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Antropologia Filosófica Material Teórico Responsável pelo Conteúdo: Prof. Dr. Antonio Auresnedi Minghetti Revisão Textual: Prof. Me. Luciano Vieira Francisco Tematizações Filosófico-Antropológicas da Antiguidade ao Medioevo e à Modernidade • A Compreensibilidade Histórico-Relacional-Mítica Religiosa do Homem – Época das Imagens do Mundo; • Fundamentos Ontológicos às Indagações do Homem nos Planos Físico e Metafísico. • Refl etir sobre a origem humana na perspectiva biológica e cultural, enquanto um ser em constante processo de relacionamento grupal – e não apenas consigo –, assim como com todo o ambiente em que vive. OBJETIVO DE APRENDIZADO Tematizações Filosófi co- Antropológicas da Antiguidade ao Medioevo e à Modernidade Orientações de estudo Para que o conteúdo desta Disciplina seja bem aproveitado e haja maior aplicabilidade na sua formação acadêmica e atuação profissional, siga algumas recomendações básicas: Assim: Organize seus estudos de maneira que passem a fazer parte da sua rotina. Por exemplo, você poderá determinar um dia e horário fixos como seu “momento do estudo”; Procure se alimentar e se hidratar quando for estudar; lembre-se de que uma alimentação saudável pode proporcionar melhor aproveitamento do estudo; No material de cada Unidade, há leituras indicadas e, entre elas, artigos científicos, livros, vídeos e sites para aprofundar os conhecimentos adquiridos ao longo da Unidade. Além disso, você tam- bém encontrará sugestões de conteúdo extra no item Material Complementar, que ampliarão sua interpretação e auxiliarão no pleno entendimento dos temas abordados; Após o contato com o conteúdo proposto, participe dos debates mediados em fóruns de discus- são, pois irão auxiliar a verificar o quanto você absorveu de conhecimento, além de propiciar o contato com seus colegas e tutores, o que se apresenta como rico espaço de troca de ideias e de aprendizagem. Organize seus estudos de maneira que passem a fazer parte Mantenha o foco! Evite se distrair com as redes sociais. Mantenha o foco! Evite se distrair com as redes sociais. Determine um horário fixo para estudar. Aproveite as indicações de Material Complementar. Procure se alimentar e se hidratar quando for estudar; lembre-se de que uma Não se esqueça de se alimentar e de se manter hidratado. Aproveite as Conserve seu material e local de estudos sempre organizados. Procure manter contato com seus colegas e tutores para trocar ideias! Isso amplia a aprendizagem. Seja original! Nunca plagie trabalhos. UNIDADE Tematizações Filosófi co-Antropológicas da Antiguidade ao Medioevo e à Modernidade A Compreensibilidade Histórico-Relacional- Mítica Religiosa do Homem – Época das Imagens do Mundo A história da Filosofia grega iniciou com a Teogonia – Theos = deus, genea = origem –, conceito derivado do vocábulo latino Theogonia, uma referência às gêne- ses das divindades pagãs e à origem do mundo. A Teogonia, em especial, ao referir um conjunto de deidades, apresenta as forças que as materializam e formam aquilo que atualmente convencionamos chamar de mitologia, um conjunto de lendas que formam uma cultura singular de um determinado povo. Igualmente é o título de uma obra escrita por Hesíodo entre os séculos VII e VIII antes de Cristo, onde o poeta detalha a genealogia dos diferentes deuses que fazem parte da mitologia grega e versa acerca da origem do Universo. Hesíodo reporta a gênese dos deuses ao apresentar a origem do mundo e os reinados de Urano, Cronos e Zeus, além de d es- crever a união dos mortais aos deuses, dando origem aos heróis gregos mitológicos. Figura 1 Fonte: Wikimedia Commons Teogonia, de Hesíodo, buscou construir a árvore genealógica dos deuses e se fez no mais antigo tratado de mitologia grega que se tem registro e juntamente com os poemas de Homero, formava as cartilhas pelas quais os gregos aprendiam a ler, pensar e apreender o mundo, além de venerar o poder dos deuses locais e, por extensão, percebiam o Universo, como se os deuses fossem os inventivos do Cos- mos; por vezes a Teogonia surge associada a estudos da Cosmogonia – a origem. Hesíodo costumava afirmar que as narrações encontradas na Teogonia lhes foram descritas pelas filhas do próprio Zeus. 8 9 Teogonia Sim bem primeiro nasceu Cáos depois também Terra de amplo seio, de todos sede irresvalável sempre, dos imortais que têm a cabeça do Olimpo nevado, e Tártaro nevoento no fundo do chão de amplas vias, e Eros: o mais belo entre deuses imortais, solta-membros, dos deuses todos e dos homens todos ele doma no peito o espírito e a prudente vontade. Do Cáos Érebo e Noite negra nasceram. Da Noite aliás Éter e Dia nasceram, gerou-os fecundada unida a Érebo em amor. Terra primeiro pariu igual a si mesma Céu constelado, para cercá-la toda ao redor e ser aos deuses venturosos sede irresvalável sempre. Pariu altas Montanhas, belos abrigos das deusas ninfas que moram nas montanhas frondosas. E pariu a infecunda planície impetuosa de ondas o Mar, sem o desejoso amor. Depois pariu do coito com Céu: Oceano de fundos remoinhos e Coios e Crios e Hipérion e Jápeto e Téia e Réia e Têmis e Memória e Febe de áurea coroa e Tétis amorosa. E após com ótimas armas Cronos de curvo pensar, 9 UNIDADE Tematizações Filosófico-Antropológicas da Antiguidade ao Medioevo e à Modernidade filho o mais terrível: detestou o florescente pai. Pariu ainda os Ciclopes de soberbo coração: Trovão, Relâmpago e Arges de violento ânimo que a Zeus deram o trovão e forjaram o raio. Eles no mais eram comparáveis aos deuses, único olho bem no meio repousava na fronte. Ciclopes denominava-os o nome, porque neles circular olho sozinho repousava na fronte. Vigor, violência e engenho possuíam na ação. Outros ainda da Terra e do Céu nasceram, três filhos enormes, violentos, não nomeáveis. Cotos, Briareu e Giges, assombrosos filhos. Deles, eram cem braços que saltavam dos ombros, improximáveis cabeças de cada um cinquenta brotavam dos ombros, sobre os grossos membros. Vigor sem limite, poderoso na enorme forma. Deuses Primordiais: 116-153 Figura 2 – Mapa do período arcaico da Grécia Fonte: GNU Free Documentation License Os filósofos pré-socráticos surgiram nas regiões da Jônia e Magna Grécia, en- tre os séculos VII e VI a.C. e se espalharam por várias colônias gregas ao longo da Costa do Mediterrâneo, principalmente na Ásia Menor. A inquietação desses 10 11 primeiros pensadores era cosmológica, uma vez que procuravam um princípio que explicasse a existência e ordem do mundo material. A esse princípio universal deram o nome de Arché, a essência material constitutiva do Cosmos, que concede origem a tudo o que existe no Universo – do grego physis, ou natureza –; então, filósofos da natureza, substituindo as explicações antropomórficas dos mitos por elementos naturais. Para os pré-socráticos gregos não existiria propriamente uma criação do mundo, dado que negavam o princípio de que o mundo tivesse surgido do nada, tais como afirmavam outras religiões; nada viria do nada e nada voltaria ao nada, pois a na- tureza seria eterna e nessa tudo seria fruto de transformações. Os principais filósofos pré-socráticos foram das escolas: • Jônica: Tales, Anaximandro, Anaxímenes, Pitágoras, Heráclito, Parmênides, Zenão, Demócrito e Anaxágoras; • Pitagórica: Pitágoras e Filolau; • Eleata: Parmênides, Heráclides e Zenão; • Da Pluralidade: Empédocles, Anaxágoras de Clausomêna e os atomistas. Para Tal es de Mileto, considerado o primeiro filósofo, tudo derivaria da água, dado que essa está presente em todos os seres, daí ser o princípio de tudo. A água é o símbolo sagrado na maioria das religiões, representada em um misticismo que envolve grande parte das crenças. Para Anaximandro de Mileto seria o ápeiron, ou o infinito, pois que o elemen- to originário seria indeterminado e eterno, tal que o Cosmos fosse dependente de forças polares primordiaisou idênticas e opostas – calor e frio; água e terra; mascu- lino e feminino. Anaximandro colocou o princípio de todas as coisas não mais em um sentido material, dado que o ápeiron significasse o ilimitado, infinito. A tese de Anaximandro representou um avanço em relação a Tales, pois foi o primeiro a uti- lizar o termo arché que, em grego, tem o sentido de princípio, fundamento, origem. Anaxímenes de Mileto entendeu o ar como princípio e, de certa forma, represen- tou um retrocesso ao voltar a exibir a arché como algo material. Para Anaxímenes, o ar seria o princípio da vida e mais do que uma simples substância natural, uma vez que todos os elementos naturais derivariam do ar, por transformação. O ar seria, então, uma substância determinada e infinita como elemento primeiro e como tal seria divino, gerando divindades a partir de si, representando a nossa alma e man- tendo os nossos corpos unidos. O ar é o símbolo sagrado na maioria das religiões, incluindo o hinduísmo e cristianismo. Filolau de Crotona propôs o sistema pirocêntrico, o Cosmos formado por um fogo central – Hestia – e nove corpos que girariam ao seu redor: Antiterra, Terra, Lua, Sol e os cinco planetas observáveis além da esfera das estrelas fixas. De certa 11 UNIDADE Tematizações Filosófico-Antropológicas da Antiguidade ao Medioevo e à Modernidade maneira, Heráclito de Éfeso concordou com Filolau ao afirmar que a essência de todas as coisas seria o fogo, considerado um símbolo sagrado na maioria das religi- ões, incluindo o hinduísmo, cristianismo, judaísmo, islamismo e xintoísmo. Grande parte dos rituais religiosos é realizada na presença desse elemento. Empédocles de Agrigento merece destaque especial por conciliar o pensamen- to de seus antecessores, ao aceitar a ideia de que os elementos originários seriam fogo, água, ar e terra. Para Empédocles, esses quatro elementos, imiscuindo-se uns aos outros, formariam os diferentes objetos e representariam a concepção cícli- ca do tempo e da natureza. Na mitologia pagã, o elemento terra foi o último a se formar e, em face de sua principal característica – a solidificação –, integra em si o fogo, a água e o ar. Pitágoras de Samos entendeu os números como o princípio, a arché, dado que cada corpo existente pudesse ser pensado como uma quantidade finita de ele- mentos-base unitários; para Pitágoras, o número não seria algo abstrato, mas uma realidade espacial: triangulares, quadrados etc. – observe a quantidade de ângulos que compõe cada número na seguinte Figura: Figura 3 Entrementes, segundo a crença pagã, tanto o macrocosmo quanto o micro- cosmo seriam amálgamas de cinco elementos, que não teriam fogo, água, ar e terra – conforme o senso comum –, mas uma fusão de características universais dos cinco elementos, sendo que para os antigos gregos o éter seria o quinto elemento a formar uma esfera celestial exterior à Terra. Tratar-se-ia do princípio original do espaço cósmico, o éter dos antigos, o quinto elemento cósmico, a quin- tessência, a quinta ponta do pentagrama. 12 13 Ar Água Espírito FogoTerra Figura 4 O princípio de Empédocles acrescentado da ideia da quintessência pareceu anteci- par a contenda humana a envolver os nossos afetos e como determina as nossas ações. Em tese, além dos quatro elementos fundamentais, seguiriam duas forças opostas a envolver o amor e a desarmonia, a determinarem todo o desenvolvimento do Universo. É evidente que sob a luz do conhecimento que atualmente temos, a origem do Universo implica teorias bem mais complexas que as fornecidas por Empédocles, não obstante a história de a humanidade mostrar a permanente atualidade desse pensamento, sobretudo da qualidade das ações humanas para aqueles simpatizan- tes ou adeptos do humanismo filosófico. A importância dos filósofos pré-socráticos não deve ser ponderada tanto de suas respostas singulares, ou do fato de exigirem provas e justificativas racionais, mas sim por serem os primeiros a tentar racionalmente identificar a questão do caráter último das coisas, ao afirmarem que a origem da natureza estaria nesta mesma. Lançado em 1997, o filme O Quinto Elemento foi claramente inspirado na teoria de Empédocles, ao expor um enredo futurista no qual quatro pedras, cada uma representando um elemento da natureza – água, ar, terra e fogo –, precisam ser encontradas para que não caiam em mãos ini- migas. Se unidos, esses elementos liberariam uma força desmesurada e, se conduzidos pela dis- córdia, poderiam destruir o planeta Terra. A personagem central do filme, a atriz Milla Jovovich, faz o papel do quinto elemento; trata-se de uma alienígena sem maldade que recebeu a missão de proteger os quatro elementos. A metáfora implícita no filme simboliza o amor como regente de todas as ações humanas. Assista o trailer em: https://youtu.be/3MLTLnGFNKk Ex pl or 13 UNIDADE Tematizações Filosófico-Antropológicas da Antiguidade ao Medioevo e à Modernidade Um dos diferenciais que marcam o homem em relação aos outros animais é a sua capacidade de pensar em abstrato e representar esse pensamento em uma linguagem simbólica. Tal representação normalmente se dá a partir de elementos constantes e possíveis em seu meio ambiente, no que contribui com a formação de uma Imago Mundi – assim ocorreu desde os primórdios de nossa civilização: Figura 5 – Petróglifos no Mar do Norte Fonte: Wikimedia Commons Petróglifos, ou gravuras rupestres, são imagens geometrizadas e representações simbólicas, geralmente associadas a fatos e mitos, gravadas nas rochas de paredes internas e externas de cavernas por populações neolíticas ou calcolíticas, os quais retratam um tipo de linguagem. A Caverna de Lascaux é um complexo de cavernas famoso pelas suas pinturas rupestres, locali- zadas em Montignac, França, cujas paredes estão pintadas com bovídeos, cavalos, cervos, cabras selvagens e felinos, pinturas datadas de aproximadamente 17 mil anos atrás. Para saber mais assista o Documentário V3-1 Lascaux. Disponível em: https://youtu.be/J_0LWRbzFwI Ex pl or Caverna de Lascaux – http://bit.ly/2NLuaJH Ex pl or Erwin Panofsky (2004, p. 23) entende a necessidade de signos como registros deixados pelo homem: O homem é, na verdade, o único animal que deixa registros atrás de si, pois é o único cujo produto chama à mente uma ideia que se distingue da existência material destes. Outros animais empregam signos e ideiam es- truturas, mas usam signos sem perceber a relação da significação e ideiam estruturas sem perceber a relação da construção. Perceber a relação da significação é separar a ideia do conceito a ser expresso dos meios de ex- pressão. E, perceber a relação de construção e separar a ideia da função a ser cumprida dos meios de cumpri-la. 14 15 Nos dias atuais já não é possível pensar que apenas o homem detém a linguagem, tal como citado na Unidade anterior – a respeito da experiência nos Estados Unidos com os bonobos. Ademais, considerando que cientistas pesquisam outros símios, assista ao documentário intitu- lado Este gorila falou e você não vai acreditar na mensagem dele. Disponível em: https://youtu.be/rS0u-ICFdHg Ex pl or Ao descreverem os seus primeiros princípios, os filósofos pré-socráticos por certo os pensaram abstratamente, tal como afirmava Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), que admitia os mitos traduzirem imagens do mundo em relações permanentes do subconsciente da vida humana. Assim, cada período histórico tem a sua própria imagem de homem e mundo, sob influências de per- cepções que perpassam as crenças e os hábitos das sociedades onde se insere. O imaginário em sua essência subjetiva não é aquilo que esse mesmo realiza, tampouco aquilo que indica, simboliza ou significa, mas diz respeito à linguagem. Da imagem pode-se partir a uma vertente etimológica que conceitua o imaginário relacionando esse a tudo que se apreende visualmente do mundo; o imaginário está carregado de elementos culturais e se modifica na configuração da identi-dade que cada cultura produz e sustenta como sua. No entanto, esse imaginário está condicionado ao olhar do sujeito, um olhar “interessado” no objeto e de- formado pelo desejo, de modo que ao introduzir essa deformação na “realidade objetiva”, o sujeito deixa as suas marcas. Esse desejo que direciona o olhar é um processo cultural – logo, não é uma criação individual –, assimilado pelo sujeito em contato com o meio, ou seja, o su- jeito se alimenta daquilo que pressupõe ser o “real” e a sua subjetividade permeia a sua percepção o tempo todo. Essa percepção pode ser de objetos concretos, objetos ideais, ou, sobretudo, de relações e é um conhecimento que promove, com base nos dados recolhidos, a coordenação da conduta. A constituição do su- jeito pela percepção e apreensão do “mundo real” se dá na capacidade de estabe- lecer e compreender relações e é consequência da identificação do objeto capaz de satisfazer o desejo. Objeto: A palavra objeto deriva do latim objectum, o particípio passivo neutro do verbo objicere, com este significado: “[...] ação de pôr diante de; objectum seria, portanto, o que está apostado em face, lançado diante de [...]. Esse termo latino, de certa forma mantém uma sinonímia com o termo grego antikeímenon, que Aristóteles usava para designar os correspondentes das faculdades da alma”(DE ANIMA, 402b, 415a, grifos nossos). Ex pl or Em quaisquer dicionários de latim-português encontramos como uma primeira tra- dução ao vocábulo latino mundus o termo limpo, asseado, de onde derivou o conhe- cido oposto em português, imundo. Para o Dicionário dos símbolos – imagens e sinais da arte cristã, de Gerd Heinz-Mohr (1994, p. 269), o mundo seria tal qual um ovo; interpretação adotada no período medieval, que considerava a casca do ovo 15 UNIDADE Tematizações Filosófico-Antropológicas da Antiguidade ao Medioevo e à Modernidade como o céu a envolver todos os corpos celestes e sob a qual a clara, que seria o éter puro. Na extremidade externa existe uma casca, o céu que envolve o mundo inteiro; debaixo da qual, como se fora a clara do ovo, o éter puro, aquilo que os filósofos pré-socráticos buscavam, o quinto elemento que serviria de invólucro ao movimen- to; tal como a clara encerra a gema no centro, existiria a parte germinal – a Terra –, que simbolicamente representa o homem; como bem ilustrou Salvador Dalí: Figura 6 – Criança geopolítica observando o nascimento do homem novo (1943), Salvador Dalí Fonte: Wikimedia Commons A realidade psíquica, diferentemente do que se estabelece como “mundo real”, é feita essencialmente de representações. O mundo apreendido é predominan- temente imagético e é nesse sentido que o imaginário e simbólico estão intrin- secamente ligados; o imaginário como coisa inventada, separada do real, é a capa- cidade elementar e irredutível de evocar uma imagem, que como tal possui a função epistêmica de dar a conhecer algo e, uma função simbólica, de dar acesso a um significado; e uma estésica, de produzir sensações e emoções em seus apreciadores. Fundamentos Ontológicos às Indagações do Homem nos Planos Físico e Metafísico A Antropologia Filosófica surgiu por volta de 1920, com o objetivo de in- vestigar o fenômeno humano, mais precisamente saber o que seria o homem. É, portanto, a disciplina que investiga a estrutura essencial do homem, o qual ocupa o lugar principal na especulação filosófica, dado que a partir desse tudo se deduz. A questão-chave da Antropologia Filosófica – o que seria o homem? Ou quem é o homem? – não encontra nas biociências um conceito que desse conta da essên- cia do homem; quando muito, fornecem um pretenso relato histórico evolutivo da 16 17 constituição física-social da espécie humana. Dessa maneira, tal especulação não tem por objetivo principal as características humanas, mas fundamentalmente a essência do homem, diferenciando-se, portanto, de outras formas de antropologias específicas, tais como a mítica, teológica, cultural, científico natural etc. O filósofo e ensaísta Bernard Groethuysen (1880-1946), define a Antropologia Filosófica como uma reflexão constantemente renovada, a qual o homem opera para compreender a si, em suas características essenciais, tal a encontrar respostas à questão. Para tanto, faz uso de informações derivadas de outras antropologias das características humanas, de subsídios resultantes da Teologia, Biologia, Sociologia, Psicologia, Etnografia, Arqueologia, História, mas os interpreta segundo os seus princípios, buscando a sua unificação em uma teoria filosófica abarcante, de tal forma que o homem seja visto em seu meio social, no que envolve a sua capacidade criativa e produção cultural, do que resulta a utilização de vários métodos de inqui- rição pois, segundo Max Scheler (1874-1928), o homem dispõe de inúmeros atri- butos em sua vida vivida e, dada a sua racionalidade, possui um espírito, podendo amar, admirar, contemplar e fazer previsões futuras, enquanto os outros animais, limitados em sua existência, contam tão somente com o instinto. Antropologicamente, a busca incansável do homem pelo conhecimento é ine- gável, pois procura entender o princípio do Cosmos, o seu arché, com o auxílio da mitologia, religião e da própria filosofia, definindo-o ora como o fogo, ora a água, ora o ar, até Empédocles conciliar o pensamento de seus antecessores e induzir à ideia de que o arché seria uma miscigenação dos quatro elementos originários: fogo, água, ar e terra, emoldurados pela quintessência cósmica. O homem, ao longo de seu desenvolvimento histórico, adquiriu conhecimentos matemáticos, físicos, químicos, entre tantos outros, mas quanto a si pouco avançou. Heráclito de Éfeso afirmava que apenas se penetraria nos mistérios da natureza quando se conhecesse os segredos do homem; desse comentário é possível deduzir que a Antiguidade via o homem em conexão íntima com o Cosmos. Quem primeiro se inclinou e se aprofundou no estudo do homem foi Sócrates, filósofo grego do final do século V a.C., cujo prólogo tem origem em uma inscri- ção do Oraculum no pronaus do Delphus Templum onde, segundo Pausânias (115-180) (MARROU, 1975), geógrafo e autor da obra Descrição da Grécia, existiria a imperativa admonição ΓΝΩΘΙ ΣΕΑ'YΤΟΝ, clausular em Sócrates e fren- te a qual teria afirmado: só sei que nada sei! Porquanto, para o “Pai da Filosofia” conhecer o mundo não seria possível enquanto o homem não se voltasse a si, para a sua Própria existência. Oraculum no pronaus: Antecâmara no templo grego que antecedia a nave principal. NOSCE TE IPSVM: Conhece-te a ti mesmo.Ex pl or 17 UNIDADE Tematizações Filosófico-Antropológicas da Antiguidade ao Medioevo e à Modernidade Figura 7 – Oráculo de Delfos, Templo de Apolo, Grécia Fonte: Wikimedia Commons Do imperativo NOSCE TE IPSVM, não deixa de ser arcano que a divindade do oráculo recebesse o visitante com tal admonição, cuja interpretação possível remete exclusivamente a um olhar-se para dentro, o que levaria cada visitador a in- terpretá-la consoante às suas vivências, expectativas, aos seus medos, pensamen- tos ou sentimentos conscientes ou não e daí se pudesse concluir a existência de um si-próprio em cada um de seus hóspedes, o que se oporia à ideia do homem como um ser indefinido, pois existiria em cada saber indiciário, postulado inces- santemente por Sócrates. Assim, o homem seria alguém que pudesse responder com racionalidade a uma indagação racional. Indiciário: Que se baseia em fato, circunstância, a levar por dedução ou suposição, à desco- berta da verdade.Ex pl or Para Sócrates, a natureza do homem não poderia ser descoberta da mesma forma como se encontra a natureza das coisas, pois que apenas se definiria em ter- mos de sua consciência; daí a introspecção ter sido a característica determinante da filosofia de Sócrates, na qual usa do conselho extremado do oráculo – “Conhece-te a ti mesmo” –, ou seja, torne-se consciente de sua ignorância, para desta fazer o ápice da sabedoria,um desejo que só se faz mediante a virtude da modéstia. Para Sócrates, deparar a verdadeira natureza ou essência do homem requisitaria primei- ro deste remover todos os seus caracteres externos ou incidentais. Sócrates concebeu o homem dual a partir de dois princípios: a alma – ou o espírito – e o corpo, que originaram duas vertentes filosóficas que se fizeram o eixo do pen- samento filosófico ocidental: primeiro com o seu discípulo Platão (427-347 a.C.), que admitia o homem ser uma alma, portanto, imortal – era um princípio idealista, que ao 18 19 distinguir o mundo concreto do mundo das ideias, deu a essas o status de realidade –; o outro princípio derivado foi o realista, que surgiu com Aristóteles (384-322 a.C.), discípulo de Platão, que acreditou as ideias chegarem do espírito ao mundo real. Diferentemente de seu mestre, Aristótele s entendia que o homem deve ser inter- pretado não em sua vida individual, mas em sua vida política e social. O estudo do homem exige, pois, uma conjunção de conhecimentos a envolver as áreas antropocêntricas, teocêntricas e cosmocêntricas, tal que sejam encontradas as respostas para as primordiais questões humanas: o que é o homem? Como sur- giu? Por que surgiu? Como age e como deveria agir? Do que é composto? Assim, a Antropologia Filosófica se refere ao estudo reflexivo acerca do fenômeno humano em todas as suas manifestações racionais de existência, em especial em seu círculo social, em suas relações de amizade a envolver a sua produção c ultural: crenças, costumes, valores e as suas formas de pensar que, de certa maneira, condicio- nam e constroem o homem. Dessa conjunção, na Modernidade derivaram conhecimentos díspares por meio de vários pensadores, tais como René Descartes, onde surgiu o homem racional; com Jean-Paul Sartre e o homem condenado à liberdade; com Gabriel Marcel e o homem incompreensível; com Thomas Luckmann e o homem construtor da sociedade; com Augusto Comte e o homem cientificista; com Karl Marx e o homem fundamentalmente social; com Sigmund Freud e o homem psicótico. Essas injunções deram origem, basicamente, a duas divisões: o Homo Somaticus – alma, espírito – e o Homo Physicus – corpo. Aqui nos serviremos destas expressões qualificativas do homem para deste inferir e elencar alguns possíveis âmbitos de sua vida corpórea vivida. Existem informações que dão conta de que Aristóteles tenha sido o pioneiro na classificação dos seres vivos, dividindo-os em dois grupos principais – animais e plantas – e subgrupos dispostos de acordo com o ambiente em que vivem – aéreos, terrestres ou aquáticos. O trabalho de Aristóteles serviu de base para cientistas pos- teriores, entre os quais o naturalista sueco Carl von Linnée (1707-1778), mais co- nhecido como Carollus Lineus, quem acrescentou o critério de classificação con- forme as características estruturais e anatômicas das espécies, por acreditar ser fixo e imutável, de acordo com a definição de sua criação por Deus. Lineus agrupou as espécies animais em conformidade com as suas semelhanças corporais e os vege- tais conforme a estrutura de suas flores e frutos, ao que denominou nomenclatura binomial, publicada em seu livro Systema naturae – utilizada até os dias atuais. Porphyrios de Tiro (234-304/309) foi um filósofo grego que contribuiu com a di- fusão do neoplatonismo em todo o Império Romano e se fez célebre por sua biografia de Plotinus e a divulgação de sua obra, Eneadas, além de seus comentários sobre a obra Categorias de Aristóteles, da qual tratou em especial da discussão sobre o pro- blema dos universais; aqui se realce a sua árvore com a hierarquia das espécies: 19 UNIDADE Tematizações Filosófico-Antropológicas da Antiguidade ao Medioevo e à Modernidade Pássaros Répteis Mamíferos Insetos Anfíbios Moluscos Aracnídeos Crustáceos Algas Marinhas Plantas terrestres Minhocas CelenteradosEsponjas Equinodermes Vertebrados Briozoários Braquiópode Peixes Protó�tos Protozoários Figura 8 – Arbol porphyriana Árvore de Porphyrios é uma representação que ilustra a subordinação de con- ceitos sobre as espécies, a partir do espécime mais geral, que é o de substância, até chegar ao conceito homem, o de menor extensão, mas o de maior compreensão. Porphyrios deu uma nova feição a conceitos consagrados: de Platão tomou a sua visão geral e, em especial, a sua ideia de substância; de Aristóteles acompanhou a sua visão sobre as categorias, mas em conjunto à noção de substância platônica. Assim, com o seu conceito reformulado de substância, Porphyrios consagrou o gênero supremo de todas as espécies, esquematicamente através de sua árvore, na qual as espécies são concebidas gradualmente, da substância mais geral à mais particular, a partir de três conceitos – gênero, espécie e indivíduo – na perspecti- va de uma graduação do mais genérico para o mais concreto. Para Porphyrios, toda substância seria dividida em duas categorias, umas sim- ples e outras compostas, sendo que estas se refeririam a um corpo, que por sua vez também se divide em duas subcategorias, animada e inanimada. Os corpos animados novamente são subdivididos em sensíveis e insensíveis, onde o corpo sensível se refere ao animal e, no derradeiro nível da árvore, são qualificados em racionais e irracionais. 20 21 SUBSTÂNCIA CORPO Pensamento Estendido Inanimado Animado Irracional Racional Isto Aquilo (Um gênero) (Duas diferenciações da substância do gênero) (Substância estendida é o corpo da espécie) (O corpo animado é o da espécie animal) (Duas diferenciações do corpo do gênero) (Duas diferenciações do gênero animal) (Animal racional é a espécie humana) (Duas diferenciações do gênero humano) (Platão é um indivíduo em particular e não mais um gênero ou uma espécie) ANIMAL HUMANO PLATÃO Figura 9 A Árvore de Porphyrios se fundamenta em relações de dependência, tal que os seus indivíduos implicitamente se inserem em uma série de conceitos lógicos que o definem qualitativa e nominalmente: racional, animal, sensível, animado, vivo e composto; qualificações que remetem ao conceito de substância. A contribuição fundante dessa classificação porphyriana teria ocorrido principalmente no Medio- evo, ao colaborar com a visão nominalista (FERRATER MORA, 1977, p. 282) da realidade, a qual afirmava que as espécies e os gêneros não são realidades ex- teriores às coisas, tal como defendia o realismo, nem realidades nas coisas, como afirmava o conceitualismo, mas apenas nomes, termos ou vocábulos por meio dos quais se designam coleções de indivíduos e/ou que servem para denominar uma série de propriedades agrupadas nas coisas. A ideia de substância, enquanto parte da Metafísica, teve inúmeras interpre- tações ao longo da história da Filosofia; provém do vocábulo em latim substantia, conforme explicita o dicionário de Filosofia de Ferrater Mora (1951), literalmente significa “[...] o que está por baixo de [...]”. Daí se pode deprecar que toda realida- de teria algo de imutável, o que proporciona à noção de substância interpretá-la como a essência de algo: No sentido mais lato e geral, chama-se substância o que está por debaixo de uma coisa, para o fato de estar sob, a substância é, portanto, uma forma de subsistência. Isso pressupõe que a substância é um substrato 21 UNIDADE Tematizações Filosófico-Antropológicas da Antiguidade ao Medioevo e à Modernidade que suporta as qualidades ou propriedades que lhe são inerentes, e que permanecem inalteradas não obstantes mudanças. Embora ligada a este geral significado, na Filosofia requer, no entanto, uma maior precisão sobre o conceito de substância. (FERRATER MORA, 1951, p. 903) Aristóteles usa de sua definição de substância para explicar como as coisas são constituídas, tal que cada espécie seja formada de uma substância primeira origi- nária, que lhe faz ser única. A substância seria aquilo que permanece idêntico a si, mesmo sob a multiplicidade de seus acidentes ou de suas mudanças. Portanto, paraser, necessita permanecer, pois ao contrário, quaisquer alterações ou acidentes seriam incompreensíveis, porque nada mudaria. Se se admitir envelhecer, isso não implica necessariamente deixar de ser o próprio. Consoante à árvore de Porphyrios, as substâncias podem referir um ser hu- mano, uma planta, ou um animal irracional, sem que nenhum se faça o contrário de si; existem contrários na natureza, mas sempre em relação a predicativos, não existe, por exemplo, o antagônico de uma árvore, apenas é possível crer que de uma substância primeira – o gênero –, como a de um animal, formar-se-ia uma substância segunda – a espécie. Portanto, a substância primeira subestá e subjaz à segunda. Santo Agostinho (354-430), filósofo do período patrístico, conciliou o pensamento neoplatônico à doutrina cristã. Segundo Costa (2002), nas Eneadas de Plotinus encon- trar-se-ia a ideia de substância espiritual que levou Agostinho a antever a precarieda- de de seu racionalismo e a perceber o erro da concepção material e dual à existência de Deus. O princípio da substância una e imaterial apresentaria novo juízo à afirmação: “O homem foi criado por Vós à Vossa imagem” (AGOSTINHO, [20--?a], 3.4). As categorias de Aristóteles proporcionaram a Agostinho um estudo mais pragmático, em que a formalidade lógica foi limitada à aplicação do raciocínio quantificável; formas de raciocinar substância; quantidade; qualidade; relações, as quais se prestaram mais à organização de seu raciocínio às percepções materiais: E o que a mim se adiantava ao contar aproximadamente com vinte anos, foi que em minhas mãos vieram certa aristotélica, aquelas que chama- vam de dez categorias. [...] pareciam-me falar claramente de substâncias: como o homem; do que nele existe enquanto um esboço, tais como; a es- tatura, de quantos pés consta; ou seu parentesco, de quem é irmão; onde se encontra; se está calçado ou armado; se faz alguma coisa ou padece de algo; e tudo o mais que se encontra nesses nove gêneros que aqui exem- plifiquei graças àquilo que possuem, como reconhecidos e enumerados na própria substância do gênero. (AGOSTINHO, [20--?a], 16.28) Para Agostinho, enquanto unidade substancial, o homem composto de duas substâncias distintas – corpo e alma – ocuparia lugar de destaque, conforme aludiu no embate que manteve com o seu irmão, Navigius; constituir-se-ia da atividade de um corpo e de sua estrutura ontológica; porém, com uma alma que a esse seria 22 23 superior. Ao amigo Evodius, sobre a alma, Agostinho respondeu: “Se a ti interessa definir a natureza da alma e descobrir o que ela é, respondo facilmente: a mim re- presenta ser uma substância da razão, acomodada em um corpo” (AGOSTINHO, [ 20--?b], 13.22). Tomás de Aquino (1225-1274), sobre a substância, manteve o conceito de Aristóteles, mas acrescentou que existem substâncias sem matéria ou forma, como o são anjos e o próprio Deus, o que indicaria a existência de substâncias materiais e outras espirituais. René Descartes (1596-1650), de certa forma cor- robora Agostinho e Tomas de Aquino, ao admitir três tipos de substância: a res cogitans, ou o ser pensante – a mente, ou alma humana –; res extensa, ou o ser que ocupa espaço – o mundo material; e res divinae, ou Deus. Baruch de Espinoza (1632-1677), considerado o fundador do criticismo bíblico moderno, discordou do conceito cartesiano e afirmou a existência de uma única substância, Deus, que seria o equivalente à ideia que se tem de natureza, uma subs- tância divina e infinita, causadora de si e de toda a realidade. David Hume (1711-1776), filósofo, historiador, ensaísta e diplomata escocês, conhecido por seu radical sistema filosófico baseado no empirismo, ceticismo e na- turalismo, não aceitou as definições de substância de filósofos que o antecederam, porque não corresponderiam a qualquer impressão particular. Para Hume, um conceito só pode ser deduzido de uma relação direta com um fenômeno através de uma impressão objetiva, do que se deduz que o conceito de substância proviria tão somente da imaginação – e não da realidade em si. Para Immanuel Kant (1724-1804), a substância é o primeiro gênero do ser, e é um ente de per si; é o que permanece, o que não muda naquilo que altera. O conceito de permanência da substância na Filosofia Moderna contraria a afir- mação aristotélica que predicava a imutabilidade da substância, daí as críticas de Kant a esse conceito pelo qual Aristóteles admitia uma mutação substancial. Para Kant, a substância é o que permanece – e não aquilo que se perpetua em uma imutabilidade eterna. O empirista Hume afirmava que a substância não seria captada nem pela ex- periência interna, nem pela externa, mas apenas a ideia de substância, que nada mais seria que a coleção das ideias simples que, pelo influxo da imaginação, foram unidas; em síntese, a substância seria desconhecida, algo que apenas julga- mos existir. Kant, influenciado por Hume, reduziu a substância a uma categoria a priori, conceito não empírico e condicionado pela experiência, cujo valor objetivo, valor da realidade, seria desconhecido ao homem. Kant, em referência posterior e viva à Crítica da razão pura, conciliou o ra- ciocínio dedutivo com o conhecimento indutivo, ao afirmar que a substância é a permanência do real no tempo e o seu princípio se constitui na primeira ana- logia da experiência. Para Kant, a substância persiste em toda mudança dos fenômenos e a sua quantidade não aumenta, tampouco diminui na natureza. “Todos os fenômenos contêm algo permanente (substância) considerado como o 23 UNIDADE Tematizações Filosófico-Antropológicas da Antiguidade ao Medioevo e à Modernidade próprio objeto, e algo mutável, considerado como uma simples determinação desse objeto, isto é, o modo de sua existência”. (KANT, 1960a, grifo nosso) Kant assinala que se existe algo que se conserva nas altercações é a energia, mas esta não é uma coisa, nem um ser individual, muito menos um sujeito. Portanto, qual é o sentido em ver na energia uma substância? Retomando a classificação de Porphyrios, esta ainda serviu de modelo para as divisões taxonômicas dos naturalistas. Recordar que o naturalismo extremo refere uma atitude filosófica, que se opõe à posição do sobrenatural ou espiritual, ideias ou crenças de que apenas existiriam leis e forças naturais a agirem no mundo e além destas nada mais existiria. A taxionomia mostra que o ser humano, assim como todas as espécies animais e vegetais, compõe interessante e importante clas- sificação taxonômica biológica, conhecida como classificação científica dos se- res, a qual apresenta as principais características biológicas dos seres humanos e as semelhanças que possuímos em relação a outras espécies animais. Homo Sapiens – http://bit.ly/32kICez Ex pl or Homo Sapiens é o nome dado à espécie dos seres humanos, de acordo com a classificação taxonômica; trata-se de expressão latina que significa, literalmente, homem sábio, ou homem que sabe. Desse se predica ter conhecimento sensitivo, intelectivo e imaginativo; é um ser histórico, portanto, possui memória. O Homo Sapiens viveu há aproximadamente 200 mil anos. Já era um artesão habilidoso e os seus utensílios eram melhores e mais eficientes do que todos os outros feitos anteriormente. O volume de seu crânio atingia 1.500 cm³, o mesmo volume do crânio do ser humano moderno. Do Homo Sapiens derivou subespécies dentro da espécie, o Homo Sapiens Sapiens, que caracteriza o homem moderno – o homem que sabe o que sabe. Este se distingue essencialmente pela indivi- dualidade, pessoalidade, consciência crítica e autoconsciência, o que lhe infere a competência da reflexão e autorreflexão. O Homo Voluntas é aquele movido por uma força unitiva, pela qual a vontade age como força motriz interior, que isola o objeto sensível no campo perceptivo e é impelido por um processo sensitivo e intelectual à faculdade necessária para executar os comandos da vontade, o que propriamente diferenciaria ohumano dos outros animais. A vontade em si seria uma faculdade cega, por isso carece de iluminação e direcionamento do intelecto, que imprime uma decisão, mas que é cerceada e limitada pela pseudoliberdade, em face de restrições impostas pela reli- gião, sociedade etc. Considere-se ainda que a vontade é por vezes alienada à mídia, tecnologia e política e, ao mesmo tempo, é uma vontade escravizada por paixões, por isso a vontade sempre está sujeita à ética reinante em sua sociedade. 24 25 Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, Muda-se o ser, muda-se a confiança; Todo o mundo é composto de mudança, Tomando sempre novas qualidades. Continuamente vemos novidades, Diferentes em tudo da esperança; Do mal ficam as mágoas na lembrança, E do bem, se algum houve, as saudades. O tempo cobre o chão de verde manto, Que já coberto foi de neve fria, E em mim converte em choro o doce canto. E, afora este mudar-se cada dia, Outra mudança faz de mor espanto: Que não se muda já como soía. Luís Vaz de Camões (1524-1580) Soía: O verbo soer significa costumar, logo, como soía quer dizer como costumava. Ex pl or O Homo Loquens se refere ao homem como o único animal falante, não como uma propriedade inata, mas em um desenvolvimento cultural incessante de onde derivou uma linguagem a cada cultura. A língua é assim um sistema convencional da fala em determinada comunidade humana na qual o seu exercício ganha valores sob a forma de códigos institucionalizados em uma gramática e vocabulário específicos. A fala surge como uma função sem órgão próprio e exclusivo, tornando possível localizá-la em um ponto determinado do organismo. A evolução histórica propor- cionou uma pré-determinada disposição anatômica dispersa no organismo para contribuir para com a fala; cordas vocais, pulmões, língua, boca, aparelho auditivo e, principalmente, estruturas cerebrais. Ora, tais componentes existem no macaco, porém, este não articula palavras! Se tem a possibilidade da linguagem, mas não detém essa realidade, há configuração evidente de que, em essência, a função da palavra não é de origem orgânica, mas intelectual. Assim, não havendo um órgão específico da fala, admitimos a linguagem como um subproduto da razão do ho- mem, quando levado à consciência de si, que se configura como um desenvolvi- mento cultural. Ainda, se determinado órgão houvesse, provavelmente falaríamos a mesma língua em nosso planeta, pois nasceríamos falando. Poderíamos assumir que a linguagem foi a primeira das grandes invenções da humanidade e dessa sur- giram os germes de todas as outras. 25 UNIDADE Tematizações Filosófico-Antropológicas da Antiguidade ao Medioevo e à Modernidade Exprimir é um ato de substituição de uma percepção ou uma ideia por um sinal sonoro convencionado que a anuncia, abriga e evoca, pela qual, através da fala, o homem cria e intenta dominar, senão as realidades da natureza, ao menos o sentido dessas. Nomear desta forma é chamar algo à existência, tirá-lo do nada e lhe dar luz na vida; e esta denominação fundamenta o direito à existência no mundo real. Por meio da fala, o homem acessa o portal do mundo e este lhe vem ao pensa- mento para depois desse sair em forma de palavras. Situar-se neste mundo é estar em harmonia com a rede de palavras que coloca as coisas em seu lugar dentro de um determinado contexto. Há uma dependência recíproca entre a palavra, o pensamento e as circunstâncias, que seriam, desta forma, menos representação do real, mas de uma língua que manipula inconscientemente a forma de ver o mundo: A língua dispõe de certo número de sinais fundamentais, arbitrariamente ligados a significações-chave; ela é capaz de recompor qualquer significação nova a partir daquelas, consequentemente de dizê-las na mesma linguagem, e finalmente se exprime porque reconduz todas as nossas experiências ao sistema de correspondências iniciais entre tal sinal e tal significação de que nos apoderamos aprendendo a língua, e que é, ele, absolutamente claro, porque nenhum pensamento se arrasta nas palavras, nenhuma palavra no puro pensamento de alguma coisa. (MERLEAU-PONTY, 1974, p. 21) A linguagem seria a essência que representaria a parte pensante do ser humano, distinta de quaisquer outras representações. Para Georges Gusdorf (1977), a palavra designa a realidade humana tal como se manifesta na expressão, enquanto afirmação da pessoa, de ordem moral e metafísica. A linguagem e a língua referem pensamen- tos abstratos, condições de possibilidade da palavra, que as encarna ao assumi-las, para se fazer passar ao ato, desde o simples som vocal, que se estiliza em palavras, pela imposição de um sentido social, até à palavra humana efetiva, carregada de intenções particulares e portadoras de valores pessoais (GUSDORF, 1977, p. 6). O Homo Symbolicus se refere a uma prodigiosa faculdade humana, um atributo que diferencia os homens das demais criaturas. Os humanos expressam pensa- mentos representando-os através de signos e símbolos, concebidos por escritos, palavras, sons, imagens, instrumentos do pensamento ao serviço da comunicação. A distinção entre signos, símbolos e até mesmo sinais nem sempre é fácil de se estabelecer e no período patrístico não existia distinção entre os quais; na literatura atual, por vezes, é difícil distingui-los em uma primeira visualidade. O símbolo constitui representação que incorpora determinados valores e que é perceptível de um juízo que lhe é associado por alguma convenção social, tal que exista uma ligação convencional entre aquilo que significa e o que denota; portan- to, todo símbolo veicula determinada concepção social, que pode ser uma palavra, um som, gesto, ritual, uma gravura e outros correlatos. 26 27 Os símbolos são subjetivos, representam coisas distintas de si e são percebidos como metáforas. O seu significado não é limitado ou concreto, mas é uma indica- ção de seus valores, por meio de uma analogia e são usados por uma sociedade para definir determinada realidade – por exemplo, estandarte das legiões romanas. Figura 10 – Estandarte das legiões romanas Fonte: Wikimedia Commons Utilizado pelas legiões romanas como um sinal de identificação, a águia simbo- lizava poder, dominação, força e disciplina. Durante o reinado de Júlio César, era confeccionada com ouro e prata; posteriormente com Augusto passou a ser feita unicamente com ouro. Em suas viagens com o exército, eram raros os momentos em que esse símbolo saía do acampamento e sempre estava sob a segurança de um legionário, principalmente durante as batalhas, o qual era responsável por defendê- -la com a própria vida – se fosse o caso. Para os romanos, perder a águia seria o si- nal de grande desventura e a legião por essa responsável seria considerada maldita. Assista ao filme A Legião Perdida (The Eagle). Trailer disponível em: https://youtu.be/K_RINIw0_ZgEx pl or O vocábulo signo, evidentemente deriva de significado e refere-se ao que toma o lugar de outra coisa e representa a realidade ou o conceito específico para a pes- soa que o interpreta. Convém ressaltar o pensamento de Kant, quem define o sujei- to do conhecimento como transcendental, porque cria um mundo para habitá-lo, mas sempre a partir de um orbe que lhe é disponibilizado a priori. 27 UNIDADE Tematizações Filosófico-Antropológicas da Antiguidade ao Medioevo e à Modernidade Em sua Teoria do conhecimento, Kant se questiona a partir destes princípios: • O que posso saber? – Teoria do conhecimento – as fontes do saber humano; • O que devo fazer? – Ética – a extensão do uso possível e útil de todo saber; • O que posso esperar? – Teologia – os limites da razão; • O que é o ser humano? – Antropologia. Para conhecer o mundo, o homem o faz por meio de suas próprias estruturas mentais, que moldam os dados que recebe do mundo exterior, embora não seja mero receptor, figurando como um construtor de imagens que lhe aparecem à mente. ParaKant, um objeto em si é incognoscível, mas quando a mente humana reconfigura os seus dados por meio de estruturas internas, esse objeto adquire a en- tidade conhecida, ou seja, o mundo é como aparece à mente do homem singular que se dispõe conhecê-lo, o que é um indício de que os signos têm interpretações pessoais, que podem ser distintas entre os homens. Os signos são, portanto, sinais que se propõem comunicar algo a ser percebi- do pelos seres humanos, como também a outros seres vivos – se necessário for. Os receptores recebem informações de enunciados verbais e não verbais de inú- meras fontes, o que faz de suas vidas uma eterna dependência desse processo de comunicação. De acordo com Charles Sanders Pierce (1839-1914), “Pai da Semiótica e do Pragmatismo”, todo pensamento humano só ocorre por meio de signos (SANTAELLA, 1990.). Segundo Ferrater Mora (1977, p. 369), atualmente prepondera a doutrina que afirma que o signo pode ser considerado como algo que sustenta três tipos de relação: com outros signos – sintaxe –, com objetos designados pelo signo – semântica – e com o sujeito que desse faz uso – prag- mática. Veja exemplos: Figuras 11 e 12 Fonte: Leo Martins Propositalmente ladeadas, estas duas obras bem que poderiam ter sido uma ale- goria da última campanha que tivemos no plebiscito sobre a venda de armas, ou a atual discussão em relação a liberar ou não o seu porte. 28 29 Observe que enquanto há apenas um grande não em branco, este e toda a monta- gem estão eivadas de palavras sim, o que poderia se tratar de campanha auto-orienta- da. De qualquer forma, aqui fica evidente que o observador é quem deverá interpretar a mensagem – e o fará de acordo com os valores que construiu ao longo de sua vida. Um sinal seria um signo informativo, que oferece significados a priori de sua interpretação, ou seja, já vem interpretado e apenas induz o seu espectador à de- terminada reação. Um bom exemplo está nas sinaleiras utilizadas para regular o trânsito nas cidades. A professora Maria Cecília Sa nchez Teixeira (2016) atribui ao Homo Symbolicus a sua imaginação no desenvolvimento das culturas, Ciências e da educação, na compreensão dos processos de simbolização, que encaminham a uma pedagogia do imaginário, tendo como meta a “educação da alma” através da restauração do equilíbrio entre razão e imaginação – necessário à formação integral do homem. É por meio dos processos de simbolização que assumimos nossa huma- nidade, que tomamos consciência da nossa condição própria aos seres vivos, ou seja, do nosso destino mortal, pois, como diz Gilbert Durand (1967), o universo humano é simbólico, e só é “humano” na medida em que o homem atribui sentido às coisas e ao mundo através da imagina- ção, a qual, no seu entender, ao mesmo tempo funda e transcende as atividades da consciência. (TEIXEIRA, 2016, p. 48) O Homo Habilis foi a primeira espécie de hominídeo a manifestar habilidade em manipular utensílios, o que lhe permitiu enfrentar desafios mais complexos e estratégias elaboradas para a sua sobrevivência. Homo Habilis – http://bit.ly/2JBvJEx Ex pl or No Homo Habilis surgiram as ferramentas de pedra, um primeiro passo para outras invenções, tal como o fogo; passou a explorar novos territórios e a viver em comunidades, criando uma linguagem primitiva e rudimentar comunicação entre os seus membros. O Homo Socialis, vocábulo que designa o comportamento do homem condicio- nado, originado na teoria de George Elton M ayo (1880-1949), no século XX, na qual o homem é motivado, principalmente pela tradição; a felicidade individual, o cres- cimento e a saúde da sociedade dependem da existência de um sentido de “função social’’ do indivíduo, que de certa forma implica a necessidade de reconhecimento, participação e aprovação social nas atividades dos grupos sociais onde vive, família, tribo, aldeia, cidade, Estado, em um cenário que envolve dois personagens, indivíduo e Estado, cujas ações derivadas de seu contexto – religioso, cultural – determinam re- sultados a ambos e faz surgir o Homo Socialis, cu idadoso com o seu lado social, aos seus relacionamentos interpessoais, onde imprime grande estima a valores sociais e um senso agudo em ações com vistas ao coletivo. 29 UNIDADE Tematizações Filosófico-Antropológicas da Antiguidade ao Medioevo e à Modernidade Figura 13 Fonte: Getty Images A tese de Peter Berger (1929-2017) e Thomas Luckmann (1927-2016), soció- logos austro-americanos, implica a sociedade resulta da construção social da realidade. Para esses estudiosos, a forma pela qual o indivíduo define a sociedade e percebe as ações humanas interage socialmente e constrói o mundo social, de modo que a percepção seja moldada pelos sentidos subjetivos, os quais atribuídos a uma experiência objetivamente vivida (BERGER; LUCKMANN, 2014). A Construção Social da Realidade Externalização Objeti�cação Internalização O indivíduo cria ordem nas suas impressões e externa seus pensamentos pela linguagem. A linguagem e o comportamento criam hábitos e instituições. As ideias são rei�cadas. A sociedade formada pelos hábitos e instituições cria a consciência e molda a percepção de realidade do indivíduo. Figura 14 Como fundamentos a esse argumento, propõem alguns conceitos (ALVES, 2018): • Externalização: pensamentos, sentimentos, ideias que ganham formas; • Objetificação, ou reificação: a transformação dos pensamentos pela lingua- gem, o comportamento dentro de parâmetros sociais e a sua institucionalização nas artes, normas e nos hábitos; 30 31 • Internalização: com os parâmetros dos artefatos ou objetos socialmente acei- tos, o indivíduo tem consciência e interpreta o mundo. Reflexivamente, exter- naliza os seus pensamentos com base nesses parâmetros; • Habitualização: ações repetidas se tornam parâmetros que serão aceitos por outros que vierem depois; • Institucionalização: o processo de implantar uma convenção ou norma na so- ciedade. Isso acontece quando os hábitos se tornam normais ou realidade; • Realidade: uma qualidade inerente ao fenômeno ao qual reconhecemos que essa qualidade é associada ao fenômeno, independentemente de nossa vontade; • Conhecimento: certeza de que os fenômenos são reais e que possuem carac- terísticas específicas. Importante! Como as sociedades são diferentes entre si, o que é considerado ser real em uma cultura pode não ser em outra. Importante! O Homo Culturalis reflete o clássico princípio de que a causa se conhece por seus efeitos. O seu estudo se propõe descobrir quem seria o homem independente de sua estrutura física e fisiológica, ou de suas faculdades espirituais, mas exata- mente a partir do exame de seus produtos culturais, os quais mostram a sua capa- cidade intelectual. Em tese, tudo aquilo que não for natureza, torna-se resultado da criatividade humana. Para Battista Mondin (1980), a cultura é essencialmente um modo organizado de vida, na qual tudo o que o homem adquire, ou produz, faz com o uso de suas faculdades; portanto, constitui-se de todo o conjunto de saberes e de produções que envolvem Ciência, técnica e tudo aquilo que o homem com o seu saber e fazer extrai da natureza. Interpretações estruturalistas entendem as relações entre cul- tura e natureza como um diálogo, a Antropologia Cultural, pela qual ao utilizar a cultura o homem humaniza a natureza e esta naturaliza o homem – através dos recursos que lhe disponibiliza –, dando origem ao homem-estrutura cultural. Segundo Mondin (1980), seria a cultura com as suas estruturas a formar e modelar o homem, em suas distintas expressões de liberdade. Analise os seguintes versos de Rita Lee e ouça a sua música, intitulada Choque cultural: Eu entrei quente Crente que estava abafando Quando Tropecei no ego Fiquei cego e caí na real 31 UNIDADE Tematizações Filosófico-Antropológicas da Antiguidade ao Medioevo e à Modernidade Me sinto um lixo Bicho da Pré-História Memória De uma raça Que ameaça a espécie especialChoque cultural é normal Choque cultural é normal Fui pra Machu Picchu Fiquei mucho putcho, bitchu Cheguei atrasado No passado E comprei um postal Verde-amarelo Elo perdido Ídolo Retornar à base Kamikase Pra batalha final Choque cultural é normal Choque cultural é normal Não senhor, eu não sou inferior Não senhor, eu não sou inferior Não senhor, eu não sou inferior Composição: Rita Lee / Roberto Carvalho O homem manifesta o seu ser e outras dimensões; inventa as coisas que determi- nam o seu jeito de pensar e de ver o mundo, manifestando-o socialmente de forma culturalmente ostensiva. Da leitura de Mondin (1980), pode-se concluir a impossibilida- de de separar o homem de seu microuniverso, de sua comunidade; tampouco de seu macrouniverso, o Cosmos. A partir desse entendimento, é possível partir da humani- dade comum para a sua diversidade cultural, uma inerência da condição humana, que permite concluir pela incoerência em tentar apartar o homem de seu universo. Segundo Roque de Barros Laraia (2003), o homem é decorrência do meio cultural em que foi socializado e ao adquirir cultura perdeu a sua propriedade animal ge- neticamente acurada, de repetir as mesmas ações de seus antepassados, o que a esse requisita contextualizar o seu pensamento para lhe dar a devida pertinência, quando busca respostas como pontos de partida de suas ações, tais como quem somos? Onde estamos? De onde viemos? Para aonde vamos? 32 33 O Homo Faber significa o homem artífice. Conceito filosófico proposto por Johannah Arendt, mais conhecida como Hannah Arendt (1906-1975) e Max Scheler (1874-1928), como modo de descrever a capacidade do homem para controlar a natureza por meio de ferramentas. É importante não confundir com a mesma definição empregada pelo filósofo e diplomata francês Henri Bergson (1859-1941), que a empregou para designar o homem primitivo, ou o Homo Habilis, em face de sua indigência em forjar os seus utensílios imperativos à sustentação da vida em seu período. Para Hannah Arendt, o Homo Faber produz o mundo através de seu trabalho, ao mesmo tempo em que mantém a sua identidade por meio da produção de obje- tos no mundo. Trata-se da condição humana, qu e para Arendt (2001) compreende algo mais do que as circunstâncias nas quais a vida foi dada ao homem. O Homo Ludens indica uma atividade humana ligada ao jogo como elemento cultural, social e econômico. Figura 15 – Túmulo da rainha Nefertari, esposa de Ramsés II, faraó do Egito, com um jogo da época, o senet Fonte: Wikimedia Commons Não obstante datar de tempos remotos, pesquisas indicam os primeiros registros oficiais de jogos em Roma e na Grécia: 33 UNIDADE Tematizações Filosófico-Antropológicas da Antiguidade ao Medioevo e à Modernidade Figura 16 Fonte: Wikimedia Commons O vocábulo jogo deriva do latim Iocus, com o significado próprio de jogo, mas tam- bém tem a conotação de brincadeira, divertimento, de modo que etimologicamente sur- ge, no latim, como ludus, uma atividade estruturada e, via de regra, praticada com fins recreativos, bem como à época fazia parte de processos educacionais. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura, é o título de um livro de Johan Huizinga (1872-1945), historiador e linguista holandês, conhecido por seus trabalhos nas áreas da história cultu- ral, da teoria da história e da crítica da cultura. Para Huizinga (2014, p. 33): [...] o jogo é uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e de espaço, segundo regras livre- mente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e de alegria e de uma consciência de ser diferente da “vida quotidiana”. Para Roger Caillois (1913-1978), sociólogo, crítico literário e ensaísta francês, essa foi a obra mais importante na Filosofia da História em nosso século XX. Huizinga (2014) estruturou a obra sob uma extensa perspectiva histórica, recorren- do, inclusive, a estudos etimológicos e etnográficos de sociedades distantes tempo- ral e culturalmente, ao abordar a noção de jogo em uma perspectiva histórica en- quanto fenômeno cultural e não biológico, psicológico ou antropológico, de modo que a esse associa metodicamente outras atividades fundamentais da vida humana, tais como linguagem, competição, divertimento e, principalmente, conhecimento. Em Johan Huizinga, o jogo seria inato ao homem e até mesmo aos animais – en- quanto brincadeiras –, considerando-o uma categoria absolutamente primária da vida, portanto, precedente à cultura: “A existência do jogo é inegável. É possível negar, se quiser, quase todas as abstrações: a justiça, a beleza, o bem, Deus. É possível negar-se a seriedade, mas não o jogo” (HUIZINGA, 2014, p. 6). 34 35 A visão filosófica do Homo Ludens de Huizinga (2014) implica: I. O jogo como elemento partícipe da cultura; II. O jogo enquanto uma atividade livre, voluntária, delimitada no tem- po e no espaço, conduzida pela imaginação e por regras próprias de organização; III. No jogo, quanto ao brincar, o sentido é dado por aqueles que brin- cam, os quais significam e ressignificam o mundo de seu entorno; IV. O jogo se faz um importante espaço de expressão, mas principal- mente de aprendizagem sobre o mundo natural e social e, ao mesmo tempo, uma possibilidade de transformação da realidade, pelo desen- volvimento da capacidade imaginativa e criativa. Para Huizinga (2014), o jogo pode ser entendido, ainda, como uma estrutura da linguagem, onde ocupa a função de significante, ao encerrar determinado sentido e transcender as necessidades imediatas da vida, ao conferir um sentido à ação, o que implica a presença de um elemento não material em sua própria essência, tal que o jogo seja parte da comunicação – e a comunicação parte do jogo. Eis uma possível conclusão que se possa obter a partir do trabalho de Huizinga (2014): o jogo é uma característica intrínseca ao homem e elemento de sua cultura. Por ser essencialmente lúdico, faz-se importante para a constituição da autonomia do sujeito, ao relacionar a ação a significados e sentidos, enquanto na vida real, a ação via de regra determina o significado. Huizinga (2014) evidencia certo ceticismo com a perda do espírito lúdico, com o surgimento do realismo e com a Revolução Industrial, quando as competições são valorizadas a partir de uma esfera profissional, comercial e caracterizados, princi- palmente pela ausência da espontaneidade. 35 UNIDADE Tematizações Filosófico-Antropológicas da Antiguidade ao Medioevo e à Modernidade Material Complementar Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade: Vídeos A Ascensão da Humanidade – Jacob Bronowski https://youtu.be/87MZYTDDcbw Filmes Tempos Modernos Filme de 1936 dos Estados Unidos do cineasta Charles Chaplin, em que o seu famoso personagem “O Vagabundo” (The Tramp) tenta sobreviver em meio ao mundo moderno e industrializado. É considerado uma forte crítica ao capitalismo, bem como uma crítica aos maus tratos que os empregados passaram a receber durante a Revolução Industrial. 1984: O Futuro do Mundo 1984 é um filme de ficção científica britânico de 1956, dirigido por Michael Anderson, baseado no livro homônimo do autor inglês George Orwell. É a primeira versão cinematográfica da história, dirigido por Michael Anderson, e estrelado por Edmond O’Brien. Leitura Ainda além do medo: Filosofia e Antropologia do preconceito http://bit.ly/2LgS65j 36 37 Referências AGOSTINHO. Confissões – libri VI. [S.l.: s.n., 20--?a]. ________. De quantitate animae – liber unus. [S.l.: s.n., 20--?b]. ALVES, L. Berger e Luckmann: a construção social da realidade. Ensaios e Notas, 6 jul. 2018. Disponível em: . Acesso em: 8 jul. 2019. ARENDT, H. A Condição Humana. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Forense Universitária, 2001. ARNS, H. A Tragédia:o homem – Edgar Allan Poe. Paraná: Impressora Parana- ense, 1959. BAUMAN, Z. 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