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Jean Nicolas Louis Durand (1760-1834) Précis des leçons d’architecture (Resumo das lições de arquitetura) publicado originalmente em 1819 traduzido por Gustavo Rocha-Peixoto da introdução do fac- simile da edição original do autor impressa pro Firmin Didot em Paris 1819. DURAND J.N.L. Précis des Leçons d’architecture données à l’École Polytechnique. Nördlingen: Alfons Uhl, 1985. Introdução A arquitetura é a arte de compor e de executar todos os edifícios públicos e particulares. De todas as artes a arquitetura é aquela cujas produções são as mais dispendiosas. Custa muito caro elevar os edifícios particulares menos consideráveis; custa enormemente para erigir edifícios públicos, mesmo quando uns e outros foram concebidos com a maior sabedoria. E, se a sua composição foi guiada apenas pelo prejulgamento, pelo capricho ou pala rotina, as despesas que elas geram tornam-se incalculáveis. O palácio de Versalhes, esse edifício em que encontramos compartimentos sem número e nenhuma entrada; milhares de colunas e nenhuma colunata; uma extensão imensa sem grandeza; uma riqueza extrema sem magnificência, é um exemplo chocante dessa verdade. [...] Entretanto a arquitetura, essa arte cujo emprego é tão dispendioso, é ao mesmo tempo aquela cujo uso é o mais constante e o mais geral; em todos os lugares e em todos os tempos construiu-se uma multidão de residências particulares para os indivíduos, e edifícios públicos para as diferentes sociedades. A terra está coberta deles e, apesar da multiplicidade desses edifícios, apesar dos milhares de exemplos mais ou menos assustadores do que o que acabamos de dar, exemplos bem feitos para desgostar da arquitetura, cada dia vemos surgirem novos monumentos dessa arte. É preciso, portanto, que ela seja de uma grande necessidade para a espécie humana, e mesmo que seja para ela uma fonte de doces prazeres. Com efeito a arquitetura é de todas as artes a que dá ao homem as vantagens mais imediatas, maiores e mais numerosas. O homem deve a ela sua conservação; a sociedade, sua existência; todas as artes, seu nascimento e seus desenvolvimentos. Sem ela a espécie humana enfrenta todos os rigores da natureza, unicamente ocupada em se defender da necessidade, os perigos e a dor, longe de chegar à fruição de todas as vantagens da sociedade. Teria, talvez, desaparecido quase inteiramente da superfície do globo. [...] Não será difícil descobrir o objetivo da arquitetura. Segundo o que vimos acima, é evidente que ela não tem nada além da utilidade pública e privada, a conservação, a felicidade dos indivíduos, das famílias e da sociedade. [...] Conveniência e economia: eis os meios que a arquitetura deve naturalmente empregar. E as fontes onde ela buscar seus princípios as únicas que podem nos guiar no estudo e no exercício dessa arte. Em primeiro lugar, para que um edifício seja conveniente é preciso que seja sólido, salubre e cômodo. Será sólido se os materiais empregados forem de boa qualidade e distribuídos com inteligência; se repousa em boas fundações; se seus sustentáculos principais são em número suficiente, dispostos perpendicularmente para ter mais força, e colocados em distâncias iguais a fim de que cada um deles suporte uma porção igual da carga; enfim se existe em todas as partes, tanto horizontal como verticalmente, a mais íntima ligação. Será salubre se estiver posto em um lugar sadio, se o piso ou o pavimento é elevado do solo e isento de umidade, se há muros preenchendo o intervalo dos suportes, que compõem a ossatura, para defender o interior do calor e do frio, se esses muros são perfurados por aberturas capazes de deixar penetrarem o ar e a luz, se todas as aberturas praticadas nos muros interiores, correspondem entre si e às exteriores, para facilitar ao ar o meio de se renovar, se uma cobertura o abriga da chuva e do sol, de maneira que a extremidade dessa cobertura, avançando além dos muros, afasta as águas e se ele está voltado para o sul nos países frios ou para o norte nos quentes. Enfim será cômodo se o número e a grandeza de suas partes, se sua forma, sua situação e seu arranjo, estão na relação mais exata com seu destino. Isso é o que diz respeito à conveniência, e isto o que concerne à economia: Se observamos uma dada superfície limitada pelos quatro lados de um quadrado ela exige menos contorno do que quando descreve um paralelogramo e menos ainda quando limitada pela circunferência de um círculo. Em simetria, regularidade e simplicidade a forma do quadrado é superior à do paralelogramo e inferior à do círculo. Será fácil concluir que um edifício será tanto menos dispendioso quanto mais for simétrico, regular e simples. Desnecessário acrescentar que se a economia prescreve a maior simplicidade em todas as coisas necessárias ela proscreve absolutamente tudo o que é inútil. Tais são os princípios gerais que em toda parte e em todos os tempos guiaram os homens razoáveis quando foi preciso edificar. E tais são, de fato, os princípios segundo os quais os edifícios antigos em geral mais justamente admirados foram concebidos. [...] Segundo a maior parte dos arquitetos, a arquitetura é menos a arte de fazer edifícios úteis que a de os decorar. Seu objetivo principal é de agradar aos olhos e daí excitar em nós sensações agradáveis. A isso ela, como as outras artes, só pode chegar pela imitação. Deve tomar por modelo as formas das primitivas cabanas que os homens construíram, as proporções do corpo humano. Ora, as ordens de arquitetura inventadas pelos gregos, imitadas pelos romanos e adotadas pela maioria das nações da Europa constituem a essência da arquitetura por serem, segundo esses autores, uma imitação do corpo humano e da cabana. Daí segue que a beleza das decorações formadas pelas ordens é tal que de maneira alguma deve dizer respeito à despesa necessariamente acarretada pela decoração. Mas, como não se pode decorar sem dinheiro, e quanto mais se decora mais se gasta, é natural examinar se é verdade que a decoração arquitetônica, tal como a concebem os arquitetos, promove o prazer a que se propõe ou ao menos se este prazer compensa os custos que ocasiona. Para que a arquitetura pudesse agradar pela imitação, seria necessário que, à exemplo das outras artes, ela imitasse a natureza. Vejamos se a cabana primeira que o homem fez é um objeto natural; se o corpo humano pode servir de modelo às ordens; vejamos enfim se as ordens são uma imitação tanto da cabana como do corpo humano. Tomemos primeiramente uma idéia dessa cabana e dessas ordens. Eis como Laugier se exprime a propósito da cabana: [segue-se longa citação da introdução do Ensaio sobre a arquitetura de Laugier ���� link] Do conhecimento da cabana, passemos ao das ordens lendo o que Vitrúvio nos ensina a esse respeito: solidez conveniência salubridade comodidade simetria economia regularidade simplicidade Dorus, rei do Peloponeso, tendo construído um templo a Juno em Argos, encontrou por acaso esse modo de construir que chamamos dórico; em seguida em muitas outras cidades usou-se essa mesma ordem ainda sem regra alguma estabelecida para as proporções da arquitetura. Naquele tempo os atenienses enviaram muitas colônias à Ásia Menor sob o comando de Jon. Eles chamaram Jônia o território onde ele se estabeleceu. Aí construíram primeiro templos dóricos, principalmente o de Apolo. Mas como não sabiam bem que proporção dar às colunas, procuraram um meio de fazê-las bastante fortes para suportar a carga do edifício e fazê-los ao mesmo tempo agradáveis à vista. Para isso tomaram a medida do pé de um homem que é a sexta parte da sua altura e sobre essa medida formaram suas colunas de sorte que lhes deram seis diâmetros. Assim a coluna dórica foi posta ns edifícios tendo a proporção, a força e a beleza do corpo masculino. Algum tempo depois, construíram um templo a Diana e procuraram alguma nova maneira que fosse bela pelo mesmo método. Imitarama delicadeza do corpo de uma mulher; construíram suas colunas , deram-lhe uma base na forma de cordas enroscadas, para assemelhar-se à sandália; talharam volutas no capital para representar essa parte dos cabelos que pende à direita e à esquerda; puseram na frente das colunas cimalhas e favos para imitar o resto dos cabelos que são atados por trás da cabeça das mulheres. E essa ordem inventada pelos Jônios tomou o nome de Jônica. [seguem-se descrições vitruvianas das outras três ordens.] Tais são as cinco ordens que vemos como a essência da arquitetura, como a fonte de todas as belezas de que a decoração é suscetível; pois foram, como se pretende, imitadas das formas da cabana e das proporções do corpo humano. Vejamos se eles são, de fato, uma imitação. Comecemos pela ordem dórica que os gregos fixaram, segundo se diz, em seis diâmetros porque o pé do homem tem a sexta parte de sua altura. Primeiramente o pé de um homem não tem um sexto mas um oitavo da altura de seu corpo. Além disso, em todos os edifícios gregos, a proporção das colunas dóricas varia infinitamente e nessa infinita variedade a relação exata de 1/6 não ocorre uma única vez. Se algum arquiteto grego jamais recomendou essa proporção, parece que os gregos não fizeram disso caso algum. [...] Se as proporções das ordens não podem ter sido imitadas das do corpo humano, as formas dessas mesmas ordens não foram as da cabana. As colunas têm ou bases com capitéis, ou ao menos capitéis, pois não se admitiria como tal uma coluna que fosse apenas um cilindro. Ora nada disso se vê nos troncos de árvores ou nas vigas que sustentam a cabana. Em vão se dirá que, em seguida, se colocaram pranchas ou placas para alargar a parte superior e torná-la mais capaz de suportar o entablamento, visto que, a igual distância, uma peça de madeira composta de fibras longitudinais é menos suscetível de se romper que um pedaço de pedra composta de pequenos grãos agregados uns aos outros. Se um desses objetos serviu de modelo ao outro, seria mais natural acreditar que as placas de madeira foram imitadas dos capitéis de pedra, que crer que os últimos tivessem sido imitados dos outros. Também o entablamento não imita perfeitamente as partes superiores da cabana, como as colunas não imitam os sustentantes. [...] Ora, se a cabana não é um objeto natural e se o corpo humano não serviu de modelo à arquitetura. Se, na suposição mesma do contrário, as ordens não são uma imitação de um e do outro, é preciso, necessariamente, concluir que essas ordens não formam absolutamente a essência da arquitetura. Que o prazer que advém de seu emprego e da decoração que delas resulta, é nulo. Que, enfim, essa decoração mesma não passa de uma quimera, e a despesa que ela acarreta, uma loucura. [...] Tanto se consultarmos a razão quanto se examinarmos os monumentos fica evidente que agradar nunca foi a meta da arquitetura, nem a decoração arquitetônica pode ter sido seu objeto. A utilidade pública e particular, a felicidade e a conservação dos indivíduos e da sociedade, como vimos no começo, tal é a meta da arquitetura. [...] Conforme o que acabamos de dizer, não se deve ter a preocupação de fazer com que a arquitetura agrade já que, ocupando-se unicamente de preencher seu objetivo verdadeiro, é impossível que ela não agrade. E buscando agradar ela pode tornar-se ridícula. Não se deve também dar-lhe variedade, efeito, caráter aos edifícios, pois é impossível que eles não tenham todas essas qualidades no mais alto grau de que são suscetíveis, uma vez que, fazendo unicamente uso dos verdadeiros meios dessa arte, se lhes deu tudo o que precisam, nada além do que precisam e o que lhes é necessário está disposto da maneira mais simples.