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SUMÁRIO 1 HISTÓRIA E EVOLUÇÃO DA NEUROCIÊNCIA ...................................................... 4 1.1 Evolução histórica........................................................................................... 6 1.2 Ramón y Cajal e Golgi .................................................................................. 13 1.3 As neurociências .......................................................................................... 18 2 MÉTODOS E TECNOLOGIAS EM NEUROCIÊNCIA ............................................ 19 3 ÁREAS MODERNAS DA NEUROCIÊNCIA ........................................................... 26 1.1 Neurociência Cognitiva ................................................................................. 26 1.2 Neuroplasticidade ......................................................................................... 28 1.3 Neurociência Computacional ........................................................................ 32 4 NEUROÉTICA E IMPLICAÇÕES SOCIAIS ............................................................ 35 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................... 39 4 1 HISTÓRIA E EVOLUÇÃO DA NEUROCIÊNCIA Embora o campo de conhecimento interdisciplinar tenha se consolidado na década de 1960, o interesse pelo cérebro e a percepção de que o comportamento e as funções mentais estão relacionados a ele remontam a tempos antigos. A observação de que traumatismos cranianos causavam alterações no comportamento e na percepção, além de perdas de consciência e memória, provavelmente contribuiu para que essa associação entre atividade cerebral e mente fosse estabelecida ao longo da história. Existem indícios de que essa compreensão ocorre há milênios. Achados paleontológicos de crânios pré-históricos com perfurações feitas em vida – trepanações – datados de até 10.000 anos atrás, indicam que o homem das cavernas intervia no cérebro, acreditando que os maus espíritos que atormentavam a pessoa poderiam ser liberados dessa forma. Desde os mitos da criação presentes nas culturas antigas até as teorias da física moderna, questões relacionadas à existência humana e ao mundo ao redor sempre suscitaram indagações. Entre todas essas questões, talvez a mais intrigante seja a atividade mental. Apesar do avanço do conhecimento em geral, a natureza da mente humana ainda permanece, em grande parte, sem respostas definitivas. O estudo do sistema nervoso sempre apresentou desafios únicos em comparação com outros sistemas orgânicos. De fato, a centralidade do cérebro na cognição, emoções, sensações e movimentos não é necessariamente autoevidente. Por exemplo, Aristóteles não acreditava que o cérebro estivesse criticamente envolvido na emoção, sensação e movimento; ele atribuía essas funções ao coração, uma visão também defendida pelos antigos egípcios. Em contraste, os médicos hipocráticos, apesar de sua complexa teoria dos humores determinantes do temperamento, atribuíram funções intelectuais ao cérebro. O debate sobre a natureza da mente humana tem tomado novos rumos graças ao conhecimento biológico e à crescente investigação sobre a atividade neural (CHURCHLAND, 1996). O crescimento das pesquisas sobre a localização das funções cerebrais pela neurociência contribui para uma melhor compreensão dos 5 substratos neurais da consciência humana. No entanto, o conhecimento produzido por essa área não surgiu subitamente. Desde a pré-história até os dias atuais, diferentes formas de reflexão sobre as possíveis relações entre o corpo e suas funções mentais (ou alma) foram desenvolvidas (KRISTENSEN et al. 2001). A natureza física do cérebro dificultava seu estudo. À inspeção visual bruta, o cérebro se assemelha a uma massa gelatinosa. A invenção do microscópio no final do século XVII fez pouco para ajudar os cientistas a visualizar os substratos internos de neurônios e glia. Somente após o desenvolvimento de microscópios acromáticos e melhores métodos de coloração no século XIX, o botânico Matthias Jakob Schleiden, em 1838, propôs que as células eram os blocos fundamentais da vida vegetal. O zoólogo Theodor Schwann fez a mesma afirmação para os animais no ano seguinte. No entanto, os neurônios eram menos visíveis do que outras células, mesmo com os melhores microscópios do início do século XIX. Isso dificultou a aplicação da teoria celular ao sistema nervoso. ➢ Pesquisas em Neurociências Os animais usados para pesquisa, educação e testes representam uma pequena fração comparada aos utilizados para outros propósitos. Nos Estados Unidos, por exemplo, o número de animais utilizados em todos os tipos de pesquisa biomédica é muito menor do que o número de animais abatidos para consumo. O número usado especificamente para pesquisa em neurociências é ainda menor. Diferentes espécies, desde caramujos até macacos, são utilizadas na pesquisa neurocientífica. A escolha da espécie é geralmente determinada pela questão em investigação, o nível de análise e a relevância do conhecimento gerado para seres humanos. Quanto mais básico o processo sob investigação, mais distante na escala evolutiva pode estar o animal escolhido em relação aos humanos. Por exemplo, experimentos que buscam entender a base molecular da condução do impulso nervoso podem ser realizados em espécies tão distantes de nós quanto a lula. Por outro lado, entender as bases neurais do movimento e dos distúrbios de percepção em humanos requer experimentos em espécies mais próximas, como o macaco. Atualmente, mais da metade dos animais usados em pesquisa neurocientífica são roedores, como ratos ou camundongos, criados especificamente para esse propósito. 6 No mundo desenvolvido, a maioria dos adultos instruídos se preocupa com o bem-estar dos animais, e os neurocientistas compartilham dessa preocupação, trabalhando para garantir que os animais sejam bem tratados. Historicamente, a sociedade nem sempre valorizou o bem-estar dos animais, como refletido em algumas práticas científicas do passado. Por exemplo, no início do século XIX, Magendie utilizou filhotes de cachorro sem anestesia em seus experimentos, prática criticada por seu rival científico, Bell. Felizmente, uma maior consciência da importância do bem-estar animal levou a melhorias significativas na forma como os animais são tratados na pesquisa biomédica. Hoje, os neurocientistas aceitam certas responsabilidades morais para com os animais experimentais, como: 1. Animais são usados somente em experimentos necessários que permitam avanços no conhecimento do sistema nervoso. 2. Todos os procedimentos necessários para minimizar a dor e o estresse experimentados pelos animais (uso de anestésicos, analgésicos, etc.) são realizados. 3. Todas as possíveis alternativas ao uso de animais são consideradas. Ativistas pelos direitos dos animais lutam vigorosamente contra a pesquisa com animais, algumas vezes com sucesso notável. 1.1 Evolução histórica Um desafio inerente a qualquer construção histórica da ciência, que abrange um conjunto de trabalhos ao longo de um extenso período, é a seleção dos estudos a serem examinados para garantir a coerência do discurso proposto. Portanto, o historiador precisa definir critérios para escolher os trabalhos mais relevantes para sua exposição. 7 ✓ Contribuições revolucionárias de Hipócrates Hipócrates (460 a.C. - 370 a.C.) é um excelente exemplo de como a medicina era ensinada na sua época. Ele não só praticava a medicina, mas também a ensinava através da prática, contribuindo com diversos escritos especializados. Como não existiam estabelecimentos públicos para a formação e recrutamento de médicos, a transmissão do conhecimento era inicialmente feita dentro das próprias famílias. Com o tempo, discípulos sem vínculo familiar também puderam usufruir dessaformação especializada. Hipócrates foi formado pelo pai, Heraclides, e pelo avô, Hipócrates I, ambos médicos asclepíades da Ilha de Cós. Posteriormente, ele reuniu um bom número de aprendizes, incluindo seus filhos Tessalo (pai de Hipócrates III) e Dracon (pai de Hipócrates IV). Hipócrates pertencia à escola de Cós, pois sua família descendia diretamente dos Asclepíades de Cós. É importante notar que, no final do século V e início do século IV a.C., uma escola nada mais era do que um centro localizado em uma cidade ou um mestre que oferecia ensinamentos a seus filhos e discípulos. É nesse sentido que se pode falar da escola de Cós, onde Hipócrates se formou. Hipócrates foi pioneiro ao testar a concepção racional dos filósofos por meio da experiência, desenvolvendo o "método hipocrático" – conhecido como indutivo – e validando hipóteses. Dessa forma, começou a separar a Medicina – e com ela a Ciência – da Filosofia. Assim como a matemática se relaciona com o mundo físico, a medicina de Hipócrates direcionou a ciência para a biologia. Em uma época em que a medicina era teocrática, os médicos eram adivinhos e as explicações eram irracionais, Hipócrates de Cós criou um corpo de doutrina sistematizado que elevou a medicina à categoria de pré-ciência, buscando estabelecer relações causais. Ele fundou o método clínico à beira do leito (klinós), afirmando que o lugar do médico é ao lado do doente, e desenvolveu a relação médico-paciente, princípios que ainda vigoram hoje. Foi através da medicina que o homem começou a se aproximar da ciência, libertando os fatos do mito e de um idealismo filosófico que negava a realidade (GOTTSCHALL, 2007). 8 O Corpus Hippocraticum revela pela primeira vez um sistema integrado de medicina, afirmando que “para conhecer a natureza do homem é necessário conhecer a natureza de todas as coisas”, vinculando assim a medicina com a cultura e o humanismo. Durante séculos, desde a Antiguidade até a Idade Média, as observações de doenças e pacientes transformadas nos aforismos de Hipócrates foram uma das bases do ensino médico. Como o método científico surgiu vinte e dois séculos depois, o aprendizado se dava por meio da memorização de máximas, versos, fábulas e aforismos. Esses ensinamentos, embora sem validação científica ortodoxa, traduziam condutas baseadas na experiência, servindo como aprendizado de comportamentos observados. Embora a fisiologia hipocrática, derivada de ideias mais antigas, tenha sido refutada com o surgimento do método científico no século XVII, muitas observações clínicas de Hipócrates ainda são válidas. A partir de Hipócrates, a Medicina passou a ser definida como mais do que uma mera técnica curativa, sendo um corpo de conhecimento teórico e prático destinado a entender a saúde e a doença, aprimorar o ser humano e melhorar ou curar o paciente. A ideia da natureza do corpo, ou da physis particular do corpo, está na base da medicina hipocrática. A physis do corpo é uma manifestação particular da physis universal e, como tal, é compreendida como o princípio originário e organizador do corpo. Ela fornece a forma do corpo (eidos ou ideia), ou seja, seu aspecto próprio ou particular e seu comportamento (virtudes ou propriedades chamadas dynameis). Como princípio organizador do corpo, a physis projeta no ser as qualidades da harmonia, da ordem e da beleza, regendo a morfologia e as funções normais do corpo e de suas partes. No entanto, a physis também rege a doença e seus sintomas, e é por isso que a doença era, para muitos autores do Corpus Hippocraticum, um fato natural e não sagrado (REBOLLO, 2006). Hipócrates descrevia que o tratamento para muitas doenças poderia ser realizado através de uma dieta alimentar adequada, ressaltando a importância de conhecer os elementos e as propriedades dos constituintes dessa dieta para uma prescrição mais precisa. Ele também destacava que as propriedades dos alimentos, como "amargo", "doce", "adstringente" e "insosso", influenciavam a qualidade do tratamento terapêutico voltado para a saúde. 9 Os conhecimentos sobre o sistema nervoso na medicina hipocrática são bastante limitados. As noções de anatomia e fisiologia são rudimentares; acreditava- se que o cérebro consistia em duas metades separadas por uma membrana, que se conectava à medula espinhal. Segundo a teoria humoral, o cérebro seria a origem da fleuma ou pituíta, um dos quatro humores corporais, cujo equilíbrio, mistura e distribuição no organismo influenciaria o estado de saúde. As meninges eram bem compreendidas devido às oportunidades que ofereciam para o tratamento cirúrgico de casos de traumatismo craniano, em que a trepanação era frequentemente realizada. O livro "Peri ton en kephalei tromaton" (Dos ferimentos na cabeça, em tradução livre) fornecia instruções precisas para o uso do trépano em casos de fraturas cranianas, incluindo detalhes sobre o manuseio do instrumento. Por exemplo, "durante a operação, o trépano frequentemente era retirado para ser mergulhado em água fria devido ao seu aquecimento; o trépano aquecido causava mais necrose por rotação do que o trauma em si" (HIPÓCRATES, 1968, p. 49). O tratamento de casos de traumatismo craniano permitiu compreender o cruzamento das vias motoras em relação aos hemisférios cerebrais. Conforme Rezende (2009), o cérebro é considerado uma sede importante na origem das doenças. Ele reconhece o caráter hereditário da epilepsia e observa sua maior gravidade quando se inicia na infância. Além disso, descreve os sinais precursores das crises convulsivas, o estado de mal e menciona a ocorrência de epilepsia em adultos após traumatismos cranianos. A etiopatogenia da epilepsia é explicada com base na teoria humoral, que guiava o pensamento médico na época. 10 Figura 1 – Cirurgia no cérebro nos tempos antigos Fonte: Rezende, 2009. De acordo com Rezende (2009) a figura acima ilustra como eram realizadas as cirurgias cerebrais em tempos antigos, evidenciando a diferença em relação aos métodos utilizados atualmente. O referido autor observa que as convulsões esporádicas durante febres em crianças são mais comuns em idades jovens, antes dos sete anos, e raras em crianças mais velhas e adultos, exceto em casos graves. Já a apoplexia sem traumatismo craniano, é mencionada no livro "Peri physon" (Do ar inspirado, em tradução livre), com uma interpretação fantasiosa de sua causa. O autor sugere que a apoplexia é provocada pela entrada de "ar" no corpo. Ele explica que, ao penetrar no organismo, o ar causa a perda de sensibilidade nas áreas afetadas. Se o ar se espalha amplamente, ele compromete o corpo inteiro, mas se permanece restrito a uma região específica, apenas essa área será impactada (REZENDE, 2009). Com Hipócrates, a Medicina tornou-se associada à Ética, no entanto, tanto a prática quanto o conhecimento médico ainda não reconheciam a anatomia e a fisiologia como suas bases explicativas. Essas disciplinas permaneciam separadas, fundamentadas principalmente em estudos realizados em animais. 11 ✓ Contribuições Revolucionárias de Galeno Galeno iniciou seus estudos médicos aos dezessete anos no Asklepieion de Pérgamo. Em seguida, estudou por dois anos em Esmirna e depois foi para Alexandria, então o maior centro cultural da civilização helenística, onde estava a maior biblioteca da época. Permaneceu em Alexandria por cinco anos, estudando matemática, filosofia, medicina e participando ou presenciando dissecções anatômicas de corpos humanos. Durante esse período, escreveu um dicionário geral e um dicionário médico em cinco volumes, que se perderam. Após retornar a Pérgamo, Galeno foi designado cirurgião do anfiteatro de gladiadores. Essa posição lhe proporcionou a oportunidade de observar e tratar os ferimentos e lesões resultantes daslutas naquele local. Durante esse período, ele comprovou a função do nervo recorrente em experimentos com porcos. Em 164 d.C., aos 33 anos de idade, Galeno mudou-se para Roma, onde obteve grande sucesso e tornou-se médico do imperador Marco Aurélio. Permaneceu em Roma por três anos antes de retornar a Pérgamo. Dois anos depois, voltou para Roma a pedido do imperador, onde permaneceu por muitos anos. Além de Marco Aurélio, Galeno foi médico dos imperadores Cômodo e Sétimo Severo (WALSH, 1927, p. 132- 143). Como médico, Galeno de Pérgamo viajou da Turquia até Alexandria em busca dos ensinamentos de Hipócrates, Herófilo e Erasístrato. No entanto, ao contrário de seus inspiradores, Galeno não dissecava cadáveres humanos devido à proibição em Roma, limitando-se a dissecar apenas animais. Como médico de gladiadores, ele se tornou um bom anatomista, observando o funcionamento dos órgãos através dos ferimentos de luta. Galeno combinava as ideias de Platão e Aristóteles com os ensinamentos dos médicos que o precederam para criar sua teoria da doutrina ventricular, que defendia a localização das funções mentais nos ventrículos cerebrais. Galeno acreditava na teoria dos humores, relacionando-os aos elementos em ação, como bile negra, bile amarela, fleuma e sangue. Ele propunha a existência de três almas: uma alma vegetativa no fígado, responsável pelo prazer e desejos; uma alma vital no coração, que governava as paixões e a coragem; e uma alma racional na cabeça, onde a inteligência se localizava nos espaços vazios dos ventrículos. Para 12 ele, espíritos animais passavam pelos ventrículos cerebrais e, quando os fluxos se desequilibravam, era necessário realizar purgações e sangrias para restaurar os humores aos seus lugares. Galeno utilizava métodos como a respiração, banhos e sangria, influenciando fortemente a medicina no início da era cristã, com o apoio da Igreja e do clero, que relacionavam as três almas à Santíssima Trindade. Além disso, explicou a duplicidade dos órgãos dos sentidos, dos ventrículos cerebrais e dos próprios hemisférios cerebrais, afirmando que "se um deles sofrer lesão, o outro suprirá a função do que for lesado" (GALENO, 1854, p. 557). Ele refutou a ideia de Praxágoras de que as circunvoluções cerebrais são expansões da medula espinhal, argumentando que esta entra em contato apenas com a base do cérebro, onde não há circunvoluções. Galeno denominou a epífise de conarium devido ao seu aspecto semelhante a uma pinha (glândula pineal). Ele contestou veementemente a ideia de que a epífise regula a passagem do pneuma, afirmando: "Esta suposição é de um espírito ignorante que se recusa a instruir-se" (GALENO, 1854, p. 565). Também considerava a apoplexia como uma afecção do encéfalo, pois todas as funções psíquicas são afetadas. Em contraste, nos casos de paralisia em que a face permanece normal, ele atribuía a lesão à medula espinhal (GALENO, 1854, p. 578-581). Ao discutir cefaleia e enxaqueca (hemicrania), destacou que estas não eram doenças da cabeça. Ele estabeleceu o princípio de que toda lesão em um órgão corresponde a uma alteração de função, e vice-versa, marcando o início da fisiopatologia. A história da "apoplexia", portanto, pode ser dividida em dois períodos distintos. O primeiro período, que durou da Antiguidade até a Renascença, precedeu a prática da autópsia e manteve um conceito relativamente estável baseado em observações clínicas. O segundo período começou com a era moderna da autópsia, quando a condição foi separada em diversos subtipos. Ao longo de cerca de 2.500 anos, muitos fragmentos de informação foram reunidos para formar um quadro mais bem definido da apoplexia. O conceito de "acidente vascular cerebral" (AVC) herdou esse conhecimento acumulado sobre a apoplexia, incorporando todas as aquisições históricas para moldar o estado atual do conhecimento. Embora tenha cometido erros, como em sua teoria da circulação sanguínea, Galeno exerceu uma influência duradoura na medicina por cerca de 1500 anos. 13 Monoteísta, Galeno acreditava que o corpo humano era uma criação divina, com cada elemento anatômico planejado por Deus para cumprir sua função de maneira perfeita. Essa visão fez com que sua obra fosse altamente valorizada por hebreus, cristãos e muçulmanos durante a Idade Média, permanecendo dogmática e intocável até a Renascença (CASTIGLIONI, 1931, p. 191). 1.2 Ramón y Cajal e Golgi De acordo com Bear (2017) em 1881, o espanhol Santiago Ramón y Cajal (1852-1934) elaborou a Teoria Neuronal, demonstrando que o neurônio é composto pelo corpo celular, dendritos e axônios, além de postular a "Lei da Polarização Dinâmica". Por esse motivo, ele é reconhecido como o "pai da Neurociência moderna". Golgi inventou o método de coloração, mas foi o espanhol Santiago Ramón y Cajal, seu contemporâneo, quem o empregou com maior eficiência. Cajal um histologista e um artista habilidoso, conheceu o procedimento de Golgi em 1888. Em uma série de publicações notáveis ao longo dos 25 anos subsequentes, ele utilizou a coloração de Golgi para desvendar circuitarias de muitas regiões do encéfalo. Figura 2 - Duas células piramidais do córtex cerebral de um gato, coradas utilizando o método de Golgi Fonte: shre.ink/DPlR. A Figura 2 apresenta as células piramidais do córtex cerebral de um gato, sendo uma das primeiras representações feitas por Cajal utilizando o método desenvolvido por seu mentor, Golgi. 14 De acordo com Sallet (2009), a doutrina do neurônio fundamentou-se em duas contribuições essenciais: o método de coloração de Golgi e os estudos histológicos de Cajal. A técnica de coloração de Golgi, possivelmente o avanço tecnológico mais significativo no estudo do sistema nervoso, utilizava a chamada reazione nera. Golgi endurecia blocos de tecido nervoso com bicromato de potássio e os mergulhava em uma solução de nitrato de prata. Quando visualizadas sob um microscópio, essas lâminas revelavam células nervosas inteiras, incluindo suas arborizações dendríticas e axônios. Conforme Kandel (2014), de modo curioso, Golgi e Cajal chegaram a conclusões completamente opostas sobre os neurônios. Golgi defendia o ponto de vista de que os neuritos de diferentes células eram fusionados uns aos outros para formar um retículo contínuo, ou rede, de forma similar às artérias e veias do sistema circulatório. De acordo com essa teoria reticularista, o sistema nervoso é uma exceção à teoria celular, a qual estabelece que a célula individual é a unidade elementar funcional de todos os tecidos animais. Cajal, ao contrário, argumentava ferrenhamente que os neuritos dos diferentes neurônios não possuem continuidade entre eles e se comunicam por contatos, não por continuidade. Essa ideia de que a teoria celular também se aplica aos neurônios ficou conhecida como doutrina neuronal. Embora Golgi e Cajal tenham compartilhado o Prêmio Nobel em 1906, eles permaneceram rivais até o fim. As evidências científicas dos 50 anos seguintes apoiaram substancialmente a doutrina neuronal, mas a comprovação final teve de esperar pelo desenvolvimento da microscopia eletrônica, na década de 1950. Com o poder de resolução maior do microscópio eletrônico, foi possível demonstrar finalmente que os neuritos de diferentes neurônios não possuem continuidade entre si. Assim, o ponto de partida no estudo do sistema nervoso deve ser o neurônio, individualmente (KANDEL, 2014). De acordo Moreira (2017), os estudos e conclusões foram fundamentais para o desenvolvimento da neurociência moderna, Cajal é reconhecido internacionalmente como uma das figuras mais importantes na história da pesquisa cerebral. Um dos principais objetivos de Cajal era avançar na compreensão da psicologia racional. Para isso, ele desenvolveu um método cuidadoso de estudo, utilizando cérebros de animais recém-nascidos e adultosem grupos separados. Ele percebeu 15 que nos animais recém-nascidos, o número de neurônios é reduzido e o tecido nervoso é menos denso, o que facilita a observação detalhada dos neurônios. Figura 3 – Representação de um dos desenhos de Cajal, circuitaria do cérebro Fonte: shre.ink/8164. As letras indicam os diferentes elementos que Cajal identificou em uma área do córtex cerebral humano relacionada ao controle dos movimentos voluntários (BEAR, 2017). Ao combinar seus próprios estudos com o trabalho prévio realizado por Golgi, Cajal conseguiu formular a "Teoria da Doutrina do Neurônio". Essa teoria se baseia em quatro princípios básicos que têm orientado o estudo e a compreensão do cérebro e dos neurônios desde então. De acordo com Moreira (2017) os estudos de Cajal envolveram uma variedade de espécies, incluindo ratos, macacos e, em menor escala, seres humanos. ➢ 1º princípio: considera o neurônio como a unidade elementar morfofuncional do cérebro. Assim, o neurônio é a unidade estrutural e sinalizadora básica do 16 cérebro. Dentro deste neurônio, os dendritos e o axônio desempenham funções distintas nos mecanismos circuitários: os dendritos recebem sinais de outros neurônios, enquanto o axônio transmite as informações recebidas da soma do neurônio para outras células nervosas ou células receptoras. ➢ 2° princípio: destaca que os axônios, em sua parte terminal (ou pré-sináptica), se comunicam com os dendritos de outros neurônios em regiões especializadas chamadas "sinapses". Essas sinapses estão localizadas nas interconexões entre neurônios e são representadas por uma pequena fenda ou espaço denominado "fenda sináptica". Nos terminais dos axônios de um neurônio doador, os sinais são transmitidos aos dendritos de outro neurônio receptor sem que haja contato físico direto. Assim, a comunicação sináptica entre os neurônios envolve três componentes essenciais: 1. Terminal pré-sináptico do axônio, que transmite sinais do neurônio doador. 2. Fenda sináptica, o espaço entre os neurônios doadores e receptores onde ocorre a transmissão de sinais sem contato direto. 3. A região pós-sináptica, localizada nos dendritos dos neurônios receptores, geralmente composta por neuroproteínas. ➢ 3º princípio: trata da especificidade das conexões. De acordo com este princípio, os neurônios não formam conexões de maneira indiscriminada. Pelo contrário, existe uma grande especificidade entre os grupos neuronais, o que significa que as células nervosas se conectam em circuitos neurais invariáveis, seguindo padrões e princípios estabelecidos há milhões de anos. Com base neste princípio, Cajal concebeu o cérebro como um órgão estruturado em circuitos específicos e previsíveis. ➢ 4° princípio: segundo este princípio, conhecido como o Princípio da Polarização Dinâmica, os sinais em uma circuitaria neural progridem em apenas uma direção. A informação recebida pelos dendritos do soma (corpo celular) de um neurônio é encaminhada ao centro operacional deste neurônio (o soma), e posteriormente transferida para o axônio. O axônio então transmite a 17 informação neural de forma unidirecional, mantendo a mesma frequência, direção e velocidade, em direção ao neurônio receptor, através de uma sinapse química que envolve um neurotransmissor (geralmente uma neuroproteína) e a fenda sináptica. Portanto, os sinais bioquímicos (neurotransmissores) atravessam a fenda sináptica até alcançar os dendritos do próximo neurônio, continuando assim sucessivamente. Este princípio de transmissão unidirecional dos sinais foi crucial para relacionar todos os componentes do neurônio a uma função específica na circuitaria, ou seja, a "sinalização em viagem". Esses princípios estabeleceram um conjunto de regras para o estudo da progressão dos sinais entre os neurônios. Para fundamentar completamente este conjunto de regras, Cajal demonstrou que circuitarias no cérebro, tronco encefálico e medula espinhal apresentam três tipos principais de neurônios com especializações funcionais específicas. Os neurônios sensoriais estão localizados na pele e em vários órgãos sensoriais, respondendo a estímulos específicos do ambiente, como tato, luz, audição, visão, olfato, paladar e dor. Eles transmitem essas informações processadas em seu soma para o cérebro. Os neurônios motores, após receberem os potenciais de ação, transmitem-nos através de seus axônios para fora do córtex cerebral, do tronco encefálico ou da medula espinhal, até alcançarem as células efetoras, como células musculares e glandulares, regulando e modulando suas atividades. Os interneurônios constituem o maior grupo de neurônios cerebrais, atuando como intermediários entre neurônios sensoriais e motores. Eles facilitam o fluxo de informações desde os neurônios sensoriais localizados na pele até a medula espinhal, onde essas informações são transmitidas tanto aos interneurônios quanto aos neurônios motores. Os estudos de Cajal permitiram compreender o percurso das informações dos neurônios sensoriais na pele até a medula espinhal e os neurônios motores no sistema muscular. Com o avanço dessas pesquisas e os resultados obtidos por Cajal, concluiu-se que cada tipo de célula neural apresenta características 18 bioquímicas distintas, o que pode afetar sua susceptibilidade a diferentes processos patológicos (MOREIRA, 2017). 1.3 As neurociências De acordo com Bear (2017), os neurocientistas enfrentam um grande desafio ao estudar o cérebro. Para lidar com a complexidade do problema, eles fragmentaram a pesquisa em partes menores para uma análise sistemática experimental, conhecida como abordagem reducionista. O tamanho da unidade de estudo define o nível de análise, que pode ser classificado em ordem crescente de complexidade: molecular, celular, de sistemas, comportamental e cognitivo. Neurociências Moleculares: O cérebro é considerado a porção de matéria mais complexa do universo. Ele é composto por uma enorme variedade de moléculas, das quais muitas são exclusivas do sistema nervoso. Essas moléculas desempenham diferentes funções para o funcionamento cerebral, como mensageiros que permitem a comunicação entre neurônios, sentinelas que regulam o fluxo de materiais, guias que orientam o crescimento neuronal e arquivistas de experiências passadas. O estudo do cérebro nesse nível fundamental é realizado pelas neurociências moleculares. Neurociências Celulares: No próximo nível de análise, as neurociências celulares se concentram em como essas moléculas trabalham em conjunto para conferir aos neurônios suas propriedades especiais. Neurociências de Sistemas: Conjuntos de neurônios formam circuitos complexos que realizam funções específicas, como a visão ou o movimento voluntário. Por isso, podemos nos referir ao "sistema visual" e ao "sistema motor", cada um com seus próprios circuitos dentro do cérebro. Nesse nível de análise, conhecido como neurociências de sistemas, os neurocientistas estudam como diferentes circuitos neurais processam informações sensoriais, formam percepções do mundo externo, tomam decisões e executam movimentos. Neurociências Comportamentais: Os sistemas neurais colaboram para produzir comportamentos integrados. Existem diferentes sistemas para executar várias formas de memória? Onde, no cérebro, atuam as drogas que alteram a mente 19 e qual é a contribuição normal desses sistemas para a regulação do humor e do comportamento? Quais sistemas neurais são responsáveis pelos comportamentos específicos de cada gênero? Onde são criados os sonhos e o que eles revelam? Essas questões são estudadas pelas neurociências comportamentais. Neurociências Cognitivas: Talvez o maior desafio das neurociências seja compreender os mecanismos neurais responsáveis pelos níveis mais elevados de atividade mental humana, como a consciência,a imaginação e a linguagem. Pesquisas nesse nível, chamadas de neurociências cognitivas, investigam como a atividade do cérebro cria a mente (BEAR, 2017). 2 MÉTODOS E TECNOLOGIAS EM NEUROCIÊNCIA A cada ano, a ciência avança na compreensão dos mecanismos subjacentes às doenças que mais afetam a população. Os progressos nos campos da tecnologia e da inovação nos proporcionam novas ferramentas para diagnosticar, prevenir, tratar e controlar patologias graves, que antes eram fatais ou resultavam em sérios comprometimentos da qualidade de vida dos pacientes. No entanto, ainda há um longo caminho a percorrer, especialmente diante do rápido avanço de diversas doenças, influenciado pelo estilo de vida da população, pelo envelhecimento e pela necessidade de acesso a diagnósticos precoces. Nesse contexto, as doenças neurológicas destacam-se como uma das maiores preocupações atuais. Compreender o funcionamento do cérebro é um dos desafios mais significativos da atualidade. A neurociência desempenha um papel fundamental nesse objetivo, fornecendo métodos para estudar e analisar o sistema nervoso central (SNC) em seres humanos e animais, abrangendo suas funções, estruturas específicas, fisiologia e possíveis lesões ou patologias. Uma convergência importante ocorreu entre a neurociência e a computação, dando origem à Neurociência Computacional. Essa disciplina visa desenvolver modelos matemáticos e computacionais para simular e compreender a função e os mecanismos do SNC (ABIMO, 2018). 20 ➢ Impacto da tomografia e ressonância magnética Entre os avanços que despertam grande interesse, destacam-se os métodos de análise automática de imagens, os quais possibilitam a quantificação de anomalias em exames radiológicos até mesmo no nível do voxel. A tomografia computadorizada (TC) e a ressonância magnética (RM) começaram a ser desenvolvidas simultaneamente a partir da década de 1970. Com o advento da tomografia por emissão de pósitrons (PET) e da ressonância magnética funcional (RMf), a neuroimagem funcional tornou-se fundamental para o progresso da neurociência. Conforme Amaro Júnior e Yamashita (2001), a Tomografia Computadorizada permitir a análise do cérebro com maior nitidez, especialmente das estruturas ventriculares e ósseas do crânio. O equipamento consiste em uma fonte de raios-X que gira em torno da cabeça do paciente, emitindo um feixe de raios-X em forma de leque. Do lado oposto, encontram-se detectores que convertem a radiação em um sinal elétrico, posteriormente convertido em imagem digital. Dessa forma, as imagens representam fatias do crânio, com a intensidade (brilho) refletindo a absorção dos raios-X, mensurada em unidades Hounsfield. O funcionamento do primeiro modelo de um aparelho de tomografia computadorizada baseava-se em um tubo de raios-X que emitia um feixe altamente colimado, juntamente com um único detector de radiação, ambos acoplados em um gantry para movimentos sincronizados. O feixe de raios-X, do tipo lápis, atingia o detector único. O objeto a ser examinado era posicionado entre o tubo de raios-X e o detector, que estavam na posição inicial, coletando informações sobre a atenuação do feixe nessa posição. O gantry realizava dois tipos de movimentos: um linear e outro semicircular. O conjunto tubo-detector era deslocado, aproximadamente, primeiro para cada nova aquisição, e esse processo era repetido várias vezes. Ao final de múltiplas posições do sistema tubo-detector, ocorria uma varredura de 180º ao redor do objeto. Como resultado desse processo, o aparelho tinha tempos de varredura muito longos, variando entre quatro e cinco minutos para a obtenção dos dados de imagem 21 de um único plano de corte. Durante todo esse período de varredura, o objeto em análise precisava permanecer imóvel. Figura 4 - Esquema do tomógrafo de primeira geração Fonte: Mourão, 2007. Em resumo os protocolos de aquisição de imagem em tomografia computadorizada variam de acordo com as especificações dos equipamentos utilizados. Eles determinam parâmetros como tensão do tubo, carga, colimação do feixe, velocidade da mesa e inclinação, influenciando diretamente na dose de radiação aplicada ao paciente e na qualidade da imagem obtida. A qualidade da imagem também é afetada por parâmetros relacionados à reconstrução e apresentação da imagem, além de considerações clínicas. 22 Figura 5 – Modelo atual Fonte: shre.ink/DPkd. Essas tecnologias, consideravelmente menos invasivas, passaram a oferecer imagens dos tecidos biológicos de forma direta e com excelente resolução espacial, especialmente a RM. Ao longo das décadas seguintes, ambos os métodos foram aprimorados, com melhorias na resolução, velocidade de processamento, diversificação das técnicas de aquisição e implementação de aplicativos para análise espacial, gráfica e funcional dos dados obtidos. A RM, desde sua descoberta, tem desempenhado um papel significativo tanto no avanço da imagiologia médica relacionada à saúde quanto no estudo das patologias. A técnica de ressonância magnética (IRM) é composta por três etapas: alinhamento, excitação e detecção de radiofrequência. Na etapa de alinhamento, os núcleos de hidrogênio são orientados paralelamente a um campo magnético intenso. Em seguida, na fase de excitação, os núcleos de hidrogênio são estimulados por uma onda eletromagnética emitida pelo aparelho, absorvendo energia e entrando em ressonância. Por fim, na etapa de detecção de radiofrequência, os núcleos instáveis de hidrogênio emitem ondas eletromagnéticas que são detectadas pelo equipamento, permitindo a geração da imagem. A intensidade das ondas detectadas é representada como "brilho" na imagem, denominada "intensidade de sinal". Dependendo da forma e do tempo de excitação dos átomos, as imagens podem ser sensíveis a diferentes propriedades dos tecidos. De acordo com Madureira (2010), o princípio subjacente à ressonância magnética funcional (IRMf) é que a atividade das células neurais requer energia, que é gerada por reações químicas envolvendo glicose e consumo de oxigênio (glicólise 23 oxidativa). Em regiões com maior atividade neuronal, há um aumento na oferta de oxigênio em relação ao consumo local. Isso resulta em um aumento na concentração regional de oxihemoglobina, uma forma de hemoglobina com propriedades magnéticas diferentes da desoxihemoglobina. Como resultado, ocorre uma distorção no campo magnético ao redor das vênulas locais, o que permite detectar pequenas variações na intensidade do sinal da IRMf, que está diretamente relacionada à ativação cerebral. A ressonância magnética funcional (IRMf) é uma técnica avançada de neuroimagem que permite visualizar processos fisiológicos, bioquímicos e moleculares no cérebro. Ao registrar sinais fisiológicos durante a ressonância magnética, a IRMf fornece insights diretos sobre a interação entre o cérebro e o corpo, podendo medir atividades cardiovasculares, respiratórias e neurais centrais, entre outras. Com o constante aprimoramento da técnica, os equipamentos estão se tornando mais precisos e eficientes, possibilitando uma melhor compreensão dos processos orgânicos e oferecendo diagnósticos mais precoces e tratamentos mais eficazes (MADUREIRA, 2010). ➢ Registro da atividade neural: aplicação do EEG e MEG De acordo com Cavalcanti et al. (2023) os registros eletrofisiológicos abrangem múltiplas escalas de medição da atividade dos campos elétricos e magnéticos. Entre as técnicas de registro destacam-se a magnetoencefalografia (MEG) e a eletroencefalografia (EEG). Ambas são medidas não invasivas associadas a ativações e interações neurais complexas que codificam funções cerebrais. Os registros obtidos estão relacionados a padrões estereotipados modulados por demandas no processamento de informações. A atividade elétrica cerebralé altamente sensível a disfunções neurais presentes em diversos transtornos neuropsiquiátricos. Assim, o registro eletrofisiológico pode ser utilizado como uma ferramenta adicional na prática clínica, servindo como biomarcador para diagnóstico, acompanhamento da evolução da doença e resposta terapêutica. 24 Figura 6 – Representação de EEG Fonte: shre.ink/DPbp. O Eletroencefalograma é uma técnica neurofisiológica bem estabelecida, utilizada para registrar o potencial elétrico gerado pela atividade cerebral com alta precisão temporal, seja em repouso ou durante a execução de uma tarefa. O sinal do EEG resulta da soma de entradas excitatórias e inibitórias síncronas, sendo obtido simultaneamente a partir de vários eletrodos ou canais posicionados na superfície da cabeça, cuja densidade define a resolução espacial do EEG. Em resumo, detecta alterações no potencial elétrico em um determinado eletrodo através da dedução da tensão no eletrodo de referência, que possui um potencial elétrico constante e conhecido (CAVALCANTI, 2023). Figura 7 – Representação da MEG Fonte: shre.ink/DPMj. 25 Por outro lado, a Magnetoencefalografia é uma técnica não invasiva de escaneamento cerebral baseada no campo magnético gerado, sendo uma ferramenta útil para estudar o funcionamento cerebral em condições normais ou patológicas, com resolução temporal na ordem de milissegundos e resolução espacial adequada. A MEG registra campos magnéticos no couro cabeludo produzidos por sinais elétricos endógenos do cérebro, utilizando magnetômetros específicos colocados ao redor da cabeça. Apesar das diferenças entre a atividade magnética e elétrica, ambas representam a mesma atividade neuronal subjacente. Em comparação com os campos elétricos do EEG, os campos magnéticos da MEG são menos distorcidos, proporcionando uma resolução espacial superior. Enquanto a MEG detecta principalmente fontes de sinal tangenciais, o EEG é sensível tanto a componentes radiais quanto tangenciais, podendo registrar potenciais originados dentro dos sulcos se forem suficientemente fortes para serem detectados no couro cabeludo. O EEG fornece um sinal mais complexo em comparação à MEG. No entanto, a MEG pode ser mais vantajosa quando a fonte de sinal mais forte e tangencial é focada, pois o sinal é menos afetado por fontes potencialmente interferentes. Segundo Trindade (1998), a MEG, assim como o EEG, está relacionada à despolarização (aumento do potencial de membrana) associada aos potenciais sinápticos. Esses potenciais ocorrem no nível de contato entre células nervosas (sinapses) e envolvem o fluxo transmembranar, intra e extracelular de correntes iônicas, principalmente de íons sódio e potássio. A MEG é amplamente utilizada para estudar a atividade cerebral normal, tanto espontânea quanto provocada por estímulos sensoriais. O grande avanço dessa técnica nos últimos anos tem proporcionado informações significativas sobre a organização estrutural e a localização das fontes de corrente corticais, especialmente nas áreas sensoriais primárias do córtex cerebral humano envolvidas em diversos processos fisiológicos. No âmbito clínico, a MEG ganhou importância crescente, com um número cada vez maior de clínicas internacionais adotando seu uso de forma rotineira. Ela é utilizada na localização funcional pré-cirúrgica e na identificação da atividade epiléptica. Além disso, é uma ferramenta essencial para a localização precisa de áreas 26 funcionais críticas do córtex cerebral, como áreas sensoriais, motoras e de linguagem, ajudando a evitar danos durante tratamentos cirúrgicos de neoplasias, regiões epileptogênicas ou malformações vasculares. A MEG também é extremamente útil em cirurgias de epilepsias refratárias a medicamentos, auxiliando na determinação do número de regiões onde as crises se iniciam e na localização dessas áreas. Ademais, é empregada na avaliação clínica da integridade das vias sensoriais (TRINDADE, 1998). 3 ÁREAS MODERNAS DA NEUROCIÊNCIA O estudo do cérebro pela neurociência segue uma abordagem sistemática que divide a análise em diferentes níveis de complexidade. Começando pela neurociência molecular, que investiga as moléculas específicas e seu papel na comunicação neural, passando pela neurociência celular, que explora como essas moléculas interagem para conferir propriedades aos neurônios. Em seguida, temos a neurociência de sistemas, que analisa os circuitos neurais responsáveis por funções como visão e movimento, seguida pela neurociência comportamental, que estuda como os sistemas neurais produzem comportamentos integrados. Por fim, a neurociência cognitiva busca compreender os mecanismos neurais por trás de atividades mentais complexas, como consciência e linguagem. Esses diferentes níveis de análise permitem uma compreensão mais abrangente do funcionamento do cérebro e da mente. 3.1 Neurociência Cognitiva A Neurociência Cognitiva é o campo de estudo dedicado a compreender como as funções cerebrais se relacionam com atividades mentais complexas, como percepção, memória, linguagem e consciência. Esta disciplina, uma ramificação da Neurociência, investiga os mecanismos pelos quais o cérebro humano realiza processos cognitivos, como aprendizagem, linguagem e comportamento. Nos últimos anos, a Neurociência Cognitiva avançou consideravelmente, contribuindo para 27 elucidar os processos de aprendizagem e para ampliar o debate sobre o desenvolvimento cognitivo humano (KANDEL; SCHWARTZ; JESSELL, 2003). De acordo com Albright e Posner (2000, citados por MOURÃO-JÚNIOR; OLIVEIRA; FARIA, 2017), a Neurociência é uma disciplina interdisciplinar que dialoga com diversas áreas do conhecimento, como Neuropsicologia, Neuropsiquiatria e Neurolinguística. No âmbito cognitivo, seu foco reside na compreensão de como as funções psicológicas e cognitivas são geradas pelos circuitos neuronais. Segundo Rotta, Ohlweiler e Riesgo (2016), uma perspectiva neurobiológica do aprendizado situa a Neurociência Cognitiva entre dois grandes domínios: educação e saúde. No campo educacional, atuam educadores, orientadores e psicopedagogos. Idealmente, esses profissionais deveriam ter conhecimentos básicos sobre o funcionamento do Sistema Nervoso Central, assim como os profissionais de saúde. As informações provenientes das neurociências e da área médica, especialmente da Neurologia, são cruciais para compreender o processo de aprendizagem e os distúrbios associados, que, em última análise, são funções neurocognitivas também conhecidas como "funções corticais". A habilidade do cérebro humano em armazenar e usar informações de forma seletiva despertou o interesse de neurocientistas, educadores e psicólogos, impulsionando investigações e debates sobre os processos neurofisiológicos para aprimorar a educação. Segundo a Royal Society (2011), as contribuições das neurociências têm o potencial de transformar práticas educacionais, uma vez que a educação visa a aprendizagem, e a neurociência cognitiva busca compreender os processos mentais relacionados a ela. Pesquisas em neurociência indicam que os resultados da aprendizagem não são determinados apenas pelo ambiente, mas também por fatores biológicos que influenciam as diferenças individuais na capacidade de aprendizado, conforme destacado pela. Além disso, a neurociência cognitiva evidencia que a aprendizagem de uma habilidade promove alterações no cérebro, as quais são reversíveis quando a prática da habilidade é interrompida (ROYAL SOCIETY, 2011). Os neurônios são células capazes de estabelecer comunicações rápidas e precisas com outras células em distâncias consideráveis. Esse feito é viabilizado pela notável assimetria funcional e morfológica dos neurônios, além de suas propriedades 28 eletroquímicas. Essas características conferem a essas células a capacidadede gerar corrente elétrica através de suas membranas (KANDEL et al., 2014). Existem diversos tipos de neurônios, caracterizados por sua morfologia e funções específicas no sistema nervoso. A estrutura fundamental de um neurônio compreende o corpo celular (ou soma), os dendritos e o axônio (BRANDÃO, 2004). O núcleo localizado no corpo celular contém as informações essenciais para a síntese de todos os neurotransmissores, substâncias químicas liberadas pelas vesículas presentes nos terminais do axônio. Os dendritos, por sua vez, são extensões neurais que recebem informações de outros neurônios ou se especializam em terminações sensitivas, presentes nos diversos órgãos sensoriais (KANDEL et al., 2014). Logo, os mecanismos de comunicação entre os neurônios são o ponto de partida essencial para os processos que nos possibilitam "sentir", "pensar" e "aprender". 3.2 Neuroplasticidade De acordo com Lent (2023) Neuroplasticidade refere-se à capacidade do sistema nervoso de modificar sua função ou estrutura em resposta a influências ambientais. Essas mudanças podem variar de lesões traumáticas ou cirúrgicas que reconfiguram circuitos neurais até eventos sutis que resultam em alterações sinápticas moleculares, permitindo a memorização de fatos por longos períodos. A plasticidade ontogenética, influenciada pela interação entre o genoma e o ambiente durante o desenvolvimento embrionário e pós-natal, é uma fonte significativa de variabilidade individual nos animais, especialmente nos seres humanos. Durante o período crítico ou sensível, o sistema nervoso imaturo é particularmente suscetível às influências ambientais, variando em diferentes regiões e sistemas neurais, bem como em comportamentos e funções correspondentes. Alguns comportamentos são inatos e não passam por um período crítico. Um exemplo é o comportamento inicial dos filhotes de aves, que os leva a romper a casca do ovo e sair. Outros comportamentos têm um período crítico curto, estabilizando-se rapidamente, junto com os circuitos neurais subjacentes. Um exemplo é o fenômeno do "imprinting", descoberto por Konrad Lorenz, no qual os filhotes de aves reconhecem como sua "mãe" o primeiro objeto móvel de grande porte que percebem 29 ao eclodir. Na natureza, esse "objeto" é quase sempre a mãe biológica, mas em condições experimentais pode ser até mesmo o pesquisador. ➢ Tipos e características da Neuroplasticidade: Neuroplasticidade Regenerativa A plasticidade regenerativa abrange a neurogênese, ou seja, a formação de novos neurônios. Durante o desenvolvimento embrionário, aproximadamente até o final do primeiro trimestre, o embrião já possui cerca de 80% dos neurônios que terá ao longo da vida. A capacidade proliferativa do sistema nervoso central diminui progressivamente ao longo do desenvolvimento, com exceção de áreas como o bulbo olfatório e o giro dentado do hipocampo. No hipocampo, a neurogênese na fase adulta contribui para as complexas funções de memória e aprendizado. No entanto, mesmo nessas áreas, a neurogênese adulta é limitada em relação à reposição numérica de neurônios. Quando o cérebro adulto sofre danos, ele pode compensá-los através de novas conexões entre os neurônios sobreviventes. No entanto, o sistema nervoso central tem uma capacidade limitada de reparação, já que a maioria das regiões cerebrais carece de células-tronco. Rakic (1985) argumentou que uma população estável de neurônios pode ser uma necessidade biológica para espécies cuja sobrevivência depende do comportamento aprendido. Um estudo recente sobre a explosão nuclear revelou a presença de cerca de 700 novos neurônios gerados diariamente no hipocampo de adultos, bem como neurogênese no corpo estriado. A pesquisa foi revolucionária porque os neurônios recém-nascidos não podiam ser detectados pela técnica de carbono 14, indicando que eram realmente novos neurônios. ➢ Neuroplasticidade Axônica Nos anos 1930, o neurocirurgião Wilder Penfield mapeou o córtex cerebral, dividindo-o em sistema sensorial e motor, criando o conceito conhecido como "Homúnculo de Penfield". Este homúnculo é uma representação do corpo humano no córtex cerebral, onde o tamanho das áreas corresponde à sensibilidade e aos movimentos: áreas com movimentos finos, como os dedos, são maiores, enquanto áreas com movimentos mais grosseiros, como os pés, são menores. Penfield 30 demonstrou que esses mapas cerebrais eram topográficos, ou seja, áreas adjacentes do corpo correspondiam a áreas adjacentes no cérebro (PENFIELD; RASMUSSEN, 1950). Na época, acreditava-se que esses mapas eram fixos e idênticos em todos os indivíduos. Figura 8 – Representação do Homúnculo de Penfield Fonte: shre.ink/DPJR. Alguns anos depois, o neurocientista Michael Merzenich realizou um experimento no qual mapeou o cérebro da mão de um macaco, amputou seu dedo médio e, após alguns meses, fez um novo mapeamento. Ele observou que o mapa cerebral do dedo amputado desapareceu e os mapas dos dedos próximos se expandiram para ocupar seu lugar (MERZENICH et al., 1984). É notável que este estudo provou que os mapas cerebrais são dinâmicos e variam entre os indivíduos. Outra contribuição importante para a compreensão da plasticidade cerebral veio do psicólogo Ramachandran, que estudou a "síndrome do membro fantasma". Pacientes com membros amputados relatavam sensações nesses membros como se ainda estivessem presentes. Em um caso, a estimulação da face de um paciente amputado causava sensações em seu polegar, indicador e dedo mínimo. Ramachandran sugeriu que, no sistema somestésico, os axônios da face se 31 estenderam para as regiões do membro amputado, que estavam inativas, resultando em crescimento de ramos colaterais para as áreas anteriormente ocupadas pelo braço amputado. Exames de neuroimagem confirmaram essa hipótese, mostrando uma desorganização na topografia cerebral dos amputados, explicando as sensações de "membro fantasma" (KARL et al., 2001). ➢ Neuroplasticidade Sináptica A neuroplasticidade sináptica é uma propriedade fundamental do sistema nervoso central, influenciando diretamente o comportamento. A potencialização de longa duração (LTP), uma forma de neuroplasticidade sináptica, ocorre no hipocampo e aumenta a eficiência das sinapses, sendo crucial para aprendizagem e memória. A LTP envolve o neurotransmissor glutamato e seus receptores, facilitando a reorganização dos mapas corticais e o armazenamento de informações. A “Lei de Hebb” explica que a atividade simultânea de neurônios reforça suas conexões sinápticas, enquanto a atividade isolada as enfraquece, resultando na consolidação de memórias (SALOMÃO, 2021). ➢ Neuroplasticidade Dendrítica De acordo com Salomão (2021), os dendritos podem apresentar plasticidade tanto morfológica quanto estrutural. Em adultos, essa plasticidade ocorre apenas nos espinhos dendríticos, enquanto em indivíduos em desenvolvimento, também pode afetar os ramos dendríticos. Estima-se que os espinhos dendríticos sejam responsáveis por 90% das conexões excitatórias no cérebro. Os dendritos aumentam sua superfície de contato e concentram segundos mensageiros, como o cálcio. Estudos em diferentes espécies animais demonstraram uma relação direta entre um maior número de ramificações dendríticas e um ambiente enriquecido com diversos estímulos. Os espinhos dendríticos são extremamente instáveis e móveis, com novos espinhos aparecendo e outros desaparecendo em curtos períodos. Essa alta mobilidade se deve à grande concentração de actina, uma proteína que forma os microfilamentos, no interior dos espinhos. Uma teoria sugere que os espinhos dendríticos instáveis e móveis correspondem a sinapses não consolidadas pelos 32 processos de memória e aprendizado, enquanto os espinhos estáveis estão associados a memórias de longo prazo. 3.3 Neurociência ComputacionalDe acordo com Roque (2022), o termo “Neurociência Computacional” foi introduzido pela primeira vez em uma conferência organizada por Eric L. Schwartz na cidade de Carmel, Califórnia, Estados Unidos, em 1985. O objetivo era oferecer uma visão unificada do conhecimento acumulado até aquela data nos diversos campos dedicados à teoria do cérebro. Os trabalhos apresentados nessa conferência foram posteriormente publicados em 1990 em um livro intitulado "Computational Neuroscience", lançando as bases dessa área. Desde então, várias conferências, cursos de verão e associações internacionais surgiram em diferentes partes do mundo, como o Computational Neuroscience Meeting (CNS) da Organization for Computational Neuroscience (OCNS), a Bernstein Conference na Alemanha, o Computational and Systems Neuroscience (Cosyne) Meeting, entre outros. O termo “computacional” não se refere apenas ao uso de computadores como ferramentas para a construção de modelos, mas também destaca a ideia de que o cérebro realiza processamento de informações, ou seja, computações. Embora as formas como o cérebro representa e processa informações sejam diferentes dos computadores digitais modernos, ainda podem ser entendidas como computações no sentido mais amplo. A neurociência computacional visa compreender como o sistema nervoso representa e manipula informações, e como isso resulta nos diversos fenômenos e comportamentos que caracterizam o cérebro. Para alcançar esse objetivo, utiliza modelos matemáticos e computacionais de células, sinapses, circuitos e redes cerebrais. A integração de dados experimentais, desde o nível molecular até o comportamental, é fundamental para construir um arcabouço teórico coerente e quantitativo da estrutura e função do cérebro. Nesse cenário, foram estabelecidas diretrizes para incentivar a identificação dos processos neuropsicobiológicos normais e dos distúrbios relacionados ao Sistema Nervoso Central (SNC). A área de Neurociência Computacional dedicou-se a estudar 33 modelos realistas para simular o funcionamento do cérebro. Em 2013, o tema foi revigorado com o surgimento da demanda pelo projeto BRAIN Initiative, que contou com a participação de empresas privadas, agências governamentais, universidades, neurocientistas, nanocientistas e cientistas da computação. Este projeto abrange diversas áreas, incluindo Inteligência Artificial, Bancos de Dados, Jogos de Computadores, novas interfaces e sistemas inteligentes baseados na Web, Redes Sociais, entre outras (CONGRESSO INTERNACIONAL DE TECNOLOGIA NA EDUCAÇÃO, 2015). Busca-se criar uma estratégia computacional para identificar indivíduos em risco de dislexia, analisando os resultados dos procedimentos de avaliação em crianças com dislexia do desenvolvimento e crianças sem dificuldades, a fim de avaliar a eficácia das técnicas de Inteligência Artificial na triagem de crianças com esse transtorno de aprendizagem. O cérebro desempenha um papel fundamental no sistema nervoso, uma vez que é responsável por processos mentais como concentração, pensamento, aprendizado e controle motor. Esses processos são mediados por circuitos neurais, conhecidos como neurônios, que são explorados pelas neurociências, especialmente em estudos de interfaces cérebro-computador (BCI). As BCIs permitem a comunicação com base na atividade cerebral, sem a necessidade de estímulos externos, como movimentos musculares. Esses sistemas têm grande potencial para auxiliar pessoas com deficiências. Ferramentas como o ActiCHamp, um amplificador de canais ativos usado em pesquisas neurofisiológicas e em BCI, e o Scratch, uma linguagem de programação visual projetada para iniciantes, são exemplos de recursos que facilitam a compreensão de conceitos matemáticos e computacionais, além de despertar o interesse em jovens. No entanto, o desenvolvimento de projetos com essas ferramentas requer uma compreensão básica de lógica de programação. A convergência entre Inteligência Artificial (IA) e Neurociência tem sido amplamente explorada e estudada ao longo das últimas décadas. Esta revisão da literatura visa resumir os progressos substanciais, teorias fundamentais e tendências emergentes que definem esse campo interdisciplinar dinâmico e promissor. Além 34 disso, identificamos lacunas no conhecimento atual, destacando áreas que necessitam de investigações futuras. As Redes Neurais Artificiais (RNAs) são modelos computacionais inspirados no funcionamento do cérebro humano. Elas consistem em unidades interconectadas, conhecidas como neurônios artificiais, que colaboram para processar informações e aprender padrões complexos a partir de dados (LECUN et al., 1998). Cada neurônio artificial executa operações simples, mas quando organizados em camadas e conectados com ponderações ajustáveis, esses sistemas são capazes de realizar tarefas sofisticadas, como reconhecimento de padrões, classificação de dados e tomada de decisões (HINTON et al., 2006). As RNAs são empregadas em áreas como reconhecimento de fala, visão computacional, processamento de linguagem natural e muitas outras aplicações de aprendizado de máquina, impulsionando avanços significativos em diversos domínios tecnológicos e científicos (MNIH et al., 2013). A convergência entre Inteligência Artificial (IA) e Neurociência conduz a avanços significativos na simulação de Redes Neurais Artificiais (RNAs), que buscam emular os processos cognitivos do cérebro humano. Um momento crucial foi o surgimento das Redes Neurais Profundas (Deep Neural Networks ou DNNs), inspiradas na organização hierárquica das redes neurais biológicas. LeCun, Bengio e Hinton (2015) destacam que "as DNNs têm se mostrado eficazes em lidar com tarefas complexas de aprendizado de máquina, impulsionando avanços notáveis na área de IA" (LECUN et al., 2015). Marcus (2018) defende que "a IA não é apenas uma ferramenta, mas também um paradigma que pode enriquecer a neurociência, fornecendo novas perspectivas e abordagens de pesquisa". Modelos de IA, como as Redes Neurais Artificiais (RNAs), têm sido utilizados para investigar o processamento de informações no cérebro, impulsionando estudos em áreas como a representação da informação no cortex cerebral. Adicionalmente, pesquisas como a de O'Reilly e Munakata (2000) ilustram como modelos computacionais baseados em IA podem ser empregados para simular funções cerebrais específicas, contribuindo para nossa compreensão de como o cérebro realiza tarefas cognitivas. Contudo, a integração entre IA e neurociência 35 computacional ainda demanda esforços para traduzir os achados da IA em insights neurobiológicos claros. Além disso, estudos conduzidos por Hassabis et al. (2014) investigaram a concepção de modelos de IA inspirados nos sistemas de memória humanos. Isso permite que as máquinas aprimorem suas habilidades de aprendizado e raciocínio de forma mais próxima ao funcionamento do cérebro humano (HASSABIS et al., 2014). Essa abordagem inovadora pode abrir novas fronteiras para o desenvolvimento de sistemas de IA mais adaptativos e resilientes. 4 NEUROÉTICA E IMPLICAÇÕES SOCIAIS De acordo com Handam (2017) a Neuroética teve origem a partir dos interesses de pesquisa de neurocientistas, psicólogos, médicos e filósofos. Sua emergência na esfera pública foi marcada por eventos específicos. Em 2002, ocorreu a conferência "Neuroethics: mapping the field" (Neuroética: mapeando o campo) em San Francisco, EUA. Essa conferência foi organizada pelas Fundação Dana, Universidade da Califórnia e Universidade de Stanford, reunindo mais de 150 profissionais de diversas áreas, como bioética, psicologia, filosofia, medicina e direito. Durante a conferência inaugural, William Safire, presidente da Fundação Dana, definiu neuroética como a avaliação do que é certo ou errado, bom ou mau, no que diz respeito ao tratamento,aprimoramento, intrusão ou manipulação do cérebro humano. Esse evento marcou o início da publicação de artigos em revistas científicas que discutiam a importância das questões éticas relacionadas aos avanços tecnológicos na neurociência. A neuroética é um campo de estudo dedicado a explorar as implicações éticas, sociais e jurídicas dos avanços na neurociência. Ela se concentra nos dilemas morais que moldam e guiam o comportamento humano. Especificamente, a neuroética investiga os desafios éticos que surgem da pesquisa, dos produtos e das práticas especializadas em neurociência. Enquanto a bioética trata de questões mais amplas relacionadas ao comportamento humano no contexto das ciências da vida e da saúde, a neuroética concentra-se em problemas mais específicos que dizem respeito à 36 interação entre o cérebro e o comportamento. No entanto, é importante notar que a neuroética compartilha áreas de interesse comuns com a bioética. Dentro da neuroética, existem duas principais abordagens de pesquisa: a ética da neurociência e a neurociência da ética. A primeira abordagem investiga questões práticas, como o planejamento, a condução, a análise e a disseminação dos resultados da pesquisa em neurociência. Isso inclui aspectos éticos relacionados aos cuidados de saúde, como a interação entre profissionais de saúde, pacientes e suas famílias, além do uso de novas neurotecnologias. Por outro lado, a neurociência da ética explora questões filosóficas sobre moralidade e sua relação com o cérebro. Tópicos como liberdade, autocontrole, identidade pessoal e intencionalidade são frequentemente examinados neste campo. Essas duas tradições da neuroética estão interligadas e influenciam-se mutuamente, e são discutidas à luz dos avanços recentes no entendimento do funcionamento cerebral (HAMDAN, 2017). ➢ Ética na Neurociências De acordo com Hamdan (2017), o interesse em compreender a relação entre o corpo e a mente, ou entre o cérebro e a mente, remonta a tempos antigos. Evidências arqueológicas, como crânios trepanados datados de cerca de 2.500 a.C, indicam a prática frequente de procedimentos neurocirúrgicos em diversas culturas, provavelmente para tratar distúrbios cerebrais. O Papiro Edwin Smith, datado de 1500 a.C, é o registro mais antigo que detalha a relação entre o cérebro e a manifestação clínica de várias doenças neurológicas. No entanto, é o Juramento Hipocrático, do século V a.C, que revela a preocupação mais antiga com questões éticas na prática médica. O estudo da ética teve origem nas tradições filosóficas da Grécia Antiga, com o objetivo de sistematizar as "boas maneiras" da prática médica. Essas tradições buscavam estabelecer princípios universais para regular o comportamento humano. Mesmo durante o Renascimento, as concepções sobre doenças mentais estavam frequentemente associadas à superstição. Foi somente no Iluminismo, a partir do século XVIII, que o conhecimento científico sobre o cérebro começou a ganhar credibilidade, impulsionando o desenvolvimento de novas metodologias e ferramentas para investigar o sistema nervoso central. 37 Um dos desafios enfrentados pela Ética das Neurociências contemporâneas é o crescente uso de drogas psicoativas para modificar a neurofisiologia de cérebros que são fisiológica e funcionalmente normais. Este é um dos temas de pesquisa mais intrigantes na área: o uso de substâncias psicoativas para o aprimoramento neurocognitivo. Uma preocupação de destaque também está relacionada à capacidade das tecnologias de neuroimagem de alterar ou melhorar certos traços e estados neurais que são considerados socialmente relevantes. Esse foco está particularmente voltado para a possibilidade de modificar características comportamentais, de personalidade e temperamento. Essa inquietação surge como uma ramificação dos avanços significativos na psicofarmacologia e na pesquisa sobre estimulação cerebral. Embora esses avanços respondam a uma demanda legítima de tratamento para doenças neurológicas e transtornos mentais de forma eficaz, há a preocupação de que tais tecnologias possam ser utilizadas para aprimorar ou alterar aspectos funcionais de cérebros saudáveis (FARAH, 2011). De acordo com Hamdan (2017), alguns princípios foram citados: 1º: O princípio da não-maleficência estabelece que os profissionais de saúde devem evitar causar danos a outras pessoas. Todos os diagnósticos e tratamentos devem ser realizados de maneira a não prejudicar os aspectos físicos, mentais ou sociais dos pacientes. No entanto, aplicar este princípio pode ser desafiador em diversas situações. 2º: O princípio da beneficência estabelece que há um dever de auxiliar e promover o bem-estar dos outros. Todos os profissionais de saúde devem se esforçar para proporcionar o máximo benefício ao paciente, agindo não apenas para evitar danos (conforme o princípio da não-maleficência), mas também para garantir o maior benefício possível. Isso inclui, por exemplo, a obrigação de proteger e defender os direitos dos membros da família, cuidadores e pacientes com Alzheimer. 3º: O terceiro princípio é o da autonomia. É dever dos profissionais de saúde respeitar a autodeterminação e o poder de decisão de uma pessoa sobre si mesma. Cada indivíduo deve ter o direito de tomar decisões sobre suas escolhas pessoais. Esse princípio está relacionado à liberdade. Por exemplo, um paciente que possui a 38 capacidade de tomar suas próprias decisões deve ter a liberdade de escolher se deseja prosseguir com determinadas modalidades de tratamento. No caso da doença de Alzheimer, essa capacidade é comprometida, deixando o responsável ou cuidador a cargo de tomar decisões em nome do paciente. Conflitos com o princípio da autonomia frequentemente se manifestam através de ações paternalistas nos serviços de saúde. Esses conflitos ocorrem quando o profissional de saúde nega ao paciente ou à família a liberdade de expressar seus próprios interesses, anseios e desejos em relação aos cuidados recebidos. Isso decorre da visão de que apenas o profissional de saúde sabe o que é melhor para o paciente e sua família, e que só ele é capaz de tomar as melhores decisões em seu nome. Embora o profissional de saúde possua o conhecimento necessário e esteja credenciado para tomar decisões sobre o diagnóstico e o tratamento do paciente, tais entendimentos e ações não devem ser impostos sem o consentimento do paciente ou de seus responsáveis. 4º: O quarto princípio é o da justiça. Este princípio impõe o dever de garantir uma distribuição equitativa dos direitos e benefícios sociais. Os profissionais de saúde devem promover a equidade no acesso às condições de avaliação e tratamento para todos. Esses princípios são considerados deveres, prima facie, ou seja, devem ser atendidos, mas não são necessariamente hierarquizados. Em situações onde há conflitos entre eles, é necessário determinar como, quando e por que um princípio deve prevalecer sobre o outro. Outro marco significativo foi a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da Conferência Geral da UNESCO em 2005, que estabeleceu um quadro ético normativo para apoiar a implementação de leis em diferentes países. No entanto, foi no final do século XX, com as discussões sobre as implicações sociais e éticas dos avanços na neurociência, que o interesse específico na neuroética cresceu consideravelmente. O primeiro relatório sobre as implicações éticas dos avanços da neurociência foi publicado em 1995 pelo International Bioethics Committee (Comitê Internacional de Bioética), criado pela UNESCO. 39 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE INDÚSTRIA E ARTIGOS E EQUIPAMENTOS MÉDICO, ODONTOLÓGICO E HOSPITALAR E DE LABORATÓRIOS (ABIMO). Estudo de tendências tecnológicas neurociência e neurotecnologia. São Paulo: invetta, 2018. Disponívelem: https://shre.ink/DFju. Acesso em: 29 de mai. 2024. AMARO JÚNIOR, E.; YAMASHITA, H. 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