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V a l o r e s D iv in o s p a r a u m a S o c ie d a d e
e m C o n s t a n t e M u d a n ç a
E s e q u ia s S o a r e s
V alores D ivinos para uma S ociedade
em C onstante M udança
Esequias S oares
V alores D ivinos para uma S ociedade
em C onstante M udança
Esequias S oares
1a Edição
C94D
Rio de Janeiro
Outubro / 2014
Todos os direitos reservados. Copyright © 2014 para a língua portuguesa da Casa
Publicadora das Assembleias de Deus. Aprovado pelo Conselho de Doutrina.
Capa: Wagner de Almeida
Projeto gráfico e editoração: Paulo Sérgio Primati
Revisão: Lettera Editorial
As citações biblicas foram extraídas da versão Almeida Revista e Corrigida,
edição de 1995, da Sociedade Bíblica do Brasil, salvo indicação em contrário.
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da CPAD, visite nosso site: http://www.cpad.com.br.
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Casa Publicadora das Assembleias de Deus
Av. Brasil, 34.401 - Bangu - Rio de Janeiro - RJ
CEP 21.852-002
1" edição: 0utubro/2014
Tiragem: 35.000
CDD 222.16 Silva, Esequias Soares da, 1955-
586s -Silv Os dez mandamentos: valores divinos para uma sociedade em cons
tante mudança / Esequias Soares. — Rio de Janeiro: CPAD, 2014.
160p.; 21cm.
Bibliografia: p. 159-160.
ISBN 9788526312463
http://www.cpad.com.br
sumario
ABREVIATURAS.....................................................................................7
INTRODUÇÃO ........................................................................................9
1 OS DEZ MANDAMENTOS............................................................... 13
A lei de Moisés..................................................................................14
O decálogo ....................................................................................... 17
Os códigos........................................................................................21
2 NÃO TERÁS OUTROS DEUSES ..................................................... 27
Formas de adoração p agã ................................................................28
A idolatria do mundo antigo ............................................................ 29
O primeiro mandamento.................................................................. 31
3 NÃO FARÃS IMAGENS DE ESCULTURAS...................................... 39
Os ídolos e as imagens.....................................................................40
O segundo mandamento..................................................................42
O Deus ze loso ..................................................................................46
4 NÃO TOMARÁS O NOME DO SENHOR EM V Ã O ............ ...........49
O nome "Deus" ................................................................................ 50
Elion, Shadai e Adonai .....................................................................53
O que significa tomar o nome de Deus em vão?...............................58
5 SANTIFICARÁS O SÁBADO .............................................................61
O sábado ..........................................................................................62
O quarto mandamento.....................................................................66
O sábado no Novo Testamento........................................................ 69
O sábado cristão.............................................................................. 74
6 HONRARÁS PAI E M Ã E ................................................................... 77
Honra a teu pai e a tua m ãe ............................................................. 78
A promessa divina........................................................................... 83
7 NÃO MATARÁS.................................................................................87
O sexto mandamento....................................................................... 88
Guerra...............................................................................................92
Suicídio.............................................................................................93
Pena de morte...................................................................................94
8 NÃO ADULTERARÁS........................................................................99
O sétimo mandamento....................................................................100
O casamento...................................................................................104
O ensino de Jesus............................................................................ 106
9 NÃO FURTARÁS.............................................................................. 111
Propriedade e trabalho ....................................................................112
O oitavo mandamento.................................................................... 113
Legislação mosaica sobre o furto ................................................... 115
10 NÃO DARÁS FALSO TESTEMUNHO............................................121
O aspecto exegético ....................................................................... 123
O aspecto jurídico...........................................................................125
O aspecto da vida diária................................................................. 128
11 NÃO COBIÇARÁS......................................................................... 131
Exegese do décimo mandamento................................................... 133
Os fatos .......................................................................................... 135
O décimo mandamento no Novo Testamento ..................... 136
12 A IGREJA E A LEI DE DEUS.........................................................139
A lei de D eu s.................................................................................. 140
Os três tipos de lei .......................................................................... 141
Os reformadores do século 16 ........................................................142
Avaliação bíblica.............................................................................144
CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................... 149
APÊNDICE HISTÓRICO........................................................................ 151
REFERÊNCIAS B IBLIOGRÁFICAS 159
abreviaturas
ARA Versão de João Ferreira de Almeida, Edição Revista e Atualizada
no Brasil. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 1995.
ARC Versão de João Ferreira de Almeida, Edição Revista e Corrigida.
Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 1998.
LXX RAHLFS, Alfred; RANHART, Robert. Septuaginta, Editio Altera.
Stuttgart, Germany: Deutsche Bibelgesellschaft, 2006.
NTLH Nova Tradução na Linguagem de Hoje. Barueri, SP: Sociedade
Bíblica do Brasil, 2006.
NVI Nova Versão Internacional. São Paulo: Editora Vida, 2000.
TB Tradução Brasileira. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil,
2011.
VR Versão Revisada da Tradução de João Ferreira de Almeida de
Acordo com os Melhores Textos em Hebraico e Grego. Rio de
Janeiro: Imprensa Bíblica Brasileira, 1994.
8 I OS DEZ MANDAMENTOS - VALORES DIVINOS PARA U M A SOCIEDADE EM CONSTANTE M UDANÇA
ANTIGO TESTAMENTO
Gn Gênesis
ÊX Êxodo
Lv Levítico
Nm Números
Dt Deuteronômio
Js Josué
Jz Juizes
Rt Rute
1 Sm 1 Samuel
2 Sm 2 Samuel
1 Rs 1 Reis
2 Rs 2 Reis
1 Cr 1 Crônicas
2 Cr 2 Crônicas
Ed Esdras
Ne Neemias
Et Ester
Jó Jó
Sl Salmos
Pv Provérbios
Ec Eclesiastes
Ct Cantares
Is Isaías
Jr Jeremias
Lm Lamentações de Jeremias
Ez Ezequiel
Dn Daniel
Os Oseias
J1 Joel
Am Amós
Ob Obadias
Jn Jonas
Mq Miqueias
Na Naum
Hc Habacuque
Sf Sofonias
Ag Ageu
Zc Zacarias
Ml Malaquias
NOVO TESTAMENTO
Mt Mateus
Mc Marcos
Lc Lucas
Jo João
At Atos
Rm Romanos
1 Co 1 Coríntios
2 Co 2 Coríntios
G1 Gálatas
Ef Efésios
Fp Filipenses
Cl Colossenses
1 Ts 1 Tessalonicenses
2 Ts 2 Tessalonicenses
1 Tm 1 Timóteo
2 Tm 2 Timóteo
Ttlugar ao diabo.
Uma vez descoberta tal geração, pede-se perdão por ela, e, dessa
forma, a maldição de família é desfeita. Uma espécie de perdão
por procuração, muito parecido com o batismo pelos mortos,
praticado pelos mórmons.
Tal pensamento não se sustenta biblicamente; é um erro
crasso. A maldição está sobre quem continuar no pecado dos
pais, sobre "aqueles que me aborrecem", pontua com clareza
o mandamento. Não é o que acontece com o cristão que ama a
Deus. Se fomos alvejados pela graça de Deus ainda no tempo da
nossa ignorância, quanto mais agora que somos reconciliados
com ele? (Rm 5.8-10). Quando alguém se converte a Cristo, torna-
-se nova criatura: "as coisas velhas já passaram; eis que tudo se
fez novo" (2 Co 5.17).
Para finalizar, convém ressaltar que, no discurso de Moisés em
DeuteronÔmio, na revelação do Sinai nenhuma imagem, figura,
forma ou representação foi vista pelos israelitas; eles ouviram a
voz da Javé vindo do meio do fogo, mas nenhuma representação
de figura foi manifestada, unicamente a Palavra (Dt 4.16,23,25).
Os ídolos de madeira e de pedra dos cananeus são divindades
falsas cuja adoração é terminantemente proibida (Êx 34.13; Dt
12.3; 16.21-22); Javé, entretanto, é real, mesmo que invisível
(Cl 1.15; 1 Tm 1.17). "Deus é espírito" (Jo 4.24). Cultuá-lo com
a mediação de imagens é colocá-lo no mesmo nível das falsas
divindades, uma afronta ao verdadeiro Deus.
I 4 8 I OS DEZ MANDAMENTOS - VALORES DIVINOS PARA U M A SOCIEDADE EM CONSTANTE M UDANÇA
/V
SENHOR EM VAO
A s informações sobre cada um dos dez manda
mentos do Decálogo são fornecidas ao longo do Pen-
tateuco e em muitos casos em toda a Bíblia, e aqui não
é diferente. O texto não expressa de maneira explícita,
mas deixa claro que diz respeito a tudo o que se refere
ao nome de Deus. Há expositor que exagera ao dizer
que não é possível saber o que este mandamento
quer dizer com as palavras: "Não tomarás o nome do
SENHOR, teu Deus, em vão; porque o SENHOR não
terá por inocente o que tomar o seu nome em vão"
(Êx 20.7; Dt 5.11). O contexto bíblico esclarece o que
Deus está nos ensinando e mostra a abrangência do
referido mandamento. Fala sobre o uso de modo trivial
do nome divino, proibindo o perjúrio e toda a forma
de profanação e blasfêmia do nome de Javé.
0 NOME "DEUS"
Os nomes de Deus não são apenas uma identificação pessoal,
mas são inerentes à sua natureza e revelam suas obras e seus
atributos. Não é meramente uma distinção dos deuses das nações
pagãs. Quando a Bíblia faz menção do "nome de Deus", está re
velando o poder, a grandeza e a glória do Deus Todo-Poderoso;
além de mostrar seus atributos, o nome representa o próprio Deus.
O nome de Deus está ligado à sua soberania e glória.
Há três diferentes palavras hebraicas no Antigo Testamento
para "Deus": ’êl, ’elõahe ’èlõhím.AA A Septuaginta emprega o ter
mo grego theos, "Deus", para esses três vocábulos. Eles aparecem
como nome pessoal do Deus de Israel e também como apelativos
quando se referem aos deuses nas nações, razão pela qual cos
tumamos empregar a expressão "nomes genéricos".
O termo êl tem relação com ’il, ’ilu e palavras similares
usadas para deidades dos antigos povos semitas. Aparecem
com frequência ilu[m ], ’iltu (fem.), ’ilü (pl.) nos documentos
da Mesopotâmia, em acádico,45 como nomes próprios e tam
bém como apelativos de deidade. Diversas etimologias já foram
apresentadas pelos estudiosos, mas a proposta que prevalece
é que ’il se deriva de uma raiz que significa "ser forte" ou "ser
proeminente". É um "termo semítico muito antigo para divin
dade" (HOLADAY, 2010, p. 20), usado para identificar o Deus
de Israel (Nm 23.8).
No Antigo Testamento, há 238 ocorrências de ’êl e ’êlim,
(pl.) juntos, como nome alternativo de Javé (Êx 20.5; Dt 4.24;
I 5 0 I OS DEZ M ANDAMENTOS - VALORES DIVINOS PARA U M A SOCIEDADE EM CONSTANTE MUDANÇA
44 e E -rtK .
O acádico é uma língua da antiga Mesopotâmia, falada desde o golfo Pérsico até Nínive,
no norte, e substituída aos poucos pelo aramaico a partir do neoimpério babilônico
fundado pelo rei Nabucodonosor.
5.9); como o próprio Deus de Israel: ’êl 'êlõhêi ysrãêl,46 "Deus,
o Deus de Israel" (Gn 33.20) ou "El-Elohei-Israel" (TB); ’ãnôchi
hã - ’Rabino-mor de Florença, Itália, cidade onde nasceu, tornou-se professor de Hebraico
da Universidade de Roma em 1933 e professor de Bíblia na Universidade Hebraica
de Jerusalém a partir de 1939.
NÃO TOMARÁS 0 N O M E DO SENHOR EM VÃO I 5 3
para se referir à ideia obscura e mais abstrata da deidade, de um
Deus universal e Criador do mundo, indicando a transcendência
da natureza de Deus; ao passo que Javé aparece quando as ca
racterísticas estão claras e concretas e sugere um Deus pessoal
que se relaciona diretamente com o povo.
No capítulo um de Gênesis, Deus aparece como o
Criador do universo físico e como o Senhor do mundo,
exercendo domínio sobre todas as coisas. Tudo quanto
existe veio à existência por causa exclusiva de Seu fiat, sem
qualquer contato direto entre Ele e a natureza. Portanto,
aplicando-se aquelas regras, aqui cabe o uso do nome
Elohim (CASSUTO, 1961, p. 32).
Elohim é um dos nomes próprios de Deus, mas aparece como
apelativo no Antigo Testamento quando se refere a divindades
falsas, por exemplo os deuses do Egito (Êx 12.2) e de outras nações
(Dt 13.7,8; Jz 6.10). A palavra é usada com relação às imagens
dos cultos pagãos (Êx 20.23). As Escrituras fazem uso irregular
de Elohim em referência a seres sobrenaturais (1 Sm 28.13) e
juizes (SI 82.6). Aparece também, cerca de 20 vezes, com relação
às divindades pagãs individuais.
ELION, SHADAI E ADONAI
O Antigo Testamento emprega outros nomes para identificar
o Deus Javé de Israel. São eles: ‘elyôn, "Altíssimo"; shadday,
"Todo-poderoso" e ’ãdhonãy,S3 "Senhor".
O nome composto ’êl ‘elyôn significa "Deus Altíssimo". Elion
designa Deus como o Alto e Excelente, o Deus Glorioso. É um dos
nomes genéricos porque ele também é aplicado a governantes,
mas nunca vem acompanhado de artigo quando se refere ao Deus
de Israel. Abraão adorava a El Shadai, "Deus Todo-Poderoso"
(Gn 17.1); e Melquisedeque, rei e sacerdote de Salém, era ado
rador de El Elion (Gn 14.19-20). Quando Abraão se encontrou
com Melquisedeque, descobriu que seu Deus era o mesmo
de Melquisedeque, apenas conhecido por um nome diferente
( ê x 6.3). Em Gênesis 14.19-20, esse nome vem acompanhado de
"El", mas, às vezes, aparece sozinho (Is 14.14).
O Deus de Israel é também identificado como ’êl shadday,
"Deus Todo-Poderoso". Shadai é o "nome de uma deidade" (KO-
EHLER BAUMGARTNER, vol. II, 2001, p. 1420). Segundo Holaday,
é o nome de deidade identificado com Javé (2010, p. 514); e, de
acordo com Gesenius, "mais poderoso, Todo-poderoso, um epí-
teto de Jeová, às vezes com El" (1982, p. 806). Aparece 48 vezes
no texto hebraico das Escrituras, sete delas antecedido de El.
Esse era um nome apropriado para o período patriarcal, du
rante o qual os patriarcas viviam numa terra estranha e estavam
rodeados pelas nações hostis. Eles precisavam saber que o seu
Deus era o Todo-poderoso (Gn 17.1). O termo aparece com frequ
ência na era patriarcal; só no livro de Jó ocorre 31 vezes. Êxodo
6.3 nos mostra que Deus era conhecido pelos patriarcas por esse
nome. Deus se revelou primeiro aos patriarcas do Gênesis com
nome El Shadai e, após o Sinai, os hebreus identificaram o seu
libertador Javé com o El Shadai dos seus antepassados.
As duas formas do nome hebraico ’ãdhonay ou ’ãdhônay ,54 "o
Senhor, Adonai", aparecem no Antigo Testamento com "o" breve
e com "o" longo (Is 6.1; Jz 13.8). O termo ocorre quase 450 vezes
no Antigo Testamento, 310 vezes em conexão com o tetragrama
I 5 4 I OS DEZ M ANDAMENTOS - VALORES DIVINOS PARA U M A SOCIEDADE EM CONSTANTE MUDANÇA
54 ' J Í K OU ’3VtK .
e 134 vezes sozinho. É um nome próprio e significa literalmente
"meu senhor" e, segundo Gesenius, é "somente usado para Deus"
(1982, p. 12); forma "reservada como uma designação para Javé"
(JENNI & WESTERMANN, vol. 1, 2001, p. 24). Adonai, "Senhor",
é um nome divino e expressa a soberania de Deus no Univer
so. A desinência -ay indica plural, como acontece com o nome
Elohim; o judaísmo considera Adonai comopluralis excellentiae.
É diferente de ’ãdhôn,S5 "senhor, dono", referindo-se geralmente
a homens, ou com o sufixo ’ãdhõní, s 6 "meu senhor", forma pela
qual Sara se dirigia a Abraão e Ana se dirigia a Eli (Gn 18.12; 1
Sm 1.15, 26).
Javé, o nome pessoal do Deus de Israel, é escrito pelas quatro
consoantes mrP (YHWH) — o tetragrama. A escrita hebraica foi
usada durante todo o período do Antigo Testamento sem as vo
gais. Elas nada mais são do que sinais gráficos diacríticos, criados
pelos rabinos entre os séculos 5 e 9, e que são colocados sobre,
sob e no meio de cada consoante. Até hoje, esses sinais ajudam
muito na leitura de qualquer texto hebraico; todavia, quem já
conhece a língua não precisa mais deles.
Êxodo 3.14 revela que Deus é o que tem existência própria,
ou seja, existe por si mesmo. É o imutável, o que causa todas as
coisas, é autoexistente, aquele que é, que era e o que há de vir,
o eterno. Até hoje, os judeus religiosos preferem chamar Deus de
"O ETERNO", como se encontra na edição de 1988 da Bíblia na
Linguagem de Hoje e na edição da Sêfer da Bíblia Hebraica em
lugar do tetragrama. Aqui, Deus explicou a Moisés o significado
do nome Iavé.
Desde o patriarca Abraão até ao período do reino dividido, era
costume invocar a Javé mediante o uso do seu nome (Gn 12.8;
NÃO TOMARÁS 0 N O M E DO SENHOR EM VÃO I 5 5 I
55 Tinit.
13.4; 21.33; 1 Rs 18.24). Era necessário conhecer o nome para
que se pudesse estabelecer um relacionamento de comunhão.
Veja que Jacó perguntou ao anjo com quem lutava o seu nome
(Gn 32.29). Manoá, o pai de Sansão, fez a mesma pergunta com o
propósito de estabelecer um relacionamento espiritual (Jz 13.11-
17). Com Moisés, não foi diferente:
Então, disse Moisés a Deus: Eis que quando vier aos
filhos de Israel e lhes disser: O Deus de vossos pais me
enviou a vós; e eles me disserem: Qual é o seu nome? Que
lhes direi? E disse Deus a Moisés: EU SOU O QUE SOU.
Disse mais: Assim dirás aos filhos de Israel: EU SOU me
enviou a vós. E Deus disse mais a Moisés: Assim dirás aos
filhos de Israel: O SENHOR, o Deus de vossos pais, o Deus
de Abraão, o Deus de Isaque e o Deus de Jacó, me enviou a
vós; este é meu nome eternamente, e este é meu memorial
de geração em geração (ê x 3.13-15).
Javé estabeleceu um memorial ao seu nome, anunciado aqui,
mas concretizado por ocasião da promulgação da lei, quando foi
oficializado o concerto do Sinai (Êx 20.24). Aqui está a base do
tetragrama YHWH. No texto hebraico, encontramos a frase ’ehyeh
asher 'ehyeh;57 "EU SOU O QUE SOU". A substituição do “y ” de
‘ehyeh pelo w do tetragrama vem de hãwãh,58 forma arcaica e
sinônimo de hãyâh,59 "ser, estar, existir, tornar-se, acontecer",
cuja primeira pessoa do imperfeito60 é ‘ehweh, e cuja terceira
pessoa é yhweh.
Na poesia hebraica, usa-se com frequência a forma reduzida
I 5 6 I OS DEZ MANDAMENTOS - VALORES DIVINOS PARA U M A SOCIEDADE EM CONSTANTE M UDAN ÇA
57 r p r t K i B x r r n K . ^ r n n . * > r r n .
60 O verbo hebraico apresenta-se somente em dois tempos: o dà ação ou do estado per
feito, terminado, que é o perfeito, e o da ação ou do estado não terminado, imperfeito,
o qual serve ao mesmo tempo como futuro. Assim, o imperfeito aqui não é o mesmo
que em nossa língua.
NÃO TOMARÁS 0 N O M E DO SENHOR EM VÃO I 5 7
Yah. "Já é o seu nome; exultai diante dele" (Sl 68.4, TB).61 Isso
pode explicar a presença da letra "a" no nome Yahweh. "Parece
provável que a pronúncia original tenha sido YaHWeH, tanto por
causa da forma verbal correspondente, o imperfeito de hãwãh,
arcaicamente escrito yahweh, como de representações mais re
centes desse nome em grego pelas palavras iaoue e iabe" (HAR-
RIS; ARCHER, JR.; WALTKE, 1998, p. 346).
A partir de 300 a.C. o nome Adonai passou gradualmente a
ser mais usado que o tetragrama até que o nome Javé tornou-
-se completamente impronunciável pelosjudeus. Para evitar a
vulgarização do nome e para que a forma não fosse tomada em
vão, eles pronunciavam por reverência ’ãdhonãy cada vez que
encontravam o tetragrama no texto sagrado, na leitura da sina
goga. Na Idade Média, os rabinos inseriram no tetragrama as
vogais de adhonay (HARRIS; ARCHER, JR.; WALTKE, 1998, p. 347).
As vogais de 'HS ( adõnãy) são ( , = « ) ; ( = o) e (., = ã). Elas
foram inseridas no tetragrama sagrado, resultando na seguinte
forma: nin\ O resultado disso é a pronúncia "YeHoWaH". Mas os
judeus ainda hoje pronunciam "Adonai" para lembrar na leitura
bíblica na sinagoga que esse nome é inefável. Esse enxerto no
tetragrama resultou no nome híbrido YEHOWAH, que a partir de
1520 os reformadores difundiram como "Jeová". A forma híbrida
"Jeová" não é bíblica, mas foi assim que o nome passou para a
cultura ocidental; aos poucos, contudo, esse nome vem sendo
substituído pela forma Iavé ou Javé.
Os nomes Adonai e Javé são tão sagrados para os judeus que
eles evitam pronunciá-los na rua ou no cotidiano. O segundo nem
61 A forma reduzida de Yahweh é Yah. Esta palavra aparece ligada ao verbo hebraico bbn
(hillêt), "louvar" (BAUMGARTNER, 2001, vol. I, p. 248). O imperativo, halelü, juntado
ao Yah, forma a palavra m_y?n; (haleluyah), ou, em grego, àUriXouía, (allêlouia),
"louvai a Yah!"; portanto, "louvai ao SENHOR!" ou, ainda, "Louvai a YAHWEH! .
mesmo nas sinagogas é pronunciado, e no dia a dia eles chamam
Deus de há-shêm,62 "o Nome" (Lv 24.11, TB; 2 Sm 6.2).
Nos manuscritos da Septuaginta, encontramos kyrios,63 "dono,
senhor, o Senhor" (BALZ & SCHNEIDER, 2001, vol. I, p. 2437), no
lugar de ’ãdõnã(y) e yhvh. Alguns fragmentos gregos de origem
judaica apresentam o tetragrama, mas outros usam kyrios. Isso
não é novidade. Jerônimo (347-420) "conhece a prática de, em
manuscritos gregos, inserir o nome de Deus (Yahweh) com ca
racteres hebraicos" (WÜRTHWEIN, 2013, p. 262). A Septuaginta,
como tradução, foi submetida a revisões e recensões e, por isso,
até hoje ninguém sabe qual foi exatamente o texto original ou
o que foi alterado no transcorrer dos séculos. Uns afirmam que
o nome kyrios é original: "Assim, no contexto de uma revisão
arcaizante e hebraizante, o tetragrama parece ter sido inserido
na tradução antiga no lugar de Kyrios" (op. cit., p. 262). Mas, para
outros, é de origem cristã ou teria vindo dos judeus. O certo é que
ambos foram usados desde a origem da tradução.
0 QUE SIGNIFICA TOMAR 0 NOME DE DEUS EM VÃO?
Há diversas interpretações sobre o terceiro mandamento
do Decálogo. Tomar o nome de Deus em vão, em hebraico,
lashshãw‘,64 "em vão" (êx 20.7; Dt 5.11), fala sobre a honra e a
santificação do nome de Deus. O termo shaw ‘ aparece 52 vezes
no Antigo Testamento e seu significado é vasto: "fraude, engano,
inutilidade, inútil, imprestável, falsidade, desonestidade, futili
dade, vacuidade". Seguem alguns exemplos: sem valor, "trazer
ofertas vãs” (Is 1.13, ARA); sem resultado, "De nada adiantou cas
tigar" (Jr 2.30, NVI); palavras vazias, falsas, "confiam na vaidade"
I 5 8 I OS DEZ M ANDAMENTOS - VALORES DIVINOS PARA U M A SOCIEDADE EM CONSTANTE MUDANÇA
“ d ®n. 63 Kúpioç.
NÃO TOMARÁS 0 N O M E DO SENHOR EM VÃO I 5 9
(Is 59.4) ou "confiam no que é nulo" (ARA); informação falsa, falsa
testemunha (Êx 23.1; Dt 5.20); além de "vaidade" ür 18.15), usado
em relação aos ídolos.
Alguns expositores afirmam que o significado original dessa
palavra era a magia: "É possível de se imaginar que também em
Israel houve épocas de propensão a fazer uso do nome de Javé
para fins de práticas obscuras e nocivas à comunidade" (RAD,
2006, p. 181). No entanto, parece que o cerne deste mandamento
é proibir o costume de juramento falso, pois o verdadeiro jura
mento se fazia mediante a invocação do nome de Deus (Lv 19.12).
Era uma necessidade imperiosa que todos falassem a verdade,
como o dever de cada um honrar o compromisso assumido com
os homens e diante de Deus.
É dever de todos cumprir os votos feitos a Deus; a lei é clara
sobre essa responsabilidade (Nm 30.2; Dt 23.21). Essa exigência
divina se faz necessária por causa da inclinação humana à men
tira. Era grande a falsidade no relacionamento entre familiares
e amigos. Ninguém podia confiar em ninguém, já que a falta de
sinceridade era a marca do povo. Não era uma questão de desvio
ocasional, mas de estilo de vida (Jr 9.2-5). Uma sociedade não
pode viver numa decadência dessa; a vida se torna insuportável.
Mas as autoridades religiosas de Israel classificaram os jura
mentos em duas categorias: os que podiam ser descumpridos e
os que não podiam. Há uma lista deles em Mateus 5.33-37; 23.16-
22. O Senhor Jesus reprovou com veemência essa violação dos
escribas e fariseus. A interpretação rabínica da época permitia
violar o terceiro mandamento e fazer de conta que ele não havia
sido violado.
O terceiro mandamento é um apelo à santificação do nome
de Deus. Na oração "Pai Nosso", Jesus nos ensinou a abrir a ora
ção santificando o nome de Deus: "Santificado seja o teu nome
I 60 I OS DEZ MANDAMENTOS - VALORES DIVINOS PARA UMA SOCIEDADE EM CONSTANTE MUDANÇA
(Mt 6.9). Isso nada tem que ver com a pronúncia do nome Javé. Os
teólogos das testemunhas de Jeová estão equivocados ao defen
derem a doutrina da vindicação do nome Jeová, pois o tetragrama
nem mesmo aparece no texto grego do Novo Testamento. Deus
é absolutamente santo, sua santidade é infinita e inigualável;
ele é santo em si mesmo, em sua essência e natureza. Assim, as
palavras de Jesus estão fundamentadas no Antigo Testamento
(Sl 30.4; 97.12; 111.9; Is 29.23; Ez 36.20-23). Tal atributo é a ca
racterística prima de Javé, e isso expressava o pensamento do
povo. O mandamento não visa tornar o nome de Deus santo,
pois ele já é santo, mas significa reconhecer e reverenciar a Deus
pelo que ele é. Não se trata de uma petição para que o povo em
geral reconheça isso, mas para que expresse a reverência que a
sua santidade exige (Lv 11.44; 19.2; 20.7; 1 Pe 1.16).
0 SABADO
O quarto mandam ento é uma ponte que liga
os m andam entos teológicos com os m andam entos
éticos. Os três primeiros preceitos do Decálogo di
zem respeito à responsabilidade do hom em com o
Criador; os demais falam sobre o com prom isso do
homem com o seu próximo. A guarda do sábado
fica entre esse dois grupos, pois a lei é clara em
mostrar seu caráter social e humanitário e também
sua função religiosa.
As controvérsias em torno deste mandamento se referem à
sua interpretação. O que acontece é que existe o sábado insti
tucional e o sábado legal, e quem não consegue separar estas
duas instituições terminam radicalizando indo aos extremos. Esse
é o principal problema dos sabatistas da atualidade, como os
adventistas do sétimo dia. Todos os mandamentos do Decálogo
dependem de definições e de como aplicá-los na vida diária, e
essas instruções são dadas no próprio sistema mosaico. Mas as
definições nem sempre são conclusivas. Por exemplo, o que a
Bíblia define como trabalho? O mandamento de santificar o sá
bado é mais bem compreendido quando se analisa o propósito
pelo qual ele foi dado.
0 SÁBADO
O substantivo hebraico shabbat,6B "sábado", ou sábbaton,66 em
grego, "sábado, semana", indica no calendário de Israel o sétimo
dia da semana marcado pelo descanso do trabalho para cerimô
nias religiosas especiais, além de significar um período de sete
dias, uma semana (BAUER, 2000, p. 909). O termo shabbãtôn67
significa "sabatismo, guarda ou observância do sábado", pois
a desinência -ôn é característica de substantivo abstrato. Ele
aparece no relato da criação: "E, havendo Deus acabado no dia
sétimo a sua obra, que tinha feito, descansou no sétimo dia de
toda a sua obra, que tinha feito. E abençoou Deus o dia sétimo e
o santificou; porque nele descansou de toda a sua obra, que Deus
criara e fizera" (Gn 2.2,3).
Deus celebrou o sétimo dia após a criação e abençoou este
dia e o santificou. Gênesis é o livro das origens de todas as coisas:
I 6 2 I OS DEZ MANDAMENTOS - VALORES DIVINOS PARA U M A SOCIEDADE EM CONSTANTE M UDANÇA
65naç. 66 DáppaTOv. 67 ]inatç.
SANTIFICARÁS 0 SÁBADO I 6 3
dos céus e da terra, do homem e do pecado, do sacrifício e da
promessa de redenção, do casamento, da família, das nações, das
línguas, da nação de Israel, do sábado e da semana. O sábado e
a semana tiveram a sua origem em Deus. A divisão hebdomadá
ria do tempo aparece desde os dias pré-diluvianos e no período
patriarcal (Gn 7.4, 10; 8.10, 12; 29.27, 28). Mas a semana na Me-
sopotâmia seguia as fases da lua, por isso nem sempre o sábado
coincidia com o sétimo dia. A semana dos egípcios era de dez dias.
Aqui está a base do sábado institucional e do sábado legal.
Deus completou a sua obra da criação no sétimo dia. Duas vezes
o texto sagrado declara que Deus "descansou" ou seja, cessou,
esse é o significado do verbo hebraico usado aqui, shãbat,è& ces
sar, desistir, descansar" (Gn 8.22; Jó 32.1; Ez 16.41). Descansar é
sinônimo de cessar de criar. Esse repouso indica a obra concluída
e não ociosidade, pois Deus não para nem se cansa (Is 40.28; Jo
5.17). Ele continua sustentando todas as coisas pela palavra do
seu poder (Hb 1.3). O Senhor Jesus também assentou-se à destra
de Deus depois de concluir a obra da redenção (Hb 8.1; 10.12). A
expressão "acabado no sétimo dia” parece indicar que houve mais
alguma atividade de Deus na criação nesse dia. É o que pensam
muitos expositores da atualidade. Deus terminou a sua obra no
dia sexto: segundo a Septuaginta, en tê hêméra tê hektê,69 "no dia
sexto", e também no Pentateuco Samaritano, bayyôm hashishi,7
"no dia sexto". A Peshita segue também essa linha, mas tudo
indica que se trata de alguma emenda deliberada. Segundo Um-
berto Cassuto, um estudo cuidadoso desse versículo mostra que
"sétimo dia" é a forma correta (1998, p. 61).
O substantivo hebraico shabbat, "o dia de sábado", não apa
rece aqui; sua primeira ocorrência acontece no relato do maná
69 ’Ev tfl Tl^épQI TTj 6KTfl. DV3.
(Êx 16.23). Mas este termo vem da raiz do verbo "descansar",
shãbat. Há quem afirme que essa omissão foi intencional por
que o shãbat é o término da semana e há fortes evidências da
identificação filológica do termo aqui com o acádico shabatu[m]
ou shapattu, que aparece nas inscrições babilônicas como o dia
da lua cheia. Trata-se do 15° dia de um mês lunar, dedicado à
adoração do deus lua, Sin-Nanar e a outros deuses. Este dia se
chamava também üm nüch libbi, "dia de descanso do coração"
(ORR, vol. IV, 1996, p. 2630). Outros afirmam que se trata mais
de um dia de expiação ou pacificação, e não necessariamente
de um dia de descanso. No entanto, foram descobertos table
tes em que revelam o shabatu, como os dias 7o, 14°, 21° e 28°,
que segundo o registro dessas inscrições ocupavam espaço
destacado no calendário mesopotâmio. Neles havia restrições
a diversos tipos de trabalho, já que o dia era dedicado aos deu
ses (TENNEY, vol. 5, 2008, p. 267). O sábado dos israelitas era
o dia de descanso reservado a cada seis dias de trabalho para
todo o povo; entretanto, o shabatu era computado com base
nas quatro fases da lua.
Há muitas discussões sobre a relação do shabatum com o
sábado dos israelitas, e Umberto Cassuto explica o que está por
trás de tudo isso. Os críticos liberais insistem em afirmar que
os israelitas copiaram o sábado dos mesopotâmios e com isso
querem associar o sábado de Israel com as quatro fases da lua.
Cassuto questiona a existência da proibição de trabalho nos
dias 7o, 14o, 21o e 28o do mês do luna na Babilônia e na As
síria. Segundo esse autor, o pensamento da Torá é justamente
o oposto ao sistema babilônico e desvincula completamente o
sábado da adoração aos astros: "O dia de sábado de Israel não
será como o sábado das nações pagãs; não será o dia da lua
cheia, ou outro dia conectado com as fases da lua, nem ligado,
I 6 4 ! OS DEZ MANDAMENTOS - VALORES DIVINOS PARA U M A SOCIEDADE EM CONSTANTE M UDANÇA
SANTIFICARÁS 0 SÁBADO I 6 5
em conseqüência, com a adoração da lua, mas será o sétimo
dia" (1998, p. 68). É um sábado completamente desassociado
de sinais nos céus, das hostes celestiais e de qualquer conceito
astrológico, "mas o sétimo dia é o sábado do SENHOR teu Deus"
(Êx 20.10). Assim, o propósito da omissão do termo hebraico
shabbat, "sábado", no relato da criação é evitar sua identificação
com o shabatu dos mesopotâmios.
O sétimo dia da criação não era mandamento, mas revela
a necessidade natural do descanso de toda natureza, homem,
animal, máquina, agricultura. O repouso noturno de cada dia não
é suficiente para isso. Deus abençoou e santificou esse dia não
somente para comemorar a obra da criação, mas para que nesse
dia todos cessem o trabalho tendo em vista o descanso físico e
mental e também o culto de adoração a Deus. É importante que
todos os seres humanos possam refletir que o universo foi criado
por um Deus pessoal, Todo-poderoso, sábio e transcendente, que
planejou todas as coisas que foram criadas. Parece que esse dia
foi logo esquecido pelo gênero humano, mas há resquício dele
em muitos povos da antiguidade.
Deus abençoou e santificou o sétimo dia como um repouso
contínuo, a dispensação da inocência, interrompido por causa
do pecado. Agostinho de Hipona lembra que não houve tarde
no dia sétimo, pois Deus o santificou para que ele permanecesse
para sempre: "Ora o sétimo dia não tem crepúsculo. Não possui
ocaso porque Vós o santificastes para permanecer eternamente"
[Confissões, Livro XIII.36). Adão e Eva viveram esse repouso du
rante a inocência até a Queda: "Foi o princípio e o tipo de repouso
ao que a criação, depois que caiu da comunhão com Deus pelo
pecado do homem, recebeu a promessa de que uma vez mais
seria restaurada pela redenção, em sua consumação final" (KEIL
& DELITZSCH, tomo 1, 2008, p. 41). O sábado da criação aponta
para o descanso de Deus para o mundo inteiro no fim dos tempos:
"Portanto, resta ainda um repouso para o povo de Deus" (Hb 4.9).
O sábado legal não foi instituído aqui. Isso só aconteceu com
a promulgação da lei. O sétimo dia é o fundamento da guarda
do sábado dada aos israelitas, visto que este dia foi santificado
desde o princípio do mundo. O sábado institucional é para toda
a humanidade e por isso Deus o santificou antes de estabelecê-
-lo como mandamento para Israel. "A santificação do sábado
institui uma ordem para a humanidade segundo a qual o tempo
é dividido em tempo e tempo sagrado... Por santificar o sétimo
dia, Deus instituiu uma polaridade entre o dia a dia e o solene,
entre dias de trabalho e dias de descanso, a qual deveria ser de
terminante para a existência humana" (WESTERMANN, 1994, p.
171). O sábado institucional não é necessariamente o sétimo dia
da semana, mas um a cada seis dias.
0 QUARTO MANDAMENTO
A instituição do sábado legal no Decálogo tinha o propósito
duplo, social e espiritual, de cessar os trabalhos a cada seis dias
de labor para dar descanso aos seres humanos e aos animais e
dedicar um dia inteiro para adoração a Deus:
8 Lembra-te do dia do sábado, para o santificar. 9 Seis
dias trabalharás e farás toda a tua obra, 10 mas o sétimo dia
é o sábado do SENHOR, teu Deus; não farás nenhuma obra,
nem tu, nem o teu filho, nem a tua filha, nem o teu servo,
nem a tua serva, nem o teu animal, nem o teu estrangeiro
que está dentro das tuas portas. 11 Porque em seis dias fez
o SENHOR os céus e a terra, o mar e tudo que neles há e
ao sétimo dia descansou; portanto, abençoou o SENHOR
o dia do sábado e o santificou (Êx 20.8-11).
I 6 6 I OS DEZ M ANDAMENTOS - VALORES DIVINOS PARA U M A SOCIEDADE EM CONSTANTE M UDAN ÇA
SANTIFICARÁS 0 SÁBADO I 6 7
O quarto mandamento é o mais longo do Decálogoe difere dos
três primeiros, cuja formulação é negativa. O versículo 8 introduz o
mandamento positivo que impõe a obrigação de santificar o sába
do, e o versículo 9 fala sobre a obrigação de trabalhar seis dias. Isso
se repete no sistema mosaico (Êx23.12; 31.13-17; 34.21; Lv 23.3),
mas aqui aparece também a formulação negativa. Quando Moisés
no seu discurso em Deuteronômio repete o Decálogo substitui o
verbo hebraico usado para "lembrar" zãchor,n "recordar, lembrar",
por outro, "guardar", shãmôr,72 "guardar, cuidar, vigiar", quando
diz: "Guarda o dia de sábado" (Dt 5.12). Os dois verbos estão no
infinitivo absoluto, que tem função de um forte imperativo, bas
tante comum em leis e mais próximo de um futuro cominatório,
ameaçador. O propósito do uso deste verbo "lembrar" aqui em
Êxodo é manter o sábado como dia santo. Isso mostra que o povo
já conhecia esse dia, mas parece que a sua observância não era
levada a sério antes da revelação do Sinai. As palavras "como te
ordenou o SENHOR, teu Deus" (Dt 5.12b) não aparecem em Êxodo
e são uma referência ao Sinai, quando a lei foi promulgada, visto
que Moisés está relatando um fato acontecido no passado.
Fica evidente que houve um sábado antes da promulgação da
lei. Muitos acreditam que o verbo "lembrar" se refere ao relato do
maná no deserto (Êx 16.22-30). Isto fica claro pelo fato de que "a
maneira incidental em que a matéria é introduzida e a repreensão
do Senhor pela desobediência do povo sugerem que o sábado já
era previamente conhecido" (TENNEY, vol. 5, 2008, p. 267). No
entanto, segundo o rabino Benno Jacob, "lembrar" aqui não tem
conotação de "não esquecer", como aconteceu com o evento do
maná, mas de um "memorial do passado para estabelecer um
relacionamento especial para o futuro" (1992, p. 563).
711Í3T. 72 ninai.
O livro de Gênesis não menciona os patriarcas Abraão, Isaque
e Jacó observando o sábado. Segundo Justino, o Mártir, Abraão e
seus descendentes até o Sinai agradaram a Deus sem o sábado
(Diálogo com Trifão 19.5). Irineu de Lião diz que Abraão, "sem
circuncisão e sem observância do*sábado, acreditou em Deus e
lhe foi imputado a justiça e foi chamado amigo de Deus" (Contra
as Heresias, Livro IV, 16.2). O sábado institucional não era man
damento nem havia imposição sobre a sua observância; talvez,
seja essa a razão de aos poucos ter caído no esquecimento. A
linguagem do quarto mandamento "Lembra-te do dia de sábado"
(Êx 20.8) reforça a ideia de que não se trata de uma instituição
nova, mas existente desde a criação.
O mandamento consiste em parar de trabalhar a cada seis
dias e é extensivo a todos os israelitas, seus familiares e também
servos, animais de carga, convidados, imigrantes estrangeiros e
qualquer um que esteja dentro de seus portões (v. 10). Mas aqui
se omite uma informação que aparece em Deuteronômio e revela
o aspecto humanitário do mandamento: "para que o teu servo e a
tua serva descansem como tu" (Dt 5.14b). Em Êxodo, é revelado
o caráter espiritual, pois se mostra que a lei do sábado deriva da
criação e se refere ao sétimo dia em que Deus descansou (v. 11).
O sábado do Decálogo é semanal e uma amostra do descanso
eterno de Deus (Sl 95.11; Hb 4.3-6).
O sábado legal é exclusividade dos israelitas e nenhum povo da
terra recebeu tal responsabilidade, nem mesmo a Igreja (Êx 31.13-
17). A adoração no tabemáculo acontecia semanalmente e isso
justifica a instrução da lei do sábado na presente seção que aborda a
ordem do culto e demais serviços no tabemáculo. O tema do sábado
havia sido tratado por ocasião do maná (Êx 16.23-30) e no quarto
mandamento (Êx 20.8-11); no entanto, Javé retoma o assunto aqui
para que o presente preceito seja observado de maneira apropriada.
I 6 8 I OS DEZ MANDAMENTOS - VALORES DIVINOS PARA U M A SOCIEDADE EM CONSTANTE M UDANÇA
SANTIFICARÁS 0 SÁBADO I 6 9
A observância do sábado legal é perpétua, sob pena de morte
para quem violar (vv. 14-6) e isso por se tratar de um sinal entre
Javé e Israel (Êx 31.13, 17). Não é mandamento para todos os
povos nem para a Igreja. É o segundo sinal para os israelitas,
que já tinham a circuncisão como primeiro sinal desse concerto
(Gn 17.10-14). Ao longo dos séculos, os judeus trataram esses
dois preceitos com a mesma atenção. O Decálogo registrado em
Deuteronômio apresenta o sábado como memorial da saída dos
israelitas do Egito: "Porque te lembrarás que foste servo na terra
do Egito e que o SENHOR, teu Deus, te tirou dali com mão forte
e braço estendido; pelo que o SENHOR, teu Deus, te ordenou que
guardasses o dia de sábado" (Dt 5.15). O sábado legal é manda
mento exclusivo para o povo de Israel.
0 SÁBADO NO NOVO TESTAMENTO
A observância do sábado nos dias do ministério terreno de
Jesus havia se tornado externa e formal. As autoridades religiosas
de Israel haviam criado muitas restrições e estabeleceram regras
meticulosas. A Mishnah, antiga literatura religiosa dos judeus,
nos tratados Shabbat e Erub, registra minúcias de como o sábado
deve ser observado. A tradição dos anciãos criou 39 proibições
concernentes ao sábado. Por essa razão, o Senhor Jesus entrou
diversas vezes em conflito com os escribas e fariseus. Uma delas
aconteceu quando ele defende os seus discípulos por colherem
espigas no sábado (Mt 12.1-5).
1 Naquele tempo, passou Jesus pelas searas, em um
sábado; e os seus discípulos, tendo fome, começaram
a colher espigas e a comer. 2 E os fariseus, vendo isso,
disseram-lhe: Eis que os teus discípulos fazem o que não é
lícito fazer num sábado. 3 Ele, porém, lhes disse: Não tendes
lido o que fez Davi, quando teve fome, ele e os que com
ele estavam? 4 Como entrou na Casa de Deus e comeu os
pães da proposição, que não lhe era lícito comer, nem aos
que com ele estavam, mas só aos sacerdotes? (Mt 12.1-4).
A passagem paralela aparece em Marcos 2.23-26 e Lucas
6.1-4. Em todas elas, o Senhor Jesus mencionou um trecho do
Antigo Testamento em que Davi comeu o pão da proposição na
casa do sacerdote Abiatar, quando estava sob a perseguição de
Saul (1 Sm 21.6). Assim, ele colocou a guarda do sábado na mes
ma categoria do preceito cerimonial. A lei proibia que estranhos
comessem do pão sagrado da proposição, o qual era restrito aos
sacerdotes (Êx 29.33; Lv 22.10). Jesus foi além e disse que os
sacerdotes no templo podiam violar o sábado e ficar sem culpa
(Mt 12.5). Um mandamento moral é obrigatório por sua própria
natureza. Não existe concessão para preceitos morais; aqui, a
vida está acima do sábado.
Em outra ocasião, o Senhor Jesus torna a considerar o sábado
um preceito cerimonial com base na própria lei de Moisés. Ele nem
precisou reivindicar a sua autoridade de Filho de Deus e Messias,
ao lembrar às autoridades religiosas que a circuncisão de uma
criança pode ser feita num dia de sábado. A lei prescreve que o
menino deve ser circuncidado no oitavo dia de seu nascimento
(Lv 12.3). Jesus disse que a circuncisão pode ser feita mesmo
quando o oitavo dia coincide com sábado (Jo 7.22, 23).
Jesus declarou: "O sábado foi feito por causa do homem, e
não o homem, por causa do sábado" (Mc 2.27). Muitos compa
ram essas palavras a uma frase do Talmude creditada ao rabi
Simeon ben Menasya, cerca de 180 d.C.: "O sábado foi dado a
vocês, não vocês entregues a ele". A interpretação judaica diz
7 0 I OS DEZ MANDAMENTOS - VALORES DIVINOS PARA U M A SOCIEDADE EM CONSTANTE MUDANÇA
SANTIFICARÁS 0 SÁBADO I 7 1
respeito à permissão da quebra do sábado em casos especiais,
como a vida em perigo. Mas o que Jesus disse significa que os
seres humanos não foram criados para observar o sábado, mas
que o sábado foi criado para o benefício humano. Ele não disse
que o sábado foi feito por causa dos judeus ou de Israel, mas por
causa de todos os seres humanos. O sábado legal, do Decálogo,
foi dado a Israel como sinal entre Javé e os israelitas (Êx 31.13,17; Dt 5.15; Ez 20.12). Aqui, o Senhor Jesus se refere ao sábado
institucional que Deus estabeleceu para o bem-estar e gozo
de todos os seres humanos, e isto está acima de observância
meticulosa do sábado.
A frase "Assim, o Filho do Homem até do sábado é senhor"
(Mc 2.28) e as passagens paralelas (Mt 12.8; Lc 6.5) são disputadas
pelos expositores do Novo Testamento. Há duas linhas principais
de interpretação: a) a autoridade sobre o sábado foi conferida aos
seres humanos, e b) trata-se do próprio Senhor Jesus. A primeira
nos parece menos aceitável porque Deus nunca delegou autori
dade sem limites aos humanos e, também, porque a expressão
grega ho huios tou anthrõpos,73 "o Filho do Homem", no singular,
é título messiânico e não relativo a humanos. Está claro que
Jesus se referia a si mesmo. Esta é a melhor interpretação. Ele
revelou seu poder e sua autoridade sobre as enfermidades, sobre
a natureza, sobre todos os poderes das trevas, sobre a morte e o
inferno; assim, nada mais natural ser mesmo o Senhor do sába
do. O sábado veio de Javé e somente ele tem autoridade sobre a
instituição. Então, não há outro no universo investido de tamanha
autoridade, senão o Filho de Deus.
Mais uma vez, o Senhor Jesus Cristo apresenta o profeta
Oseias como autoridade para fundamentar seu ensino (Mt 12.7;
73 ' O u l ò ç TOÜ ávG pÚ lT O U .
Os 6,6). Ele acrescentou ainda que é "lícito fazer bem nos sába
dos" (Mt 12.12). Isso o próprio Jesus o fez (Mc 3.1-5; Lc 13.10-
13; 14.1-6; Jo 5.8-18; 9.6, 7, 16), e nós também devemos fazer
o bem, não importa qual seja o dia da semana. Como o sábado
do relato da criação, não é regra legal opressiva; é chamado de
sábado institucional que se transferiu para o domingo por causa
da ressurreição de Jesus, mas não como mandamento.
Assim, como nada há no Novo Testamento que indique a
sua observância, isso por si só mostra que o quarto mandamen
to não é um preceito moral. Esta interpretação é corroborada
pelo fato de nem Jesus nem os apóstolos ensinarem a guarda
do sábado. O sábado não foi mencionado quando Jesus citou
os mandamentos para o moço rico (Mt 19.17-19). Toda a lei
se resume no amor a Deus e ao próximo (Mt 7.12; 22.40; Mc
12.31; Rm 13.10).
O apóstolo Paulo omitiu o quarto mandamento (Rm 13.9).
Ele considerava retrocesso espiritual guardar dias, meses e anos
(G1 4.10, 11). Os primeiros cristãos eram judeus de origem e era
natural para eles observar os serviços da sinagoga; ainda hoje,
muitos judeus que são convertidos à fé cristã preferem não
abrir mão de sua identidade judaica, principalmente aqueles
que residem em Israel. É mais uma questão cultural. Paulo via
o sábado e os preceitos dietéticos, o kashrut, como mera op
ção pessoal. E, mesmo não havendo prova de que o apóstolo
distinguisse preceitos morais e cerimoniais, aqui ele coloca o
sábado e o kashrut na mesma categoria (Rm 14.1-6). Segundo
Paulo, o antigo concerto foi abolido (2 Co 3.7-14) , incluindo o
sábado (Os 2.11). De fato, isso já era anunciado desde o Antigo
Testamento (Jr 31.31-34).
Paulo disse que Jesus riscou na cruz "a cédula que era contra
nós nas suas ordenanças" (Cl 2.14). O substantivo grego para
I 7 2 I OS DEZ M ANDAMENTOS - VALORES DIVINOS PARA U M A SOCIEDADE EM CONSTANTE M UDAN ÇA
SANTIFICARÁS 0 SÁBADO I 7 3
"cédula" é cheirgraphon,74 um hapax legomenon,75 literalmente,
"escrito à mão”. É um documento escrito à mão usado aqui me
taforicamente. O termo aparece na literatura grega extrabíblica
com vários significados: "lei mosaica, obrigação escrita, contrato
(ROBINSON, 2012, p. 984); "registro de uma conta financeira,
conta, registro de dívida" (LOUW & NIDA, 2013, pp. 352, 353). É
um certificado de dívida, uma nota promissória. A ordenança, ou
dogma16, significa "decreto, ordenança, edito", um termo usado
também em referencia à lei de Moisés (Ef 2.15). É esse o sentido
aqui, pois Jesus disse que a lei nos acusa (Jo 5.45). O pensamento
paulino revela o aspecto condenatório da lei mosaica (Dt 27.26; 1
Co 15.56; Gl 3.10) e também o padrão divino para a vida humana
(Rm 7.13, 14).
A acusação da lei contra nós foi cancelada na cruz do Calvá
rio, e aí o apóstolo inclui o sábado. O apóstolo emprega os dois
termos "cédula" e "ordenança" metaforicamente para dizer que
fomos perdoados e estamos livres de legalismo: "Portanto, nin
guém vos julgue pelo comer, ou pelo beber, ou por causa dos dias
de festa, ou da lua nova, ou dos sábados, que são sombras das
coisas futuras, mas o corpo é de Cristo" (Cl 2.16, 17). Com exce
ção do sangue (At 15.20, 28), as restrições dietéticas de Levítico
foram removidas, pois Deus purificou os animais cerimonialmente
imundos (At 10.12 -15). Nenhum alimento é imundo por si mesmo
(Rm 14.14, 20; 1 Tm 4.3, 4). O que contamina o ser humano é o
que sai dele, não o que entra (Mt 15.11-20).
O sábado cerimonial é um termo para designar os festivais
de Israel que englobam as festas anuais, mensais e semanais
74 Xeipóypaij)oy.
75 Hapax legomenon: termo técnico usado para as palavras que aparecem uma so vez
no Antigo ou no Novo Testamento.
76 ôóynoc.
(1 Cr 23.31; 2 Cr 2.4; 8.13; 31.3; Ez 45.17). O sábado cerimonial
já está incluído na expressão "dias de festa". Assim, a "lua nova",
refere-se à festa mensal e a expressão "dos sábados" diz respeito
aos sábados semanais. O novo concerto nos isenta de todas essas
coisas. Paulo parece empregar uma linguagem platônica no tocante
ao mundo real e ao mundo das ideias no v. 17. A sombra é tempo
rária e identifica com imperfeição o objeto que a projetou, sendo
portanto inferior a ele. O apóstolo afirma nesta metáfora que a lei
é uma projeção, uma sombra da realidade, que é o corpo de Cristo.
0 SÁBADO CRISTÃO
O sábado legal do Decálogo foi estabelecido para Israel se
lembrar da escravidão no Egito (Dt 5.15). Há certa analogia
com o sábado cristão, o domingo, que, sem precisar de impo
sição legal, passou a ser o dia de adoração cristã coletiva em
memória à ressurreição de Cristo que ocorreu num domingo
(Mc 16.1-6; Lc24.1-6). Éosábado institucional. Isso está claro
em três passagens do Novo Testamento: "No primeiro dia da
semana, ajuntando os discípulos para o partir do pão" (At 20.7).
Era um domingo, "talvez 24 de abril de 57 d.C.", segundo F. F.
Bruce (apud STOTT, 1994, p. 360). O "partir do pão" é um termo
usado para a Ceia do Senhor (At 2.42; 1 Co 10.16; 11.20-26).
Segundo o autor citado, essa passagem "é a evidência inequí
voca mais primitiva que temos da prática cristã de reunir-se
para a adoração nesse dia". Isso se confirma mais adiante no
Novo Testamento: "No primeiro dia da semana, cada um de
vós ponha de parte o que puder ajuntar, conforme a sua pros
peridade, para que se não façam as coletas quando eu chegar"
(1 Co 16.2). Temos aqui outra prova de que o primeiro dia da
semana era o dia de culto regular. O apóstolo recomendou
I 7 4 I OS DEZ MANDAMENTOS - VALORES DIVINOS PARA UM A SOCIEDADE EM CONSTANTE MUDANÇA
S A N m C A R Á S O SÁBADO \ 7 5
que nessas reuniões se levantasse uma coleta para socorrer
os irmãos pobres de Jerusalém.
O apóstolo João foi arrebatado no dia do Senhor: Eu fui
arrebatado em espírito, no dia do Senhor, e ouvi detrás de mim
uma grande voz, como de trombeta" (Ap 1.10). A expressão dia
do Senhor" não é escatológica, pois a construção grega aqui,
en tê kyriakê hêmera, 7 7 se refere ao domingo. Versões católicas
como Figueiredo, Matos Soares e a Bíblia do Peregrino empre
gam "num dia de domingo" para traduzir a referida frase. Esta
tradução é aceitável porque está de acordo com o contexto
bíblico e histórico.
A palavra kyriakê significa "domingo" ainda hoje na Grécia.
O termo "domingo", literalmente quer dizer, "dia do senhor , do
latim, dominus, "senhor", e dies, "dia". Inácio de Antioquia usa a
mesma frase grega do apóstolo João em Apocalipse, para indicar
o primeiro dia dasemana: "Aqueles que viviam na antiga ordem
de coisas chegaram à nova esperança, e não observam mais o
sábado, mas o dia do Senhor™ em que a nossa vida se levantou
por meio dele e da sua morte" (Magnésios 9-1, Coleção Patrística 1,
Padres Apostólicos). Inácio foi o terceiro bispo de Antioquia e
conheceu os apóstolos Paulo e João. Preso em 110 no reinado de
Trajano, foi levado a Roma e atirado às feras. Trata-se de alguém
da segunda geração dos apóstolos.
Outra razão que confirma essa interpretação é o fato de a
Septuaginta usar uma forma diferente para o "dia do Senhor
escatológico, hêmera tou kyriou ou hêmera kyriou.79 E o mesmo
acontece nas cinco vezes que a frase aparece no Novo Testamento
grego (At 2.20; 1 Co 5.5; 2 Co 1.14; 1 Ts 5.2; 2 Pe 3.10).
77’E v rfj K u p ia K Íj r^ e p ç . ̂ 78 G rifo n o s so .
79'H n e p a t o ü icup íou o u rinépa Kupíoi).
I 76 I OS DEZ MANDAMENTOS - VALORES DIVINOS PARA UMA SOCIEDADE EM CONSTANTE MUDANÇA
Os primeiros pais da Igreja mostram que nos três primeiros
séculos da história da Igreja o domingo continuava sendo o dia
de reunião dos cristãos. Além de Inácio de Antioquia, isso pode
ser ainda visto na Epístola de Barnabé (que não era o Barnabé
citado do Novo Testamento). Trata-se de um documento da pri
meira metade do século 2, que declara: "Eis por que celebramos
como festa alegre o oitavo dia, no qual Jesus ressuscitou dos
mortos e, depois de se manifestar, subiu aos céus" (Epístola de
Barnabé, 15.9).
Herdamos dos dias apostólicos essa prática que foi perpe
tuada pelo tempo. Os preceitos cerimoniais não desobrigam os
seres humanos de cultuarem a Deus, mas estes não precisam de
rituais e nem lhes é exigido irem a Jerusalém. Da mesma forma,
o sábado não precisa ser o sétimo dia da semana. Os adventistas
do sétimo estão equivocados quando afirmam que o imperador
Constantino substituiu o sábado pelo domingo, e sua doutrina
não tem sustentação bíblica. É um erro teológico e histórico.
v
PAI E MÃE
O m andam ento "Honra a teu pai e a tua m ãe"
(Êx 20.12) se referia originalmente aos pais numa
estrutura familiar, m as com o desenvolvimento da
revelação se torna claro que se refere também aos
pais espirituais e às autoridades constituídas. O
preceito instrui no tocante ao nosso relacionamento
com os superiores segundo idade, hierarquia social
e espiritual, e conhecimento. O mundo está hoje
às avessas, e o quinto m andam ento nunca foi tão
necessário quanto é agora no século 21.
Oito dos dez mandamentos do Decálogo são proibições cuja
formulação é negativa, e dois são positivos: o quarto e o quinto
mandamentos.
O quinto mandamento fala sobre o princípio da autoridade, a
estrutura familiar e a necessidade da organização social. Os pais
são os representantes de Deus na família. Eles geram os filhos
e são responsáveis por seu bem-estar, sustento, alimentação,
vestimentas, saúde, educação e segurança. Essa manifestação de
afeto e carinho acontece de maneira natural e ao mesmo tempo
misteriosa. É a melhor e a mais perfeita maneira de ilustrar e
explicar o grande amor de Deus pelo ser humano. Os filhos lhes
devem respeito, honra, obediência e amor.
Todos os seres humanos prestam conta de seus atos a alguém,
todos estão sobre e sob autoridade. O próprio Senhor Jesus Cristo,
a maior autoridade no céu e na terra, disse: "Porque não busco a
minha vontade, mas a vontade do Pai, que me enviou" (Jo 5.30);
"Porque eu desci do céu não para fazer a minha vontade, mas
a vontade daquele que me enviou" (Jo 6.38). Quem não quer se
submeter às autoridades está alinhado com o diabo. O anticristo
pretende fazer a sua própria vontade sem se submeter a ninguém
(Dn 8.24; 11.3, 17, 28).
HONRA A TEU PAI E A TUA MÃE
O quinto mandamento é construído de forma positiva: "Hon
ra a teu pai e a tua mãe, para que se prolonguem os teus dias
na terra que o SENHOR, teu Deus, te dá" (Êx 20.12). O preceito
começa com o verbo no imperativo intensivo kabbêd,80 "honra",
do verbo kãbêd,81 "ser pesado, rico, honrado, glorioso". A cons-
I 7 8 I OS DEZ M A N DA M ENTO S - VALORES DIVINOS PARA U M A SOCIEDADE EM CONSTANTE M UDAN ÇA
80 na?. 81133.** T
HONRARÁS PAI E M Ã E I 7 9
trução intensiva hebraica traz a nuança de curvar-se em honra
ou respeito. A segunda parte esclarece e especifica o significado
do mandamento, que aparece de forma expandida em Deutero-
nômio: "Honra a teu pai e a tua mãe, como o SENHOR, teu Deus,
te ordenou, para que se prolonguem os teus dias e para que te
vá bem na terra que te dá o SENHOR, teu Deus" (Dt 5.16). Esta
forma diferenciada será analisada mais adiante.
A raiz do verbo kãbêd aparece em todas as línguas semíticas,
com exceção do aramaico. O significado é de "ser pesado", com
o sentido figurado de ser importante. O adjetivo derivado desse
termo aparece duas vezes no Antigo Testamento com sentido
literal para designar o peso do sacerdote Eli e o peso do cabelo
de Absalão, filho de Davi (1 Sm 4.18; 2 Sm 14.26). A Septuaginta
traduz esse verbo por diversos termos gregos que não é possível
enumerar aqui, mas entre eles podem ser destacados doxazõ,82 "ser
de opinião, pensar, honrar, glorificar", e seus derivados; e timaõ,83
"dar valor a, considerar digno, estimar, honrar, reverenciar", e
seus derivados. Em ambos os verbos e seus respectivos derivados,
como doxa e timê,m "glória" e "honra", o peso é figurado. Uma
pessoa de peso significava alguém honrado, digno, importante,
respeitado (Nm 22.15). Esses termos hebraico e grego lançam luz
sobre a abrangência do quinto mandamento. A Bíblia aplica-os a
Deus (Sl 79.9; Is 40.5), que é "o rei da glória" (Sl 24.7-10), mesmo
título dado ao Senhor Jesus Cristo no Novo Testamento (1 Co 2.8).
Não existe na vida alguém mais importante para o filho do que
o pai e a mãe; eles são seus heróis. Esse relacionamento é análogo
ao de Javé com o seu povo Israel (Dt 1.31). O profeta Malaquias
apresenta uma analogia ainda mais profunda comparando o dever
do homem honrar a Deus com o do filho de honrar o pai (Ml 1.6).
82 AoÇáÇco. 83 TL|i.áw. 84 AóÇa e TLjj.tí.
Há certo vínculo entre o quinto mandamento e os três pri
meiros pela natureza desse relacionamento. O termo "a teu
pai e a tua mãe" é amplo: certamente diz respeito aos nossos
genitores, àqueles que nos geraram, mas não fica apenas nisso.
O mandamento se refere também aos pais espirituais. É como
Eliseu se dirigia ao profeta Elias: "Meu pai, meu pai, carros
de Israel e seus cavaleiros!" (2 Rs 2.12). Isso aponta para um
relacionamento íntimo entre o profeta e o discípulo que jus
tifica uma linguagem familiar. Era uma maneira honrosa de
tratar o mestre. O rei de Israel também se dirigiu ao profeta
Eliseu com as mesmas palavras (2 Rs 13.14). Era algo atípico
para um rei; no entanto, revela o reconhecimento por parte
do rei Jeoás quanto à autoridade profética de Eliseu, que se
encontrava moribundo. O profeta representava uma segurança
para a nação. O relacionamento entre o rei e o profeta era de
intimidade. Esse tipo de relacionamento entre Elias e Eliseu é
visto também no Novo Testamento, pois Timóteo e Tito são
reconhecidos também como filhos na fé do apóstolo Paulo
(1 Tm 1.2; 2.1; Tt 1.4). Esses exemplos nos ensinam a amar,
respeitar e honrar aqueles a quem Deus constituiu autoridade
espiritual sobre nossa vida.
O quinto mandamento se aplica também ao relacionamento
secular, pois a figura do governante se assemelha à de um pai.
Débora se considera mãe de Israel (Jz 5.7). O respeito e a honra
se devem também a quem se destaca pelo conhecimento em
qualquer área. Embora Faraó fosse a maior autoridade no Egito,
ele honrou e respeitou um escravo hebreu simplesmente porque
este tinha o conhecimento da vontade de Deus: "senão Deus,
que me tem posto por pai de Faraó, e por senhor de toda a sua
casa" (Gn 45.8). O rei do Egito nos dá o exemplo mesmo séculosantes da promulgação da lei. Isso deve servir como exemplo
I 8 0 I OS DEZ MANDAMENTOS - VALORES DIVINOS PARA U M A SOCIEDADE EM CONSTA»NTE MUDANÇA
hoje nas igrejas. Esse respeito e essa consideração não se res
tringem apenas aos membros da Igreja e a seu pastor, mas vale
também entre os próprios pares e companheiros de ministério.
A hierarquia, portanto, é esta: Deus, os pais e as autoridades
eclesiásticas e civis.
Os judeus colocam o quinto mandamento como dever do
homem para com Deus. Os mandamentos de caráter vertical, do
compromisso do israelita com Deus, de amar a Deus acima de
todas as coisas, de acordo com o ensino de Jesus, são teológicos
e estão registrados na primeira tábua; os outros são de caráter
horizontal, são preceitos éticos que constam da segunda tábua,
resumidos no segundo mandamento de amar o próximo como
a si mesmo. Esta é a interpretação judaica. Esta linha de pensa
mento mostra a relevância de honrar os pais, os quais são repre
sentantes de Deus. Honrar pai e mãe ocupa um lugar de elevada
consideração na lei porque a autoridade deles foi delegada por
Deus. Desobedecer a eles, portanto, é desobedecer a Deus, pois
eles estão investidos de autoridade sobre a vida e receberam a
responsabilidade do bem-estar dos filhos.
O apóstolo Paulo ensina obedecer aos pais e explica, "porque
isto é justo" (Ef 6.1). Ele está falando a respeito de uma lei natural
que existe desde o princípio do mundo. Deus já havia colocado
a sua lei no coração de todos os homens, mesmo antes de se
revelar a Moisés no Sinai (Rm 1.19; 2.14, 15). Essa prática existe
em todas as civilizações antes e depois de Moisés. Todos esses
povos já reconheciam a importância de obedecer e respeitar aos
pais como fundamento para uma sociedade estável. Sua inobser
vância sinaliza a decadência da estrutura social. Infelizmente, o
que se vê na atualidade é inversão desses valores; os pais estão
perdendo o direito de opinar e decidir sobre a vida dos filhos
adolescentes por imposição até do Estado.
HONRARÁS PAI E M ÃE I 8 1 I
O mandamento de honrar pai e mãe não se restringe à infân
cia e adolescência. Em nenhum lugar, a Bíblia ensina ser essa
ordem somente para esta fase da vida. Quando o moço e a moça
chegam à maioridade ou mesmo se casam, seus pais continu
am sendo seus pais, e os filhos devem honrá-los e respeitá-los
enquanto eles viverem. O apóstolo Paulo fala sobre a família e
sobre a submissão da mulher ao marido (Ef 5.22ss). Isso faz al
guns pensarem que a obediência dos filhos aos pais é um discurso
dirigido apenas aos filhos menores. Mas tal linha de pensamento
não se sustenta nem no Antigo Testamento nem no pensamen
to paulino aqui analisado. O texto traz o termo grego tekna,ss
"filhos", plural de teknon86. A ideia é de "descendente imediato
ou direto de alguém, sem referência específica a sexo ou idade"
(LOUW & NIDA, 2013, p. 106). Das cinco ocorrências do termo
em Efésios, o contexto mostra que pelo menos três delas dizem
respeito de forma inconfundível a adultos: "filhos da ira" (2.3); "fi
lhos amados" (5.1); "filhos da luz" (5.8). Apenas uma delas sugere
criança ou adolescente (6.4). Em 6.1, o termo parece ambíguo,
mas seria precipitação aplicar esse ensino apenas a crianças e
adolescentes. O verbo "obedecer" está na voz ativa, mostrando
que se trata de pessoas moralmente livres para assumirem uma
responsabilidade diante de Deus. Todas as pessoas vivem sob e
sobre autoridade; ninguém escapa dessa responsabilidade. Jesus
disse: "Porque eu desci do céu não para fazer a minha vontade,
mas a vontade daquele que me enviou" (Jo 6.38). Se aquele que
é a maior autoridade no céu e na terra faz uma declaração como
essa, o que não diremos nós?
Honrar pai e mãe é muito abrangente e envolve cuidar dos
pais, principalmente na velhice: "Ouve a teu pai, que te gerou, e
I 8 2 I OS DEZ MANDAMENTOS - VALORES DIVINOS PARA U M A SOCIEDADE EM CONSTANTE M UDANÇA
85 TéKva. 86 T 6KVOV.
HONRARÁS PAI E M ÃE I 8 3
não desprezes a tua mãe, quando vier a envelhecer” (Pv 23.22). O
termo "filho meu", frequentemente empregado em Provérbios, em
geral se aponta para o aconselhamento de um mestre a seus dis
cípulos, mas aqui ambos são mencionados, pai e mãe, referindo-
-se, portanto, aos pais naturais. O quinto mandamento vai além
do sustento dos pais na velhice. É dever dos filhos proteger os
pais, a sanção da lei é dura contra os que descumprem o quinto
mandamento: "O que ferir a seu pai ou a sua mãe certamente
morrerá... E quem amaldiçoar a seu pai ou a sua mãe certamente
morrerá" (Êx 21.15, 17). O v. 15 fala sobre violência fisica, e o v.
17, que é reiterado mais adiante de forma expandida (Lv 20.9),
vai além do desprezo e do abandono. Amaldiçoar aqui significa
depreciar e repudiar a autoridade dos pais. Além da agressão e
do menosprezo em relação aos progenitores, a lei estabelecia a
pena capital para o filho desobediente, o rebelde contumaz (Dt
21.18-21). Qualquer atitude de desonra era um grave insulto, e
a punição da lei era a mesma para ambos os casos: agressão
física e moral, violência e desrespeito. Por isso, a lei impõe res
peito e honra aos pais (Êx 20.12; Dt 5.16). Desonrar a pai e mãe
é desonrar a Deus.
A PROMESSA DIVINA
Originalmente, este mandamento era exclusividade de Israel,
pois menciona a herança da terra de Canaã. A segunda parte do
quinto mandamento traz a promessa divina de vida longa aos
que honrarem aos pais: "para que se prolonguem os teus dias na
terra que o SENHOR, teu Deus, te dá" (Êx 20.12). Deuteronômio
diz a mesma coisa, mas de forma ampliada: "como o SENHOR,
teu Deus, te ordenou, para que se prolonguem os teus dias e para
que te vá bem na terra que te dá o SENHOR, teu Deus" (Dt 5.16).
A frase "como o SENHOR, teu Deus, te ordenou" mostra que
Moisés está se referindo à revelação no Sinai que ocorreu cerca
de 40 anos antes. Em seguida, vem a dupla promessa de vida
longa e sucesso na terra prometida. Essa promessa é específica e
indica que o quinto mandamento originalmente se restringia aos
israelitas durante o tempo da teocracia. Isso está claro e explícito
no texto, que afirma que tais bênçãos hão de vir "na terra que te
dá o SENHOR, teu Deus", uma referência inequívoca à terra dos
cananeus, a Terra Prometida. Fazia parte do concerto a segurança
e o bem-estar da nação, a longevidade e o sucesso (Dt 5.33; 6.2,
3; 22.7). Essas bênçãos são as mesmas que se tornaram promes
sa padrão para quem amar a Javé e permanecer no concerto do
Sinai (Lv 26.3-13; Dt 7.12-16; 28.1-14). E a promessa reaparece
no período do reinado de Salomão (1 Rs 3.14).
Como Israel violou o concerto do Sinai, o profeta Jeremias
anunciou a vinda de um novo concerto (Jr 31.31-34). Deus
cumpriu a promessa (Hb 8.8-12). Isso muda muita coisa. O
apóstolo Paulo deliberadamente combina as palavras do quinto
mandamento nos textos do Decálogo, Êxodo e Deuteronômio:
"Honra a teu pai e a tua mãe, que é o primeiro mandamento
com promessa, para que te vá bem, e vivas muito tempo sobre
a terra" (Ef 6.2, 3). Aqui, a terra prometida desaparece; trata-se
da terra não especificada no Decálogo, "que te dá o SENHOR,
teu Deus". A Igreja, o povo de Deus do novo concerto, é uma
comunidade internacional, uma congregação supranacional de
estrangeiros e peregrinos (1 Pe 2.11). O nosso lar não é aqui (Fp
3.20). Hoje essa promessa é abrangente.
A discussão do ensino apostólico é sobre o significado de
"primeiro mandamento com promessa". A dificuldade reside no
fato de a promessa de Deus conceder misericórdia a milhares de
gerações dos que o amam constar do segundo mandamento (Êx
I 8 4 I OS DEZ MANDAMENTOS - VALORES DIVINOS PARA U M A SOCIEDADE EM CONSTANTE MUDANÇA
HONRARÁS PAI E M Ã E I 8 5
20.6; Dt 5.10). Há quem afirme que a frase "primeiro mandamento
com promessa" tem o sentido de importância, assim como Jesus
chamou"primeiro mandamento" amar a Deus acima de todas as
coisas. Isso nos parece pouco provável, pois o Senhor Jesus disse:
"Este é o primeiro e grande mandamento" (Mt 22.38). Uma expli
cação mais ou menos aceitável é que o apóstolo Paulo se referia
ao primeiro mandamento de todo sistema mosaico encabeçado
pelo Decálogo. Mas a melhor interpretação é de que se trata do
primeiro mandamento da segunda tábua (conforme a divisão dos
Dez Mandamentos explorada no Capítulo 1). O Senhor Jesus citou
este mandamento para o jovem rico (Mt 19.19).
Nós vivemos essas coisas como resultado da nossa nova vida
em Cristo e não por coerção da lei, que condena à morte os filhos
rebeldes (Êx 21.15,17; Lv20.9; Dt 21.18-21). O cristão está debaixo
da graça e é guiado pelo Espírito Santo para as boas obras que
"Deus preparou para que andássemos nelas" (Ef 2.10). Cabe a
cada um de nós não desperdiçarmos o privilégio e a oportunidade
de honrar pai e mãe para não perdermos as bênçãos de Deus.
O homicídio é o maior crime que um ser humano
pode cometer. A proibição do assassinato, apesar de
constar dos códigos de leis anteriores ao sistema m o
saico, contudo, já havia sido estabelecida pelo pró
prio Criador desde o limiar da raça humana: "Quem
derramar o sangue do homem, pelo homem o seu
sangue será derramado; porque Deus fez o homem
conforme a sua imagem" (Gn 9.6). É contra Deus
que o assassino está desferindo seu golpe ao tirar a
vida de alguém. A imagem é a representação de uma
pessoa ou coisa. Quando os iraquianos derrubaram,
destruíram e esmiuçaram a estátua de Saddam Hus-
sein em Bagdá, em 2003, não estavam simplesmente
atacando um bloco trabalhado de pedra; era a im a
gem do ditador que estava ali representada.
O homem foi feito à imagem e semelhança de Deus, é a coroa
da criação e o representante de Deus na terra investido de au
toridade sobre as demais criaturas (Gn 1.26, 27; SI 8.5, 6). Todos
os seres humanos são irmãos porque vieram de um só casal e
têm o mesmo sangue (At 17.26). O respeito à vida é o respeito
a Deus. A primeira tábua do Decálogo se refere à santidade de
Deus, e a segunda, à santidade da vida. O sexto mandamento
inicia a série de proibições absolutas expressas com duas palavras
num ritmo lógico. Começa com a proteção da vida, o bem maior
e inalienável, em seguida vem a proteção da família, a célula
mater da sociedade; depois aparece a proteção da propriedade,
dos bens e da honra.
O respeito à vida é o princípio dos deveres para com o próxi
mo, a ordem divina de amar o próximo como Jesus nos amou (Jo
13.34). "Não matarás” proíbe o homicídio e os pecados vinculados
à violência, tais como "o tirar a nossa vida ou a de outrem, exceto
no caso de justiça pública, guerra legítima, ou defesa necessária;
a negligência ou retirada dos meios lícitos ou necessários para a
preservação da vida; a ira pecaminosa, o ódio, a inveja, o desejo
de vingança" (Catecismo Maior de Westminster, 136).
0 SEXTO MANDAMENTO
Para um leitor desatento ou menos avisado da Bíblia pode
parecer haver uma contradição entre o mandamento "Não ma
tarás" (Êx 20.13; Dt 5.17) e a guerra justa prescrita no capítulo
20 de Deuteronômio ou ainda a pena capital estabelecida na lei
de Moisés por diversos tipos de crimes e pecados, tema discuti
do mais adiante. Ninguém pode afirmar e negar algo ao mesmo
tempo. O que acontece é que "Não matarás" se trata de um termo
genérico que não expressa com precisão o pensamento do sexto
I 8 8 t OS DEZ M ANDAMENTOS - VALORES DIVINOS PARA U M A SOCIEDADE EM CONSTANTE MUDANÇA
mandamento, pois no hebraico, língua original em que o texto foi
produzido, está registrado lô tirtsãh,87 literalmente "não assassi-
narás" ou "não cometerás assassinato". A proibição, portanto, diz
respeito ao homicídio premeditado, à violência, ao assassinato
de um inimigo pessoal.
O Senhor Jesus Cristo discordou das autoridades religiosas
de sua geração, dos escribas e fariseus que restringiam o sexto
mandamento ao derramamento de sangue: "Ouvistes que foi
dito aos antigos: Não matarás; mas qualquer que matar será réu
de juízo. Eu, porém, vos digo que qualquer que, sem motivo, se
encolerizar contra seu irmão será réu de juízo, e qualquer que
chamar a seu irmão de raca será réu do Sinédrio; e qualquer que
lhe chamar de louco será réu do fogo do inferno" (Mt 5.21, 22).
Jesus não está aqui contrapondo o preceito da lei, mas a interpre
tação rabínica desse preceito, pois ao longo dos anos a tradição
havia despido o sexto mandamento de seu real significado. É
verdade que o sexto mandamento diz: "Não matarás" (Êx 20.13;
Dt 5.17); é também verdade que o homicida será submetido a
julgamento (Nm 35.30, 31). Mas a questão é que "Não matarás"
não se restringe somente a isso; inclui pensamentos e palavras,
ira e insultos. O mais grave é que as autoridades religiosas de
Israel nada ensinavam sobre a condenação divina ao homicídio,
como se o castigo fosse restrito aos tribunais civis. Jesus trouxe
à tona o espírito do sexto mandamento.
Dessa forma, "Não matarás" é ratificado no Novo Testamento
pelo Senhor Jesus Cristo e seus apóstolos (Tg 2.11; 1 Jo 3.15). Jesus
citou este mandamento juntamente com aqueles que dizem respei
to aos deveres do homem para com seu próximo: "Não matarás,
não cometerás adultério, não furtarás, não dirás falso testemunho;
NÃO MATARÁS I 8 9 í
87ninn vb.
honra teu pai e tua mãe, e amarás o teu próximo como a ti mesmo"
(Mt 19.18,19). O apóstolo Paulo elencou esses mandamentos numa
ordem e forma levemente modificadas (Rm 13.9).
O verbo hebraico rãtsah,ss "assassinar, matar", cuja ideia é
matar com violência e matar de maneira injusta. Aparece aqui,
no Decálogo, pela primeira vez (Êx 20.13). Foi encontrado um
só cognato nas línguas semíticas, no antigo árabe do norte, que
indica "quebrar em pedaço, estilhaçar, golpear". Apesar de sua
predominância como termo legal nas 47 ocorrências no Antigo
Testamento, e de ser usado na linguagem cotidiana, nenhuma
raiz foi encontrada nos códigos de lei do Antigo Oriente Médio.
Há mais oito verbos hebraicos no Antigo Testamento para
designar a matança: hãrag, 8 9 "destruir, matar, assassinar, ferir,
golpear" (Gn 4.8); zãvah,'90 "sacrificar, abater", que diz respeito ao
abate de animal para sacrifício, mas se aplica também ao abate
de seres humanos (2 Rs 23.20); tãvah,91 "abater, trucidar, matar,
massacrar", empregado para o abate de animais ou de pessoas
numa guerra (Is 34.2, 6; Jr 48.15); müt92 "morrer, matar, mandar
executar" (Gn 2.17; 18.25; 1 Rs 17.18); nãchãh,93 "ferir, golpear,
abater, matar" (Êx 21.12; Nm 22.23; Êx 7.17; 17.6.); nqph94 "pôr
abaixo, derrubar, cortar" (Jó 19.26); qãtal,9S "matar" (Jó 13.15;
24.14; SI 139.19)-,shãhat,96 "executar, matar, abater", que aparece
84 vezes no Antigo Testamento, indicando o ato de matar animais
(Gn 37.31) e pessoas (Is 57.5; Ez 16.21). No entanto, na maioria
das vezes, o termo diz respeito ao abate de animais no ritual de
sacrifício (1 Sm 1.25).
Parece que os verbos hãrag, müt e qãtal estão no mesmo
contexto de rãtsah. Esta é a conclusão apresentada no The Theolo-
I 9 0 I OS DEZ MANDAMENTOS - VALORES DIVINOS PARA UM A SOCIEDADE EM CONSTANTE MUDANÇA
88 nsn.
•>' nata.
89 3in.
92 mn.
“ nnt.
93 n?3-
«tsnií.
NÃO MATARÁS I 9 1
gical Dictionary o f the Old Testament [O Dicionário Teológico do
Antigo Testamento] que apresenta como argumento o paralelismo
entre "matar" [hãrag] a viúva e "tirar a vida" [rãtsah] (Sl 94.6) e da
mesma forma o paralelismo entre rãtsah e qãtal. "De madrugada
levanta o homicida, [rôtsêah] mata \yiqtãl] o pobre e necessitado
e de noite é como o ladrão" (Jó 24.14). Apresenta também o uso
alternativo de müt, qãtal e rãtsah na instrução jurídica da pena
capital (Nm 35.19, 21, 27, 30). Assim, esses três verbos parecem
indicar o assassinato no sentido vasto, sem detalhes adicionaissobre a maneira de praticar o homicídio. Com isso, o referido
dicionário conclui:
Estes sinônimos têm ajudado a definir o significado
de rãtsah e como assassinato culpável pelo uso da força.
A natureza do ato é deixada completamente indefinida.
Negativamente, é digno de nota que rãtsah nunca é usado
para assassinato em batalha nem em autodefesa. Nunca é
usado para suicídio. Afirma-se frequentemente que também
não é empregado para a execução da pena de morte; no
entanto, é contraditado por Nm 35.30, em que a raiz denota
que a execução de um assassino pelo vingador do sangue
é devidamente autorizada (BOTTERWECK, RINGGREN,
FABRY, vol. XIII, 2004, p. 632).
Cada ponto apresentado aqui será analisado juntamente
com outros temas pertinentes ao sexto mandamento. Não há
necessidade de discutir sobre o aborto e a eutanásia porque
"Não matarás" inclui de maneira direta a proibição dos referidos
crimes. Isso é visto em toda a Bíblia com clareza meridiana. A
polêmica existe para quem procura desafiar o sexto mandamen
to, principalmente por quem adota um estilo de vida contrário
à vontade de Deus.
GUERRA
A guerra é "o recurso das nações para tratar de resolver dife
renças pela força das armas. As guerras sempre são produtos da
pecaminosidade humana, seja por instigação imediata ou causa
indireta" (TAYLOR, 1995, p. 318). A guerra é algo indescritível. Não
existe desastre humanitário maior do que a guerra, pois envolve
destruição de vidas humanas, culpados e inocentes, homens
e mulheres de todas as idades, propriedades rurais e urbanas,
cidades e nações. Os horrores são indescritíveis. O Senhor Jesus
predisse guerras e rumores de guerra (Mt 24.4-8). As nações vivem
a expectativa de um holocausto nuclear.
Os antigos encaravam a guerra como algo sagrado. Era usual
oferecer sacrifícios antes da partida das tropas militares para a
batalha a fim de invocar às divindades proteção e vitória (1 Sm 13.8-
12; Is 13.3; Jr 51.27; Sf 1.7). A lei prescreve normas para a guerra
no capítulo 20 de Deuteronômio. Mas a legitimidade da guerra
depende de sua motivação. Deus permitiu e até ordenou a guerra
por diversas vezes no período do Antigo Testamento (Jz 20.27,28;
1 Sm 14.37;23.2-4; 1 Rs 22.6-12). Mas hoje existem grupos ativistas
que são favoráveis a ela; grupos pacifistas que são contrários, e os
seletivistas, que são favoráveis em caso de guerra justa.
A guerra é em si mesma incompatível com o espírito do cris
tianismo. É verdade que estamos na dispensação da graça e que
o cristianismo é pacifista (Mt 5.9). No entanto, até que todos se
convertam ao evangelho, é necessária a manutenção da ordem
pública e da segurança nacional. As forças armadas e as polícias
civil e militar ou qualquer corporação afim não são figuras deco
rativas. Essas instituições existem para manter a ordem pública e
defender o país de agressões externas. Todo mundo tem o direito
de defender o que é seu e, nesse caso, o cristão não está pecando.
I 9 2 I OS DEZ MANDAMENTOS - VALORES DIVINOS PARA U M A SOCIEDADE EM CONSTANTE M UDANÇA
Isso vale também para defesa pessoal: "Se um ladrão for achado
arrombando uma casa e, sendo ferido, morrer, quem o feriu não
será culpado do sangue" (Êx22.2, ARA). Não se trata, pois, de um
assassinato premeditado, mas de legítima defesa.
O tema não aparece no Novo Testamento. O Senhor Jesus
nada disse na parábola sobre o planejamento quando menciona
o rei que faz guerra a outra nação (Lc 14.31, 32). De igual modo,
não recomendou que o centurião de Cafarnaum renunciasse a seu
posto militar; antes, elogiou a analogia da fé com estrutura militar
(Mt 8.8-13). Visto que não houve nova revelação sobre a guerra,
isso significa que permanece o que está no Antigo Testamento.
Martinho Lutero entendia que o Sermão do Monte acompanha
va a orientação de Cristo "Dai a César o que é de César", separando
aí Igreja e Estado, o que é de ordem pessoal e o que é de ordem
jurídica. E, ainda segundo Lutero, o ensino "Amai a vossos inimi
gos" (Mt 5.44) não se aplica ao Estado a fim de evitar a anarquia.
Isso não viola o ensino de Jesus sobre a paz e o amor ao próximo.
SUICÍDIO
Não encontramos nenhum ensino direto sobre o suicídio na
Bíblia, a não ser o "Não matarás". Existem apenas três casos de
suicídio no Antigo Testamento, e o verbo "suicidar" não aparece
nenhuma vez na Bíblia. Saul "se lançou sobre a sua espada e
morreu [wayyãmãt,97 de müí) com ele" (1 Sm 31.5). Aitofel "se
enforcou: e morreu [ wayyãmãt\ e foi sepultado na sepultura de seu
pai" (2 Sm 17.23). Zinri "queimou sobre si a casa do rei, e morreu
[wayyãmot, de müt] "98 (1 Rs 16.18). Além desses três breves relatos
que mencionam suicídios, há mais um no Novo Testamento, o de
NÃO MATARÁS I 9 3 I
Judas Iscariotes (Mt 27.3-5). Não há unanimidade sobre a morte
de Sansão, muitos não consideram suicídio
Os estoicos e epicureus viam o suicídio como saída honrosa da
vida. O hinduísmo e o budismo aprovam o suicídio, encarando-o
como uma "peça das rodas do carma".99 Na verdade, é o resultado
do fracasso espiritual na maioria dos casos atuais tanto quanto
nos casos registrados na Bíblia. O suicídio é autoassassinato,
uma vez que a nossa vida não nos pertence. Quem não crê em
Deus e perdeu a esperança da vida futura, às vezes, procura na
autoaniquilação refúgio para escapar de suas misérias e das
intempéries e dos açoites da vida. É, no entanto, inconcebível
que um cristão chegue a tal extremo: "É o abandono do posto ao
qual Deus nos destinou. É uma recusa deliberada de submeter-
-nos à sua vontade. É um crime que não admite arrependimento
e, consequentemente, envolve a perda da alma" (HODGE, 2001,
p. 1294). A vida é um dom de Deus, e ninguém tem o direito de
tirá-la (Gn 9.6; Jó 33.4). Isso vale para a nossa vida e também
para a vida dos outros. Moisés, Elias e Jonas pediram a morte,
mas Deus não os atendeu (Nm 11.15; 1 Rs 19.4; Jn 4.3). O fim da
vida é prerrogativa exclusiva de Deus (SI 31.15; Ec 8.8). Ele sabe
a hora em que a vida humana deve cessar e é o soberano de toda
a existência e de todo o universo (Dt 32.29; 1 Sm 2.6; 2 Rs 5.7).
PENA DE MORTE
A maior dificuldade do sexto mandamento é a suposta con
tradição entre "Não matarás" e a guerra e a pena capital. Mas
I 9 4 I OS DEZ MANDAMENTOS - VALORES DIVINOS PARA U M A SOCIEDADE EM CONSTANTE M UDAN ÇA
99 Carma: termo sânscrito usado nas religiões transcendentais do Extremo Oriente para
designar o princípio hindu de causa e efeito; lei que determina o lugar de um indiví
duo na reencamação, ou seja, a pessoa colherá aquilo que semeou em uma suposta
encarnação anterior.
o verbo rãtsah nunca é usado em referência a assassinatos em
batalha ou autodefesa. O seu emprego uma única vez na execução
da pena de morte (Nm 35.30) é uma exceção; segundo Koehler &
Baumgartner (vol. II, 2001, p. 1283), tal uso parece ser a causa da
maior dificuldade. No entanto, considerando que originalmente
a ideia do referido verbo era de vingança de sangue (CHILDS,
1976, p. 420), a exceção do seu uso na pena capital não muda o
objetivo do mandamento em tela, que é a preservação da vida
e a proibição do assassinato premeditado, ou seja, o homicídio
com malícia.
A pena de morte é um dos temas mais controvertidos da atu
alidade, mas ela é bíblica e foi o próprio Deus quem a instituiu
logo após o Dilúvio (Gn 9.6). Deus não permitiu que ela fosse
executada no caso de Caim (Gn 4.15). A lei de Moisés traz ins
truções específicas sobre o procedimento jurídico do homicídio
doloso, quando há intenção de matar, e do homicídio culposo,
quando não há intenção de matar. O capítulo 35 de Números
aborda exclusivamente esse tema. A pena capital não viola o
sexto mandamento porque não se trata de assassinato malicio
so e violento de um inimigo pessoal. É uma exigência da justiça
para manter o bem-estar e a segurança do povo e preservar a
sociedade.Tito
Fm Filemon
Hb Hebreus
Tg Tiago
1 Pe 1 Pedro
2 Pe 2 Pedro
1 Jo 1 João
2 Jo 2 João
3 Jo 3 João
Jd Judas
Ap Apocalipse
introdução
A obra Os Dez Mandamentos - Valores Divinos para uma
Sociedade em Constante Mudança é um comentário exegético e
explicativo apresentado de forma prática para facilitar a compre
ensão dessa parte da lei de Moisés. A lei foi dada a Israel como
legislação para o povo antes de conquistar a terra de Canaã.
Inúmeros preceitos permanecem ainda hoje na legislação de
praticamente todos os países do planeta. Sua origem divina é
indiscutível, pois aparece no relato dessa comunicação de Deus
a Moisés desde Êxodo 20.1 até Levítico 27.34. Além disso, a Bíblia
declara esse fato de maneira direta. O presente trabalho tem por
objetivo ajudar o povo de Deus a distinguir entre lei e evangelho,
lembrando que os Dez Mandamentos não são a lei, mas parte
dela, que introduz o sistema legal de Moisés.
A estrutura dos Dez Mandamentos se resumem no amor a
Deus e ao próximo, diz respeito a Deus e à sociedade, que en
volve pensamento, palavras e obras. O primeiro mandamento
foi promulgado numa época que a idolatria norteava as nações,
e a ordem "Não terás outros deuses diante de mim" era algo
novo num código de leis. Trata-se do monoteísmo revelado que
influenciou o mundo inteiro com a expansão do cristianismo.
O segundo mandamento revela que esse único Deus deve
ser entendido e adorado em termos espirituais e imateriais e
que o culto e o louvor a ele com uso de representações visuais
são ofensivos e provocam a ira divina até a terceira e a quarta
geração. Deus é espírito (Jo 4.24). É, pois, todo-importante que
aquele que adora a Deus tenha a sua mente e o coração cen
trados nesse Deus que transcende a matéria e todas as coisas
criadas. É grande o risco de inverter o objeto de adoração pelas
representações visuais. Por isso, a adoração cristã genuína é
completamente despida de toda representação visual, como
imagens de escultura (Cl 3.16).
O terceiro mandamento trata daquilo que falamos com res
peito a Deus e ao próximo e da forma pela qual usamos o nome
de Deus. O quarto mandamento é de caráter social e espiritual:
abrange a necessidade de descanso do trabalho para o ser hu
mano, já que o descanso do sono noturno não é suficiente. A
lei estabeleceu para Israel o sétimo dia da semana e, na graça,
o sábado foi substituído pelo primeiro dia da semana, o dia da
ressurreição de Jesus, e deixou de ser mandamento para ser pra
ticado naturalmente, sem coerção alguma (At 20.7; Rm 14.2-6;
Cl 2.16, 17).
O mandamento de honrar pai e mãe pode servir como ponte
que conecta os dois grupos de mandamentos: o compromisso do
ser humano com Deus e o compromisso do ser humano com o
próximo. A observação desse preceito contribui para o bem-estar
da sociedade e da igreja. Os pais são representantes de Deus na
vida dos filhos, pois além de terem gerado os filhos, eles os cer
cam de cuidados especiais, provendo-os de alimentos, educação,
saúde, roupa, afetos. Isso é um mistério. Desonrar e desobedecer,
pois, aos pais é afrontar a Deus. Esse mandamento é extensivo
às autoridades espirituais e civis.
O "Não matarás" é a proteção da vida; assassinar alguém é
o pior crime que uma pessoa pode cometer, e isso é um golpe
contra o próprio Deus, visto que o ser humano foi feito à sua
I 1 0 I OS DEZ M A N D A M E N TO S -V A LO R E S DIVINOS PARA U M A SOCIEDADE EM CONSTANTE M U D A N Ç A
imagem (Gn 9.6). A proibição contra o adultério é um apelo à
pureza sexual e à proteção da família. É o compromisso de fide
lidade entre os casais.
O mandamento seguinte proíbe o furto, remete à proteção da
propriedade e de maneira indireta fala a respeito da necessidade
do trabalho. Ninguém deve viver sem uma atividade; como diz o
ditado, "mente desocupada é oficina de Satanás".
O nono mandamento é a proteção da honra, pois dizer fal
so testemunho contra o próximo aqui aplica-se não apenas ao
perjúrio nos tribunais para prejudicar alguém, mas também à
divulgação de boatos falsos e mexericos.
E, finalmente, o décimo mandamento é contra o pecado do
pensamento para ajudar o israelita a não violar os mandamentos
anteriores do Decálogo.
A ordem natural dos Dez Mandamentos é a seguinte: Deus,
família e sociedade. O estudo detalhado de cada um dos manda
mentos do Decálogo mostra de maneira inequívoca o seu valor
para Israel, principalmente por ocasião de sua saída do Egito.
Sua influência está por toda parte ainda hoje, no Estado e na
religião, nos manuais jurídicos e teológicos. Por essa razão, o
Novo Testamento não impõe sanção jurídica, mas a graça trata
essas coisas no campo espiritual, implicando a comunhão com a
Igreja e com Deus. A ministração da justiça é assunto do Estado.
A função da lei não é salvar, mas mostrar o pecado humano,
restringir o perverso e nos conduzir a Cristo, lembrando que o
Decálogo é parte da lei. Esta é santa porque é de origem divina,
mas a sua função deve ser compreendida por todos os cristãos.
O livro Os Dez Mandamentos — Valores Divinos para uma
Sociedade em Constante Mudança enfoca cada um desses pre
ceitos com abundância de detalhes. O primeiro capítulo é uma
visão panorâmica dos Dez Mandamentos. Os dez capítulos
INTRODUÇÃO \ 1 1 I
OS DEZ MANDAMENTOS - VALORES DIVINOS PARA U M A SOCIEDADE EM CONSTANTE M UDANÇA
seguintes tratam dos dez preceitos do Decálogo e de sua apli
cação na vida diária, família, igreja, sociedade e trabalho. Em
cada estudo são apresentados os significados de cada palavra-
-chave, em hebraico e grego, os comentários dos versículos do
Pentateuco vinculados ao mandamento em foco e, finalmente, a
sua interpretação no Novo Testamento. É importante conhecer
o sentido de cada mandamento no Novo Testamento e como
eles foram adaptados à graça.
O capítulo final mostra que obra de Deus para o cristão é
a fé em Jesus, e não a prática dos Dez Mandamentos. Estes já
estão incluídos nos dois grandes mandamentos de amar a Deus
acima de todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos.
Estar debaixo da graça e não debaixo da lei significa que somos
livres para servir ao Senhor Jesus Cristo, mas não para pecar,
visto que o cristianismo é a única religião do planeta que tem o
Espírito Santo. A terceira Pessoa da Trindade guia a vida cristã
e controla nossos desejos.
A lei de Moisés não consiste apenas num com
pêndio religioso; trata de profecias, histórias, regis
tros genealógicos e cronológicos, regulamentos,
ritos, cerimônias, exortações, preceitos morais, civis
e cerimoniais, instrução para sacerdotes, sacrifícios,
ofertas, festas e o tabernáculo. A grande diversidade
de conteúdo e suas várias formas de apresentação
dos dados da revelação têm impressionado o espírito
humano até hoje. A estrutura literária dessa parte das
Escrituras Sagradas é complexa e sobre ela muitas
interpretações e especulações têm sido levantadas
ao longo dos séculos.
O Decálogo é o exemplo mais conhecido da forma categórica
ou absoluta que se caracteriza pelo comando absoluto, geral
mente pelo uso da segunda pessoa do singular no futuro ou no
imperativo, e algumas vezes no plural. Isso aparece nos manda
mentos negativos ou positivos. O mandamento com o verbo no
particípio hebraico também é considerado categórico ou absoluto
por muitos, como em: "Quem derramar o sangue do homem,
pelo homem seu sangue será derramado" (Gn 9.6); ou: "Quem
ferir alguém, que morra, ele também certamente morrerá" (Êx
21.12). As expressões "quem derramar" e "quem ferir" estão no
particípio, na língua original. Mas há quem afirme que a referida
forma é casuística.
ALEI DE MOISÉS
A lei de Moisés não é a mais antiga da história, porém é a
mais importante, pois se distingue das demais na antiguidade por
seu caráter espiritual e sua autoridade divina. Sobretudo, por ter
chegado aos israelitas por revelação celestial. Mas sua grandezaSeu objetivo não era restaurar a vida do assassinado
ou reparar o prejuízo, pois somente Deus pode dar a vida; era
conter o crime. Deus delegou aos governantes a autoridade de
dirigir legitimamente o Estado. A execução de uma pena capital
é determinada pelo Estado, depois de julgamentos e de todo pro
cesso legal, tendo o réu amplos direitos de defesa. A lei de Moisés
exige pelo menos duas testemunhas, sem as quais o processo
não terá validade legal (Nm 35.30; Dt 17.6).
A lei de Moisés traz a lista de crimes e pecados punidos com
a morte: assassinato premeditado (Êx 21.12, 13), invocação de
NÃO MATARÁS I 9 5 I
mortos (Lv 20.27), seqüestro (ê x 21.16), blasfêmia (Lv 24.10-13),
falsos profetas (Dt 13.5-10), sacrifício a falsos deuses (Êx 22.20),
filhos rebeldes (Dt 21.8-21), ferir e amaldiçoar o pai ou a mãe
(Êx 21.15, 17, Lv 20.9), adultério e estupro (Lv 20.10-21; Dt 22.22-
24), bestialidade (Êx 22.19; Lv 20.15, 16), homossexualismo
(Lv 20.13), incesto (Lv 20. 11, 12, 14) e a profanação do sábado
(Êx 31.14, 15; 35.2).
O Novo Testamento reconhece a pena de morte, mas não
se trata de um mandamento cristão. O Senhor Jesus se referiu
a ela de maneira indireta quando disse que não veio destruir e
nem ab-rogar a lei, mas cumpri-la na sua íntegra (Mt 5.17, 18).
Ele também se referiu à lei de maneira direta: "Porque Deus or
denou, dizendo: Honra a teu pai e a tua mãe; e: Quem maldisser
ao pai ou à mãe, que morra de morte" (Mt 15.4). Esses dados
reaparecem na passagem paralela (Mc 7.10). Jesus combinou o
sexto mandamento (Êx 20.12; Dt 5.16) com a pena estabelecida
no sistema mosaico contra seus infratores (Êx 21.17; Lv 20.9),
mas não fez nenhuma observação contrária à pena de morte. Em
Marcos, Jesus afirma que "Moisés disse" (Mc 7.10); no entanto,
aqui o texto declara: "Deus ordenou". É evidente que toda a lei
procede de Deus, e Moisés, como mediador entre Deus e Israel,
foi o promulgador da lei. O apóstolo Paulo segue a mesma linha
de pensamento. Ele reconhece a legitimidade da lei e admite a
pena capital na legislação de um país (Rm 13.1-6).
Não há no Novo Testamento revelação contrária. O Espírito
Santo permitiu que essa lei permanecesse para proteger a vida
de inocentes. Os grupos de direitos humanos devem se preocupar
também com os humanos direitos. Eles devem pensar no valor da
vida da vítima dos homicidas. A inaplicabilidade da pena capital se
deve ao mau uso que as autoridades vêm fazendo desse preceito
ao longo dos séculos, desde os tempos bíblicos (1 Rs 21.1-16;
! 9 6 I OS DEZ MANDAMENTOS - VALORES DIVINOS PARA U M A SOCIEDADE EM CONSTANTE MUDANÇA
Mc 6.16-29; At 7.55-60). O maior exemplo está na morte de Jesus,
que prova não haver justiça na terra. Isso é condenável à luz do
Novo Testamento.
Todos reconhecem que a pena de morte é uma lei que fere o
espírito de perdão, amor e misericórdia, que formam a essência do
cristianismo; no entanto, ela está presente no Novo Testamento.
A diferença do Antigo Testamento é que ali a lei prescreve como
parte de um sistema legal, e aqui não é mandamento, conselho
ou incentivo. O Novo Testamento apenas reconhece que a pena
capital existe. É como a bomba atômica: existe mas não é para
ser usada. Ela não vai resolver, como nunca resolveu, o problema
da violência e da criminalidade, e serve para satisfazer caprichos
de ditadores cruéis, muitos deles considerados fora da lei pela
comunidade internacional. Em resumo, a pena de morte combate
a violência com outra violência. A solução está na mensagem
transformadora do Calvário. Jesus deu o exemplo ao absolver a
mulher adúltera dessa sentença 0o 8.1-11).
O presente estudo não busca trazer soluções para questões
complexas como a guerra e a pena de morte. O assunto também
não se esgota aqui. Essas coisas não se resolvem com um simples
discurso baseado em "Não matarás". É uma reflexão sobre a dig
nidade do indivíduo, como ser humano, e sobretudo por ser a vida
um dom de Deus e somente o Criador ter o direito de tirá-la. O
direito à vida é natural e inalienável e é parte da responsabilidade
do homem, como seu administrador. O verbo rãtsah, na legislação
mosaica, tem o sentido de proibir o homicídio premeditado, ou
seja, o assassinato violento de um inimigo pessoal.
NÃO MATARÁS I 9 7 I
O sétimo mandamento continua atual porque o
mundo está às avessas, dizendo "não" a tudo aquilo
que Deus diz "sim” na sua Palavra, e "sim" a tudo o
que a Bíblia diz "não". O resultado é o caos na família
e na sociedade.
O adultério é a relação sexual de um homem casado com
uma mulher que não é sua esposa e vice-versa. Para muitos, tal
prática pode parecer normal, mas a Palavra de Deus declara: "Não
adulterarás" (Êx 20.14; Dt 5.18). Isso vai muito além da cópula
extraconjugal. É a proibição de toda a forma de prostituição;
é Deus dizendo "não" a todas as concupiscências desnaturais,
imaginações e pensamentos impuros e lascivos (Mt 5.27, 28).
O quinto mandamento resguarda a vida familiar de ruptura
interna. Mas aqui o sétimo mandamento requer um relacionamen
to de amor e fidelidade entre marido e mulher. É isso o que Deus
espera de todos os casais. Na verdade, são ideais provenientes
da criação (Gn 2.24). O objetivo deste mandamento é conservar
a sacralidade da família que foi instituída por Deus por meio do
casamento no jardim do Éden (Gn 2.18-24). A santidade desse
relacionamento familiar deve ser mantida. Esta lei servia também
para Israel manter a pureza sexual e evitar as práticas da cultura
egípcia, de onde os israelitas saíram, e da cultura cananeia, para
onde o povo se dirigia. Os preceitos pertinentes estão descritos
com abundância de detalhes no sistema mosaico (Lv 18.6-30;
20 .10-21 ).
0 SÉTIMO MANDAMENTO
O verbo hebraico nã ’ph,'00 "adulterar, cometer adultério", não
apresenta problema lingüístico neste mandamento, diferentemen
te do que pensam alguns expositores bíblicos. O termo aparece
trinta e quatro vezes no Antigo Testamento, nove vezes em Je
remias, sete em Ezequiel, seis em Oseias, seis no Pentateuco e
quatro na literatura sapiencial. O verbo ocorre no Decálogo, em
I 1 0 0 I OS DEZ MANDAMENTOS - VALORES DIVINOS PARA U M A SOCIEDADE EM CONSTANTE MUDANÇA
100e]N3.
NÃO ADULTERARÁS 1 1 0 1
Êxodo e em Deuteronômio como lo ’ tinã ’ph,'m "Não adulterarás"
(Êx 20.14; Dt 5.18). As outras quatro vezes aparece em Levítico,
que traz de maneira clara e inconfundível a definição de adul
tério no contexto da época: "Também o homem que adulterar
com a mulher de outro, havendo adulterado com a mulher do
seu próximo, certamente morrerá o adúltero e a adúltera" (Lv
20.10). Esse conceito é aprofundado no Novo Testamento. O
cristianismo restaura a monogamia originalmente estabeleci
da pelo Criador, visto que a estrutura da sociedade do Antigo
Testamento era polígama. A lei se aplica se o ato envolver uma
mulher casada ou comprometida (Dt 22.22-26). Mas, se a mulher
for solteira, o homem será obrigado a se casar com ela e nunca
mais poderá se divorciar, além de pagar uma indenização ao pai
da moça (Dt 22.28, 29). Na nova aliança, não há nada disso; o
sétimo mandamento é adaptado à graça, e o assunto é levado à
esfera espiritual e não jurídica ou legal (Jo 8.1-11). Os adúlteros
contumazes e inveterados perdem o direito à vida eterna no céu
(1 Co 6.10; Ef5.5;Ap 22.15).
Os termos hebraicos para adultério são n i’uph,w2 que só
aparece duas vezes no Antigo Testamento (Jr 13.27; Ez 23.43)
e na’ãphüph,103 que só aparece uma vez (Os 2.2 [4]). Essas três
ocorrências estão no plural. A Septuaginta traduz as duas pala
vras por moicheia,M o mesmo termo usado no Novo Testamento
grego, onde só aparece três vezes (Mt 15.19; Mc 7.22; Jo 8.3).
O verbo hebraico zãnãh,ws "cometer fornicação, praticar pros
tituição", designa primariamente um relacionamento sexual fora
de uma união formal. O particípio do verbozãnãh é zonãh, e se
refere à mulher que se entrega a tal prática. A isso comumente
101 *]í«n tò.
104 Moixeía.
102 '1̂3.
105 nír.
103
se chama "fornicação", mas se um dos envolvidos tiver já assu
mido união formal com outra pessoa este ato será considerado
adultério. O verbo zãnãh e os substantivos derivados zenümm,106
zenüt107 e taznüt,108 "fornicação, prostituição", são sinônimos quase
perfeitos. Zenüním aparece onze vezes (Gn 38.24; 2 Rs 9.22; Ez
23.11 [duas vezes]; 23.29; Os 1.2 [duas vezes]; 2.3[4], 4[6]; 4.12;
5.4; Na 3.4 [duas vezes]; zenüt ocorre nove vezes (Nm 14.33; Jr
3.2, 9; 13.27; Ez 23.27; 43.7, 9; Os 4.11; 6.10) e taznüt só aparece
em dois capítulos de Ezequiel: no capítulo 16, nove vezes, e, no
capítulo 23, onze vezes. A Septuaginta emprega o termopornê,m
"prostituta, meretriz".
O substantivo porneia e o verboporneuõU0 aparecem na Bí
blia para designar orgia (Nm25.1; 1 Co 10.8), incesto (1 Co5.1) e
práticas homossexuais (Jd 7). O termo porneia, às vezes, aparece
junto com adultério e, outras vezes, como sinônimo, mas é um
termo genérico e indica "prostituição, incastidade, fornicação,
adultério, imoralidade, práticas homossexuais", ao passo que
moicheia é usado especificamente para adultério e nunca se
aplica à prostituição.
O Antigo Testamento emprega todos esses termos também
de forma metafórica para descrever a apostasia de Israel e sua
infidelidade a Javé, seu Deus. O profeta Ezequiel, no capítulo 16,
descreve a apostasia de Israel como prostituição e revela a dife
rença entre nã ’ph e zãnãh.
A "meretriz", zonãh, substantivo derivado do verbo zãnãh, é
a mulher que recebe pagamento por favores sexuais (Ez 16.31b).
Esse conceito é reiterado nos versículos 33 e 34. A "mulher adúl
tera", hã-ishãh ham-mnã’ãphet,ul é a que recebe estranhos em
I 1 0 2 I OS DEZ MANDAMENTOS - VALORES DIVINOS PARA U M A SOCIEDADE EM CONSTANTE MUDANÇA
106 D’MT.
109 nopvií.
107 rar.
““Ilopveúu.
108 mm.
" ‘naóan nsíxn.
NÃO ADULTERARÁS I 1 0 3
vez do marido (Ez 16.32). O Antigo Testamento nunca emprega
naph para designar a prostituta profissional. Essa diferença é
verificada em Provérbios, quando afirma que a zonãh é a mulher
que se oferece por um pedaço de pão, "prostituta" (Pv 6.26), ao
passo que no ’êph, "adúltera", é a mulher que tem marido mas se
entrega a outro homem (Pv 6.32-34).
O sétimo mandamento inclui também a proibição da prática
homossexual. É o próprio Deus quem chama o comportamento
homossexual de abominação, e a lei aplica a pena de morte
contra os que cometerem tal pecado (Lv 18.22; 20.13). Era a
prática do culto cananeu que envolvia a chamada "prostituição
sagrada" (1 Rs 24.24; 15.12). O sodomita e a rameira são colo
cados na mesma categoria (Dt 23.17). A prática é proibida em
toda a Bíblia (Rm 1.24-28; 1 Tm 1.10), mas a nova aliança leva
o assunto para a esfera espiritual, implicando a salvação e não
a pena capital (1 Co 6.10). O ensino de Jesus é: "Vai-te e não
peques mais" (Jo 8.11).
O apóstolo Paulo afirma que o poder do evangelho resultou
em uma mudança desse estilo de vida especificamente na cidade
de Corinto (1 Co 6.11). No Brasil, o homossexual que precisar de
ajuda para abandonar esse estilo de vida não poderá contar com
ajuda de psicólogos. Estes são autorizados a ajudar a quem dese
ja ser homossexual, mas são constantemente ameaçados pelas
autoridades se ajudarem quem pretende abandonar tal prática.
São leis iníquas como essas que afrontam a Deus e ameaçam os
fundamentos da família. Jesus e Paulo estariam hoje em dificul
dades diante da justiça brasileira.
O Senhor Jesus anunciou de antemão os dias de Sodoma e
Gomorra para o fim dos tempos, antes da sua vinda (Lc 17.28-30).
Atualmente, é grande a pressão das autoridades civis e da mídia
contra a Igreja, pois elas estão institucionalizando a iniqüidade
como já tem acontecido em alguns países. Devemos tomar cui
dado, pois o alvo desse movimento está mais além: cercear a
liberdade religiosa. A solução é orar a Deus para que o Estado
respeite nossas crenças, princípios e tradições, razão pela qual
devemos respeitar o direito dos outros. É o mínimo que se espe
ra num estado democrático de direito, pois os direitos de César
terminam onde começam os de Deus (Mt 22.21; At 5.29).
Igreja não é Estado: a Igreja é regida pelo Espírito Santo por
meio da Palavra de Deus, e o Estado é regido por sua constituição.
Não somos um Estado teocrático nem é papel do cristão impor a
Bíblia à legislação do país. "O mundo inteiro jaz no Maligno" (1
Jo 5.19, ARA). Nosso dever é pregar o evangelho para a salvação
de toda a sorte de pecadores e não nos envolver em passeatas e
manifestos (Mt 28.19, 20).
0 CASAMENTO
O casamento é um projeto divino, pois Deus disse: "Não é bom
que o homem esteja só; far-lhe-ei uma adjutora que esteja como
diante dele" (Gn 2.18). A instituição foi sancionada pelo Senhor
Jesus com sua honrosa presença nas bodas de Caná da Galileia
(Jo 2.1-11). Está escrito: "Venerado seja entre todos o matrimô
nio" (Hb 13.4). A frase "Bom seria que o homem não tocasse em
mulher" (1 Co 7.1) é uma citação da carta que o apóstolo recebeu
dos irmãos da Igreja de Corinto. Essas palavras não são ensinos
paulinos, senão o apóstolo estaria contrariando o princípio da
procriação (Gn 1.12) e o Deus que declarou: "Não é bom que o
homem esteja só" (Gn 2.18); além, disso, estaria também defen
dendo o celibato para todos os homens. Os rabinos ensinavam
que o casamento era uma obrigação do homem e outros diziam
ainda que era um dever da mulher.
I 1 0 4 I OS DEZ M ANDAMENTOS - VALORES DIVINOS PARA U M A SOCIEDADE EM CONSTANTE M UDANÇA
NÃO ADULTERARÃS I 1 0 5
O casamento é reconhecido em todas as civilizações e não há
como ficar fora das relações sociais e civis. É um contrato jurídico
de uma união espiritual, como disse Myer Pearlman em seu Ma
nual do Ministro. O Estado, como guardião desses direitos, tem
legitimidade para legislar sobre o tema, e isso envolve herança,
propriedade, filhos. Mas vivemos em um tempo que nem sempre o
que é legítimo para o Estado é aceitável a Deus. O mundo está às
avessas, como disse Jeremias: "Coisa espantosa e horrenda se anda
fazendo na terra" (Jr 5.30). Este sistema não é padrão para a Igreja
(Rm 12.2). A Palavra de Deus está acima de qualquer lei terrena.
A natureza do casamento está fundamentada nas palavras:
"Portanto, deixará o varão o seu pai e a sua mãe e apegar-se-á à
sua mulher, e serão ambos uma carne” (Gn 2.24). O homem e a
sua esposa formam "uma só carne" e ambos juntos formam o ser
humano completo. A expressão "uma carne" ou "uma só carne"
(ARA e TB) se refere à comunhão, à unidade física, intelectual
e espiritual. A unidade física é o relacionamento sexual dentro
do casamento, que tem o aval divino por ser uma prática pura e
santa aos olhos de Deus. A Bíblia chega a comparar a intimidade
conjugal com o relacionamento entre Deus e Israel (Is 54.5; Os
2.19,20) e da mesma forma com o relacionamento místico entre
Cristo e a Igreja (2 Co 11.2).
Assim, a relação sexual com alguém que não é o cônjuge
representa a ruptura desse vínculo sagrado que Deus estabele
ceu no Éden desde o princípio. Segundo o Handy Commentary,
o adultério "é uma invasão da vida doméstica, a destruição da
família, a dissolução do contrato fundamental da ordem social"
(apud MESQUITA, 1979, p. 189). Não se trata meramente de uma
desonra ou de um ato vergonhoso, mas de algo com profundas
implicações na vida humana. Mesmo depois da cura, ficam as
cicatrizes. A lei contra o adultério e sua respectiva sentença aos
infratores valiam tanto para o homem como a mulher em Israel
(Lv 20.10; Dt 22.22).
As palavras "Deixará o varão o seu pai e a sua mãe e apegar-
-se-á à sua mulher" (Gn 2.24) revelam o princípio original da mo-
nogamia, pois o texto não diz: "e apegar-se-á às suas mulheres".
A monogamia foi instituídapelo Criador, porém a poligamia foi
adotada pelos homens. O primeiro polígamo da história foi Lame-
que (Gn 4.19). A poligamia era tolerada na época de Moisés (Êx
21.7-11; Dt 21.15), mas ela é pecaminosa porque viola o princípio
original e permanente do matrimônio. O Novo Testamento ensina
a monogamia: "Cada um tenha a sua própria mulher, e cada uma
tenha o seu próprio marido" (1 Co 7.2). Qualquer relação sexual
fora do casamento é adultério no Novo Testamento. Não existe
o sistema de concubinato na fé cristã (Mc 10.11,12).
Ao longo da história da interpretação, expositores judeus e
cristãos reconheceram como pertinentes ao sétimo mandamento
as proibições concernentes a toda sorte de incastidade e aberra
ções sexuais. O livro Casamento, Divórcio & Sexo à Luz da Bíblia,
de minha autoria e publicado pela CPAD, enfoca o casamento, o
concubinato e a união estável, o homossexualismo e a prostitui
ção, o divórcio e o papel da Igreja, cuja leitura recomendo. O tema
é atual e de grande importância para o fortalecimento da família.
0 ENSINO DE JESUS
O Senhor Jesus, no Sermão do Monte, depois de falar sobre o
sexto mandamento, seguiu a mesma ordem do Decálogo, mencio
nando a proteção da vida e a preservação da família. Ele reiterou
o que Deus disse no princípio da criação sobre o casamento, que
se trata de uma instituição divina, uma união estabelecida pelo
próprio Deus (Mt 19.4-6).
I 1 0 6 I OS DEZ M ANDAMENTOS - VALORES DIVINOS PARA U M A SOCIEDADE EM CONSTANTE MUDANÇA
NÃO ADULTERARÁS I 1 0 7
"Não adulterarás" é citado no Sermão do Monte e para o
moço rico (Mt 5.27; 19.18; Mc 10.19; Lc 18.20). Jesus corrigiu
com autoridade e muita propriedade o pensamento equivocado
dos líderes religiosos dos seus dias. Os escribas e fariseus ha
viam reduzido o mandamento "Não adulterarás” ao próprio ato
físico e, desconhecendo o espírito da lei, apegavam-se à letra
da lei (2 Co 3.6). Assim, como é possível cometer assassinato
sem o ato concreto, mas apenas com a cólera ou palavras in
sultuosas, da mesma forma é possível cometer adultério só no
pensamento. Parece que os rabis daquela época não davam a
devida atenção ao décimo mandamento que ordena não cobiçar
a mulher do próximo.
O adultério começa na mente contaminada pela cobiça e ter
mina no corpo pela prática física (Mt 15.34; Tg 1.15). O ensino de
Jesus é mais profundo e vai à raiz do problema. Ele disse que nem
é preciso o homem se deitar com uma mulher para cometer adul
tério; basta olhar e cobiçar uma mulher que não seja sua esposa,
e já cometeu adultério com ela (Mt 5.28). É o adultério da mente
que é consumado no corpo; não se restringe somente à prática
do ato, mas também ao pensamento. E a sanção contra o referido
pecado é de caráter espiritual e se distingue do sistema mosaico.
Não é proibido olhar para uma mulher e vice-versa, pois há
diferença entre olhar e cobiçar. O pecado é o olhar concupiscente.
O sexo é santo aos olhos de Deus, desde que dentro do casamento,
nunca fora dele. A Palavra de Deus ressalta: "Venerado seja entre
todos o matrimônio e o leito sem mácula" (Hb 13.4). O termo
grego para "venerado" é tímios,112 "honrado". A Versão Almeida
Atualizada traduz por: "Digno de honra"; e a Tradução Brasileira
por: "Seja honrado". Que os votos de fidelidade do casamento
112 Tl|íioç.
sejam mantidos e da mesma maneira seja puro o relacionamento
matrimonial. O livro de Cantares de Salomão mostra que o sexo
não é apenas para procriação, mas também para o prazer e a
felicidade dos seres humanos. Jesus não está tratando disso, não
está questionando o sexo, mas combatendo a impureza sexual e
o sexo ilícito, a prostituição. O ensino dele é que qualquer prática
imoral no ato é igualmente condenada no olhar, no pensamento e
na imaginação (Mt 5.27). Jesus disse que os adultérios procedem
do coração humano (Mt 15.19).
Cabe aqui uma breve reflexão sobre o divórcio. Trata-se de
um dos temas mais polêmicos da Igreja. Essas controvérsias já
existiam mesmo antes do nascimento de Jesus. O divórcio na lei
de Moisés previa novas núpcias, e a base para a sua legitimidade
nunca ficou clara no Antigo Testamento:
Quando um homem tomar uma mulher e se casar com
ela, então, será que, se não achar graça em seus olhos, por
nela achar coisa feia, ele lhe fará escrito de repúdio, e lho
dará na sua mão, e a despedirá da sua casa. Se ela, pois,
saindo da sua casa, for e se casar com outro homem...
(Dt 24.1,2).
O "escrito de repúdio" significa "termo de divórcio" (ARA). A
mulher não era considerada adúltera se contraísse novo casamen
to, mesmo tendo o seu primeiro marido encontrado nela "coisa
feia". Não se sabia o que a lei queria dizer com tal expressão
"coisa feia" ou "indecente" (ARA). Havia muita discussão entre
as principais escolas rabínicas no período de Herodes, o Grande,
Hillel e Shammai. O primeiro era liberal, e o segundo, conserva
dor. Para Hillel e seus seguidores, "coisa feia" era qualquer coisa
que o marido considerasse como tal. Mas, para Shammai e seus
discípulos, o termo se referia aos pecados sexuais.
I 1 0 8 I OS DEZ MANDAMENTOS - VALORES DIVINOS PARA U M A SOCIEDADE EM CONSTANTE M UDANÇA
NÃO ADULTERARÁS I 1 0 9
Os fariseus levaram o assunto a Jesus. Eles não perguntaram
sobre o divórcio, mas sobre as bases para a sua legitimidade: "É
lícito ao homem repudiar sua mulher por qualquer motivo?" (Mt
19.3). Essa era a escola de Hillel. Os fariseus queriam saber qual
escola Jesus apoiava. Mas o Senhor Jesus se dirigiu à Palavra.
O casamento é indissolúvel, foi a sua conclusão sobre Gênesis
2.24, "o que Deus ajuntou não separe o homem" (Mt 19.6). O que
fazer com o mandamento de Moisés?, perguntaram a Jesus (Mt
19.7). Moisés não deu esse mandamento; era uma interpretação
precipitada, pois uma leitura cuidadosa em Deuteronômio 24.1 -4
mostra que não se trata de uma ordem. Por isso, Jesus disse que
Moisés "permitiu", e isso "por causa da dureza do vosso cora
ção" (Mt 19.8). Deus só permitiu o divórcio por causa do pecado
humano; portanto, trata-se de um instituto contrário à vontade
de Deus. A Bíblia não ensina, não encoraja, não aconselha nem
incentiva o divórcio. É um remédio extremamente amargo para
uma solução inglória.
Quando o Senhor Jesus fez menção do divórcio no Sermão do
Monte, referia-se ao mencionado em Moisés (Dt 24.1 -4) e deixou
claro que a única base que pode legitimar o divórcio é a infidelida
de conjugal: "Eu, porém, vos digo que qualquer que repudiar sua
mulher, a não ser por causa de prostituição, faz que ela cometa
adultério; e qualquer que casar com a repudiada comete adultério"
(Mt 5.32) e fraseologia similar (Mt 19.9). A prostituição é a "coisa
feia" que ninguém sabia, talvez porque tal pecado podia implicar
na pena capital. Mas agora tudo se esclarece e a "coisa feia" vale
também para o homem.
O apóstolo Paulo acrescentou mais um elemento que pode
legitimar o abandono: "Mas, se o descrente se apartar, aparte-se;
porque neste caso o irmão, ou irmã, não está sujeito à servidão;
mas Deus chamou-nos para a paz" (1 Co 7.15). A NTLH emprega
"quiser o divórcio" no lugar de "se apartar". A voz do verbo grego
mostra que a iniciativa é da parte incrédula que se aparta. Assim,
a deserção deve ser considerada se for por causa da fé cristã e
por iniciativa do cônjuge descrente.
Entendemos, portanto, como divórcio a dissolução do vínculo
matrimonial por infidelidade conjugal, que viola a instrução di
vina de "uma só carne" (Gn 2.24; Mt 19.5) ou, por deserção, que
viola a instrução de "apegar-se" (Gn 2.24). Em qualquer dessas
duas situações, o cônjuge inocente tem direito a novas núpcias.
Deus é sábio e perfeito. Ele conhece todas as coisas, pois é
onisciente. "Deus é amor" (1 Jo 4.8) e deseja o bem-estar de todas
as pessoas. Somente ele sabe o que é bom e salutar para a vida
humana. É insensatez confiar o destino eternoà lógica e à razão,
pois a Bíblia é a Palavra de Deus, o manual divino do fabrican
te para todos os seres humanos. A vontade de Deus resumida
no sétimo mandamento diz respeito à castidade do corpo e da
mente, visando a preservação do casamento de um só homem
com uma só mulher (1 Ts 4.3-7). A felicidade humana está em
se deleitar em Deus.
I 1 1 0 I OS DEZ M A N D A M EN TO S-V A LO R ES DIVINOS PARA U M A SOCIEDADE EM CONSTANTE MUDANÇA
4 ^ / - >
N ã o haverá paz numa sociedade se não houver
proteção da propriedade. Isso inclui o compromisso
de cada um na construção de uma sociedade justa e
saudável. Deus concedeu a todos os seres humanos
o direito de adquirir bens materiais, desde que essa
aquisição seja de maneira honesta e envolva o tra
balho. O oitavo mandamento foi dado a Israel como
preceito jurídico e religioso, mas no Novo Testamento
o tema é espiritual, pois os ladrões e roubadores não
herdarão o Reino de Deus (1 Co 6.10).
112 I OS DEZ M ANDAMENTOS - VALORES DIVINOS PARA U M A SOCIEDADE EM CONSTANTE MUDANÇA
Adquirir legitimamente a propriedade é direito sagrado. Ninguém
tem o direito de subtrair o que não lhe pertence. Nem mesmo o Esta
do pode lançar mão da propriedade alheia. O rei Acabe se apoderou
ilegitimamente do campo de Nabote e tal atitude deixou Deus irado,
por isso mandou o profeta Elias ditar o destino desse monarca com
sua esposa Jezabel (1 Rs 21.17-19). Essa garantia vem de Deus.
PROPRIEDADE E TRABALHO
As informações bíblicas mais antigas de que dispomos sobre o
regime de propriedade retrocedem ao período patriarcal. Abraão
comprou de um heteu chamado Efrom parte de uma propriedade
que se localizava no fim de seu campo, para o sepultamento de
Sara (Gn 23.17-20). No Egito, durante o período das vacas magras,
José comprou para o Faraó todas as terras do Egito, exceto aque
las que pertenciam aos sacerdotes egípcios. Assim, os antigos
proprietários arrendaram essas terras e passaram a pagar ao rei
do Egito 20% de sua produção (Gn 47.20-26). Textos antigos de
autores profanos confirmam essa reforma administrativa de José
no Egito. Heródoto diz que o Faraó Sisóstris "repartiu o país entre
todos os egípcios, concedendo a cada um uma parte quadrada e,
conforme esta partilha, estabeleceu a eles o pagamento de um
tributo anual" (História II. 109). Os sacerdotes eram isentos desse
tributo. Relato similar aparece em Diodoro Sículo, historiador da
Sicília, contemporâneo de Júlio César e Augusto, em sua Biblio
teca Histórica, afirma que toda a terra do Egito pertencia aos
sacerdotes, ao rei e aos guerreiros (1.73); e, segundo o estoico
Estrabão, historiador e geógrafo grego (64 a.C.-19 d.C.), autor
da obra Geografia, os camponeses e mercadores arrendaram as
terras do Egito de modo que elas não lhes pertenciam (Livro 17).
São documentos extrabíblicos confirmando o relato da Bíblia. Na
Mesopotâmia, as propriedades eram familiares e individuais, e o
rei só podia dispor delas se as comprasse.
No sistema mosaico, toda a terra pertencia a Javé (Êx 19.5;
Dt 10.14). Deus autorizou a partilha da terra dos cananeus entre
as famílias israelitas, o que aconteceu durante as conquistas de
Josué. A partir do capítulo 13 de Josué, há o registro da divisão da
terra entre as tribos de Israel. Cada propriedade estava limitada
por marcos cuja remoção a lei proibia severamente (Dt 19.14;
27.17), e essa ordem se estende ao longo do Antigo Testamento
(Jó 24.2; Pv 22.28; 23.20; Os 5.10). A lei garantia o direito de posse
da propriedade, que era patrimônio familiar, e o rei não tinha o
direito de se apossar dela, exceto pela compra se o proprietário
quisesse vendê-la. O episódio do rei Acabe é um exemplo clás
sico do direito sagrado de propriedade, como se vê em 1 Reis 21.
Deus não criou o homem para a ociosidade. Adão recebeu ta
refas para serem feitas mesmo antes da Queda do Éden: "E tomou
o SENHOR Deus o homem e o pôs no jardim do Éden para o lavrar
e o guardar" (Gn 2.15). A Bíblia mostra o trabalho como bênção de
Deus e não como maldição (Sl 128.1,2). Todos devem trabalhar e
isso é honroso. O apóstolo Paulo disse que, "se alguém não quiser
trabalhar, não coma também" (2 Ts 3.10). Não existe trabalho baixo
e alto, desde que seja honesto. Até os ricos trabalham. Certamente
produzir e enriquecer é trabalhar. Talento, habilidade, esforço são
elementos do trabalho. Os bens e propriedades adquiridos por meio
de trabalho honesto ou por herança são opostos ao furto e roubo.
0 OITAVO MANDAMENTO
O mandamento "Não furtarás" se dirigia originalmente a
seqüestradores, segundo a maioria dos exegetas do Antigo Tes
tamento, mas o contexto revela sua aplicação contra tudo o que
NÃO FURTARÁS I 1 1 3 1
é apropriação indébita, de coisas ou pessoas. A ligação com o
tráfico de pessoas é uma conclusão e se baseia na inferência de
Êxodo 21.16: "E quem furtar algum homem e o vender; ou for
achado na mão, certamente morrerá". Este preceito reaparece
mais adiante (Dt 24.7). E o verbo hebraico gãnav,m "roubar,
furtar", que aparece no oitavo mandamento lo ’ tignov,114 "Não
furtarás", é o mesmo usado nesses dois versículos (Êx 21.16; Dt
24.7). Pessoas eram roubadas na antiguidade para serem vendi
das como escravas, como aconteceu com José do Egito, que foi
vendido pelos próprios irmãos (Gn 37.22-28). Ele mesmo disse:
"De fato, fui roubado da terra dos hebreus" (Gn 40.35). Esse tipo
de crime era comum também no período do Novo Testamento (1
Tm 1.10). Mas o preceito se refere também a furto de objetos (Gn
44.8). O campo semântico da raiz gnb,us se estende de "remover
(secretamente)” a "trapacear" (Gn 31.20, 26, 27).
O furto se distingue do roubo, já que o primeiro é a subtração
do objeto sem violência e às esconsas, pois o dono está ausente;
o roubo é a subtração da coisa na presença da vítima, também
sem violência, como fazem os batedores de carteira nas grandes
cidades. O assalto é o ataque súbito a alguém com ameaça e vio
lência para subtrair alguma coisa. O latrocínio é o roubo seguido
de morte da vítima. O mandamento "Não furtarás" é um dispo
sitivo contra o roubo: "Não confiem na violência, nem esperem
ganhar alguma coisa com o roubo" (Sl 62.10, NTLH) e contra o
furto: "Aquele que furtava não furte mais" (Ef 4.28). Mas o oitavo
mandamento não se restringe a isso, havendo muitas atividades
desonestas condenadas na presente ordem.
O sistema mosaico aplica a pena capital a quem violar o
oitavo mandamento no crime de tráfego de seres humanos (Êx
I 1 1 4 I OS DEZ M A N D A M EN TO S-V A LO R ES DIVINOS PARA U M A SOCIEDADE EM CONSTANTE MUDANÇA
1143i;n tò. 115 333 .
NÃO FURTARÁS I 1 1 5
21.16; Dt 24.7). A sanção contra os demais tipos de pecados e
crimes previstos no presente mandamento é a restituição da coisa
roubada ao dono. O receptador de bens roubados ou furtados é
igualmente culpado com o autor do crime (Sl 50.18; Pv 29.24). O
sistema mosaico condena também as transações fraudulentas (Lv
19.35, 36; Dt 25.13-16). Essa proibição reaparece mais adiante
na história de Israel (Pv 11.1). É o que Deus espera de cada um
de nós: "Ninguém oprima ou engane a seu irmão em negócio
algum, porque o Senhor é vingador de todas estas coisas" (1 Ts
4.6). Isso envolve a opressão, a extorsão, o suborno e a usura (Lv
25.17,36; Dt 19.16; 23.29). Quem toma emprestado deve pagar (Sl
37.21). Os moradores de Judá estavam envolvidos nestes pecados
nos dias da apostasia que precederam a queda de Jerusalém (Ez
22.12). É também violação do preceito em foco a remoção de
marcos para aumentar a extensão da área de uma propriedade
(Dt 19.14; 27.17; Pv 22.28).
LEGISLAÇÃO MOSAICA SOBRE 0 FURTO
A legislação mosaica traz mais adiante o modus operandi,
a instrução para que as autoridades de Israel possam julgar os
casos pertinentes ao sétimo mandamento (Êx 22.1-15). O tema
é de caráter jurídico a ser administrado peloEstado e não neces
sariamente pela Igreja.
O primeiro preceito desta seção dispõe sobre a pena apli
cada ao ladrão (Êx 22.1-4). O v. 3b seria a seqüência lógica do
v. 1, ficando assim: "Se alguém furtar boi ou ovelha e o degolar
ou vender, por um boi pagará cinco bois; e pela ovelha, quatro
ovelhas.... O ladrão fará restituição total; e se não tiver com que
pagar, será vendido por seu furto". Teria sido da lavra de Moisés
ou de editores posteriores, igualmente inspirados, o deslocamento
dessa cláusula? No segundo caso, qual teria sido o propósito des
sa mudança? Há muitas explicações que não são dadas aqui por
absoluta falta de espaço, mas merece destaque a interpretação de
Cassuto, segundo o qual os vv. 2 e 3a devem ser o tópico central
porque o foco é a vida humana, (apud DOZEMAN, 2009, p. 539).
A pena para quem violasse o oitavo mandamento não era a
morte, exceto no caso de rapto de pessoas para serem vendidas
como escravos. A pena era a restituição de cinco para cada boi e
de quatro para cada ovelha (Êx 22.1), mas, se o animal estivesse
ainda vivo, a restituição seria o dobro (Êx 22.4) ou 20% se o ladrão
confessasse voluntariamente o furto (Lv 6.4, 5). Essa restituição
não era uma simples multa pecuniária, mas o resgate pela vida
do ladrão, porque a invasão da propriedade da vítima para roubar
era um crime de violência que devia ser punido com a morte.
Aqui está uma diferença significativa entre os demais códigos
antigos, como o de Hamurabi e o Hitita. No entanto, se o ladrão
capturado não tivesse como restituir o roubo, como mandava a
lei, seria vendido como escravo (Êx 22.3b). É preciso lembrar que
a lei do escravo para os hebreus era diferenciada em Israel. O
escravo israelita nesse caso seguia o padrão mosaico (Êx 21.2).
A lei dispõe ainda sobre o ladrão arrombador, caso fosse
morto dentro de casa pelo seu proprietário. Se o ato acontecesse
durante a noite, o dono da casa que matou o ladrão não seria
culpado de sangue, mas, se o caso ocorreu de dia, o dono seria
culpado de sangue pela morte do ladrão (vv. 2, 3b).
Há certo paralelismo entre o sistema mosaico e o Código de
Hamurabi, com diferenças e semelhanças além do aspecto espi
ritual que faz da lei de Moisés um código sui generis. O seqüestro
e o furto de qualquer objeto do templo dos deuses ou do palácio
real eram crimes punidos com a pena capital (§ 6, 14), mas, se o
objeto do furto fosse animal ou barco, a pena poderia ser pecuni
I 1 1 6 I OS DEZ M ANDAMENTOS - VALORES DIVINOS PARA U M A SOCIEDADE EM CONSTANTE MUDANÇA
NÃO FURTARÁS I 1 1 7
ária, equivalente a 30 vezes o valor do furto, e, se a vítima fosse
um cidadão comum, a pena seria reduzida para dez vezes. Se o
ladrão não tivesse com que pagar, seria morto (§ 8). A legislação
mesopotâmica aqui é mais dura quanto à pena pecuniária e mais
dura se o ladrão não tivesse como pagar a multa.
O segundo e o terceiro preceitos dizem respeito à negligên
cia (Êx 22.5, 6). A pena aqui é diferenciada. No primeiro caso, o
responsável pelo estrago na safra do campo e da vinha da vítima
teria de retribuir os prejuízos com o melhor do seu próprio campo.
No segundo caso, o culpado pelo incêndio teria de fazer a resti
tuição com o pagamento total dos danos causados pela queima.
O sistema mosaico revela nesse oitavo mandamento o cuida
do individual de evitar danos e prejuízos alheios. Esses princípios
estão presentes em todas as civilizações antigas e permanecem
ainda hoje em todas as nações. O contexto histórico social é outro,
mas o princípio é o mesmo. Não há bois nem ovelhas nas cidades,
mas há cães e gatos nas residências, e nem sempre seus donos
se dão conta dos incômodos que causam aos vizinhos, ruídos e
também dejetos em terrenos alheios, às vezes, nas próprias ruas.
A intenção do Espírito Santo aqui é nos ensinar a amar e respeitar
ao próximo e a não lhes causar nenhum prejuízo. A lei fala sobre
animais, porém no contexto atual muitas outras coisas podem
ser adicionadas, por exemplo, acidentes de carros, problemas
em construção de casa, barulhos etc. Aí está, mais uma vez, a
grandeza e a importância da lei dada a Israel no concerto do Sinai,
que serve como inspiração e instrução para todos os povos e em
todas as épocas para o bem-estar de todas as pessoas.
A lei apresenta ainda na presente seção alguns preceitos adi
cionais sobre o ladrão (Êx 22.7-9). Aqui a lei trata de alguém que
tem objeto roubado sob a sua guarda. Se o ladrão for encontrado,
ele retribuirá o dobro (v. 7). Mas, se o autor do roubo não for en
118 I OS DEZ M A N D A M EN TO S-V A LO R ES DIVINOS PARA UM A SOCIEDADE EM CONSTANTE MUDANÇA
contrado, o responsável pela custódia terá de provar que o objeto
não foi de fato roubado, confirmando assim sua inocência (v. 8).
Isso é para ser feito num julgamento, razão pela qual o assunto é
levado perante os juizes (v. 9). A lei constituiu juizes para julgar
os réus como também deliberar sobre os litígios.
O termo juizes , em hebraico aqui ’el-hã-’êlohim,116 significa
literalmente "diante de Deus", embora o termo plural, 'èlohim,
de forma isolada, signifique também "deuses". O termo aparece
duas vezes na presente seção (vv. 8, 9). A tradução literal se
ria "perante Deus" como aparece na Septuaginta e na Vulgata
Latina. Este uso é padrão para o verdadeiro Deus no Antigo
Testamento e não deve ser traduzido como "deuses" por causa
do artigo. O emprego de "juizes" aqui é legítimo e ninguém ques
tiona essa tradução. As versões rabínicas empregam "perante a
corte . A passagem paralela em Deuteronômio lança luz sobre
o assunto, pois aparece liphnê hã-kohãnim we-ha-shshophe-
tim,ul "diante dos sacerdotes e dos juizes" (Dt 19.17). O termo
shophetim, plural de shophet, significa "juiz, árbitro, conselhei
ro jurídico; governante" (Dt 19.17). Os juizes representavam o
Deus de Israel nos julgamentos, pois a sentença judicial vinha
investida de legitimidade divina.
A presente seção dispõe também sobre a apropriação indé
bita (Êx 22.10-13). O preceito aqui é a continuação do anterior,
é que lá trata de "prata ou objetos" (v. 7), em hebraico é kesseph
’ô-kêlim.118 Kesseph se usa para "prata", mas ainda hoje significa
também dinheiro" em Israel; kêlim, plural de keli, significa "objeto,
artigo, utensílio, vaso", que as nossas versões traduzem também
por "roupa, traje, veste" em Deuteronômio 22.5. Mas os versículos
10-13 tratam agora de animais sob a custódia de alguém. Se o
l l 7 n ’ p ç i ! s ' n i D ^ n s n ' : s S . " s d ^ - í n « ] d s .
animal fugir, morrer ou for dilacerado sem que haja testemunha
disso, o responsável pela guarda fará um juramento perante Deus
de que não subtraiu os animais em questão e seu dono deve
aceitar esse juramento. Isso significa que ele não tem direito à
restituição. Se o animal for furtado, o que tinha a custódia fará
restituição ao dono, e, se for dilacerado, não haverá restituição,
mas o dono precisa ver essa dilaceração.
A seção se encerra com instruções sobre empréstimo, aluguel
e arrendamento: "Se um homem pedir emprestado ao seu pró
ximo, e aquilo que for emprestado vier a danificar-se ou morrer
em ausência do dono, certamente fará ele restituição. Se o dono
estiver presente, o outro não fará restituição; se a coisa for alu
gada, o preço do seu aluguel já respondeu por ela" (w . 14, 15).
Se a coisa emprestada for danificada ou o animal arrendado for
morto, estando o dono presente não haverá restituição, mas, se
ele estiver ausente, o que tomou o objeto emprestado ou o que
arrendou o animal terá de restituí-lo.
Diante do exposto, fica evidente que o oitavo mandamento é
uma proibição que envolve toda a forma de apropriação indébita:
o furto, o roubo, o tráfico de seres humanos e a recepção de qual
quer coisa roubada, as transações fraudulentas e os pesos e as
medidas falsos, a remoção de marcos de propriedade, a injustiçae a infidelidade em contratos entre os homens ou em questões
de confiabilidade, patrão e empregado e vice-versa, a opressão,
a extorsão, a usura e o suborno.
NÃO FURTARÁS I 1 1 9 I
V
10 \
FALSO TESTEMUNHO
ceiro, visto que am bos enfocam o falar a verdade.
A proibição primária aqui diz respeito a uma decla
ração falsa num processo legal. Isso pode ser visto
tanto na linguagem e de maneira mais enfática em
alguns dispositivos legais do sistema mosaico, como
veremos no presente estudo. A construção "Não dirás
falso testemunho contra o teu próximo" é exatamente
a mesma nos textos de Êxodo e Deuteronômio (ê x
20.16; Dt 5.20); no entanto, essas palavras no texto
hebraico apresentam diferença, mas nada que mude o
sentido da mensagem que o mandamento transmite.
O nono mandamento tem conexão com o ter-
J
Em linhas gerais, temos aqui a defesa da honra. Falar a verda
de é para todos os povos e em todas as épocas. Mas, no sistema
mosaico, o mandamento se distingue por ser revelação e por isso
mesmo se reveste de autoridade divina. O mandamento é citado
no Novo Testamento e foi resgatado pela graça e adaptado à graça.
A fé cristã leva o tema para além dos tribunais, pois pertence à
esfera espiritual, envolvendo a salvação, ao passo que na lei o seu
aspecto é mais jurídico visando manter o equilíbrio na sociedade.
O mandamento não se restringe apenas aos tribunais. O con
texto mostra que ele se refere também às palavras que usamos.
Trata-se da responsabilidade pessoal de cada um falar a verdade.
Disse John Stott:
Este mandamento não é somente válido nas cortes de
justiça. Se bem que inclui o perjúrio, também estão implí
citas todas as formas de escândalo e maledicência, toda a
conversação ociosa e charlatanice, todas as mentiras e os
exageros deliberados e as meias verdades que distorcem
a verdade. Estamos proferindo falso testemunho quando
aceitamos certos rumores maliciosos e logo os transmiti
mos, ou quando os usamos para outra pessoa para a preju
dicar criando impressões falsas, ou quando não corrigimos
afirmações falsas, tanto por nosso silêncio como por nosso
discurso (B a s ic C h r is t ia n ity , p. 69; apud NYENHUIS, Gerald
& ECKMAN, James P., 2002, p. 448).
O mandamento condena pelo menos quatro aspectos na vida
humana: o falso testemunho no tribunal, a calúnia pessoal, o falar
da vida alheia e a bajulação. Israel era um estado teocrático e, por
não haver separação entre estado e religião, a ordem "Não dirás
falso testemunho contra o teu próximo" envolvia todo o aspecto
da vida do israelita. Trata-se da necessidade de cada um falar a
I 1 2 2 I OS DEZ M ANDAMENTOS - VALORES DIVINOS PARA U M A SOCIEDADE EM CONSTANTE MUDANÇA
NÃO DARÁS FALSO TESTEMUNHO I 1 2 3
verdade (Lv 19.11), pois o Senhor Jesus disse que o diabo é o pai
da mentira (Jo 8.44).
0 ASPECTO EXEGÉTICO
O verbo "dizer" em "Não dirás falso testemunho contra o teu
próximo" (Êx 20.16; Dt 5.20) no Antigo Testamento hebraico é
‘ãnãh,n9 "responder, testemunhar, falar", usado também em um
processo jurídico, tanto nos tribunais humanos (Dt 19.16) como
no tribunal divino (Is 3.9; 59.12; Jr 14.7). O termo hebraico ‘êd
shãqer,120 "falso testemunho, falsa acusação", reaparece na lite
ratura sapiencial (S127.12; Pv 6.19; 14.5; 19.5,9; 25.18). A palavra
‘êd, "declaração, testemunho", indica "alguém com conhecimento
de primeira mão acerca de um acontecimento ou que pode teste
munhar com base num relato que ouviu" (HARRIS; ARCHER, JR.;
WALTKE, 1998, p. 1083). Tal pessoa está obrigada a testemunhar
(Lv 5.1). E sheqer, "mentira, falsidade, engano", diz respeito a
qualquer atividade falsa, tudo aquilo que não se baseia em fatos
ou realidades. Aqui é a testemunha na qual não se pode confiar.
Entretanto, no texto paralelo em Deuteronômio, sheqer é subs
tituído pelo substantivo hebraico shãw‘,m que significa "fraude,
engano, inutilidade, inútil, imprestável, falsidade, desonestidade,
futilidade, vacuidade" (Dt 5.20). É o mesmo termo empregado
no terceiro mandamento para "vão" em "Não tomarás o nome
do SENHOR, teu Deus, em vão, porque o SENHOR não terá por
inocente ao que tomar o seu nome em vão" (Êx 20.7; Dt 5.11). Na
verdade, há uma relação entre estes dois mandamentos, como
exploramos no Capítulo 4. Muitos expositores do Antigo Testa
mento não consideram isso uma diferença, mas uma forma de
119 rua. 120 -ij?o -w. 121 XI®.
ampliar o sentido do mandamento, podendo aplicar-se tanto no
campo jurídico como nos vários aspectos da vida diária. Sheqer é
um termo específico, e shãw ‘ é genérico. As versões antigas não
apresentam também essa diferença. A LXX empregapseudomar-
tyrêseis,122 "falso testemunho", nas duas versões do Decálogo.
Isso acontece ainda em outras versões antigas como a Vulgata
Latina, que traduz essas palavras por falsum testimonium, além
do Pentateuco Samaritano e o Targum de Ônquelos.
É no nono mandamento em que o termo "próximo" aparece
pela primeira vez no texto hebraico do Decálogo como berèã ‘chã,123
"contra teu próximo". A palavra rêa‘,[24 "amigo, companheiro,
outra pessoa", é usada para designar "vizinho, parceiro". O ami
go pode ser íntimo ou ocasional. O termo ocorre mais três vezes
no décimo mandamento: "... a casa do teu próximo; ... a mulher
do teu próximo,... nem coisa alguma do teu próximo" (Êx 20.17;
Dt 5.21)125 e faz parte do vocabulário jurídico (Êx 21.14, 35; 22.7-
10; Dt 15.2; 19.4, 5). É a mesma palavra de "Amarás o teu próximo
como a ti mesmo" (Lv 19.18) citada pelo Senhor Jesus (Mt 19.19).
A LXX traduz pela palavra grega plêsíon,126 "perto, próximo" ou
"perto de, próximo de", que no Novo Testamento grego aparece
como preposição na passagem da mulher samaritana, quando o
texto diz que Sicar era perto da herdade que Jacó tinha dado a José
(Jo 4.5). Como advérbio substantivado, ocorre 12 vezes em relação
aos mandamentos do Decálogo (Mt 5.43; 19.19; 22.39; Mc 12.31,
33; Lc 10.27,29,36; Rm 13.9, 10; G1 5.14; Tg 2.8).
A expressão "teu próximo" era conhecida por qualquer ju
deu familiarizado com as Escrituras no período do ministério
122’P 6 u ô o | i a p T O p i í o ê i ; . 123 ^ i n a . 124 j n .
125 Em Deuteronômio, o mandamento começa em não cobiçar "a mulher do teu pró
ximo" (Dt 5.21), ao passo que em Êxodo se inicia com "Não cobiçarás a casa do teu
próximo" (êx 20.17).
l26IIA.r|oíov.
I 1 2 4 I 0 5 DEZ M A N D A M EN TO S-V A LO R ES DIVINOS PARA U M A SOCIEDADE EM CONSTANTE M UDANÇA
terreno do Senhor Jesus, mas parece que havia incerteza quanto
a seu exato significado: "E quem é o meu próximo?"(Lc 10.29),
perguntou um doutor da lei a Jesus. O contexto dos evangelhos
deixa claro que os judeus daquela época consideravam como
seus "próximos" apenas os amigos da mesma etnia, tribo e classe
com quem matinha uma relação mútua de afinidade e intimidade.
Mas não é esse o pensamento do Antigo Testamento, que inclui
também os estrangeiros além dos israelitas (Êx 3.22; Lv 19.34).
O segundo e grande mandamento, "Amarás o teu próximo como
a ti mesmo", é a palavra final sobre o assunto. O próximo é qual
quer pessoa, independentemente de sua etnia, status, confissão
religiosa ou convicção política e filosófica.
0 ASPECTO JURÍDICO
O nono mandamento apresenta pelo menos três termos hebrai
cos do vocabulário jurídico: ‘ãnãh, sheqer e r ê a O mandamento
original aqui não é uma proibição geral contra a mentira, pois isso
é assunto do terceiro mandamento, mas condena aquela mentira
que prejudica o outro. Assim, o mandamento se dirige primaria
mente para resguardar o direito básico do cidadão israelita contra
a ameaça de falsa acusação. O sistema mosaico trata a questão
da falsa testemunha com a seriedade que o assunto exige. Moisés
instrui os juizes de Israel tanto na esfera criminal (Nm 35.9-34)
como também na esfera religiosa (Dt 17.2-7) e civil (Dt 19.14-21).
O capítulo 35 de Númerostraz as instruções acerca do
procedimento jurídico sobre os homicídios doloso e culposo. É
natural envolver testemunhas em processos dessa natureza. O
julgamento de homicídio resultava em morte do culpado, por
isso não podia haver erro. Era imperiosa a necessidade da im
parcialidade, por isso não podia ser apenas uma só testemunha
NÃO DARÁS FALSO TESTEMUNHO 1 1 2 5 1
para depor contra o réu: "Todo aquele que ferir a alguma pessoa,
conforme o dito das testemunhas, matarão o homicida; mas
uma só testemunha não testemunhará contra alguém para que
morra" (Nm 35.30). A palavra de um israelita contra a de outro
não poderia ser válida para se estabelecer um julgamento. O
processo religioso estabelece: "Por boca de duas ou três teste
munhas, será morto o que houver de morrer; por boca de uma
só testemunha, não morrerá" (Dt 17.6). Nem mesmo um pro
cesso civil que não envolvia pena capital deveria aceitar uma só
testemunha: "Uma só testemunha contra ninguém se levantará
por qualquer iniqüidade ou por qualquer pecado, seja qual for o
pecado que pecasse; pela boca de duas ou três testemunhas, se
estabelecerá o negócio" (Dt 19.15). Dessa maneira, esperava-se
um julgamento justo e transparente, mas nem sempre essas
testemunhas eram idôneas e honradas.
Uma falsa testemunha estaria cometendo o crime em nada
inferior ao crime objeto do julgamento, por isso a sentença deve
ria ser a mesma que se destinava ao acusado: "será condenado,
e o castigo dele será o mesmo que ele queria para o outro" (Dt
19.19). Se a acusação exigia a pena de morte, ela deveria ser
transferida do réu para a falsa testemunha: "vida por vida, olho
por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé" (Dt 19.21). É
a lexis talionis,™ a "lei de talião", estabelecida em Êxodo 21.23-25
e Levítico 24.17-20). O Código de Hamurabi condena também as
falsas testemunhas à morte (§ 9-13). Mesmo conhecendo o rigor
da lei, a história registra um número considerável de personagens
que não levaram em consideração o nono mandamento.
Mesmo com todos os esses recursos legais, muitos não le
varam em conta o amor à verdade e à honra e, ao arrepio da
I 1 2 6 ! OS DEZ MANDAMENTOS - VALORES DIVINOS PARA U M A SOCIEDADE EM CONSTANTE MUDANÇA
127 Talionis, forma flexionada da palavra latina, talis, "tal, qual, semelhante". É a pena
que consiste em aplicar ao agressor o mesmo dano que causou à vítima (Mt 5.38).
lei, cometeram barbaridades. As freqüentes queixas do salmista
mostram que era grande o número de pessoas que descumpriam
o nono mandamento (Sl 27.12; 35.11). Quem não conhece o relato
da vinha de Nabote? (1 Rs 21.1-16). Todo o protocolo da lei foi
cumprido, mas faltava gente honrada e temente a Deus nesse
julgamento orquestrado pela ímpia Jezabel, que levou Nabote à
morte e sua propriedade confiscada pelo rei Acabe. Os profetas
apresentaram diversas denúncias nesse sentido ao longo da
história do Antigo Testamento (Jr 7.9; Os 4.2).
O Senhor Jesus Cristo foi a principal vítima de falso testemu
nho. O sistema legal de Jerusalém foi arranjado por represen
tantes da lei cujo propósito era fazer o linchamento parecer um
julgamento justo conforme determina o sistema mosaico. Seus
acusadores eram as autoridades políticas e religiosas: "Os prín
cipes dos sacerdotes, e os anciãos, e todo o conselho buscavam
falso testemunho contra Jesus, para poderem dar-lhe a morte, e
não o achavam, apesar de se apresentarem muitas testemunhas
falsas" (Mt 26.59, 60). A passagem paralela de Marcos 14.55, 56
afirma que as acusações dessas falsas testemunhas da elite do
Sinédrio "não eram coerentes". Estêvão foi também vítima de
falsas testemunhas. Essas pessoas foram subornadas para falarem
mentiras contra um homem justo; a acusação era de blasfêmia
contra Deus, contra Moisés, contra o templo e contra a lei (At
6.11-14). Assim como o Senhor Jesus, Estêvão foi condenado à
morte (At 7.58-60). O apóstolo Paulo foi acusado, além das demais
acusações falsas de introduzir gentios no templo de Jerusalém
(At 21.27-33). Os romanos o prenderam para livrá-lo de um lin
chamento por parte dos judeus radicais, mas este episódio foi o
início do fim da carreira apostólica de Paulo.
O nono mandamento não somente defende a honra, mas
também a vida. A pena era a mesma destinada ao réu, caso
NÃO DARÁS FALSO TESTEMUNHO I 1 2 7 !
1 2 8 I OS DEZ M A N D A M EN TO S-V A LO R ES DIVINOS PARA U M A SOCIEDADE EM CONSTANTE MUDANÇA
sua culpa fosse real. Um falso testemunho pode resultar num
julgamento injusto e comprometer a idoneidade da corte. Não é
possível a vida numa sociedade corrompida em que o cidadão
de bem não se sente seguro diante de uma corte que não oferece
confiança e de um modus operandi em conluio com os corruptos
(Hc 1.4). O Código de Hamurabi prevê a pena de morte para esse
tipo de crime. O sistema mosaico coloca a testemunha falsa
sujeita à mesma pena que ela esperava ser aplicada ao acusado
(Dt 19.16-21). Mesmo assim, nunca faltou quem se apresentasse
como falsa testemunha.
0 ASPECTO DA VIDA DIÁRIA
O nono mandamento não se restringe apenas ao aspecto jurí
dico, ao perjúrio num tribunal civil ou criminal, mas se aplica tam
bém à vida diária, como o boato e o mexerico (Êx 23.1; Lv 19.16).
Estes envolvem a mentira e trazem implicações profundas na vida
humana. Deus condena tais práticas, e o ensino bíblico sobre o
assunto começa em Moisés e se estende até o Novo Testamento.
"Não admitirás falso rumor e não porás a tua mão com o
ímpio, para seres testemunha falsa" (Êx 23.1). A TB traz "Não
levantarás um boato falso"; a ARA e NTLH empregam "notícias
falsas". A expressão hebraica para "falso rumor" aqui é shêma ’
shãw ‘.12S O termo shêma ’, "informação, notícia, fama, boato", é um
substantivo derivado do verbo Vtpüi (shãma ‘), "ouvir, escutar, pres
tar atenção, obedecer". Essa informação, notícia ou fama pode
ser boa ou ruim e diz respeito ao que se ouve dizer (1 Rs 10.1),
diferentemente de um conhecimento pessoal, de uma experiência
direta: "Antes eu te conhecia só por ouvir falar, mas agora eu te
NÃO DARÁS FALSO TESTEMUNHO I 1 2 9
vejo com os meus próprios olhos" (Jó 42.5). E o termo s h ã w que
significa "fraude, engano, inutilidade, inútil, imprestável, falsidade,
desonestidade, futilidade, vacuidade", aparece no terceiro man
damento (Êx 20.7; Dt 5.11) e no nono mandamento na versão de
Deuteronômio (Dt 5.20). O falso boato é a propagação de uma
notícia infundada, não oficial e de fonte desconhecida. O contexto
mostra que divulgar informação enganosa é associação com o
ímpio para se tornar falsa testemunha: "E não porás a tua mão
com o ímpio, para seres testemunha falsa" (Êx 23.1b). Mesmo as
coisas triviais do dia a dia podem terminar na justiça, pois elas
destroem a reputação de qualquer pessoa.
"Não andarás como mexeriqueiro entre o teu povo; não te
porás contra o sangue do teu próximo. Eu sou o SENHOR" (Lv
19.16). A proibição consiste em dois preceitos paralelos que
expressam a mesma ideia. O termo hebraico usado aqui como
"mexeriqueiro" é rãkTl,129 "caluniador, difamador", e aparece
apenas seis vezes no Antigo Testamento, indicando alguém que
calunia e revela segredos (Pv 11.13; 20.19; Jr 6.28; 9.4 [3]; Ez
22.9). Com exceção de Ezequiel, em todas elas o substantivo vem
acompanhado do verbo hãlach,!30 "andar, caminhar"; isso indica
tratar-se de uma expressão idiomática para o ato de caluniar.
Os léxicos geralmente informam que rãkil é um termo obscuro.
A Septuaginta revela nele nuances que indicam desonestidade,
decepção, duplicidade e falsidade. Assim, o mexeriqueiro aqui é
muito mais que a simples fofoca ou fuxico. Isso se confirma na
segunda cláusula: "Não te porás contra o sangue do teu próximo.
O "sangue" diz respeito à vida: "Não atentarás contra a vida do
teu próximo" (ARA). A proibição nessa segunda parte significa
a responsabilidade pessoal denão colocar em perigo a vida do
>» ‘ron.
próximo com o falso testemunho a fim de declarar o inocente
como culpado.
O mexerico corriqueiro é também condenado pela Palavra de
Deus (2 Co 12.20). O cristão nunca deve falar mal de um irmão
na igreja (Tg 4.11). o nono mandamento proíbe toda forma de
mentira, tanto aquela que se diz deliberadamente na vida diária
como também sob juramento num tribunal. Tudo aquilo que se
fala com o propósito de prejudicar o bom nome de alguém é pe
cado e violação desse mandamento. O Senhor Jesus Cristo citou
este mandamento para o moço rico, juntamente com outros do
Decálogo (Mt 19.18; Mc 10.19; Lc 18.20). Da mesma maneira,
fez o apóstolo Paulo (Rm 13.9). Mas na graça este mandamento
aparece na esfera espiritual e não jurídica (Ef 4.25; Cl 3.9).
Pelo que deixai a mentira e falai a verdade cada um com o seu
próximo; porque somos membros uns dos outros" (Ef 4.25). O após
tolo Paulo mostra que engendrar pensamento falso, falar mentira,
propalar falsos rumores faz parte do estilo de vida do mundo pagão.
Os gentios convertidos à fé cristã tinham pela frente o desafio de
mudar o seu padrão de vida; precisavam agora viver como discípulos
de Cristo. Verdade é aquilo que corresponde aos fatos, em contraste
com qualquer coisa enganosa, a mentira (Dt 13.14; 17.4; is 43.9).
A mentira é o oposto à verdade; trata-se da prática do engano, da
falsidade e da traição. No contexto bíblico, a mentira vai além da
prática intelectual da desonestidade; é uma distorção do verdadeiro
eu e da nossa relação com Deus e com o próximo (1 Jo 2.4; 4.20).
A proibição aqui é a divulgação não oficial e de fonte desco
nhecida de informação ou notícia no meio do povo de Deus. A
lei que manda amar o próximo proíbe o discurso nocivo, ainda
mais quando o objetivo é destruir a vida ou a reputação do outro.
A pessoa confiável e de bem guarda segredo e não divulga o que
ouve para não prejudicar o próximo.
I 1 3 0 I OS DEZ MANDAMENTOS - VALORES DIVINOS PARA U M A SOCIEDADE EM CONSTANTE M UDANÇA
O Decálogo conclui com um mandamento que
proíbe o desejo ilícito, a cobiça sem sugestão alguma
de ato, pois diz respeito primariamente à motivação,
e não à ação concreta. A cobiça é um mal devastador
muito comum ainda hoje em nossa cultura ocidental
materialista. Trata-se de uma atitude de natureza in
terna que pode expressar-se em ato real. Toda ação
boa ou ruim começa no pensamento. Os outros m an
damentos proíbem atos; aqui, a proibição diz respeito
ao desejo, não ao desejo em si, mas ao desejo daquilo
que pertence a outro. Não é pecado desejar bens e
conforto, as coisas boas de que necessitamos na vida.
O décimo mandamento aborda a responsabilidade do
israelita sobre o pecado do pensamento. É um recurso divi
no que Deus proveu para habilitar o israelita a obedecer os
mandamentos anteriores. A cobiça é um dos piores pecados,
o pecado que não se vê. Essa é a sua característica distintiva
em relação aos outros, pois não é possível ser conhecido. Isso
mostra que o Legislador divino é onisciente, pois ele conhece
o mais íntimo do coração humano, nossos desejos e intenções
(1 Rs 8.39; 1 Cr 28.9; Jr 17.10; At 1.24). Deus se interessa não só
pelos corretos atos concretos, não apenas pelo cerimonialismo
na adoração, mas principalmente pela pureza de um coração
sincero. Isso mostra o lado espiritual do Decálogo; nem tudo
é apenas jurídico. A ideia central é não desejar aquilo que
pertence ao outro.
Já vimos que o Decálogo está estruturado em duas seções
identificadas com a primeira e a segunda tábuas, as tábuas
de pedra em que foram escritos os Dez Mandamentos, literal
mente as dez palavras. A primeira contém os compromissos
do israelita diante de Deus, e a segunda de sua responsabi
lidade para com o próximo. Os dois grandes mandamentos
citados por Jesus podem ser um resumo dessas duas tábuas.
Esses mandamentos estão dispostos numa seqüência lógica. O
quinto mandamento é uma ponte que une o conteúdo das duas
tábuas. Em seguida vem a proteção da vida: “Não matarás";
depois a proteção da família: "Não adulterarás"; a proteção da
propriedade: "Não furtarás"; a proteção da honra: "Não dirás
falso testemunho contra o teu próximo"; e o último protege o
israelita de ambições erradas.
I 1 3 2 I OS DEZ MANDAMENTOS - VALORES DIVINOS PARA U M A SOCIEDADE EM CONSTANTE M UDAN ÇA
NÃOCOBIÇARÁS I 1 3 3
EXEGESE DO DÉCIMO MANDAMENTO
O verbo hebraico hãmad,131 "desejar, ter prazer em, cobiçar,
ter concupiscência de", aparece 14 vezes no Antigo Testamen
to. O termo em si é neutro e se aplica também a coisas boas
(SI 19.10 [11]; 68.16 [17]). Essa palavra é repetida no décimo
mandamento no texto de Êxodo 20.17 e uma só vez no registro
do Decálogo, em Deuteronômio 5.21: "E não cobiçarás a mulher
do teu próximo". Na segunda cláusula, "e não desejarás a casa
do teu próximo", aparece outro verbo ’ãwãh,'32 "desejar arden
temente, ansiar, cobiçar, anelar". Ambos os verbos aparecem
como sinônimos no relato da tentação do Éden: "agradável
aos olhos... e desejável para dar entendimento" (Gn 3.6). A
Septuaginta traduz pelo verbo epithyméõ,133 literalmente "fixar
desejo sobre", da preposição epí,]34 "sobre", e do substantivo
thymós,135 "paixão, ira, furor".
Esse verbo grego aparece no Novo Testamento para se referir
ao décimo mandamento (Rm 7.7; 13.9) e também para expressar
desejo por tudo o que é proibido (Mt 5.28; 1 Co 10.6). O substantivo
derivado dele, epithymia, 136 é usado para "concupiscência" em 1
João 2.16: "Porque tudo o que há no mundo, a concupiscência da
carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida, não é do
Pai, mas do mundo". Concupiscência é desejo desordenado; trata-
-se do "forte e continuado desejo de fazer ou de ter o que Deus
não quer que façamos ou tenhamos" (KASCHEL & ZIMMER, 2006,
p. 45). Mas todos esses termos, hebraicos e gregos, são neutros,
podendo se referir a coisas boas ou a coisas más, dependendo
do contexto (Mt5.28; 13.17).
131 nan.
134 ’Éuí.
132 nix.
135 ©unóç.
133 'ETuOunéco.
136 ’Etri.9u|iía.
O formato textual do décimo mandamento de Êxodo 20.17 é
diferente do registro de DeuteronÔmio 5.21, mas não divergente:
I 1 3 4 I OS DEZ M ANDAMENTOS - VALORES DIVINOS PARA U M A SOCIEDADE EM CONSTANTE MUDANÇA
Os católicos romanos e os luteranos mantiveram a tradição
catequética medieval do Decálogo esboçada por Agostinho de
Hipona e que predominou durante a Idade Média. Os dois pri
meiros mandamentos são considerados um só, e o décimo é di
vidido em dois. "Não cobiçarás a casa do teu próximo" é o nono,
e Não cobiçarás a mulher do teu próximo" (Êx 20.17), o décimo.
Qualquer pessoa pode observar sem muito esforço que tal arranjo
e uma camisa de força, pois não corresponde à divisão natural
(Êx 20.1-17; Dt 5.7-21). Além disso, o Decálogo do catolicismo
romano não é bíblico, trata-se de uma interpretação com lentes
papistas. Nós seguimos o arranjo das igrejas ortodoxas e protes
tantes reformadas, que vem desde os antigos judeus (JOSEFO,
Antiguidades Judaicas, Livro 3, 4.113, edição CPAD).
O décimo mandamento aparece expandido em DeuteronÔmio
em relação ao texto de Êxodo e inclui o campo do próximo na
lista das coisas que não devem ser cobiçadas. Alguns críticos
estranham a inversão das cláusulas, pois a fraseologia de Êxodo
começa por não cobiçar a casa do próximo e em seguida vem a
"Não cobiçarás a casa
do teu próximo; não co
biçarás a mulher do teu
próximo, nem o seu ser
vo, nem a sua serva,
nem o seu boi, nem o
seu jumento, nem coisa
alguma do teu próximo"
(Êx 20.17).
"E não cobiçarás a
mulher do teu próximo; e
não desejarás a casa do
teu próximo, nem o seu
campo, nem o seu servo,
nem a sua serva, nem o
seu boi, nem o seu jumen
to, nem coisa alguma do
teu próximo" (Dt5.21).
NÃO COBIÇARÁS í 1 3 5
proibição de não cobiçar a mulher do próximo, mas emDeutero-
nômio essa ordem é invertida: primeiro vem a mulher e depois a
casa. Ambos textos, contudo, proíbem a cobiça de bens epessoas-,
além da mulher ou do esposo, pois a mulher pode também cobiçar
o marido alheio, o servo e a serva do próximo;propriedades-, casa
e campo; o termo "casa" aparece muitas vezes na Bíblia com o
sentido de "família" (Js 24.15; At 16.31), mas parece não ser essa
a ideia aqui; e semoventes: boi, jumento ou qualquer outra coisa.
A frase final "nem coisa alguma do teu próximo" inclui posição
social ou ascensão no trabalho.
Há discussão sobre a substituição de hãmad por ’ãwãh na segun
da cláusula do décimo mandamento (Dt 5.21). O verbo hãmad aqui
aparece com a esposa do próximo e ’ãwãh com as demais coisas.
Isso pode levar alguém a pensar em hãmad como um tipo sensual de
desejo, mas isso não procede por duas razões principais: a) é usado
para bens móveis e imóveis (Js 7.21; Mq 2.2); b) ambos os termos
aparecem como sinônimos (Gn 3.6; Pv 6.25; Sl 68.17). Parece que
'ãwãh diz respeito a um tipo de desejo casual. O formato textual de
Êxodo está adaptado ao estilo nômade de vida de Israel no deserto,
ao passo que Deuteronômio, quase 40 anos depois, é o modelo
para o povo prestes a ser estabelecido na terra de Canaã como país.
OS FATOS
Os relatos bíblicos estão repletos de cobiças destruidoras, a
começar pelo primeiro casal. "E vendo a mulher que aquela árvore
era boa para se comer, e agradável aos olhos, e árvore desejável
para dar entendimento, tomou do seu fruto, e comeu, e deu tam
bém a seu marido, e ele comeu com ela" (Gn 3.6). Aqui se expressa
exatamente o que afirma o Novo Testamento: "a concupiscência da
carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida" (1 Jo 2.16).
Os irmãos de José desejavam a posição dele no coração de seu
pai, Jacó (Gn 37.4). A cobiça causou a ruína de Acã: "Quando vi
entre os despojos uma boa capa babilônica, e duzentos siclos de
prata e, uma cunha de ouro do peso de cinqüenta siclos, cobicei-
-os e tomei-os; e eis que estão escondidos na terra, no meio da
minha tenda, e a prata, debaixo dela" Os 7.21). O verbo "cobiçar"
aqui é hãmad, o mesmo usado no Decálogo (Êx 20.17; Dt 5.21).
Acã cobiçou e se apropriou dos despojos de Jericó, objetos que
não lhes pertencia (Js 6.19).
O rei Acabe cobiçou vinha de Nabote e isso resultou num
escândalo nacional que levou à ruína a casa real (1 Rs 21.1-16).
Ele e sua esposa, Jezabel, violaram o sexto mandamento: "Não
matarás"; o oitavo: "Não furtarás"; o nono: "Não dirás falso teste
munho contra o teu próximo"; e o décimo: "Não cobiçarás". Dois
outros casos de cobiça aconteceram na casa de Davi: seu filho
Amnom violentou a própria irmã, Tamar, movido pela lascívia (2
Sm 13.15), e Absalão desejou ocupar o trono de seu pai enquanto
Davi ainda era vivo e reinava em Israel (2 Sm 15.16).
No Novo Testamento, encontramos Ananias e Safira, que
desejavam prestígio na Igreja, mas tentaram consegui-lo de ma
neira pecaminosa (At 5.1-11). Simão Mago, de Samaria, tentou
comprar os dons de Deus com dinheiro, pois almejava poderes
sobrenaturais para ostentação pessoal (At 8.18). Diótrefes, perso
nagem desconhecida, cuja única menção no Novo Testamento é
desabonadora, já que ele procurava ter o primado na Igreja (3 Jo 9).
0 DÉCIMO MANDAMENTO NO NOVO TESTAMENTO
O mandamento "Não cobiçarás..." se distingue dos outros
nove por se tratar da motivação, e não do ato. Assim, é possível
violar esse preceito sem que haja comprovação concreta. É o
I 1 3 6 I OS DEZ M A N D A M EN TO S-V A LO R ES DIVINOS PARA U M A SOCIEDADE EM CONSTANTE MUDANÇA
NÃO COBIÇARÁS I 1 3 7
décimo mandamento que golpeia a própria raiz do pecado, o
coração pecaminoso e o desejo perverso. O Senhor Jesus disse
que é do mais íntimo do ser humano que procede todo o tipo de
pecado: "Porque do interior do coração dos homens saem os maus
pensamentos, os adultérios, as prostituições, os homicídios, os
furtos, a avareza, as maldades, o engano, a dissolução, a inveja,
a blasfêmia, a soberba, a loucura. Todos estes males procedem de
dentro e contaminam o homem" (Mc 7.21 -23). A lista de Mateus é
mais curta (Mt 15.19). Essas palavras mostram a dura realidade: o
que o ser humano realmente é, isso afeta o que ele diz (Mt 12.34,
35). Toda ação humana começa no seu coração (Tg 1.14, 15).
O décimo mandamento era o recurso divino para o israelita se
proteger de não violar nenhum dos mandamentos do Decálogo.
Mas, na graça, somos guiados pelo Espírito Santo, o qual controla
os nossos desejos. Assim, o preceito aqui em foco foi adaptado
pela graça. Cabe a cada um vigiar e orar para não entrar pelo
caminho da cobiça. Jesus disse: "Acautelai-vos e guardai-vos da
avareza, porque a vida de qualquer não consiste na abundância do
que possui" (Lc 12.15). A avareza é o apego demasiado e sórdido
ao dinheiro, é o desejo de adquirir e acumular riquezas. Desse
modo, os bens materiais se transformam em deus para os tais
avarentos. A Bíblia afirma que a avareza é idolatria: "Mortificai,
pois, os vossos membros que estão sobre a terra: a prostituição,
a impureza, o apetite desordenado, a vil concupiscência e a ava
reza, que é idolatria" (Cl 3.5).
A avareza e a cobiça caminham juntas. Ambas são impróprias
para quem busca o reino de Deus (1 Tm 6.9, 10). Essas coisas
são próprias para quem teme o futuro, desconfia de Deus e da
sua providência. Não somente a avareza, mas também a inveja,
pertence a esse grupo de pecados. A inveja é o "sentimento de
pesar pelo bem e pela felicidade de outra pessoa, junto com o
desejo de ter isso para si" (KASCHEL & ZIMMER, 2006, p. 90).
Todas essas coisas envolvem a cobiça, e a Palavra de Deus afirma
com todas as letras que a cobiça é pecado (Rm 7.7).
A vontade de Deus expressa nesse último mandamento do
Decálogo é que haja pleno contentamento com aquilo que temos
e com a nossa condição: "Contentai-vos com o vosso soldo" (Lc
3.14), ensino de João Batista para os militares. "Mas é grande
ganho a piedade com contentamento" (1 Tm 6.6). Quem tem
Jesus não está obcecado pelas riquezas materiais, pois tem em
seu interior algo muito mais valioso que os tesouros do mundo.
A NTLH traduz esse versículo da seguinte forma: "É claro que
a religião é uma fonte de muita riqueza, mas só para a pessoa
que se contenta com o que tem”. A Bíblia nos exorta ainda:
"contentando-vos com o que tendes" (Hb 13.5). Há aqui certo
paralelo com Filipenses 4.11. Mas convém ressaltar que todas
essas exortações não são uma apologia à pobreza nem uma
defesa do status quo econômico; é uma recomendação para que
nossos desejos não vendam desagradar a Deus nem causar danos
I
ao nosso próximo (Rm 12.15).
A conduta do cristão deve ser a de se alegrar com que os se
alegram e chorar com os que choram (Rm 12.15). Ninguém deve
ser dominado pela inveja (G1 5.26; Tg 4.14-16) nem alimentar o
sentimento de tristeza pelo sucesso alheio (Ne2.10;Sl 112.9,10).
Glorifique a Deus pelas bênçãos e pelo sucesso do seu irmão, e
você será abençoado também, a seu tempo (Ec 3.1-8).
I 1 3 8 I OS DEZ MANDAMENTOS - VALORES DIVINOS PARA U M A SOCIEDADE EM CONSTANTE MUDANÇA
A IGREJA E A
O enfoque do presente capítulo é a compreensão
da lei de Moisés e a sua relação com o evangelho. Trata-
-se de um tema de grande complexidade. Disse Lutero:
"Quem sabe distinguir corretamente o evangelho da lei
deve agradecer a Deus e pode estar certo de que é um
teólogo". Os três principais reformadores do século 16
debateram o assunto. Depois dessa série de estudos
sobre o Decálogo e cada um dos seus preceitos, resta
responder a duas questões: se a moral cristã está fun
damentada nas dez palavras ou nos Dez Mandamentos
(como aparece em nossas versões da Bíblia) e qual a
sua relevância para a Igreja de Cristo na atualidade.
Já havia animosidades sobre o papel da lei de Moisés nos
dias apostólicos.Esses debates ajudam a elucidar a questão, mas
nem por isso a solucionaram definitivamente. Isso vem desde
os galacionistas que se opunham ao apóstolo Paulo e também,
em parte, desde os ebionitas, que defendiam a guarda da lei de
Moisés. Mas os discípulos desses legalistas ainda estão por aí.
A LEI DE DEUS
A lei de Deus e os Dez Mandamentos não são a mesma coisa.
Os Dez Mandamentos encabeçam os demais preceitos entre
gues por Deus a Moisés no monte Sinai desde Êxodo 19.16-19
até Levítico 26.46; 27.34. Esses preceitos são identificados com
frequência como estatutos, juízos, leis e mandamentos. Muitos
deles são repetidos nos livros de Números e DeuteronÔmio. Todo
esse sistema legal integra o Pentateuco, que aparece na Bíblia
como lei, livro da lei, lei de Moisés, lei de Deus, lei do Senhor.
É oportuno aqui esclarecer o que a Bíblia quer dizer quando usa
as palavras "lei de Deus". O termo aparece sete vezes nas Escrituras,
quatro no Antigo Testamento e três no Novo, e em nenhum lugar diz
respeito ao Decálogo. As quatro primeiras ocorrências se referem a
toda a lei de Moisés, ao Pentateuco, como livro: "Josué escreveu estas
palavras no livro da Lei de Deus" Os 24.26); "E leram o livro, na Lei de
Deus... ele lia o livro da Lei de Deus" (Ne 8.8,18); "e convieram num
anátema e num juramento, de que andariam na Lei de Deus, que foi
dada pelo ministério de Moisés, servo de Deus; e de que guardariam
e cumpririam todos os mandamentos do SENHOR, nosso Senhor, e
os seus juízos e os seus estatutos" (Ne 10.29). Assim, as expressões
"lei de Deus", "lei do Senhor" e "lei de Moisés" dizem respeito à mes
ma coisa (Ne 8.1, 8, 18; Lc 2.22, 23). Trata-se do Pentateuco no seu
todo, e não apenas do Decálogo, do livro, e não das tábuas de pedra.
I 1 4 0 I OS DEZ M A N D A M EN TO S-V A LO R ES DIVINOS PARA U M A SOCIEDADE EM CONSTANTE M UDANÇA
As outras três aparecem somente em Romanos, e nenhuma
delas diz respeito ao Decálogo: "Porque, segundo o homem inte
rior, tenho prazer na lei de Deus... Dou graças a Deus por Jesus
Cristo, nosso Senhor. Assim que eu mesmo, com o entendimento,
sirvo à lei de Deus, mas, com a carne, à lei do pecado" (Rm 7.22,
25). O termo "lei" aparece cerca de 70 vezes nesta epístola com
amplo significado, cuja explanação não cabe aqui. A "lei de Deus"
neste contexto contrasta a "lei do pecado", mostrando tratar-se
de um princípio. A outra ocorrência é no capítulo seguinte: "Por
quanto a inclinação da carne é inimizade contra Deus, pois não
é sujeita à lei de Deus, nem, em verdade, o pode ser" (Rm 8.7). O
homem carnal não tem lei nem se submete à vontade de Deus
que o apóstolo chama de "lei de Deus".
OS TRÊS TIPOS DE LEI
É comum ouvir falar de lei moral, lei cerimonial e lei civil. Os
preceitos morais estão resumidos nos Dez Mandamentos. São os
que tratam dos princípios básicos morais (alguns chegam a consi
derar erroneamente o sábado como preceito moral, ver Capítulo 5).
É única porção do Pentateuco escrita pelo dedo de Deus em duas
tábuas de pedra. A própria nação de Israel viu e ouviu Deus entre
gando essa parte da lei a Moisés. Essa é outra característica distintiva
do Decálogo. A lei cerimonial é a parte que trata das festividades
religiosas, do sistema de sacrifício e da adoração no santuário, dos
alimentos limpos e imundos e das instruções sobre a pureza ritual,
entre outros. A lei civil diz respeito à responsabilidade do israelita
como cidadão; são regulamentos jurídicos e instruções que regiam
a nação de Israel. Convém salientar o que já foi dito no Capítulo 1:
"Embora essa distinção tripartite seja antiga, seu uso como funda
mento para explicar a relação entre os testamentos não é demons-
A IGREJA E A LEI DE DEUS I 1 4 1 1
travelmente derivada do Novo Testamento e provavelmente não é
anterior a Tomás de Aquino" (CARSON, 2011, p. 179). Os preceitos
cerimoniais e civis derivam dos preceitos morais. Esses três tipos de
lei estão presentes no Pentateuco, entretanto, tudo é a lei de Moisés.
Há uma interpretação entre os cristãos de que a lei moral é
eterna, portanto, para a atualidade. A lei cerimonial se cumpriu
na vida e na obra de Jesus Cristo. A lei civil cumpriu sua função
até que Israel deixou de ser um estado teocrático, e a Igreja não
é um estado. Tudo isso são interpretações. É verdade que a lei
cerimonial se cumpriu em Jesus, pois todo o sistema e ritos do
tabernáculo apontavam para o Messias. Israel perdeu a condição
de estado teocrático (Mt 21.43), e os privilégios de Israel foram
transferidos para a Igreja (Êx 19.6, 7; 1 Pe2.9, 10). O Senhor Jesus
cumpriu todos os preceitos morais durante sua vida terrena. Em
nenhum lugar o Novo Testamento diz que a lei moral se resume
a amar a Deus e ao próximo, mas abrange toda a lei: "Desses dois
mandamentos dependem toda a lei e os profetas" (Mt 22.40). O
apóstolo Paulo afirma: "Porque quem ama aos outros cumpriu a
lei" (Rm 13.8). Em seguida, ele cita cinco mandamentos do Decá-
logo, mas não na seqüência canônica, e depois volta a enfatizar
que "o cumprimento da lei é o amor" (Rm 13.10).
OS REFORMADORES DO SÉCULO 16
Lutero entendia as ações de Deus em termos dialéticos e nisso
via contraste entre a lei e o evangelho. A lei é a expressão máxi
ma da vontade de Deus. Esse conceito é também defendido pelos
judeus, e Calvino segue a mesma linha de pensamento. Segundo
Lutero, a lei tem duas funções primárias. A primeira é coercitiva,
restringe o perverso e mantém a ordem na sociedade, essa é a lei
civil. A outra função da lei é teológica. A lei é santa e perfeita, foi
I 1 4 2 I OS DEZ M ANDAMENTOS - VALORES DIVINOS PARA U M A SOCIEDADE EM CONSTANTE M UDAN ÇA
dada para a vida, mas a distância entre sua santidade e a incapaci
dade humana de cumpri-la faz da lei uma palavra de julgamento. O
que era para a vida transformou-se em morte. A função teológica
exige do homem algo que lhe é impossível: cumprir a lei totalmen
te. Mas a lei permite ao homem conhecer o seu pecado, obter o
conhecimento de si mesmo com a ajuda do Espírito Santo e em
seguida obter o conhecimento de Deus. A lei não salva, mas é um
meio de nos levar a Cristo; só é conhecida a partir do evangelho,
e o evangelho se torna incompreensível sem ela.
Zuínglio classificava os preceitos da lei em morais, civis e ce
rimoniais. Os preceitos civis tratam de questões humanas particu
lares, os cerimoniais foram dados para o período antes de Cristo,
e os preceitos morais foram resumidos no Novo Testamento na
lei do amor. Para Zuínglio, a lei moral expressa a vontade eterna
de Deus e por essa razão não pode ser abolida. Os cristãos estão
sujeitos à lei do amor. Assim, a lei e o evangelho têm a mesma
essência, são praticamente os mesmos. Zuínglio discordava de
Lutero nesse ponto e também da ideia de que a função da lei era
ser uma palavra de julgamento de Deus sobre o ser humano,
mas dizia que ela estabelece a vontade e a natureza da Deidade.
Calvino trata o assunto no volume 2 de suas Institutas. A
redenção prometida em Cristo está presente na lei cerimonial.
O valor de todo o ritual do tabernáculo está na sua presença
messiânica; o sacrifício e todo o serviço sagrado dos sacerdotes
são aceitáveis diante de Deus porque tudo isso aponta para a
pessoa e a obra de Cristo. Todos esses preceitos cerimoniais já
se cumpriram. Calvino via um tríplice propósito na lei moral, a
saber: mostrar o pecado, restringir o perverso e revelar a vontade
de Deus. Na sua interpretação, Cristo aboliu a lei cerimonial. A
lei moral é a expressão da vontade de Deus; essa vontade jamais
pode ser mudada, de modo que a lei nunca pode ser abolida. Cristo
A IGREJA E A LEI DE DEUS \ 1 4 3 í
1 4 4 I OS DEZ MANDAMENTOS - VALORES DIVINOS PARA U M A SOCIEDADE EM CONSTANTE MUDANÇA
aboliu a maldição da lei, e não a sua validade. Assim, Calvino
considera a ideia de os cristãos não estarem sujeitosvai além de tudo isso, pois nela Deus esboça o plano da redenção
humana em Cristo. É o limiar da história do plano da salvação de
toda a humanidade. A obra se inicia com a origem dos céus e da
terra e vai até a morte do grande legislador dos hebreus.
A lei ocupa a primeira parte do Antigo Testamento por ser a
parte mais antiga das Escrituras Sagradas e devido a seu caráter
peculiar como fundamento de toda a literatura bíblica. Todos
os livros históricos, proféticos e poéticos do Antigo Testamento
apontam retrospectivamente para a lei de Moisés "como tipo de
fonte principal [que] assume a existência não meramente da lei
em si, senão de um livro da lei, com o caráter e forma precisos
dos cinco livros de Moisés" (KEIL & DELITZSCH, 2008). Aqui,
í 1 4 I OS DEZ M ANDAMENTOS - VALORES DIVINOS PARA U M A SOCIEDADE EM CONSTANTE M UDANÇA
OS DEZ MANDAM ENTOS I 1 5
história é também lei e profecia, com implicações teológicas e
significados espirituais profundos.
Deus manda Moisés ficar no monte para ali lhe dar as "tábuas
de pedra, e a lei, e os mandamentos que tenho escrito, para os
ensinares" (Êx 24.12). Uns acreditam que os termos "lei" e "manda
mentos" sejam sinônimos que indicam o conteúdo das tábuas de
pedra. Uma tradição rabínica interpreta que se trata do Decálogo e
de leis adicionais. Mas só os Dez Mandamentos foram escritos em
duas tábuas de pedra pelo próprio Deus (Dt 4.13; 5.22; 10.2-4). As
outras partes da lei foram ditadas por Deus e escritas por Moisés
(Êx 17.14; 24.4; 34.27; Dt 27.3, 8; 31.9). Aqui temos os primeiros
escritos da lei que envolvem os Dez Mandamentos e a instrução
sobre a construção do tabemáculo (Êx 31.18), bem como sua
execução até o final do livro, incluindo a interrupção dos capítulos
32-34, que relata o culto do bezerro e a restauração do povo. Mas,
a revelação prossegue até o livro de Levítico (Lv 27.34).
A lei é identificada na Bíblia Hebraica como sêpher ha-torãh,'
"o livro da lei" (Dt 31.16; Js 1.8); ou simplesmente ha-tôrãh,2 "a lei"
(Ne 8.2, 7,13). A palavra "Torá" significa basicamente, "instrução,
ensino, lei" e aparece no Antigo Testamento com o sentido mais
amplo de coleção ou sumário de instrução, código de lei (Êx 24.12;
Dt 1.5) ou regra particular (Êx 16.4). O termo se aplica também
a norma ou instrução meramente humana (2 Sm 7.19) e ainda
como instrução dada por humanos para a educação na literatura
sapiencial (Pv 1.8; 3.1; 6.20). Esse vocábulo é usado no plural:
"Estes são os estatutos, e os juízos, e as leis que deu o SENHOR
entre si e os filhos de Israel, no monte Sinai, pela mão de Moi
sés" (Lv 26.46). O plural, tôroth, "leis", aparece aqui em relação
à lei de Moisés. A lei é uma só; não existe mais que uma lei. O
1 rninn iso. 2 rninn.
plural aqui diz respeito às várias prescrições rituais: Esta é a lei
do holocausto (Lv 6.9 [2]);3 "E esta é a lei da oferta de manjares"
(Lv 6.14, [7]); "Esta é a lei da expiação do pecado" (Lv 6.25 [18]);
"E esta é a lei da expiação da culpa" (Lv 7.1). Veja ainda Lv 7.11;
11.46; 12.7; 13.59; 14.57; 15. 32; 18.4.
O termo torah vem do verbo (ÍTT - yrh) ou hôrãh,4 na sua
forma flexionada, que indica "instruir, demonstrar, ensinar" (Êx
24.12). Trata-se, portanto, da instrução de Javé para o seu povo
Israel, do guia para o bem-estar de toda nação. Ainda hoje a Torá
está adaptada para ensinar a Igreja e os povos. Ela é chamada de
"lei do SENHOR" ou de Javé (2 Cr 17.9; 34.14; Ne 9.3) e também
de "lei de Moisés" (Js 8.31; 2 Rs 14.6; Ne 8.1), pois foi o grande
legislador dos hebreus quem promulgou a lei como mediador
entre Deus e o povo.
Segundo Keil & Delitzsch, a divisão da lei em cinco partes,
Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio, não foi obra
de algum editor realizada posteriormente, mas está fundamen
tada no plano completo do Pentateuco que deve ser considerado
original. O waw conjuntivo, ou seja, a conjunção "e" em we’êleh
shemôth,5 "e estes são os nomes" (Êx 1.1), e em wayyiqrã’,6 "e
chamou" (Lv 1.1), une esses livros um ao outro, formando uma
unidade literária. Os três primeiros livros mantêm a seqüência
histórica linear. A revelação do Sinai termina em Levítico 27.34.
Os relatos do livro de Gênesis são de natureza teológica e profé
tica, e sua história é considerada "Torá", instrução.
A estrutura essencialmente legal se concentra entre Êxodo
20 e Levítico 27, que Moisés sumariou da seguinte forma: "Estes
são os mandamentos que o SENHOR ordenou a Moisés, para os
I 1 6 I OS DEZ M ANDAMENTOS - VALORES DIVINOS PARA U M A SOCIEDADE EM CONSTANTE M UDANÇA
3 O número entre colchetes [ ] indica o versículo na Bíblia Hebraica.
4 rnin. 5 nino nWi. 6
OS DEZ MANDAMENTOS I 1 7
filhos de Israel, no monte Sinai" (Lv 27.34). O livro de Números é
o registro das jornadas no deserto, e Deuteronômio é o discurso
de recapitulação sobre os quarenta anos de peregrinação no
deserto que Moisés apresentou quando estava na fronteira da
Terra Prometida. R. K. Harrison afirma que o termo "Torá" passou
a designar todo o Pentateuco posteriormente ao exílio.
Pentateuco é o termo alternativo empregado para identificar
a Torá como os cinco livros de Moisés. O termo vem de duas
palavras gregas: pente,7 "cinco", e teuchos,s de significado amplo,
como "vasilha, recipiente, urna para voto, livro". A ideia original
era de instrumento, e com o tempo veio a ser usado para desig
nar o estojo de levar rolos de papiros. Acredita-se que os judeus
helenistas de Alexandria, no primeiro século d.C. empregavam
o termo pentáteuchos, 9 que corresponde a expressão talmúdica
chãmishãh chumeshêy-torãh,w "os cinco quintos da lei". O vocá
bulo "Pentateuco" aparece em Tertuliano (Contra Marcião, Livro
1, 10.7) e em Orígenes, em seu comentário sobre o evangelho de
João, mas logo depois disso se tornou usual entre os cristãos para
designar os escritos de Moisés.
0 DECÁLOGO
O Decálogo é identificado no Antigo Testamento pela expres
são hebraica ‘ãsseret haddevãrim,11 literalmente "as dez palavras".
O termo só aparece três vezes na Bíblia, no Pentateuco (Êx 34.28;
Dt 4.13; 10.4), traduzido por "dez mandamentos" em nossas
versões, exceto na ARA (Êx 34.28). É identificado também como
"estas palavras" que Javé falou (Êx 20.1; 34.27; Dt 5.22) ou ainda
r néme. 8 Tfcüxoç. 9 neviáxtuxoç.
10 r n l r r t í n n nston. ‘•□■nrnn rn toJ.
"as palavras do concerto" (Êx 34.28). Estas dez palavras estão
esboçadas em somente dois lugares na Bíblia, no Pentateuco (Êx
20.1-17; Dt 5.6-21). Há 17 variações no texto de Deuteronômio
em relação ao Decálogo do livro de Êxodo, mas isso não altera o
sentido da mensagem. Muitas delas serão explicadas no estudo
específico de cada um desses mandamentos.
A Septuaginta optou por traduzir dekalogos,12 “decálogo", a
partir de dois termos gregos: deka,13 "dez", e logos,14 "palavra".
O termo nunca é citado no Novo Testamento em sua totalidade
e os mandamentos não aparecem de acordo com a seqüência
canônica (Mt 19.18, 19; Mc 10.19; Lc 18.20; Rm 13.9). O Novo
Testamento, às vezes, se refere a ele como "mandamentos" (Mt
19.17; Ef 6.2). Após a Septuaginta, o termo "decálogo" só aparece
no período da patrística, na Epístola a Flora, de um autor gnóstico
chamado Ptolomeu, que viveu na segunda metade do séc. II., e
depois em Irineu de Lião, na forma latina (Contra as Heresias,
Livro IV. 15.1; 16.4), e também em Clemente de Alexandria (em
sua obra Pedagogos III. 12). Depois disso, o termo se popularizou
entre os cristãos.
O Decálogo é a única parte do Pentateuco escrita "pelo dedo
de Deus" (êx 31.18), linguagem figurada que, segundo Agostinho
de Hipona, indica "pelo Espírito de Deus" e, de acordo com Cle
mente de Alexandria, "pelo poder de Deus". É também a única
porção da lei que Israel ouviu partir da voz do próprio Deus no
monte quando ele transmitia essas dez palavras (Êx 19.24, 25;
20.18-20). Os demais preceitos foram transmitidos por Javéà lei como
doutrina antinomianista. O Senhor Jesus tornou explícito o que
estava implícito no discurso do Sermão do Monte, e isso significa
que a lei de Cristo não é outra senão a lei de Moisés. Assim como
Cristo é o centro do Antigo Testamento e o Novo é a consumação
desse fato, há entre ambos testamentos uma sólida continuidade.
Trata-se de um relacionamento de promessa e cumprimento.
AVALIAÇÃO BÍBLICA
Parece que a ideia de lei moral, lei cerimonial e lei civil é usada
como permissão para que cada um interprete o termo "lei" conforme
seu entendimento e conveniência. Uns afirmam que a abolição foi
da lei cerimonial e civil, mas que a lei moral é eterna e nunca pode
ser abolida. Convém ressaltar que a visão tripartida da lei não deriva
do Novo Testamento. É verdade que existem preceitos de caráter
moral que são para todos os povos e em todas as épocas, e que
outros são para um povo e uma época. Mas em nenhum lugar do
Novo Testamento no qual aparece o termo "lei" afirma-se que essa
lei é moral, cerimonial ou civil. O que significa quando o Senhor
Jesus declara que não veio destruir a lei, mas a cumprir? Ou quando
o apóstolo Paulo afirma que não estamos debaixo da lei, mas da
graça? Ou ainda quando diz que a lei foi abolida por Cristo?
Jesus disse que veio cumprir a lei: "Não cuideis que vim des
truir a lei ou os profetas; não vim ab-rogar, mas cumprir. Porque
em verdade vos digo que, até que o céu e a terra passem, nem
um jota ou um til se omitirá da lei sem que tudo seja cumprido"
(Mt 5.17, 18). Ainda há muitos expositores do Novo Testamento
que tropeçam nessa passagem. A ideia aqui não é confirmar ou
estabelecer a lei ou os profetas por meio da vida e do ensino de
Jesus. O verbo grego para "destruir" é katalyo,m "destruir, revogar,
invalidar". A antítese é "destruir" e "cumprir". O Senhor Jesus não
fala em "observar ou guardar", mas em cumprir a lei ou os profetas.
O verbo grego usado aqui para "cumprir" é plêroõ , 138 que significa
"encher, preencher, completar", cuja ideia original é espacial (Mt
13.48; At 2.2). Esse verbo aparece 87 vezes no Novo Testamento
como "finalizar, terminar, tomar algo completo, pleno” e nunca
como "estabelecer" ou "confirmar". O Léxico Grego-Português do
Novo Testamento de Louw & Nida traduz esse verbo em Mateus 5.17
como "dar o sentido completo": "Não vim para destruir, mas para
dar o seu sentido completo" (2013, p. 362 [33.144]). Se o sentido
de plêroõ aqui for de "completar", então Jesus está afirmando ser
a plenitude da revelação. De fato, a revelação divina se consumou
nele (Hb 1.1,2). Mas a interpretação mais aceita é de que se trata
do cumprimento das profecias do Antigo Testamento na vida e no
ministério do Senhor Jesus (Mt 1.22; 2.17,19; 4.14; Lc 4,21; Jo 19.36).
A ideia cristológica não se restringe a esses vaticínios e ocupa
todo o pensamento das Escrituras hebraicas. A provisão do Antigo
Testamento sobre a obra redentora de Deus em Cristo é muito rica
de detalhes. Os escritores do Novo Testamento reconhecem a pre
sença e a obra de Cristo na história da redenção (Os 11.1; Mt 2.15) e
nas suas instituiçõese festas (Êx25.8; Jo l.l4;Hb5.4,5;Êx 12.3-13;
Lc 22.15; 1 Co 5.7). A lei e os profetas convergem para Jesus; ele é o
cumprimento das Escrituras do Antigo Testamento (Lc 24.26,27,44).
A expressão "a lei e os profetas" aparece com frequência no Novo
Testamento para designar as Escrituras do Antigo Testamento (Mt
7.12; 22.40; At 13.15; Rm 13.21) ou fraseologia similar (Mt 11.13; Jo
1.45; At 28.23). Mas a presença do "ou" disjuntivo aqui mostra duas
partes distintivas, em que nem uma e nem outra é para ser abolida (Jo
A IGREJA E A LEI DE DEUS I 1 4 5 I
137 K a x a X ú u . 138 ITXripóu.
10.35). Aqui não se trata apenas dos preceitos morais, e o Decálogo
nem sequer é mencionado no Novo Testamento como tal. Jesus fala
ainda a respeito da existência de mandamentos menores: "Qualquer,
pois, que violar um destes menores mandamentos" (Mt 5.19). Isso
por si só invalida a interpretação de que a lei é uma referência aos
preceitos morais. Existem mandamentos menores entre os preceitos
morais? A resposta é não. Jesus, portanto, está se referindo a todo
o sistema mosaico e às demais Escrituras do Antigo Testamento.
O jota se refere ao yõd ( ’ ),a menor letra do alfabeto hebraico;
ocupa a metade da linha na escrita. O til, keraia,139 em grego, "tra-
cinho, parte de uma letra, acento" (Lc 16.17), é um sinal diacrítico
para distinguir uma letra da outra, por exemplo D/n; ~l/7; PI/D.
A autoridade da lei permanece mantida até no "menor traço." E
o termo "lei" no Novo Testamento, às vezes, se estende a todo o
Antigo Testamento (Jo 10.34; Rm 3.19; 1 Co 14.21). Parece que
o Senhor Jesus se refere aqui às Escrituras, de qualquer forma,
seja a lei ou todo o Antigo Testamento, o certo é que não se trata
apenas da lei moral. Sua validade se estenderá até o fim das eras.
Isso significa até "que tudo seja cumprido". O verbo grego usado
aqui para "cumprir" não é o mesmo do versículo 17, mas gínomai,
"ser, tornar, vir a ser, acontecer", eõs panta genêtai,140 "até que
todas essas coisas aconteçam" (Mt 5.18b). Logo, não se trata aqui
de obediência aos mandamentos; essas palavras não significam
obedecer à lei. A ideia é até que todas essas coisas aconteçam. A
lei aqui, portanto, não se refere à Torá nem aos mandamentos,
mas a todo o Antigo Testamento, que é a base do Novo, e seus
ensinos perduram enquanto existirem os céus e a terra.
Voltando ao "menor dos mandamentos", ele é muito impor
tante porque é parte da lei de Deus. O discípulo que declarar in
I 1 4 6 I OS DEZ M ANDAMENTOS - VALORES DIVINOS PARA U M A SOCIEDADE EM CONSTANTE M UDAN ÇA
139 Kepaía. l40"Ecoç â v irávta yivr\z(NTLH), apesar de ser ela santa "e o
mandamento santo, justo e bom" (Rm 7.12). Contudo, a lei não podia
ajudar o israelita a praticar a justiça. Stanley M. Horton a compara a
um termômetro que pode medir a temperatura mas não gera nem
calor nem frio. A lei mensura a justiça e a injustiça, mas não ajuda a
tomar alguém justo ou injusto. O problema está no pecado humano.
O código escrito é externo, a obediência a ele pode ser artificial,
mas a obra do Espírito é interna, transforma o coração humano e
provoca no cristão o desejo de fazer a vontade de Deus. Assim, ex
plica o apóstolo, esse ministério era transitório. Por isso o apóstolo
fala dessa antítese: "a letra mata, e o Espírito vivifica" (2 Co 3.6). A
lei veio em glória; mas, sendo ela transitória, "como não será de
maior glória o ministério do Espírito?" (2 Co 3.8). Isso mostra que os
mandamentos ensinados por Jesus no Novo Testamento superam
com larga vantagem os preceitos do Decálogo e de todo o Antigo
Testamento (2 Co 3.8, 9).
"Porque o pecado não terá domínio sobre vós, pois não estais
debaixo da lei, mas debaixo da graça. Pois quê? Pecaremos porque
não estamos debaixo da lei, mas debaixo da graça? De modo ne
nhum!" (Rm 6.14, 15). Todos nós sabemos que a lei e a graça são
princípios opostos (Jo 1.17). Estar debaixo da lei significa aceitar a
obrigação de guardá-la e isso implica maldição ou condenação. O
apóstolo Paulo declara: "Todos aqueles, pois, que são das obras da
lei estão debaixo da maldição; porque escrito está: Maldito todo
aquele que não permanecer em todas as coisas que estão escritas
no livro da lei, para fazê-las" (Gl 3.10). A lei de Moisés é um livro
e não duas tábuas de pedra, então o apóstolo está se referindo a
todo o Pentateuco. Dizer que se trata aqui da lei cerimonial ou civil
nos parece uma camisa de força. Estar debaixo da graça significa
reconhecer a dependência exclusiva de Cristo para a salvação.
I 1 4 8 I OS DEZ M A N D A M EN TO S-V A LO R ES DIVINOS PARA U M A SOCIEDADE EM CONSTANTE M UDANÇA
considerações finais
N em o Senhor Jesus nem os seus apóstolos ensinaram o
Decálogo. Jesus teve oportunidade em mais de uma ocasião
de mencionar os Dez Mandamentos, mas não o fez. Não há tal
menção no Novo Testamento, a não ser a citação de preceitos
nele contidos. O seu reconhecimento como revelação de Deus
e Escritura divinamente inspirada, como expressão máxima da
vontade de Deus, é indiscutível. Jamais devemos nos esquecer
de que o Antigo e o Novo Testamento vieram do mesmo Deus.
Mas sua função na história da redenção humana não deve ser
confundida. Assim, o Decálogo tem o mesmo valor das outras
partes do Antigo Testamento para o cristianismo.
Devemos obedecer à lei? Tem ela domínio sobre nós? O apóstolo
Paulo responde a essas duas perguntas: "Mas, agora, estamos livres
da lei, pois morremos para aquilo em que estávamos retidos; para
que sirvamos em novidade de espírito, e não na velhice da letra" (Rm
7.6). O cristão jamais deve praticar o que a lei proíbe, pois, apesar
de estarmos libertos dela, essa liberdade significa que estamos livres
para servir, e não para pecar. Somos servos de Cristo e não da lei, e
queremos servir a ele, visto que estamos debaixo da graça não para
produzir a salvação, mas porque o Espírito nos guia na obediência.
apêndice histórico
OS FARAÓS DA ERA MOISÉS
O Egito é um país que desde a antiguidade impressiona o
espírito humano pelas suas artes, conhecimentos, administração
e poderio militar. É o povo que mais aparece na Bíblia depois de
Israel. É a terra do nascimento de Moisés que na época atingiu o
apogeu de sua glória. Foi essa a nação que Deus escolheu para
servir como berço do seu povo Israel.
0 EGITO
A principal fonte de sua história antiga vem de Manetão. Quem
foi ele? Sacerdote e historiador egípcio da corte de Ptolomeu II
Filadelfo, cerca de 280 a.C., autor da compilação em grego da
chamada Aegyptiaca, que traz a cronologia dos monarcas das 30
dinastias dos Faraós do Egito. Apesar da grande contribuição à
egiptologia, sua obra não sobreviveu ao tempo, mas alguns frag
mentos chegaram aos nossos dias por meio de outros autores,
como Estrabão, Josefo e Eusébio de Cesareia entre outros.
Manetão catalogou 30 dinastias dos Faraós do Egito desde
Menés I, em cerca de 3200 a.C., fundador da primeira dinastia,
até a trigésima, a dinastia sebenítica (380-343 a.C.). Sua história
compreende cinco grandes períodos: Período Arcaico ou Antigo
Reinado (cerca de 3200-2130 a.C.), Médio Reinado (cerca de 2130-
1580 a.C.), Novo Império ou Reinado (cerca de 1580-1070 a.C.),
Último Império dos Faraós (cerca de 1070-343 a.C.) e, por fim, o
Período Ptoleimaco, que termina com o suicídio da rainha egípcia
Cleópatra em 30 a.C., quando o Egito se torna província romana.
O Egito é o berço da nação de Israel, e o êxodo ocorreu no pe
ríodo no Novo Império, que abrange as dinastias 18, 19 e 20 entre
1580 e 1070 a.C. O nome "Egito" vem da transcrição grega Aíyuinoç
(Aigyptos), corruptela da palavra egípcia Ha-K-Ptah, transcrita tam
bém como Haíkouptah ou Hikuptah, que significa "morada de Ptah".
Era o primitivo nome de Mênfis, primeira capital do Egito fundada
por Menés I, que deu início à primeira dinastia egípcia por volta
de 3200 a.C. Ptah era o nome da divindade protetora da cidade.
Os hebreus foram habitar no Egito durante o período em que
José se tornou primeiro-ministro do Faraó. Isso aconteceu no perí
odo dos hicsos, palavra grega derivada do egípcio heqakhasut, que
significa "governantes estrangeiros". São eles os conquistadores
asiáticos que governaram o Egito durante cerca de 150 anos. Os
Faraós do período são os monarcas da 15a e 16a dinastias a quem
Manetão se refere como "reis pastores".
O termo "faraó" é uma deformação grega de cjxxpacó (pharao)
vinda da palavra egípcia per aa "a grande casa", empregada para
indicar o palácio real. A partir de 1580 a.C., veio a ser usada para
designar o próprio soberano. O Egito foi sempre uma monar
quia absoluta, cujo topo era ocupado pelo Faraó, que detinha o
poder político, religioso e militar. Considerado deus, ostentava
o título de Filho do Sol.
0 NOVO IMPÉRIO
A Era Moisés se situa no Novo Império Egípcio, mais preci
samente na 18a dinastia, fundada por Amósis I. É o período do
I 1 5 2 I OS DEZ M A N D A M EN TO S-V A LO R ES DIVINOS PARA U M A SOCIEDADE EM CONSTANTE M UDANÇA
apogeu militar e econômico do Egito. Esta dinastia teve 14 mo
narcas que governaram entre 1580 e 1308 a.C. Amósis 1, vindo
de Tebas, sul do Egito, atual Carnaque, unificou o Alto e o Baixo
Egito e expulsou os hicsos do país, perseguindo-os até o Eufrates.
Esse mesmo Faraó fez de Canaã tributário do Egito.
Tebas, que veio a ser cidade real nas 1 Ia e 12a dinastias, chegou
ao apogeu como capital do Alto Egito durante o período da 18a di
nastia. Era a cidade do deus Amom-Rá, chamada pelo nome do seu
deus, Amom de Nô; mas na Bíblia Hebraica é Nô ou Nô-Amom (Jr
46.25; Ez 30.14-16; Na 3.8). Amom de Tebas é o nome usado pelos
gregos e aparece também na NV1 e NTLH. Era o centro religioso
da tríade Amom, Mut e Khonsu, adorada no templo de Carnaque.
As evidências históricas e arqueológicas apontam um monar
ca da casa de Amósis I como o Faraó mencionado em Êxodo 1.8.
Isso leva o êxodo para 1440-1400 a.C. e se harmoniza com os 480
anos de 1 Reis 6.1, além de lançar luz sobre as Cartas de Amarna
enviadas pelos reis cananeus ao Faraó, Akhenaton, conhecido
também como Amenotepe IV.
Durante muito tempo acreditou-se que Moisés viveu no pe
ríodo da 19a dinastia, e nesse caso o Faraó opressor de Êxodo
1.8 ("Depois, levantou-se um novo rei sobre o Egito, que não
conhecera a José) teria sido Seti I ou Ramessés II e o Faraó do
êxodo Merneptá. Ramessés II reinou entre 1290 e 1224 a.C.,
período em que os israelitas já estavam estabelecidos em Ca
naã (Jz 11.16; 1 Rs 6.1). Os argumentosem favor de Ramessés
II podem facilmente ser refutados. As cidades de Pitom e Ra
messés, construídas pelos hebreus no Egito (Êx 1.11), poderiam
parecer um argumento irrefutável se Ramessés não fosse um
nome comum na época. O arqueólogo Naville identificou em
1883 o local de Pitom, onde encontrou a seguinte inscrição de
Ramessés II no portão de entrada: "Eu construí Pitom na foz do
APÊNDICE HISTÓRICO I 1 5 3 I
Oriente". Em 1922, o arqueólogo Fisher, do museu Britânico,
encontrou a Esteia de Ramessés II, em Bete-Seã, no atual Israel,
que diz: "Construí Ramessés com escravos asiático-semitas".
Tudo isso levou muita gente a pensar em Ramessés II como o
Faraó opressor mencionado em Êxodo 1.8, até que se descobriu
que ele foi um grande plagiador.
Segundo Manetão, Amósis I teve morte prematura após 25
anos de reinado. Amenotepe I deu continuidade a política do seu
antecessor e, quando morreu em 1510 a.C., deixou o Egito como
o país mais rico e mais poderoso do mundo. Ele não tinha filhos
do sexo masculino para sucedê-lo no trono, por isso seu genro,
Tutmósis I, um militar casado com sua filha primogênita chamada
Amósis, herdou o trono. As evidências apontam Tutmósis I como
o Faraó opressor dos hebreus (Êx 1.8). Ele não tinha filho varão
com sua esposa legítima para herdar o trono quando morreu.
Assim, a filha do casal, Hatshepsut, foi destinada a se casar com
o meio-irmão, Tutmósis II, filho de seu pai Tutmósis I com uma
mulher do harém, chamada Mutnofre. Hatshepsut é a filha do
Faraó que salvou Moisés das águas do Nilo (Êx 2.5-10).
Hatshepsut e Tutmósis II governaram juntos o país, mas ele
sofreu morte prematura. O casal teve só uma menina, mas ele,
moribundo, se apressou em legitimar um filho que havia tido com
uma concubina do harém, para que herdasse o trono como Faraó.
Esse futuro Tutmósis III era enteado e ao mesmo tempo sobrinho
de Hatshepsut. Era ainda criança quando ela assumiu o trono. De
fato, foi ela quem governou o Egito. Embora ela não quisesse ser
a rainha, mas o próprio Faraó e conseguiu isso com o apoio dos
sacerdotes do deus Amom, de Tebas. Ela assumiu características
e atributos masculinos, usou vestes reais masculinas e barbas
postiças comum ao Faraó.
Enquanto viveu, Hatshepsut conseguiu inutilizar Tutmósis III.
I 1 5 4 I OS DEZ M A N D A M EN TO S-V A LO R ES DIVINOS PARA U M A SOCIEDADE EM CONSTANTE MUDANÇA
APÊNDICE HISTÓRICO \ 1 5 5
Parece que Moisés representava uma ameaça para o enteado e
sobrinho da rainha. É estranho que o Faraó estivesse procurando
matar Moisés, um príncipe do Egito, por causa da morte de um egíp
cio, a ponto de fazê-lo fugir para Midiã (Êx 2.15). Era algo pessoal,
pois o Faraó tentava se livrar de Moisés. A essa altura, Hatshepsut
era a única pessoa do Egito capaz de quebrar as regras e colocar
o trono do Egito ao alcance de Moisés: "Pela fé, Moisés, sendo já
grande, recusou ser chamado filho da filha de Faraó" (Hb 11.24).
Só depois da morte de Hatshepsut é que Tutmósis III finalmente
conseguiu assumir o governo do Egito. Ele morreu em 1436 a.C.,
quando já fazia quarenta anos que Moisés estava em Midiã (At
7.30). Deus manda Moisés de volta ao Egito para libertar o povo
das garras do Faraó e comunica-lhe que todos os que buscavam
matá-lo já haviam morrido (Êx 4.19). Tutmósis III é o único Faraó
do período que reinou tanto tempo desde a fuga de Moisés do Egito
até a teofania do Sinai. O Faraó do êxodo, que experimentou as dez
pragas e mais a derrota no mar Vermelho, foi seu filho, Amenotepe
II, cuja múmia se encontra ainda hoje no Museu do Cairo, Egito.
As Cartas de Amarna, descobertas em 1888, em Tel-el-Amar-
na, Egito, hoje parcialmente encontradas no Museu do Cairo e
parcialmente no Museu Britânico, foram dirigidas a Amenotepe
III e Amenotepe IV. O período desses monarcas coincide com a
chegada de Israel em Canaã. Algumas delas afirmam: "Os habiri
estão capturando nossas fortalezas, estão tomando nossas ci
dades; estão destruindo nossos governadores. Saqueiam todo o
país do rei. O rei mande soldados depressa. Se não vierem tropas
neste ano, o rei perderá todo o país". Eram pedidos de ajuda ao
Faraó para o envio de reforço militar, pois as províncias egípcias
de Canaã estavam sendo atacadas pelos habiri.
Alguns pesquisadores não veem ligações dos habiri nas Cartas
de Amarna com as conquistas de Josué, mas faltam a eles maiores
fundamentos para essa interpretação. Habirí é plural de habiru e
designa "hebreu", segundo o prof. dr. Frederick Pinkuss, fundador
do Curso de Hebraico da Universidade de São Paulo. Ele declarou
num artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em 1946.
"Encontra-se pela primeira vez a raiz HEBREU, na forma
de HABIRU, naquela famosa biblioteca de cilindros feitos de
barro queimado, com inscrições cuneiformes, que datam
do século 15 antes da era cristã, e que se descobriram em
TEL EL AMARNA no Egito. Nestes textos, significa HABIRU
- HEBREU, 'gentes que vêm do além’, referindo-se, sem
dúvida alguma, a tribos semíticas que invadiram Canaã e
seus arredores" (PINKUSS, 1946, p. 10).
As cartas falam sobre a conquista de Canaã pelos israelitas
sob a liderança de Josué. A dificuldade de muitos expositores da
Bíblia em identificar os habiru com os hebreus liderados por Josué
reside numa interpretação muito antiga, mas sobre a qual hoje
não há mais consenso: é a teoria de que Ramessés II teria sido o
Faraó da opressão mencionado em Êxodo 1.8. Essa dificuldade
poderia existir se a Bíblia dissesse explicitamente que o Faraó
opressor era Ramessés II, mas ela apenas menciona os gover
nantes do Egito pelo título.
A XIX dinastia, à qual pertenceu Ramessés II, não sobreviveu
mais que 20 anos após a morte de Memeptá. O país entrou em crise
e a anarquia tomou conta do Egito. Amnés usurpou o trono, mas
não conseguiu se manter no poder e foi deposto por Memeptá Siptá,
casado com uma princesa da casa de Ramessés. Seti II reinou cinco
anos. A dinastia se finda com Larsu, um usurpador da Palestina.
Assim, Deus escolheu a nação mais poderosa e mais adian
tada do mundo de então para servir como berço do seu povo
Israel. Depois do êxodo, o Egito nunca mais conseguiu manter
1 5 6 I 05 DEZ M A N D A M EN TO S-V A LO R ES DIVINOS PARA U M A SOCIEDADE EM CONSTANTE M UDANÇA
APÊNDICE HISTÓRICO I 1 5 7
a sua glória passando a ser um potência de segunda categoria.
Neste país Deus fez o concerto com Israel no monte Sinai ocasião
em que Moisés promulgou a lei. O profeta Elias esteve em terras
egípcias, Jeremias viveu seus últimos dias neste país, segundo a
tradição judaica. O Egito acolheu ainda o Filho de Deus, quando
José e Maria fugiam da perseguição de Herodes.
DÉCIMA OITAVA DINASTIA
(1580-1308 a.C.)
Amósis I ................................................................................ (1580-1550 a.C.)
Amenotepe I ........................................................................ (1550-1528 a.C.)
T u tm ó s is l............................................................................. (1528-1510 a.C.)
Tutmósis I I ............................................................................ (1510-1490 a.C.)
H a tsh ep su t.......................................................................... (1490-1468 a.C.)
Tutmósis I I I .......................................................................... (1490-1436 a.C.)
Amenotepe I I ...................................................................... (1436-1413 a.C.)
Tutmósis I V .......................................................................... (1413-1405 a.C.)
Amenotepe I I I ..................................................................... (1405-1367 a.C.)
Amenotepe IV - A kh en ato n ........................................... (1367-1350 a.C.)
S m enekhare...................................................................................... 0 3 4 7 a.C.)
Tutancâmon........................................................................ (1347-1339 a.C.)
E je ........................................................................................... (1339-1335 a.C.)
H orem h eb ............................................................................. (1335-1308 a.C.)
I
OS DEZ M ANDAMENTOS - VALORES DIVINOS PARA U M A SOCIEDADE EM CONSTANTE MUDANÇA
DECIMA NONA DINASTIA
(1308-1186 a.C.)
Ramessés I ............................................................................ (1308-1307 a.C.)
S etil ...................................................................................... (1307-1291 a.C)
Ramessés II ......................................................................... (1290-1224 a.C)
M e rn e p tá .............................................................................. (1224-1214 a.C.)
Am enm esés........................................................................ (1012-1199 a. C.)
Merneptá Siptá .................................................................... (1193-1187 a.C)
S etill ...................................................................................... (1199-1193 a.C.)
larsu ....................................................................................... (1187-1186 a.C.)
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A lei de Moisés não consiste apenas num compêndio religioso;
trata de profecias, histórias, registros genealógicos e cronológicos,
regulamentos, ritos, cerimônias, exortações, preceitos morais, civis e
cerimoniais, instrução para sacerdotes, sacrifícios, ofertas, festas e o
tabernáculo. A grande diversidade de conteúdo e suas várias formas
de apresentação dos dados da revelação têm impressionado o espíri
to humano até hoje. A estrutura literária dessa parte das Escrituras
Sagradas é complexa e sobre ela muitas interpretações e especula
ções têm sido levantadas ao longo dos séculos.
A obra Os Dez Mandamentos — Valores Divinos para uma Socie
dade em Constante Mudança é um comentário exegético e explicati
vo apresentado de forma prática para facilitar a compreensão dessa
parte da lei de Moisés, ajudando o povo de Deus a distinguir entre
lei e evangelho.
m Líder da AD em Jundiaí-SP, graduado em Le-
tras (Hebraico) pela Universidade de São Paulo,
* Mestre em Ciências da Religião pela Universidade
Presbiteriana Mackenzie, professor de Hebraico,
Grego e Apologia Cristã, bem como comentarista
H de Lições Bíblicas e autor de diversos livros, entre
I eles l Isão Panorâmica do Antigo Testamento, Herc-
■ sias e Modismos, Comentário Bíblico de Oseias, O
Ministério Profético na Bíblia e coautor de Teologia Sistemática Pen-
tecostal, editados pela CPAD.
ISBN 8Sab31S4b-4
=1 7 A A 5 2 b 3 i a 4 b 3
Esequias Soares
Esequias Soares
abreviaturas
introdução
ALEI DE MOISÉS
0 DECÁLOGO
OS CÓDIGOS
OUTROS DEUSES
FORMAS DE ADORAÇÃO PAGÃ
A IDOLATRIA DO MUNDO ANTIGO
0 PRIMEIRO MANDAMENTO
mà
IMAGENS DE ESCULTURAS
OS ÍDOLOS E AS IMAGENS
0 SEGUNDO MANDAMENTO
0 DEUS ZELOSO
SENHOR EM VAO
0 NOME "DEUS"
ELION, SHADAI E ADONAI
0 QUE SIGNIFICA TOMAR 0 NOME DE DEUS EM VÃO?
0 SABADO
0 SÁBADO
0 QUARTO MANDAMENTO
0 SÁBADO NO NOVO TESTAMENTO
0 SÁBADO CRISTÃO
PAI E MÃE
HONRA A TEU PAI EA TUA MÃE
A PROMESSA DIVINA
0 SEXTO MANDAMENTO
GUERRA
SUICÍDIO
PENA DE MORTE
0 SÉTIMO MANDAMENTO
0 CASAMENTO
0 ENSINO DE JESUS
PROPRIEDADE E TRABALHO
0 OITAVO MANDAMENTO
LEGISLAÇÃO MOSAICA SOBRE 0 FURTO
FALSO TESTEMUNHO
0 ASPECTO EXEGÉTICO
0 ASPECTO JURÍDICO0 ASPECTO DA VIDA DIÁRIA
EXEGESE DO DÉCIMO MANDAMENTO
OS FATOS
0 DÉCIMO MANDAMENTO NO NOVO TESTAMENTO
A LEI DE DEUS
OS TRÊS TIPOS DE LEI
OS REFORMADORES DO SÉCULO 16
AVALIAÇÃO BÍBLICA
considerações finais
apêndice histórico
OS FARAÓS DA ERA MOISÉS
0 EGITO
0 NOVO IMPÉRIO
referências bibliográficasex
clusivamente a Moisés.
Existe uma discussão acalorada sobre Êxodo 34.28: "E esteve
Moisés ali com o SENHOR quarenta dias e quarenta noites; não
I 1 8 I OS DEZ M A N D A M E N TO S - VALORES DIVIN O S PARA U M A SOCIEDADE EM CONSTANTE M U D A N Ç A
12 AeicáA.OYO2 2 I OS DEZ M AN D A M EN TO S - VALORES DIVIN O S PARA U M A SOCIEDADE EM CONSTANTE M U D A N Ç A
dental. A narrativa da Torre de Babel (Gn 11.1-7), por exemplo,
precede cronologicamente a tabela das nações registrada em
Gênesis 10; no entanto, aparece posteriormente no relato das
Escrituras. Isso explica, muitas vezes, as repetições presentes
nos textos bíblicos. Não se deve, portanto, fragmentar o texto
atribuindo-o a diversos autores e a diversas épocas, ainda mais
quando a Bíblia afirma ao longo de suas páginas a autoria mo
saica do Pentateuco. Deus mandou Moisés escrever essas coisas
num livro (Êx 17.14; 24.4-8; 34.27). A essa altura da história, os
escritos eram parciais, pois a produção do texto estava ainda em
andamento. Moisés escreveu as jornadas dos filhos de Israel no
deserto (Nm 33.1 -49). Mas ainda está escrito que Moisés acabou
de "escrever as palavras desta Lei num livro, até de todo as acabar"
(Dt 31.24). Isso é ratificado em toda a Bíblia a partir da própria
Torá até o Novo Testamento (Dt 31.9, 25, 26; Js 8.32-35; Jz 3.4;
1 RS 8.53, 56; Dn 9.11-13; Ml 4.4; Mt 19.7, 8; Mc 10.4, 5; Lc 5.14;
Jo 1.17; 5.45-47; Rm 10.5; 1 Co.9.8, 9; 2 Co 3.15). Não há como
mudar essa verdade, ainda mais com base em especulações ou
interpretações sob o argumento de método científico. Assim, as
sessões do Pentateuco às quais os críticos chamam de códigos
são realmente detectáveis; isso não implica, contudo, a autoria
de diversos autores e nem em datas posteriores.
É verdade que há no Pentateuco extratos de escritores des
conhecidos ou uma coletânea de diversos documentos, como as
genealogias do Gênesis, e outros que sofreram revisão posterior
por escribas e profetas igualmente inspirados, como algumas
glosas, por exemplo, "e estavam, então, os cananeus na terra"
(Gn 12.6); o nome "Dã" antes da formação da família de Jacó (Gn
14.14); a menção de reis em Israel, antes mesmo da conquista de
Canaã (Gn 36.31); a expressão "dalém do Jordão" (Dt 1.1) enquanto
Moisés nem mesmo atravessou o rio. Nada disso descaracteriza
C S DEZ M ANDA M EN TO S \ 2 3 I
sua paternidade literária. A revelação divina foi gradativa. A au
toridade dos massoretas posteriores do judaísmo rabínico não é a
mesma dos sopherim,15 "escribas", que trabalharam nas cópias e
na edição dos livros no período pré-cristão. Esdras era um deles e
é chamado de "escriba", sophêr16 (Ed 7.6). Os massoretas jamais
ousaram modificar uma palavra das Escrituras, pois o cânon já
estava fixado, uma postura diferente da dos sopherim, que eram
encarregados de padronizar e revisar textos.
Os livros do Antigo Testamento foram produzidos por profe
tas, sacerdotes e sábios de Israel (Jr 18.18). Deus confiou a eles
a sua revelação. A continuidade do texto, como a narrativa da
morte de Moisés em Deuteronômio 34, era realizada por alguém
divinamente autorizado. As glosas editoriais foram inseridas no
texto sagrado por pessoas autorizadas, profetas, sacerdotes e
sábios num período em que o cânon ainda estava aberto. Isso
não compromete a paternidade mosaica do Pentateuco. Esses
detalhes editoriais são reconhecidos pela tradição desde a antigui
dade. Logo, não se sustentam as ideias defendidas pelos críticos
liberais sobre os supostos autores do Pentateuco e as diversas
datas sugeridas para a composição de cada código.
Israel se rebelou contra Deus, ainda no Sinai, com o culto do
bezerro de ouro. Deus renovou o concerto com os israelitas, e
"estas palavras" (ê x 34.27) são as palavras do concerto descritas
nos versículos 10-26. Referem-se a preceitos morais e cerimoniais
do Decálogo e de outros códigos do sistema mosaico. O primeiro,
o segundo e o quarto mandamentos do Decálogo reaparecem
nessa renovação do concerto (Êx 34.14, 17, 21; cp. ê x 20.2-5,
8-11; Dt 5.7-19, 12-15). A guarda do sábado é o único preceito
cerimonial do Decálogo, pois os sacerdotes podiam violar o sába-
I 2 4 I OS DEZ M A NDA M ENTO S - VALORES DIVINOS PARA U M A SOCIEDADE EM CONSTANTE M U D A N Ç A
is D-nab. 16 ISO.
do e ficar sem culpa (Mt 12.5). Mas outros preceitos cerimoniais
estão incluídos aqui: as festividades e o ritual da consagração dos
primogênitos. Os críticos chamam Êxodo 34.10-26 de "Decálogo
Cúltico"17 e Êxodo 20.1 -17 de "Decálogo Ético". Aqui se resumem
preceitos de todos os códigos da lei de Moisés. Logo, não faz sen
tido a ideia de um texto produzido por autores diferentes durante
um longo intervalo de tempo.
Quanto à lei, algo precisa ser dito sobre a alegada divisão em
lei moral, lei cerimonial e lei civil. Desde muito tempo qualifica-
-se o Decálogo como lei moral, enquanto a parte da legislação
mosaica que trata das cerimônias de sacrifícios e festas religio
sas, entre outras, é chamada de lei cerimonial, e os preceitos de
caráter jurídico são considerados lei civil. A visão tripartite da lei
em preceitos morais, cerimoniais e civis não vem das Escritu
ras. "Embora essa distinção tripartite seja antiga, seu uso como
fundamento para explicar a relação entre os testamentos não é
demonstravelmente derivada do Novo Testamento e provavel
mente não é anterior a Tomás de Aquino" (CARSON, 2011, p.
179). Os judeus jamais dividiram sua lei em moral e cerimonial.
Ao longo da história, eles observaram o sábado e a circuncisão
com o mesmo cuidado. Jesus disse que a circuncisão está acima
do sábado (Jo 7.22, 23).
OS DEZ M AN D A M EN TO S I 2 5 1
17 Decálogo Cúltico:
1 Não farás aliança com os cananeus e nem aos seus deuses;
2 Guardarás as festas dos pães asmos;
3 Todo o primogênito é de Javé;
4 Redimirás os teus primogênitos e teus filhos;
5 Descansarás o sétimo dia da semana;
6 Três vezes no ano te apresentarás diante de Javé;
7 Não temerás a nenhum dos teus inimigos;
8 Não oferecerás coisa levedada nem deixarás para o dia seguinte o sacrifício da páscoa;
9 Oferecerás a Javé as primícias do teu fruto;
10 Não cozerás o cabrito no leite de sua mãe.
OUTROS DEUSES
O Decálogo é monoteísta e introduz essa doutri
na no sistema mosaico que influenciou o pensamento
teológico dos antigos hebreus, vindo a se culminar
com a manifestação do Filho de Deus. O monoteís
mo aqui era uma inovação, visto que as nações da
época eram politeístas. A Mesopotâmia é o berço da
civilização humana e o centro irradiador da idolatria.
A terra do Nilo foi grandemente afetada por essa
idolatria. E Israel e seus ancestrais tiveram vínculos
com as culturas mesopotâmica e egípcia.
Abraão veio da Mesopotâmia e a nação de Israel se formou
no Egito. Como nação, Israel seguia em direção à Terra Prome
tida, onde estavam os cananeus, idólatras como todos os seus
vizinhos. A idolatria era a cultura predominante na época. Esse
era o mundo religioso do Oriente Médio de então, com cultos
envolvendo sacrifício de crianças e prostituição.
FORMAS DE ADORAÇÃO PAGÃ
São três as principais formas de adoração no paganismo do
Antigo Oriente Médio: politeísmo, henoteísmo e monolatria. Foi
nesse contexto que viveram os patriarcas do Gênesis e em que
a nação de Israel foi formada.
O politeísmo é a crença em muitos deuses. O termo deriva
de duas palavras gregas, polys,18 "muito", e theos,19 "Deus". Era
a religião dos antigos mesopotâmios, egípcios, gregos, romanos
e do atual hinduísmo. O henoteísmo é uma forma primitiva de
religião que admite a existência de muitos deuses; no entanto,
apenas um deles tem a supremacia. O termo, aplicado em 1881
por F. Max Müller, historiador alemão das religiões, significa lite
ralmente "um Deus", do grego heis/hen,20 o numeral "um", e theos,
"Deus". A forma henoteísta deve ser definida como uma crença
em um Deus, mas admitindo a existência de outros deuses, como
ocorre à doutrina das atuais testemunhas de Jeová.
A palavra monolatria vem de monos, "único",21 e latreia,22
"serviço sagrado, culto". O termo surgiu com o orientalista ale
mão Julius Wellhausen (1844-1918). Define-se comoadoração
ou culto "de uma deidade única para cada grupo étnico-político
I 2 8 I OS DEZ M A N D A M E N T O S -V A L O R E S DIVIN OS PARA U M A SOCIEDADE EM CONSTANTE M U D A N Ç A
18 IIoA.úç.
21 Movóç.
190eóç.
22 Aatpeía.
20 Eiç/év.
(clã, tribo, povo), não para toda a humanidade, de sorte que se
admitem tantos deuses legítimos como povos" (GUERRA, 2001,
p. 613). Assim, o henoteísmo deve ser entendido como uma
forma de crença do qual a monolatria é o tipo correspondente
de adoração. A ideia de henoteísmo e monolatria formarem um
estágio intermediário entre politeísmo e monoteísmo não tem
sustentação bíblica, visto que a religião original da raça humana
era monoteísta. Não se conhecia a idolatria antes do dilúvio. A
Bíblia afirma que todas essas formas falsas de adoração são uma
degeneração do monoteísmo original (Rm 1.21-25).
A IDOLATRIA DO M UNDO ANTIGO
Abraão nasceu em Ur dos caldeus, cidade da Mesopotâmia (Gn
11.27-31). Seus ancestrais serviam a outros deuses (Js 24.2,15). A
localização geográfica é a Mesopotâmia, entre os rios Tigre e Eu-
frates, no atual Iraque. Os babilônios adoravam a diversos deuses,
que eram personificações da natureza, como Sin, o deus-sol de Ur
e Harã; Istar, a deusa do amor e da guerra; e Enlil, deus do vento
e da terra. Bel era o nome de outra divindade (do acádico, belo,
"senhor"), equivalente a Baal, deus dos cananeus. Com o tempo, Bel
veio a ser identificado como Marduque ou Merodaque, o patrono
da cidade de Babilônia, que se tornou o principal deus no panteão
babilônico (Is 46.1; Jr 51.44). Os assírios adoravam, entre outros
deuses, a Adrameleque e a Nisroque (2 Rs 17.31; 19.37; Is 37.38).
Os textos hieroglíficos das pirâmides enumeram cerca de
duzentos deuses e relatos mitológicos. Os antigos egípcios em
pregavam o termo Ta Neteru, "terra dos deuses", para o seu país.
Havia uma proliferação de deuses e templos no Egito, e cada
grande cidade contava com suas tríades de acordo com as dinas
tias: em Ábidos, Osíris, ísis e Hórus; em Mênfis, Ptah, Sekhmet e
N Ã O TERÁS OUTROS DEUSES í 2 9 I
Nefertum, e, em Tebas, Amom, Mut e Khonsu. O templo do sol,
bêth shemeshp em hebraico, "casa do sol" ür 43.13), é termo tra
duzido por "Heliópolis" na LXX, vindo do grego, hêliou póleõs,24
"cidade do sol". Não confundir com a cidade de Bete-Semes, em
judá (2 Rs 14.11). Aqui se trata da antiga cidade egípcia de Om,
seu nome hebraico, ou Heliópolis, em grego (Gn 41.45, 50 LXX).
A cidade era dedicada ao deus-sol, conhecido também como Rá;
é a atual Tell el Hisn, 16 km ao nordeste do Cairo.
Os cananeus adoravam a Baal (Jz 6.31), Baal-Berite (Jz 8.33).
Seu plural é baalim. Baal era também conhecido pelas cidades onde
eram cultuados: Baal-Peor, da cidade de Peor (Dt 4.3; Os 9.10), Baal-
-Meom, da cidade de Meom (Nm 32.38; Ez 25.9) e Baal-Zefom (Nm
33.7). Astarote ou Astarte (Jz 10.6), identificada em nossas versões
como "postes sagrados", deusa cananeia da fertilidade" era deusa
nacional dos sidônios (1 Rs 11.5, 33). Aparece como "bosque" na
Versão Almeida Corrigida, "poste-ídolo" na Atualizada, e "Aserins"
na Tradução Brasileira. São os ídolos de madeira e de pedras
(Jr 3.9; Dt 4.28). A madeira simbolizava a fertilidade feminina, a
deusa Aserá, mãe dos deuses cananeus; e a pedra representava a
fertilidade masculina na religião dos cananeus.
Quemos ou Camos era o deus nacional dos moabitas (Nm
21.29; Jz 11.24; 1 Rs 11.7, 33; 2 Rs 23.13; Jr 48.7, 13, 46). Malcam
ou Milcom (1 Rs 11.33) era o deus nacional dos amonitas. Mil-
com, em hebraico milkom,25 e Moloque, molech,26 em hebraico,
seriam dois deuses ou nomes diferentes do mesmo deus? (1 Rs
11.5, 7, 33). Parecem ser nomes alternativos. O termo malkãm27
significa "seu rei", mas a Septuaginta, a Vulgata Latina e a Peshi-
ta traduzem esta palavra como nome próprio. É uma questão
I 3 0 I OS DEZ M A N D A M EN TO S-V A LO R ES DIVINOS PARA U M A SOCIEDADE EM CONSTANTE M UDAN ÇA
23 !T2.
2 6 1 ^ -
24'HÀÍou TTÓÂeuç.
27 D31?!?.
25 D 3 * ? p .
NÃO TERÁS OUTROS DEUSES I 31 I
de vocalização da palavra. As consoantes hebraicas aqui são
exatamente as mesmas - mlkm) e o texto antigo era
consonantal. Dagom e Baal-Zebube eram deuses dos filisteus
(Jz 16.23-24; 2 Rs 1.2-3, 6,16).
Os gregos do período do Novo Testamento tinham vários
deuses: Zeus, o pai dos deuses; Hermes, o deus mensageiro; Afro-
dite, a deusa do amor; Dionísio, o deus do vinho; Atenas, ou Pala
Atenas, nascida da cabeça de Zeus, deusa padroeira da cidade de
Atenas. Hesíodo, em sua obra Teogonia, a Origem dos Deuses,
apresenta uma lista interminável deles. Para os romanos, o pai dos
deuses era Júpiter; o deus correspondente a Hermes era Mercúrio
(At 14.11-13); Afrodite era similar a Vênus e assim por diante.
Esses deuses da mitologia greco-romana apresentavam os
mesmos vícios e as mesmas características dos humanos: ódio,
inveja, ciúme, imperfeições... eles comiam, bebiam etc. Era muito
comum um homem ter o seu deus devocional, prestando-lhes
cultos em particular, além de oferecer libações a outros deuses.
Por isso havia nas casas romanas os penates ou nichos, espécies
de altar com uma representação do deus adorado naquele lar.
Em Éfeso, a deusa Diana, Ártemis para os romanos, era cultuada
no templo daquela cidade, que era uma das sete maravilhas do
mundo antigo. Mas os seus adoradores também tinham minia
turas da imagem de Diana em seus penates. Demétrio, de Éfeso,
era fabricante de nichos (At 19.24). Os mesmos adoradores desses
deuses participavam também do culto do imperador.
0 PRIMEIRO MANDAMENTO
A fórmula introdutória "Então, falou Deus todas estas pala
vras, dizendo..." (ê x 20.1) é característica única do Decálogo,
como explicou o rabino e erudito bíblico Benno Jacob: "Nós
não temos um segundo exemplo de tal sentença introdutória"
(JACOB, 1992, p. 543). Nem mesmo na passagem paralela,
a fórmula é repetida, mas aparece de maneira reduzida ao
"mínimo absoluto" (CHILDS, 1976, p. 593) para se ajustar à es
trutura da narrativa (Dt 5.5). No entanto, os outros códigos do
sistema mosaico são introduzidos com um discurso de Deus a
Moisés como no Código da Aliança: "Então, disse o SENHOR
a Moisés"(Êx 20.22). Veja também Êxodo 34.32; Levítico 17.1;
Deuteronômio 6.1. Fraseologia similar é usada para designar os
Dez Mandamentos: "Estas palavras falou o SENHOR a toda a
vossa congregação no monte, do meio do fogo, da nuvem e da
escuridade, com grande voz, e nada acrescentou; e as escreveu
em duas tábuas de pedra e a mim mas deu"(Dt 5.22), mas ela
não introduz o Decálogo. Tudo isso revela a origem e a autori
dade divina da lei.
Após a fórmula introdutória, vem o que é considerado o
prefácio de toda a lei: "Eu sou o SENHOR, teu Deus, que te tirei
da terra do Egito, da casa da servidão" (Êx 20.2). Alguns críticos
liberais, com base numa premissa falsa sobre a composição dos
diversos códigos do sistema mosaico, querem sustentar a ideia de
um Deus tribal ou nacional na presente declaração. São teorias
subjetivas que eles procuram submeter a métodos sistemáticos
para dar uma forma acadêmica a seus pressupostos. Mas o relato
da criação em Gênesis e o relato do dilúvio, por exemplo, falam
por si sós sobre a soberania de Javé em todo o universo como
Senhor do céu e da terra, reduzindo tais ideias a cinzas.
Desde os tempos antigos, discute-se se esta declaração faz
parte do primeiro mandamento. A autorrevelação de Deus aqui é
significativa. Javé já se havia revelado a Moisés antes (Êx 3.14,15;
6.2, 3), mas aqui se trata de um relacionamento entre o humano
e o divino, Deus e Israel. Na declaração "Eu sou o SENHOR, teu
I 3 2 I OS DEZ M A N DA M ENTO S - VALORES DIVINOS PARA U M A SOCIEDADE EM CONSTANTE M U D A N Ç A
Deus", apesar do uso na segunda pessoa, ele se dirige à nação
inteira de Israel. O nome divino está vinculado ao resgate dos
israelitas da terra do Egito, a grande libertaçãodas garras de
Faraó. Esta redenção é o tema do livro de Êxodo. A "casa da
servidão" é o símbolo da opressão social. O Egito era uma terra
boa e abençoada, como o jardim do Éden (Gn 13.10; Dt 10.11);
no entanto, passou para a história como uma caserna ou quartel
de escravos. Por isso, é lembrado nas páginas da Bíblia como a
"casa da servidão" (Dt5.6; 6.12; 7.8; 8.14; 13.5, 10; Js 24.17; Jz 6.8;
Mq 6.4). Os judeus consideram Êxodo 20.2 ou Deuteronômio 5.6
como parte do primeiro mandamento.
Os três primeiros mandamentos do Decálogo dizem respeito
à teologia e os demais se referem à ética. Os hebreus herdaram
dos patriarcas Abraão, Isaque e Jacó o conhecimento da exis
tência de um só Deus. O núcleo do primeiro mandamento é:
"Não terás outros deuses diante de mim" (Êx 20.3; Dt 5.7). Isso
aponta para o monoteísmo, apesar de alguns críticos contes
tarem essa verdade, pois uma linha de interpretação sustenta
a ideia de sistema henoteísta ou monolatria nestas palavras.
Gerhard von Rad ocupa oito páginas em sua obra Teologia do
Antigo Testamento para justificar esta interpretação. Ele diz: "O
primeiro mandamento nada tem a ver com monoteísmo... A au-
toapresentação cúltica: 'Eu sou Javé, teu Deus', pressupõe uma
situação politeísta" (2006, p. 207). Assim, sua interpretação se
baseia numa suposição. Von Rad considera o culto dos patriar
cas a Javé no padrão do primeiro mandamento, mas nega ser
monoteísta esta forma de adoração. Diz ainda que há inúmeros
exemplos bíblicos desse suposto henoteísmo ou monolatria (Gn
31.53; Jz 11.24; 1 Sm 26.19).
"O Deus de Abraão e o Deus de Naor, o Deus de seu pai,
julguem entre nós. E jurou Jacó pelo Temor de Isaque, seu pai"
NÃO TERÁS OUTROS DEUSES I 3 3 1
(Gn 31.53). O verbo "julgar", no plural yishpetü,28 "julguem"
entre nós, mostra diferença entre essas divindades: o Deus de
Abraão não é o mesmo de Naor. Mas no Pentateuco Samaritano
o verbo está no singular yishpot,29 "julgue", e da mesma forma a
Septuaginta, krinei,30 "julgará"; isso indica o mesmo Deus. Quem
pronuncia estas palavras é Labão, de acordo com sua perspectiva
politeísta que coloca o Deus de Abraão no mesmo nível da sua
divindade. Naor era politeísta (Js 24.2) e jurou por seus deuses,
Jacó no entanto, como monoteísta, jurou pelo Deus de Isaque,
seu pai. Isso não significa que Jacó reconhecia as divindades
da casa de Labão. Parece-nos forçado afirmar com base nesse
relato Jacó como henoteísta ou monolátrico.
"Não possuirias tu aquele que Quemos, teu deus, desapos-
sasse de diante de ti? Assim possuiremos nós todos quantos o
SENHOR, nosso Deus, desapossar de diante de nós" (Jz 11.24).
A ignorância religiosa grassava nos dias obscuros dos juizes de
Israel, um período em que não havia reis em Israel e "cada qual
fazia o que parecia direito aos seus olhos" (Jz 17.6) e fraseologia
similar (Jz 21.25). Foi um período de apostasia generalizada; os
israelitas violavam com frequência o primeiro mandamento.
Havia de tudo nessas tribos desorientadas - monolatria, heno-
teísmo, politeísmo -, menos o monoteísmo do Sinai 0z 17.1-6;
18.31). Assim, a teologia sincrética de Jafé não deve surpreender
a ninguém. Parece haver também uma confusão na teologia de
Jefté, pois Quemos ou Camos é divindade nacional dos moabitas
e não dos amonitas. Mas o território em questão era originai
mente moabita é possível que o texto se refira ao período de
Seom (Jz 11.18-20).
I 3 4 I OS DEZ M A N D A M EN TO S-V A LO R ES DIVINOS PARA U M A SOCIEDADE EM CONSTANTE MUDANÇA
2 8 1D S 0 \
“ KpiveX.
29 B s a í \
NÃO TERÁS OUTROS DEUSES I 3 5
"Ouve, pois, agora, te rogo, ó rei, meu senhor, as palavras de
teu servo: Se o SENHOR te incita contra mim, cheire ele a oferta
de manjares; porém, se são os filhos dos homens, malditos sejam
perante o SENHOR; pois eles me têm repelido hoje, para que eu
não fique apegado à herança do SENHOR, dizendo: Vai, serve
a outros deuses" (1 Sm 26.19). Davi pede ao rei Saul que pare
com suas perseguições. Argumenta ainda que há duas razões
possíveis para a inimizade entre ele e o rei: 1) Javé é quem incita
Davi contra Saul; ou 2) isso vem dos homens. No primeiro caso,
o problema poderia ser resolvido com uma oferta de manjares.
No segundo caso, que os responsáveis sejam amaldiçoados.
Davi roga a Saul "para que eu não fique apegado à herança do
SENHOR, dizendo: Vai, serve a outros deuses". Em outras pala
vras, que não o obrigue a deixar sua terra forçando-o a adorar
a Dagom, pois somente Javé é o seu Deus. Israel é a sua terra, a
sua herança, e ele não pretendia deixar o país. Afirmar com base
nessa passagem bíblica que Javé é um Deus tribal, uma divindade
nacional, é forçar a exegese. Davi mesmo declara que Javé é o
Deus de toda a terra (Sl 24.1, 2).
Estudos de críticos conservadores mostram que a ideia de
henoteísmo no primeiro mandamento não se sustenta. Esse
mandamento é considerado o mais genérico e o menos deta
lhado do Decálogo. O rabino Benno Jacob se pronunciou sobre
o assunto da seguinte forma: "Nós não podemos ajudar, mas
responder porque este mandamento não era usado para prover
uma lição dogmática final acerca das falsas deidades, mas isto foi
precisamente o que o Decálogo procurou evitar"31 (JACOB, 1992,
p. 546). Ele explica. É que no Sinai só existiam Javé e Israel, e
nada havia a ser dito sobre as nações e seus deuses, portanto o
31 G r i f o s o r i g i n a i s d o a u t o r .
rabino acrescenta: "Não existia outro deus para o Decálogo". A
mais rudimentar regra da hermenêutica diz que nunca se deve
interpretar um texto isoladamente, fora do seu contexto. Aqui,
esse contexto mostra a proibição de sacrificar e servir a outros
deuses é absoluta e sem concessão, o que remete ao monoteísmo
(Êx 22.20; 23.13; 34.14; Dt 6.4, 14; 13.2). É assim que essas e ou
tras passagens do Pentateuco explicam o primeiro mandamento.
Existe um só Deus e Deus é um só; esse pensamento permeia a
Bíblia inteira (2 Rs 19.15; Jo 17.3).
Os ídolos, de fato, não são deuses (Dt 32.21; Gl 4.8). Apenas
são chamados assim por existirem na mente dos seus adoradores
(1 Co 8.5), mas não reais de fato. O objeto de adoração dos gentios
são representações demoníacas; os pagãos adoram os próprios
demônios (Lv 17.7; Dt 32.17; 1 Co 10.20). Não existe Deus além
de Javé (Is 44.6; 45.5, 6). Os cristãos devem manter distância dos
ídolos (1 Co 10.14; 1 Jo 5.21).
O monoteísmo é instituído como confissão de fé na lei de
Moisés, e o Decálogo introduz esta doutrina. O monoteísmo é a
crença em um só Deus, como sugere a própria palavra: monos,
"único", e theos, "Deus". O termo é usado para designar a crença
em um e somente um Deus. A ênfase nesta unidade contrasta
de maneira visível com o henoteísmo e a monolatria, além do
politeísmo. Os patriarcas do Gênesis, Abraão, Isaque e Jacó, eram
monoteístas e instruíram seus descendentes nessa crença (Dt
13.6; 28.64; Jr 19.4).
O Deus de Israel revelado no Antigo Testamento é o mesmo
Deus do cristianismo (Mc 12.29-32). O Senhor Jesus não somente
ratificou o monoteísmo judaico do Antigo Testamento, como tam
bém afirmou que o Deus Javé de Israel, mencionado em Deutero-
nômio 6.4-6, é o mesmo Deus que ele veio revelar à humanidade
(Jo 1.18). O monoteísmo cristão é trinitário porque a sua base é
I 3 6 I OS DEZ M A N DA M ENTO S - VALORES D IVIN O S PARA U M A SOCIEDADE EM CONSTANTE M UD A N Ç A
NÃO TERÃS OUTROS DEUSES I 37
de um só Deus que subsiste em três pessoas distintas: o Pai, o
Filho e o Espírito Santo (Mt 28.19). O monoteísmo judaico é cha
mado de monoteísmo ético, pois Javé é um Deus com propósito
ético e a afirmação de um só Deus é feita com base ética. Os Dez
Mandamentos são chamados de "Decálogo Ético". A doutrina de
Deus é uma "questão de vida ou morte", pois, Jesus disse: "E a vida
eterna é esta: que conheçam a ti só por único Deus verdadeiro e
a Jesus Cristo, a quem enviaste"(Jo 17.3).
O apóstolo Paulo anunciava aos gentios o mesmo Deus de
seus antepassados: "O Deus de nossos pais de antemão te de
signou para que conheças a sua vontade, e vejas aquele Justo, e
ouças a voz da sua boca" (At 22.14). Veja o que ele ensina nas
epístolas: "Todavia para nós há um só Deus, o Pai, de quem é tudo
e para quem nós vivemos; e um só Senhor, Jesus Cristo, pelo qual
são todas as coisas, e nós por ele" (1 Co 8.6); "Ora, o medianeiro
não o é de um só, mas Deus é um" (Gl 3.20); "Um só Deus e Pai
de todos, o qual é sobre todos, e por todos, e em todos vós" (Ef
4.6). A fé cristã não admite a existência de outro Deus além do
Deus de Israel (Mc 12.32). É o monoteísmo judaico-cristão.
m à
IMAGENS
DE ESCULTURAS
N o preâmbulo do primeiro mandamento Deus se
identifica. O segundo mandamento é muito próximo
do primeiro, ambos são de ordem espiritual e afirmam
a existência de um Deus vivo, o único que deve ser
adorado. Aqui Javé proíbe a adoração aos ídolos e o
culto a qualquer imagem de escultura ou de pintura
como objeto de adoração. É nesta forma de idolatria
que o presente capítulo pretende focar.
Os patriarcas do Gênesis e os israelitas do deserto sabiam
muito pouco sobre os atributos de Deus. A revelação divina acon
teceu de forma gradual ao longo dos séculos, até a manifestação
do Filho de Deus (Hb 1.1). Os dois primeiros mandamentos do
Decálogo são os que maior impacto causaram em Israel. Deus
é espírito e invisível (Jo 4.24; Cl 1.15; 1 Tm 1.17) e hoje qualquer
cristão sabe disso. Essa verdade é declarada na Confissão de
Westminster. No entanto, foi o próprio Deus que se revelou a si
mesmo sobre o seu ser e a sua natureza e nesses mandamentos
temos o esboço dessa doutrina.
No primeiro mandamento, Javé se identifica ao seu povo como
o Deus soberano que remiu a Israel da escravidão do Egito. Aqui
e no segundo mandamento, Deus revela a sua espiritualidade e
ordena que somente ele deve ser adorado. Javé proíbe o uso de
imagem e de qualquer representação, semelhança ou figura do
próprio Deus na adoração. Essa proibição se estende também a
toda e qualquer divindade falsa dos pagãos.
OS ÍDOLOS E AS IMAGENS
A revelação do Sinai aconteceu três meses após a saída dos
israelitas do Egito. Aquela geração havia nascido e vivido na terra
do Nilo até aquele momento. O Egito era um dos maiores centros
de idolatria do mundo. Suas imagens de escultura e seus obeliscos
impressionam o espírito humano até hoje. Esse país foi o berço
da civilização de Israel, e os hebreus conviveram com a cultura
dos egípcios durante muito tempo, razão pela qual deviam estar
bem familiarizados com suas práticas religiosas.
O profeta Jeremias menciona os obeliscos e as casas dos deuses
do Egito em Heliópolis muitos séculos após a promulgação da lei:
"E quebrará as estátuas de Bete-Semes, que está na terra do Egito;
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NÃO FARÁS IMAGENS DE ESCULTURA I 41
e as casas dos deuses do Egito queimará" (Jr 43.13). O principal
templo de Heliópolis era o de Rá, deus representado por um ho
mem com cabeça de falcão, cuja supremacia no Egito durou mais
de mil anos. Segundo os egípcios, Rá era o pai de uma família de
nove deuses. Implícita estava a zoolatria - adoração aos animais
pois os egípcios viam neles mais que símbolos ou emblemas;
eles os consideravam receptáculos das formas do poder divino.
Bete-Semes aqui é Heliópolis, uma antiga cidade egípcia de
Om, seu nome hebraico, e Heliópolis, seu nome grego (Gn 41.45,
50, LXX). Situa-se atualmente 16 km a noroeste do Cairo, onde se
localiza o aeroporto internacional. O nome hebraico bêth shemesh
significa "casa do sol", e a Septuaginta emprega hêliou póleõs,
"cidade do sol" [50.13]. A Nova Tradução na Linguagem de Hoje
traduz como "Heliópolis". Jeremias emprega o termo hebraico
matstsêbãh32 para designar "estátua", que significa "alguma coisa
colocada verticalmente, coluna, pilar, estátua". O profeta se refere
aos obeliscos, que são próprios do Egito (KOEHLER & BAUMGAR-
TNER, vol. 1,2001, p. 621). Trata-se de um bloco de pedra postado
para fins memoriais (2 Sm 18.18) ou religiosos (2 Rs 3.2; 10.26; 18.4;
23.14; Os 10.1; Mq 5.13 [12]). Os obeliscos egípcios eram ídolose
também memoriais. Essa prática era proibida em Israel (Dt 16.22).
Hoje, apenas oito desses obeliscos continuam de pé no Egi
to: três no templo de Carnaque (originalmente, eram dez); um
no templo de Luxor (mas havia dois, o outro está na praça da
Concórdia); um no Aeroporto Internacional do Cairo, trazido de
Ramessés, sua localidade original; um posto em um jardim ao
lado da Torre do Cairo, trazido também de Ramessés; um na praça
Matariya, no centro do Cairo, trazido das ruínas do templo do sol
de Heliópolis; e o último, da 12a dinastia, está em Fayum, local
32 naan.
em que, segundo se diz, Jacó viveu com toda a família, durante a
administração de José do Egito. Existem ainda mais de dez obelis
cos egípcios espalhados por locais variados na Europa, Vaticano,
Istambul, Londres, Paris e em Nova Iorque, nos Estados Unidos,
resgatados desde os romanos a partir do ano 31 a.C.
0 SEGUNDO MANDAMENTO
O grande desafio de Israel era vencer a idolatria e manter a
fidelidade a Javé, cumprindo o concerto do Sinai. O povo estava
saindo de um contexto sociocultural completamente politeísta.
Seus ancestrais lhes haviam falado sobre o Deus de Abraão, de
Isaque e de Jacó, mas agora eles mesmos precisavam saber o que
significava o compromisso de servir e adorar exclusivamente o
Deus que os libertara da escravidão do Egito. A adoração a Javé
devia ser algo completamente diferente dos rituais idólatras. O
segundo mandamento declara:
Não farás para ti imagem de escultura, nem alguma
semelhança do que há em cima nos céus, nem em baixo na
terra, nem nas águas debaixo da terra. Não te encurvarás a
elas nem as servirás; porque eu, o SENHOR, teu Deus, sou
Deus zeloso, que visito a maldade dos pais nos filhos até
à terceira e quarta geração daqueles que me aborrecem e
faço misericórdia em milhares aos que me amam e guardam
os meus mandamentos ( ê x 20.4-6; Dt 5.8-10).
Os dois termos hebraicos pessel e temunãh33 dizem respeito
à falsa adoração. Da palavra pessel, "imagem", deriva o verbo
pãssal,34 "esculpir, entalhar, lavrar" pedra ou madeira para cons
I 4 2 I OS DEZ MANDAMENTOS - VALORES DIVINOS PARA U M A SOCIEDADE EM CONSTANTE MUDANÇA
33 b o ? e r m n n .
NÃO FARÁS IMAGENS DE ESCULTURA í 4 3
truir (1 Rs 5.18 [32]), escrever (Êx 34.1, 4; Dt 10.1, 3) e esculpir
imagem de divindades (Hc 2.18). A Septuaginta traduziu o termo
por eidõlon,35 "ídolo". O termo temunãh, "forma, aparência, figura,
representação, semelhança", só aparece dez vezes no Antigo
Testamento (Êx20.4; Dt4.12,15,16,23,25; 5.8; Nm 12.8; Jó 4.16;
Sl 17.15). Cinco vezes aparece em conexão ou paralelamente
a pessel e diz respeito à proibição do uso de imagens (Êx 20.4;
Dt 4.16, 23, 25; 5.8). Duas vezes é usada para esclarecer que
os israelitas ouviram a voz de Javé que falava do meio do fogo
no monte Sinai, mas eles só ouviram as palavras por ocasião
da revelação do Sinai (Dt 4.12, 15). Três vezes é empregada de
maneira independente: Moisés era o único que via a temunat
YHWH,36 a "semelhança de Javé" (Nm 12.8). Deus falava com ele
como alguém fala a um amigo, face a face (Êx 33.11); Elifaz usa
o termo para descrever uma revelação noturna (Jó 4.16) e, num
paralelismo poético, a palavra é empregada de forma metafórica
numa visão de Davi (Sl 17.15).
O segundo mandamento diz que não se deve fazer imagem
ou figura de tudo o "que há em cima nos céus, nem em baixo
na terra, nem nas águas debaixo da terra” (Êx 20.4; Dt 5.8). Isso
envolve todas as espécies de animais, aves, répteis, peixes, aves,
corpos celestes, e inclui a imagem do próprio Deus (Dt 4.12-19).
Amenção das estátuas de macho e fêmea, "alguma escultura,
semelhança de imagem, figura de macho ou de fêmea" (Dt 4.16),
diz respeito às divindades masculinas e femininas. Os cananeus
chamavam à madeira de pai e à pedra de mãe (Jr 2.27). A madeira
era o símbolo da fertilidade feminina; a deusa Aserá era a mãe dos
deuses; e a pedra simbolizava a fertilidade masculina na religião
dos cananeus (Dt 4.28; Jr 3.9).
35 EiôwÀov. ^rnrr njan.
OS DEZ MANDAMENTOS - VALORES DIVINOS PARA U M A SOCIEDADE EM CONSTANTE MUDANÇA
As espécies de animais mencionadas aqui (Dt 4.17-19) re
presentavam os deuses na antiguidade (Ez 8.10). Dagom era o
deus dos filisteus (Jz 16.23; 1 Sm 5.7), e sua imagem consistia em
metade forma de homem e metade forma de peixe. Rá era o deus-
-sol, dos egípcios, e Sin, o deus-sol dos babilônios. O touro, por
exemplo, era um símbolo do Egito: "Por que o deus Ápis fugiu?
O seu touro não resistiu" (Jr 46.13, NVI); "Por que foi derribado o
teu Touro?" (ARA). Ápis era o boi sagrado do Egito, representa
ção de Ptah, deus da fertilidade de Mênfis. O culto do bezerro no
deserto mostra que essa forma de adoração dos egípcios ainda
estava no coração do povo (Êx 32.4-6; Sl 106.19, 20). As estátu
as de Baal eram colocadas sobre touros. Esse animal era ideal
para esses deuses, pois simbolizava força e fertilidade. O touro
representava também outros deuses, como Baal. E, durante muito
tempo, o povo judeu também se deixou influenciar pelo culto do
bezerro (1 Rs 12.28-30; Os 8.5). Esses são alguns dos exemplos
de divinização pagã de animais e corpos celestes.
O segundo mandamento divide opiniões ainda hoje, e as
interpretações são diversificadas. Os templos católicos romanos
estão cheios de imagens de escultura, com fins cúlticos; por outro
lado, a comunidade Amish não permite o uso de fotografia nem se
deixa fotografar, pois seus membros a interpretam como produção
de imagem, o que violaria o segundo mandamento. Contudo, o
mandamento aqui não se refere à arte como tal. Essa proibição
é específica; refere-se imagem de madeira, pedra ou metal ou
forma de algum deus ou deuses das nações: "Não te encurvarás
a elas nem as servirás" (Êx 20.5; Dt 5.9).
Essa maneira de entender o segundo mandamento é con
firmada ao longo do Antigo Testamento (2 Rs 21.7; Is 40.19, 20;
Jr 10.14). Aqui, é uma referência à adoração (Êx 34.13, 17; Dt
27.15). O primeiro verbo tem o sentido de adorar tishthaheweh,
NÃO FARÁS IMAGENS DE ESCULTURA I 4 5
ou tishthahãweh,37 "prostrar-se, encurvar, adorar". A Septuaginta
traduz por proskyneo "adorar”,38 e o termo aparece 60 vezes no
Novo Testamento. O segundo verbo é ‘ãvad,39 "trabalhar, servir".
A Septuaginta traduziu por latreuõ,40 "prestar serviço sagrado,
servir, adorar", e é o termo que aparece em Mateus 4.10.
O contexto é religioso e remete à proibição de fazer imagens
de escultura ou quaisquer figuras e se prostrar diante delas para
as adorar. Este mandamento causou profundo impacto em Israel,
de modo que a escultura é uma arte que não se desenvolveu entre
os israelitas, mesmo para fins meramente culturais. Os grandes
museus, como Louvre em Paris, o museu Britânico em Londres,
o Neues em Berlim o Metropolitan em Nova Iorque; o museu do
Cairo, entre outros, estão repletos de artes de escultura artística
e religiosa, bustos de artistas, pensadores e estadistas do Egito,
Mesopotâmia, Pérsia, Grécia, Fenícia e Roma, além de estátuas e
estatuetas de deuses. No entanto, não existe praticamente nada
nos acervos judaicos dessa natureza nesses museus.
As galerias de arte estão completamente fora deste contex
to. Trata-se de coleções de manifestações artísticas, e não é a
respeito disso que fala o segundo mandamento. Os expositores
da Bíblia são praticamente unânimes quanto a esta questão. Há
no Antigo Testamento diversos indícios que confirmam esta in
terpretação. Deus mesmo inspirou artistas entre os israelitas no
deserto (Êx 35.30-35) e mandou Moisés levantar uma serpente
de metal no deserto (Nm 21.8). O rei Salomão não encontrava
artistas em Israel para a decoração do templo e do seu palácio,
de modo que contratou escultores e pintores dentre os fenícios
(2 Cr 2.13, 14). Ele mandou esculpir querubins na parede e tou
37 n innrçn (êx 20.5) ou rn n rm n (Dt 5.9). 38 ripooKwéu.
39-12SJ. “ Atrtpeúu.
ros e leões para decorar o templo (1 Rs 6.29; 7.29) e o palácio
real (1 Rs 10.19, 20). E, quando a serpente de metal que Moisés
levantou no deserto veio a ser objeto de culto com o passar do
tempo, o rei Ezequias mandou destruí-la (2 Rs 18.4).
0 DEUS ZELOSO
"Porque eu, o SENHOR, teu Deus, sou Deus zeloso, que visi
to a maldade dos pais nos filhos até à terceira e quarta geração
daqueles que me aborrecem e faço misericórdia em milhares aos
que me amam e guardam os meus mandamentos" (Êx 20.5b-6; Dt
5.9b-10). O adjetivo hebraico qannã’,41 "zeloso", aparece apenas
cinco vezes no Antigo Testamento (Êx 20.5; 34.14; Dt 4.24; 5.9;
6.15), associado ao nome divino e/,42 "Deus". As formulações nas
cinco passagens diferem em detalhes. Nos dois textos do Decálogo
e em Êxodo 34.14, as palavras ’êl qannã ’ são atributos de Javé. A
menção dos deuses não acontece em Deuteronômio 4.24; 6.15.
O zelo de Javé consiste no fato de ser ele o único para Israel e
não compartilhar o amor e a adoração com nenhuma divindade
das nações. Esse direito de exclusividade era algo inusitado na
época e único na história das religiões, pois os cultos pagãos anti
gos eram tolerantes em relação a outros deuses. O termo "zeloso"
contém noções de paixão e intolerância; exprime a disposição de
Javé abençoar Israel e fazê-lo prosperar, não aceitando um cora
ção dividido. Essa linguagem é representada no relacionamento
entre marido e esposa no casamento, na fidelidade (Ct 8.6) e na
infidelidade (Os 1.2).
As ameaças sobre as gerações daqueles que aborrecem Javé
são para os descendentes que continuam envolvidos no pecado
I 4 6 í OS DEZ M ANDAMENTOS - VALORES DIVINOS PARA U M A SOCIEDADE EM CONSTANTE MUDANÇA
41 K 3 |5 .
N Ã O FARÁS IMAGENS DE ESCULTURA I 4 7
dos pais, as sucessivas gerações que aprenderam os pecados
dos seus ancestrais e vivem ainda neles. Este princípio aparece
outras vezes no Antigo Testamento além das duas passagens
do Decálogo (ÊX34.7; Nm 14.18; Jr 32.18). Deus não permite que
filhos inocentes sejam responsabilizados pela maldade dos pais
(Dt 24.16; 2 Rs 14.6; Ez 18.2, 3, 20). O verbo "visitar",pãqad,4i
em hebraico, indica uma visita, no sentido de cuidar e também
de castigar. O profeta Jeremias emprega esse verbo em ambos
os sentidos (Jr 23.2).
A expressão "terceira e quarta geração" indica qualquer nú
mero ou plenitude e não se refere necessariamente à numeração
matemática, pois se trata de máxima comum na literatura semí-
tica (Am 1.3, 6, 11, 13; 2 .1, 4, 6; Pv 30.15., 18, 21, 29). O objetivo
aqui é contrastar o castigo para a "terceira e quarta geração"
com o propósito de Deus de abençoar a milhares de gerações.
Outras máximas aparecem no Antigo Testamento com números
diferentes: "dois e três” (Jó 33.29); "seis e sete" (Jó 5.19; Pv 6.16);
"sete e oito" (Ec 11.2; Mq 6.5), para expressar que a medida da
iniqüidade está cheia e não há como suspender a ira divina ou a
plenitude de algo positivo.
Os expositores da doutrina conhecida como maldição he
reditária costumam usar de maneira isolada uma parte deste
mandamento, "visito a maldade dos pais nos filhos até à terceira
e quarta geração daqueles que me aborrecem", para fundamentar
a sua teoria. Afirmam que, se alguém tem problemas com adul
tério, pornografia, divórcio, alcoolismo ou tendências suicidas é
porque alguém de sua família, no passado, não importa se avós,
bisavós ou tataravós, teve esse problema. Nesse caso, a pessoa
afetada pela maldição hereditária deve, em primeiro lugar, des
cobrir em que geração seus ancestrais deram