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TÍTULO 11 SENTENÇA PENAL 1. A TO S PR O C ESSU A IS D O jU IZ E notório o maior rigor terminológico do Código de Processo C ivil ao tratar do conceito de sentença, decisões interlocutórias e despachos. Segundo a redação do art. 162, caput, do CPC, os atos do juiz consistem em sentenças, decisões interlocutórias e despachos. Sentença, segundo o CPC, é o ato do juiz que implica alguma das situações previstas nos arts. 267 e 269 desta Lei (CPC, art. 162, §1°). Decisão interlocutória é o ato pelo qual o juiz, no curso do processo, resolve questão incidente (CPC, art. 162, §2°), ao passo que despachos são todos os demais atos do juiz praticados no processo, de ofício ou a requerimento da parte, a cujo respeito a lei não estabelece outra forma (CPC, art. 162, §3°). No âmbito processual penal, a verdade é que não há consenso na doutrina acerca de uma clas- sificação uniforme, o que acaba por prejudicar, a depender do caso concreto, a definição do recurso adequado para a impugnação de determinada decisão, já que a natureza jurídica do provimento é de fundamental importância para se fixar a via impugnativa adequada. Sem embargo dessa falta de sistematização, pensamos ser possível, inicialmente, a classificação dos atos processuais do juiz no seguinte sentido: a) atos reais ou materiais: não solucionam questões, nem tampouco determinam quaisquer providências, subdividindo-se em: a.l) atos instrutórios: consistem na realização de inspeções em pessoas ou coisas; a.2) atos de documentação: ato de rubricar folha dos autos, subscrever termos de audiência, etc; b) provimentos judiciais: abrangem os despachos de mero expediente, as decisões interlocutórias e as sentenças. 2. C LA SSIFIC A Ç Ã O D O S PR O V IM EN T O S JU D IC IA IS A despeito dessa falta de consenso na doutrina processual penal acerca de uma classificação dos provimentos judiciais, pensamos ser possível trabalhar-se com os conceitos e classificações a seguir apresentados. 2.1. Despachos de mero expediente Despachos de mero expediente são aqueles destinados ao impulso do processo, desprovidos de qualquer carga decisória, cujo objetivo é impulsionar o curso do procedimento em direção ao ato culminante, que é a sentença. Exemplos: determinação de intimação das testemunhas para a audiência una de instrução e julgamento, ciência às partes acerca da juntada de laudo pericial, etc. De acordo com o art. 93, XIV, da Constituição Federal, os servidores do Poder Judiciário receberão delegação para a prática de atos de administração e atos de mero expediente sem caráter decisório. Pelo menos em regra, tratando-se de decisões que não acarretam qualquer gravame às partes, pode-se dizer que os despachos de mero expediente são irrecorríveis. Todavia, se caracterizada a presença de error in procedendo, não se pode descartar a possibilidade de utilização da correição 1 4 2 3 RENATO BRASILEIRO DE LIMA MANUAL DE PROCESSO PENAL parcial, providência administrativo-judicial cabível contra despachos do juiz que possam importar em inversão tumultuária do processo sempre que não houver recurso específico previsto em lei. 2.2. Decisões interlocutórias simples e mistas (não terminativas e terminativas) Decisão interlocutória é aquela dotada de carga decisória, podendo acarretar (ou não) a extinção do processo, porém sem enfrentamento do mérito principal, ou seja, sem se pronunciar quanto à culpabilidade ou inocência do acusado. Decisão interlocutória simples é aquela que resolve questões processuais controvertidas no curso do processo, sem acarretar sua extinção. Resolvem incidentes processuais ou questões atinentes à regularidade formal do processo, sem extinguir o procedimento ou uma de suas etapas. Exemplos: decisão que decreta a prisão temporária; conversão da prisão em flagrante em preventiva; concessão de liberdade provisória, com ou sem fiança; decisão de rejeição das exceções de coisa julgada, litis- pendência e ilegitimidade de parte; recebimento da denúncia ou queixa; decisão que julga procedente a exceção de incompetência, etc. Em regra, essas decisões interlocutórias simples são irrecorríveis, salvo se porventura listadas no rol do art. 581 do CPP, quando, então, será cabível a interposição do recurso em sentido estrito. Caracterizado error in procedendo, que importe em inversão tumultuária do processo, e desde que não haja recurso específico previsto em lei, é possível a interposição de correição parcial. De todo modo, quando irrecorríveis, as interlocutórias simples poderão ter seu conteúdo impugnado por ocasião de futura e eventual apelação, em matéria preliminar, valendo lembrar que, na hipótese de se tratar de nulidade relativa, deve ter havido oportuna arguição (CPP, art. 571), sob pena de preclusão. Nada impede, ademais, a utilização das ações autônomas de impugnação, como o habeas corpus e o mandado de segurança. Decisões interlocutórias mistas são aquelas que extinguem o processo, sem julgamento de mérito, as que determinam o fim de uma etapa do procedimento, tangenciando o mérito do direito de punir (v.g., pronúncia), e as que resolvem procedimentos incidentais de maneira definitiva. Em síntese, são aquelas que, julgando ou não o mérito, põem fim ao procedimento ou a uma de suas fases. Tais decisões são denominadas de interlocutórias porquanto são proferidas no curso de um processo ou procedimento, antes de se completar totalmente e se extinguir o procedimento com a decisão definitiva de seu mérito em sentido estrito. Diferenciam-se das interlocutórias simples porquanto acarretam a extinção do processo ou a extinção de uma fase do procedimento criminal. O instrumento adequado para a impugnação de decisões interlocutórias mistas é o recurso em sentido estrito, mas desde que tal decisão conste do rol do art. 581 do CPP. Caso contrário, a impugnação adequada será a apelação, com fundamento no art. 593, II, do CPP. As decisões interlocutórias mistas subdividem-se em: a) interlocutória m ista terminativa (ou decisões com força de definitivas): são aquelas que extinguem o processo, sem julgamento do mérito, bem como aquelas que resolvem um procedimento incidental de maneira definitiva, sem possibilidade de reexame no mesmo grau. Exemplos: rejeição da peça acusatória; procedência das exceções de coisa julgada e de litispendência; impronúncia;1 decisão que determina o cancelamento do sequestro, porque resolve o incidente em caráter definitivo, sem possibilidade de reexame no mesmo grau; decisão que indefere pedido de restituição de coisa apreendida, independentemente de futura condenação, porque a coisa é ilícita; decisões que julgam 1. Equivocadamente, o art. 416 do CPP refere-se à impronúncia como sentença. Porém, como não há efetiva análise do mérito principal para fins de condenação ou absolvição, tal decisão não pode ser considerada espécie de sentença. 1 4 2 4 MANUAL DE PROCESSO PENAL SENTENÇA PENAL procedentes exceções de litispendência, de coisa julgada, de ilegitimidade ad causam de parte, em que o processo principal é extinto, porém sem julgamento de mérito; impronúncia, etc. b) interlocutória mista náo terminativa: põe fim a uma etapa do procedimento, tangenciando o mérito, porém sem causar a extinção do processo. É o que ocorre, a título de exemplo, com a pronúncia, que encerra um juízo de admissibilidade da imputação de crime doloso contra a vida, autorizando que o acusado seja submetido a julgamento perante o Tribunal do Júri. 2.3. Decisões definitivas São aquelas que julgam o mérito, acarretando a extinção do processo ou do procedimento. Quando se diz “julgar o mérito”, significa dizer julgar o direito de punir do Estado, leia-se, dizer se o Estado tem (ou não) o direito de punir o acusado. Quando se julga o mérito principal, a decisão estará analisando a procedência ou improcedência do pedido de condenação do acusado,para fins de prolação de sentença condenatória ou absolutória. No entanto, o mérito também pode ser julgado sem condenação, nem absolvição. De fato, quando o juiz julga extinta a punibilidade, está julgando o mérito, já que está reconhecendo que o direito de punir do Estado não existe ou deixou de existir, porém não ingressa na análise do “mérito principal” para declarar a inocência ou a culpabilidade do acusado. Essas decisões definitivas subdividem-se em: a) sentença definitiva ou decisão definitiva em sentido estrito: é a decisão em que o juiz aprecia o “mérito principal”, condenando ou absolvendo o acusado; b) decisões definitivas em sentido amplo ou decisões terminativas de mérito: são aquelas em que o juiz decide o mérito e extingue o processo ou o procedimento, mas não condena, nem tam- pouco absolve o acusado. Nesse ponto, convém lembrar que o processo penal não se resume ao de natureza condenatória. Portanto, não existe mérito apenas no sentido de se julgar procedente (ou não) o pedido de condenação do acusado. Com efeito, as ações autônomas de impugnação (habeas corpits, revisão criminal e mandado de segurança) também possuem seu próprio pedido, que não é a pretensão punitiva e, portanto, têm seu próprio mérito, que pode ser matéria exclusivamente processual. Assim, quando se extingue o processo referente a uma ação autônoma de impugnação, tem-se aí uma decisão definitiva em sentido amplo, já que o mérito desta ação foi resolvido e o respectivo processo penal náo condenatório foi extinto. 2.4. Sentença Para o Código de Processo Penal, sentença é tão somente a decisão que julga o mérito prin- cipal, ou seja, a decisão judicial que condena ou absolve o acusado. A contrario sensu, as decisões que extinguem o processo sem julgamento de mérito, segundo o CPP, são tratadas como decisões interlocutórias mistas. Em sentido estrito, sentença é o pronunciamento final do juízo de Io grau, geralmente um juiz singular (monocrático), mas o CPP também se refere à sentença quanto às decisões finais de juízos colegiados de Io grau, tais como aquelas oriundas do Tribunal do Júri e dos Conselhos de Justiça, no âmbito da Justiça Militar. Em sentido amplo, a sentença também abrange os acórdãos, que são decisões dos Tribunais, desde que haja julgamento do mérito. Quando o acórdão transita em julgado, é denominado aresto. A expressão “sentença definitiva” a que se refere, por exemplo, o art. 82 do CPP, não se confunde com “sentença transitada em julgado” (v.g., art. 282 do CPP). Sentença definitiva é aquela que põe fim ao processo com julgamento de mérito. Sentença transitada em julgado é aquela contra a qual 1 4 2 5 RENATO BRASILEIRO DE LIMA MANUAL DE PROCESSO PENAL não cabe mais recurso, seja em virtude da preclusão das impugnações cabíveis, seja em virtude do esgotamento da via recursal disponível. Em síntese, como sugere Avena, a identificação de um provimento judicial pode ser feita através de alguns questionamentos:2 1) Cuida-se de ato de mera movimentação (impulso) processual, sem qualquer carga decisória? Em caso afirmativo, haverá despacho de mero expediente. 2) Trata-se de uma decisão condenatória ou absolutória proferida pelo juiz? Em caso positivo, haverá sentença. 3) Trata-se de uma decisão que, não sendo despacho nem sentença, põe termo ao procedimento, importando em seu arquivamento após o trânsito em julgado? Em caso positivo, haverá decisão interlocutória mista terminativa. 4) Trata-se de uma decisão que, não sendo despacho nem sentença, põe termo a uma fase do procedimento, dando início a outra, sem imporrar, contudo, em arquivamento após o trânsito em julgado? Em caso positivo, haverá decisão interlocutória mista não terminativa. 2.5. Sentenças definitivas, decisões definitivas e com força de definitivas O art. 593, I e II, do CPP, faz menção a essas decisões, assim conceituadas pela doutrina: a) sentenças definitivas (CPP, art. 593, I): são aquelas que põem fim ao processo após o esgotamento do procedimento na Ia instância com julgamento do mérito, para fins de absolver ou condenar o acusado; b) decisões definitivas em sentido estrito (ou terminativas de mérito): são aquelas que põem fim à relação processual ou ao procedimento mediante julgamento do mérito, sem, todavia, condenarem ou absolverem o acusado, tais como as que resolvem incidente de restituição de coisa apreendida, que declaram extinta a punibilidade, que autorizam levantamento de sequestro de bens; c) decisões com força de definitivas (ou interlocutórias mistas): são aquelas que põem fim a uma fase do procedimento (não terminativas) ou ao processo (terminativas), sem o julgamento do mérito (v.g., rejeição da peça acusatória em face da inépcia da denúncia ou queixa).3 2.6. Decisões executáveis, não executáveis e condicionais Essa classificação leva em consideração a aptidão da decisão judicial para produzir efeitos imediatos: a) decisões executáveis: são aquelas que podem ser executadas imediatamente. E o que se dá com a sentença absolutória, a qual acarreta a imediata solrura do acusado; b) decisões não executáveis: são aquelas que não admitem a execução imediata. Talvez o melhor exemplo de decisão não executável no processo penal seja uma sentença condenatória, cuja execução está condicionada ao seu trânsito em julgado, em fiel observância ao princípio da presunção de inocência (CF, art. 5o, LVII); c) decisões condicionais: são aquelas que carecem de um acontecimento futuro e incerto, tal como se dá com a decisão que julga extinta a punibilidade do agenre em virtude do decurso do período de prova da suspensão condicional do processo e da verificação do cumprimento das condições acordadas (Lei n° 9.099/95, art. 89, §5°). 2. AVENA, Norberto. Processo penal esquematizado. 2s ed. São Paulo: Método, 2010. p. 983. 3. No sentido do texto: STF, Pleno, AP 488/SE, Rei. Min. Ellen Gracie, j. 11/09/2008, DJe 202 23/10/2008. 1 4 2 6 2.7. Decisões subjetivamente simples, subjetivamente plúrim as e subjetivamente complexas Essa classificação leva em conta o órgão jurisdicional prolator da decisão: a) decisões subjetivamente simples: são aquelas proferidas por apenas uma pessoa (juízo monocrático ou singular). Exemplo: sentença absolutória proferida por juiz singular em processo referente a crime patrimonial; b) decisões subjetivamente plúrimas: são aquelas proferidas por órgão colegiado homogêneo, como câmaras, turmas ou seções dos Tribunais (v.g., acórdão proferido por Turma do T R F/la Região que, em recurso da defesa, conclui pela absolvição do acusado); c) decisões subjetivamente complexas: são aquelas proferidas por órgão colegiado heterogêneo, a exemplo do Tribunal do Júri, em que o Conselho de Sentença decide sobre o crime e autoria, ao passo que ao juiz presidente incumbe a fixação da pena. 2.8. Decisões suicidas, vazias e autofágicas Decisão suicida é aquela cujo dispositivo (ou conclusão) contraria sua fundamentação, sendo, portanto, considerada nula, a não ser que o vício seja sanado pelo órgão jurisdicional em virtude da interposição de embargos declaratórios. Decisões vazias são aquelas passíveis de anulação por falta de fundamentação. Diante da ausência de motivação do ato jurisdicional, é possível o reconhecimento de sua nulidade absoluta, haja vista o disposto no art. 93, IX, da Constituição Federal. Decisões autofágicas são aquelas em que há o reconhecimento da imputação, mas o juiz acaba por declarar extinta a punibilidade, a exemplo do que ocorre com o perdão judicial. 2.9. Decisões condenatórias, deciaratórias, constitutivas (positivas e negativas), mandamentais e executivas É comum acreditar-se que o processo penal se resume àquele de natureza condenatória, em que há uma pretensão deduzida em juízo pelo Ministério Público (ou pelo querelante), objetivando-se o reconhecimentoda responsabilidade penal do acusado pela prática do delito a ele imputado, com a consequente aplicação de uma pena privativa de liberdade, restritiva de direitos ou de multa. Daí, todavia, não se pode concluir que a ação penal condenatória seja a única existente em sede processual penal. De fato, se lembrarmos que há ações de natureza não condenatória no âmbito processual penal, é fácil concluir que existe a possibilidade de decisões de outra natureza, além da condenatória. Decisões deciaratórias são aquelas que se limitam a declarar uma situação jurídica preexistente (v.g., decisão judicial que extingue a punibilidade em face da morte do acusado). A decisão constitutiva é aquela que tem como eficácia preponderante a modificação de situa- ção jurídica, podendo ser de natureza positiva, quando faz surgir uma nova situação jurídica (v.g., decisão concessiva de reabilitação criminal, que conduz o acusado a um novo status, o de reabilita- do),4 ou negativa, que importa em desconstituir um ato jurídico anterior, até então válido e eficaz MANUAL DE PROCESSO PENAL SENTENÇA PENAL 4. Há quem entenda que a reabilitação tem natureza declaratória, pois nela haverá a declaração judicial de reinserção do sentenciado ao gozo de determinados direitos que foram atingidos pela condenação: TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de direito processual penal. 43 ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2010. p. 653. 1 4 2 7 RENATO BRASILEIRO DE UMA MANUAL DE PROCESSO PENAL (v.g., a revisão criminal visa à desconstituição de sentença condenatória ou absolutória imprópria transitada em julgado). A decisão mandamental pode ser encontrada no âmbito do habeas corpus, quando o juiz ou o Tribunal determinam a emissão de alvará de soltura ou a expedição de um salvo-conduto, retra- tando um provimento judicial que consubstancia uma ordem a ser executada em prol da proteção da liberdade de locomoção do agente. Também existe a possibilidade de sentença executiva no processo penal, ainda que em sede de processos instaurados de ofício ou a requerimento do Ministério Público ou do ofendido, ou mediante representação da autoridade policial (CPP, art. 127). E o que ocorre, a título de exemplo, com a medida assecuratória de sequestro, cabível quando houver indícios veementes de que os bens foram adquiridos com os proventos da infração penal (CPP, art. 125). A eficácia executiva fica evi- denciada a partir da autorização de venda dos bens inscritos no registro de imóveis após a sentença condenatória transitada em julgado (CPP, art. 133). 3. E ST R U T U R A E R E Q U ISIT O S DA SE N T E N Ç A Como observa a doutrina, a sentença encerra um silogismo, que é um raciocínio formado de três proposições, em que a premissa maior é o texto legal, a premissa menor, ou premissa fática, é o fato sub judice e, finalmente, a conclusão, que nada mais representa senão a subsunção do fato examinado à lei.5 Com efeito, a partir da prova constante dos autos, e, subsidiariamente, dos elementos informa- tivos colhidos na fase investigatória, ao proferir a sentença, procura o juiz reconstruir, num trabalho intelectual, a situação fática imputada ao acusado e, com base no direito aplicável, concluir pela condenação ou absolvição, julgando procedente ou improcedente a pretensão punitiva deduzida por meio da peça acusatória. O art. 381 do CPP estabelece que a sentença conterá: I - os nomes das partes ou, quando não for possível, as indicações necessárias para identificá-las; II - a exposição sucinta da acusação e da defesa; III — a indicação dos motivos de fato e de direito em que se fundar a decisão; IV — a indicação dos artigos de lei aplicados; V — o dispositivo; VI — a data e a assinatura do juiz. Segundo a doutrina, esses requisitos subdividem-se em intrínsecos — relatório, fundamentação e dispositivo — e extrínsecos, os quais estão relacionados à autenticação da decisão. 3.1. Relatório O relatório é um resumo da demanda. Nele, deve o juiz indicar os nomes das partes ou, quando não for possível, as indicações necessárias para sua identificação, fazer uma exposição sucinta da acusação formulada e das teses apresentadas pela defesa, apontando, ademais, os principais atos praticados no curso da persecução penal. Costuma-se dizer que o objetivo do relatório é demonstrar que o juiz teve pleno contato com a demanda que está prestes a julgar, já que sua elaboração obriga o juiz a tomar conhecimento integral do processo, das provas produzidas, das alegações das partes, dos incidentes verificados, etc. A exigência de identificação das partes, inserida no art. 381, I, do CPP, é de fundamental importância para que possam ser fixados os limites subjetivos da coisa julgada, impedindo, por exemplo, que acusado absolvido por sentença transitada em julgado possa ser novamente processado 5. TOURINHO FILHO, Fenando da Costa. Processo Penal. Vol. 4. 31a ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2009. p. 309. 1 4 2 8 MANUAL DE PROCESSO PENAL SENTENÇA PENAL em relação à mesma imputação. Na hipótese de processo penal instaurado por meio de denúncia, não há necessidade de se fazer menção ao nome do Promotor de Justiça, já que este atua em nome da instituição e não em nome próprio, sendo a impessoalidade uma das características do Parquet. No entanto, em se tratando de processo instaurado por meio de queixa-crime, deve haver menção ao nome do querelante. Em relação à identificação do acusado, cuida-se de formalidade essencial da sentença. O art. 381, I, do CPP, permite que, não sendo possível indicar seu nome, conste da sentença apenas indicações necessárias para sua identificação. O dispositivo guarda certa semelhança com o art. 41 do CPP, que permite que a peça acusatória seja apresentada com a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo. Portanto, o fato de ser desconhecida a identificação completa do acusado não é óbice à prolação da sentença, desde que se faça menção a seus traços característicos, permitindo distingui-lo de outras pessoas. Outrossim, eventual erro material quanto ao nome do acusado não é substancial, desde que sua identidade física seja certa, não sendo incomum que acusados sejam processados com nomes falsos sem que isso acarrete a nulidade da sentença. Nessa linha, o art. 259 do CPP dispõe que “a impossibilidade de identificação do acusado com o seu verdadeiro nome ou outros qualificativos não retardará a ação penal, quando certa a identidade física. A qualquer tempo, no curso do processo, do julgamento ou da execução da sentença, se for descoberta a sua qualificação, far-se-á a retificação, por termo, nos autos, sem prejuízo da validade dos atos precedentes”. A sentença também deve fazer menção ao nome da vítima, mesmo na hipótese de processo penal referente a crime de ação penal pública. Isso porque, considerando os efeitos inerentes à sentença condenatória — por exemplo, fixação de valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, que poderá ser executada pelo ofendido no âmbito cível - , é de fundamental importância que seu nome conste da sentença, inclusive para que não haja questionamentos quanto a sua legitimidade para ulterior execução. Todavia, “não há nulidade por ausência de menção do nome da vítima na sentença condenatória, se esta faz alusão constante à denúncia, onde consta a qualificação completa”.6 Prevalece o entendimento de que a ausência de relatório é causa de nulidade absoluta da sentença, nos termos do art. 564, IV, do CPP. A nosso ver, a ausência do relatório, isoladamente considerada, não autoriza a anulação da sentença, sobretudo se restar comprovado que o juiz realmente tinha pleno conhecimento da demanda. Cuida-se, portanto, de nulidade relativa. Prova disso, aliás, é a dispensa do relatório da sentença no âmbito dos Juizados Especiais(Lei n° 9.099/95, art. 81, §3°), o que acaba por confirmar que a decisão pode ser considerada válida mesmo sem esse elemento.7 3.2. Fundamentação De acordo com o art. 93, inciso IX, da Carta Magna, todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade. A garantia constitucional inserida no artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal, segundo a qual todas as decisões judiciais devem ser fundamentadas, é exigência inerente ao Estado Democrático de Direito e, por outro, é instrumento para viabilizar o controle das decisões judiciais e assegurar o exercício 6. STJ, 5? Turma, HC 89.324/PE, Rei. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 07/02/2008, DJe 03/03/2008. 7. Nesse contexto, como já se pronunciou o STJ, ainda que não tenha havido a exposição das teses defensivas no bojo do relatório, não há falar em nulidade da sentença penal condenatória se todas elas foram devidamente aprecia- das pelo juízo de 1Q grau na fundamentação de sua decisão: STJ, 53 Turma, HC 69.967/RJ, Rei. Min. Felix Fischer, j. 13/03/2007, DJ 14/05/2007 p. 348. 1 4 2 9 RENATO BRASILEIRO DE LIMA MANUAL DE PROCESSO PENAL do direito de defesa. A decisão judicial não é um ato autoritário, um ato que nasce do arbítrio do julgador, daí a necessidade de adequada fundamentação. Antigamente, entendia-se que a fundamentação das decisões judiciais era apenas uma garan- tia técnica do processo, com objetivos endoprocessuais: através dela, proporcionava-se às partes o conhecimento necessário para que pudessem impugnar a decisão, permitindo, ademais, que os órgãos jurisdicionais de segundo grau examinassem a legalidade e a justiça da decisão. Destacava-se, assim, apenas a função endoprocessual da motivação. Com o passar do tempo, a garantia da motivação das decisões passou a ser considerada também garantia da própria jurisdição. Afinal de contas, os destinatários da fundamentação não são mais apenas as partes e o juízo ad quem, como também toda a coletividade que, com a motivação, tem condições de aferir se o magistrado decidiu com imparcialidade a demanda. Muito além de uma garantia individual das partes, a motivação das decisões judiciais funciona como exigência inerente ao próprio exercício da função jurisdicional. Não por outro motivo, a garantia da motivação vem prevista na Constituição Federal no capítulo pertinente ao Poder Judiciário, e não no capítulo dos direitos e garantias individuais, em que se encontra grande parte das garantias processuais. Des- tarte, sob o enfoque da sociedade, pode-se dizer que a motivação também apresenta uma relevância extraprocessual.8 Funciona, assim, a motivação dos atos jurisdicionais, verdadeira garantia processual de segundo grau, como importante forma de controle das partes sobre a atividade intelectual do juiz, a fim de que verifiquem se este levou em consideração todos os argumentos e provas produzidas pelas partes, e se teria aplicado de maneira correta o direito objetivo ao caso concreto.9 Sendo a sentença um ato decisório de fundamental importância no processo penal, porquanto haverá a análise da pretensão punitiva do Estado para fins de absolver ou condenar o acusado, é evidente que a fundamentação não pode ser dispensada. Incumbe ao juiz, nesse momento, enfrentar todas as questões de fato e de direito que sejam relevantes para a solução do caso concreto, de modo a certificar a realização da hipótese de incidência da norma e os efeitos dela resultantes, justificando, assim, a conclusão a que chegará no dispositivo. Daí dispor o CPP que a sentença conterá a indicação dos motivos de fato e de direito em que se fundar a decisão e a indicação dos artigos de lei aplicados (art. 381, III e IV). Essa indicação dos artigos de lei aplicados, todavia, pode ser suprida se houver referência implícita a eles. Exemplifi- cando, por mais que o juiz sequer tenha feito menção ao art. 16 do CP, que trata do arrependimento posterior, não haverá nulidade da decisão se dela constar que foi negada a diminuição da pena pelo fato de não ter sido comprovada a reparação integral do dano até o recebimento da denúncia. Se a fundamentação funciona como regra geral para a prolação de uma sentença, não se pode negar que, no âmbito do Tribunal do Júri, as decisões dos jurados não precisam ser motivadas. Isso porque, de acordo com o art. 5o, inciso XXXVIII, da Magna Carta, tem-se como uma das garan- tias do júri o sigilo das votações. Ou seja, fosse o jurado obrigado a fundamentar sua decisão, seria 8. Nesse sentido: FERNANDES, Antônio Scarance. P ro c e sso p e n a l c o n st itu c io n a l. 3a ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 129. 9. Consoante lição de Ferrajoli, a motivação "exprime e ao mesmo tempo garante a natureza cognitiva em vez da natureza potestativa do juízo, vinculando-o, em direito, à estrita legalidade, e, de fato, à prova das hipóteses acusa- tórias". Ainda segundo o referido autor, "a motivação permite a fundação e o controle das decisões seja de direito, por violação de lei ou defeito de interpretação ou subsunção, seja de fato, por defeito ou insuficiência de provas ou por explicação inadequada do nexo entre convencimento e provas" (D ire ito e ra zã o : te oria do g a ra n tism o p en a l. 25 ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. p. 573/574). 1 4 3 0 MANUAL DE PROCESSO PENAL SENTENÇA PENAL possível identificar-se o sentido de seu voto. Daí a desnecessidade de fundamentação do voto do jurado, limitando-se o mesmo a um singelo “sim” ou “não” para cada quesito que lhe for formulado, nos exatos termos do art. 486, caput, do CPP. Perceba-se que essa desnecessidade de motivação aplica-se apenas às questões apreciadas pelos jurados — materialidade, autoria, eventual absolvição do acusado, causas de diminuição de pena, qualificadoras e causas de aumento de pena —, já que apenas o juiz leigo está protegido pela garantia constitucional do sigilo das votações. Todavia, quanto à pena a ser aplicada pelo juiz presidente, há necessidade de fundamentação do decreto condenatório, já que vigora, em relação ao juiz togado, o sistema do livre convencimento motivado. Quanto à valoração da prova pelo magistrado por ocasião da sentença condenatória, o orde- namento pátrio adota, pelo menos em regra, o sistema do livre convencimento motivado (ou da persuasão racional do juiz), em virtude do qual o magistrado tem ampla liberdade na valoração das provas constantes dos autos, as quais têm, legal e abstratamente, o mesmo valor. Como aponta Gomes Filho, “a liberdade na apreciação das provas não se confunde com uma autorização para que o juiz adote decisões arbitrárias, mas apenas lhe confere a possibilidade de estabelecer a verdade judicial com base em dados e critérios objetivos e de uma forma que seja controlável”.10 Este sistema confere ao juiz discricionariedade na hora da valoração das provas, isoladamente e no seu conjunto, mas desde que tais provas estejam no processo (id quod non est in actis non est in mundus — o que não está nos autos não existe), sendo admitidas pela lei e submetidas a um prévio juízo de credibilidade, não podendo ser ilícitas ou ilegítimas. A discricionariedade de avaliação do quadro probatório soma-se a obrigatoriedade de motivação da conclusão do magistrado. A obrigação de fundamentar permite às partes não somente aferir que a convicção foi realmente extraída do material probatório constante dos autos, como também analisar os motivos legais que levaram o magistrado a firmar sua conclusão.11 A propósito, o art. 155 do CPP estabelece que o juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundam entar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares,não repetíveis e antecipadas. Da adoção do sistema da livre persuasão racional do juiz, derivam importantes efeitos: a) não há prova com valor absoluto; b) deve o magistrado valorar todas as provas produzidas no processo, mesmo que para refutá-las; c) somente serão consideradas válidas as provas constantes do processo: não se pode emprestar validade aos conhecimentos privados do magistrado. Quanto à possibilidade de utilização de elementos informativos produzidos na fase investigatória - portanto, sem a obrigatória observância do contraditório e da ampla defesa - para fundamentar a prolação de uma sentença, prevalece o entendimento de que sua utilização pode se dar de maneira subsidiária, complementando a prova produzida em juízo sob o crivo do contraditório. Como já se pronunciou a 2a Turma do STF, os elementos do inquérito podem influir na formação do livre convencimento do juiz para a decisão da causa quando complementam outros indícios e provas que passam pelo crivo do contraditório em juízo.12 10. GOMES FILHO, Antônio Magalhães. As re fo rm a s n o p ro c e s so p e n a l: a s n o va s le is d e 2 0 0 8 e os p ro je to s d e re fo rm a . Coordenação Maria Thereza Rocha de Assis Moura. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 249. 11. Nesse sentido: GRECO FILHO, Vicente. M a n u a l d e p ro c e s so p e n a l. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 203. 12. STF, 25 Turma, RE-AgR 425.734/MG, Rei. Min. Ellen Gracie, DJ 28/10/2005 p. 57. Em sentido semelhante: STF, 25 Turma, HC 89.877/ES, Rei. Min. Eros Grau, j. 07/11/2006, DJ 15/12/2006; STF, V Turma, RE 287.658/MG, Rei. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 03/10/2003 p. 22. 1 4 3 1 RENATO BRASILEIRO DE LIMA MANUAL DE PROCESSO PENAL A ausência da fundamentação é vício de extrema gravidade, mas daí não se pode falar em inexistência jurídica do ato. Na verdade, a ausência de fundamentação acarreta a nulidade absoluta da sentença, nos exatos termos do art. 93, IX, da Constituição Federal. Não por outro motivo, em caso concreto em que, por ocasião do julgamento de apelação, deter- minado Tribunal de Justiça limitou-se a transcrever a sentença de primeiro grau, sem o acréscimo de fundamentação própria, concluiu o STJ que o dever de motivar as decisões implica necessariamente cognição efetuada diretamente pelo órgão julgador, restando certo que a mera repetição da decisão impugnada, além de violar o art. 93, IX, da Carta Magna, também é causa de evidente prejuízo ao duplo grau de jurisdição, na exata medida em que não conduz à substancial revisão judicial da primitiva decisão, mas à cômoda reiteração de seus termos.13 No mesmo contexto, em recurso extraordinário interposto pelo Ministério Público Militar contra decisão do Superior Tribunal Militar, que deixou de lavrar acórdão proferido em agravo regi- mental, sob o argumento de que constava dos autos a certidão de julgamento, o STF considerou que, não obstante o agravo regimental ter sido julgado em sessão pública, a falta do respectivo acórdão tornaria impossível o conhecimento das razões e dos fundamentos da decisão judicial, violando o preceito constitucional do art. 93, IX. Daí por que a Suprema Corte deu provimento ao RE para fins de determinar o retorno dos autos ao STM a fim de providenciar a lavratura do acórdão havido no julgamento do agravo regimental.14 Quanto à necessidade de enfrentamento de todas as teses apresentadas pela defesa por ocasião da prolação da sentença, os Tribunais Superiores têm entendido que não há falar em nulidade da sentença se ficar evidenciado que todas elas foram apreciadas pelo magistrado, ainda que de maneira sucinta, direta ou indiretamente. Embora seja necessário que o Magistrado aprecie todas as teses ventiladas pela defesa, torna-se desnecessária a menção expressa a cada uma das alegações se, pela própria decisão condenatória, restar claro que o Julgador adotou posicionamento contrário. Assim, não se tem como omissa uma sentença que, conquanto não se refira, expressamente, a um suposto álibi apresentado pelo acusado, fundamente sua condenação com base em elementos probatórios válidos que confirmem a prática delituosa e a respectiva autoria.15 O instrumento a ser utilizado para a impugnação de sentença desprovida de fundamentação é a apelação com a alegação de error inprocedendo intrínseco, o que, evidentemente, não impede a utilização do habeas corpus, se acaso houver risco à liberdade de locomoção. Na hipótese de sentença citra petita, ou seja, uma decisão que não analisa todos os fatos delituosos imputados ao acusado, apesar de sua evidente nulidade, é plenamente possível a oposição de embargos de declaração, que terão efeitos infringentes, já que a apreciação de ponto omisso da decisão pode provocar a modifi- cação do sentido da decisão. 13. STJ, 6a Turma, HC 91.894/RS, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 03/11/2009, DJe 23/11/2009. 14. STF, lã Turma, RE 540.995/RJ, Rei. Min. Menezes Direito, j. 19/02/2008, DJe 78 30/04/2008. 15. No sentido de que, apesar de ser necessário que o juiz aprecie as teses ventiladas pela defesa, torna-se despiciendo a menção expressa a cada uma das alegações se, pela própria decisão condenatória, resta claro que o Julgador adotou posicionamento contrário: STJ, 5a Turma, HC 61.715/RJ, Rei. Min. Laurita Vaz, j. 29/08/2007, DJ 08/10/2007 p. 325. Na mesma linha: STJ, 5a Turma, HC 166.533/SP, Rei. Min. Jorge Mussi, j. 14/06/2011, DJe 30/06/2011; STJ, 5a Turma, HC 87.095/MG, Rei. Min. Laurita Vaz, j. 08/05/2008, DJe 02/06/2008. Em outro julgado, o STJ afirmou que, para cumprir a determinação constitucional de fundamentação das decisões judiciais, é desnecessário que o Magistrado transcreva ou responda a toda sorte de alegações suscitadas no transcorrer do processo penal, bas- tando que examine as circunstâncias fáticas e jurídicas relevantes, podendo, na fundamentação, apresentar tese contrastante com aquela defendida pelas partes, valer-se da doutrina e da jurisprudência, além, por óbvio, das provas produzidas, desde que fique claro, pela sua exposição, as razões que embasaram o seu convencimento: STJ, 5a Turma, HC 89.324/PE, Rei. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 07/02/2008, DJe 03/03/2008. 1 4 3 2 Reconhecida a ausência de fundamentação pelo Tribunal no julgamento de eventual apela- ção (ou babeas corpus), a sentença deve ser anulada, com a remessa dos autos ao primeiro grau de jurisdição para a prolação de uma nova decisão. Há quem entenda que, nesse caso, seria aplicável subsidiariamente o disposto no art. 515, §3°, do CPC, que autoriza que o tribunal de segundo grau anule a sentença e passe, de imediato, à prolação de uma nova decisão de mérito da demanda. Porém, essa posição é minoritária, já que o enfrentamento do mérito pelo Tribunal poderia acarretar verdadeira supressão de instância. Outrossim, declarada nula a sentença condenatória, por ausência de fundamentação, des- constitui-se a causa interruptiva da prescrição correspondente (CP, art. 117, IV, primeira parte), contando-se o prazo a partir da causa interruptiva anterior, qual seja, o recebimento da denúncia (CP, art. 117, I), pelo menos enquanto não houver a publicação de nova sentença condenatória.16 3.2.1. Fundamentação per relationem Há controvérsias em torno da possibilidade da adoção da denominada fundamentação per relationem. Fundamentação per relationem é aquela em que a autoridade judiciária adota como fundamento de sua decisão as alegações contidas na manifestação das partes. A nosso juízo, em se tratando de sentença condenatória e/ou absolutória, é inadmissível a funda- mentação per relationem, porquanto viola, à evidência, o disposto no art. 93, IX, da Constituição Federal. Afinal, nesse tipo de fundamentação, não há explicitação, por parte do Magistrado, das suas razões de decidir, cuja ausência não pode ser supridapelo simples reenvio à justificação con- tida na manifestação de uma das partes, o que afetaria até mesmo a própria imparcialidade da decisão, porquanto não é certo que as razões de uma decisão condenatória (ou absolutória) sejam dadas por uma das partes. Na dicção de Antônio Magalhães Gomes filho, “incumbe ao juiz efe- tivamente decidir sobre esse ponto, até porque sua função é indelegável, não cabendo remissão ao que entenderam a autoridade policial ou o órgão da acusação, sendo imprescindível, portanto, a fundamentação expressa.”17 Com entendimento semelhante, o STJ já teve a oportunidade de concluir que, no julgamento de apelação pela instância superior, a simples remissão do desembargador relator aos fundamentos da sentença impugnada e ao parecer ministerial, sem sequer transcrever os trechos indicativos da motivação acolhida, não permite que as partes possam aferir as razões que teriam sido incorpora- das à decisão do juízo ad quem. Logo, deve ser reconhecida a nulidade do acórdão por ausência de motivação. Segundo a Corte, se é verdade que tem sido admitido que, no bojo da fundamentação, o órgão jurisdicional se reporte a outras peças constantes do processo - fundamentação ad relatio- nem —, também é verdade que o julgado deve expor, de forma clara, as razões que o motivaram e ensejaram a adoção de determinada decisão, garantindo-se às partes e à sociedade a possibilidade de acessá-las e compreendê-las.18 MANUAL DE PROCESSO PENAL SENTENÇA PENAL 16. STJ, 63 Turma, REsp 931.151/RJ, Rei. Min. Hamilton Carvalhido, j. 11/03/2008, DJe 29/09/2008. 17. GOMES FILHO, Antônio Magalhães. A m o tiv a ç ã o d a s d e c isõ e s p e n a is . São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001. p. 221. 18. STJ, 53 Turma, HC 176.238/SP, Rei. Min. Jorge Mussi, j. 24/05/2011. Todavia, em recente julgado, a Corte Especial do STJ entendeu que, apesar de não ser a melhor forma de se decidir uma controvérsia, a reprodução dos fundamen- tos declinados pelas partes ou pelo órgão do MP ou mesmo de outras decisões proferidas nos autos da demanda atende ao comando normativo e constitucional que impõe a necessidade de motivação das decisões judiciais, já que o que não se admite é a ausência de fundamentação: STJ, Corte Especial, EREsp 1.021.851/SP, Rei. Min. Laurita Vaz, j. 28/06/2012. 1 4 3 3 RENATO BRASILEIRO DE LIMA MANUAL DE PROCESSO PENAL Perceba-se que fomos enfáticos ao dizer que não se admite a fundamentação per relationem quanto à sentença condenatória e/ou absolutória. Porém, no tocante às decisões interlocutórias, sobretudo aquelas referentes às medidas cautelares de natureza urgente (v.g., prisão temporária, pre- ventiva, etc.), parece-nos ser plenamente possível que o juiz adote como fundamento de sua decisão as alegações da autoridade policial, do Ministério Público ou do querelante, desde que nelas haja argumentos suficientes a autorizar a imposição da referida medida, sendo desnecessária, inclusive, a sua reprodução nos mesmos autos.19 3.3. Dispositivo Trata-se da conclusão decisória da sentença, representando o comando da decisão no sentido de condenar ou absolver o acusado. É a parte da sentença responsável pela geração dos efeitos da decisão, transformando o mundo dos fatos. O dispositivo é a conclusão do juiz que decorre da fun- damentação. No dispositivo, deve o juiz indicar os artigos de lei aplicados (CPP, art. 381, IV e V). Em se tratando de sentença absolutória, deve o juiz declinar um dos fundamentos a que faz menção o art. 386 do CPP. Isso porque, a depender do fundamento adotado pelo magistrado, a sentença absolutória pode (ou não) fazer coisa julgada no âmbito cível. Evidentemente, a ausência de menção expressa a um dos incisos do art. 386 pode ser suprida se for possível deduzir, a partir do conteúdo da motivação da sentença, qual teria sido o fundamento que deu ensejo à absolvição do acusado. Na hipótese de sentença condenatória, deve o juiz indicar o dispositivo legal no qual se dá o juízo de tipicidade da conduta delituosa imputada ao acusado. A não indicação da capitulação legal autoriza o reconhecimento da nulidade da sentença, que pode ser sanada, todavia, se houver referência ao nomen iuris do delito. A ausência de dispositivo é vício gravíssimo, até mesmo pela conclusão lógica de que uma decisão sem dispositivo não é propriamente uma decisão, já que nada decide. Por isso, é tratada pela doutrina como hipótese de inexistência jurídica do provimento judicial, que deve ser tratado como um não ato. 3.4. Autenticação Para além dos requisitos intrínsecos da sentença, há também os requisitos extrínsecos: a) data e assinatura (CPP, art. 381, VI); b) rubrica do juiz em todas as páginas, se a sentença for digitada (CPP, art. 388). Caso a sentença seja proferida oralmente em audiência, hipótese em que geralmente é registrada por meio da estenotipia ou gravada, o provimento jurisdicional somente terá valor como decisão judicial quando houver sua conferência, revisão e assinatura. Prevalece o entendimento no sentido de que a não aposição da assinatura do juiz torna a decisão inexistente, já que é ela que confere autenticidade à sentença. Há, todavia, quem entenda que, desde * 53 19. Admitindo fundamentação p e r r e la t io n e m em decisão que decreta a prisão preventiva, desde que a cota ministerial esteja devidamente fundamentada: STJ, 53 Turma, HC 29.29B/SC, Rei. Min. Jorge Scartezzini, DJ 10/05/2004 p. 312. No mesmo sentido: STJ, 6- Turma, HC 31.015/SP, Rei. Min. Paulo Gallotti, j. 19/05/2005, DJ 20/03/2006, p. 355; STJ, 53 Turma, HC 84.262/SP, Relatora Ministra Jane Silva, DJ 22/10/2007 p. 336; STJ, 63 Turma, HC 25.352/SC, Rei. Min. Hamilton Carvalhido, j. 20/05/2003, DJ 30/06/2003, p. 318. No julgamento do HC 102.864/SP, entendeu a 13 Turma do Supremo que, muito embora o sucinto decreto de prisão preventiva tivesse adotado como fundamentação o requerimento do Ministério Público, sem, entretanto, transcrevê-lo, a constrição cautelar teria sido baseada em fatos concretos, portanto, em conformidade com o disposto no art. 312 do CPP: STF, 13 Turma, HC 102.864/SP, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, j. 03/08/2010, DJe 173 16/09/2010. 1 4 3 4 que ainda seja possível que o juiz prolator da decisão aponha validamente sua assinatura na sentença, trata-se de mera irregularidade. Especificamente em relação à rubrica do juiz em todas as páginas da sentença (CPP, art. 388), há precedentes do STJ no sentido da irrelevância dessa formalidade.20 4. SE N T E N Ç A A B SO LU T Ó R IA 4.1. Espécies de sentença absolutória A sentença absolutória subdivide-se em: a) sentença absolutória própria: é aquela que julga improcedente o pedido condenatório formulado pela acusação, importando em reconhecimento pleno da inocência do acusado, da qual não decorre a imposição de medida de segurança. b) sentença absolutória imprópria: é aquela que, reconhecendo a prática de conduta típica e ilícita pelo inimputável do art. 26, caput, do CP - leia-se, por agente que era, ao tempo da ação ou omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento em virtude de doença mental ou desenvolvimento incompleto ou retardado —, a ele impõe o cumprimento de medida de segurança, nos termos do art. 386, parágrafo único, III, do CPP. c) absolvição sumária: prevista no art. 397 (procedimento comum) e no art. 415 (primeira fase do procedimento do júri) do CPP, esta decisão também funciona como espécie de sentença absolutória, já que o fato de se tratar de um julgamento antecipado da demanda não lhe retira a natureza jurídica de sentença, sobretudo se considerarmos que há efetivo julgamento do mérito, reconhecendo o juiz categoricamente, por exemplo, tratar-se de conduta manifestamente atípica. Em outras palavras, o fato de se tratar de uma decisãoproferida no limiar do processo não tem o condão de alterar sua natureza jurídica de sentença, já que há efetiva análise do mérito, para fins de se absolver o acusado. Ressalva especial, todavia, deve ser feita quanto à hipótese do art. 397, IV, do CPP, que elenca a extinção da punibilidade como uma das causas de absolvição sumária. Pelo menos no âmbito do STJ - veja-se o teor da súmula n° 18 - , a decisão que reconhece a extinção da punibilidade tem natureza declaratória, e não absolutória. d) absolvição sumária imprópria: consiste no julgamento antecipado da demanda para fins de absolvição do acusado inimputável do art. 26, caput, do CP, que, porém, sofre a imposição de medida de segurança (internação ou tratamento ambulatorial). Quanto à possibilidade de absolvição sumária imprópria, ou seja, a absolvição da qual decorre a imposição de medida de segurança proferida no limiar do processo, é sabido que, no âmbito do procedimento comum, o art. 397, inciso II, do CPP, veda a possibilidade de absolvição sumária do inimputável. No âmbito do Júri, todavia, o art. 415, parágrafo único, do CPP, autoriza que o juiz absolva sumariamente o acusado inimputável do art. 26, caput, do Código Penal, desde que a inimputabilidade seja a única tese defensiva. e) sentença absolutória anômala: é a decisão que concede o perdão judicial ao acusado. Tal decisão é denominada de anômala porque não existe uma verdadeira absolvição, mas sim um pronunciamento que só formal e impropriamente pode ser chamado absolutório, visto que, subs- tancialmente, é de condenação. MANUAL DE PROCESSO PENAL SENTENÇA PENAL 20. STJ, 6 ^Turma, RHC 3.155/SP, Rei. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, j. 08/11/1993, DJ 13/12/1993. 1 4 3 5 RENATO BRASILEIRO DE LIMA MANUAL DE PROCESSO PENAL Esta terminologia - absolvição anômala — é usada por poucos doutrinadores,21 já que há intensa controvérsia quanto à natureza jurídica da decisão que concede o perdão judicial. Há quem entenda que, na verdade, referida decisão tem natureza condenatória, pois o juiz somente perdoa o imputado, nas hipóteses expressamente previstas em lei, após valoração da prova e verificação da procedência da acusação. Caso contrário, não haveria razão para perdoá-lo. Prevalece, todavia, o entendimento de que a decisão concessiva do perdão judicial é simplesmente declaratória de extinção da punibili- dade. Nesse sentido, aliás, a súmula n° 18 do STJ preconiza que “a sentença concessiva do perdão judicial é declaratória da extinção da punibilidade, não subsistindo qualquer efeito condenatório”. 4.2. Presunção de inocência e regra probatória Antes de passarmos à análise das causas que autorizam a absolvição do acusado, é conveniente lembrar que, em sede processual penal, vigora o princípio da presunção de inocência, por força do qual ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória (CF, art. 5o, LVII). Desse princípio deriva a denominada regra probatória, segundo a qual recai sobre a acusação o ônus de demonstrar a culpabilidade do acusado além de qualquer dúvida razoável. Essa regra probatória deve ser utilizada sempre que houver dúvida sobre fato relevante para a decisão do processo. Na dicção de Badaró, cuida-se de uma disciplina do acertamento penal, uma exigência segundo a qual, para a imposição de uma sentença condenatória, é necessário provar, eliminando qualquer dúvida razoável, o contrário do que é garantido pela presunção de inocência, impondo a necessidade de certeza.22 4.3. Fundamentos Formando sua convicção de acordo com a livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, sem prejuízo da utilização subsidiária dos elementos informativos colhidos na investigação (CPP, art. 155, caput), deve o juiz julgar improcedente a pretensão acusatória, absolvendo o acusado, quando ocorrer uma das hipóteses mencionadas no art. 386 do CPP: I — estar provada a inexistência do fato: nesse caso, o juiz formou sua convicção no sentido da inexistência do fato delituoso. Não se trata de falta de provas, ou de um estado de dúvida. Na verdade, há prova nos autos que confirmam peremptoriamente que o fato delituoso imputado ao acusado não ocorreu; II - não haver prova da existência do fato: essa decisão deve ser proferida pelo magistrado quando, por ocasião da sentença, persistir dúvida quanto à existência do fato delituoso. Em outras palavras, o fato delituoso pode até ter existido, mas o juiz conclui que não há provas suficientes que atestem sua existência. Trata-se, pois, de decisão baseada no in dubio pro reo; III - não constituir o fato infração penal: sempre que o legislador utiliza a expressão “não constituir o fato infração penal”, refere-se à atipicidade da conduta imputada ao agente, seja no plano formal, seja no plano material. Exemplificando, constatada a mínima ofensividade da conduta, a ausência de periculosidade do agente, o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e a lesão jurídica inexpressiva, pressupostos indispensáveis para a aplicação do princípio da insignificância, deve o juiz absolver o acusado com base no inciso III do art. 386 do CPP, haja vista a atipicidade material da conduta; 21. MÉDICI, Sérgio de Oliveira. R e v isã o c r im in a l. 2§ ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. p. 174. 2 2. BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ô n u s d a p ro v a n o p ro c e s s o p e n a l. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 285. Para mais detalhes acerca da regra probatória que deriva do princípio da presunção de inocência, remetemos o leitor ao Título introdutório deste Manual. 1 4 3 6 MANUAL DE PROCESSO PENAL SENTENÇA PENAL IV — estar provado que o acusado náo concorreu para a infração penal: nos mesmos mol- des que a decisão do inciso I, esta decisão absolutória também é baseada em um juízo de certeza, porém, nesse caso, no sentido de que o acusado não concorreu para a prática delituosa na condição de autor, coautor ou partícipe. A título de exemplo, é possível que a instrução probatória demonstre que o autor, efetivamente, não poderia ter praticado o fato delituoso, seja porque outro o autor, seja porque faticamente impossível a sua realização, vez que comprovada sua localização, temporal e espacial, em local diverso do crime; V - não existir prova de ter o acusado concorrido para a infração penal: cuida-se de decisão baseada na existência de dúvida razoável acerca da autoria, coautoria ou participação. A título de exemplo, em processo penal no qual seja imputada ao acusado a execução de um crime patrimonial, se apresentado um álibi pela defesa, e o Ministério Público não conseguir provar a contento que o acusado encontrava-se efetivamente no local do crime, deve o magistrado absolver o acusado com fundamento no art. 386, V, do CPP; VI - existirem circunstâncias que excluam o crime ou isentem o acusado de pena (arts. 20, 21, 22, 23, 26 e §1° do art. 28, todos do Código Penal), ou mesmo se houver fundada dúvida sobre sua existência: havendo certeza (ou mesmo fundada dúvida) sobre a existência de causa excludente da ilicitude ou da culpabilidade, incumbe ao juiz absolver o acusado. Apesar de o dispositivo fazer menção expressa apenas aos dispositivos da parte geral do Código Penal, é evidente que a absolvição também será possível diante de causa excludente da ilicitude ou da culpabilidade prevista na parte especial do Código Penal ou no âmbito da legislação especial (v.g., art. 128 do CP). VII - não existir prova suficiente para a condenação: sem dúvida alguma, reside neste inciso a hipótese mais comum de absolvição. Como se demanda um juízo de certeza para a prolação de um decreto condenatório, caso persista uma dúvida razoável por ocasião da prolação da sentença, o caminho a ser adotado é a absolvição do acusado. 4.4. Efeitos decorrentes dasentença absolutória.23 4.4.1. Efeito principal: colocação do acusado em liberdade Sem dúvida alguma, o principal efeito decorrente da sentença absolutória própria, ou seja, aquela da qual não decorre a imposição de medida de segurança, é a imediata colocação do acusado em liberdade, já que o recurso de apelação contra essa decisão não é dotado de efeito suspensivo, pouco importando a natureza do crime e os antecedentes do agente. Daí dispor o art. 386, parágrafo único, do CPP, que, na sentença absolutória, mandará o juiz, se for o caso, colocar o acusado em liberdade. De seu turno, o art. 596, caput, do CPP, preceitua que a apelação da sentença absolutória não impedirá que o acusado seja posto imediatamente em liberdade. Embora pareça óbvio que o acusado absolvido deva ser colocado imediatamente em liberdade, é bom lembrar que, ao tempo da redação originária do Código de Processo Penal, havia previsão legal no sentido de manutenção da prisão, mesmo após a prolação da sentença absolutória, quando se tratasse de imputação de crime cuja pena máxima fosse igual ou superior a 8 (oito) anos de reclusão. Ocorre que, por força da Lei n° 5.941/73, a redação do art. 596 do CPP acabou sendo modificada, passando a prever, então, a imediata colocação do acusado em liberdade, independentemente do quantum de pena cominado ao delito. 23. Para mais detalhes acerca dos efeitos civis da sentença absolutória, remetemos o leitor ao Título referente à ação penal e à ação civil ex delicto. 1 4 3 7 RENATO BRASILEIRO DE LIMA MANUAL DE PROCESSO PENAL Na hipótese de sentença absolutória imprópria, da qual resulta a aplicação de medida de segu- rança, há de se ficar atento ao caso concreto: a) se o acusado foi submetido ao longo de toda a persecução penal à medida cautelar de inter- nação provisória (CPP, art. 319, VII, com redação determinada pela Lei n° 12.403/11), significa dizer que o juiz visualizou a presença de fum us comissi delicti epericulum libertatis. Logo, por ocasião da sentença absolutória imprópria, deve ser mantida a imposição da referida medida. Todavia, se o magistrado constatar a superveniente cessação da periculosidade, é plenamente possível a revogação da medida, a fim de que o acusado aguarde em liberdade o trânsito em julgado da decisão, para, somente então, ser executada a medida de segurança; b) se, a despeito da constatação da inimputabilidade à época do fato delituoso, o acusado tiver permanecido em liberdade durante o curso do processo, significa dizer que o juiz não vislumbrou a necessidade de imposição da medida cautelar de internação provisória. Logo, em regra, se o inimpu- tável permaneceu solto durante o curso da persecução, deve permanecer solto, a não ser que surjam motivos que autorizem a imposição da medida cautelar de internação provisória. Portanto, não se pode falar em aplicação provisória de medida de segurança, restando preju- dicado o disposto no art. 596, parágrafo único, do CPP, à luz da regra de tratamento que deriva do princípio da presunção de inocência. A medida de internação provisória a que se refere o art. 319, VII, do CPP, só poderá ser decretada se presentes o fum us comissi delicti e o periculum libertatis, jamais como efeito automático da sentença absolutória imprópria, e desde que o crime tenha sido praticado com violência ou grave ameaça e haja risco de reiteração. 4.4.2. Efeitos secundários A doutrina costuma citar outros efeitos decorrentes de um decreto absolutório, que podem variar a depender da hipótese em análise: 1) restituição integral da fiança: segundo o art. 337 do CPP, se passar em julgado a sentença que houver absolvido o acusado, o valor que a constituir, atualizado, será restituído sem desconto; 2) impossibilidade de novo processo em face da mesma imputação: ainda que a sentença abso- lutória tenha sido proferida por juízo absolutamente incompetente, ninguém pode ser processado duas vezes pela mesma imputação por força do princípio do ne bis in idem processual. Apesar de não previsto expressamente na Constituição Federal, o princípio do ne bis in idem consta da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, a qual é dotada de status normativo supralegal (Dec. 678/92, art. 8o, n° 4). Supondo-se que determinado indivíduo tenha sido absolvido em um processo criminal pela prática de furto em virtude da ausência de provas, operando-se o trânsito em julgado, não será possível o oferecimento de nova denúncia (ou queixa) em relação à mesma imputação, mesmo que surjam, posteriormente, provas cabais de seu envolvimento no fato delituoso; 3) levantamento do sequestro: de acordo com o art. 131, III, do CPP, se o acusado for absolvido por sentença transitada em julgado, será determinado o levantamento de sequestro incidente sobre bens supostamente adquiridos com o produto da infração penal; 4) levantamento do arresto ou cancelamento da hipoteca: de acordo com o art. 141 do CPP, o arresto será levantado ou cancelada a hipoteca, se, por sentença irrecorrível, o acusado for absolvido ou julgada extinta a punibilidade; 5) retirada da identificação fotográfica dos autos do processo: de acordo com o art. 7o da Lei n° 12.037/09, no caso de não oferecimento da denúncia, ou sua rejeição, ou absolvição, é facultado ao indiciado ou ao réu, após o arquivamento definitivo do inquérito, ou trânsito em julgado da sentença, requerer a retirada da identificação fotográfica do inquérito ou processo, desde que apre- sente provas de sua identificação civil. 1 4 3 8 5. SE N T E N Ç A C O N D EN A T Ó R IA Sentença penal condenatória é a decisão judicial que atesta a responsabilidade criminal do acu- sado em virtude do reconhecimento categórico da prática da conduta típica, ilícita e culpável a ele imputada na peça acusatória (ou aditamento), impondo-lhe, em consequência, uma pena privativa de liberdade, restritiva de direitos ou multa. Para tanto, há necessidade de um juízo de certeza acerca da existência da infração penal e da respectiva autoria e/ou participação, sendo inviável a prolação de um decreto condenatório com base em um mero juízo de possibilidade e/ou probabilidade, sob pena de violação à regra probatória que deriva do princípio da presunção de inocência. 5.L Fixação da pena A individualização da pena tem assento constitucional entre nós (art. 5o, XLVI). Segundo Alberto Silva Franco, tal princípio garante, em resumo, a todo cidadão, condenado num proces- so-crime, uma pena particularizada, pessoal, distinta e, portanto, inextensível a outro cidadão, em situação fática igual ou assemelhada. Trata-se, pois, de verdadeiro direito fundamental do cidadão posicionado frente ao poder repressivo do Estado. Daí porque, nas palavras do autor, “não é possível, em face da ordem constitucional vigente, a cominação legal de pena, exata na sua quantidade, nem a aplicação ou execução de pena, sem intervenção judicial, para efeito de adaptá-la ao fato concreto, ao delinquente ou às vicissitudes de seu cumprimento”.24 São três os momentos distintos em que se dá essa individualização: a) individualização legislativa: processo por meio do qual são selecionados os fatos puníveis e cominadas as sanções respectivas, estabelecendo seus limites e critérios de fixação da pena. Por violar o princípio da individualização da pena, em sua acepção legislativa, o Plenário do Supremo Tribunal Federal declarou, incidentalmente, a inconstitucionalidade da expressão vedada a conversão em penas restritivas de direitos, constante do §4° do art. 33, e do art. 44, ambos da Lei 11.343/2006. Sob o argumento de que a vedação, em abstrato, da possibilidade de substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, é incompatível com o princípio da individu- alização da pena, por ser vedado ao legislador subtrair do juiz a possibilidade de se movimentar com certa discricionariedade no sentidode determinar a espécie de pena suficiente para castigar e, ao mesmo tempo recuperar socialmente o apenado, prevenindo comportamentos do gênero, foi concedida a ordem em habeas corpus não para assegurar ao paciente a imediata substituição, mas pelo menos para remover o obstáculo da Lei n° 11.343/06, devolvendo ao juiz da causa a tarefa de aferir a presença das condições objetivas e subjetivas listadas no art. 44 do Código Penal.25 b) individualização judicial: elaborada pelo juiz na sentença, é a atividade que concretiza a individualização legislativa que cominou abstratamente as sanções penais. Por meio do procedimento de aplicação da pena, a ser estudado mais adiante, é vedado que o julgador imponha uma sanção padronizada ou mecanizada, olvidando os aspectos únicos do delito cometido; c) individualização executória: ocorre durante o cumprimento da sanção penal, objetivando a ressocialização do sentenciado. Considerando que o juiz da execução também precisa dispor de instrumentos para buscar a individualização do cumprimento da reprimenda imposta ao conde - MANUAL DE PROCESSO PENAL SENTENÇA PENAL 24. FRANCO, Alberto Silva. C rim e s h e d io n d o s. 4S ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. p. 163. Em sentido semelhante: NUCCI, Guilherme de Souza. In d iv id u a liz a ç ã o da p e n a . 2- ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 338. 25. STF, Pleno, HC 97.256/RS, Rei. Min. Ayres Britto, j. 01/09/2010, DJe 247 15/12/2010. Por conta dessa decisão, o Senado Federal deliberou pela suspensão da execução da expressão "vedada a conversão em penas restritivas de direitos" do §49 do art. 33 da Lei n9 11.343/06, nos termos do art. 52, X, da Constituição Federal (Resolução n9 5, de 2012). 1 4 3 9 RENATO BRASILEIRO DE LIMA MANUAL DE PROCESSO PENAL nado, o Supremo acabou por declarar a inconsdtucionalidade da redação original do art. 2o, §1°, da Lei n° 8.072/90, que determinava que o condenado por crime hediondo devia cumprir sua pena em regime integralmente fechado. Na visão da Corte, a progressão no regime de cumprimento da pena, nas espécies fechado, semi-aberto e aberto, tem como razão maior a ressocialização do preso que, mais dia ou menos dia, voltará ao convívio social. Daí porque não se pode privar o preso, em abstrato, do direito à progressão.26 Nesse momento, o que nos interessa é a individualização judicial. Se é verdade que o legislador confere ao juiz certa discricionariedade por ocasião da individualização da pena na sentença con- denatória, também é verdade que todas as operações realizadas na dosimetria da pena devem ser devidamente fundamentadas, apontando o magistrado como valorou cada uma das circunstâncias analisadas, desenvolvendo um raciocínio lógico e coerente que permita às partes e à própria socie- dade entender os critérios utilizados nessa valoração, evitando-se, assim, quaisquer arbitrariedades. Antes da reforma da Parte Geral do Código Penal pela Lei n° 7.209/84, discutia-se na dou- trina qual seria o melhor sistema a ser adotado quanto à fixação da pena. De um lado, o critério defendido por Roberto Lyra preconizava que a pena devia ser aplicada percorrendo-se apenas duas fases (sistema bifásico): num primeiro momento, seriam avaliadas as circunstâncias judiciais em conjunto com as agravantes e atenuantes; em seguida, as causas de aumento e de diminuição de pena seriam levadas em consideração. Nelson Hungria, por sua vez, advogava que 03 (três) deve- riam ser as fases de aplicação da pena (sistema trifásico): primeiro, deveriam ser consideradas as circunstâncias judiciais, isoladamente; em seguida, agravantes e atenuantes; por último, causas de aumento e de diminuição de pena. Com o advento da Lei n° 7.209/84, o Código Penal passou a adotar expressamente o sistema proposto por Nelson Hungria. De fato, segundo o art. 68 do Código Penal, o cálculo da pena deve ser feito em três fases distintas: primeiro, deve ser encontrada a pena-base, analisando-se, para tanto, as circunstâncias judiciais do art. 59 do CP; segundo, com base nas circunstâncias atenuantes e agravantes, deve ser fixada a pena provisória; por fim, chega-se à pena definitiva, levando-se em consideração as causas de aumento e de diminuição de pena. Antes de passar à análise do sistema trifásico, incumbe ao magistrado estabelecer os limites abstratos com os quais irá trabalhar, ou seja, o mínimo e máximo a serem levados em consideração. Para tanto, deve analisar as elementares da conduta delituosa imputada ao agente e, assim, fazer o juízo de subsunção para definir o tipo penal em que o acusado está incurso. Deve, ademais, analisar a presença de eventuais qualificadoras (v.g., CP, art. 155, §4°) ou privilégios (v.g., CP, art. 317, §2°), que podem acarretar a alteração dos limites mínimo e máximo. Se alternativa a pena (privativa de liberdade ou multa), deve escolher qual delas se ajusta ao caso concreto e ao acusado. Se cumulativa a pena (privativa de liberdade e multa), ambas deverão ser aplicadas. Na hipótese de incidência de mais de uma qualificadora, apesar de haver certa divergência, prevalece o entendimento de que uma delas deve ser utilizada para estabelecer o novo limite abs- trato (o mínimo e o máximo da figura qualificada), ao passo que as demais devem ser levadas em 26. STF, Pleno, FiC 82.959/SP, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 23/02/2006, DJ 01/09/2006. Posteriormente, a Lei ne 11.464/07 conferiu nova redação à Lei n- 8.072/90, que passou a prever que a pena deve ser cumprida in ic ia lm e n te em regime fechado, devendo a progressão em crimes hediondos se dar após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, se o apenado for primário, e de 3/5 (três quintos), se reincidente. O Supremo, por sua vez, editou a súmula vinculante n- 26: "Para efeito de progressão de regime no cumprimento de pena por crime hediondo ou equiparado, o juízo da execução observará a inconstitucionalidade do art. 2S da Lei 8.072, de 25 de julho de 1990, sem prejuízo de avaliar se o condenado preenche, ou não, os requisitos objetivos e subjetivos do benefício, podendo determinar, para tal fim, de modo fundamentado, a realização de exame criminológico". 1 4 4 0 MANUAL DE PROCESSO PENAL SENTENÇA PENAL consideração como circunstâncias agravantes, quando previstas legalmente, ou como circunstância judicial, subsidiariamente.27 Por fim, é importante registrar que não se admite que o juiz sentenciante altere o quantum de pena cominado a determinado delito a título de aplicação do princípio da isonomia (ou proporcio- nalidade). Também não é dado ao Poder Judiciário combinar previsões legais, criando uma terceira espécie normativa, não prevista no ordenamento, sob pena de ofensa ao princípio da Separação de Poderes e da Reserva Legal. Afinal, não há pena sem prévia cominação legal. Recentemente, algumas decisões de tribunais estaduais vinham trabalhando com a possibilidade de modificação do quantum de pena pelo juiz em relação ao crime de furto qualificado, por enten- derem que a duplicação da pena do crime de furto na hipótese de presença de uma qualificadora (CP, art. 155, §4°) seria desproporcional quando confrontada com o crime de roubo, que se limita a autorizar o aumento da pena de 1/3 (um terço) a 1/2 (metade) - CP, art. 157, §2° - , sobretudo se considerado que há circunstâncias semelhantes em ambos os delitos (v.g., concurso de duas ou mais pessoas). Perante os Tribunais Superiores, todavia, acabou prevalecendo o entendimento de que é inviável a aplicação, por analogia, da majorante prevista para o roubo circunstanciado pelo concurso de agentes para o furto qualificado em razão da norma expressa do §4° do art. 155, já que a analogia, para o seu uso, pressupõe uma lacuna involuntária (Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, art. 4o), ausente na hipótese.28 5.1.1. Fixação da pena-base A fim de seestabelecer a pena-base, que não pode ser fixada aquém do mínimo ou além do máximo previsto pelo tipo penal incriminador, são levadas em consideração todas as circunstâncias judiciais previstas no art. 59 do Código Penal, as quais devem ser investigadas pelo juiz durante o curso da instrução probatória e, posteriormente, individualizadas e valoradas, na sentença. E por esse motivo, aliás, que o próprio CPP prevê que o interrogatório será constituído de duas partes: sobre a pessoa do acusado e sobre os fatos (art. 187, caput). Tendo em conta que todas as circunstâncias judiciais, em conjunto ou isoladamente conside- radas, podem ser favoráveis ou desfavoráveis ao acusado, impõe-se ao magistrado uma análise indi- vidualizada de cada uma delas, sendo insuficiente, portanto, considerações genéricas e superficiais. De todo modo, convém destacar que, na visão da jurisprudência majoritária, eventual deficiência na fundamentação da fixação da pena não acarreta a nulidade da decisão se aquela for fixada no mínimo legal, o que, no entanto, não impede a interposição de apelação pela acusação, objetivando a majoração da pena.29 Na hipótese de todas as circunstâncias judiciais do art. 59 do CP serem favoráveis ao acusado, a pena-base deve ser fixada no mínimo previsto no preceito secundário. Caso alguma circunstância seja desfavorável, deve afastar-se do mínimo; se, todavia, o conjunto for desfavorável, a pena pode se aproximar do chamado termo médio, representado pela média da soma dos dois extremos, quais 27. Nesse sentido: STJ, Turma, HC 170.135/PE, Rei. Min. Jorge Mussi, j. 14/06/2011, DJe 28/06/2011; STJ, 63 Turma, HC 202.035/SP, Rei. Min. Og Fernandes, j. 02/06/2011, DJe 15/06/2011. 28. STF, 13 Turma, HC 95.351/RS, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, j. 21/10/2008, DJe 211 06/11/2008; STF, 23 Turma, HC 92.628/RS, Rei. Min. Joaquim Barbosa, j. 19/08/2008, DJe 241 18/12/2008. Na mesma linha, de acordo com a súmula ns 442 do STJ, é inadmissível aplicar no furto qualificado pelo concurso de agentes a majorante do roubo. 29. Essa admissibilidade de aplicação da pena mínima sem fundamentação dá origem à chamada política da pena mínima, assim compreendido o costume judiciário reiterado no Brasil de se fixar a pena-base sempre no menor patamar possível como consequência da ausência de análise individualizada e fundamentada das circunstâncias judiciais. 1 4 4 1 MANUAL DE PROCESSO PENALRENATO BRASILEIRO DE LIMA sejam, limites mínimo e máximo. Na prática, como destaca Bitencourt, o cálculo tem início a partir do limite mínimo e só excepcionalmente, quando o conjunto das circunstâncias do art. 59 revelar especial gravidade, se justifica a fixação da pena-base distanciada do mínimo legal.30 Vejamos, em breve síntese, quais são e em que consistem as circunstâncias judiciais: a) culpabilidade: deve ser compreendida como o juízo de reprovabilidade do comportamento do agente, apontando a maior ou menor censurabilidade da conduta delituosa. A circunstância judicial “culpabilidade”, disposta no art. 59 do CP, atende ao critério constitucional da individualização da pena. Para o Supremo, a análise judicial das circunstâncias pessoais do réu é indispensável para fins de adequação temporal da pena, em especial nos crimes perpetrados em concurso de pessoas, nos quais se exige que cada um responda na medida de sua culpabilidade (CP, art. 29). Quando cotejada com as demais circunstâncias descritas no art. 59 do CP, o dimensionamento da culpabilidade revelaria ao magistrado o grau de censura pessoal do réu na prática do ato delitivo, representando verdadeira limitação da discricionariedade judicial na tarefa individualizadora da pena-base;31 b) antecedentes: compreendem todos os dados favoráveis ou desabonadores da vida pregressa do agente. São maus antecedentes aqueles que merecem a reprovação da autoridade pública e que representam expressão de sua incompatibilidade para com os imperativos ético-jurídicos. Inquéritos instaurados e processos criminais em andamento, absolvições por insuficiência de provas, prescrições abstratas, retroativas e intercorrentes não podem ser considerados como “maus antecedentes”, sob pena de violação ao princípio da presunção de inocência. E nesse sentido, aliás, o teor da súmula n° 444 do STJ: “E vedada a utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso para agravar a pena base”.32 Daí por que, na prática, restam como maus antecedentes apenas condenações cri- minais com trânsito em julgado que não mais caracterizem a reincidência, em virtude do decurso do lapso temporal de 5 (cinco) anos previsto no art. 64, inciso I, do CP. Assim, se uma pessoa foi condenada irrecorrivelmente e a sanção já se encontra cumprida ou extinta há mais de 5 (cinco) anos, esse dado não produzirá reincidência, mas é tido como caracterizador de maus antecedentes.33 Portanto, o magistrado é livre para considerar, na fixação da pena, condenações pretéritas, ainda que tenha transcorrido lapso temporal superior a cinco anos entre o efetivo cumprimento das penas e a infração posterior, pois, embora não sejam aptas a gerar a reincidência, nos termos do art. 64, I, do CP, são passíveis de serem consideradas como maus antecedentes no sopesamento negativo das circunstâncias judiciais. Todavia, segundo a 5a Turma do STJ, o aumento da pena do crime doloso por crime culposo cometido em passado distante afrontaria os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade na fixação da pena privativa de liberdade.34 Se o acusado possui contra si sentença condenatória com trânsito em julgado, e ainda não transcorreu o lapso temporal de 5 (cinco) anos, a reincidência deve ser levada em consideração como circunstância agravante. Logo, o fato de o acusado registrar uma única condenação transitada 30. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. Parte Geral. Vol. 1. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 675. 31. STF, Pleno, HC 105.674/RS, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 17/10/2013. 32. Se houve o arquivamento do inquérito, absolvição, reabilitação, ou a extinção da punibilidade pelo advento da prescrição da pretensão punitiva, não é possível o reconhecimento de maus antecedentes: STJ, 6^ Turma, RMS 29.273/SP, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 20/09/2012. 33. No sentido de que configura maus antecedentes a existência de condenações pretéritas, ainda que transcorrido lapso temporal superior a cinco anos entre o efetivo cumprimento das penas e a infração posterior: STJ, 5â Turma, HC 198.557/MG, Rei. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 13/0/2012. 34. STJ, 5- Turma, HC 198.557/MG, Rei. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 13/03/2012, DJe 16/04/2012. 1 4 4 2 em julgado não pode ser valorado, ao mesmo tempo, como circunstância judicial desfavorável e agravante de reincidência, sob pena de bis in idem ,35 c) conduta social: diz respeito ao comportamento do agente no meio em que vive, abrangendo sua conduta no ambiente de trabalho, nos momentos de lazer, no âmbito de seu lar, etc. Para os tribunais superiores, o fato de o acusado ser usuário de drogas não pode ser considerado como má-conduta social para o aumento da pena-base;36 d) personalidade: funciona como a síntese das qualidades morais e sociais do indivíduo. Nesta circunstância, incumbe ao juiz aferir a boa (ou má) índole do acusado, sua maior ou menor sensi- bilidade ético-social, a presença ou não de eventuais desvios de caráter, de modo a se verificar se o crime constitui (ou não) um episódio acidental em sua vida. A despeito de haver certa controvérsia, prevalece o entendimento de que atos infracionais praticados pelo acusado durante a menoridade podem servir para a análise da personalidade do agente, raciocínio este que também se aplica a eventuais infrações penais por ele cometidas após o crime objeto do processo sob julgamento. Havendo registroscriminais já considerados na primeira e na segunda fase de fixação da pena (maus antecedentes e reincidência), essas mesmas condenações não podem ser valoradas para concluir que o agente possui personalidade voltada à criminalidade, sob pena de indevido bis in idemd7 e) motivos do crime: são os antecedentes psicológicos da conduta delituosa, ou seja, a soma dos fatores que levaram o agente à prática delituosa. Um delito pode ser cometido por um motivo fútil (v.g., briga de trânsito) ou nobre (v.g., ameaçar um traficante para que ele não pratique crimes em determinada praça). Quanto a essa circunstância, há de se dispensar especial atenção à possível previsão desse motivo como circunstância agravante ou atenuante genérica (p. ex., motivo torpe, fútil, de relevante valor social ou moral), ou até mesmo como causas de aumento, diminuição, privilégios ou qualificadoras (v.g., CP, art. 121, §1°), hipótese em que não poderá ser levada em consideração na fase de fixação da pena-base, sob pena de inaceitável bis in idem; f) circunstâncias do crime: diz respeito ao meio ou modo de execução do delito. Devem ser levados em consideração dados acidentais relevantes, tais como o lugar da infração, o instrumento utilizado pelo agente, eventual brutalidade, duração da fase executiva do delito, etc. Novamente, há de se ter cautela para evitar um possível bis in idem: afinal, há certas circunstâncias do crime que são alçadas à categoria de agravantes, atenuantes, causas de aumento, diminuição, privilégios ou qualificadoras. A título de exemplo, por força do disposto no art. 121, §2°, III, do CP, o emprego de fogo qualifica o crime de homicídio, daí porque incide na fase preliminar da aplicação da pena (fixação dos limites abstratos), e não por ocasião da fixação da pena-base; g) consequências do crime: consiste na intensidade de lesão ou no nível de ameaça ao bem jurídico tutelado, abrangendo, ademais, os reflexos do delito em relação a terceiros, não apenas no tocante à vitima. Essa circunstância judicial não se confunde com as consequências naturais tipifi- cadoras do delito praticado. Portanto, não se pode sopesar como circunstância judicial desfavorável ao acusado o fato de ter havido a morte de uma pessoa em um crime de homicídio consumado, já que a morte da vítima é resultado inerente à consumação desse crime.38 Agora, se demonstrado MANUAL DE PROCESSO PENAL SENTENÇA PENAL 35. STJ, 63 Turma, HC 147.202/MG, Rei. Min. Og Fernandes, j. 28/02/2012, DJe 12/03/2012. 36. STJ, 63 Turma, HC 201.453/DF, Rei. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 02/02/2012, DJe 21/03/2012. 37. STJ, 53 Turma, HC 165.089/DF, Rei. Min. Laurita Vaz, j. 16/10/2012. 38. Não é possível a utilização de argumentos genéricos ou circunstâncias elementares do próprio tipo penal para o aumento da pena-base com fundamento nas consequências do delito: STJ, 53 Turma, HC 165.089/DF, Rei. Min. Lau- rita Vaz, j. 16/10/2012. Também não se admite que, em processo criminal referente a tráfico de drogas, determine o juiz a majoração da pena-base em virtude do "mal causado pelas drogas" e em face do intuito de "ganho fácil", porquanto tais circunstâncias são inerentes ao tráfico de drogas e já estariam incorporadas ao próprio tipo penal, 1 4 4 3 RENATO BRASILEIRO DE LIMA MANUAL DE PROCESSO PENAL que a vítima era arrimo de família, tendo deixado desamparados 02 (dois) filhos menores, sendo a mãe desprovida de qualificação profissional, é evidente que as consequências do crime devem ser sopesadas em detrimento do acusado. O exaurimento, que consiste no cometimento de nova conduta após a consumação do delito, provocando nova agressão ao bem jurídico tutelado, por causar consequências mais gravosas ao fato, também autoriza um aumento da pena-base, a não ser que haja disposição expressa em sentido contrário, como ocorre, por exemplo, no crime de corrupção passiva, em que o exaurimento é uma causa de aumento de pena (CP, art. 317, §1°); h) comportamento da vítima: apesar de não justificar a prática delituosa, nem isentar o acusado de pena, o comportamento da vítima pode servir como fator criminógeno determinante para desencadear a prática delituosa. Caso isso ocorra, essa circunstância deve ser apreciada para fixar uma reprimenda mais branda ao acusado. No entanto, se esse comportamento da vítima for alçado à categoria de eventual circunstância atenuante ou causa de diminuição de pena, não pode ser levado em consideração na fixação da pena-base, sob pena de bis in idem (p. ex., sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida à injusta provocação da vítima — art. 121, §1°, do CP). As circunstâncias judiciais do art. 59 do CP são de fundamental importância para a fixação da pena-base, porém não se pode olvidar que há outras funções igualmente importantes por elas desempenhadas: 1) Em tipos penais com previsão alternativa de pena privativa de liberdade e multa, as circunstâncias judiciais interferem na escolha da sanção a ser imposta (prisão ou multa); 2) Na fixação da multa, o juiz deve fixar o número de dias-multa (de 10 a 360) de acordo com as circunstâncias judiciais do art. 59 do CP; 3) A escolha do regime penitenciário fechado, semiaberto ou aberto, também leva em consideração as circunstâncias judiciais, além de outros critérios, como a espécie e a quantidade da pena e eventual reincidência (CP, art. 33, §3°); 4) Possível substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos (CP, art. 44, III); 5) Possível cabimento da suspensão condicional da pena (CP, art. 77, II). 5.1.2. Fixação da pena provisória Superada a análise das circunstâncias judiciais do art. 59 do CP, e uma vez fixada a pena-base, deverá o magistrado partir para a valoração das circunstâncias atenuantes e agravantes presentes no caso concreto. De modo a se evitar que uma mesma circunstância seja valorada duas vezes (ne bis in idem penal), é certo que uma agravante ou atenuante deve deixar de ser aplicada na hipótese de constituir o crime ou figurar como elementar, qualificadora, privilégio, causa de aumento ou de diminuição de pena. Por isso, não se aplica a circunstância agravante do art. 61, II, “h”, do CP (crime cometido contra criança) ao crime de homicídio praticado contra menor de 14 anos, já que tal circunstância figura como causa de aumento de pena desse delito (CP, art. 121, §4°, in fine). As circunstâncias agravantes estão listadas em um rol taxativo (numerus clausus), constante dos arts. 61, 62, 63 e 64 do Código Penal. As atenuantes, por outro lado, estão listadas em um rol exemplificativo no art. 65 do CP. Isso porque o art. 66 do CP admite que a pena possa ser atenuada em razão de circunstância relevante, anterior ou posterior ao crime, embora não prevista expressamente em lei. o que acaba por inviabilizar sua utilização como elemento hábil a proporcionar o recrudescimento da reprimenda, sob pena de verdadeiro bis in idem. STF, 2^ Turma, HC 107.532/SC, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, j. 08/05/2012. 1 4 4 4 MANUAL DE PROCESSO PENAL SENTENÇA PENAL O Código Penal não estabelece em abstrato a quantidade de aumento ou de diminuição na hipótese de incidência de agravantes e atenuantes, deixando esse quantum ao prudente arbítrio do magistrado. Não obstante, é dominante a posição no sentido de que a variação provocada por essas circunstâncias deve girar em torno de 1/6 (um sexto) da pena-base, que é o quantum previsto como limite mínimo das majorantes e minorantes nas demais disposições do Código Penal.39 Em recente julgado, o Plenário do Supremo concluiu ser constitucional a aplicação da reinci- dência não só como agravante da pena (CP, art. 61, inciso I), mas também como fator impeditivo para a concessão de diversos benefícios, sem que se possa objetar a configuração de bis in idem. Na visão da Corte, a reincidêncianão contraria a individualização da pena. Ao contrário, leva-se em conta, justamente, o perfil do condenado, ao distingui-lo daqueles que cometem a primeira infração penal. Sua aplicação não significa duplicidade, porquanto não alcança delito pretérito, mas novo ilícito, que ocorre sem que ultrapassado o interregno do art. 64 do CP. Reputou-se razoável o fator de discriminação, considerado o perfil do réu, merecedor de maior repreensão porque voltara a delinquir a despeito da condenação havida, que deveria ter sido tomada como advertência no que tange à necessidade de adoção de postura própria ao homem médio.40 A despeito de haver certa controvérsia na doutrina, prevalece o entendimento de que a incidência de circunstâncias atenuantes não pode acarretar a redução da pena a patamar inferior ao mínimo cominado em abstrato pelo tipo penal. É nesse sentido, aliás, o teor da súmula n° 231 do STJ: “A incidência da circunstância atenuante não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal”. Tal raciocínio também se aplica às agravantes, que também não autorizam o aumento da pena além do patamar máximo fixado no preceito secundário. Por esse motivo, apesar de o art. 68 do CP indicar que as atenuantes devem ser examinadas antes das agravantes, prepondera o entendimento no sentido de ser mais adequada a apreciação, inicialmente, das agravantes, elevando-se a pena-base, e, na sequência, das atenuantes, reduzindo-a. Quando da ponderação entre as circunstâncias agravantes e atenuantes, é possível que o magis- trado se depare com as seguintes situações, bem delineadas por André Estefam:41 a) não há atenuantes ou agravantes no caso concreto: deve a pena base ser mantida no patamar em que se encontrava, ou seja, a pena provisória ficará no mesmo valor da pena-base; b) só há atenuantes: a pena provisória deve ser reduzida, adotando-se como limite o mínimo legal previsto no preceito secundário, nos termos da súmula n° 231 do STJ. Há quem entenda que deve ser adotado um montante previamente determinado para cada circunstância atenuante: assim, havendo somente uma, reduz-se a pena-base em 1/6 (um sexto); duas atenuantes, em 1/3 (um terço), e, assim, sucessivamente, sempre se respeitando o mínimo legal; c) só há circunstâncias agravantes: a pena provisória deve, obrigatoriamente, ser imposta em valor superior ao da pena-base, geralmente utilizando-se o quantum acima referido — 1/6 (um sexto) - , respeitado o limite máximo fixado no preceito secundário; 39. Na visão dos Tribunais, embora a lei não preveja percentuais mínimos e máximos de majoração da pena pela reincidência, deve o magistrado atentar para os princípios da proporcionalidade, razoabilidade, necessidade de suficiência à reprovação e à prevenção do crime. Logo, o aumento da pena pela reincidência em fração superior a 1/6 exige motivação idônea: STJ, 6S Turma, HC 200.900/RJ, Rei. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 27/09/2012. 40. STF, Plenário, RE 453.000/RS, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 04/04/2013. Na mesma linha: STF, Plenário, HC 94.361/RS, Rei. Min. Gilmar Mendes, j. 04/04/2013. 41. ESTEFAM, André. Direito penal, volume 1. São Paulo: Editora Saraiva, 2010. p. 362. 1 4 4 5 RENATO BRASILEIRO DE LIMA MANUAL DE PROCESSO PENAL d) existem agravantes e atenuantes (p. ex., acusado menor de 21 anos à época do fato delituoso, o qual foi cometido contra ascendente): nesse caso, por meio de uma ponderação qualitativa,42 deve se avaliar qual é a circunstância que deve preponderar. Segundo o art. 67 do CP, “no concurso de agravantes e atenuantes, a pena deve aproximar-se do limite indicado pelas circunstâncias pre- ponderantes, entendendo-se como tais as que resultam dos motivos determinantes do crime, da personalidade do agente e da reincidência”.43 E dominante o entendimento de que a menoridade relativa (acusado menor de 21 anos à época do crime) deve ser a circunstância que merece a maior importância. Até bem pouco tempo atrás, entendia-se que a menoridade era seguida da reincidência, e, depois, das circunstâncias agravantes e atenuantes subjetivas e, por fim, das objetivas. A escala de preponderância, inclusive em relação às hipóteses previstas no artigo 67 do Código Penal, podia ser sintetizada da seguinte forma: Io — menoridade (personalidade do agente); 2o - reincidência; 3o - confissão (personalidade do agente); e 4o - motivos determinantes.44 Recentemente, porém, em julgamento paradigmático, a 2a Turma do Supremo passou a entender que a assunção da responsabilidade pelo fato delituoso - confissão espontânea - por aquele que tem a seu favor o direito a não se autoincriminar revela a consciência do descumprimento de uma norma social, não podendo, pois, ser dissociada da noção de personalidade. Por esse motivo, entendeu-se possível a compensação da agravante da reincidência com a atenuante da confissão espontânea.45 A base de cálculo para a incidência das agravantes e das atenuantes será, sempre, a pena-base. E sobre ela que incide cada agravante ou atenuante. Havendo duas agravantes, por exemplo, cada uma delas será calculada sobre a pena fixada na primeira fase, jamais podendo fazer incidir uma agravante sobre a pena já alterada pela incidência de agravante anterior. Nesse ponto, a fixação da pena é distinta em relação à terceira fase, em que a base da incidência será o resultado do cálculo anterior, incidindo cada aumento ou diminuição sobre a última operação. Por fim, convém destacar que, a despeito da crítica de parte da doutrina, tem sido admitido pelos Tribunais o reconhecimento de circunstâncias agravantes nos crimes de ação penal pública, ainda que nenhuma tenha sido arguida pela acusação, nos exatos termos do art. 385 do CPP.46 42. Em contraposição à ponderação qualitativa, há quem entenda que deve ser utilizado um critério de ponderação quantitativa, no qual uma atenuante compensa uma agravante; assim, verificam-se quais fatores estão em maior quantidade, fixando-se, enfim, o valor da pena provisória. 43. Aos olhos da 63 Turma do STJ, a confissão realizada em juízo, desde que espontânea, é suficiente para fazer incidir a atenuante prevista no art. 65, III, "d", do CP, quando expressamente utilizada para a formação do convencimento do julgador. Por isso, o fato de as demais provas constantes dos autos serem suficientes para a condenação do acusado, a despeito da confissão espontânea, não autoriza a exclusão dessa atenuante, se ela efetivamente ocorreu e foi usada na formação do convencimento do magistrado. STJ, 6? Turma, REsp 1.183.157/SP, Rei. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 16/10/2012. 44. STJ, 5S Turma, HC 177.566/MS, Rei. Min. Jorge Mussi, j. 18/08/2011, DJe 29/08/2011. No sentido de que a reincidên- cia, como preponderante, deve prevalecer sobre a atenuante da confissão espontânea, a teor do art. 67 do Código Penal, não sendo admissível compensação: STJ, 5- Turma, HC 192.538/SP, Rei. Min. Gilson Dipp, j. 07/04/2011, DJe 28/04/2011. 45. STF, 23 Turma, HC 101.909/MG, Rei. Min. Ayres Britto, j. 28/02/2012. Em julgado mais recente, a 33 Seção do STJ também concluiu que a atenuante da confissão espontânea, que indica o arrependimento do agente e seu desejo de emenda, e a agravante da reincidência devem ser compensadas, nos termos do art. 67 do CP, visto que ambas são igualmente preponderantes: STJ, 33 Seção, EREsp 1.154.752/RS, Rei. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 23/05/2012. E ainda: STJ, 33 Seção, REsp 1.341.370/MT, Rei. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 10/04/2013. 46. No sentido de que as agravantes, ao contrário das qualificadoras, sequer precisam constar da denúncia para serem reconhecidas pelo Juiz. É suficiente, para que incidam no cálculo da pena, a existência nos autos de elementos que as identifiquem: STF, 23 Turma, HC 93.211/DF, Rei. Min. Eros Grau, j. 12/02/2008, DJe 74 24/04/2008. 1 4 4 6 Essapossibilidade, todavia, não se aplica aos crimes de ação penal privada. Com efeito, o próprio art. 385 deixa entrever que o reconhecimento de agravantes de ofício só pode acontecer em crimes de ação penal pública. 5.13. Fixação da pena definitiva Na terceira e última fase do cálculo da pena, devem ser analisadas as causas de aumento (majo- rantes) e de diminuição de pena (minorantes), estabelecendo-se a pena definitiva. Majorantes e minorantes não se confundem com qualificadoras e privilégios. Estes constituem verdadeiros tipos penais — tipos derivados —, com novos limites, mínimo e máximo de pena, enquanto aquelas, como simples causas modificadoras da pena em quantidades fixas, apenas estabelecem a sua variação (p. ex., CP, art. 157, §2°). Além disso, as majorantes e minorantes devem ser levadas em consideração na terceira fase do cálculo da pena, enquanto as qualificadoras são analisadas no momento de fixação da pena-base, leia-se, na primeira fase. Noutro giro, as causas de aumento e de diminuição de pena também não se confundem com as circunstâncias agravantes e atenuantes: a) devido a sua localização topográfica no Código Penal: enquanto as agravantes e atenuantes estão localizadas apenas na Parte Geral do CP, as majorantes e minorantes estão previstas tanto na Parte Geral (causas gerais) quanto na Especial (causas especiais); b) enquanto não há um quantum de aumento ou de diminuição expressamente previsto em lei para agravantes e atenuantes - no dia-a-dia, costuma-se utilizar o critério de 1/6 (um sexto) - , as majorantes e minorantes dispõem de critério de variação da pena fixados em abstrato pelo legislador, em quantidades fixas ou variáveis; c) a jurisprudência majoritária entende que a incidência de agravantes (ou atenuantes) não pode acarretar o aumento (ou a redução) da pena a patamar superior (ou inferior) ao limites cominados em abstrato pelo tipo penal, o que não acontece na hipótese de majorantes e minorantes, em que a pena pode ser fixada acima do máximo ou abaixo do mínimo abstratamente cominado ao delito. Por ocasião da aplicação das causas de aumento e de diminuição de pena, deve o juiz observar alguns aspectos: 1) quais circunstâncias são de incidência obrigatória: de acordo com o art. 68, parágrafo único, do CP, no concurso de causas de aumento ou de diminuição de pena previstas na parte especial, pode o juiz limitar-se a um só aumento ou a uma só diminuição, prevalecendo, todavia, a causa que mais aumente ou diminua. Como o dispositivo faz menção às majorantes e minorantes previstas na parte especial, conclui-se que, se previstas na parte geral, sua incidência será obrigatória. Quanto àquelas previstas na parte especial, havendo apenas uma causa de aumento ou de diminuição, sua incidência também é obrigatória; havendo mais de uma causa da mesma natureza na parte espe- cial, permite-se que o magistrado aplique todas ou somente uma delas, optando sempre pelo maior aumento ou pela maior redução; 2) qual deve ser a primeira a incidir na dosagem da pena, quando mais de uma se fizer aplicável: em primeiro lugar, deve ser aplicada a circunstância prevista na Parte Especial, seja qual for; depois, aquela contida na Parte Geral. Trata-se de aplicação do princípio da especialidade, aplicando-se primeiro a circunstância específica (v.g., CP, art. 121, §1°), diretamente ligada à tipificação do fato delituoso e, na sequência, aquela de cunho genérico (p. ex., CP, art. 14, parágrafo único); 3) como deve ser efetuado o cálculo da segunda (ou terceira) causa, na hipótese anterior, se por meio da incidência simples ou cumulada: há quem entenda que o juiz deve aplicar ambas as MANUAL DE PROCESSO PENAL } SENTENÇA PENAL 1 4 4 7 RENATO BRASILEIRO DE LIMA MANUAL DE PROCESSO PENAL causas diretamente sobre a pena provisória (incidência simples). Prevalece, todavia, o entendimento de que o juiz deve calcular a primeira causa à luz da pena provisória; depois, sobre este quantum, faz incidir a próxima circunstância, e daí por diante, sucessivamente (incidência cumulada ou na forma de cascata), sendo que, primeiro, devem ser aplicadas as causas de aumento de pena. Afinal, somente o critério da incidência cumulada é capaz de evitar o absurdo de uma pena igual a zero ou até mesmo de uma sanção negativa. Especificamente em relação à majoração da pena no crime de roubo, a súmula n° 443 do STJ dispõe que “o aumento na terceira fase de aplicação da pena no crime de roubo circunstanciado exige fundamentação concreta, não sendo suficiente para a sua exasperação a mera indicação do número de majorantes”.''7 Por fim, há de se ficar atento ao possível aumento da pena em virtude do concurso formal, do crime continuado, do erro na execução e do resultado diverso do pretendido (CP, arts. 70, 71, 73 e 74). Apesar de estarem previstos na parte geral do CP, somente são aplicáveis ao final de todas as operações, uma vez reconhecido o concurso formal ou a continuidade delitiva, etc. Na hipótese de concurso material ou concurso formal impróprio, as penas referentes a cada delito devem ser somadas.47 48 Quanto ao limite das penas, o tempo de cumprimento das penas privativas de liberdade não pode ser superior a 30 (trinta) anos (CP, art. 75, caput). Na hipótese de o agente ser condenado a penas privativas de liberdade cuja soma seja superior a 30 (trinta) anos, devem elas ser unificadas para atender ao limite máximo acima referido. 5.1.4. Fixação do regime penitenciário Uma vez fixada a pena definitiva, o passo seguinte é estipular o regime inicial de cumprimento da sanção. Tal regime deve ser fixado mesmo que o juiz vislumbre a possibilidade de substituição da pena de prisão por restritiva de direitos. Afinal, na eventualidade de haver o descumprimento injustificado da restrição imposta, a restritiva poderá ser convertida em privativa de liberdade, daí por que o regime já deve ter sido fixado na própria sentença condenatória. O Código Penal (arts. 34 a 36) e a Lei de Execução Penal (arts. 110 a 119) estabelecem 03 (três) regimes de cumprimento da pena privativa de liberdade: fechado, semi-aberto e aberto.49 Em se tratando de crime apenado com reclusão e sendo o acusado reincidente, cabem os regimes fechado (CP, art. 33) e semiaberto, quando a pena não for superior a quatro anos e forem 47. Para o STJ, no crime de roubo, o aumento da pena em razão da existência de causas especiais deve considerar o seu aspecto qualitativo, que revela o grau de reprovabilidade da conduta do agente e a necessidade de rigorismo na reprimenda. Não se admite a exasperação da pena no crime de roubo acima do limite mínimo em razão da simples existências de duas ou mais causas especiais de aumento da pena: STJ, 6^ Turma, HC 35.943/MS, Rei. Min. Paulo Medina, j. 09/02/2006, DJ 12/06/2006 p. 543. 48. Por exemplo, se ficar evidenciado que os acusados causaram a morte dolosa de duas vítimas, por ocasião da subtração do patrimônio de ambas, haverá dois crimes de latrocínio em concurso formal impróprio, haja vista a existência de desígnios autônomos, daí por que as penas deverão ser aplicadas cumulativamente, nos termos do art. 70, caput, in fine, do CP: STJ, 5^ Turma, REsp 1.164.953/MT, Rei. Min. Laurita Vaz, j. 27/03/2012, DJe 03/04/2012. De se lembrar que, para o reconhecimento da continuidade delitiva, não basta que haja semelhança entre as condições objetivas (tempo, lugar, modo de execução e outras similares), sendo necessário, ademais, que haja, entre estas, ligação a mostrar, de plano, que os crimes subsequentes seriam continuação do primeiro. Além do mais, a reiteração delitiva, indicadora de delinquência habitual ou profissional, por si só descaracterizaria crime continuado: STF, 25 Turma, HC 113.413/SP, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, j. 16/10/2012. 49. A prisão simples também tem regime semi-aberto (no caso de reincidência) e aberto(art. 6e da Lei de Contravenções Penais), apesar de não ter rigor penitenciário e não haver diferença prática entre regime semi-aberto e aberto na prisão simples. 1 4 4 8 MANUAL DE PROCESSO PENAL SENTENÇA PENAL favoráveis as circunstâncias judiciais do art. 59 do CP, nos exatos termos da súmula n° 269 do STJ: “E admissível a adoção do regime prisional semiaberto aos reincidentes condenado a pena igual ou inferior a quatro anos se favoráveis as circunstâncias judiciais”. Náo sendo reincidente, deverá o juiz observar o quantum de pena imposto e as circunstâncias judiciais. Em síntese, pode-se dizer que: a) se a pena for superior a 8 (oito) anos, o regime inicial será o fechado; se igual ou inferior a 8 (oito), mas superior a 4 (quatro), poderá o cumprimento da pena iniciar-se no regime semiaberto, caso as circunstâncias judiciais sejam favoráveis; se igual ou inferior a 4 (quatro) anos, regime aberto, desde que favoráveis as circunstâncias judiciais.50 Lado outro, na hipótese de crime punido com detenção, tratando-se de acusado reincidente, o cumprimento da pena deve se dar em regime inicial semiaberto, independentemente da quantidade da pena. Se, embora não reincidente, tiver sido condenado a pena superior a quatro anos, o regime inicial também será o semiaberto. Se o acusado não for reincidente e receber pena não superior a 4 anos, fará jus ao regime inicial aberto, desde que favoráveis as circunstâncias judiciais. Quanto à fixação do regime penitenciário, há de se ficar atento ao entendimento pretoriano. Segundo a súmula n° 718 do Supremo, “a opinião do julgador sobre a gravidade em abstrato do crime não constitui motivação idônea para a imposição de regime mais severo do que o permitido segundo a pena aplicada”. Por sua vez, nos exatos termos da súmula n° 719 do STF, “a imposição do regime de cumprimento mais severo do que a pena aplicada permitir exige motivação idônea”. Em sentido semelhante, eis o teor da súmula n° 440 do STJ: “Fixada a pena base no mínimo legal, é vedado o estabelecimento de regime prisional mais gravoso do que o cabível em razão da sanção imposta, com base apenas na gravidade abstrata do delito”.51 Especial atenção deve ser dispensada a algumas leis especiais, que, pelo menos até bem pouco tempo atrás, não davam escolha ao juiz, senão a estipulação do regime inicialmente fechado: a) art. Io, §7°, da Lei n° 9.455/97 (tortura); b) art. 2o, §1°, da Lei n° 8.072/90 (crimes hediondos e equiparados).52 Ocorre que, em recente julgado, o Plenário do Supremo declarou, incidentalmente, a incons- titucionalidade do §1° do art. 2o da Lei n° 8.072/90, na parte em que contida a obrigatoriedade de fixação de regime fechado para início de cumprimento de reprimenda aos condenados pela prática de crimes hediondos ou equiparados. Para o Supremo, se a Constituição quisesse a fixação do regime inicial aberto com base no crime em abstrato, teria incluído a restrição no tópico inscrito no art. 5o, XLIII, da CF, o que não ocorreu, já que referido preceito afasta somente a fiança, a graça e a anistia, para, no inciso XLVI, assegurar, de forma abrangente, a individualização da pena. Destarte, pelo menos em tese, deve ser admitido o início de cumprimento de reprimenda em regime diverso do fechado a condenados que preencham os requisitos previstos no art. 33, § 2o, b; e § 3o, do CP. Assim como no caso da vedação legal à substituição de pena privativa de liberdade por restritiva de direitos 50. De se lembrar que o condenado que cumpre pena no regime aberto não tem direito à remição pelo trabalho, nos termos do art. 126 da LEP: STJ, 6a Turma, HC 186.389/RS, Rei. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 28/02/2012. 51. No mesmo contexto: STJ, 5a Turma, HC 218.617/SP, Rei. Min. Laurita Vaz, j. 02/10/2012. Para a 6a Turma do STJ, no crime de roubo, a circunstância de a arma de fogo ter sido apontada contra o rosto da vítima não pode ser utilizada como fundamento para fixar regime prisional mais severo do que aquele previsto no art. 33, § 22, do CP, porquanto tal circunstância caracteriza "grave ameaça", elemento ínsito do crime de roubo: STJ, 6a Turma, AgRg no AREsp 349.732/RJ, Rei. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 05/11/2013. 52. O art. 10 da revogada Lei na 9.034/95 também estabelecia a obrigatoriedade de fixação do regime inicial fechado para os condenados por crimes decorrentes de organização criminosa. Todavia, a nova Lei das Organizações Crimi- nosas (Lei n2 12.850/13) não trouxe dispositivo legal semelhante. 1 4 4 9 RENATO BRASILEIRO DE LIMA MANUAL DE PROCESSO PENAL em condenação pelo delito de tráfico - já declarada inconstitucional pelo STF entendeu-se que a definição de regime deveria sempre ser analisada independentemente da natureza da infração.53 Noutro giro, a Lei de Lavagem de Capitais prevê, entre outros benefícios da colaboração premiada, a diminuição da pena de 1 (um) a 2/3 (dois terços) e a fixação do regime inicial aberto ou semiaberto, independentemente da quantidade de pena aplicada, quando o autor, coautor ou partícipe colaborar espontaneamente com as autoridades, prestando esclarecimentos que conduzam à apuração das infrações penais, à identificação dos autores, coautores e partícipes, ou à localização dos bens, direitos ou valores objeto do crime (Lei n° 9.613/98, art. Io, §3°, com redação dada pela Lei n° 12.683/12). 5.1.4.1. Detração na sentença condenatória para fins de determinação do regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade (Lei n° 12.736/12) Prevista no art. 42 do Código Penal, a detração consiste no desconto do tempo de prisão cau- telar (ou de internação provisória) do tempo de prisão penal (ou de medida de segurança) imposto ao acusado em sentença condenatória (ou absolutória imprópria) transitada em julgado. A título de exemplo, se determinado acusado for condenado irrecorrivelmente pela prática de um crime de homicídio simples à pena de 6 (seis) anos de reclusão, se acaso tiver permanecido preso preventi- vamente durante 1 (um) ano, terá direito à detração, restando a ele, portanto, o cumprimento de mais 5 (cinco) anos de reclusão. Antes da Lei n° 12.736/12, a detração era realizada apenas no momento da execução da pena, recaindo a competência sobre o juízo das execuções penais. Nesse sentido, dispõe o art. 66, III, “c”, da Lei n° 7.210/84 (LEP), que compete ao juiz da execução decidir sobre detração e remição da pena. Assim, após a condenação, a Secretaria do Juízo das Execuções Penais determinava a expedição de uma “guia de execução”, contendo diversas informações sobre o acusado, tais como o total da pena imposta e o tempo de prisão cautelar, permitindo, então, que fosse feita a detração. Com o advento da Lei n° 12.736/12, com vigência em 3 de dezembro de 2012, a detração deverá ser considerada pelo juiz que proferir a sentença condenatória, pelo menos em regra. A pro- pósito, eis o teor do art. 387, §2°, do CPP: “O tempo de prisão provisória, de prisão administrativa ou de internação, no Brasil ou no estrangeiro, será computado para fins de determinação do regime inicial de pena privativa de liberdade”. Isso significa dizer que, a partir da entrada em vigor da Lei n° 12.736/12, o regime prisional inicial deixa de ser estabelecido com base na pena definitiva, e passa a ser fixado levando-se em conta o quantum de pena resultante do desconto do tempo de prisão cautelar ou internação provisória a que o acusado foi submetido durante o processo. Como se pode notar, a intenção do legislador foi tornar mais célere a concessão dos benefícios da execução penal, já que houve uma antecipação do momento de reconhecimento da detração para fins de fixação do regime inicial do cumprimento da pena privativa de liberdade. Deveras, se antes a detração era feita apenas pelo juízo da execução, doravante essa análise deverá serfeita pelo próprio magistrado do processo de conhecimento, por ocasião da prolaçáo da sentença condenatória. 53. STF, Pleno, HC 111.840/ES, Rei. Min. Dias Toffoli, 27/06/2012. Admitindo a substituição da pena privativa de liber- dade por restritiva de direitos e a fixação de regime inicial aberto para o crime de tráfico de drogas: STF, 23 Turma, HC 111.844/SP, Rei. Min. Celso de Mello, j. 24/04/2012; STF, 23 Turma, HC 112.195/SP, Rei. Min. Gilmar Mendes, j. 24/04/2012. Admitindo a fixação de regime prisional diferente do fechado para o início do cumprimento de pena imposta ao condenado por tráfico de drogas: STJ, 33 Seção, EREsp 1.285.631/SP, Rei. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 24/10/2012. 1 4 5 0 Exemplificando, suponha-se que um acusado primário, que permaneceu preso preventivamente durante 4 (quatro) anos, tenha sido condenado irrecorrivelmente à pena de 12 (doze) anos de reclusão pela prática do crime de homicídio qualificado (art. 121, §2°). Nesse caso, ante o disposto no art. 387, §2°, do CPP, caberá ao próprio juiz do processo de conhecimento reconhecer que o acusado ficara preso cautelarmente por 4 (quatro) anos, conferindo-lhe, então, a detração desse período, de modo que o restante da pena a ser cumprido passe a ser de 8 (oito) anos, com a consequente fixação do regime inicial semiaberto para o cumprimento da pena privativa de liberdade. Nesse caso, não se pode objetar que o regime inicial do cumprimento da pena teria que ser o regime fechado, já que se trata de crime hediondo (Lei n° 8.072/90, art. 2o, §1°). A uma porque, como visto acima, o próprio Supremo Tribunal Federal já declarou a inconstitucionalidade do regime inicial fechado para crimes hediondos e equiparados (STF, Pleno, HC 111.840/ES, Rei. Min. Dias Toffoli, 27/06/2012). A duas porque, apesar de se tratar de espécie de prisão cautelar, e não penal, não se pode negar que a forma do cumprimento da prisão cautelar assemelha-se bastante ao regime inicial fechado, daí por que não se pode desprezar o lapso temporal de 4 (quatro) anos em que o acusado permaneceu encarcerado preventivamente. Perceba-se que o critério de fixação da pena continua sendo o trifásico de Nelson Hungria, visto que a detração somente será realizada pelo juiz sentenciante após a conclusão da dosimetria da pena e antes da fixação do regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade. Em outras palavras, para fins de fixação do regime inicial - e apenas para isso —, a detração deverá ser feita pelo juiz sentenciante tão somente após a fixação da pena definitiva. Esse raciocínio é extrema- mente importante para fins de cálculo da prescrição da pretensão punitiva ou executória, que deve continuar sendo feito com base na pena definitiva fixada na sentença condenatória, e não levando-se em consideração o quantum resultante do desconto inerente à detração. Nessa linha, como observa Márcio André Lopes Cavalcante, “a Lei n° 12.736/12 não alterou o critério para calcular a prescrição, que continua previsto no art. 110, caput, e §1°, do Código Penal, os quais mencionam expressamente que a prescrição regula-se pela pena aplicada, ou seja, pela reprimenda fixada na dosimetria. Assim, a detração realizada na sentença produz efeitos para fins de fixação do regime inicial e não para cálculo da prescrição. Nesse sentido, a redação do novel §2° do art. 387 do CPP procurou ser explícita quanto à sua finalidade: o tempo de prisão provisória, de prisão administrativa ou de internação, no Brasil ou no estrangeiro, será computado para fins de determinação do regime inicial de pena privativa de liberdade ”.u Conquanto não conste qualquer ressalva do art. 387, §2°, do CPP, do que se poderia deduzir que a detração sempre deverá ser feita na sentença condenatória para fins de determinação do regime inicial do cumprimento da pena, pensamos que, a depender do caso concreto, é possível que o juiz do processo de conhecimento abstenha-se de fazê-lo, hipótese em que esta análise deverá ser feita, ulteriormente, pelo juiz da execução, nos termos do art. 66, III, “c”, da LEP, que não foi revogado expressa ou tacitamente pela Lei n° 12.736/12. Explica-se: se a regra, doravante, é que a detração seja feita na própria sentença condenatória (CPP, art. 387, §2°), não se pode olvidar que, em certas situações, é praticamente inviável exigir-se do juiz sentenciante tamanho grau de aprofundamento em relação à situação prisional do condenado. Basta supor hipótese de acusado que tenha contra si diversas prisões cautelares decretadas por juízos diversos, além de inúmeras execuções penais resultantes de sentenças condenatórias com trânsito em julgado. Nesse caso, até mesmo como 54 MANUAL DE PROCESSO PENAL SENTENÇA PENAL 54. CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Comentários à Lei ns 12.736/12, que antecipa, para a sentença condenatória, o momento adequado para realizar a detração da pena. Disponível em: http://www.dizerodireito.com.br. Acesso em 05/12/2012. 1 4 5 1 RENATO BRASILEIRO DE LIMA MANUAL DE PROCESSO PENAL forma de não se transformar o juiz do processo de conhecimento em verdadeiro juízo da execução, o que poderia vir de encontro ao princípio da celeridade e à própria garantia da razoável duração do processo (CF, art. 5o, LXXVIII), haja vista a evidente demora que a análise da detração causaria para a prolação da sentença condenatória na audiência una de instrução e julgamento, é possível que o juiz sentenciante se abstenha de fazer a detração naquele momento, o que, evidentemente, não causará maiores prejuízos ao acusado, já que tal benefício será, posteriormente, analisado pelo juízo da execução. Para tanto, deverá o juiz do processo de conhecimento apontar, fundamentadamente, os motivos que inviabilizam a realização da detração na sentença condenatória. 5.1.5. Substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos Uma vez firmado o regime penitenciário, deve o juiz verificar a possibilidade de substituição da prisão por penas restritivas de direito, nos termos do art. 44 do Código Penal. Tais penas estão listadas no art. 43 do CP: prestação pecuniária, perda de bens e valores, prestação de serviço à comunidade ou a entidades públicas; interdição temporária de direitos; limitação de fim de semana. Essas penas restritivas de direito são autônomas e substituem as privativas de liberdade. Logo, não se pode admitir que alguém seja condenado a cumprir determinada pena privativa de liber- dade e, simultaneamente, ao cumprimento de penas restritivas de direito. A propósito, eis o teor da Súmula n° 493 do STJ: “E inadmissível a fixação de pena substitutiva (art. 44 do CP) como condição especial ao regime aberto”. Quanto aos requisitos para a substituição por restritiva de direitos, pode-se dizer que, no tocante aos crimes culposos, não há qualquer pressuposto específico, a não ser a verificação das circunstâncias judiciais. Ou seja, basta que o juiz constate que a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias do fato indicam que a medida seja suficiente, pouco importando o quantum de pena cominado ao delito. A reincidência, por si só, não impede a aplicação do benefício no caso de crime culposo, já que tal circunstância somente figura como óbice à substituição se o agente for reincidente específico em crime doloso (CP, art. 44, II). Evidentemente, se o juiz concluir que a reincidência demonstra que a substituição poderá não se mostrar medida suficiente, por revelar conduta social ou personalidade incompatível com o benefício, poderá denegar a substituição por restritiva de direitos. Em se tratando de crimes dolosos, alguns requisitos devem ser preenchidos pelo acusado, a saber: 1) Pena não superior a 4 (quatro) anos: se o acusado for condenado no mesmo processo por vários crimes, o parâmetro a ser utilizado é apena total imposta na sentença, e não aquela aplicada a cada delito isoladamente. Na hipótese de concurso formal próprio ou crime continuado, o parâ- metro também será a pena final, nos termos dos arts. 70 e 71 do CP, não sendo possível a aplicação da regra do art. 119 do CP, referendada pela súmula n° 497 do Supremo, que se refere apenas ao cálculo da prescrição;55 2) Crime cometido sem o emprego de violência ou grave ameaça contra a pessoa (CP, art. 4 4 ,1, in fine): por força do art. 4 4 ,1, do CP, não se admite a substituição de pena privativa de liberdade por restritiva de direito quando o crime for cometido com violência, mesmo que a pena seja inferior a 4 anos e fixado o regime inicial aberto.56 Na visão dos tribunais, tratando-se de norma restritiva da liberdade, esse dispositivo deve ser interpretado restritivamente. Por isso, entende-se que a violência a que se refere o art. 44, I, do CP, é apenas a violência real, ou seja, o emprego de 55. Nessa linha: STJ, 5^ Turma, HC 94.646/SC, Rei. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 11/12/2008, DJe 02/02/2009. 56. Nesse contexto: STF, 2i Turma, HC 114.703/MS, Rei. Min. Gilmar Mendes, j. 16/04/2013. 1 4 5 2 MANUAL DE PROCESSO PENAL SENTENÇA PENAL força física sobre o corpo da vítima como meio de execução do delito. Portanto, se acaso o crime de roubo do art. 157, caput, do CP, for cometido mediante o emprego de violência imprópria (redução da possibilidade de resistência da vítima por qualquer outro meio que não caracterize violência ou grave ameaça, tal como, por exemplo, amarrar alguém a um poste), tem sido admitida a substituição por restritiva, desde que preenchidos, obviamente, os demais requisitos.57 * Em relação aos crimes de lesão corporal dolosa leve (CP, art. 129, caput) e ameaça (CP, art. 147), que têm, como elementares, a violência real e a grave ameaça, prevalece o entendimento de que, por conta do princípio da especialidade, é possível a substituição da pena de prisão por restritiva de direitos. Afinal, tais crimes são considerados infrações de menor potencial ofensivo, submetendo-se aos institutos despenalizadores da Lei n° 9.099/95, que expressamente admite a aplicação de penas não privativas de liberdade (art. 62). Todavia, não se admite substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos no caso de condenação pelo crime de lesão corporal previsto no art. 129, §9°, do Código Penal, já que se trata de infração penal praticada com violência no âmbito familiar, sendo de todo irrelevante o fato de se tratar de violência doméstica com requintes de crueldade extrema ou que se restrinja às vias de fato (tapas, empurrões, socos, etc.). Em outras palavras, o termo “violência” a que faz menção o art. 44, I, do CP, não comporta quantificação ou qualificação, abrangendo a violência praticada em maior ou menor grau de intensidade.’8 3) Acusado não reincidente específico em crime doloso (ou preterdoloso): de acordo com o art. 44, II, do CP, para que seja possível a substituição, o acusado não pode ser reincidente em crime doloso. Perceba-se que não basta que o acusado seja reincidente. Há necessidade de que sua reincidência seja específica em relação a crime doloso, ou seja, tanto aquele objeto anterior da conde- nação, quanto o outro delito, posteriormente cometido, devem ser crimes dolosos ou preterdolosos. Mesmo em se tratando de reincidente específico em crime doloso (ou preterdoloso), o art. 44, §3°, do CP, autoriza a substituição, mas desde que o juiz verifique que a medida se mostra social- mente recomendável e que a reincidência não tenha ocorrido pela prática do mesmo tipo penal de crime doloso, ainda que a classificação jurídica não seja a mesma (v.g., furto simples, e, após o trânsito em julgado, furto qualificado). 4) Circunstâncias judiciais favoráveis: de acordo com o art. 44, III, do CP, a substituição por restritiva de direitos deve ser deferida pelo juiz quando a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do condenado, bem como os motivos e as circunstâncias indicarem que essa substituição seja suficiente. Especial atenção deve ser dispensada à legislação especial, que, vez por outra, também faz menção à possibilidade (ou não) de substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos. A título de exemplo, em seu art. Io, §5°, a Lei de lavagem de capitais permite, entre outros benefícios, a substituição da pena privativa por restritiva de direitos nas hipóteses de delação premiada, inde- pendentemente do quantum da sanção imposta ao condenado, quando o autor, coautor ou partícipe colaborar espontaneamente com as autoridades, prestando esclarecimentos que conduzam à apuração das infrações penais e de sua autoria ou à localização dos bens, direitos ou valores objeto do crime. 57. No sentido de que a violência a que se refere o art. 44, inciso I, do CP, é apenas a violência real: STJ, 63 Turma, RHC 9.135/MG, Rei. Min. Hamilton Carvalhido, j. 06/04/2000, DJ19/06/2000 p. 210. Com raciocínio semelhante, Estefam adverte que, se uma pessoa cometer uma tentativa de estupro de vulnerável (CP, art. 217-A), poderá, em tese, ter sua pena de prisão substituída. (ESTEFAM, André. Direito penal, volume 1. São Paulo: Editora Saraiva, 2010. p. 322). STJ, 63 Turma, HC 192.104/MS, Rei. Min. Og Fernandes, j. 09/10/2012.58. RENATO BRASILEIRO DE LIMA MANUAL DE PROCESSO PENAL Outro exemplo importante diz respeito aos crimes hediondos e equiparados. Apesar de a Lei n° 8.072/90 não vedar expressamente a possibilidade de substituição da pena de prisão por restritiva de direitos, grande parte da doutrina posiciona-se contrariamente a essa possibilidade. Para tanto, costuma-se invocar o argumento de que a Lei n° 8.072/90 determina que os condenados por crimes hediondos e equiparados iniciem o cumprimento da pena em regime fechado, daí porque não seria cabível a substituição. A Lei de Drogas caminha na mesma direção, já que o art. 44, caput, veda a conversão de suas penas em restritivas de direitos. Ocorre que, ao apreciar o H C 97.256, o plenário do Supremo declarou, incidentalmente, a inconstitucionalidade da expressão vedada a conversão em penas restritivas de direitos, constante do §4° do art. 33, e do art. 44, ambos da Lei de Drogas (Lei n° 11.343/2006). Sob o argumento de que a vedação, em abstrato, da possibilidade de substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, é incompatível com o princípio da individualização da pena, foi concedida a ordem em habeas corpus não para assegurar ao paciente a imediata substituição, mas pelo menos para remover o obstáculo da Lei n° 11.343/06, devolvendo ao juiz da causa a tarefa de aferir a presença das condições objetivas e subjetivas listadas no art. 44 do Código Penal.59 Ora, diante desse entendimento, não há como negar a possibilidade, pelo menos em tese, de substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos em relação aos crimes hediondos. Afinal, se o tráfico de drogas, que é crime equiparado a hediondo por força da própria Constituição Federal (art. 5o, XLIII), admite essa possibilidade, não há como não estendê-la às demais infrações do mesmo gênero, desde que preenchidos, obviamente, os demais requisitos do art. 44 do CP. Verificada a presença dos requisitos que autorizam a substituição da pena de prisão pela res- tritiva de direitos, deve o magistrado escolher a mais adequada, assim como fixar a quantidade de restritivas que serão aplicadas no caso concreto. Caso a pena de prisão substituída não seja superior a um ano, o juiz poderá aplicar uma pena restritiva de direitos ou multa. Se a pena for superior a um ano, a lei faculta ao juiz substituí-la por duas penas restritivas de direitos ou uma pena restritiva de direito cumulada com multa (CP, art. 44, §2°). Na hipótese de não ser cabível a substituiçãoda pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, deve o juiz analisar a possibilidade de concessão da suspensão condicional da pena, nos termos dos arts. 77 e 78 do Código Penal. 5.1.6. Fixação da pena de multa Por fim, não se pode esquecer que, se a infração cominar multa juntamente com a pena privativa de liberdade, será necessário efetuar o respectivo cálculo, valendo-se dos critérios decorrentes dos arts. 49 e seguintes do Código Penal. Antes, porém, de analisarmos os critérios fixados pelo Código Penal para a fixação da pena de multa, é oportuno lembrar que, aos crimes que envolvam violência doméstica e familiar contra a mulher, não se admite a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa (Lei n° 11.340/06, art. 17). Com base no sistema do dia-multa, deve ser fixado, em primeiro lugar, o número de dias-multa (de 10 a 360); na sequência, atribui-se o valor a cada dia-multa (de 1/30 ao quíntuplo do valor do salário mínimo vigente ao tempo do fato). Se o valor da multa for insignificante para o acusado, mesmo que aplicado no grau máximo (360 dias-multa fixados em 5 salários mínimos cada um), poderá o juiz aumentá-lo até o triplo, de acordo com o art. 60, §1°, do CP. O Código Penal é taxativo 59. STF, Pleno, HC 97.256/RS, Rei. Min. Ayres Britto, j. 01/09/2010, DJe 247 15/12/2010. 1454 ao prever que o valor de cada dia-multa deve ser arbitrado de acordo com a capacidade econômica do acusado (art. 60, caput). Quanto ao número de dias-multa, prevalece o entendimento segundo o qual essa operação deve levar em consideração as circunstâncias judiciais do art. 59 do CP. Nessa linha, como já se pronunciou o STJ, a pena de multa deve ser fixada em duas fases (critério bifásico). Na primeira, fixa-se o número de dias-multa, considerando-se as circunstâncias judiciais (art. 59, do CP). Na segunda, determina-se o valor de cada dia-multa, levando-se em conta a situação econômica do réu.60 Quanto à possibilidade de fixação do valor do dia-multa atrelado ao do salário mínimo, não há falar em suposta violação ao art. 7o, IV, da Constituição Federal, que prevê que é vedada a vinculação do salário mínimo para qualquer fim. Na verdade, como bem observa a doutrina, a norma constitucional em questão visa evitar que o salário mínimo seja utilizado como indexador econômico, impedindo que, a cada aumento do piso salarial, subissem, proporcionalmente, os preços de produtos e serviços, tornando inócua a elevação do mínimo. Essa a finalidade da regra (interpretação teleológica), a qual não resulta vulnerada com a determinação de que o dia-multa seja calculado a partir do salário mínimo.61 5.2. Decretação (ou manutenção) da prisão preventiva ou das medidas cautelares diversas da prisão na sentença condenatória.62 A prisão como efeito automático da sentença condenatória recorrível encontra-se revogada pela Lei n° 11.719/08 - seu art. 3o revogou expressamente o art. 594 do CPP. Ao conferir nova redação ao art. 283, caput, do CPP, a Lei n° 12.403 também reforçou esse entendimento, porquanto tal dispositivo legal se refere apenas à prisão em flagrante, preventiva, temporária, e à prisão decorrente de sentença condenatória transitada em julgado. Para além disso, o art. 4o da Lei n° 12.403/11 tam- bém revogou expressamente o art. 393 e o art. 595 do Código de Processo Penal, corroborando o entendimento de que o recolhimento à prisão não é mais efeito da sentença condenatória recorrível e que a apelação não mais poderá ser declarada deserta se o condenado fugir depois de haver apelado. Consoante disposto no art. 387, §1°, do CPP, na sentença condenatória, o juiz decidirá fun- damentadamente sobre a manutenção ou, se for o caso, imposição de prisão preventiva ou de outra medida cautelar, sem prejuízo do conhecimento da apelação que vier a ser interposta. Essas medidas cautelares diversas da prisão a que se refere o citado dispositivo foram introduzidas nos arts. 319 e 320 do CPP pela Lei n° 12.403/11. Tais medidas podem ser impostas na sentença condenatória não só em substituição à anterior prisão preventiva, como também nas hipóteses em que o acusado estava em liberdade, desde que presentes os pressupostos do fum us comissi delicti e do periculum libertatis (CPP, art. 282, I e II). Como se percebe, continua sendo possível a decretação da prisão preventiva ou a imposição de medidas cautelares diversas da prisão no momento da sentença condenatória recorrível, porém deve o magistrado apontar, fundamentadamente, a presença de seus pressupostos, tanto quando MANUAL DE PROCESSO PENAL SENTENÇA PENAL 60. STJ, 5ã Turma, REsp 897.876/RS, Rei. Min. Felix Fischer, j. 12/06/2007, DJ 29/06/2007 p. 711. 61. NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal comentado. 4^ ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 250. Nesse contexto, a súmula vinculante ns 4 do Supremo dispõe: "Salvo nos casos previstos na Constituição, o salário mínimo não pode ser usado como indexador de base de cálculo de vantagem de servidor público ou de empregado, nem ser substituído por decisão judicial". 62. Para mais detalhes acerca da extinta prisão decorrente de sentença condenatória recorrível, remetemos o leitor ao Título referente às Medidas Cautelares de Natureza Pessoal. 1 4 5 5 RENATO BRASILEIRO DE LIMA MANUAL DE PROCESSO PENAL mantém a medida anteriormente decretada, como quando a determina nesse momento. Na verdade, pensamos ser possível trabalhar-se com duas regras básicas: 1) acusado em liberdade durante o curso do processo: se o acusado permaneceu solto ao longo de toda a instrução processual, pouco importando se primário ou reincidente, portador de bons antecedentes (ou não), autor de crime hediondo (ou não), significa dizer que o (uiz entendeu não ser necessária sua prisão, seja por força da ausência de uma das hipóteses que autoriza a prisão pre- ventiva, seja porque as medidas cautelares diversas da prisão se mostraram adequadas e suficientes para tutelar a eficácia do processo. Não faz sentido, portanto, estabelecer como efeito automático da sentença condenatória recorrível o recolhimento do acusado à prisão, sob pena de patente violação ao princípio da presunção da não culpabilidade. Assim, se o acusado estava solto por ocasião da sentença, deve permanecer solto, salvo se surgir alguma hipótese que autorize a decretação de sua prisão preventiva;63 2) acusado que permaneceu preso durante o curso do processo: se o acusado encontra-se preso preventivamente por ocasião da sentença condenatória recorrível, significa dizer que o juiz entende que há motivos que autorizam sua prisão cautelar (CPP, art. 312). Portanto, não faz sentido que coloque o acusado em liberdade. Porém, nessa hipótese, deve o juiz apontar na sentença a persistência dos motivos que justificam sua segregação cautelar. Desaparecendo o motivo que deu ensejo a sua segregação, deve o acusado ser colocado em liberdade.64 65 Caso o juiz entenda que, por ocasião da sentença, subsistem os motivos que deram ensejo à decretação da prisão preventiva do agente no curso do processo, é perfeitamente possível que faça remissão aos fundamentos da decisão anterior que implicou a decretação da prisão cautelar do agente, desde que, obviamente, não tenha havido qualquer alteração do quadro fático-processual desde a data da decretação da medida.63 Outrossim, embora demonstrada, fundamentadamente, a indispensabilidade da prisão cautelar do acusado por ocasião da sentença condenatória, os Tribunais vêm entendendo que é desproporcional determinar que o acusado aguarde o julgamento do recurso de apelação em regime mais gravoso que aquele fixado no decreto condenatório. Logo, considerando que a prisão cautelar acarreta o recolhimento do acusado à prisão em circunstâncias absolutamente semelhantes ao cumprimento da pena no regimefechado, há diversos precedentes da 5a Turma do STJ no sentido de que, fixado o regime inicial semiaberto para o cumprimento da pena, o acusado tem o direito de aguardar o julgamento do recurso de apelação no mesmo regime, aplicando-se, desde já, as respectivas regras.66 63. Admitindo a possibilidade de decretação da prisão cautelar de acusados que permaneceram soltos durante o pro- cesso, porquanto fundamentada a necessidade da segregação em razão da elevada periculosidade dos agentes, a complexidade do esquema delituoso e a magnitude da lesão causada: STJ, 53 Turma, HC 29.445/RS, Rei. Min. Jorge Scartezzini, DJ 19/12/2003 p. 532. Em caso concreto apreciado pelo Supremo, concluiu-se pela possibilidade de decretação da prisão preventiva por ocasião da sentença condenatória se esta traz fundamentos concretos que justificam a custódia cautelar do acusado: requerimentos de expedição de passaporte, posse de duas aeronaves de pequeno porte empregadas na prática do crime de tráfico internacional de entorpecentes, utilizando-se de pistas de pouso clandestinas, contatos no exterior, especialmente na Colômbia e na Ilha de Cabo Verde, e, ainda, a comprovação da liderança que o acusado exercia no comando da ação criminosa. (STF, 23 Turma, HC 90.866/MA, Rei. Min. Joaquim Barbosa, j. 01/04/2008, DJe 157 21/08/2008). 64. Nesse contexto, como já se pronunciou o Supremo, não há lógica em se permitir que o acusado, preso preventivamente durante toda a instrução criminal, aguarde em liberdade o trânsito em julgado da causa, se mantidos os motivos da segre- gação cautelar: STF, l 3 Turma, HC 89.824/MS, Rei. Min. Carlos Britto, j. 11/03/2008, DJe 162 28/08/2008. 65. STF, l 3 Turma, HC 101.248/CE, Rei. Min. Luiz Fux, j. 21/06/2011, DJe 152 08/08/2011. 66. STJ, 53 Turma, HC 218.098/SP, Rei. Min. Laurita Vaz, j. 08/05/2012, DJe 21/05/2012. E ainda: STJ, 53 Turma, HC 227.960/ MG, Rei. Min. Laurita Vaz, j. 18/10/2012. STJ, 53 Turma, HC 89.018, Rei. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 18/12/2007, DJe 10/03/2008. 1 4 5 6 MANUAL DE PROCESSO PENAL SENTENÇA PENAL 5.3. Efeitos decorrentes da sentença penal condenatória Os efeitos da sentença penal condenatória subdividem-se em penais e extrapenais. 5.3.1. Efeitos penais Os efeitos penais, por sua vez, podem ser classificados em principais (ou primários) e reflexos (ou secundários). São efeitos penais (ou primários) da sentença penal condenatória: 1) cumprimento da pena: como visto no tópico anterior, por torça do princípio da presunção de inocência, só é possível que o acusado dê início ao cumprimento da pena, seja ela privativa de liber- dade, restritiva de direitos ou de multa, após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória; 2) inclusão do nome do acusado no rol dos culpados: em sua redação original, o art. 393 do CPP dispunha serem efeitos da sentença condenatória recorrível ser o acusado preso ou conservado na prisão, assim nas infrações inafiançáveis, como nas afiançáveis enquanto não prestar fiança, além da inclusão de seu nome no rol dos culpados. Este rol dos culpados é um livro cartorário destinado à inclusão do nome de condenados, sua qualificação e referência ao processo em que foi proferida sentença condenatória. Tais dispositivos sempre foram tidos pela doutrina como não recepcionados pela Constituição Federal, porquanto contrários à regra de tratamento decorrente do princípio da presunção de inocência. Com o advento da Lei n° 12.403/11, houve a revogação expressa do art. 393. Destarte, conclui-se que, nos mesmos moldes que o cumprimento da pena, o lançamento do nome do acusado no rol dos culpados somente poderá ocorrer com o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. A sentença condenatória também produz efeitos penais reflexos (ou secundários), a saber: 1) induzir a reincidência: de acordo com o art. 63 do CP, verifica-se a reincidência quando o agente comete novo crime, depois de transitar em julgado a sentença que, no país ou no estrangeiro, o tenha condenado por crime anterior. Portanto, se, após o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, o agente vier a praticar novo fato delituoso, desde que dentro do lapso temporal de 5 (cinco) anos a que se refere o art. 64, inciso I, do CP, e desde que não se trate de crime militar próprio e político, o acusado será considerado reincidente; 2) possível regressão do regime carcerário: de acordo com o art. 118, inciso II, da LEP, a execução da pena privativa de liberdade ficará sujeita à forma regressiva, com a transferência para qualquer dos regimes mais rigorosos, quando o condenado sofrer condenação, por crime anterior, cuja pena, somada ao restante da pena em execução, torne incabível o regime; 3) revogação do sursis: nos termos do art. 81, I, do CP, tal benefício será obrigatoriamente revogado se, no curso do prazo, o beneficiário é condenado, em sentença irrecorrível, por crime doloso; o sursis pode ser revogado se o agente é irrecorrivelmente condenado por crime culposo ou por contravenção, a pena privativa de liberdade ou restritiva de direitos (CP, art. 81, §1°); 4) revogação do livramento condicional: tal benefício será obrigatoriamente revogado se o liberado vem a ser condenado a pena privativa de liberdade por sentença transitada em julgado por crime cometido durante a vigência do livramento ou por crime anterior, observado, nesse caso, o disposto no art. 84 do CP; esta revogação será facultativa se o liberado for condenado irrecorrivel- mente por crime ou contravenção a pena que não seja privativa de liberdade. 1 4 5 7 RENATO BRASILEIRO DE LIMA MANUAL DE PROCESSO PENAL 5-3.2. Efeitos extrapenais Os efeitos extrapenais da sentença condenatória subdividem-se em obrigatórios (ou genéricos) e específicos. 5-3.2.1. Efeitos extrapenais obrigatórios Os efeitos extrapenais obrigatórios (ou genéricos) estão previstos no art. 91 do Código Penal e são aplicáveis por força de lei, independentemente de expressa declaração por parte da autoridade jurisdicional, uma vez que são inerentes à condenação, qualquer que seja a pena imposta (privativa de liberdade, restritiva de direitos ou multa). Na verdade, a única condição para o implemento desses efeitos é o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Recebem essa denominação por serem aplicáveis, em tese, a toda e qualquer condenação cri- minal. É preciso ponderar, todavia, que sua efetiva aplicação dependerá das características do caso concreto. Por exemplo, a lei estabelece como efeito genérico da condenação a obrigação de reparar os danos, o qual só poderá ser aplicado se a conduta do agente provocar algum tipo de dano. Há delitos que não acarretam qualquer prejuízo ao ofendido, daí por que seria inviável a incidência desse efeito (v.g., porte ilegal de arma de fogo). Vejamos, então, quais são esses efeitos: 1) Obrigação de reparar o dano: de acordo com o art. 91, I, do CP, a condenação do acusado torna certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime. Isso significa dizer que, com o trânsito em julgado da sentença condenatória, esta decisão passa a valer como título executivo judicial, nos termos do art. 475-N, II, do CPC. Porém, apesar de reconhecido o an debeatur, ou seja, a obrigação de indenizar, resta definir o quantum debeatur (valor da indenização devida), daí por que a vítima (ou seus sucessores), independentemente do ajuizamento de uma ação ordinária de conhecimento, deve promover a liquidação por artigos e ulterior execução no cível. Importante lembrar que, com o advento da Lei n° 11.719/08, passa a ser possível que, na própria sentença condenatória, ocorra a fixação de valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido (CPP, art. 387, IV). Trata-se de norma processual, daí por que tem aplicaçãoimediata às sentenças proferidas após a entrada em vigor da Lei n° 11.719/08. Afinal, o disposto no art. 387, IV, do CPP, apenas modificou o momento em que deve ser fixado o mencionado valor.67 Esta importante mudança permite que, doravante, o ofendido não seja obrigado a promover a liquidação para apuração do quantum debeatur, podendo promover, de imediato, a execução da sentença condenatória transitada em julgado. Esse valor, todavia, não é definitivo para a vítima. De fato, de acordo com o art. 63, parágrafo único, do CPP, transitada em julgado a sentença conde- natória, a execução poderá ser efetuada pelo valor fixado nos termos do inciso IV do art. 387, sem prejuízo da liquidação para a apuração do dano efetivamente sofrido. Esse dever de indenizar pode ser exercido contra os herdeiros do acusado condenado por sentença irrecorrível, desde que observados os limites do patrimônio transferido. Como se trata de efeito extrapenal da condenação, não há falar em violação ao princípio da pessoalidade da pena (CF, art. 5o, XLV). Outro detalhe importante é que somente pode figurar como legitimado passivo dessa execução civil lastreada na sentença condenatória irrecorrível aquele que figurou como acusado no processo 67. STJ, 63 Turma, REsp 1.176.708/RS, Rei. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 12/06/2012. 1458 penal. Na hipótese de a vítima pretender buscar o ressarcimento contra eventual responsável civil (e não diretamente em face do acusado), deve ingressar com ação de conhecimento no juízo cível, já que os efeitos da coisa julgada penal não podem prejudicar terceiros que não interviram no feito criminal. 2) Perda em favor da União dos instrumentos do crime, desde que consistam em coisas cujo fabrico, alienação, uso, porte ou detenção constitua fato ilícito, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé (CP, art. 91, II, “a”): deve incidir tão somente sobre os objetos proibidos ou que se encontrassem em situação de ilegalidade à época do cometimento do delito, e não sobre quaisquer instrumentos utilizados pelo agente. E sabido que, em regra, os instrumentos utilizados pelo agente para a prática delituosa (.stru- menta sceleris) devem ser apreendidos pela autoridade policial, nos termos do art. 6o, II, do CPP. Caso não tenham sido encontrados na cena do crime, é possível que sobre eles recaia posterior busca domiciliar e/ou pessoal, consoante disposto no art. 240, §§1° e 2o, do CPP. Ao final do processo, se a posse de tais instrumentos constituir fato ilícito, deve ocorrer o confisco, nos termos do art. 91, II, “a”, do CP, ressalvado o direito do lesado (aquele que sofreu o prejuízo material) e do terceiro de boa-fé (pessoa não vinculada à prática delituosa). Exemplificando, se um crime de latrocínio é cometido com uma arma de fogo, e o agente não tinha o registro nem tampouco o porte, como se trata de instrumento proibido, é evidente que, com o trânsito em julgado da sentença condenatória, deve recair sobre ela a pena de confisco, sendo inviável sua devolução ao agente mesmo depois do cumprimento da pena.68 Todavia, se a posse do instrumento utilizado para a prática delituosa não constituir fato ilícito, tal objeto poderá ser restituído ao agente, inclusive antes do trânsito em julgado, desde que não interesse mais ao processo. Por fim, deve ser respeitado o direito do terceiro de boa-fé. Logo, se um automóvel furtado for utilizado para o cometimento de um crime, por mais que sua detenção no momento da prática delituosa configurasse um fato ilícito, não se afigura possível o confisco, já que o próprio art. 91, II, “a”, do CP, ressalva o direito do terceiro de boa-fé. 3) Perda em favor da União do produto do crime ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido pelo agente com a prática do fato criminoso, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé: refere-se o art. 91, II, do CP, à pena de confisco incidente sobre o produto direto e indireto do crime. Produto direto do crime (producta sceleris) é o resultado imediato da operação delinquencial. São os bens que chegam às mãos do criminoso como resultado direto do crime: objeto furtado (art. 155, caput, do CP), dinheiro obtido com a prática da corrupção passiva (art. 317, caput, do CP), ou o dinheiro obtido com a venda da droga (art. 33, caput, da Lei 11.343/2006). Produto indireto ou proveito da infração (Jructus sceleris) configura o resultado mediato do crime, ou seja, trata-se do proveito obtido pelo criminoso como resultado da utilização econômica do produto direto do delito (e.g., dinheiro obtido com a venda do objeto furtado, veículos ou imóveis adquiridos com o dinheiro obtido com a venda de drogas etc.). Por força da Lei n° 12.694/12, com vigência em data de 23 de outubro de 2012, foram acresci- dos dois parágrafos ao art. 91 do Código Penal. Doravante, o confisco também poderá recair sobre bens ou valores equivalentes ao produto ou proveito do crime quando estes não forem encontrados MANUAL DE PROCESSO PENAL SENTENÇA PENAL 68. Quanto às armas de fogo apreendidas, vale lembrar que, segundo o art. 25 da Lei ns 10.826/03, após a elaboração do laudo pericial e sua juntada aos autos, quando não mais interessarem à persecução penal serão encaminhadas pelo juiz competente ao Comando do Exército, no prazo máximo de 48 (quarenta e oito) horas, para destruição ou doação aos órgãos de segurança pública ou às Forças Armadas. 1 4 5 9 RENATO BRASILEIRO DE LIMA MANUAL DE PROCESSO PENAL ou quando se localizarem no exterior (art. 91, §1°). Nesse caso, as medidas assecuratórias previstas na legislação processual poderão abranger bens ou valores equivalentes do investigado ou acusado para posterior decretação de perda (CP, art. 91, §2°). Esse confisco sobre o produto direto e indireto da infração penal não se confunde com a perda de bens e valores prevista no art. 43, inciso II, do CP. O confisco do patrimônio a que se refere o art. 91, II, “b”, do Código Penal, figura como efeito extrapenal obrigatório de sentença condenatória transitada em julgado. Logo, ainda que o condenado venha a falecer após o trânsito em julgado do decreto condenatório, é plenamente possível que haja o confisco de tais bens. De seu turno, a perda de bens e valores do art. 43, II, do CP, tem natureza jurídica de pena restritiva de direitos, aplicada em substituição a uma pena privativa de liberdade. Isso significa dizer que, na hipótese de morte do condenado após o trânsito em julgado da condenação, mas antes da perda dos valores, o cumprimento desta pena ficará prejudicado, haja vista o princípio constitucional da intranscendência da pena, em razão do qual “nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos suces- sores e contra eles executadas até o limite do valor do patrimônio transferido” (CF, art. 5o, XLV). Além disso, a pena restritiva de perda de bens e valores tem destinatário diverso - Fundo Penitenciário, e não a União - , além de atingir o patrimônio lícito do condenado, ao passo que o confisco alcança bens ilícitos. Superada essa distinção, convém lembrar que há outros dispositivos constitucionais e legais que cuidam da perda de bens como efeito da condenação: a) Por força do art. 243 da Constituição Federal, as glebas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas serão imediatamente expropriadas e especificamente destinadas ao assentamento de colonos, para o cultivo de produtos alimentícios e medicamentosos, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei. b) Por força do art. 62 da Lei de Drogas, é possível o confisco de veículos, embarcações, aero- naves e quaisquer outros meios de transporte, os maquinários, utensílios, instrumentose objetos de qualquer natureza, utilizados para a prática dos crimes definidos na Lei n° 11.343/06; c) A lei que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor prevê que, na hipótese do crime do art. 20 ser cometido por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza, constitui efeito da condenação transitada em julgado a destruição do material apreendido (Lei n° 7.716/89, art. 20, §4°); d) A Lei n° 9.613/98, com redação dada pela Lei n° 12.683/12, também prevê como efeito da condenação a perda, em favor da União — e dos Estados, nos casos de competência da Justiça Estadual —, de todos os bens, direitos e valores relacionados, direta ou indiretamente, à prática dos crimes previstos nesta Lei, inclusive aqueles utilizados para prestar a fiança, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé; e) De acordo com o art. 184 da Lei n° 9.472/97, que prevê o crime de desenvolvimento clan- destino de telecomunicações em seu art. 183, um dos efeitos da condenação é a perda, em favor da Agência Nacional de Telecomunicações, ressalvado o direito do lesado ou de terceiros de boa-fé, dos bens empregados na atividade clandestina, sem prejuízo de sua apreensão cautelar. 53 .2 .2 . Efeitos extrapenais específicos São chamados de extrapenais porque repercutem em outros ramos do direito, à exceção do Penal. 1 4 6 0 MANUAL DE PROCESSO PENAL SENTENÇA PENAL Se os efeitos obrigatórios operam-se por força da própria lei, os efeitos específicos, previstos no art. 92 do Código Penal, não são automáticos, nem tampouco obrigatórios, e demandam declaração expressa e fundamentada constante da sentença condenatória. E nesse sentido, a propósito, o teor do art. 92, parágrafo único, do Código Penal: “Os efeitos de que trata este artigo não são automáticos, devendo ser motivadamente declarados na sentença”. Esta fundamentação a que se refere o Código Penal não se satisfaz com a mera reprodução dos critérios objetivos previstos na lei para a aplicação de tais efeitos (v.g., no caso de perda de cargo, aplicação de pena privativa superior a um ano e crime praticado com abuso de poder). Exige-se, ademais, que o magistrado aponte a necessidade e adequação de tal medida às circunstâncias fáticas que deram ensejo à condenação do acusado. Nessa linha, como já se pronunciou o STJ, os efeitos específicos da condenação não são automáticos, mesmo que presentes, em princípio, os requisitos do art. 9 2 ,1, do Código Penal. Deve a sentença declarar, motivadamente, os fundamentos da perda do cargo, função pública ou mandato eletivo, em fiel observância do art. 92, parágrafo único, do CP, c/c art. 93, IX, da Constituição Federal, sob pena de reconhecimento da nulidade do dispositivo da sentença condenatória em relação a esse ponto.69 Outro detalhe importante acerca desses efeitos é que sua aplicação não está condicionada à existência de requerimento expresso nesse sentido constante da peça acusatória. Ora, sendo a perda do cargo, função pública ou mandato eletivo, conforme disposto no artigo 92 do Código Penal, consequência da condenação, mostra-se dispensável a veiculação, na denúncia, de pedido visando a sua implementação.70 Passemos, então, à análise dos efeitos extrapenais específicos: 1) Perda do cargo, função pública ou mandato eletivo: 1.1) Quando aplicada pena privativa de liberdade por tempo igual ou superior a um ano, nos crimes praticados com abuso de poder ou violação de dever para com a administração pública: esta primeira hipótese demanda a presença de dois elementos, um de natureza objetiva e outro de natureza subjetiva. Primeiro, a pena privativa de liberdade aplicada deve ser igual ou supe- rior a 1 (um) ano (elemento objetivo). Logo, eventual substituição da pena de prisão por restritiva de direitos com base no art. 44 do CPP impede a aplicação desse efeito, já que a condenação não versará sobre pena privativa de liberdade. Ademais, o delito deve ter sido praticado com abuso de poder (elemento subjetivo)/1 Prevalece o entendimento de que, se o acusado encontrava-se, à época do crime, em pleno exercício do cargo, vindo a se aposentar dias depois, é plenamente legítima a cassação de sua apo- sentadoria, se tiver havido a declaração fundamentada da perda do cargo como efeito extrapenal da condenação por crime cometido na atividade.72 69. Nessa linha: STJ, 6- Turma, HC 180.981/GO, Rei. Min. Celso Limongi - Desembargador convocado do TJ/SP, j. 18/11/2010, DJe 07/02/2011. No sentido de que os efeitos da condenação, dispostos no art. 92 do Código Penal, não possuem incidência automática, razão pela qual, caso o Magistrado entenda pela aplicação do mencionado artigo, deve fundamentar devidamente a decisão. Portanto, deve ser afastada a pena de perda do cargo público quando verificada a ausência de fundamentação idônea na decisão que a impôs: STJ, 5- Turma, REsp 810.931/RS, Rei. Min. Gilson Dipp, j. 19/06/2007, DJ 06/08/2007 p. 649. 70. STF, 15 Turma, HC 93.515/PR, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 09/06/2009, DJe 121 30/06/2009. 71. STJ, 5S Turma, HC 150.786/SP, Rei. Min. Adilson Vieira Macabu - Desembargador convocado do TJ/RJ, j. 06/09/2011, DJe 10/10/2011. 72. Com esse entendimento: STJ, 55 Turma, REsp 914.405/RS, Rei. Min. Gilson Dipp, j. 23/11/2010, DJe 14/02/2011. Em sentido diverso, entendendo que a cassação da aposentadoria não pode ser aplicada como consectário lógico de condenação penal, mesmo que o fato apurado tenha sido cometido quando o funcionário ainda estava na ativa, o 1 4 6 1 RENATO BRASILEIRO DE LIMA MANUAL DE PROCESSO PENAL 1.2) Quando for aplicada pena privativa de liberdade por tempo superior a 4 (quatro) anos, qualquer que seja a infração penal: esta hipótese demanda a presença de mero elemento objetivo, qual seja, a aplicação de pena privativa de liberdade por tempo superior a 4 (quatro) anos, pouco importando se o crime guarda (ou não) relação com o exercício das funções do agente. Em ambas as hipóteses do inciso I do art. 92 acima explicitadas, é certo dizer que, diante do trânsito em julgado de sentença penal condenatória que decreta a perda do cargo público, a autori- dade administrativa tem o dever de proceder à demissão do servidor ou à cassação da aposentadoria, independentemente da instauração de processo administrativo disciplinar, que se mostra desnecessária. Isso porque qualquer resultado a que chegar a apuração realizada no âmbito administrativo não terá o condão de modificar a força do decreto penal condenatório. Do administrador não se pode esperar outra conduta, sob pena, inclusive, de eventual responsabilização criminal pelos delitos de prevaricação e/ou desobediência.73 Aos olhos do STJ, os efeitos extrapenais de sentença condenatória de agente político (prefeito) não podem alcançar novo mandato de modo a afastá-lo do cargo atual. Por isso, se o mandato do acusado se expirar antes de ele ser julgado pelo crime cometido, não é possível que venha a perder o cargo para o qual tenha sido reeleito posteriormente. Isso porque a perda do cargo público é um efeito da condenação que deve recair sobre aquele cargo que permitiu o cometimento do crime, e não de outro que, no futuro, venha a ser ocupado pelo condenado.74 A perda do cargo, função pública ou mandato eletivo funciona como efeito permanente, ou seja, o agente não só perde o cargo, a função ocupada ou o mandato eletivo, mas se torna incapacitado para o exercício de outro cargo, função pública ou mandato. Somente por meio de reabilitação criminal (CP, arts. 93 a 95) poderá readquirir sua capacidade de ocupar novo cargo, função ou mandato, desde que por meio de uma nova investidura (concurso público ou eleição), sendo vedado, entre- tanto, o restabelecimento da situação anterior, ou seja, o retorno aos postos anteriormente ocupados. Certas situações específicas demandam especial atenção quantoà possibilidade (ou não) de perda do cargo, função pública ou mandato eletivo: a) Juízes e membros do Ministério Público: por força da garantia da vitaliciedade (CF, art. 95, I, e art. 128, §5°, I, “a”), somente podem perder o cargo mediante ação judicial própria; b) Crimes definidos na Lei de Licitações: segundo o art. 83 da Lei n° 8.6666/93, os cri- mes nela definidos, ainda que simplesmente tentados, sujeitam os seus autores, quando servidores públicos, além das sanções penais, à perda do cargo, emprego, função ou mandato eletivo. Há quem entenda que não se trata de efeito da sentença condenatória, mas de mera previsão legal de sanções administrativas a serem aplicadas, se for o caso, na própria esfera administrativa, segundo as garantias constitucionalmente asseguradas. Logo, a tais delitos, aplica-se a regra geral do art. 92, inciso I, do CP;75 c) Crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor: de acordo com o art. 16 da Lei n° 7.716/89, constitui efeito da condenação a perda do cargo ou função pública, para o servidor público, e a suspensão do funcionamento do estabelecimento particular por prazo não superior a 3 (três) meses, efeitos estes que não são automáticos, devendo ser motivadamente declarados na sentença; que, no entanto, não impede que a prática de crime em serviço acarrete a cassação da aposentadoria em eventual processo administrativo: STJ, 63 Turma, RMS 31.980/ES, Rei. Min. Og Fernandes, j. 02/10/2012. 73. STJ, 5a Turma, RMS 22.570/SP, Rei. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 18/03/2008, DJe 19/05/2008. 74. STJ, 63 Turma, REsp 1.244.666/RS, Rei. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 16/08/2012. 75. AVENA, Norberto. P ro c e ss o p e n a l e sq u e m a tiza d o . 23 ed. São Paulo: Método, 2010. p. 1002. 1 4 6 2 d) Tortura: tratando-se de crime previsto na Lei de tortura, qualquer que seja a quantidade de pena, a condenação acarretará a perda do cargo, função ou emprego público e a interdição para seu exercício pelo dobro do prazo da pena aplicada, nos termos do art. Io, §5°, da Lei n° 9.455/97. Na visão dos Tribunais, trata-se de efeito extrapenal automático e obrigatório da sentença condenatória, prescindindo inclusive de fundamentação;76 e) Perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças das corporações militares estaduais: segundo o disposto no art. 125, §4°, da Constituição, compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças. Ao interpretar o artigo 125, § 4o, da Constituição Federal, o Supremo tem se posicionado no sentido da necessidade de processo específico para a perda de graduação de praças da Polícia Militar, entendimento seguido pelo STJ. Logo, se a perda da graduação decorrer de processo específico, nos termos do art. 125, § 4o, da Constituição Federal, e não como efeito secundário da condenação por crime militar, não haverá qualquer ilegalidade.77 Todavia, essa perda do posto e da patente dos oficiais, bem como da graduação das praças da corporação militar, por decisão do tribunal competente, mediante procedimento específico, só é exigível quando se tratar de crime militar. Nas condenações de policiais militares ocorridas na Justiça Comum, compete ao juiz prolator do édito condenatório, ou ao respectivo Tribunal, no julgamento da apelação, decretar a perda da função pública. Assim, se um policial militar for condenado por crime doloso contra a vida, nas modalidades tentada e consumada, praticado contra civis, ou seja, por delito comum, não há qualquer nulidade na imposição da perda do cargo público que ocupava por Tribunal de Justiça por ocasião do julgamento de apelação interposta pelo Ministério Público.78 f) submissão do oficial das Forças Armadas condenado à pena privativa de liberdade superior a 02 (dois) anos a julgamento de indignidade do oficialato ou incompatibilidade: em virtude do art. 142, §3°, inciso VII, da Constituição Federal, o oficial das Forças Armadas condenado na justiça comum ou militar a pena privativa de liberdade superior a dois anos, por sentença transitada em julgado, só perderá o posto e a patente se for julgado indigno do oficialato ou com ele incompatível, por decisão de tribunal militar de caráter permanente, em tempo de paz, ou de tribunal especial, em tempo de guerra; g) Organizações criminosas: por força do disposto no art. 2o, §6°, da nova Lei das Organizações Criminosas (Lei n° 12.850/13), a condenação com trânsito em julgado acarretará ao funcionário público a perda do cargo, função, emprego ou mandato eletivo e a interdição para o exercício de função ou cargo público pelo prazo de 8 (oito) anos subsequentes ao cumprimento da pena; h) Senadores e Deputados Federais: de acordo com o art. 55, §2°, da Constituição Federal, no caso de condenação criminal em sentença transitada em julgado, a perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado, por maioria absoluta, mediante provoca- ção da respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada MANUAL DE PROCESSO PENAL SENTENÇA PENAL 76. STJ, 53 Turma, HC 134.218/GO, Rei. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 06/08/2009, DJe 08/09/2009. Na mesma linha: STJ, 63 Turma, HC 47.846/MG, Rei. Min. Og Fernandes, j. 11/12/2009, DJe 22/02/2010. 77. STJ, 53 Turma, HC 185.112/RS, Rei. Min. Jorge Mussi, j. 18/08/2011, DJe 29/08/2011. 78. Com esse entendimento: STJ, 55 Turma, HC 144.441/MS, Rei. Min. Jorge Mussi, j. 22/06/2010, DJe 30/08/2010. No sentido de que Tribunal de Justiça local tem competência para decretar, como consequência da condenação, a perda da patente e do posto de oficial da Polícia Militar, na hipótese de a condenação n ã o v e rsa r s o b re c r im e m ilitar-, STF, 23 Turma, HC 92.181/MG, Rei. Min. Joaquim Barbosa, j. 03/06/2008, DJe 142 31/07/2008. 1 4 6 3 RENATO BRASILEIRO DE LIMA MANUAL DE PROCESSO PENAL ampla defesa. Por força do art. 27, §1°, da Carta Magna, essa regra também se estende a deputados estaduais e distritais, mas não a vereadores, que estão submetidos ao regramento geral do art. 92, I, do Código Penal. Por força desse dispositivo, em processo penal do qual resultou a condenação de um Senador à pena de 4 anos, 8 meses e 26 dias de detenção em regime inicial semiaberto em virtude da prática do crime do art. 90 da Lei n° 8.666/93, concluiu o Plenário do Supremo com- petir ao Senado Federal deliberar sobre a eventual perda do mandato parlamentar do acusado, nos termos do art. 55, VI e §2°, da Constituição Federal.79 No entanto, em caso concreto em que ex-deputado federal foi condenado irrecorrivelmente à pena de 13 anos, 4 meses e 10 dias de reclusão pela prática dos crimes de formação de quadrilha e peculato, concluiu o Plenário do STF que tanto a suspensão quanto a perda do cargo seriam medidas decorrentes da condenação criminal e imediatamente exequíveis após seu trânsito em julgado, sendo irrelevante se o réu exercia ou não cargo eletivo ao tempo do julgamento. Assim, rejeitou-se a alegação da defesa de que o acusado, em razão de haver sido eleito e diplomado, novamente, deputado federal, após a condenação, teria direito às prerrogativas dos arts. 53, §2°, e 55, §2°, ambos da CF. Como constou da decisão condenatória a suspensão de seus direitos políticos com fundamento no art. 15, III, da Constituição Federal, concluiu a Corte que esta suspensão seria inócua se o exercício de novo mandato parlamentar impedisse a perda ou suspensão dos direitos políticos. Nesse sentido, a perda do mandato parlamentar derivaria logicamente do preceito constitucional a impor a limitação dos direitos políticos, que poderiaefetivar-se com a suspensão ou perda do mandato. Ressaltou-se que, além dos casos em que a condenação criminal transitada em julgado levasse à perda do mandato - em razão de o tipo penal prever que a improbidade administrativa estaria contida no crime haveria hipóteses em que a pena privativa de liberdade seria superior a quatro anos, situações em que aplicável o art. 92 do CR Portanto, a condenação também poderia gerar a perda do mandato, pois a conduta seria incompatível com o cargo. Ressalvadas essas duas hipóteses, em que a perda do mandato poderia ser decretada pelo Judiciário, observar-se-ia, nos demais casos, a reserva do Parlamento. Poderia, então, a casa legislativa interessada proceder na forma prevista no art. 55, § 2o, da CF. Reputou-se que, na linha jurisprudencial da Corte, a sanção concernente aos direitos políticos imposta a condenado por crime contra a Administração Pública bastaria para determinar a suspensão ou perda do cargo, e seria irrelevante o fato de ter sido determinada a condenação sem que o réu estivesse no exercício de mandato parlamentar, com sua posterior diplomação no cargo de deputado federal, antes do trânsito em julgado da decisão.80 No julgamento do caso Mensalão, o Plenário do Supremo também concluiu por maioria que, com o trânsito em julgado da decisão condenatória, a suspensão dos direitos políticos (CF, art. 15, III) teria o condão de acarretar a perda do mandato eletivo dos então deputados federais condenados no referido processo, nos termos do art. 55, VI, e §3°, da Constituição Federal. Assinalou-se que as hipóteses de perda ou suspensão de direitos políticos seriam taxativas (CF, art. 15) e que o Poder Legislativo poderia decretar a perda de mandato de deputado federal ou senador, com fundamento em perda ou suspensão de direitos políticos, bem assim em condenação criminal transitada em julgado (CF, art. 55, IV e VI). Ressaltou-se que esta previsão constitucional estaria vinculada aos casos em que a sentença condenatória não tivesse decretado perda de mandato, haja vista não esta- rem presentes os requisitos legais (CP, art. 92), ou por ter sido proferida anteriormente à expedição do diploma, com o trânsito em julgado ocorrente em momento posterior. Afastou-se, na espécie, a incidência de juízo político, nos moldes do procedimento previsto no art. 55 da CF, uma vez que a 7 9 . STF, Pleno, AP 565/RO, Rei. Min. Cármen Lúcia, j . 07/08/2013. 8 0 . S T F , Pleno, AP 396 QO/RO, Rei. Min. Cármen Lúcia, j . 26/06/2013, DJe 196 03/10/2013. 1464 perda de mandaro eletivo seria efeito irreversível da sentença condenatória. Consignou-se, ademais, a possibilidade de suspensão do processo, com o advento da EC 35/2001, para evitar que o parlamentar fosse submetido à perseguição política. Entretanto, não ocorrida a suspensão, o feito seguiria trâmite regular. Frisou-se que os condenados réus teriam cometido crimes contra a Administração Pública quando no exercício do cargo, a revelar conduta incompatível com o exercício de mandato eletivo.81 2) Incapacidade para o exercício do poder familiar, tutela e curatela, no caso de condena- ção por crime doloso, punido com reclusão, contra filho, tutelado e curatelado: de acordo com o art. 92, inciso II, do CP, a aplicação deste efeito extrapenal específico independe do quantum de pena cominado ao delito, bastando que se trate de crime doloso cometido contra filho, tutelado ou curatelado, sujeito à pena de reclusão, capaz de revelar a incompatibilidade do exercício do poder familiar, tutela ou curatela. Logo, ao pai que deixa de prover ao sustento de seus filhos, sem justa causa, incorrendo no crime de abandono material (CP, art. 244), não se aplica esse efeito extrapenal, já que esse tipo penal é punido com pena de detenção. No entanto, se o pai abusar sexualmente de um de seus filhos menores de 14 (quatorze) anos, com ele praticando atos libidinosos, estará sujeito à incapacitação para o exercício do poder familiar, já que o crime de estupro de vulnerável do art. 217-A do CP prevê pena de reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos. Prevalece o entendimento de que esse efeito atingirá todos os filhos, tutelados ou curatelados, e não apenas aquele que foi vítima do delito. Com a reabilitação criminal (CP, arts. 93 a 95), o agente recuperará a possibilidade de exercer novamente essas prerrogativas, salvo no tocante ao sujeito passivo do crime. Em outras palavras, em relação à vítima do delito, trata-se de efeito permanente; quanto aos demais, é possível a reversão, com a retomada do poder familiar, tutela ou curatela, caso o condenado venha a ser beneficiado com a reabilitação criminal. Por fim, convém destacar que o art. 92, II, do CP, não foi revogado tacitamente pelo art. 24 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n° 8.069/90), que passou a prever que a perda e a suspensão do poder familiar serão decretadas judicialmente, em procedimento contraditório, nos casos previstos na legislação civil, bem como na hipótese de descumprimento injustificado dos deveres e obrigações dos pais. Na verdade, o art. 92, II, do CP, funciona como efeito extrapenal específico decorrente de sentença irrecorrível que reconheceu a prática de crime doloso contra filho sujeito à pena de reclusão, ao passo que o art. 24 do ECA trata da perda ou suspensão do poder familiar como consequência do descumprimento dos deveres atinentes ao poder familiar (v.g., sustento, guarda, educação, etc.), porém não referente à prática de crime doloso. 3) Inabilitação para dirigir veículos automotores: previsto no art. 92, III, do Código Penal, este efeito específico deve ser aplicado na hipótese de sentença condenatória referente a cri- mes dolosos, em que o veículo automotor tenha sido utilizado como instrumento. O condenado poderá conduzir veículos novamente somente depois da reabilitação criminal (CP, arts. 93 a 95). Em conclusão, convém lembrar que, no Código de Trânsito Brasileiro, a suspensão da habilitação ou permissão para conduzir veículo automotor pode ser imposta como penalidade principal, isolada ou cumulativamente com outras penalidades (Lei n° 9.503/97, art. 292). Superada a análise dos efeitos extrapenais específicos previstos no Código Penal, é oportuno ressaltar que, por força do art. 15, inciso III, da Constituição Federal, a condenação criminal irrecorrível, enquanto persistirem seus efeitos, também acarreta automática e obrigatoriamente a suspensão dos direitos políticos do condenado. Cuida-se de efeito automático do trânsito em MANUAL DE PROCESSO PENAL SENTENÇA PENAL 81. STF, Pleno, AP 470/MG-228, Rei. Min. Joaquim Barbosa, j. 17/12/2012. 1 4 6 5 RENATO BRASILEIRO DE LIMA MANUAL DE PROCESSO PENAL julgado da sentença penal condenatória, prescindindo de fundamentação na sentença nesse sentido, pouco importando, ademais, a natureza da infração penal (crime doloso, culposo ou contravenção penal) e a espécie de pena a ela cominada (prisão simples, detenção ou reclusão).82 Perceba-se que a suspensão dos direitos políticos somente se aplica àquele condenado por sentença transitada em julgado. Logo, o preso cautelar tem mantidos seus direitos políticos, daí porque pode votar e ser votado. Essa suspensão dos direitos políticos irá cessar tão somente com a extinção da punibilidade do agente, independentemente de reabilitação ou de prova de reparação do dano causado pelo delito. E nesse sentido, aliás, o teor da súmula n° 9 do TSE: “A suspensão de direitos políticos decorrente de condenação criminal transitada em julgado cessa com o cumprimento ou a extinção da pena, independendo de reabilitação ou de prova de reparação dos danos”. A Constituição Federal também prevê que a existência de condenação criminal transitada em julgado obsta o processo de naturalização do estrangeiro. Com efeito, segundo o art. 12, inciso II, alínea “b”, da Carta Magna, são brasileirosnaturalizados os estrangeiros de qualquer nacionalidade residentes na República Federativa do Brasil há mais de quinze anos ininterruptos e sem condenação penal, desde que requeiram a nacionalidade brasileira. Por fim, vale lembrar que, segundo a Consolidação das Leis do Trabalho, o empregado que sofrer condenação criminal passada em julgado poderá ser demitido por justa causa, a critério do empregador, salvo se beneficiado com a suspensão condicional da pena (CLT, art. 482, “d ”). 5.4. Pedido absolutório formulado pela acusação e (im)possibilidade de condenação Ao final da audiência una de instrução e julgamento, é sabido que, pelo menos em regra, as partes devem apresentar suas alegações oralmente. Subsidiariamente, também é possível a apresentação de alegações escritas. Discute-se, nesse caso, o caminho a ser observado pelo juiz se, porventura, a acusação manifestar-se nesse momento no sentido da absolvição do acusado. Em se tratando de ação penal exclusivamente privada ou personalíssima, é sabido que, na hipótese de o advogado do querelante não formular o pedido de condenação do acusado nas alega- ções finais, considerar-se-á perempta a ação penal, com a consequente extinção da punibilidade do agente, nos termos do art. 60, III, in fine, do CPP, c/c art. 107, IV, do CP. De se lembrar que, na hipótese de ação penal privada subsidiária da pública, eventual pedido de absolvição formulado pelo advogado do querelante não dará ensejo à extinção da punibilidade, porquanto, em sua essência, esta espécie de ação penal é de natureza pública. De mais a mais, como a intervenção do MP é obrigatória, nada impede que, em sentido diverso do querelante, haja pedido de condenação formulado pelo órgão ministerial. No caso de ação penal pública (incondicionada ou condicionada), parte minoritária da doutrina vem sustentando que, diante de pedido absolutório formulado pelo Ministério Público, não é possível a prolação de um decreto condenatório. Trabalha-se com a ideia de que, por imposição do sistema acusatório (separação das tarefas de acusar e julgar), há duas pretensões no âmbito processual penal: 82. Com relação a senadores, deputados federais, estaduais e distritais, não se aplica o disposto no art. 15, III, da CF, mas sim a norma constitucional prevista no art. 55, VI e §29. Assim, tais parlamentares, se condenados irrecorrivel- mente, somente sofrerão a suspensão de seus direitos políticos e a consequente perda de seu mandato se houver decisão da respectiva casa legislativa. Nessa linha, como já se pronunciou o Supremo, da suspensão de direitos políticos, efeito da condenação criminal transitada em julgado - re ss a lv a d a a h ip ó te se e x c e p c io n a l do art. 55, § 2®, da C o n st itu iç ã o -, resulta, por si mesma, a perda do mandato eletivo ou do cargo do agente político: STF, l 9 Turma, RE 418.876/MT, Rei. Min. Sepúlveda Pertence, j. 30/03/2004, DJ 04/06/2004. 1 4 6 6 MANUAL DE PROCESSO PENAL SENTENÇA PENAL uma de natureza acusatória, realizada pelo Ministério Público, e outra de natureza punitiva, exercida pelo Poder Judiciário. Assim, se o Parquet pede a absolvição do acusado, a ela está vinculado o juiz, já que o poder punitivo estatal está condicionado à invocação feita pelo MP através do exercício da pretensão acusatória. E nesse sentido a lição de Aury Lopes Jr., para quem “o pedido de absolvição equivale ao não-exercício da pretensão acusatória, isto é, o acusador está abrindo mão de proceder contra alguém. Como consequência, não pode o juiz condenar, sob pena de exercer o poder punitivo sem a necessária invocação, no mais claro retrocesso ao modelo inquisitivo”.83 A despeito dessa posição doutrinária, é dominante o entendimento no sentido de que é possí- vel a prolação de uma sentença condenatória ainda que haja pedido de absolvição formulado pelo Ministério Público. É nesse sentido, aliás, a redação do art. 385 do CPP, que prevê que, nos crimes de ação penal pública, o juiz poderá proferir sentença condenatória, ainda que o Ministério Público tenha opinado pela absolvição do acusado.84 6. PU BLICA ÇÃ O DA SE N T EN Ç A A publicação dá efetiva existência à sentença, tornando-a um ato processual. Enquanto não publi- cada, a sentença é mero ato particular do juiz, um estudo ou parecer privado, sem força vinculante. A sentença é tida como publicada quando adquire publicidade. Mas não há necessidade de que várias pessoas tomem conhecimento dela. Daí porque se considera que, na hipótese de sentença escrita, esta se considera proferida quando publicada em cartório, pois é nesse momento que passa a valer como ato jurisdicional, e não na data que consta da sentença (CPP, art. 381, VI). Portanto, em face do art. 389 do CPP, tem-se que a sentença será publicada no momento em que é recebida pelo escrivão, que lavrará nos autos o respectivo termo, registrando-a em livro espe- cialmente destinado a esse fim. Formaliza-se, então, a publicação, com a juntada da sentença aos autos pelo escrivão e o termo por ele lavrado, e o seu registro com a transcrição em livro próprio. O escrivão, dentro de 3 (três) dias após a publicação, e sob pena de suspensão de cinco dias, dará conhecimento da sentença ao órgão do Ministério Público (CPP, art. 390). Não se deve confundir, portanto, a publicação em cartório, que se dá quando a sentença é entregue nas mãos do escrivão, com a intimação das partes, a ser feita pessoalmente ou por meio de publicação na imprensa. A intimação das partes representa apenas o termo inicial para o exercício de um direito - o de recorrer - que preexiste, nascido no dia em que se proferiu o julgado.85 Na hipótese de decisões interlocutórias proferidas em audiência, ou das sentenças orais, enten- de-se que o ato processual se tornou público no momento em que proferido na presença das partes, hipótese em que as partes presentes à leitura serão consideradas como intimadas por esse ato (CPP, art. 798, §5°, “b”). Raciocínio semelhante será aplicável no caso de decisões colegiadas, tomadas em sessão de julgamento pelos tribunais, em que se considera proferida a decisão no momento em 83. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Volume 1. 3? ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008. p. 103. Para Geraldo Prado, por importar violação ao contraditório (CF, art. 5g, LV), é nula a sentença con- denatória proferida quando a acusação opina pela absolvição. (Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 3- ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2005. p. 116). 84. No sentido de que o fato de o Ministério Público ter pedido a absolvição do acusado na fase de alegações finais não vincula o magistrado, já que vigora o princípio do livre convencimento motivado: STJ, 6§ Turma, HC 106.308/ DF, Rei. Min. Celso Limongi - Desembargador convocado do TJ/SP -, j. 03/09/2009, DJe 21/09/2009. 85. Por isso, mesmo na Justiça Militar, o marco interruptivo a ser levado em consideração para fins de interrupção da prescrição - art. 117, IV, do CP, ou art. 125, §5-, II, do CPM - é o da publicação da decisão condenatória, pouco importando a data oficial em que as partes foram intimadas: STF, 1§ Turma, HC 103.686/RJ, Rei. Min. Dias Toffoli, j. 07/08/2012. 1 4 6 7 RENATO BRASILEIRO DE LIMA MANUAL DE PROCESSO PENAL que o presidente, de público, anuncia o resultado do julgamento. De todo modo, subsiste nessas hipóteses a necessidade de lavratura do termo de juntada e o registro da sentença. Em se tratando de sentença penal condenatória, é oportuno lembrar que um dos efeitos da publicação será a interrupção da prescrição. De acordo com o art. 117, inciso IV, do CP, com reda- ção determinada pela Lei n° 11.596/2007, o curso da prescrição é interrompido pela publicação da sentença ou acórdão condenatórios recorríveis. Essa data da publicação da sentença tambémé extremamente importante para fins de incidência (ou não) da causa de redução do prazo prescricional do art. 115 do CP, segundo o qual é reduzido de metade o prazo de prescrição quando o criminoso era, na data da sentença, maior de setenta anos. Logo, se o condenado completou 70 (setenta) anos entre a data da publicação da sentença penal condenatória e a do acórdão que a confirmou em sede de apelação, não se afigura possível a aplicação do art. 115 do CP.86 6.1. Esgotamento da instância Com a publicação da sentença, o juiz de Ia instância exaure sua função jurisdicional. Não é mais possível querer revê-la. Portanto, proferida a sentença, não se admite que o juiz modifique a essência da decisão em aspectos relacionados ao seu mérito, sendo vedado, inclusive, o reconheci- mento de nulidades absolutas. Sobre o assunto, dispõe o art. 463 do CPC, aplicável subsidiariamente ao processo penal, que, uma vez publicada a sentença, o juiz só poderá alterá-la: I — para lhe corrigir, de ofício ou a requerimento da parte, inexatidões materiais, ou lhe retificar erros de cálculo; II - por meio de embargos de declaração. A título de exemplo, uma vez proclamado o resultado do julgamento e encerrada a prestação jurisdicional no tocante à apelação, não se admite que, na sessão subsequente e, por meio de uma suposta questão de ordem, possa o Tribunal, ao alvedrio das partes, rejulgar o feito e proclamar resultado completamente diverso do anterior, sob pena de evidente afronta ao devido processo legal.87 Destarte, em virtude do esgotamento da instância, efeito genérico da sentença penal absolutória ou condenatória, compreende-se que, uma vez proferida a decisão, não é mais permitido que o mesmo juízo a modifique, salvo nas seguintes hipóteses: a) correção de erros materiais: presente um erro material, a decisão pode (e deve) ser corrigida de imediato pelo magistrado, independentemente de provocação das partes. O conceito de erro material diz respeito à inexatidão da sentença quanto a aspectos objetivos, que não guardem relação com matéria jurídica, tais como um cálculo errado, a digitação errônea do nome das partes, etc.; b) oposição de embargos de declaração (embarguinhosj: qualquer das partes poderá, no prazo de 2 (dois) dias, pedir ao juiz que declare a sentença, sempre que nela houver obscuridade, ambi- guidade, contradição ou omissão (CPP, art. 382); c) interposição de recurso com efeito regressivo: é sabido que certos recursos permitem que o juiz possa se retratar de sua decisão anterior antes de determinar sua remessa ao Tribunal competente (v.g., RESE). Logo, interposto recurso dotado desse efeito, é plenamente possível a modificação do sentido da decisão anteriormente prolatada. 86. STF, 25 Turma, HC 107.398/RJ, Rei. Min. Gilmar Mendes, j. 10/05/2011, DJe 097 23/05/2011. 8 7 . STJ, 6S Turma, REsp 1.147.274/RS, Rei. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 03/11/2011. 1 4 6 8 MANUAL DE PROCESSO PENAL SENTENÇA PENAL Apesar do esgotamento da instância, o juiz ainda mantém certas funções jurisdicionais no pro- cesso, tais como o juízo de admissibilidade recursal na primeira instância, a preparação de subida do recurso ao tribunal, a determinação de providências para cumprimento da sentença se ela tiver eficácia imediata (v.g., colocação do acusado em liberdade na hipótese de sentença absolutória própria), etc. Como a prescrição é matéria prejudicial ao exame do mérito por constituir fato impeditivo do direito estatal de punir e extintivo da punibilidade do réu, pode (e deve) ser analisada de ofício em qualquer fase do processo (CPP, art. 61), ainda que após o esgotamento da instância. Por isso, concluiu o STJ que a prescrição pode ser reconhecida por Tribunal de Justiça inclusive em juízo de admissibilidade de recurso especial e/ou recurso extraordinário. Na visão da Corte, ainda que a jurisdição de tal Tribunal já estivesse esgotada, o reconhecimento da prescrição em tal hipótese caracteriza-se como devida análise dos pressupostos gerais dos recursos, e não incursão em seu conteúdo, daí porque se afigura válido o reconhecimento da prescrição.88 6.2. Intimação da sentença.89 A parte toma conhecimento do conteúdo da sentença com a intimação, podendo, então, aferir seus acertos e desacertos, bem como optar pela interposição (ou não) de eventual recurso. Daí a importância de se observar a forma de intimação de cada uma das partes envolvidas no processo penal, cuja inobservância pode acarretar o impedimento do trânsito em julgado da sentença, con- siderando-se nulos os atos posteriores que tomarem como base o trânsito em julgado. Logo, caso a vítima tenha se habilitado em determinado processo como assistente da acusação, nenhum efeito poderá ser colhido de decisão que não a intime de seu conteúdo, a qual deve ser considerada nula de pleno direito, haja vista a violação ao princípio do contraditório. De fato, o contraditório e o devido processo legal também atingem aquele que tem direito material e expressou livremente interesse em exercer seu direito de figurar como assistente da acusação. Logo, enquanto não levada a efeito a intimação do assistente, a decisão não se aperfeiçoa e, portanto, não há como se reconhecer o trânsito em julgado para a acusação.90 Especificamente em relação à intimação do acusado, é bom lembrar que, de acordo com o art. 577, caput, do CPP, o recurso poderá ser interposto pelo Ministério Público, ou pelo querelante, ou pelo réu, seu procurador ou seu defensor. Depreende-se da leitura desse dispositivo que, no processo penal, tanto o defensor quanto o acusado são legitimados, autonomamente, a interpor recursos. Assim, da mesma forma que o defensor pode interpor recurso em favor do acusado, ainda que contra sua vontade, o acusado também tem capacidade postulatória própria para interpor recursos, independentemente de advogado. Ora, se tanto o acusado quanto seu defensor são dotados de legitimidade para interpor recursos, isso significa dizer que ambos devem ser intimados de eventual sentença condenatória ou absolutória imprópria.91 Por isso, considerada a sucumbência inerente a tais decisões, não foram recepcionadas pela Carta Magna as regras que permitem que a intimação de sentença condenatória (ou absolutória imprópria) seja feita apenas ao réu ou tão somente a seu defensor (v.g., CPP, art. 392, II). Nessa 88. STJ, 3 ^Seção, Rcl 4.515/SP, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 27/04/2011. 8 9 . A leitura deste tópico deve ser precedida pelo estudo do item "Intimação e Notificação", inserido no Título referente à Comunicação dos Atos Processuais. 9 0 . STF, 22 Turma, RHC 106.710/AM, Rei. Min. Gilmar Mendes, 29/03/2011. 9 1 . Na hipótese de sentença absolutória imprópria, a intimação deve ser feita na pessoa do curador do acusado, sem prejuízo da obrigatória intimação do defensor. Todavia, na hipótese de sentença absolutória própria, a intimação da sentença pode ser feita pessoalmente ao acusado ou na pessoa de seu defensor ou procurador. 1 4 6 9 RENATO BRASILEIRO DE LIMA MANUAL DE PROCESSO PENAL linha, como já se pronunciou o STJ, o acusado que respondeu solto ao processo, ainda que possua advogado constituído, deve ser intimado pessoalmente da condenação, sob pena de nulidade por violação ao princípio da ampla defesa.92 Apesar de certos incisos do art. 392 dispensarem a intimação do acusado solto em alguns casos, é pacífico o entendimento no sentido da obrigatória intimação do acusado, pessoalmente ou por edital (se não for encontrado) e do defensor, seja o acusado preso, revel, foragido ou em liberdade provisória e seja o defensor constituído ou dativo, em fiel observância ao princípio da ampla defesa, salvo na hipótese de sentença absolutória própria (sem imposição de medida de segurança), quando se admite a intimação de um ou outro.93Destarte, caso não haja a intimação do acusado e de seu defensor, a consequência será a nulidade absoluta do feito. Assim, ainda que seja certificado pela vara criminal a preclusão da via impugna- tiva, afigura-se cabível a interposição de apelação ou a impetração de habeas corpus objetivando a rescisão do trânsito em julgado da decisão judicial, e subsequente julgamento de eventual recurso que venha a ser interposto. Em regra, o acusado deve ser intimado pessoalmente. Se o acusado estiver preso em outra unidade da federação, caberá ao juiz fazer expedir carta precatória, sendo inadmissível a intimação por edital. Portanto, a intimação por edital do acusado somente poderá ser feita na hipótese de não ter sido possível sua localização. O prazo desse edital, segundo o art. 392, §1°, do CPP, será de 90 (noventa) dias, se tiver sido imposta pena privativa de liberdade por tempo igual ou superior a 1 (um) ano, e de 60 (sessenta) dias, nos outros casos. Havendo a necessidade de intimação do acusado por edital, o prazo para apelação correrá apenas após o término do fixado no edital, salvo se, no curso deste, for feita a intimação pessoal (CPP, art. 392, §2°). Apesar de ser obrigatória a intimação do acusado, não há dispositivo legal que determine a necessidade de o mandado de intimação de sentença condenatória ser acompanhado de um termo de apelação. Na verdade, em se tratando de acusado preso, tal providência é de todo recomendável, porquanto, em tal hipótese, o réu poderá ter maiores dificuldades em manter contado com seu defensor. Mas daí não se pode concluir que esse termo de apelação seja obrigatório.94 Há quem entenda que o defensor deve ser intimado apenas após a intimação do acusado. Não é essa, contudo, a orientação que prevalece. De fato, segundo os Tribunais Superiores, desde que ambos sejam intimados, é de todo irrelevante saber quem foi intimado em primeiro lugar - acusado ou defensor.95 Destarte, considerando a necessidade de intimação do acusado e de seu defensor acerca do conteúdo de sentença condenatória ou absolutória imprópria, ressalvada a hipótese em que a decisão seja publicada na audiência una de instrução e julgamento à qual ambos estejam presentes, hipótese em que o prazo recursal começará a fluir para ambos a partir daquele momento, o prazo a ser consi- 92. STJ, 53 Turma, HC 160.557/SE, Rei. Min. Jorge Mussi, j. 25/05/2010, DJe 02/08/2010. Se o acusado não for encontrado para ser intimado pessoalmente, deve ser intimado por edital, salvo se possuir advogado constituído, e x v i do art. 392, VI, do CPP. Nesse sentido: STJ, 63 Turma, HC 128.694/ES, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 27/09/2011, DJe 13/10/2011. Tratando-se de sentença absolutória, não ocorre nulidade na ausência de intimação pessoal do réu do teor da decisão: STJ, 53 Turma, HC 111.698/MG, Rei. Min. Felix Fischer, j. 05/02/2009, DJe 23/03/2009. 93. Na mesma linha: FEITOZA, Denilson. D ire ito p ro c e s s u a l p e n a l: teoria , c r ít ic a e p rá x is . 6ã ed., rev., ampl. e atual, com a Reforma Processual Penal. Niterói/RJ: Impetus, 2009. p. 1033. 94. Nessa linha: STF, 23 Turma, HC 93.120/SC, Rei. Min. Joaquim Barbosa, j. 08/04/2008, DJe 117 26/06/2008. 95. No sentido de ser indiferente a ordem cronológica para a intimação do réu e de seu defensor: STJ, 55 Turma, REsp 873.052/TO, Rei. Min. Felix Fischer, j. 15/03/2007, DJ 04/06/2007 p. 421. 1 4 7 0 derado para interposição do recurso da defesa será sempre o mais extenso, ou seja, o que terminar por último, independentemente de quem tenha sido intimado em primeiro lugar - acusado ou defensor. Quanto à necessidade de dupla intimação da sentença condenatória - do acusado e do advogado constituído - no âmbito processual penal militar, a Ia Turma do Supremo entende que essa regra aplica-se apenas à decisão de Io grau, mas não à de 2a instância. Ademais, a intimação pessoal do acusado em relação ao julgamento do acórdão é necessária apenas se ele estiver preso, nos termos dos arts. 288, §2°, e 537 do CPPM.9S Por fim, convém destacar que a intimação pessoal (ou por edital) do acusado em conjunto com a do defensor - pela imprensa oficial, quando se tratar de advogado constituído, ou pessoalmente, quando se cuidar de defensor público e defensor dativo - , só é exigível quando se tratar de conde- nação proferida em primeiro grau de jurisdição. Logo, em se tratando de decisões proferidas pelos Tribunais, a intimação do acusado se aperfeiçoa com a mera publicação do respectivo decisório no órgão oficial de imprensa.96 97 Isso porque a legitimidade autônoma do acusado para interpor recursos está restrita à impug- nação de decisões proferidas no primeiro grau de jurisdição (v.g., para interpor apelações, recursos em sentido estrito, etc.), não sendo ele dotado de capacidade postulatória autônoma para impugnar decisões proferidas pelos Tribunais (v.g., recursos extraordinários, embargos infringentes ou de nulidade, etc). Nas hipóteses em que o Tribunal estiver funcionando como Io grau de jurisdição, ou seja, nos casos de competência originária dos Tribunais, pensamos que também não há necessidade de intimação do acusado, porquanto este não tem capacidade postulatória autônoma para interpor recursos contra acórdão condenatório proferido por Tribunais. Não obstante, há precedente da 5a Turma do STJ em sentido contrário, in verbis: “o fato de a sentença condenatória ter sido proferida por órgão colegiado do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais não retira do acórdão o caráter de decisão final de primeiro grau, pois este se equivale à sentença proferida pelo Juízo monocrático, em virtude de ser o primeiro decisum e não reexame de condenação. As regras dispostas no art. 392 do CPP devem se aplicadas ao caso, pois não se trata de julgamento de segundo grau, no qual é abrandada a obrigatoriedade de intimação pessoal do réu e de seu defensor para que a publicação do acórdão ocorra na imprensa oficial”.98 7. PR IN C ÍPIO DA C O R R ELA Ç Ã O E N T R E ACUSAÇÃO E SE N T E N Ç A A sentença deve guardar plena consonância com o fato delituoso descrito na denúncia ou queixa, não podendo dele se afastar, sendo vedado ao juiz julgar extrapetita, ou seja, fora do pedido — v.g., reconhecendo a prática de outro crime, cuja descrição fática não conste da peça acusatória - , nem tampouco ultra petita, leia-se, além do pedido — por exemplo, reconhecendo qualificadora não imputada ao acusado —, sob pena de evidente afronta ao princípio da ampla defesa, do contraditório e, até mesmo, ao próprio sistema acusatório. MANUAL DE PROCESSO PENAL SENTENÇA PENAL 96. STF, 13 Turma, HC 99.109/RJ, Rei. Min. Dias Toffoli, j. 27/03/2012. 97. Com esse entendimento: STJ, 5a Turma, HC 111.698/MG, Rei. Min. Felix Fischer, j. 05/02/2009, DJe 23/03/2009. No sentido de não ser necessária a intimação pessoal do acusado acerca de acórdão condenatório proferido no julga- mento de apelação criminal: STJ, 55 Turma, HC 196.784/SP, Rei. Min. Gilson Dipp, j. 09/08/2011, DJe 26/08/2011; STJ, 53 Turma, HC 215.681/SP, Rei. Min. Jorge Mussi, j. 11/10/2011, DJe 28/10/2011. Em sentido contrário, declarando a nulidade de processo no qual apenas o defensor dativo foi intimado de acórdão condenatório, sem a intimação do acusado: STF, 23 Turma, HC 105.298/PR, Rei. Min. Gilmar Mendes, j. 31/05/2011, DJe 113 13/06/2011; STF, 23 Turma, HC 96.975/DF, Rei. Min. Gilmar Mendes, 07/06/2011. 98. STJ, 53 Turma, HC 74.550/MG, Rei. Min. Gilson Dipp, j. 17/05/2007, DJ 29/06/2007 p. 681. 1 4 7 1 RENATO BRASILEIRO DE UMA MANUAL DE PROCESSO PENAL Diversamente do que se dá no âmbito processual civil, em que o provimento final deve se ajustar ao pedido formulado pela parte, em sede processual penal a correlação entre acusação e sentença não leva em consideração o pedido formulado pela parte acusadora, já que este é sempregenérico, no sentido da condenação do acusado. No processo penal, o que realmente interessa é a causa petendi, ou seja, a imputação de determinada conduta delituosa, comissiva ou omissiva, que configure específica modalidade delituosa. A inobservância ao princípio da correlação entre acusação e sentença dará ensejo ao reconhe- cimento de nulidade absoluta do feito, porquanto haverá violação a preceitos constitucionais como os da ampla defesa, do contraditório e do devido processo legal. 7.1. Emendatio libelli De acordo com o art. 383, caput, do CPP, com redação determinada pela Lei n° 11.719/08, o juiz, sem modificar a descrição do fato contida na denúncia ou queixa, poderá atribuir-lhe definição jurídica diversa, ainda que, em consequência, tenha de aplicar pena mais grave. Na mesma linha, segundo o art. 418 do CPP, aplicável à pronúncia, o juiz poderá dar ao fato definição jurídica diversa da constante da acusação, embora o acusado fique sujeito à pena mais grave. Como se percebe, na emendatio libelli, o fato delituoso descrito na peça acusatória permanece o mesmo, ou seja, é mantida inalterada a base fática da imputação, limitando-se o juiz a corrigir uma classificação mal formulada, o que poderá ser feito ainda que haja a aplicação de pena mais grave. De fato, quando o art. 383, caput, do CPP, faz menção à definição jurídica diversa, refere-se à capitulação ou classificação feita pelo autor na inicial acusatória, em cumprimento ao disposto no art. 4l do CPP. Assim, dar definição jurídica diversa consiste apenas em alterar a capitulação, ou seja, fazer o juízo de tipicidade de maneira adequada, permanecendo inalterada a imputação fática. Exemplificando, suponha-se que, em denúncia oferecida pelo Ministério Público, seja imputado ao acusado a prática do crime de furto qualificado pela fraude, cuja pena é de reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos e multa, constando da peça acusatória que o agente teria se valido de fraude para burlar a vigilância da vítima, afastando seu cuidado com a res, posteriormente subtraída. Porém, por ocasião do juízo de subsunção, o órgão Ministerial, equivocadamente, classifica esse fato delituoso como um crime de estelionato, previsto no art. 171, caput, do CP, com pena de reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e multa, deixando de oferecer a proposta de suspensão condicional do processo pelo fato de o acusado estar sendo processado por outro crime. Ao sentenciar o feito, é evidente que a autoridade judiciária não está vinculada à classificação formulada pela acusação. Vigora, nesse caso, o princípio iuria novit curia, ou seja, o juiz ou tribunal conhece o direito, ou, como preferem alguns, narra m ihi fiactum dabo tibi ius (narra-me o fato e te darei o direito). Portanto, independen- temente do aditamento da peça acusatória e da adoção de quaisquer providências instrutórias, é plenamente possível que o juiz profira a sentença condenatória com a capitulação jurídica que lhe parecer mais adequada, ainda que dessa nova definição jurídica resulte pena mais grave. Logo, no exemplo acima citado, caberia ao juiz condenar o acusado pela prática do crime de furto qualificado (CP, art. 155, §4°, II), aplicando o quantum de pena cominado ao referido delito: reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos, e multa. Nesses casos de emendatio libelli, não há falar em violação ao princípio da correlação entre acusação e sentença. Afinal, firmada a premissa de que, no processo penal, o acusado defende-se dos fatos que lhe são imputados, não haverá qualquer violação à ampla defesa, nem tampouco ao contraditório, já que o fato delituoso pelo qual o acusado se viu condenado foi imputado a ele na peça acusatória. 1 4 7 2 MANUAL DE PROCESSO PENAL SENTENÇA PENAL Como observa a doutrina, 03 (três) formas de emendatio libelli são passíveis de aplicação pelo juiz diante do caso concreto sob análise: a) E m en d a tio lib e lli por defeito de capitulação: situação na qual o juiz profere sentença condenatória ou decisão de pronúncia em conformidade exata com o fato descrito na peça acusatória, porém reconhecendo a subsunção do fato delituoso à classificação distinta daquela que constou da inicial. Possamos supor que, por evidente equívoco na redação da peça acusatória, o Promotor de Justiça classifique uma conduta delituosa de furto no art. 312 do Código Penal, que versa sobre o delito de peculato; b) E m en d a tio libe lli por interpretação diferente: mais uma vez, a imputação fática cons- tante da peça acusatória não é alterada por ocasião da sentença ou da pronúncia, porém o juiz faz interpretação diversa daquela feita pelo Ministério Público ou pelo querelante quanto à tipificação do fato delituoso. Por exemplo, em caso concreto envolvendo a subtração de valores por meio de fraude eletrônica na internet, apesar de a denúncia tipificar a conduta como estelionato, o juiz conclui que se trata de furto qualificado pela fraude; c) E m e n d a tio lib e lli por supressão de elementar e/ou circunstância: nessa hipótese, o magistrado atribui nova capitulação ao fato imputado em razão de a instrução probatória revelar a ausência de elementar ou circunstância descrita na peça acusatória. Perceba-se que, nessa hipótese, haverá certa alteração fática, mas não para acrescentar, como ocorre nas hipóteses de mutatio libelli, mas sim para subtrair elementares e/ou circunstâncias do fato descrito, supressão esta que acaba por provocar uma mudança da capitulação do fato delituoso. Exemplo: no curso de processo penal referente ao crime de furto qualificado pelo emprego de chave falsa (CP', art. 155, §4°, III), esta circunstância não resta comprovada. Nesse caso, é plenamente possível que o juiz condene o acusado pela prática de furto simples, sem que se possa arguir qualquer violação à correlação entre acusação e sentença, porquanto, ao se defender quanto à imputação de furto qualificado, o acusado já teve a oportunidade de se defender da imputação de furto simples, caracterizada pela subtração, para si ou para outrem, de coisa alheia móvel." 7.1.1. Momento da emendatio libelli É dominante o entendimento de que, em regra, a emendatio libelli só deve ser feita pelo juiz na fase da sentença.99 100 A uma porque o dispositivo que trata da emendatio libelli no CPP — art. 383 - está inserido no Título que trata da “sentença”. Em segundo lugar, ainda prevalece o entendimento de que, no processo penal, o acusado defende-se dos fatos que lhe são imputados, pouco importando a classificação que lhes seja atribuída. Destarte, o recebimento da peça acusatória não é o momento adequado para a apreciação do verdadeiro dispositivo legal violado, até mesmo porque o magistrado não fica vinculado à classifi- cação do crime feita na denúncia (narra m ihi factum dabo tibi jus). Exatamente por isso, segundo a doutrina majoritária, por ocasião do recebimento da peça acusatória, não deve o juiz alterar a 99. É nesse sentido a lição de Norberto Avena (op. cit. p. 1008), para quem, apesar de o art. 383, co p u t, fazer menção à atribuição de nova definição jurídica se m m o d if ic a r a d e s c r iç ã o d o fa t o c o n tid a n a d e n ú n c ia o u q u e ixa , deve-se entender que a m u ta tio lib e lli deve ser utilizada apenas quando houver o acréscimo de elementar ou circunstância. Logo, na hipótese de supressão de alguma elementar e/ou circunstância que já havia constado da peça acusatória, tem-se, por exclusão, hipótese de e m e n d a tio . 100. Quanto à e m e n d a tio lib e lli na pronúncia (CPP, art. 418), remetemos o leitor ao tópico pertinente aos procedimentos, onde o assunto foi detalhadamente estudado. 1 4 7 3 RENATO BRASILEIRO DE LIMA MANUAL DE PROCESSO PENAL definição jurídica do fato, pois há momentos e formas específicos para se corrigir a classificação legalincorreta.101 Em reforço à tese de que a emendatio libelli só pode ser feita por ocasião da sentença, convém destacar que o Projeto de Lei do qual se originou a nova redação do art. 383 do CPP trazia um parágrafo (§2°) que dizia expressamente que a emendatio “poderia ser adotada pelo juiz no recebi- mento da denúncia ou queixa”. Entretanto, tal dispositivo foi suprimido pelo Congresso Nacional. Conquanto prevaleça o entendimento de que o momento adequado para a perfeita qualifica- ção jurídico-penal é o da prolação da sentença, seja por meio da emendatio libelli, seja por força da mutatio libelli, parece-nos que, em determinadas situações, é perfeitamente possível que o magis- trado, no ato do recebimento da exordial acusatória, faça a correção da classificação formulada pelo acusador, sobretudo para fins de análise quanto à possibilidade de concessão de liberdade provisória e/ou aplicação de medidas despenalizadoras, tais como a transação penal e a suspensão condicional do processo, cuja proposta, evidentemente, deve ser formulada pelo titular da ação penal. Em tais situações, a nosso ver, não fica o juiz vinculado à classificação formulada pela autoridade policial em seu relatório, nem tampouco àquela constante da peça acusatória. Tal situação, porém, deve ser muito excepcional e somente quando não depender de nenhuma dilação probatória, bastando, para tanto, a análise dos fatos na denúncia, in status assertionis, para verificar o erro na imputação. Ao contrário, se depender de revolver as provas existentes nos autos, não deverá o magistrado fazê-lo neste momento procedimental, sob pena de prematura análise, com riscos à efetividade do processo, em razão dos incidentes que gerará. E nessa linha a lição de Antônio Scarance Fernandes, que aponta a presença de 3 (três) vícios principais que podem macular a classificação e eventualmente exigir a sua correção:102 a) classificação atípica: quando não há o tipo penal nela indicado. E muito difícil que o pro- motor ou o querelante crie um tipo novo, antes inexistente no ordenamento, como oferecer acusação por crime previsto em projeto não sancionado ou em medida provisória não convertida em lei. O que pode suceder é a classificação por crime banido do sistema normativo por lei posterior, sem ser possível enquadrar o fato em outro tipo remanescente. Nesses casos, o fato descrito é atípico e, por isso, o juiz deve rejeitar a denúncia ou queixa (CPP, art. 43, I) e, se não o fizer, o tribunal pode trancar o processo por falta de justa causa em processo de habeas corpus\ b) classificação errônea: ocorre erro quando falta correspondência entre o artigo de lei indicado na denúncia ou queixa e o fato narrado; c) classificação excessiva: há abuso quando o promotor ou o querelante classifica o fato descrito em um tipo rigoroso em vez de situá-lo em outro menos grave e mais apropriado. A título de exemplo, basta imaginar hipótese em que, por evidente excesso da acusação, veja-se o acusado denunciado pela prática do crime de tráfico de drogas, tido como insuscetível de liber- dade provisória, com ou sem fiança, pelo menos segundo alguns julgados isolados da Ia Turma 101. Na dicção do Supremo, "não é lícito ao Juiz, no ato de recebimento da denúncia, quando faz apenas juízo de admissibi- lidade da acusação, conferir definição jurídica aos fatos narrados na peça acusatória. Poderá fazê-lo adequadamente no momento da prolação da sentença, ocasião em que poderá haver a e m e n d a tio lib e ll i ou a m u ta t io lib e lli, se a instrução criminal assim o indicar." (STF, HC 87.324/SP, Rei. Min. CÁRMEN LÚCIA, Primeira Turma, DJ 18/5/07). No sentido de que não é lícito ao magistrado, quando do recebimento da denúncia, em mero juízo de admissibilidade da acusação, conferir definição jurídica aos fatos narrados na peça acusatória, já que o momento adequado para fazê-lo seria na prolação da sentença, ocasião em que poderia haver a e m e n d a tio lib e ll i ou a m u ta t io lib e lli, se a instrução criminal assim o indicar: STF, 15 Turma, HC 111.445/PE, Rei. Min. Dias Toffoli, j. 16/04/2013. 102. A re a ç ã o d e fe n s iv a à im p u ta çã o . São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 220. 1 4 7 4 MANUAL DE PROCESSO PENAL SENTENÇA PENAL do Supremo. Ora, supondo que o juiz visualize, desde logo, a possível desclassificação do delito de tráfico para porte de drogas para consumo pessoal, seja em virtude da natureza e quantidade da substância apreendida, local e condições em que se desenvolveu a ação, circunstâncias sociais e pessoais, seja em virtude da conduta e antecedentes do agente (Lei n° 11.343/06, art. 28, §2°), estaria o juiz obrigado a determinar o prosseguimento do feito com a classificação de tráfico de drogas pelo simples fato de não se admitir a realização da emendatio libelli por ocasião do juízo de admissibilidade da peça acusatória? A nosso ver, não se cuida de rejeição da peça acusatória, nem de aditamento pelo Ministério Público, mas sim de atuação jurisdicional objetivando assegurar ao acusado a garantia constitucional da liberdade provisória. Nesse caso, incumbe ao juiz receber a denúncia, o que, no entanto, não o impede de apreciar o excesso na capitulação para admitir a liberdade provisória, fazendo-o por meio de um juízo provisório e não de prejulgamento do mérito da acusação. Nesse caso, como a análise da classificação está inserida no caminho a ser percorrido pelo juiz para resolver tal questão, torna-se impossível impedi-lo de corrigir a adequação do fato feita pelo promotor, embora o faça de maneira incidental e provisória, apenas para decidir quanto ao cabimento da liberdade provisória. Não faria sentido manter o acusado preso ao longo de toda a instrução pro- cessual penal para, ao final, desclassificar a imputação para porte de drogas para consumo pessoal, e somente então poder colocar o acusado em liberdade. Vige, nessa hipótese, o princípio da correção do excesso, segundo o qual o juiz pode corrigir eventuais excessos formulados pela acusação, quando estiverem desprovidos de justa causa.103 Portanto, como garantidor constitucional, e no exercício desse mister, pode o juiz conceder benefícios legais, relativamente ao status libertatis do acusado, se verificar a possibilidade de outra tipificação do fato descrito na inicial, porém com a cautela de não declarar expressamente o tipo penal que entende adequado, para não ensejar um prejulgamento. Na mesma esteira, havendo, na peça acusatória, simples erro de direito na classificação da imputação de fato idoneamente formulada, também é possível que o juiz, sem antecipar formalmente a desclassificação, afaste de imediato as consequências processuais ou procedimentais oriundas do equívoco e prejudiciais ao acusado. Nessa hipótese de erro de direito na tipificação do fato contido na peça acusatória, também é possível, de logo, proceder-se à desclassificação, recebendo-se a exordial com a classificação adequada à imputação fática, caso da qualificação jurídica dependa a fixação da competência ou do procedimento a ser observado. 103. Na dicção da 6? Turma do STJ, "em não se ajustando a denúncia aos elementos de prova inquisitorial que a instruem, unívocos na direção do ilícito tipificado no artigo 16 da Lei de Tóxicos, impõe-se assegurar que o réu responda em liberdade ao processo, ante a parcial ausência de justa causa para a ação penal, afirmável no estado inicial do feito". (STJ - HC 29.637/MG - 6§ Turma - Rei. Min. Hamilton Carvalhido - DJ 28/02/2005 p. 371). TJSP: "Apesar de o Juiz não poder, na fase de recebimento da denúncia, desclassificar o crime nela indicado ou rejeitar a acusação por considerar menos exata a capitulação dada ao fato, o despacho de recebimento da peça acusatória que não importa no reconhecimento de determinado delito com as consequênciasdecorrentes da classificação provisória, podendo ser concedido o beneficio do art. 310, par. ún., do CPP, pois, quando existente dúvida séria sobre a correta definição jurídica do fato, manda a prudência que se decida pro libertate, permitindo ao acusado aguardar solto a sentença que melhor qualificará sua conduta" (RT 773/576). "Evidente que, para coibir excessos decorrentes da rigidez da Lei 8.072/90, será sempre necessário realizar juízo provisório mais acurado sobre a correção da capitulação feita na denúncia, seja na ocasião do seu recebimento, seja durante o processo, ou, ainda, na oportunidade de apreciação do pedido de liberdade provisória. Assim, caso o juiz, durante a instrução, vislumbre provável desclassificação para outra infração, não prevista na Lei 8.072, deverá, fundamentadamente, permitir a liberdade provisória, sem que tal importe em prejulgamento do mérito" (TJ/SP - MS 117.004-3/8, Rei. Des. Celso Limongi). 1 4 7 5 RENATO BRASILEIRO DE LIMA MANUAL DE PROCESSO PENAL Solução diversa, todavia, deve ser aplicada quando a imputação de fato não for idônea, seja porque divorciada dos elementos de informação disponíveis, seja porque a descrição contida na peça acusatória não corresponda à acertada tipificação do episódio real, segundo os elementos informativos recolhidos. E bem verdade que o órgão jurisdicional não pode substituir-se ao órgão do Ministério Público, titular da ação penal pública, para, a fim de retificar a classificação jurídica proposta, aditar à denúncia elementar ou circunstância nela não contida, mesmo que resultante dos elementos produzidos na fase investigatória, sob pena de violação ao sistema acusatório adotado pela Constituição Federal (art. 129,1). Isso, no entanto, não significa dizer que o juiz não possa rejeitar a peça acusatória por ausência de justa causa (CPP, art. 395, III), quando verificar que a denúncia veicula circunstância essencial desamparada por elementos mínimos de suspeita plausível da sua realidade, ou quando omitir circunstância do fato, igualmente essencial à sua qualificação jurídica, cuja realidade os elementos de informação evidenciem.104 7.1.2. Emendatio libelli e necessidade de oitiva das partes É majoritário o entendimento no sentido de que, na emendatio libelli, não há necessidade de se abrir vista às partes para que possam se manifestar acerca da nova classificação do fato delituoso. A justificativa para tanto é a de que, em sede processual penal, o acusado defende-se dos fatos que lhe são imputados e não da capitulação (princípio da consubstanciação). Assim, como não há alteração da imputação na emendatio libelli, mas mera correção de classificação mal formulada, acusado e defensor já teriam tido a oportunidade de oferecer resistência quanto à pretensão acusatória.105 106 A propósito, ao ser apresentado ao Congresso Nacional, o Projeto de Lei n° 4.207/2001, que deu origem à Lei n° 11.719/08, estabelecia a necessidade de oitiva das partes na proposta de nova redação do art. 383, §1°, do CPP: “As partes, todavia, deverão ser intimadas da nova definição jurídica do fato antes de prolatada a sentença”. Todavia, esse projeto foi modificado e, quando aprovado, a redação final dada ao art. 383 do CPP não previu a intimação das partes. A jurisprudência caminha na mesma direção. Em processo penal referente ao crime de lavagem de dinheiro (Lei n° 9.613/98, art. Io), no qual a denúncia narrara em detalhes a infração antece- dente - Lei n° 7.492/86, art. 22, parágrafo único, parte final, que trata da manutenção de contas bancárias no exterior, sem a devida comunicação às autoridades federais competentes —, concluiu o Supremo ser plenamente possível que o julgamento final ocorresse apenas em relação ao delito antecedente. Na visão do STF, seria caso de verdadeira emendatio libelli, porquanto não teria havido aditamento da denúncia sob a perspectiva material, uma vez que os fatos imputados aos acusados seriam os mesmos, quais sejam, a manutenção de depósitos em dinheiro no exterior, sem a devida comunicação às autoridades. Destarte, considerando que o acusado defende-se dos fatos que lhe são imputados, ainda que a capitulação jurídica se mostre eventualmente equivocada, entendeu-se que, como os fatos arrolados na peça acusatória permaneceram inalterados, seria plenamente possível a aplicação do art. 383 do CPP, sem que houvesse a necessidade de reabertura da instrução penal nem tampouco a complementação das defesas}06 Em que pese ser essa a posição majoritária, pensamos que, em fiel observância ao contraditório, há necessidade de manifestação das partes na hipótese de possível alteração da capitulação atribuída 104. Com esse raciocínio: STF, l 1 Turma, HC 84.653/SP, Rei. Min. Sepúlveda Pertence, j. 02/08/2005, DJ 14/10/2005. 105. No sentido de que, no sistema processual pátrio, o agente se defende dos fatos a ele atribuídos e não da sua capi- tulação jurídica: STJ, 6^ Turma, HC 146.367/MG, Rei. Min. Celso Limongi - Desembargador convocado do TJ/SP, j. 18/03/2010, DJe 05/04/2010. 106. STF, Pleno, AP 461 AgR-terceiro / SP, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, j. 16/06/2011, DJe 160 19/08/2011. 1 4 7 6 MANUAL DE PROCESSO PENAL SENTENÇA PENAL ao fato delituoso. Se é verdade que o princípio do iuria novit curia confere ao juiz a possibilidade de alterar a classificação dos fatos constantes da peça acusatória, também não é menos verdade que o princípio do contraditório lhe impõe a comunicação prévia às partes, antes de tomar uma decisão, ainda que se trate daquelas que podem ser tomadas de ofício, evitando-se, assim, que as partes sejam indevidamente surpreendidas no momento da sentença com uma nova capitulação. Afinal, o contraditório não é aplicável apenas às questões fáticas, notadamente quanto à produção da prova, mas também guarda relação com as questões de direito debatidas no curso do processo. Nesse caso, o juiz não está obrigado a proferir a sentença de acordo com a nova capitulação jurídica dos fatos em relação à qual convidou as partes a se pronunciarem. Na verdade, até mesmo como forma de se evitar um prejulgamento, deve o juiz se limitar a comunicar às partes acerca da possibilidade de os fatos narrados na peça acusatória serem capitulados em tipo penal diverso. Nesse momento, o que existe é apenas uma possibilidade, mas não a certeza da nova classificação jurídica dos fatos, que só existirá por ocasião da sentença. Afinal, a partir dos argumentos apresentados pelas partes — e daí sobressai a importância de observância do contraditório —, é possível que o julgador sentencie o acusado levando em consideração tanto a capitulação originária quanto a nova.10" 7.1.3. Emeiidatio libelli nas diferentes espécies de ação penal A emendatio libelli pode ser feita nas diferentes espécies de ação penal: pública incondicionada, pública condicionada, exclusivamente privada, privada personalíssima e privada subsidiária da pública. A própria redação do art. 383, caput, confirma essa conclusão, já que o dispositivo legal não estabelece qualquer distinção quanto à espécie de ação penal. Assim, em processo criminal instaurado por meio de denúncia, uma classificação incorreta feita pelo órgão ministerial não impede que o juiz, por ocasião da sentença, faça a devida retifica- ção, desde que a realidade fática da sentença continue sendo a mesma daquela constante da peça acusatória. Raciocínio semelhante também se aplica a processos criminais instaurados por meio de queixa-crime: supondo que o advogado do querelante tenha imputado ao acusado a prática de um crime de calúnia, classificando-o, porém, como injúria, nada impede que o juiz faça a correção da classificação ao proferir a sentença condenatória. 7.1.4. Emendatio libelli na 2 a instância É plenamente possível que a emendatio libelli seja feita pelo órgão jurisdicional de 2a instânciapor ocasião do julgamento de eventuais recursos, desde que respeitado o princípio da ne reformado in pejus.107 108 107. É nesse sentido a lição de BADARÓ: C o rre la ç ã o e n tre a c u sa ç ã o e s e n te n ç a . 2s ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 141. Para Aury Lopes Jr., é ingênua a crença de que o réu se defende apenas dos fatos. Segundo o autor, "é elementar que o réu se defende do fato e, ao mesmo tempo, incumbe ao defensor, também debruçar-se nos limites semânticos do tipo, possíveis causas de exclusão da tipicidade, ilicitude, culpabilidade, e em toda imensa complexidade que envolve a teoria do injusto penal. É óbvio que a defesa trabalha - com maior ou menor inten- sidade, dependendo do delito - nos limites da imputação penal, considerando a tipificação como a pedra angular onde irá desenvolver suas teses". (D ire ito p ro c e s su a l p e n a l e s u a c o n fo rm id a d e c o n st itu c io n a l. Volume 1. 31 ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008. p. 93). No sentido da necessidade de intimação prévia das partes: FEITOZA, Denilson. D ire ito p ro c e s su a l p e n a l: teoria , c r ít ica e p rá x is . 6^ ed., rev., ampl. e atual, com a Reforma Processual Penal. Niterói/RJ: Impetus, 2009. p. 1021. 108. No sentido de que a e m e n d a tio lib e ll i também pode ser aplicada em segundo grau, desde que nos limites do art. 617 do CPP, que proíbe a re fo rm a d o in p e ju s : STJ, 5- Turma, HC 87.984/SC, Rei. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 27/03/2008, DJe 22/04/2008. E ainda: STJ, 53 Turma, HC 104.047/RS, Rei. Min. Felix Fischer, j. 02/09/2008, DJe 03/11/2008. 1 4 7 7 RENATO BRASILEIRO DE LIMA MANUAL DE PROCESSO PENAL Em outras palavras, em recurso exclusivo da defesa, ou mesmo se houver recurso da acusação sem a impugnação dessa matéria, não é permitido que o tribunal retifique a classificação constante da peça acusatória, se dessa correção puder resultar o agravamento da pena do acusado. Todavia, se, por força da emendatio libelli, puder resultar uma diminuição da pena do acusado, esta poderá ser feita independentemente de requerimento da defesa nesse sentido, já que vigora, no processo penal, o princípio da reformatio in melliiis. 109 7.2. Mutatio libelli A mutatio libelli ocorre quando, durante o curso da instrução processual, surge prova de ele- mentar ou circunstância não contida na peça acusatória. Nesse caso, como há uma alteração da base fática da imputação, é evidente que há necessidade de aditamento da peça acusatória, com posterior oitiva da defesa e renovação da instrução processual, pelo menos para fins de realização de novo interrogatório do acusado, sob pena de se permitir que o acusado seja condenado por fato delituoso que não lhe foi imputado, o que viola, à evidência, os princípios do contraditório, da ampla defesa e da correlação entre acusação e sentença. Em sala de aula, costumamos trabalhar com um exemplo bastante simples: denúncia oferecida pelo Ministério Público imputa ao acusado a prática do crime de furto simples, corretamente classi- ficado pelo Parquet no art. 155, caput, do Código Penal. Durante o curso da instrução probatória, todavia, ofendido e testemunhas são uníssonas em afirmar que, durante a subtração, teria havido o emprego de violência, elementar do crime de roubo (CP, art. 157) que não teria constado da peça acusatória. Nesse caso, é evidente que o juiz não pode, de imediato, proferir sentença condenatória pelo crime de roubo, por mais que esteja convencido quanto ao emprego de violência. Ora, como se entende que, no processo penal, o acusado defende-se dos fatos que lhe são imputados na peça acusatória, se lhe foi imputada originariamente a prática do crime de furto simples, e se não houve qualquer aditamento à peça acusatória, não pode o juiz querer condená-lo pela prática de um crime de roubo. Pudesse o juiz fazê-lo, sem prévio aditamento da peça acusatória, estar-se-ia, violando, de uma só vez, os princípios do contraditório, da ampla defesa e da correlação entre acusação e sentença. Com efeito, o acusado não teve ciência da imputação de roubo circunstanciado pelo concurso de duas ou mais pessoas, o que caracterizaria violação ao contraditório; não teria tido a possibilidade de se insurgir quanto à imputação de roubo, malferindo a ampla defesa; ademais, ver-se-ia condenado por fato delituoso que não lhe fora imputado, contrariando o princípio da congruência ou corre- lação entre acusação e sentença. De mais a mais, também teria havido violação ao próprio sistema acusatório, já que, por não haver imputação em relação ao fato diverso (no exemplo citado, roubo), estaria o juiz usurpando função que é primordial e característica do titular da ação penal, em clara e evidente afronta ao art. 129, I, da Constituição Federal. Daí a importância de se observar o procedimento da mutatio libelli, previsto no art. 384 do CPP. Nos exatos termos do art. 384, caput, do CPP, com redação determinada pela Lei n° 11.719/08, encerrada a instrução probatória, se entender cabível nova definição jurídica do fato, em consequ- ência de prova existente nos autos de elemento ou circunstância da infração penal não contida na 109. Por conta do princípio da reformatio in mellius, entende-se que, no recurso exclusivo da acusação, é plenamente possível que o juízo ad quem melhore a situação da defesa, seja para aplicar causas de diminuição de pena ou cir- cunstâncias atenuantes não reconhecidas pelo juízo a quo, seja para excluir qualificadoras constantes da decisão impugnada, podendo, inclusive, absolver o acusado. Para mais detalhes acerca do assunto, remetemos o leitor ao capítulo referente aos recursos. 1 4 7 8 MANUAL DE PROCESSO PENAL SENTENÇA PENAL acusação, o Ministério Público deverá aditar a denúncia ou queixa, no prazo de 5 (cinco) dias, se em virtude desta houver sido instaurado o processo em crime de ação pública, reduzindo-se a termo o aditamento, quando feito oralmente. 7.2.1. Surgimento de prova nos autos de elementares ou circunstâncias não contidas na peça acusatória Como se depreende da redação do art. 384, caput, do CPP, o procedimento da mutatio libelli deve ser observado sempre que surgir, no curso da instrução probatória, prova de elementar ou circunstância da infração penal não contida na peça acusatória. Elementares são dados essenciais da figura típica, cuja ausência pode acarretar a atipicidade absoluta (a conduta é atípica) ou a atipicidade relativa (desclassificação). E o que ocorre no exemplo acima citado: em processo penal referente ao crime de furto simples, se restar provado que teria havido o emprego de violência, elementar do crime de roubo que não constou da peça acusatória, será necessária a observância do art. 384 do CPP para que não haja violação ao princípio da cor- relação entre acusação e sentença. Circunstâncias são dados periféricos que gravitam ao redor do tipo básico: podem aumentar ou diminuir a pena do delito, mas não têm o condão de alterar a tipificação básica da conduta delituosa (v.g., qualificadoras, causas de aumento ou de diminuição de pena, etc.). Supondo-se que o Ministério Público tenha oferecido denúncia em face da prática do crime de roubo simples (CP, art. 157, caput), porém, no curso da instrução probatória, restar provado que a ameaça fora exercida com o emprego de arma, esta circunstância que autoriza o aumento da pena do crime de roubo (CP, art. 157, §2°, I) só poderá constar de eventual sentença condenatória se houver a mutatio libelli.110 Como ensina Bitencourt, para se diferenciar uma elementar do tipo penal de uma simples circunstância, basta exclui-la, hipoteticamente: se esse raciocínio levar à descaracterização do fato como crime (atipicidade absoluta) ou fizer surgir outro tipo de crime (atipicidade relativa), estaremos diante de uma elementar.Se, todavia, a exclusão de determinado requisito não alterar a caracteri- zação do crime, tratar-se-á de uma circunstância do delito. Exemplificando, no crime de peculato, a qualidade de funcionário público é uma elementar do delito, visto que, diante de sua ausência, haverá a desclassificação para apropriação indébita. Por outro lado, no furto, o fato de o delito ter sido praticado durante o repouso noturno autoriza a incidência da causa de aumento de pena prevista no art. 155, §1°, do CP. Suprimido o repouso noturno, o tipo fundamental continuará o mesmo, ou seja, furto. Logo, trata-se de mera circunstância.111 110. A distinção entre elementares e circunstâncias também é de fundamental importância para fins de aplicação do art. 30 do CP, por força do qual não se comunicam as circunstâncias e as condições de caráter pessoal, salvo quando elementares do crime. Por isso, em se tratando de circunstâncias, são comunicáveis apenas as de caráter objetivo, e desde que os demais concorrentes tenham consciência de sua presença. A título de exemplo, por se tratar de circunstância comunicável, em razão de sua natureza objetiva (CP, art. 30), uma vez reparado o dano integralmente por um dos autores do delito, a causa de diminuição de pena do arrependimento posterior, prevista no art. 16 do CP, estende-se aos demais coautores, cabendo ao julgador avaliar a fração de redução a ser aplicada, conforme a atuação de cada agente em relação à reparação efetivada. Nesse contexto: STJ, 6^ Turma, REsp 1.187.976/SP, Rei. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 07/11/2013. 111. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. Parte Geral. Vol. 1. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 663. Ainda segundo o autor, somente os tipos básicos contêm as elementares do crime, porquanto os chamados tipos deriva- dos - qualificados - contêm circunstâncias especiais que, embora constituindo elementos específicos dessas figuras derivadas, não são elementares do crime básico, cuja existência ou inexistência não alteram a definição deste. Assim, as qualificadoras, como dados acidentais, servem apenas para definir a classificação do crime derivado, estabelecendo novos limites mínimo e máximo, cominados ao novo tipo. 1 4 7 9 RENATO BRASILEIRO DE LIMA MANUAL DE PROCESSO PENAL Destarte, surgindo prova de elementar ou circunstância não contida explicitamente na peça acusatória, deverá haver o aditamento, nos termos do art. 384, caput, do CPP. Importante frisar que a peça acusatória deve fazer menção explícita à elementar ou circunstância, já que não se admite imputação implícita. Antes da reforma processual de 2008, apesar da crítica da doutrina, o art. 384, caput, do CPP, sugeria a possibilidade de uma imputação implícita, já que fazia menção à cir- cunstância elementar não contida explícita ou implicitamente na denúncia ou queixa. Com a nova redação conferida ao art. 384, caput, do CPP, pela Lei n° 11.719/08, foi suprimida essa previsão que admitia uma imputação implícita. A nova redação do dispositivo apenas menciona “elemento ou circunstância da infração penal não contida na acusação”. Absolutamente correta a alteração, já que a imputação deve ser clara, precisa e completa, sob pena de violação à ampla defesa. Por fim, vale registrar que a necessidade de aditamento para fins de inclusão de elementar ou circunstância não contida explicitamente na peça acusatória não se aplica às circunstâncias agravantes em sentido estrito (CP, arts. 61 e 62) nos processos iniciados por meio de ação penal pública. Isso porque, por força do art. 385 do CPP, nos crimes de ação pública, o juiz pode reconhecer agravan- tes, embora nenhuma tenha sido alegada. A despeito da crítica de parte da doutrina quanto a esse dispositivo, tem sido admitido pelos Tribunais o reconhecimento de circunstâncias agravantes nos crimes de ação penal pública, ainda que nenhuma tenha sido arguida pela acusação.112 Portanto, conclui-se que, na visão dos Tribunais, a necessidade de aditamento na hipótese do surgimento de prova de circunstância não contida na peça acusatória aplica-se apenas às qualifica- doras e às causas de aumento de pena, mas não às agravantes em sentido estrito dos arts. 61 e 62 do CP, já que tais circunstâncias sequer precisam constar da peça acusatória da ação penal pública, tal qual previsto pelo art. 385 do CPP. 7.2.2. Fato novo e fato diverso Apesar de ser pouco trabalhada pela doutrina a distinção entre fato novo e fato diverso, deve-se entender que o procedimento da mutatio libelli só deve ser utilizado na hipótese em que, durante o curso da instrução probatória, surgir prova de um aspecto diverso do fato imputado ou de um dado fático desconhecido que altera o fato originário, enfim, uma alteração fática que guarde certa relação com a imputação inicial. Assim, na hipótese de surgimento de fato novo, totalmente distinto do fato inicialmente imputado ao acusado, não é possível a aplicação do art. 384 do CPP. O fato é novo quando os elementos de seu núcleo essencial constituem acontecimento crimi- noso inteiramente diferente daquele resultante dos elementos do núcleo essencial da imputação, ou seja, o fato novo não se agrega àquele inicialmente imputado, mas o substitui por completo (v.g., furto/receptação). Nesse caso, como se trata de fato novo, que não guarda qualquer relação com o fato inicial- mente imputado ao acusado, substituindo integralmente a imputação originária, não há razão para se aplicar o procedimento da mutatio libelli do art. 384 do CPP, porquanto é plenamente possível uma imputação autônoma, dando ensejo à instauração de outro processo. Se, porventura, optar a 112. No sentido de que as agravantes, ao contrário das qualificadoras, sequer precisam constar da denúncia para serem reconhecidas pelo Juiz. É suficiente, para que incidam no cálculo da pena, a existência nos autos de elementos que as identifiquem: STF, 2^ Turma, HC 93.211/DF, Rei. Min. Eros Grau, j. 12/02/2008, DJe 74 24/04/2008. Para os Tribunais Superiores, não fere o princípio da correlação a inclusão na sentença de agravante legal não descrita na denúncia, mormente se suscitada em sede de alegações finais da Acusação Pública, nos termos do art. 385 do CPP: STJ, 63 Turma, REsp 857.066/RJ, Rei. Min. Hamilton Carvalhido, j. 27/11/2007, DJe 14/04/2008. Entendendo que é possível a aplicação de circunstância agravante em sede de apelação, mesmo quando não prevista na denúncia: STJ, 6S Turma, HC 51.859/SP, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 12/05/2009, DJe 01/05/2009. 1 4 8 0 MANUAL DE PROCESSO PENAL SENTENÇA PENAL acusação por fazer um aditamento, deverá fazê-lo com fundamento no art. 569 do CPP (e não pelo art. 384), hipótese em que haverá necessidade de se renovar a instrução criminal. Evidentemente, caso haja conexão entre as infrações penais, é plenamente possível que o juiz determine a reunião dos feitos, nos termos do art. 79, caput, do CPP. Se, todavia, os processos estiverem em estágios distintos da marcha procedimental, é possível a aplicação do art. 80 do CPP, com a consequente separação dos feitos. Por outro lado, o fato é diverso quando os elementos de seu núcleo essencial correspondem parcialmente aos do fato da imputação, mas com o acréscimo de algum elemento que o modifique. E para o fato diverso que se reserva a mutatio libelli, já que o art. 384 do CPP trata da possibilidade de nova definição jurídica do fato em consequência de prova existente nos autos de elemento ou circunstância da infração penal que fo i imputada originariamente ao acusado. Portanto, na hipótese de fato diverso, em que surgir prova de elementar ou circunstância que possa ser acrescida à imputação originária, deve ser observado o procedimento da mutatio libelli (CPP, art. 384 e parágrafos), com o consequente aditamento da peça acusatória e subsequente oitiva da defesa. Nesse caso, como não há a substituiçãoda acusação, mas a adição a ela de uma elementar ou circunstância que se agrega àquele fato principal já imputado, não haverá renovação integral da instrução e nem mesmo modificação da interrupção da prescrição. Ou seja, na mutatio, não há novo processo, mas mero aproveitamento daquele já instaurado, em razão de provas surgidas apenas na fase de instrução.113 7.2.3. Necessidade de aditamento, independentemente do quantum depena comi- nado à imputação diversa A redação do art. 384, caput, do CPP, deixa entrever que, diante do surgimento de prova de elementar ou circunstância não contida na peça acusatória, incumbe ao Ministério Público aditar a denúncia ou queixa, no prazo de 5 (cinco) dias, se em virtude desta houver sido instaurado o processo em crime de ação pública, reduzindo-se a termo o aditamento, quando feito oralmente. Antes das mudanças produzidas pela reforma processual de 2008, o art. 384, caput, e seu parágrafo único, do CPP, distinguiam duas situações, no que se refere à necessidade de aditamento: a) se a alteração do fato processual pudesse implicar a aplicação de uma pena inferior ou igual à pena que seria consequência do fato originariamente imputado, não havia necessidade de adita- mento. Nesse caso, bastava que o juiz abrisse vista à defesa para que se pronunciasse no prazo de 8 (oito) dias (antiga redação do art. 384, caput)-, b) se a mudança fática pudesse redundar na aplicação de uma pena mais grave, aí sim seria obrigatório o aditamento (revogado parágrafo único do art. 384). Tal distinção sempre foi alvo de críticas por parte da doutrina, porquanto, independentemente da pena que vier a ser aplicada ao agente, certo é que não se pode admitir que o acusado seja conde- 1 1 3 . Nos Tribunais, verifica-se que não há maior rigor terminológico na distinção entre fato novo e fato diverso - vez por outra, aliás, chama-se de fato diverso aquilo que consiste em fato novo -, sendo admitida a utilização da mutatio libelli em ambos os casos. A titulo de exemplo, em caso concreto em que o acusado retirava ilegalmente carvão do subsolo mediante uso de dinamite e esteiras rolantes, tendo sido denunciado pelo crime ambiental de lavra não autorizada (Lei n2 9.605/98, art. 55), concluiu o STJ que, na hipótese de o acusado também ser condenado pela prática do delito patrimonial de usurpação de matéria prima (Lei nS 8.176/91, art. 2g), o processo estaria contami- nado por grave nulidade se acaso não fosse observado o procedimento da mutatio libelli, porquanto teria havido o acréscimo à acusação de fato diverso sem que tivesse havido o aditamento à denúncia: STJ, 6^ Turma, HC 98.328/ SC, Rei. Min. Nilson Naves, j. 10/06/2008, DJe 01/09/2008. Perceba-se que, na verdade, não se trata de fato diverso, mas sim de fato novo, para o qual não deve ser utilizado o procedimento da mutatio. 1 4 8 1 RENATO BRASILEIRO DE LIMA MANUAL DE PROCESSO PENAL nado por fato diverso daquele que lhe foi imputado. Diante da nova redação do art. 384, caput, do CPP, já não há mais dúvidas: diante do surgimento de elementar ou circunstância não contida na acusação, o aditamento sempre deverá ocorrer, independentemente se da nova imputação resultar pena mais grave, igual ou inferior. A correlação entre acusação e sentença é indispensável, indepen- dentemente da pena aplicada ao fato imputado. E o que pode ocorrer, a título de exemplo, quando, no curso de processo penal instaurado em relação ao crime de peculato doloso, restar comprovado que, na verdade, o agente não teria dado causa ao resultado de maneira consciente e voluntária, mas sim em virtude de conduta manifestamente culposa. Nesse caso, é bem verdade que a pena aplicada ao peculato culposo é bem mais branda que a do peculato doloso. Porém, independentemente do quantum de pena cominado ao delito, o certo é que, fosse o acusado condenado por peculato culposo sem que houvesse o aditamento da denúncia para que lhe fosse imputada uma conduta imprudente, negligente ou imperita, ter-se-ia evidente violação ao sistema acusatório, porquanto o acusado seria condenado por um crime que não lhe foi imputado. Por isso, pensamos que andou mal o Supremo ao apreciar o HC 85.657/SP, no qual reconheceu que eventual desclassificação de peculato doloso para peculato culposo caracteriza emendatio libelli, daí porque não haveria necessidade de se abrir vista à defesa. Nesse julgado, concluiu o Supremo que “ inocorre mutatio libelli se os fatos narrados na denúncia (e contra as quais se defendeu a recorrente) são os mesmos considerados pela sentença condenatória, limitando-se a divergência ao elemento subjetivo do tipo (culpa x dolo). Não é de se anular ato que desclassifica a infração imputada à acusada para lhe atribuir delito menos grave. Aplicação da parêmia pas de nullité sans grief (art. 563 do CPP)”.114 7.2.4. Aditamento espontâneo (CPP, art. 384, caput) eprovocado (CPP, art. 384, §1°) Outra mudança importante produzida pela Lei n° 11.719/08 diz respeito à espontaneidade do aditamento a que se refere o art. 384, caput, do CPP. Na redação original do art. 384, parágrafo único, do CPP (antes da reforma processual de 2008), se o juiz verificasse o surgimento de elementar ou circunstância não contida na peça acusa- tória, deveria baixar os autos a fim de que o Ministério Público aditasse a peça acusatória. Tinha-se, nesse caso, aquilo que a doutrina chama de aditamento provocado, assim compreendido aquele no qual o juiz, no exercício de função anômala de fiscal do princípio da obrigatoriedade, verificando a necessidade de se acrescentar algo à peça acusatória, provoca o Ministério Público a fazê-lo.115 A reforma processual de 2008 pôs fim parcial ao aditamento provocado na mutatio libelli. De fato, de acordo com o art. 384, caput, do CPP, com redação determinada pela Lei n° 11.719/08, “encerrada a instrução probatória, se entender cabível nova definição jurídica do fato, em consequ- ência de prova existente nos autos de elemento ou circunstância da infração penal não contida na acusação, o Ministério Público deverá aditar a denúncia ou queixa, no prazo de 5 (cinco) dias, se em virtude desta houver sido instaurado o processo em crime de ação pública, reduzindo-se a termo o aditamento, quando feito oralmente”. Como se percebe, ao contrário da antiga redação do art. 384, parágrafo único, que previa que o ju iz deveria baixar o processo a fim de que o Parqtiet aditasse a peça acusatória, a reforma proces- 114. STF, lã Turma, RHC 85.657/SP, Rei. Min. Carlos Britto, j. 31/05/2005, DJ 05/05/2006. 115. No sentido de que a antiga redação do parágrafo único do art. 384 do CPP não afrontava o princípio da imparciali- dade do órgão jurisdicional: STF, 2§ Turma, HC 109.098/RJ, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, j. 20/03/2012, DJe 167 23/08/2012. 1 4 8 2 MANUAL DE PROCESSO PENAL SENTENÇA PENAL suai de 2008 passou a prever que esse aditamento deve ser espontâneo, preservando-se, assim, a imparcialidade do magistrado. Por mais que, antigamente, o juiz fizesse apenas uma sugestão de aditamento, valendo-se de tons sóbrios e comedidos, sem frases taxativas, esse aditamento provocado sempre foi criticado pela doutrina. O fato de o juiz baixar os autos do processo para que o Ministério Público aditasse a peça acusatória, além de revelar uma manifestação de vontade acusatória de sua parte, também implicava em inegável comprometimento psicológico do julgador, que acabava por adiantar seu convencimento quanto à condenação do acusado, acarretando perda de sua imparcialidade. Dissemos que a reforma processual de 2008 pôs fim parcial ao aditamento provocado na mutatio libelli, porque, a nosso juízo, ainda subsiste essa modalidade de aditamento.116 Isso porque, segundo o art. 384, §1°, do CPP, “não procedendo o órgão do Ministério Público ao aditamento, aplica-se o art. 28 deste Código”. Como se vê, apesarde o juiz não poder baixar o processo a fim de que o Promotor de Justiça adite a peça acusatória, como estava previsto no revogado parágrafo único do art. 384 do CPP, ainda incumbe ao magistrado o exercício da função anômala de fiscal do princípio da obrigatoriedade, podendo encaminhar os autos à Chefia do Ministério Público caso o órgão do Ministério Público de Ia instância não proceda ao aditamento.117 Há quem entenda que, diante da nova redação do caput do art. 384, não há como se dar apli- cação ao §1° do mesmo dispositivo, por ser claramente incompatível com o sistema acusatório, não mais sendo cabível qualquer forma de provocação, pelo juiz, do aditamento. Cuida-se, porém, de posição minoritária. Na verdade, apesar de a aplicação do art. 28 do CPP acarretar certo prejuízo à imparcialidade do magistrado, é sabido que essa função anômala exercida pelo juiz de fiscalização do princípio da obrigatoriedade é extremamente comum no âmbito processual penal, não apenas nos casos de não aditamento espontâneo pelo Promotor de Justiça, mas também nas hipóteses de controle judicial do arquivamento do inquérito policial e nos casos de recusa injustificada do oferecimento da proposta de transação penal ou de suspensão condicional do processo (Súmula n° 696 do STF).118 De se lembrar que, no âmbito do Ministério Público Militar, Ministério Público Federal e Ministério Público do Distrito Federal, a norma do art. 384, §1°, do CPP, deve ser interpretada em conjunto com a LC n° 75/93, daí porque os autos devem ser encaminhados ao respectivo Pro- curador-Geral, porém este deve ouvir o parecer da respectiva Câmara de Coordenação e Revisão. 116. No sentido de que ainda subsiste a possibilidade de aditamento provocado: MENDONÇA, Andrey Borges de. N o va r e fo r m a d o C ó d ig o d e P ro c e ss o P e n a l: c o m e n ta d a a rt ig o p o r a rt ig o . São Paulo: Editora Método, 2008. p. 234. E também: GOMES, Luiz Flávio; CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. C o m e n tá rio s às re fo rm a s d o C ó d ig o d e P ro c e sso P e n a l e da L e i d e Trâ n sito . São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 329. 117. Para Rangel, não oferecendo o MP o aditamento no prazo previsto em lei, não poderá o ofendido ingressar com aditamento de iniciativa privada subsidiário do público. Para o autor, "o ofendido somente pode ingressar, no pro- cesso penal, na qualidade de assistente de acusação, ou de autor da ação penal de iniciativa privada quando o MP não promove a ação penal pública, no prazo legal (CF, art. 5B, LIX). No caso em tela há ação penal pública proposta, não sendo caso de o ofendido se imiscuir nas funções do MP". (RANGEL, Paulo. D ire ito p ro c e s s u a l p e n a l. 17- ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010. p. 326). 118. No sentido da inconstitucionalidade do art. 384, §1B: BADARÓ, Gustavo Henrique. C o rre la ç ã o e n tre a c u sa ç ã o e se n te n ça . 2a edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 157. Em sentido diverso: OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 11a ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009. p. 532. No sentido de que o art. 384, §1B, do CPP, não afronta o devido processo legal, porquanto o desvelamento, objetivo, de um fato verificado durante a instrução processual, por si só, não é hábil a comprometer a imparcialidade do juiz, derivada da busca da verdade, de modo que seja capaz de apreender os acontecimentos com todas as suas circunstâncias, inclusive colhendo aquilo que as partes - por limitação ou vontade - teriam deixado de narrar: STF, 2a Turma, HC 109.098/ RJ, Rei. Min. Ricardo Lewandowski, j. 20/03/2012. 1 4 8 3 RENATO BRASILEIRO DE LIMA MANUAL DE PROCESSO PENAL Remetidos os autos ao Procurador-Geral de Justiça pelo magistrado com fundamento no art. 28 do CPP, são duas as possibilidades: a) se o Procurador-Geral de Justiça oferecer o aditamento (ou designar outro órgão do MP para oferecê-lo), o processo seguirá seu curso normal, com a consequente oitiva da defesa no prazo de 5 (cinco) dias e ulterior juízo de admissibilidade do aditamento; b) havendo insistência do Procurador-Geral de Justiça em não proceder ao aditamento, ao juiz nada restará fazer senão julgar o acusado pela imputação originária que constou da denúncia, absolvendo ou condenando-o. Evidentemente, se o juiz estiver convencido de que os fatos se passaram de forma completamente diversa do quanro narrado na peça acusatória, será impossível a condenação do acusado pelo fato inicialmente imputado ao acusado, haja vista a ausência de imputação típica. Todavia, caso não haja o aditamento da denúncia no exemplo acima citado do furto, para o acréscimo da elementar violência e consequente alteração da imputação para roubo, deve o juiz condenar o acusado apenas pelo delito menos grave, porquanto provada a subtração da coisa.119 Evidentemente, na hipótese de não aditamento para inclusão da violência, não poderá o juiz querer julgar o acusado com base no fato diverso que surgiu durante o curso da instrução probatória — no exemplo, roubo —, sob pena de violação ao devido processo legal. Nessa linha, em caso concreto apreciado pelo STJ, constava da denúncia que o acusado teria arrancado o relógio da vítima e, após, empreendido fuga. Ato contínuo, a vítima reagiu e o perseguiu, oportunidade em que houve luta corporal. Por isso, ele foi denunciado pela prática do crime de roubo impróprio tentado, já que, segundo a peça acusatória, a violência só foi perpetrada após a subtração da res furtiva, com o fito de garantir-lhe a posse. Ocorre que, durante o curso da instrução probatória, restou comprovado que, na verdade, a violência foi empregada contra a vítima desde o início, para viabilizar a subtração de seu patrimônio. Logo, seria inviável a condenação do acusado pela prática do crime de tentativa de roubo impróprio, porque não houve emprego de violência para a manutenção da posse da res, elementar do tipo do art. 157, §1°, do CP. Por outro lado, como não houve o aditamento da peça acusatória em Ia instância, de modo a se imputar ao acusado o emprego de violência para viabilizar a subtração do patrimônio alheio desde o início da prática delituosa, seria inviável sua condenação pelo crime de roubo próprio tentado. Logo, como não se admite a mutatio libelli em segunda instância (Súmula n° 453 do STF), concluiu o STJ que a solução seria manter a condenação do acusado apenas pela prática do crime de furto tentado.120 7.2.5. Procedimento da mutatio libelli O procedimento a ser observado quando houver a mutatio libelli está regulamentado pelo art. 384 e seus parágrafos. Como visto anteriormente, surgindo prova de elementar ou circunstância da infração penal não contida na acusação, o Ministério Público terá o prazo de 5 (cinco) dias para aditar a denúncia ou queixa, se em virtude desta houver sido instaurado o processo em crime de ação pública, redu- zindo-se a termo o aditamento, quando feito oralmente. Não procedendo o órgão do Ministério Público ao aditamento, aplica-se o art. 28 do CPP. 119. Na mesma linha, como observa Feitoza, se o fato efetivamente praticado é roubo, mas a descrição do fato na ini- cial é de furto, terá que condenar pelo furto, com a pena do art. 155, pois a elementar violência não está descrita na denúncia: FEITOZA, Denilson. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. 6§ ed., rev., ampl. e atual, com a Reforma Processual Penal. Niterói/RJ: Impetus, 2009. p. 1028. 120. STJ, 53 Turma, REsp 1.155.927/RS, Rei. Min. Felix Fischer, j. 18/05/2010, DJe 21/06/2010. 1 4 8 4 MANUAL DE PROCESSO PENAL SENTENÇA PENAL Inicialmente, convém destacar que esse aditamento pode ser feito oralmente, ou seja, no âmbito da audiência una de instrução e julgamento, hipótese em que, obviamente, será reduzido a termo, ou por meio de petiçãoescrita, a ser apresentada pelo órgão ministerial no prazo de 5 (cinco) dias. Uma vez aditada a peça acusatória pelo Ministério Público, deve ser observado o disposto no art. 384, §2°: “ouvido o defensor do acusado no prazo de 5 (cinco) dias e admitido o aditamento, o juiz, a requerimento de qualquer das partes, designará dia e hora para continuação da audiência, com inquirição de testemunhas, novo interrogatório do acusado, realização de debates e julgamento”. A leitura do §2° do art. 384 do CPP autoriza a conclusão no sentido de que, mesmo antes de admitir (ou não) o aditamento da peça acusatória, deverá o juiz ouvir o defensor do acusado, em espécie de manifestação que funciona como um misto de defesa preliminar e de resposta à acusação. Deveras, como a defesa é ouvida antes de o juiz se pronunciar quanto à admissão do aditamento, conclui-se que, ao mesmo tempo em que o defensor deve atacar o aditamento da peça acusatória em si, buscando sua rejeição com fundamento no art. 395 do CPP, também deve apresentar manifesta- ção semelhante a uma resposta à acusação (CPP, art. 396-A), seja objetivando eventual absolvição sumária, seja especificando as provas que pretende produzir caso o aditamento seja recebido pelo juiz. De mais a mais, também é plenamente possível a apresentação de eventuais exceções, nos termos do art. 396-A, §1°, do CPP. Afinal, a depender do aditamento, pode ocorrer situação que justifique, por exemplo, a alegação de uma exceção de incompetência, se acaso a denúncia for aditada para se acrescer que a coisa subtraída era de propriedade da União, o que acarretará o reconhecimento da incompetência da Justiça Estadual para o processo e julgamento do feito. Uma vez ouvida a defesa, haverá um juízo de admissibilidade sobre o aditamento da peça acusatória. Com efeito, ao se referir à admissão do aditamento, o §2° do art. 384 do CPP deixa claro que o magistrado tem 02 (duas) opções: receber ou rejeitar o aditamento. Portanto, o magistrado não é obrigado a receber o aditamento, podendo rejeitá-lo, caso entenda presente uma das hipóteses do art. 395 do CPP. O próprio §5° do art. 384 confirma esse entendimento, ao prever que, não recebido o aditamento, o processo prosseguirá normalmente, com base na imputação originária. Recebido o aditamento da peça acusatória, o juiz deve designar dia e hora para continuação da audiência, com inquirição de testemunhas, novo interrogatório do acusado, realização de debates e julgamento. De acordo com o art. 384, §4°, havendo aditamento, cada parte poderá arrolar até 3 (três) testemunhas, no prazo de 5 (cinco) dias. Apesar de o §4° do art. 384 prever que, havendo aditamento, a parte poderá arrolar até 3 testemunhas, é certo que poderá ser requerido qualquer tipo de prova. Note-se que o art. 384, §4°, do CPP, estabelece que, havendo aditamento, cada parte poderá arrolar até 3 (três) testemunhas, no prazo de 5 (cinco) dias. A redação do dispositivo é um pouco dúbia, já que parece referir-se à abertura de novo prazo de 5 (cinco) dias para que as partes possam arrolar testemunhas. Tendo em conta que a reforma processual de 2008 teve como um de seus escopos imprimir maior celeridade ao procedimento, não faz sentido a reabertura de novo prazo para apresentação das provas pretendidas pelas partes se cada uma delas já teve a oportunidade de se manifestar. Na medida em que a lei já confere o prazo de 5 (cinco) dias para o aditamento (CPP, art. 384, caput), e mais 5 (cinco) dias para a oitiva da defesa (CPP, art. 384, §2°), as provas pretendidas pelas partes devem ser especificadas nessas oportunidades, sob pena de preclusão. Mesmo que as partes não requeiram a produção de qualquer tipo de prova, subsiste a necessi- dade de designação de nova data para a continuação da audiência de instrução e julgamento. Afinal, diante dessa imputação superveniente, será imprescindível a realização de novo interrogatório do 1 4 8 5 RENATO BRASILEIRO DE LIMA MANUAL DE PROCESSO PENAL acusado, a fim de que possa exercer a autodefesa (direito de audiência) sobre o fato diverso objeto do aditamento, com ulterior alegações orais e decisão do magistrado. 7.2.6. Recurso cabível contra a rejeição do aditamento à peça acusatória O que pode a parte fazer se o magistrado rejeitar o aditamento à peça acusatória? Qual o recurso cabível? A resposta à indagação passa, obrigatoriamente, pela análise do momento processual em que ocorrer a rejeição do aditamento à peça acusatória. Se a rejeição do aditamento ocorrer por meio de decisão interlocutória, não temos dúvida em afirmar que o meio de impugnação será o recurso em sentido estrito, por meio de interpretação extensiva do art. 581, I, do CPP. De modo diverso, caso a rejeição do aditamento da peça acusatória seja feita em sede de sentença, condenatória ou absolutória, o recurso cabível será o de apelação. Atente-se para o fato de que, por força da Lei n° 11.719/08, o Código passou a prever uma audiência una de instrução e julgamento (CPP, arts. 400 e seguintes). Logo, é possível, pois, que esse aditamento ocorra na própria audiência - note-se que o art. 384, caput, do CPP, fala em redução do aditamento a termo, quando feito oralmente — do que se infere a possibilidade de aditamento na própria audiência. Supondo, assim, que o aditamento tenha sido feito no curso da audiência una de instrução e julgamento e que, após rejeitá-lo, profira o magistrado sentença absolutória ou condenatória, há de se concluir pelo cabimento do recurso de apelação, ainda que se queira recorrer apenas contra a rejeição do aditamento. Isso porque, segundo o art. 593, I, do CPP, caberá apelação no prazo de 5 (cinco) dias das sentenças definitivas de condenação ou absolvição proferidas por juiz singular. Ademais, quando cabível a apelação, não poderá ser usado o recurso em sentido estrito, ainda que somente de parte da decisão se recorra (CPP, art. 593, §4°). 7.2.7. Mutatio libelli nas diferentes espécies de ação penal É majoritário o entendimento no sentido de que a mutatio libelli só pode ser feita nos crimes de ação penal pública (incondicionada e condicionada) e nas hipóteses de ação penal privada sub- sidiária da pública, recaindo sobre o Ministério Público a legitimidade para o aditamento da peça acusatória.121 Essa conclusão é firmada por grande parte da doutrina a partir de uma interpretação do art. 384, caput, do CPP, que prevê que o Ministério Público deve aditar a denúncia ou queixa, se em virtude desta houver sido instaurado o processo em crime de ação pública. Ora, ao se referir à queixa que deu causa à instauração do processo penal em crime de ação penal pública, é de se concluir que o dispositivo refere-se à ação penal privada subsidiária da pública. Logo, não seria possível a mutatio libelli em crimes de ação penal exclusivamente privada ou privada personalíssima.122 Sem embargo dessa posição, parte minoritária da doutrina - posição à qual nos filiamos — entende que, tal como ocorre com o Ministério Público, o querelante também pode vir a tomar 121. Na hipótese de aditamento da queixa-crime subsidiária pelo Ministério Público, não haverá a retomada da titula- ridade da ação pelo órgão oficial, pois, na verdade, não restará caracterizada desídia ou negligente por parte do querelante, já que é o próprio art. 384 do CPP que impõe que o aditamento seja feito pelo Ministério Público. Com entendimento semelhante: MUCCIO, Hidejalma. C u rso d e p ro c e s so p e n a l. 2? ed. São Paulo: Método, 2011. p. 1501. 122. Nesse sentido: MIRABETE, Julio Fabbrini. C ó d ig o d e p ro c e s so p e n a l in te rp re ta d o . l l s ed. São Paulo: Editora Atlas, 2006. p. 993. Na mesma linha: OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal, l l 5 ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009. p. 529; FEITOZA, Denilson. D ire ito p ro c e s s u a l p e n al: teoria , c r ít ic a e p rá x is . 6^ ed., rev., ampl. e atual, com a Reforma Processual Penal. Niterói/RJ: Impetus, 2009. p. 316-317. Outrossim, convém destacar que a lei também não confere legitimidade ao assistente da acusação para aditar a peça acusatória. 1 4 8 6 MANUAL DE PROCESSO PENAL SENTENÇA PENAL conhecimento de elementares ou circunstâncias apenas no curso da instrução processual, daí por que não se pode negar a ele a possibilidade de proceder ao aditamento. A título de exemplo, pos- samos supor que, no curso de processo penal instaurado por meio de queixa-crime que imputara ao acusado o crime de calúnia (CP, art. 138, caput), surja prova de que o delito teria sido cometido na presença de várias pessoas, circunstância esta não contida na peça acusatória e que autoriza o aumento da pena em 1/3 (um terço), nos termos do art. 141, III, do CP. Nesse caso, pensamos ser plenamente possível o aditamento da queixa-crime, observado, evidentemente, o prazo decadencial. Nessa hipótese, há de se analisar se a omissão do querelante em incluir tais fatos na peça acusa- tória teria sido voluntária ou involuntária, e se foi observado o prazo decadencial. Afinal de contas, se o querelante tinha consciência quanto à circunstância em questão - no exemplo citado, crime de calúnia cometido na presença de várias pessoas —, e deliberadamente a omitiu da peça acusatória, forçoso é concluir que teria havido renúncia tácita em relação a ela, e consequente extinção da punibilidade exclusivamente quanto à causa de aumento de pena. Porém, se a exclusão foi involuntária, há de se admitir a possibilidade de aditamento, desde que observado o prazo decadencial de 6 (seis) meses, o qual começou a fluir a partir da ciência do fato. Assim, se ainda não ocorreu a decadência, ou se o fato se tornou conhecido do querelante apenas no curso da instrução processual, há de se assegurar a ele a possibilidade de aditar a queixa-crime, com fundamento no art. 569 do CPP, ou oferecer nova queixa-crime; caso não o faça, haverá a extinção da punibilidade.123 A legitimidade para o aditamento da queixa-crime para a inclusão de elementares ou circuns- tâncias recai sobre o próprio querelante. Nesse ponto, especial atenção deve ser dispensada ao art. 45 do CPP, que deixa transparecer, à primeira vista, que o Ministério Público teria ampla legitimidade para proceder ao aditamento da queixa-crime. Porém, deve se distinguir as hipóteses de ação penal privada exclusiva e privada personalíssima das hipóteses de ação penal privada subsidiária da pública. Nas hipóteses de ação penal exclusivamente privada e privada personalíssima, como o Minis- tério Público não é dotado de legitimado ad cansam, não tem legitimidade para incluir coautores, partícipes e outros fatos delituosos de ação penal de iniciativa privada, podendo aditar a queixa-crime apenas para incluir circunstâncias de tempo, de lugar, modus operandi, etc. Lado outro, na ação penal privada subsidiária da pública, como a ação penal, em sua origem, é de natureza pública, conclui-se que o Ministério Público tem ampla legitimidade para proceder ao aditamento, seja para incluir novos fatos delituosos, coautores e partícipes, seja para acrescentar elementos acidentais como dados relativos ao local e ao momento em que o crime foi praticado (CPP, art. 29). 7.2.8. Aditamento: imputação superveniente e possibilidade de condenação do acusado quanto à imputação originária Como visto anteriormente, se, no curso da instrução probatória, surgir prova de elementar ou circunstância da infração não contida na peça acusatória, incumbe ao Ministério Público aditar a peça acusatória, em fiel observância ao art. 384 do CPP. A partir do momento em que esse adita- mento é admitido pelo juiz, pode-se dizer que há uma imputação superveniente. Assim, valendo-se do exemplo anteriormente citado, pode-se dizer que a imputação originária diz respeito ao crime de furto, ao passo que a imputação superveniente atribui ao acusado o cometimento do delito de roubo. Nesse caso, discute-se acerca da possibilidade de condenação do acusado por qualquer uma das imputações, ou se o juiz estaria vinculado à imputação superveniente. 123. Com entendimento semelhante: BADARÓ, Gustavo Henrique. Correlação entre acusação e sentença. 2S edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 159. 1 4 8 7 RENATO BRASILEIRO DE LIMA MANUAL DE PROCESSO PENAL Antes do advento da Lei n° 11.719/08, sempre se entendeu que, nas hipóteses de aditamento à denúncia por força da mutatio libelli (antiga redação do art. 384, parágrafo único, do CPP), o juiz continuava livre para julgar o acusado tanto pela imputação originária quanto pela imputação superveniente. Ou seja, o aditamento não substituiria a imputação originária, mas a ela se somaria, de modo alternativo. Tinha-se aí a denominada imputação alternativa superveniente. Se essa imputação alternativa superveniente prevista no antigo parágrafo único do art. 384 do CPP era amplamente admitida pela doutrina e pelos Tribunais, pode-se dizer que, diante das modificações produzidas pela Lei n° 11.719/08, não se pode mais falar em denúncia alternativa superveniente. Isso porque, de acordo com a nova redação do art. 384, §4°, do CPP, havendo adi- tamento, ficará o juiz, na sentença, adstrito aos termos do aditamento. Em outras palavras, havendo aditamento da denúncia por força da mutatio libelli, o fato imputado passará a ser exclusivamente o fato superveniente, que substitui o fato originário. Nessa linha, como aduz Badaró, “se o juiz condenar o acusado pelo fato originário, estará proferindo uma sentença extrapetita e, consequentemente, viciada pela nulidade absoluta, tal qual ocorre com qualquer sentença que viole a regra da correlação entre acusação e sentença”.124 Imagine-se, por exemplo, que alguém tenha sido denunciado pela prática do crime de peculato culposo (CP, art. 312, §2°). Posteriormente, no curso da instrução, fica provado que o funcionário público, que tinha a posse do bem em razão de seu cargo, teria se apropriado dolosamente da res. Feito o aditamento da denúncia para imputar a prática do crime de peculato-apropriação (CP, art. 312, caput), e sendo este aditamento recebido pelo magistrado (CPP, art. 384, §2°), não restará mais a acusação pelo peculato culposo, que terá sido substituída pela acusação de peculato-apropriação. Nesse contexto, o acusado não poderá ser condenado por peculato culposo, já que o próprio Minis- tério Público afirmou no aditamento, recebido pelo magistrado, que houve a apropriação dolosa de bem móvel de que tinha a posse em razão do cargo. No entanto, essa inadmissibilidade de julgamento tanto pelo fato originário quanto pelo fato objeto do aditamento não será aplicável nas situações em que o aditamento não implicar substituição dos fatos originários pelos fatos provados no curso da instrução e, supervenientemente, imputados pelo aditamento da denúncia. Isso ocorrerá em duas hipóteses:125 a) no caso de imputação por um crime simples, com posterior aditamento da denúncia, para a inclusão de um elemento especializante, permitindo o surgimento de outro delito. Basta imaginar uma denúncia pela prática do crime de roubo simples, com posterior aditamento para incluir a causa de aumento de pena do emprego de arma. Em tal situação, se o juiz, no momento da sentença, entender que não ficou comprovado o emprego de arma, poderá condenar o acusado pelo crime de roubo simples, porquanto estará realizando apenas uma exclusão parcial do fato, limitando-se a considerar não provados o elemento especializante agregado pelo aditamento; b) no caso de crime complexo: havendo a imputação originária por um crime simples (v.g., furto), com posterior aditamento para somar a tal imputação outro delito (v.g., lesão corporal), de modo a caracterizarum crime complexo (in casu, o roubo), é possível que o juiz, na sentença, condene o acusado somente pela imputação originariamente imputada (no caso, o furto), caso considere que não restou provada a ocorrência de violência para a prática da subtração. 124. BADARÓ, Gustavo Henrique. Correlação entre acusação e sentença. 2a ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 172. 125. BADARÓ. Op. cit. p. 173-174. 1 4 8 8 MANUAL DE PROCESSO PENAL SENTENÇA PENAL 7.2.9. Murano libelli na 2 a instância Quando se pensa no princípio do duplo grau de jurisdição, costuma-se pensar que referido princípio abrange apenas a possibilidade de um reexame integral da decisão do juízo a quo, seja quanto à matéria tática, seja quanto às questões de direito, a ser confiado a órgão jurisdicional diverso do que a proferiu e de hierarquia superior na ordem judiciária. Porém, não se pode perder de vista que o duplo grau de jurisdição também significa que, à exceção das hipóteses de competência originária dos Tribunais, o processo deve ser examinado uma vez no primeiro grau de jurisdição e reexaminado uma segunda vez em sede recursal pelo Tribunal. Em outras palavras, o duplo grau visa a assegurar que as questões fáticas e jurídicas possam ser reexaminadas, isto é, examinadas no primeiro grau e reexaminadas no segundo grau. Portanto, não se pode admitir que o Tribunal faça o exame direto de determinada matéria pela primeira vez, sob pena de supressão do primeiro grau de jurisdição, o que também seria causa de violação ao duplo grau de jurisdição. E exatamente por esse motivo que não se admite a mutatio Libelli na 2a instância. Afinal, fosse possível sua aplicação em segunda instância, haveria supressão do primeiro grau de jurisdição, já que o acusado se veria impossibilitado de se defender quanto à imputação diversa perante o juiz de Ia instância. Logo, se o art. 384 do CPP não foi aplicado no primeiro grau de jurisdição, não poderá haver o aditamento da peça acusatória em sede recursal, nem tampouco poderá o tribunal considerar fatos diversos daqueles constantes da imputação. Há, pois, uma limitação cronológica à mutatio Libelli: não se admite a possibilidade de mudança da imputação em seu aspecto fático após o juiz proferir a sentença. Nesse sentido, o art. 617 do CPP determina que “o tribunal, câmara ou turma atenderá nas suas decisões ao disposto nos arts. 383, 386 e 387, no que for aplicável, não podendo, porém, ser agravada a pena quando somente o réu houver apelado da sentença”. A contrario senso, não pode ser aplicado o art. 384 e parágrafos. Na mesma linha, a súmula n° 453 do Supremo preconiza que “não se aplicam à segunda instância o art. 384 e parágrafo único do Código de Processo Penal, que possibilitam dar nova definição jurídica ao fato delituoso, em virtude de circunstância elementar não contida explícita ou implicitamente na denúncia ou queixa”.12'’ Na medida em que é vedada a mutatio libelli na segunda instância, se, no julgamento de uma apelação, o Tribunal concluir que surgiu no curso da instrução processual prova de elementar ou circunstância não contida na peça acusatória, não tendo sido feito o aditamento, a consequência será a absolvição do acusado. Exemplificando, suponha-se que o acusado tenha sido denunciado e condenado pelo crime de peculato doloso. Porém, em face de recurso exclusivo da defesa, o acusado consegue convencer o Tribunal de que, na verdade, o delito seria culposo. Nesse caso, ao Tribunal não é dado simplesmente desclassificar a imputação para peculato culposo. Com efeito, como não houve o aditamento da denúncia no Io grau de jurisdição para fins de se imputar ao acusado uma conduta imprudente, negligente ou imperita, eventual desclassificação para infração culposa caracterizaria violação ao princípio da correlação entre acusação e sentença, porquanto o acusado se veria condenado por fato delituoso que não lhe foi imputado. Ao Tribunal também não se permite simplesmente anular o processo, determinando o retorno dos autos à Ia instância, sob pena de violação ao princípio da ne reformatio in pejus. Ademais, a própria súmula n° 160 do STF confirma que só é possível o reco- 126 126. No sentido da impossibilidade de realização da mutatio libelli na 2a instância: STJ, 6a Turma, HC 116.077/SP, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 31/05/2011, DJe 15/06/2011. 1 4 8 9 RENATO BRASILEIRO DE LIMA MANUAL DE PROCESSO PENAL nhecimento de nulidade em prejuízo do acusado nas hipóteses de reexame necessário ou quando houver arguição da acusação nesse sentido. Portanto, como não se admite a aplicação do art. 384 no segundo grau, a solução será a absolvição do acusado.12 Como preconiza a súmula n° 453 do STF, não é possível a mutatio libelli na 2a instância. Isso, no entanto, não significa dizer que não seja possível a aplicação do art. 384 do CPP pelos Tribunais. De fato, em sede de competência originária dos Tribunais (v.g., Deputado Federal julgado pelo Supremo), é plenamente possível o surgimento de provas acerca de elementares ou circunstâncias da infração não contidas na imputação originária, hipótese em que também deve ser aplicado o procedimento constante do art. 384 e parágrafos do CPP. Por fim, apesar de não ser possível a realização da mutatio libelli na 2a instância, na hipótese de o juiz deixar de aplicar o procedimento da mutatio libelli em primeiro grau, proferindo sentença sobre fato diverso do constante da peça acusatória, tal decisão será absolutamente nula, haja vista a violação ao princípio da correlação entre acusação e sentença. Nesse caso, é plenamente possível que o Tribunal, em virtude de recurso da acusação pleiteando a anulação da sentença, reconhecendo o error in procedendo do magistrado de Ia instância, anule a decisão impugnada para que, uma vez retornando os autos ao primeiro grau de jurisdição, seja observado o disposto no art. 384 do CPP.127 128 129 Para que essa nulidade decorrente da inobservância do procedimento referente à mutatio libelli seja reconhecida, é indispensável a existência de recurso da acusação devolvendo o conhecimento da matéria ao Tribunal competente. Por isso, em caso concreto no qual o Tribunal de Justiça, acolhendo apelação interposta pela defesa, determinou a baixa dos autos à Ia instância para que fosse observado o disposto no art. 384 do CPP, do que acabou resultando o aditamento à denúncia para fins de inclusão do evento morte, com ulterior condenação do acusado por roubo qualificado pelo resultado morte, concluiu o Supremo haver violação ao princípio da non reformatio inpejus.'29 73. Disposições comuns à emendatio e mutatio libelli 7.3.1. Possibilidade de oferecimento da proposta de transação penal O momento procedimental correto para o oferecimento da proposta de transação penal prevista no art. 76 da Lei n° 9.099/95 é na fase preliminar do procedimento sumaríssimo dos Juizados, ou seja, antes do recebimento da peça acusatória. Discute-se, no entanto, acerca da possibilidade de concessão da transação penal nas hipóteses em que, por força da mudança da capitulação do fato delituoso narrado na peça acusatória — emendatio libelli —, ou na hipótese de aditamento da peça acusatória para fins de inclusão de elementar ou circunstância não contida na peça acusatória — mutatio libelli a nova classificação passar a admitir a concessão desse benefício despenalizador. 127. Em sentido diverso, Feitoza entende que o tribunal a d q u e m pode conhecer, e x o ff ic io , em grau recursal, a nulidade absoluta do processo, por violação ao princípio da correlação entre acusação e sentença, e decretar a ineficácia da sentença devolvendo o processo ao juízo a quo, para que este prolate nova sentença, observando o disposto no art. 384 do CPP, sendo que, na nova sentença, deve ser observado o q u a n tu mde pena fixado na decisão anulada, observando-se o princípio da n o n re fo rm a t io in p e ju s indireta. (FEITOZA, Denilson. D ire ito p ro c e s s u a l p e n a l: teoria , c r ít ic a e p rá x is . 6^ ed., rev., ampl. e atual, com a Reforma Processual Penal. Niterói/RJ: Impetus, 2009. p. 1026). 128. Essa anulação da decisão de l ã instância pelo Tribunal em grau recursal somente será possível se houver expressa impugnação da acusação ou da defesa nesse sentido. Afinal, por força da súmula n? 160 do STF ("é nula a decisão do Tribunal que acolhe, contra o réu, nulidade não arguida no recurso da acusação, ressalvados os casos de recurso de ofício"), doutrina e jurisprudência entendem que o tribunal não pode declarar nulidade não arguida em prejuízo da defesa, salvo nos casos de recurso de ofício. 129. STF, Pleno, HC 92.464/RJ, Rei. Min. Marco Aurélio, j. 18/10/2007, DJe 47 13/03/2008. 1 4 9 0 MANUAL DE PROCESSO PENAL SENTENÇA PENAL A título de exemplo, suponha-se que o Ministério Público ofereça denúncia perante o juízo comum em face de determinado indivíduo pela prática do crime de lesão corporal gravíssima (CP, art. 129, §2°, IV), cuja pena é de reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos. A peça acusatória é, então, regularmente recebida pelo juiz, com a consequente instrução do processo. Ocorre que, por ocasião da prolação da sentença, o magistrado chega à conclusão de que não restara comprovada quaisquer das circunstâncias previstas no §2° do art. 129 - incapacidade permanente para o trabalho, enfermidade incurável, perda ou inutilização de membro, sentido ou função, deformidade permanente e aborto. Diante da inevitável desclassificação para o crime de lesão corporal leve, tido como infração de menor potencial ofensivo, indaga-se: ainda seria cabível o oferecimento da proposta de transação penal? Até bem pouco tempo atrás, era possível encontrar quem sustentasse que, nesse caso, não seria viável o oferecimento da proposta de transação penal, já que, considerando que o objetivo da transação é evitar o processo, referido instituto despenalizador mostrar-se-ia incompatível com o momento da sentença e, com mais razão ainda, por ocasião do julgamento de eventual recurso.130 Com as mudanças produzidas pela reforma processual de 2008, pode-se dizer que tal enten- dimento encontra-se ultrapassado, já que a matéria passou a ser regulamentada expressamente pelos §§1° e 2o do art. 383: “§1° Se, em consequência de definição jurídica diversa, houver possibilidade de proposta de suspensão condicional do processo, o juiz procederá de acordo com o disposto na lei. §2° Tratando-se de infração da competência de outro juízo, a este serão encaminhados os autos”.131 Portanto, utilizando o exemplo acima citado, se, por conta da emendatio libelli, o juiz (ou o Tribunal) concluir que se trata de lesão corporal leve, e, portanto, infração de menor potencial ofensivo, não deve condenar o acusado, mas se limitar a proferir uma decisão interlocutória na qual reconhece sua incompetência, determinando a remessa do feito ao Juizado Especial Criminal. Caso o Ministério Público não concorde com tal decisão, poderá interpor recurso em sentido estrito, já que a remessa dos autos aos Juizados por se tratar de infração de menor potencial ofensivo configura decisão que concluiu pela incompetência do juízo, nos termos do art. 581, II, do CPP. Nos Juizados, deve ser designada audiência para que o Ministério Público ou o querelante for- mulem proposta de transação penal, dando-se ao acusado a oportunidade de aceitar o cumprimento imediato de pena restritiva de direitos ou multa. Não sendo aceita a proposta de transação penal, o feito irá prosseguir perante o Juizado, cabendo ao magistrado proferir a sentença. Compartilhamos do entendimento de que a competência dos Juizados não tem natureza absoluta. Trata-se, na verdade, de competência de natureza relativa, porquanto é a própria Lei n° 9.099/95 que prevê diversas hipóteses em que pode haver a alteração da competência dos Juizados: impossibilidade de citação por edital (art. 66, parágrafo único), conexão e/ou continência com outra infração penal (art. 60, parágrafo único) e complexidade da causa (art. 77, §2°). Enfim, o que real- mente importa não é a tramitação do processo perante o juízo comum ou perante os Juizados, mas sim a concessão dos institutos despenalizadores criados pela Lei n° 9.099/95 (composição civil dos danos, transação penal, representação nos crimes de lesão leve e suspensão condicional do processo). Portanto, a despeito da nova redação do art. 383, §2°, que determina a remessa dos autos ao Juizado diante do reconhecimento da existência de infração de menor potencial ofensivo, pensamos não haver qualquer prejuízo se a negociação quanto à transação penal for feita perante o próprio Juízo 130. Referindo-se à impossibilidade de concessão da suspensão condicional do processo por ocasião da sentença: NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 5a ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 660. 131. De acordo com o art. 384, §39, do CPP, aplicam-se as disposições dos §§19 e 29 do art. 383 às hipóteses de mutatio libelli. 1 4 9 1 RENATO BRASILEIRO DE LIMA MANUAL DE PROCESSO PENAL Comum. Aliás, é inclusive isso que ocorre no âmbito do procedimento do júri, em que, objetivando imprimir maior celeridade ao feito, o art. 492, §1°, do CPP, autoriza que o próprio juiz presidente aplique o disposto nos arts. 69 e seguintes da Lei n° 9.099/95 na hipótese de o Conselho de Sentença desclassificar a imputação de crime doloso contra a vida para infração de menor potencial ofensivo. Para tanto, há, pelo menos em tese, um óbice, a saber, a necessidade de que tenha havido preclusáo da decisão do juiz que reconheceu a emendatio libelli. Então, haveria necessidade de se aguardar o término do prazo para eventual recurso e, somente no caso de sua não interposição, seria oferecida, posteriormente, a proposta de transação penal. No entanto, é possível que o Ministério Público e a defesa renunciem ao direito de recorrer contra tal decisão, com o que irá se operar sua preclusáo, sendo possível a formulação da proposta. De mais a mais, pode ocorrer de, na própria audiência una de instrução e julgamento, o Ministério Público propor a transação penal e a defesa a aceitar, do que decorreria preclusáo lógica do direito de recorrer contra a decisão de desclassificação do juízo singular comum, em razão da prática de ato incompatível com a vontade de recorrer por ambas as partes. 7,3.2, Possibilidade de oferecimento da proposta de suspensão condicional do processo O mesmo raciocínio anteriormente exposto também se aplica à suspensão condicional do processo. Nos casos de desclassificação ou de procedência parcial da pretensão punitiva, se a nova capitulação do fato delituoso disser respeito à infração penal com pena mínima igual ou inferior a 1 (um) ano, afigura-se plenamente possível o oferecimento de proposta de suspensão condicional do processo. A propósito, diz a súmula 337 do STJ que “é cabível a suspensão condicional do processo na desclassificação do crime e na procedência parcial da pretensão punitiva”. De seu turno, o art. 383, §1°, do CPP, prevê que, desclassificado o crime para outro que se amolde aos requisitos previstos no art. 89 da Lei n.° 9.099/1995, deve ser conferida ao Ministério Público a oportunidade de se manifestar acerca do oferecimento do benefício da suspensão condicional do processo.132 Logo, na hipótese de o juiz concluir pela desclassificação da imputação inicial para crime cujo limite mínimo de pena cominada seja igual ou inferior a 1 (um) ano (v.g., roubo para furto simples), abstendo-se de qualquer juízo acerca da condenação ou absolvição do acusado, deve abrir vista ao Parquet para que se manifeste acerca de eventual proposta de suspensãocondicional do processo, nos termos do art. 89 da Lei n° 9.099/95.133 Esta decisão de desclassificação da conduta imputada, com posterior abertura de vista ao MP para que se pronuncie quanto à suspensão condicional do processo, não pode ser tratada como sentença, porquanto, além de não haver aplicação de pena, não acarreta a extinção do feito com ou sem julgamento de mérito. Logo, contra ela não se admite a interposição de apelação.134 Na verdade, se a parte acusadora dissentir da definição jurídica dada pelo juiz, deverá interpor recurso em sentido estrito, visando à restauração da tipificação formulada na peça acusatória, hipó- tese em que se deve aguardar o julgamento da impugnação, haja vista a prejudicialidade da solução dessa questão. De todo modo, o juiz não deve proceder à condenação e à dosimetria da pena antes de dirimida a questão pendente. 132. STJ, 6i Turma, HC 110.822/SP, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 31/05/2011, DJe 15/06/2011. E ainda: STF, l i Turma, RHC 81.925/SP, Rei. Min. Ellen Gracie, DJ 21/02/2003 p. 45. 133. STJ, 6i Turma, REsp 237.625/RJ, Rei. Min. Vicente Leal, DJ 16/09/2002 p. 236. 134. Com esse entendimento: STJ, 63 Turma, HC 125.595/ES, Rei. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 01/10/2009, DJe 19/10/2009. 1 4 9 2 MANUAL DE PROCESSO PENAL SENTENÇA PENAL Se, no entanto, a acusação concordar com a desclassificação formulada pelo juiz, incumbe a ela pronunciar-se acerca da suspensão condicional do processo e, caso não seja viável a providência do art. 89 da Lei dos Juizados, ou sendo a proposta oferecida, porém recusada pelo acusado, devem os autos seguir à conclusão para sentença. Diante da recusa injustificada do Ministério Público em oferecer a proposta de suspensão condicional do processo, não pode o juiz oferecer o benefício de ofício. Incumbe a ele aplicar o art. 28 do CPP, tal como preconizado pelo enunciado da súmula n° 696 do STF: “Reunidos os pressupostos legais permissivos da suspensão condicional do processo, mas se recusando o promotor de justiça a propô-la, o juiz, dissentindo, remeterá a questão ao procurador-geral, aplicando-se por analogia o art. 28 do código de processo penal”. Caso a desclassificação ocorra apenas em grau recursal, no julgamento de eventual apelação, incumbe ao juízo ad quem avaliar a possibilidade de suspensão condicional do processo, baixando os autos à Ia instância para que a proposta de suspensão condicional do processo seja formulada pelo Promotor de Justiça. De seu turno, caso o acusado seja absolvido em relação a uma infração penal que, em concurso de crimes, inviabilizava a proposta de suspensão condicional do processo (súmula 723 do STF), a procedência parcial da pretensão punitiva também não impede a concessão do referido benefício. Com efeito, uma vez desfeita a conexão que gerava o concurso de crimes e o consequente cúmulo de penas (concurso material e concurso formal impróprio) ou exasperação da pena (concurso formal próprio e crime continuado), deve ser aplicada a solução consensual se a pena mínima cominada à infração penal remanescente for igual ou inferior a 1 (um) ano. 7.3.3. Mudança de competência De acordo com o art. 383, §2°, do CPP, tratando-se de infração da competência de outro juízo, a este serão encaminhados os autos. Por força do art. 384, §3°, do CPP, tal regra também se aplica às hipóteses de mutatio libelli. Interpretação isolada desse dispositivo legal pode levar à conclusão (equivocada) de que, havendo mudança da competência no momento da emendatio libelli, deverá, invariavelmente, ocorrer a remessa dos autos ao juízo competente. Na verdade, essa remessa dos autos ao juízo competente só deve ocorrer na hipótese de haver o reconhecimento da incompetência absoluta, já que esta modalidade de competência não admite prorrogações e pode ser reconhecida de ofício pelo juiz a qualquer momento, enquanto não houver o esgotamento de instância. Nessa hipótese, é importante que o juiz se limite a realizar a desclassifi- cação da imputação, sem, contudo, proceder ao juízo de condenação ou de absolvição. Essa decisão deve ter sua fundamentação restrita à tipificação do crime, sem externar qualquer outro juízo de mérito e tampouco pronunciar-se acerca da condenação ou absolvição. Exemplificando, possamos supor que, no curso de processo em trâmite perante a Justiça Estadual referente ao crime de tráfico doméstico de drogas, surja a demonstração da internacionalidade da conduta em relação ao resultado. Ora, uma vez reconhecida essa internacionalidade e, tratando-se de crime previsto em tratado ou convenção internacional, incumbe ao juiz estadual determinar a remessa dos autos à Justiça Federal, nos termos do art. 109, V, da Constituição Federal, já que se trata de competência absoluta estabelecida em razão da matéria, que não pode ser modificada pelo decurso do tempo, nem tampouco pela vontade das partes, sob pena de evidente violação ao princípio do juiz natural. 1 4 9 3 RENATO BRASILEIRO DE LIMA MANUAL DE PROCESSO PENAL Porém, em se tratando de incompetência relativa, convém lembrar que foi introduzido recente- mente no CPP o princípio da identidade física do juiz (CPP, art. 399, §2°, com redação determinada pela Lei n° 11.719/08). Ora, considerando-se que, por força desse princípio, o juiz que presidir a instrução deve proferir sentença, não faz sentido que, depois de concluída toda a instrução do pro- cesso — lembre-se que, em regra, a emendatio libelli é feita no momento da sentença — determine o juiz a remessa dos autos ao juízo competente, pois, se assim o fizesse, este juízo recipiente estaria obrigado a renovar toda a instrução probatória. Destarte, interpretando-se sistematicamente as mudanças produzidas pela Lei n° 11.719/08, pensamos que, por força da emendatio libelli, a remessa dos autos ao juízo competente só poderá ocorrer na hipótese de reconhecimento de incompetência absoluta. Caso se trate de hipótese de incompetência relativa, a qual pode ser modificada pelo decurso do tempo e em face da inércia das partes, haverá a perpetuação da competência do juízo perante o qual o processo já tramitava, observando-se, assim, o princípio da identidade física do juiz (CPP, art. 399, §2°). Se, no entanto, a emendatio libelli for feita antes do início da instrução probatória, e se dela resultar o reconhecimento da incompetência relativa, será possível a remessa dos autos ao juízo competente.135 7.3.4. Mudança da espécie de ação penal A depender das circunstâncias do caso concreto, a emendatio e a mutatio libelli também podem acarretar alteração capaz de produzir mudanças quanto à titularidade da ação penal. Possamos pensar em um exemplo: a denúncia imputou ao acusado a prática do crime de estupro de vulnerável pelo fato de ter mantido conjunção carnal com mulher que, por estar completamente embriagada no momento da cópula vagínica, não tinha o necessário discernimento para a prática do ato sexual (CP, art. 217-A, §1°) - lembre-se que tal delito é crime de ação penal pública incondicionada, ex vi do art. 225, parágrafo único, do CP. Ocorre que, durante a instrução probatória, resta comprovado que a vítima não estava embriagada. Na verdade, o agente teria mantido conjunção carnal com ela após efetivo constrangimento por meio de violência ou grave ameaça (CP, art. 213, caput). Diante do surgimento da elementar violência egrave ameaça não contida na peça acusatória, o Ministério Público faz o aditamento da denúncia, nos termos do art. 384, caput, do CPP. Nesse caso, recebido o aditamento, haverá alteração da espécie de ação penal - de ação penal pública incondicionada para ação penal pública condicionada à representação (CP, art. 225, caput). Em tal hipótese, indaga-se: o que deve ser feito? A nosso ver, são inúmeras as possibilidades, que podem ser sintetizadas nos seguintestermos: a) se o processo tiver se iniciado por denúncia e a nova classificação importar em crime em relação ao qual se deva proceder mediante queixa — por exemplo, desclassificação do crime de dano qualificado contra o patrimônio da União (CP, art. 163, parágrafo único, III), crime de ação penal pública incondicionada, para o delito de dano simples (CP, art. 163, caput), sujeito à ação penal privada (CP, art. 167) - , deve o juiz reconhecer a ilegitimidade ativa do Ministério Público e anular o processo desde o oferecimento da peça acusatória. Nesse caso, é plenamente possível o oferecimento de queixa-crime pelo ofendido ou por seu representante legal, desde que observado o prazo decadencial. Há quem entenda que, mesmo nessa hipótese, o prazo decadencial deve ser contado a partir do conhecimento da autoria. Preferimos entender que, a partir do momento em que a vítima manifestou seu interesse na apuração do fato, requerendo a instauração do inquérito, não há falar em inércia de sua parte e consequente decadência. Na verdade, o direito de queixa só não 135. Com entendimento semelhante: OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 11^ ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009. p. 528. . 1 4 9 4 MANUAL DE PROCESSO PENAL SENTENÇA PENAL foi exercido por conta do ajuizamento da ação penal, originariamente pública incondicionada, por quem se julgava a tanto autorizado. Houve, assim, verdadeiro obstáculo judicial à iniciativa privada. A solução, portanto, é a intimação do ofendido para, querendo, oferecer queixa-crime em relação ao referido fato delituoso, contando-se o prazo decadencial de 6 (seis) meses a partir desse momento;136 b) se o processo tiver se iniciado como espécie de ação penal pública incondicionada e, pos- teriormente, mostrar-se que o crime é de ação penal pública condicionada à representação - exata- mente como no exemplo acima citado, em que houve a mudança da imputação fática de estupro de vulnerável para estupro —, haverá necessidade do implemento da representação. Porém, considerando que não se exige maiores formalismos quanto à representação, pensamos ser plenamente possível que eventual requerimento para a instauração do inquérito policial, ou mesmo um exame de corpo de delito feito no curso das investigações, seja considerado como verdadeira representação, já que denota o interesse da vítima no sentido da persecução penal. c) caso o processo tenha se iniciado por meio de queixa e a nova capitulação indicar que o correto teria sido o oferecimento de denúncia, deve o juiz reconhecer a ilegitimidade ad causam do querelante e anular o processo ab ifiitio, com fundamento no art. 564, II, do CPP. Nesse caso, desde que não tenha havido a prescrição da pretensão punitiva, é plenamente possível ulterior oferecimento de denúncia pelo Ministério Público; d) caso tenha havido o oferecimento de representação do ofendido e a nova definição legal indicar que se trata de crime de ação penal pública incondicionada, deve o juiz determinar o pros- seguimento normal do processo, absolvendo ou condenando o acusado. Nesse caso, não há falar em decadência, nem tampouco em ilegitimidade ativa. O que há, na verdade, é uma representação que, posteriormente, acabou se revelando desnecessária. Todavia, se a nova qualificação indicar que se trata de crime de ação penal privada, a queixa-crime só poderá ser oferecida se ainda não tiver havido o decurso do prazo decadencial; e) caso o processo tenha tido início por meio de queixa-crime, mas a nova capitulação demons- trar que devia ter havido o oferecimento de denúncia, assim como o oferecimento de representação, deve o juiz reconhecer a ilegitimidade ativa do querelante. Todavia, ainda que já tenha transcorrido o lapso temporal de 6 (seis) meses para o exercício do direito de representação, não há falar em decadência. Afinal, se não se exige maiores formalismos quanto à representação, bastando que fique evidenciado o interesse do ofendido no sentido da persecução penal, é evidente que a queixa-crime por ele oferecida anteriormente supre tal exigência, devendo ser tratada como verdadeira representação. 7.4. Emendado e mutatio libelli no processo penal militar No Código de Processo Penal Militar, só há referência expressa à emendatio libelli, porém com duas diferenças fundamentais. De acordo com o art. 437, alínea “a”, do CPPM, o Conselho de Justiça (ou o Juiz de Direito do Juízo Militar) poderá “dar ao fato definição jurídica diversa da que constar na denúncia, ainda que, em consequência, tenha de aplicar pena mais grave, desde que aquela definição haja sido for- mulada pelo Ministério Público em alegações escritas e a outra parte tenha tido a oportunidade de respondê-la”. Quando comparada com a redação do art. 383, caput, do CPP, a leirura do referido dispositivo processual penal militar deixa entrever duas diferenças relevantes: 136. Com entendimento semelhante: OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 11- ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009. p. 534. 1 4 9 5 RENATO BRASILEIRO DE LIMA MANUAL DE PROCESSO PENAL 1) Náo há plena liberdade do magistrado na classificação do fato delituoso, estando o princí- pio iura novit curia limitado, já que o juiz poderá dar ao fato capitulação distinta desde que tenha havido manifestação do órgão do Ministério Público nesse sentido. Ao contrário do que ocorre no CPP, em que a mudança da qualificação jurídica pode ser feita pelo juiz, independentemente de provocação da acusação, no processo penal militar, a alteração da capitulação só poderá ser feita se invocada pelo Ministério Público. Nessa linha, como observa Badaró, “a capitulação inicial do fato, que consta da denúncia, não é, portanto, imutável, podendo ser alterada no curso do processo. Porém, para que se opere a alteração, é necessário que o órgão acusador a invoque. Se o Ministério Público não alegar a nova qualificação, não poderá o juiz proceder à alteração”;137 138 2) Deve ser respeitado o contraditório prévio quanto à nova qualificação jurídica dos fatos imputados: em virtude do art. 437, “a”, do CPPM, é necessário que a defesa tenha conhecimento e possibilidade de se manifestar sobre a nova classificação do fato delituoso. Como se percebe, no âmbito processual penal militar, nenhuma das partes será surpreendida com a nova definição jurí- dica do fato delituoso, já que o contraditório deve ser observado tanto em relação à matéria fãtica quanto às questões de direito. Em que pese ser esse o entendimento doutrinário, convém destacar que o Superior Tribunal Militar tem posicionamento diverso. A propósito, veja-se o conteúdo da súmula n° 5 do STM: “A desclassificação de crime capitulado na denúncia pode ser operada pelo Tribunal ou pelos Conselhos de Justiça, mesmo sem manifestação, neste sentido, do Ministério Público Militar nas alegações finais, desde quando importe em benefício para o réu e conste da matéria fática”. Como se percebe, segundo entendimento do STM , na falta de manifestação do Ministério Público, está vedada a emendatio libelli in pejusP8 Como dito anteriormente, o CPPM cuida expressamente apenas da emendatio libelli. Não há dispositivo legal expresso tratando da mutatio libelli. Diante desse silêncio, é plenamente possível a aplicação subsidiária do art. 384 e parágrafos do CPP, nos termos do art. 3o, alínea “a”, do CPPM, que prevê que os casos omissos do CPPM sejam supridos pela legislação de processo penal comum, quando aplicável ao caso concreto e sem prejuízo da índole do processo penal militar. 137. BADARÓ, Gustavo Henrique. Correlação entre acusação e sentença. 2a ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 204. Na mesma linha: LOBÃO, Célio. Direito processual penal militar. Rio de Janeiro: Forense. 2009. p 470. 138. Há precedente antigo do Supremo entendendo que a observância do art. 437, alínea"a", do CPPM, limita-se à hipótese em que a inovação da classificação do crime venha a agravar a situação do acusado: STF, 2a Turma, HC 61.448/ES, Rei. Min. Djaci Falcão, j. 10/02/1984, DJ 16/03/1984. Todavia, posteriormente, o próprio Supremo manifestou-se quanto ao art. 437 do CPPM no sentido de se tratar de dispositivo mais rigoroso se comparado com a lei processual comum, já que exige que a proposta de nova definição jurídica do fato descrito na denuncia seja expressamente formulada pelo Ministério Público nas alegações finais: STF, I a Turma, HC 71.023/PA, Rei. Min. Sepúlveda Pertence, j. 15/03/1994, DJ 06/05/1994. 1 4 9 6