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20 UROLOGIA ESSENCIAL V.2 N.1 JUL SET 2012 Infecção UrInárIa febrIl na crIança claUdemIr Trapp crIsTIane paIm pIres Infecção UrInárIa febrIl na crIança claUdemIr Trapp crIsTIane paIm pIres CLAUDEMIR TRAPP Urologista pediátrico do Hospital da Criança Santo Antônio Santa Casa de Porto Alegre - RS CRISTIANE PAIM PIRES Urologista - Hospital Santa Casa de Porto Alegre - RS www.urologiaessencial.org.brU R O L O G I A D E C O N S U L T Ó R I O A s infecções do trato urinário (ITUs) são comuns durante a infância. Estima-se que até os 8 anos de idade, 7 a 8% das meninas e 2% dos meninos apresentarão, pelo menos, um episódio de infecção urinária1,3. A apre- sentação clínica das ITUs varia de acordo com a idade do paciente e o nível da infec- ção (envolvimento do parênquima renal ou limitada ao trato urinário inferior)2. As in- fecções urinárias febris apresentam maior incidência durante o primeiro ano de vida em ambos os sexos, porém as ITUs não fe- bris ocorrem, predominantemente, em me- ninas, após o treinamento para o toalete, com mais de 3 anos de idade3. A presença de febre aumenta a probabilidade de en- volvimento renal, com sensibilidade de 53 a 84% e especifi cidade de 44 a 92%, e pode estar associada a anormalidades urológi- cas congênitas e com um risco maior de formação de cicatriz renal3. A Escherichia coli é responsável por 75- 80% dos episódios de ITU na infância. Os meninos são infectados por Proteus sp em 30% das vezes1,6. Acredita-se que as ITUs associadas a cicatrizes renais sejam causadoras, a longo prazo, de considerável morbidade, como o surgimento de hipertensão arterial, insufi - ciência renal crônica e pré-eclampsia2,3. No entanto, estas associações são feitas base- adas em estudos retrospectivos. Os estu- dos prospectivos são escassos e eviden- ciaram uma baixa taxa de consequências a longo-prazo3. Diagnóstico Diante de uma criança com febre e sus- peita de infecção do trato urinário, o diag- nóstico rápido é de extrema importância, Infecção Urinária febril na Criança Introdução 21V.2 N.1 JUL SET 2012 UROLOGIA ESSENCIAL Infecção UrInárIa febrIl na crIança claUdemIr Trapp crIsTIane paIm pIres Infecção UrInárIa febrIl na crIança claUdemIr Trapp crIsTIane paIm pIres UROLOGIA DE CONSULTÓRIO pois permitirá que a introdução do tratamento cor- reto previna a lesão renal. Os sinais e sintomas de infecção urinária de- pendem da idade da criança. No entanto, todo lac- tente, até os 2 anos de idade, com febre de origem indeterminada, deve ser avaliado acerca da presen- ça de infecção de origem no trato urinário1,4. Alguns autores recomendam, nos primeiros meses de vida, mesmo na presença de um sítio determinado de in- fecção, que se faça a cultura da urina rotineiramen- te, pois até 3,5% das crianças com outras infecções podem ter ITU concomitantemente4. Durante esta fase da vida, não existem si- nais e sintomas específicos de infecção urinária. As crianças maiores, mas que ainda não estão treina- das para o toalete, podem apresentar, com a febre, ir- ritabilidade, diminuição do apetite, vômitos, diarreia e prostração. Aquelas que já apresen- tam o treinamento para o toalete manifestam queixas mais localizadas sobre o trato urinário, como disúria, dor suprapúbica, inconti- nência diurna, enurese no- turna secundária, dor lom- bar ou no flanco. O exame físico não apre- senta sinais específicos. A palpação abdominal poderá revelar a presença de rim palpável se houver hidro- nefrose severa. A palpação de fezes também pode- rá ser observada em casos de constipados severos, o que pode ser sugestivo de alguma anormalidade concomitante, como disfunções de eliminação. A palpação de região suprapúbica pode ser dolorosa ou mesmo sugerir um volume residual urinário. O exame da região genital é importante e pode mos- trar malformações, como ureteroceles ectópicas e extravazamento de urina em meninas, sugerindo ectopia ureteral, ou alterações no testículos de me- ninos, quando há comprometimento infeccioso por orquite ou orquiepididimite4. EXAMES COMPLEMENTARES Exame de Urina/ Urocultura A coleta da urina em crianças sem o controle esfincteriano deve ser feita através de cateterismo vesical ou punção suprapúbica. As culturas de uri- na realizadas nos espécimes de crianças menores, obtidas por sacos coletores, têm alta probabilidade de fal- sos positivos, uma vez que, por melhor que seja a higiene local, representa a flora perineal e in- testinal5. Crianças maiores, que não usam mais fraldas, após higie- ne local adequada e, nos meni- nos não circuncidados, após a retração do prepúcio, poderão coletar o jato médio da urina3,5. A análise da urina, embora não seja definitiva para confir- mar o diagnóstico, é de grande importância, pois permitirá ao médico iniciar o uso de anti- biótico ou observar o paciente por mais tempo. A presença de esterase leu- cocitária ou de nitritos, no exa- me bioquímico da urina, ou de leucócitos, hemácias e bacteriúria, no exame de sedimento urinário, sugerem que a criança pode estar com um quadro infeccioso, com origem no trato urinário5,6. O diagnóstico de infecção urinária é definido através da cultura de urina positiva (mais do que 100.000 colônias/ml), associada à presença de leu- cócitos e/ ou bacteriúria na análise de urina. O exame da região genital é importante e pode mostrar malformações, como ureteroceles ectópicas e extravazamento de urina em meninas, sugerindo ectopia ureteral, ou alterações no testículos de meninos,... 22 UROLOGIA ESSENCIAL V.2 N.1 JUL SET 2012 UROLOGIA DE CONSULTÓRIO Infecção UrInárIa febrIl na crIança claUdemIr Trapp crIsTIane paIm pIres Infecção UrInárIa febrIl na crIança claUdemIr Trapp crIsTIane paIm pIres Ultrassonografia A ultrassonografia é um exame não invasivo e deve ser realizada após o diagnóstico de infecção urinária febril, pois pode revelar anormalidades anatômicas, como hidronefrose ou megaureter, espessamento da parede da bexiga, ureterocele ou mesmo rins displásicos. A ultrassonografia não mostra a presença de refluxo vésico-ureteral, mas poderá sugerir a presença de cicatrizes renais1,3. Um estudo recente e uma revisão sistemática mostraram que, aproximadamente, 70% das ano- malias renais e do trato urinário são detectados no período antenatal, durante o segundo e o terceiro trimestres de gestação, em ultrassonografias de rotina5. Uretrocistografia A uretrocistografia necessita da cateterização da bexiga da criança e da instilação de contraste, além da exposição da criança à radiação. Embora existam muitas controvérsias a respeito deste exa- me, ele continua sendo o padrão-ouro para a detec- ção e classificação do refluxo vésico-ureteral7. O diagnóstico de pequenos graus (I – II) de re- fluxo não tem muito valor prático, de modo que a indicação formal para a realização da uretrocisto- grafia seja mais selecionada, em busca do diag- nóstico de graus maiores de refluxo, ou mesmo malformações uretrais masculinas. Sendo assim, a realização do exame deve ficar reservada aos ca- sos com alteração à ultrassonografia antenatal ou pós-natal, alterações no jato de urina ou repetidas infecções urinárias febris, em pacientes que ainda não tenham realizado o exame contrastado. Cintilografia renal com DMSA A realização de cintilografia renal com DMSA- -Tc99m (ácido dimercaptosuccínico) tem papel importante, pois permite a avaliação da função do parênquima renal e a existência de cicatrizes após o quadro infeccioso3. Não existe evidência de que este exame seja importante durante a fase aguda da pielonefrite. Também não existe con- senso quanto ao intervalo de tempo necessário, após o episódio agudo, para a realização da cinti- lografia renal com DMSA, visando a detecção de cicatrizes renais. Muitos autores preconizamque um período entre 6 e 12 meses após a infecção ter sido resolvida seria adequado3,6. Outros Exames Exames como tomografias computadorizadas ou ressonância nuclear magnética podem ser reali- zados na suspeita de abscesso renal ou quando há um retardo na resposta ao antibiótico empregado3. TRATAMENTO A aborgagem terapêutica da criança com in- fecção urinária febril requer diagnóstico e trata- mento precoce, a fim de prevenir o surgimento de cicatriz renal2. Na maioria das crianças maiores de 1 mês de vida, o tratamento por via oral mostrou-se eficaz3. A Associação Americana de Pediatria (AAP) reco- menda que a escolha da via parenteral deve ser reservada aos pacientes gravemente enfermos, em mal estado geral ou desidratados, ou ainda aqueles que têm problemas para engolir a medi- cação. A eficácia das diferentes vias de adminis- tração é a mesma2,3. O período de tratamento varia de 7 a 14 dias. Os esquemas de tratamento por períodos curtos, menores do que 5 dias, se mostraram ineficazes no tratameto da infecção urinária febril em crianças7. A escolha do antibiótico dependerá do teste de sensibilidade realizado durante a cultura de urina e também das características de resistência anti- microbiana da instituição ou região. No entanto, as drogas mais utilizadas para o tratamento domi- ciliar são as cefalosporinas, a amoxacilina/clavu- lanato e a sulfametoxazol-trimetoprina3. Agentes que são excretados na urina, mas que não alcan- çam boas concentrações na corrente sanguínea, como a nitrofurantoína, não devem ser utilizados 23V.2 N.1 JUL SET 2012 UROLOGIA ESSENCIAL Infecção UrInárIa febrIl na crIança claUdemIr Trapp crIsTIane paIm pIres Infecção UrInárIa febrIl na crIança claUdemIr Trapp crIsTIane paIm pIres UROLOGIA DE CONSULTÓRIO na infecção urinária febril, porque as concentra- ções do antimicrobiano no parênquima renal se- rão insuficientes5. Quando o tratamento endove- noso é recomendado, nenhuma droga se mostrou mais eficiente do que a outra para o tratamento destes pacientes. As cefalosporinas ou os ami- noglicosídeos são igualmente usados na prática pediátrica3,6,7. As quinolonas não são usualmente uma opção em crianças devido ao potencial risco de lesão da cartilagem de crescimento. Porém, não exis- tem evidências científicas que sustentem esta hipótese. Estes antimicrobianos podem ser muito úteis quando a infecção é causada por patógenos multirresistentes e não existem outras alternati- vas seguras para o uso via oral1. O FDA (Food and Drug Administration) dos Estados Unidos aprova o uso de ciprofloxacino em crianças de 1 a 17 anos com infecção de urina complicada e pielonefrite atribuível à E. Coli1. ANTIBIOTICOPROFILAXIA Estima-se que entre 5 a 15% das crianças com infecção urinária febril irão desenvolver cicatri- zes renais1,6,8. Como a cicatriz renal é um fator de risco para a subsequente hipertensão arterial, a prevenção da infecção urinária está em constante debate6. O objetivo da profilaxia é manter uma dose bai- xa de antibiótico na bexiga, para impedir o cres- cimento bacteriano e a consequente pielonefrite. Entretanto, há um aumento da possibilidade de desenvolvimento de resistência aos antibióticos da flora intestinal e orofaríngea6. Entre 2006 e 2010, alguns estudos prospectivos compararam antibioticoprofilaxia com tratamento expectante3,9,10. A partir destes estudos, conside- ra-se pouco eficiente a profilaxia nas crianças sem refluxo ou com graus baixos de refluxo vésico- -ureteral (I e II) visto que os índices de reinfecção ficam em torno de 3 a 8% por ano, sem a profilaxia. Nas crianças com graus de refluxo alto (III a V), que têm índices de reinfecção entre 28 e 37%, a profilaxia parece ser apropriada8-10. Não existem dados que determinem por quanto tempo deve ser administrado o antibiótico como prevenção3. TRATAMENTOS COMPLEMENTARES O refluxo vésico-ureteral pode ser corrigido cirurgicamente, através de cirurgia aberta ou de tratamento endoscópico. Os refluxos primários de mais baixo graus (I-III), rotineiramente, não ne- cessitam de qualquer intervenção, porque têm um alto índice de resolução espontânea. Entretanto, aquelas crianças com altos graus de refluxo (IV-V) e presença de cicatrizes renais têm forte indica- ção de tratamento cirúrgico. Aqueles pacientes com infecções febris de repetição, mesmo em es- quema de antibioticoprofilaxia, devem ser levados ao tratamento cirúgico3,10,11. Os distúrbios miccionais não neurogênicos (disfunção miccional ou hiperatividade vesical), quando reconhecidos, devem ser prontamente encaminhados para o tratamento, assim como a constipação intestinal, que pode estar associada a estes distúrbios ou apresentar-se isolada. O tra- tamento da constipação é imprescindível para a resolução do quadro urinário11. A circuncisão também beneficiará os meninos, por reduzir o número de infecções urinárias. Este benefício é maior naqueles meninos com altos graus de refluxo vésico-ureteral12. 24 UROLOGIA ESSENCIAL V.2 N.1 JUL SET 2012 UROLOGIA DE CONSULTÓRIO Infecção UrInárIa febrIl na crIança claUdemIr Trapp crIsTIane paIm pIres Infecção UrInárIa febrIl na crIança claUdemIr Trapp crIsTIane paIm pIres 1. WHITE, B. Diagnosis and Treatment of Urinary Tract Infections in Children. American Family Physician, vol. 83, number 4. Fe- bruary 15 2011. 2. EHSANIPOUR F, GHAROUNI M, RAFATI A H, ARDALAN M, BO- DAGHI N, OTOUKESH H. Risk factors of Renal Scars in Children with Acute Pyelonefritis. Braz J Infect Dis. 2012; 16(1):15-18. 3. MONTINI G, TULLUS K, HEWITT I. Febrile Urinary Tract Infec- tions in Children. N Engl J Med. 2011; 365:239-50. 4. SHORTLIFFE L M D. Infection and Inflamation of Pediatric Ge- nitourinary Tract. In: WEIN A J, KAVOUSSI L R, NOVICK A C, PARTIN A W, PETERS C A. 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