Prévia do material em texto
EDUCAÇÃO POPULAR Cléa Coitinho Escosteguy Revisão técnica: Caroline Bastos Capaverde Graduada em Psicologia Especialista em Psicoterapia Psicanalítica Catalogação na publicação: Karin Lorien Menoncin – CRB 10/2147 P974 Psicologia social [recurso eletrônico] / Daiane Duarte Lopes... [et al.] ; [revisão técnica: Caroline Bastos Capaverde]. – Porto Alegre : SAGAH, 2018. ISBN 978-85-9502-524-0 1. Psicologia social. I. Lopes, Daiane Duarte. CDU 316.6 Psicologia Social_BOOK.indb 2 15/08/2018 15:32:36 Conceituando comunidade Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Reconhecer o conceito de comunidade. Analisar como se forma uma comunidade. Identi� car o valor da história comunitária. Introdução Você sabia que “comunidade” significa um grupo de pessoas que vivem dentro de uma mesma área geográfica, rural ou urbana, unidas por in- teresses comuns? As comunidades variam quanto ao tamanho e à organização, compre- endendo tipos bem diferentes, podendo ser uma aldeia ou uma grande cidade. Neste capítulo, você irá apreender o conceito de comunidade e entender como se dá a formação desse grupo. O conceito de comunidade Geralmente, a comunidade é defi nida como uma unidade constitutiva de uma sociedade mais ampla, mas as sociedades tribais, que podem ser consideradas protótipos de comunidades, muitas vezes representam unidades autossufi cientes e soberanas. A palavra “comunidade” pode ser usada para descrever vários tipos de grupos. Mesmo considerando o amplo leque de aplicações, a definição do termo tem passado, sobretudo, pela dimensão subjetiva. Ao tentar definir o termo “comunidade”, pode-se enfocar, inicialmente, a questão da territorialidade e pode-se, também, associar o termo a um dos elementos que perpassam o viver comum, ou seja, ao sentimento de pertencimento; ao sentimento coletivo de “nós”. Segundo Bauman (2003), esse sentimento propicia o estabelecimento de interconexões de comunicação, desde o mais primitivo momento histórico até a vida contemporânea. De forma mais incisiva, pode-se afirmar que o sentimento de pertença e a existência de objetivos comuns são os alicerces para efetivar os elos entre os membros da comunidade, pois seria aquilo que mantém as pessoas unidas apesar de todos os fatores que poderiam separá- -las. A dimensão subjetiva se coloca, assim, como mais significativa do que outras dimensões, como a da espacialidade, também inegavelmente associada à ideia de comunidade. O vínculo social mantido em um determinado espaço pode ser entendido como parte de uma comunidade se esse vínculo se der a partir de alguma crença, etnia, tradição ou outra característica comum que una os que compartilham desse vínculo. Conforme Bauman (2001), conforme o avanço da sociedade na modernidade, os contextos em que se dão esses vínculos se modificam. De uma sociedade feudal para uma sociedade de capitalismo avançado, muitos são os motivos para que as pessoas se unam organizadas socialmente segundo variados critérios. Consensos se formaram sobre o processo de modernização no século XX de forma a retratar uma sociedade que se complexifica, se segmenta e, ao mesmo tempo, se concentra nas grandes cidades. Figura 1. Vínculo das comunidades. Fonte: Arthimedes/Shutterstock.com. Comunidade, segundo Redfield (1989), é um agrupamento distinto de outros agrupamentos humanos, sendo “[...] visível onde uma comunidade começa e 113Conceituando comunidade onde ela acaba.”. O autor define a comunidade como sendo: pequena, a ponto de seus limites estarem sempre ao alcance da visão daqueles que a integram; autossuficiente, de modo que atenda a todas as necessidades e ofereça as atividades necessárias para as pessoas que fazem parte dela; e independente dos que estão de fora. Embora as definições de Redfield (1989) sejam referentes às formas que tomavam as comunidades principalmente agrárias, que ainda sobrevivem hoje em alguma medida, e as anteriores à nossa modernidade pós-revolução industrial, é possível traçar uma referência ao nosso convívio moderno e nas formas que uma comunidade toma em nossa realidade. Trata-se, então, de não apenas um corpo ou um objeto, mas também de uma construção ideológica que se baseia na necessidade individual da segurança, do conforto, da familiaridade e do sentimento de pertencimento, de que fazemos parte de algo maior que nossa individualidade, da delimitação do “nós” (o familiar) e dos “outros” (o estranho). Nesse ponto, o autor Bauman (2001, p. 89) nos esclarece: “[...] pertencer a uma comunidade significa renegar parte de nossa individualidade em nome de uma estrutura montada para satisfazer nossas necessidades de intimidade e da construção de uma identidade.”. Como se forma uma comunidade Por muito tempo, o conceito de comunidade fi cou restrito à ideia de um grupo de pessoas que reside em uma mesma área geográfi ca, compartilhando um modo de vida e uma cultura – em geral vizinhos e familiares. Na contemporaneidade, quando a virtualidade entrou em cena, as mudanças espaciais se tornaram mais rápidas e diferentes culturas passaram a conviver em um mesmo espaço, essa concepção passou a ser questionada, ganhando caráter mais amplo. Hoje, o conceito refere-se a um grupo de pessoas que compartilham algo em comum, como uma história comum, um objetivo comum, uma determinada área geográfica ou práticas comuns, como as comunidades quilombolas, as comunidades virtuais e as comunidades escolares. Segundo Tönnies (1947), as relações comunitárias prescindem, pelo menos a priori, da necessidade de igualdade e liberdade das vontades. Em grande medida, constituem-se por razões de determinadas desigualdades “naturais”, como aquelas encontradas entre sexos, idades ou forças físicas e morais dis- tintas, como se dão nas condições materiais de existência. Sua origem repousa na consciência da dependência mútua determinada pelas condições de vida Conceituando comunidade 114 comum, pelo espaço compartilhado e pelo parentesco: por isso, se realiza como comunidade de bens e males, esperanças e temores, amigos e inimigos, mobilizada pela energia liberada por sentimentos envolvidos, como afeto, amor e devoção. Figura 2. Constituição de uma comunidade. Fonte: Antonina Tsyganko/Shutterstock.com. Para Tönnies (1947), uma teoria da comunidade teria que adensar funda- mentalmente sua raiz nas disposições gregárias estimuladas pelos laços de consanguinidade e afinidade (sejam relações “verticais”, entre pais e filhos, ou “horizontais”, entre irmãos e vizinhos), caracterizando-se pela inclinação emocional recíproca, comum e unitária; pelo consenso; e pelo mútuo conheci- mento íntimo. Postulou, assim, o que seriam suas “leis principais” de formação de comunidades: a) parentes, cônjuges, vizinhos e amigos que se gostam reciprocamente; b) entre os que se gostam, há consenso; c) os que se gostam se entendem, convivem e permanecem juntos – orde- nam sua vida em comum (TÖNNIES, 1947). 115Conceituando comunidade Os padrões de relações comunitárias, segundo Tönnies (1947), se realizam territorialmente por três núcleos espaciais: a casa, a vila e a cidade. Ainda que se possa ponderar a predominância da sociabilidade de família na casa, de vizinhança na vila e de afinidade espiritual na cidade, enquanto formas comunitárias de sociabilidade, Tönnies (1947) imaginava os três padrões imbricados em cada uma de suas extensões espaciais, de maneira que a cidade, enquanto o possível lócus mais evoluído desse esquema, compartilharia, a seu modo, de todos os elementos das formações socioespaciais precedentes, pelo menos em um primeiro momento, e em uma morfologia mais rudimentar. Porém, admitia que, na cidade, a irmandade profissional fosse a mais alta expressão da ideia de comunidade. Tönnies (1942) formulou sua teoria da sociedade e da comunidade: se na comunidade os homens permanecem unidos apesar de todas as separações, na sociedade per-maneceriam separados não obstante todas as uniões. Na sociedade, cada vontade seria reconhecida socialmente como unidade subjetiva, moralmente autônoma, independente e autossuficiente, estando para si em um estado permanente de tensão com as demais, sendo as intromissões de outras vontades, na maioria das vezes, aludidas como ato de hostilidade. Assim, o vínculo social mantido em um determinado espaço pode ser entendido como parte de uma comunidade se esse vínculo se der a partir de alguma crença, etnia, tradição ou outra característica comum que una os que compartilham desse vínculo. Conforme o avanço da sociedade na modernidade, os contextos em que se dão esses vínculos se modificam. O valor da história comunitária Quando se pensa em uma comunidade, se pensa em uma pequena cidade plural (PESAVENTO, 1995) onde é possível encontrar pessoas de múltiplos discursos e olhares e também com questionamentos que vão construindo as marcas do social, pois a comunidade não é apenas um ponto no mapa – ela é a marca de vida e representação de cada morador. A trajetória da comunidade pode ser ilustrada com cenas vividas por moradores e imagens. Burke (2004) Conceituando comunidade 116 faz essa refl exão quando afi rma que as imagens “[...] são testemunhas mudas, e é difícil traduzir em palavras o seu testemunho. Embora o testemunho de imagens, como o dos textos, suscite problemas de contexto, função, retórica, recordação, testemunho de segunda mão, etc.” (BURKE, 2004, p. 18). Assim, a memória individual não fica isolada por estar ligada a outras memórias – como individual e histórica. Todas juntas remontam e recontam a trajetória desse espaço. A vivência em vários grupos desde a infância estaria na base da formação de uma memória autobiográfica, pessoal, pois relacionar-se com o outro é enriquecer a convivência. Conforme Jenkins (2005), “o passado já aconteceu” – e, por já ter acontecido, só pode ser trazido de volta por meio dos historiadores. Em suas palavras: Ele já passou, e os historiadores só conseguem trazê-lo de volta mediado por veículos muito diferentes, de que são exemplo os livros, artigos, documentários etc., e não como acontecimentos presentes. O passado já passou, e a história é o que os historiadores fazem com ele quando põem mãos à obra (JENKINS, 2007, p. 25). Organizar e rever a história de comunidades é passar a limpo tudo que é vivido, e tudo isso passa a fazer parte da memória. Às vezes, é vivido pesso- almente; outras, pelo grupo ou pelo coletivo, mas é sempre uma construção de histórias. 117Conceituando comunidade Figura 3. Construção da história comunitária = união. Fonte: america365/Shutterstock.com. Buscar no fundo de nossa memória fatos ou imagens é descortinar e dar luz aos nossos pensamentos que estão guardados – e até mesmo adormecidos – e que em certo momento são reativados. Como observa Pollak (1989), passamos por uma rearrumação de memória. A memória apoia-se sempre sobre o passado vivido, que permite a constituição de uma narrativa sobre o que o sujeito já viveu de forma viva e natural, mais do que sobre o passado apreendido pela história escrita: a memória é constituída por atores sociais. A memória é constituída por pessoas, personagens. Aqui também podemos aplicar o mesmo esquema; falar de personagens frequentadas por tabela, indiretamente, mas que, por assim dizer, se transformaram quase que em conhecidas, e ainda de personagens que não pertenceram necessariamente ao espaço-tempo da pessoa (POLLAK, 1989, p. 2). Conceituando comunidade 118 Assim, a imagem é a história, conforme Burke (2004). Seu uso serve para, além da rearrumação da memória, a reconstrução do passado, falando do cotidiano de pessoas comuns e trazendo à tona imagens que são marcantes no que diz respeito à composição da história comunitária. O uso da história oral, bem como das narrativas que dela se originam, estimula a escrita de uma história que não é uma representação exata do que realmente existiu, mas que se esforça em apresentar uma inteligibilidade e em compreender a forma como o passado chega até o presente. O que o indi- víduo escreve não é aquilo que se passou, mas uma produção discursiva. São produzidas narrativas orais, que são narrativas de memória. Essas, por sua vez, são narrativas de identidade, pois o entrevistado não apenas mostra como ele vê a si mesmo e o mundo, mas também como ele é visto por outro sujeito ou por uma coletividade. Nesse sentido, “[...] a dependência da memória, em vez de outros textos, é o que define e diferencia a história oral em relação a outros ramos da História.” (ALBERTI, 2005). A origem de várias ideias, reflexões, sentimentos e paixões que atribuí- mos a nós são, na verdade, inspiradas pelo passado. Para além da formação da memória, Halbwachs (2004) aponta que as lembranças podem, a partir dessa vivência em grupo, ser reconstruídas ou simuladas. Podemos criar representações do passado embasadas na percepção de outras pessoas, no que imaginamos ter acontecido ou pela internalização de representações de uma memória histórica. A memória individual não está isolada. Frequentemente, tomam como referência pontos externos ao sujeito. O suporte em que se apoia a memória individual encontra-se relacionado às percepções produzidas pela memória coletiva e pela memória histórica. A vivência em vários grupos desde a infância estaria na base da formação de uma memória (HALBWACHS, 2004). Peter Burke (2004), a partir de seus estudos, afirma que montar a história das comunidades é enfatizar o valor da intensificação de uma cadeia que traz somente benefícios ao pesquisador ou historiador, enriquecendo a pesquisa, pois as testemunhas desse lugar são os moradores que vivem todos os dias essa rotina de comunidade e sabem falar desse espaço com sentimento. Amar o espaço em que se vive, lutar por ele e vê-lo sempre com possibilidade de melhorias é compactuar com Bachelard (1998), quando afirma que é preciso dizer como habitamos o nosso espaço vital de acordo com todas as dialéticas da vida, como nos enraizamos, dia a dia, num “canto do mundo”. “A casa é o nosso canto do mundo. Ela é, como se diz amiúde, o nosso primeiro universo. É um verdadeiro cosmos. Um cosmos, em toda a acepção do termo. Vista intimamente, a mais humilde moradia não é bela?” (BACHELARD, 1974). 119Conceituando comunidade Refletir sobre a casa como o “canto do mundo” e relacioná-la com o espaço da comunidade, bem como aos relatos de moradores, é pensar em um lugar que, apesar de inúmeras características, é sempre rico em histórias e lembranças que compõem todo esse cenário. Conceituando comunidade 120 ALBERTI, V. Manual de história oral. 3. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2005. BACHELARD, G. A poética do espaço. São Paulo: Abril Cultural, 1974. BACHELARD, G. A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria. São Paulo: Martins Fontes, 1998. BAUMAN, Z. Comunidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. BURKE, P. Testemunha ocular: história e imagem. Bauru: EDUSC, 2004. HALBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2004. JENKINS, K. A história repensada. São Paulo: Contexto, 2005. PESAVENTO, S. J. Em busca de uma outra história: imaginando o imaginário. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 15, n. 29, p. 9-27, 1995. POLLAK, M. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 3-15, 1989. REDFIELD, R. Little community and peasant society and culture. Chicago: University of Chicago Press, 1989. TÖNNIES, F. Comunidad y sociedad. Buenos Aires: Losada, 1947. TÖNNIES, F. Princípios de sociologia. México: Fondo de Cultura Económica, 1942. Encerra aqui o trecho do livro disponibilizado para esta Unidade de Aprendizagem. Na Biblioteca Virtual da Instituição, você encontra a obra na íntegra.