Prévia do material em texto
2 SUMÁRIO Capa Rosto Primeira Parte - O CASO DE JÓ 1. Jó, vítima de seu povo 2. Jó, ídolo de seu povo 3. A rota antiga dos homens perversos Segunda Parte - MITOLOGIA E VERDADE 4. Os exércitos celestes 5. Realismo e transfiguração 6. Édipo e Jó 7. “Por cavalos esta rainha pisoteada” Terceira Parte - O MIMETISMO 8. “Pelo mal dos ardentes todo um país acometido” 9. O Salmo 73 10. A torrente das montanhas Quarta Parte - DO MECANISMO AO RITUAL 11. O Tofet público 12. O órfão sorteado 13. Origem e repetição 14. Jó e o rei sagrado 15. A evolução dos ritos Quinta Parte - A CONFISSÃO DA VÍTIMA 16. Um processo totalitário 17. A retribuição 18. Esmorecimentos de Jó 19. Meu defensor está vivo 20. O resgate sangrento pela perdição da cidade 21. O Deus das vítimas Coleção Ficha Catalográfica Notas 3 kindle:embed:0008?mime=image/jpg Agradeço a Christiane Frémont pela preciosa ajuda. Suas abundantes sugestões melhoraram consideravelmente o texto da presente obra. Para Raymund Schwager 4 Primeira Parte O CASO DE JÓ 5 1 JÓ, VÍTIMA DE SEU POVO O que sabemos sobre o livro de Jó? Pouca coisa. Que o herói se lamenta incansavelmente. Acaba de perder os filhos e todo o rebanho. Incomodam-lhe as feridas. As desgraças que sofre aparecem devidamente enumeradas no prólogo. São as maldades que Satanás, com a permissão de Deus, acaba de lhe fazer. Cremos saber, mas sabemos realmente? Em nenhum momento, ao longo dos diálogos, Jó menciona Satanás: nem Satanás, nem nenhum de seus malfeitos. Talvez estejam demasiado presentes em seu espírito, para que seja necessário aludir a eles? Sem dúvida, mas Jó alude a outra coisa, e faz muito mais do que uma alusão. Insiste vigorosamente na causa de sua desgraça. Uma causa que não é nenhuma das que o prólogo menciona. Uma causa que não é divina, nem satânica, nem material, mas humana, apenas humana. Ao longo dos séculos, o que é estranho, os comentadores não deram a menor atenção a essa causa. Não conheço todos eles, é claro, mas os que conheço se mantêm sistematicamente em silêncio diante dela. Dir-se-ia que não a veem. Antigos e modernos, ateus, protestantes, católicos ou judeus, jamais se questionam sobre o objeto das lamentações de Jó. A questão lhes parece definitivamente resolvida pelo prólogo. Todo mundo se atém religiosamente às feridas, ao rebanho perdido etc. E no entanto, há muito tempo, os exegetas têm alertado seus leitores contra esse prólogo. Seu conteúdo secundário, dizem, não está à altura dos diálogos. Não se deve levá-lo a sério. Infelizmente, jamais seguem os próprios conselhos. Não percebem nos diálogos nenhuma das manifestas contradições ao prólogo. A novidade que proponho não está oculta num obscuro recôndito do livro de Jó. É muito explícita; expõe-se em numerosas e copiosas passagens inequívocas. Jó diz claramente o que lhe faz sofrer: ver-se condenado ao ostracismo, perseguido pelos seres que o rodeiam. Não fez nada de mal e todo mundo se afasta dele, enfurece- se contra ele. É o bode expiatório de sua comunidade: Ele afastou de mim os meus irmãos, os parentes procuram evitar-me. Abandonaram-me vizinhos e conhecidos, esqueceram-me os hóspedes de minha casa. Minhas servas consideram-me um intruso, a seu ver sou um estranho. Chamo ao meu servo, e não me responde, devo até suplicar-lhe. À minha mulher repugna meu hálito, e meu mau cheiro, aos meus próprios irmãos. Até as crianças me desprezam e insultam-me, se procuro levantar-me. Todos os meus íntimos têm-me aversão, meus amigos voltam-se contra mim (Jó 19,13-19).[*] Jó lembra o trágico bode nesse fétido odor que sua mulher o critica por exalar e 6 que, significativamente, reaparece em numerosos mitos primitivos. Essa alusão ao bode real não deve suscitar mal-entendidos. Quando falo do bode expiatório, não estou pensando no animal utilizado para os sacrifícios no famoso rito do Levítico. Emprego a expressão em seu sentido por nós utilizado diante das circunstâncias políticas, profissionais, familiares, sem pensar no rito levítico. Essa utilização é moderna e não aparece, evidentemente, no livro de Jó. Mas o fenômeno aparece, com algo mais selvagem. O bode expiatório é o inocente que polariza sobre si o ódio universal. É exatamente disso que Jó se queixa: Mas agora [minha dor] me extenuou: Feriste com horror tudo o que me cerca, e ele me deprime, meu caluniador tornou-se minha testemunha, levanta-se contra mim e me acusa diretamente; sua cólera persegue-me para dilacerar-me, range contra mim os dentes, meus inimigos aguçam os olhos contra mim. Abrem contra mim a boca, esbofeteiam-me com suas afrontas, todos se aglomeram em massa contra mim (Jó 16,7-10). As passagens reveladoras são abundantes. Como não posso multiplicar ao infinito as citações, escolhi a que considero mais significativa, na ótica que me interessa. Nela aparece um subgrupo que desempenha na sociedade de Jó um papel de bode expiatório permanente: Mas agora zombam de mim moços mais jovens que eu, a cujos pais teria recusado deixar com os cães do meu rebanho. (...) banidos das sociedades dos homens, a gritos, como a ladrões, morando em barrancos escarpados, em covas e grutas do rochedo. (...) gente vil, homens sem nome, são rejeitados pelo país! E agora sou alvo de suas zombarias, o tema de seus escárnios. Cheios de medo, ficam a distância, e atrevem-se a cuspir-me no rosto. Porque Deus tornou-se fraco e sem força, perderam toda a compostura diante de mim. À minha direita levanta-se a canalha, olham se estou tranquilo (Jó 30,1-12). Os historiadores não sabem se aqui se trata de uma minoria racial ou religiosa, ou ainda de uma espécie de subproletariado submetido ao mesmo tipo de organização que as mais baixas castas da Índia. Pouco importa. Essas pessoas não interessam ao autor por si mesmas; aparecem no texto apenas para que Jó possa posicionar-se em relação a elas, definir-se como o bode expiatório desses bodes expiatórios, o perseguido desses que pelo menos podem dar-se ao luxo da perseguição, a vítima de todos, o bode dos bodes e a vítima das vítimas. Quanto mais Jó se obstina em sua mudez a respeito do rebanho perdido e dos demais motivos confessáveis pelos quais tem a se lamentar (aqueles que o prólogo põe à 7 sua disposição), mais insiste em apresentar-se como a vítima inocente dos que o rodeiam. Decerto, Jó se lamenta de males físicos, mas esse lamento particular se associa sem dificuldade ao conteúdo fundamental de suas queixas: ele á a vítima de inúmeras brutalidades; a pressão psicológica que pesa sobre ele é insuportável. Alguém poderá dizer que a vida de Jó não está ameaçada, que não se fala em matá- lo. Seus amigos o protegem. Mas isso não é verdade. Jó pensa que se quer tirar-lhe a vida, sobretudo a vida. Acredita que morrerá logo. E não dessa enfermidade que com tanta segurança diagnosticam os médicos; pensa que vai morrer de morte violenta e imagina a efusão do próprio sangue: Ó terra, não cubras meu sangue, não encontre meu clamor um lugar de descanso! (Jó 16,18). Na leitura desses dois versos, contento-me em seguir a nota explicativa da Bíblia de Jerusalém: “O sangue clama a Deus por vingança, enquanto não for coberto pelo pó da terra. Jó, ferido de morte, quer que o seu sangue sobre a terra e o clamor de sua oração junto a Deus subsistam como apelo permanente à vingança de sua causa”. A tradução dos dois versos e a nota coincidem plenamente com as versões das principais traduções. É certo que a linguagem da nota permanece ambígua. Por quem Jó foi ferido de morte? Mais do que os homens, Deus poderia tê-lo ferido; porém, certamente não é contra Deus que o sangue da vítima clama por vingança: é diante de Deus, como o sangue de Abel, essa primeira grande vítima exumada pela Bíblia. Javé disse a Caim: “Que fizeste? Ouço o sangue de teu irmão, do solo, clamar para mim!” (Gn 4,10). Mas então contra quem clama por vingança o sangue derramado? Quem tentaria sufocar o grito de Jó, suprimir suas palavras, para impedi-las de chegar a Deus? É estranho que essas questões elementares jamais tenhamsido levantadas. Jó associa insistentemente o papel da comunidade ao que lhe sucede, porém (e aí está o mistério), assim como ocorre com seus comentadores fora do livro, não consegue fazer-se entender por parte de seus interlocutores no livro... Ninguém tem a mínima consideração pelo que ele diz. A revelação do bode expiatório é tão insignificante para a posteridade quanto para seus amigos. No entanto, consideramo-nos muito atentos ao que Jó diz; lamentamos por não vê-lo compreendido. Mas estamos de tal modo preocupados em fazer de Deus o responsável por todas as desgraças do homem, sobretudo quando não cremos nele, que o resultado final permanece o mesmo. Somos apenas um pouco mais hipócritas que seus amigos. Para todos aqueles que sempre fingiram dar ouvidos a Jó, mas no fundo não o ouvem, suas palavras não passam de vento. A única diferença é que, enquanto não nos atrevemos a proclamar nossa indiferença, seus amigos ousam dizer: Até quando falarás dessa maneira? As palavras de tua boca são um vento impetuoso (Jó 8,2). * * * Esse papel de vítima que Jó atribui a si é necessariamente significativo dentro de um conjunto de textos, a Bíblia, que, sempre e em toda a parte, coloca as vítimas em primeiro plano. Por menos que se reflita acerca disso, é possível perceber que a razão 8 da estranha similaridade entre os discursos de Jó e os Salmos chamados penitenciais deve ser buscada na perspectiva comum em que ambos se situam: a da vítima rodeada de inimigos. A respeito desses salmos trágicos, deve-se consultar o livro de Raymund Schwager.[1] De forma extremamente condensada, esses textos apresentam a situação de que Jó se queixa: uma vítima inocente fala, quase sempre prestes a ser linchada. Raymund Schwager não se engana: um bode expiatório no sentido moderno descreve os maus- tratos que se lhe aplicam. Há apenas uma diferença, de grande importância: enquanto nos Salmos só quem fala é a vítima, nos diálogos de Jó também se ouvem outras vozes. Reunir, como acabo de fazer, as passagens que melhor revelam Jó como bode expiatório é reunir os textos mais semelhantes a esses Salmos, tão semelhantes quanto intercambiáveis. Trata-se, no fim das contas, de se colocar ênfase naquilo que, na falta de outra expressão melhor, chamamos de vítima expiatória – esse formidável denominador comum de muitos dos textos bíblicos misteriosamente esquecidos por todos, objeto de uma expulsão intelectual que se deve situar decididamente no prolongamento da antiga violência física. Para purificar o espírito da nefasta influência do prólogo e compreender por fim qual é a questão fundamental presente em Jó, reler alguns Salmos constitui um excelente exercício. Pelos opressores todos que tenho, já me tornei um escândalo; para meus vizinhos, um asco, e terror para meus amigos. Os que me veem na rua fogem para longe de mim; fui esquecido, como um morto aos corações, estou como objeto perdido. Ouço as calúnias de muitos, o terror me envolve! Eles conspiram juntos contra mim, Projetando tirar-me a vida (Sl 31,12-14). 9 2 JÓ, ÍDOLO DE SEU POVO Por que Jó se tornou a ovelha negra de sua comunidade? Nenhuma resposta direta é dada. E talvez seja melhor assim. Se o autor sugerisse com muita clareza um elemento exato ou mencionasse um incidente qualquer, uma origem possível, qualquer que fosse, acreditaríamos saber, e automaticamente deixaríamos de nos questionar. Na realidade, saberíamos menos do que nunca. Entretanto, não pensemos que os diálogos mantêm absoluto silêncio. Eles estão cheios de esclarecimentos, mas temos de saber onde buscá-los. No que diz respeito à escolha de Jó como bode expiatório, não devemos nos dirigir a qualquer um. Os “amigos”, por exemplo, não dizem nada de muito interessante. Querem responsabilizar Jó pelas sevícias que lhe são infligidas. Sugerem que sua avareza o fez perecer; talvez tenha se mostrado duro para com o povo, ou aproveitado de seu poder para explorar os fracos e os pobres. Ainda que se considere Jó virtuoso, talvez ele tenha cometido, como Édipo, um crime invisível. Se não ele, seu filho, ou qualquer outro membro de sua família. Um homem condenado pela voz pública não poderia ser inocente. Mas Jó se defende com vigor e, por fim, nenhuma acusação se mantém. As acusações se perdem na areia. Alguns comentadores censuram em Jó o modo veemente como responde. Carece de humildade e os amigos estão certos por se escandalizar. Essa censura ignora totalmente a natureza do debate. Para compreender a indignação de Jó, deve-se situá-la em seu contexto próprio, definido pelo próprio Jó. Jó não diz que nunca pecou, mas que não fez nada para merecer tamanha desgraça; ainda ontem era considerado infalível e tratado como santo, enquanto hoje todo mundo o consterna. Não foi ele quem mudou, mas os homens que estão ao seu redor. Aquele Jó que todo mundo execra não pode diferir muito daquele que todo mundo venerava. O Jó dos diálogos não é um novo rico vulgar que perdeu tudo, um simples indivíduo que, depois de passar do esplendor à miséria, decide meditar com seus amigos sobre os atributos de Deus e a metafísica do mal. O Jó dos diálogos não é o mesmo do prólogo. É um grande líder que a opinião pública em princípio teve em grande conta, mas de uma hora para outra passou a desprezar. Quem me dera voltar aos meses de antanho, aos dias em que Deus velava sobre mim; quando [...] banhava meus pés em creme de leite e a rocha me dava rios de azeite. Quando me dirigia à porta da cidade e tomava assento na praça, os jovens ao ver-me se retiravam, os anciãos se levantavam e ficavam de pé, os chefes interrompiam as conversas, pondo a mão sobre a boca; emudecia a voz dos líderes e sua língua se colava ao céu da boca. 10 Quem me ouvia falar, felicitava-me, quem me via, dava testemunho de mim; porque eu livrava o pobre que pedia socorro e o órfão que não tinha auxílio. A bênção do moribundo pousava sobre mim, e eu alegrava o coração da viúva. A justiça eu vestia como túnica, o direito era meu manto e meu turbante. Eu era olhos para o cego, era pés para o coxo. Era o pai dos pobres e examinava a causa de um desconhecido. Quebrava as mandíbulas do malvado, para arrancar-lhes a presa dos dentes. E pensava: “Morrerei no meu ninho, depois de dias numerosos como a fênix; minhas raízes estendidas até a água, o orvalho pousando em minhas ramagens, minha honra ser-me-á sempre nova, em minha mão o meu arco retomará força. Ouviam-me com grande expectativa, e em silêncio escutavam meu conselho. Quando acabava de falar, ninguém replicava, minhas palavras ficavam gotejando sobre eles; esperavam-nas como o chuvisco, como quem abre a boca ávida para a chuva tardia. Sorria para eles, mal o acreditavam e não perdiam nenhum gesto favorável. Sentado como chefe, eu escolhi seu caminho; como um rei instalado no meio de suas tropas, guiava-os e eles se deixavam conduzir (Jó 29,2-25). Antes de se tornar bode expiatório, Jó viveu um período de popularidade tão prodigiosa que beirava a idolatria. Vemos aqui, com toda clareza, que o prólogo não é pertinente. Se Jó tivesse perdido realmente seu rebanho e seus filhos, essa lembrança do passado seria ocasião para mencionar essa perda. Mas como se vê, não se fala dela... O contraste entre o presente e o passado não representa a mudança da riqueza para a pobreza, da saúde para a enfermidade, mas do favor para o desfavor de um único e mesmo público. Os diálogos não tratam de um drama puramente pessoal, de um simples acontecimento do dia a dia, mas do comportamento de todo o povo para com um tipo de “homem de Estado” cuja carreira se rompeu. Por mais duvidosas que possam ser, as acusações que recaem sobre Jó são reveladoras. O que se reprova nesse potentado caído em desgraça são particularmente os abusos de poder, abusos tais que não poderiam ser cometidos por um simples latifundiário, por mais rico que fosse. Jó faz lembrar antes o tirano das cidades gregas. Por que, interroga-lhe Elifaz, Shaddai se voltou contra ti? É por tua piedade que te corrige, e entra contigo em julgamento?Não é antes por tua grande malícia e por tuas inumeráveis culpas? Exigias sem razão penhores de teus irmãos e despojavas de suas roupas os nus; não davas água ao sedento e recusavas o pão ao faminto; entregavas a terra a um homem poderoso, 11 para ali se instalar o favorecido; despedias as viúvas com mãos vazias, quebravas os braços dos órfãos (Jó 22,4-9). O leitor moderno em geral adota a visão do prólogo porque ela lembra nosso mundo, ou ao menos a ideia que dele fazemos. A felicidade consiste em possuir a maior quantidade de coisas possível, sem nunca adoecer, num eterno arrebatamento de gozo consumidor. Nos diálogos, pelo contrário, só contam as relações entre Jó e a comunidade. Jó apresenta seu período triunfal como o outono de sua vida, ou seja, como a estação que imediatamente antecede ao glacial inverno da perseguição. É provável que a desgraça seja recente e tenha se produzido de repente. Da extrema admiração, Jó passou, de uma hora para outra, ao extremo desgosto. E até o último momento, parece que Jó não suspeitava de modo algum da grande reviravolta que se preparava: Quem me ouvia falar felicitava-me, quem me via dava testemunho de mim; porque eu livrava o pobre que pedia socorro, e o órfão que não tinha auxílio (Jó 29,11-12). E pensava: “Morrerei no meu ninho, depois de dias numerosos como a fênix; minhas raízes estendidas até a água, o orvalho pousando em minha ramagem, minha honra ser-me-á sempre nova, em minha mão o meu arco retomará força” (Jó 29,18-20). O mistério de Jó se apresenta num contexto que não o explica, mas que permite situá-lo melhor. O bode expiatório é um ídolo picado em mil pedaços. Ascensão e queda estão entrelaçadas. Tem-se a sensação de que tais extremos se aproximam. Não se pode interpretá-los separadamente; contudo, não se pode fazer do primeiro a causa do segundo. Pressentimos aqui um fenômeno social mal definido, embora real, cujo desenrolar não é certo, mas provável. O único ponto comum entre ambos os períodos é a unanimidade da comunidade, primeiro na adoração, depois na aversão. Jó é vítima da mudança maciça e súbita de uma opinião pública, visivelmente instável, caprichosa, indiferente a qualquer moderação. Ele não parece muito ser mais responsável pela mudança dessa multidão do que Jesus, por uma mudança muito semelhante, [situada] entre o Domingo de Ramos e a Sexta-feira da Paixão. Para que haja essa unanimidade nos dois sentidos, deve atuar um mimetismo de multidão. Os membros da comunidade influenciam-se mutuamente, imitam-se uns aos outros na adulação fanática e, em seguida, na hostilidade ainda mais fanática. 12 3 A ROTA ANTIGA DOS HOMENS PERVERSOS No último de seus três discursos, um dos três amigos, Elifaz de Temã, alude claramente à existência de predecessores de Jó na dupla carreira de emergentes todo- poderosos e bodes expiatórios: Queres seguir os velhos caminhos por onde andaram os homens perversos? Foram arrebatados antes do tempo, quando uma torrente se lançou sobre seus fundamentos. Eles diziam a Deus: “Afasta-te de nós”. Que pode fazer-nos Shaddai? Ele enchia de bens suas casas, enquanto o conselho dos ímpios se afastou dele! Os justos veem isto e se alegram, o inocente zomba deles: “Eis destruídos nossos adversários! E que fogo devorou seus bens!” (Jó 22,15-20). A “rota antiga dos homens perversos” começa pela grandeza, riqueza e poder, mas termina num fulminante desastre. Trata-se das mesmas fases que acabamos de descobrir na aventura de Jó: o mesmo cenário. Num dia ou noutro, Jó poderia aparecer na lista desses anônimos de que se fala a meias palavras, pois seus nomes foram “apagados”. É um desses homens cuja carreira pode acabar muito mal, por ter começado muito bem. Como eu mesmo fiz, Elifaz opõe e, consequentemente, aproxima as duas fases; compreende que formam um todo e que não podem ser interpretadas separadamente. Algo na ascensão desses homens prepara sua queda. Em suma, nossa intuição se encontra nas palavras de Elifaz. Jó já percorreu uma boa parte do caminho ao longo da “rota antiga dos homens perversos”: está no começo da última etapa. Os acontecimentos que Elifaz evoca parecem longínquos e, portanto, excepcionais – mas não o bastante para impedir que o observador os agrupe e reconheça neles um fenômeno recorrente. Observa-se aí um caminho traçado: muitos homens seguiram por ele; agora é a vez de Jó. Todos esses destinos trágicos têm o perfil característico do ídolo decaído; como o de Jó, são obrigatoriamente determinados pela conversão de uma multidão adoradora em multidão perseguidora. Se os desastres dos homens perversos fossem imaginários, Elifaz não poderia aludir a acontecimentos que situa no passado. Ele deve evocar uma experiência conhecida por todos, posto que é a de toda a comunidade. A súbita ruína dos homens perversos continua presente na memória de todos. Essas mudanças impressionam de tal modo os homens que não ficam esquecidas, e seu caráter estereotipado facilita a lembrança. Aos olhos de Elifaz e da comunidade, a “perversidade” dessas vítimas ficou completamente demonstrada, exatamente como a culpa de Jó. Depois de serem renegados pela multidão, esses antigos ídolos já não podem mais justificar-se; os 13 infelizes são condenados para sempre. O consenso que agora reina contra Jó teve de ser usado contra eles. Essa mesma história sempre se repete, e a advertência de Elifaz se mostra bastante razoável. Jó deveria considerar as palavras desse sábio, porém, como fazê-lo sem renegar a si mesmo e sem confessar-se culpado? Talvez Elifaz se repreenda por mostrar-se demasiado amistoso, demasiado fraternal perante esse criminoso que é Jó aos seus olhos. Fala abertamente de um processo de “justiça” popular que, longe de consistir, em sua ótica, numa desordem repreensível, parece-lhe legítimo, infalível e, literalmente, divino. Sua consciência está absolutamente tranquila. Tudo lhe parece em ordem. É a própria personificação da ordem que se reafirma com um vigor que os três “amigos” consideram extremamente satisfatório. É certo que todos os homens “perversos” são vítimas de violências populares? A que outra coisa o texto poderia aludir? Releiam os quatro últimos versos da citação, que aludem a uma forma violenta de banimento social: Os justos veem isto e se alegram, o inocente zomba deles: “Eis destruídos nossos adversários! E que fogo devorou seus bens!” (Jó 22,15-20). No contexto de uma sociedade aldeã, o “júbilo dos justos” e a “zombaria do inocente” necessariamente têm de acarretar consequências. É preciso pensar aqui na formidável eficácia da reprovação unânime num ambiente como esse. Para suscitar todos os desastres que lhe são atribuídos, a divindade[1] tem a única opção de não se opor a esses justos que clamam por vingança. No meio da multidão se encontram a vítima e todos os seus pertences. O que se poderia repartir, os agitadores já repartiram; talvez tenham sorteado entre si esses pertences, para não acabarem se matando. O que resta, incluindo o antigo proprietário, é destruído em imensas fogueiras festivas. O desastre que espera os “homens perversos” ao terminar sua carreira, ao final da “rota antiga”, deve se assemelhar a essas festas primitivas cujo desfecho, ainda que seja atenuado e ritualizado, faz pensar num fenômeno de multidão. Tudo sempre termina com um simulacro de bode expiatório que é queimado ou afogado. Os antigos etnólogos enxergavam violências mais graves por baixo das formas que observavam. Muitos pesquisadores contemporâneos os consideram vítimas de sua imaginação romântica e colonialista. Ao contrário, penso que os antigos etnólogos tinham razão. É certo que tinham preconceitos, porém, também temos os nossos, e uma vertente rousseauniana que volta a fervilhar em nossa época rejeita os inúmeros testemunhos que contradizem sua paixão com excessiva desenvoltura para inspirar confiança. Muitas outras passagens sugerem que o acontecimento central da obra, a terrível aventura que acaba de começar para o herói, seja um fenômeno recorrente de violência coletivaque se abate, sobretudo, contra os “grandes” e os “tiranos”, porém, não exclusivamente contra eles, e que se interpreta sempre como vingança divina ou intervenção punitiva da divindade. Limitar-me-ei a citar apenas uma, que faz parte do discurso de Eliú, o quarto personagem que repreende Jó. Segundo a opinião mais geral, esse personagem não pertence aos diálogos originais. Seu discurso seria provavelmente obra de algum leitor 14 escandalizado pela impotência dos três primeiros guardiões da ordem pública. Eliú despreza o enraizamento dos três na tradição, e se compromete a obter êxito no empreendimento em que os três fracassaram. Ele se considera melhor capacitado simplesmente por ser mais jovem e por desprezar o passado. Também ele procura reduzir Jó ao silêncio, porém, não faz mais do que repetir, num estilo menos elaborado, o que os três já haviam dito. Pertence a um estágio mais corrompido da antiga tradição. Mas nem por isso deixa de dizer coisas que, mais do que nunca, tornam mais manifesto o escondido tema dos diálogos. Ainda que o tema de Jó como “opressor do povo” já apareça nos três amigos, Eliú o utiliza ainda mais. Por trás de suas fórmulas político-religiosas, transparece a violência popular. Em um instante, Deus: ...aniquila os poderosos sem muitos inquéritos e põe outros em seu lugar. Conhece a fundo suas obras! Derruba-os numa noite e são destruídos. Açoita-os como criminosos e em público lança-lhes cadeias (Jó 34,24-26). Cito a Bíblia de Jerusalém: sua tradução sugere admiravelmente a identidade entre a divindade e a multidão. A divindade é que derruba os grandes, mas a multidão os pisoteia. É a divindade que acorrenta as vítimas, mas sua intervenção é pública, efetuando-se na presença dessa mesma multidão que talvez não tenha permanecido completamente passiva perante espetáculo tão interessante. Observemos que os poderosos são destruídos “sem inquérito”: suspeitava-se um pouco disso. A multidão está sempre disposta a prestar sua assistência à divindade quando esta se presta a castigar os malvados. E, imediatamente, aparecem outros grandes para substituir os que caíram. A própria divindade os entroniza, mas é a multidão que os adora, para descobrir um pouco mais tarde que, naturalmente, uma vez mais, são falsos eleitos e não valem mais do que seus predecessores. Vox populi, vox dei. Como na tragédia grega, a ascensão e a queda dos grandes constituem um mistério propriamente sagrado, cuja conclusão é a parte mais apreciada. Embora seja sempre a mesma, é sempre esperada com impaciência. 15 Segunda Parte MITOLOGIA E VERDADE 16 4 OS EXÉRCITOS CELESTES O que fazem os três “amigos” junto ao bode expiatório? O prólogo diz que estão ali para “compartilhar” a dor de Jó e “consolá-lo” (Jó 2,11), porém, os discursos que esbanjam não têm nada de reconfortante. A crítica está de acordo com isso, porém, atribui o rigor dos amigos à sua falta de experiência, à severidade de sua teologia; não coloca em dúvida sua qualidade de amigos, e persiste em acreditar que suas intenções são boas. Não se tem observado com muita atenção o que os pretensos “amigos” dizem. A primeira coisa que impressiona o leitor desprevenido é a prodigiosa violência de seus discursos. Ouça o que diz Elifaz: A vida do ímpio é um tormento contínuo, e poucos são os anos reservados ao tirano; escuta ruídos que o espantam; quando está em paz, assalta-o o bandido; ele não crê mais escapar das trevas, pois é espreitado pela espada; é marcado para ser pasto dos abutres e sabe que sua ruína é iminente (Jó 15,20-23). As passagens desse tipo são inúmeras. Sempre há um malvado, um opressor do povo. Era todo-poderoso, mas já não é mais. Finalmente, a divindade o amaldiçoou. A vingança dos exércitos celestes o persegue. Um dos três amigos, Sofar de Naamat, nos descreve o destino que espera esse misterioso “tirano”: Deus derrama sobre ele o ardor de sua ira, lança-lhe na carne uma chuva de flechas. Se escapar das armas de ferro, atravessá-lo-á o arco de bronze; uma flecha sai de suas costas, e um dardo chamejante, do seu fígado. Terrores avançarão sobre ele, todas as trevas escondidas lhe são reservadas. Devorá-lo-á um fogo não aceso por homem, consumindo o que resta de sua tenda. O céu revelará sua iniquidade, a terra se insurgirá contra ele. O lucro de sua casa se escorre, como torrente no dia da ira. Esta é a sorte que Deus reserva ao ímpio, a herança que destina à sua pessoa (Jó 20,23-29). Na perspectiva do prólogo, esses discursos ameaçadores não se justificam. Por que um desgraçado esmagado pelo infortúnio de inexplicáveis acidentes, como parece ser o caso de Jó, haveria de ver-se perseguido pelos vários executores de uma misteriosa “vingança divina”? Por que aquele que acaba de perder a saúde, os filhos e a fortuna haveria de suscitar essa formidável conjunção de hostilidade que os “amigos” 17 descrevem? Acaso essas vociferações se refeririam a outro, e não a Jó? O principal interessado não se engana. Em três ocasiões, e na mesma ordem militar, os três amigos lhe lançam soberbas e sinistras imprecações. Que outro alvo poderiam buscar? Jó ainda não é de fato esse inimigo de Deus que está em questão, mas sem dúvida se converterá nele, se persistir em rebelar-se contra a unânime voz que o condena. Essa é, em suma, a mensagem de Elifaz. Aquele que é chamado alternativamente “o inimigo de Deus”, “o maldito” ou simplesmente “o malvado” é um desses “homens perversos”. Para esse tipo de ovelhas negras existem cinco ou seis rótulos intercambiáveis. É sempre a mesma ameaça que esses discursos fazem pesar sobre Jó: a violência coletiva, cada vez mais violência coletiva. Ao contrário de Jó, cuja linguagem é realista nas passagens consagradas a sua experiência de vítima, indignamente realista, em conformidade com a baixeza de seu tema, os três amigos adotam o estilo conveniente à presumida grandeza do seu. É certo que não faltam os detalhes concretos, porém, sempre envoltos no estilo da epopeia religiosa. Assim sendo, é preciso distinguir dois tipos de discurso: o dos amigos e o de Jó. Mais adiante veremos que essa distinção nem sempre é válida, exceto para as passagens que citei até agora. Entre os lamentos do sofredor e o estilo épico dos amigos, a distância é tão grande que, num primeiro momento, desencoraja a quem queira aproximá-los. Os exércitos celestes não têm nada em comum, ao que parece, com as mesquinhas perseguições de que Jó se queixa. Mas se Jó e os amigos não falassem da mesma coisa, os diálogos não teriam objeto e, mais propriamente falando, não haveria diálogos. E o leitor que não consegue compreender o papel-chave da vítima expiatória é surpreendido por certa incoerência do conjunto. Os personagens não falam verdadeiramente entre si. Isto é verdade, sobretudo no que se refere aos amigos: diríamos que não escutam as queixas nem os argumentos de Jó. A crítica de nosso tempo tem se concentrado sobretudo nas diferenças retóricas entre os discursos. Interessa-se menos por aquilo de que se fala do que pela maneira como se fala. A preocupação com aquilo que ela denomina com desenvoltura o referente parece-lhe cada vez mais alheia à coisa literária, responsável – em última instância – por todos os mal-entendidos que corrompem a inteligência dos textos principais. Os exegetas de Jó jamais puderam descobrir o objeto comum aos dois tipos de discursos que acabamos de distinguir. Porém, até nossos dias não deixaram de buscá-lo, ao menos em teoria. No entanto, o que caracteriza a crítica atual é a tentação de abandonar essa busca. Não se deve sucumbir a essa tentação... Nas vociferações dos amigos, o tema principal é a gigantesca mobilização suscitada pela divindade, decretada e organizada por ela contra seu inimigo, o inimigo dessa divindade. Inúmeras hordas convergem para o miserável. De onde procedem? Por que se concentram potentes exércitos, com o único objetivo de destruir a um adversário isolado, incapaz de se defender? Por que tamanho desperdício de poderio militar? As passagens em que Jó descrevesua situação na comunidade o mostram só, 18 rodeado por uma multidão de inimigos. Aqui, o mesmo todos contra um volta a se encontrar, mas não no mesmo estilo. Diante dos extraordinários exércitos celestes, não pensamos nos vis perseguidores de Jó, mas a desproporção numérica é a mesma, e o mesmo inimigo. Em ambos os casos, trata-se de um mesmo fenômeno. Todos os personagens falam da mesma violência... Porém, dir-se-á, como pode? O drama grandioso, o drama cósmico dos três amigos não se limita à sórdida perseguição que Jó denuncia. A vingança divina põe em ação todos os elementos impetuosos: o vento e a tempestade, o trovão e os relâmpagos, a inundação, a seca e os animais ferozes. Sem dúvida, mas observemos melhor. Todas essas forças convergem simultaneamente para o inimigo de deus. Nem sempre se leva em conta a verossimilhança, mas o todos contra um do bode expiatório é que se manifesta melhor. É o único princípio de organização que controla o todo. Quaisquer que sejam os adversários, a relação de forças não muda. Por trás dos mais monstruosos combatentes, os menos humanos, os mais inesperados, evidencia-se sempre a conjunção dos modestos aldeões contra um único adversário, obrigatoriamente um dos seus, o desgraçado que se tornou objeto de seu ódio. Como as tropas dos guerreiros e as pragas naturais, os animais que combatem pela divindade se concentram ao redor de sua vítima, para arremessar-se sobre ela, todos juntos, desde os quatro cantos do horizonte. Constantemente, reaparecem nessas estranhas narrações as mesmas espécies: touros, cachorros e aves de rapina, sobretudo os abutres. Estes pululam onde quer que haja um cadáver, voando em círculo ao seu redor, para participar da partilha. Encontramos todos esses animais, e muitos outros ainda, nos mitos. São os mais ferozes, mas também as espécies que vivem em bandos, as que caçam e atuam coletivamente, ou se alimentam, em grupo, de cadáveres: as espécies que atuam ou parecem atuar como os homens, quando se reúnem contra um adversário comum, quando praticam a caça ao homem. Sempre se alude à mesma intenção fundamental: o encurralamento de uma vítima solitária por uma multiplicidade de inimigos. É a mesma violência em ambas as partes. E é essa violência que se deve questionar para compreender a relação entre os dois estilos. Ela é o verdadeiro “referente”, mal dissimulado nas ameaças dos amigos, evidente nas palavras de Jó. Por mais distantes que pareçam entre si, os dois tipos de discurso tratam, à sua maneira, do mesmo fenômeno: a conversão do herói em bode expiatório, o linchamento cujas primícias Jó saboreia. Nos discursos sagrados, a transcendência aspira em direção ao alto: como se tudo ocorresse fora da história humana. Mas também se percebe o contrário. Observemos a vítima suar de angústia, observemos essa flecha que, agora, atravessa-lhe o fígado. Voltemos a encontrá-la na descrição mais realista de Jó. As interseções entre ambos os discursos não são difíceis de se encontrar. A multiplicidade de inimigos procede sempre de um só e único modelo, a multidão humana. Quando se prepara a vingança divina, nada existe no Universo que não se ponha a girar vertiginosamente como um turbilhão no sentido da turba, segundo Michel Serres, e desgraçado aquele a quem esse irresistível turbilhão envolve, desgraçado quem se deixa levar por ele. A multidão turbilhonante é por excelência o 19 modo de ser da vingança divina. Precipita-se sobre sua vítima e a dilacera em pequenos pedaços; em todos os participantes, o terrível apetite de violência é idêntico. Nenhum deles quer renunciar a infligir o golpe decisivo. As imagens de dilaceração e fragmentação fazem pensar nos incessantes despedaçamentos mitológicos e rituais, nas inúmeras variantes do diasparagmos dionisíaco. O todos contra um da violência coletiva se faz presente no grupo dos três e, posteriormente, dos quatro ao redor de Jó, até mesmo na estrutura de seus discursos. Esse pequeno grupo de três membros, ao que depois se acrescenta outro, constitui uma pequena multidão dentro da grande. O malsucedido reforço de Eliú põe em evidência a estrutura de alali[1] frustrado que domina o livro do princípio ao fim. Ao redor da vítima encurralada, a numerosa turba de palavras se agrupa para o golpe de misericórdia. As três séries de discursos assemelham-se a esse conjunto de flechas que esperam o inimigo da divindade. As vociferações caem sobre Jó como caem sobre o maldito os adversários encarregados de aniquilá-lo. Os discursos hostis não constituem somente uma imagem da violência coletiva. Constituem efetivamente uma participação ativa. Jó sabe bem disso, ao denunciar o esquartejamento verbal de que é alvo. Os três amigos o esmagam com seus discursos, pulverizam-no com palavras (19,2). Não seria exagerado comparar essas palavras a um linchamento? Os amigos não se expressam por meio de grosseiros insultos, nem de brutalidades físicas. Não escarram sobre Jó. Eles pertencem à elite. Não se poderia surpreender aqui Jó em flagrante delito de exagero, de “dramatização”? De modo nenhum. Ao fazer de todas as violências dirigidas contra Jó serviços prestados à divindade, esses discursos justificam as brutalidades passadas, incitando outras. São mais temíveis do que os escarros dos miseráveis. Seu valor performático é evidente. * * * O deus dos amigos combate sempre na proporção de três contra um, de quatro, de mil contra um. Não se vê restringido por espírito cavalheiresco algum. Isso é o que nós pensamos a princípio. Porém, que ociosa e arcaica ironia é a que considera o religioso em abstrato, in toto, sem se perguntar nunca o que há por trás dessas visões. Há três séculos, nós as consideramos imaginárias, nada mais. Vemos nelas invenções não essenciais, posteriores à aparição dessa divindade cuja força reside no número de combatentes alistados sob sua bandeira. Cremos que a divindade metafísica é, de antemão, fruto de uma imaginação metafísica, e que os exércitos celestes são fabricações secundárias, de alcance relativamente menor. Sempre pensei que se deveria inverter o sentido dessa gênese. Esses exércitos, que não são celestes, mas reais, devem ser tomados como ponto de partida. Deve-se partir da violência coletiva. E, por uma vez, não devemos postular nem contemplar essa violência como uma simples hipótese. O autor a coloca diante de nossos olhos o tempo todo. Ela forma uma mesma realidade com essa perseguição de que Jó se lamenta. Os discursos dos amigos refletem o furor sagrado que se apodera dos linchadores na iminência do linchamento. Desde a mania dionisíaca ao amok polinésio, há mil denominações diferentes para designar esse transe coletivo que também se encontra na tragédia grega. Esses trechos inflamados se assemelham aos do coro trágico nos 20 momentos precedentes à condenação da vítima, ao martírio de Penteu, nas Bacantes, à descoberta do “culpado” em Édipo Rei. A nossos olhos, os três amigos sacralizam a violência. Os insultos e as mesquinhas brutalidades se convertem em grandioso cumprimento de uma missão sobrenatural. Todos os participantes se convertem em guerreiros celestes: os vizinhos próximos e os mais distantes, as pessoas de bem e os esfarrapados, os jovens e os velhos, inclusive os amigos de sempre, inclusive os parentes mais próximos, inclusive a esposa, que diz a Jó: “Maldiz a Deus e morre”. Diante desses textos profundos, em que alternam incansavelmente as lamentações do perseguido e as frenéticas incitações ao homicídio, textos fundamentados na linguagem do sagrado, com uma linguagem que se assemelha aos mais selvagens rituais, às preparações para partilha coletiva da vítima: como negar a pertinência da perseguição coletiva na religião primitiva? Em toda revolta contra os chefes que o favor popular conseguiu provocar, a comunidade vê automaticamente a intervenção de uma Justiça absoluta. O que se desdobra no discurso dos amigos é uma verdadeira mitologia da vingança divina. Porque participam de seu linchamento, os amigos não compreendem o papel de bode expiatóriorepresentado por Jó. O paradoxo da violência fundadora se revela aqui de maneira espetacular. Aqueles que constroem o sagrado com sua própria violência são incapazes de enxergar a verdade. É exatamente isso que faz com que os amigos fiquem totalmente surdos aos apelos que Jó lhes dirige constantemente. Quanto mais participam da violência contra o desafortunado, mais se veem arrastados por seu lirismo bárbaro e menos compreendem o que estão fazendo. Os três amigos sabem perfeitamente o que a ordem social exige deles, mas esse saber não contradiz em absoluto sua ignorância fundamental no tocante ao bode expiatório, nem sua impotência para conceber o ponto de vista de Jó. Não entreveem a reprovação moral que o fenômeno inspira em Jó e, depois dele, em todos nós, por graça exclusiva do texto bíblico. Como diriam posteriormente os Evangelhos a respeito de um caso parecido, os três amigos “não sabem o que fazem”, no plano moral e religioso. No entanto, sabem perfeitamente o que têm de fazer e o que têm de evitar quanto a determinada preparação vitimária, cuja significação geralmente nos escapa, porém, não é, em hipótese alguma, irrecuperável. 21 5 REALISMO E TRANSFIGURAÇÃO Chegando finalmente aos verdadeiros temas da obra, a fim de descobrir sua coerência, voltamos a descobrir a teoria proposta na obra La Violence et le Sacré [A violência e o sagrado] e nas obras que vieram depois. Essa teoria afirma que a violência unânime do grupo se transfigura em epifania da divindade. Em As Bacantes, o linchamento de Penteu equivale exatamente à epifania de um Dioniso vingador... Nos diálogos, o linchamento de Jó e de todos os “homens perversos” identifica-se com a intervenção da vingança divina... Para que um grupo humano perceba sua própria violência coletiva como sagrada, é preciso que a exerça unanimemente contra uma vítima, cuja inocência não mais aparece, pelo fato mesmo dessa unanimidade. É isso o que diz A violência e o sagrado, e é exatamente o que acabamos de ver. Dos três amigos, o que me parece mais inclinado à mitologia é Baldad de Suás. Com ele, o tema dos exércitos celestes desemboca claramente numa mitologia análoga à das Erínias gregas e à das Valquírias germânicas. Fica evidente aqui que a religião de Baldad e de seu universo não têm muito a ver com as manifestações do Iahweh bíblico, mesmo as mais contaminadas pela violência mitológica: A enfermidade consome-lhe a pele, devora seus membros o Primogênito da Morte. Arrancam-no da paz de sua tenda, e tu o conduzes ao Rei dos terrores. Podes habitar a tenda que não é mais sua, e espalham o enxofre sobre o teu redil (Jó 18,13-15). Eis a esse respeito a nota da Bíblia de Jerusalém: [O Rei dos terrores:] Personagem da mitologia oriental e grega (Nergal, Plutão etc.) que parece imperar aqui a espíritos infernais, espécies de Fúrias que se encarniçam contra os criminosos, ainda em vida. [...] Lilith, outra personagem das crenças populares, seria um demônio mulher. [...] o enxofre, símbolo de esterilidade e aqui, talvez, desinfetante. Todos os grandes sistemas mitológicos, não somente os indo- europeus, possuem essas tropas de assassinos sobrenaturais que atuam em conjunto, unanimemente, e que, ao fazê-lo, produzem o sagrado, às vezes chegam a divinizar suas vítimas. É a versão plenamente mitológica dos exércitos celestes, ou seja, dos perseguidores de Jó. Tudo o que vimos até aqui e o que veremos mais adiante corresponde às teses desenvolvidas em meus três últimos livros.[1] Se eu evitasse de fazer essas correspondências, para não ser acusado de “reducionismo”, não poderia chegar, como pretendo fazer, às extensas partes da obra, ou melhor, à quase totalidade dos diálogos, em que normalmente só os filólogos se atrevem a aventurar-se. Os intérpretes as evitam. Ora, o livro de Jó impõe que se opte entre a análise moral e metafísica do problema do mal, a partir da leitura do prólogo, de um lado, e o reconhecimento dessa temível 22 equivalência entre a violência e o sagrado, não conscientemente afirmada pelos amigos, mas conscientemente repudiada pelo bode expiatório, de outro. A hipótese vitimária faz emergir os textos do silêncio que os envolve, liberando-os da armadilha metafísica e moral que impede sua compreensão. O “reducionismo” é aqui libertador, na medida em que combate precisamente essa armadilha: o princípio de ordem a que submeto essa considerável massa de dados faz com que estes sejam legíveis com independência do sistema limitador em que permaneciam submersos. A análise dos diálogos contribui com certa novidade em relação às minhas análises anteriores. Não que ela modifique o que quer que seja das conclusões já formuladas, pelo contrário. Ela mostra como o texto analisado nos conduz, pessoalmente, a essas mesmas conclusões. Depois de descartarmos o prólogo – tudo o que direi a partir de agora pressupõe essa atitude –, os diálogos apresentam algo de particularmente demonstrativo e revelador, sob o ponto de vista dos princípios que governam a transformação da violência coletiva em sagrado [sic]. A tese vitimária, dizem, não é realmente demonstrável, na medida em que não pode ser lida diretamente em nenhum texto. Ela descreve um processo de estruturação; não pode ser deduzida diretamente de um só texto e é, por essência, comparativa e hipotética. Também estou de acordo com isso. Com efeito, sob o ponto de vista do mecanismo vitimário, todos os textos parecem ter de pertencer a uma ou outra das duas categorias seguintes: 1) Os mitos, sobre os quais não se pode demonstrar diretamente que sejam estruturados pelo mecanismo vitimário – pelo fato de já o serem –, nem que esse mecanismo apareça em algum lugar. É exatamente isso o que percebemos, de um modo diferente, em todos os discursos que não são os de Jó. Não se pode esperar dos amigos o reconhecimento de sua injustiça. Como todos os fabricantes de bodes expiatórios, eles veem sua vítima como culpada. Portanto, para eles não há bode expiatório. 2) Os textos em que esse mesmo mecanismo vem à tona. A inocência da vítima é anunciada; o bode expiatório se manifesta enquanto tal, mas os perseguidores, nesse momento, não estão mais ali para invocar a vingança divina e os exércitos celestes. Não estão mais ali para nos revelar o efeito de estruturação que o processo exerce sobre sua linguagem, sobre sua visão, sobre seu comportamento. Nada é mais difícil do que surpreender dentro de um texto a atuação de um mecanismo de estruturação. É um pouco como procurar a profundidade de uma superfície de duas dimensões, qual seja o texto escrito. Por mais difícil que seja superar essa impossibilidade, os diálogos a superam. Eles são diálogos, justamente pelo fato de apresentarem as duas visões em contraponto. As revelações verídicas do perseguido alternam com os discursos mentirosos e sacralizados dos perseguidores. Por vezes, nem mesmo precisamos desse contraponto. Em algumas proposições que citei, como as de Elifaz, por exemplo, sobre “os velhos caminhos dos homens perversos”; as de Eliú, sobre a divindade que “aniquila os poderosos sem muitos inquéritos” e sobre a multidão que os esmaga: o processo vitimário transparece tão claramente através da sacralização, que não temos mais necessidade de confrontar os 23 dois tipos de discursos. Mas a abundância de elementos não é prejudicial e, na profusão de dados reveladores que nos oferece o livro de Jó, o mais extraordinário ainda é o contraste entre as duas perspectivas, possibilitado pela expressão dialogada, semelhante a uma encenação teatral, que teria por objeto não mais a catarse, mas o supressão de toda catarse. Não se pode considerar as correspondências entre os dois tipos de textos como simples coincidências. Ainda que não possa falar disso em nossa linguagem própria, ainda que seja às vezes ultrapassado e confundido pela própria ousadia: o autor manipula com enorme maestria essas correspondências para não ter nenhuma consciência delas. A diferença de perspectiva sobre uma única e mesma violência coletiva constitui o verdadeirotema dos diálogos. À mentira sagrada dos amigos, opõe- se o realismo verdadeiro de Jó. 24 6 ÉDIPO E JÓ O contraste entre o discurso sagrado e o discurso de dessacralização faz surgir uma verdade que se pode generalizar: a verdade de toda religião violenta. Ele desmistifica a perspectiva tradicional não apenas sobre Jó e sobre os outros bodes expiatórios presentes na sociedade de Jó, como também sobre todos os bodes expiatórios produtores de sagrado violento.[1] Onde quer que seja, os perseguidores arrastam suas vítimas pelos “velhos caminhos”, e essas viagens só chegam até nós como epopeias da vingança divina, constituindo representações transfiguradas dela. É a isso que chamamos de mitos. Mais uma vez tomemos o exemplo de Édipo. A ele apliquemos o saber de Jó. Num primeiro momento, comparemos as duas histórias. Mesmo aqueles que as colocaram em paralelo, como Meyer Fortes em seu livro Oedipe et Job,[2] não viram a que ponto ambas se assemelham. A simpatia popular eleva Édipo, tanto quanto e até mais do que Jó, conferindo-lhe inclusive a coroa real, que Jó exatamente não possui. De súbito, num céu até então sem nuvens, após um inquérito tão estranho quanto os “poucos inquéritos” de Eliú, Édipo é culpado por crimes abomináveis. Sua carreira desaba nessa tormenta frequentemente evocada pelos amigos de Jó. Com a mesma rapidez desconcertante, o ídolo se converte em maldito, maculado, pestífero, aquele cujo castigo coletivo restituirá a bênção divina, temporariamente retirada de uma comunidade que estava demorando muito para se mobilizar contra o “inimigo de Deus”. A carreira do herói mítico se assemelha muito à de Jó para não sugerir, por trás dos dois textos, um único e mesmo fenômeno: a transformação do ídolo popular em bode expiatório. Sem dúvida, trata-se da mesma coisa, porém, pode-se objetar: com exceção do patricídio e do incesto. Essa diferença permanece irredutível. Édipo “realmente” cometeu esses crimes: ele não é o bode expiatório que acredito encontrar por todo lado. O patricídio e o incesto ocupam o proscênio não somente em Freud, mas na maior parte dos modernos; tais crimes interessam muito mais do que a inocência de Jó. O que pode suscitar a presença desses crimes no mito? Dizem que não formulo a pergunta como seria conveniente. A origem do mito é desconhecida: a prudência nos obriga a concebê-lo como fictício. Jamais saberemos de onde vêm o patricídio e o incesto, como também não saberemos se Tebas algum dia teve um rei chamado Édipo. Só podemos conhecer essas coisas psicanaliticamente; freudianamente, sem dúvida; junguianamente, com maior exatidão, mas nada além disso. Questionando-me sobre a gênese concreta desses temas, supondo para eles um fenômeno de multidão, dou provas de um realismo ingênuo, indispondo a consciência aguda que têm nossos contemporâneos da incerteza de todas as coisas. Ora, o próprio Jó faz pensar na gênese que proponho e isso não se pode negar. A aversão que a multidão adquire por ele suscita todo tipo de acusações, porém, em seu 25 caso, elas não “pegam” – não se fixam em Jó, mas são esquecidas tão rápido quanto foram proferidas. Por quê? Porque Jó declara até o fim sua inocência. Se os “amigos” pudessem mantê-lo calado, para o que se esforçam, a crença dos perseguidores na culpa de seu bode expiatório realmente seria unânime e sairia tão vitoriosa que a única análise da questão emanaria daqueles que veem a culpa como real. Não teríamos mais do que uma perspectiva: a dos amigos. Em outras palavras, teríamos um mito. Um mito nada mais é do que essa fé absoluta na onipotência do mal presente numa vítima; essa fé que liberta os perseguidores de suas recriminações recíprocas e forma, consequentemente, um mesmo todo com a fé absoluta numa onipotência de salvação. As acusações “pegariam” com tanta força que acabariam sendo promovidas à condição de verdade. Elas não poderiam mais se separar de Jó, confundindo-se com ele. Não se poderia nem mesmo reconhecer aí a presença de acusações, de modo que nisso consiste o mito. Édipo realmente matou o pai e se casou com a mãe. Não é mais a comunidade, mas exatamente ele o responsável por sua vergonha e banimento. É exatamente isso o que os amigos dizem sobre Jó, mas não lhes damos crédito, porque é em Jó, apesar de tudo, que acreditamos. Na Bíblia, a última palavra é a da vítima e isso tem efeito sobre nós, ainda que não queiramos prestar à Bíblia a homenagem que lhe cabe. No caso de Jó, vemos claramente que as acusações se multiplicam depois de a multidão se voltar contra seu antigo ídolo e, portanto, em razão dessa mudança. Se Jó não estivesse ali para se defender, teríamos a impressão contrária; pareceria que a multidão se volta contra ele depois da descoberta de seu crime – logo, por causa deste. É bem essa a impressão que dá o mito. Não são as mesmas acusações. Sem dúvida, porém, se Jó, uma vez mais, não estivesse ali para se defender, as acusações assumiriam facilmente o caráter inverossímil e exagerado que têm no mito. As multidões, cuja histeria não é reprimida por nada, invocam quase sempre como pretexto o patricídio e o incesto. As úlceras de Jó têm um pequeno parentesco com a peste que Édipo supostamente transmite a Tebas. Como a maior parte das histórias bíblicas, o livro de Jó deve remontar originariamente a algum mito, não tão distante de Édipo, certamente, mas esse mito, qualquer que seja, é “maltratado” do lado judeu, por uma inspiração mais radical, mais exigente. O mito é um “caso Jó” narrado do início ao fim pelos perseguidores. Os diálogos de Jó são um Édipo cuja vítima se recusa até o fim a unir-se à voz daqueles que a perseguem. Édipo é um bode expiatório bem-sucedido, pois nunca reconhecido enquanto tal. Jó é um bode expiatório malsucedido. Ele desestabiliza a mitologia que deveria devorá-lo, mantendo seu ponto de vista diante do consenso fabuloso que se fecha em torno dele. Permanecendo fiel a sua verdade de vítima, Jó é verdadeiramente esse herói do conhecimento que Édipo não é, apesar de ser considerado como tal pela tradição filosófica. Para que o consenso geral seja perfeito, é necessária a participação da vítima. É preciso que ela una sua voz à voz unânime que a condena. O que transforma a perspectiva dos perseguidores em verdade indiscutível é a submissão final de Édipo ao 26 veredicto imbecil da multidão. Especialista em revelações espontâneas muito antes que surja o divã da psicanálise, Édipo declara ser ele próprio o Maldito, o Malévolo, o Inimigo de Deus, por isso merecedor de todas as medidas de vingança que se tomarão contra ele. Pouco antes, o coro anunciava a maldição lançada contra o futuro bode expiatório, uma linguagem que lembra os discursos exaltados dos “amigos”: a linguagem da caça ritualizada, sacralizada: Quem é aquele sobre quem a rocha profética de Delfos diz que perpetrará com mãos homicidas a mais infame das infâmias? É bom que ele fuja, agite os pés com força maior que o galope das éguas. Pois sobre ele o filho de Zeus se precipita armado de raios e relâmpagos. E atrás dele, infalíveis, as terríveis deusas da morte. .......................................................................... Ele vai pela floresta selvagem, por cavernas e rochedos, como um touro. Solitário e infeliz, Foge, numa fuga infeliz, Desses oráculos do centro da terra Que sempre o envolvem com seu voo.[3] A tese do bode expiatório que gera o sagrado violento é, por si só, a própria evidência; uma evidência que se teria estabelecido há séculos, se a cultura chamada humanista não tivesse se fechado, como de fato ocorreu, desde o Renascimento, a qualquer influência bíblica. No âmbito da realidade cotidiana, ao contrário, essa influência atuou, e muitas vezes contra aqueles que tinham a pretensão de falar em nome da Bíblia. Em O bode expiatório [São Paulo: Paulus, 2004], inventariei as homologias flagrantes entre os temas edipianos e aqueles que aparecem, antes do linchamento, nas multidões delirantes em seu mimetismo, sempre que o apetite por violência se conforma aessa propensão aguda aos contágios miméticos e às substituições que facilitam o consenso sobre o bode expiatório. Não ignoramos mais de onde surgem esses temas e reconhecemos instantaneamente em todo relato que os tem como verídicos o reflexo da mentalidade persecutória. Os incestos, por exemplo, ou os infanticídios de que foram acusados os judeus na época da peste bubônica, para melhor “responsabilizá-los” por causar a epidemia, não enganam mais ninguém. As violências coletivas têm todas as chances de ser reais, desde que as acusações caminhem na direção do fantástico estereotipado, que se encontra no mito de Édipo. 27 Por que seria diferente aqui e lá? Sabemos perfeitamente que esses temas não surgem num contexto de pura fantasia poética; sua conjunção nunca é inocente, sendo ainda mais sugestiva quando se trata de pôr fim à carreira fulgurante de um emergente. A análise que faço de Édipo à luz de Jó corresponde perfeitamente àquela que fiz no contexto das perseguições históricas. Na verdade, é sempre a mesma análise. Por mais incompreendida que continue sendo pela mentalidade moderna, a Bíblia é por nós bastante conhecida, e em profundidade, para nos conceder o poder único de doravante impedir as cristalizações míticas, identificando nelas as ilusões dos perseguidores. Quero muito que a história da Revolução Francesa seja mítica, em sentido mais amplo; entretanto, ela nunca é suficientemente mítica para se apresentar a nossos olhos em forma de um mito de Édipo renovado. Mas podemos ver muito bem as causas possíveis desse mito na mentalidade persecutória mais grosseira. Se essa mentalidade tivesse sido universalmente imposta, pode-se imaginar sem dificuldade uma fusão de dois personagens num só: o pequeno Luiz XVII, acusado de incesto com a mãe, e Philippe Égalité, votando a morte do rei na Convenção. Não seria preciso mais para reconstituir o Édipo parricida e incestuoso. Esse tipo de cristalização mitológica não consegue se realizar em nosso universo. Ele é logo de cara identificado como tal. Mas esse poder de que dispomos é proibido, literalmente barrado no umbral da “alta cultura”. Não pudemos transportá-lo para os universos diferentes dos nossos, sobretudo o universo “clássico”. Sufocamos desde o início qualquer cristalização mitológica nova, mas não aprendemos a dissolver as que foram recolhidas pelos etnólogos ou enobrecidas pela literatura. Não sabemos, ou não queremos utilizar o recurso privilegiado de desmistificação que a Bíblia colocou em nossas mãos. Talvez temamos, em segredo, que ele nos cause enormes estragos. Nossos eruditos imaginam “não crer no mito”, considerando-o completamente fictício, mas o fato de tomar o parricídio e o incesto por um dado imprescritível é uma crença que perpetua a ilusão persecutória, ou seja, o essencial da ilusão mítica. Os classicistas fiéis recorrem sempre à famosa fatalidade que escamoteia qualquer inquérito sobre as acusações mitológicas e faz do herói trágico um criminoso, sem que ele o saiba; um criminoso devidamente reconhecido, ainda que desprovido de qualquer consciência no crime. Como os amigos de Jó, os comentadores se voltam eternamente ao caso de Édipo e sacodem a cabeça de modo sentencioso. A ideia de que o mito seja por inteiro ficção o torna tão impenetrável quanto a ideia contrária, a do religioso que faz dele a verdade. O humanismo cético é visto como a crítica suprema ao religioso, enquanto na realidade é seu herdeiro, por isso tem todo interesse, como qualquer herdeiro, na multiplicação do capital de que usufrui para não ser secretamente respeitoso. Em condições radicalmente alteradas pela revelação bíblica, o humanismo cético impede a revelação do papel representado pelo mecanismo vitimário na gênese e organização dos mitos. Ele se situa no prolongamento direto do religioso vitimário, cujo segredo protege. O paralelo Édipo-Jó permite estabelecer o tipo de superioridade que se deve reivindicar ao texto bíblico, numa desmistificação verdadeiramente radical que constitui um mesmo todo com a resolução do enigma que a mitologia segue sendo para nós. Há exatamente uma desmistificação trágica e não renego o que disse sobre isso em 28 A Violência e o Sagrado [São Paulo: Paz e Terra, 1998]. É ela que põe em evidência e aciona muitas semelhanças entre Édipo e Jó, mas essa desmistificação não cruza um certo umbral que o texto bíblico é capaz de cruzar. A ação trágica é uma luta de influência dos protagonistas junto ao povo, uma rivalidade mimética, exatamente como em Jó. Édipo por fim perde a partida que poderia ter ganho. Tudo isso é fortemente sugerido por um autor, Sófocles, que minimiza o parricídio e o incesto tanto quanto possível, mas os reassume ao final da “rota antiga”, para não mudar em nada o itinerário. Sófocles não afronta a crença dos “Elifazes” gregos. Ao lado da de Jó, a desmistificação trágica não passa de um esboço, uma veleidade. Como Jó, Édipo em primeiro lugar resiste vigorosamente às acusação de que é alvo. A primeira menção ao parricídio o faz dar de ombros, mas ele acaba se curvando, e sua submissão é velada em confirmação estrondosa de seus crimes. Trata-se de uma verificação aparente dos oráculos, apoiada sobre uma única testemunha, que jamais desmente nem confirma o rumor persistente de um Laio assassinado, não por um só homicida, mas por vários. Depois de repetir por cinco ou seis vezes, ao longo de seu inquérito, que se deve tirar a limpo esse rumor, Édipo não coloca a questão que premeditara. Renuncia à luta e não pensa em nada além de acusar-se a si mesmo de tudo o que os outros quiserem. Esse processo dos múltiplos homicidas faz velada alusão à violência coletiva que os oráculos disfarçam, colaborando com ela, exigindo sempre novas vítimas. Nos múltiplos homicidas de Laio já está evidente a violência coletiva, e mais uma vez a violência coletiva se prepara para acertar as contas com o curioso Édipo. Como não ver uma alusão ao processo vitimário num texto completamente tomado por uma rede de alusões, que desta vez não se podem negar, ao papel de bode expiatório que Édipo acaba representando, de acordo com a trama tradicional? Na primeira cena, o rei diz aos tebanos, que vêm suplicar-lhe para curá-los: “Sofro mais do que cada um de vós, pois eu, vosso rei, devo sofrer em lugar de todos”. Pouco antes da chegada do pastor, Édipo e Jocasta evocam uma vez mais o rumor dos homicidas múltiplos, e Édipo exclama: “Se são numerosos, não sou culpado, pois apenas um homem não pode se pôr no lugar da multidão”. Essa frase remete à anterior, contradizendo-a. Aceitando a realeza, todo homem se expõe ao risco de se tornar bode expiatório, sendo exatamente isso o que Édipo implicitamente reconhecia em sua primeira frase. Chegado o momento de tomar uma decisão dolorosa, Édipo primeiramente tenta esquivar-se, mas por fim deve se curvar. Sófocles demonstra aqui uma clarividência superior, que não o impede, porém, na conclusão de Édipo Rei, de também curvar-se, de também deixar-se enganar, sem nenhuma desconfiança, por esse mito cujo caráter – não simplesmente fictício, mas mentirosamente persecutório – não lhe escapa. Para toda essa análise, sou muito grato às pesquisas de Sandor Goodhart. [4] 29 7 “POR CAVALOS ESTA RAINHA PISOTEADA” Aristóteles marca nitidamente os limites da desmistificação trágica em sua Poética, ao anunciar a proibição, para o dramaturgo, de trazer modificações muito radicais ao conteúdo das histórias legendárias por ele adaptadas. O povo conhece essas histórias de cor e poderia se incomodar acaso o poeta as transformasse muito, sobretudo se essa transformação o privasse (o público) do espetacular castigo de uma vítima. Desprovido desse elemento substitutivo de imolação sacrificial que espera do poeta, o público poderia muito bem voltar-se contra o poeta e adquirir, por sua própria conta, uma catarse de substituição, apontando para as origens violentas de todo espetáculo trágico. De acordo com uma lenda significativa, Eurípedes termina seus dias devorado por cães que se assemelhambastante aos animais linchadores dos amigos de Jó, ou àqueles da rainha Jezabel, no livro dos Reis [2Rs 9,30-37]. São os mesmos cães, os mesmos cavalos, os mesmos animais por todo lado, o mesmo diasparagmos: Por cavalos esta rainha pisoteada, Em seu sangue inumano os cães se saciam, De seu corpo horrendo os membros dilacerados. O poeta de Atalia não poupou referência a esses cães. Não poupou referência às serpentes de Orestes. Também não poupou referência aos cavalos que, mais do que o monstro, são responsáveis pela morte de seu mestre Hipólito, em Fedra. Permitam-me fazer aqui uma digressão, que não é exatamente uma, sobre Racine. Racine nunca deixa de desenvolver com sabedoria, abundantemente, tudo o que as fontes mitológicas ou históricas de fato lhe fornecem, no que diz respeito à violência coletiva e sacrificial – preservando cuidadosamente seu significado religioso. Seja a morte de Pirro num templo, ao pé do altar dos sacrifícios. Seja Ifigênia, seja Erifile, inteiramente sacrificada pelo exército grego: pouco importa. No final de Ester, Amã é lançado à multidão, que o estraçalha. Em Atalia, o fim da rainha é o mesmo que o da mãe. Descrevendo-nos o sonho de Atalia, Racine nos mostra que também ele conhece muito bem “a rota antiga dos homens perversos”. Em seu livro Sobre Racine, Roland Barthes percebeu o papel fundamental do homicídio coletivo, do qual certamente teve a intuição, na medida em que vê na famosa cena do pai da horda primitiva (Totem e Tabu) o denominador comum de todas as intrigas racinianas. A passagem por Freud é confusa, dificultando um pouco o alcance de suas observações. Não há verdadeira tragédia em que o herói não percorra a famosa “rota”, que desemboca no terror final. E se as fontes não fornecem nada nesse sentido, Racine é perfeitamente capaz de inventar o homicídio coletivo de que necessita para suas conclusões. Poderíamos acreditar que não há lugar para tal homicídio em Britânico. Nem o relato de Tácito, nem a natureza da ordem imperial autorizam uma conclusão no estilo de As Bacantes: o esfacelamento de uma vítima, o diasparagmos de um bode 30 expiatório. Entretanto, Junia foge do palácio real. Pelo caminho, encontra uma estátua do divino Augusto, cujos pés molha com suas lágrimas e se mantém estreitamente abraçada a ela. O povo eufórico arranca a virgem de sua proteção. Nero não ousa se mover, mas o diabólico Narciso se lança em perseguição a essa presa: Narciso mais ousado se apressa para agradá-lo, Voa em direção a Junia; e, sem atemorizar-se, Com uma mão profana começa a prendê-la. Com mil golpes mortais sua audácia é punida; Seu sangue infiel recai sobre Junia. César, por tantos objetos ao mesmo tempo golpeado, O deixa nas mãos que o envolveram. Racine inventa com todas as letras o homicídio coletivo que as fontes romanas de modo nenhum sugerem. Anterior em aparência a esse sacrifício, a pureza de Junia é, na realidade, o fruto do sangue vitimário que recai sobre ela. Essa pureza adquire um significado religioso, tornando-se a pureza da vestal.[1] Essa cena é perfeitamente idêntica à cena da morte de Hipólito. O povo exaltado, no caso de Hipólito, são os cavalos revoltados contra seu mestre e que o arrastam (ele também) antes de destruí-lo, às proximidades de um lugar sagrado onde Aricia está a sua espera. Se não é sobre o altar dos sacrifícios que as carnes são despedaçadas, então é ao lado, e sempre o sangue recai sobre a sobrevivente para reavivar ou talvez suscitar a virgem harmonia da aurora pós-sacrificial. Eu vi, senhor, vi vosso filho infeliz Arrastado pelos cavalos que sua mão alimentou. Ele quer que o reconheçam, mas sua voz os espanta; Eles correm: seu corpo todo logo se torna uma só chaga. Nossos gritos de dor por toda a planície ressoam. Sua fuga impetuosa por fim perde o vigor: Eles param não longe desses túmulos antigos Onde os antepassados dos reis são as frias relíquias. Racine percebe e reproduz o papel do animal no homicídio mitológico. Para o martírio de Jezabel, que profetiza o de Atalia, não se contenta com cães vorazes e faz que retornem os cavalos de Hipólito: “Por cavalos esta rainha pisoteada”. Pouco importa se as conclusões racinianas se inspiram inteiramente ou parcialmente nas fontes, ou se não existe fonte alguma. Em certo sentido, elas nunca são imaginárias. O rigor no tratamento da violência e do sagrado é sempre o mesmo, e o que está sempre presente antes de tudo é o homicídio coletivo. É nisso que consiste a famosa imitação dos antigos. Nos mais notáveis, essa imitação é uma apreciação exata daquilo que o funcionamento sacrificial da tragédia exige, e o que vemos sempre, tanto na pura invenção como na imitação mais submissa, é a conformidade rigorosa com os grandes modelos legados pelas tragédias mais próximas da origem sacrificial. Parece que uma conclusão em forma de homicídio coletivo é inverossímil na tragédia mais enclaustrada e confinada de Racine, Bajazet, aquela em que a multidão está obrigatoriamente mais ausente. Entretanto, outro sonho, outro pesadelo, tem como tema exatamente o sonho de Atalia. Porém, mais do que um sonho real, é a loucura de Orestes que recomeça. A infeliz Atalide considera-se perseguida não por 31 aquele cuja perda atribui a si mesma como culpa, mas por todos aqueles e aquelas que amaram Bajazet, seus amigos, seus parentes e todos os seus ancestrais, convertidos numa turba de vingadoras Erínias. E como de costume, poderíamos dizer que os exércitos celestes dos “amigos” se precipitam sobre a vítima. Vejamos os últimos versos da peça: Ah! Só tive amor para te assassinar? Mas já é o bastante: é preciso, por um súbito sacrifício, Que minha mão fiel te vingue e me puna. Vós, de quem perturbei a glória e o repouso; Heróis, todos os que devíeis reviver neste herói, Tu, mãe infeliz que, já em nossa infância, Confiaste-me seu coração numa outra esperança; Desventurado vizir, amigos desesperados, Roxana, vinde todos, contra mim conjurados, Atormentar ao mesmo tempo uma amante perdida; E tomai enfim a vingança que vos é devida. (Ela se mata.) Atalide transfigura seu próprio suicídio em homicídio coletivo, ou talvez seja o sentido verdadeiro de todo suicídio que esses versos fazem surgir, a ausência total de recursos, a hostilidade universal, o avesso da unanimidade persecutória. Esse mesmo sentido profundo do suicídio reaparece em Fedra, que se sente ao mesmo tempo expulsa do céu, da terra e dos infernos. Esse sentimento pode provir do imaginário, evidentemente, em particular nos aspectos paranoicos do indivíduo moderno. Mas será que sempre provém daí, provém daí necessária e originariamente? A perseguição coletiva sempre é apenas uma ilusão de nossos sentidos enganados? As verdadeiras vítimas existem? Sim ou não? Que diferença existe entre o abuso da psiquiatria e a negação dos horrores reais da História? O que verdadeiramente é projetado em todas as “projeções persecutórias” e nos “fantasmas do corpo desmembrado”? Não pretendo dizer quem ganhe em perspicácia de Racine, de Sófocles, de todos os autores trágicos ou do autor dos diálogos. Isso seria perfeitamente ridículo. Sófocles certamente não tem sobre o mito as mesmas ilusões que valorizamos; Racine também não, mas o saber de ambos permanece ambíguo e, por fim, estéril. Ele procede por alusões e conserva sempre algo de esotérico. Ainda que não leve a sério as acusações míticas, Sófocles sugere que Édipo, por sua arrogância, e sua imprudente investigação, tudo fez para provocar o desastre que recai sobre si. Os comentadores veem bem essa atitude de Sófocles, mas não tiram as conclusões que deveriam. Não veem que ela implica um ceticismo radical em relação aos elementos propriamente mitológicos: o parricídio e o incesto realmente cometidos, que trariam realmente a peste a Tebas. Édipo foi o primeiro a se pôr à procura de um bode expiatório e seu mau exemplo se volta contra ele; graças a sua mansidão final, a tragédia se fecha harmoniosamente em si mesma, de tal modo que hoje ninguém (ou quase ninguém) tem a menor suspeita sobreo sistema de ilusão vitimário que ela representa. Mesmo percebendo a injustiça do processo vitimário, o autor trágico não adota o ponto de vista da vítima. Sófocles me parece dizer duas coisas: “As histórias de parricídio e de incesto são banalidades, mas foi Édipo por si só que foi se meter no vespeiro. Ele mexeu com fogo, por isso se queimou. Não sou eu quem vai tirá-lo do 32 embaraço”. Essa indiferença pela vítima enquanto vítima não tem somente consequências morais. Ela impede que o mito se desfaça. Jó é exatamente o contrário. Jó é inconcebível entre os gregos e seus herdeiros modernos. Imaginemos um Édipo inflexível, zombando da fatalidade, e sobretudo do parricídio e do incesto; um Édipo que persistiria em conceber os oráculos como sinistras armadilhas para bodes expiatórios – o que de fato são. Todos ficariam contra ele: os helenistas, Heidegger, Freud e, atrás desses, todo o meio acadêmico. Seria necessário matá-lo de uma vez por todas ou interná-lo num hospital psiquiátrico por recalque insuperável. Tudo isso não resolveria os problemas da civilização ocidental e de sua literatura. A catarse perde sua eficácia e todos os tipos de sublimidades se decompõem de uma só vez. A bela forma trágica, a forma por excelência, não encontra mais seu equilíbrio. Ela carece de conclusão apresentável. Hoje podemos ver bem o que se passa, pois essa forma acaba de se desfazer. Os subterfúgios sacrificiais se esgotaram. Mas quanto tempo não terá sido necessário para chegar a esse ponto! A menor vista-d’olhos no livro de Jó explica o desprezo que se tem pela literatura bíblica. Não faltam repetições e o texto se desintegra de todos os lados. Só o prólogo e a conclusão acrescentados dão uma aparência de unidade a esse caos. Efetivamente, ambos são, um e outro, tão indispensáveis ao esteta quanto ao moralista e ao metafísico. Sem eles, não encontraríamos diante de nós mais do que: ... um terrível amálgama De ossos e carnes destroçadas na lama, Pedaços cheios de sangue e membros horrendos Que cães vorazes disputam entre si. 33 Terceira Parte O MIMETISMO 34 8 “PELO MAL DOS ARDENTES[1] TODO UM PAÍS ACOMETIDO”[2] Uma dimensão essencial da tese vitimária resta ainda a ser resgatada: o mimetismo. Penso que todas as condições de sua presença estão aqui reunidas. O prestígio perdido de Jó provavelmente foi uma aquisição pessoal. Jó não o devia, ao que parece, a nenhuma função que teria ocupado, nem a sua hereditariedade. Pelo prazer que tal prestígio lhe causava, pode-se adivinhar que ele não o possuiu sempre. Foi um homem que caiu de posição. Que posição poderia ser essa? A primeira, provavelmente, embora Jó não fosse o único a ocupá-la. Evidentemente, ele pertence à classe mais abastada, da qual os três amigos, Elifaz de Temã, Baldad de Suás e Sofar de Naamat, também devem fazer parte. Estamos diante de membros de uma elite que domina a vida política local. Seus membros mais ousados se esforçam por aumentar seu poder, atraindo para si a simpatia popular. Jó era o grande vencedor nesse jogo; depois, de uma hora para outra, perdeu tudo. Por quê? Para ser tão insanamente incensado e venerado como fora antes de se tornar bode expiatório, certamente terá sido suficiente para Jó, numa sociedade tão instável como a sua, um primeiro sucesso que fez dele o primus inter pares. Os desejos das pessoas de sua classe se concentraram sobre essa primeira diferença, engrandecendo-a excessivamente. Foi a elite, primeiramente, que tomou Jó como modelo, que o adulou, o venerou e o imitou servilmente. O resto do povo veio atrás, imitando os primeiros imitadores. A prova dessa adulação entre os amigos é justamente esse título de “amigos” que ninguém lhes contesta, quando na verdade se comportam como inimigos de Jó. Deve- se pensar que entre eles e ele existiu uma verdadeira amizade, uma intimidade real? Nada viabiliza tal suposição. Os três são “amigos” no sentido em que, até uma data não muito distante nessa sociedade, todo mundo se considerava e podia se dizer “amigo” do ilustre personagem. Essa amizade nada mais é do que outro nome dado à bajulação do capítulo 29. A ausência de distância social favorece a imitação recíproca dos iguais. Jó se confunde com seu sucesso, de modo que desejar esse sucesso é desejar o próprio Jó, o ser incomparável de Jó. Essa identificação é eminentemente concorrencial, por isso mesmo ambivalente logo de cara. Em sua classe social, Jó tem apenas rivais que se esforçam por alcançá-lo. Todos eles querem se tornar essa espécie de rei não coroado que ele era. Mas a realeza, por definição, não pode ser partilhada. Jó não pode ser bem-sucedido, como de fato ocorre, sem provocar em seu meio uma inveja impressionante. Ele é o modelo obstáculo da teoria mimética. Ele suscita o ressentimento nietzschiano; o movimento da admiração sempre vem se chocar – ó escândalo! – contra a barreira que o modelo se torna para ela. Pelo fato mesmo de repousar sobre o desejo mimético, a 35 fascinação exercida pelo rival extremamente feliz tem a tendência de se converter em ódio implacável; de fato, ela sempre esteve impregnada por esse ódio. É entre pessoas socialmente próximas que floresce o tipo de fascinação odiosa que transparece em quase todas as palavras dos amigos. Se os amigos evocam a glória passada de Jó, como o próprio Jó também o faz, não é pelas mesmas razões que ele, mas para lhe dar uma lição, maldosa e ironicamente. Eles se satisfazem com o contraste entre o presente e o passado. Sua inveja certamente devia ser muito forte para sobreviver à queda do ídolo. Com uma alegria um pouco obscena, eles lembram a Jó sua mudança de ventura; de algum modo, eles corroboram a própria felicidade: Se alguém se dirigisse a ti, perderias a paciência. Porém, quem pode refrear-me as palavras? Tu que a tantos davas lições e fortalecias os braços desfalecidos, com tuas palavras levantavas o trôpego e sustentavas joelhos cambaleantes. E hoje que é a tua vez, vacilas? Perturbas-te, hoje, quando tudo cai sobre ti? (Jó 4,2-5). A inveja não teria o poder propriamente extraordinário que tem nas sociedades humanas se os homens não tivessem a tendência de imitar reciprocamente seus desejos. A inveja nada mais é do que essa reprodução recíproca dos desejos, em condições de igualdade suficientes para assegurar o desenvolvimento das rivalidades miméticas. A inveja dos “amigos” e das pessoas de seu meio é essencial na passagem da primeira unanimidade mimética à segunda. A igualdade de condições aumenta a duplicidade fundamental das reações miméticas inspiradas pelo “grande homem”. Mas se a imitação e o desejo são modulados de maneira diferente, em níveis sociais diferentes: no fim das contas, encontramos ambos em todos os níveis, de modo que a frustração do modelo obstáculo é universal. Nunca há diferença essencial entre os amigos e o resto do povo. Na falta de poder atingir seu fim mais direto, o feed-back da rivalidade, a retroação recíproca do modelo e do obstáculo, intensifica a frustração que acaba sempre por aceitar vítimas de substituição, mimeticamente designadas. Mas o mimetismo da substituição sacrificial não é profundamente diferente do mimetismo invejoso presente nos amigos. A multidão é um amplificador de retardamento das reações sucessivas da elite e, até certo ponto, a recíproca é verdadeira. A inveja só pode ter nascido entre Jó e seus pares; aqui, seu nascimento é mais do que provável. Após uma fase de imitação positiva, ela teve de crescer subterraneamente entre os “rivais” naturais de Jó, porém, para se manifestar mais diretamente, foi preciso que ela aguardasse um primeiro erro, algum incidente que, ao ser explorado com maestria, pudesse arruinar a popularidade de Jó junto ao povo. Ao menor passo em falso, espreitado de todos os lados, o ídolo corre o risco de se converter em bode expiatório. O mimetismo da inveja e do ódio se propaga com tanta rapidez quanto o mimetismo da admiração. É o mesmo mimetismo, transformado pela transmutação do modelo em obstáculo e escandalizado por essa metamorfose.Descendo às camadas inferiores da sociedade, encontramos pessoas que não podem rivalizar pessoalmente com Jó, mas que são bastante oprimidas para adotar cegamente, 36 mimeticamente, os bodes expiatórios que se põem ao seu dispor, os inimigos daqueles que as oprimem. Elas podem então extravasar seu rancor permanente sobre as vítimas mais desejáveis, as mais prestigiosas, aquelas que, ainda ontem, exerciam sua onipotência. A queda de Jó na opinião pública provavelmente teve seu início no círculo social de Jó e em seguida se propagou em direção às camadas mais baixas. Os intocáveis do capítulo 30 jamais ousariam atacar Jó, como de fato o fazem, sem o encorajamento da classe superior. Trata-se apenas de uma conjectura: os discursos dos amigos são um estímulo à violência popular. Deve existir, portanto, um certo descompasso temporal entre as reações da elite e as da multidão. Esse descompasso permite que se interprete um tema importante, o qual ainda não citei, embora esteja presente no discurso de Elifaz sobre “a rota antiga dos homens perversos”. É o tema da vingança divina retardada. Enquanto são seus inimigos declarados, os homens perversos sempre são cumulados por Deus de bens. Por que essa longa indulgência da divindade? É muito fácil, uma vez mais, considerar esse tema “puramente” imaginário, dando como pretexto ser ele religioso. No tema do auxílio divino que se detém exageradamente sobre o malvado, a porção de realidade pode ser deduzida das observações precedentes. Esse período ao longo do qual os malvados, os malditos, gozam do patrocínio divino tem duração suficientemente longa para conduzir os “justos” às margens do desespero. O que isso quer dizer? Por que a divindade demora tanto para destruir seus inimigos? Ela poderia ser tapeada por eles? É impossível. A resposta clássica no interior do religioso vitimário afirma que, muito longe de se enganar, a divindade recorre à estratégia, armando uma cilada diabólica àqueles que se rebelam contra ela. Ela estimula neles a arrogância, que acabará se lhes tornando fatal. Por si só, essa resposta sugere uma participação popular na vingança divina. Quanto mais os benefícios divinos se demoram sobre os malvados, mais sua arrogância aumenta. Se a divindade cultiva essa arrogância, não é porque precise dela para formar uma opinião sobre a maldade dos malvados. A arapuca que arma para eles mostra que ela já os condenou. A arrogância do perverso não excita a divindade, mas o povo, ainda encantado. Ela suscita em muitos homens uma inveja legítima, um ressentimento justo. Ela facilita a mobilização geral dos exércitos celestes. Se a divindade se encarregasse sozinha de aplicar a pena, toda essa manobra seria inútil. Ainda aqui, ela recorre visivelmente ao intermédio de uma multidão que dá demonstração de longa paciência, mas que acaba por desfazer-se do próprio estupor diante dos excessos daqueles que souberam ganhar seu favor. A divindade protela sua intervenção, para que possa tornar a queda dos perversos tão espetacular e cruel quanto possível. Caso se rejeite a concepção sádica do divino implicada em tudo isso, será preciso interpretar bem essa ideia de vingança retardada em relação aos sentimentos invejosos que podemos pressentir nos amigos de Jó. Os rivais infelizes dos poderosos ficam impacientes diante da relativa estabilidade de um poder forçosamente contrário – segundo eles – à vontade divina, porque lhes ofusca o brilho. Eles gostariam de apressar o curso provável das coisas, mas não ousam se opor abertamente àqueles a quem a ralé ainda não deixou de venerar. 37 Se Jó tem razão em pensar que os Elifazes, os Baldades e os Sofares poderiam representar em seu lugar o papel de bode expiatório, isso quer dizer que eles também poderiam ter representado o papel de ídolo popular, e possivelmente terão uma segunda chance após a queda de Jó. É exatamente essa possibilidade, barrada até aqui por Jó, que fazia deles oponentes irredutíveis. Eles se sentiam oprimidos, talvez até realmente o fossem, mas eram sobretudo humilhados. A emoção fundamental é a rivalidade mimética, a inveja que inspiram concorrentes muito felizes. O deus feroz da tradição imemorial é aqui a máscara dessa inveja. Jó vê perfeitamente que o bode expiatório é intercambiável com aqueles que o perseguem do modo mais feroz: os pretensos amigos. Ele alude a essa mudança de situação para mostrar que a única diferença verdadeira é causada pelo sofrimento: Também eu poderia falar como vós, se estivésseis em meu lugar; poderia acabrunhar-vos com discursos levantando sobre vós a cabeça, vos confortar com palavras, e depois deixar de agitar os lábios. Se falo, não cessa minha dor; se me calo, como ela desaparecerá? (Jó 16,4-6). Os grandes homens são muito populares para sucumbir logo em seguida às intrigas que proliferam em seu redor. A inveja mimética bajula durante muito tempo na surdina. Eis o significado, em minha opinião, do “atraso” da vingança divina. Mas a opinião se cansa de seus ídolos; ela acaba por queimar aquilo que adorava, no esquecimento de sua própria adoração. É esse o “triunfo” dos amigos e o momento em que se situam os diálogos. 38 9 O SALMO 73 Nessa ideia de que a inveja de que Jó é alvo não é explícita, meu raciocínio conserva um caráter conjectural. Os amigos, particularmente, não dizem nada a respeito disso, é claro. Jó não faz mais do que alusões a isso. O texto que uniria diretamente a inveja mimética ao fenômeno do bode expiatório sacralizado não se encontra em Jó, mas em outro lugar da Bíblia: no Salmo 73, que é ao mesmo tempo muito próximo e muito diferente daqueles que citei como exemplo: muito próximo pelo assunto e muito diferente pela perspectiva. O narrador se apresenta como um justo, fiel à divindade verdadeira, por muito tempo desanimado pela aparente inércia da justiça divina. Ele relata explicitamente a inveja que lhe inspirava a carreira demasiado brilhante daqueles que apresenta, evidentemente, como ímpios. Felizmente, a divindade por fim toma a decisão de intervir. Contrariamente aos outros salmos trágicos, sempre escritos a partir do ponto de vista da vítima, esse é um dos salmos, muito raros, que refletem a outra perspectiva: a dos amigos. De fato, é o único a respeito do qual se pode afirmar – sem hesitação, ao que me parece – que reflete a perspectiva dos perseguidores: Por pouco meus pés tropeçavam, um nada, e meus passos deslizavam, porque invejei os arrogantes, vendo a prosperidade dos ímpios. Para eles não existem tormentos, sua aparência é sadia e robusta; a fadiga dos mortais não os atinge, não são molestados como os outros. Daí a soberba, cingindo-os como colar, a violência, envolvendo-os como veste. A maldade lhes brota da gordura, seu coração transborda em maus projetos. Caçoam e falam maliciosamente, falam com altivez, oprimindo; contra o céu colocam sua boca e sua língua percorre a terra. Por isso meu povo se volta para eles e águas em abundância lhes vêm ao encontro. ............................................................................. Até que entrei nos santuários divinos: entendi então o destino deles! De fato, tu os pões em ladeiras, tu os fazes cair, em ruínas. Ei-los num instante reduzidos ao terror, deixam de existir, perecem, por causa do pavor! (Sl 73,2-19). O indivíduo que se dirige a nós por muito tempo conteve sua cólera perante um homem, um grupo de homens, por muito tempo popular, mas cujo sucesso estrondoso 39 terminou abruptamente no “horror” e no “pavor”. Uma vez mais, estamos diante da “rota antiga”. Os personagens em questão a trilharam até o precipício final, e se existisse uma lista de “homens perversos”, seus nomes poderiam integrá-la, ao lado do de Jó. O narrador se alegra, em suma, diante de um desastre semelhante ao que se abate sobre Jó. Ele se faz aprovador e cúmplice de uma violência coletiva que encara como divina. Ele nos permite imaginar as reflexões íntimas dos inimigos de Jó, aquelas que os três amigos guardam para si. A prova de que o essencial aqui é a exaltaçãodo povo pode ser lida na frase: o “povo se volta para eles”. Na ótica do narrador, o povo garante o sucesso das pessoas que não deveriam ter êxito, mas mesmo assim se tornam bem-sucedidas e seus abusos de poder duram tanto quanto o apoio popular de que usufruem. A longa carreira dos “malvados” desesperava o justo e suscitava nele uma inveja que, desta vez, aparece com todas as letras. Essa inveja era tão forte que quase convenceu o assim chamado justo a renunciar a qualquer oposição, a seguir o exemplo dos malvados, possivelmente fazendo-se seu adulador. Felizmente o narrador se manteve firme. A queda dos perversos se produziu no tempo exato para restabelecer a credibilidade da justiça eterna e libertar o invejoso de sua inveja. Aquilo que ele concebia como inércia da divindade era uma temporização sábia. O justo não compreendera ainda que se tratava aí de uma verdadeira estratégia divina. Até que entrei nos santuários divinos: entendi então o destino deles! De fato, tu os pões em ladeiras, tu os fazes cair, em ruínas. A queda final dos perversos é percebida como uma dupla vitória: para a divindade e para o justo tão humilhado. A derrota se fez esperar demoradamente, é certo, mas não se deve nunca desesperar. A opinião pública, por muito tempo fiel a seu favorito, muito mais tempo fiel do que a elite invejosa gostaria, acaba sempre por se livrar de sua apatia e acertar as contas com os miseráveis. Quando um homem se eleva acima de nós e nos torna a existência insuportável, é certo que ele também a torna insuportável para muitas outras pessoas. Pode-se esperar, portanto, que cedo ou tarde o mecanismo da revolta popular seja acionado. Quanto mais tempo levar para ser acionado, mais lenta parecerá a justiça divina, ou mesmo duvidosa, mas ela recuperará, no fim das contas, sua reputação de infalibilidade. O justo identifica muito bem a inveja ainda moderada de sua imitação positiva, porém, não consegue perceber quando ela se intensifica, sob efeito do obstáculo, do escândalo, do triunfo dos “malvados”, o qual converte em ódio. Contudo, se há uma inveja que mereça esse nome, é exatamente essa. O justo interpreta sua contraimitação, seu ressentimento mais intenso, como diferentes da inveja, quando na verdade consistem em seu paroxismo. Ele vê aí o bom sentimento por excelência, o fervor religioso em seu estado puro. Ele deixa subsistir apenas um elemento de mistificação, o que é o principal. Ele se assemelha, portanto, aos amigos cuja inveja tão intensa se metamorfoseia em histeria religiosa. O Salmo 73 não vai no sentido da inspiração bíblica mais elevada, a que faz ouvir a 40 voz da vítima. Ele se aparenta à voz dos amigos no livro de Jó. A inspiração mais elevada é a de Jó, a única especificamente bíblica, a única sem equivalente verdadeiro no universo grego e onde quer que seja. Esse texto, todavia, tem seu lugar no conjunto constituído pelos salmos da vítima coletiva. Podemos certificar-nos disso se compararmos seu papel ao papel dos interlocutores de Jó. Se a Bíblia simplesmente transferisse, dos perseguidores para as vítimas, o monopólio da palavra, se ela substituísse uma “moral dos escravos” pela “moral dos senhores”, como acredita Nietzsche, a revelação não seria tão poderosa quanto de fato é, sobre o plano moral, tanto quanto sobre o plano intelectual, os quais, em verdade, são a mesma coisa. Não seríamos convidados a confrontar perpetuamente as duas perspectivas. A Bíblia não seria mais do que a represália simbólica ou real à qual Nietzsche limita o processo bíblico. Ela voltaria sempre a um processo de dualidades miméticas, uma inversão de signos sem significação essencial. Com efeito, ela é exatamente outra coisa. Na tragédia grega, encontramos reflexões muito semelhantes àquelas do Salmo 73. O coro se mostra indignado com o sucesso dos arrogantes e a ação divina desperta nele uma tentação de ceticismo e impiedade. De que adiantaria servir os deuses se a hybris[1] permanecesse impune? No fim das contas, felizmente, a hybris sempre é punida. Uma ascensão muito rápida tem como resultado uma queda precipitada. Ésquilo, Sófocles, Eurípides, todos eles tecem comentários sobre a afinidade recíproca entre a extrema elevação e a extrema degradação. O coro celebra a própria mediocridade, que considera apaziguadora. Os destinos barulhentos atraem a ira divina. A sucessão violenta dos tiranos corresponde à “rota antiga dos homens perversos”. Podemos perceber uma instabilidade cuja dimensão política é evidente, essencial, mas as interpretações que se limitam aos aspectos políticos são falseadas pela tendência que os comentadores têm de favorecer o tirano ou, o que ocorre com maior frequência, a multidão. Ao introduzir significações anacrônicas a essas questões, ou seja, ao tomar partido, desconhecemos sempre e obrigatoriamente o verdadeiro centro de gravidade do processo, o mecanismo do bode expiatório, ainda parcialmente sacralizado. A completa dimensão religiosa desses acontecimentos é o que permanece dissimulado por trás da dimensão política. O religioso primitivo nunca é inútil. Nossa ignorância o faz subsistir como superstição “pura e simples”. Mas para identificar sua porção de verdade, é preciso desagregar dele os “paradoxos” do desejo mimético transfigurados pela sacralização que os coroa. Uma vez compreendido o papel representado pela multidão histérica na religião violenta, pode-se separar o verdadeiro trigo do joio e tirar proveito daquilo de real que a linguagem do sagrado guarda consigo, sem ter medo de ser por ela enganado. Como a tragédia grega, os Profetas, os diálogos de Jó e os Salmos refletem enormes crises, políticas e sociais certamente, mas religiosas também, as quais constituem uma mesma realidade com a decadência dos sistemas sacrificiais ainda em uso nas duas sociedades. Estamos no ponto de junção entre um religioso ainda sacrificial, em sentido estrito, e um político sacrificial, em sentido amplo. Em certos pontos, já é possível traduzir o discurso religioso para o discurso político, e vice-versa. 41 Graças aos trabalhos do CREA[2] e de outros ainda, essas possibilidades aumentam rapidamente, mas seu desenvolvimento há de sacudir tantas coisas nas ciências sociais, que se pode estar preparado para fortes resistências. 42 10 A TORRENTE DAS MONTANHAS Nos diálogos, as condições favoráveis a todos os fenômenos miméticos estão visivelmente reunidas. A combinação entre imitação positiva, primeiramente, “negativa”, em seguida, e ressentimento imitativo propagado pelos amigos e as pessoas de sua espécie: dá perfeitamente conta das duas unanimidades sucessivas e da ordem de sua sucessão. Encontraremos nos diálogos referências explícitas a esse duplo mimetismo? Seria pedir muito a um autor que não é filósofo, nem teórico, e que não dispõe de uma linguagem adequada para falar dessas coisas... Sem dúvida, mas são sempre os filósofos e os teóricos que deixam o desejo mimético passar despercebido e são os “poetas” que o apreendem. Os diálogos não são exceção. O desejo mimético se revela numa grande metáfora que traduz a complexidade das relações que ele suscita, tanto quanto sua miséria extrema, sua essencial pobreza. Não é possível sonhar com algo que equivalha de modo mais simples e mais luminoso àquilo que Eric Gans chamaria o “paradoxo” dessas relações:[1] Meus irmãos atraiçoaram-me como uma torrente, como canais de um rio que transborda, tornando-se turvo pelo degelo e arrastando consigo a neve. No tempo de verão, porém, desaparece, ao vir o calor extingue-se em seu leito. As caravanas desviam-se de sua rota, penetram no deserto e se perdem. As caravanas de Tema procuram-no, e os mercadores de Sabá contam com ele: mas fica burlada a esperança, ao encontrá-lo ficam decepcionados (Jó 6,15-20). Num clima semiárido, os cursos de água jamais fornecem aos homens o que eles desejam. Com o derretimento da neve, quando a água superabunda, eles transbordam, mas no resto do ano, quando a sede impera, só resta areia. Na época em que todo mundo se precipitava aoredor de Jó, os falsos “amigos” multiplicavam suas ofertas de serviço. Hoje, Jó precisa de apoio e todo mundo se esvai. Como a água ao calor do sol, as atitudes de bondade evaporaram. De amigos verdadeiros, esperamos que eles nos apoiem nos momentos de adversidade, quando o mundo nos hostiliza. E quando vis bajuladores nos rodeiam, esperamos uma severa vigilância. Não existe amizade verdadeira sem independência nem coragem. Somente uma grande capacidade de resistência aos impulsos miméticos pode garantir essa independência. Todos os sentimentos miméticos se entendem bem. Os excessos estúpidos da moda desembocam na expulsão feroz dos bodes expiatórios. Virtude rara e preciosa entre todas: a imunidade ao mimetismo. 43 Longe de possuir essa virtude, os amigos vão sempre ao encontro da sedução mimética mais forte, como todo mundo... ao encontro da maioria, como todo mundo... Em qualquer circunstância, eles prejudicam os interesses de Jó. Nunca se pode contar com eles; se você quiser que eles perseverem amanhã na atitude que têm hoje, certifique-se primeiro sobre a constância da multidão. Jó vê lucidamente o que se passa com ele. “Não acharei sequer um sábio entre vós” (Jó 17,10), grita em seu desespero. Aqueles que atiçam o ódio popular contra Jó, ainda ontem disputavam um lugar na primeira fila de seus aduladores. Parece que eles mudaram, mas a mudança faz parte de sua natureza mimética. É o contrário da liberdade. Eles são somente uma pequena porção da multidão. Jó diz: “Meus irmãos atraiçoaram-me como uma torrente”. A que, precisamente, se aplica essa metáfora? Se a palavra “irmãos” designasse apenas os três amigos, os interlocutores diretos de Jó, a metáfora não seria pertinente. É preciso que ela se aplique à comunidade toda, que tão pouco se distingue dos amigos. Hoje está chovendo e os amigos são gotas de água junto às outras gotas de água. Se amanhã fizer sol, nós os veremos junto aos grãos de areia no deserto escaldante... As duas unanimidades que fazem de Jó alternativamente um ídolo e um bode expiatório correspondem à cheia primaveril, a primeira delas, e à seca absoluta, a segunda. Se os três amigos não fossem sempre submetidos à moda do momento, como todo mundo, não haveria unanimidade. O mimetismo dos três os torna representações perfeitas de uma comunidade que é, ela própria, mimética. Se todos os cidadãos comparecessem em pessoa ao redor de Jó, não aprenderíamos nada que já não soubéssemos. Os três camaradas são suficientes, assim como o coro na tragédia grega. A metáfora da torrente não expressa somente a ausência do mais desejável, qualquer que seja, mas também a presença superabundante e sufocante do indesejável, qualquer que seja também. Esse maldito riacho sempre acaba trazendo a coisa de que nos priva e a qual nos faz desejar, porém, no exato momento em que a traz, não a desejamos mais, fugindo dela como de uma epidemia, e a partir de então é exatamente ela a peste. O que era impossível de se encontrar ainda ontem não poderia deixar de sê-lo senão para se oferecer em quantidades razoáveis, mas eis que ele surge por toda parte, invade tudo, suplanta tudo, causando náusea. Estamos fartos dele. Acreditamos estar vinculados a ele para sempre e nos vemos nessa situação por toda uma estação. Nós o enviamos ao diabo. Essa ausência de moderação, essa conjunção perpétua da falta e do excesso caracterizam o universo entregue ao mimetismo. A rivalidade resulta naturalmente da imitação dos desejos, de modo que o mimetismo acaba considerando o rival triunfante como indispensável. Ele dá prioridade ao obstáculo em relação ao modelo. Ele escolhe o modelo em função do obstáculo. Se nada o contraria, o mimético-masoquismo deixa de desejar. Ele não vê mais modelo digno de ser imitado. O desejo se põe em busca de um obstáculo “melhor”, mais resistente, intransponível. Ele nunca fica sem encontrá-lo. E o que não o interessa mais, logo em seguida se interessa por ele. Os outros mimetismos também estão à procura de obstáculo. Somente a indiferença os atrai e os fixa duravelmente, pois ela constitui o obstáculo irredutível. No mercado do desejo, a oferta se distancia instantaneamente de 44 tudo aquilo que constitui o objeto de uma demanda, e se acaso for a demanda a se dissipar, a oferta prolifera monstruosamente. O desejo faz cara feia a tudo o que se mostra acolhedor, complacente. Tudo o que se retira, ao contrário, o atrai; tudo o que o repele, o seduz. Ele mesmo cava, sem perceber, o leito dessa torrente que o atraiçoa sempre. Ele imagina o mundo do modo como é projetado por sua distribuição absurda do desejável e do indesejável. A diabólica torrente é sua natureza cíclica, a promessa – que ele sempre acaba cumprindo, mas sempre muito tarde – de conceder aos homens aquilo de que os priva o ano inteiro. Mudando periodicamente seus dons e suas recusas, ela reanima sempre os desejos que nunca satisfaz. As águas de que as caravanas têm urgente necessidade eram tão abundantes no dia anterior, que não se torna inconcebível seu completo desaparecimento no instante preciso em que essa necessidade aparece. Sem solução de continuidade, a metáfora faz brotar da única torrente os comportamentos do desejo normal e aqueles do desejo que vai em direção à morte, repelindo com elegância e simplicidade o falso bom senso que exige pelo menos duas causas para explicar efeitos demasiado contrários em aparência: a dualidade, por exemplo, de um “princípio do prazer” e de um “instinto de morte”. Um único princípio basta para tudo. Não se pode conceber uma máquina composta por tão poucos elementos a suscitar contratempos tão numerosos, uma máquina mais sistematicamente contrariadora e decepcionante, porque sempre e ao mesmo tempo sedutora. Assim é o desejo mimético. Trata-se de uma armadilha tão estupidamente engenhosa, tão hábil em produzir a infelicidade dos homens nas circunstâncias mais diversas, que parece exceder o poder de invenção que lhes é próprio. Considerando-se desonrados por tão grande simplicidade, embora a serviço de uma certa complexidade (Jean-Pierre Dupuy),[2] os semi-hábeis não querem saber nada disso e dizem que o desejo mimético é simultaneamente inexistente, ilusório e mais do que conhecido por todo mundo. Os que percebem do melhor modo possível esse desejo ficam tão espantados que acabam por atribuí-lo às maquinações hostis de um espírito maligno. O demônio só tem um objetivo, o que é indiscutível: prejudicar a humanidade. O diabo do prólogo representa o papel que os três amigos transferem para Deus, e é esse o papel da torrente na metáfora de Jó: é sempre o mimetismo que deixa a comunidade fora de si. O desejo vê suas projeções como realidade. A imagem da torrente descreve o mundo não como ele é, mas como ele se manifesta aos homens, quando seu desejo se intensifica, quando caem por terra as proibições que ainda os protegiam das rivalidades implacáveis. Mas a imagem da torrente descreve também uma metamorfose objetiva do mundo. O que primeiramente é apenas aparência subjetiva, o desejo transforma logo em realidade, porque o mesmo não surge onde quer que seja sem causar estrago. Sendo mimético, ele dissemina o mimetismo por todo lado e, sem nunca fazer nada, trabalha de modo eficaz para sua própria difusão. Seus efeitos sempre multiplicados são para nós cada vez mais refletidos, para nosso prejuízo, pelo espelho mimético do desejo do outro e o mundo realmente se torna do modo como nosso desejo nos permite ver. Quanto mais mimético for o desejo, mais o mundo se tornará enganador e 45 decepcionante, no sentido da torrente de Jó. É essa a profecia autorrealizadora de Jean- Pierre Dupuy.[3] Se eu penso viver num mundo em que só merece ser buscado aquilo que se esquiva e de modo nenhum aquilo que se oferece, estou colaborando ativamente para a fabricação de tal mundo. Minha visão subjetiva e o real entram logo em acordo para fazer sumir tudo o que merece ser desejado e para produzir em quantidades sempre mais monstruosas o indesejável e o insignificante. Numa sociedadeem que esse desejo impera, todos contribuem para tornar a existência árida, mas ninguém se dá conta disso. Como numa sociedade bem ordenada, cada um sempre faz apenas aquilo que vê fazerem ao redor de si. É exatamente isso o que mostram Paul Dumouchel, Georges-Hubert de Radkowski e os economistas do desejo.[4] Imensas regiões do planeta se transformaram em desertos: ao que tudo indica, por causa do uso que os homens fizeram delas, por causa de seu desejo. Quanto mais o deserto se estende em nós, ou fora de nós, maior se torna a tentação de incriminar o real, ou o próprio Deus, ou, o que é pior, o próximo, o primeiro Jó que aparecer... Num universo de desejo mimético, todos os indivíduos tendem a se expulsar uns aos outros – portanto, a si mesmos – para diferentes tipos de desertos. Se observarmos esse parentesco secreto entre as situações individuais, essa alienação idêntica em todos e que isola todos de todos, compreenderemos sem dificuldade que o apetite por violência cresce e pode finalmente se saciar no momento em que a tendência global à uniformidade favorece as substituições e as polarizações miméticas sobre uma vítima qualquer, ou talvez sobre uma vítima não completamente qualquer, uma vítima mais exposta, por estar em maior evidência, uma vítima predestinada, de algum modo, por sua posição excepcional na comunidade... como Jó. 46 Quarta Parte DO MECANISMO AO RITUAL 47 11 O TOFET PÚBLICO[1] Compreender o papel do duplo mimetismo na história de Jó é compreender aquilo que impulsiona as sociedades humanas a seguir cegamente certos indivíduos e, depois, a se voltar contra eles, não menos cegamente. Nossas ciências humanas tentam fazer o retrato típico do chefe, imaginando determinadas noções, como a de carisma. Observe, a propósito, a linguagem do sagrado. Carisma vem de Charis, Graça, que é uma divindade mitológica. Procura-se definir o carisma como se ele constituísse um traço da personalidade individual, como se ele pertencesse ao chefe da mesma maneira como lhe pertencem a cor dos cabelos e o formato do queixo. Se fosse verdade, o carisma do chefe não se transformaria tão facilmente em anticarisma, ou contracarisma do bode expiatório. A teoria mimética permite compreender como o mimetismo do modelo obstáculo, fonte secreta de homogeneidade conflituosa, pode desembocar na adoção mimética de um único e mesmo modelo obstáculo: o bode expiatório de todos, sem exceção. Polarizando, de uma só vez, todos os antagonismos sobre um único e mesmo adversário, o processo vitimário os elimina, pelo menos temporariamente, eliminando sua vítima. Ele restabelece a paz de um modo que parece propriamente milagroso e a unidade imediatamente refeita amplifica seus efeitos, dando-se como a intervenção de um poder sobrenatural. Este nada mais é do que o bode expiatório em si mesmo, já marcado, para esse papel, pelo poder maléfico de que é considerado possuidor. É aí que se deve situar a origem do sagrado violento, muito propagado nas sociedades humanas, e sobretudo muito estreitamente disseminado nas operações culturais, sociais, políticas e técnicas mais concretas para se reduzir à superstição pura dos positivistas, ou à neurose coletiva dos psicanalistas. Estamos aqui num momento crucial da teoria. A eficácia psicológica, moral e social do bode expiatório forma um mesmo todo com sua função religiosa, pois ela faz de seu mecanismo a fonte por excelência de toda transcendência social. Em nossos dias, os fenômenos de bode expiatório que percebemos ao nosso redor nos permitem observar apenas aspectos marginais e praticamente insignificantes dessa eficácia. Dessa ineficácia relativa do fenômeno diretamente observável, extraem-se argumentos para negar que ele seja capaz de engendrar o sagrado. Para muitas pessoas, a ideia de uma eficácia maior do bode expiatório parece fantasiosa, inacreditável e, ao mesmo tempo, perigosa, escandalosa, ruim de se dizer, como se o fato de falar disso servisse a essa ideia, fornecendo-lhe a aprovação moral que lhe faz falta em nosso universo. Não creio que o silêncio seja jamais preferível à verdade. De qualquer maneira, o silêncio já foi quebrado. Chegamos um pouco tarde para esse tipo de revelação. Jó nos ultrapassou. Ele mesmo define sua eficácia de bode expiatório, bem superior, como parece, àquilo que podemos observar entre nós. No entanto, é para enfraquecer o sistema que ele expõe sua eficácia, não para reforçá-lo, ou celebrar seus méritos, nem 48 para fornecer-lhe uma garantia moral, elogiar suas comodidades, nem nos aconselhar a estabelecer um método de governo. Os perseguidores fazem tudo isso, sem sequer perceber. Os que recorrem aos bodes expiatórios não falam dele, não sabem dele. Os que falam dele, não se utilizam dele ou, quando o fazem, nunca se utilizam daqueles de que falam. Tornei-me objeto de sátira entre o povo, alguém sobre o qual se cospe no rosto. Meus olhos se consomem irritados e todos os meus membros são como sombras: os justos assombram-se ao vê-lo, e o inocente indigna-se contra o ímpio; o justo, porém, persiste em seu caminho, e o homem de mãos puras cresce em fortaleza (Jó 17,6-9). O sofrimento e a ruína de uma vítima, ainda que não merecidos, constituem um fator de boa conduta entre os homens, um princípio de edificação moral, um tônico milagroso para o corpo social. O pharmakos se converte aqui em pharmakon: a vítima propiciatória se transforma em droga maravilhosa, certamente terrível, porém, na dose certa, capaz de curar todas as doenças. Se Jó realmente quisesse representar seu papel docilmente, mais tarde não faltaria quem fizesse dele novamente um grande homem, talvez uma divindade maior. Maldizer Jó em uníssono é cumprir a vontade divina, na medida em que seja fortalecer a harmonia do grupo, aplicar um bálsamo poderoso às chagas da comunidade. Os três amigos nada mais fazem do que isso. É preciso fazer um comentário sobre o comportamento de todas as “pessoas de bem” de que se fala nessa passagem. É preciso incluir entre os benefícios da operação o comportamento dos intocáveis que maltratam Jó. Graças ao bode expiatório, mesmo os mais renegados tomam parte numa atividade social reconhecida; graças a Jó, em suma, estes se integram um pouco à sociedade que os exclui. Mas a questão aqui não é mais essa canalha: estamos no outro extremo da escala moral e social, e a mesma coisa exatamente se produz. Os inocentes, os justos, os homens de mãos puras extraem um grande reconforto no infortúnio do bode expiatório. Lembre-se do Salmo 73. Se nossa tradução estiver exata, Jó descreve aqui o efeito benéfico que a perseguição injusta produz em sua comunidade. Não conheço outro texto em que esse efeito apareça com tamanha crueza.[2] O efeito trágico e a catarse aristotélica são os mesmos, mas não se trata aqui de um simulacro teatral e Jó não tenta enfeitar com floreios estéticos a verdade da operação. A revelação explícita do mecanismo vitimário e de suas consequências é moral, no sentido mais elevado do termo, e faz aparecer como profundamente imoral o estetismo imperturbável de Aristóteles e de sua posteridade literária. Para a tradução da passagem supracitada, escolhi como de costume a Bíblia de Jerusalém, mas não deixarei passar despercebido o fato de que ela é particularmente favorável à minha tese e de que ela difere singularmente de muitas outras. Os tradutores antigos e modernos geralmente atribuem à segunda parte desse texto coisas bastante vagas, que tendem, porém, a inverter o sentido dele. Na New English Bible, essa inversão vai até o mais profundo de si mesma; eis o resultado: 49 Honest men are bewildered at this And the innocent are indignant at my plight. In spite off all, the righteous man maintains his course And he whose hands are clean grows strong again. As pessoas honestas estão perturbadas e os inocentes indignados por me ver nesse mau estado. Apesar de tudo, o justo continua a caminhar direito, e o homem de mãos puras redobra suas forças. O homem de mãos puras redobra suas forças desta vez, não porcausa, mas apesar da perseguição injusta. Essa interpretação me parece errônea, por razões de contexto. Todos os textos que nós lemos destroem o que a Bíblia inglesa quer fazer Jó dizer. Se Jó conservasse a afeição pelos justos e virtuosos, ele não seria abandonado por todos, sem exceção, nem seria o bode expiatório que ele mesmo descreve em inúmeros textos que todo mundo traduz da mesma maneira. Não tenho competência para opinar sobre o plano linguístico, mas continuo decididamente com a Bíblia de Jerusalém. Ela é a única que se encontra de acordo com o contexto, mas nem por isso é menos lectio difficilior, em razão de seu caráter paradoxal e subversivo, de sua oposição a todas as ideias preconcebidas. São argumentos de interpretação global que me impulsionam. Nossa tradução estabelece uma relação direta entre a perseguição do inocente e o alívio dos cidadãos de bem, o restabelecimento da ordem social. Essa relação é de tal modo escandalosa, que muitas pessoas pura e simplesmente se recusam a examiná-la. O livro de Jó vai tão longe na revelação do bode expiatório como fundamento do sagrado, da ética, da estética e da cultura em geral, que não me surpreende encontrar nele as fórmulas impressionantes que acabamos de ler. Se a Bíblia de Jerusalém estiver certa, as outras tradução manifestam a resistência que nosso espírito opõe a essa revelação. A mesma Bíblia de Jerusalém traduz o segundo versículo da passagem por “alguém sobre o qual se cospe no rosto”. Segundo Étienne Dhorme,[3] uma tradução literal seria: “Eu serei um Tofet público”. Dhorme salienta numa nota que, para o comentador Ibn Ezar, a palavra Tofet se compõe de dois termos: (...) primeiro, o vale do Taphet, lugar da vergonha, segundo Jeremias, uma vez que os Judenos praticavam ali o sacrifício humano proibido por Iahweh; ali eles passavam seus filhos e suas filhas pelo fogo. Taphet talvez signifique também altar ou fogareiro. Os judeus leram essa palavra com as vogais da palavra boshet, que significa vergonha. Junte os dois termos, combine as vogais de um e as consoantes do outro: você terá como resultado Tofet. O Tofet público é objeto de execração unânime; aqui, trata-se de um homem. Não muda nada dizer um bode expiatório; não vejo nenhuma diferença de uma linguagem a outra. O equívoco não é possível. Apesar das voltas inumeráveis que nos dá a linguagem, não vejo nenhum motivo para nos lamentarmos em relação a sua impotência em comunicar significados decisivos. 50 12 O ÓRFÃO SORTEADO Os três amigos estão entre esses justos que se sentem confirmados em seus caminhos pela visão do bode expiatório. Já sabemos que são invejosos. Em seu comportamento em relação a Jó, vimos que essa inveja busca antes de mais nada satisfazer-se. Não voltarei a falar disso. A inveja está bem presente e explica algumas coisas, mas não tudo. O mimetismo invejoso tem esse interesse principal de acionar o mecanismo do bode expiatório. Aquele Jó que os amigos perseguem não é mais somente o rival invejado, mas o bode expiatório de toda a comunidade. Ambos seriam a mesma coisa? Sem dúvida, mas a mesma coisa somente por conta do mecanismo expiatório. Graças a esse mecanismo, o ressentimento pessoal não se opõe mais ao vínculo social, mas o reforça. Em vez de alimentar a discórdia, ele produz a concórdia. Qualquer oposição entre o indivíduo e o grupo desaparece. Na estranha, porém banal comunhão social descrita por Jó, a inveja sinistra dos amigos se transcende, sem precisar renegar-se, nem mesmo sublimar-se, no sentido pensado por Freud. É exatamente isso o que faz o valor incomparável do mecanismo vitimário para as sociedades. A leitura que proponho não é psicológica, muito menos sociológica. Também não é religiosa, no sentido da tradição humanista. A descoberta do mecanismo expiatório altera as fronteiras tradicionais entre as disciplinas. É o mecanismo expiatório que determina a dimensão religiosa daquilo que se passa nos diálogos, com exceção de algumas passagens fulgurantes de que tratarei para concluir. O religioso a que recorrem os amigos e sua sociedade não é uma vaga ideia geral, que supervisiona de longe uma questão sobre a qual os homens presumem, no fim das contas, que seja puramente humana. O religioso é tudo o que se observa e tudo o que não se observa no mecanismo vitimário, os comportamentos que ele suscita, as circunstâncias que o favorecem e o desfavorecem. Com a rapidez do trovão, o mecanismo expiatório libera todos os homens, sem depender de ninguém, a não ser, talvez, da vítima, que é passível de ainda voltar a se tornar um ídolo, após sua destruição. Ninguém pode controlar o fenômeno, nem manipulá-lo. Ele tem todas as características de uma intervenção sobrenatural. Nele, tudo sugere um poder que transcende a miserável humanidade. Ele é o protótipo de toda e qualquer epifania sagrada. Podemos conceber sem dificuldade que os homens religiosos se dediquem de corpo e alma a esse mistério que os salva. Tanto neste aspecto quanto nos outros, os três amigos não se diferenciam em nada daqueles que os rodeiam. A sociedade vê perfeitamente que ela tem em sua vítima uma coisa boa: um purgativo eficaz para seus maus humores. Ela vê também que o processo é assustador, tanto quanto benéfico. Ele é acionado apenas ao final de um período de incerteza e de tumulto, repleto de uma desordem e de uma violência sempre passíveis de degenerar-se. A comunidade tem, portanto, grande necessidade de homens de confiança, que não 51 buscarão sufocar a violência em seu estágio inicial, como seria feito em nossos dias, mas que buscarão impedi-la de se propagar aleatoriamente na comunidade, direcionando-a para a vítima certa, a que tem maior capacidade de congregar contra ela própria, a vítima, cujos sucessos excepcionais e responsabilidades brilhantes revelam aos invejosos e aos descontentes a vítima já marcada para a cólera divina. Diante da atitude dos amigos e sobretudo de Elifaz, sentimos uma vontade de acompanhar o fenômeno, de imitar todos os comportamentos que, no passado, o levaram à sua feliz resolução. É preciso manter a orientação mais desejável, e essa orientação é evidentemente a presente. É a isso, em primeiro lugar, que servem os discursos furiosos sobre os exércitos celestes. É a inspiração ritual que estou tentando descrever. Ela resulta logicamente do mecanismo vitimário. Os perseguidores não sabem por que esse mecanismo age favoravelmente sobre suas relações mútuas e a comunidade toda, embora saibam que ele age e são muito receptivos para com ele. Tudo o que parece anunciá-lo é acolhido favoravelmente. Faz-se o possível para facilitar sua repetição. É exatamente por isso que Jó não pode contar com nenhum de seus antigos “amigos”. Mais uma vez, os amigos não estão ali para “consolar” Jó, como o prólogo tem a insolência de afirmar; também não estão ali para saborear sua ruína. São homens importantes, que não são movidos por razão que não seja séria. Eles não somente representam a comunidade, o que já disse, como cumprem uma função social e religiosa. Estão ali para velar pelo bom funcionamento do mecanismo vitimário. Tanto quanto os coros trágicos, os clamores ritmados das três séries de discursos lembram as recitações rituais cuja finalidade é incitar os participantes à agressão religiosa. Por seu caráter encantatório, repetitivo, essas vociferações imitam o movimento e os gritos de uma multidão que se concentra contra uma vítima qualquer. O que se visa é uma ação mimética sobre o conjunto do povo. Na medida em que a violência tende a se fixar em Jó, é preciso tirar proveito disso até o fim; assim, a vítima, uma vez designada, não é mais vista como indivíduo. Ela não deve mais servir senão para polarizar toda a violência dispersa na sociedade. Convergindo simultaneamente para o mesmo ponto, todas as fontes de divisões, todas as forças que normalmente se destroem mutuamente com pretextos insignificantes, se transformarão em fatores de unidade. Sem essa convergência, o pior poderia acontecer. Os três personagens parecem extremamenteexaltados, mas não se distanciam jamais de uma trama bastante clássica. Há um método em seu transe. Tudo sugere que eles improvisam pouco e que seus mais belos arroubos são fórmulas conhecidas, imprecações religiosas bastante veneráveis. Dos discursos dos amigos, emana um perfume de liturgia primitiva que nos incita a reconhecer em todo o processo uma espécie de ritual. Poderíamos chamá-lo “o ritual da rota antiga”, o ritual de Elifaz. Os exemplos de acontecimentos análogos, obrigatoriamente, servem como modelo. Para concluir com êxito o processo, a comunidade deve apelar aos anciãos, a homens que são tidos como ricos em experiência e sabedoria. Eles atravessaram sem obstáculo as tempestades do mesmo tipo. O que sobrevém a Jó não sobreveio a eles. Elifaz, particularmente, lembra uma espécie de padre. Ele fala sempre antes dos outros; ele goza visivelmente de grande autoridade. É ele quem anuncia o retorno provável da 52 “vingança divina”. Se o caso Jó verdadeiramente possui as características que acabo de enumerar, podemos ver nele uma variedade de sacrifício, ou talvez o que os etnólogos frazerianos[1] chamam um rito de bode expiatório. Tanto num caso como no outro, trata-se de garantir a repetição do mecanismo vitimário, por meio da imolação de uma vítima, ou expulsando-a violentamente da comunidade. Sob a supervisão de Elifaz, os três se entregam diante de nós àquilo que os especialistas em rituais chamam uma preparação sacrificial. Ela consiste em atiçar os participantes, quase sempre a comunidade inteira, para conduzi-la ao ponto de ebulição, em que a violência necessária será praticamente tão espontânea quanto no caso de o mecanismo ser acionado por si mesmo. Trata-se de tornar a imolação final o mais semelhante possível ao orgasmo natural da violência coletiva, ao paroxismo final de um tumulto que ainda não foi excitado, mas logo o será. Para impedir que a violência comprimida não se espalhe perigosamente e se desencadeie somente sobre a vítima, a vigilância ritual envolve o processo com todos os tipos de precauções. Se assim for, e se Jó for tão hábil em revelar o verdadeiro sentido de sua provação quanto a comunidade em camuflá-lo, poderemos esperar de sua parte alusões amargas à cozinha sacrificial da qual ele constitui o prato de resistência. E não ficaremos decepcionados. Eis o tipo de reprimenda que ele dirige aos três “amigos”: Seríeis capazes de leiloar um órfão,[2] de traficar o vosso amigo (Jó 6,27). Nas sociedades em que se pratica o sacrifício humano, os órfãos constituem vítimas de escolha. Sacrificar uma criança cujos pais estão vivos faz com que se corra o risco de suscitar a hostilidade deles. Os procedimentos de seleção vitimária trazem a marca de uma prudência astuciosa que tem como objetivo prevenir qualquer propagação da violência, eliminando o mais completamente possível as ambiguidades, as incertezas propícias aos litígios. Imolando um órfão, reduz-se ao mínimo a tentação, para os membros da comunidade, de se tornarem os vencedores da vítima; consequentemente, diminui-se o risco de alimentar o fogo da violência. Crescem as chances de um sacrifício eficaz. Uma terrível “sabedoria sacrificial dita aos sacrificadores a escolha dos órfãos, inspirando também o sorteio. Confiar a seleção da vítima ao livre julgamento dos sacrificadores faz sempre com que se corra um risco de discórdia. Portanto, é preciso confiá-la a essa sorte cuja função nos ajuntamentos espontâneos os sacrificadores não desconhecem, o verdadeiro fenômeno do bode expiatório, modelo ideal do sacrifício perfeitamente bem-sucedido. O órfão sorteado é um bode expiatório ritual, um substituto dessa vítima original que causou espontaneamente a unidade contra ela e reconciliou em sua morte a comunidade. Para restabelecer a unidade, é preciso um acordo unânime e sem dissimulação. Jó se compara implicitamente à vítima ideal, ao ser que não tem mais pais, nem servos, nem vizinhos, nem mesmo um amigo para defendê-lo. Podemos escolhê-lo, sem temer despertar as divisões que o sacrifício é destinado a curar. Jó repete em termos sacrificiais tudo o que o ouvimos dizer em estilo realista. Ele é abandonado por todos; 53 o vazio impera em seu entorno. Seus pretensos amigos agravam a situação, insinuando verem nele o último (do ponto de vista temporal) dos “malvados”, dos “perversos”, dos “inimigos de Deus”. O tom de Jó é veladamente irônico. Para que sua frase obtenha efeito, é preciso o contexto de um universo em que o sacrifício humano seja oficialmente proibido, religiosamente descreditado, mas não completamente esquecido, para que a alusão ao órfão sorteado não deixe de ser inteligível. Talvez a imolação de crianças continue sendo praticada clandestinamente nos meios retrógrados. Aos olhos de Jó, os três amigos são traficantes de carne humana. Eles parecem honestos e de fato o são, na perspectiva que defendem, a de seu sistema religioso; mas no universo em que Jó penetra, eles nos lembram especialistas um tanto suspeitos, que têm a habilidade e o saber exigidos para resolver na surdina as questões mais sórdidas. Aparentemente, tudo está claro no caso Jó. Afinal, trata-se unicamente – não é mesmo? – de um honesto debate sobre a questão do Mal e a realidade da divina providência. Não poderia haver aí detalhes escabrosos: mas eles não faltam e, misteriosamente, são dispostos sempre por essas pessoas que parecem absolutamente sinceras e dignas de confiança, e por isso são designadas para esse gênero de missão, sem dúvida porque, na realidade, não são de modo algum seguras de si, nem dignas de confiança. Os amigos consideram o sacrifício de Jó do ponto de vista de uma terapia social. Trata-se mais de velar pelo bem-estar da comunidade em seu conjunto do que de curar sujeitos particulares. Isso nos remete aos xamãs, a todos os medicine men, que atuam mediante purificações, evacuações. Aqui também existe sempre uma “rota antiga” para servir de modelo e continuamos a encontrar o mesmo itinerário. Como os xamãs, os amigos têm suas visões sobrenaturais: eles evocam grandes batalhas que se passam nos céus, sem perder de vista o que se passa na terra. Como abutres vigilantes a alguns passos de uma futura carniça, eles espreitam sua agonia. Assim, cumprem a função sanitária dos abutres em algumas civilizações tradicionais. No Édipo Rei, uma das perspectivas sobre a expulsão do bode expiatório é essencialmente “medicinal”, “higiênica”. Eis uma observação de Jó que resume estes últimos apontamentos, outra observação terrível dirigida aos três amigos: Vós não sois senão embusteiros, Todos vós meros charlatães (Jó 13,4). A ideia de Philippe Nemo, de anexar a religião dos amigos ao domínio da técnica, é admirável. Acrescentarei apenas uma coisa: que se trata da mais antiga dentre todas as técnicas, a mãe de todas: a técnica do bode expiatório (Job et l’excès du mal. Paris: Grasset, 1978). 54 13 ORIGEM E REPETIÇÃO Se os fenômenos de multidão – de que Jó é o pretexto, mais do que a causa – constituem um ritual, não se pode incorporá-los ao mecanismo vitimário “em si mesmo”, à violência coletiva espontânea, ao linchamento fundador “em pessoa”. Até aqui, dei a impressão de descobrir nos diálogos não um ritual a mais, mas o modelo de todos os rituais, a origem postulada em A Violência e o Sagrado. Haveria alguma ilusão de que se deve abrir mão? Num certo sentido, sim. Na ordem da teoria estrita, a dimensão ritual é indispensável. O mecanismo em estado puro só poderia aparecer de maneira exclusivamente mitológica, pelo menos em Elifaz e seus companheiros, e não é exatamente esse o caso nos discursos da rota antiga. O caso de Jó deve ser considerado à parte. Da parte dos perseguidores, o aspecto sociológico do fenômeno não deveria aflorar, o que acontece em diversos lugares. Assim que é descoberto, o mecanismo não é mais completamente espontâneo. Sua repetição é objeto de encorajamentos e arranjos que não se distinguem de um esboço de ritualização. Ainda que seja imperfeita, em suma, a descoberta do mecanismoexerce sobre ele uma ação que o transforma aos poucos. Os rituais não são as primeiras etapas dessa transformação. Por outras razões ainda, o processo representado não pode ser “originário”. Ele não produz novos deuses, mas se inscreve num contexto religioso já estabelecido. A ele se associa obrigatoriamente uma prática ritual. Portanto, é preciso afirmar seu caráter ritual, mas logo em seguida modular essa afirmação. Se examinarmos novamente a pergunta capital de Elifaz a Jó: “Queres seguir os velhos caminhos por onde andaram os homens perversos?”, acharemos que ela destoaria no interior de um ritual. Não é Jó, evidentemente, quem decide se fará ou não a viagem pela rota antiga. Ele embarcou nela contra sua vontade. Elifaz, entretanto, perfeitamente sincero, não zomba dele. Jó não decide nada, mas Elifaz também não. Ninguém escolhe: ninguém pode verdadeiramente manipular o mecanismo. Intrigas existem contra Jó, sem dúvida, mas não ainda um verdadeiro programa sacrificial. É sempre a multidão, ao que parece, que desencadeia o processo fatal. Na medida em que o caso não é premeditado e concluído por inteiro antes do tempo, não há ritualização no sentido pleno. Um verdadeiro rito dependeria exclusivamente daqueles que estão incumbidos de executá- lo. Não é o caso aqui. A pergunta de Elifaz não é somente retórica. Na mente do personagem, uma incerteza subsiste e, por ele ser um perseguidor, é à vítima que ele se dirige, para dissipá-la, e não à multidão, da qual ele mesmo faz parte. Como todo mundo, ele é enganado pelo mecanismo vitimário, que ele contribui, no entanto, para reativar. A ideia de que a resposta depende de Jó, e de que o bode expiatório poderia mudar de rota, escolher o caminho que lhe apraz, em outras palavras, a ideia de que ele é um ator, muito mais do que uma vítima, é mais uma vez a ideia dos perseguidores, a ilusão 55 geradora do mecanismo vitimário. Jó realmente não tem interesse nos sacerdotes que sorteariam uma vítima qualquer, dentro de uma espécie de precaução constituída por todos aqueles que obedecem a certas condições gerais de admissibilidade. Ele também não se interessa em recorrer aos xamãs, que prescreveriam soberanamente um rito de exorcismo. Suas metáforas não são falsas, quando ele estigmatiza o papel dos amigos, mas nem por isso devemos interpretá-las literalmente. Elas têm um caráter polêmico, e comportam uma parte de retórica, mas somente uma parte. Naturalmente, não se trata mais aqui da linguagem dos perseguidores, que rejeita toda responsabilidade sobre as vítimas, mas da retórica completamente nova dos perseguidos, que faz o contrário: tende a exagerar a responsabilidade, não obstante real, de cada perseguidor. O papel dos amigos é mais limitado. A trilhar pela rota antiga, eles não podem escolher aquele que enviam, nem o momento. Eles não têm poder de decidir, nem como chefes dos viajantes, nem como guias das viagens. Estão ali apenas para organizar a circulação. O caso Jó poderia não ter se produzido no momento em que se produziu, ou então nem ter se produzido de modo algum. A resistência implacável de Jó talvez o impeça de chegar ao fim e justifica retrospectivamente a incerteza que motiva a pergunta de Elifaz; no entanto, essa incerteza já estava presente – não é o comportamento heroico de Jó que a faz surgir. Podemos vê-la presente no narrador do Salmo 73. Portanto, o esquema da rota antiga tem um caráter ambíguo. Ele não é espontaneidade pura, mas depende muito do comportamento imprevisível da multidão para ser nitidamente ritual. Ele é intermediário; muito próximo ainda de um levante, para que se possa defini-lo nos termos de um rito; muito ritualizado, para que se possa reconhecer nele o mecanismo expiatório em estado bruto. Não estamos na aurora de uma nova cultura sacrificial. Estamos em plena decadência da antiga, em plena crise sacrificial. Mas no seio dessa crise, que será mortal, determinadas peripécias se assemelham às primícias. Os fenômenos de multidão representados conservaram ou readquiriram uma virulência que os aproxima do mecanismo vitimário original. Esses fenômenos, ao que me parece, carregam uma excelente imagem do mecanismo ritual. Situando-se obrigatoriamente do outro lado da origem, eles se situam na mesma direção dos rituais nitidamente especificados. Sem ser a origem, eles estão bastante próximos dela para assemelhar-se a ela tanto e até mais do que se assemelham a todos os tipos de ritos. Eu mesmo comparei o caso Jó a uma festa carnavalesca. Entretanto, não a associo a uma “verdadeira” festa, ainda que extremamente bárbara, do mesmo modo como Jó não se associa verdadeiramente à vítima de um sacrifício em conformidade com as regras em vigor. Mantenho minha comparação, mas não vejo nela mais do que uma comparação. O próprio Jó parece comparar seus amigos a médicos rituais. Todas essas comparações esclarecem certos aspectos do que se passa, mas disfarçam ou deformam outros. O caso Jó se assemelha a todos os tipos de ritos, mas não se associa verdadeiramente a nenhum deles. Como isso é possível? 56 Para responder a essa pergunta, recorro novamente à tese do mimetismo vitimário, que volto a encontrar em cada uma de minhas atitudes, à tese que faz do bode expiatório fundador – religiosamente imitado por aqueles que dele se beneficiaram espontaneamente, e depois por seus descendentes – a origem de todos os rituais. O caso Jó se parece com inúmeros rituais, sem confundir-se com nenhum deles, pelo fato de ser mais espontâneo do que todos os ritos. Ele permanece bastante próximo da origem violenta para anunciar e prefigurar as formas determinadas que não engendrou e nunca engendrará, porém, que poderia teoricamente engendrar ao final de uma ritualização mais animada. Se o caso Jó fornece uma representação adequada da origem, pode-se colocá-lo no lugar dessa origem hipotética para mostrar que uma imitação prolongada, uma ritualização mais excitada, o metamorfosearia sem dificuldade em todas as formas rituais que ele menciona, incluindo aí a mais notável, da qual ainda não falei. Para “reduzir” todos os ritos a uma origem comum, devem-se desprezar aquelas diferenças consideráveis que os separam. Contudo, que se devam aproximar certos elementos aparentemente irreconciliáveis, é o próprio Jó quem nos dá essa sugestão, ao comparar-se, sucessivamente, a duas figuras rituais cuja aproximação pareceria absurda. Já sabemos qual a primeira: o órfão sacrificado. A segunda é... o rei sagrado. Também esta conhecemos. Não nos esqueçamos da lembrança emocionada que Jó conserva de seus antigos êxitos junto ao povo, antes de se transformar em bode expiatório. A veneração popular fizera dele um mestre perfeitamente obedecido. Evoquemos novamente os três últimos versos da passagem já citada: Sentado como chefe, eu escolhi seu caminho; Como um rei instalado no meio de suas tropas, Guiava-os e eles se deixavam conduzir (Jó 29,25). Todo o resto ainda está por vir; antes de sua queda, Jó gozava realmente de um poder e de um prestígio comparáveis aos do rei sagrado, um verdadeiro deus vivo. Essa semelhança com o rei se interrompe no momento da transformação de Jó em vítima perseguida? Pelo contrário: ela se realiza espetacularmente. O último Jó certamente é bem pouco monárquico aos nossos olhos, mas somente aos nossos olhos. Para nós, a monarquia se resume à monarquia moderna, dessacralizada, estranha ao sacrifício, ou que aparece fora dos períodos revolucionários. Não enxergamos que, no sentido antigo e primitivo da realeza sagrada, o bode expiatório é mais real do que nunca. A fase persecutória não anula a semelhança, tornando-a perfeita. No exercício normal de suas prerrogativas, o rei, assim como Jó antes de seu desastre, sobrevoa a humanidade comum, mas em certos momentos críticos, sua posição se inverte. Ele é humilhado, contestado, brutalizado, muitas vezes inclusive assassinado. O aviltamento do rei é característico de uma prática ritual que varia consideravelmente de uma monarquia a outra, mas tem por denominador comumo papel de vítima, simbólico ou praticamente real, que ela confia ao monarca. Ao longo dos ritos, os sujeitos fingem esquecer-se de sua idolatria para insurgir-se brevemente contra o ídolo. A veneração se metamorfoseia em execração. Certos ritos africanos atribuem claramente um papel de motor a essa reviravolta popular. Como a aventura de Jó, a monarquia se caracteriza pela natureza dupla e sempre extrema das relações 57 entre um indivíduo solitário, de um lado, e o grupo todo de outro. 58 14 JÓ E O REI SAGRADO De todas as formas rituais complexas, a monarquia apresenta, em relação à carreira de Jó, ou mesmo à de Édipo, as semelhanças mais espetaculares. Com efeito, não sou o primeiro a perceber isso. Deve-se ver, como alguns também pensaram,[1] uma influência externa e direta dos ritos reais [monárquicos] sobre a concepção dos diálogos? O autor teria no espírito um exemplo de monarquia real [concreta], inspirando-se nele para imaginar a fortuna e a desventura de Jó, a dupla carreira de seu personagem? Se Jó fosse modelado sobre um rito monárquico, os ultrajes que se aplicam a ele teriam um caráter ritual. Esperaríamos então por encontrar neles algo de hierático e solene, que corresponde pouco à estupefação desolada do bode expiatório, a tudo o que existe de “existencial” nos textos que lemos. Longe de ser surpreendido pelas indignidades que se infligem a ele, um personagem proveniente do rito saberia bem o que o espera para falar de modo tão comovente. A paixão de Jó não se assemelha a uma provação ritual. Não é verossímil que Jó seja forjado sobre um rito. Uma outra razão permite pensar que Jó não se reproduz a partir de um rito determinado: sua aventura não se assemelha a apenas um rito, mas a vários. Seu esplendor simbólico não é da mesma ordem daquele da tragédia grega, mas ainda maior. Se Jó fosse inspirado por uma monarquia concreta, Édipo Rei, do mesmo modo, também o seria. Mas não se trata de encerrar a potência criativa de Sófocles na estreiteza do rito. A tese ritual é mais interessante do que os comentários moralizadores. Ela direciona a atenção para as vastas regiões dos diálogos em que ninguém se aventura, porém, considero-a inexata. Ela inverte as coisas. Ela parte de um rito para explicar os diálogos, enquanto se deve caminhar em sentido inverso. É preciso partir dos fenômenos de multidão descritos em Jó para compreender os rituais. É preciso reconhecer naquilo a respeito do que Jó fala o foco de origem de todos os rituais. É a aproximação dessa origem que vale aos diálogos seu extraordinário esplendor simbólico. Se a tese do mimetismo vitimário for verdadeira, deve ser suficiente, para chegar à monarquia sagrada, prolongar e reforçar o processo de imitação/ritualização que vemos esboçar-se ao redor de Jó. Mesmo quando permanecem espontâneas, as repetições do mecanismo vitimário tendem a se derramar nos moldes dos fenômenos anteriores. Como vimos, a natureza delas é estimulada e cortejada pelo comportamento dos amigos. É fácil compreender que, de tanto se repetir, o mecanismo perderá um pouco de sua espontaneidade, deixará de ser um mecanismo, para se transformar numa série de gestos e palavras deliberadas, de prescrições rituais. Essa metamorfose é mais provável à medida que a repetição sempre melhor ritmada e regulada tende a eliminar as oscilações imprevisíveis e brutais que acionam espontaneamente o fenômeno. Quanto mais o rito pacifica a comunidade, mais ele perde sua virulência primeira, mais adquire as conotações que o 59 termo “ritual” geralmente tem para nós. Deve vir o momento em que mais nada será abandonado ao acaso. Logo depois de o “homem perverso” terminar sua viagem, logo após ser propriamente linchado, aponta-se um sucessor oficial para ele. Com a preocupação pela eficácia, designa-se esse sucessor sem esperar. Procuram-se evitar os tempos mortos que poderiam prejudicar a comunidade. Para que se tenha a certeza de não designar um homem de perversidade insuficiente, apenas uma solução existe: deve-se incumbi-lo de cometer todos os crimes atribuídos a seus predecessores. Logo em seguida, vem a fase da idolatria delirante. Pede-se à vítima para exercer sobre a comunidade um poder sem limites. É o modelo original que o exige. Remeto aqui às lembranças saborosas de Jó no capítulo 29: a futura vítima reina sobre seus futuros algozes por tanto tempo quanto seus antecessores, até o dia – também estabelecido com rigidez pelos exemplos anteriores – em que, num movimento unânime e repentino, o povo se voltará contra seu ídolo, para persegui-lo e sacrificá-lo. Basta admitir que o caso Jó serve de modelo, para que se possa ver o sistema ritual da monarquia se desdobrar de uma extremidade a outra. Voltamos a encontrar indubitavelmente os “crimes” imaginários do bode expiatório na monarquia sagrada. Na maior parte dos casos, o sistema oferece uma combinação absolutamente significativa dos crimes atribuídos a Jó e daqueles que se atribuem a Édipo. O rei supostamente dá demonstrações de arrogância, brutalidade e até mesmo ferocidade. Ele é esse opressor do povo que também os “homens perversos” de Elifaz aparecem como tendo sido. Para demonstrar generosidade, pede-se ao monarca para tornar-se oficialmente culpado por uma variante qualquer de crimes “edipianos”, como o assassinato do pai ou de um parente próximo, algum incesto bem escondido, materno ou fraterno. Nada mais simples, para se fabricar um pequeno Tofet público substitutivo, do que exigir dele o cumprimento real das ações abomináveis atribuídas a seus predecessores! A execução desses crimes por vezes se situa pouco antes daquilo que ela supostamente desencadeia: a transformação do monarca em bode expiatório, embora frequentemente ela também constitua o ponto de partida de toda a sequência ritual. O rei deve demonstrar sua aptidão para exercer a função socialmente fundamental de “homem perverso”. É essa a condição sine qua non do acesso àquilo que está em vias de se transformar em trono real. As ações exigidas do rei, nos ritos monárquicos, são as mesmas que as ações que se criticam em Jó ou em Édipo, mas quase sempre elas não têm o mesmo sentido. Essa diferença não constitui uma boa objeção à tese da origem comum. Muito pelo contrário. A metamorfose do sentido constitui um mesmo todo com o processo de ritualização. Os crimes não são mais completamente nem de modo algum crimes, mas ritos de iniciação ao poder ambíguo do rei; às vezes, inclusive, são ações insignes. Não fica sem consequência fazer de um crime uma ação obrigatória para o suposto criminoso, não de vez em quando, mas sempre, de geração em geração. Uma proibição que preciso transgredir e que se olha como o primeiro dos deveres não pode permanecer por muito tempo como um crime. O proibido e o obrigatório são dois contrários que não podem deixar de reagir mutuamente, a longo prazo. O obrigatório necessariamente sairá à frente do proibido, pois o ritual tem apenas 60 uma preocupação: a eficácia, a sustentação da ordem pública, o impedimento das desordens indomáveis. O fato de os “crimes” do bode expiatório tenderem a se transformar em etapas iniciáticas, ou ainda, no fim das contas, em semiproezas, não nos autoriza a pôr em dúvida o caráter inicialmente criminoso dos atos exigidos. Proíba o obrigatório, torne o proibido obrigatório e você desestabilizará os dois sentidos, para deles extrair um terceiro, que parece completamente novo, mas que é verdadeiramente a combinação dos dois outros. A menor reflexão mostra que o sentido novo deve ser aquele que justamente aparece nas monarquias concretas: o sentido da etapa iniciática. A realeza está tão longe do comum, que ela exige ritos muito assustadores. A velha conotação criminosa se insinua ainda por trás da ideia corrente de que o rei é um sujeito vigoroso. Ele passa pela etapa de provação entregando-se a atividades que seriam vistas como crimes pelo comum dos mortais. Quanto mais escrupulosa for a imitação, mais os atos proibidos que o rei deve cometer se transformarão em deveres demasiadoestritos e, consequentemente, deixarão de ser crimes, mas somente para o monarca. Os antigos crimes do bode expiatório se tornaram ritos de entronização. Portanto, a imitação ritual é criadora de formas significativas. De modo paradoxal, ela se torna mais criadora quanto menos deseja sê-lo. Quanto mais ela quiser ser fiel e rigorosa, mais transformará os “crimes” do bode expiatório, mais rápido os esvaziará de seu sentido original. Somente a convicção unânime de deter um culpado autêntico pode conferir ao rito sua eficácia. Desse modo, não se deve ver na obrigação imposta ao rei – de se tornar esse mesmo criminoso cuja prova supostamente se encontra no bode expiatório – o fato de os perseguidores e seus descendentes manipularem cinicamente o processo vitimário, mas, ao contrário, o fato de não o manipularem de modo nenhum e de se esforçarem o melhor que podem para recriar todas as circunstâncias (sem exceção) em relação às quais se espera que sejam novamente propulsoras do mecanismo salvador, porque foram elas que o ativaram no passado. Os crimes de fato são crimes desde o início, e a conotação criminosa é com muita frequência atestada para não deixar dúvida alguma sobre sua presença. O esquema do rei tirânico, opressor, incestuoso e, finalmente, sacrificado, real ou simbolicamente, nada mais é do que uma “rota antiga” tão bem balizada que se torna imperceptível. O itinerário está, de agora em diante, rigidamente fixado. O mecanismo vitimário era pura espontaneidade. A partir do momento em que é programado do início ao fim, ele obrigatoriamente deixa de ser ele mesmo. A imitação ritual está em oposição à espontaneidade. Quanto mais ela triunfa, mais o ritual se torna a atividade puramente mecânica, estéril e morta que chamamos de rito. 61 15 A EVOLUÇÃO DOS RITOS É preciso reabilitar a ideia de que os ritos evoluem; e isso, pelo fato de seu caráter rigidamente imitativo. Mas por que a imitação ritual produz formas tão diferentes quanto o rei e o órfão sorteado? A realeza se define, com toda certeza, pelo poder absoluto do rei. Esse poder tem como modelo a primeira fase dos fenômenos de multidão descritos em Jó, durante a qual a futura vítima é o ídolo de seus futuros carrascos. A monarquia sagrada se caracteriza pela predominância da primeira fase sobre a segunda; assim podemos falar de monarquia. Em toda instituição cujo personagem principal não é em primeiro lugar e principalmente um ídolo vivo, um mestre poderosíssimo, de preferência a um bode expiatório, vemos algo diferente de uma monarquia, ainda que sagrada. Portanto, a primeira fase predomina sempre, porém, assim que olhamos para as monarquias concretas, percebemos que ela comporta estágios. A segunda fase é atenuada, diminuída, atrofiada proporcionalmente a essa predominância. As duas fases estão sempre em desequilíbrio, mas este pode ser muito fraco ou, ao contrário, tão forte que a fase do bode expiatório tende a desaparecer completamente. Em algumas monarquias, até bem pouco tempo, o rei era realmente sacrificado. Não vejo razão para pôr o fato em dúvida, com a desculpa de que, em outras monarquias, o sacrifício era mais aparente do que real: logo, ou de fato outra vítima era sacrificada no lugar do rei, ou então apenas se simulava sacrificar o rei. Em Babilônia e alhures, fazia-se outra coisa ainda que lembra singularmente a experiência de Jó. Uma vez por ano, o rei era humilhado, insultado, maltratado pela multidão, até mesmo esbofeteado. Mas não se tratava, ao que parece, de levá-lo à morte, ainda que simbólica. Em outras monarquias ainda, qualquer violência concreta está vedada. Nem mesmo se simula perseguir ou matar o rei, porém, com muita frequência, subsistem vestígios de simbolismo vitimário. Finalmente, existem monarquias isentas inclusive de simbolismo vitimário. A soberania do monarca nunca é interrompida, nem perturbada, ainda que seja por uma vaga lembrança de processo vitimário. Trata-se da realeza moderna. (Para substituir os velhos ritos, as revoluções concretas certamente podem surgir. Trata-se então do retorno, sempre malsucedido em nosso mundo, do mecanismo fundador.) Examinando a situação geral, o panorama ritual em seu conjunto, podemos ver que, onde quer que seja, e não somente na monarquia, os fatos se organizam por si mesmos em função do princípio que acabo de enunciar: o desequilíbrio entre as duas fases. Poderíamos dizer que uma e outra estão em luta pela posse completa do território ritual e, quanto mais uma das duas se sobressai, mais os fenômenos rituais se assemelham às instituições bem diferenciadas que imaginamos serem sempre as primeiras, mas que devem ser os resultados últimos de um duplo processo evolutivo e genético. 62 À medida que a monarquia se distancia do modelo que imita, ela se torna cada vez mais monarquia e cada vez menos sacrifício; é sempre mais difícil perceber seu enraizamento no mecanismo vitimário, o que evidentemente sustenta a afirmação de que ela jamais o imitou, de que ela não pode imitá-lo, de que qualquer sobrevivência de resquícios sacrificiais deve ser interpretada como a hipócrita comédia de um poder que dissimula sua natureza tirânica. A monarquia não dissimula absolutamente nada. De qualquer maneira, a continuidade das formas intermediárias – a presença de uma gama praticamente completa de elementos encadeados que não faltam em ritos monárquicos muito vitimários, de um lado, ritos que se assemelham a levantes populares, e de outro, ritos purificados de toda violência, ainda que simbólica – sugere algo bem diferente de uma comédia. Sugere uma evolução lenta em direção à monarquia moderna, dessacralizada, a partir de um duplo fenômeno de multidão, parecido com o que é apresentado pelo texto de Jó. A classificação que proponho não é exatamente uma classificação, no sentido de que as etapas sejam apenas etapas; elas não correspondem a nenhuma instituição que se possa definir. Não é possível organizá-las em oposições estruturais. Elas fazem pressentir um dinamismo evolutivo que parte do modelo de Jó, religiosamente imitado, com suas duas fases bem salientadas, e que se dirige pouco a pouco, sem transições nítidas, para aquilo a que chamamos monarquia moderna, ou seja, para um poder puro, praticamente dessacralizado, libertado de tudo o que lembra seu “contrário” – o bode expiatório. Por preconceito anti-histórico, esse poder nos aparece como uma espécie de ideia inata, um elemento químico puro, um ponto de partida. É mais provável que ele seja o ponto de chegada não de uma evolução única, mas de evoluções múltiplas. Resumindo: os ritos de que acabo de falar privilegiam a primeira fase, a relação de idolatria entre o povo e aquele que, por essa razão, se torna rei. Esse privilégio tende a cada vez mais adquirir proporções excessivas, em detrimento da outra fase, a do bode expiatório, que se torna uma comédia simbólica e acaba por desaparecer completamente. Por que essa tendência? É a monarquia purificada de ritual, ou alguma vontade de poder em estado puro que dirige retrospectivamente o sentido da evolução? Haveria verdadeiramente alguma coisa, uma ideia inata, ou uma essência platônica que serviria como propulsor? A evolução seria predeterminada pela forma para a qual converge? Para compreender que não é nada disso, basta constatar que ao lado das monarquias, organizadas em virtude do desequilíbrio crescente que acabo de definir, existem outros sistemas que também se organizam facilmente em virtude do mesmo desequilíbrio, mas em sentido contrário. Desta vez, a fase do bode expiatório se sobressai cada vez mais, em detrimento do ídolo popular, que pouco a pouco tende a desaparecer; mas ainda restam um pouco em toda a parte tantos vestígios dele que não se pode tratá-los com superficialidade, não mais do que se pode fazê-lo em relação aos vestígios da segunda fase nas monarquias sagradas. Consideremos, por exemplo, o sacrifício dos órfãos ou das órfãs, a imolação das virgens indefesas no mundo antigo, na Grécia arcaica, nas culturas centro-americanas, eum pouco por todo lado. Essas formas rituais apresentam frequentemente uma 63 primeira fase, praticamente longa, durante a qual a futura vítima desfruta de privilégios quase monárquicos: executam-se todas as suas ordens, cede-se a todos os seus caprichos. Jamais se compreendeu verdadeiramente esse tipo de comportamento. A única explicação que se dá a ele é sem dúvida tardia. Deixando de ficar completamente quietos a esse respeito, os etnólogos retornam sempre à ideia de uma espécie de “compensação” que os perseguidores concedem à vítima. Essas almas boas, o que no fundo são os sacrificadores, se compadecem dos inocentes que logo mais haverão de exterminar; fazem tudo o que podem para alegrar seus últimos momentos. Essas explicações não têm outro interesse além de sugerir exatamente aquilo que tentam disfarçar: os sacrificadores são perseguidores. É preciso reconhecer por trás de tais fenômenos que parecem estranhos no contexto de um sacrifício, tão estranhos quanto a perseguição ou a imolação – ainda que simbólica – do rei no contexto da monarquia, aquilo que subiste da primeira fase – a fase do ídolo popular. O cordão umbilical que os une aos fenômenos de multidão ao estilo de Jó ainda não foi completamente rompido. A evolução é a mesma do que a encontrada na realeza sagrada, mas tudo é invertido. Aqui também se apresenta todo um conjunto de formas intermediárias entre o leve desequilíbrio e o desaparecimento total da fase progressivamente posta à margem. E no entanto essa fase subsiste, volto a dizer, em muitos ritos sacrificiais disseminados por todo o planeta, para que se possa livrar-se dela sem exame ou acreditar que todas as culturas são singulares. A tese da “infinita criatividade” das culturas humanas é inspirada pelo romantismo mais medíocre. Enquanto não se puserem os vestígios “aberrantes” presentes nos ritos e nas instituições sobre o mesmo plano dos dados que julgamos “normais” e em seu devido lugar, não se compreenderá nada da cultura humana. Mas será que realmente se busca essa compreensão? Como explicar as duas séries simétricas de fenômenos rituais ou pós-rituais caracterizados por um desequilíbrio crescente de uma a outra fase do modelo imitado? O sentido da evolução é secretamente teleguiado não mais por uma, mas desta vez por duas formas preexistentes (a monarquia “propriamente dita”, de um lado, e o sacrifício “propriamente dito”, de outro)? Visivelmente, a monarquia e o sacrifício “propriamente ditos” existem apenas em nossos espíritos deformados pelo essencialismo platônico e seus similares modernos, o cartesianismo das ideias claras e distintas, cuja última variante é o estruturalismo. Deve-se fazer a economia desse essencialismo, mesmo em sua forma linguística. É mais fácil interpretar sem ele nossas duas séries de desequilíbrios simétricos. Como o rei desritualizado, o órfão simplesmente sacrificado resulta de uma imitação ritual sempre mais unilateral. No primeiro caso, a fase do ídolo triunfa e faz desaparecer o bode expiatório. No segundo caso, temos o inverso: o bode expiatório se sobressai e pouco a pouco o ídolo desaparece. Visivelmente, não é uma preferência bem definida por uma ou outra fase, nem o conteúdo dessas fases que determina a tendência dos ritos em privilegiar uma ou outra, uma vez que a evolução pode ocorrer indiferentemente nos dois sentidos. De onde vem então essa tendência? Se não se trata de uma força positiva, de uma inclinação permanente para um sentido ou outro, deve-se encontrar repugnância em manter as duas fases juntas, uma antipatia pela conjunção dessas duas fases. 64 O sistema não é extremamente complexo, mas deve parecê-lo no momento da imitação ritual, que procura empobrecê-lo, simplificá-lo. Não penso que o rito tenha conscientemente esse objetivo. Ele busca preservar integralmente o modelo que imita, mas não consegue jamais. O modelo justapõe dados que parecem cada vez mais contraditórios à medida que se distancia da origem, começando, é claro, pelo ídolo e o bode expiatório. Para dar ênfase simultaneamente às duas fases do modelo, seria preciso interpretar tudo em condições de mimetismo, como o fiz, e é exatamente isso o que o pensamento ritual não quer, não pode fazer: o mimetismo que nada sabe diferenciar causa repugnância à inspiração ritual. As tendências permanentes do espírito religioso sempre fazem (e em toda a parte) os ritos evoluírem. O lugar que ocupa um rito numa escala ou noutra revela o grau de evolução do sistema, em relação a sua diacronia própria. A evolução global vai sempre no mesmo sentido e a possibilidade de uma história universal não está descartada. Assim como existe uma lógica da imitação cobiçosa,[1] existe uma lógica da imitação religiosa; penso que não temos mais do que desenvolvê-la a partir da “rota antiga” de Elifaz, descobrir as incompatibilidades que ela comporta e as tensões fecundas que ela suscita, para compreender o que faz dela uma potência criadora de formas. É ela que suscita as instituições mais diversas a partir de um único ponto de partida. Uma dinâmica da imitação ritual preserva certas coisas da origem, mas necessariamente modifica e perde outras. Ao passo que a lógica do desejo mimético destrói as diferenças que procura, a da imitação religiosa suscita diferenças que não procura. Ela aspira apenas à reprodução fiel do modelo. Seja qual for o papel representado pelo desejo mimético em nossas “paixões” e em nossa conduta, nosso intelecto prefere ficar cego em sua presença, recorrendo à segunda lógica. Para compreendê-lo, ao contrário, basta-nos olhar ao nosso redor, basta- nos olhar a crítica moderna dos textos clássicos para constatar que ela se rejeita a apreender o processo mimético-vitimário, mesmo naqueles que o tornam completamente explícito. A crítica do livro de Jó nos dá aqui o melhor exemplo disso. Ao ler os textos, alguns reconhecerão Jó como bode expiatório, depois de serem forçados a admitir que o tema está presente na obra. Eles também identificarão o tema do ídolo popular. Contudo, resistirão à conjunção das duas fases, sobretudo em sua interpretação mimética, que a considera essencial, sem fazer dela uma conjunção causal, em sentido ordinário. Eles também não admitirão que em seu entorno a tirania das modas predomina mais do que nunca, e que a vida política, cultural, profissional inclusive, as exibições sexuais não cessam de reproduzir conjunções de idolatria e de ostracismo menos violentas talvez, mas estruturalmente idênticas àquilo que as proposições de Jó nos dão a entender. A imitação ritual diferencia, distingue, simplifica, ordena e classifica os dados de modo a sempre mutilar, apagar e disfarçar os mecanismos miméticos e sobretudo o mecanismo do bode expiatório, cujos efeitos de diferenciação e mistificação ela prolonga ao infinito. O pensamento ritual jamais pode voltar à própria origem, que se perpetua no pensamento filosófico e, nos dias atuais, em nossas modernas ciências 65 humanas, herdeiras dos poderes do rito, como também de sua impotência fundamental. Diríamos que a atenção ritual não pode se consagrar a um aspecto qualquer do modelo original sem se fechar a todos os outros que perecem e acabam por desaparecer. É por um processo não consciente de mutilação e metamorfose que a imitação ritual se torna criadora e desemboca na extrema variedade das instituições religiosas e não religiosas. Mesmo nos inícios do processo, quando as duas fases estão praticamente intactas, seu equilíbrio não pode ser perfeito. Por mais imperceptível que possa ser, o sistema penderá sempre para um sentido ou para outro. Amplificando-se cada vez mais, a distância original determinará toda a evolução. Duas vertentes se desenham. Os imitadores rituais, tendo se engajado sem saber num dos dois sentidos, irão cada vez mais longe na direção escolhida, sob o efeito dos princípios que governam sua imitação. No fim das contas, eles acabarão chegando a formas já tão metamorfoseadas que parecerão completamente estranhas umas às outras, e suficientemente simplificadaspara parecer “elementares”, “fundamentais”, anteriores à complexidade bizarra do modelo que Jó nos propõe. Assim, há vítimas que nada mais são do que vítimas, e reis que nada mais são do que reis. E o idealismo filosófico que não se pode desenraizar faz o resto. Tudo deve estar em oposição àquilo que digo, pois os conceitos bem diferenciados estão no fim. Não compreendemos de modo algum o que é um sacrifício, mas a instituição nos parece bastante “simples” para dar uma boa ideia, ao passo que o caso Jó é uma espécie de monstro. A etnologia atual fica impaciente quando se investiga aquilo que resta do ídolo na vítima de um sacrifício, ou aquilo que resta da vítima no monarca todo-poderoso. Para essa etnologia, as coisas pensadas se apresentam ao homem de uma só vez e nascem completamente prontas em seu espírito. Qualquer ideia de gênese está excluída. De Aristóteles ao estruturalismo, todos os pensamentos da classificação estática são filhos extemporâneos da mentalidade ritual. A insistência recente na linguística diferencial nada mais é do que uma receita a mais para perpetuar essa imensa tradição e, por trás disso, é sempre o essencialismo que está presente, o platonismo fundamental de uma filosofia que, de uma extremidade a outra de sua história, permanece fiel às grandes tendências da inspiração ritual. Felizmente, o extremo conservadorismo do rito sempre deixa vestígios que permitem recuperar a verdade. A imensa maioria dos ritos conserva quantidade suficiente de restos simétricos da fase em vias de desaparecer, deixando verossímil apenas a tese que postulo: por trás dos ritos mais dessemelhantes, uma dupla relação com a multidão se delineia, análoga àquela que faz de Jó, alternativamente, o ídolo e o bode expiatório dos mesmos homens. O fato de que mesmo os ritos já bastante evoluídos preservam lembranças da fase atrofiada combina muito bem com aquilo que se encontra no outro extremo da escala, a saber, ritos muito pouco evoluídos, tão próximos do modelo original quanto as duas fases, que neles estão bem preservadas. Elas têm praticamente o mesmo peso, e o modelo original do ídolo/bode expiatório é completamente reconhecível. São ritos que se mantêm ainda sobre a linha divisória entre as duas vertentes. 66 Tornamos a encontrar aí os fenômenos de multidão descritos em Jó, mas de uma forma tão violenta algumas vezes que nossa atenção é desviada do essencial e o “classicismo” dessa forma que assumem nos escapa. Esses ritos preservam as duas fases em sua integridade, insistindo alternativamente em cada uma delas. Isso produz formas extremamente surpreendentes em aparência, mas não para nós, pois elas têm o mesmo perfil, exatamente como a dupla experiência de Jó. É o caso, ao que parece, do canibalismo no Nordeste do Brasil, do modo como foi descrito pelos primeiros exploradores. Ainda que fossem destinados preliminarmente à imolação e ao festim antropofágico, os prisioneiros de guerras rituais eram antes de mais nada tratados com grande respeito por seus predadores. Ofereciam-se-lhes mulheres; eles gozavam de certos privilégios. Essa situação podia durar anos, até que chegasse o dia prescrito em que eram ritualisticamente massacrados e devorados. É sempre o esquema da rota antiga perfeitamente programado, com o canibalismo em acréscimo, o que não altera nada de essencial no caso. Um costume aparentemente menor, mas sempre mencionado, é aos meus olhos o mais revelador. Pouco antes do momento essencial, da grande orgia canibal, que constituía a variação local da cena do bode expiatório, a vítima era encorajada a fugir, o que evidentemente lhe era proibido, ou a cometer alguma outra transgressão, que faria dela um culpado aos olhos da comunidade, ou seja, um ser capaz de congregar contra si a unidade dessa mesma sociedade. Antes de ser morta, a vítima era insultada e maltratada com uma ferocidade gratuita que lembra bem o que Jó relata. Embora indubitavelmente ritual, o sistema conserva uma dose muito forte de espontaneidade. Ele não é verdadeiramente suscetível de ser descrito em termos de monarquia, nem em termos de sacrifício. Não obstante, tem pontos em comum com uma e outra instituição. Esse canibalismo conduz ao momento em que a rota antiga acaba de se transformar em rito, ou então, por uma razão ou outra, estagnou-se em sua evolução. A verdadeira diferença em relação à rota antiga permanece no próprio princípio ritual. Sabe-se desde o início que o ídolo não está destinado a continuar sendo ídolo para sempre, uma vez que existe simultaneamente a preparação deliberada à conclusão dramática. Mas esse saber não exerce nenhuma influência sobre o comportamento em relação à futura vítima durante a fase “idolátrica”. A infração que o prisioneiro é convidado a cometer contribui para mobilizar a multidão contra ele. O rito prescreve exatamente o que convém para despertar a hostilidade contra a vítima, no instante preciso em que a reativação do mecanismo vitimário exige essa hostilidade. Não se deve concluir, aqui também não, que os praticantes do ritual manipulem cinicamente um mecanismo vitimário cujas propriedades lhes são conhecidas. Não se deve imaginar por trás dessa prescrição ritual um conhecimento do tipo inaugurado por Jó e outras importantes figuras bíblicas. É exatamente o contrário. Os indígenas persistem em massacrar um verdadeiro culpado porque creem cegamente na culpa real daqueles que massacraram precedentemente. Podemos imaginar muito bem os amigos obrigando Jó a cometer os crimes de que o acusam pelo fato de serem alguns, enfim, que ele certamente cometeu, mas também por remeterem à comunidade um novo “homem perverso” convenientemente 67 testificado. Não seria cinismo da parte deles; seria antes consciência profissional. Os ritos canibais americanos contradizem tanto o neorrousseauísmo predominante entre nós, que as descrições antigas não podem ser pressupostas como fictícias: penso que elas geralmente são bastante exatas. Não temos nenhuma razão – muito pelo contrário – para pôr em dúvida a realidade do sistema descrito pelos observadores do século XVI. Penso que sua veracidade seja garantida pela transparência perfeitamente preservada da intenção que anima as práticas canibais. Se o observador europeu tivesse apreendido nesses ritos uma vontade de refazer um mecanismo de bode expiatório do tipo descrito por Jó, pensaríamos que ele pudesse ter inventado por conta própria os detalhes mais próprios à concretização de tal projeto, mas essa vontade lhe escapa e, contudo, todos os detalhes estão presentes. Portanto, é impossível acreditar que esses detalhes tenham sido inventados, que eles não pertençam realmente à prática ritual descrita. A situação é praticamente a mesma em relação à situação de um mensageiro encarregado de transcrever letra por letra uma mensagem redigida numa língua que não lhe é familiar. Se a mensagem retransmitida está linguisticamente correta e é perfeitamente sensata, podemos estar certos de que foi fielmente copiada. O mensageiro não colocou aí nada do que lhe é próprio. Se tivesse mudado alguma coisa, um ignorante como ele a teria facilmente tornado incoerente. Ele não teria conseguido torná-la coerente, nem inventar o tipo de coerência que reencontramos aqui e que figura em mil outros ritos: coerência do mecanismo expiatório, que se procura reproduzir não porque é compreendido, mas por não ser compreendido. É claro que outras bifurcações são possíveis.[2] Na vertente sacrificial, por exemplo, certos ritos enfatizam a única vítima e a única imolação sacrificial, enquanto outros enfatizam a participação coletiva no mimetismo indiferenciador. No segundo caso, o sistema imitado deriva em direção aos ritos de tipo festivo ou antifestivo, os ritos da consumação desregrada, os ritos de abstinência e de privação. Todos os outros aspectos do modelo podem ser causa de bifurcações, mas não o são necessariamente; há ritos da voz que tendem a excluir o gesto, ou ritos da ação e da participação que tendem a excluir o puro espetáculo. Ritos, ao contrário,que tendem cada vez mais para este último e que desembocam no teatro e nas artes plásticas.[3] A imitação ritual tende a se fixar sobre um aspecto do modelo que ela privilegia cada vez mais, às custas de todos os outros. Ela também metamorfoseia aquilo que acentua. Com o tempo, ela engendra formas tão numerosas e tão diferentes umas das outras, que o bom senso se insurge contra a ideia de que todas elas poderiam remontar à mesma origem. A origem comum ao rei e ao órfão sacrificado não tem nada de absurdo, à luz da imitação seletiva, cada vez mais unilateral, e da qual a dupla experiência de Jó pode constituir o objeto. A ideia de uma origem comum a todos os ritos não é uma ameaça ao bom senso. A visão dinâmica e transformadora do rito, que acabo de esboçar, não é somente possível: ela também é a única provável, porque somente ela é capaz de explicar as diferenças entre os ritos, tanto quanto os elementos comuns que persistem até o fim e que nenhuma teoria jamais explicou. Na realidade, essa ideia é a única capaz de explicar simultaneamente semelhanças e 68 diferenças entre um rito e outro, ou seja, tanto diferenças bastante acentuadas quanto gradações infinitas que podem ser observadas entre um sistema ritual e os sistemas próximos. A origem comum me parece fecunda, pois constitui um acontecimento multiforme e polivalente, que parece mais complexo quando não é bem compreendido e que tenderá necessariamente a se simplificar a partir do momento em que é deliberadamente repetido, com frieza, na ausência das reviravoltas miméticas espontâneas. Nada é mais difícil de se avaliar nas ciências da cultura do que o papel da analogia. No século XIX, dava-se enorme importância às menores analogias. De um número limitado de analogias não dominadas, extraíam-se teorias muito gerais. Os resultados obrigatoriamente foram decepcionantes e nos dias atuais, a reação chega ao limite. No que doravante diz respeito às analogias, a desconfiança é tal, que é comum muitas vezes fingirmos não vê-las. Das analogias mais impressionantes, recusamo-nos a tirar a menor conclusão, para não revivermos as decepções anteriores. Tal atitude é tão estéril quanto a anterior. Acabamos de viver uma época em que a atitude de passar ao largo das analogias figurava por si só como uma espécie de progresso científico. De fato, tal atitude não nos deixa correr os mesmos perigos que os excessos de pouco tempo atrás. Infelizmente, ela não leva estritamente a nada, a secura atual demonstra bem isso. Sem um domínio [maîtrise] das analogias, nenhuma teorização etnológica é concebível. E as analogias não são superáveis ou contornáveis. Não se poderá mais viver por muito tempo com a ilusão de que o progresso em etnologia consiste em nunca mais se formularem as questões essenciais, em declará-las impertinentes, em particular no domínio religioso. A verdadeira questão é saber se a origem comum é uma “ideia geral” aplicada às instituições mais diversas, à maneira de uma roupa muito larga, que se adapta facilmente a todas as formas pelo fato de não se ajustar realmente a nenhuma, ou se ela verdadeiramente descreve um mecanismo genético: partindo deste último, pode-se chegar a gêneses conclusivas, que explicam o detalhe das instituições e levam em consideração a diferença nas formas análogas, tanto quanto o idêntico nas formas diferentes? É enganar-se confundir o análogo com o idêntico, mas é enganar-se de maneira mais radical ainda anulá-lo, fazendo da analogia uma diferença como as outras. Isso constitui não mais do que um método para esquivar-se ao problema central de toda pesquisa no domínio da cultura. Até aqui, essa redução do análogo ao diferente passou despercebida, pois ela se realiza sob o ponto de vista da abordagem linguística, que tem a reputação de transformar completamente a problemática, quando na realidade não faz mais do que expulsar as grandes questões do passado. Certas questões do passado são vazias de sentido, mas outras não o são e, no entanto, são excluídas com o resto. A analogia se apresenta como um amálgama (até nossos dias insolúvel) de diferença e identidade. Ao invés de se opor francamente à resolução do problema, a etnologia moderna se introduziu sucessivamente nos dois impasses que lhe davam a ilusão de se ver livre dele: o analogismo delirante, até uma época recente, e doravante, o “diferencialismo” mais delirante ainda. 69 A tese da violência e do sagrado não é um retorno ao analogismo delirante – o diferencialismo delirante não pode ver nela nada além disso –, mas um esforço para sair do duplo impasse, a fim de dominar a analogia graças a uma concepção particular sobre a mimesis e o mecanismo vitimário. Parece evidente a muitos pesquisadores que a tese da origem comum não pode evitar de minimizar ou escamotear as diferenças, que não decorrem obrigatoriamente dela. Até aqui, o que é fato, nenhuma origem única deu resultados convincentes, mas A Violência e o Sagrado não constitui uma origem no sentido legitimamente criticado em nossos dias. Se esse livro se engana, é de maneira inédita. Ainda que ele não recaia no analogismo delirante, o diferencialismo também não o acusará. Não conseguindo diferenciar as diferenças, o diferencialismo termina sufocando tudo na insignificância e no tédio. Para que se perceba que a tese mimético-vitimária explica as “diferenças”, deve-se ainda seguir passo a passo o itinerário que faz a passagem da origem violenta para a diversidade dos rituais, das instituições, das culturas. Não devemos nos contentar em dizer que esse itinerário é impossível a priori, por razões que são tidas como antidogmáticas, ao passo que não há dogmatismo mais dogmático, mais terrorista, mais negador de todo pensamento do que o dogmatismo do antidogmatismo. Aos pesquisadores que confundem as classificações com o objeto último da pesquisa, qual seja compreender o que ela explica e explicar o que ela compreende, nossa tentativa pode interessar muito pouco. A possibilidade de ir além do classificável, para estabelecer sua gênese, lhes parece impossível, contrária às ideias claras e distintas. Como o pensamento religioso de outros tempos, as modernas ciências do homem e da sociedade permanecem platônicas na alma. Elas transformam em essências independentes fenômenos religiosos e sociais que estão todos ligados entre si. Por que essas ciências são incapazes de descobrir o mecanismo da violência coletiva até mesmo num texto em que ele se mostra de modo tão impudente como nos diálogos de Jó? Porque seus métodos de análise e seus modos de discriminação e de diferenciação permanecem tributários dos mecanismos vitimários. Eles são sempre orientados para diferenças cada vez mais sutis, na direção oposta àquela da origem de que dependem. Nossas linguagens são feitas para opor o mimético ao espontâneo. São feitas para assegurar a exclusão recíproca dos comportamentos religiosos e não religiosos – sendo estes últimos os únicos percebidos como significativos. São feitas para perpetuar o desconhecimento dos mecanismos vitimários. O livro de Jó dá a prova dessa limitação das ciências do homem: a invisibilidade do fenômeno central literalmente nos dilacera os olhos, mas foge sempre dos métodos de investigação leigos, tanto quanto das teologias ainda excessivamente sacrificiais, aqueles se situando sempre no prolongamento destas. O mecanismo do bode expiatório é certamente diferenciador, na medida em que produz a diferença original; ele reconhece Jó no papel de culpado, faz dele o bode expiatório em meio a todos os seus pares miméticos, seus irmãos inimigos, que se dizem amigos; mas ele não é diferenciado no sentido das formas rituais e pós-rituais que poderiam brotar dele se tudo concorresse para isso. É por isso que ele escapa dos modos de conhecimento rituais e pós-rituais dos quais nossa época ainda não escapou. 70 Ele aparece como um monstro que se assemelha a muitas coisas ao mesmo tempo para constituir apenas uma aos olhos dos métodos de análise que derivam dele. *** Para muitos especialistas, oentendimento do sacrifício consiste em descobrir as classificações do sistema particular que lhes interessa. Eles estimam como falsa, a priori, toda teoria estabelecida sobre distinções ou aproximações que não integram a linguagem do sistema que estudam. Eles evitam as analogias. Parece injustificável dizer, como tenho feito, que o processo vitimário coletivo, o bode expiatório no sentido ordinário, dê a matriz de todos os sacrifícios. Pois a tese põe de lado certas distinções que os sistemas jamais abolem. Portanto, é fácil me acusar de não respeitar os fatos. Eis que Jó, felizmente, faz a mesma coisa, admitindo também ele comparações inconvenientes. Suas metáforas fazem o tempo todo aproximações que os teóricos de respeito das letras institucionais não admitem. De certo, é sempre possível dar de ombros, e seguir o exemplo dos “amigos”, modernizando seus argumentos. O livro de Jó, sem dúvida nenhuma, pertence à “literatura”, e o órfão sorteado é apenas uma metáfora. O rei não é mais do que uma metáfora. Estou de acordo com isso, mas estamos certos o bastante de nada podermos tirar de verídico da literatura e de suas metáforas...? A metáfora do rei realmente é incongruente ou se encontra, ao contrário, em seu contexto, perfeitamente justificada? Seria ela uma metáfora ultramoderna que faz um grande esforço para aproximar objetos realmente estranhos uns aos outros, para deles retirar efeitos de choque gratuitos, ou uma metáfora que justapõe duas realidades realmente próximas uma da outra, mas cuja aproximação nos impressiona por conta de nossa ignorância? A distância entre os dados aproximados sempre nos fugiu, porém, se ouvirmos atentamente a metáfora, é possível que aprendamos algo de que não temos conhecimento. Há coisas que as metáforas dos diálogos sabem e que as teorias etnológicas, tidas como dignas de crédito, não sabem. A neutralidade aparente das fontes não literárias é menos rica e, em última análise, menos digna de confiança que a grande literatura. Jó está em melhores condições do que nós para opinar sobre o sacrifício. Suas metáforas só têm sentido em virtude do laço de filiação que propõe A Violência e o Sagrado, entre perseguição coletiva e sacrifício ritualizado. Não se pode fazer a existência ou inexistência desse laço depender das indicações que são dadas ou não são dadas pelos sistemas de codificação litúrgica. É mais do que evidente que esses sistemas jamais publicam o enraizamento na violência que lhes é próprio. Quase tão prudente quanto dar a seu testemunho explícito a última palavra em matéria de teoria sacrificial é perguntar à comunidade de Jó se o bode expiatório [por ela determinado] é exatamente um e se as violências de que ele se lamenta são tão reais e arbitrárias quanto ele afirma. Será necessário desvincular de Jó a condição de vítima, com as desculpas de que ele é o único a nos chamar a atenção para ela e de que os três amigos (nem ninguém na comunidade) não a reconhecem nele? Todas as interpretações tradicionais lhe recusam esse status de vítima. Os fins mais eficazes nunca são os mais explícitos. Pode-se muito bem querer reconhecer em Jó a vítima de Deus, do diabo, da falta de sorte, do destino, 71 da “condição humana”, do clericalismo e de tudo o que se quiser, desde que não se trate do próximo, ou seja, de nós próprios. Essa insistência em não reconhecer a vítima enquanto tal, essa eterna reivindicação de inocência para a humanidade... não seria essa a verdade última da incompreensão presente nos diálogos? Secretamente, estamos sempre de acordo com os falsos amigos que fingem, com dificuldade, compadecer-se de Jó e que o tratam como culpado, não somente para fazer dele seu bode expiatório, mas para negar que isso seja possível. As duas coisas vão sempre juntas. Philippe Nemo está certo em pensar que os comentadores se unem aos amigos em seu esforço para reduzir Jó ao silêncio e em sua ênfase aos textos secundários... (op. cit., p. 28). O verdadeiro saber antropológico não pode se limitar a uma repetição das classificações próprias aos sistemas estudados. Ele deve explicá-las, com o auxílio de uma teoria genética, tanto quanto estrutural. Não mais do que o próprio Jó, a teoria vitimária não confunde grosseiramente a perseguição espontânea com os sacrifícios rituais, mas permite que se descubra uma relação ao mesmo tempo metafórica e real entre a perseguição espontânea e todos os sacrifícios. A relação é metafórica, pelo fato de que todo gesto ritual consiste numa substituição da vítima, e real, pelo fato de que a vítima substituída também é imolada, mais do que nunca bode expiatório. Por trás da aparente incoerência dos discursos que se sucedem e não se respondem, uma coerência superior se revela, mas com uma condição somente: é preciso interpretar a diferença de perspectiva em proveito de Jó; preferir o discurso de Jó aos outros discursos; levar a sério a revelação do bode expiatório. De modo mais direto: é preciso tê-la como verdadeira. À luz do que Jó diz, podemos interpretar tanto os discursos dos amigos quanto o conjunto dos diálogos, mas não podemos fazer o contrário. Os discursos dos amigos não iluminam de modo nenhum o que Jó diz. Há duas verdades em sentido relativo, do ponto de vista do “relativismo” e do “perspectivismo”, mas apenas uma do ponto de vista do conhecimento, qual seja a verdade da vítima. A vontade de “respeitar as diferenças” equivale, em nossos dias, a colocar todas as verdades sobre o mesmo plano. No fundo, ela extirpa a ideia mesma de verdade, vendo nela tão somente uma fonte de conflito. Mas se colocarmos a “verdade dos perseguidores” sobre o mesmo plano da “verdade das vítimas”, tão logo não haverá mais diferença nem verdade para ninguém. Os amigos são perfeitamente “sinceros”, mas sua “verdade” é o linchamento dos inocentes, sendo também uma mistificação. A “verdade” que Jó profere é exatamente outra: verdade incondicional, absoluta. Não é o bastante reconhecer o objeto do debate, a violência coletiva que se apressa em derramar-se sobre Jó e que já se aproxima dele; é preciso reconhecer as duas perspectivas sobre essa violência e sobretudo optar entre elas. Evitar de tomar partido é um engano. Todo fingimento de impassibilidade, qualquer que seja o pretexto – estoico, filosófico, científico –, perpetua o statu quo, prolonga a ocultação do bode expiatório, faz de nós cúmplices eficazes dos perseguidores. Jó é o contrário dessa impassibilidade. Longe de ser uma fonte de ignorância, a identificação apaixonada com a vítima é aqui a fonte autêntica do saber, como de todo o resto. A verdadeira ciência do homem não é impassível. 72 Em nossos dias, determinados aspectos desse saber, o saber da vítima, estão bastante disseminados, de modo que não podem ser vilipendiados nem pervertidos, nem tornar- se o instrumento paradoxal de uma perseguição mais sutil. O caráter único da época atual se revela no fato de que a posição da vítima se tornou a mais desejável, perante a opinião pública. Já não é mais a postura antiga do suplicante se esforçando em despertar a comiseração, mas a reivindicação de direitos jurídicos e extrajurídicos. Essa conjuntura entre nós é inseparável da influência bíblica. Mas não precisamos ficar obcecados pelo ressentimento mimético, como Nietzsche ficou, ao ponto de ver nele a posteridade legítima da Bíblia em nosso universo, tanto quanto sua inspiração primeira. O ressentimento é apenas um filho ilegítimo, e certamente não o pai das Escrituras judaico-cristãs. Para além dos mal-entendidos, das calúnias e das usurpações de que é alvo, das reviravoltas históricas e até mesmo dos desastres que delas resultam, e de tudo o que a desfigura a nossos olhos: a verdade da vítima finalmente reconhecida é o acontecimento mais grandioso e mais feliz de uma história que é a história do religioso e da humanidade em seu conjunto. 73 Quinta Parte A CONFISSÃO DA VÍTIMA 74 16 UM PROCESSO TOTALITÁRIO A inveja e as rivalidades miméticas desaparecem no fenômeno do bode expiatório e se metamorfoseiam empositividade religiosa, com a condição de que, evidentemente, a operação não deixe resíduos, ou seja, a unanimidade contra o bode expiatório seja perfeita. Caso uma exceção permaneça, ainda que seja única, permanecendo assim apenas uma dissonância no concerto que se manifesta contra a vítima: eis que o desfecho favorável não está mais garantido. A eficácia da droga perde o vigor; a unidade do grupo se rompe. A menor tepidez no ódio representa o risco de semear a dúvida e comprometer os efeitos catárticos sobre o moral da comunidade. Reforçar a comunidade e reforçar a transcendência sociorreligiosa são a mesma coisa. Mas esse reforço exige um mecanismo vitimário impecável, um acordo perfeitamente unânime sobre a culpabilidade da vítima. Enquanto está viva, a vítima faz parte da comunidade; portanto, ela pode participar da unanimidade que se forma contra si. A exigência de unanimidade lhe concerne particularmente. Não há nenhuma razão para isentá-la. Muito pelo contrário: nenhum assentimento é mais precioso que o seu. Os três amigos procuram convencer Jó a aprovar o veredicto que o condena. É esse o verdadeiro objetivo de sua missão, do qual depende a eficácia do mecanismo vitimário. Logo, não se trata em hipótese alguma de discorrer sobre a questão do Mal. Os três amigos procuram consolidar o “sistema de representação” fundamentado na escolha de Jó como bode expiatório. Em vista disso, eles procedem muito mal; a menos que se deixem os sistemas de representação se fazer e se desfazer sozinhos, não se pode agir de outro modo. O sistema consiste em inocentar a comunidade, denegrindo o bode expiatório. Para consolidá-lo, é preciso reforçar a crença nessa perfídia mítica. O mais eficaz, evidentemente, é uma confissão com todas as letras do culpado. É preciso que Jó afirme publicamente sua infâmia, que ele a proclame em alta voz, num tom extremamente eloquente. Veja Édipo, no final da tragédia, ressaltando mais de uma vez sua mácula horrível, ignóbil ao extremo, diante dos deuses e dos homens, o que se chama em grego um miasma. É ele quem exige a própria expulsão com um entusiasmo que lhe restituirá, com o tempo, a estima da comunidade. Sua mansidão lhe vale logo em seguida circunstâncias atenuantes por parte dos tebanos, naquele tempo, que se contentam em exilá-lo, e em nossa época, por parte de todo mundo. No fim das contas, ele só tem a vida salva por causa de sua conduta de vítima exemplar, exatamente o contrário da conduta de Jó. Pede-se à vítima que indique a seus concidadãos todo o mal que convém pensar dela a partir de então. Isso facilita a adesão de todos à ortodoxia em vias de elaboração. Nas sociedades primitivas, a força dessa adesão permite fechar o cerco e faz do bode 75 expiatório o princípio da unidade social, um deus simultanemente nocivo e benéfico. No caso de Jó, o cerco já se desfez. Há muito tempo o processo vitimário não produz mais esse gênero de divindade, mas a crise sacrificial só torna mais necessária a adesão entusiasta e espontânea da vítima à onda de mimetismo que a desonra e aniquila. Sempre que um “homem perverso” se apresenta, a comunidade aciona sua rígida máquina ritual, mas a insubordinação de Jó desestabiliza a trama: os atores não estavam preparados para esse tipo de resistência. A intervenção do quarto inquisidor, Eliú, ajuda a compreender o caráter propriamente incomum do acontecimento: uma vítima que contesta a comunidade inteira. Trata-se de um escândalo tamanho, que um leitor indignado quis suprimi-lo, inventando a personagem de Eliú, interferindo no caso por intermédio dele. A impotência dos três primeiros “amigos” em reduzir Jó ao silêncio pôs esse exaltado partidário do deus vingador numa cólera assustadora. No fundo, Eliú está tão de acordo com os três primeiros linchadores, que não pode imaginar outra causa para o insucesso deles que não seja a incompetência. Ele revela o agravamento da crise sacrificial. Como todos os que contestam com superficialidade, ele faz da juventude sua vantagem principal, sua superioridade. Quando a operação “rota antiga” desmorona, sempre aparecem tipos como Eliú para acabar de demoli-la, esforçando-se para reativá-la. Para penetrar a aposta do debate, podem-se aproximar os diálogos de Jó e Antígona de Sófocles. Nessa tragédia, tudo gira em torno de uma operação de bode expiatório que emerge algo excessivamente para representar bem seu papel, e o problema, como sempre nesses casos, diz respeito à adesão da comunidade que não é unânime. Somente a exigência de unanimidade pode explicar a importância que atribui Creonte à rebeldia de Antígona. Não é a personalidade da jovem ou seu parentesco com Polinices que dão peso a sua desobediência, mas a ruptura da unanimidade. Mostrando que Polinices em nada é diferente de Etéocles, seu irmão inimigo, e exigindo funerais para ambos, Antígona impede a resolução sacrificial buscada por Creonte. Ela impede que a diferença mítica se estabeleça. Entre os dois irmãos que morreram do modo como viveram, na simetria hostil dos pares, não se encontra nenhuma diferença. Eles se parecem como as duas gotas de água de Menecmos. São os mesmos gêmeos da violência. Quando os tebanos percebem que seu bode expiatório, Polinices, foi arbitrariamente escolhido; quando identificam nele justamente um bode expiatório: a visão vitimária não “pega”, a vítima não é vista como a responsável pelas divisões que destroem a comunidade. Esta não conseguiu se livrar de seu mal. A discórdia trágica, portanto, vai se perpetuar. O que efetivamente acontece em Antígona é que os fracassos do processo vitimário formam uma única realidade com a ação trágica. Na ausência de uma vítima unanimemente julgada culpada, de um bode expiatório suficientemente disfarçado, a tragédia recomeça, novos pares se enfrentam: Antígona e Creonte, o exército de Etéocles e o de Polinices. A aposta é idêntica à de Jó, a não ser pelo fato de que, na pessoa de Jó, Antígona e Polinices representam o mesmo papel. O denunciador da expulsão arbitrária é o próprio bode expiatório. Jó é a Antígona de sua própria causa. A ele se pede para 76 reconhecer-se martirizado por justa causa, ao que ele se recusa. Com Jó, os três “amigos” manifestam o mesmo furor previdente do rei Creonte com Antígona. Eles têm a violência a seu dispor, mas não podem utilizá-la abertamente. O que importa obter é que a vítima consinta livremente em seu suplício. Os inquisidores chegam a amenizar o tom e recorrem à estratégia, alternando as ameaças de assassinato e as vagas promessas de reintegração. É a isso que devemos, creio eu, por intermédio do prólogo, naturalmente, a interpretação particularmente falaciosa que apresenta os três amigos como “consoladores”. A moderação relativa dos três não tem nada a ver com piedade. Os amigos jamais se esquecem de seu objetivo: dobrar a resistência de Jó, mas sem obrigatoriedade aparente. Se o consentimento de Jó fosse visivelmente obtido à força, ele perderia todo o valor aos olhos da comunidade. Essa estratégia prenuncia a moderna propaganda. Na medida em que não conseguem se tornar os celebrantes num sacrifício cuja majestade por nada seria perturbada, o grupo dos três, depois dos quatro “amigos” se assemelha cada vez mais ao cerco dos policiais ao redor de um suspeito. Esses não são propriamente carrascos, mas todas as formas de intimidação, todas as pressões psicológicas lhes prestam enorme auxílio para obter as famosas “confissões espontâneas”, tão valorizadas em sociedades ditatoriais. A derrota do processo sacralizador enfraquece as conotações propriamente sagradas e tudo o que eu disse de um ponto de vista religioso pode e deve ser dito numa abordagem não judiciária, propriamente falando, mas policial e totalitária. Entre esse universo e o nosso, singulares analogias aparecem. Algo em Jó lembra uma certa decadência moderna da justiça. Por todo lado onde a ideologia corrompe o judiciário, as paródias legais se multiplicam e suscitam comportamentos análogos aos dos três inquisidores à espera da morte de Jó.Nas sociedades até agora poupadas por essa preocupante evolução, justifica-se mal a importância que os regimes totalitários associam aos simulacros de justiça, tão mal quanto a obstinação dos amigos em extrair a “confissão” de Jó. A aproximação dos dois mistérios esclarece um e outro. Nos dois casos, as garantias dos sistemas judiciários que respeitam os direitos do homem fazem falta. E procura-se a mesma coisa: a adesão sincera dos acusados à condenação sem provas, à aniquilação “sem inquérito”, como altivamente diz Eliú. Essa adesão visa substituir a prova. É preciso garantir uma coincidência perfeita entre a perspectiva dos carrascos e a das vítimas. A existência de uma verdade única está em jogo, uma verdade propriamente transcendente, que se imporia a todos os homens, sem exceção, mesmo àqueles que são aniquilados pelo triunfo de seu cortejo a passar. É preciso mostrar que essa verdade é de tal modo radiante, que se impõe, no fim das contas, mesmo àqueles que, tendo-a ignorado, devem sofrer as consequências. Eles devem reconhecer que pecaram e que tudo o que padecem é por justo merecimento. A exigência de uma vítima resignada caracteriza o totalitarismo moderno, tanto quanto certas formas religiosas e pararreligiosas do mundo primitivo. As vítimas dos sacrifícios humanos são sempre apresentadas como extremamente favoráveis à própria imolação, absolutamente convencidas de sua necessidade. É o ponto de vista dos perseguidores, que o neoprimitivismo atual é incapaz de criticar. 77 As ideologias totalitárias destroem a crença numa justiça imparcial e soberana, alheia aos conflitos da cidade terrestre. Os regimes que triunfam sobre as ruínas de uma legalidade sistematicamente vilipendiada não dispõem mais dela quando, por sua vez, dela necessitam. De fato, eles destruíram a transcendência efetiva da lei em relação aos indivíduos que compõem a sociedade real. Quando não há mais essa transcendência para assegurar a soberania e a continuidade das instituições judiciárias, nem princípio invulnerável à ambições rivais, às vicissitudes da História, à corrupção ou à mediocridade de seus representantes, algo muito grande se perdeu. Ou não existe mais, em hipótese alguma, verdade comum, ou então, para que se possa impor uma, é preciso vivê-la até o fim e, caso necessário, morrer por ela, quando se está pronto para matar por ela. É preciso confundir-se com ela, tornar-se sua encarnação. Nos sistemas totalitários, os dirigentes se orientam para esse estatuto de encarnação. Eles só escrevem livros infalíveis, pronunciam apenas palavras geniais. São tratados como a própria verdade em pessoa, o rei sagrado. É isso o que se chama de “culto da personalidade”. Mas quando os ídolos são vários, o menor desacordo entre eles afeta e compromete uma verdade que só existe verdadeiramente em suas encarnações privilegiadas. O conflito dos ídolos consiste na divisão e fragmentação do sagrado; toda a sociedade, por trás disso, corre o risco de dividir-se e decompor-se. A vitória física de uma facção sobre as rivais não é suficiente para restabelecer a unidade do verdadeiro. É preciso que os vencidos reconheçam livremente sua falta. É preciso uma confissão das culpas que não pareça arrancada à força. Exige-se que os malditos deem sua bênção à maldição que os atinge. Não se pede a eles para perdoar, em hipótese alguma para perdoar, o que daria a entender que a perseguição não é necessariamente infalível. A eles se pede uma adesão entusiasta à decisão que os anula. É exatamente isso o que os três amigos pedem a Jó. Os vencidos devem reconhecer que desde sempre estiveram no erro e na traição. Consideravam-se inocentes, mas eram culpados, parricidas e incestuosos desde a origem. Conseguiram enganar o povo, fazendo-se aclamar, quando de fato não encarnavam autenticamente a verdade. Uma vez destruída, a transcendência institucional só pode restabelecer-se de maneira temporária e precária, por meios análogos àqueles das sociedades primitivas, que também carecem de transcendência permanente, mas por razões inversas: porque ainda não a engendraram. As sociedades totalitárias modernas acabaram destruindo essa transcendência; as sociedades primitivas não conseguiram produzi-la. Tanto num caso como noutro, há apenas um recurso: o mecanismo do bode expiatório. Antes do totalitarismo, as sociedades modernas não chegaram a eliminar os bodes expiatórios, mas baniram sua pior violência em suas margens, ao mesmo tempo em que atenuavam essa violência no interior de suas fronteiras. Esses modestos progressos são comprometidos em nossos dias pela virulência progressiva dos conflitos internacionais e pelo retorno vigoroso do processo vitimário, tanto no terrorismo quanto no totalitarismo. Não mais do que os procuradores soviéticos, aos três amigos não interessa a verdade. Eles estão ali para persuadir Jó a reconhecer-se publicamente culpado, pouco importa de que, desde que seja aos olhos de todos. Em última análise, pede-se ao infeliz 78 para reconhecer-se atingido por um deus infalível, mais do que por homens falíveis. A ele se pede para confirmar a união sagrada do linchamento unânime. 79 17 A RETRIBUIÇÃO Podemos identificar outros traços comuns aos processos totalitários e ao processo de que Jó é a vítima. Um dos mais espetaculares é a supressão da memória, a vontade de eliminar não apenas o bode expiatório, mas tudo o que poderia evocá-lo, inclusive seu nome, que não se deve mais pronunciar. No universo religioso, esse tipo de atitude é justificado pela degradação que o bode expiatório dissemina, tão insidiosa e temida que bastaria apenas o menor odor, a menor lembrança, talvez a simples pronunciação de seu nome para produzir uma contaminação. A vítima é tão impura, que se deve espalhar por onde ela passar enxofre e desinfetantes, para que se possa aniquilar até os últimos vestígios sua presença sobre a terra: Sua memória desaparece de sua terra, seu nome se apaga na região. Lançado da luz às trevas, ele se vê banido da terra, sem prole nem descendência entre seu povo, sem um sobrevivente em seu território. De seu destino espanta-se o Ocidente e o Oriente enche-se de terror. Não há outra sorte para as moradas da injustiça e o lugar daquele que não reconhecia a Deus! (Jó 18,17-21). Nada é mais ritual e tradicional do que essa abolição da memória, essa erradicação total do pseudoculpado. Essa exigência de destruição hiperbólica ressurge em nossa época de forma laicizada. Certas atitudes religiosas lembram procedimentos profiláticos em caso de epidemia e, ainda em nossos dias, a medicina está frequentemente metida com esse tipo de trabalho. Todo um conjunto primitivo reaparece no totalitarismo moderno. A eliminação radical dos “culpados” lembra a manipulação de que a História é alvo no mundo totalitário. Na União Soviética, o líder destituído se torna uma persona non grata[1] e seu nome desaparece das enciclopédias e registros oficiais. Ao longo da “rota antiga”, não existe placa comemorativa. Permanece apenas a lembrança da própria rota em forma de uma ameaça que pesa vagamente sobre todos e se define no caso de Jó. Expõe-se a uma pequena viagem por essa rota todo aquele que faz demonstrações de “perversidade” aos olhos dos que manipulam a opinião pública, e define-se exatamente como “perversidade”, no caso de Jó, a recusa em curvar-se, a independência do julgamento, a vontade de não ceder ao assustador mimetismo da multidão. Longe de se reduzir a acidentes inoportunos, mas desculpáveis, “desvios” facilmente retificáveis, o culto da personalidade e as paródias judiciárias sugerem uma recaída em formas de socialidade diretamente fundadas no processo vitimário. A cumplicidade ideológica leva muitas pessoas a minimizar o que se passa e isso também faz parte do 80 que se passa. Tem-se por certo que os “desvios” cessarão uma vez por todas no dia em que os “bons” finalmente tomarem o poder e extirparem para sempre os maus; no dia, em suma, em que os “bons” forem os únicos a dispor da expulsão purificadora. Essa recaídanum tipo de socialidade que sem dúvida nenhuma dominou quase toda a história humana carece totalmente de “autenticidade” e não sabemos se, por esse fato, é preciso considerá-la menos assustadora ou, ao contrário, mais assustadora ainda. Seja lá o que fizerem daqui para a frente, os homens não podem mais esquecer- se da dimensão vitimária da revelação judaico-cristã, e a reativação do bode expiatório continua a sofrer a influência de uma fabricação malfeita, de uma mentira visível. Em nossos universos totalitários, antigamente cristianizados, a parcela de manipulação consciente é maior do que nos universos em que a verdade do bode expiatório jamais penetrou. O mundo contemporâneo ressuscita a violência primitiva sem voltar a encontrar o não saber que garantia a inocência relativa desses universos e os impedia de ser insuportáveis. Depois de ter durante alguns séculos se apartado progressivamente [desse mecanismo], sem jamais romper inteiramente com ele, as sociedades modernas, logo que cedem às tentações totalitárias – e talvez cedam cada vez mais por razões inacessíveis aos modos de reflexão estreitamente políticos e mesmo sociológicos –, se aproximam de novo não exatamente do religioso primitivo, mas de sua desagregação. Não é por acaso que os textos com maior capacidade de nos iluminar sobre o que se passa conosco são os célebres textos do universo trágico e profético, as obras mais inspiradas da decadência sacrificial do mundo antigo. Não se deve “tomar as coisas pelo lado trágico”, dizem por aí, mas talvez voltemos a nos encontrar de modo muito preciso na tragédia em sentido pleno. É por isso que o antigo livro de Jó faz vibrar em nós uma corda contemporânea. À medida que descobrirmos o funcionamento vitimário dos universos primitivos, mais penetraremos a natureza das relações entre os homens no seio dos universos totalitários. Tanto num caso como noutro, o essencial depende de uma única e mesma ausência, que não percebemos, pois se trata da ausência de uma coisa que não é una e que muitas pessoas não veem. Muitos descobrem a existência e importância dela muito tarde, a partir do momento em que cessou de ser, em razão de sua ausência. Refiro-me aqui a uma transcendência social bastante rígida e estável para se contentar em recorrer perpetuamente aos bodes expiatórios internos ao grupo ameaçado. A maior parte dos ocidentais permanecem bastante protegidos por essa transcendência para conceber a possibilidade de sua perda e o privilégio não merecido de que ainda gozam. É totalitária toda sociedade em que o bode expiatório reassume seu papel imemorial de instaurar e restaurar a transcendência, mas num clima muito influenciado pelo saber bíblico e cristão – exatamente o saber do que seja um bode expiatório – para ressuscitar verdadeiramente a ilusão dos amigos de Jó e de todos aqueles que creem viver num universo sem imperfeição. Os amigos descrevem ingenuamente esse universo regido por uma justiça infalível, universo sem dúvida horrivelmente cruel, porém, sem cair no neoprimitivismo, pode-se admitir que a inquebrantável convicção daqueles que o habitavam lhe conferia uma espécie de inocência e frescor de que as sufocantes paródias totalitárias são desprovidas. 81 A exigência de perfeição absoluta poderia muito bem ser o ponto comum entre a sociedade dos “amigos” e as sociedades totalitárias atuais. Diante de imperfeições muito evidentes para serem negadas, diante de tudo o que visivelmente se recusa com muita visibilidade a funcionar corretamente, a reação totalitária nunca é primeiramente pragmática, mas judiciária. Para chegar a soluções concretas, o estado de espírito mais fecundo consiste em pensar que talvez não haja “culpado”. Para aprender a curar a peste, é preciso em primeiro lugar renunciar aos oráculos de Laio, renunciar à caça ao bode expiatório. Os universos totalitários renunciam a essa renúncia. Eles reintegram sem saber, em nome do “progresso”, o universo mental admiravelmente definido por Elifaz: Recordas-te de um inocente que tenha perecido? Onde já se viu que justos fossem exterminados? Eu vi bem: aqueles que cultivam a maldade e semeiam o sofrimento são também os que os colhem. Ao sopro de Deus perecem, são consumidos pelo sopro da sua ira (Jó 4,7-9). Pode-se compreender sem dificuldade por que os três amigos pensam desse modo. Eles sempre participaram das ações a que Elifaz se refere, do lado dos linchadores, do lado da comunidade. Os justos são aqueles que nunca são linchados e que encerram a existência tão bem quanto a começaram. Aqueles que estão na iminência de ser linchados, via de regra, não estão ali para falar nada: é precisamente isso o que faz dos discursos de Jó uma exceção extraordinária e uma abominação para todo um universo que só pode ver em suas lamentações uma subversão imperdoável da própria ideia de justiça divina. Aos olhos dos amigos, enquanto não há Jó algum para perturbar o jogo do processo vitimário, tudo está necessariamente disposto do melhor modo possível, no melhor dos mundos. A vingança divina persegue sempre os outros; somente os maus, evidentemente, são pisoteados pela multidão. Em tais condições, não seria natural pensar que o mundo é extremamente benfeito? Aqueles que são persuadidos e completamente envolvidos pelo mecanismo do bode expiatório vivem num mundo sempre conforme às exigências da Justiça. Se, momentaneamente, esse mundo cessa de ser justo, cedo ou tarde o processo vitimário intervirá para restabelecê-lo em sua perfeição. Os amigos constatam exatamente isso no caso de Jó, como o narrador do Salmo 73. Os exércitos celestes às vezes são um pouco lentos a pôr-se em marcha, porém, assim que começam a se mover, é iminente o momento em que os bandidos pagarão pelo que fizeram. Sempre, no fim das contas, os bons e os maus recebem da divindade o que merecem neste mundo. Nisso consiste a tão poderosa ideia da retribuição: aspecto essencial de todo sistema de representação mitológica. Basta refletir um pouco sobre isso para compreender que tal ideia repousa sobre o mecanismo vitimário. É por isso que a crença na retribuição domina o religioso primitivo. É muito mais do que uma filosofia ou mesmo uma teologia. Entendo por primitiva toda sociedade estruturada por mecanismos de bode expiatório ainda intactos. A justiça transcendente forma uma só realidade com o processo vitimário descrito por Jó, enquanto não houver Jó nenhum para perturbá-lo ao descrevê-lo. Portanto, ela é tão natural quanto sobrenatural, tão transcendente quanto imanente. Ela está sempre presente, pois 82 [também] forma uma só realidade com a unanimidade mimética e, cedo ou tarde, a unanimidade mimética se refaz contra uma vítima qualquer. Nesse aspecto, como em tantos outros, o livro de Jó tem um valor de ensinamento incomparável. Os três amigos não podem crer, como fazem, na culpa de Jó e de todos os bodes expiatórios anteriores sem igualmente crer numa Justiça absoluta que sempre sai vitoriosa neste mundo. As duas coisas são a mesma. Todos aqueles que a comunidade inteira percebe como culpados são efetivamente punidos e todos os que são punidos, ou aparentemente o são, simplesmente porque um infortúnio acidental os atingiu, passam logo por culpados: tornam-se também bodes expiatórios. A Justiça vence obrigatoriamente. O mecanismo vitimário bem administrado suscita um mundo absolutamente “perfeito”, na medida em que garante automaticamente a eliminação de tudo o que é visto como imperfeito e faz parecer imperfeito, indigno de existir, tudo o que é violentamente eliminado. Esse mundo não deixa nenhum espaço para a injustiça impune ou o mal não sancionado, tanto quanto ao justo infeliz ou ao inocente perseguido. Elifaz afirma exatamente isso. Esse cerco é indefectível: o princípio dessa perfeição jamais descobrirá por si mesmo o que nele existe de falacioso. O mimetismo é muito forte. Jó pode espernear até o final dos tempos sem ser ouvido por seus amigos, nem por ninguém. O princípio fundador não se deixa aniquilar. Logo que surge algo que poderia suprimi-lo,e fazê-lo reconhecer-se como ilusório – a voz de Jó, por exemplo, proclamando-se bode expiatório –, o mecanismo de eliminação se põe em movimento, seja sob formas derivadas, amenizadas e intelectualizadas, das quais nossos mil modos de ignorar o que Jó diz constituem excelentes exemplos. O isolamento em si mesmo de todo “sistema de representação” é proveniente, no fim das contas, do mecanismo vitimário. A tendência a atribuir as imperfeições de uma sociedade aos bodes expiatórios de dentro e de fora dela certamente permanece universal, no entanto, ao invés de enfraquecê-la e denunciá-la, as sociedades totalitárias a estimulam e sistematizam. Elas nutrem com vítimas o mito que buscam promover, qual seja o de uma perfeição que lhes seria própria. 83 18 ESMORECIMENTOS DE JÓ Em Jó, frequentemente, pode-se observar uma tendência a aumentar o número dos perseguidores e a exagerar seu poder. Você se lembra de expressões como “gente vil”, vivendo em “barrancos escarpados” ou em “covas e grutas do rochedo”? Alquebrada por privações, com dificuldade ela se mantém em pé. É difícil ver o que ela poderia ter em comum com os inúmeros combatentes enviados pelo todo-poderoso para castigar seu inimigo. Não corremos o risco de confundir as duas tropas. Mas sem a menor transição, o tom muda: exércitos invencíveis se precipitam ao ataque; turbas numerosas levam consigo as fracas defesas de Jó. A epopeia vingadora recomeça, mas os agressores não mudaram: Jó, por sua vez, mudou de registro. Poucos momentos antes, ele descrevia seus inimigos como “mirrados pela penúria e pela fome” (Jó 30,3), capazes de no máximo cuspir sobre ele a uma distância mínima, e eis que nos encontramos novamente em plena cavalgada das Valquírias, como se um dos amigos tivesse a palavra. Retomo esse relato a partir de um trecho anterior ao final do texto citado anteriormente: E agora sou alvo de suas zombarias, o tema de seus escárnios. Cheios de medo, ficam a distância e atrevem-se a cuspir-me no rosto. Porque [Deus] deteve meu arco e me abateu, perdem toda a compostura diante de mim. À minha direita levanta-se a canalha, eles fazem escorregar meus pés e abrem contra mim caminhos sinistros; desfazem minha senda, trabalham para minha ruína e não há quem os detenha. Irrompem por uma larga brecha E sou jogado sob os escombros.[1] Os terrores estão soltos contra mim, minha segurança se dissipa como vento, minha esperança varrida como nuvem (Jó 30,9-15). Sem que se saiba por que, o estilo da revelação verdadeira dá lugar ao exagero épico. A mudança se opera de uma só vez, bem no meio de um discurso. Os exércitos celestes não são imaginários. Acabo de demonstrá-lo. Eles se confundem com a comunidade que se ergue contra o bode expiatório. Os esmorecimentos linguísticos de Jó são a confirmação disso. Os adversários são sempre os mesmos. Do ponto de vista do conteúdo, não há ruptura. Esses deslizes linguísticos são capazes de dissipar todas as dúvidas que poderiam subsistir quanto à identidade real desses famosos exércitos. Os carrascos reais e os guerreiros sobrenaturais formam uma só realidade. Nos textos citados anteriormente, a oposição dos discursos dos amigos aos de Jó era 84 sempre nítida. Eis que agora ela se torna confusa. Privilegiei primeiramente os textos mais reveladores, em que o realismo do bode expiatório triunfa incontestavelmente. Há outros que se revelam bem diferentes. Minha interpretação geral se fundamenta no caráter irredutível da oposição da fala dos amigos à fala realista de Jó. De um lado, a visão persecutória da sociedade, geradora de mitologia e ritual; de outro, a visão de Jó, que subverte a primeira, revelando-o como o bode expiatório injustamente perseguido. Mas eis que, agora, Jó passa para o lado do inimigo, imitando a ferocidade dos amigos em todos os textos que o mostram fiel à divindade dos bodes expiatórios, à divindade bárbara da tribo. Tudo isso produz uma impressão de desordem caótica. Para os leitores seduzidos pelo prólogo, os que não veem em Jó o bode expiatório pressionado de todos os lados, perseguido por uma acusação envolvida pelo manto da divindade, os esmorecimentos verbais de Jó contribuem substancialmente – o que é óbvio – para a incompreensão do livro e, consequentemente, a paralisia notável da exegese através dos séculos; reforçam a autoridade do deus vingador e tornam o enigma do texto insolúvel. Quando uma vítima adota a linguagem de seus perseguidores, torna-se mais difícil reconhecer nela uma vítima. Em alguns de seus discursos, Jó se assemelha tanto a seus adversários, que os editores do texto se veem em dificuldade. Eles atribuem a um dos amigos afirmações que parecem inverossímeis na boca do herói. Sem dúvida, os editores têm razão. Interpolações e manipulações de todo tipo tiveram de se produzir; porém, parece-me que a desordem é muito profunda para uma solução somente filológica. Ela coloca um problema geral de interpretação. Em certos casos, é certamente Jó que fala; não se pode substituí-lo por nenhum de seus amigos, no entanto, ele fala exatamente como estes. Poderíamos crer estar ouvindo Elifaz, Baldad e Sofar em seus transes de vingança. Entretanto, não se deve ficar impressionado, nem largar o fio condutor da violência e do sagrado. A mistura das vozes, a confusão das diferenças, nunca em benefício de Jó, sempre em proveito da visão comunitária, da visão totalitária, longe de comprometer a leitura que proponho, encontra nela seu lugar. Poderíamos dizer que Jó, em certos momentos, não pode mais sustentar seu discurso realista e revelador. Ele é o único a manter esse discurso: a tentação de renunciar a ele e de falar como todos os outros pode se tornar irresistível... De vez em quando, ele sucumbe a ela. Na perspectiva do processo totalitário sugerida no capítulo anterior, essas contaminações repentinas podem se manifestar como esmorecimentos do herói, semivitórias para o perseguidores. Nada é mais fácil do que fazer um suspeito confessar tudo o que se quer, quando se sabe como agir de modo favorável a essa intenção. A pressão unânime de um grupo sobre um indivíduo solitário não pode ficar sem efeito. Ao esmorecer, Jó tende a emprestar a linguagem de seus adversários, repetindo depois deles todos os estereótipos de imprecações semirrituais destinadas aos “homens perversos”. Nada no texto anuncia nem justifica essas aberrações, mas elas não têm nada para nos espantar. Num ser submetido a tanta violência, a confusão das línguas é praticamente 85 inevitável. Entre a vítima e seus algozes, o contágio mimético é normal. Os efeitos de espelho entre Jó e os “amigos” são provenientes dessa força estranha que algumas vezes faz sucumbir ao poder fascinador dos carrascos mesmo as vítimas mais determinadas. Determinadas fórmulas de Jó sugerem substancialmente o fenômeno psicológico a que faço alusão: Mesmo que eu fosse justo, sua boca condenar-me-ia; se fosse íntegro,[2] declarar-me-ia culpado. Sou íntegro? Eu mesmo já não sei, e rejeito minha vida (Jó 9,20-21). O assédio dos amigos faz suas certezas mais fortes vacilarem, podendo destruí-las. É a própria inocência que Jó defende com mais força e eis que mesmo essa última convicção vacila. Estamos no mesmo domínio, antigo e moderno simultaneamente, que Dostoievski e Franz Kafka exploraram com genialidade. Mesmo num universo que não a reconhece oficialmente como divina, a unanimidade social, na maioria das vezes sem dificuldade, triunfa sobre resistências individuais. Isso não é sempre verdadeiro no caso de Jó, o que faz dele uma vítima excepcional. Deve-se crer que as forças e fraquezas de Jó são efeitos deliberadamente desejados, habilmente calculados por um autor capaz de sugerir com sutileza a perturbação de Jó, suas incertezas, a situação intersubjetiva e espiritual complexa que estou tentando descrever? É possível, mas não provável. Parece-me mais provável que o autor, diante de seus próprios amigos Elifaz, Baldad, Sofar etc., se encontre ele próprio numa situação simbolicamente análoga à que põe em cena.Ele se revolta, oscila em direção a outra coisa que não o deus vingador, sem ter domínio pleno sobre seu projeto. Com Philippe Nemo, penso que se deve adotar essa hipótese, a mais apaixonante. Tudo nos diálogos a sugere, embora nada possa verdadeiramente confirmá-la. Não sabemos onde situar exatamente o autor em relação a seu personagem: a que distância, a que ausência de distância? Possuímos apenas esse personagem e é dele que devemos falar. Nada nos proíbe, ao falar dele, de pensar no autor desconhecido dos diálogos. Portanto, ocorre a Jó duvidar de sua inocência: Se eu decidir esquecer minha aflição, mudar de fisionomia e fazer rosto alegre, eu temo todos os meus tormentos, pois sei que não me terás por inocente. E se fosse culpado, para que afadigar-me em vão? (Jó 9,27-29). Eis uma marca característica das vítimas submetidas à tortura: sua percepção apresenta certas distorções, sempre mais ou menos parecidas com as dos perseguidores. Na visão que estes têm de si mesmos, como também na das vítimas, eles se tornam mais prodigiosos do que na realidade o são. Produz-se uma coisa análoga no domínio especificamente religioso. Longe de repelir a ideia de que o próprio Deus é seu inimigo, que tentam impor-lhe, Jó a aceita e inclusive a solicita, num espírito de orgulho desesperado. Para a vítima, ver-se exposta à hostilidade pessoal da divindade é a experiência mais 86 terrível, mas que oferece, curiosamente, uma espécie de compensação da qual os carrascos não podem privá-la: pois a vítima retoma uma ideia que lhes é própria. Se eles a contradizem, eles também se contradizem a si mesmos. Para reconquistar uma superioridade de que seus perseguidores não podem destituí-la, a vítima é revalorizada. Por vezes, algo semelhante a isso se encontra nos indivíduos acusados de feitiçaria. Em vez de negar vigorosamente seus pactos com o diabo, eles criam para si uma triste glória. Trata-se de uma profusão que volta a ser preciosa aos culpados, na medida em que fornece aos perseguidores tudo o que eles exigem. Essa profusão legitima a acusação, finaliza a unanimidade violenta. Eis uma passagem característica: Até quando continuareis a afligir-me e a magoar-me com palavras? Já por dez vezes me insultais, e não vos envergonhais de zombar de mim. Se de fato caí em erro, meu erro só diria respeito a mim. Quereis triunfar sobre mim, Lançando-me em rosto minha afronta? Pois sabei que foi Deus quem me transtornou, envolvendo-me em suas redes. Grito: “Violência!”, e ninguém me responde, Peço socorro, e ninguém me defende (Jó 19,2-7). Censurando uma vez mais seus amigos por fazerem de tudo para aniquilá-lo, para provar sua culpa, Jó minimiza o papel da perseguição humana em relação a sua contraparte divina – esta, no entanto, se concretiza exclusivamente por meio daquela. Somente a atitude dos homens revela a Jó a hostilidade da divindade a seu respeito. Observemos a imagem das redes divinas que aprisionam a vítima, frequente nos Salmos em que o bode expiatório tem a palavra, frequente também na epopeia e na tragédia. Antes de matar Agamêmnon, para reduzi-lo à impotência, Clitemnestra lança sobre ele uma espécie de rede que o envolve completamente. A rede lembra o cerco da vítima por uma tropa armada. Embora executado exclusivamente por Clitemnestra, ajudada por Egisto, o homicídio do rei esconde uma dimensão coletiva simbolizada pela rede, assim como, ao redor dos homicidas, a presença permanente dessas assassinas coletivas que são as Erínias. Essa imagem faz parte de um conjunto metafórico centrado na caça, de preferência coletiva: a caça aos animais selvagens, parecida com a caça aos homens. A rede de Agamêmnon é, na Oréstia,[3] a mesma coisa que a rede de Jó em todas as imagens de armadilhas, de caças e de redes nos discursos sobre os exércitos celestes. O que está presente aqui é sempre o deus da caça ao homem, não o Iahweh profético, mas o Apolo ou o Dioniso trágico. Ele constitui uma só realidade com a febre persecutória que obceca o grupo humano e que se transmite mimeticamente entre os que são próximos. É o deus dos amigos. Sobre o plano religioso, na maior parte dos diálogos, Jó se distingue pouco das pessoas que o rodeiam: Deus entregou-me a injustos, jogou-me nas mãos dos ímpios. Vivia eu tranquilo, quando me esmagou, agarrou-me pela nuca e me triturou. 87 Fez de mim seu alvo. Suas flechas zuniam em torno de mim, atravessou-me os rins sem piedade, e por terra derramou meu fel. Abriu-me com mil brechas E assaltou-me como um guerreiro (Jó 16,12-14). Uma vez mais, vemos transparecer nessa passagem o todos contra um da violência coletiva. Trata-se sempre do registro épico/ritual da caça ao bode expiatório. Decerto, Deus é único e quando se faz guerreiro, continua a sê-lo, mas esse singular equivale a um plural, pois são necessariamente numerosos os guerreiros que se precipitam contra a vítima com suas flechas. Para falar da divindade, Jó recorre à imagem dos exércitos celestes. Ele diz que Deus o entrega a homens injustos, e o coloca nas mãos de ímpios. Ao mesmo tempo em que afirma o caráter persecutório dos amigos (e sem que lhe peçam isto), a vítima declara ser realmente a vítima, não dos homens, mas da divindade. Como todos, Jó acredita que o ódio a sua pessoa não poderia se estender ao conjunto do povo sem o aguilhão da divindade. Um velho instinto religioso não o autoriza a desconfiar do direito dos perseguidores de invocar a autoridade do deus social. São “ímpios”. Jó não acredita em sua autoridade enquanto homens, mas enquanto mandatários da divindade, uma vez que o próprio deus o entregou a esses perversos. Ele se esforça para recusar a autoridade sagrada do linchamento, para dissociar a divindade e os perseguidores humanos, mas quase sempre sem sucesso, de modo que sua linguagem permanece em conformidade com o sistema da violência e do sagrado. Mesmo em sua boca, encontramos imponentes definições do divino como expressão transcendente da violência coletiva. Diante da quantidade formidável de materiais aqui reunidos, pergunto-me por que a crítica sempre age com o objetivo de nada enxergar, unanimemente. De fato, o que parece mais incompreensível explica tudo. A unanimidade só pode ser mimética; a unanimidade se perpetua em todas as leituras sucessivas: religiosas e não religiosas. Duvido muito que a presente tentativa consiga diminuí-la. Retomo meu raciocínio. O Jó conformista permanece fiel àquilo em que sempre acreditou. Ele mesmo disse que sua prodigiosa popularidade no passado vinha diretamente da divindade. Ele não pode ver em seus triunfos mundanos uma prova da benevolência divina sem ver na revolta do povo contra ele uma prova de que o próprio deus o amaldiçoara. Ele continua a pensar como toda a comunidade. Para Jó, em suma, a voz unânime da comunidade é a voz da própria divindade: vox populi, vox dei. O adágio latino é a expressão rigorosa do sistema expiatório. Não é de se espantar que Jó, de vez em quando, esmoreça naquilo em que é mais forte: em sua declaração de inocência. Que ele não tivesse fraqueza seria difícil de aceitar. Sobre o plano religioso, as coisas vão tão longe, que falar de “esmorecimentos” ou de “fraquezas” não bastaria. A maior parte do tempo, Jó não pode fugir desse pensamento que sempre foi o seu, e o de todos os que o rodeiam. O religioso se define por meio da adoção mimética dos gestos e da linguagem de todos, perante o bode expiatório primeiramente, em seguida perante tudo o que decorre do processo ritualizado; o religioso é a própria cultura. Pela dimensão de seu ser, Jó permanece mergulhado em seu universo cultural. Eleito pelo povo, ele se 88 considerava necessariamente eleito pela divindade; vê-se como maldito no dia em que o povo o amaldiçoa. É verdadeiramente difícil entender isso? As coisas são muito diferentes em nosso tempo? É no campo do religioso que a tradição é mais forte, a estabilidade cultural é maior, a inovação é mais inconcebível. Mesmo em seus piores momentos, Jó nunca cede completamente à opinião unanimemente decididaque vê nele um culpado; mesmo em seus melhores momentos, ele nunca chega a se libertar completamente da teologia feroz que o destrói. O leitor que opina sobre o caso a partir do prólogo esperaria ver um Jó muito mais entristecido, bem menos angustiado do que de costume. Para compreender essa angústia, não basta reconhecer em Jó um ser realmente perseguido pelos homens; é preciso compreender que na maior parte do tempo ele se considera perseguido pela própria divindade. Ele partilha suficientemente os preconceitos atrozes de sua comunidade para que seu terror seja por isso agravado. O sistema religioso o aprisiona numa formidável coerência e, em boa parte dos diálogos, Jó não consegue dissolvê-lo. Eu temo todos os meus tormentos, pois sei que não me terás por inocente (Jó 9,28). Na maior parte dos diálogos, o deus de Jó não é o Iahweh bíblico. Philippe Nemo demonstra bem isso. Seríamos tentados a remeter o leitor a Durkheim se este não tivesse feito de seu deus sociológico um fantasma evanescente ao privá-lo do essencial, separando-o de tudo o que o mecanismo vitimário lhe confere de selvagem, de demente, de implacável, de coercitivo, de irresistível. Toda comunidade em estado de ebulição contra um bode expiatório sempre interpretou sua experiência como a epifania divina por excelência. E o próprio bode expiatório, incluindo aí o bode expiatório excepcional que é Jó, só consegue se libertar parcialmente de tal interpretação: grande desvantagem na batalha que ele trava para provar sua inocência. Ele mesmo o diz. Os argumentos dos homens o oprimem menos do que a ideia de uma sanção divina por trás das acusações humanas. Mesmo o paralelo do processo totalitário aqui deixa a desejar. Ele nos levaria a minimizar o poder de conformismo que atua sobre Jó. Nas sociedades da violência religiosa, não é uma ideologia, por mais tirânica que possa ser, que congrega os homens contra o bode expiatório, mas uma poderosa experiência do sagrado, consolidada por uma tradição imemorial. Essa visão parece tão coercitiva quanto a evidência científica em nossos dias. Onde foi parar a audácia de Jó, que parecia tão grande há pouco? Diríamos que ela derreteu como gelo. No entanto, ela subsiste. Apesar das fraquezas que acabo de descrever, Jó jamais se dá por vencido no que diz respeito a sua inocência. Seu esmorecimento não dura, e até o fim ele não admitirá confessar-se culpado. Seu último discurso está impregnado de uma certeza inabalável. Meia vitória: sendo incapaz de atacar de frente a noção do divino que o destrói, Jó recorre à arma dos fracos: ele contesta. Não podendo rejeitar esse deus como um todo, ele pode repudiar alguns de seus fragmentos e aspectos diversos, subverter e minar a autoridade sagrada em aspectos particulares. Na medida em que o colocam na posição de acusado, ele coloca a divindade na de acusação. Ele critica sobretudo a justiça divina. 89 Contra esse deus social que lhe parece inadmissível, mas que continua sendo para ele o único imaginável, Jó tem como única escapatória a revolta. Ele acusa esse deus de entregá-lo “a injustos”, de “jogá-lo nas mãos dos ímpios”, sem motivo algum, e sem deixar-lhe a menor possibilidade de se defender. Ele não é homem como eu a quem possa dizer: “Vamos juntos comparecer em julgamento”. Não existe árbitro entre nós, que ponha a mão sobre nós dois para afastar de mim a sua vara e rechaçar o medo de seu terror! Então lhe falaria e não teria medo, pois eu não sou assim a meus olhos (9,32-35). Já tenho tédio à vida, darei livre curso ao meu lamento, falarei com a amargura da minha alma. Direi a Deus: não me condenes, explica-me o que tens contra mim. Acaso te agrada oprimir-me, rejeitar a obra de tuas mãos e favorecer o conselho dos ímpios? (Jó 10,1-3). Em seus momentos de maior desespero, Jó se esforça para seduzir seus amigos e para introduzi-los numa espécie de aliança contra a própria divindade. Ele se esforça para afastar seus amigos da causa divina, que eles defendem, segundo ele, mediante argumentos mentirosos. De qualquer maneira, Deus não precisa deles. É para Deus que proferis palavras injustas, para ele esses propósitos mentirosos? Tomais assim seu partido? É para Deus que pleiteais? (Jó 13,7-8). Encontramos sempre o mesmo esforço para dissociar essas duas entidades inseparáveis que são o deus e a comunidade unidos contra ele, e sempre o mesmo insucesso. Como Jó conseguiria desagregar indivíduos tão imitativos e tão comprometidos com uma causa que ele reconhece a cada instante, implícita e explicitamente, como sendo do próprio deus? Incapaz de colocar em dúvida a existência desse deus mimético e vitimário, Jó ataca freneticamente sua pretensa justiça. Ele constata que o deus do bode expiatório é injusto com ele, o indivíduo chamado Jó, mas não se contenta em falar particularmente de seu caso, pois compreende bem que, ao limitar-se a si mesmo, não convence ninguém. Assim, ele universaliza seu raciocínio. (...) deixa a terra em poder do ímpio e encobre o rosto aos seus governantes: se não for ele, quem será então? (Jó 9,24). Ao invés de ver a justiça por toda parte, como ocorre com Elifaz no grande trecho sobre a “retribuição” que citei acima, Jó vê injustiça por todo lado. Ele inverte o esquema do deus social. Essa inversão se explica facilmente no contexto do ataque formidável, mas às vezes simultaneamente superficial e confuso, que Jó faz ao sistema vitimário em seu conjunto. 90 Por que os ímpios continuam a viver, e ao envelhecer se tornam ainda mais ricos? Veem assegurada a própria descendência, e seus rebentos aos seus olhos subsistem. Suas casas, em paz e sem temor, a vara de Deus não as atinge. Seu touro reproduz sem falhar, sua vaca dá cria sem abortar. Deixam as crianças correr como cabritos, e seus pequenos saltar. Cantam ao som dos tamborins e da cítara e divertem-se ao som da flauta. Sua vida termina na felicidade, descem em paz ao Xeol (Jó 21,7-13). Jó também ironiza o tema da boa morte reservada apenas aos justos. Esse tema acompanha a ideia da retribuição como sua sombra e torna completamente manifesto, ao que me parece, o enraizamento desta no processo vitimário. Morrer bem é morrer o mais tarde possível, na “fartura de dias”, mas principalmente morrer rodeado pela consideração de todos, possuindo até o fim a estima dos próprios concidadãos, sem a qual a vida não dura muito tempo e, de qualquer maneira, não vale a pena ser vivida. Esse tema está muito presente em diversos textos, bíblicos e não bíblicos, para não enraizar-se num vago temor de acabar mal. Ter um triste fim nem sempre é morrer linchado, sem dúvida, mas morrer abandonado e desprezado por todos, por meio de uma morte que não pode ser diferente desse abandono e desse desprezo. Na época em que o povo o adorava, Jó acreditava que essa adoração o acompanharia até a morte e que ele jamais perderia seu prestígio. Ele o diz em todas as letras: Quem me ouvia falar felicitava-me, quem me via dava testemunho de mim; (...) E pensava: “Morrerei no meu ninho, depois de dias numerosos como a fênix (...) minha honra ser-me-á sempre nova, em minha mão o meu arco retomará força” (Jó 29,11-20). Morrer bem, para um chefe do povo, é morrer de modo bem diferente de um bode expiatório: venerado até a morte. Para os poderosos deste mundo, para os homens em cuja direção converge o mimetismo invejoso de mil rivais, o tema do prestígio intacto e da multidão numerosa nas cerimônias fúnebres tem muita importância para não sugerir o temor de acabar como “homem perverso”. Jó considerou-se destinado a morrer bem; acreditou na retribuição por tanto tempo quanto na fidelidade de seus admiradores, mas a partir de agora já não acredita mais. Não podemos nos espantar ao ver um Jó repudiado por seu povo combater a ideia de uma equivalência entre a simpatia popular e o mérito real de um indivíduo. De acordo com o novo Jó, o ímpio desfruta das vantagens reservadas automaticamente ao justo por meio de um sistema vitimário ainda intacto: Quem lhe reprova sua conduta e quem lhe dá a paga peloque fez? É conduzido ao sepulcro, 91 e se monta guarda sobre seu túmulo. Leves lhe são os torrões do vale. Atrás dele toda a população desfila (Jó 21,31-33). Nesse mundo invertido, os maus acabam bem e os justos, mal. Esse gênero de discurso não encontra nenhuma reverberação em meio aos amigos, é claro. Eles sustentam a prova de que Jó está enganado, prova irrefutável: a vítima é Jó. Como os três amigos estão sempre de acordo com a multidão, o veredicto da multidão, para eles, é responsável pela justiça ou a injustiça dos indivíduos. Portanto, eles nunca viram e nunca verão um ímpio ter uma boa morte ou um justo que tivesse um triste fim. Tudo é sempre perfeito, devo repetir, para uma humanidade mistificada pelas erupções periódicas de sua própria violência unânime... O mal só revela seu caráter intratável neste mundo a partir do momento em que o mecanismo vitimário é contestado, abalado. Portanto, minha leitura é compatível com a de Philippe Nemo, que eu desejaria somente um pouco mais atento à responsabilidade dos homens nos sofrimentos do ídolo repudiado. 92 19 MEU DEFENSOR ESTÁ VIVO Não vemos ainda nenhuma repercussão sobre o plano religioso da audaciosa revolta do bode expiatório. Em todas as passagens já citadas, a religião de Jó se mantém prisioneira do mimetismo vitimário. Deus não deixa de ser para Jó o que ele é para todos que o rodeiam: a máquina registradora das unanimidades violentas. Se não houvesse nada além disso, seria necessário concluir que a audácia de Jó permanece puramente “existencial”, sem eficácia propriamente religiosa. Mas há duas exceções à regra que se desenha. Dois textos importantes fogem ao conformismo que acabamos de observar. De súbito, Deus se mostra atento aos clamores de Jó. Nele subjaz uma testemunha de defesa, um defensor do Justo injustamente tratado. Talvez seja o próprio Jó, ou o clamor de Jó que sobe até Deus. Os acusadores, os demônios, não são mais os únicos a ser ouvidos. Deus dá ouvidos à vítima: Tenho, desde já, uma testemunha nos céus, e um defensor nas alturas; intérprete de meus pensamentos junto a Deus, diante do qual correm as minhas lágrimas; que ele julgue entre o homem e Deus, como se julga um pleito entre homens (Jó 16,19-21). Esses versos não refletem mais a submissão mimética ao deus de violência, nem o contrário, a revolta que perpetua o império desse deus. O desespero pela primeira vez cede lugar à esperança. Isso não aconteceria se a própria concepção de Deus não tivesse mudado. Para observadores impregnados de valores bíblicos como nós, o que se passa aqui parece tão banal, que dificilmente identificamos a novidade disso. Se eu enfatizei tanto a presença obcecante do deus perseguidor por toda parte nos diálogos, mesmo nos discursos de Jó, foi para ressaltar essa novidade, tornar palpável a transformação religiosa que se opera nessas palavras que acabo de citar. Vindo de uma vítima universalmente rejeitada, essa transformação não nos surpreende. Privada de todo apoio da parte dos homens, a vítima se volta para Deus; ela abraça a ideia de um Deus das vítimas e não permite que seus perseguidores monopolizem a ideia de Deus. Vivemos num universo em que nada é mais fácil e mais natural do que essa apropriação de Deus pela vítima. Em nosso universo, diante da opinião pública, a posição mais vantajosa é quase sempre a da vítima e todo mundo se esforça para ocupá-la, quase sempre sem justificação real. Mas essa possibilidade de que todos usamos e abusamos, nós a devemos à Bíblia. Os textos que lemos contribuíram potencialmente para produzi-la. Neles percebemos um universo bem diferente, qual seja o da violência sagrada, que mantém sua influência sobre a maior parte dos diálogos, incluindo também algumas declarações de Jó. A solenidade das passagens em que essa influência se desfaz sugere 93 que o autor tem a perspicaz consciência de enunciar coisas nunca antes ouvidas. A comunidade unânime se considera defensora da justiça, sem provas nem inquérito: seu próprio estupor sanguinolento se dá como manifestação divina. Dessa comunhão, ninguém está excluído, como vimos, nem mesmo a vítima, desde que dela justifique a violência e não seja estraga-prazer. Mas uma vítima que se defende até o fim, uma vítima que impede essa comunhão e se opõe à divindade parece inconcebível. E como é que ela pode, ainda assim, invocar simultaneamente o auxílio da divindade? Jó não vai ao extremo de repudiar o deus dos perseguidores, mas instala junto dele não o acusador, o diabo, que esse deus já é por definição, mas seu contrário, um representante dos acusados, um advogado de defesa. Esse deus não se torna por isso exclusivamente o deus das vítimas – o que ainda é impensável! –, porém, ele já não é mais o deus apenas dos acusadores, apenas dos perseguidores. Parece-me que o texto da Tradução Ecumênica da Bíblia (TEB)[1] torna essa dualidade visível, sugerindo uma verdadeira oposição no âmago do divino: Tenho agora uma testemunha nos céus, possuo um fiador lá nas alturas. Meus amigos fazem troça de mim, mas os meus olhos pranteiam para Deus. Defenda ele contra Deus o homem, como o ser humano intervém por seu igual (Jó 16,19-21). Este primeiro texto deixa o deus dos perseguidores e o Deus das vítimas um diante do outro. Mas um segundo texto empurra para a frente o movimento que me parece interrompido na metade do primeiro. Os dois aspectos da divindade dupla não podem equilibrar-se, nem estabilizar-se. Eles são incomparáveis e incompatíveis. Três capítulos adiante, o movimento recomeça e Jó dá um passo a mais em direção ao impensável: um Deus das vítimas: Eu sei que meu Defensor está vivo e que no fim se levantará sobre o pó: quando tiverem arrancado esta minha pele, fora de minha carne verei a Deus. Aquele que eu vir será para mim, aquele que meus olhos contemplarem não será um estranho (Jó 19,25-27). Desta vez, Deus está sinceramente do lado de Jó: ele intervém em favor da vítima, mas somente depois da morte de Jó, possivelmente após a morte de todos os homens, para fazer justiça àquele que foi injustamente condenado. Ao que tudo indica, no fim dos tempos, entre Deus e o Justo maltratado se estabelecerá uma relação viva. Junto a Deus, Jó estará em casa, será justificado e consolado de sua desventura. Essas duas passagens constituem o ponto mais alto dos diálogos. A revelação da vítima que proclama sua inocência lhes serve obrigatoriamente de base, já que, para que se possa conceber um Deus das vítimas, é preciso abalar as certezas miméticas do mecanismo vitimário. Mas isso permanece implícito. Não é possível encontrar nada, em outro trecho dos diálogos, nem no resto do livro, que se eleve à altura desses dois textos. O deus que finalmente rompe o silêncio e responde a Jó “do seio da tempestade” (Jó 38,1) não faz a menor alusão às questões postas por essas duas passagens ou pelos protestos de inocência de Jó. Ele parece não compreender que Jó é a vítima de sua 94 comunidade, ou talvez finja ser. Jó, para ele, é um indivíduo que faz contestações metafísicas sem razão válida. Por esse discurso, ele põe de lado toda a problemática do bode expiatório. Esse deus coloca o problema da maneira enganadora que sempre prevaleceu desde então: ele escamoteia tudo o que se refere às relações de Jó com sua comunidade – melhor maneira de neutralizar a força subversiva do discurso de Jó. As palavras permanecem, mas seu sentido se torna inacessível, ou quase. Isso é mais eficaz do que reduzir Jó ao silêncio, por uma violência física muito visível. Para fugir do pavoroso enxame das relações humanas, esse deus se refugia na natureza. Ele dá a Jó uma longa conferência sobre o que se chamava antigamente de história natural. Um pouco de astronomia, um pouco de meteorologia, muito de zoologia. Esse deus adora os animais. Ele disserta abundantemente sobre o íbis, o galo, o leão, o onagro, a camurça, o búfalo, o avestruz, o cavalo, o falcão e, finalmente, sobre Beemot e Leviatã. Estes últimos são os dois grandes protagonistas dessa grande vitrine. Eles seassemelham muito a um crocodilo e a um hipopótamo, ligeiramente retocados pela inspiração mitológica. A poesia desse conjunto de fábulas não deve nos dissimular que ele constitui a demonstração de um poder irresistível. Esse deus mostra sua força para não ter de fazer uso dela. Não é mais o deus dos amigos, que abertamente exercia seu terror contra os bodes expiatórios. Ele não atiça mais os exércitos celestes contra o rebelde. Ele recorre à astúcia e obtém ganho de causa: eis Jó finalmente dócil e silencioso, cheio de admiração e terror pelo avestruz e o Leviatã. Cada um dos animais faz sua pequena demonstração e o bode expiatório se declara aliviado de suas angústias. É difícil levar essa encenação a sério. Todos os comentadores a criticam; no entanto, ela exerce o seu papel na supressão do texto dos diálogos. Após o fracasso dos três, e também de Eliú, o deus dos animais nada mais é do que um reforço suplementar para uma nova abordagem do bode expiatório. A perseguição não se direciona mais a Jó propriamente, mas às revelações precedentes que a astúcia desse deus faz parecerem insignificantes e escolares. Os discursos de Jó se transformam nessa armadilha da questão do Mal, sobre a qual a exegese universal permanece fixada há milênios. No âmbito textual, a operação que fracassa no âmbito da violência textual obtém êxito completo. Sobre o plano religioso, esse deus é apenas uma variante menos abertamente feroz do deus que o precedeu. Na medida em que não revela o mecanismo vitimário, ele permanece apoiado sobre o primeiro. Essa espécie de exibidor de ursos que se passa por Deus não tem nada a ver com o Defensor invocado. O Jó que agradece obsequiosamente a esse charlatão não tem nada a ver com aquele dos diálogos. É difícil ver aqui a legítima continuação dos diálogos e declarar-se completamente satisfeito com a satisfação de Jó. Assim como o prólogo e a conclusão, os discursos desse deus têm a única finalidade de escamotear o essencial, tornar os diálogos ilegíveis e transformar o livro de Jó na anedota burlesca que todo mundo recita mecanicamente. O deus dos últimos discursos continua a ser o deus dos perseguidores, mas de maneira menos visível, mais hipócrita do que o general atuando como chefe dos exércitos celestes. Ele dissimula com habilidade sua atuação, com tamanha habilidade que ele mesmo parece não mais saber o que pretende. 95 No lugar dos exércitos celestes, os únicos que permanecem são Beemot e Leviatã. Somente o gosto desse deus pela força monstruosa ainda sugere indiretamente o que mostrava de maneira muito ingênua o suplício da única vítima encurralada pelos combatentes divinos. Os discursos desse deus são tão indiferentes à verdadeira grandiosidade de Jó quanto o prólogo e a conclusão. O que nenhum dos três amigos (nem o quarto) pôde obter de Jó, essa reciclagem do deus perseguidor em deus ecológico e providencial conseguiu. Jó aceita dizer tudo e mais um pouco. Certamente não se pode atribuir isso ao autor dos diálogos. Todos os acréscimos aos diálogos são violências feitas ao texto original, perseguições vitoriosas – pelo fato de terem conseguido até os dias atuais neutralizar a revelação do bode expiatório. Tudo o que não é Jó no livro de Jó, como a atmosfera de vingança em torno dos diálogos, sem esquecer o imenso reforço das exegeses, esforça-se por maquiar a mensagem essencial, falsificá-la ou, melhor ainda, enterrá-la novamente, suprimi-la completamente. Todos os acréscimos ao livro de Jó e esses acréscimos aos acréscimos constituídos pela interpretação dominante (quase que exclusivamente voltada para aquilo que já a anuncia e a ela se assemelha: o prólogo, Eliú, os discursos de Deus, o epílogo) oferecem o equivalente textual dos exércitos “celestes”, vorazes sobre a única vítima. O bode expiatório fala aqui pela voz de Jó; é ela que se deve sufocar: sempre por esse mesmo esforço para finalmente tornar eficaz o mecanismo cujo funcionamento Jó impedia... Esses acréscimos merecem todo o mal que se possa dizer deles. Mas também alguns elogios. Eles agem como um cordão sanitário ao redor dos diálogos, uma espécie de faixa para quimono que a posteridade jamais cessou de enrolar em torno do prodigioso escrito, e o resultado não é apenas negativo. A virulência de Jó nunca afetou as culturas influenciadas pela Bíblia tanto quanto poderia ter feito, porém, por trás da espécie de revestimento que a abriga e a protege de nós tanto quanto nos protege do verdadeiro Jó, essa virulência se manteve intacta. Camuflando o poder subversivo de Jó, os acréscimos mistificadores permitiram que o texto pudesse ser assimilado pela piedade geral, impedindo ao mesmo tempo que ele não fosse rejeitado com horror, nem censurado, alterado e mutilado de tal modo que seu sentido não mais pudesse ser recuperado. Protegendo-os de um contato muito rude com um mundo hostil, servindo de shock-absorber[2] (se assim pudermos nos expressar), as adições e comentários falsificadores viabilizaram a preservação de textos que ninguém jamais lê, pois não têm nenhum sentido no contexto que a eles se deu. Se seu alcance subversivo tivesse sido mais visível, eles possivelmente jamais teriam chegado até nós. Esses acréscimos e comentários têm por mérito não permitir a censura total dos diálogos; seus autores desejam adaptar o texto às possibilidades de assimilação por eles determinadas. Eles tornam Jó aceitável às diversas ortodoxias. Por outro lado, descobrem nele um gênio que os supera, pelo que as manipulações, talvez as mutilações sacrificiais que praticaram aí, têm um alcance limitado. Eles não querem apagar o nome de Jó, mas moderar sua força assustadora. Eles lembram esses insetos que paralisam sua vítima, mas se abstêm de matá-la, para conservar intacta uma substância que mais tarde, muito mais tarde, fornecerá um alimento precioso a seus descendentes. 96 O epílogo dá fim ao bode expiatório nas vinganças pueris de um grande sucesso de bilheteria hollywoodiano. Ele não vale mais do que o prólogo; entretanto, contém uma frase marcante. Tendo falado severamente aos três amigos, Deus acrescenta que, em atenção aos méritos de Jó, não guardará rancor deles, nem os castigará, “por não terdes falado corretamente de mim, como o fez meu servo Jó” (Jó 42,8). Somente Jó falou bem de Deus, aparentemente cobrindo-o de insultos, denunciando sua crueldade e injustiça. Os amigos, no entanto, que jamais cessaram de falar em seu favor, falaram mal dele. Deve-se ler nessa frase um julgamento profundo sobre os diálogos em seu conjunto. Esse epílogo tem razão, decerto, mas por outro lado é tão tímido e mistificador, que somos surpreendidos por sua audácia. O único deus que Jó ataca é o deus dos linchadores. A conclusão não vê essa distinção essencial; ela contribui o melhor que pode para torná-la invisível, porém, nesse julgamento, poderia se dizer que ela a pressente. Ainda que contribua para desfigurar um texto cuja genialidade a preocupa, essa conclusão não ignora completamente tal genialidade, mas a homenageia. Ela não compreende o que opõe Jó a seus amigos; nem vê o abismo entre o deus dos algozes e o Deus das vítimas. Ela não pode concluir, como nós fazemos, que só o primeiro é alvo dos ataques de Jó. Ela também não imagina que as revoltas de Jó se encontram completamente de acordo com a inspiração bíblica. Ao contrário de Claudel, que censurava Jó por suas blasfêmias, essa conclusão prefere as oscilações de Jó ao conformismo dos amigos. Há aí uma efervescência espiritual da qual ela não quer se separar completamente. Carecendo de potencialidade exegética e de intuição mística positivas, essa conclusão é perspicaz. Penso que, em tal perspicácia, é preciso reconhecer o que se chama o sentido da ortodoxia. 97 20 O RESGATE SANGRENTO PELA PERDIÇÃO DA CIDADE O deus dos perseguidores tem sua lógica, o Deus das vítimas deve ter a sua. Se o concebêssemos com exatidão, o que diria ele aos homens, como se comportaria com eles? Tentemos desenvolver a lógica desse Deus. Certamente esse Deus desejaria pôr fimà religião da violência, à perseguição dos inocentes. Como ele agiria em vista disso? Primeiramente pensamos, sem refletir, que esse Deus, em sua onipotência, lançaria mão de seus poderes divinos para impedir a violência e a injustiça. Se, por acaso, a violência e a injustiça se produzissem ainda assim, ele poria fim a elas, restabelecendo todas as coisas em seu estado anterior. Em suma, esse Deus das vítimas faria justiça às honestas reivindicações de Jó. Ao invés de mobilizar seus exércitos contra o bode expiatório, ele se mobilizaria contra os perseguidores. A mitologia apresenta intervenções que parecem corresponder a esse esquema. Vejamos, por exemplo, a intervenção de Zeus em favor do pequeno Dioniso, numa versão do “caso Jó” em escala gigantesca. Em conjunto, os Titãs massacram e devoram a criança, mas recebem um justo castigo: Zeus os pune e ressuscita o inocente. Deve-se ver em Zeus o deus das vítimas? Com certeza não. Como todos os deuses gregos, Zeus é um deus de vingança e violência. Alguém poderá dizer que, ao menos uma vez, o inocente foi vingado e o perverso punido, ao passo que no livro de Jó acontece o contrário. Mas com essa vingança, que pode ganhar o inocente? E no caso de Jó, quem pode dizer onde se encontra a justiça? Em que a causa de Jó, no caso de ser ganha pela violência, diferiria de Elifaz e de Eliú? Que perseguidores não se consideram vingadores imaculados de vítimas inocentes? Para que a vingança de Deus e a vingança dos homens se confundam absolutamente, basta um pouco de mimetismo. É sempre Deus quem: ... aniquila os poderosos sem muitos inquéritos e põe outros em seu lugar. Conhece a fundo suas obras! (Jó 34,25-25). O deus que vingaria Jó de todos os invejosos e o restabeleceria sobre o trono não se distingue daquele que destrói os “homens perversos” ou do Zeus que aniquila os Titãs. A justiça que reivindicamos em favor de Jó se diferencia pouco daquela que indivíduos como Eliú e Elifaz celebram ao contar Jó entre os “homens perversos”. Desde que o mimetismo de grupo intervenha [no processo], os “bons” saem vitoriosos e os “maus” são punidos. Mas, então, onde procurar o verdadeiro Deus das vítimas? Onde procurar o Deus que poria fim a esses horrores? Entre os candidatos possíveis, deve-se certamente mencionar a Atena de Eumênides. Fui justamente criticado por sua ausência em A Violência e o Sagrado. 98 Em Eumênides, de Ésquilo, a lei de Lynch[1] está no coração da tragédia, como também nos diálogos. É dela que precisamos nos livrar. Tarefa difícil, pois não apenas entre os gregos, mas em toda parte, o homicídio coletivo produz os valores religiosos. As Erínias não simbolizam de modo nenhum apenas o “remorso”, ou fenômenos obsessivos sem causas externas, interpretáveis apenas psicanaliticamente. Elas significam o que a própria tragédia diz, sem possibilidade de equívoco, e o que Ésquilo confirma no texto que se segue, a vingança mais coletiva e social do que individual, mesmo sendo obra de apenas um indivíduo. Orestes, por exemplo, age em nome da cidade, completamente revoltada contra Egisto e Clitemnestra, que nada mais são do que o poder de um momento, os ídolos de um instante. Eis mais uma vez “a rota antiga dos homens perversos”, o processo descrito em Jó, sempre ignorado pelos psicólogos e, o que é mais paradoxal, pelos sociólogos e, mais paradoxalmente ainda, pelos helenistas, os estudiosos de Ésquilo. As Erínias representam de modo muito explícito o homicídio coletivo e, para que ele seja banido, é preciso que elas abjurem solenemente. Essa abjuração as transforma para sempre em Eumênides, doces e fecundas. Atena se encarrega de consegui-la. Sem a declaração dos poderes religiosos diretamente associados à violência fundadora, qualquer modificação do sistema permaneceria ilusória. A mudança só seria aparente. Eis a promessa das Erínias: Que a terrível revolta, de males insaciável, jamais venha rugir nesta cidade. Para que a terra encharcada pelo sangue negro dos cidadãos não exija, em sua cólera, o resgate sangrento pela perdição da cidade. Em comunhão de amor, partilhemos alegrias; com uma só alma odiemos. É isso um maravilhoso remédio para os humanos.[2] Esse texto é um documento excepcional sobre a violência fundadora. A palavra revolta[3] traduz aqui o acontecimento ao qual os amigos de Jó aludem incessantemente, com o qual o ameaçam de modo insistente, designando-o por meio de “eufemismos” como “o Devastador” ou “a rota antiga dos homens perversos”. Trata- se da intensificação da crise mimética, de toda a agitação popular que conduz ao mecanismo vitimário, de todas as desordens e de todas as violências que preparam o paroxismo do bode expiatório. Este último constitui o fundamento de uma definição precisa: “o resgate sangrento pela perdição da cidade”. Tudo aqui merece uma atenção extrema, mas sobretudo os dois últimos versos, propriamente surpreendentes. Sem dúvida nenhuma, o poeta pensa no perigo de desintegração que talvez correrá uma cidade livre das modalidades selvagens da violência coletiva. Essa cidade estará privada ao mesmo tempo desse maravilhoso remédio representado pelo ódio unânime? Ela não corre o risco de se decompor? Podemos ver que Ésquilo tem perfeita consciência do que a violência coletiva traz à cidade dos homens: em suas formas primeiras, que vão do canibalismo de Atreu e Tiestes ao matricídio de Orestes – as tragédias da trilogia Oréstia tratam de tudo isso – 99 e em suas formas derivadas, às quais se deve doravante limitá-la. Para tranquilizar seu público, ou tranquilizar-se a si mesmo, Ésquilo afirma que o ódio não vai desaparecer, nem perder o poder de se tornar unânime, depois de ter cessado de se cristalizar sob a forma primitiva simbolizada pelas Erínias. Em suma, o princípio desse mundo pode se perpetuar sob outras formas que não as mais horríveis, [quais sejam] a revolta interna e seu “resgate sangrento”. Portanto, não há obstáculo sério à eliminação de tudo isso. As formas horríveis fazem cada vez mais escândalo numa polis bem policiada e, de qualquer maneira, sua fecundidade se esgotou. Todas as tentativas para pôr fim à vingança fracassaram. Os homicídios sucedem aos homicídios de uma tragédia a outra, sem jamais trazer a menor paz. É exatamente essa crise que obriga a violência a se metamorfosear, a se perpetuar sob formas menos selvagens, mais adaptadas às circunstâncias históricas, num universo renovado por formas judiciárias mais eficazes. Ésquilo reconhece implicitamente o papel fundador do homicídio mitológico, pois este permanece obscuramente presente nas formas “civilizadas” que devem substituir o tipo de homicídio do qual a Oréstia contém formidáveis exemplos. Se não houvesse essa continuidade, não conviria às Erínias definir esse universo novo que dará o melhor lugar à alegria e ao amor, porém, não eliminará seu contrário: o ódio. Esse universo novo saberá se adaptar para voltar a fazer desse ódio uma força de unidade, o maravilhoso remédio, idêntico e, no entanto, completamente diferente da força terrível de divisão que ele [o ódio] constitui enquanto não for unânime. Ésquilo apreende a importância substancial da unanimidade. Aquilo que, dois versos acima, a definição do mecanismo apenas insinuava, os dois últimos versos tornarão completamente explícito: o resgate sangrento põe fim à perdição da cidade. Ele resgata pelo fato de, tornando unânime o ódio e fornecendo aos homens o meio de odiar com uma só alma, propiciar-lhes o maravilhoso remédio para a vida comum. Eis a catarse de Aristóteles em sua forma original. Trata-se agora de passarmos às formas derivadas de que a tragédia evidentemente faz parte. Isso primitivamente dá ao poeta trágico a autoridade de falar do modo como fala. Não é possível expressar de modo mais magistral do que Ésquilo a tese da violência fundadora e de suas formas derivadas. Toda a operação da origem cultural é tão visível nele quanto nos diálogos de Jó. Sobre os aspectos dessa operação (a função social e religiosa do ódio unânime, por exemplo), estas duasgrandes obras, a grega e a bíblica, dizem a mesma coisa. Lembremo-nos do discurso de Jó sobre o “Tofet público”. A convergência desses dois testemunhos leva a refletir. Não podemos reprovar Ésquilo por ter, em relação a seus contemporâneos, as mesmas ilusões de nossos racionalistas. Os atenienses não precisam se preocupar: eles podem renunciar, sem refletir, às relíquias bárbaras do passado e não deixarão de encontrar outros objetos para o ódio unânime. Talvez Ésquilo esteja pensando aqui na guerra estrangeira. Tornando-se para sempre as Eumênides, que na verdade elas já se tornavam no passado, depois de cada resgate sangrento “obtido” e graças à unanimidade, as Erínias não cessam de simbolizar o espírito da vingança e do ódio coletivos. Haverá mais alegria e amor, eis a mudança. Haverá sempre ódio coletivo, eis a continuidade: 100 Em comunhão de amor, partilhemos alegrias; com uma só alma odiemos. É isso um maravilhoso remédio para os humanos.[4] Em nenhum lugar da Bíblia você encontrará a ideia de que a cidade dos homens deva se conformar com a violência fundadora, dar-lhe espaço, com a desculpa de ser isso “um maravilhoso remédio para os humanos”. Num movimento que se deve qualificar como pré-totalitário, num sentido que me parece aplicar-se a certos diálogos de Platão, Ésquilo se faz o pastor dessa violência. Também é esse o sentido profundo e violento do pastor do ser de Heidegger. Não sei por que, mas essa expressão sempre me fez pensar no lobo em pele de cordeiro da fábula. Por baixo da pele imaculada do cordeiro sacrificial, uma pata escura se desvela. A alma única do ódio: ou seja, o ódio que todos os cidadãos experimentam simultaneamente, mas também e sobretudo o ódio que sentem por um único indivíduo ou grupo de indivíduos. Ésquilo não diz isso claramente. Tudo o que Ésquilo diz pressupõe a seleção de um bode expiatório, e mesmo de um bode expiatório arbitrário, mas nem sua obra nem os gregos em geral o mencionam diretamente. Não se pode prescindir de um bode expiatório para fazer funcionar o sistema. Entretanto, nunca se trata dele enquanto tal, mas somente do sistema fundado sobre ele. Somente a Bíblia menciona a vítima enquanto vítima. De fato, a questão é apenas essa. Nossas escolas de interpretação não se interessam por tal diferença, não mais do que a maior parte dos exegetas religiosos. O clamor de Jó, o clamor incessante das vítimas pode tornar a Bíblia insuportável a muita gente, talvez a todos os homens, sem exceção. Paradoxalmente, só Nietzsche presta atenção à voz dessas vítimas. Mas ele só faz isso para acabrunhá-lhas ainda mais, e acusá-las de ressentimento. A vingança interiorizada, a vingança recalcada dos péssimos cristãos é certamente um mal terrível, mas é preciso ser a criança mimada da Bíblia e do helenismo, no sentido de Ésquilo, é preciso realmente ter esquecido o gosto do sangue negro no pó da terra para procurar no retorno à vingança real, como faz Nietzsche, consciente ou inconscientemente, o novo remédio maravilhoso contra o ressentimento. Nietzsche inverte Ésquilo de maneira desvairada. Nietzsche realmente é louco, mas ninguém se dá conta disso num mundo que faz de tudo para pegar sua loucura. Confrontando Jó e Ésquilo, somos conduzidos às mesmas conclusões de Jó e Sófocles: a mesma perspicácia, no que diz respeito à violência fundadora; não obstante, entre os gregos a comunidade sempre predomina, e jamais a vítima individual. Os dois grandes atalhos de Jó em direção ao Deus das vítimas não têm igual entre os gregos. Como disse, eles estão isolados do próprio livro de Jó. Tudo o que os rodeia conspira para reduzir seu alcance. O deus que supostamente responde a Jó no final do livro representa uma espécie de retirada estratégica, ao estilo das Eumênides, um novo esforço para restabelecer um sistema sacrificial que Jó descreditou e que não pode se restabelecer sob a forma do linchamento, ao estilo de Elifaz. Não é o Deus das vítimas que responderia à perseguição, fazendo do bode expiatório um riquíssimo criador de animais. 101 A conclusão do livro de Jó desperta em nós um desejo de revanche que se considera moralmente superior, porque vence um bode expiatório que não deu certo, mas isso nada mais é do que uma versão abrandada e invertida dos exércitos celestes. Não basta celebrar as vítimas, chorar ruidosamente sobre elas, como sabemos fazer tão bem, ao mesmo tempo em que nos proclamamos “nietzschianos”, para nos livrarmos do sistema de ação e de representação fundado sobre o bode expiatório. Ao contrário, é pela atividade infinita das substituições, atenuações e transfigurações sutis, tanto quanto das inversões cheias de astúcia, que o sistema expiatório conseguiu se manter, chegando até nós, dominando ainda nosso pensamento, fazendo-nos crer em sua inexistência. O deus de Beemot e de Leviatã se faz passar pelo Deus dessa vítima inocente que é Jó; mas ele continua a ser o deus dos perseguidores, o deus das versões modernizadas de Elifaz, ou seja, o deus de praticamente todo mundo, exatamente como as Eumênides continuam a ser as deusas da vingança, depois de serem recicladas na civilização. Não se deve superestimar esse progresso, como se fez antigamente, depois de Ésquilo; nem subestimá-lo, como frequentemente faz a intelligentsia contemporânea atrás de Nietzsche. Ainda não encontramos em nenhum lugar o Deus das vítimas pelo qual Jó anseia. A verdadeira grandiosidade de Jó, como também a dos Salmos, está no fato de que, ao lado do anseio por vingança, que não desapareceu, existe nesses textos um anseio pelo Deus das vítimas. Jó dá início a algo que permanece inacabado. Talvez esta expressão, o Deus das vítimas, seja apenas um artifício. Afinal, que pode significar o Deus das vítimas, o Deus dos fracos e dos oprimidos? Ao fim de nosso estudo sobre Jó, vemos as dificuldades extraordinárias que implica essa noção. 102 21 O DEUS DAS VÍTIMAS Existe um candidato explícito ao papel de Deus das vítimas: o Deus dos Evangelhos. O Pai envia seu Filho ao mundo para defender as vítimas, os pobres, os deserdados. No Evangelho de João, Jesus designa o Espírito de Deus e se designa a si mesmo como um Paráclito – termo que significa o advogado de defesa num tribunal. É preciso aproximá- lo da palavra que a Bíblia de Jerusalém traduz por “defensor”, no último texto de Jó que mencionei, o hebraico “goel”, um termo jurídico que significa algo semelhante. Jesus é sistematicamente apresentado como o Defensor das vítimas. Ele afirma que não podemos ir em auxílio da menor delas sem vir em auxílio dele, Jesus. Não podemos recusar essa ajuda sem recusá-la a ele. O Deus dos Evangelhos é o Deus das vítimas? O fato de o mesmo título ser exigido não quer dizer que ele seja merecido. Convém examinar se os Evangelhos verdadeiramente desenvolvem a lógica até aqui inencontrável desse Deus. Como vimos, um Deus das vítimas não pode impor sua vontade aos homens sem deixar de ser ele mesmo. Ser-lhe-ia necessário recorrer a uma violência mais violenta do que aquela dos perversos. Ele voltaria a ser, assim, o deus dos perseguidores, tendo supostamente jamais deixado de sê-lo. O verdadeiro Deus das vítimas, todos os perseguidores pensam conhecê-lo, confundindo com ele a divindade persecutória que lhes é comum. Se existe um Deus das vítimas, não podemos contar com ele para estabelecer entre nós um estado de coisas tal, que os homens se coloquem de acordo para defini-lo como justo. Ou então, a concordância entre os homens se assenta sobre péssimas razões. Mesmo pacífico, ou tão pacífico quanto possível, seu entendimento é constituído de mimetismo. Mesmo justa, tão justa quanto possível, sua injustiça é constituída de vingança, ou seja, de mimetismo uma vez mais. Ao mostrar que a justiça não reina no mundo, ao dizer que a retribuição – no sentido dado por Elifaz – não existe para a maior parte dos homens, Jó pensa atacar a ideia mesma de Deus. Mas Jesus, nos Evangelhos, faz suas, de modo bastante explícito, todas as críticas de Jó contra a retribuição. E ele não chegavisivelmente ao ateísmo. Nesse momento, vieram algumas pessoas que lhe contaram o que acontecera com os galileus, cujo sangue Pilatos havia misturado com o das suas vítimas. Tomando a palavra, ele disse: “Acreditais que, por terem sofrido tal sorte, esses galileus eram mais pecadores do que todos os outros galileus? Não, eu vos digo; todavia, se não vos arrependerdes, perecereis todos do mesmo modo. Ou os dezoito que a torre de Siloé matou em sua queda, julgais que a sua culpa tenha sido maior do que a de todos os habitantes de Jerusalém? Não, eu vos digo; mas, se não vos arrependerdes, perecereis todos de modo semelhante” (Lc 13,1-5). Para a Bíblia de Jerusalém, “o ensinamento é claro: não há relação direta e precisa entre falta e calamidade”.[1] Os ateus que retomam os argumentos de Jó contra a retribuição estão menos distantes dos Evangelhos do que os cristãos decididos a retomar os argumentos de Elifaz em favor dessa mesma retribuição. Não há correspondência necessária entre os males que atingem os homens e qualquer 103 julgamento de Deus. As perseguições são verdadeiras perseguições e os acidentes, verdadeiros acidentes. Quanto às enfermidades hereditárias, são apenas enfermidades hereditárias. Pelo fato de atraírem os perseguidores, os homens veem nas desgraças uma condenação divina. Jesus rejeita esse tipo de religião. Aos discípulos que lhe perguntam quem pecou para que um homem tenha nascido cego (seus pais ou ele próprio), Jesus responde: “Nem ele nem seus pais pecaram, mas é para que nele sejam manifestadas as obras de Deus” (Jo 9,2-3). Todas as parábolas vão no mesmo sentido. Deus sempre representa nelas o papel do mestre que não está por perto, do proprietário que viajou para longe, deixando o campo livre para seus servos, que se revelam fiéis ou infiéis, eficazes ou tíbios. Ele proíbe que se arranque o joio, ainda que seja para beneficiar o crescimento do grão de trigo, ao passo que Ésquilo faz o contrário. Deus faz seu sol brilhar e sua chuva cair sobre os justos, como também sobre os injustos. Ele não serve de árbitro nas discussões entre os irmãos. Ele sabe como funciona a justiça humana. Isso quer dizer que o Deus das vítimas é uma espécie de Deus desocupado, que abre mão de intervir no mundo: o deus otiosus, cujas marcas alguns etnólogos acreditam encontrar acima dos deuses violentos em muitas religiões primitivas, o deus ao qual não se fazem sacrifícios porque nada pode pelos homens? De modo nenhum. Esse Deus não poupa nada para socorrer as vítimas. Mas se ele não pode forçar os homens, pode o que então? Ele tentará primeiro persuadi-los. Ele lhes mostrará que eles próprios se consagram ao escândalo por seus desejos que se entrecruzam e se contrariam de tanto se imitarem. Jesus recomendará aos homens que o imitem e procurem a glória que vem de Deus, ao invés daquela que vem dos homens. Ele lhes fará ver que as rivalidades miméticas só levam ao homicídio e à morte. Ele lhes revelará o papel do mecanismo vitimário no sistema cultural a que pertencem. Ele nem mesmo lhes esconderá que eles permanecem tributários de todos os homicídios coletivos cometidos “desde a fundação do mundo”: os homicídios fundadores desse mesmo mundo. Ele lhes pedirá para se reconhecerem filhos de Satanás, voltados para a mesma mentira de seu pai, o acusador, “homicida desde o início”. Jesus não convencerá quase ninguém. Sua revelação será recebida apenas para despertar em seus ouvintes o desejo de abafá-la. Revelando a verdade, Jesus ameaça a dominação de Satanás, o acusador, que reativará contra ele seu procedimento maior: o mimetismo unânime da acusação, o mecanismo do bode expiatório. Ele acabará se tornando vítima do mesmo poder satânico, acusador e persecutório que domina o mundo e que matou antes dele todos os profetas desde Abel, até a última vítima mencionada na Bíblia. De fato, é exatamente isso que acontece. Todos o odeiam com uma só alma. Como Jó, ele é condenado sem ser culpado e é ele, desta vez, que serve de resgate sangrento pela perdição da cidade. Eis que se reproduz, mais uma vez, no momento da Paixão, “a rota antiga”, o acontecimento de que estamos falando desde o início. Se o Deus das vítimas intervém em favor delas no mundo dos homens, ele não pode “ser bem sucedido”. Só pode ocorrer a ele o que ocorreu a Jesus, o que ocorreu a Jó e a todos os profetas. Jesus acabará por se encontrar no lugar de Jó, porém, não por razões 104 fortuitas. Ele também é inocente, mais inocente que Jó, contudo, ao revelar (como de fato o faz) o sistema do mundo, ele ameaça os tribunais de modo ainda mais grave que Jó. O fato de Jesus se encontrar em posição de vítima única decorre de uma lógica rigorosa. Logo, para que se possa ver essa lógica, é preciso pensar nas implicações da unanimidade violenta no momento em que ela se produz. Nesse momento fundamental para a cultura humana, nada mais há do que perseguidores e, diante deles, uma vítima. Não há uma terceira posição, nenhuma escapatória. Onde estará o Deus das vítimas se nesse momento ele está entre os homens? Decerto, ele não se encontrará do lado dos perseguidores; portanto, é preciso que ele seja a vítima. Ao invés de infligir a violência, o Paráclito preferirá submeter-se a ela. Jesus Cristo é o Deus das vítimas, primeiramente pelo fato de participar até o fim da mesma sorte delas. À medida que se reflete sobre isso, percebe-se que as coisas não poderiam ser diferentes. Se a lógica desse Deus não tem nada a ver com a lógica do deus perseguidor, com o mimetismo mistificador, o único modo de intervenção possível no mundo é aquele que os Evangelhos ilustram. Segundo a lógica do mundo, que é sempre a lógica do deus perseguidor e de seus correlatos, a derrota [nesse caso] é total. Seria melhor não intervir do que escolher esse modo de intervenção. Esse Deus é pior do que otiosus: é o mais miserável, o mais insignificante, o mais impotente dentre todos os deuses. Não é de se espantar que seu “impacto” no mundo diminua depois de os homens o confundirem um pouco menos com o deus de Elifaz. Esse Deus não pode agir com “mão forte”, de tal modo que os homens a considerariam divina. Quando os homens acreditam prestar-lhe homenagem, quase sempre é o deus dos perseguidores que estão honrando, sem saber. Esse Deus não reina sobre o mundo. Não é seu verdadeiro nome, nem Ele mesmo que os homens santificam. Eles não fazem sua vontade. Será que estou exagerando a impotência desse Deus? O que estou fazendo é retomar, uma a uma, as palavras que Jesus dirige ao Pai: Santificado seja o vosso nome. Venha a nós o vosso reino. Seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu. Essa oração não teria sentido se a vontade divina, sem deixar de ser divina, no sentido do Deus das vítimas, sem deixar de ser ela mesma, pudesse romper o obstáculo que a vontade dos homens lhe opõe. Essas palavras são orações. Deus não reina, mas reinará. Ele já reina para aqueles que o receberam. Por intermédio daqueles que imitam Jesus e imitam o Pai, o Reino já está entre nós. É uma semente que vem de Jesus e que o mundo não pode expulsar, ainda que se esforce para fazê-lo. Outra prova de que Deus não pretende reinar sobre o mundo: ele nos revela o rei deste mundo e não é ele [Deus] o acusador e o perseguidor, mas sempre seu adversário voraz, Satanás. À medida que se reflete sobre isso, compreende-se que o defensor das vítimas, o Paráclito, tem como adversário o príncipe deste mundo, mas não se opõe a ele pela violência. *** 105 Nos Evangelhos, o ensino de Jesus e a Paixão constituem o rigoroso desenvolvimento de uma lógica paradoxal. Tudo o que torna um ser divino aos olhos dos homens, como o poder de seduzir ou de coagir, a aptidão para impor-se de modo irresistível: Jesus não o deseja. Poderíamos dizer que ele quer exatamente o contrário. Na realidade, ele não deseja a derrota, mas não se esquivará a ela se apenas esse meio lhe permitir permanecer fiel ao Logos do Deus das vítimas. Não é o gosto pela derrota que secretamente o motiva, mas a lógica do Deusdas vítimas que o conduz obrigatoriamente à morte. Essa lógica penetra os Evangelhos, do início ao fim. Sua atuação é apresentada como manifestação do divino num sentido ainda oculto, radicalmente oposto ao sagrado dos perseguidores. Encontramo-nos então diante de um outro aspecto paradoxal do Logos das vítimas. Num mundo violento, o divino puro de toda violência se manifesta obrigatoriamente por intermédio do acontecimento que já fornece ao sagrado violento seu mecanismo gerador. A epifania do Deus das vítimas segue a mesma “rota antiga” e passa exatamente pelas mesmas fases que todas as epifanias do sagrado perseguidor. Em consequência disso, para o olhar violento, o Deus das vítimas não se distingue em hipótese alguma do deus dos perseguidores. Nossa pseudociência das religiões repousa inteiramente sobre a convicção de que não há diferença essencial entre as diversas religiões. Essa confusão afeta o cristianismo histórico e o determina até certo ponto. Em nossa época, o anticristianismo se esforça para perpetuá-la. Ele se agarra desesperadamente à teologia mais sacrificial para não perder o que o nutre, para considerar-se sempre habilitado a dizer: o cristianismo é só mais uma religião de violência entre outras, ou mesmo a pior dentre todas. O Logos do Deus das vítimas está praticamente invisível aos olhos do mundo. Quando os homens refletem sobre o modo como Jesus leva a cabo sua obra, eles veem quase exclusivamente sua derrota, que eles inclusive consideram, cada vez mais, como definitiva, irrevogável. Longe de negar essa derrota, a grande teologia cristã a afirma, mas para logo em seguida convertê-la em esplendorosa vitória. A morte se transmuda em ressurreição. O Logos banido “dá poder de se tornarem filhos de Deus” a todos aqueles que não o expulsam, a todos aqueles que o “recebem” – que recebem a ele ou, o que dá na mesma, a toda vítima rejeitada pelos homens. A expulsão do Logos é o princípio do fim para o “reino de Satanás”. Na verdade, a derrota no mundo significa a vitória sobre o mundo. Para a sabedoria do mundo, essa transformação nada mais é do que um artifício enganador de fácil desmistificação. Trata-se, dizem, de um “fastasma compensador”,[2] ou seja, de uma resposta imaginária a um real insuportável. Muitos cristãos “modernos” estão mais ou menos abertamente de acordo com essa interpretação. Se a derrota de Jesus se convertesse em vitória apenas num mundo à parte, a questão seria exclusividade da crença ou da descrença religiosa. Na perspectiva que é a nossa, nada haveria a acrescentar. Mas os Evangelhos dizem que o próprio mundo está ameaçado, que o reino de Satanás será desagregado. Se essas palavras permanecem de acordo com o Logos do 106 Deus das vítimas, elas deveriam significar algo no contexto de nossas análises. Podemos mostrar, ou antes acabamos de mostrar, que essas palavras efetivamente significam algo no domínio ao qual nos consagramos neste momento, qual seja a análise comparada dos textos religiosos. Elas são algo completamente diferente da resposta imaginária postulada por observadores cegos ao Logos das vítimas. A pretensa desmistificação deles é apenas mais uma mistificação vitimária. A partir de agora, sobre o plano dos textos etnológicos e religiosos, a transformação vitoriosa da Paixão corresponde para nós a algo palpável, algo racionalmente perceptível. Para que se possa tomar consciência disso, basta voltar por um instante ao procedimento exegético que está prestes a se concluir e extrair dele o resultado essencial. No coração de todo o religioso, encontramos sempre um único acontecimento central, gerador de toda significação mítica e de toda ação ritual: a mudança brusca de uma multidão que transforma em bode expiatório aquele que ela adorava ontem e que talvez adorará amanhã, desde que sua morte garanta um período de paz à comunidade. Esse acontecimento central é decisivo e, no entanto, tão pouco conhecido que não existem palavras para designá-lo. Nossas ciências do homem jamais o descobriram. Para falar dele, recorremos a perífrases como “rota antiga dos homens perversos... o resgate sangrento pela perdição da cidade...”. Nos Evangelhos, esse acontecimento também aparece, porém, não de maneira fugidia: não somente muito bem descrito, mas nomeado. Ele se chama Paixão. Vítima perfeita, porque sempre falou e sempre se comportou em conformidade com o Logos do Deus das vítimas, Jesus nos traz a única imagem perfeita do acontecimento que figura por trás de todas as cristalizações míticas e religiosas do planeta. As passagens dos diálogos que citei formam uma sequência fenomenal bastante análoga àquilo que se nomeia a “vida pública” de Jesus, essa “vida pública” da qual a crucificação evidentemente faz parte. Jó e Jesus diferem em muitos aspectos, mas se assemelham pelo fato de um e outro dizerem a verdade sobre o que lhes advém. A semelhança se situa menos nos indivíduos do que na relação desses indivíduos com os homens que os rodeiam. Por diferentes razões, mas que chegam ao mesmo resultado, acontece com Jó, diante de seu povo, algo semelhante ao que ocorre com Jesus, diante das multidões de Jerusalém e das diversas autoridades que acabam por crucificá-lo. Assim como Jó, Jesus conhece um período de grande favor. A multidão quer fazer dele uma espécie de rei, até o dia em que, por mimetismo persecutório, ela se volta contra seu ídolo, com a mesma harmonia que a comunidade de Jó [se volta] contra o seu. A hora da unanimidade violenta soou: a hora da solidão absoluta para a vítima. Os amigos, os parentes, os mais chegados, os que lhe deviam reconhecimento, aqueles que Jesus mais ajudou, aqueles que curou, aqueles que salvou, os discípulos mais estimados se afastam dele e, ao menos passivamente, participam da agitação social. Nos primeiros textos que citei, os vizinhos de Jó, seus servos, seus escravos e mesmo sua esposa o criticam, abandonam e maltratam. Sua angústia é mais ou menos a mesma de Jesus. A tentativa das autoridades, representadas nos diálogos pelos amigos, para fazer Jó confessar a própria culpa também é a mesma; o mesmo esforço para tornar mais inabalável ainda o ajuntamento hostil contra o suspeito. 107 Para ver as semelhanças estruturais das duas relações, deve-se ver o que elas têm em comum e renunciar às diferenças anedóticas e locais. (Continuo a falar dos acontecimentos e não dos indivíduos.) Introduzir o texto cristão na interpretação dos diálogos produz logo de cara resultados decisivos. A inutilidade das úlceras e do rebanho perdido se revela. A originalidade formidável dos diálogos se torna mais visível. O enigma desse texto se ilumina. E os Evangelhos põem a nossa disposição tudo aquilo de que se tem necessidade para resolver esse enigma, a saber, a Paixão, sempre a Paixão que faz atuarem as articulações essenciais do texto, e revela a verdadeira natureza do drama vivido por Jó. Tudo aquilo que os leitores de Jó conseguem não ver, há mais de dois milênios, com a ajuda do prólogo, do epílogo etc., os relatos da Paixão nos obrigam, ou melhor, nos obrigariam a ver, se não conseguíssemos, mais uma vez, nos escudar contra sua mensagem. Sem dúvida, mas o sentido, desta vez, acaba por se impor. Podemos muito bem não ver o sentido da prova submetida à leitura do livro de Jó. Entretanto, depois de perceber as semelhanças entre a experiência de Jesus e as de Jó bode expiatório, não podemos mais esquecê-las. Os relatos da Paixão reúnem num amálgama concentrado todos os fios de uma estrutura que estão um pouco dispersados em Jó. Nos Evangelhos, não há mais rebanho para nos distrair, nenhum avestruz nem hipopótamo para brincar de esconde- esconde com o verdadeiro problema. Se acabo de reconhecer em Jó a mudança brusca da multidão contra seu antigo ídolo, a aglomeração unânime contra o bode expiatório, o duvidoso processo feito para sufocar os protestos de Jó; se coloquei esses aspectos em evidência; se os salientei, para finalmente extrair o drama social e religioso daquilo que os envolve: é porque desde o início fuiguiado pelos relatos da Paixão. Não quero dizer com isso que, durante essas análises, a Paixão estava explicitamente presente em meu espírito. Não é necessário. Quer queiramos, quer não, a Paixão faz parte de nosso horizonte cultural: ela fornece o “modelo estrutural”, como diriam os cientistas, a partir do qual os diálogos se tornam sempre mais legíveis. Introduzir a Paixão no livro de Jó implica logo em seguida isolar o texto essencial, o dos diálogos, não mais ver as excrescências que se enxertam como verrugas no rosto de Jó e nos impedem de perceber sua beleza, expulsar tudo o que parasita a mensagem acerca do bode expiatório, tudo o que camufla a culpa de todos os homens, nossa própria culpa na caça aos bodes expiatórios, o princípio satânico sobre o qual repousa não somente essa comunidade, mas todas as comunidades humanas. *** Existe uma dimensão antropológica do texto evangélico. Eu nunca disse que ela constitui a totalidade da revelação cristã, mas penso que, sem ela, o cristianismo não pode verdadeiramente ser ele mesmo, de modo que permanece incoerente em domínios nos quais não deveria sê-lo. Na ausência dessa dimensão, perde-se um aspecto essencial da própria humanidade de Cristo, de sua encarnação; acabamos por não ver até o fim em Jesus a vítima dos homens que nós todos somos, e ficamos expostos a sempre recair na religião persecutória. 108 Para interpretar os diálogos como se deve, o que já disse, é necessário optar, entre a vítima e os perseguidores, pela vítima, identificar-se com ela, tomar o que ela diz por verdadeiro... Tal qual chegou a nós, o livro de Jó ainda não nos força tanto a ouvir o lamento de Jó: uma diversidade de coisas nos distrai dos textos cruciais, deformando- os, neutralizando-os, com nossa secreta cumplicidade. Desse modo, precisamos de outro texto, de algo, ou melhor, de alguém para vir em nosso auxílio: o texto da Paixão, Jesus Cristo – eis o que nos permite compreender Jó, porque Cristo conclui o que Jó só consegue pela metade, e isso, paradoxalmente, é seu próprio desastre no âmbito do mundo, essa Paixão cujo relato logo se inscreverá no texto dos Evangelhos. Para que o verdadeiro alcance dos diálogos apareça, em suma, é preciso fazer o que os Evangelhos recomendam: prestar atenção à vítima, ir em seu socorro, levar em conta o que ela diz. A exemplo do texto evangélico, é preciso fazer das lamentações de Jó o ponto de apoio de toda a interpretação e então, logo se compreende por que Jó fala do modo como fala; percebe-se seu papel de bode expiatório, o duplo fenômeno de multidão, o mito dos exércitos celestes, a verdadeira natureza do mecanismo social e religioso que se apressa para devorar mais uma vítima. Percebe-se que tudo se desenrola e se organiza com um rigor extraordinário. A leitura que faz do clamor de Jó o rochedo indestrutível da interpretação é a única verdadeira, mas somente os Evangelhos tornam possível desenvolvê-la, somente o Espírito de Cristo permite que se defenda a vítima; portanto, ele é verdadeiramente o Paráclito. É certo que desde sempre a maior parte dos intérpretes pressente que, para que se faça justiça ao livro de Jó, é preciso tomar o partido do infeliz. Todo mundo, portanto, tenta fazer-se defensor de Jó, identificar-se com ele, glorificá-lo. Não é excessivo dizer que essa já é a finalidade dos acréscimos ao texto, porém, todos eles falham nesse fim, por não compreenderem o papel da comunidade no infortúnio de Jó. E atrás deles, os intérpretes também falham e continuarão a falhar, enquanto não se dirigirem àquele a quem Jó já chama solenemente, no instante supremo dos diálogos: o defensor que se encontraria junto a Deus, aquele a respeito de quem o cristianismo diz ser o próprio Deus, o Paráclito, o advogado onipotente de todas as vítimas condenadas à morte. Falando assim, podemos ver claramente que não estamos sonhando, nem caindo em “fantasmas compensadores”. Nos textos, os símbolos que manipulamos são reais, na medida em que resolvem enigmas, inocentam vítimas, libertam prisioneiros e, de modo particular, revelam que o deus deste mundo é de fato o acusador, Satanás, homicida desde o princípio. Ao vir em socorro de Jó, reforçando a revelação dessa vítima excepcional, a revelação desta vítima mais excepcional ainda que é Cristo constitui um golpe fatal para um sistema do mundo que remonta em linha direta às formas mais primitivas da violência contra os bodes expiatórios: a perseguição de Jó e o homicídio de “Abel, o Justo”. Na verdade, há séculos a Paixão se inverte em triunfo, sobre o plano da inteligência cultural. Ela dá a rede de proteção que colocamos em volta dos textos persecutórios, para impedi-los de transformar-se em mitologia sacrificial. Em nossa época, eis que toda a cultura modernista, baluarte do anticristianismo, começa a se desagregar ao contato 109 do texto evangélico. Devemos todos os progressos reais que fazemos na interpretação dos fenômenos culturais à única Revelação cujos efeitos prosseguem e se aprofundam entre nós. Longe de ser muito ridícula para merecer a atenção de nossos sábios,[3] como estes a imaginam, a ideia cristã de que a derrota de Cristo se muda em vitória já se encontra realizada no meio de nós por ocasião do desmoronamento da cultura marxista- freudiana-nietzschiana, e da crise aguda de todos os valores que a era pós-cristã acreditava opor vitoriosamente ao cristianismo. “A pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a pedra angular”. A pertinência do texto cristão na interpretação de Jó sempre foi reconhecida, secretamente, pela doutrina que faz da obra um livro “profético” (no sentido cristão), um livro que anuncia e prefigura Jesus Cristo. A profundidade dessa doutrina aparece quase que unicamente em suas primeiríssimas aplicações, as dos Evangelhos e das epístolas de Paulo. À medida que se avança no tempo do cristianismo histórico e que essas aplicações se multiplicam, na Idade Média, elas se tornam cada vez mais superficiais. O erro das leituras “alegóricas” consiste em contentar-se com semelhanças entre simples palavras, nomes comuns e também nomes próprios, personagens isolados de seu contexto e considerados figuras proféticas de Cristo, já que moralmente exemplares. Quanto mais se introduzia no conforto intelectual e material, mais a cristandade se esquecia das relações miméticas entre os homens e os processos que delas resultam. Donde a tendência dos antigos exegetas cristãos de fabricar um Jó imaginário, que se considera prefiguração de Cristo por sua santidade moral, por suas virtudes, sobretudo por sua paciência, quando na realidade Jó é a própria impaciência. É fácil zombar da concepção cristã do [elemento] profético. E no entanto, como todas as ideias autenticamente cristãs, a figura Christi conserva uma grande verdade, mas uma verdade pouco a pouco descreditada e, em nossos dias, completamente rejeitada pelos próprios cristãos, os únicos responsáveis por sua esterilidade relativa. Eles não souberam tomar posse dessa ideia, concretamente, torná-la realmente utilizável. Nesse aspeto, como em tantos outros, a impotência em manter o Logos do Deus das vítimas em toda a sua pureza paralisa a revelação, contamina com violência a não violência do Logos e faz deste uma palavra morta. A verdade do “profetismo”, no sentido cristão, surge a partir do momento em que se dá ênfase aos processos miméticos, mais do que às personagens sempre tratadas como “figuras” de Cristo. Jó anuncia Jesus em sua participação na luta contra o deus dos perseguidores. Ele anuncia Cristo ao revelar o fenômeno vitimário tramado contra si, ao chocar-se contra o sistema da retribuição e sobretudo ao esquivar-se brevemente à lógica da violência e do sagrado, nos dois textos citados por último. Jó vai longe no caminho que conduz de uma lógica a outra, de uma divindade a outra. Mas não pode verdadeiramente oscilar de um sistema a outro. Portanto, a solução que consiste em ver nele uma “prefiguração” de Cristo me parece a mais profunda, desde que, evidentemente, essa concepção sejaapoiada por análises que enfatizem exatamente aquilo que os Evangelhos recomendam enfatizar: as relações 110 entre os homens. O “profético” se revela significativo dentro de uma atitude que nada tem de um voltar atrás, de um retorno temeroso aos “valores tradicionais”, diante das ousadias da crítica subversiva e desconfiada que o universo moderno praticaria. Para chegar novamente ao texto cristão, é preciso, porém, radicalizar essa crítica – o que faz, em minha opinião, a tese mimética e vitimária. Não se pode dizer que ela poupa os valores estabelecidos. Não há nada nela de “piedoso”, no sentido tradicional do termo. Nada é mais desconcertante, nem mais animador do que ver ressurgir com força irresistível o que menos se esperava, exatamente ali onde ninguém esperava: o texto cristão. No Novo Testamento, e sobretudo em Lucas, o conhecimento do Cristo se realiza frequentemente em duas fases. Há um primeiro contato, uma adesão primeira, suscitada por um movimento de curiosidade, uma simpatia que permanece superficial. Em seguida, vem o desencantamento e a desafeição. O discípulo mal convertido acredita ter se enganado e se afasta. Esse movimento de recuo não será interrompido: será verdadeiramente sem volta e, no entanto, restabelecerá aquele que se aflige ao contato com a verdade – que, quanto melhor conhecida, mais transfigurada. O eunuco da rainha Candace foi a Jerusalém para aprender sobre as Escrituras. De lá ele volta desanimado, pois continua sem saber quem exatamente pode ser o Servo de Iahweh citado no livro de Isaías: esse bode expiatório, injustamente condenado, que salva a comunidade. Mas Filipe aparece e lhe explica que se trata de Jesus Cristo. Depois de ser batizado por Filipe, o eunuco “prosseguiu na sua jornada com alegria” (At 8,39). Mesmo movimento no episódio de Emaús. Depois da Paixão, dois discípulos deixam Jerusalém e, pelo caminho, conversam entre si sobre o esfacelamento de sua esperança. Mesma atitude de desânimo cético e desconfiado em relação a uma revelação cuja falência é plenamente confirmada. O esmorecimento mesmo suscita sua própria transformação e, no momento destruidor e desconfiado da crítica, “o próprio Jesus aproximou-se e pôs-se a caminhar com eles”, explicando-lhes as Escrituras. Mas seus olhos “estavam impedidos de reconhecê-lo” (Lc 24,15-16). Talvez compreendamos um dia que a história inteira do pensamento universal se conforma ao modelo dessas duas histórias, e de uma terceira, igualmente narrada por Lucas, que se parece com elas: a do filho pródigo. Dentre esses três textos, o mais valioso, sem sombra de dúvida, para aqueles de nós que passam muito tempo a comentar textos, a interpretá-los e compará-los, é o de Emaús. Ele me parece orientado para o “trabalho do texto”. Ele não esquece a recompensa desse trabalho, aquela que o intérprete recebe quando finalmente brilha a luz, fria e mesmo implacavelmente racional num sentido, e exatamente o contrário ao mesmo tempo, inadmissível aos olhos do mundo, louca, propriamente demente, já que fala de Cristo, já que Cristo fala por ela, já que ela legitima intensamente as esperanças que se afiguram as mais absurdas e, sobretudo em nossos dias, as mais recrimináveis. Ela não sugere que nossos verdadeiros desejos serão realizados simultaneamente? E disseram um ao outro: “Não ardia o nosso coração quando ele nos falava pelo caminho, quando nos explicava as Escrituras?” (Lc 24,32). 111 Coleção ESTUDOS ANTROPOLÓGICOS • Antropologia: Ousar para reinventar a humanidade, Juvenal Arduini • Messianismo e modernidade: Repensando o messianismo a partir das vítimas, Luiz Alexandre S. Rossi • Aspectos incomuns do sagrado, Francisco García Bazán • Dizer homem hoje: Novos caminhos da antropologia filosófica, Nunzio Galantino • Antropologia e horizontes do sagrado, Aldo Natale Terrin • O bode expiatório, René Girard • O rito: Antropologia e fenomenologia da ritualidade, Aldo Natale Terrin • O sacrifício, Cristiano Grottanelli • A mentalidade primitiva, Lucien Lévy-Bruhl • Prelúdio à história das religiões, Momolina Marconi • A rota antiga dos homens perversos, René Girard 112 Direção editorial: Zolferino Tonon Assistente editorial: Jacqueline Mendes Fontes Tradução e Revisão: Tiago José Risi Leme Capa: Marcelo Campanhã Coordenação de desenvolvimento digital: Alexandre Carvalho Desenvolvimento digital: Daniela Kovacs Conversão EPUB: Paulus Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Girard, René A rota antiga dos homens perversos [livro eletrônico] / René Girard; [tradução Tiago José Risi Leme]. - São Paulo: Paulus, 2018. - (Coleção estudos antropológicos) Título original: La route antique des hommes pervers. eISBN 978-85-349-4812-8 1. Bíblia. A.T. Jó - Crítica e interpretação 2. Jó (Personagem bíblico) 3. Sacrifício humano I. Título. III. Série. 18-19012 CDD-223.106 Índices para catálogo sistemático: 1. Jó : Livros poéticos : Bíblia : Interpretação e crítica 223.106 Maria Alice Ferreira - Bibliotecária - CRB-8/7964 © PAULUS – 2018 Rua Francisco Cruz, 229 • 04117-091 – São Paulo (Brasil) Tel.: (11) 5087-3700 • Fax: (11) 5579-3627 paulus.com.br • editorial@paulus.com.br [Facebook] • [Twitter] • [Youtube] • [Instagram] Seja um leitor preferencial PAULUS. Cadastre-se e receba informações sobre nossos lançamentos e nossas promoções: paulus.com.br/cadastro 113 http://www.paulus.com.br/loja mailto:editorial@paulus.com.br https://www.facebook.com/editorapaulus http://twitter.com/editorapaulus https://www.youtube.com/user/canalpauluseditora https://www.instagram.com/editorapaulus/ http://paulus.com.br/cadastro NOTAS JÓ, VÍTIMA DE SEU POVO [*] Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002. [1] Raymund Schwager. Brauchen wir einen Sündenbock? Munique, 1978. A ROTA ANTIGA DOS HOMENS PERVERSOS [1] [N. do T.] Preferimos traduzir por divindade o vocábulo “dieu” (deus), como aparece no original. OS EXÉRCITOS CELESTES [1] [N. do T.] Alali: toque de caça que as trompas executavam em vista do acuo ou do abatimento de um animal (fonte: Houaiss da língua portuguesa). REALISMO E TRANSFIGURAÇÃO [1] La Violence et le Sacré, Grasset, 1972 [A violência e o sagrado. São Paulo: Paz e Terra, 1998]; Des choses cachées depuis la fondation du monde, Grasset, 1978 [Coisas ocultas desde a fundação do mundo. São Paulo: Paz e Terra, 2009]; Le Bouc émissaire, Grasset, 1982 [O bode expiatório. São Paulo: Paulus, 2004]. ÉDIPO E JÓ [1] [N. do T.] No original: “sacré violent”. [2] Meyer Fortes. Oedipe et Job dans les religions ouest-africaines. Éd. J.-P. Delarge, 1974. [3] [N. do T.] Tradução para o português a partir da tradução francesa de Jean Grosjean, Bibliothèque de la Pléiade, p. 463-482. [4] Sandor Goodhart. OEdipus and Laius, many murderers. Diacritics, março de 1978, p. 55-71. “POR CAVALOS ESTA RAINHA PISOTEADA” [1] [N. do T.] Vestal: mulher virgem consagrada à deusa romana Vesta, encarregada de velar o fogo sagrado perpétuo de seu altar (fonte: Houaiss da língua portuguesa). “PELO MAL DOS ARDENTES TODO UM PAÍS ACOMETIDO” [1] [N. do T.] “Mal dos ardentes”, também chamado “Mal de Santo Antônio” ou “Fogo de Santo Antônio”, foi uma doença de origem alimentar que surgiu por volta do ano 1000, causada por um cogumelo formado a partir do grão de centeio, o esporão de centeio que, misturado à farinha, causava graves intoxicações. Trata-se de um nome dado na Idade Média ao ergotismo gangrenoso [2] Saint-John Perse, poeta. O SALMO 73 [1] [N. do T.] Hybris remete a excesso dos homens, insolência em relação aos deuses. [2] Paul Dumouchel e Jean-Pierre Dupuy. L’Enfer des choses. Seuil, 1979; Jean-Pierre Dupuy. Ordres et Désordres. Seuil, 1982; Colloque de Cerisy. L’Auto-organisation. Seuil, 1983; Cahiers du CREA, n. 1 (1982), n. 2 (1983) – 1, rue Descartes, Paris. A TORRENTE DAS MONTANHAS [1] Eric Gans. Pour une esthétique paradoxale. Gallimard, Les Essais, 1976. [2] “Mimésis et Morphogénèse”. Ordres et Désordres, p. 125-185. [3] “Le Signe et l’Envie”. L’Enfer des choses,op. cit., p. 66. [4] Paul Dumouchel. “L’Ambivalence de la rareté”. L’Enfer des choses, op. cit., p. 137-254; Georges-Hubert de Radkowski. Les Jeux du désir. P.U.F., 1980. 114 O TOFET PÚBLICO [1] [N. do T.] Tofet: nome de uma elevação no vale de Ben-Enom, perto de Jerusalém; o altar de Moloc, onde se ofereciam sacrifícios humanos. Foi abatido por Josias, mas Jeremias fala ainda de Tofet e de seu culto, ameaçando que será repleto de cadáveres e se tornará terreno para sepultura (Jr 7,31; 19,6.11) e que Jerusalém se tornará um Tofet, um lugar de sepultura (Jr 19,13). Is 30,33 emprega o termo somente para significar crematório, lugar onde se queimam os cadáveres. McKenzie, John L. Dicionário bíblico. 9ª ed. São Paulo: Paulus, 2005. [2] Exceto aquele de Ésquilo, no final das Eumênides. Voltaremos a isso no penúltimo capítulo. [3] Ancien Testament, Bibliothèque de la Pléiade. O ÓRFÃO SORTEADO [1] [N. do T.] James George Frazer (1854 – 1941): etnólogo escocês, estudioso das sociedades antigas, conhecido principalmente por seus estudos sobre o totemismo e a exogamia, e por seus estudos sobre as religiões, que para ele derivam da magia. [2] [N. do T.] No versículo bíblico citado por Girard, o sentido é de um sorteio e não de um leilão: “Vous iriez jusqu’à tirer au sort un orphelin” (Chegaríeis ao ponto de sortear um órfão). JÓ E O REI SAGRADO [1] A. Caquot. “Les traits royaux dans le personnage de Job”, Maqqel shadeqh. Hommage à Wilhelm Vischer, p. 32-45. A EVOLUÇÃO DOS RITOS [1] [N. do T.] No original, “imitation envieuse”, que se poderia traduzir tanto como imitação invejosa, quanto imitação desejosa. Preferimos utilizar o adjetivo cobiçoso, por nos parecer intermediário entre os dois sentidos mais imediatos. [2] Jean-Pierre Dupuy. Le Signe et l’envie. L’Enfer des choses, op. cit., p. 62. [3] Tudo isso permite, ou mesmo exige, análises detalhadas que justificariam as diferenças formais. A RETRIBUIÇÃO [1] [N. do T.] No texto original, “une non-personne”, o que literalmente se traduziria por “uma não-pessoa”. ESMORECIMENTOS DE JÓ [1] [N. do T.] De acordo com a citação da Bible de Jérusalem, utilizada por Girard, a tradução deste versículo seria esta. Na versão francesa: “je suis roulé sous les décombres”. Na versão brasileira (Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002): “são jogados sob os escombros”. [2] [N. do T.] Na versão francesa, a palavra empregada é “innocent” (inocente). [3] [N. do T.] Oréstia ou Oresteia: trilogia de Ésquilo que reúne as tragédias Agamêmnon, Coéforas e Eumênides. MEU DEFENSOR ESTÁ VIVO [1] [N. do T.] No Brasil, essa tradução, baseada na versão francesa, foi publicada pela Loyola, em 1994. [2] [N. do T.] amortecedor. O RESGATE SANGRENTO PELA PERDIÇÃO DA CIDADE [1] [N. do T.] Procedimento que consistia, nos Estados Unidos, em condenar imediatamente um criminoso pego em flagrante delito. [2] [N. do T.] Traduzimos a partir da tradução de Jean Grosjean, Pléiade, p. 409. [3] [N. do T.] Na citação em francês: sédition, que expressa revolta, insurreição, agitação. [4] [N. do T.] Traduzimos a partir da tradução de Jean Grosjean, Pléiade, p. 409. 115 O DEUS DAS VÍTIMAS [1] [N. do T.] Traduzimos aqui de acordo com a citação utilizada por Girard. Na versão brasileira da Bíblia de Jerusalém, a nota referente ao trecho de Lucas é a seguinte: “O ensinamento é claro: os ouvintes de Jesus mereceram por seus próprios pecados uma sorte semelhante, isto é, sofrerão certamente se não fizerem penitência”. [2] [N. do T.] Fantasma: entendido aqui, do ponto de vista da psicanálise, como “situação imaginária em que o sujeito está presente e na qual se realiza um de seus desejos, mais ou menos disfarçado” (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa). [3] [N. do T.] “Savant” também pode designar “cientista”. 116 117 Scivias de Bingen, Hildegarda 9788534946025 776 páginas Compre agora e leia Scivias, a obra religiosa mais importante da santa e doutora da Igreja Hildegarda de Bingen, compõe-se de vinte e seis visões, que são primeiramente escritas de maneira literal, tal como ela as teve, sendo, a seguir, explicadas exegeticamente. Alguns dos tópicos presentes nas visões são a caridade de Cristo, a natureza do universo, o reino de Deus, a queda do ser humano, a santifi cação e o fi m do mundo. Ênfase especial é dada aos sacramentos do matrimônio e da eucaristia, em resposta à heresia cátara. Como grupo, as visões formam uma summa teológica da doutrina cristã. No fi nal de Scivias, encontram-se hinos de louvor e uma peça curta, provavelmente um rascunho primitivo de Ordo virtutum, a primeira obra de moral conhecida. Hildegarda é notável por ser capaz de unir "visão com doutrina, religião com ciência, júbilo carismático com indignação profética, e anseio por ordem social com a busca por justiça social". Este livro é especialmente significativo para historiadores e teólogas feministas. Elucida a vida das mulheres medievais, e é um exemplo impressionante de certa forma especial de espiritualidade cristã. Compre agora e leia 118 http://www.mynextread.de/redirect/Amazon+%28BR%29/3036000/9788534948128/9788534946025/fc23e69fc9da3ab0310ae7f5e25a1c3f http://www.mynextread.de/redirect/Amazon+%28BR%29/3036000/9788534948128/9788534946025/fc23e69fc9da3ab0310ae7f5e25a1c3f 119 Santa Gemma Galgani - Diário Galgani, Gemma 9788534945714 248 páginas Compre agora e leia Primeiro, ao vê-la, causou-me um pouco de medo; fiz de tudo para me assegurar de que era verdadeiramente a Mãe de Jesus: deu-me sinal para me orientar. Depois de um momento, fiquei toda contente; mas foi tamanha a comoção que me senti muito pequena diante dela, e tamanho o contentamento que não pude pronunciar palavra, senão dizer, repetidamente, o nome de 'Mãe'. [...] Enquanto juntas conversávamos, e me tinha sempre pela mão, deixou-me; eu não queria que fosse, estava quase chorando, e então me disse: 'Minha filha, agora basta; Jesus pede-lhe este sacrifício, por ora convém que a deixe'. A sua palavra deixou-me em paz; repousei tranquilamente: 'Pois bem, o sacrifício foi feito'. Deixou-me. Quem poderia descrever em detalhes quão bela, quão querida é a Mãe celeste? Não, certamente não existe comparação. Quando terei a felicidade de vê-la novamente? Compre agora e leia 120 http://www.mynextread.de/redirect/Amazon+%28BR%29/3036000/9788534948128/9788534945714/a6a7bb44e38ebedb4b0498c73a792bd1 http://www.mynextread.de/redirect/Amazon+%28BR%29/3036000/9788534948128/9788534945714/a6a7bb44e38ebedb4b0498c73a792bd1 121 DOCAT Youcat, Fundação 9788534945059 320 páginas Compre agora e leia Dando continuidade ao projeto do YOUCAT, o presente livro apresenta a Doutrina Social da Igreja numa linguagem jovem. Esta obra conta ainda com prefácio do Papa Francisco, que manifesta o sonho de ter um milhão de jovens leitores da Doutrina Social da Igreja, convidando-os a ser Doutrina Social em movimento. Compre agora e leia 122 http://www.mynextread.de/redirect/Amazon+%28BR%29/3036000/9788534948128/9788534945059/577fd12cd8f7244b7eed7abc4262befe http://www.mynextread.de/redirect/Amazon+%28BR%29/3036000/9788534948128/9788534945059/577fd12cd8f7244b7eed7abc4262befe 123 Bíblia Sagrada: Novo Testamento - Edição Pastoral Vv.Aa. 9788534945226 576 páginas Compre agora e leia A Bíblia Sagrada: Novo Testamento - Edição Pastoral oferece um texto acessível, principalmente às comunidades de base, círculos bíblicos, catequese e celebrações. Esta edição contém o Novo Testamento, com introdução para cada livro e notas explicativas, a proposta desta edição é renovar a vida cristã à luz da Palavra de Deus. Compre agora e leia 124 http://www.mynextread.de/redirect/Amazon+%28BR%29/3036000/9788534948128/9788534945226/5d8dc4d807068cd5b90a8df5902cb98f http://www.mynextread.de/redirect/Amazon+%28BR%29/3036000/9788534948128/9788534945226/5d8dc4d807068cd5b90a8df5902cb98f 125 A origem da Bíblia McDonald, Lee Martin 9788534936583 264 páginas Compre agora e leia Este é um grandioso trabalho que oferece respostas e explica os caminhospercorridos pela Bíblia até os dias atuais. Em estilo acessível, o autor descreve como a Bíblia cristã teve seu início, desenvolveu-se e por fim, se fixou. Lee Martin McDonald analisa textos desde a Bíblia hebraica até a literatura patrística. Compre agora e leia 126 http://www.mynextread.de/redirect/Amazon+%28BR%29/3036000/9788534948128/9788534936583/a8a4c4b9f22423bf32aaacd2e9c1a658 http://www.mynextread.de/redirect/Amazon+%28BR%29/3036000/9788534948128/9788534936583/a8a4c4b9f22423bf32aaacd2e9c1a658 Índice Rosto 2 Primeira Parte - O CASO DE JÓ 5 1. Jó, vítima de seu povo 6 2. Jó, ídolo de seu povo 10 3. A rota antiga dos homens perversos 13 Segunda Parte - MITOLOGIA E VERDADE 16 4. Os exércitos celestes 17 5. Realismo e transfiguração 22 6. Édipo e Jó 25 7. “Por cavalos esta rainha pisoteada” 30 Terceira Parte - O MIMETISMO 34 8. “Pelo mal dos ardentes todo um país acometido” 35 9. O Salmo 73 39 10. A torrente das montanhas 43 Quarta Parte - DO MECANISMO AO RITUAL 47 11. O Tofet público 48 12. O órfão sorteado 51 13. Origem e repetição 55 14. Jó e o rei sagrado 59 15. A evolução dos ritos 62 Quinta Parte - A CONFISSÃO DA VÍTIMA 74 16. Um processo totalitário 75 17. A retribuição 80 18. Esmorecimentos de Jó 84 19. Meu defensor está vivo 93 20. O resgate sangrento pela perdição da cidade 98 21. O Deus das vítimas 103 Coleção 112 Ficha Catalográfica 113 Notas 114 127 Rosto Primeira Parte - O CASO DE JÓ 1. Jó, vítima de seu povo 2. Jó, ídolo de seu povo 3. A rota antiga dos homens perversos Segunda Parte - MITOLOGIA E VERDADE 4. Os exércitos celestes 5. Realismo e transfiguração 6. Édipo e Jó 7. “Por cavalos esta rainha pisoteada” Terceira Parte - O MIMETISMO 8. “Pelo mal dos ardentes todo um país acometido” 9. O Salmo 73 10. A torrente das montanhas Quarta Parte - DO MECANISMO AO RITUAL 11. O Tofet público 12. O órfão sorteado 13. Origem e repetição 14. Jó e o rei sagrado 15. A evolução dos ritos Quinta Parte - A CONFISSÃO DA VÍTIMA 16. Um processo totalitário 17. A retribuição 18. Esmorecimentos de Jó 19. Meu defensor está vivo 20. O resgate sangrento pela perdição da cidade 21. O Deus das vítimas Coleção Ficha Catalográfica Notas