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<p>Teoria e Prática "As pessoas não são O problema, O problema é O entoando esse refrão ao longo do livro, David Anderson Hooker propõe usufruir do potencial transformativo inerente a todo e qualquer conflito, ao apresentar a Conferência Comunitária Transformativa. Essa mudança de foco, da pessoa para O problema, convida a uma expansão do olhar que, com a devida dedicação e cuidado, desbloqueia posições de entrincheiramento, pois O esforço se aplica, primordialmente, a mudanças no ato de se comunicar. Pela mudança do modo de nos comunicarmos, Transformar oportunidades se abrem para transformações individuais, estruturais, enfim, culturais. Seres culturais que somos, O pressuposto é que nossas vidas ganham sentido pela harmonização das nossas histórias individuais e comunitárias com as grandes narrativas que nos Comunidades envolvem sem que percebamos sua existência. Com frequência, essas grandes narrativas perpetuam traumas e contribuem com a sustentação de cenários prolongados de violência. A ideia é explorar as origens das grandes narrativas e as causas Uma abordagem prática e positiva ao diálogo de episódios traumáticos para, então, pensar em possibilidades de transformação e de construção de novos significados. A proposta da Conferência Comunitária Transformativa é oferecer uma ambiência acolhedora e respeitosa, dedicada à qualidade da comunicação. Um espaço de interação para a promoção de escuta, alteridade, reconhecimento, troca, aprendizado... Baseando-se, dentre outros, em exemplos práticos caracterizados pela tensão racial no sul dos Estados Unidos, David Anderson Hooker é como se O autor se empenhasse em colocar em prática as palavras de Martin Luther King: "Precisamos aprender a viver juntos como e irmãos, senão pereceremos como tolos". ISBN Palas Athena 9 788560 804405 SÉRIE DA REFLEXÃO À AÇÃO</p><p>of da da TEORIA E PRÁTICA DAVID ANDERSON HOOKER, é TRANSFORMAR professor associado de Prática de Transformação de Conflito no Kroc COMUNIDADES Institute for International Peace Studies na Keough School of Global Affairs da University of Notre Dame. Trabalha como mediador, facilitador, e agente comunitário desde 1982. Tem auxiliado grupos, organizações, congregações, comunidades e governos locais e nacionais na condução de importantes conversas em torno de assuntos delicados. Foi diretor de pesquisa e treinamento do Coming to the TABLE Taking America Beyond the Legacy of Enslavement, e cofundador do Greensboro Counter Stories Project. Série Da Reflexão à Ação As ideias neste pequeno livro também foram fundamentadas no seu trabalho em comunidades pós conflito na Bósnia, Cuba, Myanmar, Nigéria, Somália, Sudão do Sul, assim como muitas comunidades pelo sul dos Estados Unidos.</p><p>David Anderson Hooker TRANSFORMAR COMUNIDADES Uma abordagem prática e positiva ao diálogo Tradução: Luís Fernando Bravo de Barros Palas Athena</p><p>Título original: The Little Book of Transformative Community Conferencing: A Hopeful, Practical Approach to Dialogue Copyright 2016 by Dr. David Anderson Hooker Grafia segundo O Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009. Coordenação editorial: Lia Diskin CONTEÚDO Preparação de originais: Eloisa da Riva Moura e Van Acker Revisão: Rejane Moura Capa e Projeto gráfico: Vera Rosenthal Arte final: Jonas Gonçalves Produção e Diagramação: Tony Rodrigues Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) 1. GERAL 5 (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Qual é a história? 8 Hooker, David Anderson Sobre este livro 10 Transformar comunidades : uma abordagem prática e positiva ao diálogo / David Anderson Hooker; tradução de Fernando Bravo de Barros. Rumo a comunidades curadas e reconciliadas 14 São Paulo: Palas Athena, 2019. Estrutura do livro 14 Título original: The Little Book of Transformative Community A Hopeful, Practical Approach to Dialogue 2. PALAVRAS SÃO IMPORTANTES - GLOSSÁRIO DE TERMOS USADOS NO LIVRO 17 ISBN 978-85-60804-40-5 Narrativa 18 1. Administração de conflitos 2. Desenvolvimento comunitário 3. Desenvolvimento organizacional I. Título. História-problema 19 Narrativas dominantes e preferidas 20 18-22111 CDD-307.14 Performativo 21 Índices para catálogo Traumatogênico 22 1. Comunidades: Desenvolvimento: Sociologia 307.14 Coordenador 24 Facilitador edição, fevereiro de 2019 24 Problemática Todos os direitos reservados e protegidos 25 pela Lei 9610 de 19 de fevereiro de 1998. Reconciliação 26 É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer meios, sem a autorização prévia, por escrito, da Editora. 3. QUE SÃO CONFERÊNCIAS Direitos adquiridos para a língua portuguesa por Palas Athena Editora TRANSFORMATIVAS - CCT? 29 Alameda Lorena, 355 Jardim Paulista 01424-001- São Paulo, SP Brasil Qualidades das Conferências Comunitárias Fone (11) 3050-6188 Transformativas 29 www.palasathena.org.br editora@palasathena.org.br CCT não é o mesmo que diálogo 42</p><p>4. ESBOÇO DO MODELO DE CONFERÊNCIA TRANSFORMATIVA - MODELO CCT 45 7. HABILIDADES DO FACILITADOR DE CONFERÊNCIA 46 COMUNITÁRIA TRANSFORMATIVA Uma palavra sobre os participantes 83 Passos básicos do modelo 48 Engajamento facilitado 83 1. Reflexão desconstrutiva 84 2. Escuta dupla 5. o MODELO CCT - PARTE 1: MAPEAR NARRATIVAS 51 87 51 3. Nomear ideias ausentes, porém implícitas 89 Diálogo-ensaio 1. Mapeamento de narrativas comunitárias/ Como um facilitador escuta, identifica e organizacionais - continua na Parte 2 54 reelabora uma história alternativa 91 1.1. Externalização de conversas: explicitar as 54 8. CONFERÊNCIA TRANSFORMATIVA principais problemáticas 1.2. Mapeando os impactos das problemáticas EM AÇÃO 95 em todas as esferas da vida 65 Violência racial em Greensboro, Carolina do Norte 95 1.3. Sumarizando os impactos das narrativas Comunidade em busca de dominantes 69 Newtown, Gainesville, Geórgia 105 1.4. Mapeamento reverso: identificando desfechos Algumas adaptações dos métodos de CCT específicos como base para uma história alternativa 72 para trabalhar com organizações 110 1.5. Comparando narrativas dominantes e alternativas. 9. E AGORA? - CONCLUSÃO 115 6. MODELO CCT PARTE 2: Do MAPEAMENTO Notas 119 AO PLANEJAMENTO DA AÇÃO 75 Sobre autor 122 2. Escolha das narrativas preferidas dos participantes. 75 3. Construindo uma estratégia de transformação 77 Sumário de um processo de CCT 80</p><p>1 GERAL G reensboro, na Carolina do Norte, é uma cidade de médio porte no sul dos Estados Unidos marcada por cisões e de classe ao longo da história. Por vezes, essas cisões impuseram movimentos violentos de separação entre os dife- rentes grupos. É, também, uma cidade com uma tradição cen- de esforços por inclusão e desenvolvimento econômico uma história ofuscada por episódios antigos e recentes de violência de raça e de classe. A cidade tem se caracterizado por limitadas para a prática efetiva de diálogos em dessas difíceis questões. Nesse sentido, um comprome- limento contraproducente por civilidade resulta em conversas sobre assuntos de pouca importância, afastando mais as pessoas que desejam um diálogo mais aprofundado. Em 2013 um grupo de moradores de Greensboro trans- as barreiras de raça, de classe, de nacionalidade e para participar de uma espécie de conversa cha- mada Conferência Comunitária Transformativa - CCT.* Os resultados foram encorajadores: essas pessoas criaram uma comum à comunidade que levou em consideração diversos impactos que os aspectos de raça, etnia, classe, nacionalidade, gênero, sexualidade e emprego impunham à longo deste livro, em algumas ocasiões utilizamos apenas a forma de Conferência Comunitária Transformativa, CCT. [N. do E.] 5</p><p>TRANSFORMAR COMUNIDADES GERAL sua vida cotidiana. Puderam reconhecer e especificamente que ali operava e desconsideradas pelo governo local era nomear os padrões sistêmicos e relacionais que perpetuavam percebida como de pouca importância, restrita aos interesses desigualdades e alimentavam violência (i.e., a separação racial da população pobre, negra e parda daquele pequeno bairro. que definia a comunidade proporcionava uma sensação de Como resultado disso, não conseguiam a adesão de outros desconhecimento e insegurança que, por sua vez, resultava grupos à sua pauta. A promoção de conversas com diversos no paulatino aumento da vigilância policial). Elas também outros grupos comunitários, nos moldes de uma Conferência puderam nomear atividades positivas, ainda que menos reco- Comunitária Transformativa, motivou o início de uma coalizão nhecidas, e laços relacionais que apontavam para uma comu- multirracial interclasses baseada em narrativas mais abran- nidade mais esperançosa (i.e., a prática de diálogos informais gentes e inclusivas. A CCT contribuiu com a causa delas. entre policiais e moradores sem documentação acolhidos por Em Decatur, na Geórgia, uma organização sem fins uma organização da sociedade civil local). Por fim, elas vis- lucrativos, com número pequeno de funcionários mas de lumbraram uma cidade diferente baseada numa história mais abrangência nacional, chamada Hometown enfrentava desa- abrangente e inclusiva. Consequentemente, os resultados da fios internos sobre como honrar seus valores institucionais. Conferência Comunitária Transformativa se tornaram a base A tensão dividiu os funcionários, promovendo rancor e ani- de esforços para reestruturar relações polícia/comunidade, mosidade pessoal. A organização corria o risco de perder os explorar novas abordagens de desenvolvimento econômico, funcionários mais experientes e dedicados. Um plano estra- e envolver governo local, comerciantes e faculdades no aco- tégico, iniciado com a estrutura da Conferência Comunitária de moradores imigrantes e sem documentos com- Transformativa, lhes probatórios de cidadania. O grupo escolheu para si nome a) humanizar cada um - as pessoas não eram problema; Greensboro Counter Stories Project [Projeto do Balcão de b) identificar os problemas resultados de um plano de Histórias de Greensboro]. Embora exista muito ainda por ação incoerente; fazer, a abordagem CCT oferece uma estrutura para iden- c) estabelecer confiança necessária para a promoção tificar e lidar com questões difíceis de modo mais positivo. de mudanças estruturais substanciais. Em Gainesville, na Geórgia, um grupo de mulheres afro- -americanas mais velhas formou Newtown Florist Club para Muitas comunidades e organizações que experimentam chamar atenção aos excessivos índices de mortalidade e de fragmentação têm utilizado práticas de justiça restaurativa doença resultantes da poluição industrial que afetava as pesso- para lidar com a marginalização fundada em categorizações as de todas as idades vivendo na comunidade. A história delas de raça, etnia, religião, nacionalidade e orientação sexual. era importante e tocante. Elas obtiveram muitas vitórias, algu- Frequentemente as comunidades tentam de tudo para mas menores outras maiores. Mesmo assim, durante os pri- conflitos e violência, desde hospedagem inter-racial e diálo- meiros vinte anos da organização, a história-problema delas go, até imersão cultural, treinamento sistêmico em análise de a forma como as pessoas eram desrespeitadas pela indústria relações de poder com base em raça, ou reconhecimento de</p><p>VISÃO GERAL TRANSFORMAR COMUNIDADES preconceitos implícitos. Em Greensboro foram experimenta- trama, personagens, conflitos e temas. O processo de enqua- dos inúmeros métodos, inclusive a implementação da primeira drar todas as observações e descrições dentro de uma nar- comissão de verdade e reconciliação no território estaduniden- rativa particular determina quais são os comportamentos, se. Ainda que cada um desses esforços contribua, em alguma emoções e expectativas adequados. O modelo da Conferência medida, para a inclusão, a igualdade e a justiça, os desfechos Comunitária Transformativa se beneficia do impacto causado são parecidos: divisão, polarização, desconfiança, ressenti- pelas narrativas e histórias na vida de determinada comuni- mento, frustração e distanciamento. Alguns se perguntam: dade. A CCT proporciona ambientes de reunião nos quais as "Estamos condenados a uma vida de divisões e desigualdade?" pessoas podem superar desavenças anteriores para lidar com A Conferência Comunitária Transformativa é uma abordagem questões difíceis, imaginar, planejar e trabalhar em prol de de engajamento comunitário e de mudança que depende de uma comunidade baseada em relacionamentos e na alocação certos princípios primordiais à maioria das abordagens de dos recursos humanos para, assim, criar estruturas que se justiça restaurativa, como procedimentos inclusivos e avalia- alinhem com a narrativa escolhida. ção abrangente de ofensas em curso. O modelo CCT vai além Da mesma forma como influenciam indivíduos, as nar- de práticas restaurativas tradicionais, uma vez que usufrui rativas também guiam os comportamentos e as emoções do potencial de relatos narrativos para conectar nas organizações ao proporcionarem significado a estrutu- cias individuais de ofensas atuais às suas origens sistêmicas ras e relacionamentos Nas organizações nos relacionamos e estruturais, e às narrativas e discursos sociais que oferecem com as outras pessoas dentro da estrutura de narrativas. significado e legitimação a tais sistemas e estruturas. Passamos significados a novos membros da nossa organiza- por intermédio de histórias contadas a partir da estrutu- QUAL É A HISTÓRIA? ra narrativa de dado ambiente organizacional. A maioria das Hoje a história e poder da narrativa são reconheci- organizações se estruturam em torno de narrativas invisíveis dos como aspectos significativos para a transformação de para as pessoas que a habitam. Por consequência, muitos conflitos, muito mais do que se imaginava. As pessoas dão processos de mudança estrutural e esforços para resolver significado às suas vidas e estruturam seus relacionamentos episódios conflituosos específicos acabam sendo ineficien- e aspirações na forma de histórias. Os tes, caso não se dediquem, primeiramente, à compreensão eventos e as observações na vida das das narrativas que norteiam os comportamentos. Na verda- As pessoas dão pessoas são (re)significados a partir de, talvez as maneiras pelas quais as pessoas saibam viver significado de histórias completamente novas ou as suas histórias reforcem os próprios problemas que elas às suas vidas de histórias em curso. As histórias que se esforçam em resolver. na forma de contamos se conformam, em geral, a processo de Conferência Comunitária Transformativa histórias. padrões de grandes narrativas. Toda convida as pessoas a levar em conta modelos de narrativas narrativa possui um contexto, uma até então desconsiderados que possam reforçar ou reproduzir 8</p><p>TRANSFORMAR COMUNIDADES VISÃO GERAL as condições problemáticas e, tam- inclusivas que apoiam a dignidade da vida e pela alocação bém, a identificar eventos e obser- sustentável dos recursos comunitários. A transformação var de maneira diferente, alinhada Diante de iniquidades duradouras e tensões comunitárias, acontece por com as suas narrativas preferidas. em especial quando impregnadas em sistemas e estruturas, meio da criação de narrativas Se as pessoas norteiam a vida de diálogo é quase sempre necessário, mas nunca suficiente preferidas. acordo com narrativas, e se orga- para se alcançar transformação. Muitas vezes as pessoas se nizações e comunidades se formam deparam com oportunidades para diálogo sem, no entanto, por narrativas, então, acredito que que isso apresente resultados práticos. Ao refletirem sobre elas possam ser transformadas pela elaboração de narrati- experiências vividas, os participantes afirmam que diálogo, vas que apoiem uma vivência preferida; elas podem, então, quando é promovido de maneira inadequada, acaba por refor- determinar quais relacionamentos, recursos e estruturas sus- çar divisões, contribuindo com a sensação de conformismo. tentariam a construção dessa realidade preferida. Em geral, as atitudes da comunidade se mostram inadequadas para produzir mudanças substanciais. Pior ainda, algumas SOBRE ESTE LIVRO atitudes aumentam potencial negativo do conflito entre pes- Este é um livro pequeno sobre uma grande ideia. Muitas soas bem-intencionadas que possuem diferentes experiências comunidades que possuem experiências traumatogênicas se de vida, diferentes prioridades e diferentes concepções do estruturarão com alto grau de desigualdade sistêmica. Raça, que seja transformação. O modelo de CCT apresentado neste religião, etnia ou classe social frequentemente dividem pes- livro oferece às comunidades e organizações a esperança de soas em grupos, proporcionando diferente qualidade de vida que um outro futuro é possível. entre moradores e visitantes por conta de algum aspecto de sua identidade. Em geral os conflitos se nas comu- nidades, e as linhas divisórias são mantidas por sistemas Este livro sobre Conferência Comunitária Transfor- baseados em lógicas há muito abandonadas ou desacredi- mativa oferece uma para engajar a tadas. No entanto, pelo fato de tais linhas divisórias serem comunidade de maneira a lidar com conflitos e divisões persistentes e defendidas de maneira ferrenha, a esperança históricas baseadas no trauma. de mudanças significativas acaba sendo deixada para trás. A grande ideia deste livro é: mesmo essas comunidades e organizações podem ser transformadas. Pessoas, organiza- A Conferência Comunitária Transformativa é inovadora. ções e comunidades que tenham vivido, por gerações, com Nela reconhecemos e damos atenção à necessidade de con- os vestígios do trauma social e cultural podem superar sua e de construção de laços relacionais. O processo iden- história e construir comunidades igualitárias caracteriza- as dinâmicas de poder nas estruturas e histórias que das por relacionamentos justos e respeitosos, instituições dão forma às experiências dos indivíduos em comunidades e 10 11</p><p>VISÃO GERAL RANSFORMAR COMUNIDADES m organizações. É importante deixar claro: não se pretende Abordagem Similar à CCT Diferente da CCT pontar a diferença entre CCTs e outras metodologias com de se estabelecer um desses processos como superior. Processos (1) Utiliza modelos de (1) A CCT escuta as Dialógicos história que descrevem histórias não para meu ver, cada um deles tem sua importância, sua utilidade experiências vividas levantar os fatos, seu valor; a identificação de distinções se presta a auxiliar pelos participantes. mas para entender a moldura narrativa leitor na seleção da metodologia mais apropriada para o que norteia os rabalho ao qual se relacionamentos (2) A CCT foca em processos de Abordagem Similar à CCT Diferente da CCT mudança e não apenas no aumento Justiça (1) Busca iden- (1) Na CCT, não há de compreensão. Restaurativa tificar danos de a necessidade de maneira ampla. categorizar partici- Investigação (1) Usa observações (1) A CCT desenvol- (2) Processos pantes pelo paradig- Apreciativa correntes como base ve afirmações claras inclusivos. ma vítima/ofensor. para a construção sobre ambas: a nar- (2) A CCT não é de visões positivas rativa problemática focada na respon- do futuro. e a narrativa prefe- sabilização por rida que sustenta injustiças históricas. a visão positiva. Antes, mantém (2) Isso também foco no estabeleci- permite uma melhor mento de um futuro percepção das preferido e em lidar relações de poder com impedimen- que guiam e restrin- tos presentes. gem as relações. Terapia Narrativa (1) Compartilha (1) A CCT foca no e Mediação pressuposto de que aspecto perfor- Para além de ser uma simples abordagem de diálogo, as Narrativa as pessoas não são mativo das narra- tivas coletivas. CCTs são conduzidas de maneira a naturalmente proporciona- problema, O problema A Conferência é problema. rem estruturas que atendam às prioridades práticas da comu- Comunitária (2) Utiliza práticas nidade. Ao mesmo tempo em que a Conferência Comunitária Transformativa se e técnicas de nar- baseia, em grande rativa, incluindo: Transformativa se implementa de maneira assertiva, ela tam- parte, no ritmo da (i) Externalização bém se baseia num conjunto de premissas teóricas interligadas terapia de conversas. (ii) Escuta dupla. de modo sofisticado, algumas das quais são referenciadas mas e da mediação com (iii) A construção de não plenamente exploradas no presente livro. O conhecimento algumas distinções narrativas preferidas. aprofundado de tais princípios teóricos não se faz necessário importantes. para implementar a CCT de forma efetiva.</p><p>TRANSFORMAR COMUNIDADES RUMO A COMUNIDADES CURADAS Capítulo 5: Descrição da Parte 1 do modelo CCT, mape E RECONCILIADAS mento comunitário e narrativas organizacionais. A Conferência Comunitária Transformativa é um processo Capítulo 6: Descrição da Parte 2 do modelo CCT, similar, em certa medida, a outros modelos de cura e recon- de narrativas preferidas e planos de ação. ciliação, de visão comunitária e de construção de paz, ou Capítulo 7: Habilidades dos facilitadores de CCT. abordagens de resolução de conflitos. As CCTs enfatizam a Capítulo 8: Alguns exemplos de aplicação das CCTs. criação de um alicerce para processos adicionais de cura e Capítulo 9: Conclusão com algumas sugestões de reconciliação, nos âmbitos organi- proceder. zacional e comunitário, que podem, As Conferências em determinado momento, abran- A Conferência Comunitária Transformativa é uma prá Comunitárias ger círculos restaurativos, investi- ca estruturada que convida à análise e ao comprometimer Transformativas gação apreciativa, dentre inúmeras comunitário. O modelo é construído sobre três element são imbuídas outras metodologias. Na busca pelo essenciais: transformação, comunidade e conferência. do espírito de estabelecimento de um senso de mesma maneira que novas narrativas podem transform convite. integridade e de relacionamentos relacionamentos e estruturas, novas linguagens podem saudáveis em dada comunidade formar modo de nos relacionarmos. O próximo (i.e., reconciliação), é importante apresenta a linguagem da CCT. Cada termo é vital para reconhecer a existência de muitos processos valiosos. É útil planejamento e implementação de esforços transformativ estabelecer uma estrutura abrangente para determinar qual em prol de mudanças. metodologia deve ser aplicada. As CCTs proporcionam O esta- belecimento dessa estrutura abrangente como forma de sus- tentar a aplicação ideal de diversas outras metodologias. ESTRUTURA DO LIVRO Capítulo 2: Glossário de termos relacionados à CCT - a forma mais efetiva de aplicação dos princípios inerentes à CCT depende do uso de algumas palavras e metáforas. Capítulo 3: Explicação sobre qualidades particulares às CCTs e uma discussão sobre como funcionam as narrati- vas comunitárias. Capítulo 4: Esboço do modelo CCT.</p><p>2 PALAVRAS SÃO IMPORTANTES - GLOSSÁRIO DE TERMOS USADOS NO LIVRO A transformação é difícil de ser alcançada e improvável de se sustentar enquanto indivíduos, organizações e comunidades continuam a operar dentro dos mesmos mode- los narrativos. Uma forma de transformar as narrativas é mudar as palavras e metáforas usadas para descrever ou explicar um dado contexto. Este pequeno livro possui diver- SOS termos que são intencionalmente utilizados para alterar a visão de quem A linguagem da Conferência Comunitária Transformativa Narrativa Traumatogênico História-problema Coordenador e Narrativas dominantes Facilitador Narrativas preferidas Problemática Performativo Reconciliação 17</p><p>TRANSFORMAR COMUNIDADES PALAVRAS SÃO IMPORTANTES GLOSSÁRIO DE TERMOS USADOS NO LIVRO Embora num primeiro momento os termos possam pare- HISTÓRIA-PROBLEMA cer estranhos, estimulo os leitores a utilizá-los, aplicando as O que faz de uma história uma história-problema? A definições oferecidas abaixo em vez de fazer uma substituição história-problema é aquela na qual as pessoas não iden- mental por um termo mais familiar. Permita que a transfor- tificam suas posturas preferidas, pois ela não se enquadra mação comece... na narrativa vigente. Quando, no âmbito de um dado molde narrativo, a natureza dos personagens, a direção do enre- NARRATIVA do ou O enquadramento do conflito não proporcionam uma O termo narrativa com frequência é usado como sinô- sensação de pertencimento e protagonismo, a pessoa per- nimo de história. As duas palavras, ainda que intimamente ceberá essa situação como um problema. Os personagens, relacionadas, não são sinônimos. Seguindo Jerome Bruner, o contexto e enredo representam construções definidas as CCTs funcionam a partir da concepção de que "as pesso- culturalmente. Frequentemente, as narrativas são conside- as realizam representações de da vida muito radas incontestáveis. mais segundo o molde de uma história bem estabelecida Em um contexto, por exemplo, no qual um casal heteros- do que de acordo com fatos ou realidades". Dessa forma, a sexual decide dar fim à sua relação, há entendimentos cultu- narrativa diz respeito ao delineamento ou à estrutura mais ralmente definidos em torno dos "papéis apropriados" para geral de uma trama e a certos tipos de "marido" e para a "esposa". Em geral a história-problema personagens. Uma história é um caso se encontra na adesão a tais papéis culturalmente construí- dos. Quando uma parte se baseia em uma narrativa especí- Narrativas mais específico dentro de uma narra- são tiva. Por exemplo: a jornada do herói fica (i.e., o homem tradicional) e a outra parte se baseia em diferentes é um molde narrativo. A Odisseia, O outra narrativa (i.e., a mulher livre), é mais provável que o de histórias. Mágico de Oz, O Senhor dos Anéis, e conflito surja a partir das diferentes expectativas e da gama até contos infantis como Chapeuzinho de posturas disponíveis para cada um dos papéis na sua res- Vermelho e A Pequena Locomotiva são, pectiva narrativa. Quando tentamos transformar um conflito, cada uma delas, histórias contadas a partir da base narrativa localizar problemas no âmago de determinadas narrativas da jornada do herói. O cenário ou contexto, os personagens culturalmente construídas nos ajuda a perceber as pessoas e a especificidade do conflito podem variar, mas a base da de forma destacada de seus problemas, ampliando assim as narrativa permanece. No esforço para transformar dado con- possibilidades tanto de criação de histórias quanto de ações texto comunitário, um componente-chave é primeiro desco- a serem tomadas. brir a estrutura narrativa que está na base da situação atual mesmo evento pode resultar em diferentes histórias. para, então, construir uma narrativa abrangente segundo É importante relacionar as histórias às narrativas cultu- a qual os membros da comunidade possam direcionar suas ralmente construídas. Quando se consegue localizar uma histórias individuais e conectar-se aos outros. história-problema fora do âmbito da pessoa, então pode-se 18 19</p><p>PALAVRAS SÃO IMPORTANTES GLOSSÁRIO DE TERMOS USADOS NO LIVRO TRANSFORMAR COMUNIDADES criar narrativas preferidas, ou melhor dizendo, outras his- história-problema para todo mundo, mas apenas para quem tórias podem ser contadas, como base de sustentação para pede por mudança. A transformação almejada por essas pes- experiências de vida preferidas. soas está contida em suas narrativas preferidas. Narrativas preferidas - a narrativa preferida de uma NARRATIVAS DOMINANTES E PREFERIDAS pessoa ou comunidade oferece uma gama de possibilidades Narrativas dominantes: as pessoas organizam e dão e ações que: sentido à sua vida dentro de estruturas narrativas. Poucas a) validam relacionamentos, estruturas e distribuição de dessas narrativas são construções originais. A maioria des- recursos equânimes; sas estruturas é inconscientemente herdada e reforçada por b) apoiam a sobrevivência dos participantes, sua prospe- sistemas, instituições e padrões relacionais preestabelecidos. ridade e sua contribuição plena com contexto em que Uma trama de múltiplas narrativas é descrita também como vivem. um discurso. Teorias sobre narrativa identificam discur- como "[...] um sistema Conflitos comunitários e relacionais ocorrem quando a de palavras, ações, regras, narrativa preferida de uma pessoa ou de um grupo é vista Uma narrativa ou crenças e instituições que como um empecilho à do outro. O objetivo da Conferência discurso se torna compartilham dos mesmos Comunitária Transformativa não é, necessariamente, cons- dominante quando valores. Determinados dis- truir uma narrativa preferida compartilhada para futuro, se configura como cursos sustentam deter com a qual todos concordem. Na verdade, a intenção é cons- estrutura primária pela minadas visões de mundo truir uma narrativa comunitária ampla que descreva um qual se estabelecem Podemos até pensar dis- futuro compartilhado no qual múltiplas narrativas prefe- as expectativas e explicações a respeito curso como uma visão de ridas possam coexistir. de comportamentos, mundo em emoções e pensamentos. Narrativas e discursos PERFORMATIVO sociais dominantes influen- termo performativo é usualmente entendido como uma ciam vigorosamente a esco- variação da palavra performance. Contudo, há uma diferença lha de quais histórias serão contadas e como serão contadas. muito importante relacionada à transformação. O conceito Discursos tendem a ser invisíveis presumimos que são parte de fala performativa foi originariamente descrito por J. L. integrante da realidade. Austin.5 Uma palavra ou expressão é considerada performa- A transformação passa a ser desejada quando discur- tiva quando estabelece circunstâncias, ao invés de apenas SOS dominantes são, ao mesmo tempo, histórias-problema. descrevê-las. Por exemplo, ao final de uma cerimônia de casa- Em comunidades marcadas por significante e persistente mento, quando O padre diz ao casal "Agora eu desigualdade, geralmente discurso dominante não é uma vos declaro marido e mulher", isso não é uma mera descrição 20 21</p><p>PALAVRAS SÃO IMPORTANTES GLOSSÁRIO DE TERMOS USADOS NO LIVRO TRANSFORMAR COMUNIDADES da situação do relacionamento, é estabelecimento de uma porque outras pessoas podem ser socialmente condiciona- circunstância. Do mesmo modo, quando um declara uma das a imitar as ações traumáticas por intermédio de padrões pessoa "inocente", não apenas descreve um fato histórico, relacionais. Da mesma forma, políticas públicas, sistemas e mas estabelece a circunstância de ausência de culpa. Nos estruturas podem ser construídos de modo a se perpetuarem seus contextos específicos, as pessoas se expressam de mui- e reproduzir padrões traumáticos comportamentais, mentais, tas maneiras que estão mais relacionadas ao estabelecimento emocionais e relacionais, sem que as pessoas ou as comuni- de circunstâncias do que à mera descrição delas. dades experimentem de forma direta eventos ou condições A transformação tem aspectos performativos que são tra- traumatogênicas. zidos à tona durante o processo de Conferência Comunitária Se uma pessoa, por exemplo, quase se afogou quando Transformativa. A transformação que deflagramos tem uma criança ou testemunhou afogamento de um amigo próximo, qualidade similar à Declaração de Independência dos Estados essa experiência pode ser traumatogênica. Esse trauma pode- Unidos da Quando da sua elaboração, essa declara- ria se expressar no comportamento dessa pessoa pelo medo e ção estabeleceu coisas que não existiam antes. Em seguida, distanciamento de piscinas e praias. Talvez manifestasse re- as pessoas passaram a organizar suas vidas e instituições em jeição emocional a comemorações realizadas em torno de apoio a ela. Em uma CCT, quando as pessoas declaram uma piscinas, ou viagens à praia nas férias; ela não gosta nem de narrativa preferida, tal declaração tem potencial para impac- uma coisa nem de outra, mas não relaciona isso com a expe- tar igualmente relacionamentos, organizações e comunidades. riência de quase-morte que teve na infância. Ao se tornar pai, ou mãe, talvez não permita que seu filho aprenda a nadar e, assim, a rejeição emocional a piscinas e praias será adota- Traumatogênico significa algo que gera trauma. Este da pela criança sem que ela tenha sofrido uma experiência ocorre quando situações são percebidas como ameaças à vida, traumatogênica. Os comportamentos, emoções e pensamen- ou como muito mais fortes que tos traumáticos são transmitidos para outra geração. Nesses a capacidade de reação de um casos, a transformação não depende da eliminação das condi- indivíduo ou de uma comunida- ções traumatogênicas na segunda geração; na verdade, será Trauma é o de. A situação ou o evento em si preciso alterar as narrativas que sustentam comportamentos, conjunto complexo de respostas não são o trauma. Trauma é um pensamentos e construções de significado. físicas, emocionais, complexo conjunto de respostas Na maioria dos casos de trauma comunitário e subse- cognitivas, físicas, emocionais, cognitivas, quentes desigualdades, evento em si não é traumático, mas espirituais e espirituais e relacionais a uma o significado construído a partir de tal evento torna trau- relacionais a uma experiência de total impotência. matogênico. Se toda uma comunidade ou grupo de pessoas experiência de total impotência. A distinção entre um evento e vivencia reações traumatogênicas, seus padrões comporta- uma resposta é importante mentais, emocionais, mentais e até significados espirituais 22 23</p><p>TRANSFORMAR COMUNIDADES PALAVRAS SÃO IMPORTANTES GLOSSÁRIO DE TERMOS USADOS NO LIVRO serão reforçados por membros do grupo que compartilham PROBLEMÁTICA de experiências similares ou que reiteram suas reações. Tais O termo problemática é, em geral, entendido como uma comportamentos, pensamentos e emoções, com passar do maneira academicamente sofisticada de se dizer problema. tempo, serão considerados "normais" e "culturais"; persistem Mas há uma importante diferença entre eles, que é propó- mesmo se as condições traumatogênicas forem alteradas ou sito de querer saber. Um problema é uma questão levantada totalmente eliminadas. para consideração ou solução; uma problemática descreve uma circunstância difícil de elucidar por não haver caminho COORDENADOR ou fórmula clara para a resolução. Um problema pode pare- Cabe ao coordenador de uma Conferência Comunitária cer difícil de se resolver, mas a resposta parece clara; uma Transformativa as seguintes tarefas: problemática, por sua vez, é algo mais desafiador, pois não há certeza sequer de que a pergunta apropriada foi formulada. a) colher as informações sobre histórico subjacente; Uma metáfora esclarecedora, utilizada pelos agentes de b) desenvolver escopo da discussão; paz John Paul e Angela Jill seria a distinção entre c) iniciar a elaboração de uma declaração sobre a proble- a solução de uma equação matemática e uma solução química. mática; Enquanto existem princípios específicos que determinam os d) esclarecer as e passos exatos a seguir para se alcançar a solução de um pro- e) gerenciar a logística em torno da realização do encontro. blema matemático, são muitas as formulações químicas pos- síveis para a produção de certos efeitos. Diante de uma pro- Coordenadores podem ser facilitadores, mas não neces- blemática, a abordagem a ser adotada é a identificação dos sariamente. efeitos desejados para então estabelecer, de acordo com as condições comunitárias, todas as várias combinações de rela- FACILITADOR cionamentos, recursos e estruturas que podem contribuir O facilitador é a pessoa, ou equipe de pessoas, que para a produção do efeito desejado. gerencia a CCT propriamente dita. Essas pessoas se res- ponsabilizam pelo gerenciamento do fluxo, do tempo, da Um problema uma problemática energia e do processo de construção de significado ao lon- Problema: é uma questão levantada para consideração go da conferência comunitária. Em trabalhos em grupo, ou solução. geralmente há uma diversidade mais extensa de habilidades, Problemática: descreve uma circunstância difícil de se razão pela qual faz mais sentido ter uma pessoa responsável elucidar por não haver caminho ou fórmula clara para pela coordenação, enquanto outras se responsabilizariam a resolução. pela facilitação. 24 25</p><p>TRANSFORMAR COMUNIDADES PALAVRAS SÃO IMPORTANTES GLOSSÁRIO DE TERMOS USADOS NO LIVRO RECONCILIAÇÃO e políticos são construídos e operados de forma a honrar e Reconciliação, solução de problemas e cura são, respecti- incentivar a plena expressão indi- vamente, os objetivos últimos da justiça restaurativa, da trans- vidual e grupal. Por fim, perfor- formação de conflitos e da cura de traumas. Compreender mativamente coiguais significa O propósito das onde e como promover a interação entre essas e outras meto- que cada grupo e indivíduo pos- CCTs é construir dologias para contribuir com a cura coletiva e possibilitar sui, em especial, acesso igual e comunidades e reconciliação é algo, muitas vezes, confuso. O entendimen- aos recursos necessá- organizações que se encaminhem para a to do conceito de reconciliação adotado pela abordagem da rios para a sobrevivência, bem- cura e reconciliação. Conferência Comunitária Transformativa nos auxilia a escla- estar e a contribuição significa- recer a maneira de utilizar outras metodologias como parte tiva à sociedade em que vive. de um conjunto complexo de atos nessa direção. Reconciliação é um conjunto interconectado de processos CONCLUSÃO que têm, como objetivo comum, estabelecimento de iden- Juntos, esses termos narrativas (dominante e preferida), tidades que são: história-problema, performativo, traumatogênico, coordena- dor, facilitador, problemática e reconciliação proporcionam a construídas relacionalmente; linguagem necessária para a implementação das CCTs. Ainda autênticas; que tais termos pareçam um pouco sofisticados, um certo dignas; nível de complexidade se faz necessário ao lidarmos com a interdependentemente conectadas; transformação de desigualdades profundamente enraizadas legitimadas; nas comunidades. No próximo capítulo será respondida a seguinte pergunta: O que são Conferências Comunitárias e performativamente coiguais. Transformativas? Construídas relacionalmente significa que as identidades são mútuas e recíprocas. Identidades autênticas são autogera- das como resultado de curas individuais e busca pessoal ou grupal. Ser digna descreve a circunstância na qual outra pes- soa, ou grupo de pessoas, respeita a autoexpressão autêntica. Interdependentemente conectadas salienta sentimento con- tínuo de inter-relacionamento, em que os vínculos são viven- ciados em espaços compartilhados e mutuamente benéficos. Identidades legitimadas são legal, sistemática e estruturalmen- te dignas, na medida em que sistemas e estruturas legais, sociais 26 27</p><p>3 O QUE SÃO CONFERÊNCIAS COMUNITÁRIAS TRANSFORMATIVAS? N as Conferências Comunitárias Transformativas, comu- nidades, organizações e indivíduos trabalham juntos em um esforço de descoberta com facilitação para: a) revelar as principais estruturas narrativas que norteiam suas vidas; b) perceber a presença de histórias alternativas que har- monizam mais com suas narrativas preferidas; identificar os padrões de relacionamento, os modos de distribuição de recursos, e que possam sustentar a narrativa preferida de dada comunidade; e d) utilizar suas descobertas como base para plano de transformação comunitária. QUALIDADES DAS CONFERÊNCIAS COMUNITÁRIAS TRANSFORMATIVAS Aqui serão descritas algumas importantes qualidades das CCTs, especialmente os aspectos transformativo e de narrativas comunitárias: 29</p><p>QUE SÃO CONFERÊNCIAS TRANSFORMAR COMUNIDADES A) Transformativa antiga de delito, baseada no senso A justiça restau- Um princípio inerente à Conferência Comunitária Trans- rativa se fundamenta em um conjunto de princípios e práticas formativa é a ideia esperançosa de que, com o devido foco e para vítimas de delitos que buscam maneiras de lidar com os comprometimento, pode haver mudança radical, não importa danos por elas vividos, e também responsabilização. O para- há quanto tempo certas condições estejam persistindo. Radical digma da justiça restaurativa busca reorientar a justiça na significa na raiz. As CCTs lançam as sementes e colocam a direção do cumprimento de treliça para permitir O florescimento de uma nova narrativa obrigações criadas pelas viola- comunitária. ções praticadas. Processos de A maioria das justiça restaurativa visam corri- comunidades de gir as coisas máximo possível. povos oprimidos e São muitas as distinções entre marginalizados não CCT e justiça restaurativa. quer "restauração", A linguagem da restauração mas sim buscar a pode ser confusa, especialmen- "transformação" de seu contexto. te no caso do trauma e opressão históricos e multigeracionais. Restauração pareceria indicar o reestabelecimento dos "bons tempos", quando os relaciona- mentos entre grupos diferentes eram, de alguma forma, mais positivos, inclusivos, respeitosos e equânimes. Considera-se a justiça restaurativa como aplicável em contextos institucionais e comunitários nos quais critérios e regras para julgar com- portamentos errados e ofensivos tenham sido estabelecidos. Um objetivo primordial dos processos de justiça restaurativa é a restauração de um equilíbrio dentro do contexto das regras e convenções relacionais acordadas. Contudo, de modo fre- quente, as regras que pautam os relacionamentos foram 1. Transformação não é o mesmo que justiça restaurativa as mesmas que criaram contexto que ensejou o dano, e As CCTs refletem a ênfase curativa da justiça restaurativa são uma preocupação tanto quanto dano em si. mas, ao mesmo tempo, não são uma abordagem restaurativa Nos casos de populações marginalizadas e desigualdades no sentido clássico do termo. Howard Zehr resume a justiça profundas e duradouras, tais regras foram, em geral, estabe- restaurativa como algo fundado "em uma concepção muito lecidas por um grupo e impostas aos outros. Usualmente, são</p><p>QUE SÃO CONFERÊNCIAS TRANSFORMATIVAS? TRANSFORMAR COMUNIDADES também as narrativas dominantes, perpetuadas por regras e realidades. As ideias que concebemos sobre o que "deveria convenções, que auxiliam na manutenção de desigualdades. ser" são construídas a partir das histórias que herdamos sobre Regras e estratégias de convivência são, às vezes, baseadas como as coisas são. É difícil, se não impossível, transformar em narrativas de inferioridade de um grupo perante outro. sistemas e estruturas se todo mundo vem do mesmo sistema. Tácita ou explicitamente, regras institucionais fazem sentido Narrativas preferidas também são importantes no nível por conta de narrativas dominantes que as Sem organizacional. Geralmente, em instituições e organizações um conjunto de regras e normas de convivência acordadas comunitárias, parece que uma abordagem restaurativa é ade- de modo coletivo, que determine quem está errado, a respon- quada para restaurar desequilíbrios, para curar feridas. sabilização se torna mais difícil. A Conferência Comunitária Contudo, de tempos em tempos, é importante atualizar ali- Transformativa busca, de maneira intencional, envolver todos nhamento de valores organizacionais com seus respectivos os setores da comunidade no de se nomear e cons- relacionamentos, recursos e truir uma nova narrativa comunitária, que reflita os lugares estruturas. Na medida em que igualmente estimados e compartilhados de modo equânime a organização ou instituição A Conferência por todas as pessoas. passa a ser habitada por novas Comunitária Um objetivo primordial da Conferência Comunitária pessoas, e uma vez que os con- Transformativa é um Transformativa é identificar ou desenvolver narrativas textos se alteram, valores e modelo de atuação que sustenta sistemas preferidas, que se tornem a base para as regras e relacio- princípios que se tornaram de transformação por namentos a partir de então. velados precisam ser explici- intermédio de uma O pressuposto operacional para as CCTs é que comuni- tados. Assim, a maneira pela análise de poder e dades são, ao longo do tempo, cocriadas e sustentadas por qual valores e princípios são da expressão reelabo- todos os atores e instituições. A persistência de situações de expressos pode ser aceita ou rada de valores. opressão e marginalização indica a necessidade de estabelecer rejeitada e atualizada para novos valores compartilhados, que não são necessariamente contexto vigente. os valores que levaram à necessidade de um processo de CCT. Em sua discussão sobre a relação entre poder e saber, 2. A transformação se inicia no epicentro filósofo francês Michel Foucault afirma que "é impossível A intenção da Conferência Comunitária Transformativa entender a dinâmica das relações de poder de um dado sistema é mudar radicalmente as relações de poder de toda a rede de de dentro desse mesmo sistema". Abordando essa questão sistemas e instituições que condicionam as dinâmicas comu- por uma outra perspectiva, é complicado para pessoas estu- nitárias em curso. Uma metáfora útil para melhor entender darem e analisarem suas próprias histórias de modo objetivo. como iniciar transformações, conforme descrita por John A maneira pela qual as pessoas dão sentido às suas vidas e Paul é a do terremoto. Um terremoto é resultante realidades é, via de regra, condicionada por essas mesmas do deslocamento ou realinhamento das placas 32 33</p><p>TRANSFORMAR COMUNIDADES QUE SÃO CONFERÊNCIAS TRANSFORMATIVAS? De fato, o ponto onde o realinhamento ocorre seria descrito produto das CCTs é a declaração como epicentro do tremor. O impacto do realinhamento é explícita de uma narrativa preferida As narrativas sentido em inúmeras comunidades e tais impactos são os efei- que oriente ações transformativas apontam na tos episódicos do tremor. em prol de um futuro compartilha- direção da Comunidades buscando mudança geralmente direcionam do. Pelo fato de a transformação ser transformação, seu foco a um episódio conflituoso um tiroteio envolven- um processo de longo prazo, uso de ao passo que do a polícia, um incidente racial, um ato de discriminação, narrativas é essencial para sucesso as ações fazem acontecer as ou a prática de violência contra uma criança ou um adulto do trabalho. Enquanto a narrativa pre- mudanças. que esteja fora da conformidade de ferida aponta para a transformação, a gênero. A maioria de tais incidentes caminhada diária, as ações dos mem- reflete diversos conjuntos de proble- Episódios são bros da comunidade, vão viabilizando mas. Transformar toda uma comuni- sintomas de caminhos diferentes. dade a partir do ponto de vista de um questões mais único evento distorce a natureza da profundas. B) Narrativas comunitárias são multidimensionais, narrativa de dada comunidade. Cada interseccionais e, com frequência, "altamente episódio é um sintoma que poderia visíveis ainda que não vistas". ser adequadamente identificado como uma representação Com passar do tempo, toda organização e comunida- sintomática de questões mais profundas. Conferências de adota um determinado "jeitão". Esse "jeito" é geralmente Comunitárias Transformativas exploram formas de se tra- descrito como a "cultura" organizacional ou comunitária: a zer à tona essas questões mais profundas. Quando a trans- maneira como as pessoas se relacionam umas com as outras, formação se inicia a partir do epicentro, ela tem impactos e a presença, ou centralidade, de uma narrativa dominan- múltiplos e vibrantes. te. Com frequência, há inclusive uma história referência que serve como mito fundante ou como história central da 3. Transformação é um processo de longo prazo. comunidade. Quando novos membros ou visitantes têm sua A identificação de narrativas dominantes e a definição ou primeira experiência dentro de uma organização ou visitam escolha de narrativas preferidas alternativas pode acontecer uma comunidade, eles ficam conhecendo a cultura vigente. num curto período de tempo, de poucos dias a alguns meses. No entanto, seria um erro pressupor que ter consciência da Contudo, a transformação leva mais tempo. Ela ocorre quan- dominante significa ter entendimento suficiente do os relacionamentos, recursos e estruturas são alterados para preparar um processo de transformação. Isso porque de acordo com a nova narrativa preferida, e quando com- as narrativas são complexas. Narrativas comunitárias são portamentos (incluindo pensamentos e emoções) em favor multidimensionais, interseccionais e, em geral, "altamente da narrativa transformada tenham se tornado habituais. visíveis ainda que não vistas". 34 35</p><p>QUE SÃO CONFERÊNCIAS TRANSFORMAR COMUNIDADES 1. Narrativas comunitárias são multidimensionais exemplo, ao se mudar para uma comunidade, uma pessoa Como uma novela, peça teatral ou filme, toda comunidade pode reparar nos padrões residenciais e na localização dos possui uma história de fundo. Pode haver experiências mais estabelecimentos comerciais. A situação pode, em geral, ser abrangentes, comunidade. geralmente de triunfo ou tragédia, inclusão ou explicada pela repetição de uma história comunitária padrão. opressão, que são centrais para a história da Porém, movimentos culturais, como a alteração de padrões Contudo, ter consciência dessas histórias centrais não bastará residenciais que impliquem em variações demográficas nas para explicar a cultura comunitária ou escolas locais, impactam de maneira diversa cada pessoa, organizacional. A composição de uma família, departamento, vizinhança e grupo racial/étnico, bem comunidade muda em razão de nasci- como seu senso de status social, autonomia, relacionamentos, Toda mentos, mortes, imigração ou emigra- equidade, e até sobre a esperança que tem para futuro e seu comunidade ção. Organizações se alteram por inter- lugar As respostas pessoais e sistemáticas a movimen- possui uma história de médio de crescimento, redução de tama- tos culturais de mudança talvez revelem algumas questões não fundo. nho, contratações, demissões, mudança examinadas sobre narrativas ocultas: que significa, para de produtos e destinação dos serviços. pessoas de categorias raciais, étnicas ou de classe diferentes, Junto com essas mudanças acontecem conviver num espaço residencial compartilhado? alterações sutis, e às vezes drásticas, na natureza das pessoas Ao permitir que histórias sejam contadas e, simultanea- e das identidades. No entanto, algumas histórias, valores e mente, que uma narrativa compartilhada seja construída, instituições unificantes continuam iguais. Isso significa que a Conferência Comunitária Transformativa tira proveito da culturas organizacionais e comunitárias estão sempre em natureza multidimensional das narrativas comunitárias. metamorfose, ao mesmo tempo em que algumas caracterís- ticas fundamentais são mantidas. 2. Narrativas comunitárias são interseccionais Quando as pessoas chegam a uma comunidade, elas se A identidade, ou a maneira como vemos a nós mesmos, é tornam conscientes das narrativas visíveis. influenciada por histórias que contamos sobre nós mesmos em Cada pessoa traz uma história e uma narrativa para con- relação a narrativas preferidas e dominantes. As identidades tribuir com a comunidade. Toda pessoa e família se posiciona pessoais e de grupo em geral são formadas pela combinação de modo diferente em relação aos eventos centrais da comu- de várias narrativas. A combinação de narrativas é chama- nidade. Uma reiteração estática dos eventos não transmite da de corrente narrativa. Numa corrente narrativa existe os diversos impactos e respostas a eventos significantes e um conjunto básico de histórias que influenciam entendi- arranjos organizacionais rotineiros. Mudanças podem pro- mento que um indivíduo tem de sua identidade e seu lugar porcionar benefícios a alguns e ao mesmo tempo causar danos e papel dentro da organização ou comunidade que podem a outros. O que algumas pessoas vivenciam como sendo pro- se basear na sua idade, raça, gênero, religião, habilidades gresso outros experimentam como violação à dignidade. Por físicas, tamanho, inteligência, linhagem familiar, certificados 36 37</p><p>TRANSFORMAR COMUNIDADES QUE SÃO TRANSFORMATIVAS? ou qualificações acadêmicas e profissionais, e muitas outras sistemas sociais. Pode haver uma gama de papéis para garo- variáveis. Usualmente, as correntes narrativas não produzem e mulheres ensinados em casa via corrente narrativa. Tais uma identidade específica e predeterminada. Contudo, se a papéis podem estar alinhados ou não com as correntes nar- maioria das narrativas na corren- rativas a respeito delas na escola, na comunidade religiosa ou te são similares, oferecendo uma no mercado de trabalho. A opressão maneira estreita de ser homem ou restringe a mulher, jovem ou idoso, negro ou identidade, limitando as branco, e assim por diante, ela é Quanto mais ampla a gama de correntes narrativas (i.e.) maneiras de agir uma narrativa quanto menos comprimida a corrente narrativa), maior das pessoas. Repressão e desigualdade social a disponibilidade de escolha no tocante a identidades resultam de narrativas comprimi- e seus respectivos papéis. das, por reforçarem histórias domi- nantes e opressivas. Uma narrativa comprimida é uma corrente, porém muito estreita, que molda identidades Quando as narrativas sobre identidade em uma comunida- e limita as maneiras aceitáveis, ou cabíveis, segundo as de são mais comprimidas, é muito provável que as pessoas se quais a pessoa ou grupo deve agir, pensar e se relacionar sintam mais limitadas quanto à expressão de seus comporta- limitação imposta tanto ao indivíduo como a quem o mentos. Se um homem ouve em casa, na escola e no trabalho observa. Narrativas comprimidas são altamente resistentes que mulheres são cidadãs inferiores, é provável que ele as à pois em geral a opressão é invisível, e esse é um tratará como tais. Se um homem é criado em um lar onde a aspecto insidioso de muitas instituições sociais. No âmbi- figura masculina é abalizada como dominante, mas descobre to da educação, por exemplo, a narrativa de que uma certa na escola e no mercado de trabalho que igualdade de gênero classe de pessoas é menos inteligente se refletirá, de forma é algo importante, uma nova e possivelmente conflitante cor- inconsciente, na maneira como os professores propõem as rente narrativa se torna disponível a ele para vivenciar sua atividades, no tipo e quantidade de recursos oferecidos, e nas identidade masculina. expectativas dos professores em relação a tais alunos. Quanto É importante lembrar que cada pessoa e cada grupo se aos próprios estudantes, muitos de seus familiares e colegas compõe de inúmeras e diferentes narrativas interseccionais, aceitarão aquela narrativa e a reforçarão dizendo coisas do provavelmente narrativas demais para serem nomeadas ou tipo: "Isso não é algo que eles deixam a nossa gente fazer; contadas. Algumas narrativas oferecem mais escolhas do você deveria ter expectativas realistas sobre a sua vida; pare que outras. Em dada comunidade ou organização, as expe- de tentar ser superior". riências do dia a dia podem variar de pessoa para pessoa, Um outro exemplo: os papéis individuais de gênero pois suas identidades existem na intersecção de diversas são aprendidos por intermédio de interações com variados correntes narrativas. 38 39</p><p>TRANSFORMAR COMUNIDADES QUE SÃO CONFERÊNCIAS COMUNITÁRIAS TRANSFORMATIVAS? Uma característica de sociedades altamente opressivas é, em geral, a existência de um traço identitário especí- Nos Estados Unidos, na sequência do 11 de setembro fico que se sobrepõe e impede a consideração de todos de 2001, que foi um conjunto de eventos traumatogê- os outros. Em certas comunidades, por conta de narrativas nicos para algumas pessoas, alguém tentou embarcar muito comprimidas, se uma pessoa é tida como de certa ori- com explosivo líquido em um avião e, em outro caso gem étnica, suas opções serão limitadas, não importando similar, uma pessoa tentou detonar um dispositivo quão inteligente, bela, talentosa ou progressista ela seja. escondido na sola de um calçado. Mesmo tratando-se Mesmo duas pessoas que compartilhem uma mesma carac- de apenas dois casos entre milhares e milhares de terística identitária podem, na mesma comunidade, vivenciar voos, agora todo aeroporto nos Estados Unidos limita relacionamentos e instituições de maneira muito diferente. tamanho de recipientes com líquidos carregados nas Por exemplo, se diz que "a riqueza acoberta um mundaréu bagagens de mão, assim como todo passageiro tem de pecados". Se uma pessoa é rica, muitas vezes não impor- seu calçado revistado. Mesmo décadas após os eventos ta sua beleza física, inteligência, talento ou inúmeros outros iniciais, é bem possível que pessoas jovens e visitan- aspectos. E, vice-versa, em algumas comunidades, ser visto tes não saibam das histórias por trás desses proce- como tendo certa herança racial ou étnica imporá limites à dimentos, mas, mesmo assim, deverão se adequar às gama de comportamentos esperados, não obstante a riqueza suas Isso é um exemplo de como as de dada pessoa: como no caso de um jogador de basquete conversas se extinguiram com o passar do tempo. A profissional, tido também como afro-americano ou latino, que performance da narrativa, porém, é "altamente visível, é mais vigiado ao entrar numa loja de joias. A experiência ainda que não vista". acontece na intersecção de diversas identidades e, por isso, as narrativas comunitárias que sustentem transformação precisam ser interseccionais. As práticas narrativas das Conferências Comunitárias 3. Narrativas comunitárias são, com frequência, Transformativas criam um ritmo de conversação lento sufi- "altamente visíveis, ainda que não vistas" ciente para revelar tais narrativas, permitindo sua exploração As conversas desaparecem. Há certos eventos e expe- Se os relacionamentos e sistemas influenciaram riências que definem uma organização ou comunidade. Os momentos e contextos diferentes, a CCT proporciona a opor- sistemas se transformam e, por consequência, os relaciona- tunidade de se escolher uma base nova, e preferida, para mentos mudam constantemente. Ainda que os acontecimentos estabelecimento de relacionamentos; um novo conjunto de sejam discutidos perto do momento em que ocorreram, com valores para alicerçar os sistemas e instituições que vinculam tempo as conversas se extinguem. Contudo, os sistemas as pessoas em comunidade. guardam um registro permanente. 40</p><p>TRANSFORMAR COMUNIDADES QUE SÃO TRANSFORMATIVAS? CCT NÃO É O MESMO QUE DIÁLOGO De modo semelhante à investigação apreciativa (veja tabela O formato da conversação é importante. diálogo no Capítulo 1), a CCT é um processo. Seu produto final é um pode ser uma prática relevante em muitos esforços de trans- mapa ou diagrama para a cura e reconciliação de longo pra- formação comunitária. Processos dialógicos proporcionam zo, no nível organizacional ou A transformação oportunidades para trocar pontos de vista e compreender comunitária requer uma mudança na intenção e na prática outras perspectivas de modo mais profundo e completo. Esse dos relacionamentos, uma diferente alocação de recursos tipo de diálogo, no entanto, não foi especificamente dese- para suportar novas intenções, e uma reinvenção de estru- nhado para criar uma agenda de ação. Processos dialógicos turas e sistemas mais de acordo com a narrativa preferida. podem ser combinados com outros mais focados em con- valor de se colocar a CCT em prática está no fato de que um sequências práticas, porém, priorizar relacionamentos em modelo baseado em narrativas cria um receptáculo natural detrimento de ações práticas costuma desmotivar muitas para acolher e levar em consideração múltiplas dimensões, pessoas de participar. Processos dialógicos, em geral condu- intersecções identitárias e conversas "altamente visíveis, ainda zidos em círculos ou pequenos grupos, são tidos como uma que não vistas". via circular: diante de um problema declarado, as pessoas expressam seus sentimentos mais profundos em relação a CONCLUSÃO ele e, então, a conversa circula em torno do problema apre- As Conferências Comunitárias sentado. Sem diminuir a importância do papel do diálogo 1. visam identificar e reparar danos usando processos compartilhar sentimentos é uma etapa importante que prepa- ra para a ação -, o fato é que a ausência de uma consequente agenda de ações práticas muitas vezes desestimula as pessoas 2. cumprem as intenções primárias do diálogo; a participar. 3. revelam os variados impactos que as relações de poder propósito da CCT é desenvolver um alicerce para causam nas experiências vividas numa comunidade; a construção de um rol programático de ações práticas. 4. constroem narrativas compartilhadas e As CCTs possuem um caminho espiralado. Existe a constru- 5. funcionam como alicerce para transformações de longo ção de confiança e de relacionamentos de maneira similar ao prazo, persistentes e diálogo, contudo toda partilha é feita para contribuir com uma análise que, por sua vez, estabelece a base para a próximo capítulo apresenta um esboço do modelo CCT. Uma análise de narrativas, na forma de uma CCT, cumpre a intenção do diálogo ao criar oportunidades de partilha pro- funda e construção de confiança para, ao mesmo tempo, ir explicitamente além do diálogo e lançar as fundações para futuras ações colaborativas ou coordenadas. 42 43</p><p>4 ESBOÇO DO MODELO DA CONFERÊNCIA COMUNITÁRIA TRANSFORMATIVA - MODELO CCT O formato da Conferência Comunitária Transformativa derivou dos trabalhos iniciais de Gerald Monk e John Winslade (mediação e David Denborough (terapia modelo da Conferência Comunitária Trans- formativa se implementa num formato de espiral. Em geral, há mais de uma rodada de análise, o que permite aos partici- pantes a oportunidade de reflexão mais profunda. A primeira rodada é, frequentemente, conduzida como um "ensaio" para o diálogo e cujo foco é uma peça de teatro, uma paródia, um filme, ou alguma outra metodologia baseada no relato de uma história (de preferência, que possa ser interpretada e não apenas lida). A ideia de se realizar ensaio de diálogo é apresentada em detalhes mais adiante. diálogo-ensaio e a análise comunitária "de verdade" são conduzidos seguindo os mesmos passos e o mesmo ritmo. A principal diferença entre eles é que durante a rodada de ensaio há menos profundidade e não há a necessidade de construir um plano de ação. As CCTs envolvem compartilhamento de histórias que aprofundam os relacionamentos e vivências dos participantes. A contação de história é apresentada na rodada de ensaio, mas</p><p>TRANSFORMAR COMUNIDADES DO MODELO DA CONFERÊNCIA TRANSFORMATIVA MODELO CCT durante as rodadas posteriores de análise ela se desenrola de suficiente para desenvolverem outras perspectivas são um maneira mais pessoal, atenta às especificidades do contexto "eleitorado natural" para CCTs. Em geral, essas pessoas são comunitário. militantes locais, líderes civis e acadêmicos já envolvidos em alguma medida com as questões em pauta. Usualmente, são as UMA PALAVRA SOBRE os PARTICIPANTES que aceitam participar com mais facilidade. Dois grupos bem Antes de descrever os passos do processo, é importante mais difíceis de granjear envolvimento e comprometimento, saber algo sobre o conjunto ideal de participantes de uma mas cuja participação é de extrema importância para esses Conferência Comunitária Transformativa. Para compreender processos, são: completamente a escala e impacto das questões que pode- riam se beneficiar pela realização de uma CCT, é importante 1. pessoas direta e duramente impactadas pelas desigual- dades; e obter a participação de pessoas que sentem seus impactos em todos os níveis: 2. pessoas que não vivenciam impactos negativos, que aquelas que estão vivenciando os impactos mais duros podem até se beneficiar da situação vigente e têm pou- diretos (as marginalizadas, oprimidas e privadas de CO interesse em mudanças. direitos); Ironicamente, ambos os grupos talvez possuam a mesma aquelas que estão próximas o bastante das questões para impressão sobre participar ou não: "Não sei como isso pode ter conhecimento direto, e distantes o suficiente para ajudar a minha turma". Muitas vezes, o primeiro grupo está possuírem alguma perspectiva (em geral, militantes, aca- muito envolvido com suas estratégias de sobrevivência no dia dêmicos e aliados ou pessoas que já tenham vivenciado a dia para perceber qualquer benefício imediato de mais um as questões de forma direta, mas que já se encontram em "bate-papo"; segundo grupo tem dificuldade em perceber outras posições; em realidades organizacionais, poderia como poderá ser construída uma solução sem que se transfor- ser um antigo funcionário da linha de produção que se mem no "problema". esforço fundamental do coordenador tornou gerente; em uma comunidade, poderia ser alguém nascido em uma das comunidades privadas de direitos e é apresentar o processo de maneira que ambos os grupos se disponham a participar. que chegou a posições sociais de poder e prestígio); Certamente, é importante ter a participação de vozes e aquelas à margem das questões, sofrendo nenhum ou experiências diversas na mesma conferência comunitária. pouco impacto; Quanto maior a variedade de perspectivas, mais comple- e mesmo algumas pessoas que se considerem completa- ta e matizada será a narrativa comunitária. Contudo, se há mente alheias às questões enfrentadas pela comunidade. gente demais para acomodar num determinado momento, o coordenador deve planejar conferências separadas, mantendo Pessoas no grupo intermediário aquelas próximas o bas- a maior diversidade de vozes e experiências possível em cada tante da questão para estarem bem conscientes, e distantes o 46 47</p><p>RANSFORMAR COMUNIDADES DO MODELO DA CONFERÊNCIA TRANSFORMATIVA MODELO CCT benefício de ter diversidade de participantes nos encon- Partilha de histórias e envolvimento profundo do é a criação de uma "audiência interessada", um grupo mapa.* e pessoas que escuta as experiências dos outros. Por inter- 1.3. Resumo dos impactos da narrativa de suas histórias de vida, 1.4. Mapeamento reverso pela identificação de desfechos is pessoas querem compartilhar específicos como base para uma história alternativa. speranças, medos, frustrações A transformação habilidades, em especial quan- começa quando Revelação das qualidades e contexto dos desfechos espe- lo estão passando por momentos ouvimos as cíficos para a fundação de uma narrativa alternativa. com a expectativa de que histórias uns dos Partilha de histórias e envolvimento profundo com outros. outros, diferentes delas, ouvi- narrativas alternativas.* e reconhecerão seus pontos de 1.5. Comparação entre narrativas dominante e alternativa. vista. Mesmo sem haver consenso, acontece reconhecimento quando alguém escuta, questiona e 2. Definir a narrativa preferida dos participantes estabelece conexões com suas próprias experiências a partir Após ter conduzido diversas conferências com diferen- das histórias compartilhadas. Se há diversidade suficiente tes participantes, coordenador pode reelaborar um grupo entre os participantes, isso transmite a ideia de que toda a representativo de todas as conferências para desenvolver uma comunidade, de certa maneira, reconhece aquela história. A análise comunitária abrangente e sua narrativa preferida. escuta da história de cada um: esse é lugar a partir do qual Essa versão abrangente servirá como base para projetar a transformação começa. plano de ação transformativa da comunidade ou organização. Na próxima seção, estão apresentados os passos bási- cos do modelo, que devem começar numa rodada de ensaio 3. Construir a estratégia de transformação* para, então, serem repetidos e aprofundados para a aná- O que é necessário para fazer escolhas diárias em apoio lise narrativa das verdadeiras experiências vividas pelos à narrativa preferida dos participantes? participantes. Relacionamentos novos ou repensados? PASSOS BÁSICOS DO MODELO Alocação transformada de recursos? 1. Mapear narrativas comunitárias/organizacionais Reconsideração ou reconfiguração estrutural? 1.1. Externalização da conversa: nomeação das problemá- ticas primárias. Esses passos em geral são conduzidos durante a análise comunitária, 1.2. Mapeamento dos impactos das problemáticas em todas e não na rodada de ensaio. Ainda que as pessoas façam alusão às suas próprias experiências durante a rodada de ensaio, O compartilhamento as esferas da vida. de histórias é menos confuso se realizado durante conversas diretas sobre a comunidade. 48 49</p><p>crevem o modelo da CCT em duas 5 como mapear narrativas comuni- áticas e narrativas dominantes e clarece como selecionar narrativas de seguir adiante com planos de O MODELO CCT - PARTE 1: MAPEAR NARRATIVAS DIÁLOGO-ENSAIO A Conferência Comunitária Transformativa geralmente começa com uma rodada de "ensaio". Na prática, os pas- do processo são implementados usando-se um "terceiro objeto" ou "materiais de problematização". Aquilo que Parker Palmer chama de terceiro objeto*, ou que Paulo Freire des- creve como material de problematização, são coisas que auxiliam as pessoas a lidarem com seus próprios contextos por meio de metáforas alheias à sua situação imediata. Isso fortalece a capacidade de analisar e transformar as circuns- tâncias pois-permite, antes de tudo, que as pessoas se sintam confiantes e reconheçam caminho que estão trilhando. Palmer se refere ao terceiro objeto por se tratar de algo alheio às partes em conflito. Não é uma parte (o primeiro componen- te) ou a outra parte (o segundo componente), é um terceiro objeto. Este, espera-se, criará espaço para um olhar objetivo e metafórico, ou ao menos com alguma distância crítica, a fim de dar início ao desenvolvimento de insights a respeito do con- texto das partes envolvidas. educador Parker Palmer com frequência utiliza um poema, um elemento artístico visual ou musical, ou um breve conto folclórico como terceiro * No original em inglês, third thing: terceira coisa ou terceiro objeto. [N. do T.] 50 51</p><p>MODELO CCT 1: MAPEAR NARRATIVAS TRANSFORMAR COMUNIDADES De modo semelhante, Paulo Freire, filósofo da liberta- identitárias resultam numa variedade de significados que ção e educador, se refere a essa prática como método da podem ser construídos a partir do mesmo conjunto de obser- problematização para fomentar pensamento crítico. Os vações disponíveis. materiais, tais como um pôster ou uma representação teatral, muitas vezes criados pelos próprios participantes, apresen- Perspectiva Ferramenta para a rodada de ensaio Exemplos tam os dilemas ou aspectos dificultosos da problemática, sem sugerir Então, a partir do terceiro objeto ou da Parker Palmer Terceiro objeto poema arte visual problematização, os participantes conseguem tirar insights conto folclórico relacionados ao seu próprio contexto. Paulo Freire Material de pôster Para os propósitos da CCT, o ponto inicial, terceiro obje- problematização representação teatral to, em geral é um filme ou uma peça de teatro. A intenção ao Conferência Terceiro objeto filme usar um filme ou uma peça teatral é apresentar uma circuns- Comunitária peça de teatro Transformativa tância na qual possa haver diversos desafios e escolhas, mas que, de preferência, não exista uma resolução clara. É possível ao facilitador decidir pela interrupção do filme ou da peça em processo das CCTs estrutura de conversação, inten- um ponto específico, caso haja algo sugerindo uma resolução. ções do processo e forma de análise comunitária é, em geral, Por exemplo, pode-se evitar que terceiro ato de uma peça desconhecido pelos participantes. fluxo pode parecer tur- seja apresentado, ou interromper filme depois que os con- bulento. Igualmente, pode ser algo difícil para o facilitador. flitos e dilemas tenham sido firmemente apresentados, mas Recomenda-se que o facilitador treine antecipadamente, para bem antes que uma solução seja oferecida. Os participantes se obter mais experiência com processo. Da mesma forma, é relacionarão com a trama a partir de diferentes perspectivas, bom que os participantes aprendam sobre modelo da CCT inclusive identificando-se com um personagem em especial, pela utilização de um terceiro objeto. Uma vez que tenham dependendo das suas próprias histórias pessoais e contextos percebido em primeira mão o poder do modelo, os partici- culturais. Para dar sentido a partes da história que ficaram pantes se sentirão mais confiantes quanto à sua aplicação e sem explicação, os participantes criarão, para eles mesmos, ficarão motivados para conduzir uma análise profunda dos uma história de fundo. Uma razão para começar com esse seus contextos pessoais. terceiro objeto é criar a oportunidade de distanciamento e Todos os passos da análise comunitária são primeiramente objetividade, contribuindo assim para uma visão mais clara. vivenciados no diálogo-ensaio em que se trabalha sobre um Isso pode despertar emoções, porém estas não são uma res- terceiro objeto. Para melhores resultados, os participantes são posta direta às experiências e dificuldades diárias vividas incentivados, durante a rodada de ensaio, a seguir modelo da pela própria pessoa. Uma análise de um filme ou peça, no conferência até fim (salvo pela contação de história e o plano início da CCT, demonstra aos participantes como de ação), aplicando todo modelo analítico ao terceiro objeto. 52 53</p><p>TRANSFORMAR COMUNIDADES MODELO CCT PARTE 1: MAPEAR NARRATIVAS O mapeamento não precisa alcançar O nível de profundida- A externalização é feita pela escuta das histórias dos par- de reservado para a análise comunitária. É muito proveitoso ticipantes, sem tratar tais histórias como "fatos" ou sintomas para os participantes verem como narrativas alternativas são a serem diagnosticados. Em vez disso, trata-se de ouvir a suscitadas pelo facilitador a partir das suas observações. maneira como as histórias são contadas, pois isso ofere- ce pistas sobre como as pessoas estão organizando suas 1. MAPEAMENTO DE NARRATIVAS vidas naquele momento. O que elas percebem como proble- COMUNITÁRIAS/ORGANIZACIONAIS mático em tais histórias revela os pontos onde há limitações 1.1. Externalização de conversas: explicitar as prin- e esperanças. A experiência de limitação no contexto de uma cipais problemáticas. história é, também, lugar onde o narrador identificou formas O processo de externalização de uma problemática diz de poder que impõem restrições. respeito ao desenvolvimento de uma história-problema cujos Construindo uma conversa de externalização. O pro- problemas são personagens da história, e não característi- pósito da conversa de externalização é conseguir que os par- cas de qualquer pessoa ou grupo. Um princípio das práticas ticipantes explicitem as narrativas que estão vivenciando. narrativas, incluindo mediação narrativa, terapia narrativa e Quando os participantes descrevem uma história, ao mesmo Conferência Comunitária Transformativa, é que os facilita- tempo colocando-se fora dela, eles se conscientizam de mais dores trabalham duro para considerar as pessoas como oportunidades de ação, mais do que perceberiam se falassem separadas de seus problemas, auxiliando-as a fazerem de dentro da história. Pesquisas demonstram que ser capaz mesmo. de ver a si mesmo como estando fora da história aumenta a Por exemplo, em vez de descrever as pessoas como "tendo sensação de ser capaz de refletir e agir com deliberação no medo umas das outras", contexto poderia ser descrito como efeito de colocar-se fora da história, e observá-la, um ambiente onde medo aparece, e as pessoas reagem é como abrir uma nova janela pela qual é possível ver que diferentemente" à presença do medo. Na primeira descrição se passa na sua própria vida. Como "descrever uma história medo é identificado como uma condição na qual as pessoas colocando-se fora dela"? se encontram; na segunda, o medo é externalizado como um A conversa de externalização começa com uma simples personagem com o seu próprio papel, ações e motivações. declaração: Quando o medo é um personagem em si, outros personagens podem reagir de outro modo perante ele porque não se trata de uma parte essencial de sua personalidade. Esse processo As pessoas não são problema. de externalização estabelece uma gama mais ampla de opções O problema é problema. para contexto transformativo.</p><p>RANSFORMAR COMUNIDADES MODELO CCT PARTE 1: MAPEAR NARRATIVAS O facilitador inicia a conversa com uma folha em branco compartilhem de um entendimento acerca do que as pessoas m um flipchart, e escreve essa afirmação no topo da página. que estão falando querem dizer ao fazer uso de certas pala- Então, desenha um grande círculo no meio da página. vras e frases. Apatia As pessoas não são o problema. Desconfiança o problema é o problema. As pessoas não são o problema. o problema é problema. Desinformação Segregação Limitações Medo econômicas Apropriação indevida de identidade À medida em que os participantes tentam identificar as O facilitador, em seguida, faz uma pergunta que convida problemáticas, o facilitador escuta para avaliar se que está participantes a considerarem a circunstância a partir da sendo dito é a descrição de uma problemática essencial ou seguinte estrutura: de um sintoma, que na verdade é resultado de uma proble- "Se as pessoas NÃO são o problema e o problema É o mática essencial. Problemáticas essenciais frequentemente problema, que nome você daria ao problema que viu no mencionadas são: medo, apatia, resignação, desinformação e terceiro objeto (peça teatral ou filme)?" separação. O coordenador as escreverá no interior do círcu- facilitador escuta as respostas atentamente, clarifican- lo. Os sintomas, resultados e produtos de uma problemática do e se esforçando para garantir que um senso de significado essencial ficarão fora do círculo. Algumas vezes a preocupa- compartilhado não dê a impressão de que todos os partici- ção que está sendo externalizada pode ser a descrição de uma pantes devam concordar ou concordem quanto à questão problemática essencial, de um resultado, ou de ambos, sendo em pauta. Trata-se apenas de assegurar que os participantes que resultados também produzem sintomas secundários.</p><p>se refletir em termos de raça, gênero e ideologias. A separa- PARA PORTAR ção parece ser a causa de muitos problemas, porque medo; estruturas que privilegiam uma experiência ou conhecimento em prejuízo de outro; desconfiança; e assim por diante, podem emergir como resposta a ela. Outros a veem como sintoma que emerge de narrativas históricas de dife- "Menos do que eu" rença, arranjos estruturais, pressões de classe, ou de normas de governamentais que reforçam a separação. No caso de orga- Cansaco nizações, modelo de negócios pode dar ênfase à separação. APATIA PODER Se um participante a aponta como problemática essencial e IMAGEM outro a descreve como sintoma, facilitador contribui com fluxo da conversa ao salientar que ela pode ser ambos. facilitador a escreverá nos dois lugares para, então, convidar Cultura da os participantes a voltarem ao esforço de mapeamento. Polidez Se uma problemática pode estar tanto fora quanto dentro do círculo, será mesmo importante lugar em que a colocamos na representação visual da análise? Uma razão para diferenciar problemáticas essenciais de resul- tados é aproximar-se tanto quanto possível do epicentro das condições desequilibradoras. Lembrando que foi dito antes, epicentro é o local de origem de um terremoto. Quanto mais Um bom exemplo de uma questão que a comunidade pode próximos do epicentro, mais eficazes serão os esforços de como problemática essencial e como sintoma des- transformação. a mesma problemática é a "separação". Muitos membros Uma forma de distinguir se determinada problemática de dado grupo identificam configurações em que diferentes é uma problemática essencial ou um sintoma é perguntar categorias de pessoas (raça, etnia, classe, religião e até faixa aos participantes se ela é uma causa ou um efeito. Questões etária) vivem separadamente. Suas vidas cotidianas em geral essenciais, tanto negativas quanto positivas, geralmente pos- acontecem em partes diferentes da cidade ou bairro, de modo suem um rótulo emocional - medo, apatia, amor, segurança e que não tenham de interagir uns com os outros. Da mesma confiança são exemplos claros. Para ajudar a diferenciar pro- forma, em organizações, a separação ocorre entre pessoas blemáticas essenciais de resultados, facilitador pode fazer com funções diferentes: jurídico, marketing, administrativo, perguntas abertas aos participantes. e assim por diante. A separação organizacional também pode 58 59</p><p>TRANSFORMAR COMUNIDADES MODELO CCT PARTE 1: MAPEAR NARRATIVAS que acontece com você no relacionamento com outro O policial: Quando recebo uma chamada e penso no quando o "medo" está presente? perigo potencial, o medo se torna presente; quando O que "medo" lhe convida a fazer ou não fazer? medo está presente investigo a comunidade ainda mais, e é mais provável que use de força. (Essência: medo; que você faz quando a "segurança" está presente, sintoma: vigilância aumentada e uso da força.) e que você optaria por não fazer caso ela estivesse Outro membro da comunidade: medo fala mais alto ausente? quando a polícia está presente, e a desconfiança também Quando há desinformação, como as pessoas na organi- vem à tona; tanto medo quanto a desconfiança me fazem zação tendem a reagir? ficar em silêncio ou evitar a polícia, então eu fujo ou fico As respostas a tais perguntas apontam para resultados, em Também evito as pessoas da comunidade que sintomas ou produtos de problemáticas essenciais. Por exem- chamaram a polícia e, quando as vejo, desconfiança, raiva plo, os participantes podem dizer: e ressentimento são, geralmente, despertados e falam tão alto que é difícil para mim escutá-las quando dizem que Sentir medo na presença dos meus colegas de trabalho se importam comigo. (Essência: medo; sintomas: des- me convida a ficar quieto e a evitar tais circunstâncias, confiança, silêncio, distanciamento, não cooperação.) ou mesmo evitar as pessoas (silêncio, separação, distan- policial: Quando alguém foge, fica quieto ou não coo- ciamento e ausência de comunicação são sintomas). pera, além do medo, a desconfiança passa a me influen- Sentir medo me convida a me proteger (resultado: comu- ciar. Desconfiança me leva a ser ainda mais vigilante, e nidades muradas, excesso de policiamento, aumento da medo me deixa alerta para me proteger tempo todo, circulação de armas de fogo, hipervigilância, aumento que acarreta aumento do uso da força. (Essência: da ansiedade ou de atitudes defensivas, e comunicação medo; sintomas: aumento da desconfiança, aumento do limitada). policiamento e uso da força, e Quando a desconfiança está presente, geralmente não De volta ao primeiro participante: Quando a polícia compartilho minhas ideias; meu supervisor, então, me usa mais vigilância e mais força nas outras pessoas, a avalia como alguém que não possui ideias. Quando desconfiança me visita e me diz que eu tenho razão em isso acontece, a desconfiança retorna e traz à tona o escutar medo; então eu chamo a polícia mais rápido e com mais frequência, e procuro manter a mim e minha ressentimento. família longe de todas as interações em que medo cos- De tempos em tempos, facilitador pode auxiliar os par- tuma estar presente. (Essência: medo; sintomas: des- ticipantes a notarem um padrão cíclico: confiança aumentada, maior dependência na vigilância Um participante pode dizer: Quando o medo está pre- e força governamentais, isolamento comunitário, dis- sente eu me protejo; eu ligo para a polícia. tanciamento e início de uma estratégia de separação multigeracional.) 60 61</p><p>TRANSFORMAR COMUNIDADES MODELO CCT PARTE 1: MAPEAR NARRATIVAS A tendência de crescimento em espiral dessas questões 3. Poder para é a tomada de decisão que resulta de conhe- demonstra como é importante tentarmos, pelo menos, distin- cimentos, recursos e habilidades individuais e de grupo. guir entre problemáticas essenciais e resultados. No exemplo 4. Poder de dentro reafirma a resiliência e a fortaleza acima, se a comunidade oferece pressão no sentido de diminuir internas como fontes da capacidade de a vigilância policial ou de adotar abordagens de policiamento comunitário, ela está resolvendo um sintoma, mas aspecto Na estrutura narrativa das CCTs, poder significa, con- essencial da problemática medo ainda se faz presente. Para forme descrito por Michel Foucault, "ações agindo de modo que todos os membros da comunidade possam melhor gerir indireto nas ações de outras O poder está atuante suas interações uns com os outros, sem medo e desconfiança, quando limita as ações de uma pessoa ou grupo. Se uma pes- é necessário enfrentar ou alterar ambiente no epicentro. soa ou grupo de pessoas não reconhece certa ação como uma Ao desvelar a narrativa da problemática comunitária, não escolha possível, não optará por essa forma de proceder. E é necessário distinguir cada diferenciação de maneira exata. poder das narrativas que leva as pessoas a se adequarem a Não faça caso do lugar adequado de cada coisa, pois isso dada narrativa sem explorar outras possibilidades. pode ofuscar espírito criativo. Quando, mais tarde, forem Por exemplo, uma menina pode ser sociabilizada em uma desenvolvidos os planos de ação, certas problemáticas pode- comunidade onde todas as narrativas dominantes apresen- rão ser reconsideradas em termos de essências ou sintomas. tem papel das mulheres limitado a atividades na esfera O mais importante é identificar como elas se conectam com doméstica. Sistemas, leis, padrões relacionais e até inter- as relações de poder que dão vida e estrutura à comunidade. pretações religiosas refletem isso na narração de histórias de mulheres em casa, criando os filhos, ou fazendo negócios Breves linhas sobre o poder apenas nas feiras de rua. Mesmo que uma menina goste poder reflete a capacidade de conquistar um objetivo de desenhar casas e prédios e imaginar novos modelos de desejado. Em geral, o poder se caracteriza por uma das quatro escolas onde garotas poderiam se desenvolver, ela talvez modalidades seguintes: não pergunte que seria preciso para se tornar arquiteta 1. Poder sobre é a tomada de decisão pela hierarquia, for- ou designer de interiores. Nesse caso, poder da narrativa ça ou repressão, frequentemente com o uso ou ameaça restritiva limita as escolhas que ela vê para si como do uso de violência. Uma sanção econômica ou emocio- veis. Isso é um poder limitador. Além do mais, as institui- nal também pode ser um modo de exercer poder. ções socializadoras pelas quais ela passa ao longo da vida 2. Poder com é a tomada de decisão pela ação colaborativa. escola, núcleos religiosos, espaços de recreação e o sistema Aqui se reconhece papel e potencial das alianças. legal reforçarão essa narrativa pela forma como colocam Alianças podem ser libertárias, opressivas ou simples- recursos à disposição ou estruturam as interações da criança mente instrumentais. com O mundo externo. Como uma pessoa adulta, talvez ela descreva suas ações como resultantes do seu próprio poder 62 63</p><p>TRANSFORMAR COMUNIDADES MODELO CCT PARTE 1: MAPEAR NARRATIVAS de escolha. Isso é verdadeiro pois, no âmbito das narrativas com as quais ela se identificou, o poder age indiretamente Quando os participantes mapeiam a problemática estão, para modelar (nesse caso, para limitar) suas interações com ao mesmo tempo, identificando os verdadeiros contor- a comunidade. poder restritivo direciona as instituições nos tanto do poder restritivo quanto do poder cons- com as quais ela pode se relacionar e influencia o modo como trutivo nas narrativas comunitárias/organizacionais ela pensa suas atitudes. A menina que gosta de desenhar, mas é ajustada a uma narrativa de domesticação como sen- do o papel adequado para mulheres, entenderá seu gosto Quando os participantes descrevem resultados estão, a um pelo desenho como sonho sobre a casa na qual ela, um só tempo, apontando para os limites e para aquilo que é neces- dia, poderá morar. Um menino, nas mesmas circunstâncias, sário a fim de superar poder restritivo e como ativar o poder talvez seja incentivado a ver isso como uma casa que, um construtivo/produtivo positivo inerente a narrativas preferidas. dia, possa construir para ele mesmo, mas também como vocação profissional. 1.2. Mapeando os impactos das problemáticas em É importante perceber que o poder não age apenas para todas as esferas da vida. restringir comportamentos. A estrutura de certas narrativas É importante reconhecer as formas pelas quais as pro- inclui, também, um poder construtivo. poder construti- blemáticas impactam uma comunidade. Uma problemáti- vo influencia atitudes direcionando as pessoas a agirem de ca essencial pode promover tanto emoções quanto efeitos certa maneira, sejam tais ações favoráveis ou contrárias a práticos que afetam aspectos da vida profissional, cívica, seus interesses. Frequentemente, ao narrar uma história, um comercial e pessoal. A fase de mapeamento envolve a eli- participante dirá: "Eu sei que minhas atitudes não beneficia- citação* de descrições das problemáticas, ao mesmo tem- ram a situação, mas que mais eu poderia ter feito?" Isso é po em que incentiva a visualização de respostas. A figura um exemplo de poder construtivo. poder construtivo pode, abaixo é uma representação esquemática do processo de também, gerar ações positivas que se refletem no modo de ser mapeamento de problemáticas: situa questões essenciais no de uma pessoa ou grupo, por exemplo, se uma criança vive centro com quadrinhos periféricos para conectar aspectos em uma narrativa que inclua expectativas de ir bem na escola essenciais da problemática com seus produtos, resultados ou de ser gentil e generosa. Ademais, poder construtivo e sintomas. entra em ação se uma narrativa não oferece formas alterna- tivas de ser, na medida em que uma pessoa nem considera a * Do latim elicitatus fazer sair, atrair, evocar, provocar, obter. Tratando- possibilidade de agir de outra maneira. Dando um exemplo -se de construção de paz, este termo foi forjado por John Paul Lederach num contexto de metodologias para a transformação de conflitos, pessoal, eu estava na nona série quando soube que não seria originariamente presente na publicação de 1995, Preparing for Peace: obrigatório cursar uma faculdade. Conflict Transformation across Cultures. verbo "elicitar", ou "eliciar", faz parte do vernáculo e pode significar, dentre outras coisas: "fazer sair, tirar de, extrair, evocar" (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa). [N. do T.] 64 65</p><p>MODELO CCT PARTE 1: MAPEAR NARRATIVAS TRANSFORMAR COMUNIDADES Geralmente, o mapeamento revela como duas ou mais problemáticas essenciais produzem um grande sintoma: Respostas diretas à Normas que à como emergem resposta outras Efeitos esferas em Livros escolares Desrespeito e marginalização) da vida que marginalizam administrativo certos grupos social) medo, apatia, Currículo Estruturas Bullying escolar resultantes e violência limitações Altos níveis irrelevante econômicas etc de evasão/ Efeito nos relacionamentos absenteismo escolar Impacto em pensamentos Resposta e emoções comportamental individual No exemplo de altos níveis de evasão (acima), as soluções e relacional costumam se concentrar em esforços para "consertar" as crianças que estão abandonando a escola. Contudo, se par- Um mapeamento completo pode, também, refletir sinto- tirmos do "mantra" da CCT - pessoas não são o problema, mas de segunda e terceira ordem: problema é o problema -, então a criação de um processo inclusivo no qual diversas vozes, em especial aquelas dire- Sintomas do tamente impactadas, passam a identificar as problemáticas, resultado Resultado primário proporcionará afloramento de uma solução diferente. primário Questão No processo de mapeamento dos impactos da problemáti- primordial ca, é fácil passarem despercebidas certas questões essenciais. O cuidado na consideração de cada questão essencial e seus Atividade econômica impactos oferecerá aos participantes uma descrição narrati- diminuída; sistema de Escolas e educação mais caro va rica e bem representada de sua condição. Para perceber comunidades a total dimensão dos impactos das problemáticas essenciais Medo divididas em uma comunidade, o facilitador provoca os participantes com perguntas como: 67</p><p>TRANSFORMAR COMUNIDADES MODELO CCT PARTE 1: MAPEAR NARRATIVAS Quando medo está presente, o que ele lhe convida a narrativo (veja etapa 1.3). À medida que se desenvolve uma fazer ou dizer? narrativa, convém que facilitador compartilhe a narrativa Quando há apatia no recinto, como você age? parcial para continuar elicitando contribuições. Você responde à apatia da mesma maneira que fazem processo de elicitação deve outras pessoas? continuar por algum tempo. Uma vez que as pessoas adotem uma Poderia citar alguns exemplos de como a divisão impac- A paciência é nova forma de refletir sobre as uma virtude ta seus pensamentos, ações, emoções ou a vida da comu- experiências vividas, passar do no processo de nidade em geral? tempo permitirá que as partilhas desenvolvimento Qual seria um exemplo de como a presença do medo e se tornem cada vez mais profundas. de narrativas. da desinformação impacta o seu comportamento? Durante processo de mapeamen- to é importante que o facilitador As perguntas acima ligam os problemas essenciais às reconte as problemáticas com seus respectivos resultados. ações e experiências resultantes. A capacidade do processo Aos poucos, uma narrativa comunitária tomará forma. Cada de investigação da CCT com vistas ao desenho de estratégias participante poderá pessoalmente nomear uma ou mais pro- transformativas será limitada, caso blemáticas. Cada um também confirmará aquelas explicita- não se incentive os participantes a das por outras pessoas, ao descrever os impactos que essas dar exemplos específicos. As pro- Participantes são outras problemáticas têm em sua vida. O processo de mape- incentivados a blemáticas formam um complexo amento diz respeito ao posicionamento da história de cada usar exemplos entremeado e, portanto, é impro- pessoa nos limites da narrativa comunitária maior. As expe- específicos. vável que se consiga destacar um riências pessoais, tingidas por identidades múltiplas que se resultado específico como produto intersectam, formam os contornos da narrativa maior. único para qualquer condição pro- blemática isolada. Mesmo assim, é importante que os parti- 1.3. Sumarizando os impactos das narrativas dominantes. cipantes ofereçam uma textura pessoal às suas experiências Um mapeamento rico e pleno deve incluir uma investi- no esforço de se estabelecer conexões. gação sobre a maneira como as problemáticas essenciais A estrutura das perguntas acima possibilita uma opor- impactam a vida comunitária e organizacional, assim como tunidade para os participantes olharem tanto para janelas a qualidade de vida dos participantes. Estes, geralmente, quanto para espelhos, ou seja, olhar para fora da sua própria sentem-se mais confortáveis descrevendo coisas que afetam experiência, assim como olhar para elas mesmas, com algum a organização ou comunidade da qual fazem parte. Impactos distanciamento. O conjunto de problemáticas essenciais e na vida pessoal ficam mais velados. Desvendá-los deman- de sintomas pode, em pouco tempo, ser descrito de modo da um pouco mais de esforço. Para auxiliar na tomada de 68 69</p><p>TRANSFORMAR COMUNIDADES O MODELO CCT PARTE 1: MAPEAR NARRATIVAS uma postura mais pessoal por parte do grupo, O facilitador A colheita de sentimentos e insights pela partilha de impac- pode perguntar: "Além dos impactos diretos na sua vida tos velados pode acrescentar outra camada de nuanças e tex- comunitária, de que modo O medo ou apatia ou desinfor- turas ao entendimento da narrativa comunitária dominante. mação (nomear alguns problemas essenciais) afetam seus relacionamentos pessoais?" É importante dar aos partici- Exemplo de uma narrativa comunitária rica pantes alguns momentos para refletirem em silêncio sobre Após mapear as problemáticas, facilitador devolve ao tais indagações. Exemplos de perguntas que trazem à tona grupo uma narrativa resumida. Em Greensboro, por exemplo, impactos velados: depois de um período de duas horas de exploração, facilita- dor pôde devolver aos participantes início de uma narrativa "De que modo a apatia que você sente pelo sistema de comunitária. Conforme a narrativa era apresentada, facili- ensino altera relacionamento com seus filhos ou netos no tocante à educação deles?" Se você tem pouca estima tador indicava as contribuições diretas que os participantes pelas escolas, por exemplo, em que medida isso impacta tinham feito - e estes ouviam suas histórias como parte da narrativa maior: seu envolvimento com as tarefas de casa e atividades extraclasse, ou sua participação nos conselhos escolares e reuniões de pais e mestres? E = problemática essencial (escrita no centro do círculo) "Em que circunstâncias a falta de informação e O des- S = resultado, sintoma, consequência da problemática conforto em certos contextos podem impactar sua vida (escrito fora do círculo) social?" "Se você vê a comunidade de modo diferente que seu Facilitador: Há medo (e), possivelmente alguma igno- cônjuge ou parentes próximos, como isso pode afetar rância (e), e desconfiança (e). Há ambiguidade (e) em tor- relacionamento que tem com eles?" no da imagem de uma mística progressista (s). E se você questiona essa imagem, há, então, uma reação de toda Perguntas podem ser dirigidas a grandes grupos. Também a estrutura de poder que busca preservar essa imagem podem ser colocadas em grupos menores, de duas a quatro em particular (s). Então, existe um desgaste (s) resultan- pessoas. Em um pequeno grupo, facilitador pode propor te disso. Essa desconfiança (e), isolamento (e), poder, um tempo de reflexão: os resultados do medo (e), e algumas coisas que isso produz, são: separação (s), blindagens (s), comunicação "Cada um tem três minutos para compartilhar uma his- ineficaz (s), esferas sociais separadas (s), indisposição tória sobre como uma ou mais problemáticas nomeadas ou falta de tolerância perante outros (s), uma espécie de têm proporcionado um impacto velado em sua vida." segregação (s), uma apatia, toda uma comunidade que é</p><p>TRANSFORMAR COMUNIDADES MODELO CCT PARTE 1: MAPEAR NARRATIVAS "educada demais para se incomodar" (s) com esse tipo em que novos membros são trazidos a de preocupação. Um pouco dessas coisas medo (e), uma organização ou comunidade, eles Narrativas a desconfiança (e), a incapacidade de conexão (s) tam- são recrutados para um ou outro lado alternativas bém resulta na falta de um bom vocabulário (s) para se da narrativa de um conflito. Amiúde criam relacionar com o outro e continuar processando tudo eles são ensinados a agir (treinamento/ esperança. isso, então há uma incompreensão constante (s) que orientação), embora as narrativas que diz a algumas pessoas: "Você é menos do que eu"(s). E, dão forma a tais ações permaneçam então, há certos grupos para os quais os resultados são invisíveis. A atividade central do processo de CCT é permitir silenciamento (s), falta de comprometimento político (s) aos participantes que revelem diferentes experiências e ações e até invisibilidade (s); e tudo isso cria, em certa medida, contrárias à narrativa dominante. As narrativas alternativas uma atmosfera contrária às aspirações (s). oferecem esperança de que a transformação é possível. Narrativas alternativas descrevem desfechos únicos e Após o facilitador resumir a narrativa dominante, são são a base para a transformação de um contexto. No esfor- exploradas histórias alternativas. de procurar narrativas alternativas ou desfechos únicos, Michael White, um assistente social e pioneiro em processos 1.4. Mapeamento reverso: identificando desfechos de terapia narrativa, incentiva facilitadores a escolherem uma específicos como base para uma história alternativa. experiência Um evento recente auxilia contador da Quando pessoas vivem ou trabalham em circunstâncias história a perceber que é possível colocar em prática narra- difíceis por muito tempo, a dificuldade com frequência assume tivas diferentes. Reconhecer alternativas no passado recente um papel central no modo como as experiências de dado con- faz crescer impulso para identificar outros desfechos úni- texto são descritas. Quando as pessoas falam de um ambiente cos. Múltiplos desfechos únicos criam muitos pontos sobre de trabalho tóxico, as narrativas são, em geral, comprimidas. os quais uma narrativa alternativa pode ser construída. A O relato da história foca, de modo consistente, a disfunciona- presença de mais pontos únicos, em especial se forem diversos lidade, sofrimento, a frustração. Quando as pessoas falam e recentes, permite desenvolvimento de uma ou mais narra- sobre desigualdades persistentes numa comunidade, as narra- tivas alternativas bem ricas. Além disso, qualquer conjunto de tivas, usualmente, se comprimem em torno da culpa e da dor. desfechos únicos pode ser ligado a uma variedade de formas Essas narrativas, por sua vez, influenciarão o comportamento para dar vida a mais de uma narrativa alternativa. das pessoas em dado contexto. poder das narrativas é que elas podem limitar ou liberar 1.5. Comparando narrativas dominantes e alternativas. a amplitude de ações disponíveis. Quando narrativas moldadas As pessoas vivem entrando em histórias. Quando a expe- por conflitos negativos dominam um contexto, relacionamen- riência vivida por elas em uma comunidade ou organização tos doentios se estabilizam e parecem inalteráveis. Na medida é dominada por uma narrativa restritiva, muitas vezes não</p><p>percebem alternativas de ação, e perdem a esperança de mudança. A maioria dos sistemas, estruturas e padrões rela- 6 cionais existe dentro da lógica de uma forma particular e dominante de pensar. Geralmente é difícil descobrir outras opções de ação. Quando desfechos únicos são trazidos à MODELO CCT PARTE 2: tona e reunidos de maneira a sustentar uma narrativa dife- Do MAPEAMENTO AO rente da narrativa problema dominante, as pessoas conse- guem imaginar diferentes formas de ação. Se uma narrativa PLANEJAMENTO DA AÇÃO alternativa é desenhada a partir de experiências únicas da comunidade (mesmo que raras ou incomuns), mais maneiras transformativas de ser e agir se tornam acessíveis e críveis. A construção de narrativas alternativas se torna o pon- to de partida para se considerar novas formas de ação. O S participantes já identificaram uma ou mais narrativas alternativas, diferentes das narrativas dominantes. O Este é um propósito primário do método CCT. Assim que próximo passo é ajudá-los a escolher. A narrativa alternativa mais de uma narrativa alternativa tenha sido desenvolvida, é selecionada deve indicar claramente novas formas de ação. fundamental que os participantes comecem a anunciar sua narrativa preferida. 2. ESCOLHA DAS NARRATIVAS PREFERIDAS DOS PARTICIPANTES* CONCLUSÃO É importante que os participantes digam quais são suas Por intermédio de paciência e facilitação cuidadosa, os preferências dentre as narrativas alternativas disponíveis. Em participantes compartilharam problemáticas essenciais, geral os participantes ressaltarão que suas escolhas parecem resultados e impactos. O facilitador retratou visualmente É responsabilidade dos facilitadores relembrá-los ou mapeou suas respostas. Os participantes descreveram que toda atitude que eles adotam em termos de relaciona- as influências do poder restritivo e do poder construtivo. O mentos, uso de recursos e formas pelas quais interagem com facilitador sumarizou as informações oferecidas na forma ou aceitam os sistemas vigentes - pode ser entendida como de uma narrativa dominante. O facilitador, então, convidou expressão de preferência por uma dada narrativa: os participantes a refletirem sobre desfechos únicos de nar- "Sempre que você se permite ficar silente em resposta rativas alternativas, mais esperançosas. O próximo capítulo à presença do medo ou da incompreensão ou da civi- ingressará nas etapas de determinação das narrativas pre- lidade, ou escolhe não interagir com certas pessoas feridas dos participantes da CCT, com intuito de construir ou lugares, você está escolhendo uma narrativa em um plano de ação ou uma estratégia transformativa. detrimento de outra." * item 1 foi abordado na Parte 1 do modelo CCT, capítulo 5. [N. do R.] 74 75</p><p>TRANSFORMAR COMUNIDADES MODELO CCT PARTE 2: Do MAPEAMENTO AO PLANEJAMENTO DA AÇÃO Para fortalecer relacionamento com a narrativa prefe- "Se a pessoa agisse dessa maneira para demonstrar rida, o facilitador deveria fazer a narrativa alternativa mais que não está dando ouvidos ao medo nem se esconden- presente: do atrás da desconfiança, que você estaria disposto a fazer para incentivar um novo padrão relacional?" "Se essa narrativa se tornasse a narrativa dominante da organização, o que ela viabilizaria, que hoje não é As perguntas que os facilitadores propõem para tornar possível?" "Quais decisões específicas você poderia tomar se essa as narrativas alternativas vivas e reais também ajudam na narrativa fosse a dominante ao invés daquela?" transição do processo para a construção de um plano de ação. A transformação almejada pelas CCTs visa a mudança de cul- A tendência é que os participantes ofereçam respostas tura, uma nova forma de fazer as coisas, e uma nova forma de esplêndidas, amplas e um pouco vagas, algo que um colega se relacionar. Quando se desenvolve uma narrativa alternativa, meu chama de "glittering fuzzballs"* como: "Teríamos mais escolhida com consciência, e reforçada no sentido de eviden- confiança", ou "Usufruiríamos mais da presença uns dos ciada de maneira deliberada, coletiva e colaborativamente, outros", ou "Teríamos menos medo e seríamos menos vio- a conversa se tornará ação transformativa. lentos". Para tornar a narrativa alternativa algo real, ou pelo menos mais convincente, é importante que o facilitador per- 3. CONSTRUINDO UMA ESTRATÉGIA DE gunte por ações e desfechos específicos. TRANSFORMAÇÃO A fase final do processo de CCT é a construção de um pla- "O que você faria, mais especificamente, caso a con- no de ação. plano de ação deve, deliberada e estrategicamen- fiança estivesse presente com mais frequência?" te, reforçar as escolhas necessárias para que os participantes "Se o medo não fosse tão disseminado durante reuniões transitem para uma nova narrativa de equipe, mencione duas ações específicas que esta- alternativa preferida. É importante ria disposto a fazer para transmitir às pessoas que nomear uma narrativa alternativa, Narrativas você está agindo sem a influência do medo ou da porém apenas nomear é insuficiente preferidas são a desconfiança?" para fazer acontecer a transforma- base para uma ção. Lembre-se que conversas desa- de Essencialmente, facilitador está auxiliando os partici- parecem; como resultado, ações que transformação. pantes a mapear os impactos potenciais de uma narrativa se alinham e reproduzem narrativas alternativa. dominantes se tornam um hábito ao longo do tempo. Para substituir um conjunto de hábitos por outro, muitos lembretes e reforços serão necessários. T1</p><p>A cultura pode ser alterada e novos hábitos formados pela: "Quais relacionamentos, recursos e estruturas neces- sitamos transformar para que as pessoas tenham mais mudança de padrões relacionais; condições de tomar decisões em harmonia com a nar- de recursos; e rativa preferida?" reformulação de estruturas. Graças à clareza narrativa constituída durante a CCT, às Planos de ação deveriam responder às problemáticas conexões feitas entre certas narrativas no tocante a relacio- essenciais que movem a narrativa dominante e os principais namentos, recursos e estruturas, a estratégia transformativa valores que sustentam as narrativas alternativas. mais impactante e que faz mais sentido surgirá ao longo do tempo. Na medida em que os participantes respondem às per- "Quais são as mudanças de relacionamento, de recursos guntas acima, é provável que passem a refletir sobre outras e estruturais necessárias para eliminar ou mitigar os estratégias apropriadas de desenvolvimentos organizacional, efeitos das problemáticas essenciais, e para produzir de cura e de educação necessárias para operar mudanças. ou amplificar os efeitos dos motivadores centrais das Ao colher as respostas dos participantes às perguntas sobre alternativas?" padrões relacionais, realocação ou redistribuição de recursos, As narrativas são produzidas e reproduzidas não apenas e reformulação de estruturas, facilitador constrói a estra- como discursos e pensamentos, mas também pelo poder limi- tégia de transformação. tador e construtivo de estruturas e sistemas. As estruturas organizam as interações entre as pessoas. O desenvolvimento de um plano de ação efetivo é um processo que demandará Fica mais fácil mudar estruturas rígidas de poder quan- alguns, quando não muitos, encontros. Depois da primeira e do uma narrativa alternativa provê uma base lógica. Portanto, narrativas alternativas apropriadas oferecem da segunda etapas da conferência (Mapeamento de narrativas força a planos de ação concretos. e Escolha das narrativas preferidas dos participantes), às vezes é útil dar aos participantes uma oportunidade de retornar à sua rotina de trabalho ou de vida com a tarefa explícita de O próximo capítulo discutirá as habilidades necessárias pensarem sobre versões da pergunta acima, tais como: para uma facilitação de sucesso. Algumas são habilidades básicas de facilitação. Outras são particulares aos aspectos "Para quais relacionamentos, recursos e estruturas narrativos das CCTs. devemos dirigir nossa atenção com intuito de redu- zir a narrativa dominante e aumentar a narrativa preferida?" 78 79</p><p>Sumário de um processo de CCT Estágio do Processo Atividades-chave Questões centrais Convocação Identificar espectro mais amplo de vozes Quem é diretamente impactado? comunitárias ou organizacionais. Quem está na periferia? Reunir lideranças de grupos para fazer a Quem não está consciente do que se passa? ponte entre linhas Você está disposto a buscar transformação? Externalização/ Preparar para narrativa altamente imbri- Se as pessoas não são problema, e o pro- Mapeamento cada e interseccionada. blema é o problema, como você o descreveria? Distinguir entre entendimento da pro- Conforme você reflete sobre as proble- blemática e as pessoas. máticas que foram nomeadas, como elas impactam seu dia a dia e os relaciona- mentos com sua família, amigos e colegas? Compartilhamento Permitir que os participantes considerem Como a problemática afeta e move você? de histórias a problemática por intermédio de espelhos Para além dos impactos imediatos, em e janelas. quais outras esferas da sua vida você vê o Considerar os impactos pessoais a partir impacto da problemática e a resposta a ela? de uma visão externalizada e objetiva. Na presença de (qualquer Perceber como outros são impactados e tica, ou uma combinação de várias), que como respondem ao mesmo estimulo. você se sente convidado, ou não, a fazer, dizer, pensar? Estágio do Processo Atividades-chave Questões centrais Mapeamento Descobrir a presença de qualidades e con- Há momentos ou experiências nas quais a reverso dições (desfechos únicos) que sustentam problemática estava presente, mas as pes- narrativas alternativas. soas agiram de maneiras inesperadas? CCT Há desfechos que parecem não ser influen- I ciados pelas problemáticas listadas? que você acha que pode vir a produzir possíveis desfechos únicos? Do Escolha de Há pelo menos duas narrativas bem defi- uma narrativa nidas nas quais as pessoas na comunidade/ preferida organização vivem; se você pudesse esco- Iher entre elas, qual seria a sua preferência? Construção de Construir um plano de ação para promo- Quais são os relacionamentos, recursos e uma estratégia ver a narrativa preferida. estruturas que precisariam ser transforma- transformativa dos para que viver na narrativa preferida se torne um hábito? DA</p><p>7 HABILIDADES DO FACILITADOR DE CONFERÊNCIA TRANSFORMATIVA F acilitadores de Conferências Comunitárias Transformativas não necessitam de treinamento especializado. Contudo, há certas práticas de facilitação que são úteis para um processo baseado em narrativas. Algumas dessas práticas estão sinteti- zadas neste capítulo. Para o facilitador que deseja um contato prático e teórico mais profundo com facilitação narrativa, há muitas outras ENGAJAMENTO FACILITADO facilitador tem como responsabilidade primordial gerenciamento do conteúdo de uma CCT. Em geral os facilita- dores possuem alguma experiência acerca das problemáticas da comunidade. As ações do facilitador não são "neutras". Ele direciona modo como as histórias são contadas. Isso demonstra um desafio: assegurar-se de que o facilitador resista à tentação de contar sua própria história, ou de permitir que a conver- sa foque no que seja do seu interesse particular. Ele deveria proporcionar clareza, mas ao mesmo tempo desconstruir ou descomprimir uma narrativa para permitir aos participantes 83</p><p>HABILIDADES DO FACILITADOR DE CONFERÊNCIA COMUNITÁRIA TRANSFORMATIVA TRANSFORMAR COMUNIDADES que identifiquem aberturas adicionais para ações ou para Facilitador: Ok, no começo você falou sobre "dinheiro" mais São muitas as estratégias que facilitador pois do medo, mas é algo diferente. Na verdade, não é somen- pode utilizar para levar uma CCT adiante. te medo; há algum medo mais específico ou outra coisa? Três estratégias de facilitação: Participante: Outra coisa, sim, é que... eles trabalham num sistema. Eles trabalham em um sistema no qual têm que 1. Reflexão desconstrutiva se comportar de uma determinada maneira para garantir 2. Escuta dupla sucesso financeiro. 3. Nomear ideias ausentes, porém implícitas. Facilitador: Ok. Participante: Ou sobrevivência financeira; talvez haja 1. REFLEXÃO DESCONSTRUTIVA diversos níveis de sucesso. O primeiro estilo de intervenção do facilitador, a refle- Facilitador: Certo, porque estou tentando ter certeza de xão desconstrutiva, envolve uso, tanto quanto possível, que eu não estou impondo meus próprios significados. das palavras dos próprios participantes para levá-los a exa- Então, você ainda diria que problema é melhor descrito minar o significado de suas palavras. Por exemplo, a intera- como "dinheiro"? Você rotularia como dinheiro, e seria ção a seguir ocorreu durante uma das CCTs de Greensboro. suficiente para deixar as coisas claras para você, ou tem Durante a rodada de ensaio da CCT, um participante tentava algo a mais? descrever que grupo via como sendo a problemática, con- Participante: Há um sistema capitalista. Talvez eu escolha forme testemunhada a partir do terceiro objeto (no caso, uma "capitalismo" no lugar de dinheiro. Não... Veja... Eu não peça de teatro). A desconstrução, ou decupagem, de termos quero ver as palavras referenciadas como minhas! comumente usados permitiu que O participante, fazendo uso [Risos no grupo.] da palavra, se fizesse claro; permitiu à audiência (outros par- Facilitador: Tudo bem. ticipantes) apreciar todas as nuanças das palavras de quem estava falando, e permitiu ao facilitador evitar a inserção da Na conversa, "dinheiro" possuía múltiplos significados. sua própria interpretação à narrativa da comunidade: Cada significado sobrevivência financeira, moeda, capita- lismo, comércio e salário baixo sugeriria diferentes histó- Participante [em resposta ao pedido do facilitador de se rias, diferentes fluxos narrativos, a serem interpretados por nomear a problemática]: Dinheiro, dinheiro. outros participantes. Convidar o participante a nomear todos Facilitador: Dinheiro? os significados permitiu aos outros se conectarem a qualquer Participante: Todo mundo está funcionando [a partir] de significado que ecoasse mais em seu íntimo. Ao mesmo tem- um medo de não ser pago, de não ter um emprego, que- po, nesse exemplo, a desconstrução reflexiva ajudou a evitar rendo ter dinheiro, ter uma graninha para alguma coisa... problema de O facilitador impor sua própria interpretação É capitalismo; comércio é um grande problema. dentre os possíveis significados. 84 85</p><p>TRANSFORMAR COMUNIDADES DO FACILITADOR DE CONFERÊNCIA TRANSFORMATIVA Outra manifestação da mesma etapa do processo de A conversa permitiu ao facilitador basear-se nas reais Greensboro demonstra como a reflexão desconstrutiva pode palavras do participante, ao mesmo tempo em que eviden- oferecer profundidade e textura ao processo de mapeamento. ciou, para aquele que estava falando e para os demais, Nesse exemplo, participante tenta caracterizar a problemá- fato de a linguagem transmitir diferentes ideias. A conversa tica em referência às ações de um dos principais personagens também viabilizou um mapeamento mais matizado das pro- da peça, Will Etta: blemáticas. Uma vez que participante descreveu a relação entre a sua ideia e uma outra ideia trazida anteriormente, Participante: Eu escrevi [em resposta ao pedido de se grupo pôde notar como visões convencionais eram uma fon- nomear problema] "experiência pessoal visões te de inautenticidade. Depois dessa conversa, um facilitador convencionais". poderia escrever no flipchart: Facilitador: Experiência pessoal visões convencionais? Participante: É. 1. "Visões convencionais experiência pessoal" regis- trado como uma causa na borda do círculo. Facilitador: Fale mais sobre isso. Participante: Bem, eu penso mais no que a Will Etta fez, 2. "Inautenticidade" fora do círculo. e da versão dela de autenticidade versus como diretor pensa que ela deveria ser. Nesse exemplo, "visões convencionais experiência pes- Facilitador: Ok. soal" é algo que ainda precisa estar enraizado em uma pro- Participante: E eles estão, ambos, tentando acomodar o blemática essencial. Mais tarde, quando do mapeamento dos que seria melhor para a peça de teatro, mas o diretor baseia impactos, facilitador exploraria junto com os participantes sua direção numa visão convencional [de mulher negra] de onde vem a distinção "visões" "experiência" (i.e., talvez a real experiência de Will Etta de quem ela é. medo, isolamento ou desinformação). Facilitador: Ok, então faça a distinção entre isso e a "inau- Em suma, a reflexão desconstrutiva é uma estratégia de tenticidade" que foi trazida à tona antes [por outro partici- facilitação, na qual o facilitador utiliza as próprias palavras pante que usou esse termo para descrever a problemática]. de um participante como maneira de chegar a uma explica- Participante: Ah, eu acho que... eu acho que há várias ção sobre significado das palavras usadas, para o benefício mas... de quem fala e para a clareza dos outros participantes e do Facilitador: Ok. facilitador. Participante: Eu acho que que eu estou dizendo sobre a inautenticidade... eu vejo que o que eu rotulo como "visão 2. ESCUTA DUPLA convencional" é a causa para a inautenticidade. Uma segunda estratégia, a escuta dupla, é uma impor- Facilitador: Certo. tante ferramenta para convidar os participantes a perma- necerem atentos tanto às problemáticas que eles nomeiam 86 87</p><p>TRANSFORMAR COMUNIDADES HABILIDADES DO FACILITADOR DE CONFERÊNCIA COMUNITÁRIA TRANSFORMATIVA quanto às formas de resiliência utilizadas para responder 3. NOMEAR IDEIAS AUSENTES, às restrições de uma narrativa dominante. Michael PORÉM IMPLÍCITAS nos lembra que a vida de qualquer pessoa poderia ser con- Uma terceira estratégia para facilitadores é nomear o que tada por mais de uma história. está ausente porém implícito nas ideias em discussão. Isso Frequentemente, quando uma é um outro aspecto da escuta dupla. A vida de pessoa está contando uma história Jill Freedman resume O que Michael White diz a esse qualquer pessoa que expressa uma narrativa pro- respeito: poderia ser blemática, quem está escutando [...] uma única descrição de qualquer experiência pode contada por não dá ouvidos a outras histórias mais de uma ser considerada como lado visível de uma descrição mais esperançosas que também história. dupla, e a história sobre um problema é construída pela poderiam ser contadas como, por comparação com alguma experiência que é preferida e, exemplo, no caso de alguém que geralmente, muito estimada. Se escutarmos com cuida- demonstrou resiliência, criativi- do, utilizando o que White chamou de "escuta dupla", dade e força diante das dificuldades. Ao dar espaço para podemos ouvir as implicações das experiências que estão outras formas de se contar uma história, incluindo algumas sendo desenhadas para fazer uma distinção com base estratégias de resposta à problemática trazidas por algum na experiência presente. Essas experiências implícitas são uma fonte rica de histórias alternativas. [...] White participante, facilitador auxilia tanto quem conta como chama esse tipo de inquirição de escuta do ausente quem escuta a perceberem que eles não estão integralmente porém implícito. Como exemplos, White listou vários representados por uma narrativa problemática. significados que podemos entender como implícitos nos A ideia não é interromper ou minimizar o impacto de uma discernimentos das problemática, no entanto de vez em quando é útil permitir que quem conta e quem escuta escapem para além dos limites discernimento sobre: impostos por uma narrativa problemática. Outros participan- Torna-se possível por causa de tes devem ter a oportunidade de conhecer as pessoas para Frustração Propósitos, valores e crenças específicas. além das suas histórias de opressão ou privilégio. Ao incen- Desespero Esperanças, sonhos e visões de futuro tivar a escuta dupla, facilitador provê espelhos e janelas particulares. espelhos para quem fala se enxergar além das constrições Injustiça Concepções específicas de como seria um de uma história específica, e janelas para que outras pessoas mundo justo. olhem e também vejam mais Mágoa Noções específicas de cura e inteireza. Adaptado de White, M. (2003), "Narrative practice and community assignments", International Journal of Narrative Therapy and Community Work. (2) p. 17-55. 88 89</p><p>TRANSFORMAR COMUNIDADES HABILIDADES DO FACILITADOR DE CONFERÊNCIA COMUNITÁRIA TRANSFORMATIVA É importante identificar o que está ausente porém implí- COMO UM FACILITADOR ESCUTA, IDENTIFICA cito, pois muitas vezes encontramos o sentido de nossas cir- E REELABORA UMA HISTÓRIA ALTERNATIVA cunstâncias através de referências ao invisível e, portanto, a) Escute para descobrir posicionamentos. Dentro da através daquilo que não foi examinado. Diferente das formas história-problema as pessoas recebem e adotam posi- tradicionais de escuta e reflexão atenta, nas quais um facilita- ções, personagens e elementos do enredo. A maneira dor repete ou parafraseia o que foi dito, essa prática requer pela qual as pessoas se posicionam ao longo do caminho a identificação do que não foi dito, mas que é essencial molda sua linguagem e performance. Se for possível para dar sentido ao que foi dito. alterar tais os enredos e atuações poderão As pessoas vivem em histórias que estão em conformi- mudar também. Quando as pessoas contam uma his- dade com narrativas mais abrangentes. No intuito de criar tória a respeito de si mesmas ou de outras pessoas, é opções futuras, que em um dado presente não parecem pos- importante perguntar: "Quem é você nesta história?" síveis, as narrativas e histórias têm que ser transformadas. Por exemplo, se uma avó escolhe, devido à presença do Com frequência, no esforço de mudança comunitária, haverá medo, não cooperar com um policial que quer falar com uma tentativa de alterar apenas a narrativa ou as histórias. seu neto, ela pode ser identificada na narrativa do poli- As ideias ausentes porém implícitas estão invisíveis e são, na cial como uma pessoa obstrutiva que, de alguma forma, reitera maus comportamentos. Na verdade, os policiais maioria das vezes, tratadas como "a realidade". No intuito de podem até caracterizá-la como cúmplice de um crime. descortinar a transformação mais extensa possível, não ape- Se na versão policial da história ela está posicionada nas as narrativas visíveis devem ser enfrentadas, mas também como cúmplice de um crime, há maior probabilidade as ideias que usualmente estão invisíveis precisam se tornar de a polícia reagir a ela com menos respeito e ouvi-la disponíveis para a reflexão desconstrutiva. através de um filtro de desconfiança. Se a história for Há três passos envolvidos na revelação de ideias ausentes alterada, em vez de caracterizar os policiais como pes- porém implícitas: soas que querem causar mal, e a avó passar a entender 1. Esclarecer com quem fala se que está implícito no que que eles percebem o neto como sendo influenciado por foi dito é que ele realmente queria deixar implícito; elementos que talvez não sejam saudáveis, tanto os poli- ciais quanto a avó podem se reposicionar como agentes 2. Tornar as implicações visíveis aos outros participantes, que utilizarão os recursos que cada um tem à disposição tanto para insights quanto para abrir e criar a possibi- para proteger O menor. lidade de afirmação ou reflexão desconstrutiva; b) Identifique aberturas para uma história alterna- 3. Quando mais de uma ideia pode estar implícita, é útil tiva. Na busca por oportunidades para transformar ao grupo determinar que implicações (anteriormente uma história escutamos o que é dito (a história-pro- invisíveis) seriam importantes para planejamento da blema) e, também, que não foi dito (escuta dupla). ação; qual implicação dá ensejo à maior transformação. 90</p><p>RANSFORMAR COMUNIDADES HABILIDADES DO FACILITADOR DE CONFERÊNCIA COMUNITÁRIA TRANSFORMATIVA O objetivo é descobrir elementos que sirvam de base CONCLUSÃO para construir uma narrativa alternativa preferida. A facilitação da CCT demanda as habilidades de reflexão Por exemplo, no meio de um debate comunitário sobre desconstrutiva, de escuta dupla e de nomear ideias ausentes um novo projeto de desenvolvimento muitos membros porém implícitas. O objetivo do uso dessas habilidades é a da comunidade sentem-se frustrados, pois percebem escuta dos posicionamentos, a identificação de aberturas os membros do conselho, que são os tomadores de para uma história alternativa e a reelaboração das histórias decisão, como mal-informados. A narrativa limitada dos Fundamentalmente, ao fazer uso de tais sustentada pelos membros do conselho lamentavel- habilidades, os facilitadores terão a possibilidade de trans- mente apresenta os membros da comunidade como formar problemáticas em narrativas preferidas. O próximo "ativistas em protesto", muito embora, na verdade, a capítulo explica como a CCT funciona. urgência expressa por estes reflete um profundo com- prometimento para tornar processo decisório ainda mais bem-sucedido. Ao inquirir se já houve algum desfecho único no qual um "protesto" ou testemu- nho proporcionou aos membros do conselho infor- mações adicionais que permitiram chegar a decisões melhores, facilitador cria uma abertura para uma história alternativa sobre as ações dos membros da comunidade. c) Reelabore a história do relacionamento. Com base na recém revelada história alternativa, existe a possi- bilidade de se contar uma nova história sobre rela- cionamento. A nova história do relacionamento não é afetada pelo poder limitante da história anterior. Por exemplo, no desentendimento mencionado acima (b), entre membros do conselho comunitário, se rela- cionamento passar a ser considerado como sendo de tomadores de decisão que agora recebem "propostas e impressões dos membros da comunidade" - ao invés de "preocupações e protestos" então, embora a estrutura das interações possa permanecer a mesma, a narrativa renovada ajuda a promover uma escuta melhor. 92 93</p>