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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA
HISTÓRIA DA FILOSOFIA MEDIEVAL - CAMILA EZÍDIO
LUCIE GONÇALVES
DEDC1 - SALVADOR - 20 de JUNHO de 2025
O presente ensaio se propõe a defender que o amor ordenado no casamento e na família, é parte da solução para o que bell Hhooks descreve como cinismo em relação ao amor (2021, p. 33). A discussão se fundamenta na necessidade de buscar possíveis soluções para o problema apontado por Hhooks. O ensaio se inicia explicando a possibilidade da deturpação do amor e de seu significado, seguido da exposição do casamento como um local de constituição de família, onde aprendemos a respeito do mundo e do amor, então articulando uma concepção de amor bom e ordenado, e concluindo com a ideia de que esse amor pode fazer parte da solução do problema levantado.
Agostinho escreveu que “dois amores fizeram duas cidades: o amor de si levando até o desprezo de Deus fez a cidade terrena; o amor de Deus levado até o desprezo de si fez a cidade de Deus” (1990, p. 508), revelando que é possível que o amor seja desordenado, levando a uma experiência negativa do amor e da vida. Hooks, por sua vez, diz que “atualmente, as mensagens mais populares são as que declaram a insignificância do amor, sua irrelevância [...] a cultura jovem de hoje é cínica em relação ao amor”. Assim, ambos os autores descrevem a possibilidade de uma experiência amorosa que não é apenas desordenada, mas que cria uma imagem negativa e desesperançada a respeito do amor. Essa experiência negativa a respeito do amor é impulsionada quando se encontra no seio familiar, pois “nada cria mais confusão em relação ao amor no coração e na mente de crianças do que punições duras e/ou cruéis aplicadas pelos mesmos adultos que elas foram ensinadas a amar e respeitar” (hooks, 2021, 60). 
É evidente que “Para Agostinho, como para a maioria dos padres da Igreja, o fim do matrimônio é antes de tudo a procriação da prole” (Frangiotti e Oliveira, 2014, 20). É necessário afirmar que, embora Agostinho reconheça a procriação como o fim primário do matrimônio, ele não limita a bondade do casamento a esse fim exclusivo. Há, de fato, em sua teologia moral, um esforço deliberado para descrever o matrimônio como um bem que excede o simples impulso natural à reprodução, considerando também a fidelidade e o vínculo indissolúvel entre os cônjuges como bens essenciais da união matrimonial (cf. De Bono Coniugali, cap. 3). Esses três bens — proles, fides, sacramentum — estabelecem, no pensamento agostiniano, uma estrutura moral e espiritual dentro da qual o amor pode ser ordenado, ou seja, direcionado à caridade, à justiça e à obediência a Deus.
Bell hooks, embora situada em outro tempo e em outro horizonte epistemológico, converge com Agostinho na denúncia da desordem do amor, ainda que o faça sob os signos da contemporaneidade secularizada. Se Agostinho falava da cidade terrena como fruto do amor desordenado de si — amor sui usque ad contemptum Dei —, hooks reconhece uma cultura individualista, narcisista e violenta, onde o amor é frequentemente instrumentalizado, confundido com domínio, desejo, ou dependência emocional. Ambos, portanto, operam com categorias morais para diagnosticar uma mesma ferida civilizacional: a desintegração do amor como princípio formativo da vida comum.
Essa convergência autoriza, filosoficamente, a postular que o amor — para que seja digno desse nome — precisa ser aprendido, cultivado, praticado sob certas condições éticas e estruturais. O casamento e a família, quando fundados na fidelidade, no cuidado e no compromisso mútuo, podem constituir um espaço privilegiado de aprendizado do amor ordenado. Agostinho escreve que “num bom matrimônio, mesmo entre idosos, embora estejam murchados os ardores juvenis do homem e da mulher, permanece ainda vigoroso o amor entre o esposo e a esposa” (De Bono Coniugali, cap. 3). Essa permanência do amor, alheia às paixões efêmeras e às utilidades sociais, revela uma concepção de amor enraizada na constância da vontade — um amor que é mais decisão do que impulso.
Bell hooks, por sua vez, compreende o amor como uma ação, não como um sentimento: “amor é a vontade de nutrir o próprio crescimento espiritual e o crescimento espiritual de outra pessoa” (hooks, 2021, p. 47). Aqui, também, o amor é decisão ética e prática comprometida, o que sugere que ele só pode florescer em relações baseadas na confiança, no respeito, na responsabilidade — valores que, tradicionalmente, eram cultivados na vida conjugal e familiar.
Não se trata, portanto, de defender uma idealização do casamento tradicional, nem de ignorar as estruturas patriarcais e de opressão que muitas vezes atravessaram e deformaram essa instituição. Mas trata-se de afirmar que, quando vivenciado como uma aliança de mútua edificação, o casamento pode ser um locus privilegiado de resistência ao cinismo e à desesperança que hoje pairam sobre o amor. Ao propor que “Nós aprendemos sobre o amor na infância [...] nossa família [...] é essa a primeira escola do amor.” (hooks, 2021, p. 59) Hhooks nos convida a reimaginar a família não como instrumento de reprodução de violência, mas como espaço de formação afetiva, ética e política.
Portanto, se o amor desordenado gera o cinismo e a desesperança, o amor ordenado — aprendido no seio de uma família fundamentada na justiça e na comunhão — pode reabrir as possibilidades de uma existência marcada pelo cuidado e pela presença recíproca. Contra o culto da autonomia narcisista e da performance afetiva, o amor conjugal e familiar se apresenta, assim, como um ato contracultural, como resistência espiritual e política à lógica do descarte.
Como síntese, pode-se dizer que tanto Agostinho quanto Hhooks reconhecem que o amor não é um dado natural e espontâneo, mas uma prática que deve ser cultivada na interioridade do sujeito e nas instituições que moldam sua vida. Quando o casamento e a família são atravessados por esse ethos do cuidado e da constância, tornam-se espaços de reparação do sujeito ferido, da comunidade esfacelada, e da cultura marcada pelo cinismo. Esse é o amor que ordena, que estrutura, que cura — amor que é, ao mesmo tempo, graça e trabalho, dom e disciplina.
Referências
AGOSTINHO, Santo. Dos bens do matrimônio. A santa virgindade. Dos bens da viuvez: cartas a Proba e a Juliana. Tradução de Vicente Rabanal e Nair de Assis Oliveira. Introdução e notas de Roque Frangiotti e Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulus, 2014. (Coleção Patrística, v. 16).
HOOKS, bell. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. Tradução de Ana Luiza Libânio. São Paulo: Elefante, 2021.

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