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João Carlos Escosteguy Filho Ricardo Salles aula 10 Questões historiográficas ii - império História da Historiografia Brasileira 54 Meta da aula Apresentar algumas das principais discussões historiográficas atuais, na historiografia brasileira, acerca do período imperial brasileiro. Objetivo Esperamos que, ao final desta aula, você seja capaz de identificar algumas linhas essenciais de debate a respeito do Império do Brasil, percebendo interpretações, autores e influências atuais. Aula 10 – Questões historiográficas II - Império 55 INTRODUÇÃO O período imperial (1822-1889) é de grande importância para a compreensão de nossa formação nacional. Não à toa, as aulas deste curso de História da Historiografia Brasileira começaram com a gestação de uma interpretação da história nacional com raízes exatamente no Império, quando se começou a pensar o país em termos de nação e iniciou-se uma preocupação em relação à escrita de uma história nacional. Por isso se faz tão necessário compreender algumas das principais discussões atualmente em curso sobre esse período. Nesta aula, seguiremos uma divisão que contemplará três linhas principais: uma a respeito da formação política da sociedade imperial, outra mais ligada à economia e uma terceira, abordando sociedade e cultura. Antes, porém, incluiremos uma seção dedicada a outros autores clássicos, do início a meados do século XX, os quais não abordamos em aulas anteriores, devido às limitações de tempo e espaço. São, porém, autores cruciais para a compreensão do período de que trataremos agora. Abordagens iniciais da historiografia sobre o Império do Brasil Muitos autores clássicos que trataram do período imperial já foram abordados anteriormente, começando por Joaquim Nabuco e avançando com Oliveira Vianna, Caio Prado Júnior, Nelson Werneck Sodré, Raimundo Faoro. Todos eles, em suas obras, como já vimos, deram especial atenção ao Império do Brasil. Por isso, não repetiremos sua importância nesta aula. Seguiremos com aqueles que foram influenciados pelas obras desses autores já tratados anteriormente e/ou dialogaram com elas. História da Historiografia Brasileira 56 Precisamos, para tanto, relembrar o contexto em que tais produções da virada do século XIX para o XX se inserem. A primeira década republicana foi marcada por constantes conflitos intelectuais entre monarquistas e republicanos. Os primeiros, cujo maior símbolo foi o Nabuco de Um estadista do Império, conforme já vimos, procuraram analisar a sociedade imperial naquilo que ela tinha de maior destaque. Os grandes avanços do período, as grandes reformas, transformações, modernizações etc. por que passou a sociedade brasileira no oitocentos foram creditados à atuação do governo imperial. A época que surge dos escritos desses monarquistas, nesse período, é uma era de ouro, nostálgica, um tempo substituído por uma república vista como degradante. É nessa dimensão elogiosa de construção historiográfica do Império que se insere a obra do diplomata Manuel de Oliveira Lima. Figura 10.1: Manuel de Oliveira Lima. Fonte: http://upload.wikimedia.org/wikipedia/ commons/5/52/Oliveira_lima.gif Aula 10 – Questões historiográficas II - Império 57 Monarquista desgostoso com os rumos do país (a ponto de doar sua coleção documental para uma biblioteca norte-americana que, hoje, leva seu nome), Oliveira Lima foi autor de uma obra consistente, que abordou todo o período imperial, destacando a perspectiva política, embora articulasse essa dimensão a outras, de ordem econômica, geográfica, social etc. Seus principais livros (Dom João VI no Brasil, 1908; Formação histórica da nacionalidade brasileira, 1911; O movimento da independência, 1922; O império brasileiro, 1927) formam uma visão que valoriza a atuação monárquica na condução dos rumos do país no século XIX, contribuindo para alterar a imagem da monarquia, desgastada pela propaganda republicana dos primeiros anos, num momento em que cada vez mais se procurava questionar o futuro político do Brasil. É válido lembrarmos o quanto a década de 1920, com a fundação do PCB, o modernismo, o tenentismo etc., foi profícua em termos de contestações sociais e políticas. Das páginas desses livros, salta uma monarquia liderada por sábios monarcas (começando por Dom João VI), responsável pelos rumos da nacionalidade e sagaz em adaptar à realidade americana as instituições europeias, formando uma espécie de “presidencialismo hereditário”, ou “democracia coroada”, que acabou por ser superior às repúblicas americanas. Tal interpretação teria, décadas depois, em João Camillo de Oliveira Torres um continuador (A democracia coroada, 1957, Os construtores do Império, 1968). Podemos, então, inserir Oliveira Lima e Nabuco, em que pesem as diferenças entre as obras, num mesmo conjunto de autores, buscando revalorizar o período imperial. Poderíamos incluir nesse rol, ainda, os textos organizados por Vicente Licínio Cardoso, sob o título de À margem da História do Brasil (1933), a obra de Pandiá Calógeras (A política exterior do Império, 1927-1933, em 3 volumes, e Formação Histórica do Brasil, 1935) e, por fim, um autor já visto anteriormente: Oliveira Vianna. Nos trabalhos desses três, a imagem do Imperador Pedro II é ressaltada como responsável pela manutenção da unidade e agregação da sociedade brasileira, História da Historiografia Brasileira 58 e a procura pelas razões para a crise do Império passa a envolver explicações alheias à atuação desse Imperador – como a questão militar, o abolicionismo, a má atuação dos partidos etc. Outra linha de interpretação dessa época não buscava a valorização do Império nos moldes aqui definidos. Nesse grupo, incluem-se os já vistos Nelson Werneck Sodré, Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Holanda, Raimundo Faoro e, ainda, outros que não tivemos oportunidade de estudar, como Manuel Bomfim (O Brasil na América, 1929; O Brasil na História, 1931; O Brasil Nação, idem). Para este autor, o Império era uma continuação da parasitária colonização portuguesa, responsável por levar a cabo uma “falsa independência” da qual o Brasil ainda não se livrara. Crítico tanto do Império quanto da República, apontava para o Brasil o caminho da revolução como alternativa para melhorar sua situação. Dessa disputa entre duas visões, uma valorativa e outra crítica, é que surgem interpretações que, nas transformações do ensaísmo à universidade que acompanhamos na Aula 8, tornaram-se basilares dos estudos sobre o período. Mal ou bem, a geração clássica universitária, cujos trabalhos resultaram em teses de doutorado e que passaram a influenciar, direta ou indiretamente, praticamente todos os estudos atuais sobre o período, dialogou com os autores clássicos dessa geração anterior. Parte desse debate foi sintetizada e retomada por Emilia Viotti da Costa, em Da Monarquia à República: momentos decisivos, 1977. Nesse livro, que reúne diferentes ensaios de sua autoria, Viotti da Costa coteja as interpretações monarquistas e republicanas e propõe uma nova visão de conjunto que leve em consideração fatores de ordem econômica e social. Ainda na década de 1970 e início de 1980, surgiram outros autores que estabeleceram as linhas mestras de interpretação da história do Império as quais, de um modo geral, ainda dominam nossa historiografia. Aula 10 – Questões historiográficas II - Império 59 Grandes interpretações sobre a história do Império Os estudos atuais sobre a política no Império brasileiro devem muito a algumas obras centrais que marcam, ainda hoje, a tônica dos debates. Podemos seguir os debates atuais a partir dos quadros interpretativos em que cada um desses autores se insere e analisar essas discussões a partir das referências a que se reportam. Inevitavelmente, na origem, precisamos voltar aos clássicos de nossa historiografiapara seguir esse caminho. A partir do diálogo com os clássicos, duas linhagens principais de interpretação se formaram. A primeira é ligada a uma leitura de influência weberiana, de Sérgio Buarque de Holanda e Raimundo Faoro. Desses autores clássicos, basta apontarmos dois elementos essenciais: ambos se inspiraram, de formas distintas, na sociologia de Max Weber, conforme vimos nas aulas anteriores. Por outro lado, chegaram a conclusões totalmente diferentes em relação ao caráter da fundação do Estado e da sociedade no Brasil. Enquanto para Sérgio Buarque, a família, representando o domínio do privado sobre o público, era a marca de nossa formação, para Faoro era o contrário: o caráter público do Estado impusera seu domínio, desde sempre, sobre a sociedade brasileira. Mas também podemos perceber outra linhagem, ligada às obras, principalmente, de Caio Prado Júnior e Fernando Novais. Analisaremos essas duas linhagens a seguir. A matriz interpretativa atual Comecemos pela primeira linhagem. Da leitura dos questionamentos presentes em Sérgio Buarque e Raimundo Faoro surgiram dois trabalhos que se tornaram, também, clássicos da nossa historiografia, ainda influenciando obras atuais no país (embora o segundo tenha influenciado bem mais que o primeiro). Estamos nos referindo às obras de Fernando Uricoechea (O Minotauro imperial, História da Historiografia Brasileira 60 tese defendida nos EUA em 1976, publicada no Brasil em 1978) e José Murilo de Carvalho (A construção da ordem, 1980, e Teatro de sombra, 1988, ambas frutos de doutorado defendido no exterior em 1974). Os dois autores partem de uma problemática estabelecida pela sociologia weberiana, embora José Murilo de Carvalho tenha se inspirado mais na chamada teoria das elites: a preocupação em desvendar as relações entre Estado, sociedade e nação. Fernando Uricoechea, sociólogo colombiano, insere-se na vertente weberiana de interpretação do Estado imperial. O próprio título de sua obra já indica o viés interpretativo que busca: O Minotauro imperial. Assim como o Minotauro da lenda é metade touro, metade humano, também o Império do Brasil, para Uricoechea, assume uma feição mista entre a ordem patrimonial, característica de muitas formações políticas pré-modernas, e a ordem burocrática, típica do Estado moderno; entre o Estado central e a ordem local, entre o público e o privado. Para analisar essa feição mista, Uricoechea parte da interpretação weberiana, presente já no subtítulo de seu livro: “a burocratização do Estado patrimonial brasileiro no século XIX”. Ou seja, é a partir, principalmente, do conflito entre a permanência de práticas patrimonialistas e o desenvolvimento da burocracia estatal que o autor vai analisar a organização da sociedade imperial. O foco para essa análise foi a Guarda Nacional, instituição imperial onde o movimento de conflito entre lógica patrimonialista e lógica burocrática, para ele, mostra-se mais evidente. Em suas conclusões, Uricoechea aponta para o conflito que tomou a sociedade ao longo do século XIX: de um lado, o patrimonialismo, que já, desde Faoro e Sérgio Buarque de Holanda, é usado como conceito para explicar a permanência de práticas privadas, ocupando funções públicas no Brasil. Por outro lado, o autor aponta para a ascensão de uma ordem burocrática que ameaçava esse histórico patrimonialismo e que foi caracterizada por duas tendências: por um lado, o aparato burocrático de Estado expandiu-se ao longo do século XIX, primeiro na Corte e, depois, espalhando-se para a periferia do Império; por outro lado, Aula 10 – Questões historiográficas II - Império 61 desenvolveu-se a criação de um sistema burocrático de autoridade desligado, ao menos parcialmente, da autoridade patrimonialista que se arrastava desde tempos coloniais. A razão para esse avanço da burocratização sobre o patrimonialismo, Uricoechea explica, está no caráter “incompleto” do patrimonialismo no Brasil: a inexistência de uma nobreza rigidamente estratificada, de privilégios, impediu o pleno desenvolvimento dessa política no país. José Murilo de Carvalho teve como principal objetivo, exposto em seus livros, desvendar as razões para a peculiaridade da formação brasileira na América. A América portuguesa mantivera- se integrada, enquanto as ex-colônias espanholas haviam se fragmentado. O novo Estado nacional permanecera monárquico, enquanto o restante do continente caminhara para o republicanismo. Para explicar essa peculiaridade, José Murilo recorreu à teoria das elites. A unidade territorial e a forma monárquica de governo refletiam o sucesso de um projeto político próprio de uma elite política autônoma em relação à sociedade. Essa elite se formara no Brasil, inicialmente a serviço da monarquia portuguesa e, na conjuntura da independência, viu a separação da antiga metrópole como a melhor forma de viabilizar o projeto de construção de um império unitário e centralizado sob seu controle. Fora “treinada” no serviço do Estado, de início português (tendo recebido a mesma formação em Coimbra, Portugal) e, assim, partilhava experiências e formação semelhantes. Era unificada por sua carreira e por seus interesses junto ao Estado, mesmo que seus membros fossem de naturalidade distinta – portugueses ou brasileiros – e tivessem origem em diferentes setores da sociedade – na própria burocracia estatal, na Igreja, na classe dos grandes proprietários rurais, nos comerciantes e, em bem menor escala, nos setores intermediários e pobres. Tratava-se de uma burocracia organizada e fechada em si mesma, dependente, em grande parte, das rendas do próprio Estado para viver, o que tornava sua integração a ele ainda maior. Era uma elite cujos membros estavam ligados de tal forma, que houve uma redução nos conflitos internos a ela, aumentando sua unidade ideológica. História da Historiografia Brasileira 62 Essa elite conferiu, segundo o historiador, relativa autonomia à ação estatal, possibilitando que o governo imperial implementasse reformas e projetos que, muitas vezes, contrariavam diretamente os anseios das classes econômicas mais poderosas (chamadas por José Murilo de “barões”). A “construção da ordem” no Império, assim, teria sido obra dessa elite política, ainda que, muitas vezes, essa ordem a ser construída contrariasse os interesses da sociedade – e, aqui, o termo “sociedade” refere-se, fundamentalmente, à produção escravista de exportação. A expressão “dialética da ambiguidade” foi formulada pelo historiador para explicar a relação entre política e economia, ou seja, a ação do governo perante os grandes plantadores. Por um lado, o Estado não podia prescindir da renda gerada pela agricultura escravista de exportação; por outro, ele mantinha uma relativa autonomia, devida especialmente ao tipo de elite por ele formada, que lhe permitia introduzir reformas, mudanças e transformações, muitas vezes, à revelia desses grupos econômicos. A fórmula da “dialética da ambiguidade” expõe essas mudanças, feitas a partir de relações ambíguas entre setores econômicos e políticos do Império. Podemos perceber que tanto José Murilo de Carvalho quanto Fernando Uricoechea, apesar de valorizarem uma interpretação que confere autonomia à política imperial sobre a sociedade, vão além de Faoro, não enxergando no Estado uma “carapaça” que engole a sociedade e a conduz ao seu bel-prazer. Pelo contrário: para José Murilo, apesar de autônomo, esse Estado imperial não deixa de manter relações com a sociedade, ainda que muitas vezes conflituosa; para Uricoechea, o patrimonialismo brasileiro nunca permitiu a existência de um “estamento burocrático” que, rigidamente, mantivesse o poder sobre a sociedade. Podemos, agora, avaliar a outra linhagem de interpretação para a análise política da sociedade imperial brasileira, distinta da de Carvalhoe Uricoechea. Essa segunda linha, como dissemos, não é ligada à tradição de Sérgio Buarque e Faoro, mas à de Caio Prado Aula 10 – Questões historiográficas II - Império 63 Júnior e Fernando Novais. Trata-se de Ilmar Rohloff de Mattos, cujo livro O tempo Saquarema, de 1986, é resultado de tese defendida na Universidade de São Paulo, em 1985. Quando comparamos a obra de José Murilo de Carvalho e Fernando Uricoechea, em que pesem as diferenças, podemos perceber uma semelhança: em ambos os autores, as relações entre Estado e sociedade são vistas a partir de relações entre entidades com uma razoável dose de separação. Estado e sociedade são tratados como elementos isolados, em oposição. A discussão fica presa à análise de se o Estado é forte e a sociedade, fraca (predominando a ordem pública); ou se o Estado é fraco e a sociedade, forte (predominando a ordem privada). A obra de Ilmar Mattos segue em outra direção. Do ponto de vista teórico, baseia-se principalmente em dois autores marxistas: o dirigente comunista italiano Antonio Gramsci e o historiador britânico Edward Palmer Thompson. Nesses dois autores, Ilmar busca uma concepção de Estado como um produto das relações e das lutas entre as classes sociais. Nessa concepção, o Estado tem uma marca de classe, constrói-se a partir das práticas de classe e organiza-se, no fundamental, a partir (da) e para assegurar a dominação de uma classe. Isso, contudo, não se deve a uma determinação lógica, mas é, antes, o resultado de um complexo histórico concreto. Na análise de Ilmar Mattos, o Estado imperial é visto como resultado do fortalecimento e da ascensão de uma classe social – a classe senhorial – ligada diretamente à produção cafeeira escravista do Vale do Paraíba, que, em determinado momento da trajetória histórica brasileira, começa a interligar seus destinos (isto é, suas práticas, sua concepção de mundo, seus valores, seus horizontes de perspectiva) aos destinos do próprio Estado. Os processos de formação histórica da classe senhorial e de construção do Estado imperial são indissoluvelmente ligados. Não há classe senhorial sem Estado imperial; não há Estado imperial sem classe senhorial. Para Ilmar, há, assim, uma associação profunda, no século XIX, entre escravidão, café e o Império: os interesses História da Historiografia Brasileira 64 imediatos dessa classe (café e escravidão) e seus interesses de longo prazo (sua preeminência social e política) tornam-se interesses do próprio Império. O elo entre a classe senhorial e o Estado é constituído por intelectuais (categoria central no pensamento de Antonio Gramsci), que atuam como agentes de elaboração da visão de mundo e de exercício da dominação dessa classe. O núcleo desses intelectuais foram os dirigentes do Partido Conservador do Rio de Janeiro, tradicionalmente chamados de “Saquaremas”. Por isso, o título do livro O tempo Saquarema significa, na verdade, a construção da direção dos caminhos do Império a partir dos interesses desse núcleo, que acaba incorporando todas as demais classes e frações de classe do Império aos seus objetivos mais gerais. Os termos do debate sobre a natureza do Estado imperial, que ainda regem nossa historiografia sobre o período, foram estabelecidos por essas interpretações, particularmente as de José Murilo de Carvalho e Ilmar Rohloff de Mattos. Em primeiro lugar, há a questão da relação entre Estado e sociedade, especificamente entre Estado e a classe dos grandes proprietários rurais escravistas: o Estado era ou não, e até que ponto, autônomo em relação aos interesses dessa classe? Havia um projeto de modernização política e mesmo social e econômica capitaneado pela elite política? Ou o Estado imperial, ao fim e ao cabo, defendia os interesses da classe de proprietários rurais escravistas? Em segundo lugar, trata-se de discutir as relações entre o Estado central e os grupos dominantes locais: as políticas centralizadas predominavam ou não, e até que ponto, sobre as práticas de mandonismo e clientelismo locais? Evidentemente, nenhuma dessas dualidades pode ser tomada em termos absolutos, e não o foram pelos autores analisados. A questão e o debate estão na linha interpretativa, predominantemente empregada por cada um deles, e nos resultados historiográficos obtidos. Na verdade, termos e noções como elite, classe senhorial, centralização, patrimonialismo, clientelismo etc. têm sido, muitas vezes, usados de forma mais ou menos consciente, com maior ou Aula 10 – Questões historiográficas II - Império 65 menor rigor em sua caracterização e eventual contradição, pelos historiadores que se dedicam a estudar o Império. De um modo geral, podemos assinalar o amplo predomínio da interpretação de José Murilo de Carvalho, em relação ao termo “elite”, com doses maiores ou menores de ênfase no peso da classe senhorial, no patrimonialismo e no clientelismo por parte da historiografia corrente. Renovação interpretativa e estado atual Alguns historiadores, no entanto, têm conscientemente entrado no debate sobre a natureza do Estado imperial de forma mais sistemática. Richard Graham, por exemplo, em seu livro Clientelismo e política no Brasil do século XIX, de 1997 (primeira edição em inglês, de 1990), afirma que o clientelismo e a centralização política não se contradiziam, mas se complementavam. Os mandantes locais dependiam dos favorecimentos do governo central para montarem suas clientelas, e o governo, por sua vez, dependia do apoio dessas redes clientelares locais para vencer as eleições. Ricardo Salles, em ensaio interpretativo intitulado Nostalgia imperial (1996), propôs a continuidade da análise de Ilmar Rohloff de Mattos, ainda em termos gramscianos, para entender o Império, mais especificamente a partir do final da década de 1860 até a abolição e a proclamação da República. Esse período, a partir da Guerra do Paraguai, do novo quadro internacional gerado pela derrota da Confederação na Guerra da Secessão e das novas condições das relações entre senhores e escravos depois da abolição do tráfico internacional, em 1850, deve ser entendido como de crise hegemônica da classe dos grandes proprietários escravistas, especialmente de sua fração fluminense. O mesmo autor retomou essa perspectiva com foco nas relações das regiões de Vassouras e do Vale do Paraíba com o Estado imperial em E o Vale era o escravo (2008). História da Historiografia Brasileira 66 Nos últimos anos, surgiram, ainda, duas correntes que propõem uma revisão mais radical da matriz interpretativa da história do Estado imperial. A primeira é representada pelo trabalho de Maria Fernanda Vieira Martins, A velha arte de governar, tese de doutorado de 2005, publicada em 2007. Para essa autora, as teses de um Estado central controlado por uma elite política com seu próprio projeto de modernização ou, de forma mais indireta, de um Estado representativo dos interesses da classe senhorial devem ser contestadas. Maria Fernanda segue a ideia de que a colonização portuguesa havia criado um “Antigo Regime nos trópicos”. De acordo com essa visão, o Estado português, até o século XIX, não deve ser entendido como um Estado moderno, burocrático e centralizado administrativamente, mas sim como um Estado corporativo, atravessado por órgãos, instâncias e grupos com práticas e interesses próprios. O Império do Brasil teria dado continuidade a essas práticas, apesar de a autora reconhecer uma tensão entre sua manutenção e a presença de um certo projeto modernizador. Estudando o segundo Conselho de Estado (1840-1889), Maria Fernanda procurou analisar as teias de relações pessoais entre seus membros, concluindo que a atuação dessa elite era pautada, em grande parte, pela busca por estratégias de sobrevivência pessoal. Ou seja, a compreensão do Estado imperial se dá pela análise das formaspelas quais essas elites buscam a melhor forma de manter sua posição, seu prestígio e o encaminhamento de sua dominação. A ação estatal soa como um desdobramento, no plano institucional, das ações locais e cotidianas dessas elites. O termo “elite”, aliás, é muito usado nessa obra, porém com sentido diverso daquele dado por José Murilo de Carvalho. Se, para Carvalho, elite constitui o conjunto dos estadistas do império e liga-se à ideia de política, nas obras relacionadas à ideia do Antigo Regime nos trópicos o termo é mais abrangente, incorporando os grupos que mantêm o controle dos capitais, simbólicos ou não, que acabam servindo como um sinal de distinção perante o restante da sociedade. Aula 10 – Questões historiográficas II - Império 67 Na última das correntes que abordaremos, essa ideia é posta em xeque, visto que, para seus estudiosos, o Império, na verdade, alcançou, em algum momento, um equilíbrio federativo. Ao invés de centralizado, ele seguiu uma “vocação americana” tal, que manteve o poder, o exercício da política e a organização social nas províncias, e não na Corte. O espaço da política na Corte seria, na verdade, apenas uma dimensão de debate das “elites provinciais”, em que elas teriam plena força para atuar com seus projetos locais. Além disso, essa dimensão não foi abalada significativamente pelas políticas de regresso, que viam a interpretação do Ato Adicional como a medida centralizadora por excelência. O maior expoente dessa corrente é o trabalho de Miriam Dolhnikoff, professora da USP, especialmente no livro O pacto imperial, 2005 (fruto de doutorado defendido em 2000). Nessa obra, a autora analisou a política imperial, relacionando a atuação dos representantes e das elites de três províncias centrais (São Paulo, Pernambuco e Rio Grande do Sul), concluindo que, na construção do Estado imperial, esses grupos provinciais impuseram uma organização institucional e um arranjo político que, simultaneamente, garantia-lhes a condução da direção em suas províncias e a influência na ação oriunda da Corte. Em outras palavras, não apenas as províncias mantinham sua força local, mas também atuavam diretamente levando suas demandas e suas questões ao poder central. É difícil, ainda, antever o impacto que essas duas últimas análises – a de Maria Fernanda Vieira Martins e a de Miriam Dolhnikoff – ainda podem causar nos estudos sobre o Estado imperial. As interpretações de Ilmar Mattos e José Murilo de Carvalho, tomadas como grandes matrizes interpretativas – a partir da perspectiva de classe ou da perspectiva de elite – ainda provocam muitos debates e conduzem expressivamente as análises sobre a política e a sociedade do período em questão. História da Historiografia Brasileira 68 Atende ao objetivo da aula 1. A partir do que foi estudado sobre a política imperial, relacione as abordagens dos principais autores tratados às influências teóricas que lhes servem de inspiração. Resposta Comentada Podemos perceber, na abordagem política do Império do Brasil, três grupos principais de análise. O primeiro, influenciado por Max Weber, traça um perfil da construção do Estado imperial a partir dos conceitos de patrimonialismo e burocracia. Nesse sentido, está o trabalho de Fernando Aula 10 – Questões historiográficas II - Império 69 Urichoechea, feito a partir da Guarda Nacional. O segundo, de diferentes formas, utiliza o conceito de elite para construir sua análise. Essa vertente é bastante heterogênea: temos o trabalho de José Murilo de Carvalho, no qual o termo “elites” é acompanhado do termo “políticas” e cuja abordagem procura analisar o papel dessas “elites políticas” a partir de sua formação e treinamento. Temos também a corrente do “Antigo Regime nos trópicos”, na qual o termo “elites” aparece mais ligado ora a questões econômicas, ora a questões meramente descritivas, com menor precisão em relação ao universo a que se refere. Por fim, no trabalho de Miriam Dolhinikoff, o termo “elites” vem acompanhado do termo “regionais”, pois, invertendo a interpretação de José Murilo de Carvalho, Dolhinikoff aborda a construção do Estado não pela visão da centralização, mas pela perspectiva federalista. Por fim, temos a análise de Ilmar Rohloff de Mattos, fortemente influenciada pelo marxismo de Thompson e, principalmente, Antonio Gramsci, vendo a construção do Estado imperial a partir de suas relações com a formação da chamada classe senhorial. A economia no Império Já desde o século XIX se dizia que “o Império é o café”. Não surpreende, portanto, que a maior parte dos estudos dedicados à economia do Império tomasse a produção cafeeira como eixo central explicativo. Figura 10.2: O ramo de café presente na bandeira imperial brasileira. Fonte: http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Ficheiro:Flag_of_Empire_of_Brazil_(1847- 1889).svg&page=1 História da Historiografia Brasileira 70 A historiografia sobre o café é vastíssima, mas duas correntes interpretativas centrais são, atualmente, as mais trabalhadas pelos historiadores. Para entendê-las, precisamos voltar à Aula 9: a primeira corrente é a formulada pela historiografia do arcaísmo como projeto; a segunda é uma crítica a ela, que recupera argumentos trabalhados por uma historiografia mais clássica. Para não tornarmos a aula redundante, não repetiremos os argumentos acerca da ideia do arcaísmo como projeto. Basta lembrarmos que tal abordagem encontrou sua formulação mais elaborada na obra de João Fragoso e Manolo Florentino, ambos analisando a economia colonial nacional num período que avança até o aumento da produção de café, a partir das estruturas internas à sociedade brasileira do período, e não a partir das flutuações do mercado mundial. Para Fragoso e Florentino, o investimento em terras, escravos e produção agrícola não se explica pela busca por lucros, e sim por um ideal arcaizante que identifica terras e escravos com ascensão social, portanto desejável, ainda que o empreendimento fosse menos lucrativo que o capital mercantil. Este, por sua vez, seria o espaço de concentração maior de riqueza para esses autores. A abordagem de Fragoso e Florentino, se atentarmos para os aspectos mais diretamente relacionados ao período imperial, e não ao Brasil colonial, é um exemplo dos estudos que reavaliaram as análises clássicas para a montagem da cafeicultura brasileira. Os trabalhos clássicos, desde a década de 1940, concentravam- se na relação direta entre café e mercado mundial, destacando a crise da mineração, a partir de meados do século XVIII, e a queda exponencial nos preços do açúcar, à mesma época, como fatores decisivos para a cafeicultura no século XIX. Segundo essa linha de raciocínio, o café seria quase uma sequência na secular produção agrária e escravista brasileira, sempre voltada para o mercado externo e praticada a baixos custos. A disponibilidade de terras, capitais e escravos, devido à dupla crise que mencionamos acima, quase automaticamente teria sido dirigida para o café. A sequência Aula 10 – Questões historiográficas II - Império 71 açúcar-mineração-café seria marca indelével do nosso passado. Podemos perceber essa visão, em que pesem as diferenças entre os autores, nas obras de Roberto Simonsen (Aspectos da história econômica do café, 1940), Caio Prado Júnior (História econômica do Brasil, 1945), Celso Furtado (Formação econômica do Brasil, 1959), Emília Viotti da Costa (Da senzala à colônia, 1966) e até na obra de brasilianistas como Stanley Stein (Vassouras: um município brasileiro do café, 1957). Foi contra essa historiografia clássica que a obra de Fragoso e Florentino argumentou. Por sua vez, a crítica à visão do arcaísmo começou a ser formulada retomando-se seu fundamento. Se a obra de Fragoso e Florentino priorizou as relações internas à sociedade brasileira, a crítica a essa análise voltou a olharas relações entre sociedade e mercado mundial. Podemos apontar a nova perspectiva, principalmente, nos trabalhos de Rafael Marquese e Ricardo Salles, ambos preocupados com a construção da sociedade cafeeira no Vale do Paraíba fluminense. A ideia fundamental, formulada pelo historiador norte- americano Dale Tomich e que norteia essa abordagem, é a de que, no mesmo período em que a escravidão colonial entra em crise, finais do século XVIII, conectada com a expansão do mercado mundial capitalista, desenvolve-se uma “segunda escravidão” (a expressão é de Dale Tomich), que, já estudada na primeira aula do curso de História do Brasil II, teve lugar principalmente no sul dos Estados Unidos, no Brasil e em Cuba, e significou o fortalecimento da escravidão como regime de trabalho moderno e extremamente lucrativo. Esse fortalecimento ocorreu tanto por meio do recrudescimento do tráfico internacional, quanto por meio da reprodução natural da população escrava, da implantação, intensificação e expansão do regime de plantations, e do fortalecimento político de “novas” classes nacionais ou regionais de proprietários de terras e de escravos. Mas não apenas de café vivia a economia do Império. Duas outras temáticas têm levado cada vez mais historiadores a voltar-se para o passado brasileiro, ambas referindo-se às transformações História da Historiografia Brasileira 72 sociais e mudanças políticas por que passou o país ao longo do século XIX. Trata-se da questão do abastecimento interno, das atividades financeiras bancárias e mesmo da industrialização incipiente. Em relação à primeira temática, a de abastecimento, a obra clássica de Alcir Lenharo (As tropas da moderação, 1978) já apontava a importância de estudos desse tipo para a melhor compreensão da política e sociedade imperiais. Em seu livro, Lenharo analisa a progressiva integração da região Centro-Sul do Império, especialmente a partir da vinda da Corte e da política joanina. Tal integração, possibilitada pela abertura de estradas e pelo fomento à agricultura de abastecimento, fortaleceu um grupo ligado a essa produção agrícola que, nas primeiras décadas do Império, ascendeu socialmente e influenciou decisivamente nos rumos da política imperial, especialmente na Regência. Essa ligação entre agricultura de abastecimento e política da Corte exemplifica a necessidade de se olhar para o Império a partir de horizontes mais amplos: não obstante a importância do café seja indiscutível, o Império tinha diversos outros grupos não diretamente ligados a ele, como demonstram estudos mais recentes de Francisco Luna e Herbet Klein (Evolução da sociedade e economia escravista de São Paulo, 2006) e de Pedro Henrique Campos (Nos caminhos da acumulação, 2010). Quanto às atividades financeiras, bancárias e de industrialização e modernização, desenvolvidas no Império a partir da década de 1850, ainda há um vasto mundo a ser pesquisado. Sobre os bancos e as finanças, podemos citar a tese de doutorado Bancos, economia e poder no Segundo Reinado, defendida na USP em 1997, assim como diversos artigos sobre o assunto, de Carlos Gabriel Guimarães. Sobre o tema da construção das ferrovias, que ganha grande dimensão na economia brasileira a partir de 1850, há o livro pioneiro de Almir Chaiban El-Kareh, Filha branca de mãe preta, de 1982. O ponto central desses dois trabalhos é o de apontar a compatibilidade e mesmo a sinergia entre as atividades financeiras e de modernização tecnológica, e a ordem escravista dominante. Aula 10 – Questões historiográficas II - Império 73 Cultura e sociedade imperiais Os temas ligados à cultura em termos de historiografia brasileira, como já tivemos oportunidade de discutir na Aula 9, são cada vez mais diversificados. Podemos perceber o mesmo movimento de multiplicação temática no tocante ao Império do Brasil. Antes dessa análise pluralista, porém, desenvolveu-se toda uma historiografia que via a vida cultural no Brasil por outros olhos. Os primeiros estudos que visavam à dupla cultura/sociedade foram marcados por duas vertentes principais: em primeiro lugar, a descrição idealizada da época imperial, em especial dos hábitos, costumes e atitudes da “boa sociedade” de então, alinhada a padrões aristocráticos europeus; em segundo lugar, a escrita sobre a vida cultural-literária do período, que se influenciou pela formação de um campo estético/literário no Brasil marcado, principalmente, por suas relações com os movimentos europeus da mesma época. Em relação à primeira vertente, podemos citar o clássico livro de Wanderley Pinho, Salões de damas do Segundo Reinado (1939); em relação à segunda, podemos citar os autores que descreveram a vida literária no Brasil da época, especialmente Antônio Cândido (Formação da literatura brasileira, 1957) e Alfredo Bosi (História concisa da literatura brasileira, 1970). Em relação à sociedade, estritamente falando, os trabalhos de cunho biográfico predominavam no princípio, fortemente influenciados por uma visão da História que associava o desenvolvimento social à ação dos “grandes homens”. Multiplicaram- se, assim, estudos biográficos sobre os “grandes nomes” do Império. Podemos mencionar, nessa vertente, os trabalhos de Octávio Tarquínio de Sousa (História dos fundadores do Império do Brasil, 1957) e Hélio Vianna (Vultos do Império, 1968). A partir das influências da nova história cultural e da antropologia, que já tivemos oportunidade de ver antes, os estudos sobre cultura e sociedade imperiais se alteraram. Essas influências, História da Historiografia Brasileira 74 somadas às da história social inglesa e da micro-história, conferiram à abordagem biográfica um “outro olhar”, saindo dos “grandes nomes” e adentrando no domínio da “gente comum”. Exemplos dessas influências e abordagens não faltam. Para nos mantermos, por enquanto, nas duas vertentes mencionadas anteriormente, podemos apontar, na primeira, a obra de Jeffrey Needell (Belle époque tropical, 1993) como um retrato crítico da sociedade carioca de finais do oitocentos, analisando a influência que aí tiveram os hábitos franceses e ingleses. Na segunda, podemos indicar as obras de Maria Helena Rouanet (Eternamente em berço esplêndido, 1991) e de Roberto Ventura (Estilo tropical, 1991) como exemplos de pesquisas articulando a vida cultural no Império aos debates acerca do caráter nacional, da civilização, raça, religião etc. Trata-se, enfim, de um panorama mais amplo das questões políticas, sociais e culturais da época. Em relação à segunda vertente, a biográfica, destacaram- se, nos últimos anos, os estudos sobre personagens peculiares ou clássicos, mas a partir da relação entre suas vidas e do contexto em que viveram. Personagens do primeiro tipo foram retratados nos livros de Eduardo Silva (Dom Obá II d´África, o príncipe do povo, 1997), João José Reis (Domingos Sodré: um sacerdote africano, 2008) e a obra coletiva envolvendo o mesmo João Reis, Flávio Gomes e Marcus Joaquim de Carvalho (O alufá Rufino: tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico negro, 2010). Nessas três obras, nota-se a preocupação dos autores em relacionar a vivência dos protagonistas de seus trabalhos ao contexto mais amplo da sociedade escravista em que se inserem. As vidas narradas são portas de entrada para esse universo. Também, nesse sentido, as biografias clássicas foram revisitadas, como, por exemplo, a de Pedro II, com Lilian Moritz Schwartz (As barbas do Imperador, 1998) e as diversas, reunidas na coleção “Perfis brasileiros”, da Companhia das Letras, abordando Dom Pedro I (por Isabel Lustosa), José Bonifácio (por Miriam Dolhnikoff), o general Osório (por Francisco Doratioto), Castro Alves Aula 10 – Questões historiográficas II - Império 75 (por Alberto da Costa e Silva), Joaquim Nabuco (por Angela Alonso) e, por fim, novamente Dom PedroII (por José Murilo de Carvalho). Essa coleção, em que pesem os diferentes autores, portadores de diversas visões sobre o passado brasileiro, tem em comum a abordagem que liga indivíduo e sociedade, afastando-se, nesses termos, das biografias laudatórias de décadas anteriores. Outros elementos essenciais dos estudos sobre cultura e sociedade, no Brasil Imperial, podem ser apontados nesta aula. Uma boa porta de entrada para esse universo é o volume correspondente ao Império da História da vida privada no Brasil, na obra intitulada "Império: a Corte e a modernidade nacional" (1997), sob direção de Luiz Felipe de Alencastro, contendo artigos de diversos historiadores do país, enfocando diferentes aspectos da sociedade e da cultura imperiais. Mas, se essa obra aborda as temáticas de forma mais geral, outros estudos mais setorizados têm inspirado trabalhos que envolvam a questão cultural. São exemplares os livros de João José Reis (A morte é uma festa, 1991), sobre as formas como as pessoas viam a questão da morte, dos enterros e da religiosidade; o de Martha Abreu (O império do divino, 2000), sobre as festas e cerimônias de rua que se ligavam à reiteração da dimensão católica da sociedade imperial; e o de Mariana Muaze (As memórias da Viscondessa, 2008), sobre as representações de si que faziam membros da classe senhorial do Vale do Paraíba fluminense. A esses poderíamos somar centenas de outros trabalhos. Podemos perceber, desse modo, que os temas ligados à cultura e à sociedade imperiais, de uma forma ou outra, acabam englobando aspectos políticos e econômicos daquela sociedade, seja pela escolha dos objetos, seja pela forma de abordagem. História da Historiografia Brasileira 76 Atende ao objetivo da aula 2. Relacione a importância do Vale do Paraíba fluminense nos estudos econômicos sobre o Império à relevância que vários estudos sobre a cultura imperial conferem à “boa sociedade”. Resposta Comentada Podemos responder a essa questão por dois ângulos distintos, porém relacionados. Por um lado, percebemos que a centralidade de muitos estudos econômicos na produção cafeeira liga-se a toda uma gama de estudos culturais que abordam o cotidiano da classe senhorial fluminense. Assim, podemos relacionar a importância do café, dada pela historiografia econômica, à importância da cultura da classe senhorial, da “boa sociedade”, conferida por diversos outros estudos a respeito das sociabilidades no Império do Brasil. Por outro lado, podemos responder a essa pergunta relacionando as consequências sociais da expansão cafeeira, especialmente no tocante à escravidão, ressaltadas pela historiografia sobre o tema, com a profusão de estudos culturais que focalizam a cultura escrava, como mencionamos nas biografias apontadas anteriormente. Aula 10 – Questões historiográficas II - Império 77 CONClUSÃO O que o futuro da historiografia brasileira reserva para o Império do Brasil? Repassando as publicações dos últimos anos, podemos acompanhar algumas linhas de desenvolvimento. Vale a pena falar sobre elas. Em primeiro lugar, percebemos, para o Império do Brasil, o mesmo movimento que acometeu as demais áreas da pesquisa histórica no Brasil: a expansão dos programas de pós-graduação, regionalizando os temas e multiplicando as pesquisas. Hoje podemos ir além do eixo Rio - São Paulo - Minas e acompanhar o século XIX nas regiões Norte, Nordeste, Sul e Centro-Oeste, sempre preocupadas em articular a política que se desenrolava na Corte às realidades locais. Em segundo lugar, podemos perceber como algumas temáticas passaram a sobressair nos estudos sobre o Império, especialmente os eixos de pesquisa sobre o Estado, a nação e a cidadania. Nesse sentido, o período que marca, tradicionalmente, nossa independência (1820-1823) e o momento de consolidação do Estado imperial (por volta das décadas de 1840 e 1850) ganharam destaque. Percebem-se, nos estudos produzidos hoje sobre esses três eixos, uma ampla influência da chamada História dos Conceitos, que teve no trabalho do historiador alemão Reinhart Koselleck (especialmente pelo livro Futuro passado) um grande exemplo. Também crescem, cada vez mais, as comparações entre o processo de construção do Estado e das identidades nacionais no Brasil, e aquele que acometeu as ex-colônias hispânicas à mesma época. Essa direção de pesquisas cresce cada vez mais, principalmente após a publicação do trabalho da professora Lúcia Bastos Pereira das Neves (Corcundas e Constitucionais, 2003), cuja tese foi defendida na USP em 1992. A USP, aliás, principalmente a partir do projeto de pesquisa coordenado pelo saudoso professor István Jancsó, denominado “Brasil: formação do Estado e da nação”, produziu História da Historiografia Brasileira 78 uma ampla sequência de estudos articulando esses três conceitos centrais. Além dos inúmeros livros, podemos perceber mostras desses trabalhos nas duas coletâneas publicadas por esse projeto: a primeira homônima, publicada em 2003, e a segunda intitulada Independência: história e historiografia, publicada em 2005. Os grupos de pesquisa têm crescido cada vez mais, ligando pesquisadores de diversas universidades do país em torno de problemáticas semelhantes. Além do mencionado grupo da USP, podemos mencionar a formação do CEO (Centro de Estudos do Oitocentos), sob direção de José Murilo de Carvalho, conectando pesquisas em torno especialmente das relações entre nação e cidadania. Desse grupo surgiram também várias coletâneas, dentre as quais destacam-se Nação e cidadania no Império (2007), Repensando o Brasil do oitocentos (2009) e a trilogia organizada por Ricardo Salles e Keila Grinberg (O Brasil imperial, 2009). Para onde caminharão os estudos agora? É cada vez mais difícil dizer. Nota-se que, neste espaço de poucas páginas, abordamos apenas uma pequena fatia de nossa produção. O Império do Brasil, como momento privilegiado de nossa formação nacional, está cada vez mais ligado aos anseios que nos movem no presente. A celebração dos 200 anos da vinda da Corte, por exemplo, provocaram uma explosão de estudos e publicações a respeito do período joanino em torno do ano de 2008. É de se esperar que algo semelhante, se não maior, ocorra em 2022. Podemos concluir esta aula, então, afirmando que os estudos sobre o Império do Brasil refletem muito de nosso modo de enxergar o Brasil atual. Se boa parte da nossa historiografia clássica, no alvorecer do século XX, procurou no Império nossa origem nacional a partir do elogio da monarquia, é preciso, cada vez mais, recuperar a preocupação com a nossa formação identitária, sem que isso nos faça cair no elogio simples ou em uma nostalgia imperial. Aula 10 – Questões historiográficas II - Império 79 ReSUMO Diversos temas e interpretações a respeito do século XIX no Brasil foram tratados nesta aula. Em relação à questão política e social, abordamos as obras de José Murilo de Carvalho, Fernando Uricoechea e Ilmar Rohloff de Mattos, cada um interpretando a formação do Estado imperial a partir de problemáticas centrais e conferindo a esses questionamentos respostas distintas, de acordo com seus aportes teóricos. Em relação à economia, pudemos perceber que, não obstante as diversas interpretações para a formação econômica do Império, a maioria dos estudos centra, ainda, na questão do café, principal produto de exportação do país no período. Por fim, em relação à cultura e à sociedade, pudemos perceber as duas principais diferenças de enfoque: uma, mais ligada à cultura da “boa sociedade”; e outra, ligada à questão da cultura “vista de baixo”. Informação sobre a próxima aula Na próxima aula, trataremos da historiografia a respeito da República. Até lá!