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Prévia do material em texto

2
SUMÁRIO
Capa
Rosto
Primeira Parte - O CASO DE JÓ
1. Jó, vítima de seu povo
2. Jó, ídolo de seu povo
3. A rota antiga dos homens perversos
Segunda Parte - MITOLOGIA E VERDADE
4. Os exércitos celestes
5. Realismo e transfiguração
6. Édipo e Jó
7. “Por cavalos esta rainha pisoteada”
Terceira Parte - O MIMETISMO
8. “Pelo mal dos ardentes todo um país acometido”
9. O Salmo 73
10. A torrente das montanhas
Quarta Parte - DO MECANISMO AO RITUAL
11. O Tofet público
12. O órfão sorteado
13. Origem e repetição
14. Jó e o rei sagrado
15. A evolução dos ritos
Quinta Parte - A CONFISSÃO DA VÍTIMA
16. Um processo totalitário
17. A retribuição
18. Esmorecimentos de Jó
19. Meu defensor está vivo
20. O resgate sangrento pela perdição da cidade
21. O Deus das vítimas
Coleção
Ficha Catalográfica
Notas
3
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Agradeço a Christiane Frémont pela preciosa ajuda.
Suas abundantes sugestões melhoraram consideravelmente o texto da presente obra.
Para Raymund Schwager
4
Primeira Parte
O CASO DE JÓ
5
1
JÓ, VÍTIMA DE SEU POVO
O que sabemos sobre o livro de Jó? Pouca coisa. Que o herói se lamenta
incansavelmente. Acaba de perder os filhos e todo o rebanho. Incomodam-lhe as
feridas. As desgraças que sofre aparecem devidamente enumeradas no prólogo. São as
maldades que Satanás, com a permissão de Deus, acaba de lhe fazer.
Cremos saber, mas sabemos realmente? Em nenhum momento, ao longo dos
diálogos, Jó menciona Satanás: nem Satanás, nem nenhum de seus malfeitos. Talvez
estejam demasiado presentes em seu espírito, para que seja necessário aludir a eles?
Sem dúvida, mas Jó alude a outra coisa, e faz muito mais do que uma alusão. Insiste
vigorosamente na causa de sua desgraça. Uma causa que não é nenhuma das que o
prólogo menciona. Uma causa que não é divina, nem satânica, nem material, mas
humana, apenas humana.
Ao longo dos séculos, o que é estranho, os comentadores não deram a menor
atenção a essa causa. Não conheço todos eles, é claro, mas os que conheço se mantêm
sistematicamente em silêncio diante dela. Dir-se-ia que não a veem. Antigos e
modernos, ateus, protestantes, católicos ou judeus, jamais se questionam sobre o objeto
das lamentações de Jó. A questão lhes parece definitivamente resolvida pelo prólogo.
Todo mundo se atém religiosamente às feridas, ao rebanho perdido etc.
E no entanto, há muito tempo, os exegetas têm alertado seus leitores contra esse
prólogo. Seu conteúdo secundário, dizem, não está à altura dos diálogos. Não se deve
levá-lo a sério. Infelizmente, jamais seguem os próprios conselhos. Não percebem nos
diálogos nenhuma das manifestas contradições ao prólogo.
A novidade que proponho não está oculta num obscuro recôndito do livro de Jó. É
muito explícita; expõe-se em numerosas e copiosas passagens inequívocas.
Jó diz claramente o que lhe faz sofrer: ver-se condenado ao ostracismo, perseguido
pelos seres que o rodeiam. Não fez nada de mal e todo mundo se afasta dele, enfurece-
se contra ele. É o bode expiatório de sua comunidade:
Ele afastou de mim os meus irmãos,
os parentes procuram evitar-me.
Abandonaram-me vizinhos e conhecidos,
esqueceram-me os hóspedes de minha casa.
Minhas servas consideram-me um intruso,
a seu ver sou um estranho.
Chamo ao meu servo, e não me responde,
devo até suplicar-lhe.
À minha mulher repugna meu hálito,
e meu mau cheiro, aos meus próprios irmãos.
Até as crianças me desprezam
e insultam-me, se procuro levantar-me.
Todos os meus íntimos têm-me aversão,
meus amigos voltam-se contra mim (Jó 19,13-19).[*]
Jó lembra o trágico bode nesse fétido odor que sua mulher o critica por exalar e
6
que, significativamente, reaparece em numerosos mitos primitivos.
Essa alusão ao bode real não deve suscitar mal-entendidos. Quando falo do bode
expiatório, não estou pensando no animal utilizado para os sacrifícios no famoso rito
do Levítico. Emprego a expressão em seu sentido por nós utilizado diante das
circunstâncias políticas, profissionais, familiares, sem pensar no rito levítico. Essa
utilização é moderna e não aparece, evidentemente, no livro de Jó. Mas o fenômeno
aparece, com algo mais selvagem. O bode expiatório é o inocente que polariza sobre si
o ódio universal. É exatamente disso que Jó se queixa:
Mas agora [minha dor] me extenuou:
Feriste com horror tudo o que me cerca, e ele me deprime,
meu caluniador tornou-se minha testemunha,
levanta-se contra mim e me acusa diretamente;
sua cólera persegue-me para dilacerar-me,
range contra mim os dentes,
meus inimigos aguçam os olhos contra mim.
Abrem contra mim a boca,
esbofeteiam-me com suas afrontas,
todos se aglomeram em massa contra mim (Jó 16,7-10).
As passagens reveladoras são abundantes. Como não posso multiplicar ao infinito as
citações, escolhi a que considero mais significativa, na ótica que me interessa. Nela
aparece um subgrupo que desempenha na sociedade de Jó um papel de bode expiatório
permanente:
Mas agora zombam de mim
moços mais jovens que eu,
a cujos pais teria recusado
deixar com os cães do meu rebanho.
(...) banidos das sociedades dos homens,
a gritos, como a ladrões,
morando em barrancos escarpados,
em covas e grutas do rochedo.
(...) gente vil, homens sem nome,
são rejeitados pelo país!
E agora sou alvo de suas zombarias,
o tema de seus escárnios.
Cheios de medo, ficam a distância,
e atrevem-se a cuspir-me no rosto.
Porque Deus tornou-se fraco e sem força,
perderam toda a compostura diante de mim.
À minha direita levanta-se a canalha,
olham se estou tranquilo (Jó 30,1-12).
Os historiadores não sabem se aqui se trata de uma minoria racial ou religiosa, ou
ainda de uma espécie de subproletariado submetido ao mesmo tipo de organização que
as mais baixas castas da Índia. Pouco importa. Essas pessoas não interessam ao autor
por si mesmas; aparecem no texto apenas para que Jó possa posicionar-se em relação a
elas, definir-se como o bode expiatório desses bodes expiatórios, o perseguido desses
que pelo menos podem dar-se ao luxo da perseguição, a vítima de todos, o bode dos
bodes e a vítima das vítimas.
Quanto mais Jó se obstina em sua mudez a respeito do rebanho perdido e dos
demais motivos confessáveis pelos quais tem a se lamentar (aqueles que o prólogo põe à
7
sua disposição), mais insiste em apresentar-se como a vítima inocente dos que o
rodeiam.
Decerto, Jó se lamenta de males físicos, mas esse lamento particular se associa sem
dificuldade ao conteúdo fundamental de suas queixas: ele á a vítima de inúmeras
brutalidades; a pressão psicológica que pesa sobre ele é insuportável.
Alguém poderá dizer que a vida de Jó não está ameaçada, que não se fala em matá-
lo. Seus amigos o protegem. Mas isso não é verdade. Jó pensa que se quer tirar-lhe a
vida, sobretudo a vida. Acredita que morrerá logo. E não dessa enfermidade que com
tanta segurança diagnosticam os médicos; pensa que vai morrer de morte violenta e
imagina a efusão do próprio sangue:
Ó terra, não cubras meu sangue,
não encontre meu clamor um lugar de descanso! (Jó 16,18).
Na leitura desses dois versos, contento-me em seguir a nota explicativa da Bíblia de
Jerusalém: “O sangue clama a Deus por vingança, enquanto não for coberto pelo pó da
terra. Jó, ferido de morte, quer que o seu sangue sobre a terra e o clamor de sua oração
junto a Deus subsistam como apelo permanente à vingança de sua causa”.
A tradução dos dois versos e a nota coincidem plenamente com as versões das
principais traduções. É certo que a linguagem da nota permanece ambígua. Por quem
Jó foi ferido de morte? Mais do que os homens, Deus poderia tê-lo ferido; porém,
certamente não é contra Deus que o sangue da vítima clama por vingança: é diante de
Deus, como o sangue de Abel, essa primeira grande vítima exumada pela Bíblia. Javé
disse a Caim: “Que fizeste? Ouço o sangue de teu irmão, do solo, clamar para mim!”
(Gn 4,10).
Mas então contra quem clama por vingança o sangue derramado? Quem tentaria
sufocar o grito de Jó, suprimir suas palavras, para impedi-las de chegar a Deus? É
estranho que essas questões elementares jamais tenhamsido levantadas.
Jó associa insistentemente o papel da comunidade ao que lhe sucede, porém (e aí
está o mistério), assim como ocorre com seus comentadores fora do livro, não consegue
fazer-se entender por parte de seus interlocutores no livro... Ninguém tem a mínima
consideração pelo que ele diz.
A revelação do bode expiatório é tão insignificante para a posteridade quanto para
seus amigos. No entanto, consideramo-nos muito atentos ao que Jó diz; lamentamos
por não vê-lo compreendido. Mas estamos de tal modo preocupados em fazer de Deus
o responsável por todas as desgraças do homem, sobretudo quando não cremos nele,
que o resultado final permanece o mesmo. Somos apenas um pouco mais hipócritas
que seus amigos. Para todos aqueles que sempre fingiram dar ouvidos a Jó, mas no
fundo não o ouvem, suas palavras não passam de vento. A única diferença é que,
enquanto não nos atrevemos a proclamar nossa indiferença, seus amigos ousam dizer:
Até quando falarás dessa maneira?
As palavras de tua boca são um vento impetuoso (Jó 8,2).
* * *
Esse papel de vítima que Jó atribui a si é necessariamente significativo dentro de um
conjunto de textos, a Bíblia, que, sempre e em toda a parte, coloca as vítimas em
primeiro plano. Por menos que se reflita acerca disso, é possível perceber que a razão
8
da estranha similaridade entre os discursos de Jó e os Salmos chamados penitenciais
deve ser buscada na perspectiva comum em que ambos se situam: a da vítima rodeada
de inimigos.
A respeito desses salmos trágicos, deve-se consultar o livro de Raymund Schwager.[1]
De forma extremamente condensada, esses textos apresentam a situação de que Jó se
queixa: uma vítima inocente fala, quase sempre prestes a ser linchada. Raymund
Schwager não se engana: um bode expiatório no sentido moderno descreve os maus-
tratos que se lhe aplicam. Há apenas uma diferença, de grande importância: enquanto
nos Salmos só quem fala é a vítima, nos diálogos de Jó também se ouvem outras vozes.
Reunir, como acabo de fazer, as passagens que melhor revelam Jó como bode
expiatório é reunir os textos mais semelhantes a esses Salmos, tão semelhantes quanto
intercambiáveis. Trata-se, no fim das contas, de se colocar ênfase naquilo que, na falta
de outra expressão melhor, chamamos de vítima expiatória – esse formidável
denominador comum de muitos dos textos bíblicos misteriosamente esquecidos por
todos, objeto de uma expulsão intelectual que se deve situar decididamente no
prolongamento da antiga violência física.
Para purificar o espírito da nefasta influência do prólogo e compreender por fim
qual é a questão fundamental presente em Jó, reler alguns Salmos constitui um
excelente exercício.
Pelos opressores todos que tenho,
já me tornei um escândalo;
para meus vizinhos, um asco,
e terror para meus amigos.
Os que me veem na rua
fogem para longe de mim;
fui esquecido, como um morto aos corações,
estou como objeto perdido.
Ouço as calúnias de muitos,
o terror me envolve!
Eles conspiram juntos contra mim,
Projetando tirar-me a vida (Sl 31,12-14).
9
2
JÓ, ÍDOLO DE SEU POVO
Por que Jó se tornou a ovelha negra de sua comunidade? Nenhuma resposta direta é
dada. E talvez seja melhor assim. Se o autor sugerisse com muita clareza um elemento
exato ou mencionasse um incidente qualquer, uma origem possível, qualquer que
fosse, acreditaríamos saber, e automaticamente deixaríamos de nos questionar. Na
realidade, saberíamos menos do que nunca.
Entretanto, não pensemos que os diálogos mantêm absoluto silêncio. Eles estão
cheios de esclarecimentos, mas temos de saber onde buscá-los. No que diz respeito à
escolha de Jó como bode expiatório, não devemos nos dirigir a qualquer um. Os
“amigos”, por exemplo, não dizem nada de muito interessante. Querem responsabilizar
Jó pelas sevícias que lhe são infligidas. Sugerem que sua avareza o fez perecer; talvez
tenha se mostrado duro para com o povo, ou aproveitado de seu poder para explorar os
fracos e os pobres.
Ainda que se considere Jó virtuoso, talvez ele tenha cometido, como Édipo, um
crime invisível. Se não ele, seu filho, ou qualquer outro membro de sua família. Um
homem condenado pela voz pública não poderia ser inocente. Mas Jó se defende com
vigor e, por fim, nenhuma acusação se mantém. As acusações se perdem na areia.
Alguns comentadores censuram em Jó o modo veemente como responde. Carece de
humildade e os amigos estão certos por se escandalizar. Essa censura ignora totalmente
a natureza do debate. Para compreender a indignação de Jó, deve-se situá-la em seu
contexto próprio, definido pelo próprio Jó.
Jó não diz que nunca pecou, mas que não fez nada para merecer tamanha desgraça;
ainda ontem era considerado infalível e tratado como santo, enquanto hoje todo
mundo o consterna. Não foi ele quem mudou, mas os homens que estão ao seu redor.
Aquele Jó que todo mundo execra não pode diferir muito daquele que todo mundo
venerava.
O Jó dos diálogos não é um novo rico vulgar que perdeu tudo, um simples
indivíduo que, depois de passar do esplendor à miséria, decide meditar com seus
amigos sobre os atributos de Deus e a metafísica do mal. O Jó dos diálogos não é o
mesmo do prólogo. É um grande líder que a opinião pública em princípio teve em
grande conta, mas de uma hora para outra passou a desprezar.
Quem me dera voltar aos meses de antanho,
aos dias em que Deus velava sobre mim;
quando [...] banhava meus pés em creme de leite
e a rocha me dava rios de azeite.
Quando me dirigia à porta da cidade
e tomava assento na praça,
os jovens ao ver-me se retiravam,
os anciãos se levantavam e ficavam de pé,
os chefes interrompiam as conversas,
pondo a mão sobre a boca;
emudecia a voz dos líderes
e sua língua se colava ao céu da boca.
10
Quem me ouvia falar, felicitava-me,
quem me via, dava testemunho de mim;
porque eu livrava o pobre que pedia socorro
e o órfão que não tinha auxílio.
A bênção do moribundo pousava sobre mim,
e eu alegrava o coração da viúva.
A justiça eu vestia como túnica,
o direito era meu manto e meu turbante.
Eu era olhos para o cego,
era pés para o coxo.
Era o pai dos pobres
e examinava a causa de um desconhecido.
Quebrava as mandíbulas do malvado,
para arrancar-lhes a presa dos dentes.
E pensava: “Morrerei no meu ninho,
depois de dias numerosos como a fênix;
minhas raízes estendidas até a água,
o orvalho pousando em minhas ramagens,
minha honra ser-me-á sempre nova,
em minha mão o meu arco retomará força.
Ouviam-me com grande expectativa,
e em silêncio escutavam meu conselho.
Quando acabava de falar, ninguém replicava,
minhas palavras ficavam gotejando sobre eles;
esperavam-nas como o chuvisco,
como quem abre a boca ávida para a chuva tardia.
Sorria para eles, mal o acreditavam
e não perdiam nenhum gesto favorável.
Sentado como chefe, eu escolhi seu caminho;
como um rei instalado no meio de suas tropas,
guiava-os e eles se deixavam conduzir (Jó 29,2-25).
Antes de se tornar bode expiatório, Jó viveu um período de popularidade tão
prodigiosa que beirava a idolatria. Vemos aqui, com toda clareza, que o prólogo não é
pertinente. Se Jó tivesse perdido realmente seu rebanho e seus filhos, essa lembrança
do passado seria ocasião para mencionar essa perda. Mas como se vê, não se fala dela...
O contraste entre o presente e o passado não representa a mudança da riqueza para
a pobreza, da saúde para a enfermidade, mas do favor para o desfavor de um único e
mesmo público. Os diálogos não tratam de um drama puramente pessoal, de um
simples acontecimento do dia a dia, mas do comportamento de todo o povo para com
um tipo de “homem de Estado” cuja carreira se rompeu.
Por mais duvidosas que possam ser, as acusações que recaem sobre Jó são
reveladoras. O que se reprova nesse potentado caído em desgraça são particularmente
os abusos de poder, abusos tais que não poderiam ser cometidos por um simples
latifundiário, por mais rico que fosse. Jó faz lembrar antes o tirano das cidades gregas.
Por que, interroga-lhe Elifaz, Shaddai se voltou contra ti?
É por tua piedade que te corrige,
e entra contigo em julgamento?Não é antes por tua grande malícia
e por tuas inumeráveis culpas?
Exigias sem razão penhores de teus irmãos
e despojavas de suas roupas os nus;
não davas água ao sedento
e recusavas o pão ao faminto;
entregavas a terra a um homem poderoso,
11
para ali se instalar o favorecido;
despedias as viúvas com mãos vazias,
quebravas os braços dos órfãos (Jó 22,4-9).
O leitor moderno em geral adota a visão do prólogo porque ela lembra nosso
mundo, ou ao menos a ideia que dele fazemos. A felicidade consiste em possuir a
maior quantidade de coisas possível, sem nunca adoecer, num eterno arrebatamento de
gozo consumidor. Nos diálogos, pelo contrário, só contam as relações entre Jó e a
comunidade.
Jó apresenta seu período triunfal como o outono de sua vida, ou seja, como a
estação que imediatamente antecede ao glacial inverno da perseguição. É provável que
a desgraça seja recente e tenha se produzido de repente. Da extrema admiração, Jó
passou, de uma hora para outra, ao extremo desgosto. E até o último momento, parece
que Jó não suspeitava de modo algum da grande reviravolta que se preparava:
Quem me ouvia falar felicitava-me,
quem me via dava testemunho de mim;
porque eu livrava o pobre que pedia socorro,
e o órfão que não tinha auxílio (Jó 29,11-12).
E pensava: “Morrerei no meu ninho,
depois de dias numerosos como a fênix;
minhas raízes estendidas até a água,
o orvalho pousando em minha ramagem,
minha honra ser-me-á sempre nova,
em minha mão o meu arco retomará força” (Jó 29,18-20).
O mistério de Jó se apresenta num contexto que não o explica, mas que permite
situá-lo melhor. O bode expiatório é um ídolo picado em mil pedaços. Ascensão e
queda estão entrelaçadas. Tem-se a sensação de que tais extremos se aproximam. Não
se pode interpretá-los separadamente; contudo, não se pode fazer do primeiro a causa
do segundo. Pressentimos aqui um fenômeno social mal definido, embora real, cujo
desenrolar não é certo, mas provável.
O único ponto comum entre ambos os períodos é a unanimidade da comunidade,
primeiro na adoração, depois na aversão. Jó é vítima da mudança maciça e súbita de
uma opinião pública, visivelmente instável, caprichosa, indiferente a qualquer
moderação. Ele não parece muito ser mais responsável pela mudança dessa multidão
do que Jesus, por uma mudança muito semelhante, [situada] entre o Domingo de
Ramos e a Sexta-feira da Paixão.
Para que haja essa unanimidade nos dois sentidos, deve atuar um mimetismo de
multidão. Os membros da comunidade influenciam-se mutuamente, imitam-se uns aos
outros na adulação fanática e, em seguida, na hostilidade ainda mais fanática.
12
3
A ROTA ANTIGA DOS HOMENS PERVERSOS
No último de seus três discursos, um dos três amigos, Elifaz de Temã, alude
claramente à existência de predecessores de Jó na dupla carreira de emergentes todo-
poderosos e bodes expiatórios:
Queres seguir os velhos caminhos
por onde andaram os homens perversos?
Foram arrebatados antes do tempo,
quando uma torrente se lançou sobre seus fundamentos.
Eles diziam a Deus:
“Afasta-te de nós”.
Que pode fazer-nos Shaddai?
Ele enchia de bens suas casas,
enquanto o conselho dos ímpios se afastou dele!
Os justos veem isto e se alegram,
o inocente zomba deles:
“Eis destruídos nossos adversários!
E que fogo devorou seus bens!” (Jó 22,15-20).
A “rota antiga dos homens perversos” começa pela grandeza, riqueza e poder, mas
termina num fulminante desastre. Trata-se das mesmas fases que acabamos de
descobrir na aventura de Jó: o mesmo cenário.
Num dia ou noutro, Jó poderia aparecer na lista desses anônimos de que se fala a
meias palavras, pois seus nomes foram “apagados”. É um desses homens cuja carreira
pode acabar muito mal, por ter começado muito bem.
Como eu mesmo fiz, Elifaz opõe e, consequentemente, aproxima as duas fases;
compreende que formam um todo e que não podem ser interpretadas separadamente.
Algo na ascensão desses homens prepara sua queda. Em suma, nossa intuição se
encontra nas palavras de Elifaz. Jó já percorreu uma boa parte do caminho ao longo da
“rota antiga dos homens perversos”: está no começo da última etapa.
Os acontecimentos que Elifaz evoca parecem longínquos e, portanto, excepcionais –
mas não o bastante para impedir que o observador os agrupe e reconheça neles um
fenômeno recorrente. Observa-se aí um caminho traçado: muitos homens seguiram por
ele; agora é a vez de Jó. Todos esses destinos trágicos têm o perfil característico do ídolo
decaído; como o de Jó, são obrigatoriamente determinados pela conversão de uma
multidão adoradora em multidão perseguidora.
Se os desastres dos homens perversos fossem imaginários, Elifaz não poderia aludir
a acontecimentos que situa no passado. Ele deve evocar uma experiência conhecida por
todos, posto que é a de toda a comunidade. A súbita ruína dos homens perversos
continua presente na memória de todos. Essas mudanças impressionam de tal modo os
homens que não ficam esquecidas, e seu caráter estereotipado facilita a lembrança.
Aos olhos de Elifaz e da comunidade, a “perversidade” dessas vítimas ficou
completamente demonstrada, exatamente como a culpa de Jó. Depois de serem
renegados pela multidão, esses antigos ídolos já não podem mais justificar-se; os
13
infelizes são condenados para sempre. O consenso que agora reina contra Jó teve de ser
usado contra eles.
Essa mesma história sempre se repete, e a advertência de Elifaz se mostra bastante
razoável. Jó deveria considerar as palavras desse sábio, porém, como fazê-lo sem renegar
a si mesmo e sem confessar-se culpado?
Talvez Elifaz se repreenda por mostrar-se demasiado amistoso, demasiado fraternal
perante esse criminoso que é Jó aos seus olhos. Fala abertamente de um processo de
“justiça” popular que, longe de consistir, em sua ótica, numa desordem repreensível,
parece-lhe legítimo, infalível e, literalmente, divino. Sua consciência está absolutamente
tranquila. Tudo lhe parece em ordem. É a própria personificação da ordem que se
reafirma com um vigor que os três “amigos” consideram extremamente satisfatório.
É certo que todos os homens “perversos” são vítimas de violências populares? A que
outra coisa o texto poderia aludir? Releiam os quatro últimos versos da citação, que
aludem a uma forma violenta de banimento social:
Os justos veem isto e se alegram,
o inocente zomba deles:
“Eis destruídos nossos adversários!
E que fogo devorou seus bens!” (Jó 22,15-20).
No contexto de uma sociedade aldeã, o “júbilo dos justos” e a “zombaria do
inocente” necessariamente têm de acarretar consequências. É preciso pensar aqui na
formidável eficácia da reprovação unânime num ambiente como esse. Para suscitar
todos os desastres que lhe são atribuídos, a divindade[1] tem a única opção de não se
opor a esses justos que clamam por vingança.
No meio da multidão se encontram a vítima e todos os seus pertences. O que se
poderia repartir, os agitadores já repartiram; talvez tenham sorteado entre si esses
pertences, para não acabarem se matando. O que resta, incluindo o antigo proprietário,
é destruído em imensas fogueiras festivas.
O desastre que espera os “homens perversos” ao terminar sua carreira, ao final da
“rota antiga”, deve se assemelhar a essas festas primitivas cujo desfecho, ainda que seja
atenuado e ritualizado, faz pensar num fenômeno de multidão. Tudo sempre termina
com um simulacro de bode expiatório que é queimado ou afogado. Os antigos
etnólogos enxergavam violências mais graves por baixo das formas que observavam.
Muitos pesquisadores contemporâneos os consideram vítimas de sua imaginação
romântica e colonialista. Ao contrário, penso que os antigos etnólogos tinham razão. É
certo que tinham preconceitos, porém, também temos os nossos, e uma vertente
rousseauniana que volta a fervilhar em nossa época rejeita os inúmeros testemunhos
que contradizem sua paixão com excessiva desenvoltura para inspirar confiança.
Muitas outras passagens sugerem que o acontecimento central da obra, a terrível
aventura que acaba de começar para o herói, seja um fenômeno recorrente de violência
coletivaque se abate, sobretudo, contra os “grandes” e os “tiranos”, porém, não
exclusivamente contra eles, e que se interpreta sempre como vingança divina ou
intervenção punitiva da divindade.
Limitar-me-ei a citar apenas uma, que faz parte do discurso de Eliú, o quarto
personagem que repreende Jó. Segundo a opinião mais geral, esse personagem não
pertence aos diálogos originais. Seu discurso seria provavelmente obra de algum leitor
14
escandalizado pela impotência dos três primeiros guardiões da ordem pública. Eliú
despreza o enraizamento dos três na tradição, e se compromete a obter êxito no
empreendimento em que os três fracassaram.
Ele se considera melhor capacitado simplesmente por ser mais jovem e por
desprezar o passado. Também ele procura reduzir Jó ao silêncio, porém, não faz mais
do que repetir, num estilo menos elaborado, o que os três já haviam dito. Pertence a
um estágio mais corrompido da antiga tradição. Mas nem por isso deixa de dizer coisas
que, mais do que nunca, tornam mais manifesto o escondido tema dos diálogos.
Ainda que o tema de Jó como “opressor do povo” já apareça nos três amigos, Eliú o
utiliza ainda mais. Por trás de suas fórmulas político-religiosas, transparece a violência
popular.
Em um instante, Deus:
...aniquila os poderosos sem muitos inquéritos
e põe outros em seu lugar.
Conhece a fundo suas obras!
Derruba-os numa noite e são destruídos.
Açoita-os como criminosos
e em público lança-lhes cadeias (Jó 34,24-26).
Cito a Bíblia de Jerusalém: sua tradução sugere admiravelmente a identidade entre a
divindade e a multidão. A divindade é que derruba os grandes, mas a multidão os
pisoteia. É a divindade que acorrenta as vítimas, mas sua intervenção é pública,
efetuando-se na presença dessa mesma multidão que talvez não tenha permanecido
completamente passiva perante espetáculo tão interessante. Observemos que os
poderosos são destruídos “sem inquérito”: suspeitava-se um pouco disso. A multidão
está sempre disposta a prestar sua assistência à divindade quando esta se presta a
castigar os malvados. E, imediatamente, aparecem outros grandes para substituir os que
caíram. A própria divindade os entroniza, mas é a multidão que os adora, para
descobrir um pouco mais tarde que, naturalmente, uma vez mais, são falsos eleitos e
não valem mais do que seus predecessores.
Vox populi, vox dei. Como na tragédia grega, a ascensão e a queda dos grandes
constituem um mistério propriamente sagrado, cuja conclusão é a parte mais apreciada.
Embora seja sempre a mesma, é sempre esperada com impaciência.
15
Segunda Parte
MITOLOGIA E VERDADE
16
4
OS EXÉRCITOS CELESTES
O que fazem os três “amigos” junto ao bode expiatório? O prólogo diz que estão ali
para “compartilhar” a dor de Jó e “consolá-lo” (Jó 2,11), porém, os discursos que
esbanjam não têm nada de reconfortante. A crítica está de acordo com isso, porém,
atribui o rigor dos amigos à sua falta de experiência, à severidade de sua teologia; não
coloca em dúvida sua qualidade de amigos, e persiste em acreditar que suas intenções
são boas.
Não se tem observado com muita atenção o que os pretensos “amigos” dizem. A
primeira coisa que impressiona o leitor desprevenido é a prodigiosa violência de seus
discursos. Ouça o que diz Elifaz:
A vida do ímpio é um tormento contínuo,
e poucos são os anos reservados ao tirano;
escuta ruídos que o espantam;
quando está em paz, assalta-o o bandido;
ele não crê mais escapar das trevas,
pois é espreitado pela espada;
é marcado para ser pasto dos abutres
e sabe que sua ruína é iminente (Jó 15,20-23).
As passagens desse tipo são inúmeras. Sempre há um malvado, um opressor do
povo. Era todo-poderoso, mas já não é mais. Finalmente, a divindade o amaldiçoou. A
vingança dos exércitos celestes o persegue. Um dos três amigos, Sofar de Naamat, nos
descreve o destino que espera esse misterioso “tirano”:
Deus derrama sobre ele o ardor de sua ira,
lança-lhe na carne uma chuva de flechas.
Se escapar das armas de ferro,
atravessá-lo-á o arco de bronze;
uma flecha sai de suas costas,
e um dardo chamejante, do seu fígado.
Terrores avançarão sobre ele,
todas as trevas escondidas lhe são reservadas.
Devorá-lo-á um fogo não aceso por homem,
consumindo o que resta de sua tenda.
O céu revelará sua iniquidade,
a terra se insurgirá contra ele.
O lucro de sua casa se escorre,
como torrente no dia da ira.
Esta é a sorte que Deus reserva ao ímpio,
a herança que destina à sua pessoa (Jó 20,23-29).
Na perspectiva do prólogo, esses discursos ameaçadores não se justificam. Por que
um desgraçado esmagado pelo infortúnio de inexplicáveis acidentes, como parece ser o
caso de Jó, haveria de ver-se perseguido pelos vários executores de uma misteriosa
“vingança divina”? Por que aquele que acaba de perder a saúde, os filhos e a fortuna
haveria de suscitar essa formidável conjunção de hostilidade que os “amigos”
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descrevem?
Acaso essas vociferações se refeririam a outro, e não a Jó? O principal interessado
não se engana. Em três ocasiões, e na mesma ordem militar, os três amigos lhe lançam
soberbas e sinistras imprecações. Que outro alvo poderiam buscar? Jó ainda não é de
fato esse inimigo de Deus que está em questão, mas sem dúvida se converterá nele, se
persistir em rebelar-se contra a unânime voz que o condena.
Essa é, em suma, a mensagem de Elifaz. Aquele que é chamado alternativamente “o
inimigo de Deus”, “o maldito” ou simplesmente “o malvado” é um desses “homens
perversos”. Para esse tipo de ovelhas negras existem cinco ou seis rótulos
intercambiáveis. É sempre a mesma ameaça que esses discursos fazem pesar sobre Jó: a
violência coletiva, cada vez mais violência coletiva.
Ao contrário de Jó, cuja linguagem é realista nas passagens consagradas a sua
experiência de vítima, indignamente realista, em conformidade com a baixeza de seu
tema, os três amigos adotam o estilo conveniente à presumida grandeza do seu. É certo
que não faltam os detalhes concretos, porém, sempre envoltos no estilo da epopeia
religiosa.
Assim sendo, é preciso distinguir dois tipos de discurso: o dos amigos e o de Jó.
Mais adiante veremos que essa distinção nem sempre é válida, exceto para as passagens
que citei até agora. Entre os lamentos do sofredor e o estilo épico dos amigos, a
distância é tão grande que, num primeiro momento, desencoraja a quem queira
aproximá-los. Os exércitos celestes não têm nada em comum, ao que parece, com as
mesquinhas perseguições de que Jó se queixa.
Mas se Jó e os amigos não falassem da mesma coisa, os diálogos não teriam objeto e,
mais propriamente falando, não haveria diálogos. E o leitor que não consegue
compreender o papel-chave da vítima expiatória é surpreendido por certa incoerência
do conjunto. Os personagens não falam verdadeiramente entre si. Isto é verdade,
sobretudo no que se refere aos amigos: diríamos que não escutam as queixas nem os
argumentos de Jó.
A crítica de nosso tempo tem se concentrado sobretudo nas diferenças retóricas
entre os discursos. Interessa-se menos por aquilo de que se fala do que pela maneira
como se fala. A preocupação com aquilo que ela denomina com desenvoltura o
referente parece-lhe cada vez mais alheia à coisa literária, responsável – em última
instância – por todos os mal-entendidos que corrompem a inteligência dos textos
principais.
Os exegetas de Jó jamais puderam descobrir o objeto comum aos dois tipos de
discursos que acabamos de distinguir. Porém, até nossos dias não deixaram de buscá-lo,
ao menos em teoria. No entanto, o que caracteriza a crítica atual é a tentação de
abandonar essa busca.
Não se deve sucumbir a essa tentação... Nas vociferações dos amigos, o tema
principal é a gigantesca mobilização suscitada pela divindade, decretada e organizada
por ela contra seu inimigo, o inimigo dessa divindade. Inúmeras hordas convergem
para o miserável. De onde procedem? Por que se concentram potentes exércitos, com o
único objetivo de destruir a um adversário isolado, incapaz de se defender? Por que
tamanho desperdício de poderio militar?
As passagens em que Jó descrevesua situação na comunidade o mostram só,
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rodeado por uma multidão de inimigos. Aqui, o mesmo todos contra um volta a se
encontrar, mas não no mesmo estilo. Diante dos extraordinários exércitos celestes, não
pensamos nos vis perseguidores de Jó, mas a desproporção numérica é a mesma, e o
mesmo inimigo. Em ambos os casos, trata-se de um mesmo fenômeno.
Todos os personagens falam da mesma violência... Porém, dir-se-á, como pode? O
drama grandioso, o drama cósmico dos três amigos não se limita à sórdida perseguição
que Jó denuncia. A vingança divina põe em ação todos os elementos impetuosos: o
vento e a tempestade, o trovão e os relâmpagos, a inundação, a seca e os animais
ferozes.
Sem dúvida, mas observemos melhor. Todas essas forças convergem
simultaneamente para o inimigo de deus. Nem sempre se leva em conta a
verossimilhança, mas o todos contra um do bode expiatório é que se manifesta melhor.
É o único princípio de organização que controla o todo. Quaisquer que sejam os
adversários, a relação de forças não muda. Por trás dos mais monstruosos combatentes,
os menos humanos, os mais inesperados, evidencia-se sempre a conjunção dos
modestos aldeões contra um único adversário, obrigatoriamente um dos seus, o
desgraçado que se tornou objeto de seu ódio.
Como as tropas dos guerreiros e as pragas naturais, os animais que combatem pela
divindade se concentram ao redor de sua vítima, para arremessar-se sobre ela, todos
juntos, desde os quatro cantos do horizonte. Constantemente, reaparecem nessas
estranhas narrações as mesmas espécies: touros, cachorros e aves de rapina, sobretudo
os abutres. Estes pululam onde quer que haja um cadáver, voando em círculo ao seu
redor, para participar da partilha.
Encontramos todos esses animais, e muitos outros ainda, nos mitos. São os mais
ferozes, mas também as espécies que vivem em bandos, as que caçam e atuam
coletivamente, ou se alimentam, em grupo, de cadáveres: as espécies que atuam ou
parecem atuar como os homens, quando se reúnem contra um adversário comum,
quando praticam a caça ao homem.
Sempre se alude à mesma intenção fundamental: o encurralamento de uma vítima
solitária por uma multiplicidade de inimigos. É a mesma violência em ambas as partes.
E é essa violência que se deve questionar para compreender a relação entre os dois
estilos. Ela é o verdadeiro “referente”, mal dissimulado nas ameaças dos amigos,
evidente nas palavras de Jó. Por mais distantes que pareçam entre si, os dois tipos de
discurso tratam, à sua maneira, do mesmo fenômeno: a conversão do herói em bode
expiatório, o linchamento cujas primícias Jó saboreia.
Nos discursos sagrados, a transcendência aspira em direção ao alto: como se tudo
ocorresse fora da história humana. Mas também se percebe o contrário. Observemos a
vítima suar de angústia, observemos essa flecha que, agora, atravessa-lhe o fígado.
Voltemos a encontrá-la na descrição mais realista de Jó. As interseções entre ambos os
discursos não são difíceis de se encontrar.
A multiplicidade de inimigos procede sempre de um só e único modelo, a multidão
humana. Quando se prepara a vingança divina, nada existe no Universo que não se
ponha a girar vertiginosamente como um turbilhão no sentido da turba, segundo
Michel Serres, e desgraçado aquele a quem esse irresistível turbilhão envolve,
desgraçado quem se deixa levar por ele. A multidão turbilhonante é por excelência o
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modo de ser da vingança divina. Precipita-se sobre sua vítima e a dilacera em pequenos
pedaços; em todos os participantes, o terrível apetite de violência é idêntico. Nenhum
deles quer renunciar a infligir o golpe decisivo. As imagens de dilaceração e
fragmentação fazem pensar nos incessantes despedaçamentos mitológicos e rituais, nas
inúmeras variantes do diasparagmos dionisíaco.
O todos contra um da violência coletiva se faz presente no grupo dos três e,
posteriormente, dos quatro ao redor de Jó, até mesmo na estrutura de seus discursos.
Esse pequeno grupo de três membros, ao que depois se acrescenta outro, constitui uma
pequena multidão dentro da grande. O malsucedido reforço de Eliú põe em evidência
a estrutura de alali[1] frustrado que domina o livro do princípio ao fim.
Ao redor da vítima encurralada, a numerosa turba de palavras se agrupa para o
golpe de misericórdia. As três séries de discursos assemelham-se a esse conjunto de
flechas que esperam o inimigo da divindade. As vociferações caem sobre Jó como caem
sobre o maldito os adversários encarregados de aniquilá-lo. Os discursos hostis não
constituem somente uma imagem da violência coletiva. Constituem efetivamente uma
participação ativa. Jó sabe bem disso, ao denunciar o esquartejamento verbal de que é
alvo. Os três amigos o esmagam com seus discursos, pulverizam-no com palavras (19,2).
Não seria exagerado comparar essas palavras a um linchamento? Os amigos não se
expressam por meio de grosseiros insultos, nem de brutalidades físicas. Não escarram
sobre Jó. Eles pertencem à elite. Não se poderia surpreender aqui Jó em flagrante delito
de exagero, de “dramatização”?
De modo nenhum. Ao fazer de todas as violências dirigidas contra Jó serviços
prestados à divindade, esses discursos justificam as brutalidades passadas, incitando
outras. São mais temíveis do que os escarros dos miseráveis. Seu valor performático é
evidente.
* * *
O deus dos amigos combate sempre na proporção de três contra um, de quatro, de
mil contra um. Não se vê restringido por espírito cavalheiresco algum. Isso é o que nós
pensamos a princípio. Porém, que ociosa e arcaica ironia é a que considera o religioso
em abstrato, in toto, sem se perguntar nunca o que há por trás dessas visões. Há três
séculos, nós as consideramos imaginárias, nada mais. Vemos nelas invenções não
essenciais, posteriores à aparição dessa divindade cuja força reside no número de
combatentes alistados sob sua bandeira.
Cremos que a divindade metafísica é, de antemão, fruto de uma imaginação
metafísica, e que os exércitos celestes são fabricações secundárias, de alcance
relativamente menor. Sempre pensei que se deveria inverter o sentido dessa gênese.
Esses exércitos, que não são celestes, mas reais, devem ser tomados como ponto de
partida. Deve-se partir da violência coletiva. E, por uma vez, não devemos postular nem
contemplar essa violência como uma simples hipótese. O autor a coloca diante de
nossos olhos o tempo todo. Ela forma uma mesma realidade com essa perseguição de
que Jó se lamenta.
Os discursos dos amigos refletem o furor sagrado que se apodera dos linchadores na
iminência do linchamento. Desde a mania dionisíaca ao amok polinésio, há mil
denominações diferentes para designar esse transe coletivo que também se encontra na
tragédia grega. Esses trechos inflamados se assemelham aos do coro trágico nos
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momentos precedentes à condenação da vítima, ao martírio de Penteu, nas Bacantes, à
descoberta do “culpado” em Édipo Rei.
A nossos olhos, os três amigos sacralizam a violência. Os insultos e as mesquinhas
brutalidades se convertem em grandioso cumprimento de uma missão sobrenatural.
Todos os participantes se convertem em guerreiros celestes: os vizinhos próximos e os
mais distantes, as pessoas de bem e os esfarrapados, os jovens e os velhos, inclusive os
amigos de sempre, inclusive os parentes mais próximos, inclusive a esposa, que diz a Jó:
“Maldiz a Deus e morre”.
Diante desses textos profundos, em que alternam incansavelmente as lamentações
do perseguido e as frenéticas incitações ao homicídio, textos fundamentados na
linguagem do sagrado, com uma linguagem que se assemelha aos mais selvagens rituais,
às preparações para partilha coletiva da vítima: como negar a pertinência da
perseguição coletiva na religião primitiva?
Em toda revolta contra os chefes que o favor popular conseguiu provocar, a
comunidade vê automaticamente a intervenção de uma Justiça absoluta. O que se
desdobra no discurso dos amigos é uma verdadeira mitologia da vingança divina.
Porque participam de seu linchamento, os amigos não compreendem o papel de
bode expiatóriorepresentado por Jó. O paradoxo da violência fundadora se revela aqui
de maneira espetacular. Aqueles que constroem o sagrado com sua própria violência
são incapazes de enxergar a verdade. É exatamente isso que faz com que os amigos
fiquem totalmente surdos aos apelos que Jó lhes dirige constantemente. Quanto mais
participam da violência contra o desafortunado, mais se veem arrastados por seu
lirismo bárbaro e menos compreendem o que estão fazendo.
Os três amigos sabem perfeitamente o que a ordem social exige deles, mas esse saber
não contradiz em absoluto sua ignorância fundamental no tocante ao bode expiatório,
nem sua impotência para conceber o ponto de vista de Jó. Não entreveem a reprovação
moral que o fenômeno inspira em Jó e, depois dele, em todos nós, por graça exclusiva
do texto bíblico.
Como diriam posteriormente os Evangelhos a respeito de um caso parecido, os três
amigos “não sabem o que fazem”, no plano moral e religioso. No entanto, sabem
perfeitamente o que têm de fazer e o que têm de evitar quanto a determinada
preparação vitimária, cuja significação geralmente nos escapa, porém, não é, em
hipótese alguma, irrecuperável.
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REALISMO E TRANSFIGURAÇÃO
Chegando finalmente aos verdadeiros temas da obra, a fim de descobrir sua
coerência, voltamos a descobrir a teoria proposta na obra La Violence et le Sacré [A
violência e o sagrado] e nas obras que vieram depois.
Essa teoria afirma que a violência unânime do grupo se transfigura em epifania da
divindade. Em As Bacantes, o linchamento de Penteu equivale exatamente à epifania
de um Dioniso vingador... Nos diálogos, o linchamento de Jó e de todos os “homens
perversos” identifica-se com a intervenção da vingança divina...
Para que um grupo humano perceba sua própria violência coletiva como sagrada, é
preciso que a exerça unanimemente contra uma vítima, cuja inocência não mais
aparece, pelo fato mesmo dessa unanimidade. É isso o que diz A violência e o sagrado,
e é exatamente o que acabamos de ver.
Dos três amigos, o que me parece mais inclinado à mitologia é Baldad de Suás.
Com ele, o tema dos exércitos celestes desemboca claramente numa mitologia análoga
à das Erínias gregas e à das Valquírias germânicas. Fica evidente aqui que a religião de
Baldad e de seu universo não têm muito a ver com as manifestações do Iahweh bíblico,
mesmo as mais contaminadas pela violência mitológica:
A enfermidade consome-lhe a pele,
devora seus membros o Primogênito da Morte.
Arrancam-no da paz de sua tenda,
e tu o conduzes ao Rei dos terrores.
Podes habitar a tenda que não é mais sua,
e espalham o enxofre sobre o teu redil (Jó 18,13-15).
Eis a esse respeito a nota da Bíblia de Jerusalém:
[O Rei dos terrores:] Personagem da mitologia oriental e grega (Nergal, Plutão etc.) que parece imperar aqui
a espíritos infernais, espécies de Fúrias que se encarniçam contra os criminosos, ainda em vida. [...] Lilith,
outra personagem das crenças populares, seria um demônio mulher. [...] o enxofre, símbolo de esterilidade e
aqui, talvez, desinfetante.
Todos os grandes sistemas mitológicos, não somente os indo- europeus, possuem
essas tropas de assassinos sobrenaturais que atuam em conjunto, unanimemente, e que,
ao fazê-lo, produzem o sagrado, às vezes chegam a divinizar suas vítimas. É a versão
plenamente mitológica dos exércitos celestes, ou seja, dos perseguidores de Jó.
Tudo o que vimos até aqui e o que veremos mais adiante corresponde às teses
desenvolvidas em meus três últimos livros.[1] Se eu evitasse de fazer essas
correspondências, para não ser acusado de “reducionismo”, não poderia chegar, como
pretendo fazer, às extensas partes da obra, ou melhor, à quase totalidade dos diálogos,
em que normalmente só os filólogos se atrevem a aventurar-se. Os intérpretes as
evitam.
Ora, o livro de Jó impõe que se opte entre a análise moral e metafísica do problema
do mal, a partir da leitura do prólogo, de um lado, e o reconhecimento dessa temível
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equivalência entre a violência e o sagrado, não conscientemente afirmada pelos amigos,
mas conscientemente repudiada pelo bode expiatório, de outro. A hipótese vitimária
faz emergir os textos do silêncio que os envolve, liberando-os da armadilha metafísica e
moral que impede sua compreensão. O “reducionismo” é aqui libertador, na medida
em que combate precisamente essa armadilha: o princípio de ordem a que submeto
essa considerável massa de dados faz com que estes sejam legíveis com independência
do sistema limitador em que permaneciam submersos.
A análise dos diálogos contribui com certa novidade em relação às minhas análises
anteriores. Não que ela modifique o que quer que seja das conclusões já formuladas,
pelo contrário. Ela mostra como o texto analisado nos conduz, pessoalmente, a essas
mesmas conclusões.
Depois de descartarmos o prólogo – tudo o que direi a partir de agora pressupõe
essa atitude –, os diálogos apresentam algo de particularmente demonstrativo e
revelador, sob o ponto de vista dos princípios que governam a transformação da
violência coletiva em sagrado [sic].
A tese vitimária, dizem, não é realmente demonstrável, na medida em que não pode
ser lida diretamente em nenhum texto. Ela descreve um processo de estruturação; não
pode ser deduzida diretamente de um só texto e é, por essência, comparativa e
hipotética. Também estou de acordo com isso. Com efeito, sob o ponto de vista do
mecanismo vitimário, todos os textos parecem ter de pertencer a uma ou outra das
duas categorias seguintes:
1) Os mitos, sobre os quais não se pode demonstrar diretamente que sejam
estruturados pelo mecanismo vitimário – pelo fato de já o serem –, nem que esse
mecanismo apareça em algum lugar. É exatamente isso o que percebemos, de um
modo diferente, em todos os discursos que não são os de Jó. Não se pode esperar
dos amigos o reconhecimento de sua injustiça. Como todos os fabricantes de
bodes expiatórios, eles veem sua vítima como culpada. Portanto, para eles não há
bode expiatório.
2) Os textos em que esse mesmo mecanismo vem à tona. A inocência da vítima é
anunciada; o bode expiatório se manifesta enquanto tal, mas os perseguidores,
nesse momento, não estão mais ali para invocar a vingança divina e os exércitos
celestes. Não estão mais ali para nos revelar o efeito de estruturação que o processo
exerce sobre sua linguagem, sobre sua visão, sobre seu comportamento.
Nada é mais difícil do que surpreender dentro de um texto a atuação de um
mecanismo de estruturação. É um pouco como procurar a profundidade de uma
superfície de duas dimensões, qual seja o texto escrito.
Por mais difícil que seja superar essa impossibilidade, os diálogos a superam. Eles
são diálogos, justamente pelo fato de apresentarem as duas visões em contraponto. As
revelações verídicas do perseguido alternam com os discursos mentirosos e sacralizados
dos perseguidores.
Por vezes, nem mesmo precisamos desse contraponto. Em algumas proposições que
citei, como as de Elifaz, por exemplo, sobre “os velhos caminhos dos homens
perversos”; as de Eliú, sobre a divindade que “aniquila os poderosos sem muitos
inquéritos” e sobre a multidão que os esmaga: o processo vitimário transparece tão
claramente através da sacralização, que não temos mais necessidade de confrontar os
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dois tipos de discursos.
Mas a abundância de elementos não é prejudicial e, na profusão de dados
reveladores que nos oferece o livro de Jó, o mais extraordinário ainda é o contraste
entre as duas perspectivas, possibilitado pela expressão dialogada, semelhante a uma
encenação teatral, que teria por objeto não mais a catarse, mas o supressão de toda
catarse.
Não se pode considerar as correspondências entre os dois tipos de textos como
simples coincidências. Ainda que não possa falar disso em nossa linguagem própria,
ainda que seja às vezes ultrapassado e confundido pela própria ousadia: o autor
manipula com enorme maestria essas correspondências para não ter nenhuma
consciência delas. A diferença de perspectiva sobre uma única e mesma violência
coletiva constitui o verdadeirotema dos diálogos. À mentira sagrada dos amigos, opõe-
se o realismo verdadeiro de Jó.
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6
ÉDIPO E JÓ
O contraste entre o discurso sagrado e o discurso de dessacralização faz surgir uma
verdade que se pode generalizar: a verdade de toda religião violenta. Ele desmistifica a
perspectiva tradicional não apenas sobre Jó e sobre os outros bodes expiatórios
presentes na sociedade de Jó, como também sobre todos os bodes expiatórios
produtores de sagrado violento.[1]
Onde quer que seja, os perseguidores arrastam suas vítimas pelos “velhos
caminhos”, e essas viagens só chegam até nós como epopeias da vingança divina,
constituindo representações transfiguradas dela. É a isso que chamamos de mitos.
Mais uma vez tomemos o exemplo de Édipo. A ele apliquemos o saber de Jó. Num
primeiro momento, comparemos as duas histórias. Mesmo aqueles que as colocaram
em paralelo, como Meyer Fortes em seu livro Oedipe et Job,[2] não viram a que ponto
ambas se assemelham.
A simpatia popular eleva Édipo, tanto quanto e até mais do que Jó, conferindo-lhe
inclusive a coroa real, que Jó exatamente não possui. De súbito, num céu até então sem
nuvens, após um inquérito tão estranho quanto os “poucos inquéritos” de Eliú, Édipo
é culpado por crimes abomináveis. Sua carreira desaba nessa tormenta frequentemente
evocada pelos amigos de Jó. Com a mesma rapidez desconcertante, o ídolo se converte
em maldito, maculado, pestífero, aquele cujo castigo coletivo restituirá a bênção divina,
temporariamente retirada de uma comunidade que estava demorando muito para se
mobilizar contra o “inimigo de Deus”.
A carreira do herói mítico se assemelha muito à de Jó para não sugerir, por trás dos
dois textos, um único e mesmo fenômeno: a transformação do ídolo popular em bode
expiatório.
Sem dúvida, trata-se da mesma coisa, porém, pode-se objetar: com exceção do
patricídio e do incesto. Essa diferença permanece irredutível. Édipo “realmente”
cometeu esses crimes: ele não é o bode expiatório que acredito encontrar por todo
lado. O patricídio e o incesto ocupam o proscênio não somente em Freud, mas na
maior parte dos modernos; tais crimes interessam muito mais do que a inocência de Jó.
O que pode suscitar a presença desses crimes no mito? Dizem que não formulo a
pergunta como seria conveniente. A origem do mito é desconhecida: a prudência nos
obriga a concebê-lo como fictício. Jamais saberemos de onde vêm o patricídio e o
incesto, como também não saberemos se Tebas algum dia teve um rei chamado Édipo.
Só podemos conhecer essas coisas psicanaliticamente; freudianamente, sem dúvida;
junguianamente, com maior exatidão, mas nada além disso. Questionando-me sobre a
gênese concreta desses temas, supondo para eles um fenômeno de multidão, dou
provas de um realismo ingênuo, indispondo a consciência aguda que têm nossos
contemporâneos da incerteza de todas as coisas.
Ora, o próprio Jó faz pensar na gênese que proponho e isso não se pode negar. A
aversão que a multidão adquire por ele suscita todo tipo de acusações, porém, em seu
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caso, elas não “pegam” – não se fixam em Jó, mas são esquecidas tão rápido quanto
foram proferidas.
Por quê? Porque Jó declara até o fim sua inocência. Se os “amigos” pudessem
mantê-lo calado, para o que se esforçam, a crença dos perseguidores na culpa de seu
bode expiatório realmente seria unânime e sairia tão vitoriosa que a única análise da
questão emanaria daqueles que veem a culpa como real. Não teríamos mais do que
uma perspectiva: a dos amigos. Em outras palavras, teríamos um mito. Um mito nada
mais é do que essa fé absoluta na onipotência do mal presente numa vítima; essa fé que
liberta os perseguidores de suas recriminações recíprocas e forma, consequentemente,
um mesmo todo com a fé absoluta numa onipotência de salvação.
As acusações “pegariam” com tanta força que acabariam sendo promovidas à
condição de verdade. Elas não poderiam mais se separar de Jó, confundindo-se com ele.
Não se poderia nem mesmo reconhecer aí a presença de acusações, de modo que nisso
consiste o mito. Édipo realmente matou o pai e se casou com a mãe. Não é mais a
comunidade, mas exatamente ele o responsável por sua vergonha e banimento. É
exatamente isso o que os amigos dizem sobre Jó, mas não lhes damos crédito, porque é
em Jó, apesar de tudo, que acreditamos. Na Bíblia, a última palavra é a da vítima e isso
tem efeito sobre nós, ainda que não queiramos prestar à Bíblia a homenagem que lhe
cabe.
No caso de Jó, vemos claramente que as acusações se multiplicam depois de a
multidão se voltar contra seu antigo ídolo e, portanto, em razão dessa mudança. Se Jó
não estivesse ali para se defender, teríamos a impressão contrária; pareceria que a
multidão se volta contra ele depois da descoberta de seu crime – logo, por causa deste.
É bem essa a impressão que dá o mito.
Não são as mesmas acusações. Sem dúvida, porém, se Jó, uma vez mais, não
estivesse ali para se defender, as acusações assumiriam facilmente o caráter inverossímil
e exagerado que têm no mito. As multidões, cuja histeria não é reprimida por nada,
invocam quase sempre como pretexto o patricídio e o incesto.
As úlceras de Jó têm um pequeno parentesco com a peste que Édipo supostamente
transmite a Tebas. Como a maior parte das histórias bíblicas, o livro de Jó deve
remontar originariamente a algum mito, não tão distante de Édipo, certamente, mas
esse mito, qualquer que seja, é “maltratado” do lado judeu, por uma inspiração mais
radical, mais exigente.
O mito é um “caso Jó” narrado do início ao fim pelos perseguidores. Os diálogos de
Jó são um Édipo cuja vítima se recusa até o fim a unir-se à voz daqueles que a
perseguem.
Édipo é um bode expiatório bem-sucedido, pois nunca reconhecido enquanto tal. Jó
é um bode expiatório malsucedido. Ele desestabiliza a mitologia que deveria devorá-lo,
mantendo seu ponto de vista diante do consenso fabuloso que se fecha em torno dele.
Permanecendo fiel a sua verdade de vítima, Jó é verdadeiramente esse herói do
conhecimento que Édipo não é, apesar de ser considerado como tal pela tradição
filosófica.
Para que o consenso geral seja perfeito, é necessária a participação da vítima. É
preciso que ela una sua voz à voz unânime que a condena. O que transforma a
perspectiva dos perseguidores em verdade indiscutível é a submissão final de Édipo ao
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veredicto imbecil da multidão.
Especialista em revelações espontâneas muito antes que surja o divã da psicanálise,
Édipo declara ser ele próprio o Maldito, o Malévolo, o Inimigo de Deus, por isso
merecedor de todas as medidas de vingança que se tomarão contra ele. Pouco antes, o
coro anunciava a maldição lançada contra o futuro bode expiatório, uma linguagem
que lembra os discursos exaltados dos “amigos”: a linguagem da caça ritualizada,
sacralizada:
Quem é aquele
sobre quem a rocha profética de Delfos
diz que perpetrará com mãos homicidas
a mais infame das infâmias?
É bom
que ele fuja,
agite
os pés com força maior
que o galope das éguas.
Pois sobre ele o filho de Zeus
se precipita armado de raios e relâmpagos.
E atrás dele, infalíveis,
as terríveis deusas da morte.
..........................................................................
Ele vai
pela floresta selvagem,
por cavernas e rochedos,
como um touro.
Solitário e infeliz,
Foge, numa fuga infeliz,
Desses oráculos do centro da terra
Que sempre o envolvem com seu voo.[3]
A tese do bode expiatório que gera o sagrado violento é, por si só, a própria
evidência; uma evidência que se teria estabelecido há séculos, se a cultura chamada
humanista não tivesse se fechado, como de fato ocorreu, desde o Renascimento, a
qualquer influência bíblica.
No âmbito da realidade cotidiana, ao contrário, essa influência atuou, e muitas
vezes contra aqueles que tinham a pretensão de falar em nome da Bíblia. Em O bode
expiatório [São Paulo: Paulus, 2004], inventariei as homologias flagrantes entre os
temas edipianos e aqueles que aparecem, antes do linchamento, nas multidões
delirantes em seu mimetismo, sempre que o apetite por violência se conforma aessa
propensão aguda aos contágios miméticos e às substituições que facilitam o consenso
sobre o bode expiatório.
Não ignoramos mais de onde surgem esses temas e reconhecemos instantaneamente
em todo relato que os tem como verídicos o reflexo da mentalidade persecutória. Os
incestos, por exemplo, ou os infanticídios de que foram acusados os judeus na época da
peste bubônica, para melhor “responsabilizá-los” por causar a epidemia, não enganam
mais ninguém.
As violências coletivas têm todas as chances de ser reais, desde que as acusações
caminhem na direção do fantástico estereotipado, que se encontra no mito de Édipo.
27
Por que seria diferente aqui e lá? Sabemos perfeitamente que esses temas não surgem
num contexto de pura fantasia poética; sua conjunção nunca é inocente, sendo ainda
mais sugestiva quando se trata de pôr fim à carreira fulgurante de um emergente.
A análise que faço de Édipo à luz de Jó corresponde perfeitamente àquela que fiz no
contexto das perseguições históricas. Na verdade, é sempre a mesma análise. Por mais
incompreendida que continue sendo pela mentalidade moderna, a Bíblia é por nós
bastante conhecida, e em profundidade, para nos conceder o poder único de doravante
impedir as cristalizações míticas, identificando nelas as ilusões dos perseguidores.
Quero muito que a história da Revolução Francesa seja mítica, em sentido mais
amplo; entretanto, ela nunca é suficientemente mítica para se apresentar a nossos olhos
em forma de um mito de Édipo renovado. Mas podemos ver muito bem as causas
possíveis desse mito na mentalidade persecutória mais grosseira. Se essa mentalidade
tivesse sido universalmente imposta, pode-se imaginar sem dificuldade uma fusão de
dois personagens num só: o pequeno Luiz XVII, acusado de incesto com a mãe, e
Philippe Égalité, votando a morte do rei na Convenção. Não seria preciso mais para
reconstituir o Édipo parricida e incestuoso.
Esse tipo de cristalização mitológica não consegue se realizar em nosso universo. Ele
é logo de cara identificado como tal. Mas esse poder de que dispomos é proibido,
literalmente barrado no umbral da “alta cultura”. Não pudemos transportá-lo para os
universos diferentes dos nossos, sobretudo o universo “clássico”. Sufocamos desde o
início qualquer cristalização mitológica nova, mas não aprendemos a dissolver as que
foram recolhidas pelos etnólogos ou enobrecidas pela literatura. Não sabemos, ou não
queremos utilizar o recurso privilegiado de desmistificação que a Bíblia colocou em
nossas mãos. Talvez temamos, em segredo, que ele nos cause enormes estragos.
Nossos eruditos imaginam “não crer no mito”, considerando-o completamente
fictício, mas o fato de tomar o parricídio e o incesto por um dado imprescritível é uma
crença que perpetua a ilusão persecutória, ou seja, o essencial da ilusão mítica.
Os classicistas fiéis recorrem sempre à famosa fatalidade que escamoteia qualquer
inquérito sobre as acusações mitológicas e faz do herói trágico um criminoso, sem que
ele o saiba; um criminoso devidamente reconhecido, ainda que desprovido de qualquer
consciência no crime. Como os amigos de Jó, os comentadores se voltam eternamente
ao caso de Édipo e sacodem a cabeça de modo sentencioso.
A ideia de que o mito seja por inteiro ficção o torna tão impenetrável quanto a ideia
contrária, a do religioso que faz dele a verdade. O humanismo cético é visto como a
crítica suprema ao religioso, enquanto na realidade é seu herdeiro, por isso tem todo
interesse, como qualquer herdeiro, na multiplicação do capital de que usufrui para não
ser secretamente respeitoso. Em condições radicalmente alteradas pela revelação
bíblica, o humanismo cético impede a revelação do papel representado pelo mecanismo
vitimário na gênese e organização dos mitos. Ele se situa no prolongamento direto do
religioso vitimário, cujo segredo protege.
O paralelo Édipo-Jó permite estabelecer o tipo de superioridade que se deve
reivindicar ao texto bíblico, numa desmistificação verdadeiramente radical que
constitui um mesmo todo com a resolução do enigma que a mitologia segue sendo para
nós.
Há exatamente uma desmistificação trágica e não renego o que disse sobre isso em
28
A Violência e o Sagrado [São Paulo: Paz e Terra, 1998]. É ela que põe em evidência e
aciona muitas semelhanças entre Édipo e Jó, mas essa desmistificação não cruza um
certo umbral que o texto bíblico é capaz de cruzar.
A ação trágica é uma luta de influência dos protagonistas junto ao povo, uma
rivalidade mimética, exatamente como em Jó. Édipo por fim perde a partida que
poderia ter ganho. Tudo isso é fortemente sugerido por um autor, Sófocles, que
minimiza o parricídio e o incesto tanto quanto possível, mas os reassume ao final da
“rota antiga”, para não mudar em nada o itinerário. Sófocles não afronta a crença dos
“Elifazes” gregos.
Ao lado da de Jó, a desmistificação trágica não passa de um esboço, uma veleidade.
Como Jó, Édipo em primeiro lugar resiste vigorosamente às acusação de que é alvo. A
primeira menção ao parricídio o faz dar de ombros, mas ele acaba se curvando, e sua
submissão é velada em confirmação estrondosa de seus crimes. Trata-se de uma
verificação aparente dos oráculos, apoiada sobre uma única testemunha, que jamais
desmente nem confirma o rumor persistente de um Laio assassinado, não por um só
homicida, mas por vários.
Depois de repetir por cinco ou seis vezes, ao longo de seu inquérito, que se deve
tirar a limpo esse rumor, Édipo não coloca a questão que premeditara. Renuncia à luta
e não pensa em nada além de acusar-se a si mesmo de tudo o que os outros quiserem.
Esse processo dos múltiplos homicidas faz velada alusão à violência coletiva que os
oráculos disfarçam, colaborando com ela, exigindo sempre novas vítimas. Nos
múltiplos homicidas de Laio já está evidente a violência coletiva, e mais uma vez a
violência coletiva se prepara para acertar as contas com o curioso Édipo.
Como não ver uma alusão ao processo vitimário num texto completamente tomado
por uma rede de alusões, que desta vez não se podem negar, ao papel de bode
expiatório que Édipo acaba representando, de acordo com a trama tradicional?
Na primeira cena, o rei diz aos tebanos, que vêm suplicar-lhe para curá-los: “Sofro
mais do que cada um de vós, pois eu, vosso rei, devo sofrer em lugar de todos”.
Pouco antes da chegada do pastor, Édipo e Jocasta evocam uma vez mais o rumor
dos homicidas múltiplos, e Édipo exclama: “Se são numerosos, não sou culpado, pois
apenas um homem não pode se pôr no lugar da multidão”. Essa frase remete à
anterior, contradizendo-a. Aceitando a realeza, todo homem se expõe ao risco de se
tornar bode expiatório, sendo exatamente isso o que Édipo implicitamente reconhecia
em sua primeira frase. Chegado o momento de tomar uma decisão dolorosa, Édipo
primeiramente tenta esquivar-se, mas por fim deve se curvar.
Sófocles demonstra aqui uma clarividência superior, que não o impede, porém, na
conclusão de Édipo Rei, de também curvar-se, de também deixar-se enganar, sem
nenhuma desconfiança, por esse mito cujo caráter – não simplesmente fictício, mas
mentirosamente persecutório – não lhe escapa. Para toda essa análise, sou muito grato
às pesquisas de Sandor Goodhart. [4]
29
7
“POR CAVALOS ESTA RAINHA PISOTEADA”
Aristóteles marca nitidamente os limites da desmistificação trágica em sua Poética,
ao anunciar a proibição, para o dramaturgo, de trazer modificações muito radicais ao
conteúdo das histórias legendárias por ele adaptadas. O povo conhece essas histórias de
cor e poderia se incomodar acaso o poeta as transformasse muito, sobretudo se essa
transformação o privasse (o público) do espetacular castigo de uma vítima.
Desprovido desse elemento substitutivo de imolação sacrificial que espera do poeta,
o público poderia muito bem voltar-se contra o poeta e adquirir, por sua própria conta,
uma catarse de substituição, apontando para as origens violentas de todo espetáculo
trágico.
De acordo com uma lenda significativa, Eurípedes termina seus dias devorado por
cães que se assemelhambastante aos animais linchadores dos amigos de Jó, ou àqueles
da rainha Jezabel, no livro dos Reis [2Rs 9,30-37]. São os mesmos cães, os mesmos
cavalos, os mesmos animais por todo lado, o mesmo diasparagmos:
Por cavalos esta rainha pisoteada,
Em seu sangue inumano os cães se saciam,
De seu corpo horrendo os membros dilacerados.
O poeta de Atalia não poupou referência a esses cães. Não poupou referência às
serpentes de Orestes. Também não poupou referência aos cavalos que, mais do que o
monstro, são responsáveis pela morte de seu mestre Hipólito, em Fedra. Permitam-me
fazer aqui uma digressão, que não é exatamente uma, sobre Racine.
Racine nunca deixa de desenvolver com sabedoria, abundantemente, tudo o que as
fontes mitológicas ou históricas de fato lhe fornecem, no que diz respeito à violência
coletiva e sacrificial – preservando cuidadosamente seu significado religioso. Seja a
morte de Pirro num templo, ao pé do altar dos sacrifícios. Seja Ifigênia, seja Erifile,
inteiramente sacrificada pelo exército grego: pouco importa. No final de Ester, Amã é
lançado à multidão, que o estraçalha. Em Atalia, o fim da rainha é o mesmo que o da
mãe. Descrevendo-nos o sonho de Atalia, Racine nos mostra que também ele conhece
muito bem “a rota antiga dos homens perversos”. Em seu livro Sobre Racine, Roland
Barthes percebeu o papel fundamental do homicídio coletivo, do qual certamente teve
a intuição, na medida em que vê na famosa cena do pai da horda primitiva (Totem e
Tabu) o denominador comum de todas as intrigas racinianas. A passagem por Freud é
confusa, dificultando um pouco o alcance de suas observações.
Não há verdadeira tragédia em que o herói não percorra a famosa “rota”, que
desemboca no terror final. E se as fontes não fornecem nada nesse sentido, Racine é
perfeitamente capaz de inventar o homicídio coletivo de que necessita para suas
conclusões.
Poderíamos acreditar que não há lugar para tal homicídio em Britânico. Nem o
relato de Tácito, nem a natureza da ordem imperial autorizam uma conclusão no estilo
de As Bacantes: o esfacelamento de uma vítima, o diasparagmos de um bode
30
expiatório. Entretanto, Junia foge do palácio real. Pelo caminho, encontra uma estátua
do divino Augusto, cujos pés molha com suas lágrimas e se mantém estreitamente
abraçada a ela. O povo eufórico arranca a virgem de sua proteção. Nero não ousa se
mover, mas o diabólico Narciso se lança em perseguição a essa presa:
Narciso mais ousado se apressa para agradá-lo,
Voa em direção a Junia; e, sem atemorizar-se,
Com uma mão profana começa a prendê-la.
Com mil golpes mortais sua audácia é punida;
Seu sangue infiel recai sobre Junia.
César, por tantos objetos ao mesmo tempo golpeado,
O deixa nas mãos que o envolveram.
Racine inventa com todas as letras o homicídio coletivo que as fontes romanas de
modo nenhum sugerem. Anterior em aparência a esse sacrifício, a pureza de Junia é, na
realidade, o fruto do sangue vitimário que recai sobre ela. Essa pureza adquire um
significado religioso, tornando-se a pureza da vestal.[1]
Essa cena é perfeitamente idêntica à cena da morte de Hipólito. O povo exaltado,
no caso de Hipólito, são os cavalos revoltados contra seu mestre e que o arrastam (ele
também) antes de destruí-lo, às proximidades de um lugar sagrado onde Aricia está a
sua espera. Se não é sobre o altar dos sacrifícios que as carnes são despedaçadas, então é
ao lado, e sempre o sangue recai sobre a sobrevivente para reavivar ou talvez suscitar a
virgem harmonia da aurora pós-sacrificial.
Eu vi, senhor, vi vosso filho infeliz
Arrastado pelos cavalos que sua mão alimentou.
Ele quer que o reconheçam, mas sua voz os espanta;
Eles correm: seu corpo todo logo se torna uma só chaga.
Nossos gritos de dor por toda a planície ressoam.
Sua fuga impetuosa por fim perde o vigor:
Eles param não longe desses túmulos antigos
Onde os antepassados dos reis são as frias relíquias.
Racine percebe e reproduz o papel do animal no homicídio mitológico. Para o
martírio de Jezabel, que profetiza o de Atalia, não se contenta com cães vorazes e faz
que retornem os cavalos de Hipólito: “Por cavalos esta rainha pisoteada”. Pouco
importa se as conclusões racinianas se inspiram inteiramente ou parcialmente nas
fontes, ou se não existe fonte alguma. Em certo sentido, elas nunca são imaginárias. O
rigor no tratamento da violência e do sagrado é sempre o mesmo, e o que está sempre
presente antes de tudo é o homicídio coletivo.
É nisso que consiste a famosa imitação dos antigos. Nos mais notáveis, essa imitação
é uma apreciação exata daquilo que o funcionamento sacrificial da tragédia exige, e o
que vemos sempre, tanto na pura invenção como na imitação mais submissa, é a
conformidade rigorosa com os grandes modelos legados pelas tragédias mais próximas
da origem sacrificial.
Parece que uma conclusão em forma de homicídio coletivo é inverossímil na
tragédia mais enclaustrada e confinada de Racine, Bajazet, aquela em que a multidão
está obrigatoriamente mais ausente. Entretanto, outro sonho, outro pesadelo, tem
como tema exatamente o sonho de Atalia. Porém, mais do que um sonho real, é a
loucura de Orestes que recomeça. A infeliz Atalide considera-se perseguida não por
31
aquele cuja perda atribui a si mesma como culpa, mas por todos aqueles e aquelas que
amaram Bajazet, seus amigos, seus parentes e todos os seus ancestrais, convertidos
numa turba de vingadoras Erínias. E como de costume, poderíamos dizer que os
exércitos celestes dos “amigos” se precipitam sobre a vítima. Vejamos os últimos versos
da peça:
Ah! Só tive amor para te assassinar?
Mas já é o bastante: é preciso, por um súbito sacrifício,
Que minha mão fiel te vingue e me puna.
Vós, de quem perturbei a glória e o repouso;
Heróis, todos os que devíeis reviver neste herói,
Tu, mãe infeliz que, já em nossa infância,
Confiaste-me seu coração numa outra esperança;
Desventurado vizir, amigos desesperados,
Roxana, vinde todos, contra mim conjurados,
Atormentar ao mesmo tempo uma amante perdida;
E tomai enfim a vingança que vos é devida. (Ela se mata.)
Atalide transfigura seu próprio suicídio em homicídio coletivo, ou talvez seja o
sentido verdadeiro de todo suicídio que esses versos fazem surgir, a ausência total de
recursos, a hostilidade universal, o avesso da unanimidade persecutória. Esse mesmo
sentido profundo do suicídio reaparece em Fedra, que se sente ao mesmo tempo
expulsa do céu, da terra e dos infernos. Esse sentimento pode provir do imaginário,
evidentemente, em particular nos aspectos paranoicos do indivíduo moderno. Mas será
que sempre provém daí, provém daí necessária e originariamente?
A perseguição coletiva sempre é apenas uma ilusão de nossos sentidos enganados?
As verdadeiras vítimas existem? Sim ou não? Que diferença existe entre o abuso da
psiquiatria e a negação dos horrores reais da História? O que verdadeiramente é
projetado em todas as “projeções persecutórias” e nos “fantasmas do corpo
desmembrado”?
Não pretendo dizer quem ganhe em perspicácia de Racine, de Sófocles, de todos os
autores trágicos ou do autor dos diálogos. Isso seria perfeitamente ridículo. Sófocles
certamente não tem sobre o mito as mesmas ilusões que valorizamos; Racine também
não, mas o saber de ambos permanece ambíguo e, por fim, estéril. Ele procede por
alusões e conserva sempre algo de esotérico.
Ainda que não leve a sério as acusações míticas, Sófocles sugere que Édipo, por sua
arrogância, e sua imprudente investigação, tudo fez para provocar o desastre que recai
sobre si. Os comentadores veem bem essa atitude de Sófocles, mas não tiram as
conclusões que deveriam. Não veem que ela implica um ceticismo radical em relação
aos elementos propriamente mitológicos: o parricídio e o incesto realmente cometidos,
que trariam realmente a peste a Tebas.
Édipo foi o primeiro a se pôr à procura de um bode expiatório e seu mau exemplo
se volta contra ele; graças a sua mansidão final, a tragédia se fecha harmoniosamente
em si mesma, de tal modo que hoje ninguém (ou quase ninguém) tem a menor suspeita
sobreo sistema de ilusão vitimário que ela representa.
Mesmo percebendo a injustiça do processo vitimário, o autor trágico não adota o
ponto de vista da vítima. Sófocles me parece dizer duas coisas: “As histórias de
parricídio e de incesto são banalidades, mas foi Édipo por si só que foi se meter no
vespeiro. Ele mexeu com fogo, por isso se queimou. Não sou eu quem vai tirá-lo do
32
embaraço”. Essa indiferença pela vítima enquanto vítima não tem somente
consequências morais. Ela impede que o mito se desfaça.
Jó é exatamente o contrário. Jó é inconcebível entre os gregos e seus herdeiros
modernos. Imaginemos um Édipo inflexível, zombando da fatalidade, e sobretudo do
parricídio e do incesto; um Édipo que persistiria em conceber os oráculos como
sinistras armadilhas para bodes expiatórios – o que de fato são. Todos ficariam contra
ele: os helenistas, Heidegger, Freud e, atrás desses, todo o meio acadêmico. Seria
necessário matá-lo de uma vez por todas ou interná-lo num hospital psiquiátrico por
recalque insuperável.
Tudo isso não resolveria os problemas da civilização ocidental e de sua literatura. A
catarse perde sua eficácia e todos os tipos de sublimidades se decompõem de uma só
vez. A bela forma trágica, a forma por excelência, não encontra mais seu equilíbrio. Ela
carece de conclusão apresentável. Hoje podemos ver bem o que se passa, pois essa
forma acaba de se desfazer. Os subterfúgios sacrificiais se esgotaram. Mas quanto tempo
não terá sido necessário para chegar a esse ponto!
A menor vista-d’olhos no livro de Jó explica o desprezo que se tem pela literatura
bíblica. Não faltam repetições e o texto se desintegra de todos os lados. Só o prólogo e a
conclusão acrescentados dão uma aparência de unidade a esse caos. Efetivamente,
ambos são, um e outro, tão indispensáveis ao esteta quanto ao moralista e ao
metafísico. Sem eles, não encontraríamos diante de nós mais do que:
... um terrível amálgama
De ossos e carnes destroçadas na lama,
Pedaços cheios de sangue e membros horrendos
Que cães vorazes disputam entre si.
33
Terceira Parte
O MIMETISMO
34
8
“PELO MAL DOS ARDENTES[1] TODO UM PAÍS
ACOMETIDO”[2]
Uma dimensão essencial da tese vitimária resta ainda a ser resgatada: o mimetismo.
Penso que todas as condições de sua presença estão aqui reunidas. O prestígio perdido
de Jó provavelmente foi uma aquisição pessoal. Jó não o devia, ao que parece, a
nenhuma função que teria ocupado, nem a sua hereditariedade. Pelo prazer que tal
prestígio lhe causava, pode-se adivinhar que ele não o possuiu sempre. Foi um homem
que caiu de posição.
Que posição poderia ser essa? A primeira, provavelmente, embora Jó não fosse o
único a ocupá-la. Evidentemente, ele pertence à classe mais abastada, da qual os três
amigos, Elifaz de Temã, Baldad de Suás e Sofar de Naamat, também devem fazer parte.
Estamos diante de membros de uma elite que domina a vida política local. Seus
membros mais ousados se esforçam por aumentar seu poder, atraindo para si a
simpatia popular. Jó era o grande vencedor nesse jogo; depois, de uma hora para outra,
perdeu tudo. Por quê?
Para ser tão insanamente incensado e venerado como fora antes de se tornar bode
expiatório, certamente terá sido suficiente para Jó, numa sociedade tão instável como a
sua, um primeiro sucesso que fez dele o primus inter pares. Os desejos das pessoas de
sua classe se concentraram sobre essa primeira diferença, engrandecendo-a
excessivamente. Foi a elite, primeiramente, que tomou Jó como modelo, que o adulou,
o venerou e o imitou servilmente. O resto do povo veio atrás, imitando os primeiros
imitadores.
A prova dessa adulação entre os amigos é justamente esse título de “amigos” que
ninguém lhes contesta, quando na verdade se comportam como inimigos de Jó. Deve-
se pensar que entre eles e ele existiu uma verdadeira amizade, uma intimidade real?
Nada viabiliza tal suposição. Os três são “amigos” no sentido em que, até uma data não
muito distante nessa sociedade, todo mundo se considerava e podia se dizer “amigo”
do ilustre personagem. Essa amizade nada mais é do que outro nome dado à bajulação
do capítulo 29.
A ausência de distância social favorece a imitação recíproca dos iguais. Jó se
confunde com seu sucesso, de modo que desejar esse sucesso é desejar o próprio Jó, o
ser incomparável de Jó. Essa identificação é eminentemente concorrencial, por isso
mesmo ambivalente logo de cara. Em sua classe social, Jó tem apenas rivais que se
esforçam por alcançá-lo. Todos eles querem se tornar essa espécie de rei não coroado
que ele era.
Mas a realeza, por definição, não pode ser partilhada. Jó não pode ser bem-sucedido,
como de fato ocorre, sem provocar em seu meio uma inveja impressionante. Ele é o
modelo obstáculo da teoria mimética. Ele suscita o ressentimento nietzschiano; o
movimento da admiração sempre vem se chocar – ó escândalo! – contra a barreira que
o modelo se torna para ela. Pelo fato mesmo de repousar sobre o desejo mimético, a
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fascinação exercida pelo rival extremamente feliz tem a tendência de se converter em
ódio implacável; de fato, ela sempre esteve impregnada por esse ódio. É entre pessoas
socialmente próximas que floresce o tipo de fascinação odiosa que transparece em
quase todas as palavras dos amigos.
Se os amigos evocam a glória passada de Jó, como o próprio Jó também o faz, não é
pelas mesmas razões que ele, mas para lhe dar uma lição, maldosa e ironicamente. Eles
se satisfazem com o contraste entre o presente e o passado. Sua inveja certamente devia
ser muito forte para sobreviver à queda do ídolo. Com uma alegria um pouco obscena,
eles lembram a Jó sua mudança de ventura; de algum modo, eles corroboram a própria
felicidade:
Se alguém se dirigisse a ti, perderias a paciência.
Porém, quem pode refrear-me as palavras?
Tu que a tantos davas lições
e fortalecias os braços desfalecidos,
com tuas palavras levantavas o trôpego
e sustentavas joelhos cambaleantes.
E hoje que é a tua vez, vacilas?
Perturbas-te, hoje, quando tudo cai sobre ti? (Jó 4,2-5).
A inveja não teria o poder propriamente extraordinário que tem nas sociedades
humanas se os homens não tivessem a tendência de imitar reciprocamente seus desejos.
A inveja nada mais é do que essa reprodução recíproca dos desejos, em condições de
igualdade suficientes para assegurar o desenvolvimento das rivalidades miméticas.
A inveja dos “amigos” e das pessoas de seu meio é essencial na passagem da primeira
unanimidade mimética à segunda. A igualdade de condições aumenta a duplicidade
fundamental das reações miméticas inspiradas pelo “grande homem”. Mas se a
imitação e o desejo são modulados de maneira diferente, em níveis sociais diferentes:
no fim das contas, encontramos ambos em todos os níveis, de modo que a frustração
do modelo obstáculo é universal. Nunca há diferença essencial entre os amigos e o
resto do povo.
Na falta de poder atingir seu fim mais direto, o feed-back da rivalidade, a retroação
recíproca do modelo e do obstáculo, intensifica a frustração que acaba sempre por
aceitar vítimas de substituição, mimeticamente designadas. Mas o mimetismo da
substituição sacrificial não é profundamente diferente do mimetismo invejoso presente
nos amigos. A multidão é um amplificador de retardamento das reações sucessivas da
elite e, até certo ponto, a recíproca é verdadeira.
A inveja só pode ter nascido entre Jó e seus pares; aqui, seu nascimento é mais do
que provável. Após uma fase de imitação positiva, ela teve de crescer subterraneamente
entre os “rivais” naturais de Jó, porém, para se manifestar mais diretamente, foi preciso
que ela aguardasse um primeiro erro, algum incidente que, ao ser explorado com
maestria, pudesse arruinar a popularidade de Jó junto ao povo.
Ao menor passo em falso, espreitado de todos os lados, o ídolo corre o risco de se
converter em bode expiatório. O mimetismo da inveja e do ódio se propaga com tanta
rapidez quanto o mimetismo da admiração. É o mesmo mimetismo, transformado pela
transmutação do modelo em obstáculo e escandalizado por essa metamorfose.Descendo às camadas inferiores da sociedade, encontramos pessoas que não podem
rivalizar pessoalmente com Jó, mas que são bastante oprimidas para adotar cegamente,
36
mimeticamente, os bodes expiatórios que se põem ao seu dispor, os inimigos daqueles
que as oprimem. Elas podem então extravasar seu rancor permanente sobre as vítimas
mais desejáveis, as mais prestigiosas, aquelas que, ainda ontem, exerciam sua
onipotência.
A queda de Jó na opinião pública provavelmente teve seu início no círculo social de
Jó e em seguida se propagou em direção às camadas mais baixas. Os intocáveis do
capítulo 30 jamais ousariam atacar Jó, como de fato o fazem, sem o encorajamento da
classe superior. Trata-se apenas de uma conjectura: os discursos dos amigos são um
estímulo à violência popular.
Deve existir, portanto, um certo descompasso temporal entre as reações da elite e as
da multidão. Esse descompasso permite que se interprete um tema importante, o qual
ainda não citei, embora esteja presente no discurso de Elifaz sobre “a rota antiga dos
homens perversos”. É o tema da vingança divina retardada.
Enquanto são seus inimigos declarados, os homens perversos sempre são cumulados
por Deus de bens. Por que essa longa indulgência da divindade? É muito fácil, uma vez
mais, considerar esse tema “puramente” imaginário, dando como pretexto ser ele
religioso. No tema do auxílio divino que se detém exageradamente sobre o malvado, a
porção de realidade pode ser deduzida das observações precedentes.
Esse período ao longo do qual os malvados, os malditos, gozam do patrocínio
divino tem duração suficientemente longa para conduzir os “justos” às margens do
desespero. O que isso quer dizer? Por que a divindade demora tanto para destruir seus
inimigos? Ela poderia ser tapeada por eles? É impossível. A resposta clássica no interior
do religioso vitimário afirma que, muito longe de se enganar, a divindade recorre à
estratégia, armando uma cilada diabólica àqueles que se rebelam contra ela. Ela
estimula neles a arrogância, que acabará se lhes tornando fatal.
Por si só, essa resposta sugere uma participação popular na vingança divina. Quanto
mais os benefícios divinos se demoram sobre os malvados, mais sua arrogância
aumenta. Se a divindade cultiva essa arrogância, não é porque precise dela para formar
uma opinião sobre a maldade dos malvados. A arapuca que arma para eles mostra que
ela já os condenou.
A arrogância do perverso não excita a divindade, mas o povo, ainda encantado. Ela
suscita em muitos homens uma inveja legítima, um ressentimento justo. Ela facilita a
mobilização geral dos exércitos celestes. Se a divindade se encarregasse sozinha de
aplicar a pena, toda essa manobra seria inútil. Ainda aqui, ela recorre visivelmente ao
intermédio de uma multidão que dá demonstração de longa paciência, mas que acaba
por desfazer-se do próprio estupor diante dos excessos daqueles que souberam ganhar
seu favor.
A divindade protela sua intervenção, para que possa tornar a queda dos perversos
tão espetacular e cruel quanto possível. Caso se rejeite a concepção sádica do divino
implicada em tudo isso, será preciso interpretar bem essa ideia de vingança retardada
em relação aos sentimentos invejosos que podemos pressentir nos amigos de Jó.
Os rivais infelizes dos poderosos ficam impacientes diante da relativa estabilidade de
um poder forçosamente contrário – segundo eles – à vontade divina, porque lhes
ofusca o brilho. Eles gostariam de apressar o curso provável das coisas, mas não ousam
se opor abertamente àqueles a quem a ralé ainda não deixou de venerar.
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Se Jó tem razão em pensar que os Elifazes, os Baldades e os Sofares poderiam
representar em seu lugar o papel de bode expiatório, isso quer dizer que eles também
poderiam ter representado o papel de ídolo popular, e possivelmente terão uma
segunda chance após a queda de Jó. É exatamente essa possibilidade, barrada até aqui
por Jó, que fazia deles oponentes irredutíveis. Eles se sentiam oprimidos, talvez até
realmente o fossem, mas eram sobretudo humilhados. A emoção fundamental é a
rivalidade mimética, a inveja que inspiram concorrentes muito felizes. O deus feroz da
tradição imemorial é aqui a máscara dessa inveja.
Jó vê perfeitamente que o bode expiatório é intercambiável com aqueles que o
perseguem do modo mais feroz: os pretensos amigos. Ele alude a essa mudança de
situação para mostrar que a única diferença verdadeira é causada pelo sofrimento:
Também eu poderia falar como vós,
se estivésseis em meu lugar;
poderia acabrunhar-vos com discursos
levantando sobre vós a cabeça,
vos confortar com palavras,
e depois deixar de agitar os lábios.
Se falo, não cessa minha dor;
se me calo, como ela desaparecerá? (Jó 16,4-6).
Os grandes homens são muito populares para sucumbir logo em seguida às intrigas
que proliferam em seu redor. A inveja mimética bajula durante muito tempo na
surdina. Eis o significado, em minha opinião, do “atraso” da vingança divina. Mas a
opinião se cansa de seus ídolos; ela acaba por queimar aquilo que adorava, no
esquecimento de sua própria adoração. É esse o “triunfo” dos amigos e o momento em
que se situam os diálogos.
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9
O SALMO 73
Nessa ideia de que a inveja de que Jó é alvo não é explícita, meu raciocínio conserva
um caráter conjectural. Os amigos, particularmente, não dizem nada a respeito disso, é
claro. Jó não faz mais do que alusões a isso. O texto que uniria diretamente a inveja
mimética ao fenômeno do bode expiatório sacralizado não se encontra em Jó, mas em
outro lugar da Bíblia: no Salmo 73, que é ao mesmo tempo muito próximo e muito
diferente daqueles que citei como exemplo: muito próximo pelo assunto e muito
diferente pela perspectiva.
O narrador se apresenta como um justo, fiel à divindade verdadeira, por muito
tempo desanimado pela aparente inércia da justiça divina. Ele relata explicitamente a
inveja que lhe inspirava a carreira demasiado brilhante daqueles que apresenta,
evidentemente, como ímpios. Felizmente, a divindade por fim toma a decisão de
intervir.
Contrariamente aos outros salmos trágicos, sempre escritos a partir do ponto de
vista da vítima, esse é um dos salmos, muito raros, que refletem a outra perspectiva: a
dos amigos. De fato, é o único a respeito do qual se pode afirmar – sem hesitação, ao
que me parece – que reflete a perspectiva dos perseguidores:
Por pouco meus pés tropeçavam,
um nada, e meus passos deslizavam,
porque invejei os arrogantes,
vendo a prosperidade dos ímpios.
Para eles não existem tormentos,
sua aparência é sadia e robusta;
a fadiga dos mortais não os atinge,
não são molestados como os outros.
Daí a soberba, cingindo-os como colar,
a violência, envolvendo-os como veste.
A maldade lhes brota da gordura,
seu coração transborda em maus projetos.
Caçoam e falam maliciosamente,
falam com altivez, oprimindo;
contra o céu colocam sua boca
e sua língua percorre a terra.
Por isso meu povo se volta para eles
e águas em abundância lhes vêm ao encontro.
.............................................................................
Até que entrei nos santuários divinos:
entendi então o destino deles!
De fato, tu os pões em ladeiras,
tu os fazes cair, em ruínas.
Ei-los num instante reduzidos ao terror,
deixam de existir, perecem, por causa do pavor! (Sl 73,2-19).
O indivíduo que se dirige a nós por muito tempo conteve sua cólera perante um
homem, um grupo de homens, por muito tempo popular, mas cujo sucesso estrondoso
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terminou abruptamente no “horror” e no “pavor”. Uma vez mais, estamos diante da
“rota antiga”. Os personagens em questão a trilharam até o precipício final, e se
existisse uma lista de “homens perversos”, seus nomes poderiam integrá-la, ao lado do
de Jó.
O narrador se alegra, em suma, diante de um desastre semelhante ao que se abate
sobre Jó. Ele se faz aprovador e cúmplice de uma violência coletiva que encara como
divina. Ele nos permite imaginar as reflexões íntimas dos inimigos de Jó, aquelas que os
três amigos guardam para si.
A prova de que o essencial aqui é a exaltaçãodo povo pode ser lida na frase: o
“povo se volta para eles”. Na ótica do narrador, o povo garante o sucesso das pessoas
que não deveriam ter êxito, mas mesmo assim se tornam bem-sucedidas e seus abusos
de poder duram tanto quanto o apoio popular de que usufruem.
A longa carreira dos “malvados” desesperava o justo e suscitava nele uma inveja que,
desta vez, aparece com todas as letras. Essa inveja era tão forte que quase convenceu o
assim chamado justo a renunciar a qualquer oposição, a seguir o exemplo dos
malvados, possivelmente fazendo-se seu adulador.
Felizmente o narrador se manteve firme. A queda dos perversos se produziu no
tempo exato para restabelecer a credibilidade da justiça eterna e libertar o invejoso de
sua inveja. Aquilo que ele concebia como inércia da divindade era uma temporização
sábia. O justo não compreendera ainda que se tratava aí de uma verdadeira estratégia
divina.
Até que entrei nos santuários divinos:
entendi então o destino deles!
De fato, tu os pões em ladeiras,
tu os fazes cair, em ruínas.
A queda final dos perversos é percebida como uma dupla vitória: para a divindade e
para o justo tão humilhado. A derrota se fez esperar demoradamente, é certo, mas não
se deve nunca desesperar. A opinião pública, por muito tempo fiel a seu favorito,
muito mais tempo fiel do que a elite invejosa gostaria, acaba sempre por se livrar de sua
apatia e acertar as contas com os miseráveis.
Quando um homem se eleva acima de nós e nos torna a existência insuportável, é
certo que ele também a torna insuportável para muitas outras pessoas. Pode-se esperar,
portanto, que cedo ou tarde o mecanismo da revolta popular seja acionado. Quanto
mais tempo levar para ser acionado, mais lenta parecerá a justiça divina, ou mesmo
duvidosa, mas ela recuperará, no fim das contas, sua reputação de infalibilidade.
O justo identifica muito bem a inveja ainda moderada de sua imitação positiva,
porém, não consegue perceber quando ela se intensifica, sob efeito do obstáculo, do
escândalo, do triunfo dos “malvados”, o qual converte em ódio.
Contudo, se há uma inveja que mereça esse nome, é exatamente essa. O justo
interpreta sua contraimitação, seu ressentimento mais intenso, como diferentes da
inveja, quando na verdade consistem em seu paroxismo. Ele vê aí o bom sentimento
por excelência, o fervor religioso em seu estado puro. Ele deixa subsistir apenas um
elemento de mistificação, o que é o principal. Ele se assemelha, portanto, aos amigos
cuja inveja tão intensa se metamorfoseia em histeria religiosa.
O Salmo 73 não vai no sentido da inspiração bíblica mais elevada, a que faz ouvir a
40
voz da vítima. Ele se aparenta à voz dos amigos no livro de Jó. A inspiração mais
elevada é a de Jó, a única especificamente bíblica, a única sem equivalente verdadeiro
no universo grego e onde quer que seja.
Esse texto, todavia, tem seu lugar no conjunto constituído pelos salmos da vítima
coletiva. Podemos certificar-nos disso se compararmos seu papel ao papel dos
interlocutores de Jó. Se a Bíblia simplesmente transferisse, dos perseguidores para as
vítimas, o monopólio da palavra, se ela substituísse uma “moral dos escravos” pela
“moral dos senhores”, como acredita Nietzsche, a revelação não seria tão poderosa
quanto de fato é, sobre o plano moral, tanto quanto sobre o plano intelectual, os quais,
em verdade, são a mesma coisa. Não seríamos convidados a confrontar perpetuamente
as duas perspectivas. A Bíblia não seria mais do que a represália simbólica ou real à
qual Nietzsche limita o processo bíblico. Ela voltaria sempre a um processo de
dualidades miméticas, uma inversão de signos sem significação essencial. Com efeito,
ela é exatamente outra coisa.
Na tragédia grega, encontramos reflexões muito semelhantes àquelas do Salmo 73.
O coro se mostra indignado com o sucesso dos arrogantes e a ação divina desperta nele
uma tentação de ceticismo e impiedade. De que adiantaria servir os deuses se a
hybris[1] permanecesse impune? No fim das contas, felizmente, a hybris sempre é
punida. Uma ascensão muito rápida tem como resultado uma queda precipitada.
Ésquilo, Sófocles, Eurípides, todos eles tecem comentários sobre a afinidade recíproca
entre a extrema elevação e a extrema degradação. O coro celebra a própria
mediocridade, que considera apaziguadora. Os destinos barulhentos atraem a ira
divina.
A sucessão violenta dos tiranos corresponde à “rota antiga dos homens perversos”.
Podemos perceber uma instabilidade cuja dimensão política é evidente, essencial, mas
as interpretações que se limitam aos aspectos políticos são falseadas pela tendência que
os comentadores têm de favorecer o tirano ou, o que ocorre com maior frequência, a
multidão. Ao introduzir significações anacrônicas a essas questões, ou seja, ao tomar
partido, desconhecemos sempre e obrigatoriamente o verdadeiro centro de gravidade
do processo, o mecanismo do bode expiatório, ainda parcialmente sacralizado. A
completa dimensão religiosa desses acontecimentos é o que permanece dissimulado por
trás da dimensão política.
O religioso primitivo nunca é inútil. Nossa ignorância o faz subsistir como
superstição “pura e simples”. Mas para identificar sua porção de verdade, é preciso
desagregar dele os “paradoxos” do desejo mimético transfigurados pela sacralização que
os coroa.
Uma vez compreendido o papel representado pela multidão histérica na religião
violenta, pode-se separar o verdadeiro trigo do joio e tirar proveito daquilo de real que
a linguagem do sagrado guarda consigo, sem ter medo de ser por ela enganado.
Como a tragédia grega, os Profetas, os diálogos de Jó e os Salmos refletem enormes
crises, políticas e sociais certamente, mas religiosas também, as quais constituem uma
mesma realidade com a decadência dos sistemas sacrificiais ainda em uso nas duas
sociedades. Estamos no ponto de junção entre um religioso ainda sacrificial, em
sentido estrito, e um político sacrificial, em sentido amplo. Em certos pontos, já é
possível traduzir o discurso religioso para o discurso político, e vice-versa.
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Graças aos trabalhos do CREA[2] e de outros ainda, essas possibilidades aumentam
rapidamente, mas seu desenvolvimento há de sacudir tantas coisas nas ciências sociais,
que se pode estar preparado para fortes resistências.
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10
A TORRENTE DAS MONTANHAS
Nos diálogos, as condições favoráveis a todos os fenômenos miméticos estão
visivelmente reunidas. A combinação entre imitação positiva, primeiramente,
“negativa”, em seguida, e ressentimento imitativo propagado pelos amigos e as pessoas
de sua espécie: dá perfeitamente conta das duas unanimidades sucessivas e da ordem de
sua sucessão.
Encontraremos nos diálogos referências explícitas a esse duplo mimetismo? Seria
pedir muito a um autor que não é filósofo, nem teórico, e que não dispõe de uma
linguagem adequada para falar dessas coisas... Sem dúvida, mas são sempre os filósofos
e os teóricos que deixam o desejo mimético passar despercebido e são os “poetas” que o
apreendem.
Os diálogos não são exceção. O desejo mimético se revela numa grande metáfora
que traduz a complexidade das relações que ele suscita, tanto quanto sua miséria
extrema, sua essencial pobreza. Não é possível sonhar com algo que equivalha de modo
mais simples e mais luminoso àquilo que Eric Gans chamaria o “paradoxo” dessas
relações:[1]
Meus irmãos atraiçoaram-me como uma torrente,
como canais de um rio que transborda,
tornando-se turvo pelo degelo
e arrastando consigo a neve.
No tempo de verão, porém, desaparece,
ao vir o calor extingue-se em seu leito.
As caravanas desviam-se de sua rota,
penetram no deserto e se perdem.
As caravanas de Tema procuram-no,
e os mercadores de Sabá contam com ele:
mas fica burlada a esperança,
ao encontrá-lo ficam decepcionados (Jó 6,15-20).
Num clima semiárido, os cursos de água jamais fornecem aos homens o que eles
desejam. Com o derretimento da neve, quando a água superabunda, eles transbordam,
mas no resto do ano, quando a sede impera, só resta areia.
Na época em que todo mundo se precipitava aoredor de Jó, os falsos “amigos”
multiplicavam suas ofertas de serviço. Hoje, Jó precisa de apoio e todo mundo se esvai.
Como a água ao calor do sol, as atitudes de bondade evaporaram.
De amigos verdadeiros, esperamos que eles nos apoiem nos momentos de
adversidade, quando o mundo nos hostiliza. E quando vis bajuladores nos rodeiam,
esperamos uma severa vigilância. Não existe amizade verdadeira sem independência
nem coragem.
Somente uma grande capacidade de resistência aos impulsos miméticos pode
garantir essa independência. Todos os sentimentos miméticos se entendem bem. Os
excessos estúpidos da moda desembocam na expulsão feroz dos bodes expiatórios.
Virtude rara e preciosa entre todas: a imunidade ao mimetismo.
43
Longe de possuir essa virtude, os amigos vão sempre ao encontro da sedução
mimética mais forte, como todo mundo... ao encontro da maioria, como todo
mundo... Em qualquer circunstância, eles prejudicam os interesses de Jó. Nunca se
pode contar com eles; se você quiser que eles perseverem amanhã na atitude que têm
hoje, certifique-se primeiro sobre a constância da multidão.
Jó vê lucidamente o que se passa com ele. “Não acharei sequer um sábio entre vós”
(Jó 17,10), grita em seu desespero. Aqueles que atiçam o ódio popular contra Jó, ainda
ontem disputavam um lugar na primeira fila de seus aduladores. Parece que eles
mudaram, mas a mudança faz parte de sua natureza mimética. É o contrário da
liberdade. Eles são somente uma pequena porção da multidão.
Jó diz: “Meus irmãos atraiçoaram-me como uma torrente”. A que, precisamente, se
aplica essa metáfora? Se a palavra “irmãos” designasse apenas os três amigos, os
interlocutores diretos de Jó, a metáfora não seria pertinente. É preciso que ela se
aplique à comunidade toda, que tão pouco se distingue dos amigos. Hoje está
chovendo e os amigos são gotas de água junto às outras gotas de água. Se amanhã fizer
sol, nós os veremos junto aos grãos de areia no deserto escaldante...
As duas unanimidades que fazem de Jó alternativamente um ídolo e um bode
expiatório correspondem à cheia primaveril, a primeira delas, e à seca absoluta, a
segunda. Se os três amigos não fossem sempre submetidos à moda do momento, como
todo mundo, não haveria unanimidade.
O mimetismo dos três os torna representações perfeitas de uma comunidade que é,
ela própria, mimética. Se todos os cidadãos comparecessem em pessoa ao redor de Jó,
não aprenderíamos nada que já não soubéssemos. Os três camaradas são suficientes,
assim como o coro na tragédia grega.
A metáfora da torrente não expressa somente a ausência do mais desejável, qualquer
que seja, mas também a presença superabundante e sufocante do indesejável, qualquer
que seja também. Esse maldito riacho sempre acaba trazendo a coisa de que nos priva e
a qual nos faz desejar, porém, no exato momento em que a traz, não a desejamos mais,
fugindo dela como de uma epidemia, e a partir de então é exatamente ela a peste.
O que era impossível de se encontrar ainda ontem não poderia deixar de sê-lo senão
para se oferecer em quantidades razoáveis, mas eis que ele surge por toda parte, invade
tudo, suplanta tudo, causando náusea. Estamos fartos dele. Acreditamos estar
vinculados a ele para sempre e nos vemos nessa situação por toda uma estação. Nós o
enviamos ao diabo.
Essa ausência de moderação, essa conjunção perpétua da falta e do excesso
caracterizam o universo entregue ao mimetismo. A rivalidade resulta naturalmente da
imitação dos desejos, de modo que o mimetismo acaba considerando o rival triunfante
como indispensável. Ele dá prioridade ao obstáculo em relação ao modelo. Ele escolhe
o modelo em função do obstáculo. Se nada o contraria, o mimético-masoquismo deixa
de desejar. Ele não vê mais modelo digno de ser imitado.
O desejo se põe em busca de um obstáculo “melhor”, mais resistente,
intransponível. Ele nunca fica sem encontrá-lo. E o que não o interessa mais, logo em
seguida se interessa por ele. Os outros mimetismos também estão à procura de
obstáculo. Somente a indiferença os atrai e os fixa duravelmente, pois ela constitui o
obstáculo irredutível. No mercado do desejo, a oferta se distancia instantaneamente de
44
tudo aquilo que constitui o objeto de uma demanda, e se acaso for a demanda a se
dissipar, a oferta prolifera monstruosamente.
O desejo faz cara feia a tudo o que se mostra acolhedor, complacente. Tudo o que
se retira, ao contrário, o atrai; tudo o que o repele, o seduz. Ele mesmo cava, sem
perceber, o leito dessa torrente que o atraiçoa sempre. Ele imagina o mundo do modo
como é projetado por sua distribuição absurda do desejável e do indesejável.
A diabólica torrente é sua natureza cíclica, a promessa – que ele sempre acaba
cumprindo, mas sempre muito tarde – de conceder aos homens aquilo de que os priva
o ano inteiro. Mudando periodicamente seus dons e suas recusas, ela reanima sempre
os desejos que nunca satisfaz. As águas de que as caravanas têm urgente necessidade
eram tão abundantes no dia anterior, que não se torna inconcebível seu completo
desaparecimento no instante preciso em que essa necessidade aparece.
Sem solução de continuidade, a metáfora faz brotar da única torrente os
comportamentos do desejo normal e aqueles do desejo que vai em direção à morte,
repelindo com elegância e simplicidade o falso bom senso que exige pelo menos duas
causas para explicar efeitos demasiado contrários em aparência: a dualidade, por
exemplo, de um “princípio do prazer” e de um “instinto de morte”. Um único
princípio basta para tudo.
Não se pode conceber uma máquina composta por tão poucos elementos a suscitar
contratempos tão numerosos, uma máquina mais sistematicamente contrariadora e
decepcionante, porque sempre e ao mesmo tempo sedutora.
Assim é o desejo mimético. Trata-se de uma armadilha tão estupidamente
engenhosa, tão hábil em produzir a infelicidade dos homens nas circunstâncias mais
diversas, que parece exceder o poder de invenção que lhes é próprio. Considerando-se
desonrados por tão grande simplicidade, embora a serviço de uma certa complexidade
(Jean-Pierre Dupuy),[2] os semi-hábeis não querem saber nada disso e dizem que o
desejo mimético é simultaneamente inexistente, ilusório e mais do que conhecido por
todo mundo.
Os que percebem do melhor modo possível esse desejo ficam tão espantados que
acabam por atribuí-lo às maquinações hostis de um espírito maligno. O demônio só
tem um objetivo, o que é indiscutível: prejudicar a humanidade. O diabo do prólogo
representa o papel que os três amigos transferem para Deus, e é esse o papel da torrente
na metáfora de Jó: é sempre o mimetismo que deixa a comunidade fora de si.
O desejo vê suas projeções como realidade. A imagem da torrente descreve o
mundo não como ele é, mas como ele se manifesta aos homens, quando seu desejo se
intensifica, quando caem por terra as proibições que ainda os protegiam das rivalidades
implacáveis.
Mas a imagem da torrente descreve também uma metamorfose objetiva do mundo.
O que primeiramente é apenas aparência subjetiva, o desejo transforma logo em
realidade, porque o mesmo não surge onde quer que seja sem causar estrago. Sendo
mimético, ele dissemina o mimetismo por todo lado e, sem nunca fazer nada, trabalha
de modo eficaz para sua própria difusão. Seus efeitos sempre multiplicados são para
nós cada vez mais refletidos, para nosso prejuízo, pelo espelho mimético do desejo do
outro e o mundo realmente se torna do modo como nosso desejo nos permite ver.
Quanto mais mimético for o desejo, mais o mundo se tornará enganador e
45
decepcionante, no sentido da torrente de Jó. É essa a profecia autorrealizadora de Jean-
Pierre Dupuy.[3] Se eu penso viver num mundo em que só merece ser buscado aquilo
que se esquiva e de modo nenhum aquilo que se oferece, estou colaborando
ativamente para a fabricação de tal mundo. Minha visão subjetiva e o real entram logo
em acordo para fazer sumir tudo o que merece ser desejado e para produzir em
quantidades sempre mais monstruosas o indesejável e o insignificante.
Numa sociedadeem que esse desejo impera, todos contribuem para tornar a
existência árida, mas ninguém se dá conta disso. Como numa sociedade bem ordenada,
cada um sempre faz apenas aquilo que vê fazerem ao redor de si. É exatamente isso o
que mostram Paul Dumouchel, Georges-Hubert de Radkowski e os economistas do
desejo.[4]
Imensas regiões do planeta se transformaram em desertos: ao que tudo indica, por
causa do uso que os homens fizeram delas, por causa de seu desejo. Quanto mais o
deserto se estende em nós, ou fora de nós, maior se torna a tentação de incriminar o
real, ou o próprio Deus, ou, o que é pior, o próximo, o primeiro Jó que aparecer...
Num universo de desejo mimético, todos os indivíduos tendem a se expulsar uns
aos outros – portanto, a si mesmos – para diferentes tipos de desertos. Se observarmos
esse parentesco secreto entre as situações individuais, essa alienação idêntica em todos
e que isola todos de todos, compreenderemos sem dificuldade que o apetite por
violência cresce e pode finalmente se saciar no momento em que a tendência global à
uniformidade favorece as substituições e as polarizações miméticas sobre uma vítima
qualquer, ou talvez sobre uma vítima não completamente qualquer, uma vítima mais
exposta, por estar em maior evidência, uma vítima predestinada, de algum modo, por
sua posição excepcional na comunidade... como Jó.
46
Quarta Parte
DO MECANISMO AO RITUAL
47
11
O TOFET PÚBLICO[1]
Compreender o papel do duplo mimetismo na história de Jó é compreender aquilo
que impulsiona as sociedades humanas a seguir cegamente certos indivíduos e, depois,
a se voltar contra eles, não menos cegamente.
Nossas ciências humanas tentam fazer o retrato típico do chefe, imaginando
determinadas noções, como a de carisma. Observe, a propósito, a linguagem do
sagrado. Carisma vem de Charis, Graça, que é uma divindade mitológica. Procura-se
definir o carisma como se ele constituísse um traço da personalidade individual, como
se ele pertencesse ao chefe da mesma maneira como lhe pertencem a cor dos cabelos e
o formato do queixo. Se fosse verdade, o carisma do chefe não se transformaria tão
facilmente em anticarisma, ou contracarisma do bode expiatório.
A teoria mimética permite compreender como o mimetismo do modelo obstáculo,
fonte secreta de homogeneidade conflituosa, pode desembocar na adoção mimética de
um único e mesmo modelo obstáculo: o bode expiatório de todos, sem exceção.
Polarizando, de uma só vez, todos os antagonismos sobre um único e mesmo
adversário, o processo vitimário os elimina, pelo menos temporariamente, eliminando
sua vítima. Ele restabelece a paz de um modo que parece propriamente milagroso e a
unidade imediatamente refeita amplifica seus efeitos, dando-se como a intervenção de
um poder sobrenatural. Este nada mais é do que o bode expiatório em si mesmo, já
marcado, para esse papel, pelo poder maléfico de que é considerado possuidor.
É aí que se deve situar a origem do sagrado violento, muito propagado nas
sociedades humanas, e sobretudo muito estreitamente disseminado nas operações
culturais, sociais, políticas e técnicas mais concretas para se reduzir à superstição pura
dos positivistas, ou à neurose coletiva dos psicanalistas.
Estamos aqui num momento crucial da teoria. A eficácia psicológica, moral e social
do bode expiatório forma um mesmo todo com sua função religiosa, pois ela faz de seu
mecanismo a fonte por excelência de toda transcendência social. Em nossos dias, os
fenômenos de bode expiatório que percebemos ao nosso redor nos permitem observar
apenas aspectos marginais e praticamente insignificantes dessa eficácia.
Dessa ineficácia relativa do fenômeno diretamente observável, extraem-se
argumentos para negar que ele seja capaz de engendrar o sagrado. Para muitas pessoas,
a ideia de uma eficácia maior do bode expiatório parece fantasiosa, inacreditável e, ao
mesmo tempo, perigosa, escandalosa, ruim de se dizer, como se o fato de falar disso
servisse a essa ideia, fornecendo-lhe a aprovação moral que lhe faz falta em nosso
universo.
Não creio que o silêncio seja jamais preferível à verdade. De qualquer maneira, o
silêncio já foi quebrado. Chegamos um pouco tarde para esse tipo de revelação. Jó nos
ultrapassou. Ele mesmo define sua eficácia de bode expiatório, bem superior, como
parece, àquilo que podemos observar entre nós. No entanto, é para enfraquecer o
sistema que ele expõe sua eficácia, não para reforçá-lo, ou celebrar seus méritos, nem
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para fornecer-lhe uma garantia moral, elogiar suas comodidades, nem nos aconselhar a
estabelecer um método de governo.
Os perseguidores fazem tudo isso, sem sequer perceber. Os que recorrem aos bodes
expiatórios não falam dele, não sabem dele. Os que falam dele, não se utilizam dele ou,
quando o fazem, nunca se utilizam daqueles de que falam.
Tornei-me objeto de sátira entre o povo,
alguém sobre o qual se cospe no rosto.
Meus olhos se consomem irritados
e todos os meus membros são como sombras:
os justos assombram-se ao vê-lo,
e o inocente indigna-se contra o ímpio;
o justo, porém, persiste em seu caminho,
e o homem de mãos puras cresce em fortaleza (Jó 17,6-9).
O sofrimento e a ruína de uma vítima, ainda que não merecidos, constituem um
fator de boa conduta entre os homens, um princípio de edificação moral, um tônico
milagroso para o corpo social. O pharmakos se converte aqui em pharmakon: a vítima
propiciatória se transforma em droga maravilhosa, certamente terrível, porém, na dose
certa, capaz de curar todas as doenças. Se Jó realmente quisesse representar seu papel
docilmente, mais tarde não faltaria quem fizesse dele novamente um grande homem,
talvez uma divindade maior.
Maldizer Jó em uníssono é cumprir a vontade divina, na medida em que seja
fortalecer a harmonia do grupo, aplicar um bálsamo poderoso às chagas da
comunidade. Os três amigos nada mais fazem do que isso.
É preciso fazer um comentário sobre o comportamento de todas as “pessoas de
bem” de que se fala nessa passagem. É preciso incluir entre os benefícios da operação o
comportamento dos intocáveis que maltratam Jó. Graças ao bode expiatório, mesmo os
mais renegados tomam parte numa atividade social reconhecida; graças a Jó, em suma,
estes se integram um pouco à sociedade que os exclui. Mas a questão aqui não é mais
essa canalha: estamos no outro extremo da escala moral e social, e a mesma coisa
exatamente se produz. Os inocentes, os justos, os homens de mãos puras extraem um
grande reconforto no infortúnio do bode expiatório. Lembre-se do Salmo 73.
Se nossa tradução estiver exata, Jó descreve aqui o efeito benéfico que a perseguição
injusta produz em sua comunidade. Não conheço outro texto em que esse efeito
apareça com tamanha crueza.[2] O efeito trágico e a catarse aristotélica são os mesmos,
mas não se trata aqui de um simulacro teatral e Jó não tenta enfeitar com floreios
estéticos a verdade da operação.
A revelação explícita do mecanismo vitimário e de suas consequências é moral, no
sentido mais elevado do termo, e faz aparecer como profundamente imoral o estetismo
imperturbável de Aristóteles e de sua posteridade literária.
Para a tradução da passagem supracitada, escolhi como de costume a Bíblia de
Jerusalém, mas não deixarei passar despercebido o fato de que ela é particularmente
favorável à minha tese e de que ela difere singularmente de muitas outras. Os
tradutores antigos e modernos geralmente atribuem à segunda parte desse texto coisas
bastante vagas, que tendem, porém, a inverter o sentido dele.
Na New English Bible, essa inversão vai até o mais profundo de si mesma; eis o
resultado:
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Honest men are bewildered at this
And the innocent are indignant at my plight.
In spite off all, the righteous man maintains his course
And he whose hands are clean grows strong again.
As pessoas honestas estão perturbadas
e os inocentes indignados por me ver nesse mau estado.
Apesar de tudo, o justo continua a caminhar direito,
e o homem de mãos puras redobra suas forças.
O homem de mãos puras redobra suas forças desta vez, não porcausa, mas apesar
da perseguição injusta. Essa interpretação me parece errônea, por razões de contexto.
Todos os textos que nós lemos destroem o que a Bíblia inglesa quer fazer Jó dizer. Se Jó
conservasse a afeição pelos justos e virtuosos, ele não seria abandonado por todos, sem
exceção, nem seria o bode expiatório que ele mesmo descreve em inúmeros textos que
todo mundo traduz da mesma maneira.
Não tenho competência para opinar sobre o plano linguístico, mas continuo
decididamente com a Bíblia de Jerusalém. Ela é a única que se encontra de acordo com
o contexto, mas nem por isso é menos lectio difficilior, em razão de seu caráter
paradoxal e subversivo, de sua oposição a todas as ideias preconcebidas. São
argumentos de interpretação global que me impulsionam.
Nossa tradução estabelece uma relação direta entre a perseguição do inocente e o
alívio dos cidadãos de bem, o restabelecimento da ordem social. Essa relação é de tal
modo escandalosa, que muitas pessoas pura e simplesmente se recusam a examiná-la.
O livro de Jó vai tão longe na revelação do bode expiatório como fundamento do
sagrado, da ética, da estética e da cultura em geral, que não me surpreende encontrar
nele as fórmulas impressionantes que acabamos de ler. Se a Bíblia de Jerusalém estiver
certa, as outras tradução manifestam a resistência que nosso espírito opõe a essa
revelação.
A mesma Bíblia de Jerusalém traduz o segundo versículo da passagem por “alguém
sobre o qual se cospe no rosto”. Segundo Étienne Dhorme,[3] uma tradução literal
seria: “Eu serei um Tofet público”. Dhorme salienta numa nota que, para o
comentador Ibn Ezar, a palavra Tofet se compõe de dois termos:
(...) primeiro, o vale do Taphet, lugar da vergonha, segundo Jeremias, uma vez que os Judenos praticavam ali
o sacrifício humano proibido por Iahweh; ali eles passavam seus filhos e suas filhas pelo fogo. Taphet talvez
signifique também altar ou fogareiro. Os judeus leram essa palavra com as vogais da palavra boshet, que
significa vergonha.
Junte os dois termos, combine as vogais de um e as consoantes do outro: você terá
como resultado Tofet. O Tofet público é objeto de execração unânime; aqui, trata-se de
um homem. Não muda nada dizer um bode expiatório; não vejo nenhuma diferença
de uma linguagem a outra. O equívoco não é possível. Apesar das voltas inumeráveis
que nos dá a linguagem, não vejo nenhum motivo para nos lamentarmos em relação a
sua impotência em comunicar significados decisivos.
50
12
O ÓRFÃO SORTEADO
Os três amigos estão entre esses justos que se sentem confirmados em seus
caminhos pela visão do bode expiatório. Já sabemos que são invejosos. Em seu
comportamento em relação a Jó, vimos que essa inveja busca antes de mais nada
satisfazer-se. Não voltarei a falar disso. A inveja está bem presente e explica algumas
coisas, mas não tudo. O mimetismo invejoso tem esse interesse principal de acionar o
mecanismo do bode expiatório. Aquele Jó que os amigos perseguem não é mais
somente o rival invejado, mas o bode expiatório de toda a comunidade.
Ambos seriam a mesma coisa? Sem dúvida, mas a mesma coisa somente por conta
do mecanismo expiatório. Graças a esse mecanismo, o ressentimento pessoal não se
opõe mais ao vínculo social, mas o reforça. Em vez de alimentar a discórdia, ele produz
a concórdia. Qualquer oposição entre o indivíduo e o grupo desaparece. Na estranha,
porém banal comunhão social descrita por Jó, a inveja sinistra dos amigos se
transcende, sem precisar renegar-se, nem mesmo sublimar-se, no sentido pensado por
Freud. É exatamente isso o que faz o valor incomparável do mecanismo vitimário para
as sociedades.
A leitura que proponho não é psicológica, muito menos sociológica. Também não é
religiosa, no sentido da tradição humanista. A descoberta do mecanismo expiatório
altera as fronteiras tradicionais entre as disciplinas.
É o mecanismo expiatório que determina a dimensão religiosa daquilo que se passa
nos diálogos, com exceção de algumas passagens fulgurantes de que tratarei para
concluir. O religioso a que recorrem os amigos e sua sociedade não é uma vaga ideia
geral, que supervisiona de longe uma questão sobre a qual os homens presumem, no
fim das contas, que seja puramente humana. O religioso é tudo o que se observa e tudo
o que não se observa no mecanismo vitimário, os comportamentos que ele suscita, as
circunstâncias que o favorecem e o desfavorecem.
Com a rapidez do trovão, o mecanismo expiatório libera todos os homens, sem
depender de ninguém, a não ser, talvez, da vítima, que é passível de ainda voltar a se
tornar um ídolo, após sua destruição. Ninguém pode controlar o fenômeno, nem
manipulá-lo. Ele tem todas as características de uma intervenção sobrenatural. Nele,
tudo sugere um poder que transcende a miserável humanidade. Ele é o protótipo de
toda e qualquer epifania sagrada.
Podemos conceber sem dificuldade que os homens religiosos se dediquem de corpo
e alma a esse mistério que os salva. Tanto neste aspecto quanto nos outros, os três
amigos não se diferenciam em nada daqueles que os rodeiam. A sociedade vê
perfeitamente que ela tem em sua vítima uma coisa boa: um purgativo eficaz para seus
maus humores. Ela vê também que o processo é assustador, tanto quanto benéfico. Ele
é acionado apenas ao final de um período de incerteza e de tumulto, repleto de uma
desordem e de uma violência sempre passíveis de degenerar-se.
A comunidade tem, portanto, grande necessidade de homens de confiança, que não
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buscarão sufocar a violência em seu estágio inicial, como seria feito em nossos dias, mas
que buscarão impedi-la de se propagar aleatoriamente na comunidade, direcionando-a
para a vítima certa, a que tem maior capacidade de congregar contra ela própria, a
vítima, cujos sucessos excepcionais e responsabilidades brilhantes revelam aos invejosos
e aos descontentes a vítima já marcada para a cólera divina.
Diante da atitude dos amigos e sobretudo de Elifaz, sentimos uma vontade de
acompanhar o fenômeno, de imitar todos os comportamentos que, no passado, o
levaram à sua feliz resolução. É preciso manter a orientação mais desejável, e essa
orientação é evidentemente a presente. É a isso, em primeiro lugar, que servem os
discursos furiosos sobre os exércitos celestes.
É a inspiração ritual que estou tentando descrever. Ela resulta logicamente do
mecanismo vitimário. Os perseguidores não sabem por que esse mecanismo age
favoravelmente sobre suas relações mútuas e a comunidade toda, embora saibam que
ele age e são muito receptivos para com ele. Tudo o que parece anunciá-lo é acolhido
favoravelmente. Faz-se o possível para facilitar sua repetição. É exatamente por isso que
Jó não pode contar com nenhum de seus antigos “amigos”.
Mais uma vez, os amigos não estão ali para “consolar” Jó, como o prólogo tem a
insolência de afirmar; também não estão ali para saborear sua ruína. São homens
importantes, que não são movidos por razão que não seja séria. Eles não somente
representam a comunidade, o que já disse, como cumprem uma função social e
religiosa. Estão ali para velar pelo bom funcionamento do mecanismo vitimário.
Tanto quanto os coros trágicos, os clamores ritmados das três séries de discursos
lembram as recitações rituais cuja finalidade é incitar os participantes à agressão
religiosa. Por seu caráter encantatório, repetitivo, essas vociferações imitam o
movimento e os gritos de uma multidão que se concentra contra uma vítima qualquer.
O que se visa é uma ação mimética sobre o conjunto do povo. Na medida em que a
violência tende a se fixar em Jó, é preciso tirar proveito disso até o fim; assim, a vítima,
uma vez designada, não é mais vista como indivíduo. Ela não deve mais servir senão
para polarizar toda a violência dispersa na sociedade. Convergindo simultaneamente
para o mesmo ponto, todas as fontes de divisões, todas as forças que normalmente se
destroem mutuamente com pretextos insignificantes, se transformarão em fatores de
unidade. Sem essa convergência, o pior poderia acontecer.
Os três personagens parecem extremamenteexaltados, mas não se distanciam jamais
de uma trama bastante clássica. Há um método em seu transe. Tudo sugere que eles
improvisam pouco e que seus mais belos arroubos são fórmulas conhecidas,
imprecações religiosas bastante veneráveis.
Dos discursos dos amigos, emana um perfume de liturgia primitiva que nos incita a
reconhecer em todo o processo uma espécie de ritual. Poderíamos chamá-lo “o ritual da
rota antiga”, o ritual de Elifaz.
Os exemplos de acontecimentos análogos, obrigatoriamente, servem como modelo.
Para concluir com êxito o processo, a comunidade deve apelar aos anciãos, a homens
que são tidos como ricos em experiência e sabedoria. Eles atravessaram sem obstáculo
as tempestades do mesmo tipo. O que sobrevém a Jó não sobreveio a eles. Elifaz,
particularmente, lembra uma espécie de padre. Ele fala sempre antes dos outros; ele
goza visivelmente de grande autoridade. É ele quem anuncia o retorno provável da
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“vingança divina”.
Se o caso Jó verdadeiramente possui as características que acabo de enumerar,
podemos ver nele uma variedade de sacrifício, ou talvez o que os etnólogos
frazerianos[1] chamam um rito de bode expiatório. Tanto num caso como no outro,
trata-se de garantir a repetição do mecanismo vitimário, por meio da imolação de uma
vítima, ou expulsando-a violentamente da comunidade.
Sob a supervisão de Elifaz, os três se entregam diante de nós àquilo que os
especialistas em rituais chamam uma preparação sacrificial. Ela consiste em atiçar os
participantes, quase sempre a comunidade inteira, para conduzi-la ao ponto de
ebulição, em que a violência necessária será praticamente tão espontânea quanto no
caso de o mecanismo ser acionado por si mesmo. Trata-se de tornar a imolação final o
mais semelhante possível ao orgasmo natural da violência coletiva, ao paroxismo final
de um tumulto que ainda não foi excitado, mas logo o será. Para impedir que a
violência comprimida não se espalhe perigosamente e se desencadeie somente sobre a
vítima, a vigilância ritual envolve o processo com todos os tipos de precauções.
Se assim for, e se Jó for tão hábil em revelar o verdadeiro sentido de sua provação
quanto a comunidade em camuflá-lo, poderemos esperar de sua parte alusões amargas à
cozinha sacrificial da qual ele constitui o prato de resistência. E não ficaremos
decepcionados. Eis o tipo de reprimenda que ele dirige aos três “amigos”:
Seríeis capazes de leiloar um órfão,[2]
de traficar o vosso amigo (Jó 6,27).
Nas sociedades em que se pratica o sacrifício humano, os órfãos constituem vítimas
de escolha. Sacrificar uma criança cujos pais estão vivos faz com que se corra o risco de
suscitar a hostilidade deles.
Os procedimentos de seleção vitimária trazem a marca de uma prudência astuciosa
que tem como objetivo prevenir qualquer propagação da violência, eliminando o mais
completamente possível as ambiguidades, as incertezas propícias aos litígios. Imolando
um órfão, reduz-se ao mínimo a tentação, para os membros da comunidade, de se
tornarem os vencedores da vítima; consequentemente, diminui-se o risco de alimentar
o fogo da violência. Crescem as chances de um sacrifício eficaz.
Uma terrível “sabedoria sacrificial dita aos sacrificadores a escolha dos órfãos,
inspirando também o sorteio. Confiar a seleção da vítima ao livre julgamento dos
sacrificadores faz sempre com que se corra um risco de discórdia. Portanto, é preciso
confiá-la a essa sorte cuja função nos ajuntamentos espontâneos os sacrificadores não
desconhecem, o verdadeiro fenômeno do bode expiatório, modelo ideal do sacrifício
perfeitamente bem-sucedido.
O órfão sorteado é um bode expiatório ritual, um substituto dessa vítima original
que causou espontaneamente a unidade contra ela e reconciliou em sua morte a
comunidade. Para restabelecer a unidade, é preciso um acordo unânime e sem
dissimulação.
Jó se compara implicitamente à vítima ideal, ao ser que não tem mais pais, nem
servos, nem vizinhos, nem mesmo um amigo para defendê-lo. Podemos escolhê-lo, sem
temer despertar as divisões que o sacrifício é destinado a curar. Jó repete em termos
sacrificiais tudo o que o ouvimos dizer em estilo realista. Ele é abandonado por todos;
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o vazio impera em seu entorno. Seus pretensos amigos agravam a situação, insinuando
verem nele o último (do ponto de vista temporal) dos “malvados”, dos “perversos”, dos
“inimigos de Deus”.
O tom de Jó é veladamente irônico. Para que sua frase obtenha efeito, é preciso o
contexto de um universo em que o sacrifício humano seja oficialmente proibido,
religiosamente descreditado, mas não completamente esquecido, para que a alusão ao
órfão sorteado não deixe de ser inteligível. Talvez a imolação de crianças continue
sendo praticada clandestinamente nos meios retrógrados.
Aos olhos de Jó, os três amigos são traficantes de carne humana. Eles parecem
honestos e de fato o são, na perspectiva que defendem, a de seu sistema religioso; mas
no universo em que Jó penetra, eles nos lembram especialistas um tanto suspeitos, que
têm a habilidade e o saber exigidos para resolver na surdina as questões mais sórdidas.
Aparentemente, tudo está claro no caso Jó. Afinal, trata-se unicamente – não é
mesmo? – de um honesto debate sobre a questão do Mal e a realidade da divina
providência. Não poderia haver aí detalhes escabrosos: mas eles não faltam e,
misteriosamente, são dispostos sempre por essas pessoas que parecem absolutamente
sinceras e dignas de confiança, e por isso são designadas para esse gênero de missão,
sem dúvida porque, na realidade, não são de modo algum seguras de si, nem dignas de
confiança.
Os amigos consideram o sacrifício de Jó do ponto de vista de uma terapia social.
Trata-se mais de velar pelo bem-estar da comunidade em seu conjunto do que de curar
sujeitos particulares. Isso nos remete aos xamãs, a todos os medicine men, que atuam
mediante purificações, evacuações. Aqui também existe sempre uma “rota antiga” para
servir de modelo e continuamos a encontrar o mesmo itinerário.
Como os xamãs, os amigos têm suas visões sobrenaturais: eles evocam grandes
batalhas que se passam nos céus, sem perder de vista o que se passa na terra. Como
abutres vigilantes a alguns passos de uma futura carniça, eles espreitam sua agonia.
Assim, cumprem a função sanitária dos abutres em algumas civilizações tradicionais.
No Édipo Rei, uma das perspectivas sobre a expulsão do bode expiatório é
essencialmente “medicinal”, “higiênica”.
Eis uma observação de Jó que resume estes últimos apontamentos, outra observação
terrível dirigida aos três amigos:
Vós não sois senão embusteiros,
Todos vós meros charlatães (Jó 13,4).
A ideia de Philippe Nemo, de anexar a religião dos amigos ao domínio da técnica, é
admirável. Acrescentarei apenas uma coisa: que se trata da mais antiga dentre todas as
técnicas, a mãe de todas: a técnica do bode expiatório (Job et l’excès du mal. Paris:
Grasset, 1978).
54
13
ORIGEM E REPETIÇÃO
Se os fenômenos de multidão – de que Jó é o pretexto, mais do que a causa –
constituem um ritual, não se pode incorporá-los ao mecanismo vitimário “em si
mesmo”, à violência coletiva espontânea, ao linchamento fundador “em pessoa”. Até
aqui, dei a impressão de descobrir nos diálogos não um ritual a mais, mas o modelo de
todos os rituais, a origem postulada em A Violência e o Sagrado. Haveria alguma ilusão
de que se deve abrir mão?
Num certo sentido, sim. Na ordem da teoria estrita, a dimensão ritual é
indispensável. O mecanismo em estado puro só poderia aparecer de maneira
exclusivamente mitológica, pelo menos em Elifaz e seus companheiros, e não é
exatamente esse o caso nos discursos da rota antiga. O caso de Jó deve ser considerado
à parte. Da parte dos perseguidores, o aspecto sociológico do fenômeno não deveria
aflorar, o que acontece em diversos lugares.
Assim que é descoberto, o mecanismo não é mais completamente espontâneo. Sua
repetição é objeto de encorajamentos e arranjos que não se distinguem de um esboço
de ritualização. Ainda que seja imperfeita, em suma, a descoberta do mecanismoexerce
sobre ele uma ação que o transforma aos poucos. Os rituais não são as primeiras etapas
dessa transformação.
Por outras razões ainda, o processo representado não pode ser “originário”. Ele não
produz novos deuses, mas se inscreve num contexto religioso já estabelecido. A ele se
associa obrigatoriamente uma prática ritual. Portanto, é preciso afirmar seu caráter
ritual, mas logo em seguida modular essa afirmação. Se examinarmos novamente a
pergunta capital de Elifaz a Jó: “Queres seguir os velhos caminhos por onde andaram
os homens perversos?”, acharemos que ela destoaria no interior de um ritual.
Não é Jó, evidentemente, quem decide se fará ou não a viagem pela rota antiga. Ele
embarcou nela contra sua vontade. Elifaz, entretanto, perfeitamente sincero, não
zomba dele. Jó não decide nada, mas Elifaz também não. Ninguém escolhe: ninguém
pode verdadeiramente manipular o mecanismo. Intrigas existem contra Jó, sem dúvida,
mas não ainda um verdadeiro programa sacrificial. É sempre a multidão, ao que parece,
que desencadeia o processo fatal. Na medida em que o caso não é premeditado e
concluído por inteiro antes do tempo, não há ritualização no sentido pleno. Um
verdadeiro rito dependeria exclusivamente daqueles que estão incumbidos de executá-
lo. Não é o caso aqui.
A pergunta de Elifaz não é somente retórica. Na mente do personagem, uma
incerteza subsiste e, por ele ser um perseguidor, é à vítima que ele se dirige, para
dissipá-la, e não à multidão, da qual ele mesmo faz parte. Como todo mundo, ele é
enganado pelo mecanismo vitimário, que ele contribui, no entanto, para reativar.
A ideia de que a resposta depende de Jó, e de que o bode expiatório poderia mudar
de rota, escolher o caminho que lhe apraz, em outras palavras, a ideia de que ele é um
ator, muito mais do que uma vítima, é mais uma vez a ideia dos perseguidores, a ilusão
55
geradora do mecanismo vitimário.
Jó realmente não tem interesse nos sacerdotes que sorteariam uma vítima qualquer,
dentro de uma espécie de precaução constituída por todos aqueles que obedecem a
certas condições gerais de admissibilidade. Ele também não se interessa em recorrer aos
xamãs, que prescreveriam soberanamente um rito de exorcismo. Suas metáforas não
são falsas, quando ele estigmatiza o papel dos amigos, mas nem por isso devemos
interpretá-las literalmente. Elas têm um caráter polêmico, e comportam uma parte de
retórica, mas somente uma parte.
Naturalmente, não se trata mais aqui da linguagem dos perseguidores, que rejeita
toda responsabilidade sobre as vítimas, mas da retórica completamente nova dos
perseguidos, que faz o contrário: tende a exagerar a responsabilidade, não obstante real,
de cada perseguidor.
O papel dos amigos é mais limitado. A trilhar pela rota antiga, eles não podem
escolher aquele que enviam, nem o momento. Eles não têm poder de decidir, nem
como chefes dos viajantes, nem como guias das viagens. Estão ali apenas para organizar
a circulação.
O caso Jó poderia não ter se produzido no momento em que se produziu, ou então
nem ter se produzido de modo algum. A resistência implacável de Jó talvez o impeça de
chegar ao fim e justifica retrospectivamente a incerteza que motiva a pergunta de Elifaz;
no entanto, essa incerteza já estava presente – não é o comportamento heroico de Jó
que a faz surgir. Podemos vê-la presente no narrador do Salmo 73.
Portanto, o esquema da rota antiga tem um caráter ambíguo. Ele não é
espontaneidade pura, mas depende muito do comportamento imprevisível da multidão
para ser nitidamente ritual. Ele é intermediário; muito próximo ainda de um levante,
para que se possa defini-lo nos termos de um rito; muito ritualizado, para que se possa
reconhecer nele o mecanismo expiatório em estado bruto.
Não estamos na aurora de uma nova cultura sacrificial. Estamos em plena
decadência da antiga, em plena crise sacrificial. Mas no seio dessa crise, que será
mortal, determinadas peripécias se assemelham às primícias. Os fenômenos de
multidão representados conservaram ou readquiriram uma virulência que os aproxima
do mecanismo vitimário original.
Esses fenômenos, ao que me parece, carregam uma excelente imagem do
mecanismo ritual. Situando-se obrigatoriamente do outro lado da origem, eles se
situam na mesma direção dos rituais nitidamente especificados. Sem ser a origem, eles
estão bastante próximos dela para assemelhar-se a ela tanto e até mais do que se
assemelham a todos os tipos de ritos.
Eu mesmo comparei o caso Jó a uma festa carnavalesca. Entretanto, não a associo a
uma “verdadeira” festa, ainda que extremamente bárbara, do mesmo modo como Jó
não se associa verdadeiramente à vítima de um sacrifício em conformidade com as
regras em vigor. Mantenho minha comparação, mas não vejo nela mais do que uma
comparação.
O próprio Jó parece comparar seus amigos a médicos rituais. Todas essas
comparações esclarecem certos aspectos do que se passa, mas disfarçam ou deformam
outros. O caso Jó se assemelha a todos os tipos de ritos, mas não se associa
verdadeiramente a nenhum deles. Como isso é possível?
56
Para responder a essa pergunta, recorro novamente à tese do mimetismo vitimário,
que volto a encontrar em cada uma de minhas atitudes, à tese que faz do bode
expiatório fundador – religiosamente imitado por aqueles que dele se beneficiaram
espontaneamente, e depois por seus descendentes – a origem de todos os rituais.
O caso Jó se parece com inúmeros rituais, sem confundir-se com nenhum deles,
pelo fato de ser mais espontâneo do que todos os ritos. Ele permanece bastante
próximo da origem violenta para anunciar e prefigurar as formas determinadas que não
engendrou e nunca engendrará, porém, que poderia teoricamente engendrar ao final
de uma ritualização mais animada.
Se o caso Jó fornece uma representação adequada da origem, pode-se colocá-lo no
lugar dessa origem hipotética para mostrar que uma imitação prolongada, uma
ritualização mais excitada, o metamorfosearia sem dificuldade em todas as formas
rituais que ele menciona, incluindo aí a mais notável, da qual ainda não falei.
Para “reduzir” todos os ritos a uma origem comum, devem-se desprezar aquelas
diferenças consideráveis que os separam. Contudo, que se devam aproximar certos
elementos aparentemente irreconciliáveis, é o próprio Jó quem nos dá essa sugestão, ao
comparar-se, sucessivamente, a duas figuras rituais cuja aproximação pareceria absurda.
Já sabemos qual a primeira: o órfão sacrificado. A segunda é... o rei sagrado.
Também esta conhecemos. Não nos esqueçamos da lembrança emocionada que Jó
conserva de seus antigos êxitos junto ao povo, antes de se transformar em bode
expiatório. A veneração popular fizera dele um mestre perfeitamente obedecido.
Evoquemos novamente os três últimos versos da passagem já citada:
Sentado como chefe, eu escolhi seu caminho;
Como um rei instalado no meio de suas tropas,
Guiava-os e eles se deixavam conduzir (Jó 29,25).
Todo o resto ainda está por vir; antes de sua queda, Jó gozava realmente de um
poder e de um prestígio comparáveis aos do rei sagrado, um verdadeiro deus vivo.
Essa semelhança com o rei se interrompe no momento da transformação de Jó em
vítima perseguida? Pelo contrário: ela se realiza espetacularmente. O último Jó
certamente é bem pouco monárquico aos nossos olhos, mas somente aos nossos olhos.
Para nós, a monarquia se resume à monarquia moderna, dessacralizada, estranha ao
sacrifício, ou que aparece fora dos períodos revolucionários. Não enxergamos que, no
sentido antigo e primitivo da realeza sagrada, o bode expiatório é mais real do que
nunca. A fase persecutória não anula a semelhança, tornando-a perfeita.
No exercício normal de suas prerrogativas, o rei, assim como Jó antes de seu
desastre, sobrevoa a humanidade comum, mas em certos momentos críticos, sua
posição se inverte. Ele é humilhado, contestado, brutalizado, muitas vezes inclusive
assassinado.
O aviltamento do rei é característico de uma prática ritual que varia
consideravelmente de uma monarquia a outra, mas tem por denominador comumo
papel de vítima, simbólico ou praticamente real, que ela confia ao monarca. Ao longo
dos ritos, os sujeitos fingem esquecer-se de sua idolatria para insurgir-se brevemente
contra o ídolo. A veneração se metamorfoseia em execração. Certos ritos africanos
atribuem claramente um papel de motor a essa reviravolta popular. Como a aventura
de Jó, a monarquia se caracteriza pela natureza dupla e sempre extrema das relações
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entre um indivíduo solitário, de um lado, e o grupo todo de outro.
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14
JÓ E O REI SAGRADO
De todas as formas rituais complexas, a monarquia apresenta, em relação à carreira
de Jó, ou mesmo à de Édipo, as semelhanças mais espetaculares. Com efeito, não sou o
primeiro a perceber isso.
Deve-se ver, como alguns também pensaram,[1] uma influência externa e direta dos
ritos reais [monárquicos] sobre a concepção dos diálogos? O autor teria no espírito um
exemplo de monarquia real [concreta], inspirando-se nele para imaginar a fortuna e a
desventura de Jó, a dupla carreira de seu personagem?
Se Jó fosse modelado sobre um rito monárquico, os ultrajes que se aplicam a ele
teriam um caráter ritual. Esperaríamos então por encontrar neles algo de hierático e
solene, que corresponde pouco à estupefação desolada do bode expiatório, a tudo o
que existe de “existencial” nos textos que lemos. Longe de ser surpreendido pelas
indignidades que se infligem a ele, um personagem proveniente do rito saberia bem o
que o espera para falar de modo tão comovente. A paixão de Jó não se assemelha a
uma provação ritual. Não é verossímil que Jó seja forjado sobre um rito.
Uma outra razão permite pensar que Jó não se reproduz a partir de um rito
determinado: sua aventura não se assemelha a apenas um rito, mas a vários. Seu
esplendor simbólico não é da mesma ordem daquele da tragédia grega, mas ainda
maior. Se Jó fosse inspirado por uma monarquia concreta, Édipo Rei, do mesmo
modo, também o seria. Mas não se trata de encerrar a potência criativa de Sófocles na
estreiteza do rito.
A tese ritual é mais interessante do que os comentários moralizadores. Ela direciona
a atenção para as vastas regiões dos diálogos em que ninguém se aventura, porém,
considero-a inexata. Ela inverte as coisas. Ela parte de um rito para explicar os diálogos,
enquanto se deve caminhar em sentido inverso. É preciso partir dos fenômenos de
multidão descritos em Jó para compreender os rituais. É preciso reconhecer naquilo a
respeito do que Jó fala o foco de origem de todos os rituais. É a aproximação dessa
origem que vale aos diálogos seu extraordinário esplendor simbólico.
Se a tese do mimetismo vitimário for verdadeira, deve ser suficiente, para chegar à
monarquia sagrada, prolongar e reforçar o processo de imitação/ritualização que vemos
esboçar-se ao redor de Jó.
Mesmo quando permanecem espontâneas, as repetições do mecanismo vitimário
tendem a se derramar nos moldes dos fenômenos anteriores. Como vimos, a natureza
delas é estimulada e cortejada pelo comportamento dos amigos. É fácil compreender
que, de tanto se repetir, o mecanismo perderá um pouco de sua espontaneidade,
deixará de ser um mecanismo, para se transformar numa série de gestos e palavras
deliberadas, de prescrições rituais. Essa metamorfose é mais provável à medida que a
repetição sempre melhor ritmada e regulada tende a eliminar as oscilações imprevisíveis
e brutais que acionam espontaneamente o fenômeno. Quanto mais o rito pacifica a
comunidade, mais ele perde sua virulência primeira, mais adquire as conotações que o
59
termo “ritual” geralmente tem para nós.
Deve vir o momento em que mais nada será abandonado ao acaso. Logo depois de
o “homem perverso” terminar sua viagem, logo após ser propriamente linchado,
aponta-se um sucessor oficial para ele. Com a preocupação pela eficácia, designa-se esse
sucessor sem esperar. Procuram-se evitar os tempos mortos que poderiam prejudicar a
comunidade. Para que se tenha a certeza de não designar um homem de perversidade
insuficiente, apenas uma solução existe: deve-se incumbi-lo de cometer todos os crimes
atribuídos a seus predecessores.
Logo em seguida, vem a fase da idolatria delirante. Pede-se à vítima para exercer
sobre a comunidade um poder sem limites. É o modelo original que o exige. Remeto
aqui às lembranças saborosas de Jó no capítulo 29: a futura vítima reina sobre seus
futuros algozes por tanto tempo quanto seus antecessores, até o dia – também
estabelecido com rigidez pelos exemplos anteriores – em que, num movimento
unânime e repentino, o povo se voltará contra seu ídolo, para persegui-lo e sacrificá-lo.
Basta admitir que o caso Jó serve de modelo, para que se possa ver o sistema ritual
da monarquia se desdobrar de uma extremidade a outra. Voltamos a encontrar
indubitavelmente os “crimes” imaginários do bode expiatório na monarquia sagrada.
Na maior parte dos casos, o sistema oferece uma combinação absolutamente
significativa dos crimes atribuídos a Jó e daqueles que se atribuem a Édipo. O rei
supostamente dá demonstrações de arrogância, brutalidade e até mesmo ferocidade.
Ele é esse opressor do povo que também os “homens perversos” de Elifaz aparecem
como tendo sido. Para demonstrar generosidade, pede-se ao monarca para tornar-se
oficialmente culpado por uma variante qualquer de crimes “edipianos”, como o
assassinato do pai ou de um parente próximo, algum incesto bem escondido, materno
ou fraterno.
Nada mais simples, para se fabricar um pequeno Tofet público substitutivo, do que
exigir dele o cumprimento real das ações abomináveis atribuídas a seus predecessores!
A execução desses crimes por vezes se situa pouco antes daquilo que ela supostamente
desencadeia: a transformação do monarca em bode expiatório, embora frequentemente
ela também constitua o ponto de partida de toda a sequência ritual. O rei deve
demonstrar sua aptidão para exercer a função socialmente fundamental de “homem
perverso”. É essa a condição sine qua non do acesso àquilo que está em vias de se
transformar em trono real.
As ações exigidas do rei, nos ritos monárquicos, são as mesmas que as ações que se
criticam em Jó ou em Édipo, mas quase sempre elas não têm o mesmo sentido. Essa
diferença não constitui uma boa objeção à tese da origem comum. Muito pelo
contrário. A metamorfose do sentido constitui um mesmo todo com o processo de
ritualização. Os crimes não são mais completamente nem de modo algum crimes, mas
ritos de iniciação ao poder ambíguo do rei; às vezes, inclusive, são ações insignes.
Não fica sem consequência fazer de um crime uma ação obrigatória para o suposto
criminoso, não de vez em quando, mas sempre, de geração em geração. Uma proibição
que preciso transgredir e que se olha como o primeiro dos deveres não pode
permanecer por muito tempo como um crime. O proibido e o obrigatório são dois
contrários que não podem deixar de reagir mutuamente, a longo prazo.
O obrigatório necessariamente sairá à frente do proibido, pois o ritual tem apenas
60
uma preocupação: a eficácia, a sustentação da ordem pública, o impedimento das
desordens indomáveis. O fato de os “crimes” do bode expiatório tenderem a se
transformar em etapas iniciáticas, ou ainda, no fim das contas, em semiproezas, não
nos autoriza a pôr em dúvida o caráter inicialmente criminoso dos atos exigidos.
Proíba o obrigatório, torne o proibido obrigatório e você desestabilizará os dois
sentidos, para deles extrair um terceiro, que parece completamente novo, mas que é
verdadeiramente a combinação dos dois outros. A menor reflexão mostra que o sentido
novo deve ser aquele que justamente aparece nas monarquias concretas: o sentido da
etapa iniciática. A realeza está tão longe do comum, que ela exige ritos muito
assustadores. A velha conotação criminosa se insinua ainda por trás da ideia corrente
de que o rei é um sujeito vigoroso. Ele passa pela etapa de provação entregando-se a
atividades que seriam vistas como crimes pelo comum dos mortais.
Quanto mais escrupulosa for a imitação, mais os atos proibidos que o rei deve
cometer se transformarão em deveres demasiadoestritos e, consequentemente,
deixarão de ser crimes, mas somente para o monarca.
Os antigos crimes do bode expiatório se tornaram ritos de entronização. Portanto, a
imitação ritual é criadora de formas significativas. De modo paradoxal, ela se torna
mais criadora quanto menos deseja sê-lo. Quanto mais ela quiser ser fiel e rigorosa,
mais transformará os “crimes” do bode expiatório, mais rápido os esvaziará de seu
sentido original.
Somente a convicção unânime de deter um culpado autêntico pode conferir ao rito
sua eficácia. Desse modo, não se deve ver na obrigação imposta ao rei – de se tornar
esse mesmo criminoso cuja prova supostamente se encontra no bode expiatório – o
fato de os perseguidores e seus descendentes manipularem cinicamente o processo
vitimário, mas, ao contrário, o fato de não o manipularem de modo nenhum e de se
esforçarem o melhor que podem para recriar todas as circunstâncias (sem exceção) em
relação às quais se espera que sejam novamente propulsoras do mecanismo salvador,
porque foram elas que o ativaram no passado.
Os crimes de fato são crimes desde o início, e a conotação criminosa é com muita
frequência atestada para não deixar dúvida alguma sobre sua presença. O esquema do
rei tirânico, opressor, incestuoso e, finalmente, sacrificado, real ou simbolicamente,
nada mais é do que uma “rota antiga” tão bem balizada que se torna imperceptível. O
itinerário está, de agora em diante, rigidamente fixado.
O mecanismo vitimário era pura espontaneidade. A partir do momento em que é
programado do início ao fim, ele obrigatoriamente deixa de ser ele mesmo. A imitação
ritual está em oposição à espontaneidade. Quanto mais ela triunfa, mais o ritual se
torna a atividade puramente mecânica, estéril e morta que chamamos de rito.
61
15
A EVOLUÇÃO DOS RITOS
É preciso reabilitar a ideia de que os ritos evoluem; e isso, pelo fato de seu caráter
rigidamente imitativo. Mas por que a imitação ritual produz formas tão diferentes
quanto o rei e o órfão sorteado?
A realeza se define, com toda certeza, pelo poder absoluto do rei. Esse poder tem
como modelo a primeira fase dos fenômenos de multidão descritos em Jó, durante a
qual a futura vítima é o ídolo de seus futuros carrascos.
A monarquia sagrada se caracteriza pela predominância da primeira fase sobre a
segunda; assim podemos falar de monarquia. Em toda instituição cujo personagem
principal não é em primeiro lugar e principalmente um ídolo vivo, um mestre
poderosíssimo, de preferência a um bode expiatório, vemos algo diferente de uma
monarquia, ainda que sagrada.
Portanto, a primeira fase predomina sempre, porém, assim que olhamos para as
monarquias concretas, percebemos que ela comporta estágios. A segunda fase é
atenuada, diminuída, atrofiada proporcionalmente a essa predominância. As duas fases
estão sempre em desequilíbrio, mas este pode ser muito fraco ou, ao contrário, tão
forte que a fase do bode expiatório tende a desaparecer completamente.
Em algumas monarquias, até bem pouco tempo, o rei era realmente sacrificado.
Não vejo razão para pôr o fato em dúvida, com a desculpa de que, em outras
monarquias, o sacrifício era mais aparente do que real: logo, ou de fato outra vítima era
sacrificada no lugar do rei, ou então apenas se simulava sacrificar o rei.
Em Babilônia e alhures, fazia-se outra coisa ainda que lembra singularmente a
experiência de Jó. Uma vez por ano, o rei era humilhado, insultado, maltratado pela
multidão, até mesmo esbofeteado. Mas não se tratava, ao que parece, de levá-lo à
morte, ainda que simbólica. Em outras monarquias ainda, qualquer violência concreta
está vedada. Nem mesmo se simula perseguir ou matar o rei, porém, com muita
frequência, subsistem vestígios de simbolismo vitimário. Finalmente, existem
monarquias isentas inclusive de simbolismo vitimário. A soberania do monarca nunca
é interrompida, nem perturbada, ainda que seja por uma vaga lembrança de processo
vitimário. Trata-se da realeza moderna. (Para substituir os velhos ritos, as revoluções
concretas certamente podem surgir. Trata-se então do retorno, sempre malsucedido em
nosso mundo, do mecanismo fundador.)
Examinando a situação geral, o panorama ritual em seu conjunto, podemos ver que,
onde quer que seja, e não somente na monarquia, os fatos se organizam por si mesmos
em função do princípio que acabo de enunciar: o desequilíbrio entre as duas fases.
Poderíamos dizer que uma e outra estão em luta pela posse completa do território
ritual e, quanto mais uma das duas se sobressai, mais os fenômenos rituais se
assemelham às instituições bem diferenciadas que imaginamos serem sempre as
primeiras, mas que devem ser os resultados últimos de um duplo processo evolutivo e
genético.
62
À medida que a monarquia se distancia do modelo que imita, ela se torna cada vez
mais monarquia e cada vez menos sacrifício; é sempre mais difícil perceber seu
enraizamento no mecanismo vitimário, o que evidentemente sustenta a afirmação de
que ela jamais o imitou, de que ela não pode imitá-lo, de que qualquer sobrevivência
de resquícios sacrificiais deve ser interpretada como a hipócrita comédia de um poder
que dissimula sua natureza tirânica. A monarquia não dissimula absolutamente nada.
De qualquer maneira, a continuidade das formas intermediárias – a presença de
uma gama praticamente completa de elementos encadeados que não faltam em ritos
monárquicos muito vitimários, de um lado, ritos que se assemelham a levantes
populares, e de outro, ritos purificados de toda violência, ainda que simbólica – sugere
algo bem diferente de uma comédia. Sugere uma evolução lenta em direção à
monarquia moderna, dessacralizada, a partir de um duplo fenômeno de multidão,
parecido com o que é apresentado pelo texto de Jó.
A classificação que proponho não é exatamente uma classificação, no sentido de
que as etapas sejam apenas etapas; elas não correspondem a nenhuma instituição que
se possa definir. Não é possível organizá-las em oposições estruturais. Elas fazem
pressentir um dinamismo evolutivo que parte do modelo de Jó, religiosamente imitado,
com suas duas fases bem salientadas, e que se dirige pouco a pouco, sem transições
nítidas, para aquilo a que chamamos monarquia moderna, ou seja, para um poder
puro, praticamente dessacralizado, libertado de tudo o que lembra seu “contrário” – o
bode expiatório. Por preconceito anti-histórico, esse poder nos aparece como uma
espécie de ideia inata, um elemento químico puro, um ponto de partida. É mais
provável que ele seja o ponto de chegada não de uma evolução única, mas de evoluções
múltiplas.
Resumindo: os ritos de que acabo de falar privilegiam a primeira fase, a relação de
idolatria entre o povo e aquele que, por essa razão, se torna rei. Esse privilégio tende a
cada vez mais adquirir proporções excessivas, em detrimento da outra fase, a do bode
expiatório, que se torna uma comédia simbólica e acaba por desaparecer
completamente.
Por que essa tendência? É a monarquia purificada de ritual, ou alguma vontade de
poder em estado puro que dirige retrospectivamente o sentido da evolução? Haveria
verdadeiramente alguma coisa, uma ideia inata, ou uma essência platônica que serviria
como propulsor? A evolução seria predeterminada pela forma para a qual converge?
Para compreender que não é nada disso, basta constatar que ao lado das monarquias,
organizadas em virtude do desequilíbrio crescente que acabo de definir, existem outros
sistemas que também se organizam facilmente em virtude do mesmo desequilíbrio, mas
em sentido contrário.
Desta vez, a fase do bode expiatório se sobressai cada vez mais, em detrimento do
ídolo popular, que pouco a pouco tende a desaparecer; mas ainda restam um pouco em
toda a parte tantos vestígios dele que não se pode tratá-los com superficialidade, não
mais do que se pode fazê-lo em relação aos vestígios da segunda fase nas monarquias
sagradas.
Consideremos, por exemplo, o sacrifício dos órfãos ou das órfãs, a imolação das
virgens indefesas no mundo antigo, na Grécia arcaica, nas culturas centro-americanas, eum pouco por todo lado. Essas formas rituais apresentam frequentemente uma
63
primeira fase, praticamente longa, durante a qual a futura vítima desfruta de privilégios
quase monárquicos: executam-se todas as suas ordens, cede-se a todos os seus caprichos.
Jamais se compreendeu verdadeiramente esse tipo de comportamento. A única
explicação que se dá a ele é sem dúvida tardia. Deixando de ficar completamente
quietos a esse respeito, os etnólogos retornam sempre à ideia de uma espécie de
“compensação” que os perseguidores concedem à vítima. Essas almas boas, o que no
fundo são os sacrificadores, se compadecem dos inocentes que logo mais haverão de
exterminar; fazem tudo o que podem para alegrar seus últimos momentos. Essas
explicações não têm outro interesse além de sugerir exatamente aquilo que tentam
disfarçar: os sacrificadores são perseguidores.
É preciso reconhecer por trás de tais fenômenos que parecem estranhos no contexto
de um sacrifício, tão estranhos quanto a perseguição ou a imolação – ainda que
simbólica – do rei no contexto da monarquia, aquilo que subiste da primeira fase – a
fase do ídolo popular. O cordão umbilical que os une aos fenômenos de multidão ao
estilo de Jó ainda não foi completamente rompido. A evolução é a mesma do que a
encontrada na realeza sagrada, mas tudo é invertido. Aqui também se apresenta todo
um conjunto de formas intermediárias entre o leve desequilíbrio e o desaparecimento
total da fase progressivamente posta à margem.
E no entanto essa fase subsiste, volto a dizer, em muitos ritos sacrificiais
disseminados por todo o planeta, para que se possa livrar-se dela sem exame ou
acreditar que todas as culturas são singulares. A tese da “infinita criatividade” das
culturas humanas é inspirada pelo romantismo mais medíocre. Enquanto não se
puserem os vestígios “aberrantes” presentes nos ritos e nas instituições sobre o mesmo
plano dos dados que julgamos “normais” e em seu devido lugar, não se compreenderá
nada da cultura humana. Mas será que realmente se busca essa compreensão?
Como explicar as duas séries simétricas de fenômenos rituais ou pós-rituais
caracterizados por um desequilíbrio crescente de uma a outra fase do modelo imitado?
O sentido da evolução é secretamente teleguiado não mais por uma, mas desta vez por
duas formas preexistentes (a monarquia “propriamente dita”, de um lado, e o sacrifício
“propriamente dito”, de outro)?
Visivelmente, a monarquia e o sacrifício “propriamente ditos” existem apenas em
nossos espíritos deformados pelo essencialismo platônico e seus similares modernos, o
cartesianismo das ideias claras e distintas, cuja última variante é o estruturalismo.
Deve-se fazer a economia desse essencialismo, mesmo em sua forma linguística. É
mais fácil interpretar sem ele nossas duas séries de desequilíbrios simétricos.
Como o rei desritualizado, o órfão simplesmente sacrificado resulta de uma
imitação ritual sempre mais unilateral. No primeiro caso, a fase do ídolo triunfa e faz
desaparecer o bode expiatório. No segundo caso, temos o inverso: o bode expiatório se
sobressai e pouco a pouco o ídolo desaparece.
Visivelmente, não é uma preferência bem definida por uma ou outra fase, nem o
conteúdo dessas fases que determina a tendência dos ritos em privilegiar uma ou outra,
uma vez que a evolução pode ocorrer indiferentemente nos dois sentidos. De onde vem
então essa tendência? Se não se trata de uma força positiva, de uma inclinação
permanente para um sentido ou outro, deve-se encontrar repugnância em manter as
duas fases juntas, uma antipatia pela conjunção dessas duas fases.
64
O sistema não é extremamente complexo, mas deve parecê-lo no momento da
imitação ritual, que procura empobrecê-lo, simplificá-lo. Não penso que o rito tenha
conscientemente esse objetivo. Ele busca preservar integralmente o modelo que imita,
mas não consegue jamais. O modelo justapõe dados que parecem cada vez mais
contraditórios à medida que se distancia da origem, começando, é claro, pelo ídolo e o
bode expiatório.
Para dar ênfase simultaneamente às duas fases do modelo, seria preciso interpretar
tudo em condições de mimetismo, como o fiz, e é exatamente isso o que o pensamento
ritual não quer, não pode fazer: o mimetismo que nada sabe diferenciar causa
repugnância à inspiração ritual.
As tendências permanentes do espírito religioso sempre fazem (e em toda a parte) os
ritos evoluírem. O lugar que ocupa um rito numa escala ou noutra revela o grau de
evolução do sistema, em relação a sua diacronia própria. A evolução global vai sempre
no mesmo sentido e a possibilidade de uma história universal não está descartada.
Assim como existe uma lógica da imitação cobiçosa,[1] existe uma lógica da imitação
religiosa; penso que não temos mais do que desenvolvê-la a partir da “rota antiga” de
Elifaz, descobrir as incompatibilidades que ela comporta e as tensões fecundas que ela
suscita, para compreender o que faz dela uma potência criadora de formas. É ela que
suscita as instituições mais diversas a partir de um único ponto de partida. Uma
dinâmica da imitação ritual preserva certas coisas da origem, mas necessariamente
modifica e perde outras.
Ao passo que a lógica do desejo mimético destrói as diferenças que procura, a da
imitação religiosa suscita diferenças que não procura. Ela aspira apenas à reprodução
fiel do modelo.
Seja qual for o papel representado pelo desejo mimético em nossas “paixões” e em
nossa conduta, nosso intelecto prefere ficar cego em sua presença, recorrendo à
segunda lógica. Para compreendê-lo, ao contrário, basta-nos olhar ao nosso redor, basta-
nos olhar a crítica moderna dos textos clássicos para constatar que ela se rejeita a
apreender o processo mimético-vitimário, mesmo naqueles que o tornam
completamente explícito.
A crítica do livro de Jó nos dá aqui o melhor exemplo disso. Ao ler os textos, alguns
reconhecerão Jó como bode expiatório, depois de serem forçados a admitir que o tema
está presente na obra. Eles também identificarão o tema do ídolo popular.
Contudo, resistirão à conjunção das duas fases, sobretudo em sua interpretação
mimética, que a considera essencial, sem fazer dela uma conjunção causal, em sentido
ordinário. Eles também não admitirão que em seu entorno a tirania das modas
predomina mais do que nunca, e que a vida política, cultural, profissional inclusive, as
exibições sexuais não cessam de reproduzir conjunções de idolatria e de ostracismo
menos violentas talvez, mas estruturalmente idênticas àquilo que as proposições de Jó
nos dão a entender.
A imitação ritual diferencia, distingue, simplifica, ordena e classifica os dados de
modo a sempre mutilar, apagar e disfarçar os mecanismos miméticos e sobretudo o
mecanismo do bode expiatório, cujos efeitos de diferenciação e mistificação ela
prolonga ao infinito. O pensamento ritual jamais pode voltar à própria origem, que se
perpetua no pensamento filosófico e, nos dias atuais, em nossas modernas ciências
65
humanas, herdeiras dos poderes do rito, como também de sua impotência
fundamental.
Diríamos que a atenção ritual não pode se consagrar a um aspecto qualquer do
modelo original sem se fechar a todos os outros que perecem e acabam por
desaparecer. É por um processo não consciente de mutilação e metamorfose que a
imitação ritual se torna criadora e desemboca na extrema variedade das instituições
religiosas e não religiosas.
Mesmo nos inícios do processo, quando as duas fases estão praticamente intactas,
seu equilíbrio não pode ser perfeito. Por mais imperceptível que possa ser, o sistema
penderá sempre para um sentido ou para outro. Amplificando-se cada vez mais, a
distância original determinará toda a evolução.
Duas vertentes se desenham. Os imitadores rituais, tendo se engajado sem saber
num dos dois sentidos, irão cada vez mais longe na direção escolhida, sob o efeito dos
princípios que governam sua imitação. No fim das contas, eles acabarão chegando a
formas já tão metamorfoseadas que parecerão completamente estranhas umas às outras,
e suficientemente simplificadaspara parecer “elementares”, “fundamentais”, anteriores
à complexidade bizarra do modelo que Jó nos propõe.
Assim, há vítimas que nada mais são do que vítimas, e reis que nada mais são do
que reis. E o idealismo filosófico que não se pode desenraizar faz o resto. Tudo deve
estar em oposição àquilo que digo, pois os conceitos bem diferenciados estão no fim.
Não compreendemos de modo algum o que é um sacrifício, mas a instituição nos
parece bastante “simples” para dar uma boa ideia, ao passo que o caso Jó é uma espécie
de monstro.
A etnologia atual fica impaciente quando se investiga aquilo que resta do ídolo na
vítima de um sacrifício, ou aquilo que resta da vítima no monarca todo-poderoso. Para
essa etnologia, as coisas pensadas se apresentam ao homem de uma só vez e nascem
completamente prontas em seu espírito. Qualquer ideia de gênese está excluída.
De Aristóteles ao estruturalismo, todos os pensamentos da classificação estática são
filhos extemporâneos da mentalidade ritual. A insistência recente na linguística
diferencial nada mais é do que uma receita a mais para perpetuar essa imensa tradição
e, por trás disso, é sempre o essencialismo que está presente, o platonismo fundamental
de uma filosofia que, de uma extremidade a outra de sua história, permanece fiel às
grandes tendências da inspiração ritual.
Felizmente, o extremo conservadorismo do rito sempre deixa vestígios que
permitem recuperar a verdade. A imensa maioria dos ritos conserva quantidade
suficiente de restos simétricos da fase em vias de desaparecer, deixando verossímil
apenas a tese que postulo: por trás dos ritos mais dessemelhantes, uma dupla relação
com a multidão se delineia, análoga àquela que faz de Jó, alternativamente, o ídolo e o
bode expiatório dos mesmos homens.
O fato de que mesmo os ritos já bastante evoluídos preservam lembranças da fase
atrofiada combina muito bem com aquilo que se encontra no outro extremo da escala,
a saber, ritos muito pouco evoluídos, tão próximos do modelo original quanto as duas
fases, que neles estão bem preservadas. Elas têm praticamente o mesmo peso, e o
modelo original do ídolo/bode expiatório é completamente reconhecível.
São ritos que se mantêm ainda sobre a linha divisória entre as duas vertentes.
66
Tornamos a encontrar aí os fenômenos de multidão descritos em Jó, mas de uma
forma tão violenta algumas vezes que nossa atenção é desviada do essencial e o
“classicismo” dessa forma que assumem nos escapa.
Esses ritos preservam as duas fases em sua integridade, insistindo alternativamente
em cada uma delas. Isso produz formas extremamente surpreendentes em aparência,
mas não para nós, pois elas têm o mesmo perfil, exatamente como a dupla experiência
de Jó.
É o caso, ao que parece, do canibalismo no Nordeste do Brasil, do modo como foi
descrito pelos primeiros exploradores. Ainda que fossem destinados preliminarmente à
imolação e ao festim antropofágico, os prisioneiros de guerras rituais eram antes de
mais nada tratados com grande respeito por seus predadores. Ofereciam-se-lhes
mulheres; eles gozavam de certos privilégios. Essa situação podia durar anos, até que
chegasse o dia prescrito em que eram ritualisticamente massacrados e devorados. É
sempre o esquema da rota antiga perfeitamente programado, com o canibalismo em
acréscimo, o que não altera nada de essencial no caso.
Um costume aparentemente menor, mas sempre mencionado, é aos meus olhos o
mais revelador. Pouco antes do momento essencial, da grande orgia canibal, que
constituía a variação local da cena do bode expiatório, a vítima era encorajada a fugir, o
que evidentemente lhe era proibido, ou a cometer alguma outra transgressão, que faria
dela um culpado aos olhos da comunidade, ou seja, um ser capaz de congregar contra si
a unidade dessa mesma sociedade. Antes de ser morta, a vítima era insultada e
maltratada com uma ferocidade gratuita que lembra bem o que Jó relata.
Embora indubitavelmente ritual, o sistema conserva uma dose muito forte de
espontaneidade. Ele não é verdadeiramente suscetível de ser descrito em termos de
monarquia, nem em termos de sacrifício. Não obstante, tem pontos em comum com
uma e outra instituição. Esse canibalismo conduz ao momento em que a rota antiga
acaba de se transformar em rito, ou então, por uma razão ou outra, estagnou-se em sua
evolução.
A verdadeira diferença em relação à rota antiga permanece no próprio princípio
ritual. Sabe-se desde o início que o ídolo não está destinado a continuar sendo ídolo
para sempre, uma vez que existe simultaneamente a preparação deliberada à conclusão
dramática. Mas esse saber não exerce nenhuma influência sobre o comportamento em
relação à futura vítima durante a fase “idolátrica”.
A infração que o prisioneiro é convidado a cometer contribui para mobilizar a
multidão contra ele. O rito prescreve exatamente o que convém para despertar a
hostilidade contra a vítima, no instante preciso em que a reativação do mecanismo
vitimário exige essa hostilidade. Não se deve concluir, aqui também não, que os
praticantes do ritual manipulem cinicamente um mecanismo vitimário cujas
propriedades lhes são conhecidas. Não se deve imaginar por trás dessa prescrição ritual
um conhecimento do tipo inaugurado por Jó e outras importantes figuras bíblicas. É
exatamente o contrário. Os indígenas persistem em massacrar um verdadeiro culpado
porque creem cegamente na culpa real daqueles que massacraram precedentemente.
Podemos imaginar muito bem os amigos obrigando Jó a cometer os crimes de que o
acusam pelo fato de serem alguns, enfim, que ele certamente cometeu, mas também
por remeterem à comunidade um novo “homem perverso” convenientemente
67
testificado. Não seria cinismo da parte deles; seria antes consciência profissional.
Os ritos canibais americanos contradizem tanto o neorrousseauísmo predominante
entre nós, que as descrições antigas não podem ser pressupostas como fictícias: penso
que elas geralmente são bastante exatas. Não temos nenhuma razão – muito pelo
contrário – para pôr em dúvida a realidade do sistema descrito pelos observadores do
século XVI.
Penso que sua veracidade seja garantida pela transparência perfeitamente preservada
da intenção que anima as práticas canibais. Se o observador europeu tivesse apreendido
nesses ritos uma vontade de refazer um mecanismo de bode expiatório do tipo descrito
por Jó, pensaríamos que ele pudesse ter inventado por conta própria os detalhes mais
próprios à concretização de tal projeto, mas essa vontade lhe escapa e, contudo, todos
os detalhes estão presentes.
Portanto, é impossível acreditar que esses detalhes tenham sido inventados, que eles
não pertençam realmente à prática ritual descrita. A situação é praticamente a mesma
em relação à situação de um mensageiro encarregado de transcrever letra por letra uma
mensagem redigida numa língua que não lhe é familiar. Se a mensagem retransmitida
está linguisticamente correta e é perfeitamente sensata, podemos estar certos de que foi
fielmente copiada. O mensageiro não colocou aí nada do que lhe é próprio. Se tivesse
mudado alguma coisa, um ignorante como ele a teria facilmente tornado incoerente.
Ele não teria conseguido torná-la coerente, nem inventar o tipo de coerência que
reencontramos aqui e que figura em mil outros ritos: coerência do mecanismo
expiatório, que se procura reproduzir não porque é compreendido, mas por não ser
compreendido.
É claro que outras bifurcações são possíveis.[2] Na vertente sacrificial, por exemplo,
certos ritos enfatizam a única vítima e a única imolação sacrificial, enquanto outros
enfatizam a participação coletiva no mimetismo indiferenciador.
No segundo caso, o sistema imitado deriva em direção aos ritos de tipo festivo ou
antifestivo, os ritos da consumação desregrada, os ritos de abstinência e de privação.
Todos os outros aspectos do modelo podem ser causa de bifurcações, mas não o são
necessariamente; há ritos da voz que tendem a excluir o gesto, ou ritos da ação e da
participação que tendem a excluir o puro espetáculo. Ritos, ao contrário,que tendem
cada vez mais para este último e que desembocam no teatro e nas artes plásticas.[3]
A imitação ritual tende a se fixar sobre um aspecto do modelo que ela privilegia
cada vez mais, às custas de todos os outros. Ela também metamorfoseia aquilo que
acentua. Com o tempo, ela engendra formas tão numerosas e tão diferentes umas das
outras, que o bom senso se insurge contra a ideia de que todas elas poderiam remontar
à mesma origem.
A origem comum ao rei e ao órfão sacrificado não tem nada de absurdo, à luz da
imitação seletiva, cada vez mais unilateral, e da qual a dupla experiência de Jó pode
constituir o objeto. A ideia de uma origem comum a todos os ritos não é uma ameaça
ao bom senso. A visão dinâmica e transformadora do rito, que acabo de esboçar, não é
somente possível: ela também é a única provável, porque somente ela é capaz de
explicar as diferenças entre os ritos, tanto quanto os elementos comuns que persistem
até o fim e que nenhuma teoria jamais explicou.
Na realidade, essa ideia é a única capaz de explicar simultaneamente semelhanças e
68
diferenças entre um rito e outro, ou seja, tanto diferenças bastante acentuadas quanto
gradações infinitas que podem ser observadas entre um sistema ritual e os sistemas
próximos.
A origem comum me parece fecunda, pois constitui um acontecimento multiforme
e polivalente, que parece mais complexo quando não é bem compreendido e que
tenderá necessariamente a se simplificar a partir do momento em que é
deliberadamente repetido, com frieza, na ausência das reviravoltas miméticas
espontâneas.
Nada é mais difícil de se avaliar nas ciências da cultura do que o papel da analogia.
No século XIX, dava-se enorme importância às menores analogias. De um número
limitado de analogias não dominadas, extraíam-se teorias muito gerais. Os resultados
obrigatoriamente foram decepcionantes e nos dias atuais, a reação chega ao limite.
No que doravante diz respeito às analogias, a desconfiança é tal, que é comum
muitas vezes fingirmos não vê-las. Das analogias mais impressionantes, recusamo-nos a
tirar a menor conclusão, para não revivermos as decepções anteriores. Tal atitude é tão
estéril quanto a anterior.
Acabamos de viver uma época em que a atitude de passar ao largo das analogias
figurava por si só como uma espécie de progresso científico. De fato, tal atitude não
nos deixa correr os mesmos perigos que os excessos de pouco tempo atrás.
Infelizmente, ela não leva estritamente a nada, a secura atual demonstra bem isso. Sem
um domínio [maîtrise] das analogias, nenhuma teorização etnológica é concebível. E as
analogias não são superáveis ou contornáveis. Não se poderá mais viver por muito
tempo com a ilusão de que o progresso em etnologia consiste em nunca mais se
formularem as questões essenciais, em declará-las impertinentes, em particular no
domínio religioso.
A verdadeira questão é saber se a origem comum é uma “ideia geral” aplicada às
instituições mais diversas, à maneira de uma roupa muito larga, que se adapta
facilmente a todas as formas pelo fato de não se ajustar realmente a nenhuma, ou se ela
verdadeiramente descreve um mecanismo genético: partindo deste último, pode-se
chegar a gêneses conclusivas, que explicam o detalhe das instituições e levam em
consideração a diferença nas formas análogas, tanto quanto o idêntico nas formas
diferentes?
É enganar-se confundir o análogo com o idêntico, mas é enganar-se de maneira mais
radical ainda anulá-lo, fazendo da analogia uma diferença como as outras. Isso constitui
não mais do que um método para esquivar-se ao problema central de toda pesquisa no
domínio da cultura. Até aqui, essa redução do análogo ao diferente passou
despercebida, pois ela se realiza sob o ponto de vista da abordagem linguística, que tem
a reputação de transformar completamente a problemática, quando na realidade não
faz mais do que expulsar as grandes questões do passado. Certas questões do passado
são vazias de sentido, mas outras não o são e, no entanto, são excluídas com o resto.
A analogia se apresenta como um amálgama (até nossos dias insolúvel) de diferença
e identidade. Ao invés de se opor francamente à resolução do problema, a etnologia
moderna se introduziu sucessivamente nos dois impasses que lhe davam a ilusão de se
ver livre dele: o analogismo delirante, até uma época recente, e doravante, o
“diferencialismo” mais delirante ainda.
69
A tese da violência e do sagrado não é um retorno ao analogismo delirante – o
diferencialismo delirante não pode ver nela nada além disso –, mas um esforço para
sair do duplo impasse, a fim de dominar a analogia graças a uma concepção particular
sobre a mimesis e o mecanismo vitimário.
Parece evidente a muitos pesquisadores que a tese da origem comum não pode
evitar de minimizar ou escamotear as diferenças, que não decorrem obrigatoriamente
dela. Até aqui, o que é fato, nenhuma origem única deu resultados convincentes, mas
A Violência e o Sagrado não constitui uma origem no sentido legitimamente criticado
em nossos dias. Se esse livro se engana, é de maneira inédita. Ainda que ele não recaia
no analogismo delirante, o diferencialismo também não o acusará. Não conseguindo
diferenciar as diferenças, o diferencialismo termina sufocando tudo na insignificância e
no tédio.
Para que se perceba que a tese mimético-vitimária explica as “diferenças”, deve-se
ainda seguir passo a passo o itinerário que faz a passagem da origem violenta para a
diversidade dos rituais, das instituições, das culturas. Não devemos nos contentar em
dizer que esse itinerário é impossível a priori, por razões que são tidas como
antidogmáticas, ao passo que não há dogmatismo mais dogmático, mais terrorista, mais
negador de todo pensamento do que o dogmatismo do antidogmatismo.
Aos pesquisadores que confundem as classificações com o objeto último da
pesquisa, qual seja compreender o que ela explica e explicar o que ela compreende,
nossa tentativa pode interessar muito pouco. A possibilidade de ir além do classificável,
para estabelecer sua gênese, lhes parece impossível, contrária às ideias claras e distintas.
Como o pensamento religioso de outros tempos, as modernas ciências do homem e da
sociedade permanecem platônicas na alma. Elas transformam em essências
independentes fenômenos religiosos e sociais que estão todos ligados entre si.
Por que essas ciências são incapazes de descobrir o mecanismo da violência coletiva
até mesmo num texto em que ele se mostra de modo tão impudente como nos diálogos
de Jó? Porque seus métodos de análise e seus modos de discriminação e de
diferenciação permanecem tributários dos mecanismos vitimários. Eles são sempre
orientados para diferenças cada vez mais sutis, na direção oposta àquela da origem de
que dependem.
Nossas linguagens são feitas para opor o mimético ao espontâneo. São feitas para
assegurar a exclusão recíproca dos comportamentos religiosos e não religiosos – sendo
estes últimos os únicos percebidos como significativos. São feitas para perpetuar o
desconhecimento dos mecanismos vitimários.
O livro de Jó dá a prova dessa limitação das ciências do homem: a invisibilidade do
fenômeno central literalmente nos dilacera os olhos, mas foge sempre dos métodos de
investigação leigos, tanto quanto das teologias ainda excessivamente sacrificiais, aqueles
se situando sempre no prolongamento destas.
O mecanismo do bode expiatório é certamente diferenciador, na medida em que
produz a diferença original; ele reconhece Jó no papel de culpado, faz dele o bode
expiatório em meio a todos os seus pares miméticos, seus irmãos inimigos, que se
dizem amigos; mas ele não é diferenciado no sentido das formas rituais e pós-rituais
que poderiam brotar dele se tudo concorresse para isso. É por isso que ele escapa dos
modos de conhecimento rituais e pós-rituais dos quais nossa época ainda não escapou.
70
Ele aparece como um monstro que se assemelha a muitas coisas ao mesmo tempo para
constituir apenas uma aos olhos dos métodos de análise que derivam dele.
***
Para muitos especialistas, oentendimento do sacrifício consiste em descobrir as
classificações do sistema particular que lhes interessa. Eles estimam como falsa, a priori,
toda teoria estabelecida sobre distinções ou aproximações que não integram a
linguagem do sistema que estudam. Eles evitam as analogias.
Parece injustificável dizer, como tenho feito, que o processo vitimário coletivo, o
bode expiatório no sentido ordinário, dê a matriz de todos os sacrifícios. Pois a tese põe
de lado certas distinções que os sistemas jamais abolem. Portanto, é fácil me acusar de
não respeitar os fatos.
Eis que Jó, felizmente, faz a mesma coisa, admitindo também ele comparações
inconvenientes. Suas metáforas fazem o tempo todo aproximações que os teóricos de
respeito das letras institucionais não admitem.
De certo, é sempre possível dar de ombros, e seguir o exemplo dos “amigos”,
modernizando seus argumentos. O livro de Jó, sem dúvida nenhuma, pertence à
“literatura”, e o órfão sorteado é apenas uma metáfora. O rei não é mais do que uma
metáfora. Estou de acordo com isso, mas estamos certos o bastante de nada podermos
tirar de verídico da literatura e de suas metáforas...? A metáfora do rei realmente é
incongruente ou se encontra, ao contrário, em seu contexto, perfeitamente justificada?
Seria ela uma metáfora ultramoderna que faz um grande esforço para aproximar
objetos realmente estranhos uns aos outros, para deles retirar efeitos de choque
gratuitos, ou uma metáfora que justapõe duas realidades realmente próximas uma da
outra, mas cuja aproximação nos impressiona por conta de nossa ignorância? A
distância entre os dados aproximados sempre nos fugiu, porém, se ouvirmos
atentamente a metáfora, é possível que aprendamos algo de que não temos
conhecimento. Há coisas que as metáforas dos diálogos sabem e que as teorias
etnológicas, tidas como dignas de crédito, não sabem.
A neutralidade aparente das fontes não literárias é menos rica e, em última análise,
menos digna de confiança que a grande literatura. Jó está em melhores condições do
que nós para opinar sobre o sacrifício. Suas metáforas só têm sentido em virtude do
laço de filiação que propõe A Violência e o Sagrado, entre perseguição coletiva e
sacrifício ritualizado.
Não se pode fazer a existência ou inexistência desse laço depender das indicações
que são dadas ou não são dadas pelos sistemas de codificação litúrgica. É mais do que
evidente que esses sistemas jamais publicam o enraizamento na violência que lhes é
próprio. Quase tão prudente quanto dar a seu testemunho explícito a última palavra
em matéria de teoria sacrificial é perguntar à comunidade de Jó se o bode expiatório
[por ela determinado] é exatamente um e se as violências de que ele se lamenta são tão
reais e arbitrárias quanto ele afirma.
Será necessário desvincular de Jó a condição de vítima, com as desculpas de que ele
é o único a nos chamar a atenção para ela e de que os três amigos (nem ninguém na
comunidade) não a reconhecem nele? Todas as interpretações tradicionais lhe recusam
esse status de vítima. Os fins mais eficazes nunca são os mais explícitos. Pode-se muito
bem querer reconhecer em Jó a vítima de Deus, do diabo, da falta de sorte, do destino,
71
da “condição humana”, do clericalismo e de tudo o que se quiser, desde que não se
trate do próximo, ou seja, de nós próprios.
Essa insistência em não reconhecer a vítima enquanto tal, essa eterna reivindicação
de inocência para a humanidade... não seria essa a verdade última da incompreensão
presente nos diálogos? Secretamente, estamos sempre de acordo com os falsos amigos
que fingem, com dificuldade, compadecer-se de Jó e que o tratam como culpado, não
somente para fazer dele seu bode expiatório, mas para negar que isso seja possível. As
duas coisas vão sempre juntas.
Philippe Nemo está certo em pensar que os comentadores se unem aos amigos em
seu esforço para reduzir Jó ao silêncio e em sua ênfase aos textos secundários... (op. cit.,
p. 28).
O verdadeiro saber antropológico não pode se limitar a uma repetição das
classificações próprias aos sistemas estudados. Ele deve explicá-las, com o auxílio de
uma teoria genética, tanto quanto estrutural. Não mais do que o próprio Jó, a teoria
vitimária não confunde grosseiramente a perseguição espontânea com os sacrifícios
rituais, mas permite que se descubra uma relação ao mesmo tempo metafórica e real
entre a perseguição espontânea e todos os sacrifícios. A relação é metafórica, pelo fato
de que todo gesto ritual consiste numa substituição da vítima, e real, pelo fato de que a
vítima substituída também é imolada, mais do que nunca bode expiatório.
Por trás da aparente incoerência dos discursos que se sucedem e não se respondem,
uma coerência superior se revela, mas com uma condição somente: é preciso
interpretar a diferença de perspectiva em proveito de Jó; preferir o discurso de Jó aos
outros discursos; levar a sério a revelação do bode expiatório. De modo mais direto: é
preciso tê-la como verdadeira.
À luz do que Jó diz, podemos interpretar tanto os discursos dos amigos quanto o
conjunto dos diálogos, mas não podemos fazer o contrário. Os discursos dos amigos
não iluminam de modo nenhum o que Jó diz. Há duas verdades em sentido relativo,
do ponto de vista do “relativismo” e do “perspectivismo”, mas apenas uma do ponto de
vista do conhecimento, qual seja a verdade da vítima.
A vontade de “respeitar as diferenças” equivale, em nossos dias, a colocar todas as
verdades sobre o mesmo plano. No fundo, ela extirpa a ideia mesma de verdade, vendo
nela tão somente uma fonte de conflito. Mas se colocarmos a “verdade dos
perseguidores” sobre o mesmo plano da “verdade das vítimas”, tão logo não haverá
mais diferença nem verdade para ninguém. Os amigos são perfeitamente “sinceros”,
mas sua “verdade” é o linchamento dos inocentes, sendo também uma mistificação. A
“verdade” que Jó profere é exatamente outra: verdade incondicional, absoluta.
Não é o bastante reconhecer o objeto do debate, a violência coletiva que se apressa
em derramar-se sobre Jó e que já se aproxima dele; é preciso reconhecer as duas
perspectivas sobre essa violência e sobretudo optar entre elas. Evitar de tomar partido é
um engano. Todo fingimento de impassibilidade, qualquer que seja o pretexto –
estoico, filosófico, científico –, perpetua o statu quo, prolonga a ocultação do bode
expiatório, faz de nós cúmplices eficazes dos perseguidores. Jó é o contrário dessa
impassibilidade. Longe de ser uma fonte de ignorância, a identificação apaixonada com
a vítima é aqui a fonte autêntica do saber, como de todo o resto. A verdadeira ciência
do homem não é impassível.
72
Em nossos dias, determinados aspectos desse saber, o saber da vítima, estão bastante
disseminados, de modo que não podem ser vilipendiados nem pervertidos, nem tornar-
se o instrumento paradoxal de uma perseguição mais sutil. O caráter único da época
atual se revela no fato de que a posição da vítima se tornou a mais desejável, perante a
opinião pública. Já não é mais a postura antiga do suplicante se esforçando em
despertar a comiseração, mas a reivindicação de direitos jurídicos e extrajurídicos.
Essa conjuntura entre nós é inseparável da influência bíblica. Mas não precisamos
ficar obcecados pelo ressentimento mimético, como Nietzsche ficou, ao ponto de ver
nele a posteridade legítima da Bíblia em nosso universo, tanto quanto sua inspiração
primeira. O ressentimento é apenas um filho ilegítimo, e certamente não o pai das
Escrituras judaico-cristãs.
Para além dos mal-entendidos, das calúnias e das usurpações de que é alvo, das
reviravoltas históricas e até mesmo dos desastres que delas resultam, e de tudo o que a
desfigura a nossos olhos: a verdade da vítima finalmente reconhecida é o
acontecimento mais grandioso e mais feliz de uma história que é a história do religioso
e da humanidade em seu conjunto.
73
Quinta Parte
A CONFISSÃO DA VÍTIMA
74
16
UM PROCESSO TOTALITÁRIO
A inveja e as rivalidades miméticas desaparecem no fenômeno do bode expiatório e
se metamorfoseiam empositividade religiosa, com a condição de que, evidentemente, a
operação não deixe resíduos, ou seja, a unanimidade contra o bode expiatório seja
perfeita.
Caso uma exceção permaneça, ainda que seja única, permanecendo assim apenas
uma dissonância no concerto que se manifesta contra a vítima: eis que o desfecho
favorável não está mais garantido. A eficácia da droga perde o vigor; a unidade do
grupo se rompe. A menor tepidez no ódio representa o risco de semear a dúvida e
comprometer os efeitos catárticos sobre o moral da comunidade.
Reforçar a comunidade e reforçar a transcendência sociorreligiosa são a mesma
coisa. Mas esse reforço exige um mecanismo vitimário impecável, um acordo
perfeitamente unânime sobre a culpabilidade da vítima.
Enquanto está viva, a vítima faz parte da comunidade; portanto, ela pode participar
da unanimidade que se forma contra si. A exigência de unanimidade lhe concerne
particularmente. Não há nenhuma razão para isentá-la. Muito pelo contrário: nenhum
assentimento é mais precioso que o seu.
Os três amigos procuram convencer Jó a aprovar o veredicto que o condena. É esse
o verdadeiro objetivo de sua missão, do qual depende a eficácia do mecanismo
vitimário. Logo, não se trata em hipótese alguma de discorrer sobre a questão do Mal.
Os três amigos procuram consolidar o “sistema de representação” fundamentado na
escolha de Jó como bode expiatório. Em vista disso, eles procedem muito mal; a menos
que se deixem os sistemas de representação se fazer e se desfazer sozinhos, não se pode
agir de outro modo.
O sistema consiste em inocentar a comunidade, denegrindo o bode expiatório. Para
consolidá-lo, é preciso reforçar a crença nessa perfídia mítica. O mais eficaz,
evidentemente, é uma confissão com todas as letras do culpado. É preciso que Jó
afirme publicamente sua infâmia, que ele a proclame em alta voz, num tom
extremamente eloquente.
Veja Édipo, no final da tragédia, ressaltando mais de uma vez sua mácula horrível,
ignóbil ao extremo, diante dos deuses e dos homens, o que se chama em grego um
miasma. É ele quem exige a própria expulsão com um entusiasmo que lhe restituirá,
com o tempo, a estima da comunidade. Sua mansidão lhe vale logo em seguida
circunstâncias atenuantes por parte dos tebanos, naquele tempo, que se contentam em
exilá-lo, e em nossa época, por parte de todo mundo. No fim das contas, ele só tem a
vida salva por causa de sua conduta de vítima exemplar, exatamente o contrário da
conduta de Jó.
Pede-se à vítima que indique a seus concidadãos todo o mal que convém pensar dela
a partir de então. Isso facilita a adesão de todos à ortodoxia em vias de elaboração. Nas
sociedades primitivas, a força dessa adesão permite fechar o cerco e faz do bode
75
expiatório o princípio da unidade social, um deus simultanemente nocivo e benéfico.
No caso de Jó, o cerco já se desfez. Há muito tempo o processo vitimário não
produz mais esse gênero de divindade, mas a crise sacrificial só torna mais necessária a
adesão entusiasta e espontânea da vítima à onda de mimetismo que a desonra e
aniquila.
Sempre que um “homem perverso” se apresenta, a comunidade aciona sua rígida
máquina ritual, mas a insubordinação de Jó desestabiliza a trama: os atores não estavam
preparados para esse tipo de resistência.
A intervenção do quarto inquisidor, Eliú, ajuda a compreender o caráter
propriamente incomum do acontecimento: uma vítima que contesta a comunidade
inteira. Trata-se de um escândalo tamanho, que um leitor indignado quis suprimi-lo,
inventando a personagem de Eliú, interferindo no caso por intermédio dele. A
impotência dos três primeiros “amigos” em reduzir Jó ao silêncio pôs esse exaltado
partidário do deus vingador numa cólera assustadora.
No fundo, Eliú está tão de acordo com os três primeiros linchadores, que não pode
imaginar outra causa para o insucesso deles que não seja a incompetência. Ele revela o
agravamento da crise sacrificial. Como todos os que contestam com superficialidade,
ele faz da juventude sua vantagem principal, sua superioridade. Quando a operação
“rota antiga” desmorona, sempre aparecem tipos como Eliú para acabar de demoli-la,
esforçando-se para reativá-la.
Para penetrar a aposta do debate, podem-se aproximar os diálogos de Jó e Antígona
de Sófocles. Nessa tragédia, tudo gira em torno de uma operação de bode expiatório
que emerge algo excessivamente para representar bem seu papel, e o problema, como
sempre nesses casos, diz respeito à adesão da comunidade que não é unânime.
Somente a exigência de unanimidade pode explicar a importância que atribui
Creonte à rebeldia de Antígona. Não é a personalidade da jovem ou seu parentesco
com Polinices que dão peso a sua desobediência, mas a ruptura da unanimidade.
Mostrando que Polinices em nada é diferente de Etéocles, seu irmão inimigo, e
exigindo funerais para ambos, Antígona impede a resolução sacrificial buscada por
Creonte. Ela impede que a diferença mítica se estabeleça.
Entre os dois irmãos que morreram do modo como viveram, na simetria hostil dos
pares, não se encontra nenhuma diferença. Eles se parecem como as duas gotas de água
de Menecmos. São os mesmos gêmeos da violência. Quando os tebanos percebem que
seu bode expiatório, Polinices, foi arbitrariamente escolhido; quando identificam nele
justamente um bode expiatório: a visão vitimária não “pega”, a vítima não é vista como
a responsável pelas divisões que destroem a comunidade. Esta não conseguiu se livrar
de seu mal.
A discórdia trágica, portanto, vai se perpetuar. O que efetivamente acontece em
Antígona é que os fracassos do processo vitimário formam uma única realidade com a
ação trágica. Na ausência de uma vítima unanimemente julgada culpada, de um bode
expiatório suficientemente disfarçado, a tragédia recomeça, novos pares se enfrentam:
Antígona e Creonte, o exército de Etéocles e o de Polinices.
A aposta é idêntica à de Jó, a não ser pelo fato de que, na pessoa de Jó, Antígona e
Polinices representam o mesmo papel. O denunciador da expulsão arbitrária é o
próprio bode expiatório. Jó é a Antígona de sua própria causa. A ele se pede para
76
reconhecer-se martirizado por justa causa, ao que ele se recusa.
Com Jó, os três “amigos” manifestam o mesmo furor previdente do rei Creonte
com Antígona. Eles têm a violência a seu dispor, mas não podem utilizá-la abertamente.
O que importa obter é que a vítima consinta livremente em seu suplício.
Os inquisidores chegam a amenizar o tom e recorrem à estratégia, alternando as
ameaças de assassinato e as vagas promessas de reintegração. É a isso que devemos,
creio eu, por intermédio do prólogo, naturalmente, a interpretação particularmente
falaciosa que apresenta os três amigos como “consoladores”. A moderação relativa dos
três não tem nada a ver com piedade. Os amigos jamais se esquecem de seu objetivo:
dobrar a resistência de Jó, mas sem obrigatoriedade aparente.
Se o consentimento de Jó fosse visivelmente obtido à força, ele perderia todo o valor
aos olhos da comunidade. Essa estratégia prenuncia a moderna propaganda.
Na medida em que não conseguem se tornar os celebrantes num sacrifício cuja
majestade por nada seria perturbada, o grupo dos três, depois dos quatro “amigos” se
assemelha cada vez mais ao cerco dos policiais ao redor de um suspeito. Esses não são
propriamente carrascos, mas todas as formas de intimidação, todas as pressões
psicológicas lhes prestam enorme auxílio para obter as famosas “confissões
espontâneas”, tão valorizadas em sociedades ditatoriais. A derrota do processo
sacralizador enfraquece as conotações propriamente sagradas e tudo o que eu disse de
um ponto de vista religioso pode e deve ser dito numa abordagem não judiciária,
propriamente falando, mas policial e totalitária.
Entre esse universo e o nosso, singulares analogias aparecem. Algo em Jó lembra
uma certa decadência moderna da justiça. Por todo lado onde a ideologia corrompe o
judiciário, as paródias legais se multiplicam e suscitam comportamentos análogos aos
dos três inquisidores à espera da morte de Jó.Nas sociedades até agora poupadas por essa preocupante evolução, justifica-se mal a
importância que os regimes totalitários associam aos simulacros de justiça, tão mal
quanto a obstinação dos amigos em extrair a “confissão” de Jó. A aproximação dos dois
mistérios esclarece um e outro.
Nos dois casos, as garantias dos sistemas judiciários que respeitam os direitos do
homem fazem falta. E procura-se a mesma coisa: a adesão sincera dos acusados à
condenação sem provas, à aniquilação “sem inquérito”, como altivamente diz Eliú. Essa
adesão visa substituir a prova.
É preciso garantir uma coincidência perfeita entre a perspectiva dos carrascos e a das
vítimas. A existência de uma verdade única está em jogo, uma verdade propriamente
transcendente, que se imporia a todos os homens, sem exceção, mesmo àqueles que são
aniquilados pelo triunfo de seu cortejo a passar. É preciso mostrar que essa verdade é
de tal modo radiante, que se impõe, no fim das contas, mesmo àqueles que, tendo-a
ignorado, devem sofrer as consequências. Eles devem reconhecer que pecaram e que
tudo o que padecem é por justo merecimento.
A exigência de uma vítima resignada caracteriza o totalitarismo moderno, tanto
quanto certas formas religiosas e pararreligiosas do mundo primitivo. As vítimas dos
sacrifícios humanos são sempre apresentadas como extremamente favoráveis à própria
imolação, absolutamente convencidas de sua necessidade. É o ponto de vista dos
perseguidores, que o neoprimitivismo atual é incapaz de criticar.
77
As ideologias totalitárias destroem a crença numa justiça imparcial e soberana,
alheia aos conflitos da cidade terrestre. Os regimes que triunfam sobre as ruínas de
uma legalidade sistematicamente vilipendiada não dispõem mais dela quando, por sua
vez, dela necessitam. De fato, eles destruíram a transcendência efetiva da lei em relação
aos indivíduos que compõem a sociedade real.
Quando não há mais essa transcendência para assegurar a soberania e a
continuidade das instituições judiciárias, nem princípio invulnerável à ambições rivais,
às vicissitudes da História, à corrupção ou à mediocridade de seus representantes, algo
muito grande se perdeu. Ou não existe mais, em hipótese alguma, verdade comum, ou
então, para que se possa impor uma, é preciso vivê-la até o fim e, caso necessário,
morrer por ela, quando se está pronto para matar por ela. É preciso confundir-se com
ela, tornar-se sua encarnação.
Nos sistemas totalitários, os dirigentes se orientam para esse estatuto de encarnação.
Eles só escrevem livros infalíveis, pronunciam apenas palavras geniais. São tratados
como a própria verdade em pessoa, o rei sagrado. É isso o que se chama de “culto da
personalidade”.
Mas quando os ídolos são vários, o menor desacordo entre eles afeta e compromete
uma verdade que só existe verdadeiramente em suas encarnações privilegiadas. O
conflito dos ídolos consiste na divisão e fragmentação do sagrado; toda a sociedade, por
trás disso, corre o risco de dividir-se e decompor-se. A vitória física de uma facção sobre
as rivais não é suficiente para restabelecer a unidade do verdadeiro.
É preciso que os vencidos reconheçam livremente sua falta. É preciso uma confissão
das culpas que não pareça arrancada à força. Exige-se que os malditos deem sua bênção
à maldição que os atinge. Não se pede a eles para perdoar, em hipótese alguma para
perdoar, o que daria a entender que a perseguição não é necessariamente infalível. A
eles se pede uma adesão entusiasta à decisão que os anula.
É exatamente isso o que os três amigos pedem a Jó. Os vencidos devem reconhecer
que desde sempre estiveram no erro e na traição. Consideravam-se inocentes, mas eram
culpados, parricidas e incestuosos desde a origem. Conseguiram enganar o povo,
fazendo-se aclamar, quando de fato não encarnavam autenticamente a verdade.
Uma vez destruída, a transcendência institucional só pode restabelecer-se de
maneira temporária e precária, por meios análogos àqueles das sociedades primitivas,
que também carecem de transcendência permanente, mas por razões inversas: porque
ainda não a engendraram. As sociedades totalitárias modernas acabaram destruindo
essa transcendência; as sociedades primitivas não conseguiram produzi-la.
Tanto num caso como noutro, há apenas um recurso: o mecanismo do bode
expiatório. Antes do totalitarismo, as sociedades modernas não chegaram a eliminar os
bodes expiatórios, mas baniram sua pior violência em suas margens, ao mesmo tempo
em que atenuavam essa violência no interior de suas fronteiras. Esses modestos
progressos são comprometidos em nossos dias pela virulência progressiva dos conflitos
internacionais e pelo retorno vigoroso do processo vitimário, tanto no terrorismo
quanto no totalitarismo.
Não mais do que os procuradores soviéticos, aos três amigos não interessa a
verdade. Eles estão ali para persuadir Jó a reconhecer-se publicamente culpado, pouco
importa de que, desde que seja aos olhos de todos. Em última análise, pede-se ao infeliz
78
para reconhecer-se atingido por um deus infalível, mais do que por homens falíveis. A
ele se pede para confirmar a união sagrada do linchamento unânime.
79
17
A RETRIBUIÇÃO
Podemos identificar outros traços comuns aos processos totalitários e ao processo de
que Jó é a vítima. Um dos mais espetaculares é a supressão da memória, a vontade de
eliminar não apenas o bode expiatório, mas tudo o que poderia evocá-lo, inclusive seu
nome, que não se deve mais pronunciar.
No universo religioso, esse tipo de atitude é justificado pela degradação que o bode
expiatório dissemina, tão insidiosa e temida que bastaria apenas o menor odor, a
menor lembrança, talvez a simples pronunciação de seu nome para produzir uma
contaminação. A vítima é tão impura, que se deve espalhar por onde ela passar enxofre
e desinfetantes, para que se possa aniquilar até os últimos vestígios sua presença sobre a
terra:
Sua memória desaparece de sua terra,
seu nome se apaga na região.
Lançado da luz às trevas,
ele se vê banido da terra,
sem prole nem descendência entre seu povo,
sem um sobrevivente em seu território.
De seu destino espanta-se o Ocidente
e o Oriente enche-se de terror.
Não há outra sorte para as moradas da injustiça
e o lugar daquele que não reconhecia a Deus! (Jó 18,17-21).
Nada é mais ritual e tradicional do que essa abolição da memória, essa erradicação
total do pseudoculpado. Essa exigência de destruição hiperbólica ressurge em nossa
época de forma laicizada. Certas atitudes religiosas lembram procedimentos profiláticos
em caso de epidemia e, ainda em nossos dias, a medicina está frequentemente metida
com esse tipo de trabalho. Todo um conjunto primitivo reaparece no totalitarismo
moderno.
A eliminação radical dos “culpados” lembra a manipulação de que a História é alvo
no mundo totalitário. Na União Soviética, o líder destituído se torna uma persona non
grata[1] e seu nome desaparece das enciclopédias e registros oficiais.
Ao longo da “rota antiga”, não existe placa comemorativa. Permanece apenas a
lembrança da própria rota em forma de uma ameaça que pesa vagamente sobre todos e
se define no caso de Jó. Expõe-se a uma pequena viagem por essa rota todo aquele que
faz demonstrações de “perversidade” aos olhos dos que manipulam a opinião pública, e
define-se exatamente como “perversidade”, no caso de Jó, a recusa em curvar-se, a
independência do julgamento, a vontade de não ceder ao assustador mimetismo da
multidão.
Longe de se reduzir a acidentes inoportunos, mas desculpáveis, “desvios” facilmente
retificáveis, o culto da personalidade e as paródias judiciárias sugerem uma recaída em
formas de socialidade diretamente fundadas no processo vitimário. A cumplicidade
ideológica leva muitas pessoas a minimizar o que se passa e isso também faz parte do
80
que se passa. Tem-se por certo que os “desvios” cessarão uma vez por todas no dia em
que os “bons” finalmente tomarem o poder e extirparem para sempre os maus; no dia,
em suma, em que os “bons” forem os únicos a dispor da expulsão purificadora.
Essa recaídanum tipo de socialidade que sem dúvida nenhuma dominou quase
toda a história humana carece totalmente de “autenticidade” e não sabemos se, por
esse fato, é preciso considerá-la menos assustadora ou, ao contrário, mais assustadora
ainda. Seja lá o que fizerem daqui para a frente, os homens não podem mais esquecer-
se da dimensão vitimária da revelação judaico-cristã, e a reativação do bode expiatório
continua a sofrer a influência de uma fabricação malfeita, de uma mentira visível.
Em nossos universos totalitários, antigamente cristianizados, a parcela de
manipulação consciente é maior do que nos universos em que a verdade do bode
expiatório jamais penetrou. O mundo contemporâneo ressuscita a violência primitiva
sem voltar a encontrar o não saber que garantia a inocência relativa desses universos e
os impedia de ser insuportáveis.
Depois de ter durante alguns séculos se apartado progressivamente [desse
mecanismo], sem jamais romper inteiramente com ele, as sociedades modernas, logo
que cedem às tentações totalitárias – e talvez cedam cada vez mais por razões
inacessíveis aos modos de reflexão estreitamente políticos e mesmo sociológicos –, se
aproximam de novo não exatamente do religioso primitivo, mas de sua desagregação.
Não é por acaso que os textos com maior capacidade de nos iluminar sobre o que se
passa conosco são os célebres textos do universo trágico e profético, as obras mais
inspiradas da decadência sacrificial do mundo antigo. Não se deve “tomar as coisas
pelo lado trágico”, dizem por aí, mas talvez voltemos a nos encontrar de modo muito
preciso na tragédia em sentido pleno.
É por isso que o antigo livro de Jó faz vibrar em nós uma corda contemporânea. À
medida que descobrirmos o funcionamento vitimário dos universos primitivos, mais
penetraremos a natureza das relações entre os homens no seio dos universos
totalitários. Tanto num caso como noutro, o essencial depende de uma única e mesma
ausência, que não percebemos, pois se trata da ausência de uma coisa que não é una e
que muitas pessoas não veem. Muitos descobrem a existência e importância dela muito
tarde, a partir do momento em que cessou de ser, em razão de sua ausência.
Refiro-me aqui a uma transcendência social bastante rígida e estável para se
contentar em recorrer perpetuamente aos bodes expiatórios internos ao grupo
ameaçado. A maior parte dos ocidentais permanecem bastante protegidos por essa
transcendência para conceber a possibilidade de sua perda e o privilégio não merecido
de que ainda gozam.
É totalitária toda sociedade em que o bode expiatório reassume seu papel imemorial
de instaurar e restaurar a transcendência, mas num clima muito influenciado pelo
saber bíblico e cristão – exatamente o saber do que seja um bode expiatório – para
ressuscitar verdadeiramente a ilusão dos amigos de Jó e de todos aqueles que creem
viver num universo sem imperfeição. Os amigos descrevem ingenuamente esse universo
regido por uma justiça infalível, universo sem dúvida horrivelmente cruel, porém, sem
cair no neoprimitivismo, pode-se admitir que a inquebrantável convicção daqueles que
o habitavam lhe conferia uma espécie de inocência e frescor de que as sufocantes
paródias totalitárias são desprovidas.
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A exigência de perfeição absoluta poderia muito bem ser o ponto comum entre a
sociedade dos “amigos” e as sociedades totalitárias atuais. Diante de imperfeições muito
evidentes para serem negadas, diante de tudo o que visivelmente se recusa com muita
visibilidade a funcionar corretamente, a reação totalitária nunca é primeiramente
pragmática, mas judiciária. Para chegar a soluções concretas, o estado de espírito mais
fecundo consiste em pensar que talvez não haja “culpado”. Para aprender a curar a
peste, é preciso em primeiro lugar renunciar aos oráculos de Laio, renunciar à caça ao
bode expiatório. Os universos totalitários renunciam a essa renúncia. Eles reintegram
sem saber, em nome do “progresso”, o universo mental admiravelmente definido por
Elifaz:
Recordas-te de um inocente que tenha perecido?
Onde já se viu que justos fossem exterminados?
Eu vi bem: aqueles que cultivam a maldade
e semeiam o sofrimento são também os que os colhem.
Ao sopro de Deus perecem,
são consumidos pelo sopro da sua ira (Jó 4,7-9).
Pode-se compreender sem dificuldade por que os três amigos pensam desse modo.
Eles sempre participaram das ações a que Elifaz se refere, do lado dos linchadores, do
lado da comunidade. Os justos são aqueles que nunca são linchados e que encerram a
existência tão bem quanto a começaram.
Aqueles que estão na iminência de ser linchados, via de regra, não estão ali para
falar nada: é precisamente isso o que faz dos discursos de Jó uma exceção extraordinária
e uma abominação para todo um universo que só pode ver em suas lamentações uma
subversão imperdoável da própria ideia de justiça divina.
Aos olhos dos amigos, enquanto não há Jó algum para perturbar o jogo do processo
vitimário, tudo está necessariamente disposto do melhor modo possível, no melhor dos
mundos. A vingança divina persegue sempre os outros; somente os maus,
evidentemente, são pisoteados pela multidão. Em tais condições, não seria natural
pensar que o mundo é extremamente benfeito?
Aqueles que são persuadidos e completamente envolvidos pelo mecanismo do bode
expiatório vivem num mundo sempre conforme às exigências da Justiça. Se,
momentaneamente, esse mundo cessa de ser justo, cedo ou tarde o processo vitimário
intervirá para restabelecê-lo em sua perfeição. Os amigos constatam exatamente isso no
caso de Jó, como o narrador do Salmo 73. Os exércitos celestes às vezes são um pouco
lentos a pôr-se em marcha, porém, assim que começam a se mover, é iminente o
momento em que os bandidos pagarão pelo que fizeram. Sempre, no fim das contas, os
bons e os maus recebem da divindade o que merecem neste mundo. Nisso consiste a
tão poderosa ideia da retribuição: aspecto essencial de todo sistema de representação
mitológica. Basta refletir um pouco sobre isso para compreender que tal ideia repousa
sobre o mecanismo vitimário.
É por isso que a crença na retribuição domina o religioso primitivo. É muito mais
do que uma filosofia ou mesmo uma teologia. Entendo por primitiva toda sociedade
estruturada por mecanismos de bode expiatório ainda intactos. A justiça transcendente
forma uma só realidade com o processo vitimário descrito por Jó, enquanto não houver
Jó nenhum para perturbá-lo ao descrevê-lo. Portanto, ela é tão natural quanto
sobrenatural, tão transcendente quanto imanente. Ela está sempre presente, pois
82
[também] forma uma só realidade com a unanimidade mimética e, cedo ou tarde, a
unanimidade mimética se refaz contra uma vítima qualquer.
Nesse aspecto, como em tantos outros, o livro de Jó tem um valor de ensinamento
incomparável. Os três amigos não podem crer, como fazem, na culpa de Jó e de todos
os bodes expiatórios anteriores sem igualmente crer numa Justiça absoluta que sempre
sai vitoriosa neste mundo. As duas coisas são a mesma. Todos aqueles que a
comunidade inteira percebe como culpados são efetivamente punidos e todos os que
são punidos, ou aparentemente o são, simplesmente porque um infortúnio acidental os
atingiu, passam logo por culpados: tornam-se também bodes expiatórios. A Justiça
vence obrigatoriamente.
O mecanismo vitimário bem administrado suscita um mundo absolutamente
“perfeito”, na medida em que garante automaticamente a eliminação de tudo o que é
visto como imperfeito e faz parecer imperfeito, indigno de existir, tudo o que é
violentamente eliminado.
Esse mundo não deixa nenhum espaço para a injustiça impune ou o mal não
sancionado, tanto quanto ao justo infeliz ou ao inocente perseguido. Elifaz afirma
exatamente isso. Esse cerco é indefectível: o princípio dessa perfeição jamais descobrirá
por si mesmo o que nele existe de falacioso. O mimetismo é muito forte. Jó pode
espernear até o final dos tempos sem ser ouvido por seus amigos, nem por ninguém.
O princípio fundador não se deixa aniquilar. Logo que surge algo que poderia
suprimi-lo,e fazê-lo reconhecer-se como ilusório – a voz de Jó, por exemplo,
proclamando-se bode expiatório –, o mecanismo de eliminação se põe em movimento,
seja sob formas derivadas, amenizadas e intelectualizadas, das quais nossos mil modos
de ignorar o que Jó diz constituem excelentes exemplos. O isolamento em si mesmo de
todo “sistema de representação” é proveniente, no fim das contas, do mecanismo
vitimário.
A tendência a atribuir as imperfeições de uma sociedade aos bodes expiatórios de
dentro e de fora dela certamente permanece universal, no entanto, ao invés de
enfraquecê-la e denunciá-la, as sociedades totalitárias a estimulam e sistematizam. Elas
nutrem com vítimas o mito que buscam promover, qual seja o de uma perfeição que
lhes seria própria.
83
18
ESMORECIMENTOS DE JÓ
Em Jó, frequentemente, pode-se observar uma tendência a aumentar o número dos
perseguidores e a exagerar seu poder. Você se lembra de expressões como “gente vil”,
vivendo em “barrancos escarpados” ou em “covas e grutas do rochedo”? Alquebrada
por privações, com dificuldade ela se mantém em pé. É difícil ver o que ela poderia ter
em comum com os inúmeros combatentes enviados pelo todo-poderoso para castigar
seu inimigo. Não corremos o risco de confundir as duas tropas.
Mas sem a menor transição, o tom muda: exércitos invencíveis se precipitam ao
ataque; turbas numerosas levam consigo as fracas defesas de Jó. A epopeia vingadora
recomeça, mas os agressores não mudaram: Jó, por sua vez, mudou de registro. Poucos
momentos antes, ele descrevia seus inimigos como “mirrados pela penúria e pela fome”
(Jó 30,3), capazes de no máximo cuspir sobre ele a uma distância mínima, e eis que nos
encontramos novamente em plena cavalgada das Valquírias, como se um dos amigos
tivesse a palavra.
Retomo esse relato a partir de um trecho anterior ao final do texto citado
anteriormente:
E agora sou alvo de suas zombarias,
o tema de seus escárnios.
Cheios de medo, ficam a distância
e atrevem-se a cuspir-me no rosto.
Porque [Deus] deteve meu arco e me abateu,
perdem toda a compostura diante de mim.
À minha direita levanta-se a canalha,
eles fazem escorregar meus pés
e abrem contra mim caminhos sinistros;
desfazem minha senda,
trabalham para minha ruína
e não há quem os detenha.
Irrompem por uma larga brecha
E sou jogado sob os escombros.[1]
Os terrores estão soltos contra mim,
minha segurança se dissipa como vento,
minha esperança varrida como nuvem (Jó 30,9-15).
Sem que se saiba por que, o estilo da revelação verdadeira dá lugar ao exagero épico.
A mudança se opera de uma só vez, bem no meio de um discurso.
Os exércitos celestes não são imaginários. Acabo de demonstrá-lo. Eles se
confundem com a comunidade que se ergue contra o bode expiatório. Os
esmorecimentos linguísticos de Jó são a confirmação disso. Os adversários são sempre
os mesmos. Do ponto de vista do conteúdo, não há ruptura. Esses deslizes linguísticos
são capazes de dissipar todas as dúvidas que poderiam subsistir quanto à identidade
real desses famosos exércitos. Os carrascos reais e os guerreiros sobrenaturais formam
uma só realidade.
Nos textos citados anteriormente, a oposição dos discursos dos amigos aos de Jó era
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sempre nítida. Eis que agora ela se torna confusa. Privilegiei primeiramente os textos
mais reveladores, em que o realismo do bode expiatório triunfa incontestavelmente. Há
outros que se revelam bem diferentes.
Minha interpretação geral se fundamenta no caráter irredutível da oposição da fala
dos amigos à fala realista de Jó. De um lado, a visão persecutória da sociedade, geradora
de mitologia e ritual; de outro, a visão de Jó, que subverte a primeira, revelando-o como
o bode expiatório injustamente perseguido.
Mas eis que, agora, Jó passa para o lado do inimigo, imitando a ferocidade dos
amigos em todos os textos que o mostram fiel à divindade dos bodes expiatórios, à
divindade bárbara da tribo.
Tudo isso produz uma impressão de desordem caótica. Para os leitores seduzidos
pelo prólogo, os que não veem em Jó o bode expiatório pressionado de todos os lados,
perseguido por uma acusação envolvida pelo manto da divindade, os esmorecimentos
verbais de Jó contribuem substancialmente – o que é óbvio – para a incompreensão do
livro e, consequentemente, a paralisia notável da exegese através dos séculos; reforçam a
autoridade do deus vingador e tornam o enigma do texto insolúvel. Quando uma
vítima adota a linguagem de seus perseguidores, torna-se mais difícil reconhecer nela
uma vítima.
Em alguns de seus discursos, Jó se assemelha tanto a seus adversários, que os
editores do texto se veem em dificuldade. Eles atribuem a um dos amigos afirmações
que parecem inverossímeis na boca do herói.
Sem dúvida, os editores têm razão. Interpolações e manipulações de todo tipo
tiveram de se produzir; porém, parece-me que a desordem é muito profunda para uma
solução somente filológica. Ela coloca um problema geral de interpretação. Em certos
casos, é certamente Jó que fala; não se pode substituí-lo por nenhum de seus amigos,
no entanto, ele fala exatamente como estes. Poderíamos crer estar ouvindo Elifaz,
Baldad e Sofar em seus transes de vingança.
Entretanto, não se deve ficar impressionado, nem largar o fio condutor da violência
e do sagrado. A mistura das vozes, a confusão das diferenças, nunca em benefício de Jó,
sempre em proveito da visão comunitária, da visão totalitária, longe de comprometer a
leitura que proponho, encontra nela seu lugar.
Poderíamos dizer que Jó, em certos momentos, não pode mais sustentar seu
discurso realista e revelador. Ele é o único a manter esse discurso: a tentação de
renunciar a ele e de falar como todos os outros pode se tornar irresistível... De vez em
quando, ele sucumbe a ela. Na perspectiva do processo totalitário sugerida no capítulo
anterior, essas contaminações repentinas podem se manifestar como esmorecimentos
do herói, semivitórias para o perseguidores.
Nada é mais fácil do que fazer um suspeito confessar tudo o que se quer, quando se
sabe como agir de modo favorável a essa intenção. A pressão unânime de um grupo
sobre um indivíduo solitário não pode ficar sem efeito.
Ao esmorecer, Jó tende a emprestar a linguagem de seus adversários, repetindo
depois deles todos os estereótipos de imprecações semirrituais destinadas aos “homens
perversos”. Nada no texto anuncia nem justifica essas aberrações, mas elas não têm
nada para nos espantar.
Num ser submetido a tanta violência, a confusão das línguas é praticamente
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inevitável. Entre a vítima e seus algozes, o contágio mimético é normal. Os efeitos de
espelho entre Jó e os “amigos” são provenientes dessa força estranha que algumas vezes
faz sucumbir ao poder fascinador dos carrascos mesmo as vítimas mais determinadas.
Determinadas fórmulas de Jó sugerem substancialmente o fenômeno psicológico a
que faço alusão:
Mesmo que eu fosse justo, sua boca condenar-me-ia;
se fosse íntegro,[2] declarar-me-ia culpado.
Sou íntegro? Eu mesmo já não sei,
e rejeito minha vida (Jó 9,20-21).
O assédio dos amigos faz suas certezas mais fortes vacilarem, podendo destruí-las. É
a própria inocência que Jó defende com mais força e eis que mesmo essa última
convicção vacila.
Estamos no mesmo domínio, antigo e moderno simultaneamente, que Dostoievski
e Franz Kafka exploraram com genialidade. Mesmo num universo que não a reconhece
oficialmente como divina, a unanimidade social, na maioria das vezes sem dificuldade,
triunfa sobre resistências individuais. Isso não é sempre verdadeiro no caso de Jó, o que
faz dele uma vítima excepcional.
Deve-se crer que as forças e fraquezas de Jó são efeitos deliberadamente desejados,
habilmente calculados por um autor capaz de sugerir com sutileza a perturbação de Jó,
suas incertezas, a situação intersubjetiva e espiritual complexa que estou tentando
descrever? É possível, mas não provável.
Parece-me mais provável que o autor, diante de seus próprios amigos Elifaz, Baldad,
Sofar etc., se encontre ele próprio numa situação simbolicamente análoga à que põe em
cena.Ele se revolta, oscila em direção a outra coisa que não o deus vingador, sem ter
domínio pleno sobre seu projeto. Com Philippe Nemo, penso que se deve adotar essa
hipótese, a mais apaixonante. Tudo nos diálogos a sugere, embora nada possa
verdadeiramente confirmá-la. Não sabemos onde situar exatamente o autor em relação
a seu personagem: a que distância, a que ausência de distância? Possuímos apenas esse
personagem e é dele que devemos falar. Nada nos proíbe, ao falar dele, de pensar no
autor desconhecido dos diálogos.
Portanto, ocorre a Jó duvidar de sua inocência:
Se eu decidir esquecer minha aflição,
mudar de fisionomia e fazer rosto alegre,
eu temo todos os meus tormentos,
pois sei que não me terás por inocente.
E se fosse culpado,
para que afadigar-me em vão? (Jó 9,27-29).
Eis uma marca característica das vítimas submetidas à tortura: sua percepção
apresenta certas distorções, sempre mais ou menos parecidas com as dos perseguidores.
Na visão que estes têm de si mesmos, como também na das vítimas, eles se tornam mais
prodigiosos do que na realidade o são. Produz-se uma coisa análoga no domínio
especificamente religioso. Longe de repelir a ideia de que o próprio Deus é seu inimigo,
que tentam impor-lhe, Jó a aceita e inclusive a solicita, num espírito de orgulho
desesperado.
Para a vítima, ver-se exposta à hostilidade pessoal da divindade é a experiência mais
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terrível, mas que oferece, curiosamente, uma espécie de compensação da qual os
carrascos não podem privá-la: pois a vítima retoma uma ideia que lhes é própria. Se eles
a contradizem, eles também se contradizem a si mesmos. Para reconquistar uma
superioridade de que seus perseguidores não podem destituí-la, a vítima é revalorizada.
Por vezes, algo semelhante a isso se encontra nos indivíduos acusados de feitiçaria.
Em vez de negar vigorosamente seus pactos com o diabo, eles criam para si uma triste
glória. Trata-se de uma profusão que volta a ser preciosa aos culpados, na medida em
que fornece aos perseguidores tudo o que eles exigem. Essa profusão legitima a
acusação, finaliza a unanimidade violenta.
Eis uma passagem característica:
Até quando continuareis a afligir-me
e a magoar-me com palavras?
Já por dez vezes me insultais,
e não vos envergonhais de zombar de mim.
Se de fato caí em erro,
meu erro só diria respeito a mim.
Quereis triunfar sobre mim,
Lançando-me em rosto minha afronta?
Pois sabei que foi Deus quem me transtornou,
envolvendo-me em suas redes.
Grito: “Violência!”, e ninguém me responde,
Peço socorro, e ninguém me defende (Jó 19,2-7).
Censurando uma vez mais seus amigos por fazerem de tudo para aniquilá-lo, para
provar sua culpa, Jó minimiza o papel da perseguição humana em relação a sua
contraparte divina – esta, no entanto, se concretiza exclusivamente por meio daquela.
Somente a atitude dos homens revela a Jó a hostilidade da divindade a seu respeito.
Observemos a imagem das redes divinas que aprisionam a vítima, frequente nos
Salmos em que o bode expiatório tem a palavra, frequente também na epopeia e na
tragédia. Antes de matar Agamêmnon, para reduzi-lo à impotência, Clitemnestra lança
sobre ele uma espécie de rede que o envolve completamente. A rede lembra o cerco da
vítima por uma tropa armada. Embora executado exclusivamente por Clitemnestra,
ajudada por Egisto, o homicídio do rei esconde uma dimensão coletiva simbolizada
pela rede, assim como, ao redor dos homicidas, a presença permanente dessas
assassinas coletivas que são as Erínias.
Essa imagem faz parte de um conjunto metafórico centrado na caça, de preferência
coletiva: a caça aos animais selvagens, parecida com a caça aos homens. A rede de
Agamêmnon é, na Oréstia,[3] a mesma coisa que a rede de Jó em todas as imagens de
armadilhas, de caças e de redes nos discursos sobre os exércitos celestes.
O que está presente aqui é sempre o deus da caça ao homem, não o Iahweh
profético, mas o Apolo ou o Dioniso trágico. Ele constitui uma só realidade com a
febre persecutória que obceca o grupo humano e que se transmite mimeticamente
entre os que são próximos. É o deus dos amigos. Sobre o plano religioso, na maior
parte dos diálogos, Jó se distingue pouco das pessoas que o rodeiam:
Deus entregou-me a injustos,
jogou-me nas mãos dos ímpios.
Vivia eu tranquilo, quando me esmagou,
agarrou-me pela nuca e me triturou.
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Fez de mim seu alvo.
Suas flechas zuniam em torno de mim,
atravessou-me os rins sem piedade,
e por terra derramou meu fel.
Abriu-me com mil brechas
E assaltou-me como um guerreiro (Jó 16,12-14).
Uma vez mais, vemos transparecer nessa passagem o todos contra um da violência
coletiva. Trata-se sempre do registro épico/ritual da caça ao bode expiatório. Decerto,
Deus é único e quando se faz guerreiro, continua a sê-lo, mas esse singular equivale a
um plural, pois são necessariamente numerosos os guerreiros que se precipitam contra
a vítima com suas flechas. Para falar da divindade, Jó recorre à imagem dos exércitos
celestes.
Ele diz que Deus o entrega a homens injustos, e o coloca nas mãos de ímpios. Ao
mesmo tempo em que afirma o caráter persecutório dos amigos (e sem que lhe peçam
isto), a vítima declara ser realmente a vítima, não dos homens, mas da divindade.
Como todos, Jó acredita que o ódio a sua pessoa não poderia se estender ao conjunto
do povo sem o aguilhão da divindade.
Um velho instinto religioso não o autoriza a desconfiar do direito dos perseguidores
de invocar a autoridade do deus social. São “ímpios”. Jó não acredita em sua
autoridade enquanto homens, mas enquanto mandatários da divindade, uma vez que o
próprio deus o entregou a esses perversos. Ele se esforça para recusar a autoridade
sagrada do linchamento, para dissociar a divindade e os perseguidores humanos, mas
quase sempre sem sucesso, de modo que sua linguagem permanece em conformidade
com o sistema da violência e do sagrado. Mesmo em sua boca, encontramos
imponentes definições do divino como expressão transcendente da violência coletiva.
Diante da quantidade formidável de materiais aqui reunidos, pergunto-me por que
a crítica sempre age com o objetivo de nada enxergar, unanimemente. De fato, o que
parece mais incompreensível explica tudo. A unanimidade só pode ser mimética; a
unanimidade se perpetua em todas as leituras sucessivas: religiosas e não religiosas.
Duvido muito que a presente tentativa consiga diminuí-la.
Retomo meu raciocínio. O Jó conformista permanece fiel àquilo em que sempre
acreditou. Ele mesmo disse que sua prodigiosa popularidade no passado vinha
diretamente da divindade. Ele não pode ver em seus triunfos mundanos uma prova da
benevolência divina sem ver na revolta do povo contra ele uma prova de que o próprio
deus o amaldiçoara. Ele continua a pensar como toda a comunidade.
Para Jó, em suma, a voz unânime da comunidade é a voz da própria divindade: vox
populi, vox dei. O adágio latino é a expressão rigorosa do sistema expiatório. Não é de
se espantar que Jó, de vez em quando, esmoreça naquilo em que é mais forte: em sua
declaração de inocência. Que ele não tivesse fraqueza seria difícil de aceitar.
Sobre o plano religioso, as coisas vão tão longe, que falar de “esmorecimentos” ou
de “fraquezas” não bastaria. A maior parte do tempo, Jó não pode fugir desse
pensamento que sempre foi o seu, e o de todos os que o rodeiam.
O religioso se define por meio da adoção mimética dos gestos e da linguagem de
todos, perante o bode expiatório primeiramente, em seguida perante tudo o que
decorre do processo ritualizado; o religioso é a própria cultura. Pela dimensão de seu
ser, Jó permanece mergulhado em seu universo cultural. Eleito pelo povo, ele se
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considerava necessariamente eleito pela divindade; vê-se como maldito no dia em que o
povo o amaldiçoa. É verdadeiramente difícil entender isso? As coisas são muito
diferentes em nosso tempo?
É no campo do religioso que a tradição é mais forte, a estabilidade cultural é maior,
a inovação é mais inconcebível. Mesmo em seus piores momentos, Jó nunca cede
completamente à opinião unanimemente decididaque vê nele um culpado; mesmo em
seus melhores momentos, ele nunca chega a se libertar completamente da teologia feroz
que o destrói.
O leitor que opina sobre o caso a partir do prólogo esperaria ver um Jó muito mais
entristecido, bem menos angustiado do que de costume. Para compreender essa
angústia, não basta reconhecer em Jó um ser realmente perseguido pelos homens; é
preciso compreender que na maior parte do tempo ele se considera perseguido pela
própria divindade. Ele partilha suficientemente os preconceitos atrozes de sua
comunidade para que seu terror seja por isso agravado. O sistema religioso o aprisiona
numa formidável coerência e, em boa parte dos diálogos, Jó não consegue dissolvê-lo.
Eu temo todos os meus tormentos,
pois sei que não me terás por inocente (Jó 9,28).
Na maior parte dos diálogos, o deus de Jó não é o Iahweh bíblico. Philippe Nemo
demonstra bem isso. Seríamos tentados a remeter o leitor a Durkheim se este não
tivesse feito de seu deus sociológico um fantasma evanescente ao privá-lo do essencial,
separando-o de tudo o que o mecanismo vitimário lhe confere de selvagem, de
demente, de implacável, de coercitivo, de irresistível.
Toda comunidade em estado de ebulição contra um bode expiatório sempre
interpretou sua experiência como a epifania divina por excelência. E o próprio bode
expiatório, incluindo aí o bode expiatório excepcional que é Jó, só consegue se libertar
parcialmente de tal interpretação: grande desvantagem na batalha que ele trava para
provar sua inocência. Ele mesmo o diz. Os argumentos dos homens o oprimem menos
do que a ideia de uma sanção divina por trás das acusações humanas.
Mesmo o paralelo do processo totalitário aqui deixa a desejar. Ele nos levaria a
minimizar o poder de conformismo que atua sobre Jó. Nas sociedades da violência
religiosa, não é uma ideologia, por mais tirânica que possa ser, que congrega os homens
contra o bode expiatório, mas uma poderosa experiência do sagrado, consolidada por
uma tradição imemorial. Essa visão parece tão coercitiva quanto a evidência científica
em nossos dias.
Onde foi parar a audácia de Jó, que parecia tão grande há pouco? Diríamos que ela
derreteu como gelo. No entanto, ela subsiste. Apesar das fraquezas que acabo de
descrever, Jó jamais se dá por vencido no que diz respeito a sua inocência. Seu
esmorecimento não dura, e até o fim ele não admitirá confessar-se culpado. Seu último
discurso está impregnado de uma certeza inabalável.
Meia vitória: sendo incapaz de atacar de frente a noção do divino que o destrói, Jó
recorre à arma dos fracos: ele contesta.
Não podendo rejeitar esse deus como um todo, ele pode repudiar alguns de seus
fragmentos e aspectos diversos, subverter e minar a autoridade sagrada em aspectos
particulares. Na medida em que o colocam na posição de acusado, ele coloca a
divindade na de acusação. Ele critica sobretudo a justiça divina.
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Contra esse deus social que lhe parece inadmissível, mas que continua sendo para
ele o único imaginável, Jó tem como única escapatória a revolta. Ele acusa esse deus de
entregá-lo “a injustos”, de “jogá-lo nas mãos dos ímpios”, sem motivo algum, e sem
deixar-lhe a menor possibilidade de se defender.
Ele não é homem como eu a quem possa dizer:
“Vamos juntos comparecer em julgamento”.
Não existe árbitro entre nós,
que ponha a mão sobre nós dois
para afastar de mim a sua vara
e rechaçar o medo de seu terror!
Então lhe falaria e não teria medo,
pois eu não sou assim a meus olhos (9,32-35).
Já tenho tédio à vida,
darei livre curso ao meu lamento,
falarei com a amargura da minha alma.
Direi a Deus: não me condenes,
explica-me o que tens contra mim.
Acaso te agrada oprimir-me,
rejeitar a obra de tuas mãos
e favorecer o conselho dos ímpios? (Jó 10,1-3).
Em seus momentos de maior desespero, Jó se esforça para seduzir seus amigos e
para introduzi-los numa espécie de aliança contra a própria divindade. Ele se esforça
para afastar seus amigos da causa divina, que eles defendem, segundo ele, mediante
argumentos mentirosos. De qualquer maneira, Deus não precisa deles.
É para Deus que proferis palavras injustas,
para ele esses propósitos mentirosos?
Tomais assim seu partido?
É para Deus que pleiteais? (Jó 13,7-8).
Encontramos sempre o mesmo esforço para dissociar essas duas entidades
inseparáveis que são o deus e a comunidade unidos contra ele, e sempre o mesmo
insucesso. Como Jó conseguiria desagregar indivíduos tão imitativos e tão
comprometidos com uma causa que ele reconhece a cada instante, implícita e
explicitamente, como sendo do próprio deus?
Incapaz de colocar em dúvida a existência desse deus mimético e vitimário, Jó ataca
freneticamente sua pretensa justiça. Ele constata que o deus do bode expiatório é
injusto com ele, o indivíduo chamado Jó, mas não se contenta em falar particularmente
de seu caso, pois compreende bem que, ao limitar-se a si mesmo, não convence
ninguém. Assim, ele universaliza seu raciocínio.
(...) deixa a terra em poder do ímpio
e encobre o rosto aos seus governantes:
se não for ele, quem será então? (Jó 9,24).
Ao invés de ver a justiça por toda parte, como ocorre com Elifaz no grande trecho
sobre a “retribuição” que citei acima, Jó vê injustiça por todo lado. Ele inverte o
esquema do deus social. Essa inversão se explica facilmente no contexto do ataque
formidável, mas às vezes simultaneamente superficial e confuso, que Jó faz ao sistema
vitimário em seu conjunto.
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Por que os ímpios continuam a viver,
e ao envelhecer se tornam ainda mais ricos?
Veem assegurada a própria descendência,
e seus rebentos aos seus olhos subsistem.
Suas casas, em paz e sem temor,
a vara de Deus não as atinge.
Seu touro reproduz sem falhar,
sua vaca dá cria sem abortar.
Deixam as crianças correr como cabritos,
e seus pequenos saltar.
Cantam ao som dos tamborins e da cítara
e divertem-se ao som da flauta.
Sua vida termina na felicidade,
descem em paz ao Xeol (Jó 21,7-13).
Jó também ironiza o tema da boa morte reservada apenas aos justos. Esse tema
acompanha a ideia da retribuição como sua sombra e torna completamente manifesto,
ao que me parece, o enraizamento desta no processo vitimário.
Morrer bem é morrer o mais tarde possível, na “fartura de dias”, mas
principalmente morrer rodeado pela consideração de todos, possuindo até o fim a
estima dos próprios concidadãos, sem a qual a vida não dura muito tempo e, de
qualquer maneira, não vale a pena ser vivida. Esse tema está muito presente em
diversos textos, bíblicos e não bíblicos, para não enraizar-se num vago temor de acabar
mal. Ter um triste fim nem sempre é morrer linchado, sem dúvida, mas morrer
abandonado e desprezado por todos, por meio de uma morte que não pode ser
diferente desse abandono e desse desprezo.
Na época em que o povo o adorava, Jó acreditava que essa adoração o
acompanharia até a morte e que ele jamais perderia seu prestígio. Ele o diz em todas as
letras:
Quem me ouvia falar felicitava-me,
quem me via dava testemunho de mim;
(...)
E pensava: “Morrerei no meu ninho,
depois de dias numerosos como a fênix (...)
minha honra ser-me-á sempre nova,
em minha mão o meu arco retomará força” (Jó 29,11-20).
Morrer bem, para um chefe do povo, é morrer de modo bem diferente de um bode
expiatório: venerado até a morte. Para os poderosos deste mundo, para os homens em
cuja direção converge o mimetismo invejoso de mil rivais, o tema do prestígio intacto e
da multidão numerosa nas cerimônias fúnebres tem muita importância para não
sugerir o temor de acabar como “homem perverso”.
Jó considerou-se destinado a morrer bem; acreditou na retribuição por tanto tempo
quanto na fidelidade de seus admiradores, mas a partir de agora já não acredita mais.
Não podemos nos espantar ao ver um Jó repudiado por seu povo combater a ideia de
uma equivalência entre a simpatia popular e o mérito real de um indivíduo. De acordo
com o novo Jó, o ímpio desfruta das vantagens reservadas automaticamente ao justo
por meio de um sistema vitimário ainda intacto:
Quem lhe reprova sua conduta
e quem lhe dá a paga peloque fez?
É conduzido ao sepulcro,
91
e se monta guarda sobre seu túmulo.
Leves lhe são os torrões do vale.
Atrás dele toda a população desfila (Jó 21,31-33).
Nesse mundo invertido, os maus acabam bem e os justos, mal. Esse gênero de
discurso não encontra nenhuma reverberação em meio aos amigos, é claro. Eles
sustentam a prova de que Jó está enganado, prova irrefutável: a vítima é Jó.
Como os três amigos estão sempre de acordo com a multidão, o veredicto da
multidão, para eles, é responsável pela justiça ou a injustiça dos indivíduos. Portanto,
eles nunca viram e nunca verão um ímpio ter uma boa morte ou um justo que tivesse
um triste fim. Tudo é sempre perfeito, devo repetir, para uma humanidade mistificada
pelas erupções periódicas de sua própria violência unânime...
O mal só revela seu caráter intratável neste mundo a partir do momento em que o
mecanismo vitimário é contestado, abalado. Portanto, minha leitura é compatível com
a de Philippe Nemo, que eu desejaria somente um pouco mais atento à
responsabilidade dos homens nos sofrimentos do ídolo repudiado.
92
19
MEU DEFENSOR ESTÁ VIVO
Não vemos ainda nenhuma repercussão sobre o plano religioso da audaciosa revolta
do bode expiatório. Em todas as passagens já citadas, a religião de Jó se mantém
prisioneira do mimetismo vitimário. Deus não deixa de ser para Jó o que ele é para
todos que o rodeiam: a máquina registradora das unanimidades violentas.
Se não houvesse nada além disso, seria necessário concluir que a audácia de Jó
permanece puramente “existencial”, sem eficácia propriamente religiosa. Mas há duas
exceções à regra que se desenha. Dois textos importantes fogem ao conformismo que
acabamos de observar.
De súbito, Deus se mostra atento aos clamores de Jó. Nele subjaz uma testemunha
de defesa, um defensor do Justo injustamente tratado. Talvez seja o próprio Jó, ou o
clamor de Jó que sobe até Deus. Os acusadores, os demônios, não são mais os únicos a
ser ouvidos. Deus dá ouvidos à vítima:
Tenho, desde já, uma testemunha nos céus,
e um defensor nas alturas;
intérprete de meus pensamentos junto a Deus,
diante do qual correm as minhas lágrimas;
que ele julgue entre o homem e Deus,
como se julga um pleito entre homens (Jó 16,19-21).
Esses versos não refletem mais a submissão mimética ao deus de violência, nem o
contrário, a revolta que perpetua o império desse deus. O desespero pela primeira vez
cede lugar à esperança. Isso não aconteceria se a própria concepção de Deus não tivesse
mudado.
Para observadores impregnados de valores bíblicos como nós, o que se passa aqui
parece tão banal, que dificilmente identificamos a novidade disso. Se eu enfatizei tanto
a presença obcecante do deus perseguidor por toda parte nos diálogos, mesmo nos
discursos de Jó, foi para ressaltar essa novidade, tornar palpável a transformação
religiosa que se opera nessas palavras que acabo de citar.
Vindo de uma vítima universalmente rejeitada, essa transformação não nos
surpreende. Privada de todo apoio da parte dos homens, a vítima se volta para Deus;
ela abraça a ideia de um Deus das vítimas e não permite que seus perseguidores
monopolizem a ideia de Deus. Vivemos num universo em que nada é mais fácil e mais
natural do que essa apropriação de Deus pela vítima.
Em nosso universo, diante da opinião pública, a posição mais vantajosa é quase
sempre a da vítima e todo mundo se esforça para ocupá-la, quase sempre sem
justificação real. Mas essa possibilidade de que todos usamos e abusamos, nós a
devemos à Bíblia. Os textos que lemos contribuíram potencialmente para produzi-la.
Neles percebemos um universo bem diferente, qual seja o da violência sagrada, que
mantém sua influência sobre a maior parte dos diálogos, incluindo também algumas
declarações de Jó. A solenidade das passagens em que essa influência se desfaz sugere
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que o autor tem a perspicaz consciência de enunciar coisas nunca antes ouvidas.
A comunidade unânime se considera defensora da justiça, sem provas nem
inquérito: seu próprio estupor sanguinolento se dá como manifestação divina. Dessa
comunhão, ninguém está excluído, como vimos, nem mesmo a vítima, desde que dela
justifique a violência e não seja estraga-prazer. Mas uma vítima que se defende até o
fim, uma vítima que impede essa comunhão e se opõe à divindade parece inconcebível.
E como é que ela pode, ainda assim, invocar simultaneamente o auxílio da divindade?
Jó não vai ao extremo de repudiar o deus dos perseguidores, mas instala junto dele
não o acusador, o diabo, que esse deus já é por definição, mas seu contrário, um
representante dos acusados, um advogado de defesa. Esse deus não se torna por isso
exclusivamente o deus das vítimas – o que ainda é impensável! –, porém, ele já não é
mais o deus apenas dos acusadores, apenas dos perseguidores. Parece-me que o texto da
Tradução Ecumênica da Bíblia (TEB)[1] torna essa dualidade visível, sugerindo uma
verdadeira oposição no âmago do divino:
Tenho agora uma testemunha nos céus,
possuo um fiador lá nas alturas.
Meus amigos fazem troça de mim,
mas os meus olhos pranteiam para Deus.
Defenda ele contra Deus o homem,
como o ser humano intervém por seu igual (Jó 16,19-21).
Este primeiro texto deixa o deus dos perseguidores e o Deus das vítimas um diante
do outro. Mas um segundo texto empurra para a frente o movimento que me parece
interrompido na metade do primeiro. Os dois aspectos da divindade dupla não podem
equilibrar-se, nem estabilizar-se. Eles são incomparáveis e incompatíveis. Três capítulos
adiante, o movimento recomeça e Jó dá um passo a mais em direção ao impensável: um
Deus das vítimas:
Eu sei que meu Defensor está vivo
e que no fim se levantará sobre o pó:
quando tiverem arrancado esta minha pele,
fora de minha carne verei a Deus.
Aquele que eu vir será para mim,
aquele que meus olhos contemplarem não será um estranho (Jó 19,25-27).
Desta vez, Deus está sinceramente do lado de Jó: ele intervém em favor da vítima,
mas somente depois da morte de Jó, possivelmente após a morte de todos os homens,
para fazer justiça àquele que foi injustamente condenado. Ao que tudo indica, no fim
dos tempos, entre Deus e o Justo maltratado se estabelecerá uma relação viva. Junto a
Deus, Jó estará em casa, será justificado e consolado de sua desventura.
Essas duas passagens constituem o ponto mais alto dos diálogos. A revelação da
vítima que proclama sua inocência lhes serve obrigatoriamente de base, já que, para
que se possa conceber um Deus das vítimas, é preciso abalar as certezas miméticas do
mecanismo vitimário. Mas isso permanece implícito. Não é possível encontrar nada,
em outro trecho dos diálogos, nem no resto do livro, que se eleve à altura desses dois
textos.
O deus que finalmente rompe o silêncio e responde a Jó “do seio da tempestade”
(Jó 38,1) não faz a menor alusão às questões postas por essas duas passagens ou pelos
protestos de inocência de Jó. Ele parece não compreender que Jó é a vítima de sua
94
comunidade, ou talvez finja ser. Jó, para ele, é um indivíduo que faz contestações
metafísicas sem razão válida. Por esse discurso, ele põe de lado toda a problemática do
bode expiatório. Esse deus coloca o problema da maneira enganadora que sempre
prevaleceu desde então: ele escamoteia tudo o que se refere às relações de Jó com sua
comunidade – melhor maneira de neutralizar a força subversiva do discurso de Jó. As
palavras permanecem, mas seu sentido se torna inacessível, ou quase. Isso é mais eficaz
do que reduzir Jó ao silêncio, por uma violência física muito visível.
Para fugir do pavoroso enxame das relações humanas, esse deus se refugia na
natureza. Ele dá a Jó uma longa conferência sobre o que se chamava antigamente de
história natural. Um pouco de astronomia, um pouco de meteorologia, muito de
zoologia. Esse deus adora os animais. Ele disserta abundantemente sobre o íbis, o galo,
o leão, o onagro, a camurça, o búfalo, o avestruz, o cavalo, o falcão e, finalmente, sobre
Beemot e Leviatã. Estes últimos são os dois grandes protagonistas dessa grande vitrine.
Eles seassemelham muito a um crocodilo e a um hipopótamo, ligeiramente retocados
pela inspiração mitológica.
A poesia desse conjunto de fábulas não deve nos dissimular que ele constitui a
demonstração de um poder irresistível. Esse deus mostra sua força para não ter de fazer
uso dela. Não é mais o deus dos amigos, que abertamente exercia seu terror contra os
bodes expiatórios. Ele não atiça mais os exércitos celestes contra o rebelde.
Ele recorre à astúcia e obtém ganho de causa: eis Jó finalmente dócil e silencioso,
cheio de admiração e terror pelo avestruz e o Leviatã. Cada um dos animais faz sua
pequena demonstração e o bode expiatório se declara aliviado de suas angústias. É
difícil levar essa encenação a sério. Todos os comentadores a criticam; no entanto, ela
exerce o seu papel na supressão do texto dos diálogos.
Após o fracasso dos três, e também de Eliú, o deus dos animais nada mais é do que
um reforço suplementar para uma nova abordagem do bode expiatório. A perseguição
não se direciona mais a Jó propriamente, mas às revelações precedentes que a astúcia
desse deus faz parecerem insignificantes e escolares. Os discursos de Jó se transformam
nessa armadilha da questão do Mal, sobre a qual a exegese universal permanece fixada
há milênios.
No âmbito textual, a operação que fracassa no âmbito da violência textual obtém
êxito completo. Sobre o plano religioso, esse deus é apenas uma variante menos
abertamente feroz do deus que o precedeu. Na medida em que não revela o mecanismo
vitimário, ele permanece apoiado sobre o primeiro.
Essa espécie de exibidor de ursos que se passa por Deus não tem nada a ver com o
Defensor invocado. O Jó que agradece obsequiosamente a esse charlatão não tem nada
a ver com aquele dos diálogos. É difícil ver aqui a legítima continuação dos diálogos e
declarar-se completamente satisfeito com a satisfação de Jó.
Assim como o prólogo e a conclusão, os discursos desse deus têm a única finalidade
de escamotear o essencial, tornar os diálogos ilegíveis e transformar o livro de Jó na
anedota burlesca que todo mundo recita mecanicamente.
O deus dos últimos discursos continua a ser o deus dos perseguidores, mas de
maneira menos visível, mais hipócrita do que o general atuando como chefe dos
exércitos celestes. Ele dissimula com habilidade sua atuação, com tamanha habilidade
que ele mesmo parece não mais saber o que pretende.
95
No lugar dos exércitos celestes, os únicos que permanecem são Beemot e Leviatã.
Somente o gosto desse deus pela força monstruosa ainda sugere indiretamente o que
mostrava de maneira muito ingênua o suplício da única vítima encurralada pelos
combatentes divinos.
Os discursos desse deus são tão indiferentes à verdadeira grandiosidade de Jó
quanto o prólogo e a conclusão. O que nenhum dos três amigos (nem o quarto) pôde
obter de Jó, essa reciclagem do deus perseguidor em deus ecológico e providencial
conseguiu. Jó aceita dizer tudo e mais um pouco. Certamente não se pode atribuir isso
ao autor dos diálogos.
Todos os acréscimos aos diálogos são violências feitas ao texto original, perseguições
vitoriosas – pelo fato de terem conseguido até os dias atuais neutralizar a revelação do
bode expiatório. Tudo o que não é Jó no livro de Jó, como a atmosfera de vingança em
torno dos diálogos, sem esquecer o imenso reforço das exegeses, esforça-se por maquiar
a mensagem essencial, falsificá-la ou, melhor ainda, enterrá-la novamente, suprimi-la
completamente.
Todos os acréscimos ao livro de Jó e esses acréscimos aos acréscimos constituídos
pela interpretação dominante (quase que exclusivamente voltada para aquilo que já a
anuncia e a ela se assemelha: o prólogo, Eliú, os discursos de Deus, o epílogo) oferecem
o equivalente textual dos exércitos “celestes”, vorazes sobre a única vítima. O bode
expiatório fala aqui pela voz de Jó; é ela que se deve sufocar: sempre por esse mesmo
esforço para finalmente tornar eficaz o mecanismo cujo funcionamento Jó impedia...
Esses acréscimos merecem todo o mal que se possa dizer deles. Mas também alguns
elogios. Eles agem como um cordão sanitário ao redor dos diálogos, uma espécie de
faixa para quimono que a posteridade jamais cessou de enrolar em torno do prodigioso
escrito, e o resultado não é apenas negativo.
A virulência de Jó nunca afetou as culturas influenciadas pela Bíblia tanto quanto
poderia ter feito, porém, por trás da espécie de revestimento que a abriga e a protege de
nós tanto quanto nos protege do verdadeiro Jó, essa virulência se manteve intacta.
Camuflando o poder subversivo de Jó, os acréscimos mistificadores permitiram que
o texto pudesse ser assimilado pela piedade geral, impedindo ao mesmo tempo que ele
não fosse rejeitado com horror, nem censurado, alterado e mutilado de tal modo que
seu sentido não mais pudesse ser recuperado. Protegendo-os de um contato muito rude
com um mundo hostil, servindo de shock-absorber[2] (se assim pudermos nos
expressar), as adições e comentários falsificadores viabilizaram a preservação de textos
que ninguém jamais lê, pois não têm nenhum sentido no contexto que a eles se deu. Se
seu alcance subversivo tivesse sido mais visível, eles possivelmente jamais teriam
chegado até nós.
Esses acréscimos e comentários têm por mérito não permitir a censura total dos
diálogos; seus autores desejam adaptar o texto às possibilidades de assimilação por eles
determinadas. Eles tornam Jó aceitável às diversas ortodoxias. Por outro lado,
descobrem nele um gênio que os supera, pelo que as manipulações, talvez as mutilações
sacrificiais que praticaram aí, têm um alcance limitado. Eles não querem apagar o
nome de Jó, mas moderar sua força assustadora. Eles lembram esses insetos que
paralisam sua vítima, mas se abstêm de matá-la, para conservar intacta uma substância
que mais tarde, muito mais tarde, fornecerá um alimento precioso a seus descendentes.
96
O epílogo dá fim ao bode expiatório nas vinganças pueris de um grande sucesso de
bilheteria hollywoodiano. Ele não vale mais do que o prólogo; entretanto, contém uma
frase marcante. Tendo falado severamente aos três amigos, Deus acrescenta que, em
atenção aos méritos de Jó, não guardará rancor deles, nem os castigará, “por não terdes
falado corretamente de mim, como o fez meu servo Jó” (Jó 42,8).
Somente Jó falou bem de Deus, aparentemente cobrindo-o de insultos,
denunciando sua crueldade e injustiça. Os amigos, no entanto, que jamais cessaram de
falar em seu favor, falaram mal dele. Deve-se ler nessa frase um julgamento profundo
sobre os diálogos em seu conjunto. Esse epílogo tem razão, decerto, mas por outro lado
é tão tímido e mistificador, que somos surpreendidos por sua audácia.
O único deus que Jó ataca é o deus dos linchadores. A conclusão não vê essa
distinção essencial; ela contribui o melhor que pode para torná-la invisível, porém,
nesse julgamento, poderia se dizer que ela a pressente.
Ainda que contribua para desfigurar um texto cuja genialidade a preocupa, essa
conclusão não ignora completamente tal genialidade, mas a homenageia. Ela não
compreende o que opõe Jó a seus amigos; nem vê o abismo entre o deus dos algozes e o
Deus das vítimas. Ela não pode concluir, como nós fazemos, que só o primeiro é alvo
dos ataques de Jó. Ela também não imagina que as revoltas de Jó se encontram
completamente de acordo com a inspiração bíblica.
Ao contrário de Claudel, que censurava Jó por suas blasfêmias, essa conclusão
prefere as oscilações de Jó ao conformismo dos amigos. Há aí uma efervescência
espiritual da qual ela não quer se separar completamente. Carecendo de potencialidade
exegética e de intuição mística positivas, essa conclusão é perspicaz. Penso que, em tal
perspicácia, é preciso reconhecer o que se chama o sentido da ortodoxia.
97
20
O RESGATE SANGRENTO PELA PERDIÇÃO DA
CIDADE
O deus dos perseguidores tem sua lógica, o Deus das vítimas deve ter a sua. Se o
concebêssemos com exatidão, o que diria ele aos homens, como se comportaria com
eles? Tentemos desenvolver a lógica desse Deus.
Certamente esse Deus desejaria pôr fimà religião da violência, à perseguição dos
inocentes. Como ele agiria em vista disso?
Primeiramente pensamos, sem refletir, que esse Deus, em sua onipotência, lançaria
mão de seus poderes divinos para impedir a violência e a injustiça. Se, por acaso, a
violência e a injustiça se produzissem ainda assim, ele poria fim a elas, restabelecendo
todas as coisas em seu estado anterior. Em suma, esse Deus das vítimas faria justiça às
honestas reivindicações de Jó. Ao invés de mobilizar seus exércitos contra o bode
expiatório, ele se mobilizaria contra os perseguidores.
A mitologia apresenta intervenções que parecem corresponder a esse esquema.
Vejamos, por exemplo, a intervenção de Zeus em favor do pequeno Dioniso, numa
versão do “caso Jó” em escala gigantesca. Em conjunto, os Titãs massacram e devoram a
criança, mas recebem um justo castigo: Zeus os pune e ressuscita o inocente. Deve-se
ver em Zeus o deus das vítimas? Com certeza não. Como todos os deuses gregos, Zeus é
um deus de vingança e violência.
Alguém poderá dizer que, ao menos uma vez, o inocente foi vingado e o perverso
punido, ao passo que no livro de Jó acontece o contrário. Mas com essa vingança, que
pode ganhar o inocente? E no caso de Jó, quem pode dizer onde se encontra a justiça?
Em que a causa de Jó, no caso de ser ganha pela violência, diferiria de Elifaz e de Eliú?
Que perseguidores não se consideram vingadores imaculados de vítimas inocentes?
Para que a vingança de Deus e a vingança dos homens se confundam absolutamente,
basta um pouco de mimetismo. É sempre Deus quem:
... aniquila os poderosos sem muitos inquéritos
e põe outros em seu lugar.
Conhece a fundo suas obras! (Jó 34,25-25).
O deus que vingaria Jó de todos os invejosos e o restabeleceria sobre o trono não se
distingue daquele que destrói os “homens perversos” ou do Zeus que aniquila os Titãs.
A justiça que reivindicamos em favor de Jó se diferencia pouco daquela que indivíduos
como Eliú e Elifaz celebram ao contar Jó entre os “homens perversos”. Desde que o
mimetismo de grupo intervenha [no processo], os “bons” saem vitoriosos e os “maus”
são punidos.
Mas, então, onde procurar o verdadeiro Deus das vítimas? Onde procurar o Deus
que poria fim a esses horrores? Entre os candidatos possíveis, deve-se certamente
mencionar a Atena de Eumênides. Fui justamente criticado por sua ausência em A
Violência e o Sagrado.
98
Em Eumênides, de Ésquilo, a lei de Lynch[1] está no coração da tragédia, como
também nos diálogos. É dela que precisamos nos livrar. Tarefa difícil, pois não apenas
entre os gregos, mas em toda parte, o homicídio coletivo produz os valores religiosos.
As Erínias não simbolizam de modo nenhum apenas o “remorso”, ou fenômenos
obsessivos sem causas externas, interpretáveis apenas psicanaliticamente. Elas
significam o que a própria tragédia diz, sem possibilidade de equívoco, e o que Ésquilo
confirma no texto que se segue, a vingança mais coletiva e social do que individual,
mesmo sendo obra de apenas um indivíduo. Orestes, por exemplo, age em nome da
cidade, completamente revoltada contra Egisto e Clitemnestra, que nada mais são do
que o poder de um momento, os ídolos de um instante. Eis mais uma vez “a rota antiga
dos homens perversos”, o processo descrito em Jó, sempre ignorado pelos psicólogos e,
o que é mais paradoxal, pelos sociólogos e, mais paradoxalmente ainda, pelos
helenistas, os estudiosos de Ésquilo.
As Erínias representam de modo muito explícito o homicídio coletivo e, para que
ele seja banido, é preciso que elas abjurem solenemente. Essa abjuração as transforma
para sempre em Eumênides, doces e fecundas. Atena se encarrega de consegui-la. Sem a
declaração dos poderes religiosos diretamente associados à violência fundadora,
qualquer modificação do sistema permaneceria ilusória. A mudança só seria aparente.
Eis a promessa das Erínias:
Que a terrível revolta,
de males insaciável,
jamais venha rugir nesta cidade.
Para que a terra encharcada pelo sangue negro
dos cidadãos não exija,
em sua cólera, o resgate sangrento
pela perdição da cidade.
Em comunhão de amor,
partilhemos alegrias;
com uma só alma odiemos.
É isso um maravilhoso remédio para os humanos.[2]
Esse texto é um documento excepcional sobre a violência fundadora. A palavra
revolta[3] traduz aqui o acontecimento ao qual os amigos de Jó aludem
incessantemente, com o qual o ameaçam de modo insistente, designando-o por meio
de “eufemismos” como “o Devastador” ou “a rota antiga dos homens perversos”. Trata-
se da intensificação da crise mimética, de toda a agitação popular que conduz ao
mecanismo vitimário, de todas as desordens e de todas as violências que preparam o
paroxismo do bode expiatório. Este último constitui o fundamento de uma definição
precisa: “o resgate sangrento pela perdição da cidade”.
Tudo aqui merece uma atenção extrema, mas sobretudo os dois últimos versos,
propriamente surpreendentes. Sem dúvida nenhuma, o poeta pensa no perigo de
desintegração que talvez correrá uma cidade livre das modalidades selvagens da
violência coletiva. Essa cidade estará privada ao mesmo tempo desse maravilhoso
remédio representado pelo ódio unânime? Ela não corre o risco de se decompor?
Podemos ver que Ésquilo tem perfeita consciência do que a violência coletiva traz à
cidade dos homens: em suas formas primeiras, que vão do canibalismo de Atreu e
Tiestes ao matricídio de Orestes – as tragédias da trilogia Oréstia tratam de tudo isso –
99
e em suas formas derivadas, às quais se deve doravante limitá-la. Para tranquilizar seu
público, ou tranquilizar-se a si mesmo, Ésquilo afirma que o ódio não vai desaparecer,
nem perder o poder de se tornar unânime, depois de ter cessado de se cristalizar sob a
forma primitiva simbolizada pelas Erínias.
Em suma, o princípio desse mundo pode se perpetuar sob outras formas que não as
mais horríveis, [quais sejam] a revolta interna e seu “resgate sangrento”. Portanto, não
há obstáculo sério à eliminação de tudo isso.
As formas horríveis fazem cada vez mais escândalo numa polis bem policiada e, de
qualquer maneira, sua fecundidade se esgotou. Todas as tentativas para pôr fim à
vingança fracassaram. Os homicídios sucedem aos homicídios de uma tragédia a outra,
sem jamais trazer a menor paz. É exatamente essa crise que obriga a violência a se
metamorfosear, a se perpetuar sob formas menos selvagens, mais adaptadas às
circunstâncias históricas, num universo renovado por formas judiciárias mais eficazes.
Ésquilo reconhece implicitamente o papel fundador do homicídio mitológico, pois
este permanece obscuramente presente nas formas “civilizadas” que devem substituir o
tipo de homicídio do qual a Oréstia contém formidáveis exemplos.
Se não houvesse essa continuidade, não conviria às Erínias definir esse universo
novo que dará o melhor lugar à alegria e ao amor, porém, não eliminará seu contrário:
o ódio.
Esse universo novo saberá se adaptar para voltar a fazer desse ódio uma força de
unidade, o maravilhoso remédio, idêntico e, no entanto, completamente diferente da
força terrível de divisão que ele [o ódio] constitui enquanto não for unânime. Ésquilo
apreende a importância substancial da unanimidade.
Aquilo que, dois versos acima, a definição do mecanismo apenas insinuava, os dois
últimos versos tornarão completamente explícito: o resgate sangrento põe fim à
perdição da cidade. Ele resgata pelo fato de, tornando unânime o ódio e fornecendo
aos homens o meio de odiar com uma só alma, propiciar-lhes o maravilhoso remédio
para a vida comum. Eis a catarse de Aristóteles em sua forma original. Trata-se agora de
passarmos às formas derivadas de que a tragédia evidentemente faz parte. Isso
primitivamente dá ao poeta trágico a autoridade de falar do modo como fala.
Não é possível expressar de modo mais magistral do que Ésquilo a tese da violência
fundadora e de suas formas derivadas. Toda a operação da origem cultural é tão visível
nele quanto nos diálogos de Jó. Sobre os aspectos dessa operação (a função social e
religiosa do ódio unânime, por exemplo), estas duasgrandes obras, a grega e a bíblica,
dizem a mesma coisa. Lembremo-nos do discurso de Jó sobre o “Tofet público”. A
convergência desses dois testemunhos leva a refletir.
Não podemos reprovar Ésquilo por ter, em relação a seus contemporâneos, as
mesmas ilusões de nossos racionalistas. Os atenienses não precisam se preocupar: eles
podem renunciar, sem refletir, às relíquias bárbaras do passado e não deixarão de
encontrar outros objetos para o ódio unânime. Talvez Ésquilo esteja pensando aqui na
guerra estrangeira.
Tornando-se para sempre as Eumênides, que na verdade elas já se tornavam no
passado, depois de cada resgate sangrento “obtido” e graças à unanimidade, as Erínias
não cessam de simbolizar o espírito da vingança e do ódio coletivos. Haverá mais
alegria e amor, eis a mudança. Haverá sempre ódio coletivo, eis a continuidade:
100
Em comunhão de amor,
partilhemos alegrias;
com uma só alma odiemos.
É isso um maravilhoso remédio para os humanos.[4]
Em nenhum lugar da Bíblia você encontrará a ideia de que a cidade dos homens
deva se conformar com a violência fundadora, dar-lhe espaço, com a desculpa de ser
isso “um maravilhoso remédio para os humanos”. Num movimento que se deve
qualificar como pré-totalitário, num sentido que me parece aplicar-se a certos diálogos
de Platão, Ésquilo se faz o pastor dessa violência. Também é esse o sentido profundo e
violento do pastor do ser de Heidegger. Não sei por que, mas essa expressão sempre me
fez pensar no lobo em pele de cordeiro da fábula. Por baixo da pele imaculada do
cordeiro sacrificial, uma pata escura se desvela.
A alma única do ódio: ou seja, o ódio que todos os cidadãos experimentam
simultaneamente, mas também e sobretudo o ódio que sentem por um único
indivíduo ou grupo de indivíduos. Ésquilo não diz isso claramente.
Tudo o que Ésquilo diz pressupõe a seleção de um bode expiatório, e mesmo de um
bode expiatório arbitrário, mas nem sua obra nem os gregos em geral o mencionam
diretamente. Não se pode prescindir de um bode expiatório para fazer funcionar o
sistema. Entretanto, nunca se trata dele enquanto tal, mas somente do sistema fundado
sobre ele.
Somente a Bíblia menciona a vítima enquanto vítima. De fato, a questão é apenas
essa. Nossas escolas de interpretação não se interessam por tal diferença, não mais do
que a maior parte dos exegetas religiosos. O clamor de Jó, o clamor incessante das
vítimas pode tornar a Bíblia insuportável a muita gente, talvez a todos os homens, sem
exceção.
Paradoxalmente, só Nietzsche presta atenção à voz dessas vítimas. Mas ele só faz isso
para acabrunhá-lhas ainda mais, e acusá-las de ressentimento.
A vingança interiorizada, a vingança recalcada dos péssimos cristãos é certamente
um mal terrível, mas é preciso ser a criança mimada da Bíblia e do helenismo, no
sentido de Ésquilo, é preciso realmente ter esquecido o gosto do sangue negro no pó da
terra para procurar no retorno à vingança real, como faz Nietzsche, consciente ou
inconscientemente, o novo remédio maravilhoso contra o ressentimento. Nietzsche
inverte Ésquilo de maneira desvairada. Nietzsche realmente é louco, mas ninguém se
dá conta disso num mundo que faz de tudo para pegar sua loucura.
Confrontando Jó e Ésquilo, somos conduzidos às mesmas conclusões de Jó e
Sófocles: a mesma perspicácia, no que diz respeito à violência fundadora; não obstante,
entre os gregos a comunidade sempre predomina, e jamais a vítima individual.
Os dois grandes atalhos de Jó em direção ao Deus das vítimas não têm igual entre os
gregos. Como disse, eles estão isolados do próprio livro de Jó. Tudo o que os rodeia
conspira para reduzir seu alcance. O deus que supostamente responde a Jó no final do
livro representa uma espécie de retirada estratégica, ao estilo das Eumênides, um novo
esforço para restabelecer um sistema sacrificial que Jó descreditou e que não pode se
restabelecer sob a forma do linchamento, ao estilo de Elifaz. Não é o Deus das vítimas
que responderia à perseguição, fazendo do bode expiatório um riquíssimo criador de
animais.
101
A conclusão do livro de Jó desperta em nós um desejo de revanche que se considera
moralmente superior, porque vence um bode expiatório que não deu certo, mas isso
nada mais é do que uma versão abrandada e invertida dos exércitos celestes. Não basta
celebrar as vítimas, chorar ruidosamente sobre elas, como sabemos fazer tão bem, ao
mesmo tempo em que nos proclamamos “nietzschianos”, para nos livrarmos do sistema
de ação e de representação fundado sobre o bode expiatório. Ao contrário, é pela
atividade infinita das substituições, atenuações e transfigurações sutis, tanto quanto das
inversões cheias de astúcia, que o sistema expiatório conseguiu se manter, chegando até
nós, dominando ainda nosso pensamento, fazendo-nos crer em sua inexistência.
O deus de Beemot e de Leviatã se faz passar pelo Deus dessa vítima inocente que é
Jó; mas ele continua a ser o deus dos perseguidores, o deus das versões modernizadas
de Elifaz, ou seja, o deus de praticamente todo mundo, exatamente como as
Eumênides continuam a ser as deusas da vingança, depois de serem recicladas na
civilização. Não se deve superestimar esse progresso, como se fez antigamente, depois
de Ésquilo; nem subestimá-lo, como frequentemente faz a intelligentsia contemporânea
atrás de Nietzsche.
Ainda não encontramos em nenhum lugar o Deus das vítimas pelo qual Jó anseia.
A verdadeira grandiosidade de Jó, como também a dos Salmos, está no fato de que, ao
lado do anseio por vingança, que não desapareceu, existe nesses textos um anseio pelo
Deus das vítimas. Jó dá início a algo que permanece inacabado.
Talvez esta expressão, o Deus das vítimas, seja apenas um artifício. Afinal, que pode
significar o Deus das vítimas, o Deus dos fracos e dos oprimidos? Ao fim de nosso
estudo sobre Jó, vemos as dificuldades extraordinárias que implica essa noção.
102
21
O DEUS DAS VÍTIMAS
Existe um candidato explícito ao papel de Deus das vítimas: o Deus dos Evangelhos.
O Pai envia seu Filho ao mundo para defender as vítimas, os pobres, os deserdados. No
Evangelho de João, Jesus designa o Espírito de Deus e se designa a si mesmo como um
Paráclito – termo que significa o advogado de defesa num tribunal. É preciso aproximá-
lo da palavra que a Bíblia de Jerusalém traduz por “defensor”, no último texto de Jó
que mencionei, o hebraico “goel”, um termo jurídico que significa algo semelhante.
Jesus é sistematicamente apresentado como o Defensor das vítimas. Ele afirma que
não podemos ir em auxílio da menor delas sem vir em auxílio dele, Jesus. Não
podemos recusar essa ajuda sem recusá-la a ele.
O Deus dos Evangelhos é o Deus das vítimas? O fato de o mesmo título ser exigido
não quer dizer que ele seja merecido. Convém examinar se os Evangelhos
verdadeiramente desenvolvem a lógica até aqui inencontrável desse Deus.
Como vimos, um Deus das vítimas não pode impor sua vontade aos homens sem
deixar de ser ele mesmo. Ser-lhe-ia necessário recorrer a uma violência mais violenta do
que aquela dos perversos. Ele voltaria a ser, assim, o deus dos perseguidores, tendo
supostamente jamais deixado de sê-lo. O verdadeiro Deus das vítimas, todos os
perseguidores pensam conhecê-lo, confundindo com ele a divindade persecutória que
lhes é comum.
Se existe um Deus das vítimas, não podemos contar com ele para estabelecer entre
nós um estado de coisas tal, que os homens se coloquem de acordo para defini-lo como
justo. Ou então, a concordância entre os homens se assenta sobre péssimas razões.
Mesmo pacífico, ou tão pacífico quanto possível, seu entendimento é constituído de
mimetismo. Mesmo justa, tão justa quanto possível, sua injustiça é constituída de
vingança, ou seja, de mimetismo uma vez mais.
Ao mostrar que a justiça não reina no mundo, ao dizer que a retribuição – no
sentido dado por Elifaz – não existe para a maior parte dos homens, Jó pensa atacar a
ideia mesma de Deus. Mas Jesus, nos Evangelhos, faz suas, de modo bastante explícito,
todas as críticas de Jó contra a retribuição. E ele não chegavisivelmente ao ateísmo.
Nesse momento, vieram algumas pessoas que lhe contaram o que acontecera com os galileus, cujo sangue
Pilatos havia misturado com o das suas vítimas. Tomando a palavra, ele disse: “Acreditais que, por terem
sofrido tal sorte, esses galileus eram mais pecadores do que todos os outros galileus? Não, eu vos digo;
todavia, se não vos arrependerdes, perecereis todos do mesmo modo. Ou os dezoito que a torre de Siloé
matou em sua queda, julgais que a sua culpa tenha sido maior do que a de todos os habitantes de Jerusalém?
Não, eu vos digo; mas, se não vos arrependerdes, perecereis todos de modo semelhante” (Lc 13,1-5).
Para a Bíblia de Jerusalém, “o ensinamento é claro: não há relação direta e precisa
entre falta e calamidade”.[1] Os ateus que retomam os argumentos de Jó contra a
retribuição estão menos distantes dos Evangelhos do que os cristãos decididos a
retomar os argumentos de Elifaz em favor dessa mesma retribuição. Não há
correspondência necessária entre os males que atingem os homens e qualquer
103
julgamento de Deus.
As perseguições são verdadeiras perseguições e os acidentes, verdadeiros acidentes.
Quanto às enfermidades hereditárias, são apenas enfermidades hereditárias. Pelo fato
de atraírem os perseguidores, os homens veem nas desgraças uma condenação divina.
Jesus rejeita esse tipo de religião. Aos discípulos que lhe perguntam quem pecou para
que um homem tenha nascido cego (seus pais ou ele próprio), Jesus responde: “Nem
ele nem seus pais pecaram, mas é para que nele sejam manifestadas as obras de Deus”
(Jo 9,2-3).
Todas as parábolas vão no mesmo sentido. Deus sempre representa nelas o papel do
mestre que não está por perto, do proprietário que viajou para longe, deixando o
campo livre para seus servos, que se revelam fiéis ou infiéis, eficazes ou tíbios. Ele
proíbe que se arranque o joio, ainda que seja para beneficiar o crescimento do grão de
trigo, ao passo que Ésquilo faz o contrário. Deus faz seu sol brilhar e sua chuva cair
sobre os justos, como também sobre os injustos. Ele não serve de árbitro nas discussões
entre os irmãos. Ele sabe como funciona a justiça humana.
Isso quer dizer que o Deus das vítimas é uma espécie de Deus desocupado, que abre
mão de intervir no mundo: o deus otiosus, cujas marcas alguns etnólogos acreditam
encontrar acima dos deuses violentos em muitas religiões primitivas, o deus ao qual
não se fazem sacrifícios porque nada pode pelos homens?
De modo nenhum. Esse Deus não poupa nada para socorrer as vítimas. Mas se ele
não pode forçar os homens, pode o que então? Ele tentará primeiro persuadi-los. Ele
lhes mostrará que eles próprios se consagram ao escândalo por seus desejos que se
entrecruzam e se contrariam de tanto se imitarem.
Jesus recomendará aos homens que o imitem e procurem a glória que vem de Deus,
ao invés daquela que vem dos homens. Ele lhes fará ver que as rivalidades miméticas só
levam ao homicídio e à morte. Ele lhes revelará o papel do mecanismo vitimário no
sistema cultural a que pertencem. Ele nem mesmo lhes esconderá que eles permanecem
tributários de todos os homicídios coletivos cometidos “desde a fundação do mundo”:
os homicídios fundadores desse mesmo mundo. Ele lhes pedirá para se reconhecerem
filhos de Satanás, voltados para a mesma mentira de seu pai, o acusador, “homicida
desde o início”.
Jesus não convencerá quase ninguém. Sua revelação será recebida apenas para
despertar em seus ouvintes o desejo de abafá-la. Revelando a verdade, Jesus ameaça a
dominação de Satanás, o acusador, que reativará contra ele seu procedimento maior: o
mimetismo unânime da acusação, o mecanismo do bode expiatório. Ele acabará se
tornando vítima do mesmo poder satânico, acusador e persecutório que domina o
mundo e que matou antes dele todos os profetas desde Abel, até a última vítima
mencionada na Bíblia.
De fato, é exatamente isso que acontece. Todos o odeiam com uma só alma. Como
Jó, ele é condenado sem ser culpado e é ele, desta vez, que serve de resgate sangrento
pela perdição da cidade. Eis que se reproduz, mais uma vez, no momento da Paixão, “a
rota antiga”, o acontecimento de que estamos falando desde o início.
Se o Deus das vítimas intervém em favor delas no mundo dos homens, ele não pode
“ser bem sucedido”. Só pode ocorrer a ele o que ocorreu a Jesus, o que ocorreu a Jó e a
todos os profetas. Jesus acabará por se encontrar no lugar de Jó, porém, não por razões
104
fortuitas. Ele também é inocente, mais inocente que Jó, contudo, ao revelar (como de
fato o faz) o sistema do mundo, ele ameaça os tribunais de modo ainda mais grave que
Jó. O fato de Jesus se encontrar em posição de vítima única decorre de uma lógica
rigorosa.
Logo, para que se possa ver essa lógica, é preciso pensar nas implicações da
unanimidade violenta no momento em que ela se produz. Nesse momento
fundamental para a cultura humana, nada mais há do que perseguidores e, diante
deles, uma vítima. Não há uma terceira posição, nenhuma escapatória. Onde estará o
Deus das vítimas se nesse momento ele está entre os homens? Decerto, ele não se
encontrará do lado dos perseguidores; portanto, é preciso que ele seja a vítima. Ao
invés de infligir a violência, o Paráclito preferirá submeter-se a ela.
Jesus Cristo é o Deus das vítimas, primeiramente pelo fato de participar até o fim da
mesma sorte delas. À medida que se reflete sobre isso, percebe-se que as coisas não
poderiam ser diferentes. Se a lógica desse Deus não tem nada a ver com a lógica do
deus perseguidor, com o mimetismo mistificador, o único modo de intervenção
possível no mundo é aquele que os Evangelhos ilustram.
Segundo a lógica do mundo, que é sempre a lógica do deus perseguidor e de seus
correlatos, a derrota [nesse caso] é total. Seria melhor não intervir do que escolher esse
modo de intervenção. Esse Deus é pior do que otiosus: é o mais miserável, o mais
insignificante, o mais impotente dentre todos os deuses. Não é de se espantar que seu
“impacto” no mundo diminua depois de os homens o confundirem um pouco menos
com o deus de Elifaz.
Esse Deus não pode agir com “mão forte”, de tal modo que os homens a
considerariam divina. Quando os homens acreditam prestar-lhe homenagem, quase
sempre é o deus dos perseguidores que estão honrando, sem saber. Esse Deus não reina
sobre o mundo. Não é seu verdadeiro nome, nem Ele mesmo que os homens
santificam. Eles não fazem sua vontade.
Será que estou exagerando a impotência desse Deus? O que estou fazendo é
retomar, uma a uma, as palavras que Jesus dirige ao Pai:
Santificado seja o vosso nome.
Venha a nós o vosso reino.
Seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu.
Essa oração não teria sentido se a vontade divina, sem deixar de ser divina, no
sentido do Deus das vítimas, sem deixar de ser ela mesma, pudesse romper o obstáculo
que a vontade dos homens lhe opõe.
Essas palavras são orações. Deus não reina, mas reinará. Ele já reina para aqueles
que o receberam. Por intermédio daqueles que imitam Jesus e imitam o Pai, o Reino já
está entre nós. É uma semente que vem de Jesus e que o mundo não pode expulsar,
ainda que se esforce para fazê-lo.
Outra prova de que Deus não pretende reinar sobre o mundo: ele nos revela o rei
deste mundo e não é ele [Deus] o acusador e o perseguidor, mas sempre seu adversário
voraz, Satanás. À medida que se reflete sobre isso, compreende-se que o defensor das
vítimas, o Paráclito, tem como adversário o príncipe deste mundo, mas não se opõe a
ele pela violência.
***
105
Nos Evangelhos, o ensino de Jesus e a Paixão constituem o rigoroso
desenvolvimento de uma lógica paradoxal. Tudo o que torna um ser divino aos olhos
dos homens, como o poder de seduzir ou de coagir, a aptidão para impor-se de modo
irresistível: Jesus não o deseja.
Poderíamos dizer que ele quer exatamente o contrário. Na realidade, ele não deseja
a derrota, mas não se esquivará a ela se apenas esse meio lhe permitir permanecer fiel
ao Logos do Deus das vítimas. Não é o gosto pela derrota que secretamente o motiva,
mas a lógica do Deusdas vítimas que o conduz obrigatoriamente à morte.
Essa lógica penetra os Evangelhos, do início ao fim. Sua atuação é apresentada
como manifestação do divino num sentido ainda oculto, radicalmente oposto ao
sagrado dos perseguidores. Encontramo-nos então diante de um outro aspecto
paradoxal do Logos das vítimas.
Num mundo violento, o divino puro de toda violência se manifesta
obrigatoriamente por intermédio do acontecimento que já fornece ao sagrado violento
seu mecanismo gerador. A epifania do Deus das vítimas segue a mesma “rota antiga” e
passa exatamente pelas mesmas fases que todas as epifanias do sagrado perseguidor. Em
consequência disso, para o olhar violento, o Deus das vítimas não se distingue em
hipótese alguma do deus dos perseguidores. Nossa pseudociência das religiões repousa
inteiramente sobre a convicção de que não há diferença essencial entre as diversas
religiões.
Essa confusão afeta o cristianismo histórico e o determina até certo ponto. Em
nossa época, o anticristianismo se esforça para perpetuá-la. Ele se agarra
desesperadamente à teologia mais sacrificial para não perder o que o nutre, para
considerar-se sempre habilitado a dizer: o cristianismo é só mais uma religião de
violência entre outras, ou mesmo a pior dentre todas.
O Logos do Deus das vítimas está praticamente invisível aos olhos do mundo.
Quando os homens refletem sobre o modo como Jesus leva a cabo sua obra, eles veem
quase exclusivamente sua derrota, que eles inclusive consideram, cada vez mais, como
definitiva, irrevogável.
Longe de negar essa derrota, a grande teologia cristã a afirma, mas para logo em
seguida convertê-la em esplendorosa vitória. A morte se transmuda em ressurreição. O
Logos banido “dá poder de se tornarem filhos de Deus” a todos aqueles que não o
expulsam, a todos aqueles que o “recebem” – que recebem a ele ou, o que dá na
mesma, a toda vítima rejeitada pelos homens. A expulsão do Logos é o princípio do fim
para o “reino de Satanás”. Na verdade, a derrota no mundo significa a vitória sobre o
mundo.
Para a sabedoria do mundo, essa transformação nada mais é do que um artifício
enganador de fácil desmistificação. Trata-se, dizem, de um “fastasma compensador”,[2]
ou seja, de uma resposta imaginária a um real insuportável. Muitos cristãos
“modernos” estão mais ou menos abertamente de acordo com essa interpretação.
Se a derrota de Jesus se convertesse em vitória apenas num mundo à parte, a
questão seria exclusividade da crença ou da descrença religiosa. Na perspectiva que é a
nossa, nada haveria a acrescentar.
Mas os Evangelhos dizem que o próprio mundo está ameaçado, que o reino de
Satanás será desagregado. Se essas palavras permanecem de acordo com o Logos do
106
Deus das vítimas, elas deveriam significar algo no contexto de nossas análises.
Podemos mostrar, ou antes acabamos de mostrar, que essas palavras efetivamente
significam algo no domínio ao qual nos consagramos neste momento, qual seja a
análise comparada dos textos religiosos. Elas são algo completamente diferente da
resposta imaginária postulada por observadores cegos ao Logos das vítimas. A pretensa
desmistificação deles é apenas mais uma mistificação vitimária.
A partir de agora, sobre o plano dos textos etnológicos e religiosos, a transformação
vitoriosa da Paixão corresponde para nós a algo palpável, algo racionalmente
perceptível. Para que se possa tomar consciência disso, basta voltar por um instante ao
procedimento exegético que está prestes a se concluir e extrair dele o resultado
essencial.
No coração de todo o religioso, encontramos sempre um único acontecimento
central, gerador de toda significação mítica e de toda ação ritual: a mudança brusca de
uma multidão que transforma em bode expiatório aquele que ela adorava ontem e que
talvez adorará amanhã, desde que sua morte garanta um período de paz à comunidade.
Esse acontecimento central é decisivo e, no entanto, tão pouco conhecido que não
existem palavras para designá-lo. Nossas ciências do homem jamais o descobriram. Para
falar dele, recorremos a perífrases como “rota antiga dos homens perversos... o resgate
sangrento pela perdição da cidade...”.
Nos Evangelhos, esse acontecimento também aparece, porém, não de maneira
fugidia: não somente muito bem descrito, mas nomeado. Ele se chama Paixão. Vítima
perfeita, porque sempre falou e sempre se comportou em conformidade com o Logos
do Deus das vítimas, Jesus nos traz a única imagem perfeita do acontecimento que
figura por trás de todas as cristalizações míticas e religiosas do planeta.
As passagens dos diálogos que citei formam uma sequência fenomenal bastante
análoga àquilo que se nomeia a “vida pública” de Jesus, essa “vida pública” da qual a
crucificação evidentemente faz parte.
Jó e Jesus diferem em muitos aspectos, mas se assemelham pelo fato de um e outro
dizerem a verdade sobre o que lhes advém. A semelhança se situa menos nos
indivíduos do que na relação desses indivíduos com os homens que os rodeiam. Por
diferentes razões, mas que chegam ao mesmo resultado, acontece com Jó, diante de seu
povo, algo semelhante ao que ocorre com Jesus, diante das multidões de Jerusalém e
das diversas autoridades que acabam por crucificá-lo.
Assim como Jó, Jesus conhece um período de grande favor. A multidão quer fazer
dele uma espécie de rei, até o dia em que, por mimetismo persecutório, ela se volta
contra seu ídolo, com a mesma harmonia que a comunidade de Jó [se volta] contra o
seu. A hora da unanimidade violenta soou: a hora da solidão absoluta para a vítima. Os
amigos, os parentes, os mais chegados, os que lhe deviam reconhecimento, aqueles que
Jesus mais ajudou, aqueles que curou, aqueles que salvou, os discípulos mais estimados
se afastam dele e, ao menos passivamente, participam da agitação social.
Nos primeiros textos que citei, os vizinhos de Jó, seus servos, seus escravos e mesmo
sua esposa o criticam, abandonam e maltratam. Sua angústia é mais ou menos a mesma
de Jesus. A tentativa das autoridades, representadas nos diálogos pelos amigos, para
fazer Jó confessar a própria culpa também é a mesma; o mesmo esforço para tornar
mais inabalável ainda o ajuntamento hostil contra o suspeito.
107
Para ver as semelhanças estruturais das duas relações, deve-se ver o que elas têm em
comum e renunciar às diferenças anedóticas e locais. (Continuo a falar dos
acontecimentos e não dos indivíduos.)
Introduzir o texto cristão na interpretação dos diálogos produz logo de cara
resultados decisivos. A inutilidade das úlceras e do rebanho perdido se revela. A
originalidade formidável dos diálogos se torna mais visível. O enigma desse texto se
ilumina. E os Evangelhos põem a nossa disposição tudo aquilo de que se tem
necessidade para resolver esse enigma, a saber, a Paixão, sempre a Paixão que faz
atuarem as articulações essenciais do texto, e revela a verdadeira natureza do drama
vivido por Jó.
Tudo aquilo que os leitores de Jó conseguem não ver, há mais de dois milênios,
com a ajuda do prólogo, do epílogo etc., os relatos da Paixão nos obrigam, ou melhor,
nos obrigariam a ver, se não conseguíssemos, mais uma vez, nos escudar contra sua
mensagem.
Sem dúvida, mas o sentido, desta vez, acaba por se impor. Podemos muito bem não
ver o sentido da prova submetida à leitura do livro de Jó. Entretanto, depois de
perceber as semelhanças entre a experiência de Jesus e as de Jó bode expiatório, não
podemos mais esquecê-las.
Os relatos da Paixão reúnem num amálgama concentrado todos os fios de uma
estrutura que estão um pouco dispersados em Jó. Nos Evangelhos, não há mais
rebanho para nos distrair, nenhum avestruz nem hipopótamo para brincar de esconde-
esconde com o verdadeiro problema.
Se acabo de reconhecer em Jó a mudança brusca da multidão contra seu antigo
ídolo, a aglomeração unânime contra o bode expiatório, o duvidoso processo feito para
sufocar os protestos de Jó; se coloquei esses aspectos em evidência; se os salientei, para
finalmente extrair o drama social e religioso daquilo que os envolve: é porque desde o
início fuiguiado pelos relatos da Paixão.
Não quero dizer com isso que, durante essas análises, a Paixão estava explicitamente
presente em meu espírito. Não é necessário. Quer queiramos, quer não, a Paixão faz
parte de nosso horizonte cultural: ela fornece o “modelo estrutural”, como diriam os
cientistas, a partir do qual os diálogos se tornam sempre mais legíveis.
Introduzir a Paixão no livro de Jó implica logo em seguida isolar o texto essencial, o
dos diálogos, não mais ver as excrescências que se enxertam como verrugas no rosto de
Jó e nos impedem de perceber sua beleza, expulsar tudo o que parasita a mensagem
acerca do bode expiatório, tudo o que camufla a culpa de todos os homens, nossa
própria culpa na caça aos bodes expiatórios, o princípio satânico sobre o qual repousa
não somente essa comunidade, mas todas as comunidades humanas.
***
Existe uma dimensão antropológica do texto evangélico. Eu nunca disse que ela
constitui a totalidade da revelação cristã, mas penso que, sem ela, o cristianismo não
pode verdadeiramente ser ele mesmo, de modo que permanece incoerente em
domínios nos quais não deveria sê-lo. Na ausência dessa dimensão, perde-se um aspecto
essencial da própria humanidade de Cristo, de sua encarnação; acabamos por não ver
até o fim em Jesus a vítima dos homens que nós todos somos, e ficamos expostos a
sempre recair na religião persecutória.
108
Para interpretar os diálogos como se deve, o que já disse, é necessário optar, entre a
vítima e os perseguidores, pela vítima, identificar-se com ela, tomar o que ela diz por
verdadeiro... Tal qual chegou a nós, o livro de Jó ainda não nos força tanto a ouvir o
lamento de Jó: uma diversidade de coisas nos distrai dos textos cruciais, deformando-
os, neutralizando-os, com nossa secreta cumplicidade.
Desse modo, precisamos de outro texto, de algo, ou melhor, de alguém para vir em
nosso auxílio: o texto da Paixão, Jesus Cristo – eis o que nos permite compreender Jó,
porque Cristo conclui o que Jó só consegue pela metade, e isso, paradoxalmente, é seu
próprio desastre no âmbito do mundo, essa Paixão cujo relato logo se inscreverá no
texto dos Evangelhos.
Para que o verdadeiro alcance dos diálogos apareça, em suma, é preciso fazer o que
os Evangelhos recomendam: prestar atenção à vítima, ir em seu socorro, levar em conta
o que ela diz. A exemplo do texto evangélico, é preciso fazer das lamentações de Jó o
ponto de apoio de toda a interpretação e então, logo se compreende por que Jó fala do
modo como fala; percebe-se seu papel de bode expiatório, o duplo fenômeno de
multidão, o mito dos exércitos celestes, a verdadeira natureza do mecanismo social e
religioso que se apressa para devorar mais uma vítima. Percebe-se que tudo se desenrola
e se organiza com um rigor extraordinário.
A leitura que faz do clamor de Jó o rochedo indestrutível da interpretação é a única
verdadeira, mas somente os Evangelhos tornam possível desenvolvê-la, somente o
Espírito de Cristo permite que se defenda a vítima; portanto, ele é verdadeiramente o
Paráclito.
É certo que desde sempre a maior parte dos intérpretes pressente que, para que se
faça justiça ao livro de Jó, é preciso tomar o partido do infeliz. Todo mundo, portanto,
tenta fazer-se defensor de Jó, identificar-se com ele, glorificá-lo.
Não é excessivo dizer que essa já é a finalidade dos acréscimos ao texto, porém,
todos eles falham nesse fim, por não compreenderem o papel da comunidade no
infortúnio de Jó. E atrás deles, os intérpretes também falham e continuarão a falhar,
enquanto não se dirigirem àquele a quem Jó já chama solenemente, no instante
supremo dos diálogos: o defensor que se encontraria junto a Deus, aquele a respeito de
quem o cristianismo diz ser o próprio Deus, o Paráclito, o advogado onipotente de
todas as vítimas condenadas à morte.
Falando assim, podemos ver claramente que não estamos sonhando, nem caindo
em “fantasmas compensadores”. Nos textos, os símbolos que manipulamos são reais,
na medida em que resolvem enigmas, inocentam vítimas, libertam prisioneiros e, de
modo particular, revelam que o deus deste mundo é de fato o acusador, Satanás,
homicida desde o princípio. Ao vir em socorro de Jó, reforçando a revelação dessa
vítima excepcional, a revelação desta vítima mais excepcional ainda que é Cristo
constitui um golpe fatal para um sistema do mundo que remonta em linha direta às
formas mais primitivas da violência contra os bodes expiatórios: a perseguição de Jó e o
homicídio de “Abel, o Justo”.
Na verdade, há séculos a Paixão se inverte em triunfo, sobre o plano da inteligência
cultural. Ela dá a rede de proteção que colocamos em volta dos textos persecutórios,
para impedi-los de transformar-se em mitologia sacrificial. Em nossa época, eis que toda
a cultura modernista, baluarte do anticristianismo, começa a se desagregar ao contato
109
do texto evangélico. Devemos todos os progressos reais que fazemos na interpretação
dos fenômenos culturais à única Revelação cujos efeitos prosseguem e se aprofundam
entre nós.
Longe de ser muito ridícula para merecer a atenção de nossos sábios,[3] como estes a
imaginam, a ideia cristã de que a derrota de Cristo se muda em vitória já se encontra
realizada no meio de nós por ocasião do desmoronamento da cultura marxista-
freudiana-nietzschiana, e da crise aguda de todos os valores que a era pós-cristã
acreditava opor vitoriosamente ao cristianismo. “A pedra que os construtores
rejeitaram tornou-se a pedra angular”.
A pertinência do texto cristão na interpretação de Jó sempre foi reconhecida,
secretamente, pela doutrina que faz da obra um livro “profético” (no sentido cristão),
um livro que anuncia e prefigura Jesus Cristo. A profundidade dessa doutrina aparece
quase que unicamente em suas primeiríssimas aplicações, as dos Evangelhos e das
epístolas de Paulo. À medida que se avança no tempo do cristianismo histórico e que
essas aplicações se multiplicam, na Idade Média, elas se tornam cada vez mais
superficiais.
O erro das leituras “alegóricas” consiste em contentar-se com semelhanças entre
simples palavras, nomes comuns e também nomes próprios, personagens isolados de
seu contexto e considerados figuras proféticas de Cristo, já que moralmente
exemplares.
Quanto mais se introduzia no conforto intelectual e material, mais a cristandade se
esquecia das relações miméticas entre os homens e os processos que delas resultam.
Donde a tendência dos antigos exegetas cristãos de fabricar um Jó imaginário, que se
considera prefiguração de Cristo por sua santidade moral, por suas virtudes, sobretudo
por sua paciência, quando na realidade Jó é a própria impaciência.
É fácil zombar da concepção cristã do [elemento] profético. E no entanto, como
todas as ideias autenticamente cristãs, a figura Christi conserva uma grande verdade,
mas uma verdade pouco a pouco descreditada e, em nossos dias, completamente
rejeitada pelos próprios cristãos, os únicos responsáveis por sua esterilidade relativa.
Eles não souberam tomar posse dessa ideia, concretamente, torná-la realmente
utilizável. Nesse aspeto, como em tantos outros, a impotência em manter o Logos do
Deus das vítimas em toda a sua pureza paralisa a revelação, contamina com violência a
não violência do Logos e faz deste uma palavra morta.
A verdade do “profetismo”, no sentido cristão, surge a partir do momento em que
se dá ênfase aos processos miméticos, mais do que às personagens sempre tratadas
como “figuras” de Cristo.
Jó anuncia Jesus em sua participação na luta contra o deus dos perseguidores. Ele
anuncia Cristo ao revelar o fenômeno vitimário tramado contra si, ao chocar-se contra
o sistema da retribuição e sobretudo ao esquivar-se brevemente à lógica da violência e
do sagrado, nos dois textos citados por último.
Jó vai longe no caminho que conduz de uma lógica a outra, de uma divindade a
outra. Mas não pode verdadeiramente oscilar de um sistema a outro. Portanto, a
solução que consiste em ver nele uma “prefiguração” de Cristo me parece a mais
profunda, desde que, evidentemente, essa concepção sejaapoiada por análises que
enfatizem exatamente aquilo que os Evangelhos recomendam enfatizar: as relações
110
entre os homens.
O “profético” se revela significativo dentro de uma atitude que nada tem de um
voltar atrás, de um retorno temeroso aos “valores tradicionais”, diante das ousadias da
crítica subversiva e desconfiada que o universo moderno praticaria. Para chegar
novamente ao texto cristão, é preciso, porém, radicalizar essa crítica – o que faz, em
minha opinião, a tese mimética e vitimária. Não se pode dizer que ela poupa os valores
estabelecidos. Não há nada nela de “piedoso”, no sentido tradicional do termo.
Nada é mais desconcertante, nem mais animador do que ver ressurgir com força
irresistível o que menos se esperava, exatamente ali onde ninguém esperava: o texto
cristão.
No Novo Testamento, e sobretudo em Lucas, o conhecimento do Cristo se realiza
frequentemente em duas fases. Há um primeiro contato, uma adesão primeira,
suscitada por um movimento de curiosidade, uma simpatia que permanece superficial.
Em seguida, vem o desencantamento e a desafeição. O discípulo mal convertido
acredita ter se enganado e se afasta. Esse movimento de recuo não será interrompido:
será verdadeiramente sem volta e, no entanto, restabelecerá aquele que se aflige ao
contato com a verdade – que, quanto melhor conhecida, mais transfigurada.
O eunuco da rainha Candace foi a Jerusalém para aprender sobre as Escrituras. De
lá ele volta desanimado, pois continua sem saber quem exatamente pode ser o Servo de
Iahweh citado no livro de Isaías: esse bode expiatório, injustamente condenado, que
salva a comunidade. Mas Filipe aparece e lhe explica que se trata de Jesus Cristo.
Depois de ser batizado por Filipe, o eunuco “prosseguiu na sua jornada com alegria”
(At 8,39).
Mesmo movimento no episódio de Emaús. Depois da Paixão, dois discípulos
deixam Jerusalém e, pelo caminho, conversam entre si sobre o esfacelamento de sua
esperança. Mesma atitude de desânimo cético e desconfiado em relação a uma
revelação cuja falência é plenamente confirmada. O esmorecimento mesmo suscita sua
própria transformação e, no momento destruidor e desconfiado da crítica, “o próprio
Jesus aproximou-se e pôs-se a caminhar com eles”, explicando-lhes as Escrituras. Mas
seus olhos “estavam impedidos de reconhecê-lo” (Lc 24,15-16).
Talvez compreendamos um dia que a história inteira do pensamento universal se
conforma ao modelo dessas duas histórias, e de uma terceira, igualmente narrada por
Lucas, que se parece com elas: a do filho pródigo.
Dentre esses três textos, o mais valioso, sem sombra de dúvida, para aqueles de nós
que passam muito tempo a comentar textos, a interpretá-los e compará-los, é o de
Emaús. Ele me parece orientado para o “trabalho do texto”. Ele não esquece a
recompensa desse trabalho, aquela que o intérprete recebe quando finalmente brilha a
luz, fria e mesmo implacavelmente racional num sentido, e exatamente o contrário ao
mesmo tempo, inadmissível aos olhos do mundo, louca, propriamente demente, já que
fala de Cristo, já que Cristo fala por ela, já que ela legitima intensamente as esperanças
que se afiguram as mais absurdas e, sobretudo em nossos dias, as mais recrimináveis.
Ela não sugere que nossos verdadeiros desejos serão realizados simultaneamente?
E disseram um ao outro: “Não ardia o nosso coração quando ele nos falava pelo
caminho, quando nos explicava as Escrituras?” (Lc 24,32).
111
Coleção ESTUDOS ANTROPOLÓGICOS
• Antropologia: Ousar para reinventar a humanidade, Juvenal Arduini
• Messianismo e modernidade: Repensando o messianismo a partir das vítimas, Luiz Alexandre S.
Rossi
• Aspectos incomuns do sagrado, Francisco García Bazán
• Dizer homem hoje: Novos caminhos da antropologia filosófica, Nunzio Galantino
• Antropologia e horizontes do sagrado, Aldo Natale Terrin
• O bode expiatório, René Girard
• O rito: Antropologia e fenomenologia da ritualidade, Aldo Natale Terrin
• O sacrifício, Cristiano Grottanelli
• A mentalidade primitiva, Lucien Lévy-Bruhl
• Prelúdio à história das religiões, Momolina Marconi
• A rota antiga dos homens perversos, René Girard
112
Direção editorial:
Zolferino Tonon
Assistente editorial:
Jacqueline Mendes Fontes
Tradução e Revisão:
Tiago José Risi Leme
Capa:
Marcelo Campanhã
Coordenação de desenvolvimento digital:
Alexandre Carvalho
Desenvolvimento digital:
Daniela Kovacs
Conversão EPUB:
Paulus
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Girard, René
A rota antiga dos homens perversos [livro eletrônico] / René Girard; [tradução Tiago José Risi Leme]. - São
Paulo: Paulus, 2018. - (Coleção estudos antropológicos)
Título original: La route antique des hommes pervers.
eISBN 978-85-349-4812-8
1. Bíblia. A.T. Jó - Crítica e interpretação 2. Jó (Personagem bíblico) 3. Sacrifício humano I. Título. III. Série.
18-19012 CDD-223.106
Índices para catálogo sistemático:
1. Jó : Livros poéticos : Bíblia : Interpretação e crítica 223.106
Maria Alice Ferreira - Bibliotecária - CRB-8/7964
© PAULUS – 2018
Rua Francisco Cruz, 229 • 04117-091 – São Paulo (Brasil)
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NOTAS
JÓ, VÍTIMA DE SEU POVO
[*] Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.
[1] Raymund Schwager. Brauchen wir einen Sündenbock? Munique, 1978.
A ROTA ANTIGA DOS HOMENS PERVERSOS
[1] [N. do T.] Preferimos traduzir por divindade o vocábulo “dieu” (deus), como aparece no original.
OS EXÉRCITOS CELESTES
[1] [N. do T.] Alali: toque de caça que as trompas executavam em vista do acuo ou do abatimento de um animal
(fonte: Houaiss da língua portuguesa).
REALISMO E TRANSFIGURAÇÃO
[1] La Violence et le Sacré, Grasset, 1972 [A violência e o sagrado. São Paulo: Paz e Terra, 1998]; Des choses
cachées depuis la fondation du monde, Grasset, 1978 [Coisas ocultas desde a fundação do mundo. São Paulo:
Paz e Terra, 2009]; Le Bouc émissaire, Grasset, 1982 [O bode expiatório. São Paulo: Paulus, 2004].
ÉDIPO E JÓ
[1] [N. do T.] No original: “sacré violent”.
[2] Meyer Fortes. Oedipe et Job dans les religions ouest-africaines. Éd. J.-P. Delarge, 1974.
[3] [N. do T.] Tradução para o português a partir da tradução francesa de Jean Grosjean, Bibliothèque de la
Pléiade, p. 463-482.
[4] Sandor Goodhart. OEdipus and Laius, many murderers. Diacritics, março de 1978, p. 55-71.
“POR CAVALOS ESTA RAINHA PISOTEADA”
[1] [N. do T.] Vestal: mulher virgem consagrada à deusa romana Vesta, encarregada de velar o fogo sagrado
perpétuo de seu altar (fonte: Houaiss da língua portuguesa).
“PELO MAL DOS ARDENTES TODO UM PAÍS ACOMETIDO”
[1] [N. do T.] “Mal dos ardentes”, também chamado “Mal de Santo Antônio” ou “Fogo de Santo Antônio”, foi
uma doença de origem alimentar que surgiu por volta do ano 1000, causada por um cogumelo formado a partir
do grão de centeio, o esporão de centeio que, misturado à farinha, causava graves intoxicações. Trata-se de um
nome dado na Idade Média ao ergotismo gangrenoso
[2] Saint-John Perse, poeta.
O SALMO 73
[1] [N. do T.] Hybris remete a excesso dos homens, insolência em relação aos deuses.
[2] Paul Dumouchel e Jean-Pierre Dupuy. L’Enfer des choses. Seuil, 1979; Jean-Pierre Dupuy. Ordres et
Désordres. Seuil, 1982; Colloque de Cerisy. L’Auto-organisation. Seuil, 1983; Cahiers du CREA, n. 1 (1982), n.
2 (1983) – 1, rue Descartes, Paris.
A TORRENTE DAS MONTANHAS
[1] Eric Gans. Pour une esthétique paradoxale. Gallimard, Les Essais, 1976.
[2] “Mimésis et Morphogénèse”. Ordres et Désordres, p. 125-185.
[3] “Le Signe et l’Envie”. L’Enfer des choses,op. cit., p. 66.
[4] Paul Dumouchel. “L’Ambivalence de la rareté”. L’Enfer des choses, op. cit., p. 137-254; Georges-Hubert de
Radkowski. Les Jeux du désir. P.U.F., 1980.
114
O TOFET PÚBLICO
[1] [N. do T.] Tofet: nome de uma elevação no vale de Ben-Enom, perto de Jerusalém; o altar de Moloc, onde se
ofereciam sacrifícios humanos. Foi abatido por Josias, mas Jeremias fala ainda de Tofet e de seu culto,
ameaçando que será repleto de cadáveres e se tornará terreno para sepultura (Jr 7,31; 19,6.11) e que Jerusalém se
tornará um Tofet, um lugar de sepultura (Jr 19,13). Is 30,33 emprega o termo somente para significar
crematório, lugar onde se queimam os cadáveres. McKenzie, John L. Dicionário bíblico. 9ª ed. São Paulo:
Paulus, 2005.
[2] Exceto aquele de Ésquilo, no final das Eumênides. Voltaremos a isso no penúltimo capítulo.
[3] Ancien Testament, Bibliothèque de la Pléiade.
O ÓRFÃO SORTEADO
[1] [N. do T.] James George Frazer (1854 – 1941): etnólogo escocês, estudioso das sociedades antigas, conhecido
principalmente por seus estudos sobre o totemismo e a exogamia, e por seus estudos sobre as religiões, que para
ele derivam da magia.
[2] [N. do T.] No versículo bíblico citado por Girard, o sentido é de um sorteio e não de um leilão: “Vous iriez
jusqu’à tirer au sort un orphelin” (Chegaríeis ao ponto de sortear um órfão).
JÓ E O REI SAGRADO
[1] A. Caquot. “Les traits royaux dans le personnage de Job”, Maqqel shadeqh. Hommage à Wilhelm Vischer, p.
32-45.
A EVOLUÇÃO DOS RITOS
[1] [N. do T.] No original, “imitation envieuse”, que se poderia traduzir tanto como imitação invejosa, quanto
imitação desejosa. Preferimos utilizar o adjetivo cobiçoso, por nos parecer intermediário entre os dois sentidos
mais imediatos.
[2] Jean-Pierre Dupuy. Le Signe et l’envie. L’Enfer des choses, op. cit., p. 62.
[3] Tudo isso permite, ou mesmo exige, análises detalhadas que justificariam as diferenças formais.
A RETRIBUIÇÃO
[1] [N. do T.] No texto original, “une non-personne”, o que literalmente se traduziria por “uma não-pessoa”.
ESMORECIMENTOS DE JÓ
[1] [N. do T.] De acordo com a citação da Bible de Jérusalem, utilizada por Girard, a tradução deste versículo
seria esta. Na versão francesa: “je suis roulé sous les décombres”. Na versão brasileira (Bíblia de Jerusalém. São
Paulo: Paulus, 2002): “são jogados sob os escombros”.
[2] [N. do T.] Na versão francesa, a palavra empregada é “innocent” (inocente).
[3] [N. do T.] Oréstia ou Oresteia: trilogia de Ésquilo que reúne as tragédias Agamêmnon, Coéforas e
Eumênides.
MEU DEFENSOR ESTÁ VIVO
[1] [N. do T.] No Brasil, essa tradução, baseada na versão francesa, foi publicada pela Loyola, em 1994.
[2] [N. do T.] amortecedor.
O RESGATE SANGRENTO PELA PERDIÇÃO DA CIDADE
[1] [N. do T.] Procedimento que consistia, nos Estados Unidos, em condenar imediatamente um criminoso
pego em flagrante delito.
[2] [N. do T.] Traduzimos a partir da tradução de Jean Grosjean, Pléiade, p. 409.
[3] [N. do T.] Na citação em francês: sédition, que expressa revolta, insurreição, agitação.
[4] [N. do T.] Traduzimos a partir da tradução de Jean Grosjean, Pléiade, p. 409.
115
O DEUS DAS VÍTIMAS
[1] [N. do T.] Traduzimos aqui de acordo com a citação utilizada por Girard. Na versão brasileira da Bíblia de
Jerusalém, a nota referente ao trecho de Lucas é a seguinte: “O ensinamento é claro: os ouvintes de Jesus
mereceram por seus próprios pecados uma sorte semelhante, isto é, sofrerão certamente se não fizerem
penitência”.
[2] [N. do T.] Fantasma: entendido aqui, do ponto de vista da psicanálise, como “situação imaginária em que o
sujeito está presente e na qual se realiza um de seus desejos, mais ou menos disfarçado” (Dicionário Houaiss da
Língua Portuguesa).
[3] [N. do T.] “Savant” também pode designar “cientista”.
116
117
Scivias
de Bingen, Hildegarda
9788534946025
776 páginas
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Scivias, a obra religiosa mais importante da santa e doutora da Igreja
Hildegarda de Bingen, compõe-se de vinte e seis visões, que são
primeiramente escritas de maneira literal, tal como ela as teve,
sendo, a seguir, explicadas exegeticamente. Alguns dos tópicos
presentes nas visões são a caridade de Cristo, a natureza do
universo, o reino de Deus, a queda do ser humano, a santifi cação e
o fi m do mundo. Ênfase especial é dada aos sacramentos do
matrimônio e da eucaristia, em resposta à heresia cátara. Como
grupo, as visões formam uma summa teológica da doutrina cristã. No
fi nal de Scivias, encontram-se hinos de louvor e uma peça curta,
provavelmente um rascunho primitivo de Ordo virtutum, a primeira
obra de moral conhecida. Hildegarda é notável por ser capaz de unir
"visão com doutrina, religião com ciência, júbilo carismático com
indignação profética, e anseio por ordem social com a busca por
justiça social". Este livro é especialmente significativo para
historiadores e teólogas feministas. Elucida a vida das mulheres
medievais, e é um exemplo impressionante de certa forma especial
de espiritualidade cristã.
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Santa Gemma Galgani - Diário
Galgani, Gemma
9788534945714
248 páginas
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Primeiro, ao vê-la, causou-me um pouco de medo; fiz de tudo para
me assegurar de que era verdadeiramente a Mãe de Jesus: deu-me
sinal para me orientar. Depois de um momento, fiquei toda contente;
mas foi tamanha a comoção que me senti muito pequena diante dela,
e tamanho o contentamento que não pude pronunciar palavra, senão
dizer, repetidamente, o nome de 'Mãe'. [...] Enquanto juntas
conversávamos, e me tinha sempre pela mão, deixou-me; eu não
queria que fosse, estava quase chorando, e então me disse: 'Minha
filha, agora basta; Jesus pede-lhe este sacrifício, por ora convém que
a deixe'. A sua palavra deixou-me em paz; repousei tranquilamente:
'Pois bem, o sacrifício foi feito'. Deixou-me. Quem poderia descrever
em detalhes quão bela, quão querida é a Mãe celeste? Não,
certamente não existe comparação. Quando terei a felicidade de vê-la
novamente?
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121
DOCAT
Youcat, Fundação
9788534945059
320 páginas
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Dando continuidade ao projeto do YOUCAT, o presente livro
apresenta a Doutrina Social da Igreja numa linguagem jovem. Esta
obra conta ainda com prefácio do Papa Francisco, que manifesta o
sonho de ter um milhão de jovens leitores da Doutrina Social da
Igreja, convidando-os a ser Doutrina Social em movimento.
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123
Bíblia Sagrada: Novo Testamento - Edição
Pastoral
Vv.Aa.
9788534945226
576 páginas
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A Bíblia Sagrada: Novo Testamento - Edição Pastoral oferece um
texto acessível, principalmente às comunidades de base, círculos
bíblicos, catequese e celebrações. Esta edição contém o Novo
Testamento, com introdução para cada livro e notas explicativas, a
proposta desta edição é renovar a vida cristã à luz da Palavra de
Deus.
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125
A origem da Bíblia
McDonald, Lee Martin
9788534936583
264 páginas
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Este é um grandioso trabalho que oferece respostas e explica os
caminhospercorridos pela Bíblia até os dias atuais. Em estilo
acessível, o autor descreve como a Bíblia cristã teve seu início,
desenvolveu-se e por fim, se fixou. Lee Martin McDonald analisa
textos desde a Bíblia hebraica até a literatura patrística.
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Índice
Rosto 2
Primeira Parte - O CASO DE JÓ 5
1. Jó, vítima de seu povo 6
2. Jó, ídolo de seu povo 10
3. A rota antiga dos homens perversos 13
Segunda Parte - MITOLOGIA E VERDADE 16
4. Os exércitos celestes 17
5. Realismo e transfiguração 22
6. Édipo e Jó 25
7. “Por cavalos esta rainha pisoteada” 30
Terceira Parte - O MIMETISMO 34
8. “Pelo mal dos ardentes todo um país acometido” 35
9. O Salmo 73 39
10. A torrente das montanhas 43
Quarta Parte - DO MECANISMO AO RITUAL 47
11. O Tofet público 48
12. O órfão sorteado 51
13. Origem e repetição 55
14. Jó e o rei sagrado 59
15. A evolução dos ritos 62
Quinta Parte - A CONFISSÃO DA VÍTIMA 74
16. Um processo totalitário 75
17. A retribuição 80
18. Esmorecimentos de Jó 84
19. Meu defensor está vivo 93
20. O resgate sangrento pela perdição da cidade 98
21. O Deus das vítimas 103
Coleção 112
Ficha Catalográfica 113
Notas 114
127
	Rosto
	Primeira Parte - O CASO DE JÓ
	1. Jó, vítima de seu povo
	2. Jó, ídolo de seu povo
	3. A rota antiga dos homens perversos
	Segunda Parte - MITOLOGIA E VERDADE
	4. Os exércitos celestes
	5. Realismo e transfiguração
	6. Édipo e Jó
	7. “Por cavalos esta rainha pisoteada”
	Terceira Parte - O MIMETISMO
	8. “Pelo mal dos ardentes todo um país acometido”
	9. O Salmo 73
	10. A torrente das montanhas
	Quarta Parte - DO MECANISMO AO RITUAL
	11. O Tofet público
	12. O órfão sorteado
	13. Origem e repetição
	14. Jó e o rei sagrado
	15. A evolução dos ritos
	Quinta Parte - A CONFISSÃO DA VÍTIMA
	16. Um processo totalitário
	17. A retribuição
	18. Esmorecimentos de Jó
	19. Meu defensor está vivo
	20. O resgate sangrento pela perdição da cidade
	21. O Deus das vítimas
	Coleção
	Ficha Catalográfica
	Notas

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