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CONVERSAS COM O REFORM ADOR
-------- U M A B I O G R A F I A --------
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V i / H O —
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ELBEN M. LENZ CÉSAR
/ c í t f u • /
C sdviW H O —
ultimato< è
V I Ç O S A I M G
SOU EU, CALVINO
Categoria: Biografia / Igreja / Teologia
Copyright © 2014, Elben M. Lenz César
Primeira edição: Setembro de 2014 
Coordenação editorial: Bernadete Ribeiro 
Revisão: Natália Superbi
Délnia M . C. Bastos 
Diagram ação: Bruno Menezes 
Capa: Rick Szuecs
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câm ara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
César, Elben M. Lenz
Sou eu, Calvino / Elben M. Lenz César. — Viçosa, M G: Editora Ultimato, 2014.
ISBN 978-85-7779-113-2
1. Calvinismo 2. Calvino, João, 1509-1564 3. Protestantismo 4. Reforma I. Título. 
14-08460 ___________ '_________________________________ CDD^284.2
índices para catálogo sistemático:
1. Calvinismo : Teologia: Cristianismo 284.2
PUBLICADO NO BRASIL COM AUTORIZAÇÃO E COM TODOS OS DIREITOS RESERVADOS
E D IT O R A U L T IM A T O LTD A 
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365 7 0 -0 0 0 V içosa , M G 
T e le fo n e : 31 3 6 1 1 -8 500 
Fax: 31 3 89 1 -1 557 
www.ultimato.com.br
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A marca FSC 6 a garantia de que a madeira utilizada na 
fabricação do papel deste livro provém de florestas que 
foram gerenciadas dc maneira ambientalmentc correta, 
socialmente justa e economicamente viável, alem de 
outros fontes de origem controlada.
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j i Judâ e Jlna, os dois primeiros ôisnetos meus e de Ejanira, 
com o desejo de que, peCa influência do Espírito Santo e na 
hora certa, ahracem os “três somentes” da (Reforma: o soía 
Scriptura, o soía gratia e o soía fi.de.
* st st
O verdadeiro discípulo de CaCvino só tem um caminho 
a seguir não obedecer ao próprio CaCvino, mas àquele que era
mestre de CaCvino.
Kjirí(Bartíi (1886-1968)
SUMARIO
Prólogo 9
Prefácio 13
Apresentação 15
1. A súbita conversão de um licenciado em leis 19
2 . Genebra: luz após trevas 25
3 . O livro transformado em catecismo 33
4. 0 voo que não se realizou 39
5. A igreja de Genebra 45
6. Luxo, extravagância e consumismo 51
7. O doutor que não tinha mais fé do que um porco 59
8. Livro por iivro, capítulo por capítulo, verso por verso 65
9 . Dependendo do espelho o ser humano
se vê feio demais 73
10. O absolutamente santo e
o absolutamente pecador 85
11. A Europa pega fogo mais peia palavra escrita
do que pela palavra falada 91
12. A eleição requer evangelização 97
13. O francês Jacques Lefèvre redescobre o
sola gratia antes de Lutero 105
14. A igreja de Genebra na França Antártica 111
15. 0 humanismo e a peste negra 121
16. O nobilíssimo e cristianíssimo protetor
da Inglaterra e Irlanda 127
17.0 Diabo vira tudo de cabeça para baixo 133
18. O cristão não deve correr da fogueira
nem correr para a fogueira 141
Última página 147
ANEXOS
De pai para filho 151
0 que se diz de Calvino 157
0 que se diz de A s Institutas 161
Genebra no mapa . 163
Cidades da França e da Suíça onde Calvino viveu 165 
Cronologia de Calvino e eventos paralelos 166
Bibliografia 
índice onomástico
169
173
PRÓLOGO
SOU EU, CALVINO!
Q U A N D O EU ERA BEM PEQUENO, meu pai me destinou 
aos estudos de teologia. Mais tarde, porém, ao ponderar que a 
profissão jurídica comumente promovia aqueles que saíam em 
busca de riquezas, essa visão o induziu a subitamente mudar seu 
propósito. E assim aconteceu de eu ser afastado dos estudos de 
filosofia e encaminhado aos estudos de jurisprudência. A essa 
atividade me diligenciei a aplicar-me com toda fidelidade, em 
obediência ao meu pai. Mas Deus, pela secreta orientação de 
sua providência, por um ato súbito de conversão, subjugou e 
trouxe minha mente a uma disposição suscetível. Tendo assim 
recebido alguma experiência e conhecimento da verdadeira 
piedade, imediatamente me senti inflamado de um desejo tão 
intenso de progredir nesse novo caminho que, embora não 
tivesse abandonado totalmente os outros estudos, me ocupei 
deles com menos ardor.
10 • SOU EU.CALVINO
Fiquei totalmente aturdido ao descobrir que, antes de haver-se 
esvaído um ano, todos quantos nutriam algum desejo por 
uma doutrina mais pura vinham constantemente a mim com 
o intuito de aprender, embora eu mesmo não passasse ainda 
de mero neófito e principiante.
Possuidor de uma disposição um tanto rude e tímida, passei, 
então, a buscar algum canto isolado onde pudesse furtar-me da 
opinião pública. Em suma, enquanto meu único e grande obje­
tivo era viver em reclusão, sem ser conhecido, Deus me guiava 
através de crises e mudanças, de modo a jamais me permitir 
descansar em lugar algum, até que, a despeito de minha natural 
disposição, me transformasse em atenção pública. Deixando 
meu país natal, a França, de fato me refugiei na Alemanha, 
com o expresso propósito de poder ali desfrutar em algum 
canto obscuro o repouso que eu havia sempre desejado, o qual 
me fora sempre negado.
Mas qual! Enquanto me escondia em Basiléia, conhecido 
apenas de umas poucas pessoas, muitos fiéis e santos eram 
queimados na França. E a notícia dessas mortes em fogueira, 
tendo alcançado as nações distantes, incitavam a mais forte 
desaprovação entre uma boa parte dos alemães, cuja indignação 
acendeu-se contra os autores de tal tirania. A fim de conter 
tal indignação, fizeram-se circular certos panfletos ímpios e 
mentirosos, declarando que ninguém era tratado com tal cruel­
dade, exceto os anabatistas e pessoas seciiciosas, que, por seus 
perversos desvarios e falsas opiniões, estavam transtornando 
não só a religião, mas ainda toda a ordem civil.
Frente a tudo isso, pareceu-me que, a menos que eu lhes 
fizesse oposição, usando o máximo de minha habilidade, meu 
silêncio não poderia ser justificado ante a acusação de covardia 
e traição.
Essa foi a consideração que me induziu a publicar minhas 
lnstitutas da Religião Cristã (1536). Meu objetivo era, antes de 
tudo, provar que tais notícias eram falsas e caluniosas, e assim
PRÓLOGO •
defender meus irmãos, cuja morte era preciosa aos olhos do 
Senhor. Como essas mesmas crueldades poderíam muito em 
breve ser praticadas contra muitas pessoas infelizes e indefesas, 
eu alimentava a esperança de sensibilizar nações estrangeiras 
para que elas tivessem um mínimo de compaixão e solicitude 
pelas próximas vítimas. Ao serem publicadas, As Institutas não 
eram essa obra ampla e bem trabalhada de agora; na verdacie, 
não passavam de um pequeno tratado contendo o sumário das 
primeiras verdades da religião cristã.
Tenho labutado fielmente para abrir o tesouro das Sagradas 
Escrituras a todo o povo de Deus. Embora o que tenho feito 
não corresponda aos meus desejos, a tentativa que empreendí 
merece ser recebida com certa medida de simpatia. Quando 
alguém ler os meus escritos, verá claramente que não busquei 
ser agradável, a menos que eles, ao mesmo tempo, sejam pro­
veitosos a outrem.
JOÃO CALV1NO •
GENEBRA, 22 DE JULHO DE 1557
(P a l a v r a s d e j o à o C a l v i n o . r e t i r a d a s d e s u a d e d i c a t ó r i a d o COMENTÁRIO 
DO LIVRO DOS SALMOS.)
PREFÁCIO
É MUITO DIFÍCIL escrever sobre joão Calvino. Pelo 
menos por três motivos: o grande volume de obras que ele 
produziu, a complexidade e amplitude de seu pensamento e o 
grande contingente de escritores que têm discorrido sobre ele. 
Tenho tido uma vasta experiência provenienteda longa vivência 
com este misterioso personagem. Q uanto mais vivo com ele, 
mais me sinto perplexo ante o fato de que ele viveu tão pouco 
e exerceu, num a época de poucos recursos tecnológicos, um 
imenso ministério literário, social, administrativo, pedagógico 
e, particularmente, teológico.
Tudo o que tenho escrito, lido e traduzido sobre Calvino me 
faz sentir como um nadador em alto-mar-, quanto mais nada, 
mais distante se sente da praia; parece que nunca chega. Digo 
isto porque, ao ler os originais de Sou Eu, Calvino, de Elben M. 
Lenz César, as informações recebidas foram tantas, e com tanta
14 • SOU EU. CALVINO
exatidão, que era como se eu nunca houvesse lido nada sobre 
o que João Calvino escreveu. Se eu estivesse me programando 
escrever um livro sobre ele, certamente desistiría da façanha 
depois de acompanhar o autor deste livro em sua tão minuciosa 
e bela apresentação do grande reformador genebrino na forma 
de diálogo.
Nestes últimos anos, parece que as mentes cristãs do uni­
verso literário voltaram-se para João Calvino. Poucos livros 
foram escritos sobre ele até a última década do século passado. 
Já li quase tudo o que foi escrito sobre ele no vernáculo, mas 
sinceramente dou boas-vindas ao livro que ora prefacio, dando 
graças ao Senhor da Igreja pela vida e ministério de Elben César. 
Que o leitor tire a limpo pessoalmente, lendo com reflexão e 
oração, estas páginas que certamente irão fasciná-lo. Eis um 
livro digno de ser lido e relido por todos!
VALTERGRAC1ANO MARTINS 
GOIÂNIA, 10 DE JUNHO DE 2014
APRESENTAÇÃO
UMA IGREJA REFORMADA 
TEM DE SER CONSTANTEMENTE 
REFORMADA
O FRA N CÊS JO ÃO CALVIN O merece mais uma biografia. 
Ele tem sido apreciado por muitos desde o seu tempo - meados 
do século 16 - até hoje. É um reconhecimento atrás do outro. 
Alguns chegam perto do exagero.
Theodoro de Beza (1519-1605), seu substituto no púlpito da 
Catedral Saint Pierre, em Genebra, escreve: “No dia da morte 
de Calvino, no mesmo instante o sol se pôs e o maior luzeiro 
que houve neste mundo para a direção da igreja foi recebido 
no céu. E podemos afirmar com acerto que em um só homem 
aprouve a Deus, em nosso tempo, ensinar-nos a maneira do 
bom viver e do bom morrer”.
No século seguinte, Montesquieu (1689-1755), escritor 
francês que lançou as bases das ciências sociais e econômicas, 
afirma que “os genebrinos deveríam tornar bendito o dia em 
que Calvino nasceu”.
16 • SOU EU, CALVINO
No século 19, o também francês EmestRenan (1823-1892), 
cientista da religião, declara que Calvino saiu vitorioso “sim­
plesmente por ser o maior cristão de seu século”. E o famoso 
pregador inglês Charles H. Spurgeon (1834-1892) chega a dizer 
que Calvino “era, de longe, o maior dos reformadores no que 
diz respeito aos talentos que possuía, à influência que exercia 
e ao serviço que prestou para o estabelecimento e difusão da 
importante verdade!”.
No século 20, Karl Barth (1886-1968), ilustre teólogo suíço 
que morreu quatrocentos anos depois de Calvino, confidencia: 
“Eu poderia, feliz e proveitosamente, assentar-me e passar o 
restante de minha vida somente com Calvino”.
E agora, no início do século 21, Alister McGrath, professor 
da Universidade de Oxford, diz que Calvino “provou ser uma 
figura de extrema influência na história da Europa, mudando 
a perspectiva de indivíduos e instituições, no início da era mo­
derna, à medida que a civilização ocidental começou a assumir 
sua forma característica”.
O que tem tornado Calvino uma pessoa respeitada 
nestes 450 anos entre a sua morte (1564) e os dias de hoje 
são As Institutos, seu maior legado, o livro mais lido durante o 
século 16, segundo Daniel-Rops. Além das três traduções de As 
Institutos em português publicadas por editoras evangélicas - Luz 
para o Caminho e Editora Cultura Cristã -, temos uma quar­
ta, lançada em 2007 pela Editora Unesp. Segundo o professor 
Ricardo Quadros Gouvêa, “em importância, influência e qua­
lidade, As Institutos não possuem rival na história da teologia. 
Elas poderiam ser comparadas, talvez, à Cidade de Deus, de 
Agostinho, ou à Surraria, de Tomás de Aquino, possivelmente 
à Dogmática Eclesiástica, de Karl Barth. Entretanto, a todas es­
sas obras a obra-prima de Calvino supera. As Institutas são um 
livro que fornece não apenas o melhor compêndio de teologia 
cristã jamais escrito, mas também a base de uma cosmovisão
APRESENTAÇÃO • 17
cristã cuja abrangência e consistência são sem igual na história 
da fé cristã”.
Apesar de toda a importância dada à vida e à obra de Calvino, 
se Guilherme Farei, Pierre Viret e Theodoro de Beza, seus 
companheiros e admiradores mais próximos, se ajoelhassem 
diante dele, o reformador reagiría bruscamente como o anjo 
do Apocalipse fez com o apóstolo João: “Não faça isso! Pois 
eu sou servo de Deus, assim como são você e seus irmãos que 
continuam fiéis à verdade revelada por Jesus” (Ap 19.10). Ou 
como Paulo e Barnabé fizeram com a multidão de Listra: “Ami­
gos, por que vocês estão fazendo isso? Nós somos apenas seres 
humanos como vocês” (At 14.15). Mesmo correspondendo-se 
com reis e rainhas e outras autoridades, Calvino nunca perdeu 
a noção de que, diante de Deus, ele e os outros eram iguais, 
todos formados do barro (Jó 33.6). João Calvino era de carne 
e osso, e não anjo alado, simples homem e não super-homem. 
Quando morreu, seu corpo foi envolto num lençol, posto num 
ataúde de madeira e sepultado sem pompa nem aparato numa 
cova não identificada.
Nestas páginas, coloco na boca de Calvino palavras que ele 
mesmo escreveu em seus muitos livros e palavras que fazem jus 
ao seu pensamento. Optei por não fazer uso das aspas para sepa­
rar umas das outras por causa do estilo de perguntas e respostas.
Meu maior trabalho foi formular as perguntas e não as respos­
tas. As fontes destas são muitas, como As Institutos, A Providência 
Secreta de Deus, O Catecismo de Genebra, Carta ao Cardeal Sadoleto 
e, principalmente, Cartas de João Calvino e os comentários de 
Calvino de quase todos os livros da Bíblia, desde o da Carta de 
Paulo aos Romanos até o do livro do profeta Ezequiel.
Assumo uma dívida com alguns dos muitos biógrafos de 
Calvino. Em alguns casos, o que eles escreveram, coloco na boca 
de Calvino quase ipsis litteris, sem usar aspas nem citar os nomes 
dos autores. Entre eles menciono três: Alister McGrath (A Vida
18 • SOU EU. CALVINO
de João Calvino), Ronald Wallace (Calvino, Genebra e Reforma) 
e Hermisten Maia Pereira da Costa (João Calvino - 500 anos).
Convidei Valter Graciano Martins para escrever o prefácio 
deste livro porque ele é a pessoa que mais tem divulgado Calvino 
no Brasil, não só por meio de palestras em vários lugares, mas, 
principalmente, por ser o tradutor perseverante e apaixonado de 
quase todos os comentários bíblicos e outros livros de João Calvino, 
publicados nos últimos vinte anos pelas Edições Parakletos, por 
ele fundada, e pela Editora Fiel (a maior parte das traduções).
Porque João Calvino escreve seu primeiro livro - De Clementia - 
aos 23 anos, tem uma experiência de “conversão súbita” antes 
dos 26, publica a primeira edição de As Institutos aos 27 e inicia 
seu ministério em Genebra antes de completar 28 anos - tive 
uma enorme vontade de dedicar este livro sobre o notável re­
formador francês aos jovens da Aliança Bíblica Universitária, 
da Mocidade Para Cristo, da Cruzada Estudantil para Cristo e 
da Jornada Mundial da Juventude. Contudo, para não limitar 
o alcance da obra, abri mão desse intento. Além do mais, pro­
testantes e católicos sabem que a igreja está precisando de fato 
de uma reforma. Aliás, uma das heranças da Reforma do Século 
16 é a famosa declaração de Lutero “Ecclesia reformata semper 
reformanda” (a igreja reformada tem de ser constantemente refor­
mada). Tive a ousadia de colocar na pena de Calvinoo que eu 
entendo por reforma no capítulo onze: “A reforma mexe com 
as estruturas, com os dogmas, com a liturgia, com as tradições, 
com a moralização, com a pregação, com os princípios e com a 
história e a vocação da igreja. É algo operado por Deus mesmo 
de modo soberano e eficaz”.
ELBEN M. LENZ CÉSAR 
VIÇOSA (MG), 27 DE MAIO DE 2014
(DIA DO 450° AN IVERSÁRIO DA MORTE DE CALVINO)
1
A SÚBITA CONVERSÃO 
DE UM LICENCIADO EM LEIS
Toi com muita má vontade e muita dificuídade 
que eu me identifiquei com a (Reforma
A O senhor escreve cartas para pessoas nobres de seu país e de 
outros países, conversa e prega para elas com naturalidade, sem 
o menor constrangimento. De onde vem essa habilidade, já que 
sua família é modesta?
Embora minha mãe tenha vindo de uma família abastada, meu 
pai de fato era de origem modesta. Porém, meu pai, por ser 
secretário do bispo de Noyon e procurador fiscal do município, 
tinha muito boas relações com as famílias nobres. Graças a isso 
e à providência de Deus, tive o privilégio de receber a mesma 
educação que os nobres davam aos seus filhos, por bondade 
deles. Tanto em Noyon como em Paris fui colega dessas crianças 
privilegiadas. Foi nesse período que adquiri minha primeira 
educação e modos refinados para posteriormente transitar 
em todos os meios sociais com polidez, o que tem colaborado 
muito com o meu ministério. Essa solidariedade me ajudou
• SOU EU, CALVINO
também a lidar com a morte prematura de minha mãe, quando 
eu tinha seis anos apenas, um irmão mais velho e três irmãos 
menores. Fiz questão de dedicar a Claude de Hangest, um dos 
meus amigos de infância, o meu primeiro livro, um comentário 
sobre Sêneca, escrito quando eu tinha 23 anos. Na dedicatória 
mostrei minha gratidão à família: “Devo a você tudo o que sou 
e tudo o que tenho, pois desde bem cedo, ainda menino, fui 
educado em sua casa e iniciado em meus estudos junto com 
você. Estou endividado com sua mui nobre família por meu 
primeiro aprendizado na vida e nas letras”.
Á 0 senhor nasceu em Noyon?
Nasci em Noyon, no dia 10 de julho de 1509. E a cidade da 
famosa catedral Notre-Dame (não a Notre-Dame de Paris nem a 
de Reims nem a de Amiens), construída há mais de três séculos. 
Sou francês e não suíço, como alguns pensam.
á Suponho que em Paris o senhor tenha estudado na Sorbonne, 
a famosa e tricentenária escola de teologia.
Não. Depois de passar alguns meses no Collège de La Marche 
estudando humanidades e latim com o grande humanista 
Mathurin Cordier, matriculei-me no Collège de Montaigu 
(Morro Agudo), uma escola menos requintada, mas pela qual 
passaram Erasmo de Roterdã e François Rabelais, meu contro­
vertido patrício, autor da sátira Gargântua e Pantagruel. Passei 
muito aperto nessa escola. A comida e as instalações eram 
péssimas. Erasmo tinha razão: era um colégio infestado de 
piolhos. Ficava no labirinto de ruelas estreitas e sujas (o mau 
cheiro era enorme), onde havia faculdades, mosteiros, igrejas, 
capelas, hotéis, livrarias e até bordéis. O número de alunos era 
muito grande - talvez mais de 4 mil (na época Paris devia ter 
300 mil habitantes). A disciplina era muito rígida e estudávamos
A SÚBITA CONVERSÃO DE UM LICENCIADO EM LEIS • 21
muito - na verdade antes, durante e depois das refeições. Por 
um ano, fui colega de um espanhol chamado Inácio de Loyola, 
dezoito anos mais velho. Ele tinha uma história muito bonita: 
antes de vir a Montaigu em 1528, passou quase um ano inteiro 
orando e jejuando numa caverna perto de Manresa, onde passou 
por experiências misticas. O que o levou a achegar-se a Deus 
foi a leitura de um livro sobre a história de Jesus quando estava 
se recuperando de graves ferimentos recebidos numa guerra 
com os franceses em Pamplona em 1521. Foi nesse colégio que 
concluí minha licenciatura em artes.
á Em Montaigu, o senhor poderia continuar os estudos e optar por 
teologia, direito, medicina e humanidades. Qual delas escolheu?
Seria um bom lugar para cursar teologia. Nos 25 primeiros anos 
de nosso século, 25,4% dos estudantes de teologia que não 
pertenciam às ordens religiosas receberam seu treinamento em 
humanidades nessa universidade. Mas, por influência de meu 
pai, que morreu pouco depois, fui estudar jurisprudência em 
Orléans, ao sul de Paris, uma região de castelos ao longo do rio 
Loire. Essa cidade é muito conhecida por causa de Joana d’Arc, 
uma mocinha de 17 anos que, em nome de Deus, à semelhança 
de Davi ao enfrentar o gigante Golias, derrotou os ingleses que 
a cercavam. Justamente naquele ano (1529), comemorávamos 
os 100 anos da vitória de Joana d’Arc, em 1429. Orléans é 
uma cidade bem menos agitada que Paris e na época tinha 
apenas uma faculdade, a de direito civil (não canônico). Tive o 
privilégio de estudar com Pierre de L’Estoile, conhecido como 
“o príncipe dos advogados franceses”. Para beber não as águas 
estagnadas, mas as águas frescas dos clássicos e das Escrituras, 
aproveitei a oportunidade para estudar grego por conta própria, 
sob a supervisão de um amigo chamado Melchior Wolmar. No 
início de 1531 graduei-me, sem muito entusiasmo, em direito, 
mesmo sem completar o curso. A minha verdadeira vocação
22 • SOU EU, CALVINO
era outra. Mas o tempo que passei em Orléans me fez amar 
a literatura. Lá mesmo comecei a escrever De Clementia, um 
comentário sobre a obra de Sêneca. O livro foi publicado às 
minhas custas em Paris em 1532. Porém não teve a saída que 
esperava, o que me obrigou a pedir algum dinheiro empresta­
do a alguns amigos. Talvez houvesse alguma dose de vaidade 
tanto no estudo do grego como no preparo do livro. Rabelais 
dizia que “quem não sabe grego não pode considerar-se sábio”. 
Estudei também hebraico por conta própria. Hoje vejo a mão 
de Deus em tudo isso. Sem o conhecimento do grego e do 
hebraico - línguas originais das Escrituras eu não poderia 
ter escrito o comentário de muitos livros da Bíblia. De Orléans 
voltei para Paris.
Á O que acontecia em Paris?
Cheguei a Paris em abril de 1531. Dois anos depois, o evangélico 
Gérard Roussel começou a atrair multidões com suas pregações 
durante a quaresma (1533). O impacto foi tão grande que a 
faculdade de teologia ordenou que seis de seus membros pre­
gassem contra “os erros e a perversa doutrina dos luteranos”. 
Mas não ficou só nisso. A mesma faculdade, autorizada pelo 
vigário de Paris, deu início a uma perseguição por heresia contra 
Roussel, que tinha a cobertura de Marguerite d’Angoulême, du­
quesa de Alençon e rainha de Navarra. Dizia-se que Marguerite, 
que estava grávida, tinha enlouquecido ao ler a Bíblia. Outros 
pregadores começaram a imitar o estilo e as idéias de Roussel. 
O caldo estava quase derramando. Os simpáticos à Reforma 
de Lutero queriam a princípio uma reforma interna. Mas o 
conservadorismo mantinha as portas fechadas. Para aumentar 
a tensão de um lado e de outro, o discurso de abertura do novo 
ano acadêmico da Universidade de Paris, no dia Io de novembro 
de 1533, feito por Nicolas Cop, recém-eleito reitor, foi sobre a 
necessidade de reforma e renovação dentro da Igreja. Embora
A SÚBITA CONVERSÃO DE UM LICENCIADO EM LEIS • 23
o orador tenha sido modesto em suas propostas, o discurso 
foi considerado ofensivo e radical por aqueles que o ouviram. 
No dia 19 de novembro, Cop foi substituído no cargo e pouco 
depois foi parar em Basiléia, em busca de refúgio.
A Foi nessa época que o senhor teve a sua experiência de con­
versão?
Na década de 1520, em toda a Europa ninguém nascia pro­
testante. Afinal o grito nascente da Reforma era recentíssimo 
(31 de outubro de 1517) e acontecera em outro país. Deixe-me 
ser o mais claro possivel. A conversão aconteceu mesmo e foi 
tremendamente marcante. Mas não foi como a conversão da 
mulher pecadora nem como a do ladrão na cruz. Não me con­
vertí do mundanismo para Cristo.Graças ao bom Deus, graças 
ao temor do Senhor e graças à herança religiosa, sou pecador, 
mas nunca fui um pecador de sarjeta, como o filho pródigo. 
Minha conversão foi do romanismo para o protestantismo, 
do humanismo para o cristianismo, da superstição para a fé 
evangélica, do tradicionalismo escolástico para a simplicidade 
bíblica. A Bíblia que recebi de presente de um dos meus fami­
liares me arrebatou do catolicismo. Não foi uma mudança fácil. 
Em carta ao cardeal Saduleto, escrita quando eu tinha 30 anos, 
não escondi essa dificuldade: “Contrariado com a novidade, eu 
ouvia com muita má vontade e, no início, confesso, resisti com 
energia e irritação. Foi com a maior dificuldade que fui induzido 
a confessar que por toda a minha vida eu estava na ignorância 
e no erro”. Muitas vezes conversão nada mais é do que romper 
com o passado. Ela não é meramente uma experiência religiosa 
privada e interna, porém abrange uma mudança exterior, visível 
e radical da lealdade institucional. Antes de minha conversão eu 
me achava obstinadamente devotado às superstições do papado 
de tal modo que não conseguia desvencilhar-me com facilidade 
de tão profundo abismo de lama. Deus, por um ato súbito de
24 • SOU EU, CALVINO
conversão, subjugou e trouxe minha mente a uma disposição 
suscetível. Com esse toque soberano e misericordioso, me senti 
inflamado de um desejo tão intenso de progredir que, embora 
não tenha abandonado totalmente os outros estudos, me ocu­
pei deles com menos ardor. No prefácio de meu Comentário aos 
Salmos, eu conto essa experiência tão notável quanto inesperada 
e imprevisível, acontecida na metade exata de minha existência! 
Por um pequeno período de tempo, tentei ser um reformado 
por dentro sem tirar a máscara católica.
^ Quando tirou a máscara, o senhor começou a sofrer persegui­
ção?
Em outubro de 1534, fui obrigado a deixar Paris e perambulei 
por Angoulême e Poitiers, na França. Depois, passei algum 
tempo na Itália e em Estrasburgo. Finalmente, em janeiro de 
1535, fui parar em Basiléia, conhecida como um centro de le­
tras e um lugar seguro p$ra aqueles que eram simpatizantes da 
causa evangélica ou já participantes dela, como era o meu caso. 
Por ser uma cidade de língua alemã e por eu não falar a língua 
de Lutero, meus contatos eram com os que falavam francês ou 
latim, entre os quais nomeio dois dos meus melhores amigos, 
Guilherme Farei e Pierre Viret. Erasmo de Roterdã ainda era 
vivo, morava na cidade e morrería no ano seguinte, aos 70 anos, 
a idade limite citada no Salmo 90.
2
GENEBRA:
LUZ APÓS TREVAS
Movido peCafuíminante imprecação de <Fare(, 
pareceu-me que a mão de <Deus me trazia para Çeneôra
Á Há quantos anos o senhor mora em Genebra?
Moro aqui desde setembro de 1541. Agora, no final de 1563, 
estou completando 22 anos de Genebra. Porém, se incluir o 
pequeno período do verão de 1536 a abril de 1538 que passei 
na cidade, seriam 24 anos. Para ser honesto, não posso dizer que 
estou aqui por acaso, ou porque Farei me obrigou a mudar-me 
para cá, na primeira vez, ou porque o Pequeno Conselho de 
Genebra me obrigou a voltar, na segunda vez. Tenho certeza que foi 
o Senhor da Seara quem me trouxe para essa cidade, que aprendi 
a amar intensamente. Eu tinha 27 anos quando meu irmão e eu, 
a caminho de Estrasburgo, tivemos de pernoitar em Genebra.
^ O senhor está dizendo que Farei o obrigou a mudar-se para 
Genebra. Como assim?
Eu estava só de passagem por Genebra. Era o verão de 1536. Não 
sei como, Farei soube disso e veio ao meu encontro. Ele não me
26 • SOU EU, CALVINO
pediu para ficar nem me convidou delicadamente a associar-me 
a ele em seu ministério na cidade. Ele apenas me ameaçou. Se 
eu não me mudasse para Genebra, Deus amaldiçoaria os meus 
estudos. Farei tinha quase o dobro da minha idade e me meteu 
medo. Movido mais por essa fulminante imprecação, pareceu-me 
que dos céus a mão divina estava me aprisionando para sempre 
na cidade do lago. Em janeiro de 1537, pus as mãos no arado.
á Genebra é uma cidade bonita?
Poucas cidades têm uma localização tão bela como Genebra. 
Estamos à margem de um lago de águas azuis chamado Léman 
e rodeados de montanhas, que, no inverno, ficam cobertas de 
neve. É uma cidade muito antiga, visitada por Júlio César cin­
quenta anos antes de Cristo. Nos últimos dez anos, a população 
subiu de 13.100 para 21.400 habitantes, por ela ter se tornado 
uma das cidades de refúgio da Europa. Vários estrangeiros, 
principalmente franceses, moram em Genebra para escapar à 
perseguição religiosa. Não falamos nem alemão nem italiano, 
o que acontece em outras partes da Suíça. Nossa língua oficial 
é o francês. Somos uma cidade-estado e não pertencemos aos 
cantões de Berna nem Friburgo. Por ser uma das encruzilhadas 
da Europa, muita gente passa por Genebra. Até a primeira 
metade do século passado notáveis feiras internacionais eram 
realizadas aqui. Quase 70% da população é formada de artesãos.
^ Quando Genebra se tornou protestante?
Sob o ponto de vista histórico e jurídico, foi no dia 27 de agosto 
de 1535, logo após um debate público entre católicos e protestantes 
do qual os reformados saíram vitoriosos. Desde então a missa 
não é mais celebrada. Um dos mosteiros foi transformado numa 
escola primária, com matrícula obrigatória para crianças. Outro 
foi transformado em hospital. Padres, monges e freiras não
GENEBRA: LUZ APÓS TREVAS • 27
foram expulsos da cidade. A maior parte foi embora por decisão 
própria. A reforma de Genebra, em certo sentido, começou com 
o pé direito, pois reconheceu a liberdade de culto e as dimensões 
sociais do evangelho. Porém, em outro sentido, começou da 
estaca zero, pois houve mudança de rótulo e não mudança de 
vida. Farei e outros tiveram de enfrentar o tremendo desafio 
de pregar o evangelho e o novo estilo de vida a uma multidão 
de protestantes até então só de nome. Foi por causa disso que, 
um ano depois, ele me procurou na estalagem em que eu estava 
hospedado e me constrangeu a permanecer em Genebra.
Á 0 que levou o povo a votar a favor da Reforma na tal assembléia 
pública?
Para chegar a esse ponto da história nada foi fácil nem tão 
rápido. Eu tinha 23 anos e concluía o curso de direito em 
Orléans, na França, quando Guilherme Farei e Antoine Froment 
começaram seu ministério em Genebra (outubro de 1532). 
Os dois tinham uma audácia fora do comum e eram muito 
espertos. Numa ocasião, estando em Roma, Farei subiu ao 
púlpito de uma igreja e gritou mais alto do que o padre que 
estava entoando a missa. Noutra, ele entrou numa procissão e 
arrancou algumas relíquias das mãos de um padre e as jogou no 
rio. Froment, por sua vez, portou-se com muita criatividade: ele 
colocou em vários pontos de Genebra o seguinte aviso: “Um 
jovem recém-chegado nesta cidade dará instrução na leitura e 
na maneira de escrever a língua francesa a todos que quiserem, 
grandes e pequenos, homens e mulheres, mesmo aqueles que 
nunca foram à escola. Caso não aprendam a ler e a escrever 
dentro de um mês, ele não deseja nenhuma recompensa pelo 
seu trabalho”. O professor acrescentou: “Esse homem também 
cura muitas doenças de graça”. Foi um sucesso! De fato ele en­
sinava e medicava os doentes, mas não perdia a oportunidade 
de incluir pequenos sermões e comentários sobre a Bíblia em
28 • SOU EU, CALVINO
suas aulas. Várias vezes tentaram matar Farei e Froment, mas 
sempre em vão. Em abril de 1535, a empregada da casa onde os 
pregadores estavam hospedados, subornada por alguns padres, 
colocou veneno na sopa de espinafre de um deles. Meu amigo 
Pierre Varet quase morreu. Piores ainda foram os embates 
violentos entre uma multidão de católicos e uma multidão 
de protestantes. Essa fase difícil terminou com o edital dos 
conselhos de Genebra dando grande causa aos reformadores. 
A partir daí a cidade de Genebrapassou a ter a tranquilizante 
divisa: Post tenebras Lux (Luz após trevas).
A O senhor está com 55 anos. Portanto, já viveu mais da meta­
de do presente século. E vive na parte ocidental e no hemisfério 
setentrional, onde estão 95% de todos os cristãos. O que pensa 
do século 16?
Não sei o que virá depois deste século. Porém considero o sé­
culo atual um presente de Deus. Não só por causa da Reforma 
e da Contrarreforma, mas por causa de muitas outras coisas, 
a começar com as fantásticas descobertas marítimas. Fernão 
de Magalhães acaba de fazer a primeira viagem ao redor do 
mundo (1519-1522). Antes dele, Vasco da Gama descobriu o 
caminho das índias (1498) e Cristóvão Colombo descobriu a 
América (1492). Esses eventos bem-sucedidos provocam tremen­
das mudanças geográficas. Na área da astronomia, que muito 
me atrai, o polonês Nicolau Copérnico acaba de publicar De 
Revolutionibus Orbium Caelestium [Das revoluções dos mundos 
celestes]. Na área da matemática, o avanço é enorme no que 
diz respeito às frações decimais, à trigonometria retilínea e es­
férica, às equações de terceiro e quarto graus e ao livro Trattato 
de Numeri e Misure [Tratado sobre os números e medidas], do 
italiano Tartaglia, publicado em 1545. No ramo da medicina, 
o mais importante, creio, é o livro do meu patrício Ambroise 
Paré, de 1545, intitulado Méthode de Traicter les Playes [Método
GENEBRA: LUZ APÓS TREVAS • 29
de tratar as feridas], que pode abrir portas para salvar muitas 
vidas. Curiosamente foi o herege Miguel Serveto, que nós 
queimamos vivo em Genebra, que distinguiu as cavidades 
direita e esquerda do coração, isto em 1533, pouco antes de 
morrer. Acho que devo mencionar ainda o formidável traba­
lho do flamengo Gerardus Mercator, que fez um grande mapa 
da Europa e uma representação plana da Terra. O que ele fez 
pode nos ajudar a entender melhor o desafio da última ordem 
de Jesus: “Vão a todos os povos do mundo e façam com que 
sejam meus seguidores” (Mt 28.19). A impressão que eu tenho 
é que esses nossos arautos da ciência moderna trabalham para 
Deus. Copérnico, por exemplo, entende que os astrônomos são 
sacerdotes de Deus e que, no exame da natureza, eles devem 
glorificar o Criador.
Á No campo das artes, o atual século tem sido pródigo?
Muito pródigo. Ainda estamos sob o impacto do polivalente 
Leonardo da Vinci, que morreu em Amboise, na França, 
quando eu tinha apenas nove anos. Ele empregou seu gênio 
em quase todas as artes e ciências. Foi pintor, escultor, arqui­
teto, inventor, botânico, geólogo, engenheiro e músico. Além 
de tocar alaúde e outros instrumentos por ele inventados, da 
Vinci era um repentista, capaz de improvisar letra e música 
conforme ia tocando. Tinha também suas excentricidades: 
escrevia com ambas as mãos e fazia suas anotações de trás 
para frente com a mão esquerda. Dizem que ele deixou um 
caderno de 7 mil páginas com desenhos, esboços de invenções 
e comentários sobre pinturas, anatomia e filosofia. Embora 
tenha pintado o mural A Ultima Ceia no refeitório de um 
mosteiro na Itália, o artista, ao contrário de muitos outros, 
não demonstrava interesse algum pela religião. Temos tido 
artistas notáveis que produzem muito mais pinturas religiosas 
do que de outra natureza. Um dos mais impressionantes é o
30 • SOU EU, CALVINO
afresco A Criação de Adão, do italiano Michelangelo, pintado 
na Capela Sistina, em 1511. Entre os pintores do presente 
século, alguns se comprometem com a Reforma de Lutero, 
como Albrecht Dürer, amigo de Filipe Melâncton, e Lucas 
Cranach. O primeiro fez um quadro abordando um dos temas 
mais queridos por nós, A Queda do Homem (1504). E o segundo 
pintou A Crucificação (1503).
A Em sua opinião, de tudo o que tem acontecido na primeira 
metade do presente século o que mais vai influenciar o mundo 
daqui para frente?
Muito mais importantes que as descobertas marítimas e tudo o 
mais foram a redescoberta da Bíblia, a redescoberta da graça e a 
redescoberta da justificação pela fé. Em resumo, o maior evento 
de todos foi aquele que estamos chamando de reforma religiosa, 
algo muito mais amplo e universal que qualquer outra reforma 
na história religiosa de Israel ou da igreja. Muitos estão dando a 
própria vida para que isto aconteça e continue a acontecer. Estamos 
produzindo centenas de livros da mais pura teologia e muitos co­
mentários bíblicos, graças à invenção da imprensa, exatamente há 
cem anos. Sem medo de exagerar, sob o toque do Espírito Santo, 
estamos abrindo a porta da igreja para que Jesus entre outra vez e 
ocupe o seu lugar no púlpito e na vida dos fiéis. Por muito tempo 
ele esteve batendo à porta e prometendo: “Se alguém ouvir a minha 
voz e abrir a porta, eu entrarei na sua casa e nós jantaremos juntos” 
(Ap 3.20). Já temos Jesus em nossa mesa e estamos “jantando” 
com ele e convidando o mundo inteiro para vir comer conosco!
Á Não me lembro qual, mas numa dessas conversas o senhor me 
contou que foi expulso de Genebra. Por quê?
Depois de permanecer todo o ano de 1537 e o primeiro trimes­
tre de 1538 em Genebra, eu e Farei fomos expulsos de lá pelo
GENEBRA: LUZ APÓS TREVAS • 31
Pequeno Conselho. Entendo que tivemos pressa demais para 
mudar as coisas. Não tive a paciência necessária para lidar com 
certos costumes arraigados na sociedade que não combinavam 
com a moral evangélica. Além de coisas menores, como a san­
tificação do domingo e os jogos de azar, havia coisas bem mais 
reprováveis, tais como festas sem recato, muita pompa (e não 
austeridade), bebedeira, adultérios etc. A prostituição era san­
cionada e oficializada pelas autoridades. Veja só: a supervisora 
dos prostíbulos era uma mulher eleita pelo Pequeno Conselho. 
A divisa da cidade “luz após trevas” era apenas uma afirmação 
profética e não uma realidade presente. Foi nessa ocasião que 
escrevi Instrução na Fé, mais conhecido como o Catecismo de 
Genebra, e comecei a pregar sobre ele. Nosso desejo era que cada 
genebrino, homem e mulher, se submetessem a esse documento 
apondo a ele a sua assinatura. Era um otimismo demasiado! Foi 
aí que surgiram as primeiras divergências entre mim e o Pequeno 
Conselho. Começaram a ter antipatia por mim: afinal, além 
de ser um jovem de 28 anos, eu era um cidadão francês, e não 
suíço. O caldo acabou entornando, até que Farei e eu fomos 
expulsos oficialmente de Genebra em abril de 1538.
á Voltou para Basiléia?
Não. Fui para Estrasburgo, onde passei os três anos mais feli­
zes da minha vida, que eu chamo de “meus anos dourados”. 
Separei-me de Farei, que foi para Neuchâtel - embora amigos, 
éramos muito diferentes. Com a experiência de Genebra, passei 
a mudar as minhas atitudes, meu temperamento, meu estilo. 
Amadurecí bastante. Cinco meses depois de ter chegado, fui 
convidado a pastorear uma comunidade de língua francesa e 
a lecionar na Escola Alta (setembro de 1538). Tive muitas 
atividades literárias: publiquei a segunda edição de As Institutos 
em latim e a primeira em francês, e escrevi a Carta ao Cardeal 
Sadoleto e o Comentário da Epístola de Paulo aos Romanos. Foi em
32 • SOU EU, CALVINO
Estrasburgo que aprendi a lidar com pessoas de todas as classes, 
de humildes refugiados a mestres e teólogos, como Matthieu 
Zell, o cura da catedral da cidade, Johannes Sturm, o fundador 
do Gymnasium de Estrasburgo, e Martin Bucer, um teólogo da 
altura de Lutero. Deus me usou para despertar muitos jovens 
para o ministério. Em meio a tudo isso, dei um grande passo 
à frente: casei-me no dia 14 de agosto de 1540 com uma jovem 
viúva chamada Idelette de Bure e me tornei padrasto de um 
menino (Jacques) e uma menina (Judith). Fui muito aplaudi­
do porque todo mundo achava estranho que eu fosse solteiro 
sendo absolutamente contrário ao celibato sacerdotal. Foi meu 
irmão Antoine quem descobriu Idelette e me aproximou dela 
sutilmente: como minhafutura mulher não falasse francês, ele 
me pediu para ser o professor dela. Tornei-me de uma hora para 
outra seu professor, esposo e pai de seus filhos. Convidei Farei 
para celebrar nosso casamento. Dois anos depois, em julho 
de 1542, tivemos nosso único filho, que, para tristeza nossa, 
morreu poucos dias depois.
J Em Estrasburgo, naturalmente o senhor se esqueceu de 
Genebra...
Quando eu estava começando a me esquecer, recebi um 
surpreendente convite. Sabe de quem? Era do Pequeno 
Conselho de Genebra. Eles queriam que eu voltasse à ci­
dade e recomeçasse o meu ministério de pastor, pregador e 
professor. No dia 13 de setembro de 1541, três anos e meio 
depois de expulso, fixei residência outra vez em Genebra, 
onde estou até hoje! Infelizmente sem Idelette, que morreu 
há quatorze anos, em 1549.
3
O LIVRO TRANSFORMADO 
EM CATECISMO
JL igreja jamais preservará a si mesma sem um catecismo
á O que o senhor chama de catecismo?
Trata-se de um manual da doutrina cristã, geralmente em forma 
de perguntas e respostas, voltado à instrução religiosa. Eu diria 
em linguagem menos simples que é um método racional de en­
sino da fé e da moral cristã, segundo um programa sistemático, 
para levar especialmente as crianças a professarem sua fé em 
Jesus de modo consciente e convincente.
á Quando se usou pela primeira vez o termo “catecismo”?
Foi em 1375, quando o arcebispo de York, na Inglaterra, 
publicou o texto Lay Folks Catechism. Meio século depois, o 
concilio de Tortosa, na Espanha, ordenou a elaboração de um 
breve compêndio que bem poderia chamar-se catecismo, pois 
ensinava o que se deve crer, o que se deve pedir, o que se deve 
observar, o que se deve evitar e o que se deve desejar e esperar.
34 • SOU EU. CALVINO
A Sempre é o mestre que faz as perguntas e as crianças que 
respondem?
Não. Embora não muito comum, pode ser o contrário: a 
criança pergunta e o mestre responde. E o caso do catecismo 
Disputatio Pueronim, publicado no século 11, disposto em dez 
capítulos: perguntas sobre a criação, sobre a pessoa de Deus, 
sobre os anjos, sobre o homem, sobre o Antigo Testamento, 
sobre o Novo Testamento, sobre a igreja, sobre os sacramentos, 
sobre os símbolos da fé e sobre o Pai-Nosso. Já no catecismo de 
Honório de Autun, o mestre pergunta e o discípulo responde.
á Desde quando a igreja tem feito uso do catecismo?
Provavelmente a partir do século 2o. O uso universal do batismo 
infantil após o século 6o incentivou o preparo dos catecismos 
para firmar as crianças já batizadas. As perguntas e as respostas 
giravam normalmente em torno dos Dez Mandamentos, do 
Credo Apostólico e da Oração do Senhor. Mas foi a Reforma 
que de fato popularizou o uso do catecismo, por causa de sua 
ênfase considerável na educação religiosa não só das crianças, 
mas também dos jovens e adultos. Doze anos depois de romper 
oficialmente com Roma (1517), Lutero publicou o seu Catecismo 
Menor, que substituiu o Catecismo Maior, do ano anterior 
(1528). O que o levou a preparar o catecismo e difundir o seu 
uso o máximo possível foi a constatação de que o povo de Deus 
nada conhecia da doutrina de Deus, sobretudo nas aldeias. Mais 
ainda, que muitos pastores eram quase totalmente ignorantes 
e incapazes de ensinar. “Embora todos se chamem cristãos e 
participem dos santos sacramentos” - escreve Lutero no prefácio 
de seu catecismo - “não conhecem nem a Oração do Senhor, 
nem o credo, nem os Dez Mandamentos, vivendo como pobres 
animais e porcos sem inteligência, embora saibam muito bem - 
agora que o evangelho lhes veio - como podem abusar de sua 
liberdade”. Para o reformador alemão, o catecismo não passa
0 LIVRO TRANSFORMADO EM CATECISMO • 35
de “um livro que instrui por meio de perguntas e respostas”. 
Ninguém é forçado a crer, mas é dever dos pastores treinar e 
impelir a grande massa a saber o que é errado e o que é certo 
em matéria de fé. Depois de ministrar o Catecismo Menor, os 
pastores tinham de passar para o catecismo mais longo, para 
terem uma explicação mais profunda e mais completa.
á Pór curiosidade, quantas perguntas e respostas tem o “Breve 
Catecismo” , de 1529?
São 375 perguntas e respostas, mais de uma para cada dia do 
ano. Vou dar alguns exemplos. Para a pergunta 5 (“Donde tirou 
Lutero essa doutrina?”), a resposta é “Lutero tirou essa doutrina 
da Escritura Sagrada ou Bíblia”. Para a pergunta 42 (“Quem é o 
nosso próximo?”), a resposta é “Nosso próximo é todo aquele que 
necessita do nosso amor”. Para a pergunta 56 (“Que é matrimô­
nio?”), a resposta é “O matrimônio é a união vitalícia instituída 
por Deus e contraída, mediante esponsais legítimos, entre um 
homem e uma mulher para uma só carne”. Para a pergunta 95 
(“Homem qualquer pode alcançar a salvação mediante as obras 
da lei?”), a resposta é “Nenhum homem pode alcançar a salvação 
mediante as obras da lei, porque desde a queda no pecado o 
homem natural é de todo incapaz para guardar a lei de Deus e o 
próprio cristão só a cumpre imperfeitamente”. Para a penúltima 
pergunta, a de número 374 (“A quem se não deve dar a Santa 
Ceia?”), a resposta é “A Santa Ceia não se deve dar aos ímpios e 
impenitentes manifestos, aos hereges, aos que deram escândalo 
e ainda não o removeram e aos que não podem se examinar a si 
mesmos, como, por exemplo, crianças e pessoas sem sentidos”.
á O catecismo era ensinado apenas nas igrejas e pelos pastores?
De forma alguma. O catecismo era levado para dentro dos lares 
e o chefe da família tinha de ensiná-lo à sua família.
36 • SOU EU, CALV1NO
á Pessoalmente, como o senhor avalia o catecismo?
Em minha longa carta de outubro de 1548 ao duque de Somerset, 
quando ele era regente da Inglaterra durante a menoridade de 
Eduardo VI, eu lhe disse francamente que a igreja de Deus jamais 
preservará a si mesma sem um catecismo, que é como a boa se­
mente impedindo a extinção do bom cereal e multiplicando o 
trigo na seara do mundo, era após era. Quem pretende construir 
um edifício duradouro, que não entre logo em decadência, deve 
providenciar que as crianças sejam instruídas num bom catecismo 
que mostre resumidamente a elas, em linguagem apropriada à 
sua idade, em que consiste o verdadeiro cristianismo.
á O senhor mesmo nunca elaborou um catecismo em francês?
Durante o inverno de 1536-1537, publiquei o meu primeiro 
catecismo, se é que se pode chamá-lo de catecismo, pois não era 
em forma de perguntas e respostas. A obra intitulava-se Instrução 
e Confissão de Fé e era para o uso da igreja de Genebra. Cinco 
anos depois, no início de 1542, resolvi transformar esse livro, 
já traduzido para o latim, num verdadeiro catecismo, com 373 
perguntas e respostas (duas a menos que o de Lutero). Foi minha 
primeira exposição teológica sistemática em língua francesa (As 
Institutas haviam sido escritas em latim).
A Um catecismo de quase quatrocentas perguntas e respostas não 
é grande demais, principalmente quando se pensa no leitor mirim?
Pela aceitação que ele teve, a ponto de provocar maior unidade 
entre as igrejas reformadas, creio que isso não é problema. Eu 
o dividi em quatro partes: a primeira é sobre a fé de um modo 
geral (130 perguntas); a segunda trata dos Dez Mandamentos 
(102); a terceira é só sobre a oração (63); e a última parte se 
refere à Palavra e aos Sacramentos. A partir de 1561, esse cate­
cismo ganhou mais importância, visto que daí em diante cada 
novo ministro da igreja devia jurar fidelidade aos ensinos nele 
expressos e comprometer-se a ensiná-los.
0 LIVRO TRANSFORMADO EM CATECISMO • 37
Á O seu catecismo e o “Catecismo Menor” , de Lutero, não seriam 
suficientes? Parece que está saindo outro catecismo.
Trata-se do Catecismo de Heidelberg, publicado em fevereiro de 
1563, por iniciativa do príncipe eleitor Frederico III, que havia se 
convertido à fé reformada três anos antes. Eleconvidou Zacarias 
Ursinus, professor da Faculdade de Teologia de Heidelberg, na 
Alemanha, e Gaspar Olivianus, ambos com menos de 30 anos, 
para prepararem um catecismo a fim de ensinar a doutrina bí­
blica aos jovens da igreja. É um catecismo três vezes menor do 
que o meu. Tem apenas 129 perguntas e respostas, dispostas de 
tal modo que podem ser estudadas durante os 52 domingos do 
ano. Além do meu catecismo e dos catecismos de Lutero e de 
Ursinus, saíram vários outros: os catecismos de Oecolampadius, 
de Bullinger, de Cranmer, de Allen e do rei Eduardo VI.
A Qual é a sua opinião sobre o “Catecismo de Heidelberg”?
É a melhor possível. Considero-o superior ao meu catecismo 
e ao de Lutero. Porque Frederico queria um catecismo conci­
liador que pudesse combinar o melhor da sabedoria luterana 
e reformada, o Catecismo de Heidelberg (a cidade da Alemanha 
Ocidental onde foi escrito) é o mais ecumênico de todos, pois 
reúne três correntes do pensamento reformado. Ademais, está 
isento de definições dogmáticas e é notavelmente não sectário. 
Possui um caráter inteiramente bíblico. Toda a sua estrutura 
é moldada pela perspectiva bíblica. Eu diria que esse catecis­
mo deixa a Escritura falar e não procura substituí-la. Em sua 
posição teológica, ele é cristão, evangélico e reformado, e está 
plenamente fundamentado no trabalho dos apóstolos e dos 
concílios ecumênicos da igreja antiga (não romana). O melhor 
é que ele é um manual da religião prática. Em vez de levantar 
problemas especulativos, apresenta a fé cristã de maneira pro­
fética, acentuando a sua importância para a vida diária. Foi 
elaborado para ser ao mesmo tempo um guia para a instrução
38 • SOU EU, CALV1NO
religiosa das crianças e dos jovens e uma confissão para toda 
a igreja. Por seu quádruplo propósito (catequético, teológico, 
litúrgico e querigmático), o Catecismo de Heidelberg tornou-se 
imediatamente popular, primeiro nas áreas reformadas e, em 
seguida, nas áreas luteranas. Ele tem três divisões principais: 
“Nosso pecado e culpa” (primeira parte), “Nossa redenção e 
liberdade” (segunda parte) e “Nossa gratidão e obediência” 
(terceira). Entendo que a última parte deste abençoado cate­
cismo constitui-se em um pequeno clássico da vida devocional.
A Nos quarenta anos que separam o Breve Catecismo de Lutero 
(1529) e o catecismo da Contrarreforma, em preparo, a Igreja 
Católica produziu algum catecismo?
Em 1555 surgiu a Suma da Doutrina Cristã, com perguntas e 
respostas, destinada aos jovens estudantes de nível superior, aos 
clérigos em formação e aos leigos cultos. No ano seguinte apareceu 
o Catecismo Mínimo, em forma de abecedário, para crianças e pes­
soas ignorantes que estavam aprendendo a ler. Por fim, em 1558, 
veio a lume o Pequeno Catecismo dos Católicos, para estudantes 
de nível médio. Dos três, este último foi o que obteve maior êxito 
em virtude da sua pedagogia e da precisão das perguntas e respostas.
A A Contrarreforma não produziu catecismo algum?
Eu soube que o Concilio de Trento, encerrado agora em 1563, 
nomeou uma comissão presidida pelo cardeal Carlos Borromeu, 
sobrinho e secretário do papa Pio IV e arcebispo de Milão, 
para preparar um catecismo que expresse a reação católica à 
Reforma. Estou sabendo também que o jesuíta José de Anchieta, 
missionário espanhol no Brasil, teria escrito um catecismo 
bilíngue (na língua portuguesa e na língua dos nativos daquele 
continente recénvdescoberto), intitulado Diálogo das Coisas da 
Fé, com perguntas e respostas. Talvez seja o primeiro catecismo 
escrito fora da Europa e para um público não cristão.
4
O VOO QUE 
NÃO SE REALIZOU
(podar pe(a metade os a6usos do cristianismo 
não resoCve o proèCema
/é Em sua carta de 28 de junho de 1545 a Melâncton, o senhor 
diz que “temos de estar sempre em guarda para não prestar 
deferência demasiada aos homens” . Todavia, menos de seis 
meses antes, em sua carta a Lutero, o senhor refere-se a ele 
como “excelentíssimo pastor da igreja cristã” , “celebérrimo 
senhor” , “notabilíssimo ministro do Criador” e “meu pai res­
peitadíssimo e sempre honorável” . O senhor deixou de montar 
guarda?
Não posso concordar com a agressividade de Martinho Lutero, 
mas não posso negar sua coragem, sua firmeza e suas bases. Ele 
enfrentou papas e soberanos poderosos com absoluto sucesso. 
O movimento que empreendeu dois anos depois de redescobrir 
o valor da fé no sacrifício vicário de Jesus não foi uma tentativa 
frustrada de reforma, mas uma autêntica e imorredoura reforma 
da igreja cristã, quando ele tinha apenas 34 anos.
40 • SOU EU, CALVINO
/> O senhor é parecido com Lutero?
Sou tão pecador e tão salvo quanto ele. Temos o mesmo zelo 
pela igreja, a noiva de Cristo. Enfatizamos sempre os três “so- 
mentes”: o “sola Scriptura”, o “sola gratia” e o “sola fide”. Tanto 
eu como Lutero não fomos até o final do curso de direito e 
estudamos hebraico por conta própria. Ambos nos dedicamos 
ao ministério, ambos somos professores universitários, ambos 
fazemos sermões expositivos versículo por versículo, ambos 
gostamos mais do livro dos Salmos, ambos devemos muito da 
nossa caminhada teológica à Carta de Paulo aos Romanos, 
ambos nos casamos depois dos trinta anos. Tanto Lutero como 
eu sabemos que precisamos oferecer continuamente resistência 
à pecaminosidade latente e temos consciência de que estamos 
dando muito trabalho a Satanás. Em nossa admoestação con­
tra os perversos, usamos os mesmos termos trava ou freio: as 
autoridades devem não somente restringir, mas também dirigir 
o povo. Por fim, nós somos parecidos porque nem ele nem eu 
gostamos dos adjetivos luteranos e calvinistas, aplicados aos nos­
sos irmãos reformados. Mas Lutero é 26 anos mais velho que 
eu. Ele é alemão e eu, francês. Ele nasceu no final do século 15 
e eu, no início do século 16. Ele fala uma língua germânica e eu, 
uma língua latina. Ele viveu na Alemanha e eu vivo na Suíça. 
Ele é da primeira geração de reformados e eu, da segunda (eu 
era um menino de apenas oito anos quando Lutero rompeu 
oficialmente com Roma). Ele se casou com uma freira e eu, 
com uma viúva. A maior diferença entre nós dois é quanto ao 
temperamento.
á Como assim?
Sou menos expansivo, menos impetuoso, menos arrojado. 
Tenho um temperamento tímido. Sou acanhado por natureza. 
Jamais teria coragem de atacar os papas com palavras tão
O VOO QUE NÂO SE REALIZOU •
insolentes quanto Lutero. Ele chamava o papa Clemente VII de 
“arquipatife”. Em sua obra Advertência a seus Estimados Alemães, 
publicada em abril de 1531 (ano em que meu pai morreu), o 
“javali da floresta” (nome que o papa Leão X deu a Lutero em 
sua encíclica Exsurge Domine, de 1520) diz que os papas “não 
têm juízo nem vergonha”, são “dez vezes piores que os turcos”, 
“verdadeiros diabos”, “miseráveis patifes”, “assassinos sangui­
nários”, “miseráveis inimigos de Deus” e assim por diante.
^ Apesar dos mesmos três “somentes” , parece que há diferentes 
tendências entre a reforma feita por Lutero e a reforma que está 
sendo feita por sua instrumentalidade.
Embora haja muita unidade entre uma e outra, há algumas 
diferenças entre nós. Para Lutero, a lei de Deus serve para 
revelar a santidade de Deus e conduzir o pecador a Cristo; 
para mim, além disso, a lei mostra ao crente o caminho da 
santificação. Para Lutero, o arrependimento conduz à fé; 
para mim, o arrependimento flui da fé. Para Lutero, a “ordo 
salutis” (a ordem da salvação) segue o seguinte itinerário: 
vocação, iluminação, conversão, regeneração, justificação, 
santificação e glorificação; para mim, começaria com a eleição, 
a predestinação e união com Cristo, sem excluir os demais. 
Para Lutero, o batismo regenera e remove a culpa e o poder 
do pecado; para mim, o batismo incorpora o fiel na aliança 
da graça. Para Lutero, Cristo está presente objetivamente no 
sacramento daCeia do Senhor; para mim, Cristo também 
está presente, mas de modo espiritual, não físico. Quanto ao 
princípio regulador da vida do crente, é mais uma ‘questão 
de palavras’ (a posição luterana admite muitas coisas no culto 
que a posição reformada não admite).
Na citada carta a Lutero, o senhor escreve: “Quisera poder 
voar até você para desfrutar da felicidade de sua companhia ao
J
menos por algumas horas e conversar com você acerca de várias 
questões” . O senhor chegou a estar com Lutero?
Infelizmente, não. Na época eu estava com 36 anos e Lutero, 
com 62. Um ano e um mês depois de minha carta, ele entregou 
o seu espírito a Deus em Eisleben, para onde tinha ido a fim 
de apaziguar os dois condes de Mansfeld. Isso aconteceu no dia 
18 de fevereiro de 1546. No entanto, tenho esperança de me 
encontrar com ele no reino de Deus em breve.
á Na mesma ocasião, o senhor enviou alguns de seus pequenos 
livros, pedindo que, nas horas vagas, ele os examinasse “superfi­
cialmente” , ou que solicitasse alguém que o fizesse em seu lugar 
e depois conversasse com ele sobre o conteúdo dos livros. Este 
seu gesto demonstra alguma timidez ou modéstia demasiada?
Penso que não. Apenas levei a sério as tantas e pesadas respon­
sabilidades de Lutero.
A Parece que tanto Lutero como o senhor de vez em quando têm 
uma crise de depressão...
Quem não as tem? Depressão é a quase completa capitulação de 
ânimo, de bem-estar, de segurança emocional, de autoconfiança, 
de energia, de alegria e até mesmo da vontade de viver. Veja a 
experiência de Elias. Depois de experimentar vitórias estrondosas 
em seu ministério, de enfrentar a terrível Jezabel, seu marido 
Acabe e os quatrocentos profetas de Baal no monte Carmelo, o 
profeta passou por uma crise de depressão. Ele ficou com medo, 
refugiou-se no deserto, teve vontade de morrer, chegou a pedir 
que Deus o levasse e ainda experimentou uma autoavaliação 
extremamente negativa (“eu sou um fracasso”). Veja também Jó. 
Por causa de seu intenso sofrimento, o homem da terra de Uz pas­
sou por uma profunda depressão. A certa altura, ele desabafou: 
“Agora já não tenho mais vontade de viver”; “O desespero tomou 
conta de mim”; “O meu coração está agitado e não descansa”;
42 • SOU EU. CALV1N0
0 VOO QUE NÀO SE REALIZOU • 43
“Levo uma vida triste, como um dia sem sol”; e “Minha harpa 
está afinada para cantos fúnebres”, Somos pessoas de carne e 
osso, e não anjos alados. Somos homens, e não super-humanos. 
Vivemos numa época de transição, de mudança, de reforma. Os 
poderes que não querem a reforma da igreja nos ameaçam, nos 
perseguem, nos colocam nas masmorras, na Torre de Londres, na 
estaca, na forca, no cadafalso. As potestades do ar não desistem 
de nós. Apesar da oração, apesar das promessas das Escrituras, 
apesar das alegrias da comunhão com o Senhor e com os irmãos, 
apesar do apoio de algum fidalgo ou monarca, apesar da alegria 
de viver e de morrer para o Senhor - há momentos em que 
todos nós caímos em depressão. Não somos melhores do que 
Asafe quando vemos que tudo parece ir bem com os libertinos, 
os opositores, os mentirosos, os orgulhosos, os traidores e os que 
fazem questão de trazer a esposa e os filhos para assistir a morte 
por fogueira do esposo e do pai, como aconteceu em 1555 com 
John Rogers, o primeiro mártir protestante executado por ordem 
de Maria, A Sanguinária.
Á Dizem que o senhor, Lutero e outros reformadores são cismáticos 
muito relutantes.
E pura verdade. Nem Lutei-o nem eu queríamos deixar a Igreja 
Católica. Pelo contrário, sonhávamos com um catolicismo 
reformado, uma Igreja Católica reformada de acordo com a 
Escritura. Estávamos interessados tanto na sua pureza como 
na sua unidade. Em 1552, por exemplo, escrevi para Thomas 
Crammer, arcebispo de Canterbury, da Igreja da Inglaterra, 
que a separação da igreja estava “entre as maiores desgraças do 
nosso século”. De minha parte, não hesitaria em cruzar dez 
mares se isso resolvesse a questão. Roma não abriu as portas 
para a reforma, embora agora, no recénvencerrado Concilio de 
Trento, ela tenha aberto algumas janelas, pelo menos no que 
diz respeito à moral do clero.
44 • SOU EU. CALV1NO
^ Qual ideal norteia sua vida?
Meus ideais não estão ocultos. Falo sobre eles em quase todas as 
cartas. Tomemos por exemplo a carta que escrevi no desastroso 
ano de 1548 (foi nesse ano que meu querido irmão Antoine 
ficou sabendo que sua esposa o traía), ao duque de Somerset, 
que na época era a maior autoridade do governo da Inglaterra. 
Porém, não me custa fazer uma lista dos meus ideais:
1) Gostaria que todos os nobres e aqueles que administram 
a justiça se submetessem em retidão e total humildade ao 
grande rei Jesus, prestando-lhe reverência sincera, com fé 
não fingida em corpo, alma e espírito;
2) Gostaria que a doutrina de Deus fosse proclamada com 
eficácia e poder, de modo a produzir seu fruto, levando to­
talmente a cabo uma notável e completa reforma da igreja;
3) Gostaria que o escândalo e a conversão frívola não virassem 
hábitos de modo' que o nome de Deus não venha a ser 
blasfemado;
4) Gostaria que a reforma da igreja fosse completa, pois podar 
os abusos do cristianismo pela metade jamais irá restaurar 
a situação ao estado de pureza;
5) Gostaria que a sabedoria do Espírito, não a da carne, 
prevalecesse em tudo;
6) Gostaria que o nome de Deus fosse sempre mais e mais 
glorificado por todos os fiéis.
5
A IGREJA DE GENEBRA
Vícios secretos devem ser repreendidos secretamente
á Dizem que o senhor é “o grande ditador de Genebra” e teria 
introduzido na cidade uma espécie de terrorismo religioso.
Quando não é uma completa invenção, esse e outros mitos 
representam uma grave distorção da realidade. Eu não tomei 
Genebra de assalto. Fui convidado a voltar e assumir a liderança 
da igreja cedendo às fortes insistências do conselho genebrino. 
Eu morava até então em Estrasburgo e estava feliz da vida. 
Cheguei a Genebra em setembro de 1541, dois meses depois de 
completar 32 anos. Tinha um ano de casado e dois enteados, 
filhos do primeiro matrimônio de Idelette. Logo ao chegar, 
entreguewne à tarefa de redigir uma espécie de constituição para 
a igreja e a cidade, que ficou conhecida pelo nome de Ordenanças 
Eclesiásticas. Foram dez dias de intenso trabalho. Depois de 
examinado pelos outros pastores e pelo Pequeno Conselho, o 
manual foi adotado no dia 20 de novembro. Nesta constituição
46 • SOU EU, CALV1NO
aparentemente simples, inspirada basicamente nas Escrituras e 
na prática da igreja primitiva, conforme se lê no livro de Atos, 
encontra-se uma forma democrática representativa e republica­
na de governo da igreja. Não sei como posso ser considerado 
ofensivamente “o grande ditador de Genebra” se várias vezes 
eu sofri oposição e minha voz não foi ouvida em alguns pontos!
Á Quantas ordens de ofício vocês têm em Genebra?
Existem quatro ordens de ofício instituídas por nosso Senhor 
para o governo de sua igreja: pastores, doutores, presbíteros e 
diáconos. Entendo que, se quisermos uma igreja bem organizada 
e preservada, devemos observar esta forma de governo. O ofício 
do pastor é proclamar a Palavra de Deus e então instruir, admoestar, 
exortar e repreender, tanto em público como em particular, 
além de administrar os sacramentos e exercer fraternalmente a 
disciplina, juntamente com os presbíteros e assistentes.
Á Qualquer membro da igreja pode tornar-se pastor?
Ninguém pode fazer parte deste ofício sem um chamado da 
parte de Deus. Aquele que se diz chamado deve ser examinado 
pelo Conselho quanto à doutrina e quanto à conduta. Se o can­
didato não possuir conhecimento bom e sólido da Escritura e 
capacidade para comunicá-la ao público de maneira edificante, 
ele não será ordenado pastor. Para saber se ele está apto para 
ensinar é preciso sabatiná-lo. Eletambém não alcançará o mi­
nistério sagrado caso não tenha bons hábitos e comportamento 
adequado à luz do ensino de Paulo.
á Exige-se algum juramento da parte do candidato caso ele seja 
ordenado?
Ao ser ordenado, eleito e empossado, o novo pastor fará o 
seguinte juramento perante o Conselho: “Eu prometo e juro
A IGREJA DE GENEBRA • 47
que, no ministério para o qual sou chamado, servirei fielmente 
a Deus, ministrando de forma pura a sua Palavra para edificação 
desta igreja à qual ele me uniu, que de forma alguma farei mau 
uso de sua doutrina para servir às minhas paixões carnais nem 
para agradar homem algum, mas a aplicarei com consciência 
para o serviço de sua glória e para proveito deste povo do qual 
sou devedor”. Além desse primeiro compromisso, o candidato 
aceito e aprovado promete comportar-se com lealdade, sem 
ódio, favoritismo, vingança ou qualquer outro sentimento 
carnal no afã de exortar os que caem em pecado. Por último, 
ele promete servir à igreja e ao povo de tal maneira que não 
seja impedido de prestar a Deus o serviço que de acordo com 
sua vocação lhes deve.
A O Conselho exerce algum tipo de supervisão sobre os pastores?
E claro que sim, no sentido de mantê-los no cumprimento de 
seu dever. Uma vez por semana nós nos reunimos para juntos 
discutirmos a Escritura e verificar se todos estamos conservando 
a pureza doutrinária e a concordância entre nós. Consideramos 
crimes intoleráveis coisas como heresia, cisma, rebelião contra 
a ordem eclesiástica, blasfêmia notória, simonia, corrupção, 
bebedeiras, perjúrio, lascívia, apropriação indébita, danças e 
outros vícios similares. Condenamos também qualquer intriga 
com o objetivo de um pastor ocupar o lugar do outro. Embora 
não coloquemos no mesmo nível, repudiamos também a negli­
gência na leitura e no estudo da Palavra, a bajulação, a grosseria, 
a difamação, a avareza, a ira incontida, rixas, contendas e até a 
frouxidão nos modos e maus gestos.
Á E os outros ofícios, quais são?
A primeira ordem é formada de pastores; a segunda, de douto­
res; a terceira, de presbíteros; e a quarta, de diáconos. O ofício
48 • SOU EU, CALVINO
próprio dos doutores é a instrução dos fiéis na verdadeira 
doutrina, a fim de que a pureza do evangelho não seja cor­
rompida pela ignorância ou por más opiniões. Esses homens 
são preletores em teologia, pessoas especializadas no Antigo 
Testamento e no Novo Testamento. Eles devem ser escolhidos 
e remunerados para terem sob sua responsabilidade professores 
tanto para línguas como para dialética. O ofício próprio dos 
presbíteros é supervisionar a vida de cada pessoa para admoestar 
amigavelmente os que estão errando ou vivendo uma vida 
desordenada. Eles têm de ser homens de vida honesta e reta, 
sem mancha e acima de suspeitas. Não é conveniente que 
sejam substituídos com frequência sem motivos, enquanto 
cumprirem com fidelidade o seu dever. O ofício próprio dos 
diáconos é receber, administrar e manter bens para os pobres e 
cuidar dos doentes. Os que contribuem para esse fim precisam 
estar seguros de que as doações não serão empregadas de outra 
maneira, senão na caridade. Esse ofício não deve se limitar aos 
pobres da comunidade eclesiástica, mas também aos doentes 
do hospital, aos idosos que não podem trabalhar, às viúvas, aos 
órfãos, aos detentos e outras pobres criaturas. Esse ministério 
precisa desencorajar a mendicância até o ponto de vir a ser 
observada a total proibição de pedir esmola. Os que passam 
necessidades unicamente porque são preguiçosos não devem 
receber assistência, mas ser advertidos contra a preguiça.
Á Em suas “Ordenanças Eclesiásticas” há alguma norma sobre 
o culto?
Sim. Propus e foi aprovado que tivéssemos três cultos por do­
mingo nas três igrejas (São Pedro, Madalena e São Gervásio) 
- um ao raiar do dia e os outros às nove e às três da tarde - e 
outros três durante a semana apenas na primeira igreja, que é 
a nossa catedral (nas segundas, quartas e sextas). Todo domin­
go, ao meio-dia, há uma aula de catecismo para crianças nas
A IGREJA DE GENEBRA • 49
três igrejas. Para dar conta deste programa semanal têm sido 
necessários cinco ministros e três auxiliares.
á O senhor não acha impróprio oferecer o catecismo para crianças 
no horário de meio-dia?
Pode ser. Mas vale a pena. As crianças são importantes. Insis­
timos que os cidadãos ou moradores de Genebra devem levar 
seus filhos ao catecismo todos os domingos. Distribuímos um 
formulário para ser preenchido pelos pais a fim de verificar se 
as crianças estão entendendo e decorando as respostas. Quando 
uma criança for suficientemente bem instruída no catecismo, 
nós a submetemos a um teste: ela deve recitar solenemente um 
resumo do que aprendeu. Só então poderá professar a fé diante 
da igreja e passar a participar da Santa Ceia.
Á A igreja de Genebra é a favor da disciplina?
Entendemos que vícios secretos devem ser repreendidos secre­
tamente. Ninguém deve trazer o seu vizinho perante a igreja a 
fim de acusá-lo de faltas que não sejam pelo menos notórias ou 
escandalosas, a menos que ele se mostre contumaz. Os que não 
se corrigem devem abster-se da Santa Ceia até o momento em 
que retornam com disposição e ânimo melhor. Toda disciplina 
deve ser feita com tal moderação que não haja rigor pelo qual 
alguém possa ser magoado, pois mesmo as correções são apenas 
remédios para se trazer pecadores de volta a nosso Senhor.
á Vocês realizam cerimônias nupciais e fúnebres?
Por que não? Celebramos o casamento tanto em dia de semana 
como no domingo. Se for no dia do Senhor, ele acontece antes 
do culto. Fazemos questão de introduzir cânticos sacros para 
alegrar e incentivar o louvor. Mas não celebramos no domingo 
de Santa Ceia, em honra ao sacramento. Quanto aos funerais,
50 • SOU EU, CALV1NO
temos algumas normas. O irmão que faleceu deve ser sepultado 
não antes de doze horas após a morte nem depois de vinte e 
quatro horas. Aqueles que vão levar o caixão até a sepultura - 
que chamamos de carregadores - devem desencorajar quaisquer 
superstições contrárias à Palavra de Deus e devem cumprir o 
horário do sepultamento.
^ Todas essas instruções e normas foram criadas pelo senhor em 
dez dias de trabalho?
Exatamente. Escritas por mim e aprovadas pelo Pequeno Conselho. 
Tenho informações de que elas estão sendo adotadas fora de 
Genebra, como, por exemplo, na Escócia de John Knox.
6
LUXO, EXTRAVAGÂNCIA 
E CONSUMISMO
Vma coisa é certa: quando as riquezas dominam o domem, 
(Deus é despojado de sua dominação
A salvação somente pela graça de Deus e não pelas obras, 
como o senhor insiste sempre, não desobriga o crente reformado 
das boas obras?
De modo nenhum. As boas obras não causam a salvação, mas 
devem ser a causa dela. É uma questão de ordem: primeiro a 
salvação e, depois, as obras. Pode-se dizer que a doutrina do sola 
gratia santifica as obras, pois arranca delas a chaga da barganha 
e as torna uma expressão da gratidão e louvor a Deus. Em 
Genebra damos muita importância à ação social. Temos exerci­
do grande influência sobre o governo civil da cidade. Daí as leis 
até sobre saúde e segurança. Cuidamos das coisas grandes e das 
pequenas. Por exemplo, é proibido jogar lixo ou excrementos 
humanos nas ruas, é proibido acender uma lareira em quartos 
sem chaminés, é proibido construir uma sacada sem grades (para 
evitar que as crianças caiam dela). Intrometemo-nos em tudo:
52 • SOU EU, CALVINO
uma enfermeira não pode levar consigo para a cama os bebês, os 
vigias noturnos devem fazer suas rondas com responsabilidade, 
os negociantes não podem cobrar demais pela sua mercadoria. 
Na época das eleições, o pregador da Catedral de Saint Pierre 
deve pregar sobre a necessidade de eleger homens piedosos, e 
os eleitos são exortados a governar sob a direção de Deus e para 
a glória dele.Em nossas exposições bíblicas, apontamos como 
contrárias à ética cristã as habituais manobras para aumentar o 
lucro, tais como a estocagem de trigo na esperança de que ele 
suba de preço, a especulação financeira e o monopólio. Quan­
do o primeiro dentista montou seu consultório em Genebra, 
eu mesmo fiz a primeira consulta para testar sua competência.
Á Antes de sua primeira chegada a Genebra, Guilherme Farei, na 
tentativa de moralizar a cidade, colocou rédea curta em todo mundo. 
Por exemplo, a presença aos cultos dominicais era obrigatória, sob 
pena de pesadas multas. Leis severas demais dão resultado?
Minha experiência diz que não funcionam nem em curto nem em 
longo prazo. Temos de pedir sabedoria a Deus, tanto para não pesar 
demais como para não pesar de menos. Não podemos cair nem no 
legalismo (não faça isso, não faça aquilo) nem na frouxidão (não é 
pecado isso, não é pecado aquilo). Temos de apelar mais ao coração 
do que à coerção. Naturalmente algumas leis foram necessárias 
para disciplinar Genebra e torná-la uma cidade reformada não só 
nominalmente. Fizemos leis para regulamentar o uso de bares, para 
proibir a blasfêmia contra Deus, a venda de pão e vinho a preços 
acima dos estipulados, a prática do jogo de cartas (que tirava o 
dinheiro de muitos em favor de poucos) etc. Tornamos obrigatória 
a instrução pública. Acabamos com os muitos dias santos herdados 
da Igreja Católica e devolvemos ao domingo a importância que ele 
deve ter, tornando-o verdadeiramente o dia do Senhor, o dia de 
ir à igreja, o dia de descanso semanal. Embora nossas intenções 
fossem as melhores possíveis, descobrimos que leis por demais
LUXO, EXTRAVAGÂNCIA E C0NSUM1SM0 • 53
severas, que excedem os limites do razoável, provocam insatisfação, 
mesmo entre os crentes verdadeiros. Os libertinos, que pendiam 
para o lado oposto, acabaram nos expulsando de Genebra, eu e 
Farei, em abril de 1538.
Á O senhor tem sido contra o luxo, a extravagância e os gastos 
supérfluos. Mas, se a pessoa que se entrega a isso é alguém 
honestamente rico, ele não tem o direito de gastar o seu dinheiro 
como bem entende?
Mesmo não havendo a menor suspeita sobre a origem da 
fortuna de alguém, de modo nenhum ele deve esbanjar o seu 
dinheiro com o consumismo desenfreado. Isso é pecado, para 
não usar a palavra crime. E pecado porque ao redor dele há 
muitos que não têm teto, não têm o que comer nem o que 
vestir, seja irmão na fé ou não. Os mandamentos de Deus em 
favor dos pobres, das viúvas, dos órfãos, dos imigrantes e dos 
incapacitados para o trabalho aparecem com impressionante 
frequência em toda a Bíblia, tanto na antiga dispensação como 
na nova. Uma vez convertido, Zaqueu, além de separar algum 
dinheiro para restituir aos que porventura tivessem sido lesados 
por ele, tomou a decisão de repartir a metade de seus bens com 
os pobres. Os fazendeiros do Antigo Testamento não deveríam 
colher todos os frutos de seus campos, mas deixar pelo menos 
os cantos das plantações para os necessitados, segundo a lei 
da rebusca da qual as viúvas Noemi e Rute se valeram. A ex­
travagância é sinal de egoísmo e, portanto, pecado, e pecado 
grave. Na parábola do bom samaritano, Jesus mostra que tanto 
o sacerdote como o levita não quiseram gastar tempo, esforço 
e dinheiro com aquele semimorto à beira da estrada. O que 
os ricos perdulários gastam com o luxo e o supérfluo daria 
para construir orfanatos, abrigos para os sem moradia, escolas 
e hospitais. Os proprietários de grandes extensões de terra, 
muitas vezes abandonadas, poderiam dividir uma parte delas
)
54 • SOU EU. CALVINO
em pequenos sítios e doar a famílias pobres e desempregadas. 
Os donos de grandes fortunas deveriam abrir novas empresas, 
não para obterem mais dinheiro, mas para criar mais ofertas 
de trabalho. Uma coisa é certa: quando as riquezas dominam 
o homem, Deus é despojado de sua dominação. O caso é sério!
^ No seu entender, o oitavo mandamento da lei de Deus - “não 
roube” - significa apenas subtrair alguma coisa alheia?
Defraudamos o próximo de seu bem quando deixamos de cumprir 
com os deveres dos quais somos incumbidos. Estou certo de que 
aquele que não se desincumbe para com os outros das obrigações 
que sua vocação inclui retém o que pertence a outrem. Trocando 
por miúdos: ele está quebrando o oitavo mandamento, dando 
mau testemunho e fazendo sofrer ainda mais os que já sofrem.
^ Afinal, o senhor é contra ou a favor da desobediência civil?
O governo civil é tão necessário quanto pão e água, luz e ar. Sou 
a favor da hierarquia na área conjugal (a liderança do marido), na 
área familiar (a liderança dos pais) e na área social (a liderança dos 
magistrados). Sem essas lideranças, ocorre o caos. Todavia, por 
causa da Queda, todas elas podem falhar, tanto pela omissão como 
pelo abuso. Se sou contra ou a favor da desobediência civil, tenho 
de tomar muito cuidado com a resposta, porque ela pode ser torcida 
e generalizada. Entendo que cometemos um crime contra o próprio 
Deus quando obedecemos a ordens e exigências de um governo 
contrário à vontade expressa de Deus. Por esta razão, não temo em 
afirmar que Daniel não pecou ao desobedecer a ordem dada por 
Nabucodonosor para que toda a população do vasto império babi- 
lônico adorasse a estátua que ele mandou erguer. Diria o mesfho a 
respeito das parteiras Sifrá e Puá que, em desobediência ao rei do 
Egito, deixaram vivos os filhos das mulheres hebreias, incluindo 
Moisés. Também diria o mesmo a respeito da desobediência
LUXO. EXTRAVAGÂNCIA E CONSUMISMO • 55
religiosa dos apóstolos que não deixaram de anunciar o evangelho, 
desprezando a decisão quase unânime do sinédrio.
Á O senhor é contra o serviço militar?
Sou absolutamente contra o uso bélico em defesa da fé e em defesa 
dos perseguidos por sua fé. Nossas armas são diferentes. Quando 
os tiranos lançam suas baforadas, devemos volver nossos olhos para 
contemplar o socorro que Deus dá aos seus. Sofrer perseguição 
não significa ser abandonado por Deus. Os tormentos são uma 
provação e os tiranos não podem sobre nós mais do que Deus 
lhes permite, como se vê claramente na história de Jó. Temos 
de aprender a esperar a mão de Deus. Em algum momento, ele 
freará o furor dos tiranos e os fará cessar a despeito de seus dentes 
e fúria. Ganhar uma guerra religiosa pela força não nos é lícito. 
Tudo quanto sustentarmos temerariamente sem a aprovação do 
Mestre não pode ter um resultado feliz. Sou igualmente contrário 
ao engajamento do crente num exército mercenário. Se há gente 
no mundo que seja desregrada é aquele que, em vez de aplicar-se 
a algum trabalho honesto e legítimo, corre atrás de um soldo a 
quem mais lhe dá. E sobre que condição? Para matar e ferir ou, 
então, para ser morto ele próprio. Por causa da oferta - é muito 
comum hoje convocar soldados mercenários -, essa é uma tentação 
muito forte para os nossos jovens. Zuínglio em Zurique e eu aqui 
em Genebra temos lutado contra isso.
á Para ser verdadeiramente piedoso, o crente precisa evitar qual­
quer contato com a sociedade, com o mundo secular?
A piedade de alguns anos atrás preconizava isso. Mas o ensino 
de Jesus é exatamente o contrário. Na chamada oração sacerdotal, 
feita na noite de quinta para sexta-feira, Jesus orou ao Pai: “Não 
peço que os tires do mundo, mas que os guardes do Maligno” 
(Jo 17.15). Se o crente fugir do ambiente não cristão, como será 
luz do mundo e sal da terra?
56 • SOU EU, CALVINO
" \
Á Foi o senhor que fundou a Academia de Genebra?
A primeira universidade de que temos notícia não era cristã 
nem europeia. Trata-se da universidade de Al-Azhar, fundada 
no Cairo no ano de 970. As duas primeiras universidades cristãs 
e europeias são a de Bolonha, na Itália, e a de Paris, na França, 
onde estudei. A primeira universidade protestante é a nossa 
Academia de Genebra,construída numa pequena colina próxi­
ma à catedral, não com dinheiro de algum príncipe ou cardeal, 
como tem sido comum até então. Eu mesmo levantei a maior 
parte dos recursos com os moradores da cidade. Lembro-me de 
uma pobre senhora que deu somente cinco moedas e de um 
tipógrafo bem-sucedido que doou a maior parte de sua fortuna. 
Ela foi inaugurada no dia 5 de junho de 1559, poucos dias depois 
do meu quinquagésimo aniversário. Todos os professores eram 
protestantes e muito competentes. Entre eles, cito os nomes de 
Pierre Viret, de 48 anos, e Theodoro de Beza, de 40. Quase todos 
vieram de Lausanne. Beza assumiu a reitoria. Grande parte dos 
estudantes vem de várias nações da Europa, especialmente do 
meu país. A matrícula está aumentando muito de ano em ano. 
Todos os alunos se comprometem oficialmente com a confissão 
de fé reformada. Após a conclusão do curso secundário, alguns 
permanecem para estudar teologia, medicina ou direito, que são 
os cursos mais procurados. No teto da varanda, sustentada por 
pilares de granito, mandamos colocar três passagens bíblicas em 
três línguas, todas sobre sabedoria: Salmo 111.10 em hebraico, 
1 Coríntios 1.24 em grego, e Tiago 3.17 em latim.
á O tempo todo o senhor se refere à Queda. Isso não seria 
superestimar o evento?
Tudo o que eu pregar ou escrever sobre a Queda será pouco. 
Dou graças a Deus porque a Reforma redescobriu o significado 
pleno da desobediência de nossos primeiros pais. Do conceito
LUXO, EXTRAVAGÂNCIA E CONSUMISMO • 57
incompleto da Queda, expresso na teologia de Tomás de Aquino, 
conhecido como Doctor Angelicus, que viveu três séculos atrás, 
partimos para o conceito de queda total e absoluta. O ser humano 
em sua totalidade é obra de Deus. Depois do acontecimento que 
o capítulo três de Gênesis narra, ele tornou-se um ser caído em 
toda a sua natureza, inclusive o intelecto e a vontade. Foi uma 
ruína sem medida que atingiu o homem, a sociedade, o mundo, 
a história e a criação. Tudo foi desmantelado pela Queda, prin­
cipalmente a relação da criatura humana com a criação. Paulo 
resume: “Quando o pecado entrou no mundo por meio de um 
só homem, o pecado entrou na raça humana inteira, e o pecado 
dele trouxe consigo a morte a todos os homens” (Rm 5.12).
^ O senhor porventura gasta a mesma quantidade de saliva para 
pregar sobre a esperança apontada pelo precursor de Jesus, de 
que o Senhor é o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo?
Convido-o a ouvir as minhas pregações na Catedral de Saint 
Pierre, a assistir às minhas aulas de teologia na academia e a ler 
os meus livros. Dou igual ênfase à Queda e ao levantamento do 
ser humano. A desgraça da Queda ajuda a entender a glória da 
salvação. Nunca deixo os rapazes da academia nem o povo de 
Genebra sem a esperança que está diante de nós. A Jesus Cristo 
incumbe restaurar todas as coisas à boa ordem, em estado como 
era antes da Queda. Isso significa que a presente confusão rei­
nante será desfeita pela vinda de Jesus. A Bíblia chega a dizer 
que o leão viverá sem causar dano e não mais se lançará à presa, 
e que a serpente contentar-se-á de seu pó e nele se esconderá, e 
não ferirá com sua picada venenosa. Enfim, tudo quanto está 
em confusão e desordem será restaurado à sua ordem primitiva. 
Estamos aguardando o dia em que seremos semelhantes a Jesus, 
e não mais sujeitos à humilhação e à servidão do pecado, por 
dentro e por fora. Caminhamos em direção ao fim do mal, ao 
fim do tempo, ao fim da história, ao fim do mundo. Seremos
58 • SOU EU. CALV1NO
plenamente restaurados e integralmente remidos. Esse é o 
evangelho que Jesus mandou pregar agora no mundo inteiro, 
antes da consumação de tudo. Não temos apenas duas boas 
novas para dar - a boa nova de que Jesus nasceu e a de que ele 
ressuscitou. Há uma terceira boa nova, aquela que um dos 24 
anciãos disse a João: “Pare de chorar! O Leão da tribo de Judá, 
a Raiz de Davi, venceu e mostrou que é digno de abrir o livro e 
quebrar os sete selos” (Ap 5.5). Depois dos sete selos, depois das 
sete trombetas e depois das sete taças, Jesus descerá do céu em 
poder e muita glória, os mortos vão ressuscitar, os vivos serão 
transformados, os pecadores serão julgados por suas obras más, o 
Diabo será lançado fora, os céus e a terra que hoje existem serão 
destruídos e substituídos por novos céus e nova terra, nesta ou 
em outra ordem.
^ Pena que o senhor não tenha escrito um comentário do 
Apocalipse...
De fato. Apocalipse foi o único livro do Novo Testamento 
sobre o qual não escrevi comentário algum. Quanto aos livros 
do Antigo Testamento, faltaram nove.
á A única coisa a fazer agora é esperar a plenitude da salvação?
Esperar só não! Isso nos levaria à indolência, à impaciência, à 
irritação. Precisamos adquirir a consciência não só da grande 
comissão, mas também de que a igreja é uma antecipação do 
reino de Cristo em sua vinda. Somqs como uma sociedade 
provisória, mesmo imperfeita, governada pelas leis de Cristo. 
Temos um ministério didático (a igreja precisa pregar e ensinar), 
um ministério político (a igreja precisa vigiar o Estado) e um 
ministério social (a igreja precisa socorrer os necessitados). Vem 
a calhar a citação de Paulo que aparece na Carta aos Efésios: 
“Você que está dormindo, acorde!” (Ef 5.14).
7
O DOUTOR QUE NÃO TINHA 
MAIS FÉ DO QUE UM PORCO
0 Mafigno tem triunfado so6re nós deforma 
a nos oôrigar a aèai^gr a ca6eça
á Tenho ouvido aqui e ali alguns rumores a seu respeito. 
Naturalmente alguma coisa é juízo temerário ou intriga. Ou­
tros, quem sabe, expressam mesmo alguma conduta senão 
repreensível, pelo menos estranha. Por exemplo, o senhor é a 
favor da tortura?
Sou obrigado a admitir que pelo menos uma vez eu me mani­
festei favoravelmente à tortura de alguém. Foi em 1555, por 
ocasião da queda dos libertinos. Referindo-me à prisão do chefe 
deles, numa carta a Farei, escrevi: “Veremos o que a tortura 
pode arrancar deles”.
á Disseram-me que o senhor às vezes usa expressões muito duras 
com seus oponentes.
Não nego. Certa vez eu disse que fulano de tal “não tinha mais 
fé do que um cachorro ou do que um porco”. O pior é que eu
60 • SOU EU, CALV1NO
estava me referindo a Pierre Caroli, um doutor da Sorbonne 
que havia se tornado protestante e fora residir em Genebra. 
Perdi a paciência com ele por causa de algumas de suas idéias 
não muito ortodoxas. j
A Parece-me que o senhor fica no alto da escada para repreender 
alguém lá embaixo, no primeiro degrau. Por exemplo, o senhor 
teria escrito à duquesa de Ferrara uma carta muito clara, dizendo 
que ela havia se desviado do reto caminho a fim de agir de acordo 
com o mundo.
Não é verdade. Você leu apenas o primeiro parágrafo da minha 
carta. Nos outros, passei a usar o pronome na primeira pessoa 
do plural: “De fato o Maligno tem triunfado sobre nós de forma 
que temos sido forçados a gemer com isso, a abaixar nossa cabeça 
e a não fazer mais perguntas” .
Á A propósito, é verdade que o senhor teria dito ter uma “besta 
selvagem feroz” em sèu interior que ainda não havia conseguido 
dominar?
Sim. Eu estava fazendo a mesma confissão de Paulo: “Não 
faço o bem que quero, mas justamente o mal que não quero 
fazer é o que faço” (Rm 7.19). Eu estava me referindo à carga 
pecaminosa que todos carregamos dentro de nós. Eu estava 
lamentando essa propensão pecaminosa permanente, a qual 
só pode ser vencida por Jesus Cristo.
á Uma dessas propensões pecaminosas seria na área sexual?
Por que não? Se Paulo adverte a Timóteo a ser um exemplo na 
pureza e a tratar as mulheres jovens da igreja como irmãs, com 
toda pureza (lTm 4.12; 5.2), por que eu estaria livre de alguma 
tentação nesta área? Lutero dizia que “a castidade não é tão fácil 
quanto calçar e descalçar os sapatos”.
0 DOUTOR QUE NÃO TINHA MAIS FÉ DO QUE UM PORCO • 61
À boca pequena,alguém me passou a informação de que o 
senhor é vítima de tendências homossexuais.
O responsável por essa maledicência irresponsável é um ho­
mem chamado Jérôme-Hermès Bolsec, ex-monge carmelita que 
virou protestante e depois voltou para o seio da Igreja Católica. 
Além de teólogo e polemista, Bolsec formou-se em medicina 
e exerceu por algum tempo a profissão numa cidade perto de 
Genebra. Ele também diz que tenho o hábito de flertar com 
qualquer mulher que se aproxima de mim. Quanto à prática 
homossexual, a minha convicção é que ela é uma escolha per­
vertida e execrável, como você pode ver em meu Comentário aos 
Romanos, logo no capítulo um. Quanto à outra acusação, ela 
também não procede.
á Chamam-no às vezes de o “grande ditador de Genebra”. Isso 
expressa a verdade?
É apenas um mito, uma completa invenção que representa 
uma grave distorção dos fatos. Durante quase toda minha vida, 
aqui em Genebra, eu fazia parte da classe C, formada pelos 
estrangeiros residentes na cidade, e não da classe A, formada 
pelos nativos. Estes eram chamados de citoyens (cidadãos) e 
aqueles de habitants (habitantes). O corpo diretivo do Petit 
Conseil (Pequeno Conselho), responsável por todos os aspectos 
da vida de Genebra, é inteiramente composto de citoyens. Os 
habitants não têm nenhum direito de voto, não podem portar 
armas nem assumir posto público. Eventualmente, podem 
tornar-se pastores ou dar aulas, mas somente em razão da 
ausência praticamente absoluta de outras pessoas nascidas em 
Genebra e qualificadas. Somente em 1559, com a idade de 
50 anos, é que eu fui promovido a cidadão de Genebra. Se 
nem citoyen eu era, como seria o grande ditador de Genebra? 
Pode ser que, por meio das minhas pregações na Catedral de
62 • SOU EU. CALV1N0
Saint Pierre, ao redor da qual a cidade está construída, das 
minhas aulas na academia, dos meus atendimentos pastorais, 
dos meus livros e do meu testemunho, eu tenha exercido algu­
ma influência sobre a população e nos destinos de Genebra. 
Mas sem o menor conteúdo político.
A Por falar em testemunho, o seu testemunho é sempre bom?
Não tanto quanto o meu dever e o meu desejo. Algumas ve­
zes perco as estribeiras e deixo a carne aparecer. Nem sempre 
domino a minha irritabilidade e controlo o meu pavio curto. 
Tenho sido obrigado a confessar tristemente a Deus as vezes 
em que não sou capaz de me manter nos limites, deixando que 
minha bílis assuma o controle da minha mente, derramando 
amargura por todos os lados. O tratamento que dispensei, por 
exemplo, a Andreas Osiander foi agressivo e arrogante. E na 
disputa com Miguel Serveto cheguei a gritar com ele.
A É verdade que uma criança foi decapitada em Genebra por ter 
agredido os pais dela?
Ao que eu saiba, isso nunca aconteceu em Genebra.
A Mas o enforcamento do médico herege Miguel Serveto aconteceu...
Aconteceu, sim, e eu não posso negar a minha participação. Fui 
eu que pedi a prisão dele, fui eu que fiz acusações contra ele, 
fui eu que debati perante o Pequeno Conselho para provar que 
as heresias dele estavam ameaçando a igreja de Cristo. Mas o 
julgamento, a condenação e a execução de Serveto foram obra 
do Pequeno Conselho. O homem foi queimado numa estaca no 
dia 27 de outubro de 1553, com a idade de 42 anos. Certo ou 
errado, era isso que fazíamos com os hereges em toda a Europa. 
Embora eu não tivesse paciência com Serveto, fiz de tudo para 
que ele fosse morto de outra maneira que não pelas chamas, mas
não obtive sucesso. Por meio de muitas cartas, tentei demovê-lo 
de seus erros, mas outra vez sem sucesso. Mandei as minhas 
Institwtas para ele e ele me enviou as suas Restitutas, publicada 
secretamente em Viena naquele ano. Enquanto em muitos outros 
lugares da Europa a condenação de hereges ou pseudo-hereges 
à pena máxima é algo rotineiro, Serveto foi o único indivíduo 
executado em Genebra desde que eu vim para cá. (No período 
de três anos, de maio de 1547 a março de 1550,39 pessoas foram 
para a fogueira na França pelo mesmo motivo.) Não comparecí 
à execução de Serveto, mas soube que foi uma cena horrível: os 
executores eram inexperientes e os espectadores, horrorizados 
com os prolongados gritos da vítima em agonia, tentavam, por 
piedade, atiçar o fogo para queimar mais rapidamente, jogando 
feixes de lenha sobre ele a fim de apressar o processo da morte. 
Com esse mesmo intuito, resolveram enforcá-lo ali mesmo na 
estaca. Meia hora depois Serveto era um homem morto.
Á Por falar em heresia, o já citado Jérôme Bolsec tem espalhado 
a notícia de que o senhor quer abolir o domingo a fim de observar, 
em lugar dele, a sexta-feira.
Isso é mentira. Nunca demonstrei o menor sinal de desejar tais 
mudanças, aliás, minha posição é totalmente contrária a elas.
^ Na cidade francesa de Poitiers ouvi dizer que o senhor enrique­
ceu-se em Genebra, está cercado de pompa e faz todo mundo 
beijar seus pés...
Venha até minha casa aqui na rua do Canhão e veja como eu 
vivo. Pergunte ao cardeal Sadoleto qual foi a impressão dele 
do meu estilo de vida quando ele veio me visitar pouco tempo 
atrás. Ele estranhou que eu mesmo houvesse aberto a porta da 
casa para ele entrar, e não um criado. Aliás, ele achava que eu 
tinha um monte de pessoas para me servir. Sou verdadeiramente 
rico no sentido de estar abundantemente satisfeito com meus
0 DOUTOR QUE NÀO TINHA MAIS FÉ DO QUE UM PORCO •
64 • SOU EU, CALVINO
escassos recursos. Eu me realizo com riquezas do tipo que o 
dinheiro não pode comprar.
Deixe-me tocar agora num ponto delicado: o senhor é 
hipocondríaco?
De fato é um ponto delicado, mas vamos a ele. Tenho pensado no 
assunto. A impressão que tenho é que sou realmente uma pessoa 
doente e uma das minhas doenças seria a tal hipocondria a que o 
amigo se refere. Valendo-me dos diagnósticos médicos e da minha 
própria observação, tenho sofrido dos seguintes problemas de saúde 
que cito em ordem alfabética, e não em ordem de acometimento: 
artrite, asma, calafrios, cálculos renais, dificuldades respiratórias, en­
xaqueca, ascarídeos intestinais, febre, gota, hemorragias, indigestão, 
lassidão renal, nefrite, pleurisia, tosse e úlcera. Disseram-me também 
que eu tenho um tipo de tuberculose. Já me consultei com eminen­
tes médicos parisienses, como o doutor Acatus e o doutor Tagante. 
Talvez o meu erro seja pensar demais e falar demais em doenças e me 
preocupar demais com elas. A despeito de tudo, tenho trabalhado 
incansavelmente pelo evangelho - pregando, ministrando aulas, 
escrevendo e participando de reuniões.
A Sem mudar de um assunto para outro, como é o seu temperamento?
De vez em quando sofro de melancolia. Talvez eu seja muito 
emotivo. Só me casei aos 31 anos, mas fiquei viúvo nove anos 
depois. Foi uma luta enorme não ficar esmagado com a morte 
de Idelette. A morte de Courrault, o pastor de Genebra que nos 
havia abençoado muito, a mim e a Farei, quando havíamos sido 
expulsos da cidade, abateu-me de tal maneira que não consegui, 
na época, estabelecer limites para o meu pesar. Acresce que eu sou 
de temperamento tímido, mais no passado do que agora. Porém, 
tenho sempre dado glória a Cristo: glória à sua palavra, glória à sua 
pessoa, glória à sua vida e glória à sua graça! Isso tem me bastado.
8
LIVRO POR LIVRO, 
CAPÍTULO POR CAPÍTULO, 
VERSO POR VERSO
A DaCavra de (Deus é tão sagrada para mim 
como se eu a ouvisse dos (aôios do próprio Deus
-4 Para a reforma em curso, o “sola Scriptura" é mais importante 
do que o “sola gratia”?
Não digo que um é mais importante do que o outro. Prefiro dizer 
que o primeiro “somente” (o sola Scriptura) nos leva ao segundo 
“somente” (o sola gratia). Isto é, na leitura das Escrituras, redes- 
cobrimos que a salvação é um dom gratuito, como Paulo ensina 
na Epístola aos Romanos. Há muito tempo, a igreja perdeu de 
vista não só o “somente a graça”como também o “somente as 
Escrituras”. A reforma está sendo feita graças à redescoberta da 
Bíblia. Essa foi a redescoberta inicial. Estamos colocando a Europa 
em chamas a partir da redescoberta da autoridade da Bíblia.
á O que houve com a Bíblia antes do presente século?
Ela ficava bem guardadinha nas celas dos mosteiros e nas 
sacristias das catedrais. Não muito longe do povo, porém
66 • SOU EU. CALVINO
não nas mãos do povo. O mínimo que se pode dizer é que a 
igreja tem privado o povo comum das Santas Escrituras sob o 
pretexto de serem elas um mistério oculto, ou seja, um livro 
de difícil interpretação. No entanto, o que a igreja deve fazer 
é exatamente o contrário: encorajar a leitura da Bíblia. Lutero 
dizia que “as Sagradas Escrituras são uma luz especial, muito 
mais clara que o próprio sol, principalmente nas coisas que 
dizem respeito à salvação e às necessidades”. Gosto de afirmar 
que as Escrituras são o cetro do reino de Cristo e que manter 
o povo na ignorância é uma atitude contrária e altamente 
prejudicial.
á O que o senhor faz em Genebra em favor do conhecimento da 
Palavra por parte do povo?
Havendo Deus me tirado de minha origem obscura e humilde, 
considerou-me digno de ser investido no sublime ofício de pre­
gador. Estou aqui de. maneira permanente desde 1541. Dessa 
data até hoje devo ter pregado mais de 3.500 vezes. Prego em 
média 170 sermões por ano. Nos primeiros oito anos, pregava 
três dias por semana e duas vezes aos domingos. A partir de 
1549, passei a pregar todos os dias, uma semana sim e uma 
semana não.
Sem interrupção?
Só deixo de pregar por motivo muito forte. Por ter ficado 
gravemente enfermo na primeira semana de outubro de 
1559, pouco depois de comemorar o meu quinquagésimo 
aniversário, fiquei seis meses sem pregar, o que me causou 
muito incômodo. Vez e outra, nestes últimos dias, não tenho 
podido caminhar normalmente e então alguém me carrega e 
me coloca no púlpito da Catedral de Saint Pierre. E, então, 
continuo pregando.
Á Seu sermão é inspirado por algum acontecimento de Genebra, 
algum problema na igreja ou por sugestão de alguma ovelha?
Costumo pregar sobre um livro da Bíblia, capítulo por capítulo, 
versículo por versículo. Quando acabo um dos livros, passo 
para outro. Tenho feito assim a vida inteira. Trata-se de uma 
pregação sequencial. Ao terminar cada sermão, digo às minhas 
ovelhas: “Continuo no próximo culto”. Por exemplo, só sobre 
o livro de Atos, preguei 89 sermões entre 1549 e 1554. Fiz 
149 sermões sobre Ezequiel, 159 sobre Jó, 200 sobre Deuteronômio, 
353 sobre Isaías, 123 sobre Gênesis, 107 sobre 1 Samuel, 
87 sobre 2 Samuel, e assim por diante. Faço tanta questão de 
não quebrar a sequência que, ao voltar a Genebra em setembro 
de 1541, depois de ter sido banido da cidade três anos antes, 
reiniciei minhas pregações exatamente onde havia parado em 
abril de 1538. Fiz o mesmo depois de me ausentar do púlpito 
por meio ano por motivos de enfermidade.
Á Tudo indica que o senhor dá uma relevância enorme à pregação.
Por que não o faria se “a fé vem por ouvir a mensagem e a 
mensagem vem por meio da pregação a respeito de Cristo” 
(Rm 10.17)? Em minha opinião, a reforma da igreja só será 
bem-sucedida se o poderoso instrumento da pregação for cada 
vez mais desenvolvido. Mas há um porém: a pregação não 
pode ser desprovida de vigor. Deve ser vivida, pois o seu pro­
pósito é ensinar, exortar, reprovar de tal modo que, se algum 
incrédulo entrar no recinto, ele tenha a sua atenção capturada 
e seja convencido. A pregação não é para chamar a atenção 
para o pregador, sua retórica, sua eloquência, seu porte e seu 
conhecimento de línguas originais. Parece haver hoje em dia 
pouquíssima pregação vigorosa. A maioria dos pastores lê um 
discurso escrito. Alguns extrapolam todos os limites e pregam 
fantasias tolas. Paulo exorta: “Se você prega, limite-se a pregar a
LIVRO POR LIVRO. CAPÍTULO POR CAPÍTULO, VERSO POR VERSO •
68 • SOU EU, CALVINO
mensagem de Deus” (Rm 12.7). No verso seguinte, o apóstolo 
continua: “O que ensina, esmere-se em fazê-lo”. O esmero é 
necessário porque em geral o sermão não goza de boa reputação. 
Há quem chegue a dizer que o sermão “é um arrazoado longo 
e enfadonho com que se procura convencer alguém”. Além do 
mais, nem todos os ouvintes têm a mesma capacidade de prestar 
atenção. Temos de pregar com autenticidade (o pregador faz o 
que prega), com autoridade bíblica (ele começa a pregação com 
as palavras “assim diz o Senhor”), com clareza (ele leva a sério 
a exortação de Hc 2.2), com humildade (ele não se esquece da 
sua dependência da Videira), com paixão (tanto pelo conteúdo 
da mensagem como pelo ouvinte), com simplicidade (ele não 
usa palavras complicadas), com substância (ele oferece algo para 
matar a fome e a sede da alma faminta e sedenta) e com unção 
(ele não deixa o Espírito Santo de lado).
V O que acontece primeiro: as mensagens bíblicas verbais ou os 
comentários bíblicos escritos?
Os comentários de vários livros da Bíblia que escrevi são frutos 
das minhas pregações na catedral e das minhas aulas na academia. 
Mas o que vem primeiro mesmo são as minhas leituras devocio- 
nais das Escrituras. Uma vez bem alimentado, eu dou de comer 
aos outros, seja pela palavra pregada, seja pela palavra escrita.
á Theodoro de Beza, seu colega de ministério, costuma exortar 
os estudantes de Genebra a lerem os seus comentários, porque, 
depois da Bíblia, o senhor é, na opinião dele, “incomparável na 
interpretação das Escrituras”. O que o senhor aprecia mais: pregar 
ou escrever?
Realizo-me de ambas as maneiras. Gosto muito de pregar e 
gosto muito de escrever. Mas há algumas diferenças notórias. Ao 
pregar, eu sei quem está ouvindo os meus sermões. Ao escrever, 
eu não sei quem está lendo os meus escritos, a não ser algumas
X
LIVRO POR LIVRO, CAPÍTULO POR CAPÍTULO. VERSO POR VERSO • 69
poucas vezes. Mas em Genebra, pelo menos os meus alunos da 
academia me ouvem e me leem.
Á Qual dos 66 livros da Bíblia o senhor mais aprecia?
O meu comentário mais longo é o de Salmos. São mais de 
2.600 páginas impressas em quatro grandes volumes. Alguém 
podería pensar que é o maior por ser o comentário do livro 
mais longo da Bíblia (uma coleção de 150 salmos). Embora eu 
tenha grande estima pela Carta de Paulo aos Romanos, por ser 
a porta amplamente aberta para a sólida compreensão de todo 
o restante das Escrituras, parece que minha predileção recai 
mesmo sobre os Salmos. Tenho por costume chamar esse livro 
prático de uma anatomia de todas as partes da alma, pois não há 
sequer uma emoção da qual alguém porventura tenha participado 
que não esteja nele representada como num espelho. Ou melhor, 
no livro de Salmos, o Espírito extirpa da vida todas as tristezas, 
as dores, os temores, as dúvidas, as expectativas, as provocações, 
as perplexidades, enfim, todas as emoções perturbadas com as 
quais a mente humana se agita. As demais partes das Escrituras 
contêm os mandamentos, os quais Deus ordenou a seus servos 
que nos anunciassem. Nos Salmos, porém, os salmistas (gosto de 
chamá-los de profetas porque falam com Deus e expõem aberta­
mente todos os seus íntimos pensamentos e afeições) atraem cada 
um de nós a fazer, individualmente, um exame de nós mesmos, 
a fim de que nenhuma das nossas debilidades e nenhum dos 
nossos muitos vícios permaneçam ocultos. Escreví esse comentário 
em 1557, quando estava com 48 anos, um ano antes de adoecer 
gravemente. Dediquei-o aos leitores piedosos e sinceros.
Á A Bíblia é de fato inspirada por Deus?
A resposta está na própria Bíblia: “Toda a Escritura Sagrada é 
inspirada por Deus e é útil para ensinar a verdade, condenar
70 • SOU EU. CALVINO
o erro, corrigir as faltas e ensinar a maneira certa de viver” 
(2Tm 3.16). A Palavra de Deus é tão sagrada para mim como seeu a ouvisse dos lábios do próprio Deus, o seu autor. O conheci­
mento das Escrituras desde a tenra infância é uma bênção especial 
da parte de Deus. É verdade, como Paulo ensina, que a Escritura 
é proveitosa não só para consolar e encorajar, mas também para 
apontar os nossos erros. Tenho instruído os cristãos a não serem 
soberbos na hora de ouvir uma advertência nem a se aborrecerem 
e se revoltarem quando os pregadores, por meio da Palavra, põem o 
dedo na ferida, sobretudo se for alguém da classe alta. A pregação 
é para todos. Se somos reis e príncipes, corresponde-nos inclinar 
nossas cabeças para receber o juízo de Deus.
A O que é o “conceito de acomodação” que é atribuído ao senhor?
É algo muito simples. Eu entendo que a revelação é um ato 
de condescendência divina. Em sua Palavra, Deus se acomo­
da à nossa capacidade, balbuciando-a a nós, assim como os 
avós fazem com as crianças. Deus não pode se revelar a nós 
de nenhuma outra maneira senão por meio de comparações 
com coisas que conhecemos. Por exemplo, ele não tem braços, 
boca e assim por diante, como se vê na Bíblia. Essa maneira de 
expressar são apenas metáforas vivas e memoráveis usadas para 
ele se comunicar conosco. Tenho insistido que nem tudo o que 
a Bíblia diz sobre Deus ou sobre o mundo deve ser entendido 
literalmente. O nosso Deus é aquele que desce ao nosso nível 
e se adapta à nossa capacidade. Vemos isso na encarnação, nas 
Escrituras e nos sacramentos.
A A Escritura fora da sacristia e nas mãos do povo comum pode 
vir a constituir um problema?
Com Escritura ou sem Escritura, sempre há aqueles que não 
sabem lidar com bom senso em matéria de religião. Vez e outra
LIVRO POR LIVRO. CAPÍTULO POR CAPÍTULO. VEIISO POR VERSO • 71
descambam para o extremismo. A religião é um campo fértil 
para o comportamento fanático. Cito, por exemplo, os profetas 
de Zwickau e os abecedarianos, os quais deram muito trabalho 
a Lutero e causaram grandes estragos à Reforma. Um deles, cha­
mado Nicholas Storch, teve a audácia de escolher 12 apóstolos 
e 72 discípulos, na certeza de que estava devolvendo à igreja os 
profetas! Os abecedarianos nutriam um desprezo absoluto por 
qualquer forma de conhecimento e incentivavam inclusive o 
analfabetismo. Diziam que o cultivo da teologia era uma forma 
de idolatria e consideravam os eruditos como falsificadores 
da Palavra. Para eles, a única luz de que o ser humano precisa 
promana do Espírito Santo por meio de visões e êxtases. Na 
França e em outros lugares, alguns irmãos entendem que devem 
quebrar todas as imagens dos templos católicos para cumprir 
à risca o que está no Antigo Testamento. Porém, mesmo com 
estas distorções, tenho por certo que é ímpia e danosa a con­
duta da igreja em privar qualquer pessoa das Santas Escrituras, 
inclusive o povo comum, sob o pretexto de serem elas de difícil 
interpretação. E, por falar nisso, quero frisar que a Escritura é 
a melhor intérprete de si mesma. Na junção e na comparação 
dos textos bíblicos, podemos entender melhor as passagens 
que nos parecem mais difíceis. Mesmo havendo em seu tempo 
aqueles que deturpavam as Escrituras a seu bel-prazer, Pedro 
nunca mandou esconder a Palavra dos crentes (2Pe 3.16). Acho 
extraordinário o elogio que o autor dos Atos dos Apóstolos faz 
aos novos convertidos de Bereia: eles são mais nobres que os 
tessalonicenses porque diariamente examinam as Escrituras 
“para ver se elas davam apoio ao que Paulo dizia” (At 17.11). 
Sem a vigilância dos que leem a Bíblia, a igreja fica livre para 
cometer muitos erros, como tem acontecido. Por isso eu digo: 
problema maior que as distorções é trancar a sete chaves na 
gaveta de algum armário da casa paroquial as Escrituras, nossa 
única regra de fé e prática!
72 • SOU EU, CALV1N0
á O senhor chamaria de reforma religiosa o que aconteceu em 
Jerusalém na época de Esdras e Neemias?
Por que não? Foi uma reforma e tanto, e o papel das Escrituras 
fica evidente. A reforma começou no coração de Esdras, quan­
do ele começou a ler a Bíblia, a entender a Bíblia e a ensinar a 
Bíblia. Quando chegou a ocasião oportuna, o povo reuniu-se 
para ouvir a leitura pública da Bíblia feita por Esdras, desde o 
nascer do sol até o meio-dia. Depois, os levitas foram ao encon­
tro do povo para explicar o que havia sido lido. Foi então que 
Jerusalém pegou fogo. Houve choro, arrependimento, confissão 
de pecado, redescobertas de coisas importantes esquecidas com 
o tempo, mudança de comportamento, alegria e exultação. Algo 
muito parecido com o que está acontecendo 11a Europa desde 
a década de 1510!
9
DEPENDENDO DO ESPELHO 
O SER HUMANO SE VÊ FEIO DEMAIS
0 homem peca com o consentimento 
de uma vontade pronta e disposta
á Quando o senhor fala em depravação total, um dos seus temas 
prediletos, confesso que acho a palavra forte demais.
Porém é a mais apropriada. O profeta Isaías é mais candente e 
contundente do que eu. Por volta do ano 700 antes de Cristo, 
ele declarou ao povo de Israel: “Vocês estão doentes da cabeça 
aos pés”. Para qualquer parte da alma e do corpo que olhemos, 
é impossível ver algo que não seja impuro, profano e abominável 
diante de Deus. A inteligência do ser humano é cega, coberta 
de erros infinitos e sempre contrária à sabedoria de Deus. Nossa 
vontade é má e cheia de afetos corrompidos. Somos incapazes 
de quaisquer boas obras, inclinando-nos impetuosamente para a 
iniquidade. Estamos totalmente tomados pelo veneno do pecado. 
Quando pecamos, pecamos constrangidos por uma premente 
necessidade e com o consentimento de uma vontade bastante 
pronta e inclinada a isso. Somos oprimidos por uma grande
74 • SOU EU. CALVINO
carga de pecados e maculados por uma infinita corrupção. Essa 
é a verdade nua e crua. Não há o que tirar nem pôr.
A Então, por que o ser humano não se enxerga assim, totalmente 
depravado?
Além de ser um expediente cie defesa, o ser humano é viciado 
no pecado, incapaz de abrir os olhos para suas próprias misérias 
(para a miséria alheia pode ser que não tenha dificuldade algu­
ma). O seu pecado maior é o orgulho. E a maior barreira para a 
pessoa se reconhecer depravada. A palavra é forte demais para 
o orgulhoso. A consciência dessa pessoa está silenciada, calada, 
anestesiada, cauterizada, aposentada, encostada, de tal forma que 
ela não presta para mais nada, pois está definitivamente morta.
A Definitivamente?
Até que a maravilhosa graça de Deus a alcance. Um dos ministérios 
do Espírito Santo é convencer o pecador do pecado, da justiça e do 
juízo. De uma hora para outra, o Espírito é capaz de acordar, ressus­
citar e descauterizar a consciência. Veja o que aconteceu com o filho 
mais novo da parábola de Jesus: a certa aluira, naquela terra distante, 
naquele chiqueiro, o rapaz caiu em si e declarou-se pecador tanto ao 
Pai lá de cima quanto ao pai cá de baixo. Veja o que aconteceu com 
o publicano de Jericó: a certa altura da conversa com Jesus, Zaqueu 
levantou-se e declarou que daquele dia em diante não seria amante 
do dinheiro e devolvería o que havia roubado dos outros. Veja, por 
fim, o ladrão da cruz: às 9h da manhã ele dizia impropérios a Jesus, 
mas antes do meio-dia ele já havia reconhecido os seus crimes e 
apelado para o Senhor. O ministério cristão é este: abrir os olhos 
dos pecadores a fim de que possam voltar-se das trevas para a luz.
^ A depravação total tem uma história?
A depravação total vem da Queda e da desobediência dos nossos 
primeiros pais, Adão e Eva, no paraíso. Ali, nossa natureza
DEPENDENDO DO ESPELHO 0 SER. HUMANO SE VÊ FEIO DEMAIS • 75
tornou-se tão envenenada que todos nós somos concebidos e 
nascidos em pecado. O apóstolo Paulo explica que o pecado 
entrou no tempo (logo após a criação do homem) e no espaço 
(no mundo) por meio de um só homem (Adão), e que o pecado 
desse homem trouxe consigo a morte. Tanto um(o pecado) 
como o outro (a morte) começaram a dominar a raça humana. 
Sendo eles (os nossos primeiros pais) o tronco de toda a huma­
nidade, o delito de seus pecados foi imputado a seus filhos de 
geração em geração até chegar a nós. Neles, todos decaímos da 
nossa retidão original e da nossa comunhão com Deus. Dessa 
corrupção original ficamos totalmente indispostos, incapazes 
e adversos a todo bem e inteiramente inclinados a todo mal. E 
preciso frisar que todos, absolutamente todos, estamos plenos 
da concupiscência e da inclinação má desde a concepção, desde 
o ventre materno, desde o nascimento. Essa inata pestilência 
nos coloca numa situação muito incômoda diante de Deus.
á 0 senhor é o detentor da doutrina da depravação total?
É a minha pregação, a pregação de Martinho Lutero, a pregação 
de John Knox, a pregação de Agostinho, a pregação de Paulo, a 
pregação das Santas Escrituras. Lutero lembra que a inclinação ou 
propensão para o mal parece uma coisa de pouco peso, mas não é. 
Na verdade, essa dolorosa pecaminosidade humana é um impulso 
contínuo, não uma qualidade quiescente, mas um mal irrequieto 
de dia e de noite, pois ela vive enquanto vivemos. Ela pode ser 
abafada, mas jamais aniquilada por completo, a não ser pela morte 
física. A má inclinação não morrerá de todo antes que a carne se 
torne pó e seja criada de novo. É assim que ensina também 
Eclesiastes: “O coração do homem está cheio de maldade e de 
loucura, durante toda a vida”. O curioso é que o tema da depravação 
total é debatido por autores não necessariamente comprometidos 
com o cristianismo. O filósofo latino Sêneca, por exemplo, declarou 
há cerca de um milênio e meio: “Somos todos perversos. O que
76 • SOU EU. CALVINO
um reprova no outro, ele o achará em seu próprio peito. Vivemos 
entre perversos, sendo nós mesmos perversos”.
Á A doutrina reformada da depravação total impede que se veja 
alguma coisa boahp ser humano?
De forma nenhuma. Quando o ser humano se mede por outro 
ser humano, ele é sempre capaz de encontrar algum bem em si 
mesmo ou nos outros. Antes de cometer um crime de morte, 
o assassino pode socorrer uma criança que acaba de cair do 
cavalo e, antes de voltar para casa, ele pode encher de alpiste as 
gaiolas dos passarinhos da casa daquele que ele acaba de matar. 
O homem iníquo pode construir escolas, creches e hospitais. 
E preciso fazer distinção entre depravação total e depravação 
absoluta. Depravação total não significa que o ser humano seja 
incapaz de realizar algum bem humano. Porém, insisto que ela 
significa que o homem e a mulher são tão degradados quanto 
podem ser e estão ambos distantes de toda capacidade de se 
autoajudarem, porque, como expressa Paulo, eles estão mortos 
em delitos e pecados.
Á Em vista da depravação total, há alguma esperança para o 
pecador?
A única esperança da vítima da depravação total, como afirmei 
antes, está na maravilhosa graça de Deus. Quando ela o alcança, 
o pecador se vê noutro espelho e percebe o quanto é horroroso, 
mais por dentro do que por fora. Ele se vê feio demais e culpado 
demais. Ele eleva os olhos para o monte e pergunta: “De onde 
virá o meu socorro?”. Então ele não mais enxerga a ira de Deus, 
mas a sua misericórdia com tanta clareza que pode exclamar 
profundamente: “O meu socorro vem do Senhor Deus, que fez 
o céu e a terra” (SI 121.2); ou: “Graças a Deus por Jesus Cristo!”.
Jo ã o C a lv ino (1509 -1564 ): “ O m itir C a lv ino d a s fo rça s d a evo lu çã o oc id e n ta l 
é in te rp re ta r a h is tó r ia co m um o lh o fe c h a d o ” (Lord Jo h n M orley)
Paris, c id a d e d e 300 m il h a b ita n te s , o n d e C a lv in o fo i c o le g a d e V ille g a ig n o n e Loyo la . 
D o o u tro la d o d o r io S ena vê -se a C a te d ra l d e N o tre D am e
Genebra, cidade-estado à margem do lago Léman e rodeada de montanhas.
Aqui Calvino viveu a medade de sua vida
Ja c q u e s Le fèvre D ’É tapIes (1 4 5 5 -1 5 3 6 ), o p ro fe sso r d a S o rb o n e q u e re d e sco b riu o so la 
g ra tia a n te s d e Lu te ro e C a lv in o
< \T IN \ II í f t IS | I S L I \ VI t MPM
P ie rre R o b e rt O livé ta n (1 5 0 6 -1 5 3 7 ), p r im o d e C a lv in o e c o n v e rt id o à fe re fo rm a d a a n te s 
de le , t ra d u to r d a B íb lia e m fra n cê s
G u ilh e rm e Farei (1 4 8 9 -1 5 6 4 ) c o m e ç a a p re g a r o eva n g e lh o e m G en e b ra em 1532, 
a o s 43 ano s
A n to in e F ro m e n t (1 5 1 0 -1 5 8 4 ) e su a e s c o la d e língua fra n c e s a e m G en e b ra co m a
in te n çã o d e c o n q u is ta r a c id a d e pa ra a R e fo rm a
A p ó s um d e b a te p ú b lic o , a c id a d e d e G enebra reso lve a d e rir à R e fo rm a 
(27 d e a g o s to d e 1535)
D e po is d e se r e xp u lso d e G e n e b ra em a b ril de 1538, C a lv in o v o lta à c id a d e em 
se te m b ro d e 1541 a c o n v ite d o P e qu e n o C onse lh o
Pierre V ire t (151 1 -1 5 7 1 ), um d o s a m ig o s m a is 
ch e g a d o s d e C a lv in o e p ro fe sso r da A c a d e m ia 
de G enebra , in a u g u ra d a em 
ju n h o d e 1559
E d w ard S eym our, d u q u e d e S o m erse t, regen te 
d a Ing la te rra d u ra n te a m e n o rid a d e de E d ua rdo 
VI, m o rto no p a tíb u lo d o ze ano s an tes d a m o rte 
d e C a lv in o , c o m o qua l se co rre sp o n d ia
T h e o d o re d e B e za (151 9 -1 6 0 5 ), s u b s t itu to d e 
C a lv in o no p ú lp ito da ca te d ra l d e G e n e b ra e 
a u to r d e A H is tó r ia da V ida e M o rte d o F in ad o 
Sr. J o ã o C alv ino , F ie l S e rv id o r d e Je su s C ris to
E d uardo VI (153 7 -1 5 5 3 ), f ilh o d a te rce ira esp o sa 
d e H e n rique VIII e rei d a Ing la te rra e d a Irlanda 
na é p o ca em qu e o p ro te s ta n tis m o to rn a -s e a 
re lig ião es ta ta l
CARDINAL SADOI.ETO . VÍMT» | CALVIN.
Ja co p o S a do le to (1477-1547 ), la tin ista, filósofo , teó lo go e cardeal. N a ten ta tiva 
de re co n q u is ta r G eneb ra pa ra o ca to lic ism o , en tre g o u p e sso a lm en te a C a lv ino 
um a c a rta d e 48 p á g in a s
C o m o p a s to r d a C a ted ra l de S a in t Pierre, C a lv ino não p e rm ite q u e o s lib e rtin o s 
p a rt ic ip e m d a C e ia d o S e n h o r
C JttT E r-n tM C H B ÍÒ -lU S rAIIBWEI.1. ÍEKMOX I S SXrFCTATIOM o r 2A M SUU EST.
N o d ia 6 d e feve re iro d e 1564, c in c o m e se s a n te s d e c o m p le ta r 5 5 a n o s e trê s 
m e se s a n te s d e m orrer, J o ã o C a lv in o p re g a p e la ú ltim a ve z na ca te d ra l d e 
G eneb ra
Todas as I lus tra ções fo ra m re tira d a s de : W YLIE , Ja m e s A itke n . The H is to ry o f 
P ro te s ta n tism , v. 2. Londes, Paris e N ova York: C asse i & C o m pa ny , L im ited , 
1878
10
O ABSOLUTAMENTE SANTO 
E O ABSOLUTAMENTE PECADOR
Nunca tente ôuscar a (Deus em outro fugar 
senão em sua (Pafavra
-4 Seus comentários bíblicos enchem não sei quantos volumes nem 
quantas páginas. A edição de 1541 de “As Institutas” tem quatro 
volumes e quase mil páginas. Se fossem impressas suas centenas 
de cartas, teríamos mais alguns livros e mais algumas páginas. A 
minha pergunta é: para conhecer melhor suas idéias religiosas qual 
deles seria mais indicado?
Como deixo bem claro no próprio livro, eu indicaria, sem 
pestanejar, As Institutas.
Á Costuma-se dizer que o senhor é mais um cérebro do que uma 
pessoa...
O cérebro foi criado por Deus e é uma bênção. Pensar é tam­
bém crer. Uso meu cérebro para servir a Deus. Mas um cérebro 
não cativo às Escrituras e ao Espírito é uma desgraça. Por ter 
cérebro, tentei fornecer ao leitor de As Institutasa maior clareza
86 • SOU EU, CALVINO
possível e escrever uma obra a mais abrangente possível. Além 
de cérebro, tenho coração; além de corpo, tenho alma.
Á 0 que significa ter um cérebro cativo às Escrituras?
IsscTquer dizer que eu sou um teólogo bíblico, um escritor 
bíblico, um pregador bíblico, um professor bíblico. A primeira 
e mais relevante fonte de minhas idéias religiosas é a Bíblia. 
Sinto-me um obediente expositor das Sagradas Escrituras. A 
Europa está cada vez mais cheia de livros religiosos. Como dizia 
Lutero, há autores que “enchem livros inteiros de baboseiras 
e poluem todas as igrejas com essa conversa fiada e inútil que 
eles próprios não entendem”. Deixando-me influenciar pela 
Bíblia e sendo fiel ao que ela diz, não tenho como nem quero 
produzir mais uma coleção de baboseiras.
Á O senhor dedicou a primeira edição de “As Institutas” a Francisco I, 
rei da França de 1515 a 1547. Se ele realmente leu o livro, ele teria 
descoberto o ponto central de seu pensamento religioso?
A primeira edição era muito pequena e parecia mais um cate­
cismo. Mas o ponto central de todas as edições de As Institutas 
é Jesus Cristo. Meu pensamento é dominantemente cristocên- 
trico, não apenas pelo fato de que ele se centraliza na revelação 
de Deus em Jesus, mas também porque essa revelação desvenda 
um paradigma que governa outras áreas centrais do pensamento 
cristão. Outra vez cito Lutero: “O ponto principal do evangelho, 
seu fundamento, é acolher e reconhecer Cristo como dádiva 
e presente que nos foi dado pessoalmente por Deus”. Se meu 
livro trata das institutas da religião cristã, como seria possível 
deixar Jesus em outro lugar que não fosse o primeiro? A ênfase 
demasiada que temos dado à filosofia tem equiparado 
Aristóteles a Cristo. Se todo cristão reformado tem a obrigação 
de reconhecer Cristo no centro de sua fé, de seu cérebro, de suas
0 ABSOLUTAMENTE SANTO EO ABSOLUTAMENTE PECADOR • 87
emoções e de sua vida, mais obrigação ainda tem os seus pastores 
e os seus teólogos! Não podemos permitir o eclipse de Cristo.
Á A “Suma Teológica” , de Tomás de Aquino, publicada em 1271, 
tem a seguinte estrutura: 512 questões, 2.669 artigos e mais de 
10.000 críticas e réplicas. Qual é a estrutura de “As Institutas”?
A edição de 1559 divide-se em quatro livros, cada um deles 
tratando de um tema geral. Cada livro é dividido em capítulos 
e cada capítulo, dividido em seções. Isso facilita a leitura, a 
releitura, o manuseio, o ensino e as citações. O que me levou 
a organizar o livro dessa maneira foi minha preocupação pe­
dagógica. O Livro 1 trata da doutrina de Deus, da sua criação 
e providência. O Livro 2 trata dos fundamentos da doutrina 
da redenção, do pecado e da pessoa e obra de nosso Redentor, 
isto é, de Jesus Cristo. O Livro 3 trata da aplicação da obra de 
Cristo (fé, arrependimento, justificação, eleição) e contém um 
pequeno manual da vida cristã. E o Livro 4 trata da doutrina 
da Igreja - seu ministério, seus sacramentos e sua relação com 
o Estado.
Á O senhor insiste em dizer que “o conhecimento de Deus e o 
conhecimento de nós mesmos são interligados” . Como assim?
O que tenho dito é que, sem o conhecimento de Deus, não 
podemos nos conhecer verdadeiramente; e, sem nos conhecer­
mos, não podemos conhecer a Deus verdadeiramente. As duas 
formas de conhecimento estão unidas por muitos vínculos. 
Embora sejam distintas, não podem ser separadas. É impossí­
vel alcançar qualquer uma delas isoladamente. Exemplifico: o 
conhecimento de um Deus absolutamente santo me obriga a 
conhecer um ser humano absolutamente pecador, e vice-versa. 
O conhecimento de um Deus perdoador me obriga a conhecer 
um ser humano culpado, e vice-versa.
• SOU EU, CALVINO
Á Como se pode chegar ao conhecimento de Deus?
O conhecimento genérico de Deus pode ser discernido por 
meio da criação. Além disso, Deus dotou os seres humanos de 
um senso ou pressentimento inato sobre sua existência. Chamo 
isso de sensws divinitatis (senso de divindade) ou semen religionis 
(semente de religião). É como se algo sobre Deus já estivesse gra­
vado no coração de cada pessoa. Como consequência, vejo três 
fenômenos: a universalidade da religião, a consciência de alguma 
culpa e o temor servil de Deus. Qualquer pessoa, por meio de 
uma reflexão racional e inteligente a respeito da criação, deve 
ser capaz de alcançar o conceito de Deus. A criação é como um 
teatro ou um espelho através do qual se demonstra a presença de 
Deus, de sua natureza e seus atributos. É por isso que eu tenho 
apego à astronomia e a outras ciências naturais. Elas são capazes 
de ilustrar, com maior profundidade, a maravilhosa ordem da 
criação e a sabedoria divina que ela aponta. Embora tanto invi­
sível como incompreensível, Deus se faz conhecer pelo fato de 
vestir a roupagem da criação. Apesar de imperfeito e confuso, 
esse conhecimento inicial de Deus já é suficiente para privar 
a humanidade de qualquer desculpa de ignorá-lo. Esse seria o 
primeiro degrau a subir. O conhecimento mais completo e mais 
pormenorizado de Deus vem pelo conhecimento das Escrituras 
e do próprio Jesus, que disse: “Ver a mim é ver o Pai” (Jo 14.9).
á Uma simples leitura da Bíblia pode nos levar a Deus?
As Escrituras somente podem ser lidas e compreendidas de 
forma adequada por meio da iluminação do Espírito Santo. É 
necessário ter em mente que as Escrituras representam a pala­
vra de Deus mediada na forma de palavras humanas, sobre as 
quais pesa a autoridade divina, devido à sua origem. É como 
Pedro explica: “Nenhuma profecia das Escrituras é assunto de 
opinião particular. Por quê? Porque não é algo produzido no
0 ABSOLUTAMENTE SANTO E O ABSOLUTAMENTE PECADOR • 89
coração humano. A profecia resulta da ação do Espírito Santo, 
que impulsionou homens e mulheres a proclamar a Palavra de 
Deus” (2Pe 1.21). O divino e o humano coexistem sem que 
comprometam nem destruam um ao outro. Se Deus só pode 
ser plenamente conhecido por meio de Jesus Cristo, como 
afirmei na resposta anterior, Jesus Cristo, por sua vez, só pode 
ser conhecido pelas Escrituras. Minha regra é: nunca tentar 
buscar a Deus em outro lugar que não for a sua Santa Palavra, 
nem falar ou pensar a seu respeito além daquilo que a Bíblia, 
como nosso guia, nos apresenta.
á O senhor tem preferência pelo Antigo Testamento ou pelo Novo 
Testamento?
Não existe, ou não deveria existir, essa rivalidade entre um e outro. 
Reporto-me a Paulo: “Toda a Escritura Sagrada é inspirada por 
Deus e é útil para ensinar a verdade, condenar o erro, corrigir as 
faltas e ensinar a maneira certa de viver” (2Tm 3.16). Existe uma 
semelhança e uma continuidade fundamentais entre o Antigo e 
o Novo Testamento. Deus não pode ter um tipo de procedimento 
no Antigo Testamento e, a seguir, depois do período intertesta- 
mentário, adotar outro procedimento totalmente diferente no 
Novo Testamento. Isso porque ambos celebram e proclamam 
a graça de Deus, manifestada em Jesus Cristo. Pode ser que o 
Antigo Testamento seja capaz de testemunhar sobre Jesus somente 
à distância e de maneira obscura. No entanto, esse testemunho 
da vinda de Jesus é real. Em termos de substância e conteúdo, os 
Testamentos são efetivamente idênticos. Não há descontinuidade 
radical alguma entre eles. O que ocorre é que o Antigo Testamento 
ocupa uma posição cronológica diversa do Novo Testamento no 
plano da salvação. Existem algumas diferenças entre um e outro. 
Entre elas, cito somente duas. Primeira: o Antigo Testamento evoca 
o medo e o temor, mantendo a consciência cativa, enquanto o 
Novo Testamento evoca uma resposta baseada na liberdade e na
90 • SOU EU. CALVINO
alegria. Segunda: a revelação do Antigo Testamento se restringia 
à nação de Israel enquanto a revelação do Novo Testamento é 
universal em seu propósito. Com a vinda de Cristo, essa diferemça entre judeus e gentios, circuncisos e incircuncisos foi abolida. 
Em momento algum Deus mudou de ideia ou alterou, de forma 
radical, seus propósitos. Ele simplesmente os tomou mais claros, 
de acordo com as limitações impostas à compreensão humana. O 
que ocorreu foi o avanço progressivo do plano divino, que somente 
se tornou claro quando o Verbo se fez carne. Concluindo, Cristo 
é revelado e a graça do Espírito Santo é oferecida tanto no Antigo 
Testamento como no Novo Testamento, porém de forma mais 
clara e plena neste último.
V Qual a obra mais importante realizada por Jesus Cristo: revelar 
o Pai ou trazer a salvação aos pecadores?
Aí está outra dicotomia desnecessária. Jesus veio tanto para nos 
revelar o Pai como par,a propiciar a salvação para os condenados. 
A pessoa e a obra de Jesus Cristo são de importância central 
para o plano da salvação arquitetado na eternidade, antes da 
fundação do mundo. Já que nos era impossível alcançá-la, por 
causa da Queda e em razão de nosso pecado, Deus optou por 
descer até nós na pessoa de seu Filho. Por meio de sua obedi­
ência a Deus como um ser humano, Cristo apresentou ao seu 
Pai um sacrifício que remiu todo pecado, anulando toda dívida 
e pagando toda sanção que pudesse ser devida por esse motivo. 
Por meio de seu sofrimento, Cristo pagou a dívida. Por meio de 
sua vitória sobre a morte, ele libertou a raça humana do poder 
da morte e foi capaz de nos trazer de volta ao favor divino por 
meio do oferecimento de sua morte como redenção pelos nossos 
pecados. É por tudo isso que insisto em minhas pregações, em 
meus livros, em minhas aulas, em minhas cartas, tanto ao rei 
da França como ao rei da Inglaterra, tanto aos nobres como 
aos plebeus, que a salvação ocorre somente por meio de Cristo!
11
A EUROPA PEGA FOGO 
MAIS PELA PALAVRA ESCRITA 
DO QUE PELA PALAVRA FALADA
0 que nos Cevou a escrever As Institutas 
fo i o desejo de treinar estudantes de teoíogia
Á A reforma é um avivamento religioso?
E muito mais do que um avivamento. O avivamento é uma 
onda que varre a igreja de tempos em tempos, despertando-a, 
tirando-a do marasmo. É a passagem da fé menor para a fé 
maior, do cálice pela metade para o cálice cheio, da entrega 
parcial para a entrega total, da mesmice de sempre para a novi­
dade de vida, das obras da carne para os frutos do Espírito, da 
posse do Espírito para a plenitude do Espírito. É um período 
de convicção de pecado, de arrependimento, de confissão, de 
restauração, geralmente menos durável do que uma reforma. 
Um avivamento revigora a igreja e torna a dar a ela paixão 
missionária. A Bíblia é lida com mais regularidade e proveito. 
Ora-se mais e melhor.
92 • SOU EU, CALVINO
Á O que é reforma?
Uma reforma na igreja proporciona tudo aquilo que um avivamento 
provoca e muito mais. A reforma é um banho muito mais amplo 
e completo do que aquilo que acontece em tempo de avivamento. 
A reforma mexe com a estrutura, com os dogmas, com a liturgia, 
com a doutrina, com as tradições, com a moralização, com a pre­
gação, com os princípios e com a história e a vocação da igreja. 
E algo operado por Deus de modo soberano e eficaz.
A O mundo está experimentando uma reforma em nossos dias?
Muito certamente. Por mais de trezentos anos, ela tem sido 
desejada. Deus nunca desampara a sua igreja. No século 14, 
apareceram aqui e ali, em várias partes da Europa, focos de 
verdadeira piedade e desejo ardente de reforma. Poderia citar, 
como exemplo e em ordem cronológica, os mais notáveis nomes: 
João Ruysbroeck (1293-1381), Henrique Suso (1295-1366), 
João Tauler (1300-1361), Gerhard Groote (1340-1384), 
Florentino Radewijns (1350-1400), João Gerson (1363-1429) 
e o formidável Tomás de Kempis (1380-1471). O mais recente 
é João Eck, que morreu em 1543. Talvez eles nunca tenham 
se encontrado, porque moravam longe uns dos outros - na 
Alemanha, nos Países Baixos, na Inglaterra, na Bélgica e até 
mesmo no meu país. Além destes, eu citaria também algumas 
mulheres, como Brígida, da Suécia, e Catarina de Sena, nasci­
das, respectivamente, no alvorecer e na metade do século 14.
Á Torno a perguntar: esse insistente desejo de reforma estaria 
sendo satisfeito hoje?
O marco histórico mais visível de que estamos vivenciando uma 
reforma nos dias de hoje aconteceu na cidade alemã de Wittenberg 
no dia 31 de outubro de 1517, na véspera do Dia de Todos os 
Santos. Foi quando Martinho Lutero, ainda monge, divulgou
A EUROPA PEGA FOGO MAIS PELA PALAVRA ESCRITA • 93
as suas famosas Noventa e Cinco Teses por toda a Alemanha (dez 
dias depois ele comemoraria seu 34° aniversário). Leão X, o papa 
da época, não se preocupou muito com o gesto de Lutero. Mas, 
quando soube que os agostinianos de Heidelberg tinham lhe dado 
apoio, mandou chamá-lo a Roma, na esperança de fazê-lo calar 
e se desculpar por ter escrito aquele documento revolucionário. 
Contudo, o monge não capitulou, nem ali nem na carta escrita 
ao pontífice no mês seguinte. Então a Europa pegou fogo.
á Além de Lutero, há outros homens comprometidos com a Reforma?
Dificilmente Deus faz alguma coisa por meio de uma pessoa 
só. Veja os exemplos de Moisés e Arão, de Josué e Calebe, de 
Débora e Baraque, de Esdras e Neemias, de Ester e Mordecai, 
de Pedro e João, de Paulo e Barnabé. O quanto consigo me 
lembrar, por ordem cronológica, cito os nomes de Erasmo de 
Roterdã (nascido em 1467), Guilherme Tyndale (1484), Hugo 
Latimer (1487), Johann Bugenhagen (1485), Guilherme Farei 
(1489), Filipe Melâncton (1497) e John Knox (1505). Eles são 
da Alemanha, Suíça, Escócia, País de Gales, Inglaterra e Países 
Baixos. Por uma questão de justiça histórica, não posso deixar 
de fora aqueles que chamamos de pré-reformadores, como o 
inglês John Wycliffe (nascido em 1320) e o boêmio Jan Hus 
(nascido 50 anos depois). E, é claro, eu também, pela graça de 
Deus, me incluo entre os atuais reformadores.
^ O senhor fez mais pela Reforma como pastor da igreja de 
Genebra ou como escritor?
Dei a minha contribuição tanto como pastor quanto como autor 
de livros. Além de promover a reforma em Genebra, a igreja de lá 
se tornou um modelo de igreja reformada na Europa. Mais ainda, 
centenas de reformados vieram morar em Genebra para escapar 
da perseguição religiosa em seus países. Entretanto, quero admitir
94 • SOU EU. CALVINO
que eu tenho feito mais pela Reforma por meio da palavra escrita 
do que pela palavra falada. Desenvolví quatro gêneros literários: 
produzi livros de teologia, comentários bíblicos, tratados e escrevi 
milhares de cartas de conteúdo bíblico. Tive contato com mais de 
trinta editores na França, na Inglaterra, na Alemanha e na Suíça. 
Meus livros foram traduzidos do latim ou do francês para cinco 
diferentes línguas (inglês, alemão, holandês, italiano e espanhol).
^ De todas as suas obras, qual a que mais fez pela Reforma?
Estou convencido de que foi As Institutas - a primeira que escrevi, 
quando ainda era um moço de 27 anos. A primeira edição saiu 
em 1536 e foi publicada pelos editores Thomas Platter e Balthasar 
Lasius, em Basiléia. Até o momento, já fizemos 25 edições. O que 
me levou a escrever esse livro foi o desejo de preparar e treinar 
estudantes de teologia para o estudo da Palavra de Deus, de modo 
que eles tivessem acesso a ela e fossem capazes de prosseguir nessa 
estrada sem quaisquer obstáculos. Não esperava que As Institutas 
fizessem o que estão fazendo. Lembro-me de que certo homem 
chamado Marcus Bersini fez pouco caso dela ao escrever ao re­
formador Joachim von Watt, que o meu livro era “um catecismo 
dedicado ao rei da França, de autoria de algum francês”. Tenho 
feito várias revisões e acréscimos no decorrer dos anos. A maior 
delas foi na segunda edição, três anos depois da primeira. Ela é 
três vezes maior, de seis capítulos passou a ter dezesseis. Minha 
obra é um dos 250livros proibidos de se ler na França. Ele está 
no Catalogue des Livres Censurés, publicado pela Universidade de 
Paris, por volta de 1540.
á Como explicar o sucesso da Reforma na Europa?
A Reforma provocou um fenômeno curioso: as complexidades da 
exegese bíblica, a política eclesiástica e a dogmática teológica, até 
então nas mãos do alto clero, penetraram, subitamente, no domínio
A EUROPA PEGA FOGO MAIS PELA PALAVRA ESCRITA • 95
público. Lutero, por exemplo, a partir de 1520, deixou de ser 
reformador acadêmico (que argumentava em latim para um público 
acadêmico) para ser um reformador popular (que argumentava em 
alemão para um público mais extenso). Traduzimos a Bíblia para 
a língua do povo e incentivamos a sua leitura. Aproveitamos ao 
máximo a invenção da imprensa, ocorrida na metade do século 
passado (chega-se a dizer que a Reforma é “filha da imprensa”).
Á Embora o reformador Joachim von Watt tivesse bem mais chan­
ce em St. Gallen do que o senhor em Genebra, ele teve menos 
sucesso. Por quê?
Watt, mais conhecido por Vadian, era 25 anos mais velho do 
que eu e morreu em 1551. Ele morava numa cidade suíça que 
apresentava diversas semelhanças em relação a Genebra. Eu ainda 
estudava em Paris quando Vadian já havia colocado sua cidade 
nos trilhos da Reforma. Enquanto eu era um mero estrangeiro 
em Genebra, ele era um cidadão de St. Gallen, filho de uma das 
mais proeminentes famílias da cidade. Aos 45 anos, ele ocupava 
uma posição de muita autoridade, que durou até sua morte, 
32 anos depois. Creio que o problema de Vadian é que a reforma 
■ por ele realizada estava voltada principalmente para a alteração do 
modo de vida e da moralidade e visava mais a cidade e a região 
onde vivia. Nesse sentido, ele se parece muito com o dominicano 
Jerônimo Savonarola, cuja reforma só mexeu com os vícios e os 
escândalos da igreja, e não com as doutrinas (ele foi degredado, 
enforcado e queimado aos 46 anos na cidade italiana de Florença, 
onde exerceu o seu curto ministério de 1490 a 1498). O zelo mis­
sionário que eu tenho era praticamente ausente na perspectiva 
de Vadian. Outra diferença é que as obras escritas por ele, que 
era um acadêmico humanista de fama internacional e que che­
gou a ser reitor da Universidade de Viena, permanecem em sua 
forma manuscrita, isto é, não foram publicadas. E, se o fossem, 
alcançariam mais os convertidos do que os não reformados.
96 • SOU EU, CALVINO
A Lutero dizia que reforma deve ser uma constante na vida da 
igreja. O senhor concorda?
A famosa frase de Lutero é “Ecclesia reformata semper reformanda”, 
isto é, a igreja reformada tem de ser constantemente reformada. 
Assino embaixo. Pois é preciso levar a sério o drama da fraqueza 
humana. Qualquer pessoa que leia o Antigo Testamento encon­
trará duas histórias, uma atrás da outra: a triste história do desvio 
e a bela história da volta. No período de algumas centenas de anos, 
o povo eleito passou pelas reformas de Asa (2Cr 15), do sacerdote 
Joiada (2Cr 23), de Ezequias (2Cr 29-31), de Josias (2Cr 34-35) e 
de Esdras (Ed 8-10). Reforma é o movimento permanente na igreja 
para restaurar a energia e a espiritualidade nas suas instituições. 
É uma oportunidade ímpar para se rever qualquer desvio não só 
de comportamento, mas também de ordem dogmática.
A, Há sujeiras na igreja?
Muitas. No povo, no baixo clero, no alto clero, nos papas. 
Cada reforma é uma limpeza. Uma limpeza de alto a baixo. Sua 
pergunta me faz lembrar a promessa feita por Deus durante o 
reinado de Manassés: “Limparei Jerusalém como se limpa um 
prato por dentro e por fora” ou “como um prato que se esfrega, 
virando-se de um lado para o outro” (2Rs 21.13).
A As cartas às sete igrejas da Ásia Menor sugerem alguma reforma?
Das sete, apenas as igrejas de Esmirna e Filadélfia não preci­
sam de restauração. A igreja de Éfeso precisa recuperar o amor 
perdido ao longo dos anos. A de Pérgamo precisa recuperar a 
ortodoxia perdida. A de Tiatira precisa recuperar a ortopraxia 
perdida. A de Sardes precisa recuperar o entusiasmo perdido. 
E a de Laodiceia precisa recuperar a seriedade perdida.
12
A ELEIÇÃO REQIJER 
EVANGELIZAÇÃO
Se não entramos no santuário da sabedoria divina para entender 
a predestinação, entraremos em um íáôirinto sem saída
A Um dos seus ensinos mais conhecidos é o que diz respeito à 
predestinação. Depois de Paulo, o senhor é o primeiro a escrever 
sobre o assunto?
Respondo a sua pergunta com esta declaração de Agostinho, 
que viveu na segunda metade do século 4o e no início do século 
seguinte, retirada de sua obra A Graça: “Ninguém conseguiu 
discorrer contra a predestinação que de acordo com as Santas 
Escrituras defendemos, a não ser incorrendo em erro”. É por isso 
que, em certa ocasião, empolgado, eu declarei que “Agostinho 
é totalmente nosso!”. Ele combateu duramente Pelágio e seus 
companheiros Celéstio e o bispo Juliano de Eclano, seus contem­
porâneos que pregavam o absurdo de que os seres humanos são 
capazes de merecer a salvação, emprestando assim uma ênfase 
considerável sobre o papel e o valor das obras e minimizando 
o conceito bíblico da graça divina. Como eu, Agostinho fazia 
distinção entre a igreja visível, que inclui tanto os eleitos como
• SOU EU. CALVINO
os reprovados, e a igreja invisível, que inclui apenas os eleitos. Por 
algum tempo, a ideia de predestinação ficou adormecida. Voltou 
à tona, aqui na Europa, por volta de duzentos anos atrás, com 
a chamada Escola Agostiniana Moderna, da qual participaram 
teólogos proeminentes, como Gregório Rimini (morto por volta 
de 1358) e Hugolino de Orvieto (morto por volta de 1457), que 
chegaram a ensinar a dupla predestinação absoluta, segundo 
a qual Deus destina alguns para a vida eterna e outros para a 
condenação eterna, sem que se faça qualquer referência a seus 
méritos e deméritos. É um grande engano pensar que fui eu o 
arauto da predestinação. Se há um arauto particular, esse homem 
é Paulo. A começar (quem sabe?) com a famosa explicação contida 
na Carta aos Romanos, de acordo com a qual Jacó é escolhido 
e Esaú, rejeitado, quando ambos ainda estavam no ventre de 
Rebeca e não tinham feito nem o bem nem o mal “para que o 
propósito de Deus, segundo a eleição, ficasse firme” (Rm 9.11).
á Como o senhor resolve a delicada questão da diferente recepti­
vidade do evangelho por parte daqueles que ouvem o anúncio das 
boas novas na mesma ocasião, no mesmo lugar e do mesmo modo?
A explicação não é porque um é mais ou menos pecador do que 
o outro. A história mostra que, às vezes, é o mais pecador que 
aceita o evangelho. Na parábola do filho pródigo, por exemplo, 
foi o que mais se distanciou que caiu em si e se converteu. Jesus 
dizia que os publicanos e as meretrizes eram mais suscetíveis 
ao arrependimento do que os legalistas. Também não se pode 
afirmar o contrário, ou seja, que a eleição alcança mais o inve­
terado pecador do que os demais pecadores. A igreja visível e 
invisível está cheia de pessoas como Natanael, “homem direito 
e sincero” (Jo 1.47), e como os ex-assaltantes, os ex-idólatras, os 
ex-adúlteros, os ex-caluniadores e os ex-homossexuais da igreja 
de Corinto (ICo 6.9-11). A única explicação para esse complexo 
problema, penso, é a prévia eleição dos que deveríam ser salvos.
A ELEIÇÃO REQUER EVANGELIZAÇÀO • 99
Á Quem é eleito? Quantos são?
Quanto à primeira pergunta, respondo positiva e negativamente. 
O eleito não é aquele que foi escolhido porque Deus sabia 
de antemão que ele desejaria, em algum tempo de sua vida, 
ser salvo. O eleito é aquele que é misteriosamente tocado por 
Deus em algum tempo de sua vida para desejar ser salvo. O 
processo da salvação não começa com a pregação do evange­
lho, com a boa vontade inicial de aceitar o evangelho, com o 
arrependimento, com a fé salvadora, com a conversão e muito 
menos com o batismodo pecador. O processo da salvação não 
começa aqui nem agora. Ele começa lá em cima, na eternidade 
de Deus, antes da criação dos céus e da terra, antes de o Verbo 
se fazer carne, antes do mandato da grande comissão, antes da 
descida do Espírito, antes da chegada da Bíblia e de qualquer 
missionário pioneiro. Quanto à segunda pergunta - quantos 
são? -, eu não sei e ninguém sabe. Essa questão de números é 
uma intromissão desnecessária e até mesmo irreverente. Prefiro 
reportar-me à experiência de João na ilha de Patmos: “Depois 
disso olhei e vi uma multidão tão grande, que ninguém podia 
contar. Eram de todas as nações, tribos, raças e línguas. Estavam 
[todos] de pé diante do trono e do Cordeiro, vestidos de roupas 
brancas, e tinham ramos de palmeiras nas mãos. E gritavam 
bem alto: ‘Do nosso Deus, que está sentado no trono, e do 
Cordeiro vem a nossa salvação’” (Ap 7.9-10).
A Perdoe-me tocar num assunto familiar. Em 1557, sua cunhada 
Ana foi apanhada em adultério com seu mordomo Pierre. Cinco 
anos depois, o mesmo aconteceu com sua enteada Judite, tida 
como uma mulher virtuosa e piedosa. Minha pergunta é: Ana e 
Judite fazem parte dos chamados eleitos?
Não sei, não devo, e nem quero responder. Só Deus sabe. O 
fato de terem caído em pecado pode significar que elas não 
tenham sido eleitas para a salvação. Mas não obrigatoriamente!
100 • SOU EU. CALVINO
Ninguém duvida da eleição de Davi, embora tenha cometido 
adultério com a mulher de Urias e mandado matar o marido 
dela. O fato daquele homem em Corinto ter se arrependido 
do adultério cometido com a mulher de seu pai mostra que ele 
é um dos eleitos.
á Paulo declara que, em homenagem a Jesus, todas as criaturas 
no céu, na terra e no mundo dos mortos vão cair de joelhos diante 
dele, declarando abertamente que ele é o Senhor (Fp 2.9-11). O 
apóstolo refere-se aos eleitos?
Paulo refere-se a todas as criaturas, à criatura angelical e à 
criatura humana, aos vivos e aos mortos, a todo filho de Adão 
no tempo e no espaço. Entre essa inumerável multidão, estão 
todos os eleitos e todos os constrangidos. Chamo de eleitos os 
que foram escolhidos, chamados, levados ao arrependimento e 
à fé e salvos. Chamo de constrangidos os que não foram esco­
lhidos, nem levados ao arrependimento e à fé, nem salvos, mas 
que não têm como hão admitir que Jesus Cristo é o Senhor. 
Esses constrangidos são como os demônios que creem que há 
um só Deus e tremem de medo, como explica Tiago (Tg 2.19). 
Não podemos nos esquecer daquela moça possuída por um 
espírito imundo que gritava o tempo todo que Paulo e Silas 
eram servos do Deus Altíssimo e pregadores do caminho da 
salvação (At 16.17). Nem daquele homem possesso na sinagoga 
de Cafarnaum que tratou Jesus tanto como o nazareno como 
“o santo de Deus” (Mc 1.24). Nem ainda daquele endemoni- 
nhado de Gadara que também chamou Jesus de “o Filho do 
Deus Altíssimo” (Mc 5.7).
^ Qual a sua definição de eleição?
Eleição é o imutável propósito de Deus, pelo qual ele, antes da 
fundação do mundo, escolheu um número grande e definido 
de pessoas para a salvação, por pura graça. Esses agraciados
A ELEIÇÃO REQUER. EVANGELIZAÇÃO • 101
foram escolhidos de acordo com o soberano e bom propósito 
da vontade de Deus dentre todo o gênero humano, conjunta­
mente caído, por sua própria culpa, de sua integridade original 
para o pecado e a perdição. Os eleitos não são melhores ou 
mais dignos que os outros, mas envolvidos na mesma miséria. 
Reforçando, eleição é o ato eterno de Deus por meio do qual 
ele decretou - livre, soberana e misericordiosamente - salvar 
em Cristo Jesus um determinado número de pessoas dentre 
toda a raça humana voluntariamente caída, aplicando, no de­
correr da história, a sua graça redentora, capacitando homens 
e mulheres, jovens e adultos, judeus e gentios, pecadores mais 
pecadores e pecadores menos pecadores a responderem com fé, 
pela ação do Espírito Santo, à mensagem redentora de Cristo, 
sendo preservados, assim, até o fim.
Á O senhor acaba de usar a expressão “salvar em Cristo Jesus”. 
A eleição depende do sacrifício vicário de Jesus? Não bastaria o 
decreto da eleição em si?
A eleição custa um preço muito alto, não para os eleitos, mas 
para o próprio Deus e para o Senhor Jesus Cristo. Esse preço 
não foi algo que perde o seu valor, como o ouro e a prata, mas 
o precioso sangue de Cristo, o Cordeiro de Deus, sem defeito 
e sem mancha (lPe 1.19). A eleição não ocorre alheia à pessoa 
e ao sacrifício de Jesus. Para que ela acontecesse, alguém teria 
de tomar sobre si o pecado e a culpa dos eleitos. À parte do 
Filho, não há eleição, não há perdão, não há salvação, não há 
vida eterna. Deus nos escolheu em Cristo. Porque, juntamente 
com Cristo, os eleitos foram crucificados, mortos, sepultados, 
ressuscitados e assentados à mão direita de Deus. Veja o que 
Pedro diz: “A salvação só pode ser conseguida por meio de Jesus 
Cristo” (At 4.12). Veja a explicação de Paulo: “Antes da criação 
do mundo, Deus já nos havia escolhido para sermos dele por 
meio da nossa união com Cristo” (Ef 1.4). Note bem: porque
102 • SOU EU, CALVINO
os eleitos foram feitos filhos de Deus, por meio de Jesus, somos 
também herdeiros dele e - olhe só - coerdeiros com Cristo!
(Rm 8.17).
^ Há diferença entre eleição e predestinação?
Entendo que a palavra predestinação é mais ampla e a palavra 
eleição é mais particular. Mas ambas têm igual importância. A 
predestinação diz respeito ao controle absoluto da história do 
ser humano, da igreja, da civilização, da criação. A eleição diz 
respeito à soteriologia, isto é, à doutrina da salvação. Diria que 
a eleição é o clímax da predestinação. Uma e outra fazem parte 
daquilo que chamo de a vontade secreta de Deus, progressiva­
mente revelada a seu bel-prazer. Quem sabe, posso afirmar que, 
na predestinação, Deus é o Senhor da História e, na eleição, 
Deus é o Senhor da Salvação.
á Se Deus já escolheu os que devem ser salvos, por que ir pelo 
mundo inteiro e anunciar o evangelho a todas as pessoas, como 
Jesus ordena?
Porque evangelização e missões fazem parte da eleição. Para o 
eleito ser salvo, ele precisa ouvir a boa nova. E precisamente por 
se tratar de um eleito, o Senhor da Seara fará chegar a ele, em 
algum tempo e de alguma maneira, a voz do evangelho. Veja o 
exemplo do alto funcionário da rainha da Etiópia: Filipe estava 
em Samaria quando o Espírito Santo mandou que ele fosse para 
um determinado ponto da estrada que ligava Jerusalém a Gaza, 
pela qual naquele preciso momento passaria a carruagem oficial, 
cujo único passageiro já estava com a Bíblia aberta na passagem 
que mais fala sobre Jesus no Antigo Testamento (At 8.26-39). 
Veja também a trabalheira que Deus teve para que os eleitos 
de Cesareia, já tocados pelo Espírito, ouvissem o anúncio do 
evangelho (At 10.1-23). Saiba de uma coisa: a eleição requer a 
evangelização. A doutrina da eleição não torna a evangelização
A ELEIÇÃO REQUER EVANGELIZAÇÃO •
desnecessária. Porque Deus não nos fornece uma ficha com 
nome e endereço dos eleitos, temos de anunciar as boas novas 
da morte vicária e da ressurreição de Jesus em todas as nações 
e em todas as línguas, o que gasta muito mais tempo, muito 
mais gente, muito mais esforço e muito mais dinheiro. Por não 
termos essa listagem da predestinação, devemos pregar com 
entusiasmo e paixão missionária a todos, porque sempre haverá 
entre eles um ou mais já tocados por Deus para nos ouvir.
A Repito a pergunta anterior com uma pequena nuança. Se Deus 
já escolheu os que devem ser salvos, por que orar por conversões: 
a conversão do marido, a conversão de um filho, a conversão de 
uma família, a conversão de um povo? A eleição parece tornar 
infantil esse tipo de oração intercessória.
De uma coisa estou plenamente convicto: Deus não vai eleger 
pessoa alguma agora só porque estouorando pela salvação dela. 
A eleição já foi feita. O nome de ninguém pode ser acrescentado 
nem retirado. Caso pudesse o homem fazer algo para antecipar 
a graça de Deus, a eleição deixaria de ser apanágio divino, ainda 
que o direito e o poder dela sejam-lhe expressamente atribuídos. 
Digo-lhe, porém, que sou um entusiasta da oração. Preguei e 
escrevi muito mais sobre a oração do que sobre a predestinação. 
Valendo-me do mesmo raciocínio da resposta anterior, sugiro 
que a oração intercessória em favor da salvação de alguém já 
esteja no bojo do processo de eleição.
á O que o senhor diz do pecador que justifica sua rebeldia à aceita­
ção do evangelho sob a alegação de que não está entre os eleitos?
Isso pode acontecer. A pessoa pode ter razão. Mas é uma teme­
ridade, porque ele não tem acesso ao livro da vida e, portanto, 
não sabe se seu nome está ou não está entre os eleitos. Na maior 
parte dos casos, essa pessoa pode estar zombando da eleição, 
pode estar com medo de negar-se a si mesma, pode estar fugindo
104 • SOU EU, CALV1NO
de Deus, pode estar mostrando o quanto é preguiçosa. Se ela 
for um dos eleitos, em ocasião oportuna, mais na frente, o seu 
coração, subitamente ou não, vai mudar por completo, como 
aconteceu com um dos ladrões crucificados com Jesus, que, 
depois de zombar do Senhor na companhia do outro, confessou 
seus pecados e abraçou a salvação. A propósito, aproveitando 
a oportunidade, aí está um clamoroso exemplo de eleição. Os 
dois ladrões estavam na mesma situação, no mesmo lugar, na 
mesma companhia de Jesus (um à esquerda e outro à direita) e 
ouviram as mesmas primeiras palavras de Cristo na cruz. No en­
tanto, apenas um deles, chamado erradamente de “bom ladrão”, 
veio a obter a promessa de vida eterna. Além das vantagens em 
comum, o outro ladrão teve mais uma oportunidade preciosa: 
assistir a conversão do primeiro e ouvir a exortação dele.
Á Tudo é explicável na predestinação?
Em minha opinião, se a predestinação for estudada e discutida 
sem se entrar no santuário de Deus para ouvir a voz dele, como 
aconteceu com Asafe, entraremos em um labirinto do qual 
nunca se achará saída. Caso não haja humildade e o devido 
cuidado, ela torna-se confusa e até mesmo perigosa. E preciso 
muita prudência para não extrapolar o que está escrito na 
Palavra. A nós, é-nos vedada tanto a retirada como a introdução 
de alguma coisa. Admitamos, como escreve Paulo, que, agora, 
o espelho está embaçado e não vemos tudo com clareza. Mais 
tarde, porém, quando vier o que é perfeito, conheceremos as­
sim como somos conhecidos por Deus (ICo 13.12). Tenhamos 
humildade, calma e paciência!
13
O FRANCÊS JACQUES LEFÈVRE 
REDESCOBRE O S O L A G R A T I A 
ANTES DE LUTERO
0 governo tem vaciíado muito.
Ora se mostra simpático aos reformados, ora recua
á O seu interesse por uma Genebra realmente cristã diminui o seu 
interesse pela França?
Por maior que seja o meu interesse por Genebra, não me esqueço 
da minha terra natal. Permita-me fazer uma paráfrase do Salmo 137: 
“Se algum dia eu me esquecer do lugar onde nasci e cresci e também 
me convertí, que meus dedos sequem e caiam como folhas e que 
minha língua fique grudada no céu da boca”. Em abril de 1555, 
quando os libertinos (os partidários de Ami Perrin) me deixaram 
em paz, meus olhos se voltaram para a França. Imediatamente, a 
Venerável Companhia de Pastores de Genebra (uma espécie de 
conselho de pastores reformados), organizou uma espécie de junta 
de missões e começou a enviar obreiros de Genebra para a França. 
Por questões de segurança, tudo foi feito com a maior discrição 
possível. Por eu ter sido pastor de uma comunidade francesa em 
Estrasburgo e por haver muitos refugiados franceses em Genebra,
106 • SOU EU, CALVINO
construí uma rede de contatos pessoais em cinco cidades: Angoulême, 
Bourges, Orléans, Paris e Poitiers.
A As missões a partir de Genebra foram as primícias da igreja 
reformada na França?
Antes da nossa presença e influência, a Reforma de Lutero já 
havia chegado à França. As origens da influência de Lutero em 
Paris podem ser datadas do final de 1519, dois anos depois da 
publicação das famosas teses contra as indulgências. Muita gente 
se sentiu atraída pelas propostas da Reforma de Lutero. Entre 
eles, cidadãos comuns, clérigos e acadêmicos. As obras de Lutero 
encontraram um público substancial e entusiasta entre a elite 
intelectual de Paris. Em 1523, a faculdade de teologia de Paris, 
que se reunia cerca de trinta vezes por ano, teve 101 reuniões, 
principalmente por causa do movimento luterano. Na reunião 
de 14 de julho daquele ano, Pierre Lizet, representante de 
Francisco I, rei da França, denunciou os males da reforma ale­
mã. Três semanas depois, o monge agostiniano Jean Vallière 
foi queimado vivo por haver lido e comentado as obras de 
Lutero. Em 4 de dezembro de 1526, sete homens vestidos como 
demônios desfilaram por Paris, puxando um cavalo montado por 
uma mulher, rodeado de homens vestidos como doutores em 
teologia, com a palavra “luteranos” cravada na frente e nas costas.
Á Havia algum vestígio da Reforma na França antes de Lutero?
Entre os livros publicados na França, em 1512, cinco anos an­
tes do grito de Lutero em Wittenberg, destacam-se a tradução 
latina das Escrituras e os comentários das Epístolas de Paulo, de 
autoria do sacerdote Jacques Lefèvre, de 57 anos, professor da 
Sorbonne, em Paris. Curioso é que ele começou a falar sobre o 
sola gratia (só pela graça o pecador pode ser salvo) antes de nós. 
Lefèvre exerceu uma grande influência sobre seus alunos, entre
0 FRANCÊS JACQUES LEFÈVRE REDESCOBRE O SO L A G R A T IA • 107
eles os três Guilhermes: Guilherme Budé, Guilherme Briçonnet 
e Guilherme Farei. O último implantou a Reforma em vários 
lugares da Suíça, especialmente aqui em Genebra. Briçonnet 
veio a ser bispo em Meaux, 44 quilômetros a noroeste de Paris, 
e realizou um trabalho magnífico em favor da Reforma naquela 
cidade. Esses homens fizeram traduções da Bíblia e encorajaram 
as pessoas a estudar a Bíblia por conta própria. Procuravam fazer 
mudanças graduais dentro da estrutura da igreja. Não queriam 
provocar divisão, mas declaravam coisas ousadas.
á Em 1543 e no ano seguinte, o senhor denunciou o nicodemismo. 
Que seita é essa?
Não se trata de uma seita. Nicodemistas são os simpatizantes da 
Reforma Protestante que não rompem com a Igreja Católica. 
Aqueles que, temendo a reação das autoridades católicas, pro­
movem reuniões evangélicas de forma clandestina, nas casas, 
frequentemente à noite. Têm esse nome por causa de Nicodemos, 
aquela autoridade entre os judeus que foi ao encontro de Jesus à 
noite (Jo 3.1). A perseguição aos crentes reformados era e ainda 
é um fato. Em 1555, houve o massacre dos valdenses. Seis anos 
mais tarde, cinco estudantes evangélicos foram martirizados em 
Lyon. O Livro dos Mártires, de Jean Crespin, publicado aqui em 
Genebra, em 1554, provocou medo em muitos discípulos do 
Senhor. Não era fácil ser reformado numa França cada vez mais 
hostil ao evangelho.
Á Quantos pastores a tal Venerável Companhia de Pastores de 
Genebra mandou para a França?
O primeiro, cujo nome não me lembro agora, foi enviado a Poitiers, 
em resposta a um apelo vindo da própria congregação que lá se 
reunia. Segundo os cálculos de Nicolas Colladon, provavelmente 
exagerados, 151 indivíduos foram enviados em missões para a 
França em 1561. O fato é que, nesse ano, a Companhia estava
108 • SOU EU, CALV1NO
atolada de requisições de pastores vindas só da França. Acontecia 
uma coisa muito interessante em Genebra: de vez em quando, um 
dos nossos pastores simplesmente desaparecia, sem qualquer aviso, 
e reaparecia posteriormente, em algum canto remoto da França. 
Chegamos a ter falta de pastores em Genebra para suprir a crescente 
demanda das igrejas francesas.Até mesmo a cidade de Lausanne 
ficou sem pastores por um período. Éramos muito sensíveis à con­
vocação de voluntários para auxiliar na evangelização da França.
Á De uma hora para outra, um pastor podia arrumar sua mala e se 
mandar para a França, na qualidade de missionário?
Não é bem assim. Tenho feito pesadas exigências educacionais, 
o que restringe seriamente o número de qualificados para 
ocuparem tal posição. Uma das razões pelas quais eu fundei 
a Academia de Genebra, no dia 5 de junho de 1559, foi para 
treinar pastores segundo nossos altos padrões.
/> A implantação da Reforma na França foi feita apenas pelos 
pastores de Genebra?
Deus usa quem quer e como quer. Além dos bem preparados 
pastores, o Senhor da Seara usou humildes mascates que via­
javam para lá e para cá. Eles levavam folhetos sobre a Reforma 
escondidos em meio a mercadoria a ser vendida e os distribuíam 
nas cidades francesas por onde passavam, providencialmente 
cortadas pelas principais rotas comerciais.
Esse “algum canto remoto da França” do qual o senhor fala 
indica uma área rural?
Lamentavelmente nossos missionários atingem mais a classe mé­
dia do que a classe camponesa. Uma das razões é que quase todos 
os obreiros pertencem e se identificam mais com as necessidades 
das classes médias urbanas. Outra razão é que a lingua francesa
0 FRANCÊS JACQJJES LEFÈVRE REDESCOBRE O SO L A CRAT1A • 109
é pouco conhecida no meio rural. Os camponeses ainda falam 
seus dialetos. Em Languedoc, região ao redor de Toulouse, por 
exemplo, fala-se o langue d’oc e o francês é visto quase como uma 
língua estrangeira. Infelizmente não ensinamos os nossos missio­
nários a descer das camadas mais altas, social e linguisticamente, 
para as camadas mais baixas da população. Assim, desde o início, 
a evangelização na França estava confinada em uma espiral social 
da qual a classe camponesa estava excluída. Esquecemo-nos da 
chamada “teologia do tanto como” do livro de Atos: tanto Jerusalém 
como Judeia, tanto judeus como gentios, tanto o homem como 
a mulher, tanto o rico como o pobre.
Que tipo de igrejas os missionários de Genebra organizam na França?
Eles começam organizando uma congregação que mais tarde 
torna-se igreja. A congregação é pouco mais do que uma reunião 
informal e clandestina para estudo bíblico e oração. Com o cres­
cimento, essa congregação vira uma igreja organizada segundo o 
padrão de Genebra, isto é, com presbíteros e diáconos. O pastor 
pode ser alguém de Genebra, mas os oficiais precisam ser mem­
bros da igreja local. Chamamos a congregação de église plantée e 
a igreja propriamente dita de église dressée. As primeiras igrejas 
organizadas são as de Poitiers, Orléans, La Rochelle e Nimes.
^ Quantas igrejas há hoje na França?
O almirante Coligny, nosso mais influente reformado na França, 
numa lista preparada em março de 1562, diz haver 2.150 igrejas 
em todo o território francês. Pessoalmente acho mais razoável 
pensar em 1.250, com uma membresia em torno de 2 milhões, 
o que significa 10% da população avaliada em 20 milhões. Diz-se 
que um terço da nobreza seria cristã reformada. O primeiro 
sínodo nacional da Igreja Reformada na França foi realizado 
sigilosamente em Paris de 25 a 29 de maio de 1559. Na ocasião,
110 • SOU EU, CALV1NO
foi elaborada uma confissão de fé semelhante à de Genebra. 
Cerca de 15.000 franceses assinaram essa confissão.
/ í Por que sigilosamente?
Porque o governo tem vacilado muito em torno da nossa liber­
dade de culto. Ora ele nos é simpático, ora ele recua. Além do já 
citado massacre dos valdenses, que acabou com a vida de 3 mil 
homens, idosos e crianças nos vales do sudeste da França, onde 
moravam, quatorze homens foram enforcados e depois queimados 
em Meaux. Certo professor de Paris, antes de ser queimado vivo, 
permaneceu seis semanas numa cova tão estreita que nem deitar 
ele podia. Depois do incidente dos cartazes, as prisões começaram 
a se encher e a fumaça de protestantes queimados ou lentamente 
assados começou a subir. Calcula-se que, durante os 44 anos do 
reinado de Francisco I e Henrique II, 50.000 protestantes teriam 
sido mortos. Muitos franceses crentes mudaram-se da França para 
outros países para escapar da morte, inclusive eu e Farei.
á Que incidente de cartazes é esse?
Na manhã de 18 de outubro de 1534, cartazes escritos em 
francês foram achados nas paredes das principais ruas de Paris, 
Orléans e Amboise. Um deles estava do lado de fora do quarto 
do próprio rei, no château de Amboise. Era domingo e os ca­
tólicos a caminho da missa foram obrigados a ler o que neles 
estava escrito - uma denúncia anônima que atacava “os abusos 
horrendos, graves e intoleráveis das práticas papais”. Depois, 
descobrimos que essa provocação havia partido de um protes­
tante radical chamado Antoine Marcourt, o famoso panfletista 
de Neuchâtel. A consequência dessa barulhada é que Francisco I 
regressou depressa a Paris para iniciar uma vigorosa perseguição 
a todos os suspeitos de serem simpatizantes da causa evangélica. 
Muitos de nós nos esquecemos da exortação de Zacarias: “Não 
por força nem por poder, mas pelo meu Espírito” (Zc 4.6)!
14
A IGREJA DE GENEBRA 
NA FRANÇA ANTÁRTICA
(Deus deseja que o evangeCHo seja procíamado 
para todos sem exceção
á Diz-se que os reformadores reformaram a igreja, mas não se 
preocuparam com a grande comissão dada por Jesus. Um dos 
críticos chega a afirmar: “Perdemos com os reformados não apenas 
a ação missionária, mas até mesmo a ideia de missões”.
A crítica não é justa nem procede. No meu caso, por exemplo, 
dei a minha contribuição não só para o movimento missionário 
em si como também para a reflexão missionária. Basta ler os 
meus comentários bíblicos. Ao comentar o texto de Isaías de 
que o mundo inteiro precisa conhecer a grandeza de Deus 
(Is 12.4-5), escrevi que todos “devemos ser especialmente pos­
suídos deste desejo, depois de sermos libertados da tirania do 
Diabo e da morte eterna”. Ao comentar a belíssima passagem 
de Ezequiel na qual Deus afirma que não tem prazer na morte 
de um homem mau, antes prefere vê-lo arrependido e salvo 
(Ez 18.23), escrevi: “Deus certamente nada mais deseja, para
112 • SOU EU, CALV1N0
aqueles que estão perecendo e correndo para a morte, senão que 
retornem para o caminho da segurança”. E ainda acrescentei: 
“Por isso o evangelho é pregado hoje por todo o mundo, porque 
Deus quis testemunhar por todas as épocas que ele se inclina 
grandemente para a misericórdia”. Vou dar mais um exemplo: 
ao comentar o texto de Paulo a Timóteo de que Deus “quer que todos 
sejam salvos e venham a conhecer a verdade” (lTm 2.4), expliquei 
que “não há nenhum povo e nenhuma classe no mundo que 
seja excluída da salvação porque Deus deseja que o evangelho 
seja proclamado para todos sem exceção”.
A A teoria de missão é muito bonita. E a prática de missão?
Não fiquei só na teoria. Como pastor da igreja de Genebra, 
ajudei a enviar dezenas de missionários principalmente para a 
França, como já comentei. O quanto me lembre, posso citar 
ainda a Holanda, a Escócia, a Inglaterra, o norte da Itália e até 
a Polônia. Eu mesmo, no bendito ano de 1536, deixei a França 
e vim como missionário para a Suíça, fixando-me em Genebra. 
Na época eu era um rapaz solteiro de 27 anos. Tenho para mim 
que haverá um progresso ininterrupto na expansão do reino de 
Cristo até que ele apareça uma segunda vez para nossa salvação, 
com poder e muita glória. E uma das implicações desse reino 
crescente é a destruição da distinção entre judeus e gentios e a 
necessidade conseguinte da proclamação do Evangelho entre 
todos os gentios do mundo. Nada poderá desviar o avanço do 
governo de Cristo. E a tarefa da igreja é pregar a Palavra de Deus, 
pois não existe outra forma de edificar a igreja senão pela luz 
da Palavra, onde o mesmo Deus, porsua própria voz, aponta o 
caminho da salvação. O que nos motiva a pregar o evangelho 
é o zelo pela glória de Deus. Os réprobos sempre vão negar o 
domínio de Cristo e os eleitos serão trazidos pela graça para 
prestar uma reverente e alegre obediência a ele.
A IGREJA DE GENEBRA NA FRANÇA ANTÁRTICA • 113
á Há quem entenda que a grande comissão de Jesus foi dada 
aos apóstolos e por eles foi cumprida, como se lê no livro de Atos.
Aí está outro equívoco sério. Entendo que a ordem da evange- 
lização foi dada aos apóstolos, mas eles não a concluíram. Eles 
deram conta apenas do início da obra. A evangelização mundial 
é uma tarefa contínua até que o chamado “dia da salvação” se 
complete no final dos tempos. Mesmo que conseguíssemos 
evangelizar todos os seres humanos em todos os quatro cantos 
do mundo, precisaríamos começar tudo de novo por causa das 
novas gerações, entre as quais haverá também os eleitos de Deus.
á O senhor veio ao mundo pouco depois das famosas viagens 
marítimas empreendidas especialmente por navegadores por­
tugueses e espanhóis e depois da descoberta do Novo Mundo. 
Eles trouxeram a surpreendente notícia de que o novo continente 
é habitado. Entre esses “americanos” há pecadores eleitos? Esses 
povos precisam de missionários?
Boa pergunta. Ela me dá a oportunidade de contar as maravilhas 
que estão acontecendo em Genebra em relação às recentes des­
cobertas marítimas. Passado pouco mais de meio século desde a 
viagem do navegador português Pedro Álvares Cabral, que des­
cobriu no outro lado do oceano e abaixo da linha do Equador a 
Terra de Santa Cruz, hoje chamada Terra do Brasil, a igreja de 
Genebra já tem missionários nesse país habitado por homens e 
mulheres totalmente nus, sendo alguns deles até antropófagos. 
Acho que foi em 1556 que eu recebi uma carta assinada por 
um francês chamado Nicholas Durand de Villegaignon, o qual 
havia sido meu colega quando estudávamos na Universidade 
de Paris nos idos de 1523, do qual pouco me lembrava. Nessa 
longa carta, Villegaignon contava-me as novidades da França 
Antártica, uma província ultramarina que ele havia fundado 
numa bela baía (que antes supunha ser a desembocadura de um 
rio qualquer) localizada no Brasil. Dizia ainda de sua vontade
114 • SOU EU. CALVINO
de empregar todos os seus esforços no incremento do reino de 
Jesus Cristo naquela terra tão inóspita e distante. Para tanto, 
Villegaignon pediu-me que lhe enviasse alguns missionários 
da igreja de Genebra. O plano dele era fundar uma França 
americana, uma espécie de asilo aos franceses convertidos à fé 
reformada, onde pudessem gozar da plena liberdade de cons- 
ciênci^sem perder a cidadania francesa.
Á Villegaignon é um reformado?
Villegaignon é um homem da alta sociedade, muito culto, capaz 
de falar italiano, espanhol e grego, além de escrever em latim. 
Embora formado em direito, não exerce a profissão. Dedicou-se 
à arte náutica. Tornou-se vice-almirante da Bretanha e ingres­
sou na Ordem de Malta, patrulhou as águas do Mediterrâneo, 
infestadas de piratas argelinos, lutou com as tropas de Carlos 
V no norte da África e participou da expedição que raptou a 
princesa escocesa Maria Stuart, na época com 6 anos e noiva 
do futuro Francisco II. Quanto à religião, Villegaignon é um 
vira-casaca. Filho de uma importante família católica, tornou-se 
protestante em 1555, aos 45 anos. Como tal, participou do 
primeiro culto reformado realizado na América (10 de março 
de 1557) e da primeira celebração da Santa Ceia, pouco depois. 
Mas, por incrível que pareça, além de apostatar da fé, tornou-se 
um perseguidor inclemente dos protestantes e ali mesmo na 
França Antártica mandou matar três dos nossos missionários.
á Então, o senhor atendeu o clamor missionário de Villegaignon?
Em julho de 1556, Deus me deu coragem para fazer um dramá­
tico apelo aos irmãos de Genebra: “Necessitamos de voluntários 
para fazer crescer a França Antártica, na distante Terra do Brasil, 
de onde trazemos o pau-brasil. O almirante Gaspar de Coligny, 
o líder do partido protestante, é um dos maiores responsáveis
A IGREJA DE GENEBRA NA FRANÇA ANTÁRTICA • 115
por essa aventura. Foi ele quem conseguiu o patrocínio do rei 
Francisco II, que cedeu três naus, uma contendo provisões e 
as outras duas carregadas com peças de artilharia e materiais 
de construção. E por essa razão que o forte construído na 
ilha de Serigipe chama-se Forte Coligny. Quantos querem ir 
para esse paraíso protestante para evangelizar os indígenas e 
os patrícios que foram para lá, uma grande parte formada de 
degredados?”. Poucos dias depois, dei credenciais aos quatorze 
voluntários, os quais são em ordem alfabética: André Lafon, 
Guillaume Chartier, Jacques Rousseau, Jean de Léry, Jean du 
Bourdel, Jean Gardien, Martin David, Matthieu Verneuil, 
Nicolas Carmeau, Nicolas Denis, Nicolas Raviquet, Philippe de 
Corguilleray (cognominado Du Pont), Pierre Bourdon e Pierre 
Richier. Richier e Chartier são ministros ordenados. Du Pont é 
um cavalheiro muito respeitado, homem de idade e de pouca 
saúde. Quase todos os demais são como “fazedores de tendas”, 
isto é, são missionários biocupacionais, pois trabalham como 
operários (o primeiro da lista, por exemplo, é alfaiate). Alguns 
estão deixando na Suíça esposa e filhos.
á Este Jean de Léry é aquele que escreveu “Histoire d’un Voyage 
Fait en Ia Terre du Brésil”?
Sei que ele escreveu este livro, que ainda não foi publicado por ter 
perdido os originais, os quais ele está procurando por toda a parte. 
Mas estou por dentro do conteúdo da obra por se tratar de uma 
espécie de relatório minucioso de tudo o que aconteceu e tudo 
o que ele viu durante o tempo que passou na França Antártica. 
Por ter fugido do Forte Coligny para a terra firme para se proteger 
de Villegaignon, Léry passou muito tempo com os naturais da 
terra e fez centenas de anotações nos campos de antropologia e 
etnografia. A Viagem à Terra do Brasil promete muito. Léry nasceu 
em La Margelle, na França, em 1534. Era um adolescente de 
18 anos quando veio para Genebra como candidato ao ministério.
16 • SOU EU, CALV1N0
Tornou-se meu aluno de teologia e prédicas e, ao mesmo tempo, 
um modesto sapateiro. Aliás, foi como sapateiro que, aos 20 anos, 
ele foi para o Brasil. Ao voltar para a Europa, em maio de 1558, 
reiniciou seu estudos de teologia aqui em Genebra e dois anos 
depois já era pastor em Belleville-sur-Saône, porto de Lyon. Hoje 
ele deve ter uns 30 anos.
^ Considerando que a Terra do Brasil foi descoberta, colonizada, 
catequizada e ocupada por portugueses desde 1500, como se 
explica esta aproximação com os franceses?
Três anos depois da viagem de Pedro Alvares Cabral ao Brasil 
e seis anos antes de eu nascer, isto é, em junho de 1503, uma 
nau francesa zarpou em direção à Terra de Santa Cruz, com 
sessenta homens a bordo e sob o comando do capitão Paulmier 
de Gonneville. O navio de 120 toneladas e praticamente novo, 
chamado LIEspoir, voltou dois anos depois, mas foi afundado 
por navios corsários já no litoral da França. Entre os 28 sobre­
viventes estava o índió Essomeriq, filho de um cacique guarani, 
batizado durante a travessia do oceano. Mais tarde, o jovem 
casou-se com uma francesa chamada Susana, filha do capitão 
Gonneville. O fato é que, desta ocasião e nas duas décadas se­
guintes, o comércio entre os franceses e os brasis (nome dado 
aos habitantes das terras americanas) era, de longe, mais intenso 
do que o dos próprios portugueses.
á Parece que houve uma “fête brésilienne” na França para sensi­
bilizar o rei a criar um império colonial no Ultramar.
Isso aconteceu em Rouen em outubro de 1550. Foi uma propa­
ganda sensacionalista da Terra do Brasil. Dessa festa brasileira 
participaram trezentos figurantes, todos nus. Entre eles esta­
vam cerca de cinquenta guerreiros tamoios trazidos do Brasil,marinheiros normandos e prostitutas. Representaram cenas 
de amor, de caça, de guerra e de uma abordagem a um navio
A IGREJA DE GENEBRA NA FRANÇA ANTÁRTICA •
português. No cenário, viam-se ocas adornadas com bananas. 
Para tornar o ambiente bem indígena, havia muitos macacos 
e papagaios. Naturalmente a criação da França Antártica (ou 
França Americana) tem muito a ver com a festa de 1550. Su­
ponho também que aquele carnaval brésilien tenha despertado 
ainda mais nossa paixão missionária.
O senhor disse que três dos missionários enviados por Genebra 
foram mortos por Villegaignon. Quem são eles?
Estou acostumado a ver mártires por toda parte da França. Ho­
mens e mulheres sendo queimados em lugares públicos por sua 
fé. Mas fiquei muito emocionado, e ao mesmo tempo orgulhoso, 
ao saber da morte de três dos quatorze missionários genebrinos 
enviados a pedido de Villegaignon à terra dos brasis. Eram por 
ordem de execução Jean du Bourdel, Matthieu Verneuil e Pierre 
Bourdon. Havia um quarto, chamado André Lafon, que, na úl­
tima hora, deixou-se persuadir pelos dois pajens que o assistiam 
e, para escapar à morte, prometeu abrir mão de suas idéias de 
reforma. Quando ainda estavam no continente, os conterrâneos 
e irmãos na fé dos três mártires, com muitas lágrimas, pediram 
que eles evitassem o martírio. Mas um deles, Jean du Bourdel, 
reagiu: “Meus irmãos, vejam que Satanás se esforça por todos os 
meios para nos impedir de, resolutamente, defender exatamente 
hoje, 9 de fevereiro de 1558, a causa de Cristo Jesus, Senhor 
nosso. Nossas vidas estão nas mãos de Deus e ninguém poderá 
tirá-las sem a determinação dele. Por que viemos para cá? Quem 
nos moveu a atravessar as 2 mil léguas deste oceano? Quem nos 
preservou de tantos perigos? Acaso não é aquele que tudo go­
verna, que dirige todas as coisas, que ampara os seus por meios 
admiráveis? É certo que contra nós militam três inimigos podero­
sos - o mundo, o Diabo e a carne -, e nós mesmos não podemos 
resistir a esta tríade. Mas, se nos agarrarmos ao Senhor Jesus, que 
os venceu por nós, ele nos assistirá consoante a sua promessa.
18 • SOU EU. CALV1NO
Apeguemo-nos a ele e nele inteiramente repousemos. Coragem, 
pois, irmãos! Que os enganos, as crueldades e as riquezas deste 
mundo não nos embaracem de irmos a Cristo”.
á E depois?
Logo após a palavra de Bourdel, um barco os levou até o Forte 
Coligny, onde Villegaignon estava à espera. Quando pergun­
tados se manteriam suas assinaturas na confissão de fé refor­
mada que haviam escrito e assinado, um de cada vez, todos se 
mantiveram firmes. Então, o vice-rei da França Antártica foi 
entregando um por um nas mãos do carrasco. E este, por sua 
vez, os estrangulava e os afogava no mar. Ao ser interrogado 
por Villegaignon, Verneuil teve a coragem de lembrar-lhe: “Há 
apenas oito meses o senhor fez ampla e pública profissão desses 
mesmos pontos doutrinários pelos quais hoje nos leva à morte!”. 
Antes do meio-dia, os três genebrinos estavam no fundo do mar.
Á Consta que Villegaignon teria dado uma bofetada em Jean du 
Bourdel?
Isso de fato aconteceu. Ia Bourdel citar a passagem bíblica para 
confirmar a asserção de Agostinho de que o pão e o vinho são 
sinais do corpo e do sangue de Jesus, e não o seu corpo, quando 
o almirante, num acesso de cedera, o desmente e lhe aplica uma 
tremenda bofetada em pleno rosto. Tão violenta foi a agressão 
física que o sangue jorrou da boca e do nariz do nosso querido 
irmão, que preferiu manter silêncio. Por ter chorado, o protomár- 
tir do cristianismo brasileiro foi chamado de homem efeminado 
por Villegaignon. É aquele velho mito de que homem não chora.
^ A que confissão de fé o senhor se refere?
A confissão de fé a que me refiro encontra-se na Histoire des Choses 
Mámorables Advenues en la T'erre du Brésil, sous le Gouvernment de
A IGREJA DE GENEBRA NA FRANÇA ANTÁRTICA • 119
N. de Villegaignon, publicada em 1561, por Jean Crespin, um 
historiador de 43 anos, autor de várias obras de martirologia. 
Se há algo que me deixa muito orgulhoso é exatamente essa 
confissão de dezessete artigos, escrita com sangue no primeiro 
campo missionário da igreja de Genebra no além-mar, por or­
dem do próprio Villegaignon, em 1558. Por se tratar da primeira 
confissão de fé escrita fora da Europa, ela tem um valor histórico 
enorme. Mas o valor maior é que ela foi redigida sob pressão 
dentro do prazo de doze horas exigido pelo governador, e por 
leigos que não tinham formação teológica nem uma biblioteca 
para consultar. Os quatro franceses tinham alguma instrução e 
eram piedosos, mas não eram pastores nem teólogos. O redator 
mesmo foi Jean du Bourdel, o mais velho e o menos desprepa­
rado. Ele começa com a declaração de fé em Deus (“Cremos em 
um só Deus, imortal e invisível, criador do céu e da terra, e de 
todas as coisas, tanto visíveis como invisíveis”) e termina com a 
declaração de que, à luz da Bíblia, não se deve orar pelos mor­
tos. O documento cita Santo Agostinho, Santo Ambrósio, São 
Cipriano e Tertuliano. O quarto artigo dessa confissão deveria 
ter assustado Villegaignon, pois começa assim: “Cremos que 
nosso Senhor Jesus Cristo virá para julgar os vivos e os mortos, 
em forma visível e humana, como ele subiu ao céu”. Depois 
de escrito, Bourdel fazia a leitura de cada artigo quantas vezes 
fossem necessárias para seus companheiros (Verneuil, Bourdon 
e Lafon), para que eles aprovassem ou não. No final, os quatro 
assinaram do próprio punho o documento. Pouco depois, três 
deles foram manietados, estrangulados e jogados no mar!
á Qual foi a sorte do empreendimento da França Antártica de 
Villegaignon?
Terminou num fracasso total. Depois da execução de Bourdel, 
Verneuil e Bourdon, metade dos colonos havia desertado, uns 
metendo-se em desvario pelas florestas e outros correndo para
• SOU EU, CALV1NO
as praias na esperança de encontrar um navio francês que os 
recolhesse e os levasse de volta à França europeia. Um hugue- 
note chamado Jacques Le Balleur desapareceu. Consta que foi 
parar na capitania portuguesa de São Vicente, no litoral mais 
ao sul. Villegaignon caiu em total descrédito. Ele era detestado 
pelos protestantes, temido e desprezado pelos católicos e aborre­
cido pelos naturais da terra. Tive a oportunidade de ler alguns 
de seus escritos, publicados em 1560, depois de seu retorno à 
França, especialmente aqueles que dizem respeito a mim, como 
Les Propositions Contentieuses entre le Chevalier de Villegaignon 
et Maistre Jehan Calvin concemant la Verité de VEucharistie. Ele 
deveria entrar na história com o título “O Caim da América”.
15
O HUMANISMO 
EA PESTE NEGRA
Tão Cogo a pureza do cuíto seja pervertida, 
nada permanece íntegro e saudáveC
á Ao falar sobre sua súbita conversão, o senhor menciona que 
passou do humanismo para o cristianismo. A distância entre um e 
outro é muito grande?
Se eu não tivesse trocado o humanismo pelo cristianismo, eu seria 
parecido com o holandês Erasmo de Roterdã, aquele homem ex­
tremamente culto, que escreveu o notável Elogio da Loucura, quan­
do hóspede de Tomás Morus, na Inglaterra. Desidério Erasmo, 
quarenta anos mais velho que eu, criticou duramente a degradação 
da religiosidade da igreja em nosso século, tanto quanto nós, mas 
não foi mais além. Erasmo morreu humanista. Nunca abraçou a 
Reforma por inteiro. Seria parecido também com o espanhol Juan 
Luis Vives, conhecido como o mais cristão dos humanistas, que 
também se manteve humanista até morrer, em 1540. A distância 
entre o humanismo e o cristianismo não é muito grande, desde 
que não estejamos falando de humanismo secular.
• SOU EU. CALVINO
Á Humanismo secular?
Embora tenha raízes na antiguidade greco-romana, o humanismo 
começou a florescer e a influenciar a religião, o pensamento e 
até as artes no século passado. Hoje, ele tem proporçõesmuito 
grandes em nosso meio, principalmente em certos países como 
França, Países Baixos, Inglaterra e Alemanha. Posso afirmar, 
sem medo de errar, que o humanismo é, em meu tempo, uma 
sociedade internacional de estudiosos. Entre os seus precurso­
res mais notáveis estão, em ordem cronológica: Lorenzo Valia 
(morto em 1457), Pico delia Mirandola (morto em 1494) e 
Marsílio Ficino (morto em 1499). Existem os dois extremos, o 
humanismo cristão e o humanismo secular (ou paganizante). 
O primeiro redescobre a grandeza do ser humano por ter sido 
criado à imagem e semelhança de Deus. O segundo chega a 
endeusar o ser humano, colocando-o no centro de tudo. Os 
mais famosos humanistas da primeira metade deste século são 
humanistas cristãos, como Tomás Morus (autor de Utopia) 
e Erasmo de Roterdã, que morreram um depois do outro, o 
primeiro em 1535 e o segundo, no ano seguinte.
A Há algum parentesco do humanismo com a Reforma?
Eu d iria que sim. E não é muito pequeno. Em certo sentido, 
o humanismo abriu portas para a Reforma. Por exemplo, o 
principal humanista do século passado, o já citado Lorenzo 
Valia, contribuiu não só para recuperar a importância do latim 
como língua clássica como também para restituir a pureza dos 
textos bíblicos. O também já mencionado Pico delia Mirandola 
abriu as portas da liberdade de pensamento, fator de suma 
importância no movimento da Reforma. Praticamente todos 
os humanistas abriram os olhos do povo para a falta de auto­
ridade moral do papado e da igreja, intensificando o desejo 
de uma reforma em seu seio. Por último, os humanistas
0 HUMANISMO EA PESTE NEGRA • 123
redescobriram a sabedoria e a beleza dos textos gregos e romanos 
dos tempos passados e despertaram o gosto pelo estudo das 
línguas clássicas, como o grego e o hebraico, o que, por sua vez, 
nos levou a ler as Escrituras em suas línguas originais. O amor 
à leitura é outro benefício do humanismo. Entre os clássicos 
que começamos a ler estão Clemente de Alexandria (150-215), 
Tertuliano (160-225), Crisóstomo (347-407) e, principalmente, 
o formidável Agostinho (354-430). Não quero deixar de lado 
o meu patrício Bernardo de Claraval (1091-1153), conhecido 
como “Doutor Melífluo” por sua doutrina “mais suave que o 
mel”. Ele reformou a igreja em seu tempo por sua vida exemplar, 
piedade pessoal e séria autoridade. Lembro-me de uma de suas 
frases de efeito: “Minha mais sublime filosofia é conhecer Jesus 
e sua crucificação”. Pena que não tenha completado a declaração 
de fé: “... conhecer Jesus, sua crucificação e sua ressurreição”.
á Mudando completamente de assunto, com sua permissão, 
quero passar do humanismo para a tragédia da peste negra que 
assolou e tem assolado a Europa neste século e no século anterior. 
Em outubro de 1523, quando o senhor era um menino de 14 anos, 
seu pai o mandou estudar em Paris para protegê-lo da peste que 
grassava em Noyon, sua cidade natal. Essa foi sua única experi­
ência com a peste?
Não foi a primeira nem a última. Em Estrasburgo, onde pas­
toreei uma comunidade de imigrantes franceses e constituí 
família, a peste causou a morte de várias pessoas muito chegadas 
a mim. Entre elas estavam Elizabeth Bucer, esposa do pastor 
Martin Bucer, quatro de seus seis filhos e Wolfgang Capito, 
pastor auxiliar de Bucer. Na linguagem humana, eu diria que 
Bucer não merecia tamanho infortúnio porque ele desenvolveu 
um trabalho social tão bem-sucedido na cidade que acabou 
com os pedintes de rua. O primeiro marido da minha esposa 
foi outra vítima. O pior de tudo aconteceu aqui em Genebra,
124 • SOU EU, CALV1NO
logo após a minha segunda chegada no segundo semestre de 
1541. Por causa da peste, o comércio e as escolas fecharam suas 
portas, as ruas ficaram desertas, as poucas pessoas que iam à 
igreja sentavam-se longe umas das outras, sem saber se o irmão 
no banco da esquerda estava ou não contagiado. O único som 
que se ouvia nas ruas era o tilintar das campainhas de carros 
fúnebres, que passavam carregados de corpos em direção ao 
cemitério.
á Mas o que, exatamente, o senhor chama de peste negra?
Peste negra é uma forma de peste bubônica que faz surgir na 
pele manchas de sangue que se tornam escuras. No século 14, 
ela matou um quarto da população europeia. E uma doença 
altamente contagiosa. Em 1519, quando eu ainda morava em 
Noyon, ela dizimou 25% da população de Zurique. Exatamente 
nesse ano, Ulrico Zuínglio tinha começado a pregar uma re­
forma radical na cidade. Ele foi contagiado, mas conseguiu se 
recuperar. Na ocasião, ele estava com 35 anos.
á O senhor pessoalmente deu alguma assistência às vítimas da 
peste?
O Pequeno Conselho não me permitiu, sob a alegação de que 
eu não deveria correr risco devido à grande necessidade que a 
igreja tinha de meus serviços. Na verdade, nunca fui uma pes­
soa de boa saúde. Além do mais, Idelette, minha esposa, estava 
grávida de nosso primeiro e único filho, que nasceu e morreu 
quase em seguida. Tínhamos um hospital do lado de fora dos 
muros da cidade, repleto de doentes. Era a chamada “Casa da 
Peste”. Peter Blanchet, um dos nossos pastores, ofereceu-se para 
consolar os que ainda estavam vivos e preparar os moribundos 
para a morte. Ele ia de esteira em esteira até pegar a doença e 
morrer. Aconteceu o mesmo com outro pastor.
0 HUMANISMO EA PESTE NEGRA • 125
Á É verdade que alguns criminosos procuravam contagiar o maior 
número de pessoas para se apoderar de seus bens depois da 
morte delas?
Penso que há fundamento para tanto. Diz-se que certos homens 
e certas mulheres de índole má fizeram um unguento contendo 
material infectado dos pacientes e o colocaram iras maçanetas 
das portas da cidade para alastrar a peste com propósitos infa­
mes. A gangue era enorme e o crime foi descoberto, levando ao 
cárcere e à morte vários deles. Alguns se suicidaram na prisão. 
O Senhor preservou a nossa casa, apesar da tentativa ou das 
tentativas de nos contaminarem.
^ De onde surgia a epidemia?
E difícil responder com precisão. Ouvi dizer que ela tinha sido 
trazida por soldados suíços que passaram pela cidade.
á A peste negra seria a ira de Deus sendo derramada sobre os 
pecadores?
Acho que não, muito embora Deus seja soberano e livre para 
derramar tanto a sua graça como a sua ira. A palavra peste apa­
rece várias vezes na Bíblia. Quando Davi pecou, Deus mandou 
que ele escolhesse como castigo três anos de fome, três meses 
fugindo de seus inimigos ou três dias de peste. Ele preferiu a 
peste, não porque era o castigo de menor duração, mas porque 
“era melhor ser punido por Deus, cuja misericórdia não tem 
fim, a cair nas mãos dos homens” (2Sm 24.13-14). No cerimo­
nial de consagração do templo de Jerusalém, Salomão admitiu 
que o Senhor poderia castigar o pecado de Israel por meio da 
fome, da peste e da praga de gafanhotos (2Cr 6.28).
^ Por ocasião da peste que grassou na Europa há pouco menos 
de dois séculos, os alemães deram início a um movimento que
126 • SOU EU, CALVINO
procurasse aplacar a ira de Deus por meio da mortificação coletiva, 
conhecida como a Irmandade dos Flagelantes...
E verdade. Os flagelantes marchavam de cidade em cidade, 
todos vestidos com uma túnica preta, carregando uma cruz 
vermelha numa das mãos e um chicote de couro com ponta 
de metal na outra. A certa altura, eles se reuniam na praça 
central de alguma cidade e se golpeavam enquanto cantavam 
o chamado hino dos flagelantes. Eles executavam esse rito duas 
vezes durante o dia e uma vez à noite. Vê-se aí a eterna ênfase 
às boas obras para comprar o favor de Deus. Ainda bem que os 
reformadores trouxeram à tona a riqueza do sola gratial
á Os flagelantes se consideram os únicos culpados da peste?
A culpa podería ser atribuída aos árabes (principalmente na 
Espanha), aos peregrinos religiosos (em Portugal) e, na maior 
parte das vezes, aos judeus(em todo o norte da Europa). Pior 
que a peste em si era a mortalidade dos judeus. Em Basiléia, 
onde eu me exilei em 1535, todos os judeus foram presos em 
edificações de madeira e queimados vivos. Em Estrasburgo, 
onde também morei, no ano seguinte, enquanto 2 mil judeus 
caminhavam rumo à execução, as pessoas roubavam suas 
roupas. Para agravar a situação, em alguns lugares, os judeus 
reagiam, como no tempo de Ester e Mordecai, e matavam seus 
perseguidores. Foi o que aconteceu em Frankfurt. Mas a política 
do olho por olho e dente por dente só complica as coisas: por 
terem matado duzentos de seus inimigos, o povo de Frankfurt 
acabou com a vida de 12 mil judeus! Em resumo, no período 
de três anos, houve trezentos massacres que mataram dezenas 
de judeus e mais de duzentas comunidades foram destruídas. 
Este é o nosso mundo!
16
O NOBILÍSSIMO E CRISTIANÍSSIMO 
PROTETOR DA INGLATERRA 
E IRLANDA
CenteCfias de piedade que arderam em muitas ocasiões, 
se não forem atiçadas frequentemente, podem ser apagadas 
por torpes anseios da carne
A Em quase todos os países da Europa - França, Países Baixos, 
Inglaterra, Alemanha, Suécia, Polônia, Suíça, Áustria, Escócia - é 
possível encontrar alguém que tenha recebido pelo menos uma 
carta escrita por um certo João Calvino. Quantas cartas e para 
quantas pessoas o senhor tem escrito?
Não tenho como responder nem uma nem outra pergunta. Não 
mantenho um registro das cartas enviadas, muito menos tenho 
cópias delas, a não ser de alguma carta de maior importância. 
Mas certamente escrevi muitas cartas para muitas pessoas. Sobre 
a minha escrivaninha, tenho sempre algum papel, uma caneta 
e um tinteiro. Na maior parte das vezes, sou em que tomo a 
iniciativa; nas outras, são respostas às cartas recebidas. Algumas 
com algum atraso, pelo que sempre me desculpo. Para eventual­
mente arquivar uma cópia, eu escrevo outra vez a mesma carta.
28 • SOU EU. CALVINO
Suponho que, se juntasse todas as cartas, copiadas ou não, e 
fizesse delas um livro, seriam alguns volumes.
^ Para quem o senhor costuma enviar suas cartas?
Para uma infinidade de pessoas. Aos meus dois amigos mais 
chegados, Guilherme Farei e Pierre Viret. As autoridades 
religiosas, como o primaz da Inglaterra e o bispo de Londres. As 
autoridades seculares, como o senhor D Andelot (capitãogeral da 
infantaria francesa), o conde de Arran (ex-regente da Escócia 
durante a minoridade de Maria Stuart), o barão Burghley 
(secretário de Estado na época de Eduardo VI) e o almirante 
Gaspar de Coligny. A reis e rainhas, como o rei da Inglaterra, o 
rei da Polônia, o rei e a rainha de Navarra. Aos reformadores, 
como Martinho Lutero, Filipe Melâncton e John Knox. Aos 
colegas pastores, como Henrique Bullinger, pastor de Zurique, 
e aos ministros de Neuchâtel. Aos cinco jovens prisioneiros 
de Lyon, à Madame de Cany (nossa grande querida irmã na 
fé em Noyon, onde nasci, e irmã da duquesa d’Étampes), e à 
duquesa de Ferrara (nossa querida irmã que teve um momento 
de fraqueza ao ser arrancada de seu palácio e de seus filhos 
em razão de sua fé, mas que, depois, retornou a Cristo). Es­
creví também uma carta aos refugiados ingleses que moram 
em Frankfurt, na Alemanha. Sete anos antes de o médico 
Miguel Serveto ser condenado à fogueira por heresia, escrevi 
para ele na tentativa de trazê-lo de volta à fé e censurar seu 
obstinado orgulho. Algumas cartas eram molhadas de lágri­
mas, especialmente aquelas que foram escritas para consolar 
quem havia perdido um ente querido, como é o caso do meu 
amigo Ricardo Vauville, pastor da comunidade francesa em 
Frankfurt, cuja esposa havia sido vítima da praga. Fui obrigado 
a me lembrar dolorosamente da morte de Idelette, sete anos 
antes, deixando-me viúvo aos 40 anos.
0 NOBILÍSSIMO E CR1STIANÍSSIMO PROTETOR DA INGLATERRA E IRLANDA • 129
á No início de 1546, morreu Elizabeth Turtaz, esposa de seu amigo 
Pierre Viret. Sobre o que o senhor lhe escreveu?
Como não me foi possível estar pessoalmente com Viret, 
mandei-lhe uma carta, intimando-o a vir o mais rapidamente 
possível a Genebra, para, em nossa companhia, libertar sua 
mente não apenas da tristeza, mas também de todos os aborre­
cimentos acumulados até então. Prometi não impor-lhe cargo 
algum e deixá-lo totalmente à vontade. Dei-lhe a minha palavra 
de que nem eu nem os cidadãos da cidade lhe seríamos incon­
venientes. A dor do luto misturada com os aborrecimentos que 
dia a dia enfrentamos no pastorado de uma igreja é insuportável. 
Ficamos preocupados com a saúde emocional e física de Viret, 
pois a doença que levou sua esposa foi muito prolongada. Em 
carta, ele me havia dito que estava completamente desesperado 
e prostrado com aquela flecha de aflição e que o mundo inteiro 
não lhe parecia senão um fardo. “Não havia nada, absoluta­
mente nada” - concluiu meu amigo - “que pudesse aliviar a 
angústia da minha mente”.
A Que relação pode haver entre um reformador e um almirante 
da marinha?
A relação é enorme quando ambos têm a mesma fé e a mesma 
esperança. Gaspar de Coligny é dez anos mais velho que eu. Nas­
ceu em Paris e abraçou a carreira militar. Na campanha da Itália 
em 1544, ganhou notoriedade por sua bravura e aos 41 anos foi 
feito almirante. Há poucos anos, em 1550, Coligny anunciou 
publicamente sua adesão à Reforma. Desde então, tem sido um 
dos destacados líderes da pureza evangélica na França. Ele tem 
lutado junto ao governo em favor da plena liberdade de culto 
no pais. Em minha carta, escrita em janeiro do ano seguinte, 
exortei-o a prosseguir corajosamente pela glória do Filho de Deus 
na certeza de que a coroa celestial, na qual consiste a nossa salvação
130 • SOU EU, CALVINO
eterna, estava à sua espera. Coligny não é um simplório, ele sabe 
muito bem que corre risco de vida. A esposa é uma das damas 
mais cristãs e virtuosas dos nossos dias. O casal tem aberto as 
portas de seu lar para a pregação do evangelho. Tenho orado ao 
Pai para que ele guarde sob sua proteção o almirante, para que 
o nome de Jesus seja cada vez mais glorificado.
Á Quem é William Rabot, que o senhor chama de irmão e condis­
cípulo e para quem escreveu em julho de 1550?
Não o conheço pessoalmente. Sei que ele era um exilado por 
questões religiosas e que estudava direito na Universidade de 
Pádua, no norte da Itália, onde havia um núcleo de propaga­
ção do evangelho que provocou a sua conversão e a de certas 
famílias distintas. Escrevi-lhe uma carta pequena, animando-o 
na prática de exercícios devocionais diários porque “centelhas 
de piedade que arderam em muitas ocasiões, se não forem 
atiçadas frequentemente, podem ser apagadas por torpes an­
seios da carne”. Disse-lhe com amor e convicção: “Se estudar 
constantemente a Palavra do Senhor, você será suficientemente 
capaz de elevar a sua alma à mais alta excelência”. Sugeri que 
ele viesse nos visitar em Genebra.
á Parece que o senhor tem o costume de dedicar os livros que 
escreve a pessoas preeminentes de toda a Europa.
A começar com As Institutos, o mais conhecido e vendido dos 
meus livros, eu o dediquei ao “meu poderoso e ilustre monarca 
Francisco, cristianíssimo rei dos franceses, seu príncipe”, na 
esperança de obter o apoio dele à Reforma na França. Dedi­
quei o Comentário de Cartas de Paulo a Timóteo, Tito e Filemom 
ao “nobilíssimo e cristianíssimo príncipe Eduardo, duque de 
Somerset, conde de Hertford, protetor da Inglaterra e Irlanda 
e tutor real”. Já o Comentário de Gálatas, Efésios, Filipenses e
0 NOBILÍSSIMO E CR1STIANÍSSIMO PROTETOR DA INGLATERRA E IRLANDA •
Cobssenses foi dedicado ao “ilustríssimo príncipe e soberano, 
senhor Christoph, duque de Württemberg, conde de Montbéliard 
etc.”. Mas nem todos os meus livros foram dedicados aos po­
derosos. Os quatro grandes volumes de meu Comentário dos 
Salmos foram consagrados aos “leitores piedosose sinceros” e 
consagrei os dois volumes do Comentário de Daniel a “todos os 
sinceros adoradores de Deus que almejam o reino de Cristo com 
justiça estabelecido na França”. Meu primeiro comentário, o de 
Romanos, eu o dediquei a Simon Grynaeus, professor de grego 
e teologia, “um homem digno de toda honra”. Na dedicatória 
da segunda edição do Comentário da Primeira Epístola de Paulo aos 
Coríntios, escrevi que o fidalgo Galliazo Carracciolo era “mais 
excelente por suas virtudes do que por seu nobre nascimento”.
-4 Como o senhor arranja tempo para escrever tantas cartas e 
tantos livros, além de ensinar na academia, de pregar mais de 
cinco vezes semanalmente na Catedral de Saint Pierre e de fazer 
visitas pastorais?
Como pouco e durmo pouco. Nos dias em que não tenho de 
pregar, começo a escrever ora às 5 da manhã, ora às 6. Por grande 
parte da minha vida não tive obrigações domésticas, pois fui casado 
apenas por nove anos (de 1540 a 1549) e o único filho que Deus 
se serviu de nos dar morreu depois de nascer. Mas os livros e as 
cartas nunca me roubaram o tempo de comunhão com o Senhor.
A Tive acesso à sua longa carta de 22 de outubro de 1548 ao du­
que de Somerset, na época em que ele era regente da Inglaterra. 
Alguns de seus pronunciamentos são de extrema beleza, como 
“Nada aborrece mais a Deus do que ir além ou aquém do que ele 
determina”, “A sabedoria do Espírito, não a carne, tem de prevalecer 
em tudo” , “O melhor caminho é o da moderação, pois o exagero 
não é nem prudente nem útil” .
Deus seja inteiramente louvado!
132 • SOU EU, CALV1N0
A O que é mais fácil, começar ou terminar uma carta?
No meu caso, acho mais fácil terminar do que começar. Tenho o 
costume de terminar quase sempre da mesma maneira: impetrando 
a bênção para a pessoa à qual escrevo. Exemplos: “Que o Senhor o 
preserve para si mesmo e para seu povo” (na carta a Farei); “Que o 
Senhor continue a guiá-lo pelo seu Espírito e abençoar seus santos 
labores” (na carta ao primaz da Inglaterra); “Que Deus os encha 
com o seu Espírito e lhes dê prudência e coragem, trazendo-lhes 
paz, alegria e contentamento; que o nome do nosso Senhor Jesus 
Cristo seja glorificado por vocês, para edificação da sua igreja!” (na 
carta aos cinco prisioneiros de Lyon); “Que o Senhor continue 
a escudá-lo com sua proteção e guardá-lo pelo seu Espirito até o 
final” (na carta a Melâncton); “Que o Senhor os acompanhe com 
a sua bênção, minimizando a aflição do exílio de vocês” (na carta 
a John Knox); “Que o Senhor amenize a tristeza de sua viuvez e 
abençoe todos os seus trabalhos” (na carta a Ricardo Vauville); 
“Que o Senhor mesmo o governe e o dirija pelo seu próprio Espirito, 
para que persevere até o fim, para o benefício e bem comum de 
sua igreja” (na carta para Lutero).
A O senhor impetrou a bênção de Deus para Miguel Serveto?
Não. Fiz uma oração por ele: “Rogo ao nosso Deus que o tenha 
em seu cuidado”.
A A mim parece-me que o senhor não é pastor só de Genebra. A 
impressão que tenho é que o senhor é pastor por toda a Europa! 
Ainda mais pelo fato de haver centenas de refugiados da França, 
Inglaterra, Escócia e outros países que se tornaram suas ovelhas 
e seus alunos em Genebra.
Aceito essa observação com prudente humildade e reconheço 
que tenho alcançado muita gente de todo o continente por 
meio das cartas, dos livros e dos refugiados.
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O DIABO VIRA TUDO 
DE CABEÇA PARA BAIXO
íEm vez de desperdiçar nossas energias com os seres humanos, 
vamos nos posicionar contra Satanás
Á Em suas cartas, o senhor se refere várias vezes a Satanás, 
chamando-o de o Diabo, o Maligno, o Antigo Dragão, o Anticristo 
etc. O senhor acredita mesmo em Satanás como pessoa?
Satanás faz parte da história. Ele aparece no primeiro e no último 
livro da Bíblia. Ele provocou a Queda da raça humana, ele é res­
ponsável por todas as tragédias que se abateram sobre Jó, ele teve a 
ousadia de tentar o próprio Senhor Jesus, ele é aquele inimigo que 
semeou o joio logo após a semeadura do trigo. O Diabo é o inventor 
do pecado tanto na abóbada celeste como na abóbada terrestre. 
Ele é anterior à formação do homem. Satanás é o tentador-mor, o 
mentiroso-mor, o enganador-mor, o inimigo número 1 de Deus, 
de Jesus Cristo, do gênero humano e da criação.
A A um homem de Estado, como Edward Seymour, regente da 
Inglaterra, o senhor denunciou o Diabo como “aquele que se
134 • SOU EU, CALVINO
empenha para arruinar a sã doutrina, por meios indiretos, trabalhando 
em surdina, uma vez que, abertamente, ele não atingiría os seus 
fins”. É assim mesmo?
Paulo diz que “nós não estamos lutando contra gente feita de 
carne e sangue, mas contra os poderes e autoridades, contra os 
dominadores deste mundo de trevas, contra as forças espirituais 
do mal nas regiões celestiais” (Ef 6.12). Por isso, não desperdi­
cemos nossas energias com os homens, antes nos posicionemos 
contra Satanás mesmo, para resistir a todas as suas maquinações 
contra nós, já que não há dúvidas de que ele é o autor do mal. 
Aconselhei o então regente da Inglaterra “a aplicar toda a sua 
mente em repelir a malícia de Satanás”.
^ Em abril de 1552, na carta endereçada a Thomas Cranmer, ar­
cebispo da Cantuária e primaz da Inglaterra, parece que o senhor 
relaciona a operação satânica com o papa.
Pode ser que sim. Primeiro eu disse que Satanás, por meio de 
vários ardis, tem tentado extinguir a luz do evangelho que, pela 
maravilhosa bondade de Deus, está brilhando em muitos luga­
res. Então acrescentei: “Os cães mercenários do papa não cessam 
de ladrar para impedir que o genuíno evangelho de Cristo seja 
ouvido”. O que ocorre é o seguinte: tão grande é a licenciosidade 
que irrompe aqui e ali e tão grande é a impiedade que prolifera 
por toda parte, que a religião converteu-se em mera zombaria. 
Caso não sejam impedidos, os inimigos declarados da verdade 
logo causarão terrível desordem entre nós. A intemperança e a 
extravagância são uma praga que atinge não somente o povo, 
mas também, lamentavelmente, as fileiras pastorais.
á É fantástico que o senhor, um homem culto, não se acanhe de 
mencionar a pessoa de Satanás em suas correspondências com 
os poderosos deste mundo. Ao rei da Inglaterra, quando ele tinha 
apenas 14 anos, o senhor escreve: “Não tenho dúvidas, Majestade,
0 DIABO VIRA TUDO DE CABEÇA PARA BAIXO • 135
de que Satanás colocará muitos obstáculos à vossa frente para 
retardar vosso passo e esfriar vosso fervor” . Ao rei da Polônia, o 
senhor declara que “pessoas profanas pela instrumentalidade de 
Satanás poderíam espalhar uma frieza mortal no país e afogar o 
sentido de muitos numa letargia ignóbil” .
Como qualquer outra pessoa, eu também sou alvo da atuação 
satânica. Lembro-me de me ter aberto com Guilherme Farei 
em carta escrita antes de eu completar 48 anos: “Além da con­
tenda descarada, você não tem ideia, meu querido Farei, com 
quantas emboscadas e maquinações clandestinas Satanás nos 
assalta diariamente”.
Á Em suas “Ordenanças Eclesiásticas”, escritas imediatamente 
após a sua chegada a Genebra em 1541, o senhor diz que “o Diabo 
virou as coisas de cabeça para baixo, colocando a missa no lugar 
da Ceia” . Como assim?
No conceito católico romano, a missa é o sacrifício do corpo 
e do sangue de nosso Senhor Jesus Cristo, oferecido pelo mi­
nistério do padre como renovação sacramental do sacrifício da 
cruz. Na verdade, a missa sufoca a cruz e a paixão de Cristo, 
obscurece e relega ao esquecimento a morte de Cristo, estabe­
lecendo um novo testamento e, consequentemente, um novo 
sacrifício, que torna irrelevante a morte expiatória de Cristo e 
nos priva de seu fruto remissivo. É como explica a Epístola aos 
Flebreus no magistral capítulo nove: Jesus entrou no “Santo 
dos Santos” uma vez só, ou “uma vez por todas”, e ofereceu 
um sacrifício tão perfeito e eficaz que nãoprecisa ser repetido 
em qualquer outro tempo e em qualquer outro lugar. Com 
esse único sacrifício, ele “obteve eterna redenção” (v. 12). A 
obra não ficou inacabada, isto é, não precisa ser completada ou 
aperfeiçoada por pessoa alguma em tempo algum mais adiante. 
Por ser Jesus ao mesmo tempo o perfeito ofertante e a perfeita 
oferta, o problema crucial do pecado e da culpa não existe mais,
136 • SOU EU. CALVINO
está definitivamente resolvido. Nos tempos da Antiga Aliança, 
ou Antigo Testamento, os sacrifícios eram pontualmente repe­
tidos porque eram imperfeitos (quanto ao ofertante e quanto à 
oferta), e, por essa razão, também eram provisórios. Seu valor 
estava condicionado ao futuro sacrifício do próprio Jesus. Para 
nos lembrar constantemente de Jesus e para relacionar a nossa 
salvação com o seu sacrifício único e perfeito, o próprio Jesus 
instituiu a Ceia. A Ceia dispensa a missa. E por isso que digo 
que Satanás virou as coisas de cabeça para baixo, colocando a 
missa no lugar da Ceia!
á O cristão deve preocupar-se com o Diabo?
Eu não diria preocupar-se, mas preparar-se para enfrentá-lo. 
O que as Escrituras querem nos comunicar quando chama o 
Diabo de “príncipe deste mundo” (Jo 12.31), “o deus desta 
era” (2Co 4.4), “o príncipe da potestade do ar” (Ef 2.2) e 
o leão que ruge ao nosso redor “procurando a quem possa 
devorar” (lPe 5.8)? Essas lembranças não têm em vista outra 
coisa senão que sejamos mais cautos e vigilantes, ou seja, mais 
preparados para combatê-lo. Veja só, depois de dizer que a 
nossa luta não é com a carne e com o sangue, mas com as 
potestades das trevas, Paulo manda que cinjamos as armas 
que estejam à altura de suster um embate tão renhido e tão 
perigoso (Ef 6.12-18).
á Tão renhido e tão perigoso?
Sim, senhor! É nesta hora que não resisto à tentação de usar 
alguns superlativos: o Diabo é um inimigo prestíssimo em 
audácia, vigorosíssimo em forças, astutíssimo em estratagemas, 
poderosíssimo em todos os apetrechos bélicos e habilidosíssimo 
na arte de guerrear. Não nos deixemos vencer por ele pela nossa 
inércia ou pusilanimidade. Mas, em contrapartida, tenhamos
0 DIABO VIRA TUDO DE CABEÇA PARA BAIXO • 137
ânimo soerguido e despertado, fiquemos de pé para resistir e 
sejamos perseverantes, uma vez que esta beligerância não se 
finda senão com a morte. Sobretudo, cônscios de nossa insufi­
ciência e obtusidade, invoquemos a assistência de Deus a nosso 
favor. Não tentemos coisa alguma, senão apoiados nele. Quase 
todos nós somos culpados de fazer uso de forma displicente e 
hesitante da graça de Deus que nos é oferecida. Por exemplo, 
ao nos vermos frente a frente com o Inimigo, tomamos o capa­
cete da armadura do crente, mas nos esquecemos de sobraçar a 
armadura. Protegemos a cabeça e deixamos o peito à disposição 
da lança satânica!
Á O que Paulo quer dizer quando fala que a nossa luta é “contra 
os principados, contra as potestades, contra os dominadores deste 
mundo tenebroso, contra a perversidade espiritual nas regiões 
celestiais” (Ef 6.12)?
Paulo simplesmente quer dizer que as nossas dificuldades são 
muito maiores do que se tivéssemos de lutar contra os homens. 
Se fosse contra os homens, seria então espada contra espada, 
homem digladiando com homem, força sendo repelida pela 
força, e habilidade contra habilidade. Na verdade, o caso é 
muito diferente, pois nossos inimigos são em tal proporção 
que não há poder humano capaz de resistir a eles. A expressão 
“nossa luta não é contra a carne e o sangue” quer dizer “nossa 
luta não é contra seres humanos”. E como se Paulo dissesse: 
“Nossa luta não é corporal”. O apóstolo nos coloca contra um 
inimigo incrível, não para esmagar-nos pelo medo, mas para 
aguçar nossa beligerância e zelo. Quando o inimigo é negligen­
ciado, ele faz tudo o que pode para sujeitar-nos por meio da 
indolência, para, em seguida, desencorajar-nos, usando a arma 
do terror. De tal modo que, antes mesmo de sermos atingidos, 
somos conquistados. Quando Paulo fala em “perversidade 
espiritual”, o apóstolo quer mostrar que, quando o inimigo é
38 • SOU EU, CALVINO
invisível (espiritual e não corpóreo), o perigo é ainda maior. A 
expressão “regiões celestiais” não significa, como alguns pensam, 
que o Diabo e seus anjos tomaram conta e mantêm para eles a 
região média da atmosfera, entre a terra e o céu dos céus. Paulo 
não lhes designa um território fixo, mas simplesmente notifica 
que eles se acham envolvidos em hostilidade e que ocupam uma 
posição muito elevada. Isto é, nossa vida passa a ser ameaçada 
de cima. Temos problemas internos (a tentação da carne), pro­
blemas externos (as tentações do mundo) e problemas etéreos 
(as tentações de cima).
á Quais as armas que elevemos cingir para sustar um embate tão 
renhido e tão perigoso como o senhor mencionou?
Paulo lança mão da imagem de um equipamento militar: bo­
tas apropriadas, escudo, capacete e espada. Embora cada uma 
dessas peças tenha o seu significado espiritual (por exemplo, a 
espada é a Palavra de.Deus), não devemos inquirir com dema­
siada minudência o significado de cada palavra. O apóstolo não 
fica só na armadura militar do cristão, mas também insiste na 
oração - o principal exercício de fé e de esperança. Essa oração 
precisa ser contínua, perseverante, em todas as ocasiões, de 
noite e de dia, dia após dia. E não deve ser egocêntrica, mas 
“por todos os santos”.
Á É aí que entraria a oração “não nos deixes cair em tentação”, 
ensinada por Jesus?
Já que não obedecemos a Deus sem uma contínua batalha e 
com duros e cruéis encontros, na oração do Pai-Nosso pedi­
mos que Deus nos dê armas poderosas e nos ampare com sua 
assistência para que possamos alcançar a vitória. Precisamos 
que a graça do Espírito Santo abrande nossos corações, nos 
direcione e nos encaminhe no serviço de Deus. Mas não
0 DIABO VIRA TUDO DE CABEÇA PARA BAIXO •
somente isso. Precisamos também de seu socorro para que nos 
faça invencíveis contra as ciladas de Satanás e seus violentos 
ataques. Na verdade, as tentações são muitas e de diversos 
tipos. Todo mau pensamento de nossa mente que suscite nossa 
concupiscência atiça o demônio, que nos induz a transgredir 
a lei. Até mesmo as coisas que em si não são más, por arte e 
indústria de Satanás, podem converter-se em tentações quando 
se nos põem diante dos olhos, a fim de que, mediante elas, 
nos apartemos de Deus.
Á O senhor está dizendo que nossa concupiscência atiça o de­
mônio. Não é exatamente o contrário?
Mesmo que não houvesse o demônio, nós pecaríamos, já que 
a Queda nos tornou moralmente imprestáveis. Se Satanás já 
tivesse sido lançado no lago de fogo e enxofre, o que ainda vai 
acontecer, nós continuaríamos pecando por causa do enorme 
estrago feito pela queda do pai da raça humana. Só deixaremos 
de pecar e de ser tentados com o novo corpo que a ressurreição 
e a súbita transformação nos darão. O pecado reside dentro 
de nós. A tentação nasce dos impulsos incontroláveis dentro 
de nós. Se cedermos a esses impulsos, logo o pecado e o de­
mônio mostrarão sua cara, como se lê em Tiago (Tg 1.13-15). 
Se abrirmos a porta para a concupiscência, o Diabo entrará. 
Não foi isso que aconteceu com Judas? O Evangelho assevera 
que, depois do pacto da traição, “então Satanás entrou em 
Judas” (Lc 22.3).
á O que elevemos pedir em oração: não nos deixes ser tentados 
ou não nos deixes cair em tentação?
Podemos suplicar ambas as coisas. Mas me parece que, como 
Jesus colocou, a ênfase é que Deus não permita que sejamos ven­
cidos pelas tentações que lutam contra nós, tanto aquelas que
140 • SOU EU, CALV1NO
mais concupiscência produzem em nós mesmos como aquelas a 
que somos induzidos pela astúcia de Satanás. O que pedimos é 
a graça de sermos vencedores contra o pecado, contra a morte, 
contra as portas do inferno e contra todo o reino deSatanás. 
Em palavras bem curtas: que sejamos libertos do Maligno. Não 
poderemos conseguir a vitória sem que, despojados da fraqueza 
da nossa carne, estejamos cheios do Espírito Santo.
18
O CRISTÃO NÃO DEVE CORRER 
D A FOGUEIRA NEM CORRER 
P A R A A FOGUEIRA
‘Parece que (Deus utilizará o sangue cCe vocês 
para suSscrever sua venfacfe
A De junho de 1552 a maio de 1553, o senhor enviou três cartas 
endereçadas “aos cinco prisioneiros de Lyon”. Quem são eles?
São em ordem alfabética: Bernard Seguin, Charles Favre, 
Martial Alba, Peter Escrivain e Peter Navihères. Todos eram 
jovens franceses e estudavam teologia em Lausanne, aqui na 
Suiça, perto de Genebra. Em abril de 1552, eles estavam de 
volta à França quando foram presos sob a acusação de heresia 
por terem aderido à Reforma. Aos primeiros rumores da prisão 
deles, a igreja de Genebra abraçou a questão e fez tudo o que 
pôde para lhes mostrar solidariedade.
A Os rapazes foram libertados?
Os cinco estudantes apelaram ao Parlamento de Paris enquanto as 
autoridades de Berna lutavam para salvá-los. Mas não deu certo.
142 • SOU EU, CALVINO
Depois de serem transferidos de masmorra em masmorra e de 
um longo julgam ento, um ano depois da prisão, no dia 
Io de março de 1553, foram condenados à fogueira. Isso nos cau­
sou muito pranto, tanto em Genebra como em Lausanne. Dois 
meses e meio depois, a pena se cumpriu. A fogueira foi montada 
na Place des Terreaux. Ao serem avisados para se prepararem para 
a morte, os cinco estudantes receberam a notícia com piedosa 
serenidade. Do cárcere até o local da execução, eles foram can­
tando salmos e recitando versículos das Escrituras. Os dois mais 
moços foram os primeiros a subir na pilha de lenha. O último 
foi Martial Alba, o mais velho dos cinco. Ele permaneceu um 
bom tempo de joelhos em oração. Depois, solicitou ao carrasco 
que lhe concedesse o privilégio de beijar os outros quatro, que 
já estavam amarrados, no que foi atendido. Martial disse a cada 
um deles: “Adieu, adieu, meus irmãos”. Já em meio às chamas, 
uns diziam aos outros: “Coragem, meus irmãos, coragem!”.
á Suas cartas os confortaram?
E o que tentei fazer, de forma mais realista do que otimista. 
Logo após a sentença, eu lhes escrevi o seguinte: “Parece que 
Deus utilizará o sangue de vocês para subscrever sua verdade. 
Então o melhor é que vocês se preparem para partir”. Ao mes­
mo tempo, eu trouxe à lembrança deles uma preciosa verdade: 
“Vocês sabem que, ao deixar este mundo, não partem ao acaso, 
não só por terem convicção da existência de uma vida celestial, 
mas também por terem certeza da adoção graciosa do nosso 
Deus”. Por fim, disse-lhes solenemente: “Enquanto aprouver a 
Deus dar o reino aos seus inimigos, nosso dever é ficar quietos, 
embora tarde o tempo da nossa redenção”. É como disse certo 
mártir inglês em 1545: “Eu sei que o fogo, a água, a espada e 
outras coisas estão nas mãos de Deus, e ele não permitirá que 
eles me sobrevenham em intensidade superior à força que ele 
nos dará para suportá-los”.
A O senhor acaba de tocar numa questão muito delicada, o que 
me leva a perguntar: quem é mais útil a Deus, aquele que dá a sua 
vida por ele na morte ou aquele que dá a sua vida por ele na vida?
Deus, em sua soberania e em sua estratégia, serve-se de ambos, 
porém se serve mais dos que continuam vivos. Nos primórdios 
da história da igreja, dos doze apóstolos, o Senhor deixou que 
Herodes matasse à espada apenas Tiago, um dos mais chegados 
a Jesus, e preservou a vida dos outros, mesmo num ambiente de 
intensa perseguição. Dos sete diáconos, o Senhor fez o mesmo: 
deixou que o Sinédrio judaico e a multidão em fúria apedrejassem 
Estêvão e preservou a vida dos outros, inclusive a de Filipe, que 
foi um excelente evangelista. O potencial do mártir vai embora 
com ele, mas o sangue dos mártires, como dizia Tertuliano no 
século 2o, é a semente da igreja cristã. O sangue dos cristãos 
mortos por sua fé nunca é derramado à toa. É bem possível que 
o testemunho de Estêvão na hora de seu martírio tenha sido uma 
das causas da conversão de Saulo, aquele que viria a ser o maior 
teólogo e o maior missionário de todos os tempos.
A Mas todos os outros apóstolos, se não foram martirizados no 
início de seus ministérios, o foram posteriormente.
De fato, segundo a tradição, Mateus foi passado pelo fio da 
espada na Etiópia. Marcos morreu em Alexandria depois de 
ter sido arrastado pelas ruas da cidade. Lucas foi enforcado 
numa oliveira na Grécia. João foi posto num caldeirão de 
óleo fervente, mas escapou da morte e foi exilado na ilha de 
Patmos. Pedro foi crucificado de cabeça para baixo em Roma. 
Tiago, o Menor, foi lançado de um pináculo do templo e de­
pois espancado até morrer. Filipe foi enforcado numa coluna 
na Frigia. Bartolomeu foi preso a uma cruz, e dali pregou aos 
seus perseguidores até morrer. Tomé teve o corpo traspassado 
por lanças na índia. Matias foi apedrejado e depois decapitado. 
Barnabé teve a mesma sorte na Grécia. E Paulo foi decapitado
0 CRISTÃO NÃO DEVE CORRER D A FOGUEIRA •
144 • SOU EU, CALVINO
por ordem de Nero em Roma. No caso dessas pessoas, por amor 
a Jesus, elas deram a vida delas na vida e na morte.
á Como o senhor define o mártir cristão?
Mártir é tanto a pessoa assassinada como a pessoa submetida à 
pena de morte pela recusa de renunciar à fé cristã ou a qualquer 
de seus princípios. João Batista não foi condenado à morte nem 
pelo Estado nem pelo Sinédrio. Cortaram-lhe a cabeça apenas para 
satisfazer o capricho pessoal de Herodias, cujo relacionamento com 
Herodes foi criticado pelo precursor de Jesus. Já os rapazes de Lyon 
não foram necessariamente assassinados, mas condenados à pena 
máxima. A história está repleta de ambos os exemplos.
Á Além dos cinco rapazes de Lyon, tem havido outros mártires 
em seus dias?
Muitos e em muitos lugares - na Boêmia, na Escócia, na Inglaterra, 
em Portugal etc. Entre os mais notáveis, cito novamente Jan 
Hus, o precursor da Reforma, morto na fogueira em Praga no 
dia 6 de julho de 1415. Para não ser longo demais, menciono 
os nomes dos ingleses John Hooper, Hugo Latimer e do bispo 
Nicholas Ridley, martirizados em 1555. Deixo por último o meu 
amigo Thomas Cranmer, arcebispo da Cantuária e primaz da 
Inglaterra, morto em 21 de março de 1556.
Á Disseram-me que o bispo Hooper era mais elogiado por ser pai 
de família do que pastor de ovelhas.
Embora dedicando a maior parte de seu trabalho ao rebanho de 
Cristo, pelo qual deu o seu sangue, ele não deixava de providen­
ciar uma boa educação para os filhos, passando-lhes ensinamentos 
e boas maneiras. Há uma passagem muito bonita na vida dele. 
Em março de 1554, ele foi intimado a comparecer diante dos 
comissários da rainha e um deles perguntou se ele era casado.
0 CRISTÃO NÂO DEVE CORRER D A FOGUEIRA • 145
“Sim, excelência”, respondeu Hoover, “sou casado há nove anos e 
não me descasarei até que a morte me descase”. Menos de um ano 
depois, no dia 9 de fevereiro, ele foi descasado ao ser queimado 
vivo por ordem de Maria Tudor, rainha da Inglaterra, de 39 anos.
A “O Livro dos Mártires” porventura faz referência aos cinco ra­
pazes de Lyon?
O livro de John Foxe foi publicado em latim quatro anos após o 
martírio dos cinco estudantes de Lausanne. Ele faz apenas uma 
pequena alusão sem citar nomes e datas: “Durante a mesma perse­
guição padeceram os gloriosos e mui constantes mártires de Lyon 
e Vienne, duas cidades da França, dando um retumbante testemu­
nho e, para todos os cristãos, um espetáculo ou exemplo singular 
de fortaleza em Cristo, nosso Salvador”. Em minha opinião, Foxe 
deveria ter dedicado mais espaço a esses mártires, levando em conta 
que ele começou a compilar O Livro dos Mártires (coincidentemente 
com o mesmo título do livro de Jean Crespin, que citei anterior­
mente)quando, por causa da perseguição na Inglaterra, exilou-se 
por algum tempo na Alemanha e por aqui na Suíça.
á Quem é esse Foxe?
John Foxe é sete anos mais novo do que eu. Nasceu na Inglaterra e 
tornou-se professor da Universidade de Oxford, onde havia se 
formado. Creio que foi nessa época que ele se uniu aos reforma­
dores ingleses. A tradução inglesa de seu livro foi publicada há 
poucos meses sob o título Actes and Monuments of These Latter 
and Perillous Days.
Á É juízo temerário pensar que alguns cristãos acabam na fogueira 
para se tornarem heróis da fé?
Isso é possível, mas o julgamento final pertence a Deus. Os 
cristãos não devem provocar a perseguição com palavras, gestos
146 • SOU EU, CALVINO
e ações petulantes. Eles devem aceitar o preço da fidelidade a 
Cristo por amor incondicional ao Senhor, e não a eles mes­
mos. Quanto aos perigos que possam surgir, devemos evitá-los 
o quanto pudermos, mas sem nunca nos desviarmos do reto 
caminho. É tudo uma questão de equilíbrio: o cristão não deve 
correr da fogueira nem correr para a fogueira. A desobediência 
civil só não é pecado quando o cristão desobedece à lei para 
não desobedecer a Deus.
á No livro de Foxe há algumas histórias que cheiram a fanatismo?
Os que não se retratam, não abjuram a fé, não voltam atrás, 
mesmo tendo a oportunidade de se livrarem da morte na última 
hora, são pessoas especiais, como os amigos de Daniel, frente à 
fornalha acesa, e Estêvão, frente ao apedrejamento. Elas não irão 
nem gritar, nem praguejar, nem blasfemar no momento exato 
da morte. Elas irão louvar a Deus, irão anunciar o evangelho 
pela última vez, irão orar pelos seus verdugos (como Estêvão fez), 
irão abraçar e beijar a estaca (como aqueles onze homens e duas 
mulheres martirizados em Stratford-le-Bow em 1556), irão lavar 
as mãos nas chamas como se fossem água fresca (como um tal 
de Rogers), irão beijar a fogueira (como um tal de Cardmaker), 
irão declarar que a fogueira na qual estão sendo queimadas é a 
carruagem de fogo que levou Elias para o céu, irão bater palmas 
com as mãos em fogo (como Thomas Hauker), irão chamar a 
corda que as amarra à estaca de cinto nupcial com o qual estão 
se casando com Cristo (como Ann Audebert), irão pedir que 
o carrasco distribua com os pobres a madeira que sobrar dó 
“incêndio” (como Giles Tilleman). E preciso levar em conta 
que o estado emocional dos que estão sendo levados para o 
patíbulo (para serem mortos ou na fogueira, ou na forca, ou 
na guilhotina, ou no apedrejamento) certamente altera seus 
sentimentos, suas palavras, suas reações. Nos casos citados por 
Foxe, não vejo fanatismo algum.
ÚLTIMA PÁGINA
JO Ã O C A LV IN O M O R R E U no dia 27 de maio de 1564, 
em Genebra, 44 dias antes de completar 55 anos. No dia seguin­
te, domingo, seu corpo foi envolto num lençol e posto em um 
ataúde de madeira. Uma hora antes de começar o culto da tarde 
na Catedral de Saint Pierre, Calvino foi sepultado no cemitério 
Plainpalais, sem pompa nem qualquer aparato.
Meses depois, estudantes recém-chegados a Genebra foram 
ao cemitério para visitar o túmulo de Calvino, na certeza de 
encontrar ali um mausoléu à altura do seu nome. Nada encon­
traram, nem sequer uma pequena placa com a inscrição “Aqui 
jaz João Calvino”. Até hoje, passados 450 anos de sua morte, 
ninguém sabe, por determinação dele, onde se encontram os 
seus restos mortais.
O nome de João Calvino está escrito no Livro da Vida 
(Fp 4.3; Ap 3.5), junto com o nome de todos os eleitos.
Tudo o que Calvino fez está disponível na internet, nas 
enciclopédias e nos livros escritos por mais de uma centena 
de estudiosos, em várias partes do mundo, a começar com a
148 • SOU EU, CALV1N0
biografia de Theodoro de Beza, seu amigo e substituto imediato 
na Catedral de Saint Pierre, e a terminar (por enquanto) com 
este singelo livro da Editora Ultimato.
Tudo o que Calvino escreveu está, em primeiro lugar, em 
As Institutos, o livro mais lido durante o século 16 (depois da 
Bíblia). Também está nos seus comentários de quase todos os 66 
livros das Escrituras Sagradas e em outros livros de menor porte.
Tudo o que Calvino deixou de dizer e fazer, tudo o que ele 
fez e disse de errado foi jogado no fundo do mar (Mq 7.19), 
de acordo com a doutrina do sola gratia, que Jacques Lefèvre, 
Martinho Lutero e ele redescobriram, abraçaram e pregaram.
ANEXOS
DE PAI PARA FILHO
CALVINO ENCORAJOU centenas de homens e mulheres 
cie diferentes lugares e posições sociais muito mais por meio 
de suas cartas do que por meio de seus livros e sermões, sem- 
pre de maneira fraterna e humana, sem o menor resquício de 
superioridade. Os conselhos que ele deu em sua época - mea­
dos do século 16 - não perderam o seu valor. Algumas dessas 
palavras de orientação e ânimo aparecem a seguir, retiradas do 
livro Cartas de João Calvino, com a devida permissão da Editora 
Cultura Cristã, que o publicou em 2009.
As desculpas infelizes com as quais costumamos cobrir nossa 
nudez diante dos homens jamais poderão suportar o calor do 
juízo de Deus.
* * *
Não teremos uma igreja duradoura a menos que se restaure 
completamente a antiga disciplina apostólica, negligenciada 
entre nós em muitos aspectos.
* * *
Os cristãos devem ter toda aversão aos cismas e evitá-los sempre 
onde depender deles.
152 • SOU EU. CALVINO
Quase não há igreja que não conserva alguns resquícios da 
ignorância passada.
k k ie
Caso o ministro do evangelho cumpra seu dever, tudo irá ime­
diatamente bem. Caso contrário, um escândalo impossível de 
suportar ocorrerá.
* * *
É difícil conservar nos devidos limites aqueles que estão inchados 
por terem uma tola opinião de sua própria sabedoria.
* * *
Em certas circunstâncias, o ato de entregarmos nossa segurança 
ao Senhor é o único quase exclusivo recurso que nos resta.
* * *
Só se deve recorrer a soluções extraordinárias quando há a 
justificativa de uma situação extrema.
* * *
As superstições do anticristo, enraizadas há tanto tempo, não 
podem ser erradicadas tão facilmente do coração humano.
* * *
Por sua natureza e por sua hipocrisia o ser humano não suporta 
ser trazido à clara luz da Palavra de Deus, já que ela lhe desnuda 
a torpeza e a ignomínia. E mais cômodo para ele se abrigar no 
esconderijo e no covil tenebroso de suas superstições.
* * *
Reconheçamos que em nós nada há senão absoluta miséria. Somos 
interiormente corruptos em nossos sentimentos e afeições. Nossa alma 
ê mesmo um abismo de iniquidade, o que é de fato desesperador.
k k 9c
E tão fértil a semente da falsidade que basta um só grão para 
ela encher o mundo em apenas três dias!
k k k
O exagero, a falta de equilíbrio, não é nem prudente nem útil. 
Daí a necessidade de observamios a moderação em todas as coisas.
DE PAI PARA FILHO • 153
E bem verdade que devemos tolerar os fracos, mas sempre com 
o propósito de fortalecê-los e levá-los a uma maior perfeição.
* * *
Nada aborrece mais a Deus do que quando, segundo nossa 
própria sabedoria, avançamos para além ou recuamos para 
aquém do que ele determina.
5*r * *
A reforma da igreja de Jesus é obra de sua mão. Por isso, deixemo-nos 
guiar por ela. Ainda mais que, na maioria dos casos, ele acha 
conveniente agir de forma maravilhosa e acima da compreensão 
humana, seja na restauração ou na preservação de sua igreja.
* * *
A sabedoria do Espírito, não a da carne, tem de prevalecer em 
tudo. Em vez de seguir a inclinação do nosso próprio entendi­
mento, devemo-nos deixar guiar por ele.
* * *
Como a doutrina é a alma da igreja para a vivificação dela, 
assim também a disciplina e a correção de vícios são como os 
nervos que conservam o corpo saudável e vigoroso.
* * *
Tenho feito o que posso para não ser esmagado pela angústia!
* * *
Diante do grandeJuiz Celestial não há nenhum vivente que esteja 
isento de culpa. Curvamos, pois, diante dele nossa cabeça até o 
chão, submetendo-nos sob a sua disciplina.
* * *
Cabe a Deus a cura das nossas doenças interiores, desconhecidas a 
nós, bem como a prescrição do tratamento, não segundo o nosso gosto, 
mas conforme o que ele julga ser apropriado.
* * *
Numa causa tão grandiosa e digna, mesmo quando empre­
gamos toda a nossa capacidade, ficamos sempre aquém do 
que se exige.
154 • SOU EU, CALVINO
Quando dilacerados os membros da igreja, o corpo sangra. 
Isso me aflige de tal modo que, se eu fosse de algum préstimo, 
cruzaria voluntariamente até dez mares por causa disso.
* * *
É melhor e acima de qualquer comparação ser cristão do que 
ser rei ou príncipe.
* * *
Por não eliminarem todos os abusos religiosos e deixarem inume­
ráveis renovos que voltam a germinar, as questões eclesiásticas 
continuam desorganizadas.
* * *
A religião indubitavelmente pura e imaculada jamais florescerá 
enquanto as igrejas não se derem ao trabalho de terem pastores 
adequados e cumpridores de seus deveres docentes.
tk * *
A igreja é mais perturbada por inimigos internos do que pela 
oposição externa.
* * *
Todos nós sabemos muito bem como é difícil ao ser humano 
esquecer de seu “eu”.
k k k
Nossas quedas não são mortais nem perdemos de todo o nosso 
ânimo porque nosso Pai celestial está sempre pronto a nos dispen­
sar misericórdia e sustentar-nos com sua mão.
k k k
Se o inimigo, por causa de nossa fragilidade, tem alguma vez 
qualquer domínio sobre nós, não permitamos que ele se vanglorie, 
como se tivesse alcançado vitória completa. Aqueles que Deus 
íevanta têm forças em dobro para resistir a todos os seus ataques.
k k *
Não vejo porque devemos sobrecarregar a igreja com cerimônias 
perniciosas, frívolas e inúteis, quando uma ordem de culto 
simples está à nossa disposição.
DE PAI PARA FILHO • 155
Se virem alguém cuja mente continua magoada, façam o melhor 
possível para apaziguar seus ressentimentos.
* * *
Sou tomado de aflição só com a suspeita de que exista alguma 
discórdia secreta entre os irmãos.
* * *
A reflexão acerca da brevidade da vida deve levar-nos a refletir 
acerca da morte e da ressurreição de Jesus, a fim de partilhar 
de sua glória.
* * *
Devemos preferir a herança do Reino do céu a tudo aquilo que 
possa nos deixar fora dele.
* * *
Que a religião (caída em degradante desgraça), que a doutrina 
da salvação (corrompida por erros execráveis) e que o culto (tão 
perfeitamente corrompido) - recuperem o fulgor primitivo e 
sejam purificados de toda impureza.
* ife *
Se não houver nenhuma autoridade competente para refrear 
certos indivíduos, a perversidade deles irromperá rapidamente.
* * *
Os idólatras devem ser categoricamente admoestados e estimu­
lados a se consagrarem sinceramente a Deus e os excomungados 
devem ser encorajados a se reconciliarem com a igreja.
* * *
Os mártires dignos de respeito são aqueles que mutuamente se 
encorajam o máximo possível.
* * *
Se somos criaturas humanas, estaremos sempre cercados por 
paixões humanas.
•k * *
Em vez de ceder às fraquezas, muito mais importante é procurar 
nos despojar delas e buscar a reanimação do Espírito.
156 • SOU EU, CALVINO
Reanimem-se sempre e não deixem de fazer guerra contra a carne. 
Tenhamos plena convicção de que somos felizes por pertencer a 
Cristo, seja para a vida ou para a morte.
* * *
E melhor sofrer sem vacilar por causa do nome de Deus do que 
possuir o mundo e sermos visitados pela aflição.
* * *
Deus nos corrige não de um ou de dois sentimentos ruins. Mas 
de muito mais sentimentos ruins que podemos imaginar. Nosso 
orgulho, por exemplo, é sempre maior do que estimamos.
* * *
Sofrer perseguições não significa que Deus se esquece de nós. 
Ao contrário, ele permite que soframos dificuldades para nosso 
maior benefício.
* * *
Deus fortalece os seus servos na proporção de suas dificuldades.
* * *
Quando vocês virem o pobre rebanho de Deus disperso por causa 
dos lobos, recorram a ele em oração. Além de suplicar que ele lhes 
fortaleça em suas fraquezas, peçamos-lhe que estenda o seu poderoso 
braço, afugente os lobos, fechando suas bocas sanguinárias, 
quebrando suas garras e convertendo-os em cordeiros inofensivos.
* * *
Quando deixamos de nos exercitar diariamente nas Sagradas 
Escrituras, a verdade que até então enchia nossas mentes começa 
pouco a pouco a se esvair. Pode até desaparecer completamente, 
a menos que nosso Pai compassivo providencie o remédio.
* * *
Há certas coisas que devem ser toleradas, ainda que você não 
as aprove totalmente.
O QUE SE DIZ DE CALVINO
Os genebrinos deveríam tornar bendito o dia em que 
Calvino nasceu.
- M ontesquieu
Quanto mais tempo eu vivo, mais claro se torna que 
o sistema de João Calvino é o que está mais perto da 
perfeição.
- Charles H. Spurgeon
Omitir Calvino das forças da evolução ocidental é inter­
pretar a história com um olho fechado.
- Lord John Morley
É bastante provável que Calvino tenha sido o maior e o 
principal teólogo cristão de todos os tempos.
- Ricardo Quadros Gouvêa
Eu poderia, feliz e proveitosamente, assentar-me e passar 
o restante de minha vida somente com Calvino.
- Karl Barth
158 • SOU EU, CALV1N0
No dia da morte de Calvino, no mesmo instante o sol se pôs 
e o maior luzeiro que houve neste mundo para a direção da 
igreja de Deus foi recebido no céu. E podemos afirmar com 
acerto que em um só homem aprouve a Deus, em nosso 
tempo, ensinar-nos a maneira do bem viver e do bem morrer.
- Theodoro de Beza
Calvino saiu vitorioso... simplesmente por ser o maior 
cristão do seu século.
- Ernest Renan
Calvino é considerado não só o pensador mais articulado 
e fecundo entre os reformadores protestantes, mas tam­
bém uma das mentes formadoras do mundo moderno.
- Alderi Souza de Matos
A vida, a obra e o pensamento de Calvino foram determi­
nantes para a configuração da sociedade europeia, hoje 
decadente e devedora ao legado do grande reformador.
• - Lyndon de Araújo Santos
Homem algum jamais teve um senso mais profundo de 
Deus do que Calvino. Homem algum jamais se rendeu 
totalmente à direção divina como ele fez.
- Benjamin B. Warfíeld
O mérito de Calvino foi jamais ter buscado mérito para 
si. Viveu, estudou, escreveu, ensinou, pastoreou e morreu 
para que somente Deus recebesse a glória devida.
- Luiz Fernando dos Santos
Calvino foi um gênio exegético de primeira grandeza. Seus 
comentários nunca foram ultrapassados em originalidade, 
profundidade, perspicuidade, firmeza e valor permanente.
- Philip Schaff
0 QUE SE DIZ DE CALVINO • 159
Quando Calvino morreu em 1564, deixou muito mais do 
que uma Genebra reformada. Por toda a Europa, e em 
breve na distante América do Norte, ele tinha seguidores 
ansiosos por continuar o “jogo” em que ele havia entrado. 
- Bruce Shelley
Embora a teologia de Calvino tenha contornos muito 
próximos a de Agostinho, ela se deve mais ao estudo da 
Bíblia do que a Agostinho. Como outros reformadores, 
ele não foi de Agostinho para a Bíblia e daí para as dou­
trinas da Reforma, mas da Bíblia para Agostinho, em 
busca de apoio do príncipe dos pais da igreja.
— Earle E. Cairns
Vivendo na pobreza e totalmente dedicado à sua obra, 
Calvino foi um homem de Deus e um homem universal.
— José Artulino Besen
A vida de Calvino é um gemido cheio de lágrimas pela 
sua própria miséria e um coro triunfal glorificando a 
inestimável graça do seu Deus.
— Pierre Marcei
Calvino era, de longe, o maior dos reformadores no que 
diz respeito aos talentos que possuía, à influência que 
exercia e ao serviço que prestou para o estabelecimento 
e difusão da importante verdade.
— William CunninghamEntre todos os nascidos de mulher, não houve ninguém 
maior do que João Calvino. Nenhuma época anterior 
à dele jamais produziu alguém igual a ele, e nenhuma 
época depois dele viu um concorrente seu.
— Charles H. Spurgeon
160 • SOU EU, CALV1NO
Como o povo de Deus, no Antigo Testamento, precisou 
de profetas, assim também a igreja cristã, mesmo guiada 
pelo Espírito e pelas Escrituras, precisa de profetas. Entre 
outros, que o Senhor nunca deixa faltar à sua igreja, avulta 
certamente Calvino - de vida relativamente breve, mas de 
uma irradiação cujos lampejos continuam a nos iluminar.
- Padre Ney Brasil
Calvino provou ser uma figura de extrema influência na 
história da Europa, mudando a perspectiva de indivíduos 
e instituições, no início da era moderna, à medida que 
a civilização ocidental começou a assumir sua forma 
característica.
- Alister McGrath
Ao ler Calvino nos sentimos surpreendidos inclusive nos 
nossos dias. Encontramos nele o eco de nossas lutas, de 
nossas dúvidas, de nossas tentações, de nossas perplexi­
dades. Ao longo de quatro séculos nos sentimos anima­
dos com o calor da sua simpatia, revigorados, guiados, 
fortalecidos por suas exortações.
- Jean-Daniel Benoit
Calvino deixou à igreja e ao homem moderno uma rica 
herança de teorias sociais e econômicas que são bíblicas 
em sua origem, sua natureza e sua perspectiva e que ofe­
recem somente a possível esperança de uma satisfatória 
solução aos muitos problemas vexatórios que acusam a 
moderna sociedade.
- C. Gregg Singer
O QUE SE DIZ DE 
A S I N S T I T U T A S
Em importância, influência e qualidade, As Institutos não 
possuem rival na história da teologia. Elas poderiam ser 
comparadas, talvez, à Cidade de Deus, de Agostinho, ou 
à Summa, de Tomás de Aquino, possivelmente à Dogmática 
Eclesiástica, de Karl Barth. Entretanto, a todas essas 
obras a obra-prima de Calvino supera. As Institutos são 
um livro que fornece não apenas o melhor compêndio 
de teologia cristã jamais escrito, mas também a base de 
uma cosmovisão cristã cuja abrangência e consistência 
são sem igual na história da fé cristã.
— Ricardo Quadros Gouvêa
As Institutos perduram como uma das mais lúcidas e mais 
vigorosas sumas teológicas da história cristã.
- Timothy George
162 • SOU EU. CALV1NO
O que Tucídides é para os gregos, ou Gibbon entre 
os historiadores do século 18, o que Platão é entre os 
filósofos, ou a Ilíada entre os egípcios, ou Shakespeare 
entre os dramas, é o que As Institutos são entre os tratados 
teológicos.
- Benjamin B. Warfield
Nenhum livro seria mais lido durante o século 16 do que 
As Institutos de Calvino.
- Daniel-Rops
As Institutos são uma enciclopédia teológica superior à 
qual nada apareceu até agora.
- José S. Canuto
As Institutos são a mais clara, lógica e legível exposição da 
doutrina protestante que a Reforma produziu.
- Brwce Shelley
Porque a primeira edição foi publicada quando Calvino 
tinha 27 anos de idade, as ínstitwtas são a mais extraordi­
nária prova de sua maturidade e do vigor de sua mente 
e do cuidado com que estudou a'Palavra de Deus.
- William Cunningham
GENEBRA NO MAPA
FOI O HISTORIADOR Alderi Souza de Matos a pessoa 
a escrever que João Calvino “colocou Genebra no mapa da 
Europa”. Mas ele foi pouco efusivo. Pensou apenas na Europa 
do século 16, quando Genebra, antes uma cidade sem atrativo 
especial algum, sediou o trabalho de João Calvino e tornou-se 
um centro de grande importância na esfera religiosa e espiritual. 
Se a primeira onda da Reforma projetou a cidade de Wittenberg, 
na Alemanha, a segunda onda projetou Genebra, na Suiça. 
Porque refugiados, interessados e curiosos vinham de todos 
os lados da Europa para conhecer a cidade de Calvino, esta se 
tornou mais notável que a cidade de Lutero.
Com o correr dos anos, Genebra passou a ser colocada 
no mapa-múndi e não só no mapa europeu. Exatos trezentos 
anos e três meses depois da morte de Calvino (maio de 1564), 
a Cruz Vermelha Internacional foi organizada em Genebra 
(agosto de 1864). Em 1919 foi a vez da Organização Interna­
cional do Trabalho (OIT). Depois da Segunda Guerra Mun­
dial (1935-1945), valendo-se talvez da posição histórica da 
Suíça de neutralidade na conjuntura internacional, Genebra
164 • SOU EU, CALV1N0
tornou-se a sede de várias outras organizações e entidades de 
âmbito mundial. Na área da saúde, a cidade hospeda, além do 
Comitê Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Ver­
melho, a Organização Mundial de Saúde (OMS), o Programa 
Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (UNA1DS), o 
Fundo Global de Combate à Aids (Global Fund) e Médicos 
Sem Fronteiras. Entre outras organizações com sede em 
Genebra estão a Organização Meteorológica Mundial (WMO), 
a Organização Mundial do Comércio (OMC), a Associação 
Internacional de Transportes Aéreos (IATA), a Organização 
Internacional para as Migrações (OIM), a União Internacio­
nal de Telecomunicações, o Fundo das Nações Unidas para a 
Infância (UNICEF), o Alto Comissariado das Nações Unidas 
para Refugiados (ACNUR), o Escritório do Alto Comissariado 
das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH), 
o Escritório das Nações Unidas em Genebra (UNOG) e o 
Conselho Mundial de Igrejas (CMI).
Hoje, apenas um pòuco mais da metade da população de 
Genebra se identifica com o cristianismo (53%). O segundo 
maior grupo não se identifica com qualquer religião (38,4). Os 
demais são fiéis de outras religiões (8,6). A porcentagem de cató­
licos (36,6%) é 3,3 vezes maior que a dos protestantes (11,1%).
Cidades da França e da Suíça onde Calvino viveu
• Noyon - Onde nasceu e viveu até a idade de 14 anos.
• Paris — Onde estudou no Collège de Montaigu e na Universidade de Paris.
• Orléans — Onde fez o curso de direito civil e escreveu seu primeiro livro.
• Basiléia - Onde passou um ano e meio depois de te r se convertido.
• Estrasburgo — Onde passou três “ anos dourados” , depois de expulso de Genebra, 
onde pastoreou uma comunidade de refugiados franceses e se casou.
• Genebra - Onde viveu quase a metade de sua vida como reformador, pastor, 
pregador, professor e escreveu a maior parte de seus comentários de livros da Bíblia.
Cronologia de Calvino
/ s
Eventos paralelos
í \v 1492) Descoberta da América 
O'5''/) Nascimento de Lutero
(l 198] Descoberta do caminho das índias 
(l 500 J Descoberta do Brasil
Nasce em Noyon
\I5 I2 )\ Lefèvre redescobre a
doutrina da justificação
/"
0 517} Lutero publica as 95 teses
Estuda em Paris ( 15 anos) “ ? j?
•j:
Licencia-se em leis f p p i 
em Orléans (22 anos) i
Publica De Clementia (23 anos) E, •.
U 5 3 4) Noite dos cartazesV,_s
Exila-se em Basiléia (26 anos) 1535) Genebra torna-se protestante
Publica a primeira edição 
de As Institutos (27 anos) j
(janeiro) - Inicia seu ministério 
em Genebra (28 anos)
(abril) - Fixa-se em Estrasburgo g 
ao ser expulso de Genebra 
(29 anos)
Cronologia de Calvino | Eventos paralelos
Casa-se com Idelette (31 anos)
(setembro) - É convidado 
a voltar para Genebra (32 anos)
i Início do Concilio deTrento 
15 6 Morte de Lutero
Fica viúvo de Idelette (40 anos)
0550/ Almirante Coligny se declara reformado
Obtém vitória sobre os libertinos e | jg | | Cinco estudantes de teologia 
acusa Serveto de herege (44 anos) são condenados à fogueira em Lyon
(1555) Jean Crespin publica 
T O Livro dos Mártires
( 1557) ( 10 de março) - Realiza-se o primeiro
' V ’ cult° reformado no Brasil
f
IJ 558j (9 de fevereiro) Quatro membros da 
igreja de Genebra redigem no 
Rio de Janeiro a primeira confissão 
reformada do continente americano 
e três deles são executados por 
Villegaignon ■
(1559! Realiza-se em Paris 0 primeiro sínodo 
"J y da igreja reformada da França
Funda a Academia de Genebra, 
publica a ediçãodefinitiva de 
As Institutos e torna-se cidadão 
de Genebra (50 anos)
Encerramento do Concilio deTrento
(27 de maio) 
Morre em Genebra aos 55 anos
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í n d i c e o n o m á s t i c o
A
Agostinho, 16, 75, 97, 118-119,123, 
159, 161
Alba, Martial, 141-142 
Alexandria, Clemente de, 123 
Allen, 37 
Ambrósio, 119 
Anchieta, José de, 38 
Aquino, Tomás de, 16,57, 87,161 
Arran, Conde de, 128 
Autun, Honório de, 34
B
Bersini, Marcus, 94
Beza, Theodoro de, 15,17, 56, 68, 
82, 148, 158 
Blanchet, Peter, 124 
Bolsec, Jérôme-Hermès, 61, 63 
Borromeu, Carlos, 38 
Bourdon, Pierre, 115, 117, 119 
Briçonnet, Guilherme, 107 
Brígida, 92
Bucer, Elizabeth, 123 
Bucer, Martin, 32,123 
Budé, Guilherme, 107 
Bugenhagen, Johann, 93 
Bullinger, 37,128
Bure, Idelettede, 32, 45, 64,124, 
128,167
Burghley, Barão, 128
C
Cabral, Pedro Álvares, 113,116 
Cany, Madame de, 128 
Capito, Wolfgang, 123 
Carlos V, 114 
Carmeau, Nicolas, 115 
Caroli, Pierre, 60 
Carracciolo, Galliazo, 131 
Celéstio, 97
Chartier, Guillaume, 115 
Cipriano, 118 
Claraval, Bernardo de, 123
174 * SOU EU, CALV1NO
Clemente VII, 41 
Colladon, Nicolas, 107
Coligny, Almirante, 109,114, 
128-130,167
Colombo, Cristóvão, 28 
Cop, Nicolas, 22-23 
Copérnico, Nicolau, 28-29 
Courrault, 64 
Cranach, Lucas, 30 
Cranmer, Thomas, 37,134,144 
Crisóstomo, 23
Crespin, Jean, 107,119,145,167
D
D’Andelot, 128 
D’Angoulême, Marguerite, 22 
D’Arc, Joana, 21 
David, Martin, 115 
Denis, Nicolas, 115 
Du Pont, 115 
Dürer, Albrecht, 30
E
Eclano, Juliano de, 97 
Eduardo VI, 36-37, 82,128 
Escrivain, Peter, 141 
Essomeriq, 116
F
Farei, Guilherme, 17, 24-28, 30-32, 
52-53, 59, 64, 80, 93,107, 110, 
128, 132, 135 
Favre, Charles, 141 
Ferrara, Duquesa de, 60,128 
Ficino, Marsílio, 122 
Foxe, John, 145-146 
Francisco I, 86,106,110 
Frederico III, 37 
Froment, Antoine, 27-28, 80
G
Gama, Vasco da, 28 
Gardien, Jean, 115 
Gerson, João, 92 
Gonneville, Paulmier de, 116 
Groote, Gerhard, 92 
Grynaeus, Simon, 131
H
Hooper, John, 144 
Hus, Jan, 93,144
K
Kempis, Tomás de, 92 
Knox, John, 50, 75, 93, 128,132
L
Lafon, André, 115,117,119 
Lasius, Balthasar, 94 
Latimer, Hugo, 93,144 
Leão X, 41,93
Lefèvre, Jacques, 8, 79,105-107, 
109,111,148,166 
Léry, Jean de, 115 
Lizet, Pierre, 106 
Loyola, Inácio de, 21, 78 
Lutero, Martinho, 8,18, 22, 24, 30, 
32, 34-43, 60, 66, 71, 75, 79, 86, 
92-93, 95-96, 105-107, 109, 111, 
128,132,148, 163,166-167,170
M
Magalhães, Fernão de, 28 
Marcourt, Antoine, 110 
Melâncton, Filipe, 30,39, 93,128,132 
Mercator, Gerardus, 29 
Michelangelo, 30 
Mirandola, Pico delia, 122 
Morus, Tomás, 121-122
ÍNDICE ONOMÁSTICO
N
Navihères, Peter, 141
O
Orvieto, Hugolino de, 98 
Osiander, Andreas, 62
P
Pelágio, 97 
Perrin, Ami, 105 
Pio IV, 38
Platter, Thomas, 94
R
Rabot, William, 130 
Radewijns, Florentino, 92 
Raviquet, Nicolas, 115 
Ridley, Nicholas, 144 
Rimini, Gregório, 98 
Roterdã, Erasmo de, 20, 24, 93, 
121-122
Rousseau, Jacques, 115 
Roussel, Gérard, 22 
Ruysbroeck, João, 92
S
Sadoleto, 17, 31, 63, 83 
Seguin, Bernard, 141 
Sena, Catarina de, 92 
Sêneca, 20, 22, 75 
Serveto, Miguel, 29, 62-63,128, 
132,167
Seymour, Edward, 82,133 
Somerset, Duque de, 36, 44, 82, 
130-131
Storch, Nicholas, 71 
Stuart, Maria, 114,128 
Sturm, Johannes, 32 
Susana, 116 
Suso, Henrique, 92
T
Tauler, João, 92 
Tertuliano, 119, 123, 143 
Turtaz, Elizabeth, 129 
Tyndale, Guilherme, 93
U
Ursinus, Zacarias, 37
V
Vadian, 95
Valia, Lorenzo, 122
Vallière, Jean, 106
Vauville, Ricardo, 128, 132
Verneuil, Matthieu, 115,117-119
Villegaignon, Nicholas Durand de, 78, 
113-115, 117-120, 167 
Vinci, Leonardo da, 29 
Viret, Pierre, 17, 24, 56, 82,128-129 
Vives, Juan Luis, 121
W
Watt, Joachim von, 94-95 
Wycliffe, John, 93 
Wolmar, Melchior, 21
Z
Zell, Matthieu, 32 
Zuínglio, Ulrico, 55,124
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Sou E u , Calvino é tão bom 
quanto Conversas com Lutero, 
porém ainda mais necessário, 
porque entre nós a vida e o 
pensamento de Calvino são 
menos conhecidos do que os 
de Lutero.
- Cláudio Wagner, ex-professor de 
história da igreja no Seminário 
Presbiteriano do Centenário e no 
Seminário Batista Fluminense
João Calvino foi, ao lado de 
Lutero, o principal reformador 
protestante. Suas contribuições 
e influência são tão vastas que, 
mesmo que se discorde dele, 
não se pode ignorá-lo. Daí a 
importância deste livro.
- Alderi S ou za de M atos, 
professor no Centro 
Presbiteriano de Pós-Graduação 
Andrew Jumper
O estilo, as informações e a 
clareza do texto dando voz a 
Calvino certamente contribuirão 
para um melhor conhecimento 
de sua pessoa, obra e 
pensamento no Brasil.
- Lyndon de A raújo Santos, 
professor na Universidade 
Federal do Maranhão
Elben M. Lenz César é
diretor da revista Ultimato.
E autor de, entre outros, 
Práticas Devocionais, Refeições 
D iárias com o Sabor dos 
Salm os, Refeições D iárias 
com Jesu s, Refeições D iárias 
com os Discípulos, História 
da Evangelizaçào do B rasil 
e Conversas com Lutero, 
publicados pela Editora 
Ultimato.
SOU EU, CALVIN O E UMA BIOGRAFIA UNICA. 
Na verdade, é um diálogo, uma espécie de talk-show, na 
medida em que coloca na boca do reformador 
palavras que ele mesmo escreveu e palavras que 
refletem o seu pensamento. Em estilo criativo e 
fácil de ler, a obra torna viva e relevante a grande 
contribuição do autor de As Institutos, bem como 
responde a mais de uma centena de perguntas que 
muitos cristãos gostariam de fazer sobre a Bíblia, a 
teologia, a igreja, enfim, sobre a vida cristã.
Não há melhor maneira de recordar os quinhentos 
anos da Reforma do que apreciar o pensamento de 
João Calvino, o seu mais influente teólogo, apresentado 
pelo pastor Elben César, um cristão reformado.
- Manfred Grellert, diretor de formação cristã 
da Visão Mundial Internacional
Ao ler S o u E u , C a l v i n o , as informações recebidas 
foram tantas e com tamanha exatidão, que foi como 
se eu nunca tivesse lido nada sobre o que João Calvino 
escreveu. Se eu estivesse pensando em escrever um livro 
sobre ele, certamente desistiría da façanha depois de 
acompanhar o autor deste livro em sua bela apresentação 
do grande reformador genebrino na forma de diálogo.
- Valter Grciciano Martins, tradutor de quase todos os 
comentários bíblicos e livros de João Calvino no Brasil
ultimato
MISTO
P apel produzido a partir 
d e fon tes re sp o n sáv e is

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