Prévia do material em texto
Introdução Rev. Marcelo Lemos Você aluno encontrará essa introdução ao problema do mal duas vezes neste livro. Aqui, na matéria de Hamartiologia, e também em Apologética Cristã. Trata-se de um tema que interessa aos dois campos de estudo. Nesta matéria, porém, o foco será na explicação bíblica para a origem do Pecado, enquanto que em Apologética Cristã apresentaremos uma abordagem mais filosófica. A origem do pecado e do mal moral no mundo é um mistério que, ao longo dos séculos, tira o sono dos que possuem fé. Teólogos, filósofos e até cientistas têm proposto abordagens e soluções. E por que este mistério é tão relevante? Para compreender isso melhor é de interesse apresentarmos brevemente o famoso Paradoxo de Epicuro. Epicuro foi um filósofo grego que nasceu cerca de 200 anos antes de Cristo. Esse filósofo viveu no período chamado de "helenista", e foi considerado o "Profeta do Prazer" e o "Apóstolo da Amizade". Sua filosofia, o epicurismo, baseava-se na crença de que não havia vida após a morte, e nem havia um Deus benevolente que castiga ou recompensa. Assim, o epicurismo advogava que o sentido da vida estava em viver bem, se esforçando para ser melhor pessoa (pai, filho, cidadão). O caminho para isso seria desenvolver o talento de adquirir e cultivar os amigos. De mente aguçada, Epicuro foi o primeiro a sugerir o que viria a ser a teoria darwiniana, ao apresentar um esboço, extraordinariamente moderno, da evolução, 2.300 anos anos antes de Darwin. O Paradoxo de Epicuro Não pode existir um Deus que seja bom, acreditava Epicuro, já que o mundo está cheio de maldade. Em resumo, o paradoxo afirma que se Deus existe, mas não pode ou não quer eliminar o mal, Deus é mal. Como Deus não pode ser mal, a conclusão é que não existe. A lógica do dilema é o seguinte: (1) Enquanto onisciente e onipotente, tem conhecimento de todo o mal e poder para acabar com ele. Mas não o faz. Então não é onibenevolente. (2) Enquanto omnipotente e onibenevolente, então tem poder para extinguir o mal e quer fazê-lo, pois é bom. Mas não o faz, pois não sabe o quanto mal existe e onde o mal está. Então ele não é omnisciente. (3) Enquanto omnisciente e omnibenevolente, então sabe de todo o mal que existe e quer mudá-lo. Mas não o faz, pois não é capaz. Então ele não é omnipotente. A linguagem acima pode parecer muito técnica, mas podemos tentar traduzir o dilema para uma forma mais simples: (1) Deus é todo poderoso, todo bom e odeia o mal. (2) Se Deus é todo poderoso, então pode criar qualquer mundo que desejar. (3) Se ele pode criar qualquer mundo que desejar, então ele iria preferir um mundo sem nenhum mal, pois é bom. (4) Mas o mal existe no mundo. Deus optou por criar um mundo onde Ele deseja que o mal exista (então não é Bom), ou onde não é capaz de impedir o mal (então não é Todo-Poderoso). (5) Conclusão de Epicuro: Deus não existe! Na verdade, Epicuro apenas expressou em palavras questionamentos que os homens fazem desde sempre. Davi expressa toda sua honestidade ao questionar esses temas no Salmo 10: "Por que, SENHOR, te conservas longe? Por que te escondes nas horas de angústia?" (Sl. 10.1). Observando o mundo, Davi notou a prosperidade dos perversos e o aparente silêncio de Deus. Os crentes sofrem, mas os ímpios se alegram, e Deus se cala. Diante de toda a impunidade, a conclusão do homem ímpio é: "Deus não existe" (Sl. 10.4), o que alimenta sua crença na impunidade: "jamais serei abalado; de geração em geração, nenhum mal me sobrevirá" (Sl. 10.6). Capítulo I A origem do Pecado segundo a Bíblia. A queda de Satanás O pecado parece ter tido início bem antes da Queda de Adão, já no coração de Satanás. Alguns textos bíblicos indicam que antes do Pecado afetar a humanidade, afetou o diabo. "Vós tendes por pai ao diabo, e quereis satisfazer os desejos de vosso pai. Ele foi homicida desde o princípio, e não se firmou na verdade, porque não há verdade nele. Quando ele profere mentira, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso, e pai da mentira" (João 8.44). "Não neófito, para que, ensoberbecendo-se, não caia na condenação do diabo" (I Timóteo 3.6). Deus, porém, não criou o diabo como tal. Os anjos foram criados em harmonia e perfeição (Jó 38.7). A Bíblia não descreve diretamente como parte dos anjos acabou corrompida, porém, algumas afirmações das Escrituras parecem dar algumas pistas. Por duas vezes o Novo Testamento fala de Satanás cair dos céus. Jesus usa essa imagem quando os 70 voltaram de sua missão. Eles estavam admirados que, em nome de Jesus, tinham expulsado muitos demônios. Jesus responde: "Eu via Satanás caindo do céu como um relâmpago (Lucas 10.18). A expressão "eu via" é como Jesus dizendo: "Sim, eu sei que vocês estavam expulsando os demônios, pois eu estava vendo". Nos parece, portanto, que Jesus não está falando diretamente da Queda original de Satanás, mas sim descrevendo a derrota do mesmo através do poder de Deus atuando na Igreja. Isso fica mais claro lendo o restante da passagem: "Jesus lhes disse: — Eu via Satanás caindo do céu como um relâmpago. Eis que eu dei a vocês autoridade para pisarem cobras e escorpiões e sobre todo o poder do inimigo, e nada, absolutamente, lhes causará dano. No entanto, alegrem-se, não porque os espíritos se submetem a vocês, e sim porque o nome de cada um de vocês está registrado no céu" (vv. 18-20). Há, além disso, um interessante contraste: enquanto a Igreja, pelo poder de Cristo, destrona Satanás, ela mesma é entronizada com Jesus. Não devem os cristãos se admirarem de sua capacidade de derrubar o Inimigo, mas devem se admirar de terem seus nomes registrados nos céus. Satanás é expulso. A Igreja é recebida e aceita. Portanto, nos parece adequado concluir que, pelo menos indiretamente, a imagem descrita por Jesus esteja falando de uma realidade cósmica que vai além dos exorcismos praticados pelos 70. De modo semelhante, também se pode dizer que cada vitória temporal da Igreja contra o reino do diabo é, com efeito, reflexo de uma realidade cósmica superior. Outra passagem neotestamentária que usa a imagem da Queda do inimigo é Apocalipse 12. Esse texto é controverso. A ideia central é o nascimento de Jesus e a guerra de Satanás contra ele. A linguagem apocaliptica, contudo, é cheia de simbolismos. Satanás é descrito como sendo expulso dos céus e perseguindo a mulher da qual Jesus nasceu. Essa mulher simboliza, em diferentes níveis, Maria, Israel e até mesmo a Igreja. O simbolismo é riquíssimo. E será que essa Queda e Revolta de Satanás aconteceram apenas 2000 anos atrás? Certamente o conflito cósmico descrito na visão de João teve seu climax na Vinda do Messias, e essa é a ênfase do Livro do Apocalipse. Todavia, a cena parece se desenvolver para muito além dos véus da História. O Dragão é descrito como tendo se revoltado e consigo apoio de outros anjos (estrelas) bem antes do Nascimento de Jesus, e ficou aguardando para persegui-lo (Ap. 12.3,4). Depois se descreve a Morte, Ressurreição e Entronização de Jesus (v.5), e a perseguição lançada contra a Mulher (a Igreja no mundo) - v. 6. A próxima cena diz que "então" estourou "a guerra nos céus" (v. 7). "Então estourou a guerra no céu. Miguel e os seus anjos lutaram contra o dragão. Também o dragão e os seus anjos lutaram, mas não conseguiram sair vitoriosos e não havia mais lugar para eles no céu. E foi expulso o grande dragão, a antiga serpente, que se chama diabo e Satanás, o sedutor de todo o mundo. Ele foi atirado para a terra, e, com ele, os seus anjos" (vv. 7-9ss). Nas palavras da Bíblia de Estudo Pentecostal, "o capítulo 12 apresenta quatro grandes conflitos entre Deus e Satanás: (1) entre Satanás e Cristo e sua obra redentora (vv. 1-5). (2) Entre Satanás e os fiéis em Israel (vv. 6, 13-16). (3) Entre Satanás e o céu (vv. 7-9). (4) Entre Satanás e os crentes (vv. 10,11,17)". O fato é que pela segunda vez o Novo Testamento nos apresenta a imagem da Queda de Satanás. Se por um lado é inevitável perceber no texto a centralidade dos eventos históricos da Cruz, as imagens podem perfeitamentealudir a eventos que ultrapassam no tempo e no espaço os fatos históricos do Gólgota. NOTA: Assim como em Lucas, João usa essa cena para enfatizar, especialmente, a vitória cósmica da Cruz. Entretanto, a riqueza da cena é tão vasta, e suas cenas tão elaboradas, que nos parecem falar não apenas dos pontuais e definitivos eventos cósmicos de 2000 atrás, mas também de uma espiral escatológica que perpassa toda a História Redentiva. Essa percepção, aliás, é a base para uma teoria interpretativa que temos desenvolvido ao longo da última década, a qual temos chamado justamente de "a espiral escatológica". Percebe-se que os primeiros cristãos tinham em mente o simbolismo da queda de Satanás. Tradicionalmente, os intérpretes cristãos acreditam que essa imagem da Queda vem de duas profecias do Antigo Testamento: Isaías 14.12-15, e Ezequiel 28.14-17. Literalmente essas profecias falam contra reis humanos, e contra seus pecados. Todavia, assim como os profetas falavam de pessoas humanas que tipificavam Jesus, a riqueza simbólica dessas profecias parecem tipificar não apenas os pecados dos homens denunciados, mas também suas origens espirituais e cósmicas. Sendo assim, a teologia cristã tem entendido que o Pecado apareceu, pela primeira vez, no coração de Satanás. O querubim ungido foi derrotado pelo Orgulho, e caiu de seu estado de Graça original. Capítulo II A origem do Pecado segundo a Bíblia. A queda do homem No capítulo anterior falamos sobre a Queda de Satanás. Cabe-nos agora investigar os fatos bíblicos sobre a Queda do Homem. É preciso partir de um fato bíblico básico: tudo que Deus criou era bom, muito bom. Essa é a afirmação encontrada no Gênesis. "E viu Deus tudo quanto tinha feito, e eis que era muito bom" (Gênesis 1.31). O homem, que hoje sofre e faz sofrer, era bom. A Segunda Confissão de Fé Helvética, um dos documentos mais importantes da igreja evangélica, explica: "Já do homem diz a Escritura que no princípio ele foi criado bom, à imagem e semelhança de Deus, que Deus o colocou no Paraíso e lhe sujeitou todas as coisas (Gén cap. 2). Isso é o que Davi magnificamente celebra no Salmo 8. Além disso, Deus lhe deu uma esposa e os abençoou". Tudo que Deus criou era bom, inclusive o homem. "Vede", diz Eclesiastes 7.29, "isto tão-somente achei: que Deus fez ao homem reto, mas ele buscou muitas invenções". A tradução NVT é bem sugestiva neste versículo: "Foi isto, porém, que descobri: Deus criou os seres humanos para serem justos, mas eles buscaram todo tipo de maldade". A entrada do Mal e do Pecado no mundo, portanto, não se deveu a algo ruim feito por Deus, mas pela escolha humana. Nesse texto encontramos que Deus criou o homem para uma finalidade: "para serem justos". Cabia ao homem cumprir esse propósito. Havia dois caminhos: o da Árvore da Vida e o da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal. Deus criou o homem livre, com a possibilidade de optar entre a Vida e a Morte. O Catecismo da Igreja Católica Romana usa uma expressão muito apropriada, ao afirmar que Deus criou o mundo "em estado de caminho". Caminhos nos falam de jornada entre um ponto e outro. O homem, como sabemos, pegou o caminho errado. Errar o alvo é, inclusive, uma das definições mais importantes de pecado na Bíblia. O teólogo assembleiano expõe essa ideia da seguinte forma: "... aquilo que se desvia do alvo, falhar — hãtã. Os termos associados — ‘hãttã’th e hamartia’, e logo após, a classificação das palavras associadas a hãttã’th e também a hamartia. O primeiro engloba várias outras palavras. Mas, as mais usadas para descrever a natureza do pecado, são hê’t ou hãttã’t (hãtã’=falhar, desviar, não acertar seu fim), que apresenta o pecado como uma falha [às vezes contra os homens, geralmente contra Deus]. O segundo, quer dizer 'tortuosidade no sentido próprio” (conservando assim, a forma original da serpente que é torta ou curvada em todos os seus movimentos e ações). Há também em hebraico o verbo ‘chata’ e o substantivo ‘chãttãth’, — ‘chet’ (Gn 4.7; Ex 9.27; Lv 5.1; Nm 6.11; SI 51.2, 4; Pv 8.36; Is 42.24; Os 4.7). Em grego, o vocábulo correspondente é hamatteno (verbo) e hamartia (substantivo), indicando em sentido primário ‘errar o alvo’ (Lc 11.4; 15.18, 21; Jo 1.29; 8.34; 16.9; Rm 3.23; 5.12; 6.23; 1 Co 15.3; 1 Jo 1.7, 9-10; 3.4; 5.17)". Voltaremos a isso num capítulo dedicado ao estudo dos termos e definições bíblicas de pecado. Desde já se estabelece a ideia de retidão original, na criação do homem, e a missão de seguir o caminho da Justiça, num teste divino para a liberdade humana. O pecado surge, no mundo, com a escolha equivocada de Adão. Poderia o homem ter escolhido viver de acordo com os conselhos de Deus. A Serpente seduziu o homem, incitando-o com o desejo de ser igual a Deus (Gênesis 3.5). O homem caiu ao idolatrar a si mesmo. A idolatria, de si mesmo ou de falsos ídolos, será o pecado a ser combatido em toda a história humana, até os dias de hoje. Querer substituir o Criador é a fonte de toda dor, sofrimento e misérias (Romanos 1).