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O MOMENTO HISTÓRICO ATUAL E O DIREITO POLÍTICO1 1.1.AS GRANDES TRANSFORMAÇÕES E O FENÔMENO POLÍTICO Um breve retrospecto histórico relativo a fatos mais recentes e relevantes no cenário político mundial nos chama a atenção quanto às transformações testemunhadas. São eles, em síntese, os seguintes: a) a queda do odioso muro de Berlim; b) o esfacelamento do poderoso império soviético; c) o pacto entre facções protestantes e católicas na Irlanda do Norte com a deposição de armas e opção pela via política para a resolução de suas pendências com o Reino Unido; d) a pacificação da questão dos Bálcãs, relativa à Bósnia-Herzegovina, Montenegro, Macedônia e Sérvia, aí incluído o enclave de Kosovo, como resultado da implosão da Iugoslávia; e) a “Primavera Árabe” com a deposição dos ditadores do Egito e da Tunísia, além de revoltas na Líbia, Bahrein e Síria, em 2010; f) conflitos ainda pendentes no Iraque, Afeganistão e Paquistão; g) escaramuças em países da África; e, h) alguns sinais de tentativas de negociação entre árabes e israelenses na Palestina, embora com certo ar ainda de ceticismo, após o simbólico, porém significativo, aperto de mãos entre os arqui-inimigos primeiro-ministro de Israel, Isaac Rabin,1 e o líder da Organização para a Libertação da Palestina, Yasser Arafat. Analisados com critério bastante objetivo, tais fatos nos dão a impressão de que algumas coisas efetivamente estão mudando. Não com a rapidez e eficácia desejáveis, tendo-se em vista os valores democráticos e da justiça social e direitos humanos. E os sinais dessas mudanças já são visíveis, se tivermos em conta que o mundo passa a ser efetivamente encarado como uma grande aldeia global. Nunca como agora se viu tanta preocupação com a preservação da paz mundial – ainda por certo comprometida com as guerras fratricidas da antiga Iugoslávia,2 genocídios na África e outras atrocidades que são cometidas contra a humanidade –, com a proteção do meio ambiente e outros valores que exalam, alvissareiramente, o perfume dos direitos humanos. Assim como ocorreu com o Direito Natural, que teve sua fase áurea exatamente quando se viu frente a frente com a máxima expressão do absolutismo monárquico, talvez nunca como hoje os direitos humanos resplandeçam com tanto brilho, felizmente, ao que se observa, e cada vez mais guiem os destinos de governantes e povos. Por outro lado, pode-se afirmar, sem receio de erro, que o Estado, como sociedade política por excelência, tem marcado presença cada vez maior, quer pelo preocupante aumento populacional, exigindo estruturas cada vez mais complexas com vistas ao atingimento do bem comum, razão única de sua existência, quer pelo eterno dilema relativo à sua participação no processo econômico e, por conseguinte, em conflitos constantes com o regime produtivo empresarial, notadamente em países em desenvolvimento, como o nosso. Embora ainda assolada por conflitos étnicos, religiosos, ideológicos, a Terra pode hoje ser considerada como uma só comunidade, graças ao desenvolvimento dos meios de transporte e comunicação, rendendo-se o poder das armas, gradativamente, por certo, mas visivelmente, ao da diplomacia, da política e da simples solidariedade. 1.2.A INTERVENÇÃO ESTATAL E SUAS CONTRADIÇÕES Deixada antigamente apenas para casos de conflitos intersubjetivos (mediante a prestação jurisdicional), graves comoções internas (poder de polícia preventiva e repressiva) e ameaça externa à integridade territorial (ação das forças armadas), hoje a intervenção estatal é determinada de acordo com a coloração do regime ideológico, que oscila entre um mínimo caracterizado por supervisão apenas do que ocorre numa economia de mercado total, e um máximo que significaria até o renascimento de uma espécie mais sofisticada de um verdadeiro mercantilismo.3 Em nosso próprio País, o que hoje se verifica é um esforço enorme no sentido de debelar-se o crônico processo inflacionário, cuja causa principal seria o déficit público, em grande parte gerado pela inoperância e apetite pantagruélico dos já cognominados “mastodontes estatais”, representados pelas empresas públicas ou de capital majoritariamente público, e monopólios por elas estabelecidos. Esse esforço, todavia, não tem sido pacífico: sérios tumultos e manifestações violentas verificaram-se quando da privatização de empresas estatais do setor siderúrgico (CSN, Usiminas e Cosipa), apontando-se ainda eventuais irregularidades como pretexto não apenas para a redução do ritmo das mesmas privatizações, como também para o retardamento das discussões com vistas à reforma constitucional, onde certamente será revisto ou ao menos acirradamente discutido o Título VII da Carta de 1988, que cuida da “Ordem Econômica e Financeira” então estabelecida. O já referido “movimento pendular” entre a exata medida do “bem comum” e felicidade do homem, de um lado, e a intervenção do Estado, de outro, por conseguinte,4 é o tema fulcral da Ciência Política, e é magistralmente sintetizado pela célebre Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, de 4 de julho de 1776: “Consideramos de per si evidentes as verdades seguintes: que todos os homens são criaturas iguais; que são dotados pelo seu Criador de certos direitos inalienáveis; e que, entre esses, se encontram a vida, a liberdade e a busca da felicidade. Os governos são estabelecidos entre os homens para assegurar esses direitos e os seus justos poderes derivam do consentimento dos governados; quando qualquer forma de governo se torna ofensiva desses fins, é direito do povo alterá-la ou aboli-la, e instituir um novo governo, baseando-o nos princípios e organizando os seus poderes pela forma que lhe pareça mais adequada a promover a sua segurança e felicidade. A prudência, entretanto, aconselha a não mudança de governos de há muito estabelecidos em virtude de causas ligeiras e passageiras; e, em verdade, toda a experiência tem demonstrado que os homens estão mais dispostos a sofrer males suportáveis do que fazer justiça a si próprios, abolindo as formas a que estão acostumados.”5 A também famosa “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, decretada pela Assembleia Nacional da França, como resultado das sessões de 20, 21, 23, 24 e 26 de agosto de 1789, em seu preâmbulo também estatui que: “os representantes do povo francês, reunidos em assembleia nacional, considerando que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem são as únicas causas dos males públicos e da corrupção dos governantes, resolveram expor, em uma declaração solene, os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem, a fim de que essa declaração, constantemente apresentada a todos os membros do corpo social, relembre--os, sem cessar, acerca de seus direitos e deveres; a fim de que os atos do Poder Legislativo e os do Executivo possam ser a todo momento confrontados com a finalidade de toda instituição política, tornando-os mais respeitados; a fim de que as reclamações dos cidadãos, fundadas doravante nos princípios simples e incontestáveis, visem sempre à manutenção da constituição e da felicidade de todos. Em consequência, a assembleia nacional reconhece e declara, na presença e sob os auspícios do Ser Supremo, os direitos seguintes do homem e do cidadão”.6 1.3.JUSTIFICATIVAS PARA A EXISTÊNCIA DO ESTADO, FORMAÇÃO E INSTITUIÇÕES POLÍTICAS Ainda à guisa de introdução, portanto, pode-se desde logo asseverar que, ao se estudar a Teoria Geral do Estado, o tema central será sempre o buscado equilíbrio entre os direitos e garantias dos indivíduos, de um lado, e a intervenção estatal, de outro. Se é certo, com efeito, que o Estado existe para a consecução do bem comum, ou seja, com vistas ao estabelecimento de condições mínimas e indispensáveis para que a população do Estado possa realizar-se plenamente, desenvolvendo a seu turno suas aptidões em benefício próprio, em prol da coletividade e em busca da felicidade, como bem sintetizado pela citada Declaração de Independência dos Estados Unidos, deverá fazê-lo de maneira prudente, com o afastamentoE isso nem tanto pelo espírito empreendedor e cívico de nosso povo. Certamente, isso se deve à própria cultura repassada por um legado essencialmente autoritário e paternalista, fruto do colonialismo lusitano. Enquanto, por força de argumentação, os norte-americanos dão-se ao luxo de instituírem associações para os mais diversos e exóticos fins, como, por exemplo, a “associação para defesa da Coca-Cola sabor tradicional”, que correu o risco na década de 70 de ser substituída pela chamada cherry coke, entre nós parece haver total embotamento comunitário no sentido de se criarem organismos, com preocupações sérias, tais como a defesa da saúde e educação públicas, em deplorável situação, como ressabido, das minorias em desvantagem social e econômica, e muitos outros. No que concerne aos consumidores e ambientalistas, por exemplo, até o momento as associações não passam de uma dezena, se tanto.2 De qualquer forma, e mais uma vez nos valendo dos preciosos ensinamentos transmitidos pelo saudoso prof. Salvetti Netto,3 “estudando a pluralidade de formas de sociedade, o douto Marcello Caetano refere-se às classificações propostas por Tonnies e Max Weber; o primeiro distingue a comunidade da associação”. “Seria a comunidade”, prossegue, “‘produto espontâneo da vida social, que se estrutura naturalmente’, enquanto associação, ao contrário, nasceria ‘da vontade dos indivíduos manifestada em obediência a um certo propósito que os leva a juntar-se e a colaborar entre si’” (Manual de Ciência Política e Direito Constitucional, p. 2). “Já para Max Weber”, conclui, “a comunidade resultaria ‘do sentimento subjetivo (de origem emotiva, afetiva ou tradicional) que os indivíduos têm ao constituir um todo’, enquanto a associação seria resultante ‘da vontade orientada por motivos racionais que leva os indivíduos a unirem--se para comporem os seus interesses ou os porem em comum no intuito de alcançar certo fim’”. 5.2.SOCIEDADES NECESSÁRIAS E SOCIEDADES CONTINGENTES O citado prof. Salvetti Netto4 prefere, entretanto, classificar as sociedades em necessárias e contingentes, sendo certo que, em última análise, as primeiras seriam aquelas das quais os homens não podem em absoluto prescindir, tanto assim que, ao nascerem, já estão a elas ligados inexoravelmente: sociedades familiar, religiosa e política. As sociedades contingentes, ao contrário, seriam as que existem em decorrência do acerto de vontades de certo grupo de pessoas, e visam a certos objetivos bem definidos, sendo, portanto, livre a filiação a elas: sociedades desportivas, comerciais, culturais etc. Vejamos, em seguida, os tipos das sociedades havidas como necessárias, e suas consequências. 5.3.A SOCIEDADE FAMILIAR Consoante ponderação de Edward McNall Burns,5 “uma das mais antigas instituições humanas é a família; os sociólogos não concordam quanto à sua definição, historicamente, no entanto a família sempre significou uma unidade mais ou menos permanente, composta dos pais e de sua prole, e servindo aos fins de proteção dos pequenos, divisão do trabalho, aquisição e transmissão de crenças e costumes”. Assevera ainda que “a família não é hoje, nem nunca foi, de caráter exclusivamente biológico; como a maioria das instituições evoluiu através de um longo período de convenções variáveis que lhe deram uma natureza multiforme e uma diversidade de funções”. Ao comentar a origem da família, Salvetti Netto6 lembra que existem duas correntes antagônicas a respeito: a) a do matriarcado, cujos expoentes máximos foram Morgan e Mac Lennan para quem, após observações das tribos dos Estados Unidos e Austrália, o centro familiar é representado pela figura feminina, já que se preocupavam em manter a hegemonia das mulheres, contra quem se praticava o infanticídio em larga escala, e a poliandria, ou seja, a promiscuidade sexual da mulher que mantinha relacionamento sexual com vários homens; b) a do patriarcado, ou seja, família orbitante em torno da figura masculina, observada na esmagadora maioria dos grupos humanos de que se tem notícia. Neste segundo caso, a expressão máxima do patriarcalismo teria sido o vivenciado pelas famílias romanas, nas quais, como já salientado passos atrás, o pater familias, encarado como o provedor mor do grupo humano sob seu poder, além do sumo sacerdote domiciliar, detinha o terrível direito de vida e morte sobre seus descendentes e agregados (jus vitae et necisque). Críticas acerbas foram feitas ao primeiro grupo de teorias que procuram focalizar a figura feminina como o centro do grupo familiar. Assim, argumenta-se, se fosse verdadeira a tese ali sustentada, seria pouco provável a própria sobrevivência dos agrupamentos humanos, já que, pela prática da “poliandria”, o número de nascimentos tenderia sempre ao declínio, sem falar na degeneração da espécie, tornando ainda a mulher promíscua, biologicamente estéril. Segundo ainda a teoria evolucionista de Charles Darwin,7 pode-se concluir que, em decorrência dos ciúmes de todos os machos mamíferos, “no estado de natureza, a promiscuidade é extremamente improvável” (Descendance de l’Homme, trad. Carl Vogt, Paris, 1872, t. 2, p. 380). Do texto examinado, extrai-se ainda que “nos tempos primitivos..., o homem viveu provavelmente como polígamo, ou como monógamo; ele não teria, nesta época, perdido parcialmente um de seus mais poderosos instintos, comum a todos os animais inferiores: o amor à prole”.8 A respeito ainda do assunto, pondera Burns9 que “nos tempos neolíticos a família parece ter existido tanto sob a forma poligâmica como sob a monogâmica; o termo ‘poligamia’ é usado pelos sociólogos para designar qualquer tipo de matrimônio plural – quer uma pluralidade de maridos, quer de esposas; a designação científica da primeira é ‘poliandria’ e da segunda, ‘poliginia’; a poliandria sempre parece ter sido rara; na época atual, limita-se a algumas comunidades de esquimós, às tribos Wahumas da África Oriental, à Índia Meridional e ao Tibete”. De qualquer forma, importante é assinalar-se que a família nuclear (isto é, pais e sua prole) é efetivamente a primeira manifestação de sociedade, reconhecidamente do tipo necessário, vez que por razões evidentes o homem não pode dela prescindir. E, ainda que o ser humano desvincule-se materialmente de sua família original para formar sua própria, ainda assim os laços permanecerão. Isto ficará ainda mais salientado quando forem estudadas as normas que regem a família, em Direito Civil, e no Direito Sucessório. Do ponto de vista sociológico da análise do Estado, todavia, a conclusão é a referida. Ou seja, a família é efetivamente a célula mater de todo grupo social. 5.4.A SOCIEDADE RELIGIOSA A primeira colocação que nos parece adequada ao estudo desse tema é no sentido de que o homem é, além de ser material, ser metafísico: desde que teve consciência de uma interação com o meio em que vive, o ser humano debate-se com indagações como “de onde vim” e “para onde irei”, ou então a respeito do princípio de todas as coisas que o cercam. É nesse sentido, por conseguinte, que podemos dizer que o homem sempre teve um sentimento “religioso”, aqui entendido o termo exatamente de sua raiz latina, ou seja, re + ligare. Ou melhor explicado: religião no sentido de se buscar o elo do ser humano com forças ou divindades que ele próprio não consegue explicar objetivamente. Dessa forma, para o homem primitivo, na busca das referidas explicações transcendentais, eram os fenômenos naturais que temia (relâmpago, trovão, surgimento da lua, do sol, estrelas, terremotos etc.), os entes superiores e responsáveis pelo seu próprio destino na face da Terra. Igualmente, animais especialmente temidos pela força (leões, elefantes, leopardos etc.), ou então pela peçonha (serpentes, escorpiões, aranhas etc.), eram incluídos entre as divindades ou ao menos objeto de respeito e devoção. Conforme acentua Burns,10 “uma segunda instituição, desenvolvida sob forma mais complexa pelo homem neolítico, foi a religião; devido às suas infinitas variedades, é ela mais difícil de definir,mas o que segue talvez seja aceito como definição do que é essa instituição no seu caráter básico: ‘a religião é em toda parte a expressão, sob uma forma ou outra, de um sentimento de dependência em face de um poder exterior a nós mesmos, poder cuja natureza é lícita qualificar de espiritual ou moral; os antropólogos modernos põem em relevo o fato de que a religião primitiva não era tanto questão de crença como de ritos; os ritos, na maioria dos casos, vieram em primeiro lugar; os mitos, dogmas e teologias foram racionalizações ulteriores; o homem primitivo dependia universalmente da natureza – da sucessão regular das estações, da queda de chuvas nas ocasiões apropriadas, do crescimento das plantas e da reprodução dos animais; esses fenômenos naturais não ocorreriam a não ser que ele cumprisse certos sacrifícios e ritos’”. O referido autor fala ainda do “elemento medo”, como tivemos a oportunidade de referir, ou seja, o temor do inexplicável, como componente da “religiosidade” primitiva, assim como das cerimônias purgativas do mal. De qualquer maneira, o que se quer dizer quando se fala da sociedade religiosa como “necessária” é que, do ponto de vista filosófico, qualquer ser humano, ainda que inculto, perscruta sua origem espiritual, e para tanto congrega-se, em comunhão de propósitos e, consequentemente, de ritos e mitos, sempre cultuados coletivamente. No que tange às religiões institucionalizadas, igualmente não se pode afastar do seu sentido coletivo de culto e ritualização, sendo certo que a palavra igreja provém do grego eclesia, que significa exatamente “assembleia, reunião” com vistas à realização da comunhão de fé. E, nesse sentido, também se pode dizer que o homem, ao nascer, por tradição institucional (no caso dos Estados ainda presos à religião, como o Irã e outros países fundamentalistas), ou então do grupo familiar, já está ligado a uma determinada religião. Aliás, as grandes civilizações antigas (dos egípcios, babilônicos, caldeus, hindus, hebreus etc.) constituíram-se em verdadeiras teocracias, não raro tendo como sumo sacerdote dos cultos a figura dos chefes-governantes, cuja imagem era igualmente venerada, já que sua origem era atribuída a entidades divinas (o faraó egípcio, por exemplo, seria a encarnação do próprio deus sol, Ra ou Amon-Ra). Nas teocracias – de que o Irã atualmente é o maior exemplo, já que governado pelos aiatolás, sacerdotes xiitas radicais e fundamentalistas da religião maometana ou islâmica – o que sucede é que direito, Estado e religião estão indissociavelmente ligados, refletindo os preceitos transcendentais da religião predominante. Em nosso País, pode-se dizer que a separação de Estado e religião somente se deu, a rigor, depois da Proclamação da República. E, com efeito, ao comentar as medidas adotadas pelo governo provisório logo após 15 de novembro de 1889, Hélio Vianna11 esclarece que “em janeiro de 1890 novas medidas continuaram a produzir intensas reformas, salientando-se, em sua elaboração, o Ministro da Fazenda, Rui Barbosa; entre elas, a declaração da liberdade de todos os cultos religiosos e a separação da Igreja do Estado, regulamentando-se, em consequência, o registro e o casamento civil”. O que se deve reter deste tópico, entretanto, é que a sociedade religiosa pode ser considerada como necessária, uma vez que cada ser humano a ela nasce ligado por laços agora sociológicos e familiares. 5.5.A SOCIEDADE POLÍTICA O Estado, objeto de nossa disciplina, é a sociedade política. Entretanto, poderíamos dizer que outras sociedades também são “políticas”, no sentido de nelas se observarem núcleos exercitantes do poder e emanadores das normas de conduta. E, realmente, a colocação é correta. Todavia, dir-se-ia que, enquanto as outras sociedades são passageiras, contigentes ou condicionadas, o Estado é a sociedade necessária e condicionante. Ou, melhor explicitado: para a sua existência, de qualquer outra sociedade, embora disponha de núcleos irradiadores de poder social e de normas constitutivas e comportamentais, referidos poder e normas são subordinados e contingenciados aos da sociedade política por excelência, que é o Estado. Retomando os exemplos que havíamos dado com relação às sociedades em geral (clube de lazer ou desportivo, igrejas, sociedades comerciais etc.), diríamos que têm liberdade para se constituírem e exercitarem atividades dentro das normas fixadas. Tais atividades, entretanto, e sobretudo suas normas, não poderão contrariar os parâmetros fixados pelas leis reveladas pelo Estado. Tais questões ficarão ainda mais esclarecidas, quando em ponto posterior focalizarmos a soberania e suas variadas limitações e contingenciamentos, ou então as formas de intervenção do Estado no domínio econômico. O Estado, por conseguinte, é sociedade necessária e condicionante da existência das demais sociedades que sejam constituídas em seu território.12 “É o Estado, assim”, conclui Salvetti Netto13 “senhor da ordem jurídica, seu executor supremo, vinculando, pois, os indivíduos e as outras sociedades a seus comandos”. Como se verá noutros pontos, todavia, o Estado necessariamente nem sempre existiu da maneira como nós hoje o concebemos, ou seja, como entidade autônoma e soberana, tendo havido outras formas de exercício do poder, assemelhadas ao Estado, mas ainda apresentando poder e direitos difusos. Nem por isso, todavia, se poderá dizer que inexistissem aqueles elementos (poder + direito). Pode-se dizer, contudo, que o Estado surge após lenta evolução, mas sobretudo quando o poder se institucionaliza, ou seja, quando o poder e o direito emanam de fontes bem definidas, independentemente das pessoas que os exercitem. 5.6.SOCIEDADES CONTINGENTES Entende-se por “sociedade contingente” aquela à qual os homens podem ou não pertencer, de acordo com sua conveniência e interesse. Trata-se, nesse caso, da sociedade tipo “associação” que, como já salientamos, dependerá também do acerto de vontades para sua própria constituição e funcionamento, pressupondo, por conseguinte, a existência de “vínculos” de natureza jurídica, essencialmente, ao contrário da “comunidade”, que pressupõe sobretudo vínculos de cunho sociológico. NAÇÃO E NEONACIONALISMO6 6.1.ESTADO E NAÇÃO Conforme já deixamos em suspenso em capítulo anterior, ao falarmos da evolução dos grupos humanos, a nação é, via de regra, o último estágio dela e também o pré-estágio do Estado como “nação politicamente organizada”. Nem sempre isso é possível, entretanto. Os judeus, por exemplo, somente lograram o estabelecimento do Estado de Israel em 1948, mediante uma resolução da ONU. Nem por isso, todavia, se poderia dizer que não houvesse uma “nação” israelita, ou seja, uma verdadeira comunidade, dispersa ainda hoje por todo o mundo no chamado processo da diáspora, com fortíssimos laços ou vínculos sociológicos, dentre os quais podemos destacar uma religião monoteísta milenar, costumes e tradições peculiares. E tão ou mais importante do que tudo isso, uma “alma” nacional, como se verá a seguir. Quanto aos árabes, ao contrário, embora igualmente tenham costumes, tradições, língua comum, uma religião também monoteísta e outras características próprias, acham-se dispersos por vários Estados. Ou seja, enquanto uma única nação aspira transformar-se num único Estado, nesse caso trazido como exemplificação há uma única nação, mas distribuída por vários Estados. O exemplo dos ciganos é também bastante significativo. De origem ainda não bem definida, referido povo, provavelmente originário da Europa Central, segundo alguns, ou até mesmo descendente dos antigos egípcios, disperso pela Ásia e Europa após a decadência de seu faustoso império da Antiguidade, jamais se constituiu num Estado. Ao contrário, embora tenham uma cultura e costumes próprios, vivem os ciganos erraticamente pelo mundo todo. Por outro lado, ainda há Estados constituídos de várias nações, bem delineadas dentro de seus elementos constitutivos, tais como tradições, costumes, língua comum e, sobretudo, identidade sociológica ecomunitária. É o caso, por exemplo, da Suíça, formada por regiões denominadas “cantões”, habitadas por pessoas de origem alemã, italiana e francesa. Desta forma, embora se trate no caso de uma única sociedade política, é ela constituída de pelo menos três nações bem definidas e que convivem pacificamente por centenas de anos. O mesmo se pode dizer do Canadá, se bem que hoje constituído por grandes correntes imigratórias de diversas partes do mundo: há províncias de “nacionalidade” nitidamente britânica (Ontário, British Columbia, Alberta), e a de Quebec, de traços marcantemente franceses. Ao comentar o acirramento do nacionalismo no Canadá, Gad Horowitz,1 em síntese, condena-o, se encarado sob o ponto de vista separatista, como tem ocorrido de tempos em tempos com relação à mencionada província de Quebec. E pondera que, na verdade, a grande luta canadense refere-se à busca de uma “nação canadense”, com a integração de todos os que habitam seu território, mesmo porque se corre o risco de uma “americanização” global. Com efeito: “o antagonismo chauvinista recíproco do Canadá inglês e francês é potencialmente análogo ao existente com relação aos austro--húngaros, da Índia e Nigéria; os extremismos nacionalistas intracanadenses que ameaçam dividir este país devem ser certamente temidos, não apenas pelos moderados, como também por todos os canadenses, à exceção de uma pequena parcela de separatistas; mas o nacionalismo canadense que procura preservar um Estado canadense de alguma maneira, e prevenir a absorção por ambas as sociedades canadenses, inglesa e francesa, pelos Estados Unidos, é algo inteiramente diferente; o Canadá existe; o nacionalismo que preserva sua existência não é destrutivo; em terceiro lugar, há uma diferença entre o nacionalismo racista e outros tipos de nacionalismo; esta é uma distinção que mereceria melhor elaboração; o nacionalismo canadense nada tem a ver com raça, e muito menos com sangue e solo...”. Não é esse, todavia, o posicionamento de René Levesque,2 líder do partido pela independência da Província de Quebec.3 Ao falar sobre as referidas e nítidas “duas nações” que convivem no Canadá, revela que “uma nação simplesmente não significa Estado; entretanto, em inglês, ela é geralmente o Estado; em outras palavras, se existe um governo, tem-se uma nação; assim, o Canadá é uma nação de acordo com a definição inglesa apenas porque ela é política; em francês, tem-se um segundo significado, que é uma definição mais básica: pessoas que têm uma história comum, uma língua comum, um certo sentimento comunitário no sentido de constituir-se numa entidade que quer viver junto; outro exemplo no âmbito internacional pode ser o da Escócia; penso que a Escócia é uma nação; penso que o povo escocês está começando a ter a mesma opinião; esqueceram-se disso por algum tempo; os bascos são uma nação na França e na Espanha; os eslovacos são uma nação; mas a definição inglesa de nação sempre significa que ‘onde há um governo, há uma nação’; desta forma, suponho eu que em inglês poder-se-ia dizer que o Canadá é uma nação; em francês não poderíamos dizer que existe ‘la nation canadienne’* tão facilmente”. Se no caso canadense, por conseguinte, não se observam conflitos graves em decorrência do sentimento exacerbado de nacionalismo, o mesmo não ocorre na destroçada Iugoslávia, por exemplo. Enquanto viveu o Marechal Tito, as comunidades muçulmana, bósnia e sérvia foram mantidas em convivência relativamente pacífica e pela força. Com a proclamação da república da Bósnia-Herzegovina, contudo, irrompeu-se gravíssimo conflito, dilacerando a antiga Iugoslávia e causando milhares de mortes, muitas delas com requintes de crueldade e sadismo, e antecedidas de torturas, estupro e toda forma degradante de ofensas a que um ser humano pode ser submetido. O enclave de Kosovo, em meados de 1998, também irrompeu em surto separatista, também em razão de conflito étnico. Seus habitantes, com efeito, preservam tradições albanesas, distintas dos demais grupos. E tudo em decorrência de seculares conflitos, que permaneceram por cerca de cinco décadas latentes, e que são de cunho étnico e religioso. Aliás, de lembrar-se que o assassinato do Arquiduque Ferdinando da Áustria, em 1914, em plena via pública de Sarajevo, capital da proclamada República Independente da Bósnia-Herzegovina, foi o estopim da Primeira Guerra Mundial, uma vez que os separatistas de forma alguma se conformavam já na ocasião à submissão da região ao Império Austro-Húngaro. Pelo que se pode desde logo observar, portanto, nação nada tem a ver com Estado. Se é certo que qualquer nação aspira transformar-se num único Estado, nem sempre isso ocorre. Por outro lado, se o Estado, como se terá a ocasião de estudar no capítulo seguinte, caracteriza-se pela existência de vínculos jurídicos e principalmente políticos, a nação tem como característica fundamental a existência de vínculos essencialmente sociológicos. A teoria do chamado “Estado nacional”, como esposada pelos extremistas canadenses, aqui trazida como exemplo, pode levar a conflitos graves, como está sendo a questão da antiga Iugoslávia, o mesmo tendo ocorrido na Alemanha nazista (“espaço vital” e “superioridade da raça ariana”), na Itália fascista (revitalização do esplendor do Império Romano do Ocidente) e no Japão, à época da Segunda Guerra Mundial. 6.2.NAÇÃO: CONCEITO Para Mancini, entusiasta e filósofo da reunificação da Itália, subdividida após a decadência do opulento Império Romano em ducados, principados, repúblicas e outras pequenas unidades ou miniestados, de que ainda são vestígios Mônaco e San Marino, “nação é uma sociedade natural de homens, na qual a unidade de território, origem, costumes, língua e a comunhão de vida criaram a consciência social”.4 Da análise da referida conceituação, poderíamos desdobrá-la da seguinte forma,5 também na esteira dos elementos constitutivos, conforme técnica já adotada com relação às sociedades em geral: 6.2.1.Elementos Naturais Para o prof. Salvetti Netto, ao dissecar o quadro sinótico retroelaborado, nenhum dos elementos naturais contidos na definição de Mancini (raça, língua e território) pode ser considerado como constitutivo de uma nação. E, realmente, no que respeita à raça, a não ser em hipóteses marcantemente de etnia única (raça amarela no Japão, por exemplo, negros pigmeus, esquimós e outras), não se pode dizer, notadamente em países de grandes correntes imigratórias, como o nosso, Estados Unidos da América, Canadá, todos os países da América Latina, seja ela um elemento distintivo de uma nação. O Brasil e os Estados Unidos, então, com maior razão ainda, já que se observa admirável caldeamento de raças e povos, não se podendo dizer que haja, por exemplo, um espécime do Homo brasiliensis. Talvez ao cabo de mais cinco séculos, em se completando um milênio da existência da “civilização” brasileira, se poderá dizer da formação de uma nova raça. Igualmente com relação ao território, trata-se de elemento característico e certamente constituído do Estado, mas não necessariamente de uma nação, que prescinde dele. E o caso dos judeus e ciganos é bastante expressivo nesse sentido. Não concordamos, todavia, com a assertiva de que a língua tampouco seria um traço identificador de uma nação. O Brasil, ninguém poderá negar, tem hoje sua extensão territorial em grande parte devido à integração nacional exatamente pela língua comum que, apesar de alguns poucos regionalismos e sotaques diferentes, é a mesma língua falada de norte a sul e de leste a oeste. E, nesse sentido, foi fundamental o expansionismo proporcionado pelas entradas e bandeiras por terras inclusive pertencentes à Espanha por força do Tratado de Tordesilhas, chamando a atenção, para a importância de ambas, Hélio Vianna,6 para a “formação nacional”. Dessa forma, ainda que se leve em conta o ponto de vista aqui citado de importante político canadense no sentido de que a nacionalidade não deve referir-se a raça ou mesmo a línguas, quer-nos parecer que essa última éessencial para a identidade de uma nação. Ousamos até dizer que, em verdade, já não existe mais uma língua portuguesa falada no Brasil, mas sim uma língua brasileira. Isto porque não apenas a embelezamos, tornando-a muito mais sonora, clara, cadenciada e inteligível, com supressão dos sons marcadamente guturais dos lusitanos ou então exageradamente sibilados, ou ainda com supressão de sílabas inteiras, como também a tornamos praticamente uniforme na grafia e com pequenas variações semânticas de acordo com as diversas regiões do País. Daí porque ainda ousamos discordar de qualquer tipo de uniformização com o português falado em Portugal ou outros países de língua lusitana, tornando-nos totalmente independentes também nesse aspecto da antiga metrópole. Não vemos, pois, qualquer sentido em pretender-se uma uniformização de algo que já não é mais o mesmo de há muito tempo. Por outro lado, parece-nos ridículo e desconcertante neocolonialismo o uso indiscriminado entre nós de termos em inglês. Com efeito, embora louvemos os esforços de todos quantos queiram aprender bem o idioma bretão – e dele fomos professor por alguns anos – é deplorável a utilização de termos e expressões como: “sales – 50% off”; “delivery”; “toll free” etc. Mesmo porque no idioma pátrio temos expressões equivalentes e muito mais significativas: “liquidação – 50% de desconto”; “entrega em domicílio”; e “ligação gratuita”, respectivamente. 6.2.2.Elementos Históricos Por tradições deve-se entender o conjunto das conquistas culturais de um povo, bem como a memória dos feitos notáveis de personagens destacados de sua história, tais como lutas cívicas, de conquista da nacionalidade, descobertas científicas e notabilização nas artes e esportes, por exemplo. Fala-se com orgulho cívico, por exemplo, ainda, de um Tiradentes, de um Duque de Caxias, um Barão do Rio Branco, Carlos Gomes, Villa-Lobos, Rui Barbosa, D. Pedro I e outros vultos de nossa história, como valores efetivos de uma nacionalidade, assim como de um Pelé, Ayrton Senna e outros. Essa percepção de valores que compõem a tradição de um povo e, por conseguinte, de uma nação, é antecedida pelo chamado “sentimento nativista”, ou seja, a percepção de que tudo o que é autóctone, originário, portanto, de determinado local onde se desenvolvem as relações sociais, deve ser preservado, repelindo-se, outrossim, o que é estranho e de fora do mesmo local. Pode-se afirmar que o sentimento nativista, precursor do nacionalismo, surgiu entre nós de forma mais marcante na chamada Inconfidência Mineira, de 1789, e reforçado na chamada Conjuração Baiana, de 1797. Ou seja, a elite intelectual, no primeiro caso, e a própria população, no segundo, animaram-se a pleitear a independência de Portugal em decorrência de um sentimento de que nada mais havia que os ligasse à metrópole, sobretudo em decorrência dos abusos inomináveis consolidados pela odiosa “derrama”. Questão de suma importância ainda ligada às tradições de um povo é o patriotismo, definido por Jorge Boaventura7 como sendo “o resultado da compatibilização emocional espontânea que se estabelece entre o ser humano e o ambiente físico e cultural em que ele vem ao mundo, desenvolve a sua personalidade e se integra no processo histórico”. “É que no caso da Pátria”, prossegue, “sobre os atributos que configura, por exemplo, a nação, temos o acréscimo do afeto e da ternura; ela é a nossa casa física, mas é também a nossa casa cultural, que contém as nossas peculiaridades e idiossincrasias, e que pode entrar, com mais nitidez do que qualquer outra sociedade, em ressonância com os nossos sentimentos, e as nossas maneiras de ver a vida e o mundo”. Referido autor, porém, critica com razão o notório esquecimento de tão relevante valor pela população de nosso País, quiçá atormentada pelos inúmeros problemas que a assolam e, no seu entender, como resultante de reflexos da ideologia marxista de que no caso tudo não passaria de uma “armação” das classes exploradoras, “útil aos seus propósitos de manter em sujeição as classes que elas exploravam; algo assim como a religião, o ‘ópio do povo’”. Chama ainda a atenção para algo extremamente grave no que tange ao sentimento cívico: “O culto aos símbolos nacionais, o nosso próprio Hino foram banidos quase totalmente das escolas, nas quais durante muito tempo se falou, e aí, sim, abundantemente, de nacionalismo.” E conclui sua ordem de ideias para dizer que “de nossa parte, ousamos afirmar que as pessoas precisam crer, sim, naquilo que, parecendo-lhes justo às consciências, lhes toque os corações e as impulsione à ação; a Pátria, que em certo sentido é nossa mãe, precisa disso e bem o merece”. Por isso mesmo é que devem ser esquecidas e repudiadas palavras de ordem como o truculento e agressivo “Brasil, Ame-o ou Deixe-o”, e acolhidas o singelo “Brasil – Ame-o”. Ou seja, cultuando seus reais valores, e obrando pelo seu futuro e progresso, certamente promissores, apesar de todas as dificuldades. Ainda no que diz respeito aos elementos históricos de uma nação, diríamos que por costumes se haverá de entender o conjunto de usos repetidos ao longo do tempo pelo povo e que o torna distinto e peculiar com relação a outros povos. As comidas típicas, vestimentas, folclore, enfim, a cultura popular, são partes indissociáveis dos costumes de uma nação. A nossa, particularmente, resultado do caldeamento de raças e culturas diversas, certamente é uma das mais ricas do mundo em todos os aspectos referidos. Ainda analisando a clássica definição de Mancini, poderíamos afirmar que a religião, a rigor, e nas sociedades mais modernas, não pode ser considerada como parte integrante de uma nação. Resta evidente que, nas sociedades mais antigas, a religião tinha tamanha importância que se tornava parte indissociável do próprio Estado, o mesmo ocorrendo, por exemplo, e ainda hoje, até mesmo com extremismos perigosos, como o caso dos fundamentalistas islâmicos e dos fanatismos hindus.8 Após a célebre reforma da Igreja Católica Romana, para ficarmos com as civilizações ocidentais, entretanto, não se poderá certamente dizer que o protestantismo é característica da nação inglesa, ou então que o catolicismo o é com relação à nação italiana ou espanhola, países notoriamente com ampla maioria protestante e católica, respectivamente. Finalmente, no que concerne às leis, se admitirmos os costumes como fontes objetivas do Direito, então poderíamos, sim, atribuir-lhes a qualidade de elemento integrante de uma nação. E, com efeito, se costume consiste na cristalização de uma determinada prática repetida por gerações, transformando-se em norma obrigatória de comportamento, exatamente porque há a consciência coletiva de que sua observância é essencial à sobrevivência do próprio grupo social e manutenção da ordem, nesse caso a norma consuetudinária é parte do Direito (o common law do Direito anglo-norte-americano) e, pois, marca de uma nação. Todavia, se encarada a lei no seu sentido formal, ou seja, como preceito genérico, obrigatório, bilateral, coercitivo, atributivo e total do de coerção, além de ser originário dos órgãos competentes assim declarados pelas normas constitucionais, então não se poderia afirmar ser ela um elemento constitutivo de uma nação, mas, sim, e sem sombra de dúvida, do Estado, como senhor de sua ordem jurídica. 6.2.3.Elemento Psicológico Talvez seja esse o mais importante e mais caracterizador elemento constitutivo de uma nação. Como dizia o filósofo romano Sêneca, com efeito: “nemo patriam, quia magna este, amat, sed quia este sua”. Ou seja, ninguém ama a sua pátria porque ela é grande, mas sim porque ela é sua. Na verdade, e em última análise, é o que sintetiza todos os demais já que é a sublimação do próprio sentimento da nacionalidade. Ou seja, compartilhando determinada comunidade dos mesmos costumes, tradições, língua comum, isto faz com que todos os seus componentes queiram viver juntos não apenas porque assim desejem ou disso necessitem para sua própria sobrevivência; é que assim determinamseus sentimentos de molde a criar-se uma verdadeira “alma coletiva”. E quem melhor definiu tal sentimento foi Renan,9 ao descrever o caráter espiritual da ideia de nacionalidade. E, com efeito: “Uma nação é uma alma, um princípio espiritual. Duas coisas que, na verdade, sendo apenas uma, constituem essa alma... uma é a posse em comum de um rico legado de lembranças; a outra é o sentimento comum atual, o desejo de viver junto, a vontade de continuar a fazer valer a herança que se recebeu indivisa... ter glórias comuns no passado, uma vontade comum no presente, ter feito grandes coisas em conjunto, querer fazê-las ainda mais, eis a condição essencial para ser um povo. Uma grande agregação de homens, sã de espíritos e quente de coração, cria uma consciência moral que se chama uma nação.”10 E acrescenta ainda E. Queiroz Lima11 que “o fenômeno subjetivo do devotamento pela nacionalidade é o resultado, é a consequência do fato, objetivo da existência da nação, e não o seu motivo determinante; dado o caso de uma nação constituir-se de populações até então divididas, por modo que os interesses individuais e coletivos encontrem o ambiente necessário de equilíbrio nessa nova forma de organização, surgirá, necessariamente, um sentimento novo de patriotismo, que se estenderá à nação toda; por outro lado, se uma velha nação se cinde ou se desagrega, por este ou aquele conjunto de razões, passando os vários núcleos de população a fazer parte de novas nacionalidades, o tradicional sentimento de patriotismo se desenraizará do coração dos membros da nacionalidade extinta, que passarão a devotar-se à nacionalidade a que se foram ligar”. 6.2.4.Questões Econômicas e sua Globalização O economista Luiz Carlos Bresser Pereira12 pondera, com razão, que “um país é forte e vigoroso quando possui uma nação coesa e um Estado capaz: só um Estado-nação com essas qualidades pode ser um instrumento efetivo da ação coletiva de seu povo”. E acrescenta, nessa ordem de ideias, que: “No Brasil, o Estado sempre foi mais forte que a nação, mas essa vinha aos poucos se mobilizando e ganhando autonomia na medida em que o país se desenvolvia. Nos últimos 25 anos, porém, a partir da grande crise da dívida externa dos anos 80, verificou-se um retrocesso e o país voltou a se subordinar. A ideia de nação, porém, não foi esquecida. Nos próprios anos 80, ela se manifestou na luta pela democracia; hoje, indignada, ela reaparece reagindo diante da crise moral por que passa o governo brasileiro. Entretanto, a nação brasileira será reconstituída quando assumir o controle de sua política econômica e for capaz de acordar uma estratégia nacional de desenvolvimento.” E adiante o que mais nos interessa de perto: “Uma nação é uma comunidade de pessoas que compartilham um destino comum. É um povo capaz de se unir solidariamente para organizar a própria vida social na forma de um Estado. É uma sociedade que, não obstante os conflitos internos que a caracterizam, tem um acordo nacional básico quando se trata de competir com os demais Estados nacionais. Uma nação será tanto mais forte quanto mais coesa e mais capaz for de definir seu próprio destino, em vez de se deixar guiar pelas nações mais poderosas, suas competidoras; quando mais for capaz de se inventar e reinventar diante dos novos desafios.” E argumenta: “Na era da globalização, a rivalidade entre os Estados-nação (sic) deixa (de) ser militar para se tornar econômica. Nesse processo competitivo, os países mais ricos e poderosos usam de todas as armas disponíveis. Dessa forma, empurram a escada desses países que os ameaçam com sua mão de obra barata.” Não deixa de ser um alerta bastante ponderável, na medida em que, realmente, os Estados-nações mais ricos pulverizam seus investimentos e, sobretudo, a utilização de mão de obra mais barata em outros Estados-nações mais pobres – inclusive mediante o emprego do trabalho infantil, e até equivalente ao trabalho escravo –, o que aumenta sua competitividade e, consequentemente, seu lucro no comércio exterior. Por exemplo: um par de tênis, concebido por um desenhista de um determinado país rico, que detém sua marca, é fabricado em partes diferentes, em países também diferentes (i.e., solado, carcaça, cadarço, palmilhas etc.), tudo de acordo com o menor custo agregado. E o mercado é o mundo todo, com baixo custo de produção e, evidentemente, com maiores lucros. Pode-se até mesmo falar, nesse caso, de dumping, ou então de concorrência por preços predatórios, tendo-se em vista que o exportador que se vale do trabalho infantil ou do trabalho quase escravo tende a literalmente a entupir (to dump, em inglês) o mercado mundial com seus produtos bastante em conta, desbancando a concorrência, que se utiliza, ainda, por exemplo, de trabalho mais qualificado e mais bem remunerado. 6.3.CONCLUSÕES Feitas essas considerações, pois, poderíamos definir nação como a sociedade natural de homens, na qual a convivência e, sobretudo, o culto das mesmas tradições, o respeito aos mesmos costumes e uma língua comum, levam à consciência nacional singular. Conclui-se também que, no mundo atual, observa-se uma exacerbação não propriamente de um sentimento nacional sadio, como o apontado por Renan, mas doentio, em que atrocidades são cometidas em nome de um suposto patriotismo, mas que, em verdade, escondem frustrações de cunho econômico, sobretudo, bem como político e ambições de grupos interessados na tomada do poder.13 É o que se pode observar, como já asseverado, nas atrocidades cometidas reciprocamente por croatas, muçulmanos e sérvios na destroçada Iugoslávia. Ou seja, em nome de um suposto nacionalismo com forte apelo étnico, dizimam-se populações inteiras de vilas, estupram-se e posteriormente matam--se jovens, executam-se pessoas a esmo em plena praça pública. Resta evidenciado, por fim, que toda nação aspira transformar-se num Estado. Todavia, nem sempre isso é possível e, ainda que o caminho seja a constituição de um Estado plurinacional, não se pode conceber luta em sentido contrário aos tão claramente conquistados direitos humanos. Afinal de contas, ainda que haja nações com as características até há pouco apontadas, com perfeita identidade cultural, não se pode olvidar que todos os seus componentes são seres humanos exatamente iguais em direitos e aspirações. O ESTADO: NOÇÕES, JUSTIFICAÇÃO, EVOLUÇÃO E DIREITO PÚBLICO7 7.1.NOTAS INTRODUTÓRIAS Costuma-se dizer comumente que o Estado nada mais é do que “a nação politicamente organizada”. E, com efeito, enquanto uma nação, como já assinalado em ponto anterior, caracteriza-se pela existência de vínculos eminentemente sociológicos, o Estado apresenta vínculos de natureza política e jurídica. Ao tratar da matéria, E. Queiroz Lima1 pondera que “a organização política de uma nação, oferecendo, muito embora, em sua realização prática, as modalidades mais diversas, conforme as condições físicas, biológicas, psicológicas, econômicas, intelectuais, morais e jurídicas do meio em que se produz, gira sempre em torno de um mesmo fato capital: a existência de um governo, de um poder de coação, de uma autoridade, que mantenha, mediante o emprego da força, o respeito às normas de direito”. Edward McNall Burns,2 ao analisar as antigas civilizações, afirma que “ainda outra grande instituição que foi desenvolvida pelo homem neolítico é o Estado; à guisa de definição, podemos descrever o Estado como uma sociedade organizada que ocupa um território definido e possui um governo efetivo independente de controle externo; a essência do Estado é a soberania, ou o poder de fazer e executar leis, preservando a ordem social pela punição daqueles que infringem essas leis; não se deve confundir um Estado com uma nação; esta é um conceito étnico, usado para designar um povo unido por laços de língua, costumes e origem racial, por um passado comum ou pela crença num comum destino; uma nação pode ocupar ou não um território definido, mas não possui o elemento soberania”. Pode-se, desde logo, observar, por conseguinte, que o objeto de nossosestudos doravante, o Estado, caracteriza-se pelos referidos vínculos políticos e jurídicos, sendo essa a tônica imprimida ao tema por sociólogos, políticos e juristas. 7.2.ORIGEM DO TERMO Ainda de acordo com o magistério histórico de Burns,3 “a não ser em tempo de crise, o Estado não existe na grande maioria das sociedades primitivas – fato que indica, provavelmente, ter sido a sua gênese bastante tardia na fase de cultura neolítica; a maior parte das comunidades selvagens não tem um sistema permanente de tribunais, nem força policial, nem um governo com poderes coercitivos; o costume toma o lugar da lei, a vendeta é a única maneira de ministrar justiça e quase não existe o conceito de crime contra a comunidade; os crimes do homem primitivo são na sua maioria ‘agravos’ ou delitos privados em cuja punição nenhuma autoridade pública toma parte”. E conclui, dizendo que “a origem do Estado encontra-se provavelmente numa variedade de fatores; há fundamento, por certo, na suposição de que o desenvolvimento da agricultura tenha sido um dos mais importantes... os antigos costumes não seriam suficientes para definir os direitos e deveres numa sociedade como essa, com o seu elevado padrão de vida, a sua distribuição desigual da riqueza e o vasto campo que oferecia ao embate dos interesses pessoais; novas medidas de controle social se tornariam necessárias, medidas que dificilmente poderiam ser postas em prática por outro meio que não a instituição de um governo revestido de autoridade soberana e a submissão a esse governo; em outras palavras, pela criação de um Estado”. Estado, antes de mais nada, significa “estágio”, “fase”, ou “maneira de ser” ou de “se apresentar” alguma coisa. É por isso mesmo que dizemos que a água se apresenta geralmente no seu estado líquido, mas que também poderá se apresentar nos estados sólido ou ainda gasoso. Assim também as pessoas se apresentam no seu estado sóbrio ou embriagado, uma mulher apresenta-se em estado de gravidez, e dizemos ainda que o estado social de alguém é esse ou aquele, e assim por diante. Em Roma, embora se conhecesse certamente o Estado como sociedade política, ou seja, com a institucionalização do poder e, por conseguinte, a existência de um núcleo bem definido de poder e de emanação do direito, com maior agudeza na fase imperial, se bem que com poder personalizado, não se utilizava o termo status para designá-la. Como Roma era sempre considerada o centro político do mundo então conhecido, era designada como a civitas, ou seja, a cidade, e cujos habitantes privilegiados detinham o ambicionado status civitatis, que os distinguia dos estrangeiros, escravos ou não, e também dos plebeus, nos primórdios da história romana. Na Grécia, igualmente, não se empregava o termo correspondente a Estado para as cidades, mas sim o termo polis, que significa exatamente cidade. E isto também é perfeitamente compreensível, mesmo porque o mundo palpável de então era o encerrado pelos muros das diversas cidades-estados (Tebas, Atenas, Esparta, Troia etc.), e nada além disso. Os romanos ainda utilizavam a expressão res publica como que para distinguir o que pertencia ao interesse público (as coisas de todos, e não particularmente de alguém), do que constituía o patrimônio privado de alguém. Acabou prevalecendo, posteriormente, porém, o termo statum, utilizado pioneiramente por Ulpiano para definir Direito Público: “Publicum jus est quod ad statum rei Romanae Spectat” (Digesto, 1, 1, § 2).4 7.3.JUSTIFICAÇÃO DO ESTADO Podemos dizer, desde logo, que o Estado se justifica, ou melhor, explica--se, pela necessidade de o homem encontrar satisfação para suas necessidades fundamentais, já que não se basta por si. Mas, perguntar-se-ia: a sociedade em geral também não seria resultante dessa necessidade? E a resposta seria positiva, com a ressalva de que, enquanto a sociedade é decorrência, como já visto, de impulsos de natureza sociológica, pressupondo vínculos não necessariamente políticos, o Estado é uma espécie de sociedade, mas mais complexa do que a sociedade em geral. Entretanto, como lembra o prof. Elcir Castello Branco,5 “de um lado se colocam os que negam a necessidade desta ordem estatal, como os anarquistas, que propugnam a abolição do Estado; do outro se alinham os que advogam a presença do Estado, com vários argumentos”. Lembra ainda que as várias correntes filosóficas da antiga Grécia preocu-pavam-se mais com a natureza (jônicos), outros com as explicações numéricas do Estado (pitagóricos), ou seja, desenvolveram explicações sustentando que o Estado se manteria “agregado enquanto seus componentes fossem iguais”. Já os sofistas, voltados à explicação dos fenômenos naturais, descriam do valor das leis estabelecidas pela razão humana (nomos), emprestando preponderância às leis físicas, porque imutáveis (physis). “Os cínicos”, continua o prof. Castello Branco, “precursores dos hippies, pelo modo de vida, dispensavam o Estado; Diógenes afirmava que Antístenes lhe ensinara bastar a si próprio (autarkeia) e não depender do mundo externo; para ele, tudo era indiferente e o Estado não fazia sentido; esta postura se assemelha à dos anarquistas”.6 Anarquia, palavra derivada do grego antigo, quer dizer exatamente ausência de ordem. Ou seja, enquanto pelo ordenamento jurídico de dada sociedade, aliado ao poder que é o responsável pela sua aplicação e efetividade, almeja-se exatamente o alcance ou obtenção de uma ordem, para que a comunidade possa mais facilmente atingir suas metas e fins, a desordem vem a ser um estado de coisas indesejado. Para os anarquistas, não se trataria, em verdade, nem de uma nem de outra coisa. Para eles, os homens, dentro do princípio de solidariedade individual que deveria caracterizar a vida em comum, bastariam a si mesmos, sem a necessidade da existência de um ente (Estado) para coibir eventuais abusos de conduta, uma vez que se pressuporia uma vida regrada e com respeito a cada uma das individualidades. Conforme anotado em reportagem do jornal O Estado de S. Paulo, de 31.08.97, p. D-3, a respeito do pensamento de Joseph Proudhon, anarquista francês, “muitos autores, com simpatias libertárias ou não, interpretam o anarquismo como resultado de uma ‘ética pessoal e não uma doutrina política’”. Referido artigo aponta, ainda, como raízes do pensamento anarquista, o início da “Revolução Industrial” e o impacto desestruturador que ela produziu numa sociedade de artesãos organizados a partir de pequenas oficinas de produção. O conteúdo político desse agir, no entanto, teria emergido com a Revolução Francesa de 1789. Com efeito, “os filósofos franceses Diderot (‘não quero dar nem receber leis’) e Rousseau, com sua Doutrina da Vontade Geral, têm sido apontados como raízes históricas do anarquismo, que toma sua feição mais moderna com William Godwin (1756-1836), primeiro pensador anarquista tido como consciente e sistemático; escritor e filósofo, além de pastor desencantado com a fé, Godwin escreveu, em 1793, sua Indagação Relativa à Justiça Política; a obra reflete sua insatisfação com o sistema político britânico e o ceticismo em relação a uma revolução transformadora que não desembocasse no terror”.7 Para Lênin, também o Estado seria abolido, quando se atingissem as metas do chamado “paraíso comunista”, em que não apenas se obteria a igualdade social e econômica entre todos os homens, como também a solidariedade entre eles, donde a inocuidade da permanência do Estado, como ente opressor das liberdades individuais. Tanto assim que aperfeiçoou a teoria marxista no que diz respeito à coletivização dos meios de produção e distribuição, e sobretudo no que concerne ao materialismo histórico e à luta de classes, entabulando as teorias do “Estado Pedagogo” e do “Estado Evanescente”. Ou seja, os homens que vivem sob o tacão do regime capitalista estariam inexoravelmente corrompidos e voltados egoisticamente para sua sobrevivência a todo custo, e necessitariam de uma reeducação para adaptação à nova ordem. Nesse primeiro momento, então, haveriaa necessidade (“mal necessário”, segundo ele) ainda do Estado que, todavia, iria se desvanecendo, desaparecendo até por completo e finalmente extinto, à medida que se fosse conseguindo a almejada reeducação. Conforme já tivemos a ocasião de salientar (vide Capítulo 3), destacam-se dois grandes grupos de teorias explicativas da sociedade e, por consequência, do Estado: o das “teorias teológicas”, que veem o toque divino nessa origem, de um lado, e o das “teorias contratualistas”, segundo as quais os homens é que, em determinado momento, convencionam criar um novo ente para suprir suas necessidades não satisfeitas pelos esforços apenas individuais, e para tanto abrem mão de suas respectivas liberdades, em parte. Outras teorias ainda fundam sua explicação e justificação do fenômeno político na força,8 ou seja, “para controle das ações individuais e observância das normas se estabelece a força; as pessoas a ela se submetem; desta relação entre o Estado e o indivíduo é extraída a justificativa deste ente superior, guardião da ordem; tal situação, realçada por Hobbes, supõe o homem em permanente luta com seus semelhantes; este fato não convence; a lida é maior pela sobrevivência do que contra as pessoas; assim ocorreu em todas as eras; o homem não é só instinto belicoso, mas razão e intelecto; pelo ângulo da moral e da inteligência se estabelecem relações de outro tipo; afeitos à igualdade e à lei do mínimo esforço, o homem busca atingir seus objetivos com menores atritos. “Nesse ponto”, pondera Adilson Rodrigues Pires,9 “há um evidente conflito entre Hobbes e outros filósofos”. Com efeito, “para Aristóteles, por exemplo, o homem em estado de natureza é um ser social, que anseia pela paz ao conviver com outros homens. Para Hobbes, entretanto, o homem só se alia a outro quando a ameaça de destruição do seu poder ou da sua integridade física requer uma associação que o torne resistente à opressão. Enquanto houver esperança, a paz deve ser buscada. E só com esse propósito é que o homem conserva momentos de transitória placidez. A ideia de contrato, segundo o pensador inglês, consiste numa transferência mútua de direitos. Ao firmar um compromisso, o homem abdica de seus direitos e concorda em ceder parte de sua independência em favor de uma integração social que o leve a se fortalecer”. E, mais adiante: “Para Hobbes, a arte humana é responsável pela criação do grande animal, à imagem e semelhança divinas, a que chamou de Leviatã. Assim como Deus criou a natureza, o homem criou o Estado, que ele chama de homem artificial. A soberania é o que proporciona vida e alma ao Estado, assim como os demais entes políticos que o compõem lhe conferem a força vital, base da sua sustentação. Os pactos e as convenções constituem o Fiat, ou seja, criemos o Estado, tal como o próprio homem idealizado por Deus criador.” Como também já salientado noutro passo, Burns10 afirma que muitos Estados deveram sua origem à fixação das sociedades mais antigas em determinado território, e por força do desenvolvimento da agricultura. Outras ainda entenderam que os costumes por si sós não bastavam para a manutenção da ordem social, donde a necessidade da organização mais sofisticada do poder social. “Certo número de Estados antigos evidentemente”, acrescenta, “deveram a sua origem a causas militares, isto é: foram fundados para fins de conquista, para a defesa contra a invasão ou para tornar possível a expulsão de um invasor de dentro das fronteiras do país”.11 Chama ainda a atenção para o fenômeno da liderança como denotador da origem de alguns Estados, se não em sua maioria: “Alguns antropólogos modernos dão grande importância à liderança como fator da origem do Estado; fazem ver que, em tempo de crise, um indivíduo dotado de qualidades de comando invariavelmente se eleva da multidão e assume o controle.”12 Pode-se concluir, entretanto, que na verdade o Estado, assim como qualquer outro tipo de sociedade, nasce do espírito gregário do homem, consoante bem sintetizado pelo sábio de Estagira, Aristóteles: “antropos, politikon zoon” (O homem é o animal político). Desta forma, não se bastando a si próprio para suprir suas necessidades, e até mesmo movido pelo instinto de perpetuação da espécie, une-se a outros semelhantes. Com relação ao Estado em si, todavia, veremos que não basta o referido espírito associativo ou mesmo o instinto de sobrevivência e gregário: há que haver vontade dirigida à sua criação efetiva, o que se dá com a institucionalização do poder. 7.4.ESTADO: A EVOLUÇÃO E A INSTITUCIONALIZAÇÃO DO PODER A cultura, como já estudado, é o resultado da convivência social que, a seu turno, está sujeita à dinâmica das relações mantidas pelos componentes de um dado corpo social. Tem-se, por conseguinte, que o início de tudo é a família, de início nuclear (isto é, determinado casal e sua prole), seguindo-se, então, em projeção evolutiva, o ajuntamento de famílias de molde a constituírem clãs, de cuja junção nascem as tribos ou grupos gentílicos, culminando, então, de seu ajuntamento, uma nação. O Estado, forma mais complexa ainda do que nação, surgirá quando o poder for institucionalizado. Ou seja: quando houver clara definição a respeito do núcleo do poder (governo) da sociedade (geralmente uma nação, ou mais de uma), bem como das fontes subjetivas e objetivas das normas de conduta – aqui entendidas como os órgãos que as criam – e as normas efetivamente no que tange à sua forma e características; então nós podemos dizer que nesse momento nasce o Estado. A institucionalização do poder, em última análise, quer dizer que ele não é mais personalizado, ou seja, não mais se confunde com a pessoa ou pessoas que o exercem, passando a existir independentemente daquelas quando se afastam dos postos de mando, nem despersonalizado, isto é, não é mais difuso e mutável, de acordo com as mudanças repentinas dos destinos sociais. Também o Direito não é mais difuso (geralmente consubstanciado em costumes e tradições apenas), mas passa a ser emanado de fontes subjetivas próprias (no caso, os órgãos da função “legislativa” do Estado). 7.5.FORMAÇÃO E EXTINÇÃO Conforme visto em passos anteriores, o Estado nasce, em geral, após a formação e a solidificação cultural, representado por uma nação que, além dos vínculos sociológicos que a caracterizam, passa a desejar a institucionalização do poder político. Ou seja, para além dos referidos vínculos de natureza social, afetiva, de pertencimento a uma comunidade com características bem definidas, com uma língua comum, costumes, tradições, valores culturais e outras qualidades que levam todos os seus componentes a uma unidade nacional, decide-se pela sua organização mais sofisticada. Daí nasce esse fenômeno a que se atribuiu a denominação de Estado. Ou, mais exatamente: um estado de coisas desejado com vistas à consecução de fins comuns. Em última análise: uma organização do poder político, de molde a definir as normas de convivência, sua execução de modo geral, para todos, indistintamente, e sua aplicação concreta caso sejam violadas. Resultam daí, como já visto, as funções governamentais, exercidas por órgãos legislativos, executivos e judiciários. Conforme o magistério do Prof. Wilson Accioli,13 com efeito, a essa maneira, digamos, natural do nascimento de um determinado Estado dá--se o nome de modo originário de sua formação. Assim, “a formação é inteiramente nova; ela surge diretamente da nação e do país sem derivar de nenhum outro Estado”. Nessa hipótese, segundo Accioli: “Configurar-se-ia no caso em que, num certo território que não fosse ocupado por nenhum outro Estado, uma população se estruturasse politicamente, em caráter permanente, por uma volição espontânea de suas forças sociais. O exemplo de Bluntschili traz à colação para ilustrar sua opinião é o da fundação de Roma. E se expressa desta maneira, para corroborar seu juízo: ‘Neste caso a organização da população não precede de um instante o estabelecimento sobre o território e a fundação da cidade. Os dois fatos coincidem, ea cidade nova é imediatamente consagrada pela oração, e garantida pela lei fundamental que o rei outorga ao povo, e este aprova’”. Poderíamos, nos tempos mais modernos, trazer os exemplos das nações portuguesa e espanhola, tendo em vista, contudo, que a questão racial não é levada em consideração, conforme já visto quando estudamos a formação das nações. Primeiramente surgiram os povos dessas nações, hoje constituídas em Estados, e, posteriormente, estes, de modo formal. O eminente professor refere-se, por outro lado, aos “modos secundários, em que a formação se produz igualmente do interior; emana da nação, mas se vinculando à existência de diversos Estados que se unem para formar um só, ou de um Estado que se fraciona para formar outros”. Traz como exemplos dessas formações secundárias o Império Austro--Húngaro, que se esfacelou após a Primeira Guerra Mundial, e outras formas de Estado, como as Uniões Reais, Pessoais, Federações e Confederação, que serão vistas em passo oportuno. Em tempos mais atuais, em razão da chamada “Guerra dos Balcãs” precedida pela derrocada da União Soviética, a partir de 1989, além da morte do ditador iugoslavo Tito, as antigas Checoslováquia e Iugoslávia foram pulverizadas em quase uma dezena de novos Estados. Assim, a Checoslováquia dividiu-se em República Checa e Eslováquia, enquanto que a Iugoslávia em nada menos que seis novos Estados: Macedônia, Monte Negro, Sérvia, Bósnia-Herzegovina, Croácia e Eslovênia. Por fim, Accioli fala de modos derivados de formação de Estados, notadamente quando Estados, já solidamente estabelecidos, colonizam outros territórios, inicialmente sob seu poder político, mas posteriormente transformados em Estados independentes. Como exemplos temos nosso próprio País e os demais das três Américas e Caribe, em decorrência de movimentos de independência das antigas metrópoles (Espanha, Portugal, Reino Unido, Holanda, França), bem como da maior parte da África (ex-colônias também de Portugal, Espanha, França, Reino Unido, Holanda e Bélgica). Trazemos, contudo, um quarto modo de formação de Estados, denominado de aglutinador. Ou seja, uma mesma nação, mas pulverizada em pequenos Estados. Foi o caso da Itália e da atual Alemanha, até metade do século XIX, divididas em reinados, principados e repúblicas, até serem unificadas em Estados unidos e soberanos. Pode-se dizer, portanto, que os Estados também morrem ou são extintos. Ou seja, Estados que se unem ou são absorvidos por outros, sobretudo mediante conflitos armados, como nos casos mencionados linhas atrás. E, ainda mais recentemente, observam-se movimentos, não raro instigados por potências estatais maiores, no sentido de influenciar regiões a aderirem a eles, como, por exemplo, a Crimeia, que se desligou da Ucrânia para se juntar à Federação Russa, antiga União Soviética. Há, ainda, regiões que anseiam por se tornar Estados independentes, como, ainda à guisa de exemplificação, a Chechênia, com relação à Federação Russa, o Curdistão, com relação ao Irã, Iraque, Síria e Turquia, entre outros. ESTADO E DIREITO: CONCEITO E NATUREZA DO ESTADO8 8.1.ESTADO E DIREITO Como já tivemos a oportunidade de estudar no ponto anterior, do qual, aliás, extraímos a conclusão de que o Estado surge quando o poder se institucionaliza, tem-se que é ele, a um só tempo, a fonte irradiadora de Direito e ente garantidor de sua efetiva observância, mediante meios coercitivos. De acordo, então, com essas premissas é que se pode afirmar que a existência do Estado caracteriza-se pela presença de vínculos políticos e jurídicos, à medida que os indivíduos ligam-se a um determinado Estado pela nacionalidade, o que pressupõe também ligação ao seu ordenamento jurídico, ou então apenas por esse último, em se tratando de pessoa que não detém a referida nacionalidade. Pode-se dizer, então, que por vínculos políticos se entende a existência de relações entre o Estado e os indivíduos que ostentam sua nacionalidade, de molde a outorgar-lhes o direito de escolher seus governantes, bem como o de serem escolhidos governantes. Já por vínculos jurídicos se entende a existência de relações bilaterais, atributivas e coercitivas que se estabelecem entre os diversos indivíduos que vivem no território de determinado Estado, bem como entre este e aqueles. 8.2.CONCEITO DE ESTADO Para o prof. Pedro Salvetti Netto,1 “Estado é a sociedade necessária em que se observa o exercício de um governo dotado de soberania a exercer seu poder sobre uma população, num determinado território, onde cria, executa e aplica seu ordenamento jurídico, visando ao bem comum.” E, realmente, se dissecarmos – como o faremos no ponto seguinte – o Estado, iremos verificar que, assim como toda e qualquer sociedade, compõe--se de elementos constitutivos diversos, alguns de cunho material, outros formais, e de um elemento final ou teleológico. Quando estudamos a sociedade em geral, como se recorda, vimos que qualquer sociedade deve necessariamente dispor do elemento humano que a constitui, bem como de um local, onde se desenvolvem as relações sociais. Além disso, a própria formação ou constituição da sociedade pressupõe um ato de vontade de seus componentes, o que se materializa mediante seu atos constitutivos ou estatutos, que são, por assim dizer, sua “constituição”, bem como a existência de normas comportamentais cujo esforço é garantir a convivência de todos e a manutenção da ordem social. A finalidade de cada sociedade, evidentemente, irá depender de sua natureza. Ora, se, no que tange à sociedade em geral, os elementos constitutivos são materiais (base física e pessoas), formais (atos constitutivos + normas comportamentais e órgãos de gestão social) e finais (variados), para o Estado, então, teríamos: Elementos Materiais (= Território e População), Elementos Formais (= Ordenamento Jurídico e Governo Soberano) e Final (Bem Comum). 8.3.NATUREZA DO ESTADO Ora, mas toda sociedade é, no final das contas, política, como já exaustivamente vimos estudando desde o primeiro ponto do programa, exatamente porque há um núcleo do poder e um conjunto de normas a serem obedecidas coercitivamente pelos componentes do grupo. Mas o Estado, diz-se, é a “sociedade política por excelência”, uma vez que, ao contrário das demais, é necessária, sendo seu ordenamento jurídico e poder político contingenciadores e limitadores dos demais existentes no âmbito daquelas. Isto quer dizer que, enquanto outras sociedades ditas contingentes têm a abrangência de sua ordem jurídica limitada subjetivamente àqueles que delas fazem parte, e objetivamente à sua base física, a do Estado engloba todos os que vivem no seu território, além de limitar os poderes das demais sociedades. É a esse poder estatal que chamamos de soberania, considerado como sendo o poder incontestável, porque não admite contrariedade da parte de outro dentro do território de determinado Estado, e incontrastável, no sentido de não poder haver, ainda dentro do referido território, outro que se lhe iguale e muito menos o suplante. Referido poder, como se terá ocasião de verificar no ponto seguinte, tem a ver diretamente com a ordem jurídica interna de cada Estado, uma vez que é em decorrência dele que o Estado cria, executa e aplica seu ordenamento jurídico, visando ao bem comum. COMPONENTES DO ESTADO9 9.1.ANÁLISE DA DEFINIÇÃO DE ESTADO Por Estado, como já acentuado no capítulo anterior, entende-se a sociedade política necessária, dotada de um governo soberano, a exercer seu poder sobre uma população, dentro de um território bem definido, onde cria, executa e aplica seu ordenamento jurídico, visando ao bem comum. Com a dissecação da referida definição, então teríamos: Vejamos, a seguir, o que significa cada um dos mencionados elementos que constituem a estrutura do Estado, e suas particularidades. 9.2.ELEMENTOS MATERIAIS: POPULAÇÃO E TERRITÓRIO 9.2.1.População É mister, primeiramente, que se faça a distinção de população, de um lado, e povo, de outro. Enquanto a população do Estado consiste no conjunto de todosos habitantes do seu território, quer com ele mantenham ou não vínculos políticos, além dos necessários vínculos jurídicos, povo, em última análise, é o conjunto de cidadãos. Ou seja, povo é a parcela da população de determinado Estado que com ele mantém vínculos de natureza política, além dos de natureza jurídica. A questão da nacionalidade, e, consequentemente, da cidadania, que é sua resultante mais eloquente, mesmo porque tem a ver diretamente com a chamada liberdade-participação (possibilidade de escolher e ser escolhido como governante), sempre foi questão das mais polêmicas e delicadas. Em Roma, por exemplo, o critério definidor da cidadania dependia do status civitatis, ou seja, tinham a mencionada liberdade-participação, certamente limitadora dos poderes dos reis, cônsules e imperadores, nos três grandes períodos de sua história antiga, tão somente os patrícios e homens livres, excluindo-se os plebeus, inicialmente, e totalmente os estrangeiros e escravos. A liberdade-participação, outrossim, nada tinha a ver com a liberdade--autonomia, que pode ser conceituada como o direito de cada ser humano autodeterminar-se no que concerne à sua locomoção (ir, vir e permanecer), manifestação do pensamento, credo, escolha de uma atividade ou profissão, enfim, ser sujeito de direitos individuais, inalienáveis e imprescritíveis, e que são pressupostos de sua própria sobrevivência e dignidade. Desse segundo tipo de liberdade decorre ainda o chamado direito público subjetivo, ou seja, a faculdade de agir em face do próprio Estado, quando houver ameaça ou prejuízo a uma das liberdades retrossintetizadas e que serão objeto de análise mais aprofundada em ponto adequado. Referido insurgimento consiste num instrumental apropriado, que se denomina garantia individual, como, por exemplo, o habeas corpus, contra medida atentatória à liberdade de locomoção de certo indivíduo por ato ilegal ou abusivo de certa autoridade, o mandado de segurança, contra ato também prejudicial a direito líquido e certo, não amparado pelo primeiro remédio etc. De qualquer forma, e retomando a questão da definição dos critérios caracterizadores da nacionalidade, Roma curvou-se paulatinamente à necessidade de estender sua cidadania aos povos conquistados por suas poderosas legiões, mesmo porque não apenas necessitava do apaziguamento de antigos inimigos, como também de seu concurso material (coleta de impostos) e de apoio estratégico (com a arregimentação de novos centuriões dentre os jovens dos povos outrora derrotados). Assim, Júlio César acabou por estender desde logo a cidadania romana aos povos das Gálias Cisalpinas (regiões que hoje constituem a França, Bélgica e Suíça), e Caracala fê-lo ainda mais amplamente, ou seja, a todos os povos até então conquistados. Resta evidenciado que a tônica, em princípio, era puramente política, já que Roma necessitava de tropas e tributos dos povos conquistados para a manutenção de sua pax romana, além de neutralizar a aliança deles com vizinhos também a serem subjugados. Com a instituição do chamado Sacro Império Romano-Germânico, notadamente com Carlos Magno, e conforme acentuado por Burns,1 “a grandeza de Roma deveria ser ressuscitada; estaria mais em harmonia com a verdade quem interpretasse o fato como uma expressão do despertar cultural e político do Ocidente... o estabelecimento de um império no Ocidente simbolizava a existência de um abismo cada vez maior entre os cristianismos latino e Bizâncio; finalmente, o fato de Carlos Magno ter sido coroado por Leão III deu aos papas do segundo período medieval um baluarte para as suas pretensões de supremacia; podiam alegar terem sido eles, na realidade, os fundadores do império, agindo, é claro, como representantes de Deus”. Desta forma, tinha a cidadania do referido império carolíngio quem jurasse fidelidade irrestrita e absoluta à fé cristã-católica, e, em consequência, ao Papa, sua expressão máxima. Ao invés dos patrícios romanos, que detinham o status civitatis, em contraposição a estrangeiros ou escravos, tinham-se então os fiéis contrapondo-se aos infiéis ou hereges. Finalmente, ao término da cruenta Guerra dos Trinta Anos,2 e com a elaboração do famoso Tratado de Vestfália, de 1648, é que foram definidos os critérios de conferição de nacionalidade, que são conhecidos por jus soli e jus sanguinis. Por jus soli entende-se o critério definido da nacionalidade de alguém de acordo com o local de seu nascimento. É o critério, por exemplo, de modo geral adotado por todos os países e pelo Brasil: são brasileiros natos, em primeiro lugar, “os nascidos na República Federativa do Brasil, ainda que de pais estrangeiros, desde que estes não estejam a serviço de seu país” (Constituição de 1988, art. 12, I, a). Excetuam-se, como se verifica, os filhos de diplomatas estrangeiros, por razões evidentes. Por outro lado, de salientar-se que os países mais novos, de fortes correntes imigratórias (Brasil, Estados Unidos, Argentina, Austrália etc.), sempre adotaram esse critério, sobretudo para estimular o ingresso de colonizadores que certamente se sentirão mais apegados à pátria de adoção, se sua prole tiver garantido o seu direito de nacionalidade dela, e que os acolhe incondicionalmente. Entende-se, por outro lado, por jus sanguinis, o critério pelo qual se define a nacionalidade de alguém de acordo com a de seus pais. Ou seja, em última análise, adquirirá a nacionalidade dos pais a pessoa que vier a nascer em outro país, independentemente do critério de nacionalidade por esse último adotado. Nosso país sempre adotou referido critério, em conjunto com o primeiro. Na atual Constituição, com efeito, rezava o já mencionado art. 12 que são brasileiros: –os nascidos no estrangeiro, de pai brasileiro ou mãe brasileira, desde que qualquer deles esteja a serviço da República Federativa do Brasil; –os nascidos no estrangeiro, de pai brasileiro ou mãe brasileira, desde que sejam registrados em repartição brasileira competente, ou venham a residir na República Federativa do Brasil antes da maioridade e, alcançada esta, optem em qualquer tempo pela nacionalidade brasileira. Esse dispositivo (i. e., alínea c, inc. I, do mencionado art. 12), por força da Emenda Constitucional de Revisão nº 3, de 1994, passou a ter a seguinte redação: [são brasileiros] “os nascidos no estrangeiro, de pai brasileiro ou de mãe brasileira, desde que venham a residir na República Federativa do Brasil e optem, em qualquer tempo, pela nacionalidade brasileira”. Diante de várias dúvidas suscitadas desde então, todavia, ou seja, notadamente acerca de crianças filhas de brasileiro ou brasileira nascidas no exterior, mas cujos registros vinham sendo negados por autoridades consulares brasileiras, porquanto deveriam fixar residência no Brasil, o Congresso Nacional, em 20 de setembro de 2007, promulgou a Emenda Constitucional nº 54, que deu nova redação à mesma alínea c do inc. I do art. 12 da Constituição da República, bem como acrescentou um art. 95 ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, de seguintes teores: “Art. 12 – São brasileiros: I – natos (...) c) os nascidos no estrangeiro de pai brasileiro ou de mãe brasileira, desde que sejam registrados em repartição brasileira competente ou venham a residir na República Federativa do Brasil e optem, em qualquer tempo, depois de atingida a maioridade, pela nacionalidade brasileira; (...) Art. 95 – Os nascidos no estrangeiro entre 7 de junho de 1994 e a data da promulgação desta Emenda Constitucional, filhos de pai brasileiro ou de mãe brasileira, poderão ser registrados em repartição diplomática ou consular brasileira competente ou em ofício de registro, se vierem a residir na República Federativa do Brasil.” Duas questões se apresentam desde logo em decorrência dos mencionados critérios definidores de nacionalidade: a da dupla cidadania e a dos apátridas. Suponha-se, por exemplo, que determinado país no qual se refugiam determinadas pessoas de outro adote apenas, e restritivamente, o jus sanguinis, enquanto ooriginário, ao contrário, restringe-se ao jus soli. Ora, nascida uma criança, filha dos refugiados em solo adotivo, não terá, a rigor, nem a nacionalidade desse, nem a do país de origem dos pais, tornando-se apátrida. Nesse caso, a solução encontrada será apenas a da naturalização, se admitida. A Organização das Nações Unidas, exatamente em decorrência dessa problemática, mantém um comissariado específico para refugiados e apátridas, permitindo-lhes a obtenção de passaporte especial para deslocamentos, e exortando os países de asilo a permitirem a naturalização, por exemplo. Em 1982, tínhamos uma aluna de Direito que, nascida no Egito, de pais judeus, mas antes da institucionalização do Estado de Israel, viu-se na incômoda situação retroapontada, visto que o país de nascimento não a acolhera, porque exigia a nacionalidade respectiva, e não existia ainda o Estado de Israel. Não lhe restou alternativa que não a de pleitear o passaporte da ONU, com o qual veio para o Brasil, ainda bastante jovem, e naturalizou-se brasileira.3 A naturalização é uma outra forma de adquirir-se a nacionalidade de um determinado Estado, de uma maneira mais ou menos limitada, de acordo com sua Constituição. Conforme disposto pelo art. 12, II, ainda da Constituição de 1988, entre nós, são considerados naturalizados os que, “na forma da lei, adquiram a nacionalidade brasileira, exigida aos originários de países de língua portuguesa apenas residência por um ano ininterrupto e idoneidade moral” (a), e ainda “os estrangeiros de qualquer nacionalidade, residentes na República Federativa do Brasil há mais de quinze anos ininterruptos e sem condenação penal, desde que requeiram a nacionalidade brasileira” (b). Quanto aos portugueses, é facultada situação especial para naturalização, desde que haja reciprocidade aos brasileiros com relação ao Estado português, ou seja, outorgando-se-lhes os direitos inerentes ao brasileiro, salvo os casos previstos na Constituição. No caso nem há, a rigor, necessidade de uma naturalização efetiva, mas sim de regularização e opção por tal regime especial, inclusive para fins políticos (§ 1o, art. 12, CF). Embora o § 2o do mencionado art. 12 da Constituição Federal do Brasil, de 1988, reze que “a lei não poderá estabelecer distinção entre brasileiros natos e naturalizados, salvo nos casos previstos”, o § 3º esclarece serem privativos de brasileiro nato os cargos de presidente e vice-presidente da República, de presidente da Câmara dos Deputados, de presidente do Senado Federal, de ministro do Supremo Tribunal Federal, da carreira diplomática e de oficial das forças armadas. Com relação à dupla nacionalidade retroaventada, tem-se que, a rigor, é inadmissível. E, com efeito, afora ser preceito sábio e inscrito na Bíblia, a circunstância de não se poder servir a dois senhores ao mesmo tempo, ficaria extremamente difícil cumprir todos os preceitos estabelecidos por um e outro Estado conferidor de nacionalidade a alguém. Do ponto de vista fático, porém, a questão não é impossível, ao contrário, é até bastante frequente. Recentemente, por exemplo, nosso País foi varrido por uma onda de “aquisição” de nacionalidade italiana, uma vez que a Constituição italiana é extremamente generosa com seus filhos, o que, de resto, a categoriza como de manifesto bom-senso e sensível sentido cultural-humanístico. De nossa parte, aliás, orgulhamo-nos de compartilhar dessa honrosa descendência pelo lado paterno. Quanto à portuguesa, entretanto, que também compartilhamos pela ascendência materna, apenas lamentamos que a circunstância de participação na importante, mas arrogante e fria, comunidade econômica europeia tenha subido à cabeça das autoridades administrativas, levando-as a protagonizarem deprimentes cenas de expulsão de brasileiros, temendo eventual disputa por mercado de trabalho ou ocupação de espaços na sociedade portuguesa.4 De qualquer forma, o § 4º, ainda do art. 12 da Constituição brasileira de 1988, estabelece que será declarada a perda da nacionalidade do brasileiro que tiver cancelada sua naturalização por sentença judicial, em virtude de atividade nociva ao interesse nacional (I), ou então que adquirir nacionalidade por naturalização voluntária (II). Ora, quer-nos parecer, por conseguinte, que, no caso da questão dos descendentes de italianos que venham a cadastrar-se junto às respectivas representações diplomáticas para o reconhecimento de sua nacionalidade, não vemos como esse ato possa ser caracterizado como “naturalização”. E, com efeito, na hipótese em testilha, o que haveria seria apenas, e tão somente, a declaração formal de algo que já existe (laços de nacionalidade pela ascendência), e não um ato constitutivo, como ocorre na aquisição formal e voluntária da naturalização, com perda, aí sim, consequente, da outra nacionalidade. A prática do registro de crianças americanas, francesas, espanholas etc., tanto no âmbito dos cartórios brasileiros, como nos respectivos consulados, tem sido frequente e em nosso entender salutar, uma vez que serão elas, no futuro, que irão definitivamente optar por uma das nacionalidades. Essa pendência foi definitivamente encerrada pela já referida Emenda Constitucional de Revisão nº 3, de 1994, à medida que deu nova redação ao inc. II, § 4º, do art. 12, da Constituição de 1988, a saber: [§ 4o – Será declarada a perda da nacionalidade do brasileiro que:] “II – adquirir outra nacionalidade, salvo nos casos: a) de reconhecimento de nacionalidade originária pela lei estrangeira; b) de imposição de naturalização, pela norma estrangeira, ao brasileiro residente em Estado estrangeiro, como condição para permanência em seu território ou para o exercício de direitos civis.” A advogada Mirtô Fraga5 entende que as hipóteses retrorreferidas nas alíneas a e b, do inc. II, do § 4º, do art. 12, da nossa Constituição Federal, respectivamente, seriam desnecessárias e aplicadas com extrema cautela. Com efeito, pondera o seguinte, ao comentar o dispositivo segundo o qual não perde a nacionalidade brasileira quem obtém o reconhecimento de nacionalidade originária pela lei estrangeira: “...nos princípios que regem a nacionalidade, o verbo adquirir se refere à nacionalidade derivada, secundária, à naturalização, à nacionalidade que o indivíduo adquire ao longo de sua vida, por manifestação de sua vontade; já o verbo atribuir e o adjetivo atribuída dizem respeito à nacionalidade originária, àquela que o indivíduo recebe, àquela que o Estado lhe atribui no momento de seu nascimento; vimos, também, que, como nacionalidade é questão de soberania, os Estados têm liberdade para discipliná-la como melhor lhes convier; finalmente, vimos que, em consequência disso, um indivíduo, ao nascer, pode ter mais de uma ou pode não ter qualquer nacionalidade”. E acrescenta, centrando enfoque na mencionada alínea a, do inc. II, § 4º, do art. 12, da Constituição Federal: “se é nacionalidade originária, não é adquirida; só se reconhece o que já existe; é, por exemplo, o caso de filho de italianos nascido no Brasil; é brasileiro pela Constituição brasileira; é italiano pela legislação italiana; o fato de ter que providenciar a documentação é matéria secundária, tal qual a do brasileiro que tira seus documentos (registro civil de nascimento, identidade, título de eleitor, passaporte etc.); não significa que o brasileiro/italiano esteja requerendo a nacionalidade italiana, que esteja se naturalizando italiano, mas, tão somente, que, sendo italiano, tem, apenas, que provar que é italiano e documentar-se como tal; da mesma forma que o brasileiro não registrado até a idade adulta”. No que concerne à outra hipótese da alínea b, do inc. II, § 4º, art. 12, da Constituição Federal, o fato de o brasileiro “adquirir” outra nacionalidade por imposição de norma estrangeira, pondera que “não está, também implícita, a vontade de adquirir a outra nacionalidade, mas de exercer determinados direitos privativos de nacional desse Estado; é necessário, porém, que haja a perspectiva do exercício desses direitos;desde logo da estatocracia, que é o excesso da presença do Estado na vida de sua população, e de seu extremo, que é a anarquia, caracterizada pela total ausência do mesmo Estado. Se, como se diz, a virtude está no meio-termo, a Ciência Política tem como objetivo exatamente procurar o exato equilíbrio daquelas necessidades. Além da análise do Estado em si, como entidade ficta, em seus elementos constitutivos, merecerão a atenção necessária a análise da própria sociedade, em suas formas variadas de manifestação, além dos grupos de pressão, mormente quando se fala de um retorno ou revigoramento do corporativismo, sobretudo, quando se cuidou da revisão da Constituição brasileira de 1988, por força do disposto no art. 3º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (em 1993 e 1995/96). Quanto à formação do Estado, merecerão destaque, ao longo dos estudos de Teoria Geral do Estado, os princípios das correntes racionalistas, aqui com ênfase no chamado “contratualismo”, as naturalistas, com enfoque especial da nação como fonte de soberania e legitimação do próprio Estado, e as correntes ecléticas, notadamente a que revela a tridimensionalidade do Direito, tendo por fonte subjetiva última a própria sociedade política (Direito = fato + valor + norma). TEORIA GERAL DO ESTADO: TERMINOLOGIA, OBJETO E CONCEITO2 2.1.TEORIA GERAL DO ESTADO (TGE) Como bem asseverado pelo prof. Aderson de Menezes, a Teoria Geral do Estado “é uma ciência nova a estudar assunto velho, porque, visando ao conhecimento completo da realidade estatal, ela versa tema cogitado desde a Antiguidade clássica, muito embora faça suas pesquisas valendo-se de processos que lhe são inerentes e que lhe concedem plena legitimidade”.1 E, realmente, como se terá a oportunidade de verificar em capítulos posteriores, embora os antigos não tivessem uma noção clara da “entidade” Estado, toda a vida social era comandada por um núcleo de poder, ainda que difuso, como nas comunidades mais remotas, e que também se constituía em fonte das normas comportamentais. Assim, se em determinada fase da vida social primitiva, por exemplo, escasseava a caça para a sobrevivência do grupo humano, aos caçadores se atribuía a prerrogativa de comandar os destinos da tribo e ditar as normas de conduta de seus membros. Se, por outro lado, abundavam os meios de sobrevivência, notadamente após a conquista de métodos de cultivar a terra, transformando-se, por conseguinte, os antigos grupos nômades, sempre em busca da caça, pesca e colheitas extrativistas não resultantes de plantações regulares, em tribos mais ou menos permanentes, o núcleo do mando social era outorgado ao mais velho membro do grupo, ou então a um grupo, ou ainda a um grupo dos mais idosos, porque mais experientes e sábios. Tratava-se, todavia, em qualquer das duas hipóteses aventadas, de uma sociedade política extremamente mutável, instável e, portanto, com “poder despersonalizado”, como demonstra Georges Burdeau.2 Ou seja, fase histórica das sociedades primitivas em que ele se encontrava difuso na massa dos indivíduos que as compunham: “Nas tribos arcaicas, ele (poder) se encontra difuso na massa dos indivíduos submissa a um formalismo rigoroso que lhe impõem os costumes e as crenças.” “A não ser em tempo de crise”, reforça Edward McNall Burns,3 “o Estado não existe na grande maioria das sociedades primitivas – fato que indica, provavelmente, ter sido a sua gênese bastante tardia na fase da cultura neolítica; a maior parte das comunidades selvagens não tem um sistema permanente de tribunais, nem força policial, nem um governo com poderes coercivos; o costume toma o lugar da lei, a vendeta é a única maneira de ministrar justiça e quase não existe o conceito de crime contra a comunidade; os crimes do homem primitivo são na sua maioria ‘agravos’ ou delitos privados em cuja punição nenhuma autoridade pública toma parte; a aceitação do ‘wergeld’ ou preço do sangue é uma prática comum e até atos como o assassínio são considerados simples danos causados à família da vítima”. E, mais adiante, acrescenta: “A origem do Estado encontra-se provavelmente numa variedade de fatores; há fundamento, por certo, na suposição de que o desenvolvimento da agricultura tenha sido um dos mais importantes; em certas regiões, como o vale do Nilo, onde uma população numerosa vivia da cultura intensiva de uma área limitada de solo fértil, um alto grau de organização social era absolutamente indispensável; os antigos costumes não seriam suficientes para definir os direitos e deveres numa sociedade como essa, com o seu elevado padrão de vida, a sua distribuição desigual da riqueza e o vasto campo que oferecia ao embate dos interesses pessoais; novas medidas de controle social se tornariam necessárias, medidas que dificilmente poderiam ser postas em prática por outro meio que não a instituição de um governo revestido de autoridade soberana e a submissão a esse governo; em outras palavras, pela criação de um Estado.”4 2.2.O ESTADO NA ANTIGUIDADE CLÁSSICA É na Grécia que vamos encontrar as primeiras manifestações e preocupações com o Estado, mas assim mesmo confundido pelo pequeno universo representado pela polis grega. Ou seja, o fenômeno decisório, de mando e aplicação das normas de conduta, era circunscrito aos muros de cada cidade-estado, cada qual com suas peculiaridades próprias. Assim, por exemplo, a culta Atenas, sobretudo na fase áurea de sua história, despontava como o arauto da democracia, refletida nas ágoras, enquanto Esparta, voltada quase exclusivamente para a guerra, demonstrava formas de governo autocráticas. De qualquer forma, aí vamos encontrar Platão, a destacar a ideia superior de sociedade política, ou seja, a sublimação do poder, enfatizando que “os males não cessarão para os humanos, antes que a raça dos puros e autênticos filósofos chegue ao poder”, visto que, para ele, a sociedade ideal seria governada pelos “filósofos”, os quais possuíam “alma racional”. “Os guardiães”, soldados portadores de “alma irascível”, e os “produtores”, dotados de “alma concupiscível”, não teriam qualquer afinidade com o exercício do poder político, exatamente porque tenderiam, respectivamente, a romper sempre a paz desejada, e a colocar seus interesses e objetivos de lucro acima dos interesses da comunidade.5 Aristóteles, ainda mais incisivo e objetivo, chamou a atenção de todos, em a clássica obra Política, para as formas de governo ideais e, sobretudo, para as que considerava “puras”, em contraposição às “impuras”6. Ou seja, os que detêm o poder político devem sempre colocar suas paixões e interesses pessoais abaixo dos da sociedade que governam, sob pena de exercitarem uma forma impura de governo. E isto vale igualmente para os governos de um só (“monarquia”, em contraposição a “tirania”), de uma minoria (“aristocracia”, forma pura de “oligarquia”) ou mesmo de uma maioria (“democracia”, que é o antônimo de “demagogia”). Em Roma, a ideia da sociedade política, sem ainda uma visão muito clara principalmente da institucionalização do poder, como se terá oportunidade de salientar em ponto oportuno deste manual, era bastante semelhante à concebida pelos gregos. E, com efeito, também ali não se tinha uma concepção clara de uma sociedade política mais abrangente e complexa, limitando-se os romanos a caracterizá--la como a civitas, ou cidade de Roma, posteriormente estendido o termo para designar as províncias próximas e mesmo as remotas, conquistadas. Tanto assim, que, pelo Jus Gentium, passou-se a estender a cidadania romana também às populações de terras distantes conquistadas, demonstrando--se claramente a noção de Estado, com seus elementos constitutivos básicos: território, população e direito, ao qual se acopla necessariamente o poder. Os célebres Políbio (em sua obra História Universal) e Cícero (Da República e das Leis), a seu turno, dão destaque às concepções religiosas e jurídicas que sempre impregnaram o Estado romano. Ou seja, se observados os períodos da realeza, república e império, pode-se desde logoé imprescindível que ao brasileiro tenha sido negado o direito pelo fato de ser estrangeiro; aí, sim, para exercer tal direito que lhe foi negado ou que vem sendo negado aos estrangeiros em geral, o brasileiro pode naturalizar-se; mas deve exercer o direito que pretendia”. 9.2.2.O Território do Estado Conforme já deixamos claro ao estudarmos a nação, enquanto o território, embora desejável que exista, não é elemento essencial para sua caracterização como tal, para a do Estado, ele é. Com efeito, não se pode falar na existência de uma dada sociedade política independente e autodeterminante, sem que soberanamente disponha de uma dada porção de terra para o desenvolvimento de suas atividades e consecução do bem comum de sua população. Para Donato Donati,6 o território não seria um elemento constitutivo essencial do Estado, mas condição de sua existência. E dá como exemplo do que procura transmitir a questão das demoradas guerras entre gregos e persas, quando, não obstante esses últimos houvessem tomado de assalto o território propriamente dito daqueles, refugiaram-se em sua enorme frota de barcos, mantendo íntegra sua soberania; ou, então, a questão da invasão da França pela Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial, com subsistência do Estado francês no exílio. Já para Alessandro Groppali,7 somente a perda total, ou de grande parte do território de um determinado Estado, acarretaria seu desaparecimento, ou então a tomada prolongada do mesmo território. De nossa parte, entendemos ser o território parte imprescindível para a existência do próprio Estado. Senão por razões de lógica evidente, pela simples circunstância de que sempre haverá a nação, com seus vínculos sociológicos e jurídicos, mas não o Estado, com seus vínculos marcadamente políticos (além de jurídicos). Desta forma, podemos dizer que, como elemento material e essencial para a própria existência do Estado, o território compõe-se das seguintes partes: (a) solo, (b) subsolo, (c) espaço aéreo, (d) embaixadas, (e) navios e aviões militares em qualquer parte que se encontrem, (f) navios e aviões de uso comercial ou civil em sobrevoo ou navegação de território não pertencente a outros Estados e, finalmente, (g) o mar territorial, ao qual se reservará item destacado, dada a sua manifesta importância no contexto do território do Estado. Vejamos, então, de que maneira se pode conceituar as diversas parcelas que constituem o território de determinado Estado. (a)Solo é a porção de terras visíveis e delimitadas pelas fronteiras internacionais e pelo mar. (b)Subsolo, como evidente, é a porção de terras que, subjacente ao solo, tem a mesma configuração do solo. No caso do Brasil, por exemplo, ocupa, em relação aos 148.905.400 km2 que constituem a parte da terra firme do globo, mais de 8.500.000 km2, sendo ainda certo que os rios e mares constituem 361.044.600 km2 da Terra. (c)O espaço aéreo de um determinado Estado é a coluna de ar imaginária que acompanha o contorno do território propriamente terrestre, acrescido do mar territorial. Referida configuração do espaço aéreo tem importância evidente em termo de soberania do Estado respectivo, uma vez que é inviolável em relação ao sobrevoo de aeronaves estrangeiras, que somente poderão fazê-lo mediante expressa autorização das autoridades que controlam o tráfego aéreo. Em 1982, por exemplo, a Inglaterra, que estava em conflito com a Argentina com relação à soberania sobre as ilhas Malvinas ou Falklands, no extremo sul da América do Sul, teve autorização para pousar um avião bombardeiro Volcan, armado, para reabastecimento, mas foi obrigada a desarmá-lo para seguir viagem. (d)As embaixadas, como se sabe, são as sedes de representação diplomática dos diversos Estados com relação a outros e, portanto, são consideradas como pequena parcela daqueles em território estrangeiro e, por conseguinte, invioláveis. Tanto isso é verdade que, no caso de graves conturbações no Estado em que se acham instaladas embaixadas de outros países, essas merecem proteção especial contra possíveis violações, e não raro hospedam asilados políticos. Com relação aos consulados, a doutrina do Direito Internacional Público não é unânime: boa parte dela entende que também constituem parte integrante do Estado representado, enquanto outra os considera meros escritórios de representação, sobretudo de cunho econômico e cultural apenas. Tanto assim que, argumenta-se, muitos Estados sequer enviam cônsules de carreira diplomática, mas economistas, funcionários graduados, ou mesmo nomeiam cônsules honorários para representá-los, mesmo entre nacionais do Estado anfitrião. (e)Navios e aviões militares em qualquer parte que se encontrem igualmente são considerados parte integrante do Estado sob cuja bandeira transitem. Aqui, como no item seguinte, referidas circunstâncias serão importantes para o estudo da extraterritorialidade da lei penal. Assim, consoante dispõe o art. 7o, II, c, do Código Penal, “ficam sujeitos à lei brasileira, embora cometidos no estrangeiro, os crimes praticados em aeronaves ou embarcações brasileiras, mercantes ou de propriedade privada, quando em território estrangeiro e aí não sejam julgados”. (f)Isto quer dizer, então, que, quanto aos navios e aviões de uso comercial ou civil em navegação ou sobrevoo, respectivamente, de mar internacional, também são considerados parte integrante do território do Estado cuja bandeira ostentem. O que se quer dizer é o seguinte: quando se trata de aeronaves militares ou belonaves, sempre serão consideradas partes integrantes do território do Estado cuja bandeira ostentem; do que se pode extrair que um crime praticado a bordo de um dos referidos veículos, em qualquer parte do globo terrestre, ainda que fundeado o navio em certo porto estrangeiro, ou o avião estacionado em aeroporto também de outro Estado, será apreciado de acordo com as leis do país proprietário dos mesmos. Isto porque, como já asseverado, a sua soberania se estende àquelas partes integrantes de seu território. Já com relação a aeronaves ou navios de uso comercial ou civil, a aplicação de lei do Estado cuja bandeira ostentem somente se dará caso os crimes não sejam julgados pelas normas do outro Estado em cujo território venham a ocorrer. A regra geral, nesse caso, é a aplicação das leis do país onde ocorreu o fato. De qualquer forma, tais questões, sem dúvida palpitantes, e cada vez com frequência maior de ocorrência, sobretudo em razão do aumento do fluxo emigratório e imigratório, além do deplorável trá-fico internacional de drogas, serão melhor estudadas certamente no âmbito dos Direitos Penal, Processual e Internacional Público. (g)A questão do mar territorial, como já enunciada, é sem dúvida a mais polêmica quando se cuida de estudá-lo como elemento constitutivo do território de dado Estado. E, com efeito, antigamente se conceituava o mar territorial como a extensão da porção terrestre do território, até o limite de alcance da artilharia de costa, quando se passou a utilizar tal artefato para a defesa daquele mesmo território. Assim, o mar territorial era entendido como a faixa litorânea até “onde alcançasse o poder das armas” (“usque armorum potestas”). Como a arte da balística inicialmente limitava o alcance do projétil disparado da costa a três milhas marítimas, esse passou a ser, então, e permaneceu durante longo tempo, o limite do mar territorial de cada Estado. Em seguida, ele foi estendido para 12 milhas marítimas, exatamente porque se convencionou que tal seria mais adequado em decorrência do aumento da potência da artilharia de costa. É evidente que, na atualidade, na qual se observam artefatos nucleares conduzidos por veículos supersônicos e computadorizados, aquela referência de distância passou a nada significar, mormente se considerando que o disparo de um foguete de longo alcance, ou míssil, acarretará o atingimento de alvos situados em outros Estados a milhares de quilômetros, por exemplo. Da importância estratégica, portanto, passou-se a estabelecer os limites do mar territorialem face da importância econômica de seu potencial mineral e biológico. Em 1971, por exemplo, o Brasil e outros países em desenvolvimento trataram de assegurar da melhor forma possível a soberania sobre seu mar territorial, fixando-o unilateralmente em 200 milhas, no que foram pronta e veementemente contestados pelos países desenvolvidos, como Estados Unidos e Japão. Presentemente, a questão está disciplinada entre nós pela Lei nº 8.617, de 4 de janeiro de 1993, que dispõe sobre o mar territorial, a zona contígua, a zona econômica exclusiva e a plataforma continental. Assim, consoante determina o art. 1o da referida lei, “o mar territorial brasileiro compreende uma faixa de doze milhas marítimas de largura, medidas a partir da linha de baixa-mar do litoral continental e insular brasileiros, tal como indicada nas cartas náuticas de grande escala, reconhecidas oficialmente no Brasil”. Seu art. 2o diz ainda que “a soberania do Brasil estende-se ao mar territorial, ao espaço aéreo sobrejacente, bem como ao seu leito e subsolo”. Importante também citar-se o § 3o, do art. 3o, segundo o qual, e conforme já estudado, “os navios estrangeiros no mar territorial brasileiro estarão sujeitos aos regulamentos estabelecidos pelo Governo brasileiro”. Já a chamada “zona contígua” é conceituada pela Lei nº 8.617/93 como sendo “faixa que se estende das doze às vinte e quatro milhas marítimas, contadas a partir das linhas de base que servem para medir a largura do mar territorial” (art. 4o). Tal zona contígua deve ser objeto de fiscalização por parte do Brasil para evitar as infrações às leis e aos regulamentos aduaneiros, fiscais, de imigração ou sanitários, no seu território ou no seu mar territorial, bem como para reprimir as infrações às leis e aos regulamentos, no seu território ou no seu mar territorial. A lei fala, ainda, como visto, de uma “zona econômica exclusiva”, assim definida, pelo seu art. 6o, como sendo “uma faixa que se estende das doze às duzentas milhas marítimas, contadas a partir das linhas de base que servem para medir a largura do mar territorial”. E o art. 7o, a seguir citado na íntegra, dada a sua importância para discussão deste tema, diz o seguinte: “Art. 7o – Na zona econômica exclusiva, o Brasil tem direitos de soberania para fins de exploração e aproveitamento, conservação e gestão dos recursos naturais, vivos ou não vivos, das águas sobrejacentes ao leito do mar, do leito do mar, e seu subsolo, e no que se refere a outras atividades com vistas à exploração e ao aproveitamento da zona para fins econômicos.” ........................................................................................................ E prosseguindo a lei sobre a definição de mar territorial, dispõe em seus arts. 8º a 10 o seguinte: “Art. 8o – Na zona econômica, o Brasil, no exercício de sua jurisdição, tem o direito exclusivo de regulamentar a investigação científica marinha, a proteção e preservação do meio marinho, bem como a construção, operação e uso de todos os tipos de ilhas artificiais, instalações e estruturas. Parágrafo único – A investigação científica marinha na zona econômica exclusiva só poderá ser conduzida por outros Estados com o consentimento prévio do Governo brasileiro, nos termos da legislação em vigor que regula a matéria.” “Art. 9o – A realização por outros Estados, na zona econômica exclusiva, de exercício ou manobras militares, em particular as que impliquem o uso de armas ou explosivos, somente poderá ocorrer com o consentimento do Governo brasileiro.” “Art. 10 – É reconhecido a todos os Estados o gozo, na zona econômica exclusiva, das liberdades de navegação e sobrevoo, bem como de outros usos do mar internacionalmente lícitos, relacionados com as referidas liberdades, tais como os ligados à operação de navios e aeronaves.” ...................................................................................................... Finalmente, cuida a referida lei da “plataforma continental”, que “compreende o leito e o subsolo das áreas submarinas que se estendam além do seu mar territorial em toda a extensão do prolongamento natural de seu território terrestre, até o bordo exterior da margem continental, ou até uma distância de duzentas milhas marítimas das linhas de base, a partir das quais se mede a largura do mar territorial, nos casos em que o bordo exterior da margem continental não atinja essa distância” (art. 11). É importante ainda salientar-se que a delimitação da plataforma continental, onde certamente se concentra a maior parte dos recursos exploráveis, quer do ponto de vista econômico, quer científico, subordina-se aos critérios estabelecidos no art. 76 da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, celebrada em Montego Bay, em 10 de dezembro de 1982. Estabelecem ainda os arts. 12 e 13 o seguinte a respeito da questão: “Art. 12 – O Brasil exerce direitos de soberania sobre a plataforma continental, para efeitos de exploração e aproveitamento dos seus recursos naturais. Parágrafo único – Os recursos naturais a que se refere o caput são os recursos minerais e outros recursos não vivos do leito do mar e subsolo, bem como os organismos vivos pertencentes às espécies sedentárias, isto é, aquelas que, no período de captura, estão imóveis no leito do mar ou no seu subsolo, ou que só podem mover-se em constante contato físico com esse leito ou subsolo.” “Art. 13 – Na plataforma continental, o Brasil, no exercício de sua jurisdição, tem o direito exclusivo de regulamentar a investigação científica marinha, a proteção e preservação do meio marinho, bem como a construção, operação e o uso de todos os tipos de ilhas artificiais, instalações e estruturas.” O art. 14 dispõe ainda que “é reconhecido a todos os Estados o direito de colocar cabos e dutos na plataforma continental”. Vê-se, em conclusão, que a questão do mar territorial no mundo moderno refere-se muito mais aos interesses econômicos dos Estados ribeirinhos, do que propriamente à sua segurança contra possíveis agressões bélicas. E os países em desenvolvimento certamente devem assegurar sua soberania sobre tão importante parcela de seu território, com vistas ao atingimento de seus fins relativos ao bem comum. Apenas para ficarmos com a exploração do petróleo entre nós, sabe-se que as maiores reservas desse produto estão exatamente na plataforma continental, tanto assim que o País desenvolveu tecnologia própria para sua prospecção em plataformas flutuantes em águas profundas, notadamente na baía de Campos e litoral do Nordeste. Conforme noticiou o jornal O Estado de S. Paulo,8 “o país que não cumprir as determinações da Convenção” (a realizada em Montego Bay, em 1982) “não terá direito de explorar o seu mar territorial quando o acordo entrar em vigor; isto significa que não poderá, por exemplo, protestar quando seu território for explorado por embarcações de outras nações signatárias do tratado; a vigência da Convenção está dependendo da ratificação por parte de cinco países; no Brasil, o tratado foi ratificado no Congresso e o Presidente Itamar Franco sancionou a lei que define os conceitos do mar territorial do Brasil”. Acrescenta, entretanto, que “falta ainda o cadastramento oficial e científico da fauna marítima”. E nesse sentido é que foi destinado o navio Riobaldo que, em abril de 1993, passou a percorrer a costa nordestina, e com prazo previsto de seis meses, para cadastrar a fauna que vive no mar territorial brasileiro. E, com efeito, consoante nos dá conta o almirante de esquadra Roberto de Guimarães Carvalho, comandante da Marinha do Brasil: “A convenção permitiu, ainda, que os Estados costeiros apresentassem à Comissão de Limites da ONU os seus pleitos sobre o prolongamento da plataforma continental (PC) que excedesse as 200 milhas da sua ZEE (zona econômica exclusiva), até um limite de 350 milhas, a partir da linha da costa. Nesse prolongamento, o Estado costeiro tem direito à exploração dos recursos do solo e subsolo marinhos, mas não dos recursos vivos da camada líquida. Coroandoum grande esforço nacional, com a participação da Marinha, da comunidade científica e da Petrobras, o Brasil apresentou, em setembro de 2004, a sua proposta de prolongamento da PC àquela comissão da ONU. Isso representará, caso o nosso pleito seja aceito, a incorporação de uma área de cerca de 900 mil km2 à jurisdição nacional. Em outras palavras, a nossa última fronteira está sendo traçada no mar.”9 9.3.ELEMENTOS FORMAIS: ORDENAMENTO JURÍDICO E GOVERNO SOBERANO 9.3.1.Ordenamento Jurídico Como já se pode verificar pela própria conceituação de Estado, é ele o senhor absoluto de sua ordem jurídica, à medida que, por intermédio dos seus órgãos competentes, cria, executa e aplica seu ordenamento jurídico, visando ao bem comum. E nesse mister é que podemos dizer que o Estado positiva, isto é, revela ao corpo social as normas que cria, dotando-as de sanção, cujo objetivo imediato é o seu efetivo cumprimento, na hipótese de violação, e mediato a manutenção da ordem para melhor consecução de seus fins. O poder para assim atuar perante o corpo social denomina-se soberania, que por hora deve ser conceituada como forma suprema de poder de que se reveste a sociedade política. Ordenamento jurídico, porém, não deve ser confundido com uma só norma, como, por exemplo, a Constituição de um determinado Estado, mas, sim, o conjunto de normas por ele ditadas e de variedade complexa e abrangente. Por isso é que, ao tratar exatamente do ordenamento jurídico como a universalização das normas jurídicas positivas pelo Estado, Norberto Bobbio10 ensina que, “na realidade, as normas jurídicas nunca existem isoladamente, mas sempre em um contexto de normas com relações particulares entre si (e estas relações serão em grande parte objeto de nossa análise); esse contexto de normas costuma ser chamado de ‘ordenamento’; e será bom observarmos, desde já, que a palavra “direito”, entre seus vários sentidos, tem também o de ‘ordenamento jurídico’, por exemplo, nas expressões ‘Direito romano’, ‘Direito canônico’, ‘Direito italiano’ (‘Direito brasileiro’) etc.” Observa-se, por conseguinte, que as normas estabelecidas pelo Estado visam à garantia da própria ordem social e são, pois, comportamentais por excelência, já que determinam uma maneira de ser ou agir, ou então vedam outra maneira de ser ou agir. A reação à não conformidade com o que se quer, ou então à conformidade (por exemplo, nas normas de caráter penal, em que em verdade há a definição de uma conduta típica, não desejada, mas à qual o ser humano imputável pode conformar-se dando ensejo à pretensão de punir-se), chama-se sanção. Há outras normas, todavia, que não se referem propriamente a um comportamento desejado, mas, sim, à própria estruturação da sociedade política, normas essas que podemos chamar de normas constitutivas ou estruturais. Desta forma, pode-se definir ordenamento jurídico como sendo o conjunto das normas constitutivas e comportamentais criadas pelo Estado, mediante processo adequado,11 e por meio de órgãos aos quais a Constituição confere poderes para tanto. Nesse ponto é que o ordenamento jurídico do Estado diferencia-se do ordenamento jurídico de qualquer outro tipo de sociedade, uma vez que, como já visto, qualquer sociedade apresenta como elemento formal um conjunto de normas que a estrutura e estabelece regras comportamentais. Só que, enquanto o ordenamento jurídico estatal é condicionante e abrangente, o das sociedades em geral é condicionado e restrito, tanto aos membros de dada sociedade, como à sua base física. Ou seja, inclusive os ordenamentos jurídicos (por exemplo, os estatutos ou contratos sociais constitutivos de dada sociedade e seus regimentos internos) ficam condicionados ao do Estado, que poderá estabelecer limites à sua própria constituição como pessoas jurídicas. Já dissemos linhas atrás ser o Direito Positivo aquele que é revelado, posto, pelo Estado, por intermédio de seus órgãos competentes. Direito objetivo, a seu turno, vem a ser o conjunto de todas as normas constitutivas e comportamentais em geral, quer oriundas do Estado, quer das sociedades comuns ou contingentes. Outra noção que será certamente melhor analisada quando forem estudados pontos relativos à resistência aos atos do poder público (garantias individuais) ou em Direito Processual Civil (a ação como a pretensão dirigida contra o Estado-juiz, para que venha a dizer do direito num caso concreto de norma que se alega violada por um determinado interessado) é a relativa ao chamado Direito subjetivo. Rezava o art. 75 do Código Civil de 1916, didaticamente, por exemplo, que “a todo direito corresponde uma ação, que o assegura”. Embora o novo Código Civil não tenha um dispositivo correspondente, no Livro III (“Dos Fatos Jurídicos”), Título I (“Do Negócio Jurídico”), Capítulo I (“Disposições Gerais”), fica evidente que o chamado Direito Material ou Objetivo pertencente a alguém, caso venha a ser violado ou ameaçado por outrem, acarreta àquele o direito de fazê-lo valer junto ao órgão do Judiciário competente. Além disso, o art. 189 do Código Civil vigente, sob a rubrica de “Disposições Gerais” sobre a prescrição, estabelece, em outras palavras, mas com o mesmo sentido que: “violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206”. Ora, pretensão essa que se traduz, positivamente, e dentro de determinado prazo, na realização do citado direito subjetivo, e materializada mediante a ação judicial. Ora, isto quer dizer que, em suma, se alguém é credor de outrem mediante a emissão de um título de crédito representativo do débito, supõe-se – e assim o deseja a norma jurídica – que esse débito vá ser satisfeito na forma, lugar e valor convencionados. Supondo-se o contrário, porém, isto é, que no vencimento não haja o pronto pagamento, tal situação faz nascer para o credor um direito de haver forçadamente o mesmo crédito, sobre o qual recai seu legítimo interesse de satisfação. Ora, é a esse Direito que se dá o nome de Direito subjetivo, ou seja, a faculdade que a lei confere a alguém para fazer valer um direito ou interesse de que é titular. Outra questão que merece ser analisada nesse aspecto é a concernente à variação do Direito Positivo no tempo e no espaço, ou seja, temática que se liga às fontes do Direito. Tais fontes podem ser subjetivas ou objetivas. Entende-se por fontes subjetivas os órgãos, entes ou comunidades de que promanam. Os órgãos da função legislativa do Estado, por exemplo, são as fontes subjetivas do Direito Positivo, mas também o serão as comunidades, no que tange ao Direito Costumeiro ou Consuetudinário, ou então os próprios representantes da função executiva do Estado, como se terá ocasião de salientar mais adiante, por exceção (decretos-leis da Constituição brasileira de 1969, e as medidas provisórias da de 1988). Já por fontes objetivas do Direito entender-se-ão as diversas formas de manifestação das normas. Por exemplo, ainda, poderíamos dizer, então, que as leis são fontes objetivas mais comuns, eis que preceitos genéricos, atributivos, coercitivos e bilaterais, emanados dos órgãos a que a Constituição confere poderes para tanto. Os antigos decretos-leis e as citadas medidas provisórias, ao contrário, denotam sua origem, executiva, embora também sejam, a rigor, preceitos genéricos, atributivos, coercitivos e bilaterais. Conforme bem salientado pelo prof. Salvetti Netto,12 enquanto em Roma eram fontes objetivas de Direito os costumes, as constituições imperiais, leis, plebiscitos, éditos pretorianos, senatos-consultos, doutrina e jurisprudência, teríamos, como fontes subjetivas, as assembleias curiais e centuriais (a que tinham acesso apenas os detentores da cidadania romana – status civitatis – e pertencentes à aristocracia), as assembleias populares (constituídas pelos tribunos da plebe ou edis curuis), os pretores (juízes da época que estabeleciam as normas processuais por éditos, ao estabelecerem as condições das contendas judiciais entre as diversas partes),o Senado, os juristas e glosadores na interpretação das leis e os juízes. De acordo com o liberalismo contratualista, porém, a única fonte subjetiva válida é o povo, eis que manifesta sua volonté générale, em contraposição ao hermetismo da monarquia absolutista, pela qual o rei é totalmente desvinculado da lei (solutus legibus), mesmo porque é ele a fonte subjetiva da própria lei (“rex supra legem, quia regem faciat legem”). Modernamente, todavia, embora o idealismo de Rousseau tenha prevalecido no tocante ao estabelecimento da democracia como processo único e legítimo, para que se elabore as normas de convivência, isto se faz não pelo povo diretamente, mas por intermédio de seus legítimos representantes. A almejada “democracia direta”, como se verá adiante, conforme idealizada ainda por Rousseau, seria impraticável, já que impossível a reunião de todos os integrantes de uma determinada comunidade para deliberar em praça pública sobre seus destinos. Em consequência disso, portanto, é que se pode dizer que as fontes subjetivas são aquelas definidas pela Constituição de um determinado Estado: Congresso Nacional, Assembleia Legislativa, Câmaras Municipais, sem falar-se no poder regulamentador dos órgãos da função executiva do Estado. 9.3.2.Governo e Soberania Governo nada mais é do que o conjunto dos órgãos do Estado que colocam em prática as deliberações dos órgãos legislativos. Ou seja, é a face visível do Estado, e expressão da sua própria soberania, enquanto poder supremo existente nos limites de seu território. Pode-se ainda conceituá-lo como a organização necessária para o exercício do poder político do Estado. Já soberania é a forma suprema de poder: é o poder incontestável e incontrastável que o Estado tem de, dentro de seu território e sobre uma população, criar, executar e aplicar o seu ordenamento jurídico visando ao bem comum. Muito se discute, outrossim, a respeito das fontes ou titularidade desse poder. Para alguns, seria Deus a fonte última e suprema da soberania. Os legistas, ilustres juristas contratados pelos reis absolutistas, justificavam os amplos poderes desses na qualidade de representantes da divindade sobre a Terra e, por conseguinte, legitimados a exercitarem poderes sem limites. Para os contratualistas, resta evidente que o poder supremo do Estado somente poderia pertencer ao povo. Outros ainda, como Sièyes,13 diziam que a nação, por refletir legitimamente os anseios da comunidade, é que seria a detentora da soberania. Já para Hans Kelsen,14 a ordem jurídica global é que seria a detentora da soberania. Parece-nos, todavia, que a teoria mais correta, e que leva em consideração os princípios da democracia representativa, seria a que dá como fonte última da soberania o poder constituinte, já que instituidor do Estado, e da ordem jurídica como um todo. É evidente, por outro lado, que tal somente é possível pela representatividade popular, mediante escolha dos representantes do povo. 9.4.ELEMENTO FINAL: O BEM COMUM Não se admite a existência do Estado sem um fim específico: o bem comum. Desde logo se pode constatar que a existência da sociedade política com território e população definidos, governo soberano e normas comportamentais não se justifica como um fim em si mesma, mas, sim, para que se alcance o bem-estar da mesma população. Por isso é que podemos conceituar bem comum como a realização global do ser humano, quer do ponto de vista biológico, quer do psíquico, e à sua faixa mais carente, em especial, condições de superação de sua insuficiência e necessidades de cunho educacional, de saúde, saneamento básico, lazer etc.). Em conclusão, portanto, podemos dizer que o Estado realiza o bem comum à medida que mantém a segurança interna e externa de uma população (forças, policiais e armadas, em última análise), constrói o Estado de direito (pela aplicação efetiva das normas jurídicas e respeito aos direitos e garantias individuais) e atende ao bem-estar de todos. AS FORMAS DE ESTADO E O FEDERALISMO ATUAL10 10.1.CONCEITO DE FORMAS DE ESTADO Por formas de governo, que serão objeto de outro capítulo, entende-se as maneiras pelas quais o Estado se organiza para exercer o poder político (isto é, “república” e “monarquia”). Regimes ou sistemas de governo, por outro lado, são classificações de governos de acordo com o relacionamento que mantenham entre si os órgãos que exercem funções legislativas e executivas (daí “regimes de assembleia”, “parlamentarismo” e “presidencialismo”). Formas de Estado, por fim, e de que cuidaremos neste passo, são as maneiras pelas quais se classificam os Estados, de acordo com o relacionamento mantido entre seus elementos constitutivos (território, governo e ordenamento jurídico, principalmente). Vejamo-las, portanto, a seguir, com a ressalva desde logo de que não são as únicas e absolutas existentes no mundo contemporâneo, destacando-se-as em dois blocos: a) o do Estado Unitário, e b) o dos Estados Compostos (União Pessoal, União Real, Confederação e Federação de Estados). 10.2.ESTADO UNITÁRIO O Estado Unitário caracteriza-se pela unicidade de poder, ou seja, todo o poder político emana de uma só fonte para todo o território do mesmo, inexistindo descentralização política. Conforme acentuado por Darci Azambuja,1 “o tipo puro de Estado simples é aquele em que somente existe um Poder Legislativo, um Poder Executivo e um Poder Judiciário, todos centrais, com sede na capital; todas as autoridades executivas ou judiciárias que existem no território são delegações do Poder Central, tiram dele sua força; é ele que as nomeia e lhes fixa as atribuições; o Poder Legislativo de um Estado simples é único, nenhum outro órgão existindo com atribuições de fazer leis nesta ou naquela parte do território”. “Na realidade, porém”, complementa Aderson de Menezes,2 “as coisas são mais complexas; os Estados simples são divididos em partes, que se denominam municípios, comunas, departamentos, províncias etc., nas quais há geralmente uma autoridade executiva eleita pelos habitantes dessas regiões e também conselhos, câmaras etc., que são pequenos poderes legislativos com a função de elaborar certas leis de aplicação local; apesar disso, essas autoridades locais continuam como delegações dos órgãos centrais, que as controlam e fiscalizam; o Poder Central tem atribuições mesmo para suprimir aquelas circunscrições, aumentar ou diminuir a sua extensão e competência; em todo território, enfim, só há um governo estatal, que dirige toda a vida política e administrativa”. Pinto Ferreira3 sintetiza a temática salientando que existe a unicidade de um poder centralizado,4 mas com certa autonomia regional. Exemplos: Itália, França, Espanha, Portugal etc. 10.3.FORMAS COMPOSTAS DE ESTADOS 10.3.1.União Pessoal de Estados Essa forma de Estado vem a ser a junção de dois ou mais Estados em torno da figura de um monarca ou casa dinástica, mantendo cada um deles, porém, sua própria ordem jurídica. Foi o que ocorreu entre Portugal e Espanha, de 1580 a 1640, por questões dinásticas e falecimento do rei D. Sebastião, na batalha de Alcácer-Quibir, no norte da África (Marrocos). Como não havia o jovem rei deixado descendentes, sucedeu-o seu tio--avô, o Cardeal D. Henrique, à época já com 66 anos de idade, e que logo veio a falecer, abrindo-se nova discussão sobre a sucessão. Firmou-se-a, por fim, na pessoa do rei espanhol Felipe II, estabelecendo--se, desta forma, a união entre os dois reinos. Relata-nos Hélio Vianna5 que, “realizada, afinal, a união das monarquias peninsulares, na opinião de Varnhagen, a metrópole, vencida pela astúcia de Felipe II, e pelo apoio de uma nobreza egoísta e pouco patriótica, sujeitou--se a este rei, apresentando mui pouca resistência, e nas Cortes de Tomar se resolveram as cláusulas da anexação; Portugal, aclamando o dito rei, seguiria como Estado independente, governando-se por suas próprias leis, publicadas em português, e usando nelas o soberano simplesmente do ditado dos reis portugueses; no Reino e colônias, serviriam os cargos do Estadounicamente os filhos delas e deles, e só portugueses poderiam pela mesma forma ser delegados imediatos do soberano, quando não cometesse o cargo a príncipes ou princesas de sangue”. 10.3.2.União Real de Estados Trata-se já aí da junção de dois ou mais Estados soberanos de forma efetiva, ou seja, cada qual perdendo as respectivas soberanias, ou então pela subsistência de apenas um deles, à cuja soberania submetem-se os demais. O caso clássico mencionado por todos os autores de Teoria do Estado ao cuidarem do assunto é o do Império Austro-Húngaro, dilacerado após a derrota germânica na Primeira Guerra Mundial. Geralmente, a junção mencionada procede-se de forma violenta, mediante guerras de conquistas. O propalado Terceiro Reich de Hitler, concebido para durar “1.000 anos”, foi sendo formado pelo território original da Alemanha, ao qual se juntou o da Áustria, pelo processo denominado “Anschluss”, e sob o pretexto de que ali viviam povos de origem e tradições germânicas, seguindo-se a conquista da Tchecoslováquia, Alsácia-Lorena, França etc. 10.3.3.Confederação de Estados Confederação de Estados consiste na junção de dois ou mais deles mediante um tratado, pacto ou convenção, e com vistas à obtenção de um determinado resultado, admitindo-se a secessão, uma vez atingido o objetivo comum visado. Trata-se, portanto, de uma união efêmera, porque admissível a secessão, ao contrário do que ocorre na federação. Exemplos de confederações: a Confederação de Delos na Antiguidade, ou seja, a união das cidades-estados gregas com vistas a combaterem o inimigo comum persa; a Confederação Helvética do século XIII, que propiciou luta permanente e eficaz contra a vizinha Áustria. Os próprios Estados Unidos da América, pelo menos de 1776, ao ensejo da declaração de sua independência da Grã-Bretanha, até setembro de 1787, viveram sob a configuração de uma verdadeira confederação, mesmo porque as antigas 13 colônias consideravam-se Estados novos e independentes. O objetivo comum era, obviamente, a derrota e expulsão definitiva dos ingleses do novo país. Ainda nos Estados Unidos da América, ficou patenteada a rivalidade deles com os proclamados “Estados Confederados da América”, tão logo o presidente Abraham Lincoln tomou posse, disposto a implementar a libertação dos escravos negros e a reformular a política econômica do país, que apresentava enorme contraste entre o Norte industrializado e o Sul agrícola, mas com sério problema social devido à mão de obra escrava. É ainda pressuposto das confederações, por certo, a manutenção da soberania de cada um dos Estados confederados, e até a eventual secessão. 10.3.4.Federação de Estados Federação é a união permanente e indissolúvel de Estados autônomos, mas não soberanos, sob a égide de uma Constituição, sendo certo que, entre eles, já há uma repartição interna de atribuições governamentais, sendo-lhe vedada, porém, a secessão.6 Referida forma de Estado, adotada por diversos países, como o nosso próprio, Estados Unidos da América, Argentina, Venezuela, México, Austrália, Canadá etc., foi engendrada pelos norte-americanos, como maneira de manter a integridade de seu território. E, com efeito, ao ensejo da realização da famosa Convenção de Filadélfia, de 1787, foram votados pelos seus ilustres delegados os princípios fundamentais que viessem a preservar o novo país, ameaçado de desintegração, tarefa árdua desde logo, uma vez que os antigos colonos das 13 unidades prezavam sua independência. Conforme esclarecido por Magruder e William A. Mac Lenghan,7 “a Convenção Constitucional de 1787 enfrentou muitos problemas de difícil solução; um deles era particularmente espinhoso: como seus participantes poderiam criar um novo governo nacional com real autoridade e, ao mesmo tempo, preservar os já existentes Estados?” E continua, expondo que “muito poucos, se é que os havia, dentre os patriarcas da nação, eram favoráveis à criação de um governo (unitário) fortemente centralizado de acordo com os padrões britânicos; sabiam eles o quão duramente as pessoas haviam lutado para preservarem seus direitos a um governo local e próprio, e sabiam o quanto as pessoas iriam desconfiar de um governo nacional fortemente centralizado; ainda assim, sabiam que tinham que criar um governo suficientemente poderoso para enfrentar as necessidades do país; a solução encontrada foi o federalismo”. A fragilidade da confederação, então, levou George Washington a bradar que “a confederação não passa de uma sombra sem substância, e o Congresso, de um corpo fútil”. Coube principalmente a Hamilton, Madison e Jay papel importante na defesa da nova forma de Estado, sobretudo mediante a publicação de entusiásticos artigos no jornal denominado exatamente O Federalista, no que eram contrariados por não menos ilustres e combativos adversários daquela, principalmente John Caldwell Calhoun, que advogava a causa da confederação, pois cada Estado teria ampla autonomia e liberdade para separar-se dela em caso de descontentamento ou grave crise política. Em 30 de março de 1789, finalmente, foi ratificada a convenção, e formou-se a Federação Americana.8-9 Caracteriza-se a federação, por conseguinte, pela coexistência de poderes de esferas diversas, e na qual se observa uma descentralização política e administrativa. Isto quer dizer que, no caso brasileiro, por exemplo, e conforme estatuído pela Constituição de 1988, art. 1º, a República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, sendo tais unidades componentes da União Federal autônomas, ou seja, capazes de gerirem seus próprios destinos político-administrativos, de acordo com as limitações ditadas pela referida União central. Traçando-se, porém, uma linha vertical, poderíamos ter a seguinte descentralização: Por outro lado, podemos também dizer que nas federações pressupõe-se a desconcentração do poder político, o que significa que em cada unidade federada, grosso modo, as funções governamentais tripartem-se em legislativas, executivas e judiciárias, o que nos leva a traçar a ilustração abaixo para demonstrá-la: Outra questão que merece detida análise diz respeito ao sistema de representação dos Estados-membros no concerto da União Federal. Conforme se viu, na verdade, os antigos Estados confederados originados das outrora 13 colônias britânicas da América do Norte, ao se congregarem na federação, perderam sua soberania, ganhando em troca apenas uma autonomia político-administrativa. Para compensar-se referida perda, foi engendrado um sistema de representação dos mencionados Estados-membros, ao lado da também imprescindível representação popular. Referida representação dos Estados-membros, com efeito, deu-se pela institucionalização do Senado, cujos membros, por conseguinte, embora eleitos pelo povo, não o representam propriamente – tarefa essa dos deputados ou representantes (representatives, nos Estados Unidos) – mas, sim, aqueles mesmos Estados-membros. Assim, enquanto o número de deputados é proporcional à população de cada Estado-membro na Federação, o de senadores geralmente, como no caso do Brasil e dos Estados Unidos, é fixo (três e dois para cada Estado federado, respectivamente). Esse critério de representatividade dos Estados federados no cenário da União Federal em número igual chama-se critério homogêneo de representação, independentemente de sua extensão territorial, importância econômica ou peso político, população etc. Entretanto, na antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), por exemplo, as 15 antigas repúblicas eram representadas no Soviete Supremo de acordo com os referidos fatores, ou seja, por números diferentes de delegados. A esse critério dá-se o nome de critério heterogêneo de representação. Como nas federações, como já salientado, há órbitas ou âmbitos diferentes no que tange à administração e autorregulamentação (União, Estados e Distrito Federal, Municípios), é mister que haja determinado critério com o objetivo de fixarem-se as respectivas competências.Ou seja, em decorrência da verticalização mencionada de esferas político--administrativas, é necessário que se fixem as competências de cada unidade, mesmo porque determinados assuntos podem apenas ser objeto de decisão pelos órgãos político-administrativos da União. Por exemplo, conforme disposto pelo art. 22, da Constituição brasileira de 1988, compete privativamente à União legislar sobre Direito Civil, Comercial, Penal, Processual, Eleitoral, Agrário, Marítimo, Aeronáutico, Espacial e do Trabalho etc. Outras matérias são de competência dos Estados-membros (arts. 25 a 28, da mesma Constituição), ou então dos Municípios (arts. 29 a 31). Mas há ainda competências concorrentes, conforme as matérias elencadas pelo art. 24 da Carta de 1988, competindo tanto à União, aos Estados, Distrito Federal e Municípios legislarem concorrentemente sobre, por exemplo, Direito Tributário, Financeiro, Penitenciário, Econômico e Urbanístico, orçamento, juntas comerciais, custas dos serviços forenses etc. Conhecem-se, basicamente, três critérios discriminadores de competência nas federações, a saber: (a)discriminação taxativa da União – neste caso, fixa-se à competência da União Federal, que é a síntese das unidades federadas, e de maneira bastante detalhada, restando então àquelas a chamada competência residual; é o caso do Brasil, por exemplo, ainda que mitigadamente, em face da ampliação das hipóteses de competência concorrente, dos Estados Unidos da América do Norte, da Argentina e da maioria das federações existentes; (b)discriminação taxativa das unidades federadas – trata-se de critério inverso ao primeiro, segundo o qual se prevê expressamente o âmbito da competência das unidades federadas, cabendo à União Federal a competência residual ou restante; é o caso do Canadá, por exemplo, em que as 10 províncias de que se compõe o país mantêm grande autonomia, ocorrendo sempre o risco de secessão, tendo havido, em 1992, plebiscito no sentido de ouvir-se a população acerca de ainda maior competência e autonomia à província francesa de Quebec, sempre em busca de pretexto para o seu desligamento da federação, e outro, ainda, em 1995; (c)discriminação taxativa das competências da União e unidades federadas – donde inexistir espaço para uma eventual competência residual; trata-se do caso específico da Índia, sempre às voltas com sedições comprometedoras da unidade federal, em grande parte decorrentes de conflitos étnico-sociais e religiosos. Mesmo quando de sua independência da Grã-Bretanha, o Paquistão, que deveria integrar o novo Estado indiano como Estado federado, acabou por declarar sua própria independência, frustrando o ideal de unidade de Nehru e do venerável Mahatma Gandhi. Outras questões dignas de nota a respeito do federalismo dizem respeito à tendência ao centripetismo e ao secessionismo. No primeiro caso, tanto nos Estados Unidos da América como no Brasil, por exemplo, observa-se cada vez mais um açambarcamento de competência e poder no âmbito da União Federal, em detrimento das unidades federadas. Tal fenômeno se deve, basicamente, aos problemas econômicos e sociais enfrentados na atualidade, levando, no caso brasileiro, ainda à guisa de exemplificação, as unidades federadas a terem maior participação na receita tributária amealhada pela União, sem a contrapartida de aumento de seus deveres e atribuições. Trata-se, aliás, de um dos pontos fundamentais da reforma constitucional, cujos trabalhos iniciais presenciamos no momento em que escrevemos estas linhas, em 1993, com nova rodada de discussões, a partir de 1995. Prevê-se, por isso mesmo, uma ampla reforma tributária e um mais realista sistema de repartição de competências, sobretudo se levando em conta as diversidades regionais. Já o secessionismo faz-se presente nos casos já referidos do Canadá e Índia, por questões basicamente econômicas, sociais e culturais, no primeiro caso, e conflitos étnico-religiosos, no segundo. De qualquer maneira, e bem ao contrário do que acontece no âmbito das confederações, é expressamente vedada a secessão no caso das federações. Como já apontado, aliás, o art. 1º da Constituição brasileira de 1988 diz, taxativamente, constituir-se a república pela “união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal”, e o art. 34, I, que “a União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para manter a integridade nacional”. Hans Kelsen,10 confundindo o próprio Estado com Direito, dentro de sua Teoria Geral do Direito e do Estado,11 chamando a atenção para os fenômenos que denomina “Nomostática” e “Nomodinâmica”, assevera que o Estado federal é o que congrega a tríplice ordem jurídica: da Constituição, no ápice da pirâmide com que ilustrou sua exposição, da União, mais abaixo, e dos Estados-membros, e cujo resultado é a ordem jurídica global, essencial à própria manutenção do mesmo Estado federal. Para ele, ainda, é essa ordem jurídica global, como já citado linhas atrás, a fonte da própria soberania do Estado, sendo ainda sua causa eficiente o poder constituinte. Resta-nos, por fim, a análise de dois aspectos para terminarmos a questão atinente ao Estado federal: (a) a discriminação de competência tributária e (b) a autonomia municipal. Tanto a União Federal como os Estados-membros, Distrito Federal e Municípios têm atribuições e políticas a exercer e executar, tudo com vistas ao bem comum de suas populações, donde a necessidade de recursos obtidos mediante sua atividade tributária e orçamentária. Como já dito, a Constituição Federal brasileira de 1988 tem sofrido profundas modificações na sua revisão pelo Congresso Nacional, com vistas a uma melhor repartição de competências. De qualquer forma, dispõe atualmente em seus arts. 150 a 152 sobre as limitações do poder de tributar; já no art. 153, trata dos impostos que podem ser instituídos e cobrados pela União; a seu turno, o art. 155 cuida dos impostos de competência dos Estados-membros e Distrito Federal; o art. 156, por fim, trata dos impostos de competência dos Municípios. Os arts. 157 a 162 disciplinam ainda a repartição das receitas tributárias. É evidente que não nos cabe, nos estritos limites da Teoria Geral do Estado e Ciência Política, tecer maiores considerações sobre a sem dúvida relevantíssima matéria, que é objeto, porém, do Direito Tributário. Por enquanto, basta-nos saber que, também no aspecto tributário, as federações devem sempre obedecer às várias esferas de atuação das diversas unidades que as constituem. Com relação à autonomia municipal, trata-se, em verdade, de uma autonomia muito mais de caráter administrativo do que político, exatamente para que os Municípios possam atender às suas peculiares necessidades. Etimologicamente, o termo Município deriva da palavra latina municipium, resultado da combinação de capere (tomar, manter) e munus (encargos, ônus).12 Deveu-se, conforme o douto esclarecimento de Aderson de Menezes,13 à expansão de Roma por toda a península itálica, e depois por outros territórios conquistados, e como forma de solução para os problemas administrativos emergentes, mas sempre localizados. Assinala ainda o referido autor, firmando-se na lição de Ivo d’Aquino,14 que as atribuições municipais naquela época resumiam-se na: “a) manutenção do seu culto, cerimônias e festas religiosas, com o direito de escolha dos seus flâmines e demais sacerdotes; b) administração e guarda dos bens e rendas locais; c) jurisdição para o julgamento de contravenções aos regulamentos sobre salubridade, pesos e medidas, e na manutenção de mercados.” Trata-se, sem dúvida, da mais autêntica forma político-administrativa, mesmo porque lida diretamente com os problemas do cotidiano das populações que abriga, sendo de fundamental importância até mesmo para a estabilidade dos próprios Estados-membros e da União Federal. Afinal de contas, como já tivemos a ocasião de ouvir por diversas vezes do ex-governador do Estado de São Paulo, Franco Montoro, “ninguém mora ou vive na União ou no Estado; todos habitamos um determinadoMunicípio”, ou seja, onde a vida socioeconômica, cultural, política e familiar efetivamente se desenvolve dinamicamente.15 10.3.5.Tendências Federalistas O mundo contemporâneo, seja em decorrência de conflitos históricos, étnicos, religiosos, necessidades reais de administração regional, ou então simplesmente em decorrência de ambições políticas, tem demonstrado uma tendência federalista. Com efeito, mal assentada a sangrenta guerra báltica envolvendo a antiga Iugoslávia e suas ex-províncias Bósnia-Herzegovina e Croácia, essa região enfrentou novos conflitos, desta feita com a região de Kosovo, de etnia albanesa. Portugal, desde 1992, debate a questão da subdivisão de seu pequeno território em províncias autônomas, tendo as discussões que a cercam, contudo, empacado no item que diz respeito ao número das províncias e aos critérios para sua criação. A Espanha e a França, embora discretamente, debatem a questão dos rebeldes bascos; o Iraque, Irã, Turquia e Síria não sabem mais o que fazer com a etnia curda, ansiosa por sua independência daqueles Estados. A própria Itália, unificada no século XIX, debate-se com o processo de federalização de suas regiões administrativas, ou, então, pura e simplesmente, com a separação da região Norte da região Sul. Com efeito, o almejado novo Estado italiano, que compreenderia a região Norte daquele país – Aosta, Piemonte, Liguria, Lombardia, Alto Adige, Vêneto, Friuli, Emilia-Romagna, Toscana, Umbria e Marche –, surgiu da difícil unificação, operada a partir de 1848, dos antigos reinos da Sardenha e das duas Sicílias, territórios papais, e de uma imensa região sob o domínio austríaco, como o Reino Lombardo--Vêneto, Grande Ducado da Toscana e ducados de Modena, Massa-Carrara, Parma e Luca. E isso, segundo Hugo Bossi, propositor da referida “República da Padânia”, daria maior autonomia a uma nova federação de Estados autônomos, e que corresponderiam às referidas regiões, em número de 11, ficando o restante território para a República Italiana.16 10.3.6.Outras Formas de Estado Conforme já havíamos advertido no início deste item sobre as formas de Estado, existem outras que podem não se encaixar em quaisquer das clássicas mencionadas. É o caso, por exemplo, da atual CEI (Comunidade de Estados Independentes), antiga URSS, ou o que dela sobrou. Trata-se de um misto de confederação e federação, mas ainda não se sabe ao certo qual a forma definitiva. A denominada Comunidade das Nações Britânicas (British Commonwealth of Nations) é uma combinação de autonomias coloniais, conglomerando diversas populações heterogêneas, obrigadas tão somente a reconhecer um rei, gozando de soberania e de igualdade de tratamento. Inexiste, por conseguinte, e a rigor, subordinação entre elas nos negócios nacionais ou internacionais. Ou seja, são livres e independentes os Estados que compõem a referida comunidade de nações, mas estreitamente ligados. Conforme esclarece Aderson de Menezes,17 “a Comunidade de Nações Britânicas (British Commonwealth of Nations) tem atualmente 44 Estados soberanos associados; a rainha é reconhecida como o símbolo da livre associação desses Estados e é a chefe da Comunidade; ela é também chefe de Estado de 15 países; dos restantes, 25 são repúblicas e quatro têm seus próprios monarcas; nos países onde a rainha é chefe de Estado, com exceção da Inglaterra, é representada por um governador-geral escolhido sob recomendação do governo local e totalmente independente do governo britânico”. FORMAS DE GOVERNO11 Conforme já acentuado no capítulo anterior, entende-se por formas de governo as maneiras pelas quais o poder político se exterioriza, ou seja, exerce a sua atividade. Ao longo da história, diversos pensadores procuraram definir as formas de governo, merecendo especial menção nesse sentido os célebres Aristóteles e Políbio. 11.1.A CLASSIFICAÇÃO DE ARISTÓTELES Em sua famosa obra Política, Livro 3º, Cap. V, § 1º, Aristóteles afirma, antes de mais nada, que “constituição” e “governo” se equivalem e, assim sendo, ou os governos são exercidos por uma só pessoa, ou então por um grupo, ou ainda por uma maioria significativa. Em qualquer uma dessas hipóteses, entretanto, pressupõe-se que os governantes coloquem seus interesses pessoais abaixo dos interesses maiores da comunidade cujos destinos comandam. Em consequência, então teríamos as formas puras de governo (critério valorativo, portanto) e, respectivamente, na ordem retroapresentada, uma monarquia (governo de um só), aristocracia e, finalmente, uma democracia, expressando o governo de uma minoria, no primeiro caso, e de uma maioria, no segundo. Todavia, opostamente às referidas formas puras de governo, que expressam o desprendimento dos líderes e sua única preocupação com o bem-estar da população, teríamos as denominadas formas impuras de governo. E assim, fala Aristóteles de uma tirania, de uma oligarquia e de uma demagogia, formas deturpadas, respectivamente, das citadas monarquia, aristocracia e democracia. Isto porque, nesses três casos, os detentores do poder desviar-se-iam de suas verdadeiras missões – o bem comum da população – para se aproveitarem da posição de mando em benefício próprio. Nem é preciso falar quão atualizada se apresenta a lição aristotélica de centenas de anos atrás, à medida que escândalos e falcatruas de toda ordem são constatados dia a dia no mundo todo e em nosso próprio País, e nos quais, invariavelmente, estão envolvidos exatamente aqueles que deveriam zelar pelo seu bem e pelo de suas populações. No exato momento em que foram escritas estas linhas pela primeira vez, o País fervilhava em face do monumental e deplorável escândalo da Comissão de Orçamento do Senado Federal, responsável pela correta distribuição dos parcos recursos da dotação orçamentária, mas que se desviava de seu compromisso com o bem comum do Estado, em proveito de alguns parlamentares e funcionários do executivo, que prazerosamente aceitavam o suborno e o aliciamento ofertado, sobretudo por poderosas empresas, ávidas do abocanhamento de significativas parcelas do mesmo orçamento, e para obras de prioridade muitas vezes duvidosa. Não é à toa, por conseguinte, que nossa inflação monumental era indomável: por maiores que fossem os recursos advindos de tributos, tornando empresas e pessoas físicas já exangues, os verdadeiros predadores do erário nunca saciavam sua fome pantagruélica, gerando, por via de consequência, recessão, desemprego, fome, miséria e toda sorte de desvios. E, com efeito, setores essenciais como saúde, educação, saneamento básico e segurança, por exemplo, são relegados a um plano secundário, quando deveriam ser prioridades absolutas. Ou seja, já que não há recursos suficientes devido ao descontrole do déficit público, procuram-se distribuir os parcos recursos, olvidando-se que referidos aspectos são peças fundamentais do bem comum: devidamente educado, e em condições de higiene e saúde, sentindo-se ainda seguro, o cidadão c 11.2.A CLASSIFICAÇÃO DE POLÍBIO Relata-nos Edward McNall Burns,1 ao analisar a cultura grega em sua fase áurea, que “o campo da prosa era dominado pelos historiadores, pelos biógrafos e pelos autores de utopias”. “Indubitavelmente”, continua, “o mais capaz dos escritores da história foi Políbio de Megalópolis, que viveu no século II a.C.; do ponto de vista da atitude científica e do amor à verdade, provavelmente só cede o primeiro lugar, entre todos os historiadores da Antiguidade, a Tucídides, sendo que ainda o supera pela compreensão que tinha das forças sociais e econômicas”. E exatamente porque arguto observador dos fatos históricos, impregnados de grande significado político e social, além certamente do econômico, Políbio levou em consideração para classificar os governos as várias magistraturas romanas no período republicano, adaptando-as, então, à classificação de Aristóteles. Ou seja, como na referida época existiam os cônsules (espécie de presidentes da república e, ao mesmo tempo, comandantes do exército), os pretores (juízes), questores (coletores deimpostos), os tribunos da plebe (representantes do povo nas pequenas comunidades), censores (guardiães da moralidade pública), senadores (membros do conselho máximo do Estado romano, e representantes da alta aristocracia), Políbio afirmava que as formas de governo variavam de acordo com o predomínio de uma dada magistratura sobre as demais. E, dessa forma, por exemplo, quando predominava o governo dos cônsules – aliás, na maioria das vezes –, então nós tínhamos uma verdadeira monarquia. Se, ao contrário, havia predominância do senado com seu prestígio inegável, então o governo era uma aristocracia. E, finalmente, nos curtos períodos da hegemonia dos tribunos da plebe, nós estávamos diante de uma democracia. 11.3.A CLASSIFICAÇÃO DE MAQUIAVEL Coube a Nicolau Maquiavel2 distinguir entre monarquia e república, ao dizer que “todos os Estados, todos os domínios que têm havido e que há sobre os homens foram e são repúblicas ou principados; os principados ou são hereditários, cujo senhor é príncipe pelo sangue, por longo tempo, ou são novos; os novos são totalmente novos como Milão com Francesco Sforza, ou são como membros acrescentados a um Estado que um príncipe adquire por herança, como o reino de Nápoles ao rei da Espanha; estes domínios assim adquiridos são ou acostumados à sujeição a um príncipe, ou são livres, e são adquiridos com tropas de outrem ou próprias, pela fortuna ou pelo mérito”.3 Diz ainda que “não tratarei das repúblicas, pois em outros lugares falei a respeito delas; referir-me-ei somente aos principados, e procurarei discutir e mostrar como esses principados hereditários podem ser governados e mantidos”.4omum traça seu próprio caminho com vistas à sua realização pessoal, familiar e, principalmente, se torna politicamente consciente de sua importância no contexto social. Em conclusão, portanto, a classificação de Aristóteles tem um caráter quantitativo, de acordo com o número dos que exercitam o poder político, e qualitativo ou valorativo, de acordo com o posicionamento dos que exercem o mesmo poder, em face do bem comum. 11.3.1.A Monarquia O termo monarquia é derivado do grego – monos (de um só) mais arkhein (mando, governo). Significa, portanto, o governo de apenas uma pessoa, no sentido de esta ter o mando sobre determinado grupo de outras pessoas perante as quais se impõe. Trata-se, em última análise, de forma de governo em que se observa a figura de um monarca (potentado, rei, imperador etc.) a exercitar funções executivas, de forma mais limitada, ou então mais ampla, mas sempre vitaliciamente. Disso decorrem as seguintes características e tipos de monarquia: (a)monarquia absolutista – é aquela na qual inexiste qualquer tipo de limitação ao poder exercido pelo detentor do governo; (b)monarquia constitucional – ao contrário da primeira, nela se observa uma limitação aos poderes exercitados pelo monarca. No primeiro caso, poder-se-ia dizer que o rei está acima da lei, visto que se pressupõe seja ele quem faça a lei (“rex supra legem, quia rex faciat legem”). Já no segundo, o rei está subordinado à lei, visto que é a lei quem define quem o seja, e em que condições (daí “lex supra regem, quia lex faciat regem”). Referida questão, além da limitação do poder do monarca, nos leva, ainda no segundo caso citado, à tipologia das monarquias, pelo menos dos dois tipos mais conhecidos, a saber: (a)monarquia constitucional pura – nela o rei exerce as duas funções básicas do executivo, quais sejam, as chefias de Estado e de governo; é chamada ainda de monarquia monista; (b)monarquia parlamentar – também chamada de monarquia dualista, caracteriza-se pela bipartição das funções do executivo; ou seja, enquanto o rei exerce a chefia de Estado, tão somente, o primeiro-ministro é o chefe de governo.5 Conforme já deixa entrever Maquiavel, há tipos diversos de investidura na monarquia, ou seja, maneiras pelas quais se define a legitimação daquele que exerce vitaliciamente o poder, no que concerne às funções executivas do Estado. São as formas clássicas de investidura na monarquia: a hereditariedade, a eleição e a cooptação. A hereditariedade, como denota o próprio termo, vem a ser a forma de investidura na monarquia pela consanguinidade, ou seja, torna-se rei o parente do monarca morto, conforme a ordem de vocação hereditária prevista pelos costumes, tradição, ou, contemporaneamente, pela Constituição do Estado. É a forma mais comum e tradicional, havendo, entretanto, a investidura por eleição: o Papa, por exemplo, é eleito pelo Colégio de Cardeais, mediante vários escrutínios, que deve sempre refletir consenso absoluto, exerce seu cargo vitaliciamente, e na qualidade de chefe de governo e de Estado do Vaticano, sem falar-se de sua investidura como chefe da Igreja Católica Romana. Cercado de toda a ritualística que tem sido observada há séculos, o conclave (i.e., do latim, cum clave, significando que o colégio eleitoral fica recluso, “à chave”, até o resultado final) termina com a emissão da célebre “fumaça branca” através da chaminé da Capela Sistina, e o bimbalhar dos sinos. Em seguida, após indagar do eleito se aceita o encargo, e que nome escolheu para si mesmo (“Quo nomine vis vocari?”), o decano dos cardeais--eleitores vai até a sacada principal do Vaticano e solenemente proclama: “Annuntio vobis gaudium magnum; habemus Papam” (ou seja, Anuncio-vos com a maior alegria que [já] temos [um novo] Papa). No caso mais recente da eleição do Papa Bento XVI, em 19.04.2005, o arauto prosseguiu, para dizer que o escolhido foi o “Eminentissimum ac Reverendissimum, Dominum, Josephum Sanctae Romanae Ecclesiae Cardinalem Ratzinger qui sib nomem imposuit Benedictum XVI”. Ou seja, e a saber: o Eminentíssimo e Reverendíssimo Senhor Joseph Ratzinger, cardeal da Santa Igreja Romana, que se atribuiu o nome de Bento XVI. Também em Roma, no período da realeza, os reis, até Túlio Hostílio, eram eleitos pelos chamados “comícios” das cúrias (assembleias dos patrícios, e bastante limitadas), e, posteriormente, pelas centúrias, mais numerosas. A cooptação é outra forma de investidura nas monarquias: consiste na circunstância de o monarca, que pressente sua morte próxima, ou então mediante testamento, apontar seu sucessor, que pode ser pessoa com relação à qual não mantém qualquer laço de parentesco. “À época dos Antoninos, na Roma Imperial”, relata o prof. Salvetti Netto,6 “toda sucessão obedeceu a tal processo; Nerva, senador romano e fundador da dinastia, escolheu Trajano, general famoso, oriundo da província hispânica; este, por sua vez, chamou à sucessão Adriano, com quem nenhuma relação de parentesco mantinha; o mesmo processo continua com Adriano escolhendo Antonino Pio; Antonino Pio, Marco Aurélio; e Marco Aurélio, seu filho, Cômodo; nos tempos modernos, o caudilho Franco, na Espanha, escolheu seu sucessor, chamando ao governo o herdeiro do trono espanhol, ora exercendo o poder”. 11.3.2.A República É a forma de governo caracterizada simplesmente pela temporariedade do exercício das funções executivas (chefias de governo e de Estado, como já enfatizado), ao contrário do que ocorre na monarquia. E aqui também pode haver referido exercício das funções executivas, concentradamente ou não. Ou seja, assim como na monarquia constitucional parlamentar, pode também haver a república parlamentar, caracterizada pelo dualismo, em virtude do qual o presidente da república é apenas o chefe de Estado, enquanto o primeiro-ministro é chefe de governo. Já na república presidencialista, o presidente da república é, ao mesmo tempo, chefe de Estado e de governo. Embora o Brasil, por exemplo, tenha adotado a forma de governo republicana e um sistema presidencialista desde 1889, essa matéria ficou na dependência de um plebiscito, que somente foi realizado em 1993. Com efeito, conforme assinala Laurentino Gomes7: “Após a cerimônia na Câmara Municipal, os manifestantes se dirigiram à casa de Deodoro. Pretendiam entregar-lhe a moção redigida no jornal de José do Patrocínio. Como o marechal estava de cama, proibidopela mulher de receber visitas coube a Benjamim Constant atende-los. Depois de ouvi-los, Benjamin, agora mais cauteloso do que no momento e que desfilara com as tropas pelo centro da cidade, afirmou que ‘o governo provisório saberá levar em conta a manifestação da população do Rio de Janeiro’. Por fim, anunciou que, no momento oportuno, a nação seria consultada sobre a troca de regime. O manifesto que o governo provisório divulgou naquela noite, assinado por Deodoro, anunciava que o Exército e a Armada tinham decretado a deposição da família imperial e o fim da Monarquia, mas em nenhum momento mencionava a palavra república. A consulta prometida por Benjamin Constant aconteceria somente um século mais tarde. Em abril de 1993, ou seja, 103 anos após 15 de novembro de 1889, os brasileiros finalmente foram chamados a decidir em plebiscito nacional se o Brasil deveria ser uma monarquia ou uma república. Venceu a República”. DEMOCRACIA: CONCEITOS, TIPOS E REQUISITOS12 12.1.A DEMOCRACIA SEGUNDO HANS KELSEN Ao definir “formas de governo”, Hans Kelsen1 classificou-as em democracia, de um lado, e autocracia, de outro. Haveria democracia, segundo ele, quando se verificasse efetiva participação dos governados na escolha dos governantes e na elaboração do ordenamento jurídico do Estado, e autocracia, quando tais participações inexistissem. Deixaremos o estudo da autocracia para o ponto subsequente, reservando o presente para o estudo da democracia que, como se verá, é antes de mais nada uma verdadeira filosofia política de convivência das divergências, daí porque é muito mais uma tomada de posição ideológica e de equilíbrio do que propriamente uma forma de governo. 12.2.A DEMOCRACIA CLÁSSICA Para Biscaretti do Ruffia,2 a democracia funda-se na ideia de autogoverno, no ordenamento jurídico e na opinião pública. Ou seja, o jogo da disputa pelo poder nas democracias desenvolve-se dentro do que dispõem as normas jurídicas que o garantem, objetivando -se sua assunção em sistema de governo legitimado pela oitiva do povo, e até antes pela auscultação de sua opinião sobre os rumos tomados pelos que detêm o mesmo poder. Para Tocqueville,3 “o governo democrático baseia-se na soberania absoluta da maioria”. “Esta opinião”, complementa o prof. Salvetti Netto, “mostra-se conforme a doutrina da ‘vontade geral’, de Rousseau, para quem, num regime democrático, as deliberações políticas deveriam ser entregues diretamente ao povo; a vontade geral representaria, justamente, as decisões majoritárias colhidas nas assembleias populares, onde cada cidadão partilharia do poder soberano fracionado, destarte, entre todos”. Com efeito, e conforme já assinalado no primeiro capítulo deste livro, a célebre “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, da Revolução Francesa de 1789, no inc. VI de seu primeiro artigo, expressamente reza que: “A lei é a expressão da vontade geral; todos os cidadãos têm o direito de participar pessoalmente, ou por seus representantes, de sua elaboração; ela deve ser a mesma para todos, seja no que beneficie, seja no que pune.” “C. J. Friedrich, todavia, afirma, contrariamente, que, ‘por definição, democracia constitucional é aquela que não concede todo o poder à maioria’; certamente admissível o julgamento de Friedrich, porquanto o governo democrático não prescinde da manifestação das facções minoritárias, que também se devem representar; constitui, justamente, a necessidade dessa participação minoritária a essência da democracia, porquanto dela não só decorre o diálogo político, fundamental ao regime, mas também a fiscalização e a crítica das decisões majoritárias.”4 Para São Tomás de Aquino,5 a tônica da democracia é a participação efetiva do povo na tomada das grandes decisões que afetam todos, ou, mais precisamente, onde “todos tenham alguma parte no exercício do poder, pois por aí se logra a melhor paz do povo e que todos amem e guardem tal constituição” (“omnes aliquam talem ordinationem amant et custodiunt” – Suma Teológica, 1.2.105.1). 12.3.A DEMOCRACIA, A OPINIÃO PÚBLICA E DIÁLOGOS A opinião pública, como já acentuado, é um verdadeiro termômetro aferidor do sentimento do povo com relação aos seus governantes e metas por eles perseguidas, e, por conseguinte, deve guiá-los na tomada de decisões ou então na mudança dos rumos inicialmente traçados. Caso contrário, por certo haveria uma “ditadura da maioria”, já que fora, pressupostamente, a responsável pela eleição dos que detêm o poder e colocam em prática aquilo a que se propuseram mediante a apresentação de sua plataforma de governo. Desta forma, é salutar, e até desejável, que haja oposição, de quem se espera críticas construtivas, o que difere de contestação pura e simples, de forma sistemática, e que em nada contribui para o aperfeiçoamento da democracia. Daí porque Vedel6 fala em determinados diálogos necessários e permanentes para a sobrevivência da democracia, a saber: (a)entre poder constituinte e poder constituído, ou seja, entre o que estrutura o próprio conjunto de órgãos que exercitam o poder e esses, com vistas ao aprimoramento das instituições; é o que hoje deve ocorrer quando se cogita da “revisão constitucional brasileira”, no tocante ao propalado “controle externo do judiciário”, do aumento da representatividade dos Estados-membros da federação mais populosos, do desequilíbrio orçamentário etc.; (b)entre governantes e governados – trata-se aqui exatamente da pesquisa constante da opinião pública sobre os destinos da coisa pública e de seus condutores; os índices de popularidade do presidente da República Itamar Franco (início de novembro de 1993), por exemplo, foram os mais baixos possíveis, tendo-se-lhe atribuído a “nota” 3,9 (opinião das classes mais populares), e no máximo 4,2 (as denominadas elites empresariais e culturais), mas ainda “confiável”, para fazer alguma coisa pelo bem do País, notadamente debelação do crônico processo inflacionário; a mesma pesquisa coloca o Congresso Nacional em péssima cotação na opinião pública auscultada;7 (c)entre parlamento e executivo – por razões óbvias, faz-se necessário esse tipo de diálogo, uma vez que será o segundo quem irá colocar em prática as deliberações do primeiro; a questão se torna ainda mais delicada quando o executivo não dispõe de maioria que apoie suas decisões no parlamento; (d)entre maioria e minorias – a democracia, por certo, é o “governo da maioria”; entretanto, tal maioria não deve jamais olvidar os anseios das minorias, sob pena de em futuro próximo ver contra si unidas essas para a assunção do poder; além do mais, é até esperado que as deliberações da maioria não agradem a todos, donde ser mais que necessário o diálogo entre aquela e os grupos minoritários, para o almejado equilíbrio democrático; (e)entre Estado e grupos de pressão – grupos de pressão são entidades ou instituições que atuam junto aos órgãos das funções executivas e legislativas do Estado no sentido de fazerem prevalecer, quando de suas decisões, os seus interesses; a Igreja, a imprensa, os partidos políticos, as organizações não governamentais, os sindicatos, por exemplo, são grupos de pressão, à medida que atuam perante os citados órgãos direta ou indiretamente (convidando parlamentares e membros do executivo para proferirem palestras, visitas, remessa de abaixo-assinados, publicações de matérias jornalísticas, discursos, encomendas de pesquisas de opinião pública, contratação de empresa de lobby etc.). Vê-se, por conseguinte, que o verdadeiro processo democrático demanda, antes de mais nada, enorme energia e disposição para o paciente diálogo, tratando-se ainda de regime extremamente frágil, eis que absolutamente incompatível com a truculência para a manutenção da vontade de grupos dominantes, com a intolerância e força. 12.4.OS PARTIDOS POLÍTICOS COMO INSTRUMENTOS DA DEMOCRACIA8 Embora os partidos políticos sejam objeto também de pontos subsequentes (O Poder Político), não se pode neste passo deixar de tecer algumas considerações sobre eles. Por partidos políticos entendem-seagremiações dotadas de personalidade jurídica pública, cujo fim imediato é a chegada ao poder, e mediato a colocação em prática de sua plataforma de governo, pressupostamente divulgada ao ensejo das campanhas eleitorais. São, pois, peças fundamentais na implementação de políticas determinadas de administração pública, e ao mesmo tempo para a manutenção da própria democracia. Resta mais do que evidente que sempre que um partido não está no poder, ou então já esteve anteriormente, sua meta imediata e essencial é o retorno ou chegada a ele. Para tanto, deve demonstrar a que vem, ou seja, no que poderia ser melhor do que aquele que no momento ocupa o núcleo do poder (= governo). É claro que a referida “plataforma de governo” deverá refletir a ideologia de certo partido político, e que, por sua vez, elegerá suas prioridades. Por exemplo: se determinado partido político reflete uma ideologia mais liberal, é claro que suas prioridades estarão voltadas para o livre mercado, respeito às garantias individuais etc. Se, pelo contrário, outro partido sustenta ideias socializantes, defenderá a intervenção maior ou menor no domínio econômico, a preocupação do Estado com o bem-estar de sua população sem maiores contribuições desta, além dos encargos já existentes etc. De toda maneira, qualquer que seja a coloração ideológica dos partidos políticos numa democracia, seu maior compromisso, por certo, é com a própria manutenção dela. A existência de um único partido político é característica do verdadeiro antônimo da democracia, que é a autocracia. E exatamente para que referida manutenção se verifique sem percalços, há valores que devem ser permanentemente tutelados pelas democracias, sendo ao mesmo tempo condições de sua própria existência. Tais valores podem resumir-se a dois: (a)liberdade-participação – ou seja, relativa à possibilidade de alguém do povo não apenas escolher os governantes, como também de ser um deles; é a expressão do “direito político”, de votar e ser votado; é claro que tal direito é prerrogativa do cidadão, ou seja, o conjunto daqueles que mantêm com o Estado respectivo o vínculo político, além do jurídico, excluindo-se os estrangeiros e os momentaneamente privados do mesmo direito; (b)liberdade-autonomia – desconhecido na Antiguidade clássica, por exemplo, que não obstante conhecia a primeira, ainda que limitadamente a um pequeno número dos que efetivamente comandavam os destinos de Roma e das cidades-estados gregas, refere-se basicamente à autodeterminação, ou seja, à liberdade em todos os sentidos (de ir, vir e permanecer, manifestação do pensamento, exercer determinada atividade ou profissão, de credo etc.). O prof. Elcir Castello Branco9 prefere desdobrar em quatro os mencionados valores tutelados pela democracia, a saber: (a)liberdade – ou seja, de manifestação do pensamento, de culto religioso, de reunir-se em assembleia, de iniciativa individual de exercício profissional etc;10 (b)responsabilidade – nesse aspecto, pondera o ilustre professor da matéria que a extensão da liberdade de cada um encontra limites na lei, que é exatamente a garantia das liberdades de outros, e dos interesses sociais; (c)igualdade – referido valor, estampado no caput do art. 5o, da Constituição brasileira de 1988, por exemplo, é o da isonomia, segundo o qual “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”; (d)participação – trata-se exatamente aqui da prerrogativa de alguém escolher e ser escolhido como governante, desde que atenda aos requisitos legais objetivos. 12.5.TIPOS DE DEMOCRACIA Dentro da perspectiva clássica de democracia grega, podemos dizer que, em sua fase áurea, era ela direta.11 Ou seja, não havia qualquer tipo de intermediação entre os governantes e os governados, sendo certo que estes últimos, em plena praça pública (ágora), é que indicavam os que iriam exercer o poder político, e as principais normas que iriam reger sua vida social. É o tipo de democracia também idealizado por Jean-Jacques Rousseau que, todavia, acabou rendendo-se à realidade que ele próprio presenciara em pleno século XVII, no qual já seria praticamente impossível reunir-se o povo de qualquer cidade para assim deliberar sobre seu destino. Ao criticar o sistema de representação política do povo, referido autor12 dizia que “a soberania não pode ser representada”. E acrescentou: “O povo inglês acredita ser livre, mas se engana redondamente; só o é durante a eleição dos membros do parlamento: uma vez eleitos estes, volta a ser escravo, não é mais nada.” Noticia-se que em algumas pequenas comunidades da Espanha e Suíça, algumas decisões locais são efetivamente objeto de deliberação direta e pública. Com efeito, conforme pondera Almino Afonso:13 “À medida que a sociedade foi se tornando mais complexa, a começar pela dimensão populacional, a democracia direta cedeu lugar à democracia representativa. Do antigo modelo, que teve nos Estados gregos a sua expressão mais alta, sobram-nos poucos exemplos nos Cantões Suíços de Glaris, Unterwalden e Appenzell. Mesmo assim, segundo ilustra Barthélémy et Duez, é questionável sua eficiência: no Cantão de Uri, em 1911, ‘várias sessões foram dedicadas à questão de permitir dançar aos domingos, e em uma única sessão foi aprovado um Código Civil completo’. No mais, o que resta da democracia direta, segundo Burdeau, é ‘mera curiosidade histórica’.” A democracia semidireta, ou semi-indireta, pode ser entendida como aquela em que as deliberações de interesse coletivo são tomadas pelos representantes do povo, mas há possibilidade de que algumas o sejam por aquele, diretamente. São instrumentos diretos, nesse caso: (a)o plebiscito14 – é a consulta popular acerca de matéria que ainda será objeto de apreciação pelo órgão da função legislativa do Estado; trata-se, nessa hipótese, de legitimar a própria preocupação do legislativo com dada matéria; caso o resultado seja negativo, a matéria é sumariamente colocada de lado; foi o caso do plebiscito levado a cabo em 21 de abril de 1993, em nosso País, acerca dos sistemas de governo “parlamentar” e “presidencial”; como venceu, por larga maioria, a opção pelo segundo, trata-se de questão encerrada, não mais podendo cogitar-se dela, por força do disposto no art. 3o do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição de 1988; (b)o referendo popular – aqui se trata não de uma consulta prévia ao povo, mas, sim, de sua aprovação ou não de matéria já apreciada pelo legislativo, e que depende, para sua promulgação e sobretudo eficácia, do placet popular; a Itália vivenciou essa experiência alguns anos atrás, quando se apreciou a questão delicada do divórcio, mesmo porque, em face do célebre Tratado de São João Latrão, o matrimônio permaneceu intocável e objeto de apreciação mais religiosa e moral do que política e jurídica; venceu, contudo, o referendo popular, aprovando, ou ratificando, o que o parlamento italiano já havia deliberado; outro exemplo de referendo ocorreu no Brasil, a respeito da aprovação ou não pelos eleitores, de um dispositivo polêmico da chamada “lei do desarmamento”, em 2005 (Lei nº 10.826, de 22.12.2002); ou seja, em face do disposto pelo seu art. 35, no sentido de que “é proibida a comercialização de arma de fogo e munição em todo”, seu § 1º exigiu que tal dispositivo, “para entrar em vigor, dependerá de aprovação mediante referendo popular, a ser realizado em outubro de 2005”, e, conforme o § 2º, “em caso de aprovação do referendo popular, o disposto neste artigo entrará em vigor na data de publicação de seu resultado pelo Tribunal Superior Eleitoral”; no caso, venceu a manifestação popular majoritária, no sentido de abolir o referido dispositivo; (c)o veto popular – trata-se, nada mais, nada menos, do que a desaprovação de matéria já votada pelos órgãos que exercem a função legislativa do Estado; e, aproveitando-se o exemploconcluir que da autoridade e poder incontestáveis do pater familias antigo, envolvido pela aura do poder dos deuses, e por isso mesmo com direito de vida e morte sobre seus descendentes e agregados (jus vitae et necisque), e sumo sacerdote dos cultos àqueles (manes e lares), passou-se à abstração de tais valores para conceber-se o poder político de per si, na figura dos cônsules, senadores, tribunos da plebe e membros da antiga magistratura da república, chegando-se à sua expressão máxima e concentrada na fase imperial. 2.3.O ESTADO NAS IDADES MÉDIA E MODERNA A Idade Média, como se sabe, foi caracterizada por dois grandes conflitos de natureza política: entre o poder papal, tido por muitos como o vigário da divindade sobre a face da Terra e, pois, detentor do poder total, quer espiritual, quer temporal, e o poder real, que com o outro contrastava pela multiplicidade e limites territoriais, e, por fim, entre esse e o dos senhores feudais. Dessarte, não se pode aqui tampouco falar exatamente de Estado, na acepção moderna, mesmo porque, ainda no magistério de Burdeau,7 o poder era manifestamente personalizado, confundindo-se com as pessoas que o exerciam de forma concentrada e vitaliciamente. De qualquer forma, os doutores da Igreja, notadamente S. Tomás de Aquino (Suma Teológica) e Santo Agostinho (A Cidade de Deus) sempre chamaram a atenção dos estudiosos no sentido de que deve haver uma distinção entre o poder civil, ou temporal, e o espiritual, embora deva o primeiro sempre ser inspirado pelo segundo, sobretudo na proteção dos interesses do ser humano, justificando-se até mesmo a insurreição como maneira de fazer cessar abusos do mencionado poder temporal. É, contudo, na Idade Moderna, que aparece pela primeira vez o termo “Estado” para designar a sociedade política por excelência. E coube a Maquiavel, célebre filósofo político, exilado em uma pequena propriedade rural por ter perdido prestígio em Florença, ao tentar recuperá-lo junto ao então futuro potentado Lourenço de Médici, em seu opúsculo O Príncipe, a esse dedicado, explicar-lhe de forma didática que “todos os Estados, todos os domínios que têm havido e que há sobre os homens, foram e são ou repúblicas ou principados. E os 3 são ou hereditários, nos quais o sangue de seus senhores os tenha sustentado e feito príncipe, ou são novos”.8 Também Montesquieu (O Espírito das Leis) passou a utilizar o termo État, sobretudo quando formulou sua famosa teoria da tripartição do poder político, de molde a caracterizá-lo como ente autônomo e capaz de irradiar poder e direito. 2.4.A TEORIA GERAL DO ESTADO COMO DISCIPLINA AUTÔNOMA Entretanto, é na Idade Contemporânea que a Teoria Geral do Estado passa a ter autonomia, metodologia e objeto próprios. Consoante nos ensina Georg Jellinek,9 a expressão “teoria do Estado” passa a ser utilizada em meados do século XVIII, mas o reconhecimento de sua diferenciação do Direito Político somente se deu em fins do mesmo século. Coube a Schlözer, no livro Direito Público Geral (Allgemeine Staatsrecht), publicado em 1973, conforme esclarece Aderson de Menezes,10 dividir as ciências do Estado em descrição do Estado (Staatskunde) e teoria do Estado (Staatslehre). Acrescenta ainda que coube a Rotteck, em 1830, separar a parte teórica do Estado, ou metapolítica, da parte prática dele, isto é, a política stricto sensu. É na segunda metade do século XIX, conclui o ilustre autor, que “nossa ciência ganha foros de total independência, e seguindo o mesmo roteiro do último autor citado se destacam Mohl, Rehm e Bluntshili, notadamente o terceiro que, invalidando quatro edições precedentes, estampou em 1875-76 a sua obra Teoria do Estado Moderno (Lehre von modernen Staat) e a dividiu em três partes: 1ª Teoria Geral do Estado; 2ª Direito Público Universal; 3ª Política, razão por que se lhe pode dar a glória de ter sido o primeiro publicista a usar o nome completo e atualmente adotado “Allgemeine Staaslehre”. Em nosso País, a Teoria Geral do Estado ganhou foros de disciplina ministrada nos cursos de Direito pelo Decreto-Lei nº 2.639, de 27.09.40, e destacada do Direito Constitucional. Pode-se, desde logo, destacar sua importância, no sentido de constituir-se em disciplina preparatória imprescindível às demais disciplinas, sobretudo do Direito Público, a começar pelo mencionado Direito Constitucional, ministrado geralmente no segundo ano do curso de Direito. Em seguida, a Teoria Geral do Estado reveste-se de lastro fundamental para o Direito Administrativo, Direito Internacional (Público e Privado), Direito Tributário e Direito Processual (ou Judiciário) Penal e Civil. Dessa forma, ao preocupar-se com a conceituação da própria entidade “Estado”, sua estrutura, formação, maneiras de constituir-se mediante “formas de Estado, de governo”, “sistema e regimes de governo”, ou até antes, com a nação e a sociedade em geral, a Teoria Geral do Estado, em verdade, estabelece os alicerces para a sólida construção do conhecimento jurídico. Assim, por exemplo, se, no primeiro ano da faculdade de Direito, dá-se ao aluno uma visão geral e introdutória a todos os ramos da ciência jurídica, e, particularmente, ao Direito Público, no caso de nossa disciplina, em Direito Constitucional vai analisar o Estado brasileiro, em particular, uma vez que lastreado anteriormente com conhecimentos globais sobre os Estados de uma maneira geral. Ao dedicar-se ao estudo do Direito Administrativo, terá o aluno que se socorrer dos estudos prévios do Estado para entender os atos administrativos em todos os seus aspectos, já que nada mais são do que a manifestação da vontade do ente estatal com vistas à consecução do próprio bem comum. Quanto ao Direito Internacional, resta igualmente evidente que a soberania de cada Estado encontra limites exatamente diante da soberania de outros, donde se falar nos elementos constitutivos dos Estados (território e população) e sua extensão limitada, questões de nacionalidade, jurisdição, extraterritorialidade etc. No que concerne ao Direito Tributário, uma vez mais torna-se vital o conhecimento da Teoria do Estado para entender-se os seus mecanismos de proporcionamento de meios econômicos e financeiros para a consecução ainda do bem comum, afinal de contas, a razão de ser da própria sociedade política. Quanto ao Direito Processual ou Judiciário, deve ser também informado pelas noções básicas e fundamentais da Teoria Geral do Estado, porquanto aí se cuida da própria organização dos órgãos revestidos de parcela significativa da soberania estatal, para que possa “dizer do direito” sempre que provocados pelos interessados. Observa-se, por conseguinte, que a Teoria Geral do Estado deve ser encarada como estudo introdutório absolutamente necessário à compreensão do fenômeno político, mormente para os que se dedicam ao estudo do Direito, mesmo porque, e como constatação óbvia, é ele, o Estado, a fonte irradiadora do direito e do poder. Quanto à denominação da disciplina ora estudada, viu-se que a expressão deriva do alemão (Allgemeine Staaslehre), uma vez que seu objetivo principal era o de açambarcar o máximo possível de conhecimento sobre o fenômeno político e sua expressão máxima, que é o próprio Estado. Por isso mesmo é que não se falará de Teoria Geral do Estado brasileiro, francês, norte-americano etc., já que tal preocupação será objeto dos respectivos Direitos Constitucionais. Nos Estados Unidos, por exemplo, os alunos do terceiro ano colegial têm matéria obrigatória, que se denomina exatamente American Government, ou seja, a Teoria do Estado Americano, já que em inglês o termo government pode também significar, além de governo, pura e simplesmente, “Estado”. E é nesse exato sentido, dentro da Ciência Política e Teoria da Sociedade Política, que referido termo é empregado na famosa “Declaração de Independência”, de 1776. Falaremos doravante em “Teoria Geral do Estado”, ou seja, referindo--nos sempre ao estado global e genérico, de qualquer Estado, socorrendo-nos sempre que necessário, porém, a algum deles emretro, poderíamos dizer que haveria o “veto popular”, caso o referendo resultasse negativo para a lei do divórcio italiano; o mesmo se diga com relação ao segundo exemplo dado relativo ao “Estatuto do Desarmamento”, típico de veto popular; (d)o recall – literalmente do inglês, quer dizer “chamar de volta”; ou seja, empregado também no âmbito do Direito do Consumidor,15 vem a ser o ato pelo qual determinado ocupante de cargo político perde-o por iniciativa de votação popular que desaprova ou censura seu desempenho; espera-se, aliás, que referido instrumento seja objeto de nossa reforma constitucional, poupando-se tanto desgaste de Comissões Parlamentares de Inquérito que, não obstante sua inegável utilidade e caráter moralizante da coisa pública, deixa o País perplexo e paralisado durante a realização de seus trabalhos. Em 2003, o ator austríaco, naturalizado norte-americano, Arnold Schwarzenegger, acabou sendo eleito em virtude do recall (revogação popular de mandato eletivo) do então governador do Estado da Califórnia. Na Venezuela, a Constituição permite iniciativa semelhante quanto ao presidente da República. Com efeito, desde que 20% do eleitorado, mediante abaixo-assinado, provoquem a convocação do lá chamado “plebiscito revogatório”, o Conselho Nacional Eleitoral designa o pleito em questão. Para que o presidente tenha seu mandato revogado, no entanto, é necessário que o número de votos para tanto seja superior ao que o elegeu.16 (e)a iniciativa popular – via de regra a “iniciativa legislativa”, ou seja, o impulso inicial de pretensão a que determinado fato e valor transformem-se em preceito genérico, obrigatório, atributivo, bilateral e coercitivo (lei), cabe a membro do órgão que exerce a função legislativa, ou, então, do executivo, a depender da matéria, objeto de deliberação, tudo conforme preconizado, por exemplo, pelo art. 61 da Constituição brasileira de 1988; todavia, o § 2o do referido dispositivo legal estabelece que “a iniciativa popular pode ser exercida pela apresentação à Câmara dos Deputados de projeto de lei subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles”. Em nosso país, o art. 14 da Constituição Federal que trata das três modalidades de participação direta popular no processo político, está disciplinado pela Lei nº 9.709, de 18.11.1998. Exemplo bastante elucidativo desse instrumento da democracia direta se deu no Brasil com a apresentação popular e aprovação pelo Congresso Nacional da chamada “Lei da Ficha Limpa” (Lei Complementar nº 135, de 04.06.2010), que estabelece novos tipos de inelegibilidades para candidatos a todo e qualquer mandato político, notadamente nas hipóteses de condenações criminais por órgão colegiado do judiciário.17 12.6.DEMOCRACIA INDIRETA OU REPRESENTATIVA O terceiro tipo de democracia é chamado de indireto ou representativo. Tratando-se do mais aplicado e difundido no mundo contemporâneo, até por razões de ordem pragmática, em decorrência da demografia crescente, merecerá item separado, no qual também se estudarão sua natureza e o exercício da democracia pelo instrumento do voto, materialização do sufrágio. Nesse tipo de democracia, há perfeita distinção entre governantes e governados: estes apenas escolhem os primeiros, mediante processo eletivo, que passam a representá-los, sobretudo na votação e mudanças no ordenamento jurídico do Estado. Almino Afonso18 sustenta que “o povo, fonte originária do poder, impossibilitado por um conjunto de fatores a exercer, de maneira direta, as funções de governo, passa a delegá-las a seus represen-tantes, eleitos de acordo com certa periodicidade”. Embora criticada por Rousseau, que, como já vimos, era adepto da democracia direta ou sem intermediação entre governantes e governados, e para quem a única fonte de vontade política era o povo (volonté générale), acabou por aceitá-la, como inevitável. Preconizava, contudo, a necessidade de uma gigantesca assembleia popular, que seria o reflexo daquela vontade geral do povo, da melhor maneira possível. Tal ideia frutificou, como se verá noutro ponto relativo aos sistemas de governo, no chamado “regime ou sistema de governo de assembleia”, inicialmente na França, logo após o período revolucionário de 1789, e atualmente na Suíça.19 Para Duverger, trata-se de sistema ideal, o da democracia indireta, mas quando se tratar de povos amadurecidos,20 com plena consciência política no sentido de criarem e desenvolverem um sistema representativo autêntico. “Em razão disso”, pondera Salvetti Netto, “ocorrem, na América Latina e nos países política e economicamente subdesenvolvidos, crises sucessivas de governos, num processo contínuo de golpes de Estado e de quarteladas, que depõem governantes eleitos consoante as mais sadias e clássicas proposições do regime democrático; é que, nesses países, vige democracia meramente formal ou de fachada, desprovida daquelas condições indispensáveis à existência de um regime político em que os governados exerçam, na verdade, representação autêntica”.21 12.6.1.Natureza Consensual da Representação o Mandato Imperativo A questão que ora se coloca diz respeito à natureza jurídica do mandato eletivo. Ou seja, a partir do momento em que os governados elegem certo número de seus representantes, que supostamente devem honrar os compromissos assumidos durante suas campanhas, seria o mandato que lhes é conferido para tanto semelhante ao mandato do Direito Civil? Ora, pelo enunciado do art. 653 do Código Civil, “Opera-se o mandato, quando alguém recebe de outrem poderes, para, em seu nome, praticar atos, ou administrar interesses. A procuração é o instrumento do mandato.” Pela leitura dos arts. 667 e 668, ainda do Código Civil, fica claro que o “mandatário é obrigado a aplicar toda a sua diligência habitual na execução do mandato, e a indenizar qualquer prejuízo causado por culpa sua ou daquele a quem subestabelecer, sem autorização, poderes que devia exercer pessoalmente”, ficando ainda “obrigado a dar contas de sua gerência ao mandante, transferindo-lhe as vantagens provenientes do mandato, por qualquer título que seja”. Cessa ainda o mandato, como contrato de Direito Civil, “pela revogação, ou pela renúncia; pela morte, ou interdição de uma das partes” etc. (art. 682 do Código Civil). No caso do mandato político, entretanto, e até que novas normas constitucionais lhe sejam impostas – como a hipótese do recall, por exemplo –, é de caráter institucional e imperativo, o que equivale a dizer que todas as condições que o regulam são ditadas pelas normas constitucionais e infraconstitucionais, como é o caso, na segunda hipótese, da chamada “lei orgânica dos partidos políticos” e “código eleitoral”, recentemente modificados. Ao cuidar dessa questão, Almino Afonso22 pondera que, na democracia indireta ou representativa, o importante é destacar que, “de acordo com a teoria da representação política – ‘o representante não fica vinculado aos representados, por não se tratar de uma relação contratual: é geral, livre, irrevogável em princípio, e não comporta ratificação dos atos do mandatário’”. E prossegue: “Conforme ensina José Afonso da Silva, é livre ‘porque o representante não está vinculado aos seus eleitores, de quem não recebe instrução alguma, e se receber não tem obrigação jurídica de atender, e a quem, por tudo isso, não tem que prestar contas, juridicamente falando, ainda que politicamente o faça, tendo em vista o interesse na reeleição. Afirma-se, a propósito, que o exercício do mandato decorre de poderes que a Constituição confere ao representante, que lhe garante a autonomia da vontade, sujeitando-se apenas aos ditames de sua consciência’. Tendo por base essa conceituação, a crítica do eminente jurista é avassaladora: ‘há muito de ficção, como se vê, no mandato representativo. Pode-se dizer que não há representação, de tal sorte que a designação de mandatário não passa de simples técnica de formação dos órgãosgovernamentais. E só a isso se reduziria o princípio do governo pelo povo na democracia representativa’.” Acerca do “mandato imperativo”, lembra o citado autor que houve época em que os representantes do povo estavam atados àquele mesmo mandato, não lhes cabendo outro caminho que não o de cumprir cegamente as determinações e instruções expressas de seus eleitores. “Mas”, argumenta: “como lembra Darcy Azambuja, isso era possível porque os representantes – reunidos nos Estados Gerais da França, ou no Parlamento inglês – não eram eleitos em nome da nação, mas tão somente de determinadas circunscrições territoriais. Cada qual trazia os cahiers, ‘que determinavam o modo como responderiam às perguntas e solicitações reais, aliás em pequeno número e previamente conhecidas, pois constavam da própria carta régia de convocação’. Com a Constituição francesa de 1791, o mandato imperativo deixou gradualmente de existir, à medida que o Direito Constitucional moderno foi incorporando essa mesma diretriz: ‘os representantes eleitos nos departamentos não serão representantes de nenhum departamento em particular, mas de toda a nação, e não lhes poderá ser dado nenhum mandato’. Vale dizer, nenhum mandato específico, salvo o de representante da nação em seu conjunto. Como observa Darcy Azambuja, se acaso se mantivesse a instituição do mandato imperativo, a ‘consequência mais profunda seria tornar inúteis as assembleias deliberativas, pois, se cada deputado fosse obrigado a votar de acordo com as instruções recebidas de seus eleitores, a discussão seria inútil e a deliberação não existiria’”. De nossa parte, contudo, entendemos que o ideal seria que houvesse entre nós o chamado “voto distrital misto”, com relação ao qual muito se tem debatido no Congresso Nacional. Ou seja, ao invés da existência de “representantes do povo” na Câmara dos Deputados, eleitos apenas de forma proporcional e sem qualquer vinculação com seus eleitores, exatamente na acepção mencionada, haveria um número deles vinculados aos distritos eleitorais. Dessa maneira, haveria maior responsabilidade dos mesmos representantes, já que os partidos lançariam seus candidatos para a eleição proporcional, mas também outros, para escolha sob o critério majoritário, com o que se ganharia mais estreito relacionamento com os eleitores. E talvez também fosse o caso de se cogitar do recall, como visto em item anterior, possibilitando a cassação popular dos mandatos daqueles que não viessem a corresponder aos anseios de seus eleitores, ou então envolvidos com corrupção ou atos de improbidade. “Nasce assim”, prossegue o citado autor, “no bojo do Estado burguês, a democracia indireta, também chamada democracia representativa. O importante, no entanto, é destacar que – de acordo com a teoria da representação política – ‘o representante não fica vinculado aos representados, por não se tratar de uma relação contratual”. 12.6.2.O Exercício da Democracia Representativa: Sufrágio e Voto Por sufrágio entende-se o direito de escolha conferido a alguém que preencha os requisitos legais para tanto. Já por voto, entende-se o instrumento pelo qual se exerce o mencionado sufrágio. Assim como o mandato é o contrato pelo qual alguém confere poderes a outrem para agir em seu nome, o seu instrumento formal é a procuração, como de resto diz expressamente o art. 653 do Código Civil já citado. Há diversos tipos de sufrágio, sendo o universal o mais amplo, havendo as formas restritivas, como o masculino, o censitário e o cultural, por exemplo. O sufrágio universal, ao contrário do que sua denominação possa sugerir, não é aquele conferido a todas as pessoas, indistintamente. No caso brasileiro, por exemplo, é ele considerado universal, mas compreendendo-se estarem aptas a verem-no reconhecido pelas autoridades competentes as pessoas a partir dos 16 anos, brasileiras, e com relação às quais não haja qualquer impeditivo de ordem judicial (suspensão dos direitos políticos, por exemplo). Até mesmo os analfabetos, pela Constituição de 1988, podem inscrever-se como eleitores. Trata-se, isto sim, de aberração desconcertante, e manifesta demagogia. Dever-se-ia visar à erradicação do analfabetismo, e não eternizá-lo. O mesmo se diz com relação aos menores a partir dos 16 anos, massa pouco esclarecida a respeito dos destinos políticos do País, e inimputáveis em casos de falsificação de documentos, fraude eleitoral etc. O sufrágio universal, de qualquer forma, vem a ser o direito de escolha conferido ao maior número possível de pessoas. O sufrágio masculino, como a própria designação o diz, é aquele conferido apenas às pessoas do sexo masculino, com exclusão das mulheres. Ficaram famosas na história as sufragettes francesas e norte-americanas, no sentido de darem fim à sem dúvida odiosa discriminação. Consoante o magistério de Salvetti Netto,23 “os movimentos feministas alastram-se por todo o mundo à procura de maiores reivindicações, que chegam mesmo a extrapolar as de natureza política ou jurídica; é de ver-se, todavia, que, nos Estados Unidos, o sufrágio feminino foi, pela primeira vez, admitido no Estado de Wyoming, em 1869; na Nova Zelândia, em 1892; na Austrália, em 1914; no Canadá, em 1920; na Inglaterra, em 1930; na Itália, em 1925; na Argentina, em 1947”. O sufrágio censitário baseia-se no grau de riqueza ou montante de impostos por alguém que a ele faz jus. Existiu, entre nós, até a Proclamação da República, e é originário da Inglaterra, tendo-o também adotado o Japão, até pelo menos 1925.24 Sufrágio cultural é aquele que limita o direito de participação política de escolha dos governantes de acordo com o grau de instrução do interessado. No Brasil, até o esdrúxulo e demagógico voto do analfabeto, exigia-se pelo menos que o inscrito a eleitor fosse alfabetizado, podendo, desta forma, melhor inteirar-se das qualidades dos candidatos e de suas plataformas eleitorais. Nos Estados Unidos da América, a idade é exigida (18 anos), além do conhecimento e interpretação da Constituição de 1787. De nossa parte, entendemos que o sufrágio deve efetivamente ser universal, mas com limitações mínimas à idade de 18 anos, coincidente com a imputabilidade criminal, e cultural; realisticamente, no nosso caso, exigindo-se a alfabetização, pelo menos. AS AUTOCRACIAS13 13.1.AUTOCRACIAS: CONCEITO E CARACTERÍSTICAS Enquanto nas democracias existe participação do povo na escolha dos governantes e na votação do ordenamento jurídico do Estado, nas autocracias inexiste tal participação. São ainda características das autocracias: (a)concentração do poder político – ou seja, todas as funções governamentais (executivas, legislativas e judiciárias) são enfeixadas nas mãos de um único homem, ou então de um partido que tudo e todos controla com mãos de ferro; (b)desacolhimento do Direito Público subjetivo – isto quer dizer, em última análise, que não há qualquer possibilidade de alguém, ameaçado ou prejudicado em seus direitos individuais pelos agentes do poder político, insurgir-se contra eles perante os órgãos competentes para afastar a sobredita ameaça ou então pleitear reparação pelos danos sofridos; (c)inexistência do princípio da legalidade – ora, se pelo princípio da reserva legal ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer, senão em virtude da lei, nas autocracias referido princípio é inócuo, uma vez que todos, a rigor, são obrigados a fazer ou deixar de fazer aquilo que é ditado pelo poder absoluto; (d)ausência de participação dos governados – como já acentuado, inexiste nas autocracias a possibilidade de os governados efetivarem a eleição de seus preferidos aos cargos do Executivo e Legislativo, cabendo tal tarefa ao grupo dominante. Para Montesquieu, no seu célebre O Espírito das Leis, “autocracia” e “opressão” são sinônimos, visto que, embora busquem a paz, fundam-se no terror, na intimidação, “no silêncio das cidades prestes a serem ocupadas”. Para John Locke, é o regime político semelhante à “paz dos cemitérios”, onde “todos se calam”. 13.2.AUTOCRACIAS: INSTRUMENTOS GARANTIDORESAs autocracias valem-se de instrumentos bastante característicos para se firmarem no poder, quais sejam: (a)partido único – já que se cuida de um pequeno grupo que se encastela no poder, vale-se ele de um único partido, com o fechamento, proscrição e perseguição de outros que porventura ousem disputar com ele o poder político; no nazismo, por exemplo, o partido nacional-socialista (Nazi) passou a ser o único legal quando da consolidação dos poderes de seu expoente máximo, Adolf Hitler; na Itália, o partido fascista, igualmente, era o único e oficial, comandado por Benito Mussolini; na extinta União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, reinava absoluto o partido comunista, assim como ainda monopoliza a política na China Nacionalista e em Cuba; (b)controle absoluto dos meios de comunicação de massa – a doutrinação do povo é certamente essencial para que aceite passivamente as diretrizes do grupo e partido dominante; e essa tarefa é exercida geralmente por um corpo de informações bem organizado, como o poderoso Ministério da Propaganda, confiado por Hitler ao sinistro Goebbels, o Departamento de Informações e Propaganda, de Getúlio Vargas no seu Estado Novo, a agência TASS da ex-URSS,1 o DOC – Departamento de Orientação Revolucionária de Cuba etc.;2 (c)polícia política – trata-se do braço vigilante e repressivo de qualquer movimentação contrária à manutenção da ordem autocrática ditada pelo grupo dominante; e exemplos não faltam desse odioso instrumento, como a temida GESTAPO3 alemã, a KGB4 soviética, os Ton Ton Macoute do Haiti de Papa e Baby Doc, a DINA chilena, após o golpe de 1973 etc. Desta forma, referidos instrumentos destinam-se à manutenção da ordem ditada pelo poder político monolítico, sem oposições de qualquer natureza. 13.3.AS AUTOCRACIAS ANTIGAS E CONTEMPORÂNEAS Na Grécia, havia as tiranias, regimes opressivos observados ao longo de boa parte de sua história, e caracterizados pela concentração do poder político nas mãos de um monarca ou usurpador do poder. Para Aristóteles, como já salientamos noutro passo, tratava-se da deformação, ou forma impura da monarquia. Em Roma, houve as famosas deformações da antiga república, dando origem ao império com toda ordem de abusos, mas iniciado por Júlio César no intuito de pôr fim ao caos que ameaçava instalar-se na já vasta extensão territorial de Roma acrescida das terras conquistadas. Os imperadores, como a história nos conta, e em sua grande maioria, caracterizam-se não apenas pela ambição extremada, como também pela insensibilidade e apego ao mando, não raro dele apeados pela violência e morte, instrumentos de conquista do poder muitas vezes apenas pelo poder. Na Idade Média, as autocracias ou eram exercidas pelo próprio Papa, na qualidade de chefe espiritual da Igreja Católica e, ao mesmo tempo, senhor de vastos domínios territoriais, ou então fracionada e limitadamente, no sentido territorial, pelos senhores feudais e reis. Na Idade Moderna, com a crise do feudalismo, a expressão máxima das autocracias consubstanciou-se na monarquia absolutista, chegando Luís XIV até mesmo a dizer sem rebuços que o Estado era ele mesmo (“L’État c’est moi”).5 Na Idade Contemporânea, podemos apontar o nazismo, o fascismo e o comunismo como expressões máximas de autocracias. 13.3.1.O Nazismo Com a derrota da Alemanha ao término da primeira conflagração mundial (guerra de 1914 a 1918), viram-se seus habitantes humilhados pelos termos do Tratado de Versalhes, que lhes impunha restrições ao comércio mundial, retaliação no próprio território nacional, imposição de indenizações pelos danos de guerra e proibição de manterem exércitos próprios. Além disso, a economia, arrasada, debatia-se com inflação galopante, desemprego em massa, sem falar-se no enfraquecimento da república de Weimar, comandada pelo velho presidente Hindemburg, numa tentativa frustrada no sentido de soerguimento da outrora orgulhosa Alemanha dos kaisers. Foi então que surgiu um obscuro pintor, veterano da mesma guerra de 1914-1918, nascido na Áustria, e em princípio encarado como um mero arruaceiro, pelas ruidosas manifestações de seus SA. Aos poucos, porém, sabedor das chagas abertas pela humilhante derrota alemã, bem se aproveitou Adolf Hitler para relembrá-la do fastígio e glórias do passado, principalmente nos campos cultural, econômico e militar. Necessário era ainda eleger culpados pela mesma derrota: os judeus e os comunistas, que ameaçavam a frágil ordem estabelecida pela República de Weimar. “A revolução nazista”, conta-nos Burns, “começou de modo aparentemente inofensivo; no verão de 1932, o sistema parlamentar entrou em falência; nenhum chanceler podia conservar a maioria no Reichstag, uma vez que os nazistas recusavam apoio a qualquer gabinete que não fosse chefiado por Hitler, e os comunistas negavam-se a colaborar com os socialistas; em janeiro de 1933, um grupo de reacionários – industrialistas, banqueiros e Junkers – convenceram o presidente Von Hindemburg a nomear Hitler chanceler, evidentemente na esperança de poderem controlá--lo... Os patrocinadores desse plano, porém, não haviam sabido avaliar a tremenda revivescência de sentimento nacional que se ocultava por trás do movimento nazista; Hitler não tardou em tirar o máximo proveito dessa nova oportunidade; começou por intimidar o maior número possível de seus adversários, suprimindo as uniões trabalhistas e tomando medidas drásticas contra socialistas e comunistas”. Em seguida, Hitler conseguiu convencer o velho presidente Hindemburg a dissolver o parlamento e convocar eleições. “Poucos dias antes, o edifício do Reichstag fora devorado por um incêndio que Hitler sustentava ser de origem comunista; mas, a despeito dessa tentativa de amedrontar a nação invocando o espectro do bolchevismo, os nazistas não conseguiram obter a maioria dos votos populares, conquistando apenas 288 cadeiras no Reichstag, de um total de 647; não obstante, os 52 membros eleitos pelos seus aliados, os nacionalistas, conferiam-lhes uma pequena maioria; ao reunir-se pela primeira vez, em 21 de março, o novo Reichstag concedeu a Hitler poderes praticamente ilimitados; pouco depois, a bandeira da República de Weimar foi arriada e substituída pela suástica do nacional-socialismo; a nova Alemanha foi proclamada como o Terceiro Reich, sucessor do império medieval dos Hohenstaufen e do Império Hohenzollern dos kaisers.”6 E, certamente, o mundo conheceu uma das mais terríveis ditaduras a partir daí, com o verdadeiro genocídio das minorias judias dos países conquistados, e toda a sorte de atrocidades contra a humanidade. O pesadelo terminou apenas em 1945, com a vitória final dos aliados, submetendo os países do Eixo (Alemanha/Itália/Japão) a uma rendição incondicional, como os milhões de mortos certamente exigiram do silêncio de suas tumbas. 13.3.2.O Fascismo As causas que propiciaram o surgimento dessa autocracia são praticamente as mesmas do nazismo, com exceção de que a Itália, ao contrário da Alemanha, havia saído vencedora do primeiro grande conflito mundial, mas sem poder concretizar seus sonhos de expansão, principalmente pelo norte da África. Frustrados e, além do mais, com a economia completamente arrasada pelo enorme esforço de guerra, que trouxe consigo massas de desempregados, a ameaça de tomada do poder pelos comunistas, e inflação incontrolável, os italianos logo se voltaram para Benito Mussolini que, a exemplo de Hitler, bem soube explorar o nacionalismo. O termo “fascismo” provém de fasces, símbolo máximo do poder do outrora orgulhoso e opulento Império Romano, ou seja, um feixe de varas a prender um machado, e a significar precisamente as magistraturas romanas de então, todas enfeixadas nas mãos dos imperadores. Geralmente, cabia aos lictores abrir com o referido símbolo sobre os ombros os desfiles do séquito imperial pelas ruas de Roma, bem como os conquistadores e vencedores. Da mesma forma que Hitler, Mussolini foi encarado de início como um fanfarrão, à frente do ruidoso grupo dos “camisas negras”. Em grupos organizados– as chamadas “esquadrias” – os fascistas aterrorizavam seus adversários, sobretudo os comunistas. “As atividades esquadristas”, conta-nos Burns,7 “compreendiam uma campanha de terrorismo contra todos os que fossem considerados inimigos do povo; os métodos consistiam em táticas brutais, como a de espancar a vítima até a inconsciência, a de arrancar-lhe os dentes ou administrar-lhe doses maciças de óleo de rícino; também praticavam o rapto e o assassínio”. Em 1922, finalmente, Mussolini comandou a “marcha sobre Roma”, e “em outubro apresentou ao governo um ultimato em que exigia novas eleições, uma política externa vigorosa e cinco pastas no gabinete para si e para os seus partidários; como o primeiro-ministro e o parlamento não tomassem conhecimento dessas exigências, iniciou-se a marcha sobre Roma; em 28 de outubro um exército de cerca de 50.000 milicianos fascistas ocupou a capital; o primeiro-ministro renunciou e, no dia seguinte, Vitor Manuel III convidou Mussolini para organizar um gabinete; assim, sem disparar um só tiro, as legiões de camisas negras haviam assumido o controle do governo italiano; a explicação de tal fato deve ser procurada não na força do fascismo, mas no caos criado pela guerra e na falta de uma dedicação firme do povo italiano ao regime constitucional”.8 Tratou-se, por certo, assim como o nazismo na Alemanha, de uma verdadeira autocracia, com graves restrições aos princípios democráticos. 13.3.3.O Comunismo Na visão do cientista político José Luís Fiori, da Universidade Federal do Rio de Janeiro:9 “Gerrard Winstanley, líder intelectual da ala radical do exército de [Oliver] Cromwell, talvez tenha sido o primeiro a apresentar um programa comunista de governo para uma república. Para ele, não haveria liberdade enquanto não houvesse igualdade econômica, que só seria alcançada com a propriedade comunitária da terra. Essa ideia reapareceu várias vezes no século seguinte, mas talvez tenha sido com [Jean-Jacques] Rousseau que ela deu um salto estratégico, quando ele propôs, na segunda metade do século 18, que o Estado deveria ser o único proprietário, eliminando-se a origem de todas as desigualdades. No século 19, essa ideia assumiu uma forma mais consistente no programa mínimo de governo proposto por [Karl] Marx no final do Manifesto Comunista, de 1848. Só que Marx aumentou a dificuldade da equação ao propor simultaneamente a estatização da propriedade privada como caminho para o socialismo e como ponto de chegada do socialismo, quando a propriedade privada e o Estado deveriam desaparecer. Desde então, ora a propriedade e o Estado devem desaparecer, ora aparecem como instrumentos indispensáveis de poder para a construção do socialismo, numa circularidade que confunde os socialistas há muito tempo.” A denominação “comunismo”, propositadamente entre aspas, é imprópria no sentido de designar a forma de governo até pouco tempo atrás imperante na URSS, e ainda hoje na China Continental e Cuba, por exemplo. Com efeito, o termo correto seria “socialismo”, em sua forma integral, uma vez que o que pretendiam seus mentores era a coletivização tanto dos meios de produção, como de sua distribuição (“de cada um segundo sua capacidade, e a cada um segundo suas necessidades”). Já o “socialismo”, puro e simples, visa, em última análise, à coletivização apenas dos meios de produção, em maior ou menor grau (das indústrias, do grande comércio distribuidor apenas, dos bancos etc.). A teoria marxista-leninista, embora de conteúdo marcadamente econômico, pode ser dividida em três partes principais, e que serão, ainda que brevemente, analisadas, a saber: (a)sociológica – que compreende o chamado “materialismo histórico” e a “luta de classes”; (b)econômica – com as teorias da plus-valia ou “mais-valia” do fator trabalho, da “evolução” e “concentração” do capital; (c)política – prega a revolução proletária, e assunção do poder pela classe operária.10 Antes de nos adentrarmos na análise de cada um dos referidos aspectos, poderíamos dizer que, assim como o nazismo e o fascismo, o “comunismo” implantado na antiga União Soviética teve como palco um país totalmente arrasado pela guerra de 1914-1918, e sobretudo muito mais arrasado do que a Alemanha e a Itália, eis que com estrutura praticamente medieval, e fortemente ligado à agricultura. Com a derrubada da monarquia czarista em 1917, instalou-se um governo de cunho republicano e parlamentarista, mas extremamente frágil. O chefe desse governo, Kerensky, pertencia à corrente chamada “menchevista”, moderada, no partido do povo (“comunista”), e logo sucumbiu ao poder dos “bolchevistas” (em russo bolchevik significa “maioria”), ala mais radical do mesmo partido, implementando-se assim o socialismo. Aliás, desde 1903, ao ensejo da II Convenção do Partido do Povo Russo (“comunista”), os “bolchevistas” eram notoriamente majoritários, consolidando seu poder, então, em 1917. Trotsky, Lenin, Stalin e outros representavam a mencionada corrente majoritária, enquanto Plekhanov, Martov, Kerensky e outros, a primeira, moderada mas minoritária. Com relação ao primeiro aspecto retroapontado do comunismo, no campo sociológico, Karl Marx considerava que, ao longo de toda a história da humanidade, os homens sempre se defrontaram em “lutas de classes”, exatamente em decorrência das flagrantes desigualdades entre eles verificada. Assim, na Antiguidade, defrontaram-se “senhores” e “escravos”; na Idade Média, “senhores feudais”, de um lado, e “servos das glebas”, de outro; na Idade Moderna e Contemporânea, finalmente, “detentores do capital” contra “proletariado”. Também no que dizia respeito aos fenômenos econômicos, teríamos o regime artesanal da Idade Média, contrapondo-se ao regime econômico mercantilista, substituído pelo capitalismo. Ora, aproveitando-se do chamado processo dialético (contraposição de ideias divergentes), então, Marx disse que determinada ordem de ideias seria uma tese, e sua contraposição, uma antítese. Logo, entretanto, haveria uma síntese, advinda do choque das outras duas. Entretanto, dizia ainda Marx, a síntese, com o passar do tempo, logo se transformaria numa tese, que fatalmente encontraria a sua antítese, fundindo-se numa nova síntese, e assim indefinidamente, até chegar-se ao ideal por ele preconizado: uma sociedade sem conflitos, e uma igualdade buscada entre todos os homens, que viveriam em paz num verdadeiro “paraíso comunista”. Ora, desde logo se pode constatar ser contraditória essa afirmativa, já que, embora se alcançasse eventualmente um buscado paraíso igualitário para todos os homens, referido estado de coisas logo se transformaria numa nova tese, em contraposição logo a uma nova antítese, e assim indefinidamente. No que tange ao aspecto econômico, as teorias da plus (ou mais) valia, evolução e concentração do capital significam, resumidamente, o seguinte: tomando-se por base as horas trabalhadas pelos operários da época observada por Marx, ou seja, em jornadas absurdamente longas (12, 14 e até 16 horas por dia), dizia ele que os primeiros não eram remunerados à altura do seu trabalho incessante; como consequência, eles próprios, operários, seriam incapazes de absorverem, como consumidores, o fruto do seu próprio trabalho; num primeiro momento, tal estado de coisas seria altamente benéfico aos donos do capital, vez que muito lucrariam com o referido desequilíbrio entre custos/lucros; num segundo momento, entretanto, haveria inexoravelmente “subconsumo” e “superprodução”, o que levaria à falência os mesmos donos do capital. Com relação à parte política da teoria marxista, consiste exatamente na revolução proletária e tomada do poder pela classe oprimida, e que trabalharia em busca do almejado paraíso comunista. Coube a Lenin aperfeiçoar a teoria marxista e adaptá-la à União Soviética. Suas teses mais importantes são as do Estado-Pedagogo e do Estado--Evanescente: o homem, vivendo sob o regime de produção capitalista, estaria corrompido e mereceria ser reeducado para viver sob o novo regime socialista; desta forma,o Estado, um “mal necessário”, já que no futuro “paraíso comunista” não haveria sequer a necessidade de um poder governamental, serviria para essa reeducação. À medida, porém, que os homens fossem sendo “reeducados” para o socialismo, o próprio Estado iria desaparecendo, até desvanescer de vez, dando então lugar à almejada sociedade perfeita com igualdade entre os homens. Hoje, como já afirmado passos atrás, a União Soviética terminou por dar origem à CEI, Comunidade de Estados Independentes, que na verdade congrega 11 das antigas 15 Repúblicas Soviéticas em federação de Estados, extremamente centralizada em Moscou. Recentemente a Geórgia, que, ao lado da Estônia, Letônia e Lituânia, havia se tornado totalmente independente da própria CEI, por razões de divisões internas, acabou por juntar-se àquelas. image1.pngparticular, quando se tratar de exemplificação e análise prática de algum conceito emitido. Para Herman Heller,11 com efeito, ao cuidar do campo de estudos da Teoria Geral do Estado, somente lhe incumbiria estudar o Estado, mas não o “fenômeno Estado”; para Arturo Enrique Sampay, contudo, seu objeto é mais amplo, visto ter que se preocupar também com a realidade histórica e mecanismos operacionais do próprio ente estatal. E, com efeito, para ele, a Teoria Geral do Estado se propõe a conhecer o princípio fundamental do Estado e submeter à investigação científica os fenômenos gerais do mesmo e suas determinações básicas, razão pela qual seus resultados, afirma, não se devem ao estudo particular de um Estado, mas são obtidos mediante a investigação teórico-social. Caberá à “teoria particular”, portanto, preocupar-se com as instituições particulares do Estado em geral, as de um grupo de Estados determinados ou as destes, mas sempre com relação a uma época determinada e limitada – como no caso em que afirmamos serem tais particularidades objeto do Direito Constitucional de cada Estado em particular –, tudo para chegar-se a explicar as formas típicas dessas instituições de um Estado. Marcel de la Bigne Villeneuve, a seu turno, propõe o termo Estatologia para denominar a disciplina de que ora se cuida, mas reconheceu que “Teoria Geral do Estado” era a mais apropriada, ao passo que Jean Dabin entendeu que a matéria em questão envolvia uma gama de conhecimentos que a transformariam em uma verdadeira doutrina sobre o Estado.12 2.5.TEORIA GERAL DO ESTADO: CONCEITO, DIVISÃO DA MATÉRIA, FONTES E METODOLOGIA Esclarecido já o objeto da Teoria Geral do Estado – ou seja, qualquer Estado, e não especificamente um em particular – bem como seu relacionamento, ou antes, seu caráter introdutório ao estudo de outras disciplinas jurídicas, resta-nos a análise do conceito da matéria, de suas partes mais importantes, fontes e metodologia, seguindo a linha de raciocínio do prof. Aderson de Menezes.13 Segundo Alessandro Groppali,14 a Teoria Geral do Estado pode ser definida como “ciência geral que, enquanto resume e integra, em uma síntese superior, os princípios fundamentais de várias ciências sociais, jurídicas e políticas, as quais têm por objeto o Estado considerado em relação a determinados momentos históricos, estuda o Estado de um ponto de vista unitário na sua evolução, na sua organização, nas suas funções e nas suas formas mais típicas, com o escopo de determinar-lhe as leis de formação, os fundamentos e os fins”. Já o prof. Aderson de Menezes15 prefere conceituar a TGE como “a ciência geral que, na análise dos fatos sociais, jurídicos e políticos do Estado, unifica esse tríplice aspecto e elabora uma síntese que lhe é peculiar, para estudá-lo e explicá-lo na origem, na evolução e nos fundamentos de sua existência”. Consoante o magistério do prof. Miguel Reale,16 outrossim, “conhecimento totalmente unificado do Estado, a Teoria Geral do Estado recebe os dados das diferentes ciências particulares, e depois os reelabora, para chegar a uma síntese de elementos constantes e essenciais, com exclusão do acessório e secundário”. E acrescenta: “O Estado aparece, então, como uma pirâmide de três faces, a cada uma delas correspondendo uma parte da ciência geral: uma é a social, objeto da ‘Teoria Social do Estado’, na qual se analisam a formação e o desenvolvimento da instituição estatal em razão de fatores socioeconômicos; a segunda é a jurídica, objeto da ‘Teoria Jurídica do Estado’, estudo normativo da instituição estatal, ou seja, de seu ordenamento jurídico; a terceira é a política, de que trata a ‘Teoria Política do Estado’ para explicar a finalidade do governo em razão dos diversos sistemas de cultura.” O mencionado autor, por outro lado, chama a atenção no sentido da necessidade de se focalizarem os três aspectos essenciais do Estado não apenas no sentido material, normativo e teleológico, mas também o fenômeno do poder, como fato social, como fato jurídico e como fato político. Daí porque entendemos ser a definição de Groppali a mais completa, porque elenca todos os elementos essenciais que caracterizam o Estado. Ousamos, contudo, enunciar definição mais enxuta, e que procura sintetizar os termos propostos por Groppali, bem como pelo prof. Aderson de Menezes, e com enfoque principal no tríplice aspecto tão bem enfatizado pelo prof. Miguel Reale, como reflexo de sua célebre teoria tridimensional do Direito (fato, valor e norma). E, com efeito, Teoria Geral do Estado é a ciência que, tendo por objeto a sociedade política, analisa-a nos aspectos sociológico, político e jurídico, com vistas a explicar sua origem, estrutura, evolução, fundamentos e fins. Da análise das referidas definições, portanto, pode-se destacar o tríplice aspecto apontado, a saber: a)sociológico – ou seja, nesse enfoque cuidar-se-á de analisar o Estado de acordo com sua origem e evolução, a partir de núcleos humanos mais rudimentares – a começar pela família nuclear –, até chegarmos a grupos humanos mais complexos em evolução (isto é, clãs, tribos, nações), culminando com a expressão máxima da organização da vida social, consubstanciada pelo próprio Estado; b)jurídico – o Estado é, antes de mais nada, um tipo especial de sociedade, e por isso mesmo dotado de poder e normas, não apenas com vistas à manutenção da ordem, como também como condição de existência da própria sociedade política; nesse aspecto é que se pode dizer que, onde existe sociedade, deve necessariamente existir o Direito, mais poder que assegura o seu cumprimento e aplicação, sob pena de caos social, obstaculizando-se a própria realização do bem comum de seus componentes; c)políticos – nesse terceiro aspecto, por fim, procuram-se as justificativas para a existência do próprio Estado, ou seja, da organização de seus elementos constitutivos, cumprindo-se desta forma os anseios da comunidade de homens que buscam sua realização biopsíquica. Torna-se imprescindível, porém, o auxílio de outras ciências, além da Sociologia, Política e Direito, com vistas à própria explicação do fenômeno estatal, donde buscar a Teoria Geral do Estado na História, sobretudo, os conhecimentos necessários àquele desiderato, sem falar-se dos estudos fornecidos pela Paleontologia, Paleoantropologia, que informam a respeito da própria origem do homem, modus vivendi, e, ainda mais particularizadamente, formas de vida social e política, pelos vestígios encontrados. Estas as fontes principais da TGE. São também objeto da Teoria Geral do Estado as instituições políticas e entidades que exercitam o poder de pressão, sobressaindo-se ainda como fontes relevantes de dados fornecidos pela imprensa em geral a respeito do fenômeno político. A metodologia também tenderá a refletir os três aspectos enfocados, ou seja, primeiramente, preocupar-nos-emos em analisar a realidade social, em evolução constante, mas pinçando o seu reflexo nas posições de mando e emanação das normas jurídicas. Quando tratarmos do aspecto essencialmente político, a preocupação central será com o poder e suas variadas expressões, até chegarmos à soberania, sua expressão máxima. E, aqui, demorar-nos-emos no genial trabalho de engenharia política de Montesquieu, no sentido de tripartir a soberania do Estado em funções parcimoniosas do poder. Finalmente, no que tange ao aspecto jurídico, merecerá redobrada atenção, já que, como asseverado passos atrás, encaramos a TGE como um verdadeiro alicerce para a construção do universo jurídico de modo global. E aí daremos especial destaque ao eterno conflito entre o Estado e a liberdade individual, bem como aos instrumentos de tutela dos direitos individuais, hoje estendidos em nível universal, até se constituírem nos Direitos Humanos. Ou, melhor colocado didaticamente por Francisco Perez:17 “Dizemos que o Estado é um ser social e, portanto, único, embora complexo e não simples, em atenção aos diversos aspectos que apresente: 1o sua realidade fenomênica, seu aspecto exterior que podemos conhecermediante o método científico; 2o sua realidade última, que se traduz na necessidade de penetrar em sua essência, em sua substância a que nos leva o método filosófico; 3o uma existência histórica, que é um fazer humano constantemente renovado, o que dá lugar a muitos Estados que têm vida, que nascem, que se desenvolvem e morrem, e que, por isso, para conhecer os diversos Estados do passado em suas origens e desenvolvimento, temos de fazer uso do método histórico; 4º também apresenta uma atividade, e esta atividade do Estado dá lugar a que, para conhecê-lo, se utilize o método jurídico.” 2.6.CIÊNCIA POLÍTICA (COM TEORIA GERAL DO ESTADO) A Teoria Geral do Estado, como já acentuado no item 2.4, assumiu foros de disciplina nova, independente do Direito Constitucional, geralmente ministrado no segundo ano das faculdades de Direito. E isto por força do Decreto-Lei nº 2.639, de 27.09.40. A Portaria nº 1.886, de 30.12.94, do Ministério da Educação, porém, que “fixou as diretrizes curriculares e o conteúdo mínimo do curso jurídico”, mais precisamente em seu art. 6o, acabou por subverter tal ordem, em última análise. É que seu autor, o então Ministro da Educação, Murilo de Avellar Hingel, talvez ignorando tal aspecto que nos parece de suma relevância, já que se cuidava de distinguir uma disciplina nova e essencial como preparatória para outras como o próprio Direito Constitucional, Direitos Tributário, Administrativo e Judiciário, acabou por estabelecer o seguinte: “Art. 6o – O conteúdo mínimo do curso jurídico, além do estágio, compreenderá as seguintes matérias, que podem estar contidas em uma ou mais disciplinas do currículo pleno de cada curso: I – Fundamentais: Introdução ao Direito, Filosofia (geral e jurídica, ética geral e profissional), Sociologia (geral e jurídica), Economia e Ciência Política (com Teoria do Estado).” Dessa forma, fica-se sem saber o que, na verdade, levou o então Sr. Ministro da Educação a baixar tão esdrúxula norma, ora cumprida pelas instituições do ensino do Direito no País. E isto porque, na verdade e em última análise, o único traço distintivo entre uma e outra disciplina é a análise profunda da sociedade política, de um lado, e de outro o seu funcionamento, sobretudo se tendo em conta a ética dos detentores do poder, ou então um dado projeto idealizado para aquela mesma sociedade política funcionar. Tenha-se ainda em vista que o fim visado pela sociedade política, isto é, o bem comum é o balizamento principal da política como ciência. Como já ensinava nosso estimado mestre de Teoria Geral do Estado, na velha Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, prof. Ataliba Nogueira, “o Estado é meio, não fim.” Queria com isso dizer que, na verdade, somente se justifica a criação de um ente dotado de soberania com vistas ao atingimento de um estado de coisas favorável ao pleno desenvolvimento do ser humano em todos os sentidos. Isto quer também dizer que o Estado, ao contrário do postulado fascista (“Tudo pelo Estado, tudo dentro do Estado, tudo voltado para o Estado, e nada fora do Estado”), é mero instrumento para a realização do homem, tendo-se em vista sua fragilidade e impossibilidade de bastar-se a si mesmo. E, com efeito, enquanto, como já visto, a Teoria Geral do Estado preo-cupa-se em estudar o fenômeno político por excelência, qual seja, o Estado, como pessoa jurídica dotada de um poder soberano e de um ordenamento jurídico visando ao bem comum, a Ciência Política preocupa-se com os aspectos práticos do exercício do referido poder. Ou seja, e mais explicitamente: enquanto a TGE cuida de analisar o Estado em seu tríplice aspecto (jurídico, político e social), a Ciência Política pretende explicar os mecanismos de exercício do governo, que é a sua parte visível, além de idealizar as formas e sistemas mais adequados para determinada sociedade. A língua inglesa, bem por isso mesmo, emprega dois termos diversos para designar uma coisa e outra. Com efeito, para designar a Ciência Política, como arte de bem empregar os recursos disponíveis para a consecução do bem comum, usa o termo “policy”, falando, por exemplo, em “política” para a educação, para a saúde etc. Já para designar o fenômeno político em si, emprega o termo “politics”. Ora, o termo “policy” insere-se exatamente na órbita da arte de governar que, em última análise, significa Eleição de Prioridades. Mesmo porque, dependendo o Estado de receita limitada que lhe é fornecida por tributos e outras fontes de subsídios, para que exerça suas funções com vistas à consecução do bem comum, leva os administradores, que em última análise detêm o poder político, a elegerem o que de mais prioritário e importante deverão fazer para o atingimento daqueles fins. Já o termo “politics” significa basicamente o sistema de escolha dos governantes e modos de assunção do poder político. Enquanto, portanto, a Ciência Política preocupa-se mais com o conteúdo e fisiologia da sociedade política, a Teoria Geral do Estado volta-se para a sua análise profunda e descritiva. Na verdade e de há muito tempo, estuda-se nas faculdades de Direito, de modo geral, Ciência Política e, ao mesmo tempo, Teoria Geral do Estado, nos moldes idealizados pelo saudoso professor Pedro Salvetti Netto, cujo Curso de Teoria do Estado, em sua primeira edição, denominava-se Curso de Ciência Política. Mesmo porque, se compulsada tanto uma como outra edição, observar--se-á, desde logo, que forte é o seu conteúdo filosófico e sobretudo ético, em busca de um Estado que se preocupe efetivamente com o bem comum ou bem-estar de sua população, e não apenas com sua rotulagem e organização. Consoante considerações a respeito extraídas da Comptons’s Interactive Encyclopedia, 1993 (verbete “Political Science”), um dos significados da palavra grega politeia é “governo”. A palavra foi usada na antiga Grécia como um termo genérico para descrever a maneira pela qual as então cidades-estados eram governadas, e ela é derivada da palavra “polis”, que quer dizer “cidade-estado”. Hodiernamente, a palavra “política” refere-se a todos os aspectos e tipos de governo. E a Ciência Política é uma expressão mais específica. Com efeito, ela quer dizer o estudo sistemático do governo mediante os melhores métodos disponíveis. Cuida-se, por isso mesmo, de uma das Ciências Sociais, ao lado da Antropologia, Economia, Geografia e Sociologia. A Ciência Política é ainda estreitamente ligada ao Direito, porquanto a elaboração das leis é uma das principais funções governamentais. O objeto da Ciência Política é tão vasto quanto a natureza do governo ou poder. Ela estuda comparativamente diversos tipos de governo, sua estrutura, funções e órgãos governamentais, o papel dos cidadãos na tomada de decisões, influência de grupos de pressão, função de opinião pública, e seu impacto nas decisões políticas, meios de votação, a criação e funcionamento de partidos políticos, o papel da imprensa no processo político etc. A moderna Ciência Política surgiu no século XIX, quando se pensava que quase todo objeto de conhecimento poderia ser matéria de uma ciência específica e particularizada. O objeto de estudos em pauta, todavia, é bastante antigo. O poder político, representado por um determinado governo, é uma das mais relevantes instituições humanas. E, portanto, muito se tem escrito a seu respeito durante séculos. Boa parte do que se produziu a respeito cuida, porém, dos aspectos filosóficos e teóricos do fenômeno político. Enquanto ela discute o que é governo ou poder de fato, seu maior interesse diz respeito ao que um governo deveria ser. Daí porque grande parte da literatura disponível nesse sentido é utópica, porque descreve Estados hipotéticos que teriam muito pouca possibilidade de realização. A República de Platão, por exemplo, é um excelente exemplo de filosofia política, porque nela ele descreve o Estado ideal e suas funções. Outros filósofos políticos foram: o orador romano Cícero, autor de outra República, Santo Agostinho, com sua A Cidade de Deus, Tomás de Aquino e Dante,ambos escrevendo sobre a monarquia, Nicolau Maquiavel, autor de O Príncipe, Thomas Hobbes, que sintetizou suas ideias no Leviatã, Montesquieu, autor de O Espírito das Leis, John Locke que nos deu Os Dois Tratados sobre o Poder, e Edmund Burke, autor de Reflexões sobre a Revolução Francesa. A Ciência Política, enfim, está preocupada com o real e efetivo funcionamento do governo ou exercício do poder político, e não com o “Estado ou governo ideal”. A Universidade de Columbia, em 1857, foi a pioneira instituição nos Estados Unidos da América a criar um curso permanente de Ciência Política, sendo seu primeiro titular o prof. Francis Liber, um imigrante alemão, e autor da obra Sobre Liberdades Civis e Autogoverno (1853). Em 1880 uma escola inteiramente dedicada à Ciência Política foi instalada na Universidade de Columbia por John W. Gurbess, que estudara em Paris na “École Libre des Sciences Politiques”. No mesmo ano, a Academia de Ciência Política foi fundada. Outra organização profissional, a Associação Americana de Ciência Política, foi fundada em 1903. E, a partir de 1880, diversas faculdades abriram cursos específicos de Ciência Política. Conforme bem sintetiza o prof. Aderson de Menezes,18 “no concernente à Política, que nada mais é, na acepção atual, do que a ciência ou a arte de governar o Estado, a controvérsia é ainda maior, persistindo especialmente em virtude das diferenças linguísticas e das preferências individuais, muito embora tenha acontecido, através da marcha secular do tempo, inegável mudança na significação dessa palavra”. E acentua, na mesma trilha das ponderações anteriormente elencadas, que: “E, por isso, a Política apresenta teor científico quando aplica conhecimentos para a realização do governo, não ultrapassando, porém, os limites de execução artística quando desenvolve planos para conseguir os objetivos visados. Aqueles conhecimentos são obtidos pela Teoria Geral do Estado, competindo à Política, pela ação prática, estimar os respectivos valores. Não há como negar que alguns autores, aferrados ao entendimento clássico, mas já modificado, continuam a identificar a Teoria Geral do Estado e Política, empregando até a conjunção ‘ou’ entre as duas expressões para dar-lhes o mesmo significado e, com isso, estabelecerem absoluta sinonímia. Não procede, porém, essa perseverança, ou melhor, essa fidelidade ao modelo antigo porque – faz perfeita luz Miguel Reale, apesar de integrar a corte em tela – ‘embora o termo Política seja o mais próprio aos povos latinos, mais fiéis às concepções clássicas, já está universalizado o uso das expressões Teoria Geral do Estado e Doutrina Geral do Estado (Allgemeine Staatslehre), para designar o conhecimento unitário e total do Estado. A palavra Política é conservada em sua acepção restrita para indicar uma parte da Teoria Geral, ou seja, a Ciência Prática dos Fins do Estado e a Arte de Alcançar esses Fins’.” Diante de tais ponderações, portanto, manifesto o equívoco do Ministério da Educação em mudar o nome de nossa disciplina, por duas razões: a)a uma, porque, na verdade, a Teoria Geral do Estado é muito mais abrangente do que a Ciência Política, já que descreve o próprio Estado, seu mecanismo e seu tríplice aspecto (sociológico, jurídico e político), enquanto a segunda estuda apenas o mecanismo das instituições políticas e assunção do poder; b)a duas, porque se cuida de disciplina adequada a um curso de Direito, que certamente dá maior enfoque aos aspectos jurídicos da questão, sendo a Ciência Política mais adequada aos cursos de Ciências Sociais. Cumpre ainda salientar que, ao contrário do enunciado, o certo seria Teoria Geral do Estado com Ciência Política, e não o contrário. E isto porque, como se verá no desenrolar do programa, embora se dê mais atenção à descrição do Estado e das várias formas de governo e exercício do poder político, jamais se descartou a realidade vigente hoje no mundo moderno, analisando-se os sistemas de governo e, portanto, seu mecanismo, sempre tendo como referência o bem comum, única justificativa lógica para a existência do próprio Estado. 3.1.A SOCIEDADE EM GERAL Em sequência às noções expostas no capítulo anterior, e, principalmente, de acordo com a metodologia imprimida a este manual de Teoria do Estado, o primeiro aspecto a ser estudado é exatamente o relativo à sociedade, já que o Estado é uma espécie de sociedade. E, com efeito, conforme nos ensina Aristóteles, em sua Política, o homem é o politikon zoon, ou seja, animal gregário, não se o concebendo senão vivendo em contato permanente com outros homens em vida gregária. Para bem justificar essa assertiva, Aristóteles pondera que o homem isolado “ou é um bruto ou um deus”, ou seja, cada indivíduo necessita de outros para sua própria sobrevivência, e desde que se observa o ser humano ao longo do seu aparecimento na face da Terra, sempre figurou em grupos, nunca isoladamente. As mencionadas necessidades são evidentemente de ordem não apenas biológica, mas sobretudo cultural, a começar pela constituição do grupo familiar, que evolui, como já visto, até chegar ao Estado, mas não necessariamente, pois, como teremos ocasião de analisar passos adiante, enquanto a nação – grupo social mais evoluído e organizado – caracteriza-se por vínculos eminentemente sociológicos, a sociedade política por excelência (Estado) caracteriza-se pela existência de vínculos políticos e jurídicos. Nesse sentido é que podemos dizer que os ciganos, por exemplo, embora constituam uma verdadeira nação, jamais chegaram a se constituir em um Estado. Já os árabes ainda encontram -se espalhados por diversos Estados, e nem por isso deixam de formar uma nação, por comungarem das mesmas tradições, cultura, língua e, sobretudo, de uma “consciência social”. 3.2.SOCIEDADE: PRESSUPÕE VÍNCULOS Como bem apontado pelo prof. Salvetti Netto,1 a dificuldade de conceituarmos “sociedade” em geral consiste na circunstância de a confundirmos com meros agrupamentos humanos. Assim, acentua, “intuímos o que ela seja, para confundi-la, por exemplo, com uma reunião, ou com mero agrupamento de homens; o conceito, assim simplista, perde-se, todavia, por não traduzir seu elemento identificador; é que reunião de homens percebe-se em um comício, em uma passeata, e ninguém veria em tais fatos a existência de uma sociedade”. E conclui tal ordem de pensamento, asseverando que, em verdade, o conceito de “sociedade” prende-se à existência necessária de vínculos, ou seja, de liames – de interesses mais ou menos definidos, por certo –, que ligam os diversos indivíduos de molde a desejarem viver em agrupamentos. Diferentemente, os componentes de uma turba, passeata ou mera reunião em lugar de espetáculos para assistir a um show não caracteriza a existência de uma sociedade, já que os indivíduos aí agrupados não mantêm qualquer tipo de compromisso, ou então interesses com vistas à manutenção do próprio grupo para que atinja certos objetivos colocados como meta da própria convivência. Bem por isso é que Giorgio Del Vecchio2 define sociedade em geral como sendo o “complexo de relações pelo qual vários indivíduos vivem e operam conjuntamente, de modo a formarem uma nova e superior unidade”. Por enquanto, como já alertado no início deste capítulo, preocupar-nos--emos com a análise da referida definição, mas tendo por objeto qualquer sociedade, e não o Estado, especificamente. A ele dedicaremos, principalmente no que tange aos seus elementos constitutivos, capítulo específico. 3.3.ANÁLISE DOS ELEMENTOS DA DEFINIÇÃO 3.3.1.Relações Ao dizer que a sociedade é um complexo de “relações”, Del Vecchio quer dizer que da convivência, ou até por causa dela, os membros de uma determinada comunidade ou associação – e em passo oportuno haveremos de distingui-las – são sujeitos de liames éticos que, em última análise, refletem um encadeamento constante de relações jurídicas. Ou seja: para a vida social, é mister que haja um conjunto de normas de conduta, cuja finalidade principal é a manutenção da ordem da vida em comum, propiciando,dessarte, a persecução dos objetivos sociais, e satisfação dos interesses de seus componentes. Ora, essas relações nada mais são do que “vínculos” jurídicos, à medida que estabelecem direitos e obrigações recíprocas. Tome-se por exemplo um clube desportivo. Resta desde logo evidente que o clube é constituído pelos sócios que o compõem, e pela sede social, onde se desenvolvem as relações sociais. Essas relações sociais, todavia, pressupõem um regramento. Isto é, para que a convivência seja harmônica, e sejam atingidos os objetivos sociais (que no caso seriam o entretenimento dos sócios, a prática de esportes etc.), é necessário que existam normas de comportamento, das quais decorrem por certo direitos e obrigações recíprocas, entre os sócios, e entre esses e o clube, já que se trata de uma pessoa jurídica (sociedade tipo associação). E isto tudo sob pena de caos social, que se resume na ausência de ordem, prejudicando o próprio objetivo ou fim social. O mesmo ocorre, ainda à guisa de exemplo, numa sociedade comercial, religiosa, cultural e assim por diante. Ora, as relações de que fala o autor citado, por conseguinte, existem em qualquer tipo de sociedade, e variam, por certo, de acordo com os fins sociais. 3.3.2.Vivem e Operam Conjuntamente Aqui, Del Vecchio refere-se à colaboração não apenas mecânica dos vários indivíduos que compõem determinado grupo social, como também à contribuição consciente. Ou seja, referida convivência e obra conjunta é animada pela consciência de que tudo deve levar à harmonia e paz social, para a melhor consecução dos fins coletivos e particulares. E isto se chama affectio societatis, no sentido de que cada membro de cada sociedade se sente ligado a ela e aos demais associados de tal forma que tudo fará – ou deverá fazer – para a plena consecução de seus fins. 3.3.3.Nova e Superior Unidade Retomando o exemplo do clube de entretenimento, podemos desde logo observar que da junção de vontade e esforços conjuntos (recursos financeiros, por exemplo, para a aquisição de um local propício para o desenvolvimento das relações sociais) nascerá uma nova entidade, com existência autônoma dos diversos indivíduos que a compõem. Isto é, e consoante nos explicita o art. 45 do Código Civil vigente: “Começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação do Poder Executivo, averbando-se no registro todas as alterações por que passar o ato constitutivo.” E o art. 20, do Código Civil anterior, ao tratar das sociedades ou associações civis estabelecia que “as pessoas jurídicas têm existência distinta da dos seus membros”. Ora, isto quer dizer, num primeiro momento, que da junção dos referidos esforços nasce um novo ente que, certamente por uma ficção do Direito, tem personalidade jurídica e existência independente e superior aos indivíduos que a constituem. No caso, a superioridade significa que, em última análise, os interesses sociais, no que toca à sobrevivência da própria sociedade para a consecução de seus fins, sobrepujam eventuais interesses individuais que interfiram com os referidos objetivos. Por exemplo: o condomínio resultante de uma edificação de várias unidades habitacionais, embora não tenha, a rigor, personalidade jurídica, não deixa de ter certas prerrogativas no mundo jurídico (isto é, contrata empregados, paga contas comuns de energia elétrica, executa judicialmente contas de condomínio contra devedores recalcitrantes etc.). Além disso, restringe sobremaneira os direitos individuais de cada condômino, em prol obviamente da convivência harmônica, mediante a instituição de um “regimento interno”. Caso isso não ocorresse, por certo cada uma faria o que bem entendesse, ocasionando um verdadeiro caos social, indesejável para todos que constituem o condomínio, aqui pinçado ao acaso como exemplo do que se quer deixar claro. Pode-se, dessarte, afirmar que a superioridade tem como escopo principal a manutenção da ordem e a criação de condições para que não só os indivíduos membros da sociedade, como também esta, de modo geral, promovam o bem-estar de todos. Referida superioridade, porém – de que é expressão máxima a autocracia, como o fascismo com sua estatocracia, já que Mussolini afirmava com toda a convicção que tudo deveria ser equacionado pelo Estado, para o Estado, dentro do Estado, e nada fora ou contra o Estado –, não pode ser absoluta, sob pena de frustrar os próprios fins da sociedade ou objetivos sociais, que, embora dependendo cada qual da natureza de cada uma delas, têm por meta principal o atendimento das necessidades individuais. Desta forma, se é certo que a personalidade jurídica passa a ter existência independente da das pessoas físicas que constituem uma determinada sociedade, a convivência pacífica somente será possível mediante o equilíbrio ditado pelas normas constitutivas – isto é, responsável pela própria formação da sociedade – e as comportamentais, aí incluídas as limitações sociais em face dos interesses individuais. E certamente é na sociedade-estado, como teremos a ocasião de enfatizar, que tal problemática é ainda mais aguda, visto que consoante, por exemplo, as correntes contratualistas, a sociedade política é constituída porque os homens que deliberaram livremente pela sua formação ou criação eram inteiramente libertos de quaisquer limitações de suas vontades, e tiveram que renunciar à parcela significativa de tão ampla liberdade em prol da vida social. 3.4.TEORIAS ORGÂNICAS E MECÂNICAS No sentido de explicarem a sociedade, existem duas grandes tendências filosóficas que podem ser agrupadas em duas correntes: das teorias orgânicas, de um lado, e das teorias mecânicas, de outro. Enquanto as primeiras (orgânicas) encaram a sociedade como um corpo dotado, como o ser vivo, de órgãos a desempenhar cada qual uma função específica em prol do todo, as segundas a veem como uma junção de indivíduos, mas que não interagem; antes agem por si mesmos com autonomia e liberdade. Pelo que se pode observar do simples enunciado das duas grandes correntes, a exacerbação tanto de uma como de outra pode levar a exageros: quanto a se considerar a sociedade como corpo orgânico de forma absoluta, teríamos inexoravelmente um esmagamento das individualidades, uma vez que todos os indivíduos teriam que se voltar exclusivamente para o bem de todos, sendo irrelevante o interesse de cada um; o mecanismo, ao contrário, e levado a excessos, provocaria o caos total, já que a cada um dos componentes do grupo social seria dado comportar-se de forma individualista. No primeiro caso, teríamos as sociedades totalitárias, e, no segundo, por consequência, a anarquia, que nada mais é do que a ausência de ordem. Ao cuidar do primeiro grupo de correntes, Miguel Reale3 pondera que “o que dá ao organicismo visos de verdade é exatamente o fato de pôr em evidência o caráter especialíssimo da unidade social, pois a sociedade não constitui um ser substancialmente diverso de seus elementos componentes, que mantêm sempre inatingível a própria individualidade, mas representa uma realidade que se não confunde com as partes que a compõem; daí a teoria que, acertadamente, vê na sociedade uma unidade de ordem e não uma unidade substancial”. Mas, adverte, no sentido de que daí devem resultar os princípios fundamentais que, “repudiando tanto o individualismo, que não admite a existência de fins sociais irredutíveis aos indivíduos, quanto o totalitarismo, que reduz o indivíduo à sociedade ou ao Estado, sustentam ser o Estado, ao mesmo tempo, fim e meio: fim relativamente à atividade que é peculiar ao todo e não resulta de simples soma de interesses individuais; meio relativamente à atividade que cada homem conserva como própria, formando o núcleo de sua personalidade”. Quanto ao exagero da teoria mecanicista, as críticas são do ilustre prof. Salvetti Netto,4 no sentido de que ela, “inadmitindo as vinculações jurídicas e políticas, como anteriormenteexpressas, negando a normatividade e o exercício do mando, implicaria, na verdade, a teoria anarquista, tal entendida como doutrina política negativista da necessidade do poder; agrupamento de indivíduos desvinculados disso resultaria, e, apesar dos esforços de notáveis sociólogos e filósofos políticos, como, entre outros, Proudhon e Lênin, Kropotkin e Bakounine, se nos parece tal posição incompatível com a própria sociabilidade humana, tanto mais se consideramos a natureza psicológica do indivíduo que, em última instância, só obedece sob a coação irresistível do poder”. De tudo isso se pode concluir, por conseguinte, que as correntes ecléticas é que parecem estar com a razão: efetivamente a sociedade, tal como um corpo humano, por exemplo, é composta de vários indivíduos (órgãos), cada qual desenvolvendo um esforço no intuito de preencher as finalidades da vida social, esforço tal que obedece aos desígnios sociais, e, portanto, a normas de conduta, sob pena de colapso do corpo (sociedade). Todavia, a obediência não é cega às referidas normas, sob pena de transformar-se o ente social como um fim em si mesmo, quando na verdade existe para o preenchimento das necessidades individuais, impossíveis de serem satisfeitas por cada indivíduo de per si. Quanto às correntes mecanicistas, seu mérito reside precisamente em demonstrar que cada indivíduo deve ser respeitado na órbita de atuação, mas não em caráter absoluto, acrescentaríamos, pelas razões já expostas. 3.5.SOCIEDADE HUMANA E CULTURA Do convívio social resulta o valor social denominado “cultura”, que pode ser definida como o conjunto das conquistas ligadas pelo homem ao longo de sua convivência em sociedade. Os animais, por exemplo, embora vivam também em grupos, nada produzem de novo, dando apenas cumprimento às leis naturais no sentido de sobrevivência e perpetuação da espécie. Já o homem, dotado de intelecto, procura sempre não apenas dar cobro àquelas necessidades, como, também, acrescentar sua marca à convivência, sempre no sentido de melhorar as condições de vida, quer adaptando-se ao meio e enfrentando as adversidades, quer criando coisas novas para seu aprimoramento e atendimento das necessidades. Ora, desse esforço é que nasce a cultura, aqui encarada na sua forma mais ampla, ou seja, conglobando o que os antigos romanos chamavam de cultura agri (cultura da terra, mas ampliada para também abranger o progresso tecnológico em todos os campos de conquistas humanas), mais a cultura animi, ou seja, as conquistas do espírito (belas-artes, folclore etc.). Da dinâmica social, pois, é que nasce a cultura, sempre de maneira evolutiva e aditiva ao que gerações anteriores já criaram, tudo de molde a tornar a convivência social melhor e mais útil. Feitas essas considerações, passemos agora à análise, em capítulo próprio, dos elementos constitutivos da sociedade, ainda genericamente considerada. SOCIEDADE: ELEMENTOS CONSTITUTIVOS4 4.1.METODOLOGIA: O CONHECIMENTO CIENTÍFICO Para Aristóteles, tudo o que existe, sobretudo se for objeto de estudo por um observador atento, é gerado por causas ou fatores que se resumem em: a) causa eficiente, ou seja, relativa à pessoa que o criou; b) causa instrumental, isto é, as ferramentas ou meios para a criação; c) causa material, aqui relativa à massa ou matéria de que se compõe o mencionado objeto; d) causa formal, responsável pelas características próprias do objeto, ou seja, aquela pela qual o objeto é distinto de outros, ainda que semelhantes; e) causa final, ligada à teleologia, isto é, a destinação do objeto. Desta forma, se tomarmos como exemplo um automóvel, diríamos que sua causa eficiente é o operário que o faz; sua causa instrumental é a complexa ferramentaria por aquele utilizada, enquanto sua causa material resume-se nas peças e materiais que entram na sua montagem; a causa formal, outrossim, é aquela que diz que o automóvel, por exemplo, é de passeio, da marca “X” e do tipo “Y”, com tais e quais características, que certamente o distinguem de outros automóveis, ainda que de passeio, e da mesma marca; a causa final, certamente, se refere à destinação do veículo. 4.2.A SOCIEDADE E SUAS CAUSAS Se assim é, tentemos agora, com relação à sociedade, seguir o mesmo raciocínio. 4.2.1.Causas Eficiente e Instrumental Se, com relação ao veículo referido, nenhuma dificuldade encontramos no sentido de apontar-lhe as causas eficiente (que cria, faz) e instrumental (pela utilização de máquinas e ferramentas), ela é delicada ao tratarmos da sociedade. Ou, em termos mais correntes, digladiam-se até hoje as chamadas correntes evolucionistas (dentre as quais a mais acreditada é a exposta por Charles Darwin, em sua famosa obra A Origem das Espécies, publicada em 1859), e as criacionistas, representadas pelas leituras e interpretações bíblicas (Gênesis), bem como por outros textos religiosos orientais e ocidentais. Em notícia publicada no jornal Folha de S. Paulo,1 intitulada “Criacionistas Fazem Barulho na Academia”, fala-se de uma nova investida dos criacionistas, mediante o chamado design inteligente. Ou seja, os animais hoje existentes seriam o resultado de um mecanismo inteligente, não do processo cego da seleção natural. Dessa forma, assinala a mesma reportagem: “Para Darwin, a variação entre as criaturas surge por acaso, e os indivíduos variantes mais adaptados ao ambiente são selecionados – e passam suas características aos filhos. Esse acúmulo cego de modificações mínimas ao longo de milênios, não a intervenção divina, explicaria a complexidade. Depois que o darwinismo se estabeleceu como paradigma, os criacionistas envernizaram seus argumentos, propondo a ‘teoria’ do ‘design inteligente’, que diz que a origem de novas formas só poderia ser explicada por uma força consciente. Apesar de ser inverificável, a hipótese fez a cabeça dos americanos, especialmente no Sul e no Meio-Oeste. No Brasil, o criacionismo faz parte dos currículos escolares do Rio de Janeiro e da Bahia.”2 E, com efeito, qual seria, afinal de contas, a causa eficiente da sociedade e, em última análise, do homem? E a causa instrumental? E, nesse sentido, duas grandes tendências nos vêm à mente: a teológica e a profana. Pelos postulados da primeira, o homem teria sido criado por um Ser Superior (Deus, do cristianismo, Jeová, dos judeus, Alá, dos muçulmanos, Amon-Ra, dos egípcios etc.). Além disso, o barro do Gênesis teria sido insuflado pelo Sopro Divino, dando então ao homem vida e inteligência, “à imagem e semelhança de seu Criador”. Logo, causas eficiente e instrumental do homem, e, consequentemente, da sociedade – Eva foi criada para conviver desde logo com Adão, já que, ainda de acordo com o Gênesis, o Criador não concebeu vivesse ele isolado – teriam sido, respectivamente, Deus e o Sopro Divino. Segundo a tendência profana, porém, de que é expoente máximo o chamado “contratualismo”, a causa eficiente da sociedade seria o próprio homem, por sua vontade, e sua causa instrumental seria o contrato social. Isto é, seja de acordo com a teoria esposada por Jean-Jacques Rousseau, segundo o qual o homem nasce bom, sem qualquer mácula, mas a sociedade é que o corrompe, donde a necessidade de formar-se a sociedade mediante a perda da liberdade de cada um em prol do todo, seja de acordo com John Locke, segundo o qual essa convivência se daria em face da maldade inata do ser humano, o certo é que a sociedade seria fruto desse enorme pacto entre todos. Ou, melhor explicitando: o homem é essencialmente livre, mas necessita da vida social – vista como um mal necessário – para sua sobrevivência, já que não basta a si mesmo. Para a formação de dada sociedade, porém, é mister que cada componente abra mão de sua liberdade, em princípio total, em favor da nova entidade, limitando-se, assim, normativamente, à ação de cada um. Ora, isso seria feito, segundo os contratualistas, mediante um contrato social; em última análise, por conseguinte, a causa instrumental da própria sociedade. 4.2.2.Causas – Elementos Constitutivos da Sociedade: Materiais,Formais e Finais Deixando-se de lado a nomenclatura de Francis Bacon, que como Aristóteles fala em “causas” de existência, analisemos em seguida o que na verdade se constitui em elementos constitutivos das sociedades em geral. Ou seja, deixando ainda de lado a polêmica questão das “causas eficiente e instrumental”, podemos dizer que, objetivamente, os elementos constitutivos de qualquer tipo de sociedade são: a) elementos materiais, que se cingem em dois, quais sejam, o homem e a base física; b) elementos formais, consistentes nas normas jurídicas e no poder social; e, finalmente, c) elementos finais, que são variados, dependendo, evidentemente, dos objetivos visados pelas diversas sociedades. 4.2.3.Homem e Base Física Resta evidente que, sendo toda e qualquer sociedade o conjunto de indivíduos, visando à obtenção de uma determinada coisa ou fim, seu elemento material é o ser humano. Todavia, para que o grupo social constituído possa atingir certo objetivo ou finalidade, deve concentrar esforços em comum em determinado lugar, que constituirá a base física do mesmo grupo. Base física, pois, é o lugar em que se desenvolvem as relações sociais. No exemplo por nós trazido do clube de lazer ou desportivo, teríamos então que o elemento humano é representado pelo seu quadro associativo, enquanto sua base física constitui-se na sede social. Assim também na sociedade religiosa, os acólitos ou fiéis representam o elemento humano, enquanto a igreja (templo) é sua base física. Quanto a uma sociedade comercial, os sócios representam o primeiro elemento material, enquanto a loja, fábrica ou outro tipo de estabelecimento constituirá sua base física. 4.2.4.Normas Jurídicas e Poder Melhor o exemplo do que a conceituação. Tomando os casos mencionados (clube, igreja e sociedade comercial), veríamos que cada uma dessas sociedades carece de um contrato social ou acerto de vontades, além de normas de conduta, não apenas para que se constitua, concreta e formalmente, a nova entidade (pessoa jurídica), como também para que se desenvolvam harmônica e pacificamente as relações sociais. No caso do clube, serão os estatutos, assim como na sociedade religiosa, enquanto na sociedade comercial será o contrato social o instrumento constitutivo, formador, e, em última análise, criador de cada uma delas. Mas, ao lado dessas chamadas normas constitutivas, que dão nascimento à própria entidade, estarão sempre as normas comportamentais, responsáveis pela manutenção da ordem social. De qualquer forma, porém, sempre que se fala de normas, tem-se em vista seu cumprimento, que a seu turno pressupõe um poder que o garanta, poder esse presente em qualquer tipo de sociedade, de forma mais atenuada (pela simples imposição de sanções morais, por exemplo, na sociedade familiar ou religiosa), até chegar-se a formas mais extremadas (imposição de penas criminais de encarceramento, podendo chegar-se até a pena capital). Por isso mesmo é que se pode dizer que “ubi societas ibi jus, ac potestas”, ou seja, “onde há sociedade, deve haver necessariamente o direito, mais poder”. Isto é, de nada adiantariam as normas constitutivas e comportamentais estabelecidas para a convivência social, se ao lado delas não existisse um poder (nesse caso confundido com o núcleo, ou “governo”) responsável pelo seu efetivo cumprimento. Aliás, a grande crise por que passamos hoje especialmente em nosso País é fruto da “impunidade”, que a seu turno reflete fraqueza ou ausência total da vontade de se fazer cumprir as normas de conduta, gerando a impressão de que elas existem, mas para não serem cumpridas, em perigo constante de caos social. Nos casos, ainda dados como exemplos, poderíamos dizer que no clube o núcleo de poder é representado pela sua diretoria; na igreja, pelo seu corpo de ministros religiosos; e, na sociedade comercial, pelos sócios com poder de gerência ou presidência, nas mais sofisticadas. Já quanto às normas constitutivas, vimos que são representadas pelos estatutos ou contratos sociais, dependendo de cada espécie. As normas comportamentais, a seu turno, são representadas pelo regimento interno disciplinar, por exemplo, no caso do clube desportivo, pelos mandamentos ou normas internas da igreja, e pelas resoluções de uma sociedade comercial. 4.2.5.Fins Ora, se tudo que existe deve cumprir um objetivo ou finalidade, tem-se que os elementos constitutivos finais das sociedades, quaisquer que sejam, consistirão em cada objetivo particular, ou seja, o fim a que se destina cada uma delas. Desta forma, poder-se-ia dizer que, no caso ainda do clube desportivo, sua finalidade é o aprimoramento físico ou o lazer de seus membros. Já na sociedade religiosa, visa-se ao aprimoramento espiritual, enquanto, na comercial, o intuito é o lucro, como evidente. SOCIEDADE: ESPÉCIES5 5.1.COMUNIDADE E ASSOCIAÇÃO Vimos em pontos anteriores que o homem é essencialmente gregário, ou seja, sempre viveu em grupos, visando ao preenchimento de diversas necessidades, já que não se basta para supri-las adequada e convenientemente. Há, também, como já estudado, uma diferença sensível entre “sociedade” e um mero “agrupamento”, sendo certo que a primeira sempre pressupõe a existência de “vínculos”, que, antes mesmo de refletirem uma série de interesses ligados às referidas necessidades, denotam a vontade consciente, ou mesmo inconsciente, de convivência, sendo essa possível somente se houver o respeito a normas mínimas de comportamento. O termo “sociedade”, portanto, deve ser encarado como gênero de agrupamentos mais ou menos complexos de seres humanos, podendo -se entender, por outro lado, “comunidade” como uma espécie de sociedade na qual se observa a existência muito mais predominante de vínculos sociológicos, éticos e culturais, do que vínculos propriamente jurídicos, aqui entendidos como os derivados de normas formais de comportamento. Recorramos a exemplos para que bem se entenda a distinção. Determinado bairro da cidade necessita de vários melhoramentos públicos (calçamento das ruas, por exemplo), de responsabilidade das autoridades municipais que, dentro dos critérios políticos e administrativos de conveniência e oportunidade, podem tardar em demasia o preenchimento daquelas necessidades. É mais do que legítima, por conseguinte, a ação conjunta dos moradores no sentido de apressamento das providências com vistas à obtenção dos melhoramentos ou equipamentos urbanos, mediante movimentos, abaixo-assinados, reuniões, contatos com vereadores, audiências públicas etc., de forma organizada. Ora, referida preocupação, autêntico reflexo da affectio societatis, pode perfeitamente nascer não propriamente de uma deliberação formal em assembleia constituída, por exemplo, ainda, no seio de uma “associação de amigos do bairro”, mas, sim, espontaneamente, mediante uma consciência coletiva de que algo precisava ser feito, independentemente de haver ou não uma entidade para exercitar a ação a que todos, com maior ou menor intensidade e cooperação, afinal aderiram. A mencionada “associação de amigos do bairro”, a seu turno, configura autêntica sociedade civil ou ainda associação civil, na exata nomenclatura do próprio Código Civil (Livro I, Capítulo II, Seção III). Ou seja, conforme deliberação em assembleia formal e especificamente convocada para tanto, da considerável parcela dos moradores do mencionado bairro cria-se um novo ente (associação) composto de todos os elementos constitutivos necessários ao desenvolvimento de suas atividades (vide Capítulo 4), e que passa a ter existência após a formalidade prevista pelos arts. 45 e 46 do Código Civil.1 Ora, dentre seus fins ou atividades, poderá figurar também a ação no sentido de se conseguir os melhoramentos de que o bairro tanto precisa. Referida ação, todavia, não é espontânea, mas refletida, deliberada pela vontade dos dirigentes e colocada em prática conforme decidido por quem detém os poderes para tanto. Nossa sociedade civil, contudo, deixa muito a desejar em matéria tanto de ação comunitária, como de ação associativa.