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O presente estudo busca apresentar uma análise do Direito Tributário brasileiro à luz constitucional, na qual se interpretará sistematicamente a ordem econômica constitucional e o sistema constitucional tributário, considerando ser a tributação o instrumento do estado de relevante influência na seara econômica. Adianta-se o 178 entendimento de que o sistema tributário nacional, para adquirir conformação de legitimidade, deve necessariamente apresentar uma progressividade sistêmica. Neste contexto, se defenderá que o direito tributário, como principal meio de obtenção de receitas pelo Estado, deve imprescindivelmente encontrar-se alinhado ao complexo axiológico trazido pelos princípios basilares da Constituição Federal Brasileira, que dão sustento à legitimidade e implicam na busca por justiça, fundamento último do sistema jurídico e elemento necessário para a configuração do Estado Democrático de Direito. Em linhas conclusivas, se analisarão alguns estudos de cunho estritamente econômico acerca da tributação brasileira, a partir dos quais se fará um diagnóstico dos reflexos econômicos da tributação no brasil. Daí se depreenderá que o direito tributário brasileiro ainda é caracterizado por exacerbado legalismo álgido e limitado à relação dual entre contribuinte fisco, manifestando cristalina falta de legitimidade da tributação no Brasil, oriunda principalmente da forte influência positivista ainda arraigada no sistema tributário pátrio. Assim, concluir-se-á que, em que pese a obrigatoriedade de conformação da tributação brasileira aos fundamentos de legitimidade do estado democrático de direito, a legislação tributária brasileira encontra-se descompassada com tais fundamento, principalmente com a ideia de justiça. 2. A ORDEM JURÍDICA NO ESTADO DEMOCRÁTICO E A FORÇA NORMATIVA DOS PRINCÍPIOS A tributação é tema multifacetado, que requer análises amplas, para além do direito, tais como questões morais, econômicas e políticas. Começaremos nosso estudo a partir de breves considerações sobre a função dos princípios constitucionais no ambiente do Estado Democrático de Direito, uma vez que determinados princípios vão relacionar-se ao termo “Democrático” ao passo que outros refletem o sentido do termo “direito” Ora, os princípios jurídicos nada mais são do que um complexo de finalidades que são internalizadas e organizadas em uma realidade puramente institucional criada pelo ser humano, o que chamamos de ordem jurídica. Noutro giro, a ordem jurídica comporta uma gama hierárquica e de coabitação de valores que refletem a sociedade plural que vivemos hoje, tudo a partir do valor que é fundamento de legitimidade basilar do direito, a Justiça. 179 A partir daí, pertinente trazer as lições de Humberto Ávila1 para conceituar os princípios jurídicos, os quais são caracterizados pelo autor como normas finalísticas, que possuem uma função diretiva na busca por um fim (estado de coisas).2 Via de consequência, este fim somente se realizará através de comportamentos (meios) condizentes com a finalidade prevista na norma, comportamentos estes que se constituem como práticas necessárias, as quais sem o devido efeito impedem a realização do fim objetivado. Vê-se, pois, que a positivação de um princípio, importa na imposição de adoção das medidas imprescindíveis à sua concretização. Neste andar, discorre Humberto Ávila: Os princípios não são apenas valores cuja realização fica na dependência de meras preferencias pessoais. Eles são, ao mesmo tempo, mais do que isso e algo diferente disso. Os princípios instituem o dever de adotar comportamentos necessários à realização de um estado de coisas ou, inversamente, instituem o deve de efetivação de um estado de coisas pela adoção de comportamentos a ele necessários. Essa perspectiva de análise evidencia que os principio implicam comportamentos, ainda que por via indireta e regressiva. Mais ainda, essa investigação permite verificar que os princípios, embora indeterminados, não o são absolutamente. Pode até haver incerteza quanto ao conteúdo do comportamento a ser adotado, mas não há quanto à sua espécie: o que for necessário para promover o fim é devido.3 É neste momento – de positivação - que vemos os princípios desprenderem-se dos valores a eles relacionados. Os valores se encontram em um plano puramente teleológico e axiológico, os princípios, sendo expressão positivada dos valores, passam a situar-se num plano deontológico e, consequentemente, estabelecem uma obrigatória execução de ações imprescindíveis à conformação do fim determinado pelo princípio. No que toca a força normativa dos princípios, vê-se que as doutrinas pós-positivistas de maior repercussão, em especial Dworkin e Alexy, trabalham a ideia no sentido de que os princípios possuem força normativa prima facie. Explica-se tal entendimento por conta da própria classificação que diferencia os princípios e regras. Os autores, ao classificarem as normas jurídicas, princípios e regras, basicamente os diferenciam da seguinte forma: a regras ou se aplicam ao caso e, portanto são validas, ou não se aplicam ao caso e, logo, não são validas, ou seja, são aplicadas mediante subsunção; os princípios, por sua vez, no caso concreto, são passiveis de ponderação, ou seja, 1 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2013. 2 Registramos que não se tratará neste trabalho as diversas distinções entre principio e regra apresentadas pelos pensadores chamados de pós-positivistas, tendo em vista que o tema perquire ao objeto deste estudo. 3 ÁVILA, Humberto. op.cit., pág. 87 180 podem ser restringidos ou afastados, através de uma espécie de balança, em face da aplicação de outro principio colidente. Mas esta classificação resulta em consequência, quais sejam, que (I) a ponderabilidade é uma característica essencial dos princípios e (II) por serem passiveis de ponderação, os princípios possuem força normativa apenas prima facie, ou seja, força provisória, que pode ser eliminada em face de princípios contrários. Nesta linha, Ávila esclarece o pensamento da “clássica” doutrina pós-positivista, mas não o seu, afirmando que “A capacidade de ponderação implica, pois, a capacidade de restrição e de afastamento de um princípio em razão do outro. Assim, ser uma norma-princípio é ser uma norma que se caracteriza pela restringibilidade e pela afastabilidade”.4 Tal critério definidor dos princípios, porém, leva a existências de máculas – que possibilitam a ocorrência de injustiças – ao aceitar a flexibilização de princípios constitucionais que não podem ser flexibilizados. Ávila afirma que “princípios tradicionais de vários ramos do Direito têm sido flexibilizados em razão de outros princípios, dito “maiores” ou “mais importantes”. No Direito Tributário, os princípios da legalidade e da capacidade contributiva têm sido flexibilizados em razão dos chamados princípios da eficiência e do interesse público”.5 Busca-se, portanto, superar este critério caracterizador dos princípios para não mais entender a ponderabilidade como característica essencial e, portanto, definitória dos princípios, mas apenas contingente, pois não são todos os princípios que podem ser flexibilizados, nem em qualquer situação. Isto porque, essa relação de concorrência horizontal não pode ter aplicação com relação aos princípios que não mantêm uma relação paralela entre si. Para justificar tal assertiva, Ávila apresenta distinção entre os princípios referentes a função (princípios que prescrevem âmbito e modo e princípios que conformam conteúdo e fim); nível (relação de subordinação existente entre alguns princípios); eficácia (os princípios podem apresentar funções eficaciais diferentes, interpretativa, integrativa). De tais considerações é possível concluir que a técnica da ponderação pode acabar retirando uma força normativa de determinados princípios que não podem ser flexibilizadossob pena de se estar relativizando os próprios fundamentos do Estado Democrático de Direito. Assim, vemos os princípios da igualdade e, seu corolário no campo tributário, o principio da capacidade contributiva como princípios que não podem ser afastados por ponderação, o quais são classificados por Ávila como princípios de eficácia “pro tanto”, “no sentido de funcionar como parâmetro de aplicação normativa que deve ser necessariamente considerado ou servir de contraponto permanente [...]”6 4 ÁVILA, Humberto, Op. cit. Pág. 131 5 ÁVILA, Humberto, Op. cit. Pág. 132 6 ÁVILA, Humberto, Op. cit. Pág. 135 181 Com tais considerações, refuta-se a defectibilidade dos princípios, sob pena de se viabilizar um afastamento de determinados princípios estruturantes do Estado, quando existentes razões contrárias mais relevantes para o interprete, dando margem a decisões de cunho pessoal. Em que pese a possibilidade de alguns princípios serem ponderados, existem princípios, como vimos, que se apresentam inafastáveis ao interprete, impondo-se sempre como parâmetro de interpretação - inclusive na atividade legiferante - e aplicação do direito. Por outro lado, a abstratividade de alguns princípios manifesta-se como um problema a ser resolvido através de uma interpretação sistemática da constituição. Neste cenário, partindo do pressuposto que a característica de princípios como o da capacidade contributiva e da igualdade não permitem relativização, passamos a analisar a estrutura principiológica da constituição brasileira, especialmente aquela relativa ao Sistema Tributário e à Ordem Econômica. 7 Através da interpretação aqui proposta será defendida a uma ideia de progressividade sistêmica da tributação. É dizer, a partir da conjugação de vários dispositivos constitucionais, visualizaremos a formação de norma constitucional que impõe o dever, no âmbito da atividade legislativa, de manter um nível de progressividade da tributação nacional.8 Cumpre, então, entrar em um plano de maior concretude e analisar os princípios vinculados ao valor justiça que a constituição federal brasileira apresenta em seu corpo, pois, conforme lecionam Tipke e Yashamita, “A justiça do Estado Social de Direito apoia-se (sic) em três fundamentos: no principio da igualdade, no principio do estado social e no principio da liberdade”.9 A Constituição Federal de 1988 busca garantir, corretamente, o pluralismo de concepções ideológicas na sociedade brasileira, considerando ser o Brasil um país de 7 A classificação dos princípios de acordo com a sua vinculação a valores aqui utilizada encontra referência na doutrina do professor Ricardo Lobo Torre, em seu “Tratado de direito constitucional financeiro e tributário. Valores e princípios constitucionais tributários”, obra que encontra-se nas referências bibliográficas deste texto. 8 Registramos que se entende não ser o caso de, neste trabalho, aprofundar-se no estudo dos conflitos entre normas – sejam elas princípios ou regras - de mesma hierarquia, na medida em que a concepção que será aqui construída a partir da hermenêutica - que determina a existência de uma progressividade sistêmica – não entra em conflito, o que a priori se poderia imaginar, com princípios que manifestam uma visão econômica liberal, tais como o da liberdade e propriedade. Isto porque, para além de uma busca por igualdade econômica, a concepção em cotejo manifesta-se como garantidora de uma liberdade mínima de indivíduos que se encontram atualmente abaixo do mínimo existencial. Portanto, entende-se que o princípio da liberdade, consectário do estado liberal, também busca ser garantido através da aplicação da ideia aqui proposta; Relativamente a ideia de propriedade, entende-se que a garantia da propriedade privada não é atingida pelo entendimento aqui manifestado, na medida em que o próprio conceito de estado democrático de direito já suplantou e relativizou as teorias político-econômicas que repudiavam radicalmente a tributação, como aquelas que defendiam um estado mínimo. 9 TIPKE, Klaus; YASHAMITA, Douglas. Justiça fiscal e Princípio da Capacidade Contributiva. São Paulo: Malheiros, 2002, pág. 17. 182 dimensões continentais, o que evidencia uma diversidade cultural e social peculiarmente elevada. Neste sentindo, se extrai de diversas passagens da Constituição Federal Brasileira que o Estado brasileiro se estrutura na busca por concretização de justiça social, com o escopo de realizar a igualdade. Vê-se a Constituição Federal consagrar a justiça como escopo do estado democrático de direito e, ainda, prever em seu corpo normativo alguns instrumentos e direitos que manifestam claramente a intenção de consagrar justiça social, ideia que manifesta a opção política do legislador constitucional acerca das características basilares do estado brasileiro. A Constituição apresenta em seu preâmbulo o compromisso do Estado com os direitos sociais, a igualdade, a construção de uma sociedade fraterna, esculpindo a justiça como um dos valores supremos do Estado brasileiro.10 Já em seu corpo operativo, a CF/88 assevera como objetivos fundamentais do estado brasileiro a erradicação da pobreza e da marginalização, a redução das desigualdades sociais e regionais e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, seco, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. A magna carta fixa (artigo 23, inciso X) também que é de competência comum a todos entes da federação o combate às causas da pobreza e os fatores de marginalização. No que tange a seara econômica, o mais objetivo e relevante compromisso com a justiça social assumido pelo estado brasileiro encontra-se prescrito no Artigo 170 e incisos da CF,11 o qual subordina a ordem econômica nacional às finalidades de promoção de justiça social e redução das desigualdades regionais e sociais. Eros Grau extrai do Artigo 170 da CF diversos princípios da ordem econômica, dentre os quais nos importam os seguintes. - a dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil (Art. 1º, III) e como fim da ordem econômica (mundo do ser) (Art. 170, caput); [...] 10 Estabelece o preâmbulo da CF/88: Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacifica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção, de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. 11 Acerca do tema, pertinente o apontamento de Luís Roberto Barroso: “É bem de ver que muitas vezes a constituição se refere a “princípio”, quando na verdade está significando uma verdadeira finalidade, como ocorre com a “redução das desigualdades sociais e regionais” ou a “busca de pleno emprego” indicadas como “princípios” da ordem econômica no Art. 170.” (BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição: Fundamentos de uma Dogmática Constitucional Transformadora. 7ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 164.) 183 - a construção de uma sociedade livre, justa e solidária como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (Art. 3º, I); [...] - a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (Art. 3º, III) – a redução das desigualdades regionais e sociais também como principio da ordem econômica (Art. 170, VII); [...] - a sujeição da ordem econômica (mundo do ser) aos ditames da justiça social (Art. 170, caput);12 Mas, sendo os princípios normas finalísticas, muitas vezes com nível de abstração elevadíssimo – como é o caso daqueles previstos no Artigo 170 da CF – cabeao interprete e ao legislador infraconstitucional, efetuar uma interpretação sistemática da constituição relacionada com outros princípios e normas que permitam de forma direta ou indireta, minorar o perímetro de incidência do principio, a fim de diminuir a vagueza dos fins determinados. No que toca a este estudo, pertinente constatar que o Artigo 170, caput da CF/88 determina que a ordem econômica tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social. Tem-se, então, que não apenas os agentes privados, como também o próprio estado, quando atuarem na ordem econômica, não podem atuar de forma totalmente livre. Qualquer atuação na economia deve se dar pautada em comportamento voltado à concretização de justiça social apta a garantir dignidade de todos. Conclui-se, assim que a justiça social é finalidade e parâmetro de atuação na ordem econômica. E ao se falar em justiça social no âmbito econômico pertinente buscar na doutrina desta ciência para aclarar o caminho interpretativo perquirido. Ora, pressupondo que o legislador constitucional não utilizou termos de forma leviana, pertinente se faz utilizar-se também o conceito de justiça social da doutrina econômica, na medida em que o Artigo 170 da CF trata justamente da Ordem Econômica nacional. Além do mais, como já dito, a tributação é tema multifacetado, no qual a questão relativa à política econômica ganha destaque pela elevada influência do Estado neste campo pela via tributaria. Com efeito, economicamente entende-se não haver grandes divergências com relação ideia de justiça social. Ora, falar-se em justiça social sob um prisma econômico, é falar-se em redistribuição de renda, em redução de desigualdade econômica, seja quando se defende uma intervenção estatal, seja quando se entende que está se dá através do próprio funcionamento da economia de mercado.13 A divergência pauta- 12 GRAU. Eros Roberto. A ordem Econômica na Constituição de 1988. 17ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2015, pág. 191 13 Nessa linha disserta Piketty: De um lado, a posição liberal de direita afirma que só as forças do mercado, a iniciativa individual e o aumento da produtividade possibilitam no longo prazo uma melhora efetiva da renda e das condições de vida, em particular dos mais desfavorecidos. Nessa lógica, a ação pública de redistribuição deve não apenas ser moderada, mas se limitar a instrumentos que interfiram o mínimo possível nesse mecanismo virtuoso[...] De outro lado, a posição tradicional de esquerda, herdada dos teóricos socialistas do século XIX e da prática sindical, afirma que somente as lutas sociais e políticas são capazes de atenuar a miséria dos menos favorecidos produzida pelo sistema capitalista. Assim, a ação 184 se, antes, no que tange aos mecanismos de econômicos e sociais que produzem a desigualdade econômica. Thomas Piketty é claro quando escreve o seguinte. O exemplo do conflito direita / esquerda reflete acima de tudo a importância da oposição entre diferentes tipos de redistribuição e diferentes instrumentos de redistribuição. Será que devemos deixar o mercado e seu sistema de precificação operar livremente e nos contentar em redistribuir a renda por meio de impostos e transferências fiscais? Ou devemos tentar modificar estruturalmente a maneira como as forças de mercado produzem a desigualdade? Na linguagem dos economistas, essa oposição corresponde à distinção entre a redistribuição pura e a redistribuição eficiente. A primeira adequa-se às situações em que o equilíbrio de mercado é de fato eficiente no sentido de Pareto — isto é, quando é impossível reorganizar a produção e a alocação dos recursos de forma que todos sejam beneficiados —, mas nas quais considerações de justiça social pura exijam uma redistribuição que deduza dos indivíduos mais privilegiados e beneficie os mais pobres. A segunda corresponde a contextos em que as imperfeições do mercado acarretam intervenções diretas no processo de produção, permitindo ao mesmo tempo melhorar a eficiência no sentido de Pareto da alocação dos recursos e alcançar a equidade de sua distribuição.14 Da visão apresentada, é possível concluir que, no âmbito da ciência econômica, há certo consenso no que tange a assertiva de que falar-se em justiça social é falar-se em redistribuição de renda. Seja sob um viés social ou liberal, não há divergência no ponto, mas a divergência pauta-se no sentido de que o ponto de vista liberal vê a possibilidade de redistribuição de renda de forma natural ao sistema econômico capitalista, mas também vê a tributação como um instrumento de redistribuição. Por outro lado, a visão de cunho social entende que são necessárias intervenções mais incisivas e indutivas no estado na economia, mas também vê a tributação como instrumento de redistribuição. Logo, uma tributação progressiva e, portanto, que atua de forma redistributiva, caracteriza-se como estrutura inarredável na conceituação do termo justiça social sob uma perspectiva econômica. Neste caso a justiça social é norma de comportamento exigida para se chegar a um fim, a existência digna de todos. Nos dizeres de Eros Grau, vemos que “embora pública de redistribuição deve, ao contrário, permear o âmago do processo de produção, contestando assim a maneira como as forças de mercado determinam os lucros apropriados pelos detentores do capital, bem como a desigualdade entre os assalariados[...] Esse conflito direita / esquerda mostra, em primeiro lugar, que as discordâncias quanto à forma concreta e à adequação de uma ação pública de redistribuição não se devem necessariamente a princípios antagônicos de justiça social, mas sobretudo a análises antagônicas dos mecanismos econômicos e sociais que produzem a desigualdade. Com efeito, há certo consenso a respeito de diversos princípios básicos de justiça social. (PIKETTY, Thomas. A economia da desigualdade.1ª ed. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2015. fls. 9-10) 14 PIKETTY, Thomas. A economia da desigualdade.1ª ed. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2015. Pág. 10-11 185 assuma concreção como direito individual, a dignidade da pessoa humana, enquanto princípio, constitui, ao lado do direito à vida, o núcleo essencial dos direitos humanos”.15 Mas, ainda que tenhamos a justiça social como uma norma de comportamento para se garantir a todos uma vida digna, permanece a dificuldade de concretização deste fim pela amplitude que a ordem econômica alcança e pela insuficiência de uma análise puramente semântica do dispositivo. Com efeito, o mesmo Artigo 170, buscando diminuir a abstração dos termos utilizados no seu caput, prescreve que a vida digna de todos – finalidade última do próprio ordenamento jurídico - será atingida através de justiça social, que por sua vez, se concretiza com a redução das desigualdades regionais e sociais, prevista em seu inciso VII. No âmbito da ordem econômica nacional a redução das desigualdades sociais pode acontecer através da ação de agentes privados e também da atuação estatal. A aplicação das ideias de justiça social e redução de desigualdades sociais sob o âmbito de atuação estatal na ordem econômica é objeto deste estudo e, neste particular, a tributação é tema que se destaca. Pois, buscando dar suporte a concretização de justiça no âmbito tributário - a Constituição estabelece, ao lado do principio geral de isonomia, os princípios especiais da isonomia tributária (Art. 150, II), da capacidade contributiva16 (Art. 145, §1º) e da vedação ao confisco (Art. 150, IV). O principio da capacidade contributiva ganha especial relevância considerando a estrutura econômica adotada pela maioria dos estados atualmente. Isto porque “o direito tributário encontra as desigualdades econômicas existentes numa economia de mercado. O princípio da igualdade exige que a carga tributária total seja igualmente distribuída entre os cidadãos. O componente social da justiça exige que ricos contribuam proporcionalmente mais que os pobres”.17 Pois, tendo-seum sistema tributário ideal aquele que vinculado à ideia de justiça, igualdade, equidade, vemos, assim como Ricardo Lobo Torres, a capacidade contributiva como o “princípio mais importante de justiça fiscal”.18 15 GRAU. Eros Roberto. Op. cit. Pág. 193 16 Importante trazer a baila, o entendimento de José Maurício Conti acerca do Princípio da Capacidade Contributiva e da expressão “sempre que possível” utilizada no dispositivo constitucional: “6.1 o Princípio da Capacidade Contributiva é um dos instrumentos por meio dos quais se busca atingir a Justiça Fiscal. [...] 6.4 a expressão “sempre que possível”, contida no Art. 145, par. 1º, da Constituição, refere-se apenas ao caráter pessoal dos impostos, haja vista que nem todos impostos podem ter caráter pessoal. Todos impostos, no entanto, sujeitam-se ao Princípio da Capacidade Contributiva.” CONTI, José Maurício. Princípios Tributários da Capacidade Contributiva e da Progressividade. São Paulo: Dialética, 1996, p. 97. 17 TIPKE, Klaus; YASHAMITA, Douglas. Op. cit. Pág. 18 18 LOBO TORRES, Ricardo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Valores e Princípios Constitucionais Tributários. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2014, pág. 314. 186 O principio da capacidade contributiva exige do estado uma tributação correspondente à capacidade econômica de cada individuo, respeitados os limites entre o mínimo existencial e o confisco, não cabendo qualquer análise da vantagem que o contribuinte tem dos serviços públicos, mas somente o quanto o individuo pode contribuir para o financiamento das funções estatais de acordo com a externalização de sua capacidade econômica disponível. Vê-se, destarte, o princípio da capacidade contributiva como o principio tributário mais representativo da ideia de justiça social sob o escopo de um estado social de direito, por ser ele (I) consectário intimo do princípio da igualdade e (II) garantidor de liberdades mínimas exigidas pelo Estado de Direito. Mas a função mais relevante que se extrai do princípio da capacidade contributiva é aquela de proteção do mínimo existencial. Somente há que se falar em capacidade contributiva e, portanto, se permitir tributar o indivíduo, a partir de uma faixa de renda que ultrapasse o mínimo existencial, este estreitamente relacionado com a dignidade humana. Nas palavras de Tipke e Yashamita, “o Estado não pode, como Estado Tributário, subtrair o que, como Estado Social, deve devolver”.19 Mas falar-se em capacidade contributiva pressupõe-se falar-se, necessariamente em progressividade, a qual é vista pela doutrina como instrumento inerente ao referido princípio. A progressividade na tributação é a melhor forma de aplicação do principio da capacidade contributiva, na medida em que busca atingir equidade vertical na tributação. A progressividade na tributação, assim como a capacidade contributiva, é instrumento garantidor de legitimidade pelo estado democrático de direito, sendo limitada apenas pela obrigatoriedade de respeito ao mínimo existencial e ao não confisco. Assim a interpretação aqui proposta defende que a legitimidade da tributação somente ocorrerá mediante a existência de leis tributárias coadunadas aos fundamentos de estado democrático de direito, ou seja, que a legislação infraconstitucional respeite e seja produzida dentro do compasso constitucional, que exige, a nosso ver, seja o sistema tributário progressivo. Noutro giro, o que se impõe é uma conformação das leis tributárias à Constituição Federal.20 19 TIPKE, Klaus; YASHAMITA, Douglas. Op. cit. Pág. 34. 20 Diversas posturas podem ser tomadas pelo estado a fim de se garantir progressividade ao sistema. Assim, por exemplo, caso um projeto de lei que esteja em pauta legislativa, este poderia ser obrigado a passar pelo crivo da comissão de constituição e justiça ou de outra que possa ser criada para o fim específico, a fim de se analisar o seu impacto na regressividade do sistema, jamais se permitindo que o sistema tributário se torne regressivo. Ao Registrar que o Sistema tributário (e não uma lei específica) é que não pode ser regressivo, manifesta-se, assim, o reconhecimento de uma necessária prudência quando da criação legislativa infraconstitucional, devendo-se levar em consideração fatores outros que interferem no sistema econômico e que podem acarretar consequências sociais negativas, de uma amplitude maior do que aquelas originadas pela criação de uma lei que venha a diminuir sensivelmente a progressividade do sistema. Preferimos utilizar a expressão prudência, pois, tendo em vista que o tema aqui se volta a interpretar a constituição, a fim de orientar a politica publica 187 Diante deste cenário, possível concluir que o sistema tributário, como principal meio de obtenção de receitas pelo Estado, se manifesta hodiernamente como um potencial meio de concretização dos valores fundantes do estado democrático de direito instituído pela Constituição Federal de 1988, em especial o ideal de justiça, na busca por uma dignidade socioeconômica a todos através de um sistema tributário progressivo. Serão apresentados nas linhas seguintes os reflexos econômicos da tributação, ressaltando de antemão que a realidade social brasileira demonstra uma ruptura entre a estrutura constitucional tributária e a realidade econômica da tributação. Conforme se demonstrará neste capítulo, parece-nos que as políticas tributárias brasileiras fazem-se descompassadas com aqueles valores fundantes do estado brasileiro, exteriorizando uma ruptura entre as duas faces do objeto de estudo, quais sejam, a teoria e a realidade. O que se vê no Brasil é o fato de que o Direito tributário, na prática, mantém-se pautado por um positivismo formalista, o que resulta em uma falta de normatividade dos princípios constitucionais caracterizados do Estado democrático.21 A ideia de uma progressividade sistêmica aqui defendida é fator legitimador da tributação da tributação no Estado Democrático, sendo corolário dos princípios da equidade, da capacidade contributiva, dentre outros como já visto alhures. Assim, defende-se uma distribuição do ônus fiscal progressivamente, de acordo com a capacidade contributiva do contribuinte, ou seja, o indivíduo que manifesta mais disponibilidade econômica deve contribuir proporcionalmente mais no pagamento do tributo, o que conduz a uma justiça na tributação. Este ideia, porém, é passível de plena aplicação prática somente nos chamados tributos direitos, que são aqueles incidentes sobre a renda e o patrimônio. Nos tributos indiretos – incidentes sobre o consumo – por sua vez, a influência do princípio da capacidade contributiva é dificultosa, uma vez que a repercussão financeira não é experimentada pelo contribuinte de direito, sendo o ônus econômico totalmente suportado por um terceiro, o contribuinte de fato. Sendo a capacidade tributária, ou seja, a criação de leis alinhada a uma ideia de progressividade do sistema tributário. 21 Sobre o tema já advertia Alberto Xavier: “Todavia, no Direito Tributário, o princípio da reserva absoluta subsistiu para além da crise do iluminismo e, em geral, de todas as concepções que viam na aplicação na lei um mero mecanismo automático de subsunção lógico-dedutiva. É que, neste ramo do Direito, o principio da reserva da lei não se limitava a espelhar uma dada orientação acerca do Direito em geral; antes tinha alicerces mais fundos, radicados na própria essência do sistema econômico a que respeitava e a cujos princípios ordenadores repugnava a sua violação.” Apud in ANDRADE, José Maria Arruda de. Legalidade Tributária, Segurança Jurídica, Pós-positivismo e a Difícil Relação entre Política e Direito. Revista Thesis, São Paulo, v.5, ano III, p. 58-96, 1ª Semestre, 2006. Pág. 78 188 contributiva uma característica do sujeito passivo, se tem grande dificuldade de identificar a capacidade contributiva daquele que realmente paga o tributo. Com relação aos tributos indiretos, em especialo ICMS e o IPI, vê-se a seletividade em função de essencialidade como principal meio de garantia do princípio da capacidade contributiva, em que pese seu resultado não possua grande relevância.22 E ainda que para tais tributos exista o princípio da seletividade, que busca variar o ônus da exação fiscal de acordo com a essencialidade do bem, tal principio não alenta a progressividade, uma vez que em questão de valor a desoneração de um produto acaba beneficiando, em termos de valores, o indivíduo com baixa capacidade contributiva da mesma forma que aquele indivíduo que possui uma maior disponibilidade econômica que, neste caso, obterá uma reserva de disponibilidade. Resultado lógico disto é a que a tributação indireta é fator que estimula a regressividade do sistema, onerando mais quem tem menos capacidade contributiva. Há de se ressaltar a existência de divergência na doutrina, a qual foge ao objeto deste estudo, no que tange aos benefícios da aplicação do princípio da progressividade. O que se busca deixar claro é que, independente desta divergência, se mostra clara a inaceitabildidade de uma regressividade do sistema tributário. O problema é que experimentamos no Brasil, um verdadeiro apartheid fiscal, onde a carga tributária é suportada pela classe média e baixa, em geral remunerada pelo trabalho assalariado, a qual é onerada com a tributação sobre a renda e com a tributação indireta (na posição de contribuintes de fato), desconsiderando as normas finalísticas de igualdade, capacidade contributiva ou justiça social. Conforme se vê na tabela23 (SISTEMA, 2014, p. 16) a seguir que no ano de 2012 o Brasil detinha a posição de 7ª maior economia do mundo. Paradoxalmente, o país encontrava-se também no topo da classificação de piores distribuições de renda do mundo, ocupando a 12ª posição. Figura 1: Maiores Economias do Mundo e Piores Distribuições de Renda (2012) 22 Isto, pois dois indivíduos com capacidades contributivas diferentes que compram o mesmo produto acabam pagando o mesmo valor de tributos, restando, logicamente, um dos indivíduos mais onerado que o outro. 23 SISTEMA TRIBUTÁRIO E SEGURIDADE SOCIAL: Contribuições para o Brasil. 2ª Ed. Brasília: SINDIFISCO. 2014, pág. 16. 189 Um dos fatores que mais influenciam na desigualdade é o fato de no Brasil ter-se uma elevada carga tributária incidente sobre o consumo, ou seja, através de tributos indiretos e, de outra banda, uma mal estruturada carga tributária incidente sobre a renda e o patrimônio, a tributação direita, conforme demonstra o gráfico a seguir, onde constam as distribuições das cargas tributárias no Brasil de acordo com a base de incidência e com os principais tributos do país, respectivamente: Figura 2: Carga tributária por base de incidência - Brasil24 Vê-se, que em um dos períodos de maior crescimento econômico da história brasileira, a evolução ética da tributação, uma necessidade urgente para a sociedade brasileira, parece ainda engatinhar no horizonte de uma justiça social conformadora do estado democrático de direito, manifestando ainda na atualidade o grave problema da elevada carga tributária indireta. Indo ao direito comparado, nota-se que o Brasil, no ano de 2011, possuía uma incidência tributária nos patamares de 45,53%, 17,32%, 8,81% e 3,61% incidentes, respectivamente, sobre consumo, renda, folha de salários e patrimônio. Percentuais que podem ser comparados a carga tributária média dos países da OCDE,25 onde em 2011, as proporções atingiram uma média de 31,02%, 32,83%, 1,10% e 5,43%. Tais informações que foram retidas do gráfico que segue. 24 Progressividade da tributação e desoneração da folha de pagamento: elementos para reflexão Brasília: Ipea, SINDIFISCO, DIEESE , 2011, pág. 13 25 A Organização para a Cooperação Econômica e Desenvolvimento (OCDE) é uma organização que busca promover políticas que melhorem o bem-estar econômico e social no mundo através da cooperatividade na busca por soluções dos problemas existentes, sendo composta por 34 países do mundo. Consumo 61% Renda 24% Patrimônio 4% Outros 12% Consumo 52% Outros 16% Patrimônio 4% Renda 28% 190 Figura 3: Carga tributária por base de incidência (2011) - Brasil x OCDE26 Voltando para a análise interna do sistema tributário brasileiro, tem-se que a alta regressividade trazida pelos tributos indiretos supera a tributação progressiva oriunda dos tributos diretos. É o que fica evidenciado pelo gráfico apresentado pelo SINDIFISCO: Figura 4: Participação dos tributos diretos e indiretos na renda total das famílias (2008/2009) - Brasil27 O gráfico acima resulta em outro fato relevante que se comprova pelo levantamento de dados elaborado, no qual está demonstrado que em 2011, enquanto a carga tributária suportada pelas famílias do primeiro décil de renda (menor renda) foi de 32% da 26 SISTEMA TRIBUTÁRIO E SEGURIDADE SOCIAL: Contribuições para o Brasil. 2ª Ed. Brasília: SINDIFISCO. 2014, pág. 23. 27 SISTEMA TRIBUTÁRIO E SEGURIDADE SOCIAL: Contribuições para o Brasil. 2ª Ed. Brasília: SINDIFISCO. 2014, pág. 21 0% 5% 10% 15% 20% 25% 30% 35% 40% 45% 50% 31,02% 45,53% 32,83% 26,23% 1,10% 5,43% 14,69% 17,32% 10,04% 8,81% 3,61% 3,38% BrasilOCDE OutrosPatrimônioFolha de Pagamento Contribuições Sociais Fonte: OCDE, 2014; RFB, dez. 2011; STN, 2012 e 2013; IBGE, 2012b; CONFAZ, 2013; CEF, 2013. RendaConsumo 0% 1º 4 32 25 23 23 22 22 21 21 21 21 22 19 18 17 16 15 15 13 104 4 5 5 5 6 7 8 11 2º 3º 4º 5º 6º 7º 8º 9º 10º 5% 10% 15% 20% 25% 30% 35% TotalIndiretaDireta Décimos da distribuição de renda Fonte: IBGE, Pesquisa de Orçamentos Familiares, 2008-9. 28 191 renda familiar, enquanto que o valor pago a título de tributos pelas famílias do décimo décil de renda (maior renda), correspondeu a 21% da renda familiar. Desses dados, fácil concluir que dois fatores influenciam o fenômeno negativo da regressividade do sistema tributário: (I) o baixo grau de progressividade dos tributos diretos; (II) o alto uso de tributação indireta pelo sistema tributário brasileiro. Com relação a questão da baixa progressividade dos tributos diretos, importa apontar a questão relativa ao Imposto de Renda. Tal tributo é, sem dúvida, o mais importante dos impostos diretos, uma vez que através dele é possível garantir um caráter pessoal de forma mais sensível, trazendo eficiência a princípio da capacidade.28 Pois, três são as principais formas de influenciar na progressividade do imposto de renda, quais sejam, (I) o número de faixas de rendimentos a incidir as respectivas alíquotas, (II) o limite de isenção e (III) a máxima alíquota da tributação. Sob tais perspectivas, observa-se que a política tributária brasileira tem sido conduzida na direção oposta a progressividade. Nessa linha, demonstra o Relatório de observação de produção do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES), denominado de “Indicadores de Iniquidades do Sistema Tributário Nacional”. No período de 1983 a 1985, a tabela progressiva do IRPF estabelecia 13 faixas de renda e alíquotas que variavam de 0% a 60%, com interstício de 5%. Em 1989, paradoxalmente, ocorreu uma redução de nove faixas (alíquotas de 0% a 45%) para apenas duas, com alíquotas de 10% e 25%. Em 1995, vigoravam três faixas com alíquotas que variavam de 15% a 35%, que foi suprimida pelo governo anterior sob o argumento de que havia poucos contribuintes nessa faixa. De 1998 até 2008, vigoram no país apenas duas faixas, com alíquotas de 15% e 27,5%. Em 2009, a alíquota mínima passou para 7,5%, com faixas intermediárias de 15% e 22,5%, mas a alíquota máxima não foi alterada (Khair, 2008). Mesmo com as mudanças recentes, a progressividade do IRPF é muito suave no Brasil - pequena em relação ao que foi no passado e também pequena em relação ao que se observa no mundo. Levantamento da Price Waterhouse & Coopers (apud Khair, 2008) para uma amostra de 26 países da Europa, Ásia e América (incluindo o Brasil) revelouque o IRPF conta com cerca de cinco faixas de rendimento e alíquotas que variam, em média, entre 12,6% e 42,2%. No que respeita ao número de faixas, o Brasil não se distanciou muito da média internacional se considerarmos as mudanças introduzidas em 2009. Já no que respeita à alíquota máxima, verificamos que a grande maioria dos 28 Sobre o tema é a advertência de Tipke (2012, p.18), quando registra que “haja vista que em Direito Tributário entretanto se fala com muita frequência (sic) de imposto sobre a renda e dos impostos sobre o consumo, assentamos daqui por diante que os impostos somente a partir da renda (em realidade com o patrimônio) podem ser obtidos.”. 192 países adota alíquotas nominais superiores à brasileira. Nos países da OCDE, por exemplo, as alíquotas máximas atingiram, em média, 42,5% em 2007.29 A tais assertivas soma-se o fato de a incidência do imposto de renda sobre os rendimentos do capital se dar aquém do tributo incidente sobre rendimentos do trabalho. Ora, é evidente que só possuem rendimentos oriundos do capital aqueles indivíduos com maior poder aquisitivo. Portanto, onerando tais contribuintes com alíquotas menores daqueles que auferem rendimentos oriundos do trabalho mitiga-se a efetividade do princípio da capacidade contributiva e da progressividade.30 Nesta linha vemos a advertência de Tipke quando disserta que “Praticável seria sempre distinguir, contra a regra, ‘deve-se tributar por igual toda espécie de rendimento’, entre rendimentos do trabalho e rendimentos do patrimônio e onerar mais pesadamente rendimentos do patrimônio do que do trabalho com o fundamento de que o Etos do trabalho pesa mais do que a uma mistura de jogo de azar e habilidade (sic) moveram os acionistas”.31 Além da utilização do imposto de renda ser desconectada com os princípios do ordenamento tributário constitucional, vê-se uma baixa representatividade da exação tributária sobre a propriedade no Brasil, o que, obviamente, induz a regressividade do sistema.32 Outra questão relevante toca ao Imposto sobre Transmissão causa mortis, o qual possui extrema relevância quando se fala em função redistributiva intergerações. Manifestando a importância do imposto para a consecução de justiça, Ricardo Lobo Torres assim disserta: “É precisamente nas transmissões gratuitas, como naquelas a causa de morte ou por doação, que se surpreende o incremento da capacidade contributiva, apta a suportar a imposição atenta à justiça social e à igualdade. A efetivação do princípio pelas legislações estaduais contribuiria para se coarctar em parte a regressividade e a injustiça que imperam no sistema tributário brasileiro e que o tornam odiosamente discriminatório.”33 29 INDICADORES DE INIQUIDADE DO SISTEMA TRIBUTÁRIO NACIONAL: Relatório de Observação nº 2. Brasília: Presidência da República, Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social – CDES, 2ª Edição, 2011, pág. 24 30 Acerca da falta de efetividade da constituição, assim explana Luís Roberto Barroso: “O malogro do constitucionalismo, no Brasil e alhures, vem associado à falta de efetividade da Constituição, de sua incapacidade de moldar e submeter a realidade social. Naturalmente, a Constituição jurídica de um estado é condicionada historicamente pelas circunstancias concretas de cada época. Mas não se reduz ela à mera expressão das situações de fato existentes. A Constituição tem uma existência própria, autônoma, embora relativa, que advém de sua força normativa, pela qual ordena e conforma o contexto social e político. Existe, assim, entre a norma e a realidade, uma tensão permanente. É nesse espaço que se definem as possibilidades e os limites do direito constitucional.” (BARROSO, Luiz Roberto, op. cit. Pág.256) 31 TIPKE, Klaus. Moral Tributária do Estado e dos Contribuintes. Porto Alegre: Sergio Fabris, 2012, pág. 23 32 Assim demonstram os dados apresentados pelo Relatório de Iniquidade o Sistema Tributário Nacional: “Segundo visto, em 2008, foram arrecadados com o ITR, IPVA, IPTU, ITCD e ITBI cerca de 1,2% do PIB e sua participação na carga total foi de apenas 3,5%. Já nos países da OCDE, os impostos sobre propriedade alcançaram, em média, 1,9% do PIB ou 5,4% da arrecadação global em 2007.” (INDICADORES, 2011, p. 25) 33 TORRES, Ricardo Lobo, Op. cit. pág. 339. 193 No Brasil, em pese a possibilidade de aplicação da progressividade sobre este imposto, a sua alíquota máxima fixada pelo senado federal, a qual está hoje no percentual de 8%. Pois, enquanto no Brasil possuímos alíquota máxima do ITCMD fixada em 8%, vê-se que EUA, Alemanha, França e Reino Unido possuem, em média, a alíquota máxima no patamar de 41%.34 Salta aos olhos a discrepância entre as alíquotas máximas aplicadas pelo Brasil e pelos países supracitados, de onde fica evidente que este importante imposto para a promoção de redistribuição de renda não tem vem sendo utilizado de forma alinhada às determinações constitucionais. Por fim cabe manifestar-se a respeito de assunto já imensamente calcado pela doutrina, que concerne ao Imposto Sobre Grandes Fortunas (IGF). Pois, a aplicação de tal imposto teria imenso destaque nas políticas públicas tributárias que buscam a progressividade do sistema e, consequentemente, na consolidação de justiça social. Entretanto, o imposto, esculpido no Art. 153, VII do texto constitucional, carece de regulamentação para poder ter sua aplicabilidade plena. Faz 28 anos da promulgação da CF/88 e ainda não houve interesse político para dar efetividade ao referido imposto. Mais uma vez, depreende-se da análise das políticas públicas tributárias, que temos nossa atuação legiferante infraconstitucional descompassada com a justiça social. Além disso, constatam-se benefícios fiscais verticais sendo implementados através de medidas provisórias e leis oriundas de pressões setoriais. Atos legais muitas vezes vazios de legitimidade se considerados numa âmbito constitucional. Aliás, em crítica a tais mecanismos, cabe trazer à baila a doutrina de Tipke e Yamashita: Com frequência é sugerido que os incentivos fiscais sejam substituídos por subvenções abertas (prestações de transferência), desde que haja uma justificativa para tais medidas. Deste modo, o Direito Tributário seria reconduzido à sua verdadeira função, qual seja, a de obter, de modo justo, os recursos necessários para o orçamento de cada ente federativo. No entanto, os políticos têm uma predileção por incentivos fiscais, porque, pela experiência, o cidadão reage melhor a incentivos fiscais do que a subvenções abertas (de modo que a finalidade extrafiscal é alcançada mais eficazmente) e porque incentivos fiscais parecem adequados aos políticos para conquistas a simpatia dos beneficiados.35 Neste cenário, resta evidente a falta de legitimidade da tributação brasileira, cumprindo grifar o fato que, nos 28 anos de nossa constituição aconteceram mudanças substanciais nas ideologias partidárias daqueles que exercem política econômica 34 INDICADORES DE INIQUIDADE DO SISTEMA TRIBUTÁRIO NACIONAL: Relatório de Observação nº 2. Brasília: Presidência da República, Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social – CDES, 2ª Edição, 2011, pág. 25 35 TIPKE, Klaus; YASHAMITA, Douglas. Op. cit. Pág. 39-40. 194 através da tributação, mas, no que tange a questão tributária, o desinteresse por uma reformulação estrutural e metodológica do sistema parece-nos ser de conveniente consenso.36 Buscou-se no presente apresentar uma análise do Direito Tributário brasileiro à luz constitucional, olhando-se conjuntamente à ordem tributária e a ordem econômica constitucionais, tendo em vista que a tributação é dos mais relevantes instrumentos de influência na seara econômica. Vimos, então, a questão relativa a necessidade de reconhecimento da força normativa dos princípios jurídicos garantidores de justiça e vinculante a todos os poderes estatais. Ao mirar nossa visão para os reflexos econômico da tributação, restou demonstrado que, na prática,temos uma tributação cristalinamente injusta e descompassada com os valores e princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito brasileiro. Em que pese não seja objeto deste estudo, importa manifestar o entendimento de que a metodologia e epistemologia positivista aplicada a direito tributário ainda hoje é o principal fator que permite uma tributação injusta, através da aplicação de politicas publicas tributárias de interesses escusos que mantêm uma historicamente consolidada regressividade do sistema. O principal fator que expõe esse problema encontra-se na exigência de uma legalidade estrita no âmbito tributário advinda de um estado de direito e alicerçada sob base estritamente formal. Historicamente, miramos nosso foco de estudo da relação jurídico-tributária exclusivamente para o objeto (tributo), desconsiderando o critério subjetivo da relação (contribuinte). Consequência disto, a legitimidade resta desprezada a partir do momento em que importa para o direito somente o aspecto formal da legislação tributária. Não há mais espaço para aquela legalidade estrita que influencia o direito tributário mesmo após a crise do iluminismo, e muito menos para a defesa de tal tese à luz constitucional atualmente. O Direito tributário deve ser reformulado e reestruturado para deixar de ser mero instrumento estimulante das desigualdades sociais e passar a garantir dignidade a todos através de uma tributação legitima. 36 Indo ao direito comparado, parece-nos ter encontrado a origem deste patrimonialismo fiscal em nossos colonizadores, conforme se depreende da manifestação de Casalta Nabais: “Efectivamente, é cada vez mais visível a existência de dois tipos de contribuintes: uns, sobretudo os trabalhadores dependentes, que pagam os impostos estabelecidos pelo parlamento nos termos constitucionais, designamente com base numa ideia de igualdade aferida pela capacidade contributiva; outros, os quais integram uma parte significativa dos trabalhadores independentes e das empresas que, em virtude de regimes fiscais de favor que podem escolher ou, de algum modo, podem modelar através de grupos de pressão ou lóbis em que se inserem, acabam pagando menos de imposto do que os demais contribuintes.” NABAIS, José Casalta, Da Sustentabilidade do Estado Fiscal. In: NABAIS, José Casalta; Silva, Suzana Tavares da (Coord.). Sustentabilidade Fiscal em Tempos de Crise. Coimbra: Almeida, 2011. p. 37. 195 Faz-se necessária uma nova visão do substrato tributário, delineada por uma consciência civilizatória e pela percepção da imprescindível cooperatividade que o ser humano necessita para a manutenção da espécie, fato que brota cada dia com maior clarividência no seio social diante do acelerado crescimento das relações de interdependência entre países, estados, municípios, indivíduos. Noutro giro, a ideia de justiça, sempre partindo da dignidade humana como centro, deve pautar as atividades estatais em todos os seus patamares. ANDRADE, José Maria Arruda de. Legalidade tributária, segurança jurídica, pós-positivismo e a difícil relação entre política e direito. Revista Thesis, São Paulo, v.5, ano III, p. 58-96, 1º Semestre, 2006. ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 14. ed. 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