importante na</p><p>deflagração do golpe. O Supremo Tribunal Federal, que tem a</p><p>função de ser o guardião da Constituição e da democracia, deu seu</p><p>beneplácito e sacramentou a trama. Não se trata apenas da</p><p>deposição da presidente. O STF tem avalizado todo o desmonte da</p><p>ordem legal instituída em 1988, aprovando a retirada de direitos e</p><p>garantias, por vezes em flagrante descompasso com a letra do texto</p><p>constitucional. A aplicação discricionária da lei, fazendo com que</p><p>garantias vigorem ou deixem de vigorar de acordo com a identidade</p><p>dos atingidos, é outro traço marcante da atuação do Supremo ao</p><p>longo da crise política.</p><p>A democracia “consolidada” no Brasil revelou-se uma ilusão. No</p><p>momento em que se concertou uma coalizão para virar a mesa do</p><p>processo político até então pactuado, os mecanismos de defesa do</p><p>regime democrático falharam. Órgãos de controle, Poder Legislativo,</p><p>Poder Judiciário, mídia “independente” e sem censura: em todos</p><p>eles, as forças voltadas à destruição da legalidade sobrepujaram</p><p>aquelas que a defendiam. É que a ilusão da consolidação</p><p>democrática funda-se em outra ilusão, mais elementar: a ilusão da</p><p>neutralidade das instituições, epidêmica na ciência política (cf.</p><p>MIGUEL, 2017).</p><p>Conclusão</p><p>No momento em que escrevo este texto (junho de 2018), o governo</p><p>Michel Temer aproxima-se melancolicamente de seu fim. O homem</p><p>que chegou ao poder com o golpe de 2016, em meio aos aplausos</p><p>frenéticos da mídia e do empresariado, é o presidente mais</p><p>impopular da história do país. Nada menos do que 82% dos</p><p>brasileiros consideram sua gestão ruim ou péssima, mas o que</p><p>espanta é que ainda restem 3% a avaliá-la como ótima ou boa</p><p>(BOGHOSSIAN, 2018). A parcela que se beneficia com sua gestão,</p><p>marcada por retração de direitos, desmonte de políticas sociais,</p><p>entrega das riquezas nacionais ao capital estrangeiro e economia</p><p>patinando, além de corrupção desenfreada, é bem menor do que</p><p>este percentual.</p><p>Este divórcio entre a preferência popular e o exercício do poder</p><p>não é um acidente de percurso. É a manifestação, radicalizada pela</p><p>nossa posição como sociedade periférica, da crescente</p><p>incompatibilidade entre o capitalismo e a democracia, que tem</p><p>levado ao fenômeno recente da chamada “desdemocratização”.</p><p>A democracia que se construiu nos países do Ocidente ao longo</p><p>do século XX sempre ficou muito aquém do ideal de governo do</p><p>povo. Ainda assim, representava a promessa de incorporação da</p><p>maioria da população na cena política e a possibilidade de que seus</p><p>interesses fossem levados em conta nos processos de tomada de</p><p>decisão. Para a classe dominante, foi um compromisso necessário</p><p>para manter a paz social e também um mecanismo central para a</p><p>afirmação da ficção do Estado “neutro” diante dos conflitos sociais</p><p>(ANDERSON,</p><p>2002 [1976]). Funcionava ainda como um termômetro</p><p>para medir o ânimo dos dominados e calibrar as concessões que</p><p>precisavam ser feitas.</p><p>Este casamento de conveniência entre o capitalismo e a</p><p>democracia, que sempre foi conflituoso, entrou em crise nas últimas</p><p>décadas. Com isso, estamos saindo de uma situação de</p><p>democracias formais assimétricas, em que as regras legais de</p><p>igualdade política eram profundamente viciadas pela desigualdade</p><p>no controle dos recursos, para democracias menos-que-formais, em</p><p>que a vigência das próprias regras formais é condicionada às</p><p>circunstâncias. Não basta influenciar no resultado dos processos</p><p>formalmente inclusivos de decisão coletiva, por meio do dinheiro ou</p><p>do controle da informação, ou ainda desvirtuar a implementação das</p><p>propostas vitoriosas, graças ao monopólio privado das decisões de</p><p>investimento, à corrupção ou à promiscuidade entre agentes do</p><p>poder público e do capital. Os próprios resultados são respeitados</p><p>ou não conforme o caso.</p><p>A desdemocratização que vivenciamos não é um acaso, um azar,</p><p>uma turbulência do momento – é um projeto. É o projeto das classes</p><p>dominantes na atual quadra histórica. Visa anular o grau de</p><p>imprevisibilidade que a democracia, mesmo limitada, introduz na</p><p>reprodução da dominação.</p><p>Os quatro fatores que sustentaram o casamento conflituoso entre</p><p>democracia e capitalismo estão debilitados. O consenso em favor da</p><p>democracia foi minado. Por um lado, por seus resultados cada vez</p><p>mais pífios, com o desmonte dos sistemas de segurança social. Por</p><p>outro, pela radicalização do discurso da direita, que investe</p><p>abertamente contra o valor da igualdade e contra os direitos, ao</p><p>mesmo tempo em que estimula a xenofobia, o racismo, o familismo</p><p>e o moralismo retrógrado, numa estratégia que guarda muitos</p><p>pontos de contato com aquela dos fascismos do entreguerras.</p><p>A economia capitalista entrou em retração, sem que uma saída</p><p>desponte ao final do túnel – a estratégia de criar sucessivas bolhas</p><p>com o intuito de “enganar” a crise parece ter chegado ao limite. Os</p><p>governos agem sistematicamente para salvar os especuladores à</p><p>custa dos cidadãos comuns, eternas vítimas das políticas de</p><p>austeridade, justificando-se com argumentos quase rituais. Isto é, o</p><p>sistema opera sem muito disfarce, contribuindo para a perda de</p><p>legitimidade das instituições da democracia. O fato é que está</p><p>sumindo a “gordura” que permitia a acomodação entre acumulação</p><p>e legitimação, em parte por causa da crise, em parte porque a</p><p>combinação entre derrota da União Soviética, globalização e difusão</p><p>da visão de mundo neoliberal fez aumentar o apetite da classes</p><p>proprietárias.</p><p>Tudo isso tem reduzido a capacidade de pressão dos dominados.</p><p>Ao mesmo tempo, mudanças no cenário ideológico têm prejudicado</p><p>as condições para a sua ação coletiva, sobretudo pela diminuição</p><p>da solidariedade interna à classe trabalhadora e pela ascensão de</p><p>percepções crescentemente individualistas. Nos países centrais, é</p><p>comum ver esse processo como consequência do processo de</p><p>integração dos trabalhadores à sociedade de consumo, mas ele</p><p>ocorre mesmo em países periféricos, como o Brasil, em que tal</p><p>integração é muito deficiente. Creio que há uma relação íntima, de</p><p>realimentação, entre este movimento e a ascensão do discurso mais</p><p>duro da direita, mencionada antes. Por outro lado, a emergência de</p><p>novos ativismos, muito vocais, vinculados a outros eixos de</p><p>dominação social, como gênero, raça ou sexualidade, embora</p><p>alimente a esperança de resistência, ainda não foi capaz de produzir</p><p>uma reação articulada aos retrocessos, e tem servido de espantalho</p><p>para a produção do pânico moral que é o combustível do</p><p>radicalismo reacionário.</p><p>Por fim, a esquerda e o campo democrático parecem incapazes</p><p>de sair da postura reativa e apresentar propostas efetivas. A União</p><p>Soviética não era um modelo muito sedutor, mas era a</p><p>demonstração viva de que, sim, existiam alternativas. Hoje, parece</p><p>que só temos a oferecer a ilusão de uma improvável reconstrução</p><p>daquilo que um dia existiu – no nosso caso, do capitalismo</p><p>periférico, nem isso; é aquilo que às vezes imitamos de maneira</p><p>muito capenga e sonhávamos ter. Improvável porque as condições</p><p>mudaram e nada indica que irão se recompor.</p><p>No Brasil, o pós-golpe tem mostrado uma fraca capacidade de</p><p>reação dos movimentos populares, que conseguiram uma única</p><p>vitória importante – o adiamento da reforma que visa reduzir direitos</p><p>previdenciários – e amargaram muitas derrotas. Mas a natureza</p><p>destrutiva do projeto que está sendo implementado e a insatisfação</p><p>profunda que ele já está gerando são indícios de que haverá</p><p>dificuldades crescentes no futuro próximo. Mesmo assim, aqueles</p><p>que empalmaram o poder têm demonstrado que não querem</p><p>nenhum tipo de recomposição negociada da ordem anterior.</p><p>A demonstração mais cabal de que esta porta está fechada é a</p><p>prisão do ex-presidente Lula. A arbitrariedade da perseguição</p><p>judiciária contra ele e os vieses do julgamento que o condenou já</p><p>foram demonstrados de forma inequívoca (PRONER et al., 2017).</p><p>Mas Lula, favorito inconteste para a eleição presidencial de 2018,</p><p>representava a melhor possibilidade de restabelecer um pacto que</p><p>mantivesse algo do espírito da Constituição de 1988, como</p><p>demonstravam suas palavras e seus gestos como pré-candidato. O</p><p>caminho era voltar a negociar políticas compensatórias em troca de</p><p>paz social. Não estou julgando se a saída que ele encarnava era a</p><p>melhor. Na verdade, penso que não; este lulismo 2.0 certamente</p><p>seria uma encarnação ainda mais limitada do acordo original,</p><p>operando em condições piores, adaptando-se aos limites mais</p><p>estreitos que, a partir do golpe, as classes dominantes</p><p>estabeleceram para a expressão do conflito político no Brasil.</p><p>O fato é que, ao mandar para a cadeia o maior líder popular do</p><p>Brasil, impedindo sua candidatura e ferindo de morte a legitimidade</p><p>das eleições, os novos donos do poder mostraram a disposição de</p><p>queimar seus navios e bloquear qualquer repactuação. Seu projeto</p><p>é, para usar as palavras de Wanderley Guilherme dos Santos (2017,</p><p>p. 130), o de uma “ordem de dominação (...) nua de propósitos</p><p>conciliatórios com os segmentos dominados”. Esta é a essência do</p><p>projeto da desdemocratização.</p><p>A desdemocratização não é o fim da democracia porque, ao</p><p>menos até onde a vista alcança, o rótulo será mantido, cada vez</p><p>mais reduzido a uma caricatura degenerada de seu sentido original.</p><p>Do nosso lado, creio que a tarefa é fazer o contrário. É buscar</p><p>resgatar os valores centrais do ideal de democracia e afirmá-los de</p><p>maneira intransigente – a paridade de influência política de todas as</p><p>cidadãs e todos os cidadãos, a autonomia coletiva, o combate sem</p><p>tréguas às diversas formas de opressão. E, mesmo sem a</p><p>esperança de uma vitória no futuro próximo, é manter o horizonte de</p><p>uma sociedade democrática e igualitária, sabendo que esses dois</p><p>adjetivos são mutuamente dependentes. A democracia que pode se</p><p>opor à desdemocratização não é uma democracia amedrontada,</p><p>disposta a se contentar com o mínimo, passiva diante das</p><p>desigualdades e das opressões. É uma democracia que afirme de</p><p>maneira plena a si mesma. A luta contra a desdemocratização não</p><p>pode levar a uma nova acomodação em condições precárias, mas à</p><p>radicalização da própria democracia.</p><p>Referências Bibliográficas</p><p>ABRANCHES, Sérgio. Presidencialismo de coalizão: o dilema</p><p>institucional brasileiro. Dados, vol. 31, nº 1, 1988, pp. 5-32.</p><p>ANDERSON, Perry. As antinomias de Gramsci. In. Afinidade</p><p>seletivas. São Paulo: Boitempo, 2002 [1976].</p><p>AVRITZER, Leonardo. Impasses da democracia no Brasil. Rio de</p><p>Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.</p><p>BENEDETTI, Mario. Andamios. Madrid: Alfaguara, 1996.</p><p>BOGHOSSIAN, Bruno. Reprovação aumenta e torna Temer o mais</p><p>impopular da história. Folha de S. Paulo, 10 de junho, 2018, p. A-</p><p>8.</p><p>CROZIER, Michael J.; HUNTINGTON, Samuel P.; WATANUKI, Joji.</p><p>The crisis of democracy: report on the governability of</p><p>democracies to the Trilateral Comission. New York: New York</p><p>University Press, 1975.</p><p>D’ARAÚJO, Maria Celina. A elite dirigente do governo Lula. Rio de</p><p>Janeiro: CPDOC, 2009.</p><p>DAMIANI, Marco. La sinistra radicale in Europa: Italia, Spagne,</p><p>Francia, Germania. Roma: Donzelli, 2016.</p><p>FRIEDLANDER, David. Não há motivos para tirar Dilma do cargo,</p><p>diz Setúbal. Folha de S. Paulo, 23 de agosto, 2015 p. A-23.</p><p>GÓES, Walder de. Militares e política, uma estratégia para a</p><p>democracia. In. O’DONNELL, Guillermo; REIS, Fábio Wanderley</p><p>(Orgs.). A democracia no Brasil: dilemas e perspectivas. São</p><p>Paulo: Vértice, 1998.</p><p>HUNTINGTON, Samuel P. A terceira onda: a democratização no</p><p>final do século XX. São Paulo, Ática, 1994 [1991].</p><p>IANONI, Marcus. Por uma abordagem ampliada das coalizões.</p><p>Sinais Sociais, nº 33, 2017, pp. 131-201.</p><p>LINZ, Juan J.; STEPAN, Alfred. A transição e consolidação da</p><p>democracia: a experiência do Sul da Europa e da América do Sul.</p><p>São Paulo: Paz e Terra, 1999 [1996].</p><p>MIGUEL, Luis Felipe. Democracia fraturada: o golpe, os limites do</p><p>arranjo concorrencial e a perplexidade da ciência política. In.</p><p>MIGUEL, Luis Felipe; BIROLI, Flávia (Orgs.), Encruzilhadas da</p><p>democracia. Porto Alegre: Zouk, 2017.</p><p>PRONER, Carol et al. (Orgs.) (2017). Comentários a uma sentença</p><p>anunciada: o processo Lula. Bauru: Canal 6, 2017.</p><p>REIS, Fábio Wanderley. Consolidação democrática e construção do</p><p>Estado. In. O’DONNELL, Guillermo; REIS, Fábio Wanderley</p><p>(Orgs.). Op. cit.</p><p>SANTOS, Wanderley Guilherme dos. A democracia impedida: o</p><p>Brasil no século XX. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2017.</p><p>SARTORI, Giovanni. A teoria da democracia revisitada, 2 v. São</p><p>Paulo: Ática, 1994 [1987].</p><p>TAQUARI, Fernando. “Não quero o impeachment, quero ver a Dilma</p><p>sangrar”, diz tucano. Valor Econômico, 9 mar 2015. Disponível em</p><p>http://www.valor.com.br/politica/3944096/nao-quero-o-</p><p>impeachment-quero-ver-dilma-sangrar-diz-tucano. Acesso em 8</p><p>jun. 2018.</p><p>VITULLO, Gabriel E.. Transitologia, consolidologia e democracia na</p><p>América Latina: uma revisão crítica. Revista de Sociologia e</p><p>Política, nº 17, 2001, pp. 53-60.</p><p>http://www.valor.com.br/politica/3944096/nao-quero-o-impeachment-quero-ver-dilma-sangrar-diz-tucano</p><p>Ninguém viu, ninguém vê: comentários sobre o estado</p><p>da violência na atual democracia (de poucos)</p><p>Tulio Custódio</p><p>Amarildo de Souza, Claudia Ferreira da Silva, Luana Barbosa,</p><p>Marcos Vinícius. Corpos negros assassinados. O assassinato de</p><p>pessoas negras nas periferias brasileiras é tema de comoção, luta,</p><p>raiva e divulgação de ideias acerca da violência do Estado e</p><p>práticas de genocídio contra população negra. Seria simples esse</p><p>statement se não levássemos em conta uma pergunta premissa</p><p>inicial, proposta pela filósofa Denise Ferreira, “Por que a morte das</p><p>pessoas negras não causam uma crise ética?”. Essa questão, de</p><p>natureza ética e política, evidencia dois problemas que tornam a</p><p>constatação em torno da violência e assassinato de pessoas negras</p><p>nas periferias brasileiras mais emblemática: (1) a violência como</p><p>norma, estrutura de interação e condução dos corpos em territórios</p><p>periféricos e (2) a reprodução da subalternidade desses corpos</p><p>dentro de uma ordem neoliberal.</p><p>Analisar o estado da violência nas periferias brasileiras poderia</p><p>nos levar a diversas discussões atuais e pertinentes. No entanto</p><p>muitas delas acabam limitadas ou limitadoras para tentar se</p><p>compreender fenômenos que ocorrem nas sociedades herdeiras do</p><p>colonialismo e imperialismo globais. É o exemplo da lógica da</p><p>internalização da violência (Gewalt), proposta pelo filósofo Byung-</p><p>Chul Han, que compreende um processo de psicologização na qual</p><p>a violência extrema e física perderia palco para sua reprodução na</p><p>sociedades do desempenho (Han, 2017). Essa ideia é interessante</p><p>para analisar a condução dos corpos na lógica das sociedades do</p><p>desempenho conduzidas pelo neoliberalismo global. Porém,</p><p>sabemos que historicamente o deslocamento da violência física não</p><p>ocorrera somente para “espaços da psique”, mas também</p><p>concretamente para espaços de marginalização como os territórios</p><p>periféricos (espelhos da colônia), como é o caso do Brasil, e</p><p>especialmente das nossas periferias.</p><p>Por isso, é fundamental não se perder a dimensão física e real na</p><p>qual atua a violência, por meio da eliminação das vidas e</p><p>cerceamento físico e territorial de pessoas, nas condições sociais e</p><p>políticas específicas de lugares tributários de uma herança</p><p>colonialista. Como nos ensinou Frantz Fanon, “a colonização é</p><p>violência em estado natural” (FANON, [1961] 2006, p. 79), ou seja,</p><p>ela não é paliativo para controle ou imposição, ela é o modelo</p><p>normal de interação. Para tentar lidar e refletir sobre esse aspecto</p><p>no contexto brasileiro, propomos neste pequeno artigo a reflexão</p><p>sobre dois eixos: quem é o sujeito dessa violência e a qual processo</p><p>estrutural de subalternização esse sujeito está submetido.</p><p>Nesse sentido, na primeira parte do artigo falaremos sobre o</p><p>Ninguém, conceito cunhado por Marc Lamont Hill ao analisar os</p><p>processos contemporâneos de violência estrutural de negros nos</p><p>EUA, e como esse lugar de ser um Ninguém corrobora para a</p><p>normalização da violência como modelo de interação contra esses</p><p>corpos. Aqui estamos falando sobre a entidade Estado como gestor</p><p>das expectativas de anulação de corpos “descartáveis” e da</p><p>moralização da pobreza, processo conectado com a herança do</p><p>colonialismo e desenvolvimento do neoliberalismo.</p><p>Na segunda parte, vamos discorrer sucintamente sobre o</p><p>processo que reproduz a subalternidade dos sujeitos Ninguéns.</p><p>Para tanto, apresentamos o conceito do filósofo Cornel West de</p><p>niggerization, pelo qual encontramos convergências entre estados</p><p>de marginalização estrutural, bem como reflexos do neoliberalismo</p><p>na condução e reprodução dessas vidas.</p><p>Este artigo é um pequeno esforço de provocar uma reflexão que</p><p>vá além das proposições de emergência − que marcam a percepção</p><p>epidêmica dos assassinatos de negros − do agir político, bem como</p><p>da crença mal informada em que a mudança racional política dos</p><p>atores em jogo (marcados por posições progressistas) seja o</p><p>suficiente para mudança dessa realidade. Como diz Zizek, em seu</p><p>fabuloso ensaio sobre violência, “precisamos estudar, estudar e</p><p>estudar suas causas” (2014, Kindle edition). A violência é parte de</p><p>um estado natural, portanto não falamos sobre vontades ou</p><p>decisões. Falamos sobre a mudança de um projeto civilizacional.</p><p>Quem é o sujeito da ação violenta? Sobre Ninguéns [ 20 ]</p><p>Falar sobre violência pode ser falar sobre processos intersticiais de</p><p>reprodução do genocídio. Com essa premissa, podemos tentar</p><p>entender a violência contra setores mais marginalizados na</p><p>sociedade brasileira não apenas na sua face explícita e aparente: da</p><p>violência armada policial que promove massacre dessa população</p><p>periférica. Outros elementos são importantes para entender tais</p><p>processos e nos possibilitam enxergar a violência como movimento</p><p>motriz de interação e sujeição da subalternidade de corpos</p><p>periféricos.</p><p>Quando pensamos na violência contra populações periféricas</p><p>brasileiras, pensamos prontamente na violência física operada pelo</p><p>braço repressivo do estado, a polícia militar. Oriunda de uma</p><p>tradição autoritária da ditadura civil-militar, essa instituição, que</p><p>exerce o monopólio legítimo pertencente ao Estado brasileiro, é</p><p>vista como antagonista dos cidadãos visto que opera em sua lógica</p><p>a favor da marginalização e criminalização da pobreza. Claro que tal</p><p>processo, que envolve abusos e o desvirtuamento de uma lógica do</p><p>“servir e proteger” a qual passa a funcionar como “violentar e</p><p>desumanizar”, é marcado por perspectivas de corrupção e</p><p>desigualdade social determinante de que uns sejam protegidos</p><p>enquanto outros sejam descartáveis (e, portanto, devem ser</p><p>controlados e punidos por sua descartabilidade).</p><p>Entretanto, essa violência não pode ser tratada de maneira</p><p>abstrata em termos dos processos que a produzem e a reproduzem.</p><p>Corpos concretos estão assujeitados a essas violências, e, portanto,</p><p>é importante falar sobre quem é o sujeito dela. É nesse sentido que</p><p>trazemos para a reflexão a ideia de “ser Ninguém”. O jornalista e</p><p>acadêmico norte-americano Marc Lamont Hill, entre muitos outros</p><p>que se debruçaram</p><p>sobre esse tema, caracteriza muito bem esse</p><p>processo do que é ser um “Ninguém” na sociedade. Seu trabalho</p><p>Nobody: Casualties of the America’s war against the vulnerables:</p><p>from Ferguson to Flint é uma obra exemplar que explicita a relação</p><p>entre as violências sistêmicas contra os mais vulneráveis e a</p><p>condição de reprodução da precarização da vida que fundamenta</p><p>tais violências. Nesta obra, podemos perceber alguns modos de</p><p>constituição dessa vulnerabilidade que, apesar de refletirem</p><p>empiricamente a realidade dos Estados Unidos da América, são</p><p>largamente aplicáveis à realidade brasileira, pois refletem processos</p><p>estruturais próprios de uma sociedade que passou pelo colonialismo</p><p>e legou essa história como modelo de condução das interações</p><p>raciais.</p><p>Então, bem: o que precisamos saber sobre esse sujeito?</p><p>Primeiramente devemos entender a relação do sujeito vulnerável, ou</p><p>seja, o periférico, com a cidade, o espaço que ele ocupa. Devemos</p><p>partir do ponto de que o Ninguém é basicamente o sujeito sem</p><p>direito à cidade. Ele habita (mal) nela, mas não é parte constitutiva e</p><p>considerada plenamente, porque é um habitante e não um cidadão.</p><p>O debate presente na sociologia sobre precariado (STANDING,</p><p>2013) nos ilumina sobre tal condição. O denizen (termo que designa</p><p>“habitante sem os mesmos direitos que o cidadão”) é esse sujeito</p><p>incorporado à dinâmica do sistema, geralmente como peça do</p><p>sistema produtivo, mas sem se beneficiar dos direitos e benesses</p><p>que configuram a convivência naquele espaço habitado. É uma</p><p>condição de subcidadania, que não exclui plenamente, mas não</p><p>insere. Que não aniquila completamente, mas usa da violência para</p><p>controlar a experiência desses sujeitos em termos de oportunidades,</p><p>acessos e liberdades. Esse habitante sem direitos é a condição de</p><p>grande parte dos sujeitos moradores e presentes nos territórios</p><p>periféricos do Brasil, especialmente nas grandes cidades.</p><p>Dessa maneira, ser Ninguém no contexto nacional é ser</p><p>confrontado com formas sistêmicas de violência perpetradas pelo</p><p>Estado brasileiro. Ser alvo da violência cotidiana, da injustiça do dia</p><p>a dia, do terrorismo como condição de normalidade que gera a</p><p>sensação constante de abandono. Falar sobre violência, portanto, é</p><p>falar desses Ninguéns, devidamente vulnerabilizados, precarizados,</p><p>segregados, violentados, fichados, mal-educados, mal alimentados,</p><p>processados, condenados e presos. Uma trilha perfeita do caminho</p><p>que a sociedade, em suas desigualdades, marca para certas vidas,</p><p>para certos corpos.</p><p>Ora, quando retratamos dessa maneira, fica evidente que falamos</p><p>de estruturas, mas numa perspectiva do indizível: o não dito que</p><p>conforma a existência contínua de trânsitos por espaços não</p><p>enxergados e de experiências de vidas não contabilizadas, vidas</p><p>que não estão na ideia de cidade que concebemos e entendemos</p><p>de maneira concreta com suas estruturas dadas. Esse sujeito</p><p>Ninguém está num outro lugar, a periferia. Ser ninguém, portanto,</p><p>significa também ser o Outro da cidade, do espaço civilizado. Esses</p><p>Ninguéns das cidades brasileiras estão em “lugar nenhum”, em</p><p>oposição àqueles Alguéns que estão em “algum lugar”. Um Outro</p><p>que habita perenemente esses lugares indizíveis, indesejáveis, não</p><p>enxergados, e a sua existência ali possui experiências da Outridade</p><p>não civilizatória: violência, invisibilidade, aniquilação. O Outro é o</p><p>não digno, portanto sua vida é não digna, e a maneira como o</p><p>Estado brasileiro se relaciona com ele e controla sua existência, não</p><p>o contabilizando como cidadão e sim como objeto de controle e</p><p>marginalização, é também não digna.</p><p>Indubitavelmente não dá para não pensar nos debates atuais</p><p>realizados sobre encarceramento, como a de Michelle Alexander</p><p>(2010), Angela Davis (2003) e Juliana Borges [ 21 ], ou ainda parte</p><p>dessas falas inscritas em produções documentais como 13ª emenda</p><p>e o documentário Time, sobre Kalief Browder, ambos disponíveis no</p><p>Netflix. Ou ainda na expressão pública que protestos como os do</p><p>Black Lives Matter, na sua dimensão real e difusão virtual pelas</p><p>redes com a hashtag, e a expressão brasileira da luta contra o</p><p>genocídio dos jovens negros periféricos, como as campanhas</p><p>#JovemNegroVivo, #OndeestáAmarildo e #30DiasPorRafaelBraga,</p><p>entre outras. A natureza presente no debate do encarceramento</p><p>aprofunda o estado estrutural que está por trás da resposta sobre</p><p>quem são esses sujeitos vulnerabilizados pela violência, os</p><p>Ninguéns, ao enunciar a noção de “castas raciais”. Especialmente</p><p>no trabalho de Alexander, podemos entender que a estrutura que</p><p>prende, institucionaliza, retira direitos e violenta sujeitos negros é a</p><p>estrutura que os coloca em um lugar específico de “subcidadanias”,</p><p>um lugar marcado pela pertença racial em uma história de</p><p>continuidades conectada com a herança da escravidão e</p><p>reprodução modernizada do racismo na ordem do capitalismo</p><p>financeiro.</p><p>A violência, enquanto ação e atitude de aniquilação e destruição,</p><p>serve como condutor de uma interação de poder que está marcada</p><p>em um sistema mais amplo: genocídio. A normalidade da violência</p><p>do Estado é, na verdade, a normalidade de um processo amplo de</p><p>genocídio, de aniquilação de um povo, em vistas de reproduzir sua</p><p>estatuto de subalternidade. Para entender esse termo, precisamos</p><p>abandonar a percepção unicamente física do mesmo, que remete</p><p>ao assassinato de pessoas pertencentes a um grupo ou</p><p>comunidade, e adotar uma perspectiva mais ampla, de poder e</p><p>moralidade.</p><p>Quem nos ofereceu essa noção mais ampla foi o intelectual</p><p>Abdias do Nascimento quando, nos anos 1970, desenvolveu a</p><p>noção de genocídio como um sistema amplo que atinge material,</p><p>física e culturalmente a existência humana. Existe uma série de</p><p>ações e interesses por trás das ações que visariam desmantelar a</p><p>herança cultural e existência de certos povos. Na perspectiva de</p><p>Brasil, na questão racial, esse processo contém a violência policial</p><p>contra as comunidades periféricas, mas também passa pelo</p><p>silenciamento das culturas negras, a desvalorização e invisibilidade</p><p>das pautas raciais, tanto na política quanto na sociedade, e o</p><p>apagamento das figuras de liderança e referência entre o povo</p><p>negro. O processo de “embranquecimento”, como dizia Nascimento,</p><p>era amplo, macro e totalizante, com vias de aniquilar a dignidade e a</p><p>humanidade dos povos negros, mas se utilizando do discurso da</p><p>harmonia entre as raças e a democracia racial.</p><p>O que vemos na realidade de hoje, com grande profusão das</p><p>normativas neoliberais na forma de vivermos e conceber nossa</p><p>existência, são questões oriundas desse processo de genocídio. Ele</p><p>não pode ser mais lido apenas como embranquecimento pura e</p><p>simplesmente, de modo que houve sofisticação do próprio processo</p><p>nos últimos 40 anos (desde o lançamento da obra, O genocídio do</p><p>negro brasileiro, em 1978). Porém, quando entendemos os</p><p>elementos que estão em jogo na visão moral que o sistema</p><p>capitalista destila entre os sujeitos na sociedade, percebemos sua</p><p>força e essência.</p><p>A começar pela lógica da moralização da pobreza. O sistema</p><p>neoliberal designa uma nova forma de relação com a liberdade, na</p><p>qual ela passa a ser moralizada e concebida como fonte de ação de</p><p>escolhas individuais. Estas escolhas orientariam uma condução da</p><p>vida que abraçaria o cálculo econômico e a normativa da</p><p>competitividade, e assim cada indivíduo seria responsável pelo</p><p>empreendimento de sua própria vida. Mas, no plano das decisões (e</p><p>da estrutura política), esse mesmo sistema é responsável pelo</p><p>desmantelamento do estado de bem-estar social e de uma série de</p><p>direitos sociais conquistados no século XX. Dessa maneira, os</p><p>indivíduos estariam livres para construir suas vidas, mas sem</p><p>condições básicas para tal. Não obstante, a leitura moral é que, a</p><p>partir do exercício da liberdade, cada indivíduo seria responsável</p><p>por seu sucesso e fracasso. Suas decisões − e não as estruturas</p><p>herdadas de marginalidade e exclusão − seriam responsáveis pela</p><p>situação na qual ele se encontra. Assim, a pobreza se torna um</p><p>problema moral, fruto de pessoas que seriam moralmente</p><p>questionáveis acerca de sua capacidade de fazer parte</p><p>e integrar</p><p>uma sociedade que almeja e se projeta apenas no sucesso. Quem</p><p>habita e existe nas condições da pobreza? Que tipo de inserção</p><p>estamos promovendo quando acreditamos que as pessoas não</p><p>conseguem “chegar lá” por culpa delas mesmas?</p><p>Essa lógica de moralização está conectada a outra norma</p><p>estruturante que é a lógica normativa do empreender-se do</p><p>capitalismo, ou seja, uma lógica que funciona pela normativa da</p><p>competitividade e da falta de solidariedade entre os sujeitos.</p><p>Enquanto sujeito-empresa [ 22 ], é necessário concorrer com o</p><p>próximo para conseguir alcançar as poucas chances que existem</p><p>(lembremos que é nessa mesma perspectiva econômica de</p><p>sociedade que a ideia de “escassez” ganha uma escala essencial no</p><p>debate do cálculo racional). Diante da escassez, que é um traço</p><p>evidente material na realidade das periferias, e da necessidade de</p><p>competição, os valores do sistema de competição e consumo</p><p>ganham força espetacular. Claro, podemos refutar isso se</p><p>apelarmos para a ideia de que as tradições comunitárias no</p><p>ambiente periférico estão vivas, e mantêm uma conexão e</p><p>solidariedade entre essas pessoas. No entanto, é sobre essas</p><p>tradições que os valores de mercado atuam. A substituição</p><p>daquelas, que garantiam laços com os quais as pessoas</p><p>conseguiam se aparar diante das adversidades do contexto, pelos</p><p>novos valores do capitalismo, ocorre de maneira silenciosa, atrativa</p><p>e com promessa de mudança.</p><p>Outro elemento é sobre o processo de depreciação das vidas, ou</p><p>internalização de uma lógica da razão negra, de uma vida</p><p>subalterna sem sentido, facilmente solúvel e descartável (MBEMBE,</p><p>2014). É a introjeção das leis (nomos) consagradas pelo</p><p>colonialismo, da guerra e da raça, como condições de depressão</p><p>moral e ética, mas também como formas de determinação do que se</p><p>torna inevitável. O que ela promove é o aprofundamento da situação</p><p>desses sujeitos, que são material e subjetivamente consumidos por</p><p>uma vida que passa a não ter sentido, significado e afeto. O nome</p><p>desse processo, uma espécie de estado de degradação e terror, foi</p><p>denominado pelo filósofo Cornel West como niggerization. Esse</p><p>terror aprofunda a condição de precarização da vida e amplia a</p><p>sujeição dessas pessoas à violência, tanto do Estado quanto do</p><p>mercado, ou entre si mesmas. Estar niggerizado é estar inseguro,</p><p>desprotegido, sujeito à violência randômica e odiado. É o quadro de</p><p>realidade, ou melhor, dos efeitos que a estrutura social e econômica</p><p>se impõe a esses Ninguéns da sociedade. Vamos retomar esse</p><p>ponto mais adiante.</p><p>Por último, devemos lembrar que a entidade Estado age como um</p><p>gestor dos interesses do mercado. Veja, essa afirmação deve ser</p><p>compreendida com cautela. É comum, na tradição materialista,</p><p>entender que a entidade Estado é uma mera extensão do capital.</p><p>Não se trata disso apenas. O que podemos entender da ideia</p><p>acerca do Estado gestor é o Estado (e seus agentes) incorporando</p><p>a lógica normativa do cálculo racional na sua forma de governar.</p><p>Dessa maneira, a representação do bem comum passa a ser a</p><p>representação das condições para exercício da normatividade</p><p>neoliberal, o que significa validação do individualismo, do consumo</p><p>e competitividade marcadas pelo livre mercado. Como pensadores</p><p>do neoliberalismo nos elucidam, não se trata do “Estado mínimo”,</p><p>como muitas vezes o discurso público do capital reverberam. O</p><p>neoliberalismo enquanto norma necessita ser inserido e conduzido</p><p>na vida das pessoas, e isso implica uma atividade de controle e não</p><p>de afastamento ou retirada. O Estado brasileiro, portanto, quando</p><p>opera com sua força policial armada e violenta nas periferias, opera</p><p>dentro da lógica da moralização da pobreza: o processo de violência</p><p>e controle sobre aqueles corpos, aqueles sujeitos, responde a uma</p><p>premissa de que aqueles seres falharam, e, portanto, devem ser</p><p>contidos, controlados, e alguns eliminados. A pobreza carrega e</p><p>expressa em si os males do sistema, ao invés de ser entendida</p><p>como o efeito dos males da desigualdade criada pelo sistema.</p><p>De maneira geral, portanto, a violência é uma forma de controle e</p><p>condução de corpos periféricos, representantes da pobreza</p><p>brasileira, os Ninguéns, em uma situação de subalternidade. Ou</p><p>seja, manutenção de um “lugar nenhum”, de uma vida precária e</p><p>precarizada que marca a realidade do genocídio. A importância,</p><p>como mencionamos, de entender a perspectiva mais ampla da</p><p>noção de genocídio é que essa condição deve ser mantida − e o</p><p>caminho do genocídio não é a aniquilação total. Assim como o</p><p>capital, em um processo incessante de busca e acumulação, o</p><p>genocídio se torna uma estratégia normativa de condução dessas</p><p>vidas periféricas, incessante na violência e na precarização, mas</p><p>sem um fim. Da mesma maneira que o sistema constrói o imperativo</p><p>da realização da satisfação pessoal e subjetiva através do consumo</p><p>hedonismo, a violência é a realização satisfatória do lugar destinado</p><p>ao não desejável, ao Outro: a manutenção de seu estado de</p><p>niggerizado. Para compreendermos melhor esse processo,</p><p>precisamos falar mais sobre o sentido de niggerization.</p><p>Niggerization: moralização e reprodução da subalternidade</p><p>Bom, vale falar um pouco sobre como filósofo norte-americano</p><p>Cornel West construiu uma reflexão sobre os efeitos culturais e</p><p>psicológicos raciais, a partir da ascensão e mobilidade dos negros</p><p>na sociedade capitalista, e chegou no conceito de niggerization. Isso</p><p>porque, apesar de ser uma noção engendrada no contexto norte-</p><p>americano, ela possui elementos que são interessantes para</p><p>reflexão da realidade das periferias brasileiras.</p><p>Uma das questões que norteou as reflexões de Cornel West é</p><p>“Como o capitalismo (economia de mercado) afeta os negros?”, e</p><p>ela aparece fundamentalmente em dois trabalhos: Race Matters, de</p><p>1993, ensaio crítico acerca da atualidade e centralidade da questão</p><p>racial nos EUA; e em Democracy Matters, de 2004, no qual, a partir</p><p>de alguns argumentos desenvolvidos no trabalho anterior, West vai</p><p>mais fundo nos efeitos da moralidade do mercado para democracia.</p><p>A teoria de West parte de uma visão sociológica acerca de como a</p><p>cultura (na moralidade) e as estruturas econômicas e sociais se</p><p>combinam para gerar resultados percebidos no cotidiano, na</p><p>experiência vivida.</p><p>Para construir uma análise sobre a experiência vivida pelos</p><p>negros no capitalismo, West parte da referência marxista, tributada</p><p>a Georg Lukács, acerca da expansão da relação entre commodities</p><p>(mercadoria) e falsa consciência no pensamento marxiano.</p><p>Basicamente, sua leitura de Lukács toma como referência a ideia de</p><p>que o processo de comoditização afeta todas as esferas da</p><p>existência humana, e deve ser visto como problema central e</p><p>estrutural da sociedade capitalista. O ponto é que a comoditização</p><p>resulta em uma consciência baseada em reificação, na vigência de</p><p>objetos falsos. Nesse sentido, a reificação, através da</p><p>racionalização e do cálculo, acaba por não transcender o seu falso</p><p>fundamento mas, pelo contrário, mergulha profundamente na</p><p>consciência humana. Acaba, portanto, por se impor em valores de</p><p>mercado, que são compreendidos como uma moralidade</p><p>concernente ao capitalismo.</p><p>Quando o capitalismo entra em cena, com sua lógica de expansão</p><p>de mercados e produtos, e em conjunto com seus valores, amplia-</p><p>se o processo da comoditização onipresente da existência (WEST,</p><p>1993). A essência da acumulação infinita do capital para a criação</p><p>de mais capital impacta na criação contínua e quase desesperada</p><p>de novas e diversificadas mercadorias. O que decorre desse</p><p>processo é a ampliação da comoditização, um processo que</p><p>converte mais e mais os elementos da esfera do mundo da vida em</p><p>objetos alienáveis. A comoditização da vida aliena não apenas a</p><p>dimensão externa, mas as estruturas subjetivas dos indivíduos.</p><p>Deste modo, os indivíduos passam a realizar expectativas,</p><p>desejos e anseios por constituir laços de uma maneira tangível à</p><p>mercadoria, de modo que seja possível consumir para satisfazer −</p><p>já encontramos traços disso no brilhante trabalho de Herbert</p><p>Marcuse Ideologia da sociedade industrial (MARCUSE, 1966). [ 23 ]</p><p>Uma moralidade própria do mercado emerge e se apropria de</p><p>indivíduos e comunidades, convertendo cada laço ou tradição em</p><p>uma operação de valor e de troca, e os sentidos e significados das</p><p>interações em valores alienáveis, atingíveis ou não através de um</p><p>valor. E junto com o sistema, ela também se expande.</p><p>O ponto de referência da análise de West é a mobilidade social</p><p>dos negros e a participação política, ou seja, a inserção dos negros</p><p>na sociedade capitalista enquanto consumidores, fruto das</p><p>condições criadas pelo movimento dos direitos civis nos EUA (com o</p><p>desmantelamento do Jim Crow e a garantia de políticas afirmativas).</p><p>Desde os anos 1960, os negros norte-americanos têm sido</p><p>submetidos às influências intensas da cultura de mercado, como a</p><p>noção de consumo hedonista e competitividade. Com a expansão</p><p>dos mercados e as conquistas dos direitos civis, a inclusão e</p><p>ascensão social dos negros ocorreu não em uma esfera construtiva</p><p>da ampliação da cidadania de direitos e vida democrática, mas</p><p>orientada pelos valores da mercadorização, pela realização do</p><p>consumo. Isso determinou a desconexão de laços tradicionais nas</p><p>comunidades negras e sua substituição por valores do mercado,</p><p>individualistas e hedonistas, pautados na satisfação individual a</p><p>partir do consumo e competição. Os laços tradicionais garantiam à</p><p>experiência negra uma visão profundamente histórica e</p><p>necessariamente associada a uma construção de referenciais de</p><p>passado e possibilidade de futuro por relações que estabelecem</p><p>significado e sentido para lidar com tais feridas ontológicas geradas</p><p>pelo racismo.</p><p>O que tornaria, segundo West, essa experiência realmente</p><p>diferente (e mais destrutiva) para os negros? Duas razões: (a) a</p><p>mobilidade social dos negros não ocorreu de forma coletiva, ou seja,</p><p>apenas uma pequena porção se beneficiou das oportunidades de</p><p>ascensão como acesso à educação superior, empregos qualificados</p><p>e acesso à crédito, enquanto a grande maioria continua amargando</p><p>a filas dos subempregos ou desemprego, péssimas condições de</p><p>moradia, falta de serviços básicos, entre outras mazelas sociais; e</p><p>(b) a herança acumulada das feridas históricas ontológicas criadas</p><p>pela supremacia branca, pois mesmo diante do imediatismo</p><p>promovido pela razão do mercado, as consequências mais</p><p>profundas advindas da experiência histórica não são resolvidas com</p><p>acesso ao consumo de mercadorias. Esses dois motivos estão</p><p>conectados, e a herança da construção ética do racismo se mantém</p><p>através das crenças culturais e imagens midiáticas; ou seja, a</p><p>inteligência negra, a habilidade negra, a beleza negra e o caráter</p><p>das pessoas negras continuam sendo atacados das mais variadas</p><p>maneiras, sutis ou não, bem como a mobilidade social de negros</p><p>continua bastante limitada (WEST, 1993, p. 18).</p><p>Claro que poderíamos impor um limite ao uso dessa análise se</p><p>formos pensar o contexto brasileiro, o qual não passou plenamente</p><p>por um movimento de direitos civis, bem como os quadros de</p><p>inserção a partir da existência de políticas afirmativas</p><p>(especialmente no ensino superior) são ainda muito recentes. Mas,</p><p>exatamente pela confluências das experiências históricas dos</p><p>negros brasileiros acerca de um processo de mobilidade que não foi</p><p>amplamente coletivo, além da manutenção da herança acumulada</p><p>das feridas ontológicas realizadas pelo racismo, a conceituação dos</p><p>processos pode nos servir para reflexão.</p><p>Vale demarcar que há um componente essencial de subjetividade</p><p>nessa experiência. A angústia existencial negra, gerada pelas</p><p>feridas ontológicas do racismo, potencializam uma insegurança</p><p>profunda e pesada da existência negra que permanece diante da</p><p>supressão dos laços tradicionais por conta da moralidade do</p><p>mercado. Dessa forma, a experiência negra diante do capitalismo</p><p>financeiro é de uma condição profundamente subjetiva de</p><p>desespero e insegurança. A essa condição, West nomeou de</p><p>Niilismo negro, uma condição de existência marcada pela falta de</p><p>sentido, esperança e amor. [ 24 ]</p><p>Sabemos que a experiência niilista não é nova, e está diretamente</p><p>associada à realidade imposta pela racismo e o legado escravista.</p><p>No entanto, com a diluição da conexão com pessoas e instituições</p><p>que garantiriam, esperança, pertencimento e coesão diante da</p><p>moralidade do mercado, ela é potencializada. Dessa forma, a</p><p>sensação de impotência, desesperança e raiva tende a se voltar</p><p>contra a própria comunidade, dado que não há esperança e</p><p>potencial de ação para superar a condição vivenciada. [ 25 ] O</p><p>niilismo negro nega a esperança na qual a raiva é fundada − pela</p><p>falta de produtividade possível diante da ausência de laço.</p><p>Em Democracy Matters (2004), West esboça a expansão dessa</p><p>reflexão moral, enxergando os efeitos do niilismo negro não apenas</p><p>nas comunidades negras, mas em todos os estratos precarizados</p><p>pelo capitalismo financeiro vigente. Para West, o casamento nefasto</p><p>entre poder econômico, burocracia política e a direita cristã no</p><p>século XXI, além da ampliação do neoliberalismo, são responsáveis</p><p>por gerar três dogmas antidemocráticos, ou seja, reversos ao ideal</p><p>da vida democrática: fundamentalismo do livre mercado, militarismo</p><p>agressivo e autoritarismo.</p><p>O fundamentalismo do livre mercado é a realização da</p><p>comoditização da vida, no sentido da crença dogmática de glorificar</p><p>os elementos que comporiam um livre mercado: cooperação</p><p>internacional, modernização, felicidade, competição, entre outros.</p><p>No entanto, esses elementos são apenas idealizações de uma</p><p>realidade que se impõe aos indivíduos trabalhadores como</p><p>austeridade, competição agressiva e excesso de consumo e</p><p>trabalho. Para West é apenas uma maneira de redefinição da vida</p><p>pública, dado que o fundamentalismo de mercado desloca o sentido</p><p>das questões importantes para a definição da vida democrática em</p><p>favor da glamourização dos ganhos materiais, prazer narcisista e</p><p>busca por conquistas individualistas.</p><p>O fundamentalismo do livre mercado cega as pessoas para</p><p>qualquer aspecto que não as questões relevantes para a moralidade</p><p>do mercado. Primeiramente porque as faz perder a medida dos</p><p>laços e da historicidade de suas relações ao tomar como referencial</p><p>de satisfação o presente-instantâneo, no qual o prazer</p><p>proporcionado pelo consumo se materializa. Segundo, porque esse</p><p>fundamentalismo aprofunda a alienação dos indivíduos em relação</p><p>ao sistema, não apenas na sua compreensão mais ampla das</p><p>dinâmicas, mas também na não culpabilização das elites financeiras</p><p>pelo mesmo. O indivíduo acredita, portanto, que existe uma</p><p>mecanismo “suspenso no Absoluto” que determina tais dinâmicas</p><p>(WEST, 2004, p. 27).</p><p>É com esse recorte que West aproxima a sua análise de Niilismo</p><p>negro a um diagnóstico da democracia. West considera que parte</p><p>do desmonte da vida democrática é oriunda do niilismo. Do mesmo</p><p>modo que ocorre com o Niilismo negro, como resultado da</p><p>comoditização e expansão das moralidades do mercado, West</p><p>considera a sociedade capitalista como um todo em um quadro de</p><p>depressão psíquica, desvalorização pessoal e desespero social</p><p>(WEST, 2004, p. 26).</p><p>O niilismo, portanto, emerge diante do reconhecimento da</p><p>ambivalência acerca da crença no livre mercado, em especial pelos</p><p>seus custos sociais e segurança (como eliminação de direitos ou</p><p>existência expansiva de crimes de colarinho branco). Também a</p><p>crescente expansão do mercado e das moralidades concernentes a</p><p>ele cria uma conjuntura na qual o significado e conhecimento</p><p>atrelados às práticas e à existência são continuamente desfigurados</p><p>e destituídos de qualquer continuidade ou estabilidade. E, sem</p><p>dúvida, um dos condicionantes fundamentais para a perda de</p><p>sentido e significado, as moralidades do mercado, são nulas a</p><p>qualquer senso de certo e errado, por sua condição de moral, mas</p><p>isso tem sido base para o respaldo de muita corrupção do sistema e</p><p>instituições, atingindo os princípios da democracia representativa</p><p>em todas as esferas. Em suma, as moralidades e práticas</p><p>fundamentalistas do mercado levam a uma situação de</p><p>“gangsterização da sociedade” (WEST, 2004). Para West, uma</p><p>mentalidade gangster é focada em resolver</p><p>de travesti-lo de uma aparência de</p><p>legalidade e institucionalidade, o que estava em andamento era um</p><p>golpe jurídico-parlamentar que contava com o apoio da maior parte</p><p>da elite empresarial e dos principais grupos de mídia e que não se</p><p>esgotaria com a retirada de Dilma Rousseff da presidência da</p><p>República.</p><p>Desde o período de interinidade, entre a abertura do processo na</p><p>Câmara e a aprovação do impeachment pelo Senado, o governo de</p><p>Michel Temer deixou claros os interesses econômicos, políticos e</p><p>sociais que estavam por trás do golpe com a implantação de um</p><p>programa de austeridade econômica, carregado de medidas</p><p>impopulares, que dificilmente teria sido sufragado pelo voto, caso</p><p>fosse defendido por algum candidato, ao longo de uma campanha</p><p>eleitoral. Além disto, a forte atuação de grupos conservadores no</p><p>parlamento e na sociedade, somado ao intenso ativismo – com viés</p><p>conservador - do Judiciário, do MPF e da Polícia Federal, passou a</p><p>representar séria ameaça às liberdades e aos direitos individuais, o</p><p>que se traduziu em eventos como as tentativas de cerceamento da</p><p>liberdade de cátedra nas universidades; o desrespeito de garantias</p><p>jurídicas básicas em nome de um pretenso combate à corrupção,</p><p>que teria sua face mais trágica no suicídio do reitor da Universidade</p><p>Federal de Santa Catarina, Luiz Carlos Cancellier, após uma</p><p>controversa operação da Polícia Federal, autorizada por uma juíza</p><p>de primeira instância; a atuação de grupos como o Escola Sem</p><p>Partido, pressionado e coagindo professores e estabelecimentos de</p><p>ensino, muitas vezes com o apoio ou o beneplácito de juízes e</p><p>procuradores federais; ou a condução de processos carregados de</p><p>vícios contra o “inimigo” da vez, como aquele que levou o ex-</p><p>presidente Lula à prisão, consagrando a prática do chamado</p><p>lawfare.</p><p>Nesse quadro geral de restrições das liberdades e de fragilização</p><p>da democracia, que se agudizou após o golpe de 2016, outro</p><p>elemento central é a banalização cada vez maior da utilização das</p><p>Forças Armadas em operações de segurança pública. Esta</p><p>“policialização” das FA, que chegaria ao seu ponto máximo na</p><p>decretação da intervenção federal no estado do Rio de Janeiro, vem</p><p>num crescente desde a década de 1990, tendo como base o artigo</p><p>142 da Constituição Federal, que prevê que as Forças Armadas</p><p>podem ser convocadas pelos poderes constitucionais para</p><p>salvaguardar as instituições e garantir a ordem pública (Ver</p><p>RODRIGUES, 2016).</p><p>Regulamentadas em 1999 durante o governo de Fernando</p><p>Henrique Cardoso, as operações GLO (Garantia da Lei e da Ordem)</p><p>tiveram seu escopo ampliado em agosto de 2010, durante o governo</p><p>Lula, através da Lei Complementar 136. Foi essa mudança na</p><p>legislação que permitiu a realização da polêmica e bastante criticada</p><p>política de “pacificação”, posta em prática no Rio de Janeiro pelo</p><p>então governador Sérgio Cabral, ampliando ainda mais a repressão</p><p>e a violência policial sobre as populações mais pobres, sem</p><p>conseguir resultados efetivos no combate à criminalidade no longo</p><p>prazo.</p><p>Assim, mesmo a policialização das FA não sendo uma</p><p>singularidade do governo Temer − até porque, como visto, esse</p><p>processo foi bastante estimulado durante os anos de governo</p><p>petista −, não se pode desconsiderar que, nos últimos dois anos, ela</p><p>se intensificou e adquiriu novas nuances. É importante ressaltar</p><p>que, no processo que culminou no afastamento da Presidenta Dilma</p><p>Rousseff, as Forças Armadas mantiveram uma aparente</p><p>neutralidade. Entretanto, levando-se em conta o forte componente</p><p>conservador nelas existente, tal neutralidade esteve mais para um</p><p>apoio implícito ao golpe por parte de setores expressivos das FA do</p><p>que para uma postura de real isenção política.</p><p>Neste sentido, o governo Michel Temer, com seus baixíssimos</p><p>índices de popularidade, procurou manter o apoio dos quartéis</p><p>através de inúmeras concessões, tais como a aprovação de</p><p>aumentos salariais para os militares − apesar do congelamento dos</p><p>gastos públicos − e a sua exclusão do polêmico projeto de reforma</p><p>da previdência, além da aprovação, pela base governista no</p><p>congresso, de medidas de interesse das FA, como a lei que</p><p>estabeleceu que os crimes de morte contra civis cometidos por seus</p><p>integrantes no decorrer de operações GLO sejam julgados por</p><p>tribunais militares e não civis, garantindo assim certa “imunidade”</p><p>para si em operações de ocupação de comunidades ou mesmo na</p><p>repressão a protestos de rua.</p><p>Portanto, quando a democracia brasileira se encontra</p><p>profundamente fragilizada e o Estado de direito se esvai, configura-</p><p>se mais uma vez a possibilidade de as Forças Armadas servirem</p><p>como guarda pretoriana das elites. Não mais, porém, através da</p><p>intervenção direta, mas sim de uma interpretação ampla feita pelos</p><p>ocupantes do Executivo de um mecanismo previsto no arcabouço</p><p>constitucional brasileiro. Como um elemento complicador a mais</p><p>nesse cenário conturbado, setores das FA deram um passo além e</p><p>se engajaram de forma bastante efetiva na luta político-eleitoral</p><p>brasileira, nos dois anos subsequentes ao soft coup de 2016,</p><p>obtendo um protagonismo inédito desde a retomada dos governos</p><p>civis, em 1985, após o término do último período ditatorial (Ver</p><p>FREIXO, 2018).</p><p>Tendo todo esse quadro como pano de fundo, ocorreram as</p><p>eleições de 2018, que acabariam por confirmar a guinada à direita</p><p>esboçada no Brasil nos últimos anos. Esta se consolida não</p><p>somente com a eleição de Jair Bolsonaro (PSL) para a Presidência</p><p>da República, mas também com a ampliação da maioria direitista no</p><p>Congresso Nacional, fazendo com que a bancada eleita seja ainda</p><p>mais conservadora que a da legislatura anterior. [ 1 ]</p><p>Nos dois anos de governo Michel Temer, a legitimidade do sistema</p><p>político foi ruindo, especialmente após o escândalo da corporação</p><p>JBS de 2017, segundo a qual políticos tradicionais de diversos</p><p>espectros ideológicos haviam sido beneficiados com propinas.</p><p>Desde 2017, Bolsonaro começa a crescer nas intenções de votos</p><p>consistentemente, mas muitos ainda acreditavam na regeneração</p><p>do sistema político, que começou a se estruturar a partir do início da</p><p>redemocratização e que era marcado, de um lado, pela polarização</p><p>PT e PSDB, e, por outro, pelo grande peso político do PMDB e do</p><p>chamado “centrão”, formado por parlamentares de vários partidos,</p><p>que gravitava em sua órbita.</p><p>Além disto, o processo eleitoral de 2018 foi atípico e bastante</p><p>turbulento. Lula, na prisão desde abril, manteve-se como primeiro</p><p>colocado nas pesquisas até que seu sucessor, Fernando Haddad,</p><p>registrasse sua candidatura. Semanas antes das eleições, na</p><p>véspera do feriado da independência, Bolsonaro sofre um atentado</p><p>que impacta fortemente a campanha e, poucas semanas depois,</p><p>recebe o apoio decisivo do bispo Edir Macedo − e de toda a</p><p>máquina religiosa e midiática da Igreja Universal −, que se soma a</p><p>outras lideranças neopentecostais que já haviam aderido à</p><p>candidatura do militar reformado.</p><p>Milhões de mulheres de todo o país foram às ruas no movimento</p><p>#elenão, mas isso não foi suficiente para barrar o candidato que</p><p>despontava em primeiro lugar também pela disseminação de fake</p><p>news através das novas mídias, notadamente os grupos de</p><p>WhatsApp. Sem comparecer aos debates televisivos, a campanha</p><p>do candidato vitorioso acabou sendo fortemente pautada por uma</p><p>agenda de ordem moral, com pouquíssimas discussões efetivas</p><p>sobre os grandes temas nacionais. Deve-se ressaltar também que</p><p>as principais forças políticas do campo progressista participaram do</p><p>pleito muito fragmentadas e com estratégias eleitorais bastante</p><p>discutíveis. Isto favoreceu sobremaneira a candidatura da extrema</p><p>direita, que se apresentou de forma eficiente como uma alternativa</p><p>anti-establishment, conseguindo surfar na onda antipolítica e</p><p>estabelecendo canais de comunicação diretos com parte expressiva</p><p>do eleitorado brasileiro, dispensando a mediação da mídia</p><p>tradicional.</p><p>São estas questões e seus desdobramentos que aparecem, direta</p><p>ou indiretamente, ao longo deste livro. Em um debate</p><p>interdisciplinar, os sete artigos nele reunidos jogam luzes sobre as</p><p>causas e as consequências dos processos</p><p>e eliminar, ao invés de</p><p>melhorar, criando portanto uma mentalidade de guerra contra todos.</p><p>É nesse sentido que, de maneira análoga ao que West percebeu</p><p>em sua tese sobre niilismo negro, a sensação de medo e</p><p>insegurança sentida pelos negros historicamente podia ser, de modo</p><p>não simétrico, transportada para diagnosticar o que estava</p><p>ocorrendo com a sociedade como um todo, sob a égide das</p><p>moralidades do mercado. A esse processo, West denominou de</p><p>niggerization. A niggerization é o estado constante de experiência</p><p>de se sentir inseguro, desprotegido, sujeito a violência randômica e</p><p>odiado. “Be niggerized” é ser desumanizado, uma experiência de</p><p>realidade vivida pelos negros por cerca de quatro séculos, agora</p><p>“importada” pelo neoliberalismo, construindo uma disposição</p><p>subjetiva de instabilidade e inação nas classes trabalhadoras.</p><p>Niggerization é um estado de terror, é uma condição de manutenção</p><p>das pessoas ordinárias, everyday-people, em um estado de medo,</p><p>intimidação, desesperança e falta de apoio e laços: “they never</p><p>straighten their backs up, they feel as they can’t make a difference,</p><p>that their voices don’t account” (WEST, 2004, p. 24).</p><p>Para pensar o contexto brasileiro, especialmente na reprodução</p><p>da marginalidade nos espaços periféricos das cidades brasileiras,</p><p>podemos pensar no conceito de niggerization em conversa com</p><p>uma ideia de estado-subjetivo latente da população marginalizada,</p><p>como formas de reprodução do estado de exclusão. Isso nos</p><p>permite “limpar” um pouco o conceito de seu valor autorreferenciado</p><p>na sociedade norte-americana, e aceder os elementos mais</p><p>universalizáveis da crítica presentes nele. A desestruturação dos</p><p>laços tradicionais, da coesão/ solidariedade, falta de esperança e</p><p>sentido se fazem presentes na teoria crítica social, e são próximas</p><p>às perspectivas apontadas por West. São, em suma, fenômenos</p><p>que pensam a experiência do indivíduo na modernidade capitalista.</p><p>A experiência precisa também ser verificada nos modos como</p><p>ocorre a subjetivação dessa racionalidade neoliberal, pois é ela que</p><p>permite a reprodução de um atribuição de si − simulacro, na</p><p>perspectiva da “razão negra” (MBEMBE, 2014) − entre os excluídos-</p><p>incluídos, os precarizados, aquelas vidas que não vale a pena</p><p>lamentar. O status de Ninguém (HILL, 2014) ou denizen</p><p>(STANDING, 2103) ganha importância nesta análise pois não</p><p>adquire status de exclusão permanente, mas uma reprodução de</p><p>status de subalternidade; parte da estrutura mantém indivíduos</p><p>operantes na esfera do trabalho e no modo como interagem e</p><p>desejam, mas não plenos, próprios para insubordinação ou</p><p>insurreição. Existe, portanto, uma “economia de afetos” presente na</p><p>noção de niggerization que converge com discussões presentes da</p><p>racionalidade neoliberal.</p><p>A ideia de niggerization nos permitiria enxergar mais além essa</p><p>experiência, ao perceber como o aprofundamento da subjetividade,</p><p>da incapacidade de estabelecimento dos laços, da falta de sentido e</p><p>significado, do inseguro, desprotegido, sujeito a violência aleatória-</p><p>mas-certa [ 26 ] e odiado, instauraria uma disposição estrutural de</p><p>exclusão que agora não seria exclusividade da questão racial. O</p><p>deslocamento e a não superação do que Achille Mbembe chama de</p><p>Razão Negra (MBEMBE, 2014), que é de toda a não humanidade</p><p>atribuída os negros, agora se dissipa e se transforma não como</p><p>mercadoria, que transita livremente no capitalismo, mas como</p><p>racionalidade, uma governamentalidade que controla e condiciona</p><p>corpos, experiências e destinos de uma grande porção da</p><p>humanidade. Esse movimento, marcado por um enquadramento</p><p>específico de humilhação e sofrimento, estaria no precariado,</p><p>porque o motor desse deslocamento está sendo construído nas</p><p>privações e frustrações relativas sofridas.</p><p>A niggerization se encontraria na bifurcação entre a democracia e</p><p>o capital. No aprofundamento da racionalidade neoliberal, no</p><p>esvaziamento (niilista) do humanismo e desmanche do sentido do</p><p>bem comum (vinculado à vida democrática). O aprofundamento da</p><p>subalternização precária do indivíduo nessa contemporaneidade,</p><p>que estaria demarcado na separação cada vez mais latente dos</p><p>indivíduos marcados por opressões históricas que atravessaram</p><p>todas as mudanças de paradigmas da modernidade: os sujeitos de</p><p>a)</p><p>b)</p><p>c)</p><p>d)</p><p>raça, os marcados pela escravidão e agora os principais</p><p>protagonistas (no andar de baixo) das listas de desigualdades e</p><p>índices sociais e econômicos, o precariado (MBEMBE, 2014). A</p><p>ideia do “paradigma de humanidade subalterna” pode iluminar</p><p>teoricamente o que West desenvolve a partir da noção de</p><p>experiência vivida, enquanto paradigma de subjetividade, um</p><p>modelo de inferioridade social.</p><p>A definição do que significa “ser niggerizado” é, nas palavras de</p><p>Cornel West, “be unsafe, unprotected, subjected to random violence</p><p>and hated” (WEST, 2004, p. 24), ou seja, niggerization se refere a</p><p>processos no âmbito da subjetividade que mantêm indivíduos</p><p>afastados da dimensão democrática, enquanto descidadãos, com o</p><p>corte de laços de comunidade e laços sociais. Esse corte de laços</p><p>encontra proximidades interessantes com a constituição do</p><p>precariado, dos denizens, ou seja, habitantes das sociedades com</p><p>direitos limitados (STANDING, 2013). O precariado se encontra,</p><p>pela perspectiva objetiva e material do mundo do trabalho, em</p><p>situação de insegurança, de instabilidade e desconectado de laços</p><p>de solidariedade.</p><p>Nesse sentido, niggerization seria a perspectiva da condição</p><p>subjetiva do precariado, constituído pelos sujeitos Ninguém,</p><p>circunscrita a experiências de humilhação e sofrimento,</p><p>responsáveis pela reprodução da racionalidade do sistema. Isso</p><p>significa preconizar que a experiência subjetiva dos sujeitos</p><p>Ninguém é marcada pelos seguintes sentimentos:</p><p>de insegurança, pois esses sujeitos se encontram</p><p>estruturalmente sem seus direitos para subsistência e digna</p><p>reprodução vida;</p><p>de desproteção, dado que são abandonados pelo Estado, com</p><p>suas práticas voltadas ao capital;</p><p>de sujeição a violência randômica, marcada por uma</p><p>disposição subjetiva de ser vítima da violência, com seus</p><p>corpos dispostos ao uso, prolongamento da viração e do</p><p>trabalho pelo trabalho;</p><p>e de se sentir odiado, por conta da moralização das escolhas</p><p>individuais como medida de sucesso ou fracasso do sujeito</p><p>empreendedor de sua própria vida, a pobreza, ou a medida de</p><p>fracasso que cabe à realidade dos precarizados, a percepção</p><p>moral de que são odiados e malquistos é intensa.</p><p>O objetivo, portanto, de trazer esse conceito para análise é a</p><p>possibilidade de olhar para processos subjetivos de</p><p>desmantelamento dos laços de sentido e afeto de um ponto de vista</p><p>ampliado, no capitalismo global, para grupos além dos determinados</p><p>por marcadores étnicos ou raciais, mas circunscritos ao lugar de</p><p>subalternidade, ao indesejável, abandonável, vidas não dignas de</p><p>luto − ungrievable (BUTLER, 2016) −, o Outro.</p><p>Concluindo: ninguém viu, ninguém vê</p><p>A violência do estado, nesse contexto, não é apenas das armas. É a</p><p>violência da existência de moralidades hierarquizantes e</p><p>excludentes. É a violência do cotidiano, que perpassa cada estágio</p><p>da vida e existência desses sujeitos. Nesse contexto, entendemos</p><p>que o sujeito produzido e alvo da violência é o Ninguém, alvo de</p><p>descuido e sujeito a todo tipo de degradação social e econômica.</p><p>Ainda, esse sujeito Ninguém é reproduzido em um processo de</p><p>depreciação moral por meio da niggerization, ou seja, para além da</p><p>desigualdade material, elementos que introjetam na subjetividade</p><p>desses Ninguéns a lógica de reprodução da dominação sistêmica.</p><p>A violência é base que conduz à separação, como um meio-fio,</p><p>que deixa nítido o que é espaço habitável e o que é rua, ou, para</p><p>sermos menos metafóricos, entre Alguém e Ninguém. Separa o que</p><p>é privado (e, portanto, digno de cuidado e valor) e o que é de</p><p>ninguém, ou seja, solto e indigno. Você já imagina onde o Ninguém</p><p>está. Mais ninguém viu, ninguém quer ver.</p><p>Referências Bibliográficas</p><p>ALEXANDER, Michelle. The New Jim Crow: Mass incarceration in</p><p>the Age of Colorblindness. Kindle Edition. New York: The New</p><p>Press,</p><p>2010.</p><p>ARANTES, Paulo. O novo tempo e outros estudos sobre a era da</p><p>emergência. Coleção Estado de Sítio. São Paulo: Boitempo, 2014.</p><p>BRAGA, Ruy Gomes. A política do precariado: do populismo à</p><p>hegemonia lulista. São Paulo: Boitempo, 2012.</p><p>______. A rebeldia do precariado: trabalho e neoliberalismo no Sul</p><p>global. São Paulo: Boitempo, 2017.</p><p>BROWN, Wendy. American Nightmare: Neoliberalism,</p><p>Neoconservatism, and De-Democratization. Political Theory,</p><p>Volume 34 Number 6, Sage Publications, December 2006, pp.</p><p>690-714.</p><p>______. Edgework: Critical Essays on Knowledge and Politics. New</p><p>Jersey: Princeton University Press, 2005.</p><p>______. 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Essa interpretação parece desconsiderar tanto</p><p>a história da cidadania no Brasil quanto a efetividade dos avanços</p><p>realizados entre 1994 e 2014. A “onda conservadora” de 2016</p><p>nunca foi uma onda: ela é, sim, uma reação iniciada por uma elite</p><p>tradicional, e que captura a imaginação da periferia, que é marcada</p><p>por forças aparentemente contraditórias que incluem, de um lado</p><p>reflexos aristocratas a mudanças epiteliais, e de outro um atavismo</p><p>anti-elitista e anti-política, isso tudo em um Estado definido pela</p><p>exclusão.</p><p>Mas será que esses dois lados são realmente contraditórios?</p><p>Pensar criticamente a democracia no Brasil contemporâneo</p><p>significa, necessariamente, refletir (inclusive historicamente) a</p><p>respeito das capacidades que diferentes parcelas da nossa</p><p>sociedade têm de acessar o Estado. A ideia contemporânea de</p><p>democracia, construída através de sucessivas revoluções (a</p><p>americana, a francesa, a Primavera dos Povos) faz avançar um</p><p>universalismo de direitos, garantias e proteções para indivíduos −</p><p>concretizada na noção de cidadania − que, ainda hoje, em 2018,</p><p>permanece como um horizonte distante para boa parte da</p><p>população do mundo. O Brasil parece, cada vez mais, destacar essa</p><p>exata tensão ao visibilizar, por meio de ações formais e informais, as</p><p>hierarquias e divisões que insiste em segregar a nossa sociedade.</p><p>O ensaio apresentado aqui constitui um primeiro esboço de um</p><p>projeto de pesquisa dedicado ao desenvolvimento de uma análise</p><p>interseccional (focando sobretudo na intersecção entre as</p><p>categorias de gênero e raça) do Estado brasileiro, buscando</p><p>compreender de que forma esse Estado responde à diversidade</p><p>identitária que caracteriza a população do país, e quais as</p><p>implicações dessa resposta às dinâmicas de inclusão e exclusão</p><p>política no Brasil contemporâneo. A pergunta que queremos</p><p>responder nessa investigação é a seguinte: como a diversidade de</p><p>gênero e raça, característica da sociedade brasileira, afeta o acesso</p><p>de diferentes pessoas ao Estado, e o que isso significa para a ideia</p><p>e a prática da democracia brasileira?</p><p>Para tanto, iniciamos o texto discutindo a trajetória histórica do</p><p>desenvolvimento da cidadania contemporânea, refletindo sobretudo</p><p>a respeito das diferentes encarnações dessa instituição, e o que</p><p>isso significa para dinâmicas de inclusão e exclusão social. Na</p><p>sequência, exploramos a ideia de uma “semi-cidadania”, conforme</p><p>elaborada por Elizabeth Cohen (2009), para desnudar alguns dos</p><p>paradoxos da democracia brasileira contemporânea. Por fim,</p><p>avançamos em algumas reflexões sobre alternativas para um novo</p><p>pacto democrático, um que nos possibilite a superação dessas</p><p>dinâmicas sistemáticas de exclusão tão enraizadas na história do</p><p>país.</p><p>Cidadania: pertencimento, reconhecimento, representação</p><p>Na História Moderna e Contemporânea, o conceito de cidadania se</p><p>desenvolve ao longo de um século que começa em 1688, com a</p><p>Revolução Gloriosa na Inglaterra e a posterior publicação da</p><p>Declaração de Direitos em 1689, através da Revolução Americana</p><p>de 1776, com a sua própria Carta de Direitos de em 1789, bem</p><p>como com a Revolução</p><p>Francesa e a Declaração dos Direitos dos</p><p>Homens e do Cidadão, no mesmo ano. No período de cerca de cem</p><p>anos, passamos de sujeitos para cidadãos, um processo de</p><p>amadurecimento que muitos descrevem como o nascimento da</p><p>política contemporânea.</p><p>O conceito de cidadania desenvolvido por este longo processo</p><p>transmite, em linhas gerais, uma ideia de apropriação e</p><p>engajamento − os cidadãos são aqueles que realmente detêm o</p><p>poder sobre a política e, portanto, têm direito a participação na</p><p>sociedade (o slogan Power to the people, “Poder para o povo”, tão</p><p>comum no último século, só faz sentido nessa perspectiva). A</p><p>cidadania, portanto, é a adesão política. Nos últimos três séculos de</p><p>história, foi consagrada como um horizonte para a política</p><p>democrática. Ou seja, ser cidadão significa ser titular de um poder</p><p>público não limitado e participar de modo estável do poder de</p><p>decisão coletiva.</p><p>No entanto, o processo de desenvolvimento dessa instituição</p><p>apresenta algumas reviravoltas estratégicas internas relevantes,</p><p>inclusive para o processo político que leva para o que iremos</p><p>chamar de semi-cidadania, ecoando as análises de Elizabeth Cohen</p><p>(2009, 2013).</p><p>No entanto, antes de passar para uma análise aprofundada da</p><p>semi-cidadania no contexto brasileiro, é importante estabelecer</p><p>como chegamos a essa situação paradoxal de uma condição de</p><p>pertencimento precário que irá ser caracterizada como “semi-</p><p>cidadania”. Aqui, queremos defender que o estabelecimento de um</p><p>critério de mercado como principal marcador da participação e</p><p>inclusão social efetiva provoca um esvaziamento progressivo do</p><p>conteúdo básico da dignidade humana que é historicamente</p><p>associado à ideia de cidadania ..</p><p>Queremos argumentar que essa forma de minimização do</p><p>conceito de cidadania, de fato, é uma espécie de inversão da ideia</p><p>de cidadania que deu forma aos estados, especialmente no contexto</p><p>do pós-guerra. A concepção liberal de cidadania e democracia da</p><p>modernidade liberal tardia parece estar vinculada ao exercício de</p><p>um certo conjunto de direitos e garantias básicas, que</p><p>possibilitariam o exercício pleno da autonomia individual dentro do</p><p>Estado − é esse núcleo duro para uma concepção política e liberal</p><p>de pessoa que vai oferecer um conteúdo para os discursos liberais e</p><p>republicanos por um império do direito até meados da década de</p><p>1970.</p><p>No entanto, a partir da década de 1970, percebemos um</p><p>deslocamento nas prioridades do discurso sobre cidadania, que tem</p><p>consequências imensas no nível do Estado e do mercado. Se, para</p><p>a doutrina liberal-republicana do pós-Segunda Guerra Mundial, o</p><p>principal marcador de cidadania plena era o acesso ao Estado por</p><p>meio da concessão e do exercício de direitos, por meio da</p><p>implementação de políticas públicas de garantia e promoção de</p><p>cidadania, a partir da década de 1970 o principal marcador de</p><p>inclusão torna-se o acesso ao mercado. Nancy Fraser (2013)</p><p>recentemente caracterizou essa abordagem como uma tentativa de</p><p>“redução do cidadão ao consumidor”, segundo a qual o principal</p><p>marcador de sucesso ou fracasso social e de eficácia política de</p><p>medidas institucionais era o reflexo de medidas na balança</p><p>comercial de um país (ou na forma como tais medidas permitiam o</p><p>aumento da população capaz de consumir). A aposta dessa doutrina</p><p>libertária e neoliberal, que marca intensamente o discurso sobre</p><p>cidadania política entre os anos 1990 e 2010, é a de que</p><p>marcadores socioculturais de cidadania poderiam ser subsumidos</p><p>dentro de marcadores de acesso ao mercado.</p><p>Em outras palavras, o sucesso das políticas de inclusão social não</p><p>é medido através de índices clássicos como educação, segurança</p><p>ou acesso a saúde e saneamento básico, mas, antes de tudo,</p><p>através da capacidade individual de compra e de participação no</p><p>mercado (ou seja, renda individual e capacidade de aquisição de</p><p>crédito). Temos, aqui, uma reviravolta interessante: um conceito que</p><p>nasce de maneira eminentemente política no final do século XVIII e</p><p>início do século XIX ganha, ao final do século XX, uma roupagem</p><p>econômica. Se, inicialmente, cidadania significava engajamento no</p><p>Estado, a proposta neoliberal claramente subverte a noção de</p><p>inclusão para uma que enfatiza participação no mercado.</p><p>Na realidade, o que esse redimensionamento da ideia de</p><p>cidadania permite, em grande medida, é um deslocamento e um</p><p>esvaziamento da obrigação do Estado na segunda metade do</p><p>século XX, um Estado que, ao menos no contexto das democracias</p><p>liberais ocidentais, estava intimamente ligado a garantia de direitos</p><p>básicos, mas que agora torna-se mais vinculado ao facilitamento de</p><p>uma política de não intervenção em preços e disponibilidade de</p><p>produtos, flexibilização de relações de trabalho e relaxamento de</p><p>regras para movimentação de bens e capitais. Essas ideias, por si</p><p>só, não são incompatíveis, certamente, com o ideário keynesiano de</p><p>um liberalismo “enraizado” [ 27 ], ou mesmo com o discurso</p><p>republicano e contratualista clássico. No entanto, a forma como elas</p><p>adquirem prioridade na administração pública acabam por reduzir o</p><p>núcleo duro moral e político da cidadania, maximizando a função</p><p>estritamente econômica dessa instituição.</p><p>É importante sublinhar uma característica central dessa acepção</p><p>econômica de cidadania: aqui, o consumidor/ cidadão não têm</p><p>gênero, raça ou condição social. Na realidade, o discurso neoliberal</p><p>subsume e apaga as diferenças socioeconômicas, de gênero e</p><p>raciais dentro da ideia de “consumidor”. Essa noção mínima de</p><p>cidadania está diretamente ligada ao que Deirdre McCloskey (2002)</p><p>chama de “pecados secretos da economia”. McCloskey faz uma</p><p>longa crítica às pressuposições básicas da concepção de</p><p>autointeresse e de racionalidade dentro da economia política liberal,</p><p>que no fundo é alinhada com uma crítica do modelo de economia</p><p>política desenvolvida por Vilfredo Pareto. A teoria de Pareto foi</p><p>importantíssima para a forma como interpretamos,</p><p>contemporaneamente, a relação entre desenvolvimento, políticas</p><p>públicas e cidadania, especialmente por ter desenvolvido dois</p><p>princípios básicos de equilíbrio de distribuição − vamos chamar a</p><p>esses dois princípios de “dois dogmas do paretianismo”.</p><p>O primeiro dogma é o que chamamos de domínio irrestrito. A ideia</p><p>de domínio irrestrito parte do princípio de que a gente é capaz de ter</p><p>preferências, e uma sociedade civil razoável é a que nos permite ter</p><p>preferências de forma mais irrestrita possível (sem, por exemplo,</p><p>marcadores estáveis de preço ou de custo previamente</p><p>estabelecidos pelo governo). O segundo ponto é o que chamamos</p><p>de egocentrismo metodológico, ou egocentrismo psicológico, que</p><p>consiste no seguinte: ninguém optará por um estado social que</p><p>implique uma piora relativa diante de um estado social estável</p><p>anterior − não de maneira livre. Esses dois dogmas estão</p><p>intimamente ligados com o que John Locke escreve no Segundo</p><p>Tratado Sobre o Governo Civil (2014), e com o que toda uma</p><p>tradição libertária vai pensar sobre o problema da cidadania, da</p><p>liberdade e do consumo. A premissa básica aqui é a seguinte: você</p><p>é aquilo que escolhe consumir, e, inversamente, aquilo que você</p><p>escolhe consumir foi uma decisão sua, de modo que é</p><p>perfeitamente natural que o seu respectivo lugar dentro de uma</p><p>sociedade reflita como foram feitas as suas opções. A relação entre</p><p>liberdade, responsabilidade e mérito, em todas as leituras libertárias,</p><p>nasce desses dois dogmas.</p><p>Amartya Sen, no seu artigo The impossibility of a Paretian Liberal</p><p>(1970) (“A impossibilidade de um liberal paretiano” [ 28 ]), aponta para</p><p>a impossibilidade de defender esses dois dogmas sem acabar</p><p>defendendo condições de cidadania que são profundamente</p><p>iliberais. De fato, Sen aponta para um paradoxo inerente nas noções</p><p>de equilíbrio irrestrito e egocentrismo psicológico como condições</p><p>mínimas e suficientes para a escolha em sociedade democráticas,</p><p>defendendo que, na realidade, essas duas condições consideradas</p><p>mínimas e suficientes para a produção de uma cidadania básica</p><p>podem produzir uma condição de semicidadania, ao menos em</p><p>qualquer dimensão liberal e contemporânea do termo. Sen</p><p>reconhece</p><p>que a globalização dessa compreensão de cidadania</p><p>enquanto acesso ao mercado, por um lado, permite um maior</p><p>alcance de uma política de mercado e um relativo desenvolvimento</p><p>de regiões em situação de extrema pobreza. Por outro, em um</p><p>estudo organizado com Martha Nussbaum (1993), Sen coleta uma</p><p>série de trabalhos criticando a falta de consideração de elementos</p><p>relacionados com o desenvolvimento humano, elementos que</p><p>poderíamos considerar imateriais e que são muitas vezes</p><p>estabelecidos a partir de uma tensão entre o local e o global.</p><p>O que está em jogo aqui é o desenvolvimento de uma metodologia</p><p>capaz de colocar em xeque o problema da demanda e da escassez</p><p>de recursos como questões que aparecem de forma universal. De</p><p>fato, Sen e Nussbaum sugerem a necessidade de prestar atenção a</p><p>desigualdades materiais locais, que implicam diferentes</p><p>dimensionamentos de necessidade e de escassez. Sen,</p><p>especificamente, explora essa questão no livro Desigualdade</p><p>reexaminada (2001), no qual defende a necessidade de abordar</p><p>desigualdade e escassez de forma localizada, a partir de políticas</p><p>específicas, voltadas para problemas ao alcance da mão. O ponto</p><p>aqui é que, embora a desigualdade se manifeste de forma global,</p><p>ela não aparece da mesma forma, nem pelas mesmas razões, em</p><p>diferentes locais. Assim, a tentativa de dar conta do problema da</p><p>desigualdade por meio de medidas universais de acesso ao</p><p>mercado será insuficiente para possibilitar um modelo de cidadania</p><p>plena; de fato, a tentativa de abordar a desigualdade a partir de um</p><p>paradigma minimalista, como o que exploramos acima, acaba</p><p>produzindo condições políticas materiais de semicidadania, ou seja,</p><p>de um acesso à arena política e de trabalho que é precário, mas que</p><p>é predicado em uma concessão de uma pequena janela ao mercado</p><p>global.</p><p>Semicidadania no Brasil contemporâneo</p><p>A noção clássica de democracia, portanto, ainda que embebida por</p><p>ideais universalistas, sempre se desenvolveu de maneira local,</p><p>doméstica, nacional. A cidadania, braço institucional e pragmático</p><p>do regime democrático, apenas existiu de maneira territorializada,</p><p>localizada, e específica: um Estado garante direitos, garantias e</p><p>proteções para as pessoas que compõem a sua nação e que</p><p>habitam seu território. Essa geografia de direitos, por si só, já cria</p><p>um problema para a concretização dos ideais democráticos</p><p>contemporâneos: ainda que “todos” nasçam livres e detentores de</p><p>direitos (como proclamado em tantas declarações, de 1776 a 1948),</p><p>essa liberdade e esses direitos são apenas assegurados por</p><p>entidades políticas que administram e respondem a uma população</p><p>específica. Logo, a grande tensão da política contemporânea:</p><p>universal em princípios, localizada em execuções. Ainda que</p><p>enunciada como uma política de inclusão, a tradução pragmática</p><p>das ideias democráticas institucionaliza de maneira severa</p><p>dinâmicas de exclusão radical.</p><p>A princípio, essa exclusão se dá entre Estados, e entre territórios</p><p>bem delimitados. É justamente por isso que a noção de fronteiras</p><p>estatais é tão poderosa no mundo contemporâneo: elas não indicam</p><p>apenas onde começa um Estado e termina outro, mas também</p><p>apontam para os limites da existência e da efetividade de um</p><p>conjunto de direitos, de uma cidadania. Não vivemos apenas em um</p><p>mundo de múltiplos Estados, mas também em um mundo de</p><p>múltiplas cidadanias, e as fronteiras nacionais constituem a</p><p>manifestação mais visível dessa multiplicidade. Ainda que de modo</p><p>ideal, poderíamos falar que a noção de cidadania imbuída na</p><p>organização democrática contemporânea é uma proposta de</p><p>“universalismo localizado” − dentro de fronteiras bem definidas,</p><p>temos uma universalidade de direitos e garantias; fora delas, esse</p><p>universalismo não é garantido.</p><p>Assim, quando falamos de fronteiras estamos frequentemente nos</p><p>referindo a divisões entre Estados. Fronteiras, no nosso imaginário</p><p>político, são um assunto das Relações Internacionais, ou seja, algo</p><p>que se dirige para fora, para o exterior, e que delimita a nossa</p><p>comunidade política própria, a nação. Ao delimitar essa comunidade</p><p>política, as fronteiras também estabelecem os limites do exercício</p><p>da cidadania: os limites territoriais, a princípio, mas também os</p><p>limites populacionais, do grupo gerido pelo Estado − no nosso caso,</p><p>os brasileiros. Em termos democráticos contemporâneos, essa</p><p>dinâmica de definição de uma comunidade política, de um Estado-</p><p>Nação, cria uma realidade institucional em que, pelo menos em</p><p>termos formais, somos “todos iguais perante a lei”.</p><p>Todavia, observar a realidade do Brasil contemporâneo desafia</p><p>esse “universalismo localizado”. É difícil para qualquer observador</p><p>apontar para uma efetividade do Estado brasileiro na garantia dos</p><p>direitos de cidadania para toda a nossa população. De fato, parece-</p><p>nos que contamos efetivamente com “fronteiras internas” (Balibar,</p><p>2001, 2002) no Brasil, que separam e segregam parcelas da</p><p>população, condicionando e qualificando o acesso de grupos</p><p>diferentes ao Estado. No caso em pauta, parece que as nossas</p><p>fronteiras internas estão especialmente articuladas através das</p><p>categorias de gênero e raça.</p><p>Um nódulo central dessas complexidades apontadas no estudo da</p><p>cidadania diz respeito ao entrelaçamento de questões de identidade</p><p>com o exercício da política na definição do que economistas</p><p>políticos veem como o núcleo central da política contemporânea,</p><p>qual seja, a dinâmica de distribuição de recursos escassos em</p><p>sociedades heterogêneas. Como define Harold Lasswell (1950), a</p><p>decisão de “quem ganha o quê, quando e como”.</p><p>Esta interseção entre quem somos e como nos definimos social e</p><p>culturalmente − nossas identidades − e como decidimos sobre a</p><p>distribuição coletiva dos bens − a política − parece traduzir a</p><p>essência da prática da noção de cidadania: em sociedade</p><p>contemporâneas, marcadas, cada vez mais, por uma simultânea</p><p>escassez de recursos e uma crescente heterogeneidade social,</p><p>identidades guiam a efetivação de direitos − e identidades tidas</p><p>como “menos ideais” sofrem nesse processo.</p><p>Assim, o que muitas vezes está ausente deste discurso de um</p><p>“universalismo localizado” das práticas de cidadania é o que</p><p>poderíamos chamar de “lado sombrio da política dos direitos”, que é</p><p>o fato de que, além de se constituir como um horizonte, a cidadania</p><p>também tem sido firmemente desenvolvida como uma fronteira, “um</p><p>limite de inclusão dentro do qual as democracias liberais afirmam</p><p>institucionalizar a igualdade através da conferência de um estatuto</p><p>público a todos os seus membros” (Cohen, 2009, p. ). É nesse</p><p>momento que a noção de identidade torna-se um núcleo poderoso e</p><p>trágico para este horizonte romântico de direitos: “Os direitos e</p><p>deveres que a cidadania compreende são destinados a criar uma</p><p>identidade jurídica básica abstrata. Por sua vez, essa identidade</p><p>torna aqueles que a mantém iguais e, portanto, idênticos, aos olhos</p><p>da lei e do estado” (Cohen, 2009, p. ).</p><p>Dahrendorf (1974, p. 678) ressalta que a principal característica</p><p>dessa dimensão de identidade jurídica abstrata é o estabelecimento</p><p>de um campo de indistinção entre todos os co-cidadãos de um</p><p>determinado Estado, não obstante distinções materiais, no que</p><p>tange a atuação do Estado. No entanto, é importante ressaltar que</p><p>não obstante a preocupação de Dahrendorf com a igualdade formal</p><p>e institucional, pesquisadoras como Ursula Vogel (1991), Sylvia</p><p>Walby (1994) e Nira Yuval-Davis (1997) apontam para a</p><p>necessidade de focar, especificamente, na situação das mulheres</p><p>nesse contexto formal e institucional? Se pensarmos, no contexto</p><p>brasileiro, em uma sociedade pós-colonial e multiétnica, também</p><p>devemos acrescentar: e quanto aos não brancos? Esse fio condutor</p><p>nos leva à afirmação de W.E.B. de DuBois em seu livro The souls of</p><p>black folk (1990) (As almas do povo negro): “O problema do século</p><p>XX é o problema da linha de cor” (ou seja, da linha racial), mas</p><p>também é influenciado por várias escritoras feministas que parecem</p><p>nos sugerir que o problema do século XX (e XXI) é também a linha</p><p>de gênero.</p><p>Se quisermos responder a essas questões, devemos apontar</p><p>necessariamente</p><p>para o fato de que a interseção entre as categorias</p><p>de gênero e raça (para não mencionar orientação sexual, classe,</p><p>nacionalidade, entre outras) determina o acesso de indivíduos ao</p><p>Estado e direitos de cidadania em nosso país, processo que cria</p><p>uma dinâmica complexa de inclusão e exclusão no Brasil</p><p>contemporâneo.</p><p>Elizabeth Cohen em seu livro Semi-Citizenship in democratic</p><p>politics (2009) (Semicidadania em Estados democráticos [ 29 ])</p><p>analisa a disparidade entre o conceito normativo de cidadania − que</p><p>estabelece uma dicotomia entre cidadãos e não cidadãos, e que,</p><p>portanto, constrói “uma identidade política única e singular” − e a</p><p>realidade empírica desta instituição, que, como a história dos</p><p>movimentos políticos no século XX nos mostrou, tem práticas muito</p><p>diferentes. Como Cohen resume (2009), o conceito de semi-</p><p>cidadania nos permite investigar a “cidadania como uma categoria</p><p>gradiente” e, antes de mais, “como uma ferramenta de</p><p>categorização política”.</p><p>Se “a cidadania integral é definida como a posse de todos os</p><p>direitos sociais, civis e políticos fundamentais, juntamente com a</p><p>nacionalidade legal (o direito de residir e se mover livremente em</p><p>um país)” (Cohen, 2013, p. 10498-1049), a noção de semi-cidadania</p><p>descreve as realidades plurais e diversas de vários grupos e</p><p>indivíduos que vivem em democracias liberais hoje em dia, mas não</p><p>têm acesso a todo o pacote de direitos de cidadania como nos</p><p>acostumamos a pensar neles; até</p><p>possuem alguns, mas não todos esses direitos fundamentais. Podem</p><p>perder uma categoria inteira de direitos (por exemplo, pessoas apátridas</p><p>não têm nacionalidade legal) ou podem ter uma versão fraca de uma ou</p><p>mais categorias de direitos (por exemplo, imigrantes legais recém-</p><p>chegados e convidados temporários nos Estados Unidos têm apenas</p><p>alguns direitos de bem-estar social associados à cidadania plena). Como</p><p>qualquer direito democrático, a representação pode ser dividida em</p><p>diferentes graus e formas (Cohen, 2013, p. 1049).</p><p>Se Lasswell (1950) definiu a política como a atividade que define</p><p>quem recebe o quê, quando e como, Cohen (2009, 2013) parece</p><p>apontar para a compreensão da cidadania como a resposta à</p><p>questão de quem conta ou quem importa nesse processo. Uma das</p><p>interpretações que podemos tirar da ideia de uma semicidadania é</p><p>que diferentes grupos têm pesos diferentes na forma como</p><p>pensamos política. Uma outra interpretação dessa realidade, um</p><p>pouco mais cínica, pode acrescentar: alguns grupos são mais</p><p>importantes do que outros dentro dos nossos sistemas sociais, e,</p><p>portanto, eles recebem status de cidadania “mais completa”. Em</p><p>certo sentido, Cohen parece expandir-se na definição de Lasswell e</p><p>implicar que a política é quem obtém o quê, quando, como e por</p><p>quê.</p><p>O que consideramos particularmente interessante nessa noção de</p><p>semicidadania, especialmente quando aplicada ao caso brasileiro, é</p><p>que ela nos ajuda a visualizar algumas das hierarquias que ainda</p><p>permanecem em nosso quadro institucional, principalmente aquelas</p><p>que se alinham com diferenças de gênero e de raça. Se pensarmos</p><p>na forma como os direitos são concedidos e administrados para a</p><p>população feminina e não branca no Brasil, podemos ver o reflexo</p><p>empírico da conceito de semicidadania que Cohen está avançando.</p><p>Esta hierarquização e diferenciação no que diz respeito à garantia</p><p>de direitos está clara no tratamento dispensado pelo Estado</p><p>brasileiro às questões de gênero e de saúde reprodutiva − basta</p><p>observarmos a discussão que atualmente se desenvolve em nosso</p><p>Congresso sobre esse tema (com propostas extremamente</p><p>restritivas e conservadoras como o PL 5069/2013, que versa sobre</p><p>a atenção a vítimas de abuso sexual; o “Estatuto da Família”,</p><p>proposto pelo PL 6583/2013; e a proposta da “Escola sem Partido”,</p><p>no PL 867/2015), que se coloca na contramão de boa parte das</p><p>decisões internacionais a respeito de Direitos Humanos e busca</p><p>restringir e cercear ainda mais os direitos de mulheres e outras</p><p>minorias de gênero.</p><p>A noção de semicidadania no Brasil também se concretiza nas</p><p>taxas de discriminação racial que afligem a nossa população: um</p><p>relatório de 2014 publicado pela Organização das Nações Unidas</p><p>destaca que, apesar de representar mais de 50% da população</p><p>brasileira, os africanos brasileiros representam apenas 20% do</p><p>Produto Interno Bruto do país (United Nations, 2014). O mesmo</p><p>documento também aponta que a taxa de desemprego entre</p><p>africanos brasileiros é 50% maior que o resto da população e seus</p><p>níveis de renda correspondem à metade da população branca, bem</p><p>como sua taxa de expectativa de vida é seis anos menor (66 para</p><p>negros, 72 anos para brancos) e suas taxas de analfabetismo são</p><p>duas vezes maior que a do resto da população. Uma análise séria</p><p>desses dados nos conduz, necessariamente, à conclusão de que a</p><p>segregação racial no Brasil é uma situação de racismo</p><p>institucionalizado, e que o tratamento das mulheres é paternalista e</p><p>discriminatório.</p><p>Desenvolvimento, crescimento econômico e cidadania: uma</p><p>relação potencialmente paradoxal</p><p>O Brasil está claramente (se não oficialmente) hierarquizando,</p><p>classificando e segregando sua cidadania. No entanto, essa</p><p>hierarquização não é apenas um processo político intencional, ou</p><p>resultado de uma conspiração governamental para a criação de</p><p>castas sociais. Na realidade, esta hierarquização parece ser, ao</p><p>menos contemporaneamente, resultado de uma opção estratégica</p><p>por um modelo de cidadania minimalista.</p><p>É inegável que os dezesseis anos representados pelos governos</p><p>de Fernando Henrique Cardoso e Luís Inácio Lula da Silva</p><p>apresentaram uma série de melhorias gerais para as condições de</p><p>vida médias no Brasil. Mas é imprescindível que se faça uma</p><p>recapitulação do modelo de desenvolvimento, e de cidadania, que</p><p>foi embutido dentro dos programas apresentados por esses dois</p><p>governos, e das consequências dessas escolhas para o estado</p><p>atual de nosso regime democrático.</p><p>Tanto as políticas de austeridade e realinhamento de postura fiscal</p><p>no governo FHC, quanto as políticas de transferência de renda e</p><p>investimento público no governo Lula, foram predicadas no modelo</p><p>de desenvolvimento minimalista/ econômico de cidadania do qual</p><p>falamos no início desse ensaio. Dizer que esse modelo de</p><p>desenvolvimento não implicou resultados positivos seria uma</p><p>irresponsabilidade. A estabilidade econômica possibilitada pela</p><p>política social de FHC e as políticas de transferência de renda no</p><p>governo Lula foram responsáveis por um grande salto qualitativo na</p><p>qualidade de vida do brasileiro. No entanto, esse salto qualitativo é</p><p>restrito, fundamentalmente, ao acesso ao mercado − o que é dizer</p><p>que o brasileiro médio consegue melhor acesso a crédito, consegue</p><p>comprar mais e consegue comprar melhor. Mas como é o acesso do</p><p>brasileiro médio a outras dimensões da sua cidadania? Como</p><p>pensam Calixtre e Fagnani,</p><p>o núcleo da estratégia social no período 2003-2014 esteve ancorado no</p><p>crescimento da economia, que trouxe reflexos positivos na ampliação do</p><p>gasto social, na recuperação do mercado de trabalho, na potencialização</p><p>dos efeitos redistributivos da Seguridade Social e no combate à pobreza</p><p>extrema. Todos esses fatores contribuíram para a melhoria dos</p><p>indicadores sociais. Não obstante, as fragilidades sociais do experimento</p><p>desenvolvimentista estavam expostas pela baixa intensidade da</p><p>mudança, no conflito na distribuição das rendas; e a quase inexistente</p><p>redistribuição da propriedade privada. (2017, p. 3-4).</p><p>Assim, o desenvolvimento brasileiro das últimas décadas,</p><p>representado no aquecimento da balança comercial, e traduzido no</p><p>aumento do poder aquisitivo médio e na melhora de condições de</p><p>crédito, é um desenvolvimento baseado em uma forma de</p><p>compreensão mecânica e minimalista de cidadania, que reproduz</p><p>um universalismo simplista e dinâmicas de inclusão fragmentadas,</p><p>representadas, sobretudo, no fato de que, não obstante os</p><p>progressos de parte da população no que tange ao acesso ao</p><p>mercado de trabalho, aumento de renda e relativa estabilidade</p><p>econômica, as desigualdades sociais brasileiras permanecem</p><p>inalteradas.</p><p>Aqui, podemos lembrar mais uma vez o ponto de Sen</p><p>(2011), sobre o risco de tomar uma compreensão mínima de</p><p>cidadania e, paradoxalmente, promover e consolidar princípios</p><p>iliberais e processos de exclusão e marginalização ao tentar afirmar</p><p>uma dimensão liberal de cidadania.</p><p>Esse risco, vinte e quatro anos após o início do governo FHC e</p><p>oito anos após o final do governo Lula, tem se concretizado em um</p><p>cenário de intensificação de desigualdades sociais, políticas e</p><p>econômicas, e de retorno de fantasmas autoritários e populistas. O</p><p>melancólico fim da política centrista e pragmatista desses dois</p><p>governos se manifesta em um cenário de aprofundamento da</p><p>semicidadania de mulheres e de indivíduos não brancos no Brasil</p><p>contemporâneo, o que demarca e aprofunda as drásticas fronteiras</p><p>internas no nosso país, que servem como linhas (cada vez menos)</p><p>invisíveis de exclusão e de insegurança para a maioria avassaladora</p><p>da nossa população.</p><p>Referências Bibliográficas</p><p>BALIBAR, Étienne. Frontières du monde, frontières de la politique.</p><p>Cahiers libres, 2001, pp. 163-181.</p><p>______. Three concepts of politics: emancipation, transformation,</p><p>civility. Politics and the Other Scene, 2002, pp. 1-39.</p><p>CALIXTE, André; FAGNANI, Eduardo. A política social nos limites</p><p>do experimento desenvolvimentista (2003-2014). Disponível em:</p><p><http://www.eco.unicamp.br/docprod/downarq.php?</p><p>id=3524&tp=a>. Acesso em 09 jun. 2018.</p><p>COHEN, Elizabeth F. Semi-citizenship in democratic politics.</p><p>Cambridge: Cambridge University Press, 2009.</p><p>______. Dilemmas of representation, citizenship, and semi-</p><p>citizenship. Louis ULJ, v. 58, 2013, p. 1047-1070.</p><p>DAHRENDORF, Ralf. Citizenship and beyond: the social dynamics</p><p>of an idea. Social Research, 1974, pp. 673-701.</p><p>DU BOIS, W. E. B. The souls of black folk. New York: Vintage, 1990.</p><p>FRASER, Nancy. A triple movement? Parsing the politics of crisis</p><p>after Polanyi. In. Burchardt M., Kirn G. (eds) Beyond</p><p>Neoliberalism. London: Palgrave Macmillan, 2017. pp. 29-42.</p><p>LASSWELL, Harold Dwight. Politics: Who gets what, when, how.</p><p>New York: P. Smith, 1950.</p><p>LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. São Paulo: Edipro,</p><p>2014.</p><p>MCKLOSKEY, Deirdre. The Secret Sins of Economics. Chicago:</p><p>Prickly Paradigm Press, 2002.</p><p>NUSSBAUM, Martha; SEN, Amartya (Ed.). The quality of life. New</p><p>York: Oxford University Press, 1993.</p><p>RUGGIE, John Gerard. International regimes, transactions, and</p><p>change: embedded liberalism in the postwar economic order.</p><p>International organization, v. 36, n. 2, 1982, pp. 379-415.</p><p>SEN, Amartya. The impossibility of a Paretian liberal. Journal of</p><p>political economy, v. 78, n. 1, 1970, pp. 152-157.</p><p>______. Desigualdade reexaminada. São Paulo: Record, 2001.</p><p>UNITED NATIONS. Human Rights Council. Report of the Working</p><p>Group of Experts on People of African Descent on its fourteenth</p><p>session. 2014. Disponível em:</p><p><http://www.ohchr.org/EN/HRBodies/HRC/RegularSessions/Sessio</p><p>n30/Documents/A_HRC_30_56_ENG.docx>. Acesso em 09 jun.</p><p>2018.</p><p>VOGEL, Ursula. Is citizenship gender-specific?. In: The frontiers of</p><p>citizenship. London: Palgrave Macmillan, 1991.</p><p>WALBY, Sylvia. Is citizenship gendered? 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É o</p><p>Coordenador-Geral da Coleção Pensar Político.</p><p>Rosana Pinheiro-Machado é mestra e doutora em Antropologia</p><p>Social pela UFRGS. Atualmente é professora da Universidade</p><p>Federal de Santa Maria (UFSM) e coordenadora e cofundadora da</p><p>Escola de Governo Comum, já tendo atuado como professora da</p><p>Pós-Graduação em Desenvolvimento Internacional na Universidade</p><p>de Oxford e visiting scholar do Centro de Estudos Chineses da</p><p>Universidade de Harvard, onde também concluiu seu pós-</p><p>doutoramento. É fellow vitalícia da British Higher Education</p><p>Academy. Publicou como autora e/ ou organizadora, entre outros:</p><p>Counterfeit Itineraries in the Global South (Routledge, 2017), Tem</p><p>saída? Ensaios críticos sobre o Brasil (Zouk, 2017) e China,</p><p>passado e presente (Artes e Ofícios, 2013).</p><p>Alvaro Bianchi é doutor em Ciências Sociais pela Universidade</p><p>Estadual de Campinas e visiting professor na Columbia University. É</p><p>pesquisador do CNPq e professor livre-docente da UNICAMP, onde</p><p>exerce a direção do Instituto de Filosofia em Ciências Humanas. É</p><p>coordenador do Laboratório de Pensamento Político (Pepol/</p><p>Unicamp) e pesquisador associado do Instituto Nacional de Ciência</p><p>e Tecnologia para Estudos Sobre os Estados Unidos (INCT-Ineu).</p><p>Ana Flauzina é doutora em Direito pela American University, pós-</p><p>doutora pelo Centro de Estudos Africanos e da Diáspora Africana da</p><p>University of Texas − Austin e professora adjunta da Faculdade de</p><p>Educação da UFBA.</p><p>Débora Messenberg Guimarães é doutora em Sociologia pela</p><p>Universidade de São Paulo, com Pós-doutorado na Universidade de</p><p>Brasília e Estágio Sênior no Latin American Centre da University of</p><p>Oxford. Atualmente é professora associada I da Universidade de</p><p>Brasília.</p><p>Esther Solano Gallego é doutora em Sociologia pela Universidade</p><p>Complutense de Madrid, professora na Universidade Federal de São</p><p>Paulo e no Mestrado Interuniversitario Internacional de Estudos</p><p>Contemporâneos de América Latina da Universidade Complutense</p><p>de Madrid. Coorganizadora do livro Tem saída? Ensaios críticos</p><p>sobre o Brasil (Zouk, 2017), e organizadora do livro O ódio como</p><p>política (Boitempo, 2018).</p><p>Fabrício Pontin é Professor Assistente do Mestrado e do</p><p>Doutorado em Educação da Universidade La Salle. É doutor em</p><p>Filosofia pela Southern Illinois University − Carbondale, mestre em</p><p>Filosofia (PUCRS) e bacharel em Direito (PUCRS).</p><p>Luís Felipe Miguel é doutor em Ciências Sociais (UNICAMP),</p><p>professor titular livre do Instituto de Ciência Política da UnB e</p><p>pesquisador do CNPq. Publicou, entre outros, os livros Democracia</p><p>e representação: territórios em disputa (Editora Unesp, 2014) e</p><p>Dominação e resistência: desafios para uma política emancipatória</p><p>(Boitempo, 2018).</p><p>Tatiana Vargas Maia é professora permanente do Programa de</p><p>Pós-Graduação em Memória Social e Bens Culturais e dos</p><p>Bacharelados em História e Relações Internacionais da</p><p>Universidade La Salle. É doutora em Ciência Política pela Southern</p><p>Illinois University − Carbondale, mestre em Relações Internacionais</p><p>(UFRGS) e bacharel em História (UFRGS) e em Ciências Sociais</p><p>(PUCRS).</p><p>Tulio Custódio é sociólogo e curador de conhecimento na</p><p>Inesplorato. Mestre e doutorando em Sociologia (USP), desenvolve</p><p>estudos sobre a subjetividade do precariado e neoliberalismo, e</p><p>também sobre temas envolvendo questões raciais, masculinidades</p><p>e desigualdades.</p><p>[ 1 ] Em matéria publicada na edição brasileira do “El País”, o cientista político</p><p>Oswaldo Estanislau do Amaral apresenta os seguintes dados: na Câmara de</p><p>Deputados, a bancada da direita deu um salto de 238 para 301 deputados; o</p><p>centro decresceu de 137 para 75 deputados; e a esquerda permaneceu</p><p>estagnada, passando de 138 para 137 parlamentares. A pesquisa foi</p><p>conduzida pelo “Observatório das eleições”, iniciativa conjunta da UERJ,</p><p>UNICAMP, UFMG e UnB. In: “A renovação conservadora na Câmara”. El País,</p><p>09/10/2018.</p><p>[ 2 ] Este trabalho é uma versão modificada do artigo de minha autoria</p><p>intitulado “A direita que saiu do armário: a cosmovisão dos formadores de</p><p>opinião dos manifestantes de direita brasileiros”,</p><p>publicado na Revista</p><p>Sociedade e Estado [online]. 2017, vol. 32, n. 3, pp.621-648.</p><p>[ 3 ] Para maiores informações sobre o software Netvizz:</p><p>https://wiki.digitalmethods.net/Dmi/ToolNetvizz.</p><p>[ 4 ] As postagens do movimento Revoltados Online foi suspensa algumas</p><p>vezes ao longo do ano de 2015, devido à não adesão dos administradores da</p><p>página aos termos de compromisso exigidos pelo Facebook.</p><p>[ 5 ] A noção de enquadramento é aqui tomada no sentido goffmaniano</p><p>(GOFFMAN, 2012) ou seja, como “estruturas cognitivas, que organizam o</p><p>pensamento, são compostas de crenças, atitudes, valores e preferências,</p><p>bem como de regras a respeito de como ligar diferentes ideias. São</p><p>esquemas que ‘dirigem atenção para a informação relevante, guiam sua</p><p>interpretação e avaliação, fornecem inferências quando a informação é falha</p><p>ou ambígua, e facilitam sua retenção’ ” (FISKE e KINDER, citados por</p><p>ENTMAN, 1989; apud ALDÉ, 2004, p. 47).</p><p>[ 6 ] A Atlas Network, anteriormente conhecida como Atlas Economic</p><p>Research Foundation, é uma organização sem fins lucrativos sediada nos</p><p>Estados Unidos. O grupo tem como missão declarada “fortalecer o movimento</p><p>da liberdade em todo o mundo por meio da identificação, formação e apoio a</p><p>indivíduos com potencial para fundar e desenvolver organizações</p><p>independentes eficazes”. Em 2015, a Atlas Network se posicionava no 57º</p><p>lugar entre as top think tanks dos EUA. McGann, James G. 2015 Global Go To</p><p>Think Tank Index Report, University of Pennsylvania.</p><p>[ 7 ] O conceito de neofascismo aqui empregado é compreendido nos termos</p><p>definidos por Umberto Eco (1995) como “Ur-Fascismo ou Fascismo eterno”.</p><p>Trata-se de uma “nebulosa” com características peculiares, mas que não</p><p>constituem um sistema, podem muitas vezes contradizerem-se entre si e</p><p>estão também presentes em outras formas de despotismo; são elas: 1) culto</p><p>https://wiki.digitalmethods.net/Dmi/ToolNetvizz</p><p>da tradição; 2) recusa da modernidade; 3) culto da ação pela ação; 4) não</p><p>aceitação de críticas; 5) medo da diferença; 6) apelo às classes médias</p><p>frustradas; 7) obsessão pelo complô; 8) sentimento de humilhação pela</p><p>riqueza ostensiva e pela força do inimigo; 9) princípio da guerra permanente;</p><p>10) elitismo; 11) culto do heroísmo; 12) desdém pelas mulheres e condenação</p><p>de hábitos sexuais não conformistas; 13) “populismo qualitativo”; 14)</p><p>“Novilíngua”. Eco, U. Folha de S. Paulo - Caderno Mais!, 14/05/95.</p><p>[ 8 ] O Foro de São Paulo (FSP) é uma organização criada em 1990, a partir</p><p>de um seminário internacional promovido pelo Partido dos Trabalhadores</p><p>(PT), no qual estiveram presentes partidos e organizações da América Latina</p><p>e Caribe para discutir alternativas às políticas neoliberais dominantes no</p><p>continente e promover a integração latino-americana no âmbito econômico,</p><p>político e cultural. A primeira reunião do Foro foi realizada em São Paulo e,</p><p>desde então, tem acontecido a cada um ou dois anos, em diferentes cidades</p><p>da América Latina. Atualmente, mais de 100 partidos e organizações políticas</p><p>participam dos encontros. As posições políticas variam dentro de um largo</p><p>espectro, que inclui partidos socialdemocratas, extrema-esquerda,</p><p>organizações comunitárias, sindicais e sociais ligadas à esquerda católica,</p><p>grupos étnicos e ambientalistas, organizações nacionalistas e partidos</p><p>comunistas. (http://forodesaopaulo.org).</p><p>[ 9 ] Este ensaio é uma versão ampliada e profundamente revisada de um</p><p>artigo publicado originalmente no Blog Junho (BIANCHI, 2016). O artigo,</p><p>escrito pouco antes do impeachment da presidenta Dilma Rousseff, foi uma</p><p>das primeiras tentativas de expor o conceito e sua história, por essa razão</p><p>recebeu certa atenção. Ver, a título de exemplo, Bernandon (2016),</p><p>Perissinotto (s.d.), Almeida (2016) e Miguel (2018).</p><p>[ 10 ] Para a trajetória de Naudè, ver as páginas que Pintard (1983) lhe</p><p>dedica.</p><p>[ 11 ] A edição de 1752 leva o título Science des princes, ou Considerations</p><p>politiques sur les coups d’Etat, destacando a herança machiavelliana, mas</p><p>essa ênfase na ciência aproxima Naudè do pensamento iluminista, afastando-</p><p>o da cultura renascentista.</p><p>[ 12 ] Sobre a razão de Estado, ver a obra clássica de Friedrich Meinecke,</p><p>que, em uma passagem célebre, atribui a Machiavelli “a doutrina infame de</p><p>acordo com a qual, no comportamento nacional, mesmo métodos sujos são</p><p>justificados quando está em questão conquistar ou manter o poder necessário</p><p>para o Estado” (MEINECKE, 1957, p. 36). Uma abordagem mais atual sobre o</p><p>tema, sem os excessos antimachiavellianos deste autor, pode ser encontrada</p><p>em Viroli (1994).</p><p>http://forodesaopaulo.org/</p><p>[ 13 ] Poderíamos acrescentar que, de acordo com o conceito de Luttwak, os</p><p>levantes militares de 1922 e 1924 e até mesmo o putsch comunista de 1935</p><p>no Brasil seriam golpes de Estado fracassados, promovidos por “facções</p><p>esquerdistas do exército”, enquanto a chamada Revolução de 1930 seria um</p><p>golpe bem-sucedido promovido pela mesma fração.</p><p>[ 14 ] Destaque-se a respeito as pesquisas de Pérez-Liñan (2007).</p><p>[ 15 ] O apagamento da memória da resistência negra em sua oposição à</p><p>ditadura militar é capítulo a ser ainda plenamente enfrentado pelo acervo</p><p>historiográfico. A esse respeito ver: PIRES, Thula Rafaela de Oliveira.</p><p>Colorindo memórias e redefinindo olhares: ditadura militar e racismo no Rio de</p><p>Janeiro. (Relatório de pesquisa). Rio de Janeiro: Comissão da Verdade do</p><p>Rio, 2015.</p><p>[ 16 ] Este capítulo integra a pesquisa “Democracia representativa e ruptura</p><p>institucional: da teoria ao Brasil”, financiada pelo CNPq com uma bolsa de PQ.</p><p>Partes do texto incorporam fragmentos do artigo “Caminhos e descaminhos</p><p>da experiência democrática no Brasil” (Sinais Sociais, nº 33, 2017, pp. 99-</p><p>129). Agradeço a Regina Dalcastagnè pela leitura prévia e comentários.</p><p>[ 17 ] A origem é o famoso relatório à Comissão Trilateral (CROZIER;</p><p>HUNTINGTON; WATANUKI, 1975).</p><p>[ 18 ] Da compreensão de que os critérios não são robustos decorre grande</p><p>imprecisão no uso do conceito, levando a afirmações paradoxais – como a de</p><p>que o Uruguai atual, embora “seja uma democracia consolidada”, apresenta</p><p>uma “configuração mais propensa a riscos” (LINZ; STEPAN, 1999 [1996], p.</p><p>197), verdadeira contradição em termos, já que a consolidação deveria</p><p>significar exatamente a ausência ou insignificância do risco de retrocesso</p><p>autoritário.</p><p>[ 19 ] Buscando escapar do institucionalismo estrito que grassa na ciência</p><p>política, Ianoni (2017) propõe estender o entendimento de “coalizão” para</p><p>além dos acertos dentro do Congresso, incorporando também as classes e</p><p>frações de classe, cuja influência se dá não apenas ou mesmo</p><p>prioritariamente no Legislativo, mas também pelo acesso aos núcleos</p><p>formuladores de políticas no Executivo e ao Judiciário.</p><p>[ 20 ] Uma primeira versão deste texto foi publicada na Revista Comciência,</p><p>em um dossiê sobre Violência, número 192, 2017. Cf. Custódio, 2017.</p><p>[ 21 ] Juliana Borges. O que é encarceramento em massa? São Paulo:</p><p>Feminismos Plurais/ Letramento, 2018.</p><p>[ 22 ] Para uma definição mais precisa desse termo, ver DARDOT; LAVAL,</p><p>2016.</p><p>[ 23 ] Na verdade, o argumento trabalhado por Marcuse é mais profundo e</p><p>sofisticado. A forma como ele trabalha a morte do desejo e a desconexão dos</p><p>laços, em um diálogo consistente com a Psicologia Social, ao passo que</p><p>considerando o aprofundamento da racionalidade instrumental no sentido de</p><p>conformar uma dimensão única e exclusiva do mundo administrado, é um</p><p>ponto profícuo para uma reflexão mais a fundo dos efeitos do capitalismo na</p><p>subjetividade. Mesmo diante de limites para tratamento da questão racial a</p><p>partir da Teoria Crítica, como bem aponta o filósofo Lucius Outlaw Jr. em</p><p>Critical Social Theory in the Interest of Black Folks (2005), consideramos essa</p><p>obra de Marcuse muito pertinente para pensar a expansão dos valores do</p><p>mercado na subjetividade dos indivíduos.</p><p>[ 24 ] Nas palavras de West: “O niilismo deve ser compreendido aqui não</p><p>como uma doutrina filosófica segundo a qual não existem fundamentos</p><p>racionais para normas e autoridade legítimas; ele é, muito mais, a experiência</p><p>de viver dominado por uma pavorosa</p><p>falta de propósito, de segurança e de</p><p>amor. O resultado aterrador é o desligamento e a insensibilidade em relação</p><p>às outras pessoas e uma índole autodestrutiva em face do mundo. A vida sem</p><p>significado, sem esperança e sem amor gera uma perspectiva fria e</p><p>mesquinha, que destrói o próprio indivíduo como os demais.” (WEST, 1993, p.</p><p>14).</p><p>[ 25 ] “O efeito cumulativo das feridas e cicatrizes infringidas aos negros na</p><p>sociedade dominada pelos brancos é uma ira entranhada, um sentimento</p><p>ardente de fúria e um pessimismo irrefletido quanto ao desejo de justiça (...).</p><p>Lamentavelmente, a combinação do modo de vida orientado pelo mercado,</p><p>das condições ditadas pela pobreza, da angústia existencial dos negros e da</p><p>diminuição do medo das autoridades brancas direcionou grande parte da ira,</p><p>da fúria e do desespero contra os semelhantes negros, especialmente as</p><p>mulheres, que são as mais vulneráveis nas comunidades”. (WEST, 1993: 18).</p><p>[ 26 ] A tradução literal de “random” seria “randômico”, aleatório. No entanto,</p><p>no sentido empregado por West, “random” se refere a um aleatório que</p><p>estruturalmente pode acontecer. É como em um jogo de “roleta russa”</p><p>(colocar uma bala em uma arma com 6 pentes e rodar em uma roda, de modo</p><p>que alguém na roda pode ser ferido, aleatoriamente); no entanto, é um jogo</p><p>com mais balas, e que retorna muitas vezes.</p><p>[ 27 ] Tradução livre dos autores para o termo Embedded Liberalism, cunhado</p><p>por John Ruggie (1982).</p><p>[ 28 ] Tradução livre dos autores.</p><p>[ 29 ] Tradução livre dos autores.</p><p>Coleção Pensar Político</p><p>Freixo, Adriano de</p><p>9788565505895</p><p>88 páginas</p><p>Compre agora e leia</p><p>A Coleção Pensar Político abrange o conteúdo de 4 livros:</p><p>"2016, o ano do golpe", "Manifestações no Brasil", "Brasil em</p><p>Transe: bolsonarismo, nova direita e desdemocratização" e</p><p>"Lugar de mulher". Todas essas obras trazem a visão do que</p><p>é o novo cenário político brasileiro, leitura que se faz</p><p>extremamente necessária nesses dias que a sociedade</p><p>brasileira vive.</p><p>Compre agora e leia</p><p>http://www.mynextread.de/redirect/Amazon+%28BR%29/3036000/9788595000391/9788565505895/7d5c2609a9f16bbddde587a7ba3c90a3</p><p>http://www.mynextread.de/redirect/Amazon+%28BR%29/3036000/9788595000391/9788565505895/7d5c2609a9f16bbddde587a7ba3c90a3</p><p>Lugar de Mulher</p><p>Magalhães, Livia</p><p>9788595000148</p><p>104 páginas</p><p>Compre agora e leia</p><p>Lugar de mulher: feminismo e política no Brasil é o terceiro</p><p>volume da coleção Pensar político. É um livro escrito por</p><p>mulheres. Para mulheres. E não mulheres. Pensar a</p><p>condição da mulher hoje, em nossa sociedade, é pensar em</p><p>aspectos centrais da nossa sociedade como um todo: é</p><p>pensar em minoria, direitos civis, preconceito e violência.</p><p>Feminismo é a palavra que engloba a reação a tudo o que</p><p>violenta a mulher. Trata-se de um fazer político. E no Brasil,</p><p>país dos mais contraditórios quando o assunto é mulher,</p><p>falar disso é urgente.</p><p>Compre agora e leia</p><p>http://www.mynextread.de/redirect/Amazon+%28BR%29/3036000/9788595000391/9788595000148/edf237f8557051fa51fb89666b2b4f51</p><p>http://www.mynextread.de/redirect/Amazon+%28BR%29/3036000/9788595000391/9788595000148/edf237f8557051fa51fb89666b2b4f51</p><p>Da vida de um imprestável</p><p>von Eichendorff, Joseph Freiherr</p><p>9788565505994</p><p>115 páginas</p><p>Compre agora e leia</p><p>Da vida de um imprestável é uma novela sobre um</p><p>desocupado rapaz lançado ao mundo pelo pai.ompanhado</p><p>do seu violino, a personagem Taugenichts vive inúmeras</p><p>experiências, conhece novos lugares e pessoas. No início do</p><p>livro ele é um imprestável (Taugenichts). Após sair do</p><p>vilarejo onde vivia, vira jardineiro e depois coletor de</p><p>impostos. Volta a ser um errante e passa por inúmeras</p><p>peripécias. Acaba por se tornar um nobre (ou pelo menos é</p><p>tratado e se sente como tal). Volta a ser um andarilho, vive</p><p>outras aventuras, até que por fim reencontra sua amada.</p><p>Tradução: Fernando Miranda</p><p>Compre agora e leia</p><p>http://www.mynextread.de/redirect/Amazon+%28BR%29/3036000/9788595000391/9788565505994/653ee1b7388df5a529857ff1c5654b57</p><p>http://www.mynextread.de/redirect/Amazon+%28BR%29/3036000/9788595000391/9788565505994/653ee1b7388df5a529857ff1c5654b57</p><p>O menino que não queria tomar banho</p><p>Magno, Simone</p><p>9788565505819</p><p>30 páginas</p><p>Compre agora e leia</p><p>O menino que não queria tomar banho, de Simone Magno e</p><p>Cisko Diz, conta a história de um garoto que aprende a</p><p>importância da higiene, da mudança e do crescimento. O</p><p>menino, que não gostava do hábito de se limpar, inventava</p><p>mil e uma artimanhas para não tomar banho, até que ele</p><p>conheceu alguém... O livro é o segundo da série de Simone</p><p>e Cisko, começada com A menina que não gostava de</p><p>meias, grande sucesso da Oficina Raquel.</p><p>Compre agora e leia</p><p>http://www.mynextread.de/redirect/Amazon+%28BR%29/3036000/9788595000391/9788565505819/185974be78ad52c93c66d7b8c20aebe4</p><p>http://www.mynextread.de/redirect/Amazon+%28BR%29/3036000/9788595000391/9788565505819/185974be78ad52c93c66d7b8c20aebe4</p><p>2016, O ano do Golpe</p><p>de Freixo, Adriano</p><p>9788595000070</p><p>143 páginas</p><p>Compre agora e leia</p><p>Por qualquer ângulo que se olhe os acontecimentos políticos</p><p>de 2016 no Brasil, deve-se afirmar, sem qualquer receio, que</p><p>houve um golpe de Estado. Ao contrário do que sugeria</p><p>nossa mais recente experiência na área, o golpe de 1964,</p><p>para que isso ocorra não é necessário o protagonismo da</p><p>Forças Armadas. O golpe é de Estado porque uma fração</p><p>dele mostra-se capaz de usar os mecanismos de poder à</p><p>disposição e seus apoiadores na sociedade civil para</p><p>contrariar a vontade popular. Por isso este livro é</p><p>fundamental para entender o processo, para podermos</p><p>resistir a ele. Os golpes não acabam na tomada de poder.</p><p>Quanto mais duram, mais destroem o futuro.</p><p>Compre agora e leia</p><p>http://www.mynextread.de/redirect/Amazon+%28BR%29/3036000/9788595000391/9788595000070/f27b57a4d7db74b96e2f3e037289e4f1</p><p>http://www.mynextread.de/redirect/Amazon+%28BR%29/3036000/9788595000391/9788595000070/f27b57a4d7db74b96e2f3e037289e4f1</p><p>Folha de rosto</p><p>Créditos</p><p>Sumário</p><p>Dias de um futuro (quase) esquecido: um país em transe, a democracia em colapso</p><p>A cosmovisão da “nova” direita brasileira</p><p>Golpe de Estado: o conceito e sua história</p><p>Democracia genocida</p><p>Quem é o inimigo? Retóricas de inimizade nas rede sociais no período 2014-2017</p><p>Há solução sem uma revolução?</p><p>Ninguém viu, ninguém vê: comentários sobre o estado da violência na atual democracia (de poucos)</p><p>Cidadania, semi-cidadania e democracia no Brasil contemporâneo</p><p>Sobre os autores</p><p>de desdemocratização e</p><p>o avanço conservador que marcam a sociedade brasileira na</p><p>contemporaneidade. Escritos pouco antes do processo eleitoral de</p><p>2018, eles já vislumbravam o que estava por vir e que se confirmaria</p><p>com o resultado do pleito.</p><p>Neste sentido, o bolsonarismo é aqui entendido como um</p><p>fenômeno político que transcende a própria figura de Jair Bolsonaro,</p><p>e que se caracteriza por uma visão de mundo ultraconservadora,</p><p>que prega o retorno aos “valores tradicionais” e assume uma</p><p>retórica nacionalista e “patriótica”, sendo profundamente crítica a</p><p>tudo aquilo que esteja minimamente identificado com a esquerda e o</p><p>progressismo. Tal visão ganhou bastante força nesta última década</p><p>em várias partes do mundo, se alimentando da crise da</p><p>representação e da descrença generalizada na política e nos</p><p>partidos tradicionais. No Brasil, ela iria encontrar a sua</p><p>personificação no ex-capitão e em seu estilo de fazer política,</p><p>calcado na lógica do “contra tudo que está aí”, apesar de ele mesmo</p><p>ser parte do establishment político desde 1988, quando disputou e</p><p>venceu sua primeira eleição.</p><p>Neste processo, o golpe de 2016, que culmina no impeachment da</p><p>presidenta Dilma Rousseff, é certamente um marco importante de</p><p>uma ruptura institucional engendrada por antigas elites econômicas,</p><p>políticas e midiáticas do País. Além disso, é nesse período que o</p><p>campo da direita, especialmente os movimentos neoconservadores,</p><p>vê uma janela de oportunidades para se organizar em termos de</p><p>ação coletiva. Contudo, o que os artigos dessa coletânea também</p><p>evidenciam é que refletir sobre desdemocratização somente a partir</p><p>do impeachment é um erro de diagnóstico − oriundo do racismo</p><p>institucional −, que ignora que o Estado de direito brasileiro sempre</p><p>apontou para a existência de uma nação bipartida, na qual os</p><p>direitos fundamentais e a proteção da lei nunca funcionaram</p><p>plenamente para a população composta por “semi-cidadãos” (Maia</p><p>e Pontin neste volume) ou por “ninguéns” (Custódio neste volume) −</p><p>a população pobre, negra e periférica.</p><p>O artigo que abre esta coleção, “Golpe de Estado: o conceito e</p><p>sua história”, de Alvaro Bianchi, faz um resgate teórico da gênese</p><p>do conceito de golpe de Estado desde o século XVII. O autor</p><p>apresenta a transformação do conceito ao longo do tempo e a sua</p><p>dimensão multifacetada no presente. Três aspectos são trazidos à</p><p>discussão para a caracterização de um golpe de estado: (1)</p><p>mobilização de uma facção da burocracia estatal, (2) acionamento</p><p>de recursos excepcionais e (3) mudança institucional. Para analisar</p><p>os impeachments, como o sofrido por Dilma Rousseff em 2016,</p><p>Bianchi ressalta que a deposição presidencial, mesmo sendo</p><p>prevista legalmente, é um dos recursos da excepcionalidade, mas</p><p>isso não é suficiente para caracterizar um golpe de Estado. Por isso,</p><p>ele argumenta que o foco da análise não deve recair unicamente</p><p>sobre o processo legislativo, mas igualmente sobre as forças</p><p>políticas mais amplas que também são frações do Estado. A</p><p>excepcionalidade do impeachment, quando combinada com a</p><p>redistribuição forçada de poder político, se configura em um golpe</p><p>de Estado.</p><p>O capítulo 2, “Há solução sem revolução?”, de Luis Felipe Miguel,</p><p>questiona as saídas para a crise que foi aprofundada após o golpe</p><p>de 2016. O autor analisa a trajetória de transição para a democracia</p><p>no Brasil, os limites da governabilidade e questiona a noção de</p><p>“consolidação” democrática. Nesse processo, os governos do</p><p>Partido dos Trabalhadores, ao mesmo tempo em que conseguiram o</p><p>feito inédito de mitigar a extrema miséria, promoveram a</p><p>desmobilização popular, não freando o distanciamento − que após</p><p>2016 se torna um abismo − entre exercício do poder e vontade</p><p>popular. A desdemocratização é um projeto do capitalismo e,</p><p>portanto, a saída para a crise − adiantada como spoiler, já logo no</p><p>início do artigo − é de que não é possível reconstruir um projeto</p><p>democrático sem sanar a profunda desigualdade social e radicalizar</p><p>a autonomia coletiva.</p><p>Ainda que por caminhos teóricos diferentes, ao menos três</p><p>capítulos da presente coletânea (Miguel, Maia e Pontin, e Flauzina)</p><p>ressaltam que democracia não se define exclusivamente pelo</p><p>formalismo nominal que caracteriza um regime político definido pelo</p><p>voto e alternância de poder, mas igualmente pelo funcionamento do</p><p>Estado de direito que garante cidadania à toda população. Isso</p><p>significa romper os limites impostos pelas políticas de distribuição de</p><p>renda, garantindo não apenas o acesso a bens públicos universais,</p><p>mas igualmente o uso pleno e digno deles.</p><p>Tatiana Vargas Maia e Fabrício Pontin, no capítulo 3, “Cidadania,</p><p>semicidadania e democracia no Brasil contemporâneo”, avançam na</p><p>discussão sobre os limites estruturais da democracia brasileira na</p><p>virada do milênio e igualmente relativizam a novidade de um</p><p>processo de desdemocratização. Na realidade, eles argumentam, o</p><p>Brasil do final do século XX e do século XXI aprofunda um esquema</p><p>minimalista de cidadania, baseado em um modelo cuja métrica de</p><p>desenvolvimento são critérios como renda e poder de compra da</p><p>população. Nessa perspectiva, os autores trazem o conceito de</p><p>semicidadania de Elizabeth Cohen para pensar o Brasil, que</p><p>hierarquiza e classifica seus cidadãos, segregando-os por classe,</p><p>raça e gênero e limitando o acesso pleno de direitos. Para os</p><p>autores, é preciso um novo pacto democrático que, de fato, faça</p><p>valer os princípios universalistas de acesso ilimitado a bens públicos</p><p>e poder político para toda a população.</p><p>Se democracia está para além da institucionalidade política, sendo</p><p>um processo em que indivíduos têm sua cidadania garantida por</p><p>meio do acesso a bens públicos e a direitos civis e políticos, fica</p><p>evidente que o que se chama atualmente de desdemocratização</p><p>neoliberal não é uma novidade para população negra brasileira. Os</p><p>autores não rejeitam o fato de que o golpe de 2016 foi um momento</p><p>drástico de uma crise institucional instaurada no Brasil, mas</p><p>enfatizam que se trata, antes, do aprofundamento de uma cisão</p><p>democrática que sempre existiu para os negros e negras deste país,</p><p>que sempre são respondidos com exclusão e violência.</p><p>Nesse sentido, no capítulo 4, “Democracia genocida”, Ana Luiza</p><p>Pinheiro Flauzina chama a atenção para os aspectos de</p><p>continuidade − e não de ruptura, como insiste a branquitude − de</p><p>um Estado de exceção: “analisar o que se tem qualificado como um</p><p>golpe de Estado sob uma ótica que considere a questão racial é,</p><p>assim, desmobilizar os ares estupefatos e o discurso raivoso</p><p>pautado na ordem do dia, inscrevendo a denúncia do genocídio</p><p>negro como o centro nervoso das disputas em curso”. A espinha</p><p>dorsal da análise da autora é a recorrência do genocídio negro −</p><p>fenômeno que desnuda a promessa não cumprida de um Estado</p><p>democrático de direito para todos. As conquistas obtidas dos últimos</p><p>anos, pleiteadas pelos movimentos negros, apontam para uma</p><p>dualidade constante: ao mesmo tempo em que há um maior acesso</p><p>dos negros no campo da educação, por exemplo, permanece o</p><p>genocídio com mortes cujos números se igualam a uma guerra</p><p>declarada. Os avanços dos direitos da população negra acabam</p><p>sendo mais “penduricalhos” do que incorporados à estrutura</p><p>institucional. O impeachment da Presidente Dilma Rousseff nesse</p><p>processo é um marco não de excepcionalidade, mas do retorno à</p><p>exclusão brutal da população negra, aprofundando uma agenda</p><p>marcada pela “combinação de terror racial e liberalismo econômico”.</p><p>O golpe reforça um estado de normalidade, que é um Estado de</p><p>exceção para os negros, em que o “racismo opera como um</p><p>bálsamo seguro do golpe”, mantendo o “sistema imunológico” das</p><p>elites brancas inalterado.</p><p>O capítulo 5, “Ninguém viu, ninguém vê: comentários sobre o</p><p>estado da violência na atual democracia (de poucos)”, de Tulio</p><p>Custódio, dá continuidade ao tema tratado por Flauzina, discutindo</p><p>desdemocratização e genocídio negro nas periferias brasileiras, sob</p><p>o ponto de vista ético e político, no neoliberalismo contemporâneo,</p><p>sem perder de vista a herança colonial. Pautando-se na noção de</p><p>“ninguéns” de Marc Lamont Hill, o autor discute</p><p>a naturalização da</p><p>violência como resultado da subalternidade, bem como o processo</p><p>de niggerization (conceito de Cornel West), “uma espécie de estado</p><p>de degradação e terror, (...) que aprofunda a condição de</p><p>precarização da vida e amplia a sujeição dessas pessoas à</p><p>violência, tanto do Estado, quanto do mercado ou entre si mesmas”.</p><p>A solução para este problema estrutural está além da emergência</p><p>de reformas parciais, mas no entendimento de suas raízes</p><p>profundas, do imperialismo ao capitalismo contemporâneo. Este é</p><p>um quadro que só pode ser modificado a partir de um novo projeto</p><p>civilizacional.</p><p>Esther Solano Gallego, no capítulo 6, “Quem é o inimigo?</p><p>Retóricas de inimizade na rede social no período 2014-2017”,</p><p>associa os temas da produção e manutenção da subalternidade</p><p>brasileira com os discursos punitivistas engendrados pela nova</p><p>direita no país, que reafirma a imagem de “inimigos” e/ou os</p><p>indesejáveis da nação: os grupos marginalizados, pobres, mulheres,</p><p>negros ou periféricos. Cria-se uma narrativa binária, em última</p><p>instância, entre os cidadãos de bem e do mal. O Estado de direito</p><p>não funciona para “os inimigos”, contra os quais o aparato de</p><p>segurança estatal e a justiça-espetáculo são acionados. A autora,</p><p>então, analisa empiricamente como essas narrativas se atualizam</p><p>nas redes sociais, a partir da observação das interações de dois</p><p>clusters: de páginas policiais, que condenam a figura do “bandido”, e</p><p>de páginas anticorrupção, que repudiam a figura do “corrupto”.</p><p>Por fim, o capítulo que fecha o livro, “A cosmovisão da “nova”</p><p>direita brasileira”, de Debora Messenberg, traz uma análise empírica</p><p>sobre os valores e os princípios em disputa do campo da direita</p><p>conservadora atual. O chamado avanço conservador é, na verdade,</p><p>um campo multidimensional e heterogêneo, mas que possui</p><p>algumas características em comum. A robusta pesquisa da autora</p><p>analisou 18.923 publicações das redes sociais de movimentos</p><p>sociais, líderes, jornalistas e políticos do campo ideológico da direita</p><p>no ano de 2015. Esse estudo levou à conclusão de que existem</p><p>principalmente três enquadramentos principais que norteavam este</p><p>polo no ano de realização da pesquisa: o antipetismo, o</p><p>conservadorismo moral e os princípios neoliberais. Esses temas são</p><p>abordados de forma polarizada, comumente de forma intolerante e</p><p>virulenta, “impedindo a construção de canais de mediação, que</p><p>possibilitem a convivência entre contrários” e, em última instância,</p><p>aprofundando o déficit democrático que acompanha a história da</p><p>república no Brasil e que se agravou no século XXI.</p><p>Referências Bibliográficas</p><p>BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e</p><p>política. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense,</p><p>1985.</p><p>FERNANDES, Luís Manoel. Da transição na ordem mundial à</p><p>ruptura na ordem democrática nacional. In: Monções (5), nº 9,</p><p>Dourados, UFGD, 2016, pp. 9-25.</p><p>FREIXO, Adriano de. Os militares e Jair Bolsonaro. In: Teoria e</p><p>Debate, nº 178, São Paulo, Fundação Perseu Abramo, Novembro</p><p>de 2018.</p><p>GOHN, Maria da Glória. Manifestações de junho de 2013 no Brasil e</p><p>Praças dos indignados no Mundo. Petrópolis/ RJ: Vozes, 2014.</p><p>IASI, Mauro Luís. A rebelião, a cidade e a consciência. In:</p><p>MARICATO, Ermínia et alli. Cidades Rebeldes: passe livre e as</p><p>manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo:</p><p>Boitempo/ Carta Maior, 2013.</p><p>KECK, Margaret E. A lógica da diferença: o Partido dos</p><p>Trabalhadores na construção da democracia brasileira. Trad.</p><p>Maria Lucia Montes. São Paulo: Ática, 1991.</p><p>NOBRE, Marcos. Imobilismo em movimento: da abertura</p><p>democrática ao governo Dilma. São Paulo: Cia. das Letras, 2013.</p><p>RODRIGUES, Thiago. Narcotráfico, militarização e pacificações:</p><p>novas securitizações no Brasil. In: PASSOS, Rodrigo D.F. dos;</p><p>FUCCILLE, Alexandre. Visões do Sul: crise e transformações do</p><p>sistema internacional. Marília/ SP, Oficina Universitária/Cultura</p><p>Acadêmica, 2016. v. 2, pp. 55-87.</p><p>SINGER, André. Os sentidos do lulismo: Reforma gradual e pacto</p><p>conservador. São Paulo: Cia. das Letras, 2012.</p><p>______. O lulismo em crise: um quebra-cabeça do período Dilma</p><p>(2011-2016). São Paulo: Cia. das Letras, 2018.</p><p>A cosmovisão da “nova” direita brasileira [ 2 ]</p><p>Debora Messenberg</p><p>A atual cosmovisão da direita no Brasil, compreendida como um</p><p>universo multidimensional, o qual abarca diferentes tonalidades</p><p>ideológicas e emissões discursivas, exige esforço e cuidado</p><p>redobrados do pesquisador para a sua decifração. Isso porque não</p><p>se trata de um universo mental com contornos claros, nem fronteiras</p><p>e limites bem definidos. Pelo contrário: como nos esclarece Pierucci,</p><p>as diferentes posições e alinhamentos da direita</p><p>não são peças de um quebra-cabeça que podem ir se encaixando como</p><p>subconjuntos independentes, formando um todo harmonioso e confinado.</p><p>Elas se interpenetram, reagem uma sobre a outra, se misturam às vezes,</p><p>se fagocitam sempre, aqui se enriquecem, ali se anulam, aqui aparecem</p><p>e ali se escondem, feito massas estelares, distintas, mas nem por isso</p><p>menos nebulosas. (PIERUCCI, 1987, p. 40).</p><p>A noção de cosmovisão (Weltanschauung) aqui adotada</p><p>fundamenta-se no sentido weberiano (1992), o qual a relaciona aos</p><p>valores ou princípios culturais que embasam as concepções do</p><p>universo e filosofias de vida de uma sociedade ou grupo.</p><p>Cosmovisão é, por conseguinte, uma orientação central que abarca</p><p>narrativas e percepções acerca da realidade e fornece o</p><p>fundamento sobre o qual vivemos, nos movemos e existimos. Além</p><p>disso, como aponta Weber,</p><p>cosmovisões nunca podem ser o resultado de um avanço do</p><p>conhecimento empírico, e [...], portanto, os ideais supremos que nos</p><p>movem com a máxima força possível existem, em todas as épocas, na</p><p>forma de uma luta com outros ideais que são, para outras pessoas, tão</p><p>sagrados como o são para nós outros. (WEBER, 1992, p. 113).</p><p>Cosmovisão é, nessa perspectiva, corolário de significados em</p><p>eterna disputa.</p><p>O presente artigo apresenta os resultados de uma investigação</p><p>que procurou compreender a cosmovisão dos principais formadores</p><p>de opinião dos manifestantes que foram as ruas, ao longo do ano de</p><p>2015, para protestar contra a corrupção no país, se opor de maneira</p><p>frontal ao Partidos dos Trabalhadores (PT) e as suas políticas</p><p>sociais e de direitos, além de exigir o impeachment da presidenta</p><p>Dilma Rousseff.</p><p>Parte-se do pressuposto de que os ativistas que foram às ruas nos</p><p>dias 15 de março, 12 de abril e 16 de agosto de 2015 encontram-se</p><p>posicionados ideologicamente no que se convencionou chamar de</p><p>direita do espectro político. Direita e esquerda são conceitos</p><p>polissêmicos e, para alguns analistas, pouco úteis para a</p><p>compreensão da vida política nas sociedades contemporâneas.</p><p>Entretanto, e contrários a essa presunção, nos colocamos entre</p><p>aqueles que defendem não só a atualidade e a funcionalidade</p><p>desses conceitos, como a sua centralidade para o entendimento da</p><p>vida cotidiana e para a construção de identidades no agir político.</p><p>Entre os principais defensores da manutenção interpretativa da</p><p>díade esquerda e direita, encontramos Norberto Bobbio. Em seu já</p><p>clássico ensaio Direita e Esquerda: razões e significados de uma</p><p>distinção política (1995), Bobbio propõe uma série de princípios que,</p><p>segundo ele, encontram-se claramente presentes e são distintivos</p><p>das ideologias de esquerda e de direita. Embora saliente que a</p><p>direita e a esquerda não se apresentam concretamente na política</p><p>como blocos homogêneos e/ ou coerentes, argumenta que se pode</p><p>admitir de forma ampla que a esquerda se orienta essencialmente</p><p>para a promoção da igualdade entre os homens e para a mudança</p><p>da ordem social, enquanto a direita concebe a desigualdade como</p><p>algo intrínseco à humanidade e mantém o apego às tradições e a</p><p>preservação do ordenamento societário. Anexam-se a esses</p><p>princípios outros valores observáveis nos países industrializados e</p><p>que recobrem algumas ideias recorrentes.</p><p>Na esquerda, dá-se o primado do igualitarismo sobre os direitos</p><p>da propriedade e do livre comércio; o racionalismo; o laicismo; a</p><p>crítica das limitações ético-religiosas; a inexistência</p><p>de conceitos</p><p>absolutos de bem e mal; o desprezo à oligarquia; a preservação do</p><p>meio ambiente e os interesses dos trabalhadores, que devem</p><p>prevalecer sobre a necessidade de crescimento econômico; o</p><p>antifascismo; e a identificação permanente com as classes inferiores</p><p>da sociedade.</p><p>A direita, como aponta Bobbio (1995), move-se por outros ideais</p><p>que envolvem: o individualismo; a supremacia da propriedade</p><p>privada e da livre iniciativa; a intuição; a primazia do sagrado; a</p><p>valorização da ordem e da tradição; o elogio da nobreza e do</p><p>heroísmo; a intolerância à diversidade étnica, cultural e sexual; o</p><p>militarismo e a defesa da segurança nacional; o crescimento</p><p>econômico em detrimento da preservação ambiental e dos</p><p>interesses imediatos dos trabalhadores; o anticomunismo; e a</p><p>identificação permanente com as classes superiores da sociedade.</p><p>Observa-se, assim, que, para além do campo político, as</p><p>cosmovisões da esquerda e da direita constituem e se espraiam no</p><p>“campo metapolítico das relações sociais quotidianas e da luta</p><p>cultural” (PIERUCCI, 1990, p. 11). São, portanto, quadros de</p><p>referência a partir dos quais os indivíduos interpretam e interagem</p><p>com o mundo, estabelecendo significados à sua existência e</p><p>explicando a “ordem das coisas”.</p><p>Procedimentos metodológicos</p><p>Para a realização do trabalho, adotou-se estratégia metodológica</p><p>pautada em pesquisa multimétodos, a qual incluiu, em um primeiro</p><p>momento, a identificação dos principais movimentos sociais que</p><p>deram suporte logístico e ideológico às manifestações e as</p><p>lideranças (e outros formadores de opinião centrais) que as</p><p>promoveram e as incentivaram em seus respectivos campos</p><p>atuação: as redes sociais, o midiático e o parlamentar. A pesquisa</p><p>selecionou e analisou, em função de sua importância e capacidade</p><p>de reverberação de seus conteúdos, os posicionamentos dos</p><p>seguintes atores sociais:</p><p>Movimentos sociais</p><p>Movimento Brasil Livre (MBL), Vem pra rua e Revoltados Online</p><p>Líderes desses movimentos</p><p>Kim Kataguiri, Fernando Holiday, Rogério Chequer, Marcello Reis</p><p>e Beatriz Kicis</p><p>Jornalistas</p><p>Olavo de Carvalho, Reinaldo Azevedo, Raquel Sheherazade,</p><p>Felipe Moura Brasil e Rodrigo Constantino</p><p>Deputados Federais</p><p>Jair Bolsonaro e Marco Feliciano</p><p>Na etapa seguinte, realizou-se o levantamento das postagens</p><p>emitidas por esses atores sociais em suas páginas no Facebook, ao</p><p>longo do ano de 2015, além de matérias de suas autorias</p><p>publicadas em blogs, jornais e revistas, assim como vídeos de suas</p><p>entrevistas e hangouts disponíveis no Youtube. O Netvizz, [ 3 ]</p><p>software de coleta de dados de redes sociais, projetado</p><p>especificamente para a extração e análise de dados do Facebook,</p><p>foi o selecionado para o levantamento das informações</p><p>compartilhadas pelos formadores de opinião investigados, em suas</p><p>páginas públicas do Facebook. Tal processo resultou na coleta e</p><p>análise de um total de 18.923 publicações, assim distribuídas:</p><p>Movimento Brasil Livre (MBL), 4.996 postagens; Vem pra Rua, 1.723</p><p>postagens; Fernando Holiday, 1.159 postagens; Kim Kataguiri, 1.051</p><p>postagens; Olavo de Carvalho, 2.175 postagens; Reinaldo Azevedo,</p><p>1.882 postagens; Felipe Moura Brasil, 1.563 postagens; Rachel</p><p>Sheherazade, 548 postagens; Marco Feliciano, 2.178 postagens; e</p><p>Jair Bolsonaro, 318 postagens. O uso desse software somente não</p><p>foi possível no levantamento de dados relativos àqueles atores que,</p><p>por não apresentarem, durante o ano de 2015, páginas públicas na</p><p>rede social, tiveram coletadas a partir de suas páginas pessoais as</p><p>respectivas postagens no Facebook. Esses foram, especialmente,</p><p>os casos de: Rodrigo Constantino, 686 postagens; Rogério Chequer,</p><p>171 postagens; Marcello Reis, 152 postagens; e Revoltados Online,</p><p>135 postagens. [ 4 ] Há que se esclarecer que, conforme a data na</p><p>qual se realiza o levantamento das informações, o número final de</p><p>postagens nas páginas pessoais do Facebook pode apresentar</p><p>alguma alteração, em virtude da possibilidade de retirada de certas</p><p>mensagens e de acordo com a vontade particular do responsável</p><p>pela mesma. Isso, porém, não trouxe distorções significativas para o</p><p>presente trabalho, na medida em que o foco da investigação</p><p>encontra-se dirigido para a análise qualitativa dos conteúdos</p><p>emitidos, assim como o número das postagens coletadas e</p><p>analisadas é deveras substancial, mesmo em relação às páginas</p><p>pessoais.</p><p>Como último procedimento metodológico, organizaram-se dois</p><p>grupos focais, compostos por francos apoiadores e participantes das</p><p>manifestações de direita em 2015, no intuito de se verificar a</p><p>maneira pela qual a cosmovisão desses formadores de opinião foi</p><p>efetivamente compartilhada por tais manifestantes e como ela</p><p>influenciou as suas participações nos referidos protestos. Para</p><p>garantir maior qualidade e fidedignidade às informações coletadas,</p><p>procurou-se assegurar certa diversidade em termos de gênero, faixa</p><p>etária, renda, nível educacional e profissão entre os participantes</p><p>dos dois grupos.</p><p>Na interpretação dos dados coletados, optou-se pela</p><p>sistematização de determinados campos semânticos, constituídos</p><p>por certas ideias-força, que se apresentam de forma regular e</p><p>repetitiva no discurso desses agentes sociais. Deve-se esclarecer</p><p>que o discurso é aqui compreendido na perspectiva de</p><p>Maingueneau, ou seja,</p><p>bem menos do que um ponto de vista, (o discurso) é uma organização de</p><p>restrições que regulam uma atividade específica. Sua enunciação não é</p><p>uma cena ilusória onde seriam ditos conteúdos elaborados em outro</p><p>lugar, mas um dispositivo constitutivo da construção do sentido e dos</p><p>sujeitos que aí se reconhecem. (MAINGUENEAU, 1993, p. 50).</p><p>Quem são os formadores de opinião dos manifestantes de</p><p>direita brasileiros?</p><p>Identificam-se como formadores de opinião as lideranças</p><p>reconhecidas por suas audiências e as quais “se transfere a</p><p>responsabilidade de organizar cognitivamente uma grande</p><p>quantidade de informações sobre um mundo complexo, auxiliando o</p><p>cidadão a adquirir e demonstrar a competência mínima que lhe</p><p>exige a política”. (ALDÉ: 2004, p. 46) São os emissores legitimados</p><p>pelo meio social receptor, por serem distinguidos como dotados de</p><p>opinião autorizada, identificados como agentes com grande</p><p>competência interpretativa da realidade concreta e acesso</p><p>privilegiado às informações consideradas relevantes. São eles,</p><p>portanto, os pautadores dos interesses e das prioridades</p><p>informacionais de sua audiência e intérpretes de sua vida cotidiana</p><p>e da política.</p><p>No mundo contemporâneo, os meios de comunicação de massas</p><p>e as redes digitais constituem-se nos espaços privilegiados para a</p><p>construção dos enquadramentos, [ 5 ] aos quais as pessoas recorrem</p><p>para organizar e selecionar suas atitudes políticas. Tais</p><p>enquadramentos são produzidos de forma interativa, isto é, são</p><p>resultados de um processo de mão dupla entre os emissores e os</p><p>receptores da informação. Isto envolve a repetição, tanto de padrões</p><p>interpretativos e compreensivos de forma seletiva e manipulatória,</p><p>quanto de valores e símbolos dominantes no senso comum, que são</p><p>assim retroalimentados e/ ou reformados de forma dinâmica.</p><p>Para fins deste estudo, focar-se-á na discussão dos principais</p><p>enquadramentos elaborados pelos mais influentes formadores de</p><p>opinião dos manifestantes de direita brasileiros (movimentos sociais,</p><p>jornalistas e políticos). Tais estruturas cognitivas, ao serem</p><p>veiculadas pela mídia e redes sociais, configuram-se em campos</p><p>semânticos compostos por ideias-força, que são adotados por esse</p><p>público como “chaves de leitura” para a interpretação da conjuntura</p><p>política nacional e orientadores de suas ações políticas.</p><p>De início, cabe traçar a identificação dos atores sociais</p><p>selecionados como formadores de opinião dos manifestantes de</p><p>direita brasileiros. À frente e em relação aos movimentos sociais,</p><p>destacam-se: o Movimento Brasil Livre (MBL), o Vem pra Rua, e o</p><p>Revoltados Online.</p><p>O MBL, em sua página no Facebook (www.facebook.com/mblivre),</p><p>apresenta-se como “uma entidade sem fins lucrativos que visa</p><p>mobilizar cidadãos em favor de uma sociedade mais livre, justa e</p><p>próspera. Defendemos a Democracia,</p><p>a República, a Liberdade de</p><p>Expressão e de Imprensa, o Livre Mercado, a Redução do Estado e</p><p>a Redução da Burocracia”. A primeira postagem do Movimento</p><p>Brasil Livre no Facebook foi no mês de junho de 2013 e, em 15 de</p><p>março de 2015, a página contava com cerca de 65,5 mil fãs. Os</p><p>coordenadores nacionais de maior visibilidade do MBL são os</p><p>universitários paulistas Kim Kataguiri e Fernando Holiday.</p><p>A página do movimento Vem pra Rua Brasil no Facebook</p><p>(www.facebook.com/VemPraRuaBrasil.org) foi criada em outubro de</p><p>2014, poucos dias antes do segundo turno das eleições</p><p>presidenciais. Em sua auto definição na rede, o movimento</p><p>conclama os seguidores a vir para rua e “manifestar sua indignação</p><p>conosco”. “Nossa bandeira é a DEMOCRACIA, a ÉTICA NA</p><p>POLÍTICA e um ESTADO EFICIENTE e DESINCHADO”. No dia 15</p><p>de março de 2015, a página exibia aproximadamente 331 mil fãs. O</p><p>coordenador nacional do Vem pra Rua é o empresário paulista</p><p>Rogério Chequer.</p><p>O movimento Revoltados Online</p><p>(<www.facebook.com/revoltadosonline/>) apresenta-se, desde</p><p>agosto de 2010, como uma comunidade no Facebook. Na rede</p><p>intitula-se como: “uma ORGANIZAÇÃO DE INICIATIVA POPULAR</p><p>DE COMBATE aos corruPTos do PODER”. Em 15 de março de</p><p>2015, o Revoltados Online contava com cerca de 707 mil fãs.</p><p>No que diz respeito à caracterização dos líderes dos movimentos</p><p>acima apontados, convém preliminarmente salientar o intenso</p><p>intercâmbio de postagens entre esses atores nas redes sociais. Isso</p><p>revela uma evidente proximidade ideológica entre eles, embora</p><p>sejam observadas diferenças significativas em termos da</p><p>sofisticação intelectual, níveis de agressividade e o teor</p><p>conspiratório em seus discursos.</p><p>http://www.facebook.com/mblivre</p><p>http://www.facebook.com/VemPraRuaBrasil.org</p><p>http://www.facebook.com/revoltadosonline/</p><p>Kim Patroca Kataguiri nasceu em 1996, na cidade de Salto (SP).</p><p>Sua página no Facebook contava, em outubro de 2016, com mais</p><p>de 318 mil curtidas. Lá ele se apresentava como Coordenador</p><p>Nacional do MBL, colunista da Folha de SP, do Huffpost Brasil e</p><p>comentarista político da rádio ABC.</p><p>Fernando Silva Bispo (Fernando Holiday) nasceu em 1996, na</p><p>cidade de São Paulo, e apresenta-se em sua página no Facebook</p><p>enquanto Coordenador Nacional do Movimento Brasil Livre e</p><p>vereador eleito pela cidade de São Paulo, com 48.055 votos.</p><p>Ostentava, na rede, em outubro de 2016, mais de 171 mil curtidas</p><p>de sua página.</p><p>Rogério Chequer nasceu em 1968, na cidade de São Paulo. É um</p><p>empresário que se descreve, em sua página no Facebook (2.023</p><p>seguidores em outubro de 2016), como trabalhador da SOAP −</p><p>State of the Art Presentation. É formado em engenharia de produção</p><p>pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (POLI-USP) e</p><p>se retrata como o único porta-voz do movimento Vem pra Rua.</p><p>Marcello Cristiano Reis, nascido em 1974, na cidade de São Paulo</p><p>(SP), é administrador de empresas e fundador do movimento</p><p>Revoltados Online. Reis era seguido, em outubro de 2016, em sua</p><p>página no Facebook, por cerca de 308 mil pessoas.</p><p>Beatriz Kicis Torrents de Sordi, outra figura de destaque no</p><p>movimento Revoltados Online, é formada em Direito pela</p><p>Universidade de Brasília-UnB, procuradora aposentada do Ministério</p><p>Público Federal do Distrito Federal e exibia, em outubro de 2016,</p><p>mais de 43 mil curtidas em sua página no Facebook.</p><p>Olavo Luiz Pimentel de Carvalho nasceu em Campinas, no ano de</p><p>1947. Não possui formação universitária, mas se define como</p><p>filósofo, ensaísta e escritor brasileiro. Sua página no Facebook era</p><p>seguida, em outubro de 2016, por 288.689 pessoas. Considerado</p><p>como o mestre e o grande inspirador da nova geração de direita na</p><p>rede, Carvalho escreve e edita, desde 2002, o site Mídia sem</p><p>Máscara. Mora, desde 2005, em Richmond, no estado da Virgínia</p><p>(EUA), onde mantém fortes vínculos de financiamento com o</p><p>Independent Republican Institute (IRI), vinculado ao Partido</p><p>Republicano norte americano e com a Atlas Network [ 6 ].</p><p>José Reinaldo de Azevedo e Silva, nascido em 1961, em Dois</p><p>Córregos (SP), formado em jornalismo pela Universidade Metodista</p><p>de São Paulo (UMSP), ostentava, em outubro de 2016, mais de 301</p><p>mil curtidas de sua página no Facebook. É colunista do jornal Folha</p><p>de São Paulo, sendo também comentarista e analista político da</p><p>Rede TV.</p><p>Raquel Sheherazade Barbosa, nascida em 1973, em João Pessoa</p><p>(PB), é jornalista e radialista formada em Comunicação Social pela</p><p>Universidade Federal da Paraíba- UFPB. Atualmente ancora o</p><p>Jornal da Manhã, na Rádio Jovem Pan, e o telejornal SBT Brasil, no</p><p>SBT. Em sua página no Facebook constavam, em outubro de 2016,</p><p>mais de 2 milhões e 400 mil curtidas.</p><p>Felipe Moura Brasil é um jornalista carioca, nascido em 1981, e</p><p>que atua como colunista no site O Antagonista, criado em 2015</p><p>pelos jornalistas Diogo Mainardi e Mário Sabino. Comanda ainda, na</p><p>rádio Jovem Pan e, em substituição ao jornalista Reinaldo Azevedo,</p><p>o programa diário Os Pingos nos Is. Entre os anos de 2013 a 2017,</p><p>escreveu uma das colunas mais lidas da Revista Veja, atuando</p><p>também como comentarista no programa Estúdio Veja. Sua página</p><p>no Facebook registrava, em outubro de 2016, mais de 200 mil</p><p>seguidores.</p><p>Rodrigo Constantino dos Santos nasceu no Rio de Janeiro em</p><p>1976 e estudou economia na Pontifícia Universidade Católica do Rio</p><p>de Janeiro (PUC-RJ). É atualmente o Presidente do Instituto Liberal</p><p>e um dos idealizadores do Instituto Millenium (Imil). Constantino era</p><p>seguido, em outubro de 2016, por 145.521 pessoas no Facebook.</p><p>Jair Messias Bolsonaro, nascido em Campinas, em 1955, revela-se</p><p>em sua página no Facebook como capitão do exército brasileiro e</p><p>deputado federal mais votado do Estado do RJ, com 464.565 votos.</p><p>Bolsonaro exibia, em outubro de 2016, mais de 3 milhões e 350 mil</p><p>curtidas de sua página. Encontrava-se em sua sétima legislatura na</p><p>Câmara dos Deputados, para a qual se elegeu pelo Partido</p><p>Progressista (PP).</p><p>Marco Antônio Feliciano nasceu em 1972, na cidade de Orlândia</p><p>(SP). Em sua página no Facebook, na qual constavam, em outubro</p><p>de 2016, mais de 3 milhões e 900 mil curtidas, descreve-se como o</p><p>presidente da Igreja Assembleia de Deus Catedral do Avivamento,</p><p>conferencista internacional, escritor, cantor e deputado federal.</p><p>Encontra-se no seu segundo mandato na Câmara dos Deputados,</p><p>tendo sido eleito pelo PSC-SP.</p><p>Feita a caracterização geral dos perfis dos formadores de opinião</p><p>aqui selecionados, cumpre agora elucidar os enquadramentos</p><p>formulados por esses atores sociais, os quais, após serem</p><p>difundidos pela mídia e pelas redes, acabam por funcionar como</p><p>quadros de referência que permitem aos seus seguidores dar</p><p>coerência a suas opiniões, escolhas e ações.</p><p>Os campos semânticos e as ideias-força em discussão</p><p>É possível acompanhar a formação das constelações de sentido dos</p><p>formadores de opinião investigados a partir do inventário das ideias-</p><p>força que se repetem e sustentam os seus discursos, acabando por</p><p>configurar certos campos semânticos. Observam-se três campos</p><p>semânticos centrais no discurso dos formadores de opinião dos</p><p>manifestantes de direita nas grandes mobilizações de 2015: o</p><p>antipetismo, o conservadorismo moral e os princípios neoliberais. O</p><p>Quadro 1 abaixo é elucidativo para esta discussão.</p><p>CAMPOS SEMÂNTICOS</p><p>ANTIPETISMO CONSERVADORISMO MORAL PRINCÍPIOS</p><p>NEOLIBERAIS</p><p>IDEIAS-FORÇA IDEIAS-FORÇA IDEIAS-FORÇA</p><p>CAMPOS SEMÂNTICOS</p><p>Impeachment</p><p>(Fora PT, Fora Dilma,</p><p>Fora Lula)</p><p>Família tradicional Estado mínimo</p><p>Corrupção Resgate da fé cristã</p><p>Eficiência do</p><p>mercado</p><p>(Privatização)</p><p>Crise econômica Patriotismo Livre iniciativa</p><p>(Empreendedorismo)</p><p>Bolivarianismo Anticomunismo Meritocracia</p><p>Combate à criminalidade/Aumento</p><p>da violência</p><p>Corte de políticas</p><p>sociais</p><p>Oposição às cotas raciais</p><p>Fonte: Pesquisa</p><p>O antipetismo é o campo semântico a reunir o maior número de</p><p>emissões discursivas dos formadores de opinião aqui analisados,</p><p>tanto nas suas postagens no Facebook, durante o ano de 2015,</p><p>quanto em seus sites, blogs, participações em entrevistas e</p><p>hangouts. O Partido dos trabalhadores (PT) é, na visão desses</p><p>atores sociais, o grande responsável</p><p>por todas as mazelas que</p><p>atingem o país. Ao PT é atribuída a responsabilidade, tanto da crise</p><p>econômica que nos assola mais diretamente nos últimos três anos,</p><p>quanto ao que é reconhecido por eles como um dos principais,</p><p>senão o principal, problema do país: a corrupção. O combate à</p><p>corrupção, entendida como uma valência no mundo contemporâneo,</p><p>assume, no discurso desses agentes, a condição sinonímia de</p><p>combate ao PT. Expressões como “Petrolão”, “Petralhas”, “Quadrilha</p><p>do PT” abundam nos discursos desses formadores de opinião,</p><p>consolidando a certeza entre os seus seguidores de que a</p><p>corrupção, apesar de ser reconhecida como prática longeva na vida</p><p>pública brasileira, foi erigida pelo PT como “prática de governo”.</p><p>Os conteúdos das emissões discursivas que sustentam o</p><p>antipetismo revelam não só a sua virulência, como o seu caráter</p><p>neofascista [ 7 ]. A eleição de “bodes expiatórios” é um dos mais</p><p>tradicionais mecanismos políticos para amenizar o ódio e as</p><p>frustrações de parcelas da sociedade, que se veem ameaçadas</p><p>diante daquilo que sentem como agressões ao mesmo tempo</p><p>difusas e brutais ao seu mundo. Como nos ensina GIRARDET</p><p>(1987), a demonização de um grupo social real ou imaginário é um</p><p>dos pilares do “mito do complô”, que assume função social</p><p>explicativa das mais importantes no universo da política. Ao reduzir</p><p>a uma única causalidade os acontecimentos desconcertantes e</p><p>incômodos, finda por lhes restituir a inteligibilidade, minimizando a</p><p>terrível angústia provocada pelo desconhecido. A personificação do</p><p>mal (petistas, comunistas, imigrantes, judeus) permite, assim, o seu</p><p>fácil reconhecimento e, por conseguinte, a vigilância e o combate.</p><p>Ademais, encontrando-se encarnado, o mal reafirma a identidade</p><p>dos grupos sociais que se consideram majoritários e apresenta-se</p><p>como a antítese da “normalidade”. Desse modo, fornecendo</p><p>resposta ao que não se compreende ou ao que não se aceita na</p><p>história e exercendo papel importante na reafirmação de identidades</p><p>sociais, o mito do complô termina funcionando como instrumento</p><p>poderoso para a exclusão dos diferentes e justificador de fracassos.</p><p>O apelo ao mito do complô encontra-se ainda claramente presente</p><p>no discurso de certos formadores de opinião, alinhados ao que se</p><p>poderia admitir como de extrema-direita (Olavo de Carvalho, Beatriz</p><p>Kicis, Marcello Reis, Raquel Sheherazade, Bolsonaro, Feliciano e o</p><p>Movimento Revoltados Online) e, principalmente, ao que se refere a</p><p>ideia-força do “bolivarianismo”.</p><p>Desde que, em 1999, após a promulgação de uma nova</p><p>Constituição, o presidente venezuelano Hugo Chávez declarou o</p><p>seu país uma “República Bolivariana”, convencionou-se chamar de</p><p>bolivarianos os governos de esquerda na América Latina que</p><p>questionaram o neoliberalismo e o Consenso de Washington. De</p><p>forma semelhante, tal retórica foi utilizada para caracterizar as</p><p>presidências de Rafael Correa, no Equador, e a de Evo Morales, na</p><p>Bolívia. Embora os Governos de Luiz Inácio Lula da Silva e de Dilma</p><p>Rousseff nunca tenham aderido formalmente a posicionamentos</p><p>análogos, foram frequentes as acusações de que estariam</p><p>“transformando o Brasil numa Venezuela” por parte dos políticos da</p><p>oposição e de setores da mídia e da opinião pública. Para os</p><p>formadores de opinião da extrema-direita aqui analisados, há notória</p><p>articulação entre a ideia de bolivarianismo e o comunismo,</p><p>principalmente por intermédio de uma organização denominada</p><p>Foro de São Paulo [ 8 ]. O Foro de São Paulo assume,</p><p>particularmente nos discursos de Olavo de Carvalho, Beatriz Kicis,</p><p>Marcello Reis e Bolsonaro, a hipérbole retórica da “personificação</p><p>do mal”, a qual se aproxima de forma característica aos delírios de</p><p>perseguição.</p><p>A narrativa mítica do complô – ainda que mantenha vínculos com</p><p>dados factuais, inerente a toda construção mitológica – estabelece</p><p>uma verdadeira transformação qualitativa da realidade, já que, na</p><p>maioria das vezes, não só ultrapassa qualquer ordem cronológica,</p><p>como abdica da relativização dos fatos e situações históricas. Aqui,</p><p>novamente e de forma mais visível, o hiato entre o substrato</p><p>histórico dos fatos e a sua leitura mítica atinge amplitude</p><p>considerável. O fascista crê, firmemente, que esteja em marcha uma</p><p>conspiração, empunhada por uma sociedade secreta, cujos</p><p>contornos não estão e nem precisam ser muito esclarecidos. Os</p><p>supostos inimigos podem ser, desde organizações e partidos a</p><p>grupos específicos: os comunistas, os negros, os gays, as</p><p>feministas e todos aqueles que não compartilham de seu universo</p><p>mental. Sua visão de mundo é maniqueísta e encontra-se dividida</p><p>entre os que representam “o bem” e os que representam “o mal”.</p><p>Essa é, portanto, uma interpretação “despolitizada” da realidade, na</p><p>medida em que opera o deslocamento para o plano moral daquilo</p><p>que é produto da ação humana e não da ordem da natureza. Tende,</p><p>por isso, a desconectar as falas do movimento histórico no qual se</p><p>originam (BARTHES, 1989). Está-se, assim, na presença de</p><p>indivíduos e movimentos sociais que alimentam fobias e</p><p>preocupações generalizadas, acirrando discursos que incitam a</p><p>violência e a intolerância. Mostram-se fartamente preconceituosos,</p><p>ratificando que as diferenças entre “nós” e “eles” são de fundo e</p><p>irreconciliáveis. Arregimentam igualmente públicos que,</p><p>desorientados em meio a uma crise que, além de econômica e</p><p>política, é também cultural, sentem-se ameaçados pelo</p><p>desmoronamento de seu mundo, sendo facilmente cooptados para a</p><p>defesa de causas anti-igualitárias e soluções despóticas.</p><p>O moralismo é outro campo semântico fértil explorado por esses</p><p>formadores de opinião e envolve ideias de cunho claramente</p><p>conservador. O conservadorismo é aqui entendido como uma forma</p><p>de resistência às transformações promovidas pela sociedade</p><p>moderna (expansão dos direitos individuais, secularização e</p><p>cosmopolitismo) e uma reafirmação dos pilares da sociedade</p><p>tradicional: a família, a religião e a nação. (HIRSCHMAN,1992). Tal</p><p>tríade está fortemente entrelaçada no discurso dos formadores de</p><p>opinião da direita, apesar de apresentar graus de centralidade e</p><p>radicalismo distintos. Os elementos discursivos que com maior</p><p>frequência se relacionam a ideia-chave de “família tradicional” são</p><p>os seguintes: oposição ao casamento entre pessoas do mesmo</p><p>sexo, ao aborto, à ideologia de gênero nas escolas, à expansão do</p><p>feminismo e a concordância com a “cura gay”. Os conteúdos</p><p>centrais da ideia-força “resgate da fé cristã” envolvem emissões que</p><p>invocam a entrega dos destinos individuais e coletivos “nas mãos de</p><p>Deus”, a profusão de mensagens de Salmos e Provérbios bíblicos,</p><p>além da crítica ao que denominam de “cristofobia”, atribuída à</p><p>esquerda. Por último, e ao que se refere a leitura do “patriotismo” no</p><p>discurso desses atores sociais, convém destacar o seu vínculo</p><p>umbilical à ideia do “anticomunismo” (guerra permanente a esse</p><p>inimigo comum) e louvações às forças armadas e incentivos à</p><p>adoração dos símbolos nacionais, com destaque para o hino e a</p><p>bandeira.</p><p>As emissões discursivas presentes no campo semântico</p><p>“conservadorismo moral” envolvem de forma extremada conteúdos</p><p>de natureza homofóbica, sexista, racista e xenófoba. Tais</p><p>intolerâncias se repetem da mesma forma, como não poderia deixar</p><p>de ser, nas duas outras ideias-força desveladas na pesquisa: o</p><p>superdimensionamento da criminalidade e da violência no país e a</p><p>oposição às cotas raciais. Desdobram-se, a partir da primeira,</p><p>questões relacionadas ao apoio à redução da maioridade penal, ao</p><p>recrudescimento das penas judiciais, à truculência das ações</p><p>policiais e as críticas à política de direitos humanos, à justiça</p><p>brasileira e à política do desarmamento. Com relação às cotas</p><p>raciais, a conexão com outra ideia-força também presente no</p><p>discurso desses atores é imediatamente observada. Isto é, há a</p><p>percepção unânime de que as cotas raciais ferem o princípio da</p><p>meritocracia e acirram o racismo no país.</p><p>A incapacidade desses agentes em lidar com a heterogeneidade,</p><p>seja ela de cunho étnico, religioso, econômico, político ou</p><p>ideológico, revela, como nos lembra Hannah Arendt, que</p><p>“o</p><p>‘estranho’ é um símbolo assustador pelo fato da diferença em si, da</p><p>individualidade em si, e evoca essa esfera [da vida privada] onde o</p><p>homem não pode atuar nem mudar e na qual tem, portanto, uma</p><p>definida tendência a destruir” (ARENDT: 1989, p. 335). Medo e</p><p>impotência diante do incompreensível num contexto de grande</p><p>frustração social – aí se encontra o cadinho para a experiência</p><p>totalitária.</p><p>Isto se alia à intolerância à diferença, a revolta particular da classe</p><p>média brasileira em ter que dividir os espaços sociais habitualmente</p><p>monopolizados por ela e o medo da perda de seus privilégios. Nos</p><p>últimos treze anos ocorreram mudanças significativas no padrão de</p><p>consumo das camadas mais pobres de nossa sociedade. Mais de</p><p>20 milhões de pessoas ultrapassaram a linha da pobreza, houve</p><p>aumentos reais e contínuos no salário mínimo e os programas de</p><p>transferência de renda, como o Bolsa Família, e de inclusão social,</p><p>como as ações afirmativas, produziram transformações concretas</p><p>nos padrões de integração e exclusão sociais no país (AVRITZER,</p><p>2016). Um novo segmento social com capacidade de consumo de</p><p>bens duráveis e não duráveis passou a ocupar espaços e a dividir o</p><p>uso de serviços, nunca antes compartilhados pela classe média</p><p>nacional, com outras camadas mais pobres da população</p><p>(aeroportos, shoppings, universidades e planos de saúde). Mais do</p><p>que dividir espaços, as manifestações de ódio da classe média</p><p>brasileira, durante os protestos de 2015, expressavam o seu pânico</p><p>em perder privilégios seculares, privilégios esses que obviamente</p><p>não são vistos como tais, mas como resultado natural de um</p><p>processo justo de concorrência e mérito. (SOUZA, 2015).</p><p>A introdução das cotas raciais nas universidades públicas e em</p><p>outros concursos produziu, em especial, um efeito duplamente</p><p>elucidativo no dimensionamento desta revolta. As cotas não só</p><p>reduziram os espaços sociais que antes eram concebidos como</p><p>reservas de mercado para a classe média, como colocaram em</p><p>cheque a validade prática e normativa dos mecanismos</p><p>meritocráticos, que são fundantes para a organização da</p><p>cosmovisão desta classe (CAVALCANTE, 2015). A meritocracia é,</p><p>como nos ensina BOURDIEU (2007), uma ideologia que serve de</p><p>base ao consenso social e político das sociedades capitalistas,</p><p>justamente por ocultar a produção social dos desempenhos</p><p>diferencias entre os indivíduos, transmutando-os em “qualidades</p><p>inatas”. É, pois, fonte basilar para a naturalização das</p><p>desigualdades e legitimação da hierarquia social. Encontra-se,</p><p>assim, claramente articulada às críticas relacionadas às cotas</p><p>sociais e justifica o “sucesso” das classes médias nas disputas por</p><p>bens materiais e simbólicos.</p><p>Como se observa no Quadro 1, a meritocracia é uma das ideias-</p><p>força presente no campo semântico “princípios neoliberais”, o qual</p><p>similarmente apresenta outras “chaves de leitura”, a saber: estado</p><p>mínimo; eficiência do mercado; livre iniciativa e corte de políticas</p><p>sociais. Em verdade, tais concepções professam de maneira</p><p>articulada a defesa inconteste da economia de mercado sob a égide</p><p>do neoliberalismo. O neoliberalismo é aqui compreendido, à luz da</p><p>tese de Dardot & Laval (2016), como uma “racionalidade”, antes que</p><p>uma ideologia ou política econômica. Uma racionalidade de nosso</p><p>“cosmo social”, que “tende a estruturar e a organizar não apenas a</p><p>ação dos governantes, mas até a própria conduta dos governados.</p><p>A racionalidade neoliberal tem como característica principal a</p><p>generalização da concorrência como norma de conduta e da</p><p>empresa como modelo de subjetivação” (DARDOT & LAVAL,</p><p>2016:17). O neoliberalismo é, nesta perspectiva, um “sistema</p><p>normativo” que abarca discursos e práticas que expandem a lógica</p><p>do capital a todas as esferas e relações sociais.</p><p>No âmbito do discurso dos formadores de opinião verificam-se</p><p>níveis de complexidade e sofisticação diversos nas discussões</p><p>acerca dos princípios neoliberais apontados, revelando certo</p><p>desconcerto entre um maior domínio intelectual sobre o tema e a</p><p>simulação de adesão a partir da repetição de “chavões” clássicos do</p><p>ideário liberal. Não obstante, a lógica da concorrência e o modelo de</p><p>empresa, como normas de conduta e subjetivação, encontram-se</p><p>claramente expressos em suas emissões discursivas. A exaltação</p><p>da livre iniciativa, a certeza da capacidade empreendedora dos</p><p>indivíduos e a total desconfiança em relação ao Estado como</p><p>administrador dos negócios públicos são indicadores da introjeção</p><p>desta “razão do mundo”. (DARDOT & LAVAL, 2016).</p><p>Observa-se nos discursos dos formadores de opinião e, em</p><p>particular, naqueles que defendem com veemência os princípios</p><p>neoliberais (Kim Kataguiri, Fernando Holiday, Rogério Chequer e</p><p>Rodrigo Constantino), certa regularidade de formas e conteúdos que</p><p>indicam uma produção discursiva claramente padronizada.</p><p>Suspeita-se que a unidade desses conteúdos venha a ser obra da</p><p>atuação massiva dos thinks thanks de direita no Brasil, nos últimos</p><p>anos e, em especial, da Atlas Network. De acordo com Rocha</p><p>(2015), o objetivo principal dos thinks thanks “ativistas” de direita na</p><p>América Latina é difundir o ideário liberal de maneira expansiva, de</p><p>modo a facilitar a proposição de políticas públicas alinhadas à</p><p>“defesa do livre mercado” e à aprovação das mesmas pelas</p><p>instâncias estatais. Estar alinhado à “defesa do livre mercado”</p><p>significa fundamentalmente “pressionar pela adoção de medidas</p><p>que incentivem a abertura de mercados, os cortes de gastos do</p><p>Estado e a privatização de empresas estatais”. (ROCHA, 2015, p.</p><p>270). Merece ainda destaque o fato de que, nos dias de hoje,</p><p>praticamente todos os mais importantes think thanks de direita do</p><p>mundo fazem parte da rede constituída pela Atlas Network (ROCHA,</p><p>2015). Na América Latina, nos últimos dez anos, mais do que</p><p>dobrou o número de think thanks ligados à Atlas Network. Entre eles</p><p>se encontram: o Instituto Millenium, que tem Rodrigo Constantino</p><p>como um de seus fundadores, o MBL e o Vem pra Rua, ainda que</p><p>ambos os movimentos não reconheçam formalmente tal filiação.</p><p>(http://apublica.org/2015/06/a-nova-roupa-da-</p><p>direita/#.WApss1Jly3A.email).</p><p>http://apublica.org/2015/06/a-nova-roupa-da-direita/#.WApss1Jly3A.email</p><p>Interessante examinar no discurso desses agentes sociais a</p><p>convivência de elementos claramente contraditórios aos princípios</p><p>neoliberais que defendem. São ferozes partidários do Estado</p><p>mínimo, porém pressionam de todas as formas o Estado a criar</p><p>situações de concorrência e a incentivar modelos de comportamento</p><p>que direcionem a conduta dos indivíduos no sentido de transformá-</p><p>los em consumidores e empreendedores. Propagandeiam a defesa</p><p>do livre mercado numa economia global, mas recorrem</p><p>constantemente ao discurso de salvação da pátria. Pregam a livre</p><p>iniciativa, embora não reconheçam direitos individuais básicos.</p><p>Enfim, há que se admitir, como apontam Dardot & Laval (2016), que</p><p>o neoliberalismo, na sua forma atual, apresenta-se como uma</p><p>“razão do mundo” de natureza antidemocrática. Seu</p><p>antidemocratismo denuncia-se quando se constata que ele é</p><p>reconhecido na contemporaneidade como a única verdade e</p><p>alternativa possível para o desenvolvimento das nações. Outrossim,</p><p>encontra-se ainda presente na submissão de todos a um regime de</p><p>concorrência universal em que</p><p>as formas de gestão na empresa, o desemprego e a precariedade, a</p><p>dívida e a avaliação, apresentam-se como poderosas alavancas de</p><p>disputa interindividual e definem novos modos de subjetivação. A</p><p>polarização entre os que desistem e os que são bem-sucedidos mina</p><p>qualquer solidariedade e cidadania expandida. (DARDOT & LAVAL, 2016,</p><p>p. 9).</p><p>À guisa de conclusão</p><p>A apreensão da cosmovisão (weltanschauung) dos principais</p><p>formadores de opinião que deram suporte ideológico e coordenaram</p><p>a ação dos manifestantes de direita no Brasil, em 2015, coloca-se</p><p>como um desafio intelectual de indiscutível relevância e atualidade.</p><p>O desvelamento e a compreensão dos conteúdos centrais que</p><p>envolvem as emissões discursivas desses agentes sociais revelam-</p><p>se importantes, não só para o reconhecimento do caráter ativo e</p><p>reflexivo</p>