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02/06/2019 União dos Escritores Angolanos - A Dinâmica e o Estatuto Dos Jornalistas em Angola No Período da Imprensa Livre (1866-1923) https://www.ueangola.com/criticas-e-ensaios/item/170-a-dinâmica-e-o-estatuto-dos-jornalistas-em-angola-no-período-da-imprensa-livre-1866-19… 1/8 A Dinâmica e o Estatuto Dos Jornalistas em Angola No Período da Imprensa Livre (1866-1923) Escrito por João Pedro Da Cunha Lourenço «João, leia, estude e serás gente.» Gabriela Antunes «João, leia, estude e serás gente.» Gabriela Antunes Introdução Primeiramente, gostaríamos de agradecer o convite feito pela União dos Escritores Angolanos, para que pudéssemos estar aqui, nesta ocasião, e partilharmos alguns dos conhecimentos que temos adquirido ao longo dos últimos três anos em que decidimos nos dedicar à investigação da actividade jornalística em Angola, mais concretamente a partir do último quartel do séc. XIX e princípio do séc. XX. Em seguida gostaríamos de prestar aqui a nossa homenagem e manifestar os nossos agradecimentos à nossa querida Profª. Gabriela Antunes, por tudo que fez e por o que ela representa para nós. Pois, foi por seu intermédio que muitos de nós que estivemos no Curso Médio de Jornalismo começámos a frequentar a União e a participar nas «Makas». A problemática que pretendemos levantar nesta comunicação é: será que é coerente classificar o jornalismo da fase da imprensa livre como «episódico» e todos os jornalistas como «amadores»? È uma temática que tem sido marginalizada na historiografia existente sobre o assunto, por isso, interessa discutirmos para não parecer acabado, até porque é um assunto actual, numa altura em que está em preparação uma nova lei de imprensa para o nosso país, em que, certamente, interrogações de como quem deve ser considerado jornalista profissional serão levantadas. Nos nossos dias, são várias as pessoas que exercem a actividade jornalística em paralelo com outras, estando assim por definir, à luz dos critérios actuais de classificação, os seus estatutos profissionais. Nos últimos anos, tem crescido o volume dos dados historiográficos sobre a História de Angola, na qual se procura analisar a evolução social, política, económica e cultural do país, a partir da segunda metade do séc. XIX. Dentre as temáticas abordadas, a imprensa e o papel que ela desempenhou também têm merecido tratamento. A obra mais antiga que até agora conhecemos, em que há referência sobre a imprensa em Angola, é Subsídios para a história do jornalismo nas províncias ultramarinas, de Brito Aranha, editada em Lisboa, pela Imprensa Nacional, em 1885, na qual se faz uma descrição quantitativa e analítica sobre a imprensa nos então territórios sob domínio colonial português. A base para qualquer estudo nessa área tem sido a obra de Castro Lopo, Jornalismo de Angola. Subsídios para a sua história; depois seguiram-se outros autores, tais como Teófilo José da Costa, Carlos Ervedosa, Sebastião Coelho, Rosa Cruz e Silva, Alexandra Aparício, Fernando Gamboa, Marcelo Bittencourt e Aida Freudenthal. Na abordagem, têm sido tratados temas como a relação entre a imprensa e a literatura, imprensa e o nacionalismo, imprensa e a educação. No que se refere à situação organizacional e profissional dos jornalistas pouco tem sido discutido, prevalecendo a ideia do «amadorismo» avançada por Castro Lopo. Esta comunicação tem como objectivo analisar a questão da estruturação, dinâmica e situação profissional dos jornalistas em Angola no período atrás referenciado. Para tal, faremos uma abordagem que consistirá em analisar o conceito de «profissional» e de alguns textos publicados pelos próprios sujeitos da história, ou seja, aqueles depoimentos em que eles tratam de verificar o seu desempenho como jornalistas. O período «Imprensa Livre» 02/06/2019 União dos Escritores Angolanos - A Dinâmica e o Estatuto Dos Jornalistas em Angola No Período da Imprensa Livre (1866-1923) https://www.ueangola.com/criticas-e-ensaios/item/170-a-dinâmica-e-o-estatuto-dos-jornalistas-em-angola-no-período-da-imprensa-livre-1866-19… 2/8 O território, na altura, uma colónia portuguesa, apresentava uma sociedade estratificada em «civilizados» e «não civilizados». «Civilizados» eram os brancos, independentemente da sua condição social, económica e académica, mestiços e negros escolarizados e que tivessem hábitos e costumes europeus e tivessem abandonado o modo de vida dos africanos. «Não civilizados» eram os negros que mantinham o modelo de vida autóctone, quer dizer, os «indígenas», «aqueles que nascidos no ultramar, de pai e mãe indígenas não se distinguissem pela sua instrução e costumes do comum da sua raça», como ficou estabelecido a partir do Decreto de 1894. Este facto criava várias fricções devido às discriminações de ordem social e racial prevalecentes. Esses problemas foram levantados a nível da imprensa, por um lado, pelos colonos que defendiam a manutenção do status quo, criticando as autoridades por permitirem a intervenção na vida pública dos mestiços e negros, por outro lado, pelos africanos («filhos da terra», como se autodenominavam, ou «crioulos» como também eram/são conhecidos), protestando contra as injustiças sociais e reclamando a sua emancipação social. Pelas referências sobre a independência do território, podemos verificar que o discurso contestatário dos africanos assumiu carácter proto-nacionalista. Dois estudiosos da história do jornalismo em Angola, nomeadamente Júlio de Castro Lopo, com a obra Jornalismo de Angola. Subsídios para a sua história, e Sebastião Coelho, com a obra Angola: história e estórias da informação, se propuseram elaborar uma periodização desta actividade ao longo da sua existência em Angola. O primeiro exclui a possibilidade de uma periodização da imprensa angolense a partir de elementos de ordem legislativa ou de contexto político (liberal ou anti-liberal), e aponta o aumento da colonização europeia, do desenvolvimento do comércio interno e do comércio exportador como factores responsáveis pelo surgimento das seguintes fases: Primeiros Passos, iniciada com o Boletim Official em 1845; Imprensa Livre, a partir de 6 de Dezembro de 1866 com a publicação do periódico A Civilisação da Africa Portugueza, fundado por António Urbano Monteiro de Castro e Alfredo Júlio Cortês Mântua; Jornalismo Industrial e Profissional, com o surgimento em 16 de Agosto de 1923 do jornal A Província de Angola, fundado por Adolfo Pina. Esta divisão é retomada integralmente por Carlos Ervedosa. O Boletim Oficial foi durante duas décadas a única publicação regular, já que o periódico A Aurora, surgido em 1856, fundado por Ernesto Marecos, F. Teixeira da Silva, Alexandre Balduíno e Alfredo Sarmento , com característica essencialmente literária e recreativa, conheceu apenas alguns números; a publicação da Civilisação da Africa Portugueza em 6 de Dezembro de 1866 e de outros periódicos a partir de tipografias particulares levou os leitores da época a chamá-los de imprensa livre, o que logicamente não significa, necessariamente, liberdade para escrever e publicar aquilo que eventualmente quisessem, mas sim uma diferenciação entre o órgão oficial publicado sob tutela económica e política das autoridades e aqueles que estavam fora, pelo menos economicamente, desta dependência. O segundo (Sebastião Coelho) retoma com algumas reticências a periodização do primeiro, e acrescenta as fases relacionadas com o período pós-colonial. As dúvidas de Sebastião Coelho estão ligadas ao início da fase denominada Jornalismo Industrial e Profissional. Para ele, esta etapa teve início em 1912 com o surgimento do Jornal de Benguela, na cidade com o mesmo nome, fundado por Manuel Mesquita, e aponta como fundamentos da sua tese o facto de o jornal ser proprietário de uma tipografia, de ser considerado pelos colonos da época e de usar como subtítulo a frase «decano dos jornais de Angola» e pelo facto de poder se considerar o seu proprietário um jornalista profissional, já que «vivia do jornal e para o jornal», e pelo facto deste ter abandonadoo seu emprego nas Alfândegas, embora nunca tenha solicitado oficialmente a sua demissão. Além disso, faz do jornal A Província de Angola como o marco do início da referida fase, devido àquilo que chama de «acendrado espírito luandense» de Castro Lopo e de Carlos Ervedosa (para este último acrescenta o facto de ser filho de um dos proprietários e por ter trabalhado neste periódico) . Sebastião Coelho acrescenta as informações relativas ao surgimento e evolução da rádio e da televisão, no período de jornalismo profissional, estendendo-o até 1974; depois, propõe outros períodos, nomeadamente: Época de Transição: 1974-1975; Época Pós-Independência: Monopólio do Estado, 1975-1992; Imprensa Livre, 1992 aos nossos dias, dentro da qual encontramos a Imprensa Regional e a Imprensa Electrónica. Para Castro Lopo, a terceira fase inicia-se em 1923 com a publicação do jornal A Província de Angola, porque o seu fundador e director, Adolfo Pina, vivia unicamente da actividade jornalística sendo, de acordo com os seus critérios, um jornalista profissional, ao contrário do que tinha acontecido até a essa fase em que os indivíduos que dirigiam ou colaboravam na imprensa exerciam outras actividades ligadas ao funcionalismo público, ao exército, à igreja, ao comércio, ao exercício da advocacia ou outra qualquer e não exclusivamente a profissão de jornalista em full time (tempo integral). De acordo com estes critérios, o jornalista Manuel Mesquita não era um jornalista profissional, porque exercia outra actividade. Sebastião Coelho não discorda dos critérios de classificação, apenas apresenta o argumento de que o jornalista benguelense tinha deixado o 02/06/2019 União dos Escritores Angolanos - A Dinâmica e o Estatuto Dos Jornalistas em Angola No Período da Imprensa Livre (1866-1923) https://www.ueangola.com/criticas-e-ensaios/item/170-a-dinâmica-e-o-estatuto-dos-jornalistas-em-angola-no-período-da-imprensa-livre-1866-19… 3/8 seu emprego nas Alfândegas há muito tempo e que o problema residia no facto desta demissão não ter sido oficializada, e que os luandenses, entre os quais Castro Lopo e Carlos Ervedosa, se recusavam a aceitar, com objectivo de manter tal proeza na capital. Os argumentos de Sebastião Coelho parecem-nos carregados de um «acendrado espírito anti-luandense» não só em relação a este assunto, mas também àquele ligado à transferência da capital da então Província de Angola de Luanda para o Huambo, perspectivada pelo Alto Comissário da República, Vicente Ferreira, e que não se efectivou por causa da «oposição» dos «‘Caluandas’ empedernidos» Mesmo que tal abandono se confirme, Manuel Mesquita não pode ser considerado um jornalista profissional, de acordo com os critérios de Castro Lopo, porque encontramos no periódico Independente uma nota oficial, publicada em 1913, em que este é referenciado como sendo Presidente da Câmara de Benguela, portanto, um cargo público pelo qual era remunerado, o que significa que ele não vivia exclusivamente da e para actividade jornalística. Simplesmente amadores? Nos interessa agora levantar a questão do amadorismo ou profissionalismo. Para Castro Lopo, o profissionalismo juntamente com a industrialização são os elementos que considera essenciais para o início da terceira fase (1923-1974) da imprensa em Angola, nos apresentando a fase por nós escolhida para este trabalho, como dominada por um «jornalismo episódico e de amadores» , na qual participaram: «criaturas das mais variadas condições sociais, tais como: empregados comerciais, agricultores, negociantes e lojistas, magistrados judiciais, médicos, professores, missionários e clérigos, veteranos e oficiais de marinha mercante e de guerra, militares até indivíduos que permaneciam em Angola na situação de degredados» Em termos da temática «industrialização», é preciso recordar que na área da indústria gráfica sempre houve a preocupação de se melhorar as condições em termos de maquinaria, ao contrário dos outros sectores, que só depois de 1961, devido à própria política colonial portuguesa que assentava no Pacto Colonial, no qual as colónias estavam sujeitas a servirem a metrópole como fornecedoras de matérias-primas e receptoras (mercados) dos produtos vindos das indústrias metropolitanas. A Imprensa Nacional e as outras tipografias preocuparam-se sempre em possuir meios técnicos que lhe permitissem melhorar a qualidade dos seus trabalhos. O desenvolvimento do sector gráfico foi assinalável, permitiu a ascensão dos funcionários tipógrafos, que se constituíram num grupo com destaque na sociedade colonial. Por exemplo, em 1910, os periódicos Independente e O Progresso preocuparam-se em adquirir máquinas que permitiam a impressão de fotografias. Quanto à temática «profissionalismo», outras questões surgem porque entendemos que classificar, simplesmente, como «jornalismo episódico e de amadores» uma actividade que se exerceu durante mais de cinco décadas (concretamente 56 anos é quanto durou a segunda fase, segundo as propostas já apresentadas) é uma atitude que mostra pouca profundidade na sua análise e que parece partir de critérios estabelecidos de um modo bastante radical: o vínculo laboral. Compreendemos que Castro Lopo escreveu o seu trabalho na segunda metade do século XX, portanto, período pós II Guerra Mundial, evento que alterou as relações humanas e todos outros aspectos inseridos na vida dos estados, estando, logicamente, incluído o relacionamento entre o patronato e os empregados. É preciso notar que tal critério não pode ser aplicado de forma rígida para um contexto que apresenta um espaço territorial que é uma colónia e numa época (final do século XIX dado de um pequeno núcleo de africanos, de afro-europeus e europeus que a dominavam), de degredados e colonos europeus analfabetos ou semi-escolarizados, tínhamos um quadro em que era difícil o desenvolvimento de um mercado de consumo de uma produção eminentemente intelectual como, por exemplo, o jornalismo ou a literatura. Mesmo a nível mundial, o jornalismo só começou a dar os primeiros passos no sentido da formação na segunda metade do século XIX. Portanto, os primeiros quadros que a abraçaram esta profissão vieram das mais variadas áreas, principalmente das letras; aliás, a actividade foi inicialmente uma carreira literária e depois uma carreira política. É normal que se estabeleça o ano de 1923 como o marco inicial da fase do jornalismo profissional em Angola, atendendo à nova dinâmica registada com o surgimento do jornal A Província de Angola, mas achamos excessivo classificar todos aqueles que trabalharam nesta área na fase anterior (1866-1923) como «amadores», porque exerciam outras actividades, para além de serem jornalistas. O vínculo laboral não pode ser, neste caso, condição sine qua non para definição do estatuto de profissional, pois, já vimos que em Angola não havia condições para que alguém vivesse exclusivamente como jornalista, tendo em conta os elementos que foram referenciados. É lógico que fossem as outras áreas a alimentar em termos de pessoal essa profissão que dava os primeiros passos. Por isso, entendemos que algumas personagens da época merecem o atributo de jornalista profissional. 02/06/2019 União dos Escritores Angolanos - A Dinâmica e o Estatuto Dos Jornalistas em Angola No Período da Imprensa Livre (1866-1923) https://www.ueangola.com/criticas-e-ensaios/item/170-a-dinâmica-e-o-estatuto-dos-jornalistas-em-angola-no-período-da-imprensa-livre-1866-19… 4/8 Dois outros aspectos podem ser acrescidos a esta discussão. O primeiro é o facto de que o jornalismo em Angola não se exerceu sem regulamentação, muito pelo contrário, sempre houve uma legislação para regulamentar a actividade, o que significa que os jornalistas estavam conscientes que tinham limites na sua actuação, embora reconhecessem que havia situações em que tais linhas de delimitação foram ultrapassadas, pois, em determinados períodos, a legislação vigente na metrópole foi alargada às colónias, enquanto que noutros casos se verificou a publicação de legislaçãovigente simplesmente nas colónias. Ainda há aquelas situações em que os dirigentes a nível de Angola publicaram portarias em relação à imprensa. O segundo é o que se define como profissional, porque acreditamos que não pode ser exclusivamente na ideia de um indivíduo que trabalha em tempo integral numa determinada área da qual recebe uma remuneração. Outros elementos podem ser usados, de acordo com as circunstâncias, para definição, tais como o tempo em que se trabalha ou até mesmo a forma como se trabalha, afinal «o jornal é mais que um negócio, comércio ou profissão: é uma maneira de vida… o que adianta é o conceito que a própria pessoa tem de suas obrigações» . E, profissionalização, como reclamava Fernando de Sousa aos jornalistas brasileiros na década de 1950, exige responsabilidade, não é uma questão de salário mas «exige conhecimento, exige saber […]. Para ser profissional é mister, antes de tudo conhecer a profissão.» Como podemos verificar neste caso, o critério não é a ligação que o jornalista tem com o patronato, mas sim o seu grau de conhecimento e que para Fernando de Sousa, nesta altura, só é alcançável com uma formação num curso especializado. Na época que estamos a analisar neste trabalho, logicamente não existia um curso de jornalismo em Angola, por isso, a forma como os jornalistas tinham de conhecer a profissão era a prática e a experiência diária; costuma dizer-se que «a prática é a mãe da verdade». Eles mesmos se consideravam membros de uma classe: «Folha do Sul. Por motivos de vária ordem administrativa, suspende temporariamente a sua publicação este nosso colega de Novo Redondo.» Outros exemplos certamente não faltam para elucidar este posicionamento: «o nosso colega Imparcial publica um brilhante artigo que intitula Unificação da Imprensa.» Artigos esses em que eles mostravam o seu sentimento de pertença a uma classe, que tinha inúmeras dificuldades de ordem material, que congregava no seu seio as várias tendências ideológicas e sociais existentes na sociedade de então. Em 1907, o periódico O Benguella publicou um artigo intitulado «A vida do jornalista», que achamos enquadrar-se bem na discussão levantada por esta comunicação. Nas primeiras linhas, podemos identificar o espírito de sacrifício que era exigido a quem se dedicava à actividade jornalística. A descrição do quotidiano é feita nas seguintes palavras: «Na vida jornalística um ano mais quer dizer 365 dias de apoquentações a menos. Nem o triunfo dos combates, nem o êxito das campanhas, compensa os dissabores que sofre o jornalista ou os sacrifícios dos que, por abnegação esgotam dinheiro e saúde na conservação de um jornal. Só quem vive portas a dentro de uma dessas empresas, sabe as horas de desânimo, as horas de amargura porque passam os que, devotados servidores de uma causa, se expõem à inveja de uns, à malquerença de muitos, à calúnia de muitos outros.» Nas citações expostas, é importante termos em atenção as expressões «abnegação» e «devotados servidores», que nos ajudaram a compreender a forma como encaravam o jornalismo. Muitas vezes, na actualidade fazem parte do profissionalismo a abnegação e a devoção. Nas linhas seguintes, o articulista chama a atenção para as críticas que são dirigidas sem conhecimento de causa ou mínimo de experiência necessária para saber o que significava (significa) a produção de um jornal: «Os alheios às lutas jornalísticas, os que nunca tiveram de intervir na feitura duma folha, não podem fazer a mais pequena ideia das agruras que constituem os espinhos dessa obra. É facto, os leigos no ofício não sabem, não calculam o quanto custam meia dúzia de colunas que diária, bissemanal, semanalmente, etc. se apresentam ao público; se soubessem, nem um desses leigos na matéria abriria a boca para fazer a menor crítica ao que se acha espalhado nessas folhas volantes, críticas sem critério nem fundamento até mesmo sobre assuntos em que se advogam os seus interesses ainda que indirectamente.» Problema como a objectividade da informação levada ao público, que continua a ser levantado no jornalismo actual, já fazia parte das suas preocupações. Vejamos o seguinte exemplo: «No nosso n.º 42 apenas demos aos nossos leitores uma notícia sucinta, mais exacta, sobre os acontecimentos do Ambriz, como nos permitiu a falta de tempo e o recomendava a prudência para não sermos falsos noticiadores» . Àquela preocupação pode- se acrescentar uma outra ligada ao sentido de responsabilidade no modo de actuar dos jornalistas no seu dia-a- dia, quando o Sul d’Angola reclamava a criação duma associação dos profissionais da imprensa onde só seria admitido «quem tivesse responsabilidade de carácter», que afastaria os desonrados, que obrigaria «todos os associados a assinar os seus escritos» para que pudessem ser responsabilizados, que criaria «um jornal da 02/06/2019 União dos Escritores Angolanos - A Dinâmica e o Estatuto Dos Jornalistas em Angola No Período da Imprensa Livre (1866-1923) https://www.ueangola.com/criticas-e-ensaios/item/170-a-dinâmica-e-o-estatuto-dos-jornalistas-em-angola-no-período-da-imprensa-livre-1866-19… 5/8 classe que publicasse permanentemente os nomes dos associados» e que isolaria os jornais que «não fossem dignos de pertencer à associação». Apesar de ser um texto de 1894, contém elementos que fazem parte de muitos códigos de ética das associações jornalísticas modernas, definindo critérios de admissão, conduta profissional, sentido de responsabilidade e outros instrumentos necessários para o jornalista profissional. Este texto é mais um exemplo de que havia neles a consciência de uma classe profissional e para perceber isto é necessário nos contextualizarmos, se não continuar-se-á agarrado ao adjectivo «amador», atributo que eles, certamente, não faziam uso para caracterizar a sua participação na imprensa. Embora reconheçamos que o jornalismo no seu conjunto ainda não tinha atingido altos níveis, e que periódicos como Folha do Sul servem para ilustrar esta situação com a sua publicação altamente irregular, é necessário identificar casos que nos indiquem um sentido contrário àquele que tem vindo a ser seguido pelos estudiosos. Outros exemplos podem ser encontrados no próprio livro de Castro Lopo. É o caso de José de Macedo, jornalista e publicista em Portugal, que recebeu um convite do Grémio Português de Luanda para dirigir o periódico A Defeza de Angola, ou os casos de Júlio Lobato, director do Voz de Angola, e de Francisco Pereira Batalha, proprietário, director e redactor do periódico A Província, que trabalharam, primeiramente em Portugal como jornalistas . Por isso, não nos devemos admirar que José Pinto da Silva Rocha, proprietário e redactor principal do jornal O Mercantil foi considerado o «primeiro jornalista profissional de Angola», pois a isto se devem certamente os 27 anos de existência da sua publicação. A essa lista de eleitos para o estatuto de «jornalistas profissionais» poderíamos acrescentar os nomes de José de Fontes Pereira, Urbano de Castro, Alfredo Mântua, Mamede Sant’Ana e Palma, Lino de Sousa Araújo, Arantes Braga, Júlio Lobato, pelos anos que dedicaram a esta actividade e também pela forma como a exerceram, que passa pelo esforço de manterem as suas publicações, embora muitas vezes não conseguissem. Mas a luta resultava num novo título, na maneira como conseguiam gerir a questão do relacionamento entre o poder e a imprensa que, em muitas ocasiões, se mostrava extremamente difícil e até perigosa, nos temas que eram trazidos para a discussão reflectindo, assim, as preocupações vividas e levantadas pelos membros da sociedade colonial e também por aquilo que fizeram ao terem sido participantes activos na existência do fenómeno jornalismo em Angola, porque «[…] parecendo coisa trivial, ser jornalista exige predicados e impõe compromissos de tal ordem que bem pode dizer-se que não é jornalista quem quer […]» . Será coerente chamar a fase imprensa livre como sendo de um jornalismo «episódico», quando se reconhece que foi nela em que se lançaram as basespara a edificação daquilo que hoje chamamos de literatura angolana? Quando se reconhece que foi neste período que se produziu um discurso com características proto- nacionalistas? Certamente que não. Porque ao reconhecermos esses dois elementos, implicitamente estamos a valorizar a sua produção, e quando, ao lermos os jornalistas e escritores dos períodos subsequentes, encontramos vastas referências aos membros da imprensa livre, significa que a sua foi continuada. Obrigado. Luanda, aos 14 de Abril de 2004. Cronologia sumária de alguns factos ligados à imprensa em Angola até 1923 1836 - Sá da Bandeira manda, no artigo 13.º do Decreto de 7 de Dezembro, criar nas possessões ultramarinas portuguesas publicações que pudessem transmitir as informações (legais, comerciais e gerais) necessárias ao público residente na colónia. 1842 - As máquinas para a montagem de uma tipografia em Luanda que Joaquim António de Carvalho Menezes, um filho do país, trazia afundam no Atlântico, segundo José de Fontes Pereira por orientação das autoridades metropolitanas. 1845 - Por iniciativa do Governador Geral, Pedro Alexandrino da Cunha, sai a 13 de Setembro o primeiro número do Boletim do Governo Geral da Província de Angola. É o início da imprensa em Angola (Primeiros Passos). 1847 - A partir do n.º 95 de 3 de Julho, o Boletim do Governo Geral da Província de Angola passou a designar-se Boletim Official do Governo Geral da Província de Angola. 1856 - Surge Aurora, o primeiro jornal de carácter literário e recreativo, fundado por Ernesto Marecos, F.Teixeira da Silva, Alexandre Balduíno e Alfredo Sarmento. 02/06/2019 União dos Escritores Angolanos - A Dinâmica e o Estatuto Dos Jornalistas em Angola No Período da Imprensa Livre (1866-1923) https://www.ueangola.com/criticas-e-ensaios/item/170-a-dinâmica-e-o-estatuto-dos-jornalistas-em-angola-no-período-da-imprensa-livre-1866-19… 6/8 1866 - O Decreto de 1 de Outubro tornava extensiva às províncias ultramarinas o Decreto de 17 de Maio de 1866 sobre a lei de liberdade de imprensa em vigor na metrópole. - A 6 de Dezembro, sai a edição n.º 1 do periódico A Civilisação da Africa Portugueza, fundado por António Urbano Monteiro de Castro e Alfredo Júlio (Imprensa Livre). 1867 - Em Setembro, António Urbano Monteiro de Castro, Alfredo Mântua e Francisco Pereira Dutra são condenados por crime de abuso de liberdade de imprensa. Situação que se repetiu em Novembro, tendo Francisco Pereira Dutra morrido na prisão. 1870 - A 9 de Julho, sai o primeiro número do jornal O Mercantil, que teve uma duração de 27 anos, sob liderança de José Pinto da Silva Rocha. 1873 - A 25 de Janeiro, sob mandato do Administrador do concelho de Luanda e aprovação do Governador Geral, são encerradas as oficinas d’O Mercantil e apreendidos os seus meios. Esta medida foi suspensa por decreto do Ministro e Secretário dos Negócios da Marinha e Ultramar, Andrade Corvo. - A 16 de Junho, publica-se o n.º 1 do periódico O Cruzeiro do Sul, fundado por Lino Maria de Sousa Araújo (um mestiço que era igualmente editor) e Francisco António Pinheiro Bayão (europeu, capitão do exército português). Neste periódico, colaboraram o Padre António Castanheira Nunes, Urbano de Castro, José de Fontes Pereira, o Cónego António José do Nascimento. 1881 - José da Ressurreição Arantes Braga é condenado a 40 dias de prisão acusado de injúrias. - A 12 de Novembro, publica-se a edição n.º 1 do jornal O Echo de Angola, o primeiro periódico da chamada imprensa africana, sendo as responsabilidades económicas e de redacção dos africanos. O seu proprietário e redactor principal era Inocencio Mattozo da Câmara. 1886 - José de Fontes Pereira publica no periódico O Futuro de Angola uma série de artigos com a temática «A Independência de Angola» em que aborda o chamado «tempo de ouro» da comunidade angolense, critica a política colonial portuguesa e perspectiva uma autodeterminação de Angola 1890 - Em Janeiro, José de Fontes Pereira publica um artigo em que aconselhava os Ingleses a negociarem com os africanos na qualidade de «donos da terra» e não com os Portugueses, tendo provocado uma reacção violenta por parte dos colonos. Como consequência, o periódico O Arauto Africano passou a designar-se O Polícia Africano com alterações na sua política editorial. 1891 - Publica-se a edição única e anónima do jornal O Tomate, em Fevereiro, onde consta um artigo intitulado «Independência d’Angola», no qual se pretende mostrar a teia de relações existentes entre os filhos do país no litoral e os soberanos africanos no interior; os protagonistas da resistência à penetração portuguesa são saudados como heróis e se simula um acto de proclamação da independência de Angola. 1896 - O Decreto de 26 de Novembro estabelece a punição como crime de abuso de liberdade de imprensa todos os que se cometerem com publicidade, por qualquer meio de impressão, ou estampagem, periódica ou não periódica, independentemente do tamanho. 1898 - O Decreto de 11 de Agosto estabelece que todos os crimes de abuso de liberdade de imprensa seriam julgados em processo de polícia correccional, qualquer que fosse a pena aplicável. 1901 - Publica-se a obra Voz d’Angola Clamando no Deserto, um conjunto de artigos originais e transcritos, em resposta a um artigo publicado no jornal Gazeta de Loanda intitulado «Contra lei, pela grei», em que o autor estigmatiza o homem negro. Na resposta, os angolenses fazem uso das estatísticas oficiais para mostrar a eficiência do trabalhador africano, criticam a política colonial e a discriminação social e racial a que estavam sujeitos. 1902 - Em Janeiro, inicia-se a publicação da revista literária Luz e Crença sob direcção de Pedro da Paixão Franco com a participação de Silvério Ferreira e Francisco Castelbranco. 1909 - Fim do jornal O Angolense, devido aos desentendimentos entre os seus membros (Francisco das Necessidades Castelbranco, director, Augusto Silvério Ferreira e Pedro da Paixão Franco, redactores, Eusébio Velasco Galiano, editor), provocado por um processo judicial a que o jornal foi sujeito. 1913 - Os jornais Independente e A Verdade são suspensos por ordem de Norton de Matos, Governador Geral, por considerar que colocavam em «perigo» a ordem na colónia. A suspensão durou dois meses, foi discutida 02/06/2019 União dos Escritores Angolanos - A Dinâmica e o Estatuto Dos Jornalistas em Angola No Período da Imprensa Livre (1866-1923) https://www.ueangola.com/criticas-e-ensaios/item/170-a-dinâmica-e-o-estatuto-dos-jornalistas-em-angola-no-período-da-imprensa-livre-1866-19… 7/8 nas Cortes na metrópole. 1916 - O Decreto de 31 de Julho estabelece a censura preventiva aos periódicos e outras publicações, que seria exercida por comissões a nível dos distritos e concelhos. 1919 - Portaria n.º 149, de 8 de Maio, na qual se revogava a Portaria nº 291, abolindo, neste caso, a censura preventiva. 1922 - Acusados de incitarem as populações «indígenas» a revoltarem-se contra as autoridades coloniais, foi dissolvida a Liga Angolana, encerrado o jornal Angolense e foram detidos muitos «nativos», entre os quais António de Assis Júnior e Narciso do Espírito Santo. Facto conhecido com a «Revolta de Catete». 1923 - A 16 de Agosto, sai o n.º 1 do jornal A Província de Angola, fundado por Adolfo Pina. (Jornalismo Industrial e Profissional). Alguma bibliografia para o estudo da imprensa em Angola: ANDRADE, Mário Pinto de, Origens do nacionalismo africano: continuidade e ruptura nos movimentos unitários emergentes da luta contra a dominação portuguesa: 1911-1961, Lisboa, Dom Quixote, 1997. BITTENCOURT, Marcelo, Dos jornais às armas. Trajectórias da contestação angolana, Lisboa, Vega, 1999. CASTRO LOPO, Júlio de, Para a história do jornalismo de Angola, Luanda, Imprensa Nacional, 1952. _____, Jornalismo de Angola. Subsídios para a sua história, Luanda, CITA, 1964. COELHO, Sebastião, Angola: história e estórias da informação, Luanda, Executive Center, 1999. LOURENÇO, João Pedro da Cunha, A imprensa e a problemática da liberdade de imprensaem Angola: 1866- 1923 (dissertação de licenciatura em Ciências da Educação, especialidade História, apresentada ao Departamento de Ciências Sociais do Instituto Superior de Ciências da Educação ISCED/Luanda – da Universidade Agostinho Neto), Luanda, 2003. MELO, João, Jornalismo e política, Luanda, UEA, 1991. OLIVEIRA, Mário António Fernandes de, Alguns aspectos sociais de Luanda inferidos dos anúncios publicados na sua imprensa Análise preliminar ao ano de 1891, Separata do Boletim do Instituto de Investigação Científica de Angola, Luanda, n.º 7 (1), [1970]. _____, Reler África, Coimbra, Instituto de Antropologia/Universidade de Coimbra, 1990. _____, A formação da literatura angolana (1851-1950), Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1997. Os periódicos como fonte de pesquisa histórica. A imprensa escrita de Angola do séc. XIX, Luanda, AHN, 1993 SILVA, Rosa Cruz e, «O nacionalismo angolano. Um projecto em construção no século XIX? Através de três periódicos da época: O Pharol do Povo, O Tomate e O Desastre”, in Actas do II Seminário sobre a História de Angola «Construindo o passado angolano: as fontes e a sua interpretação», CNCDP, Lisboa, 2000, pp. 741- 802. Voz de Angola clamando no Deserto, 2.ª ed., Luanda, UEA, 1984. Notas Esta comunicação deriva da nossa dissertação A imprensa e a problemática da liberdade de imprensa em Angola: 1866-1923, apresentada ao Departamento de Ciências Sociais do Instituto Superior de Ciências da Educação (ISCED - Luanda) da Universidade Agostinho Neto, em 2003, para obtenção do grau de Licenciatura em Ciências da Educação, opção História, sob orientação do Prof. Doutor. Boubacar Namory Keita e co-orientação da Profª. Maria da Conceição Neto, pessoas a quem mais uma vez agradeço pela leitura atenta e sugestões feitas ao presente texto. 02/06/2019 União dos Escritores Angolanos - A Dinâmica e o Estatuto Dos Jornalistas em Angola No Período da Imprensa Livre (1866-1923) https://www.ueangola.com/criticas-e-ensaios/item/170-a-dinâmica-e-o-estatuto-dos-jornalistas-em-angola-no-período-da-imprensa-livre-1866-19… 8/8 2 CASTRO LOPO, Júlio de, Jornalismo de Angola. Subsídios para a sua história, Luanda, CITA, 1964, pp. 19-20. 3 CASTELBRANCO, F., História de Angola. Desde o descobrimento até a implantação da República (1482- 1910), Luanda, Edição do Autor, 1932, p. 56. 4 COELHO, Sebastião, Angola: história e estórias da informação, Luanda, Executive Center, 1999, pp. 105- 113. 5 Ibidem, p. 104. 6 Ibidem, p. 133. 7 Cf. «Correspondência de Benguela», in Independente, Ano II, n.º 32 (136), 18 de Agosto de 1913, p. 2. 8 CASTRO LOPO, J. de, op. cit., pp. 26-27. 9 Ibidem. 10 Em 1869, o General Robert Lee, comandante dos exércitos do Sul na guerra civil dos Estados Unidos,, concedeu 50 bolsas para o Lexington College aos jovens que desejassem ser jornalistas, depois, ainda nos EUA, Pulitzer fundou a primeira escola de jornalismo universitário, exemplo que foi seguido no resto da América do Norte e na Europa. Cf. SOUSA, Fernando Tude de, Jornalismo e Educação, Rio de Janeiro, 1955, p. 16. 11 Ibidem, p. 21. 12 Ibidem. 13 «Notícias», in Voz de Angola, Ano 1.º, n.º 16, 19 de Abril de 1908, p. 3. 14 «A situação da imprensa», in Independente, Ano 8.º, n.º 380, 10 de Março de 1922, p. 1. 15 «A vida do jornalista», in O Benguella, Ano 1.º, n.º 17, 9 de Março de 1907, pp. 1-2. 16 Ibidem. 17 In O Mercantil, 2.º Ano, n.º 44, 4 de Maio de 1871, p. 1. 18 «Associação de Jornalistas», in Sul d’Angola, Ano 3.º, n.º 44, 20 de Agosto de 1894, p. 3. 19 CASTRO LOPO, J. de, op. cit., 20 LEMOS, A. de, Nótulas Históricas, Luanda, Fundo do Turismo e Publicidade, 1969, p. 227. 21 «Júlio Lobato», in A Reforma, Ano 1.º, n.º 26, 27 de Maio de 1911, p. 1. Ler 12315 vezes