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Enrique Leff A e d it o r a ( I I ) i « | VOZES % * > / PNUMA 4® Edição C o l e ç ã o E d u c a ç ã o A m b i e n t a l - Desenvolvimento e meio ambiente - As estratégias de mudanças da Agenda 21 (José Carlos B a r b i e r i ) _________________ r-, , _ , , , r, /-t ~ ' • ASSOCIAÇÃO BRASJfRA D€ DR3TOS REPROG«ÁHCOS - Educaçao ambiental - Reflexões e praticas . „ contemporâneas (Alexandre de Gusmão Pedrini (Org.) - Democratização e gestão ambiental - Em busca do ° DmEn° desenvolvimento sustentável (Francisco A. Brito e João B.D. Câmara) - Educação ambiental - Uma metodologia participativa de form ação (Naná Minninni Medina e Elizabeth da Conceição Santos) - A modernidade insustentável - As criticas do ambientalismo à sociedade contemporânea (Héctor Ricardo Leis) - A emergência do paradigma ecológico - Reflexões ético-filosóficas para o século X X I (M.L. Pelizzoli) - Canibais da natureza - Educação ambiental, limites e qualidade de vida (Célia Jurema Aito Victorino) - Saber ambiental - Sustentabilidade, racionalidade, complexidade, poder (Enrique Leff) - O contrato social da ciência - Unindo saberes na educação ambiental (Alexandre de Gusmão Pedrini (Org.) Dados In ternacionais de C atalogação na Publicação (CIP) (C âm ara B rasileira do L ivro, SP, Brasil) Leff, Enrique Saber ambiental : sustentabilidade, racionalidade, complexidade, poder / Enrique L e ff; tradução de Lúcia Mathilde Endlich Orth - Petrópolis, RJ : Vozes, 2001. Título original: Saber am bien tal: sustentabilidad, racionalidad, complejidad, poder. ISBN 85.326.2609-2 Bibliografia 1. Desenvolvimento sustentável 2. Economia ambiental 3. Educação ambienta! I. Título. 01-2964 CDD-304.2 índices p ara catálogo sistem ático: 1. Saber ambiental : Sociologia 304.2 Enrique Leff SABER AMBIENTAL Sustentabilidade, racionalidade, complexidade, poder 4a Edição Tradução dc Lúcia Mathilde Endlich Orth A 'a. ( f i EDITORA V t VOZES I P N U M A 2005 © 1998, Enrique Leff Título original: Saber ambiental: Sustentabilidad, racionalidad, complejidad, poder Direitos de publicação em língua portuguesa: Editora Vozes Ltda. Rua Frei Luís, 100 25689-900 Petrópolis, RJ Internet: http://www.vozes.com.br Brasil Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora. BRAGANÇA PAULISTA • (11) 4034-8000 Av. Slo Francisco do Aaala, 218 • Jd. 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A reapropriação social da natureza, 65 6. Ética ambiental e direitos culturais, 83 7. Ambiente e movimentos sociais, 96 8^)Cidadania, globalização e pós-modemidade, 118 ' 9. O conceito de racionalidade ambiental, 133 10. A formação do saber ambiental, 145 11. Sociologia do conhecimento e racionalidade ambiental, 155 12. Matematização do conhecimento e saber ambiental, 167 13. O inconsciente in(ter)disciplinar, 180 ^ 1 4 . Psicanálise e saber ambiental, 1 8 7 ^ 15. Universidade, interdisciplinaridade e formação ambiental, 199 16. Conhecimento e educação ambiental, 222 17. Educação ambiental e desenvolvimento sustentável, 236 18. A pedagogia do ambiente, 253 19. Cultura, epistemologia política e apropriação do saber, 262 20. Habitat/Habitar, 282 '2 1 . Demografia e ambiente, 296 22. Tecnologia, vida e saúde, 310 -► 23 Qualidade de vida e racionalidade ambiental, 319des de a administração e a contabilidade ambiental até novas teo rias que intemalizam a natureza e a cultura como potenciais para um desenvolvimento sustentável (Leff, 1994a; 2000). Conflito de interesses pelo desenvolvimento sustentável A problemática ambiental converteu-se numa questão eminentemente política. Os conflitos socioambientais emer gem de princípios éticos, direitos culturais e lutas pela apro priação da natureza que vão além da intemalização dos cus tos ecológicos para assegurar um crescimento sustentado. As identidades culturais e os valores da natureza não podem ser contabilizados e regulados pelo sistema econômico. A pobre za, a degradação ambiental, a perda de valores e práticas cul turais e a eqüidade transgeracional; a produtividade natural e a regeneração ecológica, a degradação entrópica de massa e energia, o risco e a incerteza - todas estas “externalidades” - constituem processos incomensuráveis que não podem ser reabsorvidos pela economia conferindo-lhes um padrão co mum de medida através dos preços de mercado (Kapp, 1983). O discurso e as políticas da sustentabilidade estão abrin do um campo heterogêneo de perspectivas alternativas, mar cado pelo conflito de interesses em tomo da apropriação da natureza. Nos países do Norte, suas preocupações se concen tram nos problemas ambientais globais (mudança climática, aquecimento da Terra, chuva ácida, perda de biodiversidade) 45 gracihelem Highlight que, rompendo os equilíbrios ecológicos do planeta, colocam em perigo a sustentabilidade do sistema econômico. As con dições ecológicas da produção e da preservação do ambiente são consideradas como um custo que deve ser internalizado pelo sistema econômico, levando a uma capitalização crescen te da natureza. Seus problemas mais visíveis são o controle da contaminação e a disposição de rejeitos gerados pelos altos ní veis de produção e consumo. A ética ambientalista se orienta para os valores do ócio gerado pela sociedade pós-materialista, ao mesmo tempo em que uma moral conservacionista se opõe ao estilo de vida do hiperconsumo, e uma ecologia social se funda nos princípios de uma gestão local, descentralizada e democrática dos recursos (Bookchin, 1989). Certamente as ideologias do conservacionismo ecológi co não são exclusivas das instituições do Norte. Com a globa lização do discurso do desenvolvimento sustentável penetra ram nas políticas e nas ações ecologistas dos países do Sul. Muitos governos embarcaram numa política neoliberal e al guns deles reivindicaram inclusive seu direito de consumir seus recursos naturais para impulsionar seu crescimento eco nômico e atenuar a brecha que os separa dos países ricos, não atendendo ao convite da comunidade internacional de contri buir para uma solução global dos problemas ambientais. Não obstante o que acabamos de dizer, nos países pobres estão em andamento novos desenvolvimentos teóricos e pers pectivas políticas face à sustentabilidade, a partir de uma per cepção mais crítica e consciente de suas condições ecológi cas, culturais, econômicas e políticas. Desta maneira, na Amé rica Latina vem sendo construído um conceito de ambiente, entendido como um potencial produtivo que emerge da inte gração sinergética de processos ecológicos, culturais e tecno lógicos. O ambiente é constituído de um sistema complexo através da articulação de diversas ciências e do amálgama de 46 diversos saberes, para conduzir um processo de gestão demo crática e sustentável dos recursos naturais (Leff, 1986). É assim que dos países tropicais do Terceiro Mundo emer ge um novo paradigma de produção, baseado no potencial ecológico de sua geografia e na pluralidade de suas identida des étnicas. Este paradigma ambiental promove a sustentabi lidade a partir de suas bases ecológicas e culturais, através da descentralização da economia e da diversificação dos tipos de desenvolvimento, mobilizando a sociedade a reapropri- ar-se de seu patrimônio de recursos naturais e a autogerir seus processos de produção. Mas os efeitos da globalização econômica se combinam hoje com processos ecológicos em escala planetária, gerando uma espiral negativa de degradação ambiental que está alte rando a dimensão dos problemas. A complexidade se apre senta como potenciais sinergéticos, mas também como efei tos destrutivos. Assim, o aquecimento global, produzido pela crescente emissão de gases de efeito estufa, provenientes do crescimento da produção para o mercado, está mudando as condições climáticas nas quais se desenvolvem práticas tra dicionais de uso do solo como o roçado, a derrubada e a quei ma. Desta forma, a globalização econômica junto com as mu danças ambientais globais estão deslocando as práticas tradi cionais de produção. As formas tradicionais de uso do fogo deixam de ser práticas sustentáveis e controladas converten do-se em verdadeiros riscos, provocando incêndios incontro- láveis de pastagens e florestas, encadeando seus efeitos e ace lerando o aquecimento global, as mudanças climáticas, a seca, a contaminação, a perda econômica de colheitas e a destrui ção da biodiversidade. No Sul, o ambientalismo não surge da abundância, mas da luta pela sobrevivência em condições de uma crescente degradação socioambiental. Assim, tanto os camponeses e os 47 povos indígenas, como a população urbana marginalizada, estão se organizando e lutando em resposta à extrema pobre za gerada pela destruição de seus recursos naturais, à degra dação de suas condições de produção e à falta de equipamen to e saneamento básico. Os movimentos ambientais são lutas de resistência e protesto contra a marginalização e a opressão, e reivindicações por seus direitos culturais, pelo controle de seus recursos naturais, pela autogestão de seus processos pro dutivos e a autodeterminação de suas condições de vida. Estas lutas pela erradicação da pobreza vinculam a sustentabilida de à democracia; entrelaçam-se com a reivindicação de suas identidades culturais, com a reapropriação de conhecimentos e práticas tradicionais e o direito das comunidades para de senvolver formas alternativas de desenvolvimento. A sustentabilidade aparece como uma necessidade de restabelecer o lugar da natureza na teoria econômica e nas práticas do desenvolvimento, intemalizando condições eco lógicas da produção que assegurem a sobrevivência e um futuro para a humanidade. Não obstante, a busca de consen sos sobre “nosso futuro comum” (CMMAD, 1988) não uni fica as visões do futuro nem as estratégias de passagem para o desenvolvimento sustentável: o discurso sobre a sustenta bilidade não é homogêneo nem está livre do conflito de inte resses — muitas vezes opostos - dos atores sociais que mobi lizam e resistem a este processo de mudanças históricas, não só como visões diferenciadas entre países, mas dentro de cada nação. Da vontade de capitalizar a natureza através do mercado à descentralização da economia e à construção de uma racionalidade am biental baseada em princípios não-mercantis (potencial ecológico, eqüidade transgeracio nal, justiça social, diversidade cultural e democracia), a sus tentabilidade se define através de significados sociais e es tratégias políticas diferenciados. 48 Eqüidade, distribuição e sustentabilidade A economia ecológica questiona os fundamentos da eco nomia a partir da percepção de seus limites ecológicos e entró- picos, abrindo um campo de pesquisa sobre as condições eco lógicas da sustentabilidade. Desta maneira, concentrou seu in teresse nos problemas de escassez de energia e recursos, na contaminação e nos meios tecnológicos para resolvê-los. As questões da eqüidade e da distribuição são consideradas como “problemas de limites” que surgem da pressão que uma popu lação crescente exerce sobre recursos escassos e o impacto de sigual da degradação ambiental (Costanza, 1989). A condição de escassez, base da ciência econômica, pas sou do processo de substituição contínuade recursos esgota dos para uma escassez global induzida pela expansão econô mica. O conceito de escassez expandiu-se para incluir o esgo tamento de “meta-recursos” (Erlich, 1989), entendido como o efeito multiplicador da degradação dos serviços ambientais e do potencial produtivo dos ecossistemas. Porém a destrui ção ecológica e o esgotamento dos recursos não são proble mas gerados por processos naturais, mas determinados pelas formas sociais e pelos padrões tecnológicos de apropriação e exploração econômica da natureza. Os problemas de eqüida de e distribuição foram gerados pela acumulação capitalista, muito antes que ela alcançasse seus limites ecológicos. É a ra cionalidade intrínseca do crescimento econômico que destrói as condições ecológicas e culturais da sustentabilidade ao in crementar o transfluxo (throughput) de matéria e energia, ge rando uma escassez global de recursos, resultante da destrui ção ecológica, da degradação ambiental e do incremento da entropia ( 0 ’Connor, 1988, 1998; Leff, 1994a, 2000). Além dos limites ecológicos ao crescimento e de suas pos síveis soluções tecnológicas e econômicas, os conflitos e es tratégias de poder pela apropriação da natureza estão deter- 49 -3ionaia hojo • jdjn minando as formas sociais sancionadas e legitimadas de aces so e uso dos recursos naturais. Como afirma Martínez Alier (1995), a ciência não oferece critérios para avaliar os confli tos distributivos. Estes não podem estabelecer-se a partir de critérios de racionalidade econômica ou racionalidade ecoló gica, porque nenhum sistema de avaliação pode estabele cer-se independentemente da política. Ao “naturalizar” os limites do crescimento, a economia ecológica se separa do campo da ecologia política. Ao redu zir as condições ecológicas da sustentabilidade à resolução ^ de problemas ambientais e demográficos, a distribuição dos o custos sociais e ecológicos desaparece de seu foco teórico. uj Como resultado, a economia ecológica se preocupa em atua lizar as preferências futuras dos consumidores, mas exclui o problema da eqüidade intergeracional, sob o falso argumento de que este já teria sido resolvido pela economia da abundân cia (dotando todo cidadão do Primeiro Mundo de alimento, moradia e dois carros), e transferindo a justiça social para um problema de sustentabilidade das instituições sociais (Proops, 1989). Desta maneira, as ideologias da pós-escassez (Inglehart, 1991) e o propósito de desmaterializar a produção (Hinterberger e Seifert, 1995) penetraram nos enfoques da economia ecológica ao problema da sustentabilidade. Bioeconomia, produtividade ecotecnológica e neguentropia A economia ecológica reconhece a importância de con servar a base de recursos e os equilíbrios ecológicos. Entre tanto, subestimou o potencial produtivo da natureza, particu larmente dos complexos, produtivos e biodiversos ecossiste mas tropicais. Enquanto as estratégias de produção desenvol vidas pelas civilizações meso-americanas foram subjugadas pelo imperialismo ecológico (Crosby, 1986) gerado pela as- 50 censão do capitalismo e pelo processo de industrialização, os intuitos dos fisiocratas em ver na natureza a fonte do valor (Kuczynski e Meek, 1980) foram esquecidos com a legitima ção da ciência econômica que colocou os fundamentos da produção na produtividade do capital, na força de trabalho e na mudança tecnológica. O triunfo da racionalidade moder- nizadora interrompeu assim a evolução de formas alternati vas de etnoecodesenvolvimento. Hoje em dia, a economia está desprovida de uma teoria do valor (Leff, 1980;Naredo, 1987; Martínez Alier e Schlüp- mann, 1991; Altvater, 1993). A teoria econômica não conta com meios objetivos para medir as equivalências para o inter câmbio de valores de uso (menos ainda para a medição de va lores não-econômicos). Os preços de mercado são sinais fal sos da escassez de recursos e do potencial da natureza; não podem servir de indicadores para uma determinação racional dos fatores produtivos nem para internalizar os custos das ex- ternalidades ambientais. Mais ainda, o socialismo pré-ecoló- gico deixou de ser “a alternativa” (Bahro, 1979) ao capitalis mo antiecológico, abrindo o campo à construção de um novo ecossocialismo (Leff, 1994a, 2000; 0 ’Connor, 1998). Conseqüentemente, a economia deve ser reconstruída. Isto levanta a questão de fundamentar uma nova teoria da produção que intemalize as condições ecológicas e sociais do desenvolvimento sustentável; que leve em conta os comple xos processos ambientais gerados pelo potencial ecotecnoló- gico de diferentes regiões, mediado pelos valores culturais e pelos interesses sociais das populações: os sistemas simbóli cos, os estilos étnicos e as práticas produtivas, através dos quais são valorizados os recursos potenciais da natureza; as regras sociais estabelecidas pelos direitos de acesso e apro priação, e pelas formas de exploração dos recursos naturais; os padrões tecnológicos que permitem a regeneração ecoló gica e a reciclagem do lixo. A “bioeconomia” de Georgescu-Roegen reconhece os li mites impostos pela segunda lei da termodinâmica ao objeti vo de um crescimento sustentável; mas não oferece uma nova medida de valor nem um modo alternativo de produção. O potencial de auto-organização da natureza e a produtividade primária dos ecossistemas foram subvalorizados e desconhe cidos. Desta maneira, a racionalidade econômica gerou uma crescente apropriação destrutiva da produtividade ecológica do planeta (Vitousek, 1986), desestimando ao mesmo tempo a possibilidade de construir uma bioeconomia a partir da pro dutividade neguentrópica de biomassa e de biodiversidade a partir do fenômeno da fotossíntese1. O potencial da energia solar concentrou-se em seu uso tecnológico e limitou-se por causa dos custos atuais dos cole tores solares e da concorrência com outras fontes de energia. Entretanto, foram bloqueadas outras perspectivas de desen volvimento e aproveitamento da capacidade das florestas tro picais biodiversas e de sistemas agroflorestais como coleto res e transformadores biológicos da energia radiante do Sol em biomassa, desconhecendo os problemas da agricultura ecológica para reduzir os insumos de fontes não renováveis de energia e de recursos naturais, e da ecologia produtiva para equilibrar e reverter a degradação entrópica gerada pela capi talização da natureza e pelo processo de industrialização. O potencial de formação de biomassa através da fotossín tese pode converter-se na base de um paradigma alternativo de produção. A produtividade primária líquida dos ecossiste 1. Vitousek ctal. (1986) fizeram uma estimativa de que os humanos se apropriam de apro ximadamente 40.4 petajoules (1 Pj = 106 quilocalorias) da produtividade primária li quida (PPL) do planeta, cuja produção potencial de 58.1 Pj está sendo fortemente redu zida devido à transformação dos padrões de uso do solo (9.0 devido aos usos agrícolas, 1.4 à transformação de florestas cm pastagens, 4.5 à dcsertificação c 2.6 à urbaniza ção). Desta maneira, os autores argumentam que os 40% da PPL potencial são usados c se perdem devido à intervenção humana, enquanto que poderiam contribuir para o in cremento da biodiversidade como condição da sustentabilidade c fonte de valor econô mico, e prognosticam que “com os atuais padrões de exploração, distribuição c consu mo, o incrcmcnto da população não poderia sustentar-se sem cooptar mais da metade da PPL terrestre”. 52 mas tropicais pode alcançar colheitas anuais sustentáveis de até 10% em formação de nova biomassa (Rodin et al., 1975; Leigh, 1975;Lieth, 1978). Estes níveis de produtividade eco lógica podem parecer baixos, comparados com agrossiste- mas artifícializados; mas se forem internalizados os custos ecológicos e avaliada a sua eficiência a longo prazo, a agri cultura capitalizada mostra seu caráter insustentável (Leff, 1994a, cap. 7; 2000). Por outro lado, o manejoprodutivo dos ecossistemas, através de processos de regeneração seletiva ou de sistemas de cultivos múltiplos agroflorestais e agroecológicos, pode gerar uma colheita permanente de recursos naturais e uma oferta sustentável de satisfatores com altos níveis de produti vidade ecotecnológica. O manejo múltiplo e produtivo dos recursos da biodiversidade pode gerar níveis cada vez mais altos de produtividade sustentada através da inovação e apli cação de novas biotecnologias que incrementem a produtivi dade primária dos ecossistemas naturais, satisfazendo assim as necessidades fundamentais de populações crescentes. Ao valorizar a importância da fotossíntese como um pro cesso neguentrópico, a bioeconomia poderia construir uma teo ria positiva da produção, capaz de equilibrar a produção natural de biomassa com a degradação entrópica da matéria e da energia que entram no processo econômico, seja no metabolismo dos organismos vivos ou nos processos de transformação tecnológi ca. Esta aproximação da ecologia produtiva a uma economia sustentável oferece importantes perspectivas de desenvolvi mento às regiões tropicais; permite foijar uma nova economia, amalgamando a produtividade ecológica com os valores cul turais e com o potencial científico-tecnológico2. 2. Neste sentido, Theotonio dos Santos (1993:99) assinala que “a possessão de energia so lar e das imensas reservas de biomassa, assim como a acumulação gigantesca de biodi versidade do planeta, converte os países tropicais (...) numa base estratégica para as no vas tecnologias que se desenvolvem no final do scculo XX, anunciando um novo pa drão tecnológico que alterará substancialmente a estrutura gcopoiítica mundial [e] in sistimos sobre o papel decisivo das relações sociais de produção, da educação, do trei namento sob a direção de um projeto econômico c social libertário c progressista”. 53 Em contraste com a economia ecológica, a ecologia políti ca reconhece as lutas populares pela eqüidade e pela democra cia e os movimentos ambientalistas que se opõem à capitaliza ção da natureza, reclamando o controle direto de seu patrimô nio de recursos naturais. A resistência social à degradação am biental e a resposta dos danos ecológicos mobiliza a intemali- zação dos custos ecológicos que não são contabilizados pelos instrumentos econômicos e pelas normas ecológicas. Porém a característica mais importante destes movimen tos emergentes não é tanto servir de correia de transmissão dos custos ecológicos invisíveis ao mercado para o interior da racionalidade econômica, mas sua contribuição para a cons trução de outra racionalidade produtiva, sobre bases de sus tentabilidade ecológica, eqüidade social e diversidade cultu ral. Através da reafirmação de seus direitos à autogestão de seu patrimônio de recursos naturais e culturais, as comunida des estão internalizando as condições para um desenvolvi mento sustentável. Neste sentido, estão revalorizando a pro dutividade ecológica e os valores culturais integrados nos sa beres e nas práticas tradicionais de uso de seus recursos. Esta nova racionalidade produtiva não só está sendo cons truída como uma proposta teórica, mas está sendo mobilizada pela emergência de novos atores sociais do ambientalismo de base (Leff, 19966, 2000), ressignificando o discurso da sus tentabilidade dentro dos valores e interesses que orientam um processo de reapropriação social da natureza. Este paradigma de produtividade ecotecnológica sustentável busca reduzir a destruição ecológica, o esgotamento de recursos e a degrada ção entrópica, incrementando a produtividade ecológica e ampliando a contribuição da produção neguentrópica de bio- massa no processo produtivo global. Este paradigma está sendo internalizado por grupos indígenas e camponeses em E c o lo g ia p o l í t ic a e e c o lo g ia p r o d u t iv a 54 suas lutas para recuperar o controle de seus processos produ tivos, o que inclui a autogestão da biodiversidade na qual ha bitam e as biotecnologias que geraram como saberes e técni cas para a transformação do meio no qual coevoluíram atra vés da história (Hobbelink, 1992; Leff, 1995). A construção deste paradigma ecoprodutivo permitiria es tabelecer novos equilíbrios ecológicos e dar bases de sustenta bilidade ao processo econômico, equilibrando a produção ne- guentrópica de recursos biológicos com a degradação entrópi- ca dos processos tecnológicos. Além disso permitiria aliviar a pobreza e melhorar a qualidade de vida de uma população cres cente através de um processo descentralizado de produção, aberto a diversos tipos de desenvolvimento, em harmonia com as condições ecológicas e culturais de cada região. 4 - DEM OCRACIA AMBIENTAL E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL* Mudança global, deterioração ambiental e pobreza A degradação ambiental emerge do crescimento e da globalização da economia. Esta escassez generalizada se manifesta não só na degradação das bases de sustentabilida de ecológica do processo econômico, mas como uma crise de civilização que questiona a racionalidade do sistema so cial, os valores, os modos de produção e os conhecimentos que o sustentam. A natureza se levanta de sua opressão e toma vida, reve lando-se à produção de objetos mortos e à coisificação do mundo. A superexploração dos ecossistemas, que os proces sos produtivos mantinham sob silêncio, desencadeou uma força destrutiva que em seus efeitos sinérgicos e acumulati- vos gera as mudanças globais que ameaçam a estabilidade e sustentabilidade do planeta: a destruição da biodiversidade, a rarefação da camada estratosférica de ozônio, o aquecimento global. O impacto dessas mudanças ambientais na ordem eco lógica e social do mundo ameaça a economia como um cân cer generalizado e incontrolável, mais grave ainda do que as crises cíclicas do capital. A problemática ambiental abriu um processo de transfor mação do conhecimento, expondo a necessidade de gerar um * Texto redigido com base numa exposição feita no Colóquio de Inverno, “Los grandes câmbios de nuestro tiempo: la situación internacional, América Latina y México”, reali zado na Cidade do México de 10 a 21 de fevereiro de 1992, publicado por Unam/Cona- culta/FCE, 1993. 56 gracihelem Highlight método para pensar de forma integrada e multivalente os pro blemas globais e complexos, assim como a articulação de processos de diferente ordem de materialidade. Deste modo, o conceito de ambiente penetra nas esferas da consciência e do conhecimento, no campo da ação política e na construção de uma nova economia, inscrevendo-se nas grandes mudan ças do nosso tempo. A questão ambiental não se esgota na necessidade de dar bases ecológicas aos processos produtivos, de inovar tecno logias para reciclar os rejeitos contaminantes, de incorporar normas ecológicas aos agentes econômicos, ou de valorizar o patrimônio de recursos naturais e culturais para passar para um desenvolvimento sustentável. Não só responde à necessi dade de preservar a diversidade biológica para manter o equi líbrio ecológico do planeta, mas de valorizar a diversidade étnica e cultural da espécie humana e fomentar diferentes for mas de manejo produtivo da biodiversidade, em harmonia com a natureza. A gestão ambiental do desenvolvimento sustentável exi ge novos conhecimentos interdisciplinares e o planejamento intersetorial do desenvolvimento; mas é sobretudo um convi te à ação dos cidadãos para participar na produção de suas condições de existência e em seus projetos de vida. O desen volvimento sustentável é um projeto social e político que aponta para o ordenamento ecológico e a descentralização territorial da produção, assim como para a diversificação dos tipos de desenvolvimento e dos modos de vida das popula ções que habitam o planeta. Neste sentido, oferece novos prin cípios aos processos de democratização da sociedade que in duzem à participação direta das comunidades na apropriação e transformação deseus recursos ambientais. O neoliberalismo vem ocupando os espaços abertos pela queda do socialismo real, do burocratismo das economias planejadas e da ineficácia do Estado benfeitor. O capitalismo 57 gracihelem Highlight gracihelem Highlight gracihelem Highlight global penetrou em todos os interstícios da individualidade, da subjetividade e do cotidiano, convertendo a ambição de ganho no valor mais alto do homem, em motivação para a inovação, em razão de ser no mundo. O mundo acabou fican do apenas com o capitalismo real - mais real e transparente do que nunca - levando à sua mais clara expressão os princí pios da liberdade do m ercado-do intercâmbio sem fronteiras de mercadorias - aos quais em última análise não escapam nem a natureza nem a cultura. O mundo bipolar transita para uma nova configuração do poder, marcado pelo domínio de uma globalidade homogeneizante e unidimensional. Diante desta perspectiva, a utopia ambiental mobiliza a sociedade a construir uma nova racionalidade social e produtiva, abrindo novas opções a um processo de governabilidade democrática do desenvolvimento sustentável. As mudanças ambientais em nível global estão concen trando a maior atenção da comunidade científica mundial. Mas esses processos são efeito e estão vinculados a uma or dem econômica e uma racionalidade social também globais, que estabeleceram seu predomínio em escala mundial, pene trando nas políticas nacionais e nas economias locais. O em pobrecimento das maiorias também deixou de ser um fenô meno localizado e controlado, para converter-se na mais cla ra manifestação do fracasso da racionalidade econômica, seja no capitalismo ou no socialismo. Hoje, o número de pobres é maior do que nunca antes na história da humanidade, e a po breza extrema avassala mais de um bilhão de habitantes do planeta. Este estado de pobreza ampliada e generalizada não pode ser atribuído às taxas de fertilidade dos pobres, às suas formas irracionais de reprodução e à sua resistência a inte- grar-se no desenvolvimento. Hoje a pobreza é resultado de uma cadeia causai e de um círculo vicioso de desenvolvimen to perverso-degradação ambiental-pobreza, induzido pelo caráter ecodestrutivo e excludente do sistema econômico do minante (Leff, 1994c). 58 Esta “produção de pobreza” resultante da globalização do mercado esteve associada a um processo de destruição de identidades culturais, desarticulação do tecido social e “des mantelamento dos atores coletivos” (Zermeno, 1996). Mas ao mesmo tempo, um amplo processo de democratização está sendo impulsionado por uma nova força social para resolver de maneira pacífica e consensual os conflitos que o mundo moderno está atravessando, abrindo canais de participação para reconstruir as condições de sobrevivência da cidadania e reorientar os tipos de desenvolvimento da humanidade, lan çando uma corrente de ar fresco e criativo ao cerco homoge- neizante do macroprojeto neoliberal. Democracia e sustentabilidade Os economistas contrapõem o ambiente como externali- dade econômica ao ambiente como potencial no manejo sus tentável e sustentado dos recursos. Entretanto, não basta con siderar o ambiente como um custo frente aos benefícios do crescimento econômico; não obstante os esforços por capita lizar a natureza e o homem para ajustá-los aos mecanismos de valorização do mercado, existem processos ecológicos e va lores humanos impossíveis de serem reduzidos ao padrão de medida do mercado. O neoliberalismo ambiental e o discurso do “crescimento sustentável”, apesar do intuito de incorporar as bases ecológicas e as considerações de longo prazo na ra cionalidade econômica, não podem assimilar o sentido, os princípios e as condições de uma gestão democrática do de senvolvimento sustentável: a eqüidade social, a diversidade cultural, o equilíbrio regional, a autonomia e capacidade de autogestão das comunidades e a pluralidade de tipos de de senvolvimento. Se a economia se define como o processo de produção e distribuição de riqueza, este pode transformar-se e fundar-se em outras bases produtivas. A mudança de para digma não só é possível, mas impostergável. 59 Na confluência dos múltiplos interesses em jogo na tran sição para uma ordem econômica sustentável, abre-se um amplo espaço de concordâncias e um espectro de modelos so ciais alternativos. Neste processo, parece pouco realista en frentar o projeto neoliberal tão-somente com os valores de uma ética conservacionista. Um dos grandes desafios que a sustentabilidade enfrenta é a construção do conceito de ambi ente como um potencial produtivo sustentável, isto é, mate rializar o pensamento complexo numa nova racionalidade social que integre os processos ecológicos, tecnológicos e culturais, para gerar um desenvolvimento alternativo. O conceito de produtividade ecotecnológica conjuga a produtividade ecológica dos ecossistemas com a inovação de sistemas tecnológicos adequados à sua transformação, man tendo e melhorando a produtividade global através de projetos de uso integrado dos recursos, sujeitos à estrutura e funções de cada ecossistema e à capacidade de autogestão das comunida des e dos produtores diretos. Este projeto parte das necessida des das comunidades e de seus conhecimentos sobre o meio e seus recursos; das condições de apropriação de seu ambiente como meio de produção e do produto de seus processos de tra balho; da assimilação da ciência e da tecnologia moderna a suas práticas tradicionais para constituir meios de produção mais eficientes, respeitando suas identidades culturais. O desenvolvimento sustentável converte-se num projeto destinado a erradicar a pobreza, satisfazer as necessidades básicas e melhorar a qualidade de vida da população. A ges tão ambiental não se limita a regular o processo econômico mediante normas de ordenamento ecológico, métodos de ava liação de impacto ambiental e instrumentos econômicos para a valorização dos recursos naturais. Os princípios de raciona lidade ambiental oferecem novas bases para construir um novo paradigma produtivo alternativo, fundado no potencial ecológico, na inovação tecnológica e na gestão participativa 60 dos recursos; uma nova racionalidade social que amalgama as bases democráticas e os meios de sustentabilidade do pro cesso de desenvolvimento. A sustentabilidade do processo de desenvolvimento im plica o reordenamento dos assentamentos urbanos e o estabe lecimento de novas relações funcionais entre o campo e a ci dade. Desta forma, além das oposições entre crescimento eco nômico, conservação ecológica e preservação do ambiente, ou entre desenvolvimento urbano e rural, promovem-se no vas economias sustentáveis, baseadas no potencial produtivo dos sistemas ecológicos, nos valores culturais e numa gestão participativa das comunidades para um desenvolvimento en- dógeno autodeterminado. Daí surge o desafio de gerar estra tégias que permitam articular estas economias locais com a economia de mercado nacional e mundial, preservando a au tonomia cultural, as identidades étnicas e as condições ecoló gicas para o desenvolvimento sustentável de cada comunida de; isto é, de integrar as populações locais num mundo diver so e sustentável. Para levar esta proposta a níveis concretos de ação será preciso incorporar esta visão produtiva aos programas de “de senvolvimento social”. Além de seu caráter assistencial de fa zer frente aos impactos do desemprego, da marginalização e da pobreza, os programas de “solidariedade” e “aproveitamento integral dos recursos” devem promover o desenvolvimento das capacidades produtivas das comunidades. Neste sentido, poderão integrar-se os projetos produtivos das comunidades indígenas, rurais e urbanas, fundados em suas capacidades de autogestão, com programas nacionais de ordenamento ecoló gico do território e descentralização econômica. Abre-se assim a possibilidade de passar das políticas de conservação, descontaminaçãoe restauração ecológica, e dos programas de desenvolvimento social que incluem o alívio da pobreza dentro das políticas de recuperação econômica, 61 para uma economia sustentável, fundada em princípios de ra cionalidade ambiental. Desta maneira, fortalecer-se-ão as economias locais e regionais baseadas no manejo produtivo dos recursos, na complementação da oferta ambiental de di ferentes ecossistemas e na integração de mercados regionais. Estas economias locais sustentáveis poderão articular-se es trategicamente à economia de mercado, antepondo porém os princípios de racionalidade ambiental aos de racionalidade econômica. E desta maneira que se estará construindo uma passagem para a sustentabilidade global, estribada na diver sidade das condições locais de um desenvolvimento demo crático e sustentável. Transição democrática, gestão ambiental e apropriação social da natureza Como conseqüência dos conflitos socioambientais pro vocados pela racionalidade econômica dominante e pela cen tralização do poder, novos atores sociais têm vindo à cena po lítica fazendo novas reivindicações de melhoria da qualidade do ambiente e da qualidade de vida, como também de espaços de autonomia cultural e autogestão produtiva. O movimento ambiental incorpora novas reivindicações às demandas tradi cionais pelos direitos humanos e pela justiça social, assim como para satisfazer as necessidades básicas e as aspirações de desenvolvimento material e cultural da sociedade, contri buindo para gerar uma cultura política mais plural e para dar sentido aos processos de governabilidade democrática. Os princípios de gestão ambiental e de democracia parti cipativa propõem a necessária transformação dos Estados na cionais e da ordem internacional para uma convergência dos interesses em conflito e dos objetivos comuns dos diferentes grupos e classes sociais em tomo do desenvolvimento sus tentável e da apropriação da natureza. O fortalecimento dos 62 gracihelem Highlight projetos de gestão ambiental local e das comunidades de base está levando os governos federais e estaduais, como também intendências e municipalidades, a instaurar procedimentos para dirimir pacificamente os interesses de diversos agentes econômicos e grupos de cidadãos na resolução de conflitos ambientais, através de um novo contrato social entre o Estado e a sociedade civil. A gestão ambiental participativa está propondo, além da oportunidade de reverter os custos ecológicos e sociais da cri se econômica, a possibilidade de integrar a população margi nalizada num processo de produção para satisfazer suas ne cessidades fundamentais, aproveitando o potencial ecológi co de seus recursos ambientais e respeitando suas identidades coletivas. Assim estão surgindo “iniciativas descentradas” para construir uma nova racionalidade produtiva, fundada em prá ticas de manejo múltiplo, integrado e sustentado dos recursos naturais, adaptadas às condições ecológicas particulares de cada região e aos valores culturais das comunidades. As reivindicações do ambientalismo promovem os direi tos humanos por um ambiente sadio e produtivo, e reconhe cem o direito das minorias étnicas de preservar sua língua, seus territórios e sua cultura, incluindo o acesso e apropria ção de seus recursos ambientais como fonte de riqueza e base de um desenvolvimento econômico sustentável. Assim a pers pectiva ambiental do desenvolvimento transcende a via uni- dimensional do crescimento econômico, abrindo múltiplas opções produtivas, novas formas de vida social e uma diver sidade de projetos culturais. A perspectiva ambiental do desenvolvimento incorpora as condições e potenciais ecológicos aos processos de produ ção e traça cenários prospectivos que orientam as aplicações do conhecimento científico, assim como a assimilação de tec nologias ambientais apropriadas aos próprios produtores, como condição de fortalecer sua capacidade de autogestão. gracihelem Highlight Coloca-se assim a possibilidade de repensar a produção e o desenvolvimento das forças produtivas como um processo aberto à recuperação e melhoramento de práticas tradicionais de uso dos recursos, integrando os saberes e valores nos quais se arraigam as identidades culturais dos povos ao conheci mento científico e aos avanços da tecnologia moderna. Assim a cultura ambiental enriquece as perspectivas da transição democrática, estabelecendo não só a preservação da diversidade cultural e biológica, mas apresentando um projeto de democracia direta, inscrevendo as demandas de participa ção da sociedade numa política plural e numa economia des centralizada. Deste modo, os princípios da gestão ambiental do desenvolvimento abrem possibilidades promissoras aos po vos da América Latina e do Terceiro Mundo para a construção de um projeto histórico diverso como seus ecossistemas e suas etnias, responsável pelo destino das gerações futuras e solidá rio com as exigências atuais de justiça social, erradicação da pobreza e melhoria da qualidade de vida das maiorias, fundado no potencial oferecido pelo aproveitamento sustentável e eqüi- tativo de seus recursos naturais (Leff, 1994c). Não obstante, a transição para um desenvolvimento sus tentável não se fará por força da necessidade ou do instinto de sobrevivência da sociedade. A história mostrou ad nauseam e ad mortem como as ideologias, os interesses e o poder são capazes de burlar os mais elementares princípios morais de convivência pacífica entre os humanos. Estas mudanças não serão alcançadas sem uma complexa estratégia política, ori entada pelos princípios de uma gestão democrática do desen volvimento sustentável, mobilizada pelas reformas do Esta do e pelo fortalecimento das organizações da sociedade civil. Isto implica uma nova ética e uma nova cultura política que irão legitimando os direitos culturais e ambientais dos povos, constituindo novos atores e gerando movimentos so ciais pela reapropriação da natureza. 64 5 - A REAPROPRIAÇÃO SOCIAL DA NATUREZA* Os custos ambientais e o valor da natureza A reintegração da natureza na economia enfrenta o pro blema de traduzir os custos de conservação e restauração, as sim como os potenciais ecológicos numa medida homogênea de valor, atualizável e homologável com os preços de merca do. A valorização dos recursos naturais está sujeita a tempo- ralidades ecológicas de regeneração e produtividade que não correspondem aos ciclos econômicos; da mesma maneira os valores e interesses sociais que definem o significado cultu ral, as formas de acesso e os ritmos de extração e transforma ção dos recursos naturais constituem processos simbólicos e sociais, de caráter extraeconômico, que não se traduzem nem se reduzem a valores e preços do mercado. Não existe um instrumento econômico, ecológico ou tec nológico capaz de calcular o “valor real” da natureza na eco nomia. Contra a pretensão de reduzir os diversos valores do ambiente a uma unidade homogênea de medida, William Kapp (1983) advertiu que na avaliação comparativa da racio nalidade econômica, energética e ambiental, intervém pro cessos materiais heterogêneos. Além do mais, a economia permaneceu desprovida de uma teoria do valor capaz de con tabilizar de maneira racional, objetiva e quantitativa os cus * Texto elaborado a partir do artigo “De quién cs la naturalcza? Sobre la rcapropiación so cial de los recursos naturales”, cm Gacela Ecológica, n. 37, Mcxico, 1NE Scmamap, de zembro de 1995, p. 58-64. Uma versão resumida foi publicada cm Formación Ambiental, vol. 7, n. 15, 1996. 65 tos ambientais e o valor dos recursos naturais. Estes depen dem de percepções culturais, direitos comunais e interesses sociais que se estabelecem fora do mercado. Assim, a inter- nalização dos custos ecológicos e das condições ambientais da produção implica a necessidade de caracterizar os proces sos sociais que determinam o valor da natureza. A revalorização da natureza induzida pelo ambientalis-mo emergente está se refletindo na economia pela alta dos preços dos recursos e dos custos ambientais. Porém, o movi mento ambiental não só transmite os custos ecológicos ao sis tema econômico como uma resistência à capitalização da na tureza; as lutas sociais para melhorar as condições de susten tabilidade e a qualidade de vida abrem um processo de rea- propriação social da natureza. Portanto, o ambientalismo está propondo tanto a descentralização do processo de desenvol vimento, como uma reconstrução das próprias bases do pro cesso produtivo. Nesta perspectiva, o desenvolvimento sus tentável não se limita a tornar compatíveis a conservação e o desenvolvimento, intemalizando as condições ecológicas para um crescimento sustentado da economia; também leva a pensar o ambiente como um potencial para um desenvolvi mento alternativo, isto é, para construir um novo paradigma produtivo que integre a natureza e a cultura como forças pro dutivas (Leff, 1993). A natureza converte-se assim num meio de produção, objeto de uma apropriação social, atravessado por relações de poder. Nesta perspectiva, as condições ecológicas e comunais da produção são o suporte de uma nova racionalidade pro dutiva; nela se entrelaçam de maneira sinergética processos de ordem natural, tecnológica e cultural para gerar um po tencial ecotecnológico que foi desconhecido pela ordem econômica dominante. A sustentabilidade, fundada em princí pios de eqüidade, diversidade e democracia, abre perspecti vas sociais mais amplas que o simples reverdecimento da 66 economia através do cálculo dos custos da preservação e da restauração ambiental. Desta forma, o ambientalismo gera novas teorias e valores que questionam a racionalidade eco nômica dominante, orientando a ação social para a constru ção de outra racionalidade produtiva, fundada nos potenciais da natureza e da cultura. Distribuição ecológica e justiça ambiental A categoria de distribuição ecológica foi formulada para compreender as extemalidades ambientais e os movimentos sociais que emergem de “conflitos distributivos”; isto é, para explicar a carga desigual dos custos ecológicos e seus efeitos nas variedades do ambientalismo emergente, incluindo os mo vimentos de resistência e justiça ambiental. A distribuição eco lógica designa “as assimetrias ou desigualdades sociais, espa ciais, temporais no uso que os humanos fazem dos recursos e serviços ambientais, comercializados ou não, isto é, a diminui ção dos recursos naturais (inclusive a perda de biodiversida de) e o custo da contaminação” (Martínez Alier, 1997). Neste sentido, a distribuição ecológica compreende os processos extra-econômicos (ecológicos e políticos) que vin culam a economia ecológica à ecologia política, em analogia com o conceito de distribuição que transfere a racionalidade econômica para o campo da economia política. O conflito distribucional introduz na economia política do ambiente as condições ecológicas de sobrevivência e produção, como tam bém o conflito social que emerge das formas dominantes de apropriação da natureza e da contaminação ambiental. A dis tribuição ecológica aponta para processos de valorização que ultrapassam a racionalidade econômica em seus intuitos de atribuir preços e custos crematísticos ao ambiente, mobili zando atores sociais por interesses materiais e simbólicos (de sobrevivência, identidade, autonomia e qualidade de vida), 67 além das demandas estritamente econômicas de emprego e distribuição da renda. Face à economia convencional que pretende internalizar as extemalidades através da atribuição de direitos de proprie dade e preços a bens e serviços ambientais, a economia ecoló gica reconhece a distribuição econômica (da riqueza e da ren da) como determinante da valorização da natureza. A catego ria de distribuição ecológica incoipora assim o conflito gera do pela distribuição desigual dos custos ecológicos do cresci mento e sua intemalização através dos movimentos sociais em defesa do ambiente e dos recursos naturais. Os conflitos de distribuição ecológica expressam desta maneira a politiza- ção do campo das extemalidades. A distribuição ecológica levanta pois o véu economicista para descobrir na infravalorização ecológica e na produção de pobreza os mecanismos privilegiados que mantêm a or dem econômica globalizada; neste sentido, aparece como um conceito critico da economia convencional e denúncia de suas estratégias de dominação ecológica e cultural. Entre tanto, não consegue escapar do cerco da racionalidade eco nômica. O ambiente é concebido como um custo do processo econômico, não como um potencial para um desenvolvimen to alternativo. A noção de distribuição ecológica representa um termo conciliador entre a economia ecológica e a ecologia política (entre uma racionalidade econômica e uma racionalidade am biental). Desta maneira, concebe-se a apropriação excedente de biomassa de uma sociedade com relação à sua produção biológica, ou o depósito de rejeitos contaminantes além da capacidade de confinamento, absorção e diluição de seu es paço ambiental, como uma dívida ecológica', isto implica que ela poderia ser saldada com uma distribuição mais eqüitativa dos custos e potenciais ecológicos, ou ser compensada atra 68 gracihelem Highlight vés de movimentos por justiça ambiental dentro da ordem econômica prevalecente. No fundo, os “conflitos de distribuição ecológica” apare cem como conseqüência da negação da ecologia dentro da ra cionalidade econômica e da apropriação desigual dos recur sos ecológicos, dos serviços ambientais e do espaço atmosfé rico; isto é, resultam de um processo de apropriação destruti va, gerada por uma racionalidade produtiva antinatura. Cer tamente os movimentos de resistência à capitalização da or dem da cultura e as reivindicações compensadoras pelos da nos causados à natureza são uma resposta a estas formas de iniqüidade e injustiça dentro da ordem econômica, institucio nal e jurídica dominante. Porém, o “ecologismo dos pobres”, além de distinguir-se por seus objetivos (luta pela sobrevi vência) dos valores pós-materialistas (qualidade de vida) dos ricos, propõe projetos produtivos e sociais alternativos, onde toda luta pela eqüidade e pela justiça se trava a partir de prin cípios de diversidade e diferença, de identidade e autonomia, e não das transações e compensações estabelecidas pelas re gras de valorização, negociação, complementação e distribui ção da globalização econômico-ecológica. A dívida ecológica contraída com os países pobres e po vos espoliados ao longo de quinhentos anos de imperialismo ecológico (Crosby, 1986) estabelece uma brecha que não pode ser salva pela negociação de termos justos de intercâm bio e compensação, ou pelo poder dos movimentos de justiça ambiental. Nos dias de hoje, as organizações indígenas e cam ponesas reclamam a apropriação de seu patrimônio histórico de recursos ecológicos e culturais para conservá-los e trans formá-los através de valores culturais e princípios de auto- gestão, isto é, de processos que rompem as regras do jogo da ordem econômico-ecológica estabelecida, e suas formas de percepção e negociação da sustentabilidade. Neste campo emergente da ecologia política, o discurso pela apropriação 69 da natureza, pela autogestão da produção, pela diversidade cultural e pelas identidades étnicas define mais claramente o campo do conflito ambiental do que as categorias de impacto, custo, dívida e distribuição ecológica que se estabelecem den tro do discurso dominante da globalização. Não obstante seu valor simbólico para ecologizar e politi zar a economia, a categoria de distribuição ecológica não rompe com os conceitos que fundam a racionalidade econô mica. O uso analógico do conceito de distribuição e sua apli cação ao campo das extemalidades não chegam a fundar um novo paradigma de produção sustentável. Não é um conceito que oriente a construção de uma nova racionalidadeproduti va e social fundada na diversidade cultural e nos potenciais ecológicos, que elimine pela base as causas da insustentabili- dade e da desigualdade. Incomensurabilidade, diferença e mudança de paradigma Considerando a impossibilidade de reduzir os processos ambientais a valores de mercado, que se deduz do princípio de incomensurabilidade, não podem existir preços “ecolo gicamente corretos” mas tão-somente preços “ecologica mente corrigidos” por indicadores e normas ecológicos (Mar- tínez Alier, 1995). As influências culturais, sociais e institu cionais na valorização das extemalidades não coincidem com nenhum balanço contábil de custo-benefício, nem é possível atribuir taxas de desconto para atualizar preferênci as e valorizações futuras. Diante da impossibilidade da teoria marginalista de in corporar as extemalidades ambientais atribuindo-lhe preços, os movimentos sociais ambientalistas contribuem para ele var os custos ecológicos no cálculo econômico (Leff, 1985). 70 Contudo, as limitações impostas pelos movimentos de resis tência à apropriação capitalista da natureza (e da cultura), as ações e negociações compensadoras e os movimentos pela justiça ambiental dificilmente poderiam dar às extemalidades ambientais seu valor justo e real. Os pobres são espoliados e vendem barato seus recursos ambientais, mas a intemalização dos custos ambientais não se dará como uma “equalização” dos níveis de renda em escala mundial, e sim pela eficácia das estratégias de poder dos movimentos ambientalistas. Estas estratégias de poder - de resistência e negociação - surgem de valores culturais e simbólicos, como também de interesses sociais e políticos que não permitem dirimir os con flitos ambientais em termos estritamente econômicos. Neste sentido, afirmar que os movimentos sociais operam como um “mecanismo” que intemaliza os custos ecológicos levando-os ao seu justo valor, é uma formulação sugestiva, mas limitada. Na verdade, não há normas internas da economia nem da eco logia que permitam equacionar a questão da justiça ambiental, uma vez que não se trata de valores estritamente econômicos nem exclusivamente ecológicos que definem os “custos” e os sentidos mobilizadores em defesa da natureza e da apropriação dos potenciais ecológicos. A legitimação e força destes valores ambientalistas dependem da formação de consciências coleti vas, da constituição de novos atores sociais e da condução de ações políticas através de novas estratégias de poder em socie dades com democracias imperfeitas, onde a consciência am biental é pervertida pelas formas de simulação, cooptação e controle dos poderes dominantes. O “empoderamento” (empowerment) das pessoas como proposta para “distribuir o poder” resulta numa formulação voluntarista e vaga, que não permite compreender nem orien tar os movimentos sociais de justiça ambiental pela incorpo ração de princípios de eqüidade às condições de sustentabili dade. O poder não é um bem que pode ser subministrado e re 71 partido, mas uma relação de forças que surge no confronto de interesses diferenciados. A difer(a)ncia do poder que se mani festa como “essa discórdia ‘ativa’ em movimento, de forças di ferentes e de diferença de forças, que Nietzsche opõe a todo o sistema da gramática metafísica em toda parte onde governa a cultura, a filosofia e a ciência” (Derrida, 1989: 53), também se expressa no campo conflitivo do ambiental, face ao projeto de unidade do Estado-nação e do mundo globalizado. O que está por trás dos conflitos de distribuição ecológica são estratégias de poder em tomo de paradigmas sociais e ra cionalidades produtivas alternativas. É isto que se manifesta no cenário dos movimentos ambientalistas, e não só a exi gência de uma compreensão econômica, a obtenção de co tas de participação na tomada de decisões e o prorrogar para as gerações futuras a sustentabilidade do planeta, onde as opções estão prefixadas e limitadas pelos critérios e interes ses dominantes da globalização. É nesta ordem preestabele- cida que se definem os conflitos ambientais globais, os pro jetos de implementação conjunta, as compensações frente a dívidas e danos ecológicos já causados, conforme as regras de negociação dos centros financeiros, empresariais e tecno lógicos dominantes. O campo conflitivo da ecologia política extrapola uma análise de “distribuição ecológica” que acaba remetendo a um cálculo econômico. Além do problema da incomensura bilidade, o conflito ambiental abre um processo de diferenci ação de forças e processos. Na cena política estão surgindo novos movimentos sociais que articulam a defesa do ambien te e dos recursos com suas lutas pela democracia, pela auto nomia e a autogestão. Portanto, o conflito ambiental se apre senta num campo estratégico e político heterogêneo, onde se mesclam interesses sociais, significados culturais e proces sos materiais que configuram diferentes racionalidades, onde o “ecológico” pode continuar subordinado (por razões estra 72 tégicas, táticas e históricas) a reivindicações de autonomia cultural e democracia política, como exemplificam diferen tes movimentos camponeses e indígenas no México e na Amé rica Latina. A categoria de distribuição ecológica é inespecífíca para compreender os conflitos ambientais e ecológicos gerados pelo impacto da economia sobre o ambiente e a qualidade de vida do povo. Considerar o conflito socioambiental como um campo de lutas ecológicas distorce as relações que a defesa da “ecologia” mantém com as lutas pela autonomia cultural e pela democracia. Ou pode velar o caráter “ambiental” (e não meramente ecológico) de um movimento dos cidadãos em defesa de sua identidade coletiva, onde o problema de distri buição ecológica (entre o uso privado e o uso comunitário do ambiente) não se resolve através de uma negociação em torno de um conflito econômico-ecológico, com critérios técnicos de impacto ambiental e de custo-beneficio. Neste sentido es tão surgindo movimentos sociais que integram a resistência cultural como defesa de um estilo de vida, e a defesa do meio ambiente como um processo de reapropriação de seu entorno e seu patrimônio de recursos naturais. A noção de distribuição ecológica em sua transposição analógica ao campo das extemalidades não alcança o estatuto de um conceito teórico: não ocupa na economia ecológica o lugar que tem a distribuição econômica na economia sraffia- na ou na economia marxista, justamente por não ser conse qüente com o princípio de incomensurabilidade. Neste senti do, a categoria de distribuição ecológica reconhece os fatores extra-econômicos que valorizam o ambiente, mas não os cap ta em sua especificidade: condições de conservação e produ tividade ecológica sustentável, significado cultural dos re cursos, estratégias de poder na valorização das extemalida des ambientais, processos de reapropriação da natureza e do processo produtivo. A crise da racionalidade econômica leva, além da refuncionalização e abertura da economia ambiental para a ecologia, a propor estratégias de poder face a paradig mas alternativos, nos quais o ambiente não seja tratado como uma extemalidade (ou conflito de distribuição ecológica dentro da ordem econômica prevalecente), mas como o po tencial de uma nova racionalidade produtiva. Neste contexto, a incomensurabilidade entre ecologia e economia não só implica a impossibilidade de estabelecer valores econômicos independentemente da atribuição de di reitos de propriedade e da distribuição da renda, e dar valo res presentes a contingências futuras incertas. O sentido da incomensurabilidade leva a pensar a produção sustentável como um sistema complexo, integrado por processos ecoló gicos, tecnológicos e culturais de diferentes ordens de mate rialidade, com diferentes espacialidades, temporalidades e significações, que imprimem diferentes formas de valoriza ção do ambiente. A categoria de racionalidade ambiental internalizaa in comensurabilidade dos processos que a constituem (poten cial ecotecnológico, diversidade étnica, significado cultural), como um princípio epistemológico e político, rompendo com a ordem homogeneizante e dominante, incluindo os enfoques críticos da economia ecológica. A incomensurabilidade des tes processos não só se apresenta como uma dificuldade de traduzir as variáveis energéticas e ecológicas em medidas de mercado. O princípio de incomensurabilidade no campo da economia política do ambiente vai além da impossibilidade de encontrar um padrão de medida comum para custos e be nefícios extra-econômicos. O confronto entre racionalidade econômica e racionalidade ambiental implica um conceito mais forte de incomensurabilidade. Trata-se, num sentido kuhniano (Kuhn, 1962), da oposição de paradigmas irredutí veis, isto é, de serem intraduzíveis a preços do mercado e aos códigos do capital os valores e processos ambientais. Além das dissimetrias e desigualdades de uma economia ecologi- zada, o conflito ambiental coloca em jogo a construção de pa radigmas alternativos de desenvolvimento. Para isto será necessário criar os conceitos que permitam apreender os processos que orientam a construção dessa racio nalidade ambiental, diante da globalização econômico-ecoló gica, baseada em princípios de eqüidade social, diversidade cultural e sustentabilidade ecológica. Isto implica novos princípios de valorização da natureza, novas estratégias de reapropriação dos processos produtivos e novos sentidos que mobilizem e reorganizem a sociedade. Eqüidade e diversidade cultural O ambiente aparece como um sistema produtivo fundado nas condições de estabilidade e produtividade dos ecossiste mas e nos estilos étnicos das diferentes culturas que os habi tam. A articulação de processos ecológicos, tecnológicos e culturais determina as formas de apropriação e transforma ção da natureza e gera uma produtividade ecotecnológica sus tentável. Esta racionalidade ambiental não se constrói de cima para baixo, como um processo de planificação que im poria às comunidades e às nações as leis de uma nova ordem ecológica global. A construção desta nova ordem social se orienta por valores culturais diversos e se defronta com inte resses sociais opostos; nela se entrelaçam relações de poder pela reapropriação da natureza e pela autogestão dos proces sos produtivos. E nas comunidades de base e em nível local que os princí pios do ambientalismo tomam todo o seu sentido como po tencial produtivo, diversidade cultural e participação social, para a construção desta nova racionalidade produtiva. Este processo propõe o caráter específico e irredutível dos proces 75 sos materiais, como também das formas de significado cultu ral que definem o potencial ambiental do desenvolvimento. Não existe uma medida quantitativa e homogênea que possa englobar estes processos diferenciados, dos quais depende a produção sustentável de valores de uso, ou que possa dar con ta de seus efeitos na qualidade de vida da população, que se define por normas e valores culturais diversos. A produção sustentável não se reduz a uma medida de massa e energia nem a um cálculo quantitativo de valor-tra- balho. O desenvolvimento sustentável encontra suas raízes nas condições de diversidade ecológica e cultural para gerar um paradigma de produtividade ecotecnológica sustentável, a fim de estabelecer um equilíbrio entre a formação neguen- trópica de biomassa através da fotossíntese e a produção de entropia gerada pela transformação de matéria e energia nos processos tecnológicos e metabólicos. Esses processos de pendem da preservação dos ecossistemas que sustentam a produção de recursos bióticos e serviços ambientais, da efi ciência energética dos processos tecnológicos, dos processos simbólicos subjacentes à valorização cultural dos recursos naturais e dos processos políticos que determinam a apropri ação social da natureza. O princípio de eqüidade é indissociável dos objetivos do desenvolvimento sustentável. Além de ser um compromisso com as gerações futuras, apresenta-se como uma questão de solidariedade intrageracional, que implica tanto a distribui ção dos custos ecológicos como o acesso dos atuais grupos sociais aos recursos ambientais do planeta. A questão levan tada pelo processo de reapropriação social da natureza ultra passa a abordagem da eqüidade como um problema de distri buição ecológica; isto é, como uma repartição mais justa dos custos da degradação e contaminação ambiental, uma melhor avaliação do acervo de recursos dentro das contas nacionais e uma melhor distribuição da renda. 76 A questão da eqüidade na reapropriação da natureza não se limita a resolver os conflitos ambientais através de uma avaliação dos custos e benefícios derivados das formas atuais de exploração e uso da natureza, ou pela atribuição de “pre ços justos”, de direitos de propriedade e de formas adequadas de uso dos recursos. A democracia ambiental questiona a possibilidade de alcançar a justiça em termos da comensura- bilidade de custos e da equivalência de necessidades, deman das e direitos sobre os recursos que se definem através de sen tidos culturais diversos e dos interesses heterogêneos de gru pos sociais que se expressam nas lutas e estratégias pela apro priação da natureza. A reapropriação da natureza requer um princípio de eqüi dade na diversidade (Grünberg, 1995); isto implica a autono mia cultural de cada comunidade, a autodetenninação de suas necessidades e a autogestão do potencial ecológico de cada região em formas alternativas de desenvolvimento. Estes processos definem as condições de produção e as formas de vida de diversos grupos da população com relação ao manejo sustentável de seu ambiente. Os direitos de propriedade se definem como resultado das estratégias de poder e da eficácia dos movimentos sociais pela apropriação da natureza, em práticas alternativas de uso dos recursos que dependem de condições culturais e sociais diferenciadas. Desta maneira, a eqüidade não pode ser definida por um padrão homogêneo de bem-estar; não depende apenas da re partição do acervo de recursos disponíveis e da distribuição dos custos de contaminação do ambiente global. A partir da perspectiva de uma racionalidade ambiental, os objetivos de eqüidade e de sustentabilidade implicam abolir o domínio do mercado e do Estado sobre a autonomia dos povos, gerando condições para a apropriação dos potenciais ecológicos de cada região, mediados pelos valores culturais e pelos interes ses sociais de cada comunidade. 77 Direitos coletivos, democracia ambiental e apropriação da natureza Além dos valores do conservacionismo e do biocentris- mo, o ambientalismo se define por princípios de eqüidade, sustentabilidade, diversidade, autogestão e democracia. As lutas das comunidades indígenas e camponesas, como tam bém do urbanismo popular, estão associando os novos direi tos culturais com reivindicações pelo acesso e apropriação da natureza, nos quais subjazem estratégias de poder, valores culturais e práticas de produção alternativas. Estão sendo in corporadas aos novos direitos culturais e ambientais deman das para autogerir as condições de produção e os estilos de vida dos povos. Isto implica um processo de reapropriação da natureza como base de sua sobrevivência e como condição para gerar um processo endógeno e autodetenninado de de senvolvimento (Moguel, Botey e Hemández, 1992). As condições de existência das comunidades dependem da legitimação dos direitos de propriedade sobre seu patri mônio de recursos naturais, de seus direitos a preservar, sua identidade étnica e sua autonomia cultural, para redefinir seus processos de produção e seus estilos de vida. Neste sen tido, os novos direitos indígenas e ambientais vêm questio nando e transformando a norma estabelecida pelo sistema de regulamentação jurídica da sociedade, para abrir caminho a novas demandassociais e novas utopias. As reivindicações dos grupos indígenas, em suas lutas pela dignidade, pela au tonomia, pela democracia, pela participação e autogestão vão bem além das reivindicações de justiça em termos de uma melhor distribuição dos benefícios derivados do modo de produção, do estilo de vida e do sistema político dominantes. Isto nos leva a perguntar: De quem é a natureza? Quem outorga os direitos para povoar o planeta, explorar a terra e os recursos naturais, para contaminar o ambiente? Estes direitos 78 são decisões que se legitimam e (con)descem das alturas do poder sobre as pessoas como a fatalidade de uma lei natural, ou é a mobilização dos povos que transforma as relações de poder para redistribuir os custos ecológicos, reapropriar-se dos potenciais da natureza, fundar novos paradigmas de de senvolvimento e construir novas utopias? A reapropriação da natureza traz novamente ao cenário social a questão da luta de classes, não sobre a apropriação das forças produtivas industrializadas, mas sobre os meios e as condições naturais da produção. Porém, ao contrário da apropriação dos meios de produção e das forças naturais de sencadeadas pela tecnologia, o ambientalismo propõe a apro priação da natureza dentro de um novo conceito de produção - fundado nos potenciais ecológicos, tecnológicos e culturais - que orienta estratégias alternativas de uso dos recursos. Diante do esbulho e marginalização de grupos majoritá rios da população, da ineficácia do Estado e da lógica do mer cado para prover os bens e serviços básicos, a sociedade se le vanta reclamando seu direito de participar na tomada de deci sões das políticas públicas e na autogestão dos recursos pro dutivos que afetam suas condições de existência. Estes movi mentos estão se fortalecendo com a legitimação das lutas so ciais pela democracia. No terreno do ambiente, os novos direitos humanos estão incorporando a proteção dos bens e serviços ambientais co muns da humanidade, assim como o direito de todo ser huma no ao pleno desenvolvimento de suas potencialidades; pouco a pouco, as lutas das comunidades por sua autonomia local e regional vão reivindicando o direito aos seus recursos naturais. Aos novos direitos culturais (espaços étnicos, línguas indíge nas, práticas culturais) estão sendo integradas demandas po líticas e econômicas das comunidades que incluem o controle coletivo de seus recursos, a autogestão de seus processos pro- dutivos e a autodeterminação de seus estilos de vida.s Estes novos movimentos sociais estão redefinindo direitos de pro priedade e formas concretas de acesso, posse, apropriação e aproveitamento dos recursos naturais. A conservação e manejo da biodiversidade está se trans formando num caso paradigmático da contraposição de inte resses na apropriação da natureza. As estratégias das empre- • sas transnacionais de biotecnologia para apropriar-se da ri queza genética dos recursos bióticos opõe-se aos direitos das populações indígenas dos trópicos sobre seu patrimônio his tórico de recursos naturais. Esta questão não poderá ser resol vida através de uma compensação econômica, pois é impos sível contabilizar o valor econômico “real” da biodiversidade (resultado de séculos de coevolução) através do tempo de tra balho investido na preservação e produção do material gené tico, do valor atual de mercado de seus produtos, ou de seu fu turo potencial econômico. O aproveitamento da biodiversidade coloca um dilema: a apropriação da natureza pelo capital através dos direitos de propriedade intelectual, ou a legitimação dos direitos dos po vos indígenas sobre seu patrimônio de recursos naturais e culturais, efeito da evolução biológica e das formas culturais de seleção de espécies e uso dos recursos (Hobbelink, 1992; Martínez Alier, 1994). Neste sentido, os povos da floresta amazônica reclamaram seu direito de autogerir suas reservas extrativistas. No México, o estabelecimento da Reserva Cam- pesina de Biodiversidade dos Chimalapas está levando as co munidades a lutar pela regularização da propriedade de suas terras e a exercer um controle efetivo sobre o uso de seus re cursos. A inserção das comunidades indígenas e camponesas no âmbito da globalidade está gerando importantes lutas de resistência e um processo de ressituação no mundo da globa lização. Isto está levando à constituição de novas identidades e sua tradução numa força política (Escobar, 1997a). 80 Neste sentido, os povos indígenas e as comunidades rurais estão ressignificando o discurso da democracia e da sustenta bilidade para reconfigurar seus estilos de etnoecodesenvolvi- mento. Isto está desencadeando movimentos inéditos pela rea propriação e autogestão produtiva da biodiversidade, do habi tat no qual evoluiu a cultura destas comunidades ao longo da história e onde haverão de definir seus futuros projetos de vida. Autonomia, autogestão e democracia As possibilidades de erradicar a pobreza e melhorar a qualidade de vida das populações indígenas e camponesas dependem das condições de acesso, manejo e controle de seus recursos produtivos. Assim, o princípio de gestão par ticipativa dos recursos se integra a lutas emergentes por uma democracia a partir das bases. Esta democracia no proces so produtivo vai além da democracia formal e representati va. Ela aponta para uma reapropriação dos recursos natu rais e para a gestão coletiva dos bens e serviços ambientais das comunidades. Neste sentido, alguns dos novos movimentos sociais nas áreas rurais da América Latina fazem exigências além das reivindicações tradicionais na esfera econômica (por empre go, por melhores salários e por uma melhor distribuição da ri queza), ou na esfera política (por uma maior participação na tomada de decisões e pela pluralidade na política dos parti dos), ou na esfera cultural (pela defesa de valores culturais e pela diversidade étnica). Os movimentos rurais emergentes não só se unificam em sua rejeição das políticas neoliberais que geram exploração econômica, marginalização política, segregação cultural e degradação da natureza. Não lutam ape nas por uma maior eqüidade e participação dentro da ordem estabelecida, mas para construir uma nova ordem social; por uma reforma do Estado que inclua os povos indígenas em 81 condições de igualdade, o que significa reconhecer suas iden tidades étnicas e seus direitos culturais (González Casanova e Roitman, 1996; Leff, 19966, 2000). Essas lutas sociais pela democracia mobilizam a constru ção de uma nova ordem política e um novo paradigma produ tivo. Embora este germe ambientalista nem sempre transpa reça nas estratégias discursivas dos movimentos populares emergentes - centrados em lutas pela dignidade e pela auto nomia das comunidades indígenas e camponesas; pela demo cracia como condição de reapropriação de seus meios cultu rais e ecológicos de produção - muitos deles começam a ex pressar demandas pela revalorização de suas práticas tradi cionais de vida e pela autogestão de seus processos produti vos, dentro de suas reivindicações de autonomia cultural (Instituto Indigenista Interamericano, 1990;DíazPolanco, 1991; Torres, 1997; Gómez, 1997). Nesta perspectiva, o desenvolvimento sustentável vai além do propósito de capitalizar a natureza e de ecologizar a ordem econômica. A sustentabilidade ambiental implica um proces so de socialização da natureza e o manejo comunitário dos re cursos, fundados em princípios de diversidade ecológica e cultural. Neste sentido, a democracia e a eqüidade se redefi nem em termos dos direitos de propriedade e de acesso aos recursos, das condições de reapropriação do ambiente. As lutas das sociedades camponesas e indígenas estão se renovando nesta perspectiva ambientalista. Hoje, a luta por suas identidades culturais, seus espaços étnicos, suas línguas e costumes está entrelaçada com a revalorização de seu patri mônio de recursos naturais e culturais. Buscam assim recuperar o ambiente que habitaram e onde se desenvolveram histo ricamente, para reapropriar-se de seu potencial produtivo e orientá-lo para o melhoramento de sua qualidade de vida e de suas condições de existência, definidas por seus valores cul turais e suas identidades étnicas. 82 6 - ÉTICA AMBIENTAL E DIREITOS CULTURAIS* Ética, valores e racionalidade ambiental Todo sistema econômico e social é construído sobre pres supostos éticos, quer estejam incorporados ao aparelho instin tivo da raça ou da espécie - como nas doutrinas sociobiológi- cas (Wilson, 1975) - , quer provenham do desenvolvimento da cultura e do processo de assimilação-adaptação-transforma- ção do meio através das práticas produtivas, ou se concebam como princípios morais intrínsecos do ser humano. As doutrinas econômicas são construídas - de maneira explícita ou implícita - sobre teorias e pressupostos morais. Uma indagação sobre a natureza e a causa da riqueza das nações de Adam Smith segue sua Teoria dos sentimentos mo rais, e Weber viu o espírito do capitalismo na ética do protes tantismo. A racionalidade econômica fundou-se no pressu posto de agentes econômicos que, conduzidos por uma “mão invisível”, traduzem suas condutas egoístas num bem co mum; e a ética do trabalho, a frugalidade e a poupança estive ram associadas à reinversão de lucros e excedentes para ace lerar a acumulação do capital. Este processo, fundado na racionalidade econômica e no direito privado, gerou uma corrida desenfreada das forças pro * Texto redigido com base na exposição “La ética dei ccodesarrollo: hacia una racionalidad ambiental”, feita no II Congresso Internacional de Ética c Desenvolvimento, Universi- dad Autônoma de Yucatán, 3-8 de julho de 1989, publicada na Revista de la Universidad Autônoma de Yucatán, fevereiro de 1990, p. 33-45. 83 dutivas, ignorando as condições ecológicas de sustentabilida de da vida no planeta. Suas conseqüências foram não só a de vastação da natureza - do sistema ecológico que é o suporte fí sico e vital de todo sistema produtivo mas também a trans formação e destruição de valores humanos, culturais e sociais. Em tomo do princípio da igualdade dos direitos indivi duais, da poupança e do trabalho, do lucro e da acumulação, do progresso e da eficiência, construiu-se uma ordem inter nacional que levou à concentração do poder econômico e po lítico, à homogeneização dos modelos produtivos, dos pa drões de consumo e dos estilos de vida. Isso levou a desesta- bilizar os equilíbrios ecológicos, a desarraigar os sistemas culturais e a dissipar os sentidos da vida humana. A busca de status, de lucro, de prestígio, de poder, substituiu os valores tradicionais: o sentido de enraizamento, equilíbrio, pertença, coesão social, cooperação, convivência e solidariedade. O progresso econômico colocou o mundo às portas de uma sociedade de “pós-escassez”, fundada em valores pós-materiais e liberada dos constrangimentos da necessida de (Inglehart, 1991). Para os países industrializados, esta or dem global, polarizada e desigual, propõe uma nova ética frente à abundância, o desperdício e o uso do tempo livre. No entanto, para os países “subdesenvolvidos” se traduz num problema de sobrevivência, pobreza crítica, satisfação de ne cessidades básicas e dignidade humana. A racionalidade teórica e instrumental constitutiva da modernidade e sua expressão através de seus valores, seus códigos de conduta, seus princípios epistemológicos e sua ló gica produtiva geraram a destruição da base de recursos natu rais e das condições de sustentabilidade da civilização huma na. Isto desencadeou desequilíbrios ecológicos em escala pla netária, a destruição da diversidade biótica e cultural, a perda de práticas e valores culturais, o empobrecimento de uma po 84 pulação crescente e a degradação da qualidade de vida das maiorias. Esta crise do crescimento econômico leva a fundar um desenvolvimento alternativo sobre outros valores éticos, outros princípios de produção e outros sentidos societários, sem os quais a vida humana não será sustentável. Toda formação social e todo tipo de desenvolvimento es tão fundados num sistema de valores, em princípios que ori entam as formas de apropriação social e transformação da na tureza. A racionalidade ambiental incorpora assim as bases do equilíbrio ecológico como norma do sistema econômico e condição de um desenvolvimento sustentável; da mesma for ma se funda em princípios éticos (respeito e harmonia com a natureza) e valores políticos (democracia participativa e eqüi dade social) que constituem novos fins do desenvolvimento e se entrelaçam como normas morais nos fundamentos materi ais de uma racionalidade ambiental. Deste modo, a racionalidade ambiental se funda numa nova ética que se manifesta em comportamentos humanos em harmonia com a natureza; em princípios de uma vida de mocrática e em valores culturais que dão sentido à existência humana. Estes se traduzem num conjunto de práticas sociais que transformam as estruturas do poder associadas à ordem econômica estabelecida, mobilizando um potencial ambien tal para a construção de uma racionalidade social alternativa. As transformações na estrutura de produção, nos paradig mas do conhecimento e nos sistemas de valores implícitos nos princípios, objetivos e fins de uma racionalidade ambien tal mostram a necessidade de analisar seus fundamentos e es tratégias em termos de uma matriz de racionalidade que inte gra os valores e conhecimentos sobre os processos materiais que dão suporte a um paradigma ecotecnológico de produ ção, com a instrumentalidade de um processo participativo de gestão ambiental (Leff, 19946). 85 A ética ambiental propõe um sistema de valores associa do a uma racionalidade produtiva alternativa, a novos poten ciais de desenvolvimento e a uma diversidade de estilos cul turais de vida. Isto supõe a necessidade de ver como os princí pios éticos de uma racionalidade ambiental se opõem e amal- gamam com outros sistemas de valores: como se traduzem os valores ambientais em novos comportamentos e sentidos dos agentes econômicos e dos atores sociais. Trata-se de ver os princípios éticos do ambientalismo como sistemas que regem a moral individual e os direitos coletivos, sua instrumentação em práticas de produção, distribuição e consumo, e em novas formas de apropriação e transformação dos recursos naturais. O conceito de ambiente implica, pois, além de um equilí brio entre crescimento econômico e conservação da natureza, a possibilidade de mobilizar o potencial ecotecnológico, a cria tividade cultural e a participação social para construir formas diversas de um desenvolvimento sustentável, igualitário, des centralizado e autogestionário, capaz de satisfazer as necessi dades básicas das populações, respeitando sua diversidade cultural e melhorando sua qualidade de vida. Isto implica a transformação dos processos de produção, dos valores sociais e das relações de poder para construir uma nova racionalida de produtiva com a gestão participativa da cidadania. Neste sentido, os enunciados de valor que plasmam o dis curso ambientalista questionam os princípios morais, as re gras de conduta e os interesses promovidos pela racionalida de econômica, gerando uma consciência crítica a respeito das instituições que mantêm as estruturas econômicas e de poder dominantes. Racionalidade econômica e valores humanos A civilização judeu-cristã, com sua pretensa superiorida de do homem sobre os demais seres vivos, gerou um processo de dominação da natureza através da ciência. A racionalidade capitalista se construiu em torno de uma doutrina econômica que aspira a uma cientificidade fundada numa racionalidade formal e em sua eficácia técnica, cada vez mais afastadas da subjetividade e dos valores, o que levou à superexploração de recursos e ao desequilíbrio dos ecossistemas naturais. A ética, como sistema de valores que deve orientarsível da poluição, mas o conceito da complexidade emergen te onde se reencontram o pensamento e o mundo, a sociedade e a natureza, a biologia e a tecnologia, a vida e a linguagem. Ponto de inflexão da história que induz uma reflexão sobre o mundo atual, do qual emergem as luzes e sombras de um novo saber. De um saber atravessado por estratégias de poder em tomo da reapropriação (filosófica, epistemológica, econômi ca, tecnológica e cultural) da natureza. [ O ambiente é esse saber que se verte sobre a enganosa transparência dos sinais do mercado globalizado e do ilumi- nismo do conhecimento científico e moderno, da eficácia da tecnologia e da racionalidade instrumental, precipitando seus saberes subjugados. É o prisma que recebe o raio concentra do de luz projetado por este mundo homogeneizado da ciên cia, do progresso e da globalização, para refratar um feixe de luzes divergentes, de cores e matizes diversos, onde se entre laçam tempos ontológicos, tempos históricos, tempos do pen samento e tempos subjetivos. E um pensamento e uma vida que aí se entrelaçam. Olho-me nestes textos e vejo a trama e os traços que unem sua história com a minha. Ano de 1968, tempos de juventude, de rebeldia, de busca de sentido do ser no mundo. Tempos em que surge uma reflexão sobre um futuro incerto e inapreensível a partir 10 gracihelem Highlight da saturação da modernidade: limites do crescimento e do to talitarismo; fim do socialismo real; emergência da complexi dade e da democracia. Germe de mudanças, reatando a histó ria do mundo. Este livro traz inscritas as marcas desta história que não é só a evolução de um pensamento que reflete a crise ambiental. É a re-volta para a crise do mundo atual daquele pensamento emancipador que mobilizou a geração de 1968, que a impeliu a questionar o autoritarismo e a repressão de nossas idéias e nossos impulsos; que levou às ruas milhares de estudantes no México, em Paris, e em todo mundo, os quais, à voz de “a imaginação ao poder” saímos a buscar espaços de liberdade e democracia. As sacudidelas daquele tempo abriram as com portas ao desejo de saber que levou minhas reflexões dos trin ta anos a plasmar-se no campo da problemática ambiental que irrompia no mundo naquele momento. No mínimo, é justo que a história em que me formei reco nheça estas origens, saudando os companheiros e companhei ras com os quais compartilhei o despertar de um mundo que começava a mudar e derrubar suas fortalezas opressivas. Seja, pois, este livro pre-texto para recordar esses tempos de forja e de gesta nos quais se aninharam estes desejos, onde se assen taram convicções e solidariedades, formas de entendimento e posicionamento num mundo em transformação que hoje vol tam a ocupar seu lugar na história. Este livro é um olhar para a emergência e construção des te conceito de ambiente que ressignifica as concepções do progresso, do desenvolvimento e do crescimento sem limite, para configurar uma nova racionalidade social que se reflete no campo da produção e do conhecimento, da política e das práticas educativas. O ambiente emerge assim de seu campo de extemalidade das ciências, do poder centralizado e da ra cionalidade econômica. O saber ambiental sacode o jugo de 11 sujeição e desconhecimento ao qual foi submetido pelos pa radigmas dominantes do conhecimento. O conceito de ambiente gera portanto uma corrente que vai se entrelaçando nas tramas da sustentabilidade e nas arti manhas do discurso do desenvolvimento sustentável, defi nindo categorias de racionalidade e de saber ambiental, pro- blematizando o avanço das ciências e da interdisciplinarida- de, para penetrar com sua visão crítica no campo das etno- ciências, do habitat, da população, do corpo, da tecnologia, da saúde e da vida. Assim o conceito de ambiente vai colo cando à prova seu sentido questionador, transformador e re- criativo nos domínios do saber. O texto ordena assim seu curso a partir do questionamento do discurso do desenvolvimento sustentável, da capitalização da natureza e da homogeneização cultural; contorna o campo da economia ecológica e da ecologia política; vai irrigando o tema da democracia e da apropriação social da natureza; abas tece-se na corrente da ética, dos movimentos sociais e da cida dania. Chega assim ao ponto de ancoragem de seus conceitos básicos: saber ambiental e racionalidade ambiental. Com eles vai fertilizando o campo do conhecimento e do saber, traçando uma nova vertente para a sociologia do co nhecimento, abrindo os canais da subjetividade e do sentido diante da objetividade e da matematização do conhecimento, penetrando as profundezas do inconsciente para desentra nhar o sentido da interdisciplinaridade e do desejo de saber. O saber ambiental desemboca no terreno da educação, questio nando os paradigmas estabelecidos e abastecendo as fontes e mananciais que irrigam o novo conhecimento: os saberes in dígenas, os saberes do povo, o saber pessoal. Vai descobrindo as relações de poder que atravessam as correntes do saber em temáticas emergentes, onde confluem diversos campos disci- plinares para desembocar na qualidade de vida como fim últi 12 mo do desenvolvimento sustentável e do sentido da existên cia humana. Os capítulos do livro formam um caleidoscópio no qual o conceito de ambiente adquire novas luzes e matizes, onde os reflexos de cada tema sobre os outros vão delineando novas vertentes e abrindo novos campos de aplicação. O saber am biental, crítico e complexo, vai se construindo num diálogo de saberes e num intercâmbio interdisciplinar de conheci mentos; vai constituindo um campo epistêmico que proble- matiza os paradigmas estabelecidos para construir uma nova racionalidade social. Cada capítulo é um “breviário” que con densa estes temas. Sua fonte original são notas, exposições e escritos elaborados nos últimos dez anos. Em todo caso, os textos foram revisados e retrabalhados, sintetizados ou am pliados e reordenados para dar integralidade e coerência a este volume. Este livro não aspira integrar um sistema de conhecimen tos acabados sobre o meio ambiente. Trata-se tão-somente do germe de um saber em construção. Seus capítulos são “frag mentos de um discurso amoroso” (Barthes), movidos por um desejo de saber, que, como todo desejo amoroso, tropeça com seu entorpecimento, busca a luz e se precipita em seus pró prios abismos. Estes textos revelam um saber pessoal, forjado na minha relação com um mundo em reconstrução, que anun cia a transição de uma modernidade saturada e uma “pós-mo- dernidade” que começa a desabrochar, sem saber ainda como definir-se e decifrar-se. Sobre estes escritos poder-se-ia di zer, com letra e música de bolero mexicano: “no pretendo ser tu dueno... pero en el alma llevas ya sabor a m i \ Na elaboração do livro fui acompanhado por amigos de diversos países que através de leituras, comunicações e en contros estimularam minhas reflexões. Seus nomes estão aqui inscritos e com sua sabedoria dão colorido a estas pági 13 gracihelem Highlight nas. Outros seres certamente também deixaram nas entreli nhas sua presença invisível. Hoje, como sempre, minha dívida maior é com Jacquie, minha companheira de vida, e com nossos filhos, Sergio e Ta- tiana. O amor por eles é a própria trama de minha vida, a fonte que alimenta este livro. Setembro de 1998 1 - GLOBALIZAÇÃO, AM BIENTE E SUSTENTABILIDADE DO DESENVOLVIMENTO* A crise ambiental e o princípio de sustentabilidade O princípio de sustentabilidade surge no contexto da globalização como a marca de um limite e o sinal que reorien- ta o processo civilizatório da humanidade. A crise ambiental j veio questionar a racionalidade e os paradigmas teóricos que impulsionaram e legitimaram o crescimento econômico, ne gando a natureza. JA sustentabilidade ecológica aparece as sim como um critério normativo para a reconstrução da or dem econômica, como uma condição para a sobrevivência humana e uma vida dos seres humanos, surge com as primeiras civilizações. O desenvolvimento do capitalismo gerou um pensamento críti co. Do socialismo utópico ao socialismo científico, do mar xismo ao racionalismo crítico, foi construído um pensamento que procura vencer a “falsa consciência” e a “alienação do homem”. Este pensamento crítico não só se apresenta como resposta à exploração da força de trabalho, mas também como resposta ao impacto da sociedade industrial e ao império da razão tecnológica sobre os valores morais e os sentidos exis tenciais que fundamentam a qualidade da vida humana. A guerra nuclear foi a mais clara e dramática expressão do po der sobre-humano da ciência e da técnica colocadas a serviço da destruição da humanidade. Os valores ambientais surgem contra a cultura do poder fundado na razão tecnológica e na racionalidade econômica. Face à produção em massa, ao desenvolvimento centraliza do, ao congestionamento das megalópoles, à homogeneiza ção da cultura, á produção e ao consumo, aos sistemas hierár quicos e autoritários de tomada de decisões, reivindicam-se os valores da subjetividade, da diversidade cultural, da de mocracia participativa e da tolerância; seguindo Gandhi, são valorizados a autodeterminação, o desenvolvimento endóge- no, os saberes tradicionais e os sistemas de complementação e de ihtercâmbios comunitários. A ética ambiental reivindica os valores do humanismo: a integridade humana, o sentido da vida, a solidariedade social, o reencantamento da vida e a ero- tização do mundo. 87 Para a economia, a natureza e a vida humana são apenas fatores da produção, objetos e força de trabalho. Entram como elementos fracionados e indiferenciados; os humanos (empre gados) recebem um salário que lhes permite satisfazer necessi dades (criadas pelo sistema) através do consumo. Deste modo não se percebe o trabalho como um processo vital - seu valor criativo - donde deriva uma satisfação, desprezando-se os valores e qualidades incomensuráveis da atividade humana. Economistas como Sen, Tsuru e Schumacher, Georges- cu-Roegen e Daly questionaram os fins e fundamentos da eco nomia regida pela acumulação e pelo crescimento; por um ideal de progresso cujo êxito se reflete no incremento do PNB, sem importar-se se ele é constituído de mísseis e armas ou de bens cosméticos; pela superexploração de recursos não reno váveis e pela superprodução de mercadorias subvencionadas pela subvalorização da natureza, pela destruição das florestas e pela contaminação do planeta. A racionalidade econômica ge rou assim uma sociedade do ter e não do ser (Fromm); os senti dos da existência vão se racionalizando com o cálculo econô mico. Isto levou à necessidade de propor “uma economia mais nobre, que não tenha medo de discutir o espírito e a consciência, o propósito moral e o significado da vida”1. A crescente tecnologização da sociedade prometia passar do momento da necessidade (da exploração e da alienação) ao reino da liberdade. Estes princípios levaram a configurar um “socialismo de rosto humano” (Richta, 1968). Hoje se pre tende abrir os canais do progresso ao desenvolvimento pleno das faculdades humanas, ao superconsumo da era pós-indus- trial e a uma ética do tempo livre. Os ajustes da nova ordem internacional e suas novas alianças para o progresso permiti riam reduzir a brecha entre países pobres e países ricos, elimi 1. Introdução de T. Roszak a E. Schumacher (1973), p. 9. nando as barreiras para a difusão da tecnologia e conseguindo um equilíbrio econômico com base nas vantagens comparati vas de cada país. Entretanto, justamente no fim dos anos 60, ao tempo em que surgiam em todo mundo os movimentos estudantis como uma necessidade de emancipação (Marcuse, 1969), rompen do a repressão mantida pelos valores do progresso a todo cus to, pela acumulação de capital e pela centralização do poder do Estado, surge uma nova consciência sobre os limites do crescimento, o desequilíbrio ecológico do planeta e a destrui ção da base de recursos da humanidade (Meadows et al., 1972). A crise ambiental rompe o mito do desenvolvimentis- mo levantando novos problemas globais gerados pelos efei tos sinergéticos e acumulativos de crescimento econômico e destruição ecológica. Os problemas ambientais tomaram uma primeira impor tância desde que foram difundidos ao mundo por ocasião da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Hu mano, celebrada em Estocolmo em 1972: o desmatamento, a perda de diversidade genética dos recursos bióticos, a extinção de espécies, a erosão dos solos e a perda da fertilidade das ter ras, a desertificação, a contaminação química da atmosfera, dos solos e dos recursos hídricos, a produção e a disposição de resíduos tóxicos e lixo radiativo, a chuva ácida gerada pela in dustrialização e destruição da camada foliar das florestas, o aquecimento global e a rarefação da camada de ozônio. Com esses processos de degradação ambiental conju ga-se uma série de efeitos econômicos, sociais e culturais que afetam as maiorias espoliadas. Assim, a deterioração ambien tal, junto com a crise econômica e financeira dos países da América Latina, produziu um processo generalizado de em pobrecimento, marginalização social e precariedade das con dições de saúde da população. A pobreza crítica e a degrada ção ecológica estão associadas à imposição de modelos tec nológicos e projetos de colonização que provocaram migra ções, assentamentos precários, desemprego e desnutrição; condições de amontoamento e uma vida insalubre e indigna; o desarraigamento das comunidades de seus espaços étnicos, a destruição de suas identidades culturais e o abandono de práticas tradicionais de uso dos recursos. Esta destruição da base de recursos do planeta e seu im pacto nos valores culturais e humanos gerou a necessidade de orientar as formas de desenvolvimento para eliminar a pobre za crítica e passar da sobrevivência à melhoria da qualidade de vida. A ecologia situa o ser humano dentro da trama vital do processo evolutivo. Reivindicam-se assim os valores as sociados à qualidade de vida, o prazer estético, o desenvolvi mento intelectual e as necessidades afetivas, através da re construção do ambiente. Além do direito a um bem-estar fun dado na satisfação de necessidades básicas (vestido, traba lho, educação, moradia), a Carta dos Direitos Humanos in corporou o direito a um ambiente sadio e produtivo, inclusive os novos direitos coletivos para a conservação e aproveita mento do patrimônio comum de recursos da humanidade, pela dignidade e pelo pleno desenvolvimento das faculdades de todos os seres humanos. Ética ambiental e qualidade de vida A racionalidade social, orientada pelos fins do progresso e pela eficiência, levou à desvalorização da natureza e à de gradação dos valores humanos. Por isso, o humanismo e o pensamento crítico se colocam a necessidade de questionar a ética implícita no modelo de modernidade e de retraçar os ob jetivos e o sentido do desenvolvimento. De Weber a Marcuse vem sendo apresentada a necessidade de corrigir os efeitos de uma cega racionalidade instrumental, através de uma racio 90 nalidade substantiva que reoriente o desenvolvimento mate rial e as aplicações da ciência. O racionalismo crítico e a ética ambientalista buscam não só despertar o ser humano de seu pe sadelo desumanizante, de seu alheamento da técnica, e recupe rar seus valores essenciais; seu propósito é criar condições para a criatividade de todos, a realização de seus potenciais, abrir as opções para a heterogeneidade de sentidos da vida, para o encantamento da vida e novas formas de solidariedade social. Com o imperativo de conseguir uma vida digna para a raça humana, coloca-se o propósito de promover um desen volvimento orientado pelo conceito de qualidade de vida: [A qualidade de vida emerge como] o supremo valor moral de nosso tempo (...) o que implica que em nenhuma das ati vidades e motivaçõesdo homem tentar-se-á sujeitar aos mecanismos da uniformidade, da repetição ou da necessi dade lógica, nem aos imperativos da produção e do rendi mento, a singularidade própria e incomparável dos seres vivos, sua iniciativa e sua espontaneidade criadora. Talvez o valor qualidade de vida possa hoje ser aceito pela primei ra vez na história com caráter eficazmente universal e não como vaga aspiração humanitária, pois pela primeira vez o homem acedeu a uma tomada de consciência global da es pécie humana, podendo desta forma sentir-se responsável diante dela e propor-se objetivos concretos e práticos que afetam toda a humanidade. Graças às conquistas da técni ca, e de modo especial aos avanços dos meios de comuni cação social, este reconhecimento é hoje muito mais real do que nunca, mas também mais dramático, menos idealis ta, pois nos defronta com a triste constatação de que a hu manidade em seu conjunto está mal organizada, está desper diçando suas potencialidades e degradando as condições de sua existência e (...) alterando os equilíbrios mais ele mentares de sua sobrevivência (Blanch, 1981). O conceito de qualidade de vida está penetrando em todas as classes sociais. Estas exigências ambientalistas transcen dem as aspirações por um melhor “nível de vida”; suscitam de novo o direito à terra e ao trabalho, as tradicionais deman 91 das de emprego e salário, como também de satisfação das ne cessidades básicas através do consumo e da oferta de satisfa- tores de uma economia de bem-estar (Leff, 1988). A cons ciência ambiental se coloca como consciência de todo o gê nero humano, convocando todo indivíduo como sujeito mo ral para construir uma nova racionalidade social2. O homem pré-moderno via seu destino pendente de for ças desconhecidas e incontroláveis. O homem moderno, em seu afa de controlar a natureza através da ciência e da tecno logia, ficou preso por uma racionalidade e por processos que dominam sua vida mas ultrapassam sua capacidade de deci são e entendimento. São processos que desencadeiam catás trofes naturais criadas pela tecnoburocracia, mas que ela não controla; técnicas com as quais se produzem os satisfatores que consumimos, mas cujos princípios de operação nos são alheios; contaminação criada pelo homem, mas cujos efeitos sobre a nossa vida desconhecemos. Portanto, o desenvolvimento sustentável surge com o pro pósito de conseguir um ordenamento racional do ambiente, sem exigir que o ambiente funde uma nova racionalidade, que a degradação ambiental não se resolva com os instrumen tos da racionalidade econômica. Neste sentido, a questão am biental está ampliando o marco dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais. Os sistemas jurídicos estão se transformando para atender os conflitos de apropriação e manejo dos bens comuns. Desta forma surgiram, dentro dos 2. “Do fato desta tomada de consciência nasce a necessidade de elaborar uma escala de valo res, uma ética, de dimensões planetárias e de natureza o mais concreta possível. O pro grama axiológico de que agora necessitamos deverá romper as diversas carapaças cultu rais nas quais foram idealizados outros programas, de fato menos universais, como pude ram sê-lo uma ética individualista burguesa, uma ética de classes sociais, as éticas nacio nalistas, ou as que são polarizadas por uma ideologia ou uma cosmovisão demasiado ex clusivistas. Hoje a consciência de classe ou a consciência nacionalista, embora válidas cm si mesmas, devem reconhecer o substrato último em que se apóiam, isto é, a consciên cia dc toda a espécie” (Blanch, 1981: 330). Mas também é preciso rcconhcccr que estes valores gerais se concretizam cm valores culturais específicos dc cada grupo étnico c cm sujeitos sociais heterogêneos com diferentes interesses dc elasse. 92 “direitos da solidariedade”, o direito de todos os humanos de beneficiar-se do “patrimônio comum à Humanidade” (Gross, 1980). Estes novos direitos incorporam princípios sobre a propriedade coletiva dos recursos naturais, orientados para a conservação e a administração dos bens comuns, como o fun do do mar e o espaço ultraterrestre. Mas os conflitos em tomo da apropriação e manejo da biodiversidade - nos quais se an tepõem os direitos de propriedade intelectual das empresas de biotecnologia aos direitos das comunidades que habitam essas reservas de biodiversidade - deixam bem claro que os valores éticos continuam sujeitos aos interesses econômicos. Embora os direitos ambientais tenham convertido a “hu manidade” em sujeito do direito internacional, isto não quer dizer que todos os seres humanos tenham o mesmo direito de beneficiar-se do “patrimônio comum da humanidade”. Na realidade os Estados são os únicos sujeitos deste novo direito internacional. Assim, foram estabelecidos muito mais convê nios e normas para o comportamento da comunidade de na ções, do que princípios para o acesso social e comunitário aos recursos ambientais. A exploração dos recursos naturais con tinua mais sujeita aos direitos privados de propriedade, do que aos direitos de apropriação das comunidades. As normas jurídicas sancionam condutas individuais que geram efeitos nocivos para o ambiente, sem definir o campo dos novos direi tos coletivos que reorientam as formas de produção e apropri ação dos bens comuns da natureza. Diversidade cultural e apropriação social da natureza A ética ambiental vincula a conservação da diversidade biológica do planeta ao respeito à heterogeneidade étnica e cultural da espécie humana. Ambos os princípios se conju gam no objetivo de preservar os recursos naturais e envolver as comunidades na gestão de seu ambiente. Entrelaçam-se 93 aqui o direito humano a conservar a própria cultura e tradi ções, o direito de forjar seu destino a partir de seus próprios valores e formas de significação do mundo, com os princí pios da gestão participativa para o manejo de seus recursos, de onde as comunidades derivam suas formas culturais de bem-estar e a satisfação de suas necessidades. O respeito à diversidade étnica, além de seu valor huma no intrínseco, tem implicações para as estratégias de apropri ação e manejo dos recursos naturais. Nas sociedades tradicio nais, sua estrutura social e suas práticas de produção estão in timamente relacionadas com processos simbólicos e religio sos que estabelecem um sistema de crenças e saberes sobre os elementos da natureza que se traduzem em normas sociais so bre o acesso e uso dos recursos. Assim, tradicionalmente na índia nunca se cortam as árvores de Ficus religiosa, nem se matam as cobras, nem se permite a pesca nos tanques sagra dos (Gagdil, 1985). Estas proibições religiosas foram institu cionalizadas através de rituais e atuam como normas sociais sobre o uso dos recursos, traduzindo-se em práticas pruden tes de manejo dos bens comuns da natureza. Dentro do sistema de castas, cada grupo social adquire o controle sobre certos recursos em localidades particulares e, apesar das diferenças sociais, mantêm interesses comuns e compartilham os recursos da natureza. Estas práticas incluem também restrições sobre os territórios que diferentes grupos podiam explorar, sobre as estações nas quais se permite a ex ploração, sobre os métodos empregados e as espécies que não devem ser utilizadas. As civilizações pré-colombianas do trópico indo-ameri- cano coevoluíram numa relação íntima com a natureza. To das estas culturas desenvolveram práticas sofisticadas e cria tivas de uso múltiplo e sustentável de seu meio./A construção de uma racionalidade ambiental implica o resgate destas prá 94 ticas tradicionais, como um princípio ético para a conservação de suas identidades culturais e como um princípio produtivo para o uso racional dos recursosijEstes princípios se expressam como reivindicações das próprias comunidades indígenas e rurais, que lutam por preservar seus valores culturais associa dos à apropriação de seu patrimônio de recursosnaturais. Neste sentido, os princípios e valores ambientais estão sendo sistematizados por conceitos e teorias que os articu lam com as bases materiais de uma nova racionalidade pro dutiva (de uma produtividade ecotecnológica), através de instrumentos técnicos, normas jurídicas, políticas científi cas, movimentos sociais e estratégias políticas que consti tuem os meios de uma racionalidade ambiental, orientando a reapropriação social da natureza e a gestão ambiental do desenvolvimento. 95 7 - AM BIENTE E M OVIM ENTOS SOCIAIS* Origem e sentido do movimento ambientalista A problemática ambiental do desenvolvimento deu lu gar a um movimento, na teoria e na prática, para compreender suas causas e resolver seus efeitos na qualidade de vida e nas condições de existência da sociedade. O custo social da des truição ecológica e da degradação ambiental gerada pela ma- ximização do lucro e dos excedentes econômicos a curto pra zo deram pois impulso à emergência de novos atores sociais mobilizados por valores, direitos e demandas que orientam a construção de uma racionalidade ambiental. A contaminação ambiental, a exploração excessiva dos recursos naturais e os desequilíbrios ecológicos; as crises de alimento, de energia e de recursos gerados pelos padrões do minantes da produção, distribuição e consumo de mercadori as; e os custos ambientais da concentração industrial e da aglomeração urbana, levaram já há trinta anos a estabelecer os limites da racionalidade econômica. Entretanto, a percep ção da problemática ambiental não é homogênea e cobre um amplo espectro de concepções e estratégias de solução. As manifestações da crise ambiental dependem do contexto geo gráfico, cultural, econômico e político, das forças sociais e dos potenciais ecológicos sustentados por estratégias teóri cas e produtivas diferenciadas. Neste sentido, não pode haver um discurso nem uma prática ambiental unificados. * Redigido com base no artigo “El movimiento ambientalista cn Mcxico y cn America Lati na”, Ecologia: Polilica/Cullura, vol. 2, n. 6, Mcxico, 1998. 96 Neste campo teórico-ideológico no qual se desenrola o discurso do desenvolvimento sustentável, concebemos o am biente muito mais como um potencial produtivo para um de senvolvimento alternativo, do que como um custo ou um li- mitante do crescimento (Leff, 1994a, 20006). Já desde a Declaração de Cocoyoc (1974) e do Informe sobre o Desenvolvimento e a Cooperação Internacional da Fundação Dag Hammarskjõld (1975), manifestaram-se cla ramente os diferentes interesses e preocupações dos países industrializados e dos países do Terceiro Mundo diante da pro blemática ambiental. Os primeiros privilegiam uma perspecti va conservacionista da natureza e uma política de remediar os efeitos contaminantes dos processos de produção. Assim, pro movem novas soluções técnicas, a partir de uma “distribuição mais eqüitativa das indústrias contaminantes em nível interna cional” (Nações Unidas, 1971), até a inovação de tecnologias “descontaminantes”, sujeitas à sua rentabilidade no mercado. Para deter as tendências da degradação ambiental, propôs-se o controle demográfico e o freio ao crescimento econômico (Meadows et al., 1972; Daedalus, 1973), buscando um equi líbrio entre crescimento e conservação. De uma perspectiva latino-americana, foi colocada a ên fase nas mudanças sociais, políticas e institucionais necessá rias para aproveitar racionalmente os recursos existentes e o potencial produtivo das regiões subdesenvolvidas, a fim de satisfazer as necessidades básicas de suas populações (Herre- raetal., 1976). O desenvolvimento deste potencial ambiental funda-se no aproveitamento da produtividade ecológica dos recursos naturais e da energia social contida nos valores cul turais e nas práticas tradicionais de uso dos recursos de dife rentes regiões e localidades, através do planejamento transe- torial do ecodesenvolvimento, da autogestão comunitária e da descentralização das atividades produtivas, com o objeti 97 vo de gerar um desenvolvimento sustentável, endógeno e au to-suficiente. A ativação deste potencial ambiental para um desenvol vimento sustentável implica a necessidade de gerar as condi ções econômicas e políticas que permitam a participação co munitária na definição de suas necessidades, na autogestão de seus recursos e na produção de seus satisfatores, assim como na inovação, assimilação e adaptação de tecnologias ecologi camente adaptadas. Desta maneira, o conceito de ambiente promove um desenvolvimento sustentável e eqüitativo, base ado na autonomia cultural, na autodeterminação tecnológica e na independência política dos povos. Assim, a perspectiva ambiental enriquece as categorias tradicionais de análise dos processos de desenvolvimento eco nômico e social. O desenvolvimento sustentável das forças produtivas, além de depender da produtividade do capital, do trabalho e do progresso científico-tecnológico, deve fun- dar-se na produtividade dos processos ecológicos de suas di ferentes regiões e nos valores culturais de suas populações. Neste sentido, as relações sociais de produção estão entrela çadas numa trama ecológica que sustenta um sistema de re cursos naturais e condiciona suas formas de reprodução e aproveitamento. A incorporação destes novos processos dentro das estraté gias do ecodesenvolvimento levou a propor novamente os tra dicionais métodos de planejamento econômico (Sachs, 1982; Gutman, 1986). O potencial ambiental de cada região, a auto gestão comunitária dos recursos, o desenvolvimento de tecno logias apropriadas, o respeito pelos valores culturais e pela di versidade étnica, assim como pela recuperação e enriqueci mento científico das práticas tradicionais de uso dos recursos, abre canais para uma gestão participativa dos recursos e para um desenvolvimento sustentável (Leff, 1994a, 20006). 98 Diante das dificuldades dos governos para incorporar e instrumentar os princípios promovidos por esta perspectiva ambiental do desenvolvimento, a problemática ambiental pro moveu a emergência de novos movimentos sociais em res posta à destruição dos recursos naturais, à degradação dos serviços ambientais e ao déficit dos serviços públicos, que in cidem na degradação da qualidade de vida da população. A crise ambiental incorpora novas demandas às reivindi cações tradicionais de democracia, justiça social e de pro priedade territorial das lutas populares. A questão ambien tal não só incide sobre o problema da distribuição do poder e da renda, da propriedade formal da terra e dos meios de pro dução, e sobre a incorporação da população nos mecanis mos de participação nos órgãos corporativos da vida econô mica e política. As demandas ambientais promovem a parti cipação democrática da sociedade no uso e manejo dos re cursos atuais e potenciais, assim como a construção de novos estilos de desenvolvimento, fundados em princípios de sus tentabilidade ecológica, eqüidade social, diversidade étnica e autonomia cultural. Assim a consciência ambiental foi sendo configurada dentro de um discurso antidesenvolvimentista; os princípios de descentralização, autogestão e autodeterminação, sem apregoar a autarquia de comunidades e nações, são valores que mobilizam a sociedade numa luta antiindependentista. A emancipação dos povos na perspectiva ambiental vai mais além de sua independência política formal, questio nando a incidência da ordem econômica internacional no esgotamento de seus recursos e reclamando um direito para o aproveitamento endógeno e democrático. Deste modo a política do ambientalismo transforma as relações de poder nos níveis nacional e internacional, questionando os benefí cios produzidos pela economia de mercado e oferecidos pelo Estado benfeitor. 99 UFP E CFC H BIB UO TE CA SE TO RI AL O ambiental reabre o conflito entre exploração e liberta ção numa nova perspectiva. Justamente quando a segunda re volução científíco-tecnológicaabria as portas para uma liber dade além da escassez, soa o alarme ecológico para mostrar a fase oculta do progresso e da modernidade, através de seus efeitos na exploração excessiva da natureza. Surge assim a consciência ambiental para assinalar a contradição da sobre vivência face à afluência; dos valores pós-materiais face à pobreza e à degradação ambiental. A crise ambiental gerou novas orientações para o proces so de desenvolvimento e novas demandas para os movimen tos sociais (ecologismo/ambientalismo). Seus objetivos mos tram a necessidade de incorporar uma “dimensão ambien tal” ao campo do planejamento econômico, científico, tec nológico e educativo, induzindo novos valores no compor tamento dos agentes sociais e problematizando todo um conjunto de disciplinas científicas que são o suporte da ra cionalidade econômica e tecnológica dominantes. A cons trução de uma racionalidade ambiental implica portanto a re- orientação do progresso científico e tecnológico numa pers pectiva interdisciplinar que articula os processos sociais e na turais para a gestão social do desenvolvimento sustentável (Leff, 1986/2000). O saber ambiental questiona os comportamentos associa dos às práticas de consumo derivadas da sociedade pós-in- dustrial e os interesses disciplinares que obstaculizam a pro dução de estudos integrados do processo de desenvolvimen to; da mesma forma, problematiza as ideologias que orientam as demandas das classes trabalhadoras e dos movimentos po pulares para satisfazer suas necessidades básicas através do acesso ao mercado de trabalho e da redistribuição da renda. A incorporação das classes trabalhadoras e das popula ções rurais ao progresso e à modernidade significou a degra 100 dação de suas condições de vida: exploração econômica, de semprego, marginalização social, inacessibilidade aos servi ços públicos, desarraigamento cultural, emigração territorial, destruição de seus recursos naturais, abandono de suas práti cas tradicionais e perda de seus meios de subsistência. A qua lidade de vida dos grupos majoritários da população não de pende de seu acesso a um tempo livre criado pelo incremento da produtividade do trabalho. A erradicação da pobreza e a satisfação de suas necessidades básicas não se conseguiu acio nando os mecanismos do mercado e as políticas compensa- doras do Estado. Esta situação é mais notória nos grupos marginalizados do processo econômico nacional, mais dependentes de suas condições de enraizamento territorial e de sua integração cul tural no nível local, para definir suas necessidades materiais e espirituais, e alcançar níveis básicos de auto-suficiência e bem-estar. Nenhum salário real compensa a perda da integri dade cultural dos povos e a degradação do potencial produti vo de seus recursos, do progresso para a morte étnica e a des truição ecológica, muito mais efeito de uma racionalidade econômica do que de uma catástrofe natural. O ambientalismo abre portanto um processo de ressigni- ficação do mundo atual. Além das deficiências do sistema produtivo para satisfazer as demandas dos consumidores, pro põe uma crítica radical das necessidades. A perspectiva am biental do desenvolvimento oferece um enfoque global e in tegrador sobre a realidade social; é um olhar inquisidor que se lança a partir de um futuro possível sobre o processo histórico passado para abrir canais à reconstrução da realidade social. O ambientalismo é um movimento pela diversificação das condições de existência e dos projetos de vida dos povos, que se projeta da heterogênese do mundo para uma diversidade de tipos de desenvolvimento. É uma utopia que mobiliza a 101 ação para a construção de uma nova racionalidade produtiva e um projeto alternativo de civilização. Esses critérios permitem esclarecer o sentido no qual o ambientalismo reorienta os objetivos e estratégias dos movi mentos sociais. Contudo, as reivindicações dos movimentos ambientalistas não podem desvincular-se das raízes históri cas das lutas camponesas, operárias e populares pela defesa da terra, do trabalho e de suas condições gerais de vida. Esta premissa cobra valor sobretudo nos países da América Latina e do Terceiro Mundo, onde prevalecem formas arcaicas de exploração das classes trabalhadoras e das populações rurais, de espoliação de seus recursos naturais e de destruição de seus valores culturais. Neste sentido, a consciência ambiental mobiliza novos atores políticos num processo de reapropria ção da natureza que traz consigo a transformação das rela ções de produção e a geração de novos potenciais de produ ção para um desenvolvimento sustentável. Os movimentos ecológicos ou ambientalistas não emer gem numa arena política deserta. Seus propósitos convergem e se somam aos de muitas causas populares e movimentos so ciais que surgem em resposta à administração pública seto- rializada, tecnocrática e antidemocrática, e a regimes políti cos centralizados e totalitários. Abriu-se assim a busca de no vos espaços de autonomia cultural e participação democráti ca nas decisões e na gestão dos processos que determinam as condições de vida de diferentes grupos sociais, onde se plas mam suas aspirações, desejos e demandas. As demandas de transetorialização das políticas públicas, de abertura de novos espaços de autogestão, de reorganiza ção interdisciplinar do saber e de distribuição territorial das atividades produtivas questionam as práticas ideológicas, ad ministrativas, econômicas e políticas prevalecentes. O am bientalismo é um movimento multidimensional que questio 102 na os modos de produção, os estilos de vida e os critérios de produção e aplicação dos conhecimentos no processo de de senvolvimento. O ambientalismo abre-se assim para um novo projeto de civilização, orientado para a construção de uma nova racionalidade social e produtiva. Isto coloca a transformação do Estado como “lugar” de confronto dos interesses contraditórios e de concentração dos objetivos comuns das diferentes classes e grupos sociais, e como instância responsável pelo planejamento do desenvol vimento e pelo ordenamento ecológico em nível nacional, a fim de gerar as condições necessárias a uma apropriação mais eqüitativa dos recursos ambientais e a uma gestão mais parti cipativa dos povos no aproveitamento dos recursos naturais e produtivos. No movimento ambientalista articulam-se as lutas das comunidades indígenas, das organizações camponesas, ope rárias e populares, com as causas da classe média urbana, as associações de base e os grupos ecologistas. Neste processo de recomposição social surgem novas organizações profis sionais, órgãos não-governamentais, grupos privados e asso ciações civis que buscam oportunidades de participação nos espaços econômicos e políticos abertos pela problemática ambiental. Este processo vai abrindo novas frentes de luta, novas estratégias políticas, novas fórmulas de negociação e novas táticas de concentração entre o Estado e a sociedade. O ambientalismo mobiliza a arena política para estabele cer novas alianças, pactos e acordos, para a consecução dos objetivos comuns de diferentes grupos e setores sociais, res peitando a pluralidade política e a autonomia das organiza ções sociais. Ao mesmo tempo, os princípios ambientais pro movem um processo de descentralização econômica e de au- togestão comunitária dos recursos, transferindo poderes e res ponsabilidades aos governos locais (dos Estados e municí 103 pios). Este processo de descentralização está gerando uma nova rede de relações econômicas, políticas e sociais. Caracterização do movimento ambientalista Nos anos recentes, novos atores sociais vêm ocupando a cena política. Dos conflitos que nascem da racionalidade so cial dominante emergem movimentos sociais caracterizados por suas novas demandas, formas de organização e estraté gias de luta, dinamizando e transformando as formas de exer cício e luta pelo poder. Entre osmovimentos feministas e es tudantis, das minorias étnicas e das organizações urbano-po- pulares, emergem os grupos ambientalistas e ecologistas. A caracterização destes novos movimentos sociais dentro da sociologia política não tem sido tarefa fácil, tanto devido à novidade, variedade e dinamismo de suas manifestações, como devido ao seu caráter complexo, transclassista e mul- tissetorial e às suas formas variáveis de expressão e de con centração política. Tudo isto dificulta a sistematização de suas experiências, a tipificação de suas estratégias e a previ são de suas tendências (Frank e Fuentes, 1988; Viola, 1987; Viola e Boeira, 1990; Garcia Guadilla e Blauert, 1992; Vieira e Viola, 1992; Guha e Martínez Alier, 1997). O ecologismo emerge, junto com os novos movimentos sociais, como “portador de uma cultura político-democrática (...) trazendo novos valores, perspectivas, métodos e aproxi mações à arena política” (Mainwaring e Viola, 1984). Entre estes valores, destacam-se as demandas de maior participa ção nos assuntos políticos e econômicos que se referem à or ganização democrática, à igualdade e justiça social, à autono mia e autogestão comunitárias e ao estabelecimento de rela ções políticas horizontais. Nos movimentos ecologistas ou ambientalistas, estes valores estão vinculados à construção de uma nova racionalidade social e produtiva, abrindo pers 104 pectivas a um desenvolvimento alternativo. As alianças po pulares e as novas estratégias de conciliação do Estado com as organizações políticas e a sociedade civil prevêem a neces sidade de incorporar o estudo destes movimentos sociais den tro do campo da sociologia política. A construção de uma racionalidade ambiental não depen de fundamentalmente da produção de “tecnologias apropria das” ou do revigoramento da economia. Colocar em ação uma estratégia ambiental de desenvolvimento implica a ati vação de práticas sociais alternativas, a partir da transforma ção das relações de poder no saber e na produção. Daí a im portância da análise sociológica e politológica sobre a emer gência e a eficácia dos movimentos ecologistas ou ambienta listas em sua luta pelo poder, na transformação das institui ções setoriais e dos interesses disciplinares estabelecidos; so bre suas formas novas de “fazer política” e suas táticas de in serção nos aparelhos do Estado; sobre seus confrontos e con ciliações com distintas frações do Estado e diferentes grupos de póder econômico e político (corporações empresariais, instituições públicas, partidos políticos); sobre a implemen tação de novos instrumentos e práticas para a gestão e apro priação dos recursos e seu impacto sobre as condições de existência e a qualidade de vida de diferentes grupos sociais. A perspectiva ambiental problematiza o conhecimento dos movimentos populares, a organização política e a mu dança social. As categorias e conceitos tradicionais, com base nos quais se analisavam as relações sociais de produção, a divisão de classes da sociedade e as frações políticas do Estado são insuficientes para caracterizar os movimentos so ciais e as organizações políticas do ambientalismo. O qualifi cativo “verdes” para designar estes movimentos dos grupos políticos tradicionais é uma classificação mais pitoresca, mas que não permite apreender a diversidade de suas origens, mo tivos, objetivos, manifestações e formas de organização. O ambientalismo introduz valores na ação social e na or ganização política; gera novas formas de participação, estra tégias de mudança social e relações de poder. Os movimentos ambientalistas surgem mais como uma consciência viva e criadora do que como uma resistência cega. Mas, ainda que os princípios do ambientalismo introduzam novas motiva ções, objetivos e perspectivas de mudança social no campo político, as próprias circunstâncias nas quais se manifesta a problemática ambiental obstaculizam a tradução desta cons ciência crítica em estratégias de poder eficazes e vias claras para transitar para uma racionalidade ambiental. Junto com a “falsa consciência” criada pela ideologia do ecologismo (Enzensberger, 1974) e as “estratégias fatais da globaliza ção” (Leff, 1996a), a desmobilização da sociedade é resulta do do desconhecimento das causas, como também da tardia manifestação dos efeitos da degradação ambiental. Produz-se assim uma paralisia da ação entre o alarme catastrofista, a in certeza do longo prazo e a visão dos futuros possíveis; um es paço congelado entre uma utopia mobilizadora e uma reali dade avassaladora e paralisante que a consciência ambiental e o conhecimento científico não conseguem dissolver. Um aspecto importante do estudo dos movimentos am bientalistas é a congruência entre os objetivos explícitos que levam à organização destes grupos, associações, uniões e coa lizões, e á eficácia de suas práticas concretas de ação e mobi lização. Também é necessário avaliar a congruência do dis curso ecológico oficial, das políticas do desenvolvimento sustentável e de sua base jurídica, com os programas e ações concretas das diferentes instâncias do governo para a prote ção, saneamento e gestão do meio ambiente. Por outro lado, é necessário analisar a política econômica e as estruturas de po der dominantes, para verificar sua compatibilidade ou resis tência a incorporar os princípios de uma gestão ambiental do desenvolvimento: descentralização econômica, ordenamen 106 to ecológico do território, erradicação da pobreza, autogestão comunitária. Portanto, o movimento ambiental se expressa num pro cesso contraditório de participação-marginalização, abertu- ra-repressão, conciliação-mediatização. As estratégias do am- bientalismo podem levar a uma maior participação e a uma gestão democrática dos recursos, ou então à marginalização das experiências emergentes do ecologismo das instâncias reais de poder e de tomada de decisões sobre o processo de desenvolvimento. O caráter “ambiental” dos movimentos sociais envolve problemas metodológicos para sua investigação. A incorpo ração de valores ambientais às estratégias políticas e às práti cas dos movimentos sociais só pode definir-se em função de um conjunto de princípios e objetivos que conformam uma racionalidade ambiental, com referência à qual podem ser avaliadas as suas ações. Neste sentido, os atos de consciência e seus efeitos na organização social e na mobilização política são “ambientais” enquanto internalizam um certo “paradig ma ambiental” , e enquanto suas práticas produtivas e polí ticas constituem atos de “racionalidade ambiental” (Leff, 19946). Sem uma perspectiva teórica e metodológica no es tudo dos movimentos ambientais, corre-se o risco de reduzir o campo de visibilidade aos grupos e organizações “ecologis tas”, ou de perder de vista o caráter ambientalista de movi mentos que não se autodesignam como tais. O precedente propõe os seguintes problemas teóricos e práticos ao movimento ambientalista: d) Até que ponto a racionalidade ambiental, como pa radigma de um desenvolvimento alternativo, con tém um projeto de produção, de organização social e estratégia política capaz de aglutinar diferentes se tores da cidadania e partidos políticos, para gerar opções e possibilidades de ação que mobilizem a formação de atores sociais que se inscrevam neste processo de transformação através de seus compor tamentos privados e ações públicas? b) Até que ponto a problemática ambiental que afeta de modo desigual diferentes grupos sociais, ao criar uma nova percepção sobre a globalidade e comple xidade dos problemas do desenvolvimento, incor pora princípios e objetivos capazes de dar coesão aos interesses de diferentes grupos afetados, para criar demandas comuns e uma estratégia eficaz de trans formação social? c) Qual é a capacidade da racionalidade econômica do minante e das estruturas de poder para resolver com seus meios e instrumentos a problemática social ge rada pela crise ecológica- para incorporar as condi ções de sustentabilidade, eqüidade e democracia - e para dissolver as estratégias do ambientalismo? A racionalidade ambiental coloca assim os seguintes de safios e condições ao estudo dos movimentos sociais: a) analisar a democracia como condição das práticas do ambientalismo e do efeito democratizante dos mo vimentos ambientalistas; b) investigar o impacto do discurso ambientalista - seus propósitos, valores e práticas - no discurso po lítico e nas políticas econômicas, como também na ressignificação das demandas e reivindicações dos grupos sociais; c) esclarecer as estratégias de poder destes novos movi mentos da sociedade civil para transformar a racio nalidade dominante, incorporando os valores éticos e princípios produtivos do ambientalismo; 108 d) observar qual tem sido a internalização dos princí pios do ambientalismo nos direitos culturais emer gentes e na perspectiva de um desenvolvimento na cional fundado num estado multiétnico. A questão fundamental é saber se, além de sua emergên cia espontânea, estes movimentos se autodefinem e organi zam em torno de princípios e objetivos compartilhados, que criem coalizões, pactos e frentes de ação; que incorporem seus objetivos nos programas dos partidos políticos e nas lu tas populares; que gerem estratégias de transformação social, de organização política e de alternativas de desenvolvimento. Coloca-se assim o problema da racionalidade da ação social e da eficácia política dos movimentos ambientalistas; de suas competências, divisões e alianças; de suas conciliações e dis sidências em relação ao Estado e da capacidade do Estado de in corporá-los, apoiá-los, cooptá-los, desviá-los, fragmentá-los, neutralizá-los, marginalizá-los, isolá-los ou dissolvê-los, quando não de reprimi-los e aniquilá-los. Isto leva a interrogar as formas de organização e a eficá cia das estratégias de luta dos movimentos ambientalistas. Pode ser que na defesa de seu princípio de autonomia estas organizações careceram das condições e meios concretos para criar um movimento generalizado de transformação so cial, confinando-se num espaço de “solidariedade marginal” . Alguns autores acham, pois, que: Estes novos movimentos sociais não caem no padrão tradi cional dos interesses de grupo na área política. A maior parte dos grupos de interesses tradicionais eram vistos sob a ótica de demandas negociáveis, geralmente de natureza material. Em contraste, os novos movimentos sociais são vistos em grande parte sob a ótica de relações sociais, mui tas vezes como sendo relativamente apolíticos; suas nego ciações com o Estado e suas demandas são freqüentemente de natureza simbólica e moral. Um dos paradoxos destes novos movimentos é que parte de seu impacto político de 109 riva de sua forma “apolítica” de fazer política. Este aspecto de seu impacto político está ligado a uma limitação signifi cativa e a uma contradição interna, visto que estes meios “apolíticos” de fazer política podem limitar sua capacidade de transformar regimes políticos. Neste caso, embora re presentem algo novo em termos de cultura política, podem, em última instância, ser marginalizados como pequenos movimentos culturais alternativos, com capacidade limita da para transformar a sociedade em seu conjunto (Mainwa- ring e Viola, 1984). A autonomia do movimento ecologista apresenta a difi culdade de integrar suas demandas locais - fragmentadas e restringidas - a um processo solidário de mudança social glo bal. Isto coloca por sua vez o desafio de incorporar os princí pios de racionalidade ambiental tanto às demandas popula res, como aos programas de governo, de maneira que sejam capazes de redefinir os problemas de desemprego, pobreza, marginalidade, desigualdade, participação, necessidades bá sicas e qualidade de vida que constituíram os motivos de rei vindicações sociais antigas e de demandas apoiadas pelos partidos políticos estabelecidos. Talvez a transformação mais importante e promissora seja a emergência dos atuais movimentos indígenas, nos quais a le gitimidade de seus novos direitos culturais está adquirindo uma eficácia simbólica na transformação das relações de po der e nas formas de fazer política. Nestes movimentos pela de mocracia e pela diversidade étnica é despertado o germe de um ambientalismo popular, capaz de arraigar os princípios ambi entais em práticas culturais e produtivas renovadas. E nesta perspectiva que os agrupamentos camponeses e os povos indí genas poderiam reclamar o direito de autogerir seus recursos e que os direitos pela autonomia cultural poderiam ativar movi mentos sociais pela reapropriação da natureza. A perspectiva ambiental não só propõe a incorporação de novas demandas dentro das reivindicações e das formas de or 110 ganização política tradicionais, mas uma complexificação e ressignificação das demandas da cidadania emergente. Surge assim a questão da capacidade dos movimentos ambientais de conduzir estas demandas sociais dentro de uma racionalidade alternativa, de seu potencial mobilizador para construir novas formas de convivência, relações políticas e organizações pro dutivas, frente à racionalidade econômica dominante, aos seus interesses e inércias institucionais, que buscam dissolver o am biente nas estratégias da globalização econômica. Ambientalismo/ecologismo Os movimentos ambientalistas caracterizam-se pela di versidade de suas motivações, seus interesses e suas ações; sua heterogeneidade transcende uma classificação formal segun do suas origens de classe ou suas vinculações partidárias, de pendendo antes das diferentes concepções e estratégias em que se inscrevem suas práticas. A especificidade de cada movi mento ambientalista provém das condições culturais e do meio ecológico onde se desenvolve, como também das circunstân cias políticas, econômicas e institucionais onde se inscreve e adquire sua identidade através de suas práticas concretas. Em todo movimento ambientalista — como em qualquer movimento social - sua forma de organização e sua própria história de luta geram as condições de uma tomada de cons ciência, abrindo os espaços onde podem enraizar-se suas es tratégias e concretizar-se seus propósitos. Assim, um movi mento ecológico promovido por estratos médios da popula ção pode incorporar em suas ações outras demandas popula res e estabelecer alianças de classe com organizações mais radicais. Por sua vez, os movimentos camponeses, indígenas e urbano-populares, através da incorporação de uma cons ciência ambiental, podem enriquecer suas demandas imedia tas por melhoras salariais, por seu direito à terra, à moradia e 111 aos serviços públicos, para incidir na tomada de decisões mais complexas sobre os padrões de uso de seus recursos, sobre novos modelos de urbanização e formas de assentamento, so bre processos de trabalho mais satisfatórios, sobre novos es quemas de organização social e produtiva que afetam a curto, médio e longo prazos suas condições e sua qualidade de vida. Daí pode surgir uma força real para internalizar uma perspecti va ambiental no programa dos partidos políticos, que permita traduzir os enunciados dispersos sobre a problemática ambien tal do discurso oficial em medidas, ações e instrumentos efica zes de uma política ambiental de desenvolvimento, abrindo espaços de participação para a sociedade civil. Os princípios gerais do ambientalismo encontram condi ções ecológicas e culturais mais ricas e perspectivas concei tuais e politicamente mais complexas nos países do Terceiro Mundo do que nos países altamente industrializados. Nos paí ses do Norte, o movimento ecológico se orienta para a con servação da natureza e o controle da contaminação, ao mes mo tempo que os problemas associados à exploração excessi va dos recursos são transferidos aos países mais pobres. Para estes últimos, localizados em sua maior parte em ecossiste mas mais frágeis e complexos daszonas tropicais, a defesa de seus recursos e o aproveitamento de seu potencial ecológico para um desenvolvimento sustentável estão associados à transformação da ordem econômica internacional e à cons trução de uma racionalidade de produção alternativa. Além do pensamento ecologista e das práticas conserva- cionistas dos países ricos, o ambientalismo dos países pobres se orienta para um processo de mudanças econômicas, tecno lógicas e sociais, numa perspectiva renovada e enriquecida. Desta maneira, a formação de uma consciência ambiental converte-se num processo ideológico e político que mobiliza os atores sociais a transformar suas relações sociais de produ ção e a abrir novos caminhos de desenvolvimento das forças produtivas baseadas na produtividade ecológica, no poten cial tecnológico e nos significados culturais dos povos. Neste sentido, os movimentos ambientalistas transcendem o campo de ação do ecologismo conservacionista, orientando suas de mandas sociais e políticas para a construção de uma nova ra cionalidade social e produtiva, capaz de gerar um desenvol vimento eqüitativo, sustentável e endógeno. Os movimentos ambientais mostram uma enorme diver sidade ideológica e praxeológica. Assim, encontramos movi mentos antinucleares, movimentos pela defesa dos recursos e de resistência diante da deterioração ambiental ocasionada pe los projetos de desenvolvimento industrial; movimentos con tra a hipertrofia e contaminação urbana; de prevenção dos de sastres ambientais, inclusive através de uma correta disposição do lixo tóxico e perigoso; movimentos de protesto contra os processos de criação de gado, contra o desmatamento e contra as práticas de monocultura, movimentos em favor da conser vação da natureza, da diversidade genética dos recursos e das espécies biológicas; em prol do desenvolvimento de tecnolo gias alternativas e da promoção de processos de autogestão. Estes movimentos caracterizam-se por sua composição pluralista e pela heterogeneidade de seus atores sociais que vão conformando alianças em torno de objetivos comuns: a sobrevivência da espécie humana, a conservação da nature za, a diversidade étnica, a auto-suficiência alimentar, a segu ridade social, o equilíbrio ecológico, a qualidade de vida e a participação comunitária na gestão dos recursos. Porém é di fícil passar desta lista de problemas que mobilizam diferentes grupos sociais ao estabelecimento de uma tipologia específi ca dos diversos movimentos e grupos ambientalistas, com base em sua fidelidade formal, discursiva ou prática aos seus princípios e objetivos, e em suas estratégias políticas, em suas alianças de classe e em suas filiações partidárias. 113 Em todo caso, é possível fazer uma distinção entre os mo vimentos “ecologistas do Norte” e os movimentos “ambien talistas do Sul”1. O ecologismo dos países altamente indus trializados surgiu como uma ética e uma estética da natureza, como uma busca de novos valores que surgiriam das condi ções de “pós-materialidade” (Inglehart, 1991) que produziria uma sociedade da abundância, livre das necessidades básicas e da sobrevivência. São “movimentos de consciência” que desejariam salvar o planeta do desastre ecológico, recuperar o contato com a natureza, mas que não questionam a ordem econômica dominante. Por sua vez, os movimentos ambien talistas nos países pobres surgem em resposta à destruição da natureza e ao esbulho de suas formas de vida e de seus meios de produção; são movimentos desencadeados por conflitos sobre o acesso e o controle dos recursos; são movimentos pela reapropriação social da natureza vinculados a processos de democratização, à defesa de seus territórios, de suas iden tidades étnicas, de sua autonomia política e sua capacidade de autogerir suas formas de vida e seus estilos de desenvolvi mento. São movimentos que definem as condições materiais de produção e os valores culturais das comunidades locais. 1. Estes movimentos são melhor caracterizados por seus objetivos c estratégias do que pe las noções com as quais são designados. De maneira geral, associou-se de início o ter mo ecologia ao manejo dos recursos (green issues), c ambiente aos efeitos da contami nação (brown issues). Contudo, desde sua irrupção com a crise ambiental, estas noções foram arrastadas pelo discurso político c seus usos institucionais foram adotando signi ficados práticos diversos, sem um esclarecimento e sistematização de seu sentido con ceituai. Só muito lentamente o significado destes termos foi sendo depurado da polisse- mia c ambivalência de seus usos primários, até ir adquirindo um sentido conceituai mais preciso. Desta maneira, pouco a pouco as instituições dedicadas à proteção da na tureza c ao uso sustentável dos recursos estão mudando sua denominação de agencias de ecologia a agências do meio ambiente (ministérios, comissões, conselhos). A eco nomia ambiental não se distingue da economia ecológica pela precisão de seus adjeti vos; a primeira é um ramo da economia convencional que busca atribuir valores econô micos à natureza, enquanto que a segunda busca um enfoque que permita inter-rclacio- nar processos econômicos c ecológicos (cf. cap. 3 deste volume). Mesmo no campo da economia ecológica fala-se ao mesmo tempo de “distribuição ecológica” e de “confli tos ambientais”; c só recentemente o “ecologismo dos pobres” ou “ecologismo popu lar” está sendo reconccitualizado como movimento ambientalista (Martínez Alicr, 1995; Guha c Martínez Alier, 1997). 114 Considerando as condições em que surgem e se desenvol vem estes movimentos nos países subdesenvolvidos, e ten do em vista seus objetivos de transformação social, convém qualificá-los como ambientalistas de preferência a ecolo gistas; o contexto político, cultural e econômico em que sur gem, assim como seus interesses e suas estratégias de luta, transcendem as visões dos grupos ecologistas dos países in dustrializados. Os grupos sociais que se mobilizam pelos princípios de uma racionalidade ambiental nos países do Terceiro Mundo incorporam em suas formações ideológi cas um conceito de ambiente mais rico e complexo que o conceito de ecologia que está na base do conservacionismo dos países centrais. Porém, uma justificação mais forte para designar estes novos movimentos sociais como ambientalistas é que o direi to ao acesso democrático aos recursos, seus significados cul turais e as condições para um desenvolvimento sustentável não são guiados por uma racionalidade ecológica. O ambien talismo não pretende restabelecer as condições ecológicas de inserção da espécie humana na natureza. Estes grupos se mo bilizam por princípios de racionalidade ambiental que incor poram as condições ecológicas em novas formas de signifi cação cultural e de organização social; que constituem novos valores e sentidos existenciais; que fundam novas estratégias de produção e orientam os diferentes tipos de desenvolvi mento de cada comunidade. A ideologia de um movimento social não é uma questão acidental em sua mobilização concreta. A conceitualização de um processo social não só configura o campo das possibilida des de transformação social, mas canaliza as ações para a con secução de certas metas e objetivos sociais. Os movimentos sociais que surgem mobilizados por um conceito de racionali dade ambiental encontram assim em suas perspectivas de aná lise a orientação de suas ações e de suas estratégias políticas. 115 O ecologismo arrasta consigo o significado das políticas remediais, das ações cosméticas e das soluções tecnologistas dos países industrializados. Mais ainda, internaliza em suas análises da realidade e em suas ações o “imperialismo gnoseo- lógico” baseado numa “ecologia generalizada” (Morin, 1980). A ecologia, como disciplina científica, apresenta-se como ciência por excelência das inter-relações, como uma “ciência das ciências”, onde os processos sociais se reduzem às estruturas biológicas das populaçõeshumanas e às suas adaptações e assimilações de seu entorno ecológico (Wilson, 1975). Inclusive a ecologia social busca sua justificação epistemológica numa ecologização do pensamento dialético (Bookchin, 1990; Leff, 1999). O ambientalismo coloca a ne cessidade de gerar perspectivas mais ricas para entender a ar ticulação dos múltiplos processos que integram o ambiente e as relações sociedade-natureza, para derivar uma nova racio nalidade produtiva, fundada no manejo integrado dos recur sos (Leff, 1994a, 20006). O ambiente configura um conceito e um objeto mais com plexo que o pensamento ecologista; a partir da ótica questio- nadora das extemalidades geradas pelos critérios produtivis- tas de curto prazo, problematiza a racionalidade social im posta pela ordem econômica dominante. O ambiente, enten dido como o potencial produtivo que gera a articulação siner- gética da produtividade ecológica, a inovação tecnológica, a autogestão produtiva e a participação popular, é um projeto mais rico que o da adaptação tecnológica dos processos pro dutivos a um funcionalismo ecologista. O ambientalismo se orienta assim para o melhoramento da qualidade de vida atra vés de novas alternativas de desenvolvimento fundadas no potencial ambiental das diferentes regiões e comunidades. Ativar e colocar em prática este potencial depende da ação social e da organização política que se infere das estraté gias do movimento ambiental. Os princípios de diversidade, 116 diferença e autonomia cobram sentido no campo de disper são do movimento ambientalista. Nesta perspectiva, já não se trata de reordenar o todo social com demandas homogêneas, mas abrir canais a reivindicações sociais mais localizadas e específicas, que muitas vezes não se expressam através das instâncias de representatividade e mediação da ordem políti ca institucionalizada, mas da ação direta. Desta maneira, as demandas dos grupos ecologistas, feministas e pacifistas vão se diferenciando, ao mesmo tempo que vão se multiplicando e dispersando as lutas sociais por novos direitos ambientais, culturais e coletivos (Leff, 2001). Face ao sentido reintegra- dor dos movimentos sociais emergentes oferecido pelo cará ter complexo de um ambientalismo que rejeita todo propósito unificador, homogeneizante e totalitário, as expressões, as mobilizações e as lutas sociais pela reapropriação da nature za, da vida e da cultura vão se diversificando, sem encontrar estratégias efetivas de poder, capazes de enfrentar o poder dissuasivo da globalização; sem haver podido constituir ali anças onde a diversidade política e cultural encontre uma via para plasmar solidariedades que permitam avançar na des- construção do logocentrismo e da unificação do mercado, dando lugar a um mundo organizado através de suas diversi- dades e diferenças. Neste contexto surge a cidadania buscando dar resposta aos desafios da globalização na passagem para a pós-mo- dernidade. 8 - CIDADANIA, GLOBALIZAÇÃO E PÓS-M ODERNIDADE* O silêncio como prelúdio da ação e da mudança O silêncio tem sido uma expressão de resistência e uma tática de luta que, através de sua eficácia simbólica, conse guiu enfrentar o poder totalitário. Exemplo disto têm sido as passeatas silenciosas de protesto pelo genocídio e contra a in dústria nuclear; ou o pacifismo de Gandhi e o movimento Chipko em defesa de suas florestas na índia. O silêncio tem sido a resposta à violência das armas e ao diálogo da guerra; o silêncio tem sido a reação das comunidades indígenas diante da apropriação forçada de seus saberes. O silêncio tem sido uma música que acompanha a paz. Mas o silêncio também é efeito de uma violência simbólica provocada pela política neoliberal e pelo discurso da pós-modemidade, calando as consciências, esvaziando o pensamento e eliminando os refe rentes a partir dos quais se pode construir uma nova utopia. Neste contexto, a ética ambiental manifesta uma resistên cia frente ao niilismo e à desmoralização deixados pelo des moronamento das ideologias modernas e pela perda de senti dos do pensamento da pós-modernidade. Frente ao poder do Estado e do mercado, a cidadania reclama seu direito de parti cipar nos processos de produção e abastecimento de serviços * Texto redigido a partir de uma exposição na Conferência “Los ciudadanos frente a Ia glo- balización: impactos socialcs, políticos y culturales”, organizada pela Rede de Ação Ecológica c pelo International Forum on Globalization, Santiago do Chile, 29 c 30 de março de 1996. 118 básicos, assim como na tomada de decisões que afetam suas condições e sua qualidade de vida. A crise ambiental marca um ponto de inflexão na história, onde se desvanecem os suportes ideológicos e as certezas subjetivas que geraram os paradigmas de conhecimento e os dogmas do saber no ambivalente progresso da modernidade. Diante de um mundo finito e esgotado, as energias mobi- lizadoras de novos projetos societários parecem dissipar-se na entropia do sem-sentido teórico e prático. Deste vazio emerge o movimento ambiental, forjando novas utopias na virtualidade do possível, apoiadas em forças materiais desco nhecidas, nos processos negados e nos saberes subjugados pela racionalidade econômica e científica dominante. Além da alienação tecnológica, o capitalismo real exerce seu poder repressivo através de suas estratégias de silencia- mento e de simulação: no indizível e na indecisão diante do li mite. O capitalismo real gera uma razão de força maior - o es tado permanente de urgência provocado pela crise econômica e ecológica - diante da qual é preciso atuar de acordo com as leis cegas do mercado e as normas dos poderes estabelecidos. As utopias se precipitam no abismo do fim da história. A pós-modemidade substitui a construção social de uto pias por um jogo de realidades virtuais. Tendo enterrado a fa talidade do destino e a construção de sentidos, as lutas pela li berdade diante da sujeição do poder e do projeto científico da modernidade para dominar e controlar a natureza, a pós-mo- dernidade anuncia o esboço de desígnios e uma saturação de sinais que gera a dessignificação do mundo. O pensamento perde seu sentido como razão teórica e prática. Esta é a vio lência simbólica das estratégias do silêncio que a hiper-reali- dade do mundo pós-modemo instaura nas consciências (Bau- drillard, 1993). 119 Esta violência já não se exerce apenas através da pilha gem de terras e recursos, mas pelo despojamento de saberes e práticas, pela carência de conhecimentos, pela perda de idéi as e pela falta de perspectivas de ação. O que esta estratégia de silêncio impõe é o esvaziamento do que hoje pode ser pen sado como campo de possibilidades diante do obscurantismo hegemônico das leis cegas do mercado. Diante do poder sim bólico desta razão totalitária, ficamos sem fala para afirmar nosso lugar no mundo, sem palavras para significar e dar sen tido à nossa existência, sem um pensamento capaz de orientar a construção de nosso futuro. Ficamos paralisados diante do desmoronamento dos referentes teóricos, axiológicos e pra- xeológicos, desarmados diante da incerteza, impotentes di ante das estratégias fatais da globalização, de uma hiper-rea- lidade inescapável que penetra nosso tecido vital, aniquilan do o pensamento crítico e a ação criativa. Da impossibilidade do inconsciente de realizar os sonhos, passamos à impotência histórica de sonhar. Diante do cerco onipresente e impenetrável da razão eco nômica, diante do círculo perfeito - mais absoluto do que a Idéia hegeliana- da globalidade planetária, a consciência ci dadã assoma entre os interstícios e as falhas deste mundo, fe chado e acabado, àprodução de novos sentidos civilizatórios, de novos valores e referentes mobilizadores de novas utopias capazes de preencher os vazios de subjetividade e de ação so cial; de pensar o inédito e a alternativa; de construir uma cul tura política da diferença e de conceber a diversidadecomo um potencial. Os novos atores destes processos de mudança histórica estão se forjando nos movimentos cidadãos, no meio urbano e no meio rural. A energia social reprimida e as forças conti das pela história transbordam sobre a realidade, anunciando a possibilidade de pensar novos futuros. Diante do bloqueio econômico das idéias, irrompem estalidos sociais, mobiliza- 120 cões cidadãs e lutas de resistência; ações e reações face à glo balização que estão transformando o mundo para passar para outro mundo. Diante da desarticulação e dissolução dos mo vimentos sociais, o saber ambiental emerge de seu sonho (pe sadelo?) legitimando novos direitos humanos e despejando novas vias de transformação histórica. De suas lutas de resis tência, a cidadania desperta para a invenção de novas utopias. A ética ambiental reanima a vontade nietzscheana de po der como um desejo de vida que rompe o silêncio, reabrindo os sentidos da história. O saber ambiental é mobilizado por essa vontade de poder querer, que vincula o conhecimento a uma ética do desejo1. A qualidade de vida não busca o trans- bordamento dos imperativos pulsionais nem a satisfação de necessidades reguladas pela racionalidade econômica. É bus ca de sentidos, abertura do desejo e norma diante do reconhe cimento dos limites. A proibição, o limite e a utopia A crise ambiental expressa o limite na ordem do real. A lei como limite, constitutiva da cultura e da subjetividade, manifesta-se agora na ordem econômica e ecológica. A mor te entrópica do planeta abre um processo de ressignificação da produção. A economia política desemboca numa política da vida. A proibição como lei foi internalizada na cultura para extemalizar-se na economia. Desta maneira o desejo insaciá vel abriu suas comportas numa demanda infinita de mercado rias transbordando sobre a natureza finita. O Édipo, como lei constitutiva da cultura, como lei de proibição do incesto, como norma de consangüinidade e con- “A vontade de poder... c antes a designação de uma força, para Nictzsche a força da vida, desejante, pujante. Esta força aponta não tanto para querer o poder como para aumentar a possibilidade de querer para poder querer, buscando sempre um mais, um plus" (Saal, 1998: 172-173). 121 dição de sobrevivência e convivência, foi internalizada (em bora transgredida como toda lei) pela humanidade; enquanto que a entropia como limite e condição de sustentabilidade é negada e pervertida pelo discurso do crescimento sustenta do. Abre-se aí a diferença entre a proibição e o limite abso luto entre a morte que, como limite, significa a vida e a re lança para os imaginários da reencamação, para o além, para o reino dos céus (e dos infernos), e para a morte entró- pica do planeta, que questiona os fundamentos ideológicos do crescimento e do progresso, sem ter encontrado ainda os caminhos para reconduzir a significação da vida dentro de uma nova economia. Vivemos um mundo onde a perda de sentidos existenciais, a desesperança generalizada pela marginalização, pelo de semprego e pela pobreza, e o fastio da abundância geram uma reação cega que tende a desvalorizar a própria vida. Hoje já não há mortes românticas, sobrecarregadas de gozos patéti cos onde se cantava a natureza e onde a natureza era o reflexo da alma. Hoje se morre de inanição de sentidos. É esta a en cruzilhada da civilização moderna, marcada pela lei-limite, onde o saber e a ação paralisam diante da saturação de um mundo fechado. Fernando Savater (1983-1994) nos lembra, citando Gil- les Deleuze, que “todos pensamos desde a própria ponta do que sabemos até o que ignoramos”. Percebemos hoje a crise da racionalidade econômica sobre a qual foi construída a ci vilização moderna. E ao mesmo tempo nos desencontramos num mundo sem referentes teóricos nem apoios ideológicos para orientar uma práxis transformadora da realidade; para construir o novo mundo guiados por uma praxeologia que oriente e viabilize a passagem para uma sustentabilidade fun dada na democracia e na recriação dos sentidos existenciais. O colapso ecológico aparece como uma crise de civiliza ção na qual permanecemos suspensos (pasmados?). Este abis- m0 entre o mundo finito, acabado e cercado por seu conheci mento de si e pelo saber especulativo do mundo novo, asse melha-se à mudança paradigmática entre o mundo fechado da Idade Média e a abertura ao universo infinito da moderni dade (Koyré, 1979); somos como “aquele arqueiro imagina do por Lucrécio em seu De rerum natura [diante da] infmitu- de inconcebível do cosmos: quando chegou ao próprio extre mo do universo finito postulado por outros, lançou uma fle cha”. Acontece que nesse ponto de projeção para o vazio infi nito, só nos “resta a impaciência de irmos nós mesmos atrás da flecha, como se só contasse o que estivesse além do que sa bemos” (Savater, 1983/1994: 20). E este é o desafio do saber ambiental diante do limite da razão economicista. Não basta neste caso o diagnóstico certei ro da finitude do mundo e do fim da história. No limite do pa radigma neoliberal, é necessário empreender o caminho da flecha lançada ao espaço desconhecido para criar (e não des cobrir) novos mundos. Devemos buscar pegadas, rastrear os sinais das respostas possíveis na imaginação sociológica e na criatividade política, das motivações e das estratégias da ci dadania diante da globalização. O que abre a “difer(a)ncia” (Derrida, 1989) no mundo não é a expressão de um ser prescrito na positividade^e sua presença; não a consciência como auto-reflexão do ser; não o devir da história como expressão de uma essência e desen volvimento de um código preestabelecido; não uma trans cendência como movimento teleológico de um projeto; não a clonagem de uma realidade ensimesmada. A utopia am biental emerge como a ressignificação do ser e da existência desde o limite: a compulsão da língua, a marca da morte, a lei da entropia. A iídifer(a)ncià''‘ como ressignificação desde o limite se coloca “como gasto sem reserva, como perda irreparável de 123 presença, como usura irreversível da energia, como pulsão de morte e relação com o outro que interrompe em aparência toda economia” (Derrida, 1989: 54). Ao mesmo tempo, a po lítica da diferença desocupa o campo da utopia onde se des dobram novas potencialidades e alternativas a partir do im pensável e do indizível. Neste renascimento das utopias, na busca antiparadigmática do conhecimento, emergem novos atores sociais num processo de reapropriação da natureza e de recriação de seus modos de vida. A globalização econômica como processo conduzido pelo sentido civilizatório para a realização do homo economicus como o estado mais acabado do sentido da existência huma na, e o disfarce do discurso da sustentabilidade, que encobre o limite da capitalização da natureza e da cultura, formam uma cortina de fumaça e uma realidade incontestáveis. A ca pacidade de simulação, de perversão e sedução do discurso da sustentabilidade resulta mais grave que a violência direta e a queima de livros pela Inquisição durante as ditaduras que tentaram esmagar a poesia e o pensamento crítico. A estraté gia de poder do hiper-realismo da globalização se baseia no ocultamento de seus mecanismos de repressão. Daí sua eficá cia e impunidade. A capitalização da vida e a forja de novas utopias A globalização aparece como a mudança histórica mais importante da ordem mundial na transição para o novo milê nio. Este processo tende a dissolver as fronteiras nacionais, homogeneizando o mundo através da extensão da racionali dade do mercado a todos os confins do orbe. Neste sentido, as novas estratégias do poder do capital na etapa da globaliza ção ecologizada não se reduzem à exploração direta dos re cursos, mas a uma recodificação do mundo, das diferentes or 124 dens de valor e de racionalidade, à forma abstrata de um siste ma generalizado de relações mercantis. Face à globalização econômica, os movimentosda cida dania estão legitimando novos valores e direitos humanos que estão detonando o surgimento de projetos sociais inédi tos na história. A cidadania emerge configurando novos ato res sociais fora dos campos de atração das burocracias esta tais e dos círculos empresariais, que reclamam a autodetermi nação de suas condições de existência e a autogestão de seus meios de vida. A cidadania surge como uma reação contra a ordem esta belecida, mas sem uma clara condução estratégica de suas ações. Fora dos canais institucionais e sem a orientação de su portes ideológicos prévios, caminha por veredas sem sinais que previnam sua queda nos abismos da incerteza e do caos. A cidadania avança numa viagem invernal, onde os ventos com força de furacões fazem girar os cata-ventos sem dire ção, onde a neve sepulta as pegadas deixadas no caminho. Como viajantes sem rumo que fazem o caminho ao andar so bre rotas minadas de sinais enganosos e confusos. A cidada nia se abre caminho impulsionada por um desejo de vida, en tre o sortilégio dos sentidos e os contra-sentidos causados pela perversão do poder no saber. Seu futuro se apresenta como um espaço virtual num campo de possibilidades ainda indefinidas, para abrir a ordem fechada e unidimensional da racionalidade econômica. A cidadania forja seus sentidos através de estratégias de poder, legitimando um espaço próprio nos processos de to mada de decisões, diante do Estado e da empresa. Todavia, a nova ordem unipolar não se democratiza através de uma dis tribuição tripartida de poderes, com a descentralização de um poder concentrado, ou pela outorga de um poder aos grupos sociais marginalizados dos benefícios (cada vez mais duvi 125 dosos) da ordem estabelecida. A autonomia do cidadão já não se propõe como uma tomada ou distribuição do poder; não se trata da apropriação dos meios de produção, de controle polí tico e de coerção estabelecidos pelos aparelhos ideológicos do Estado. A questão ambiental emerge de novos valores e novos princípios que levam à reorganização social e da produção para a reapropriação da natureza e da cultura. Isto implica o estabelecimento de novas relações sociais de produção e de novos sentidos civilizatórios, donde emerge um poder feito de uma nova matéria, sujeito a novas regras. Daí que hoje os efeitos simbólicos de uma estratégia antibelicista possam de sarticular a produção de armamentos nucleares, ou a legiti mação dos direitos indígenas possam desarmar a prepotência do Estado autoritário. A fortaleza dos movimentos da cidada nia depende de sua capacidade de inventar novas estratégias de poder, capazes de burlar o poder tecnoburocrático e de construir uma nova racionalidade social. A emergência da cidadania como novo projeto social co loca a possibilidade de forjar novas utopias face ao mundo homogeneizado que anuncia o fim das ideologias e da histó ria; a imaginação sociológica e a criatividade política se con frontam com o desafio de gerar novas estratégias de poder, capazes de vulnerar as fortalezas construídas em torno dos in teresses do capital, para arraigar na natureza e na cultura uma nova racionalidade produtiva. Trata-se da criação de novos sentidos para a existência, cujo impulso inicial surge da sacu dida da opressão física e moral gerada pela racionalidade so cial dominante. Entretanto, o ambientalismo não se limita às suas lutas de resistência; o ambientalismo não reduz suas es tratégias a criar contrapesos à ordem dominante nem a espe rar a derrocada do capitalismo como condição para a constru ção de uma nova sociedade. A utopia ambiental propõe a criação de uma nova ordem social. 126 O poder mais consolidado que deve ser desconstruído é a ideologia neoliberal; é a armadura mais difícil de desarmar, apesar de serem evidentes seus efeitos ecodestrutivos, seu jnipacto na produção de pobreza, o desmoronamento das ins tituições e a desmoralização da sociedade. Não só não se sus tenta na balança do paradigma mecanicista em que se funda, como ainda seus alicerces sofrem colapso numa economia que se move pelas leis cegas do mercado, cegas inclusive ao poder da narcoeconomia e da narcopolítica, pela volatilidade da produção sustentável de satisfatores diante da aceleração das transações monetárias (nem sequer materializadas em ouro ou em papel moeda), e à desintegração ecológica desen cadeada pela degradação entrópica do planeta. Eqüidade, igualdade, diversidade O movimento ambiental abre novas vias para alcançar a sustentabilidade ecológica e a justiça social. No neoliberalis- mo globalizado, a iniqüidade já não provém só do caráter ex- cludente e gerador de pobreza do capitalismo. O sistema tam bém produz uma maior necessidade de distinção do que de diferenciação, de status do que de identidade. Diante dos li mites do crescimento, propôs-se a igualdade social e a distri buição da renda como condição para equilibrar o desenvolvi mento com a proteção do ambiente. Hoje em dia, diante dos padrões prevalecentes de consumo, a eqüidade converte-se num despropósito. Só em pensar que cada indivíduo dos paí ses pobres (China, índia, por exemplo) pudesse ter acesso a um carro e a um refrigerador, faria estourar o planeta! A eqüidade no consumo igualitário da racionalidade eco- nomica globalizada é impossível, e as restrições auto-impos- tas pelos grupos ecologistas do Norte (o poder e soberania do consumidor) pouco haveriam de contribuir para minorar a pressão das massas empobrecidas sobre o ambiente, em sua 127 reivindicação de elevar seus níveis de renda e satisfazer suas necessidades básicas através de uma “distribuição mais eqüi- tativa do consumo”. A desigualdade ambiental não se resolve intemalizando os custos ecológicos na lógica do mercado, nem invertendo a relação do impacto da pobreza sobre a capacidade de carga do ecossistema; a eqüidade diante da sustentabilidade deve levar a perceber como a racionalidade tecnológica e econô mica afeta os equilíbrios ecológicos existentes e as formas culturais de acesso e transformação da natureza, gerando no vas formas de desigualdade social e de distribuição ecológica dos recursos entre os diferentes atores sociais. A eqüidade na sustentabilidade não pode ser proposta a não ser como um direito à diversidade cultural, o que implica uma diferenciação das formas sociais de produção e de con sumo. As culturas não só definem nichos ecológicos e nor mas sociais de acesso aos recursos que permitem controlar a pressão social sobre os recursos, mas ao mesmo tempo a di versidade de tipos étnicos coloca diferentes sentidos diante do consumo de recursos naturais. O efeito de competição que gera igualdade diante de um tipo globalizado de consumo se dispersa e desativa na convivência de diferentes formas cul turais de vida. Por outro lado, a igualdade como homologa ção das formas de consumo gera a ambição de distinção dian te do outro. Caim mata Abel no âmbito da competição frater na. Na cultura da competição, à medida que se reduz a distân cia social, cresce a tensão pela distinção, que se concretiza na acumulação de bens. Na diversidade cultural, a competição se dissolve em outra maneira de olhar a alteridade, como complementaridade, cooperação, solidariedade e integrali- dade do múltiplo. Isto leva a desconstruir as noções prevalecentes de rique za e de pobreza e a defini-las como construções culturais. 128 Neste sentido, Vandana Shiva assinala a necessidade de “se parar uma concepção cultural que considera pobreza a sub sistência, da experiência material da pobreza que resulta da despossessão e da privação” (Shiva, 1993a: 32). Na visão ocidental, as sociedades de auto-subsistência são vistas como “pobres” porque não se ajustam aos critérios de bem-estar através do consumo da economia de mercado. Entretanto, é a transformação das economias de subsistência para inte- grá-las ao mercado que converte estas comunidades em socie dades pobres; não só emsuporte para chegar a um desenvolvimento du radouro, questionando as próprias bases da produção. A visão mecanicista da razão cartesiana converteu-se no princípio constitutivo de uma teoria econômica que predomi nou sobre os paradigmas organicistas dos processos da vida, legitimando uma falsa idéia de progresso da civilização mo derna. Desta forma, a racionalidade econômica baniu a nature za da esfera da produção, gerando processos de destruição eco lógica e degradação ambiental. O conceito de sustentabilidade surge, portanto, do reconhecimento da função de suporte da natureza, condição e potencial do processo de produção. A crise ambiental se toma evidente nos anos 60, refletin- do-se na irracionalidade ecológica dos padrões dominantes * Texto redigido com base no artigo “La insoportable levedad dc la globalización. La capita- lizaeión de la naturaleza y las estrategias fatales de la sustentabilidad”, Revista de la Uni- versidad de Guadalajara, n. 16 (1996). Uma versão resumida foi publicada em Formación Ambiental, vol. 7, n. 16 (1996). 15 gracihelem Highlight de produção e consumo, e marcando os limites do crescimen to econômico. Desta maneira, inicia-se o debate teórico e po lítico para vaTorizar a natureza e internalizar as “extemalida- des socioambientais” ao sistema econômico.íDeste processo crítico surgiram as~estratégias do ecodesenvolvimento, pro movendo novos tipos de desenvolvimento fundados nas con dições e potencialidades dos ecossistemas e no manejo pru dente dos recursos (Sachs, 1982). A economia foi concebida como um processo governado pelas leis da termodinâmica que regem a degradação de energia em todo processo de pro dução e consumo (Georgescu-Roegen, 1971). O sistema eco nômico viu-se imerso num sistema fisico-biológico mais am plo que o contém e lhe dá seu suporte de sustentabilidade (Passet, 1979). Daí surgiram os novos paradigmas da econo mia ecológica, buscando integrar o processo econômico com a dinâmica ecológica e populacional (Costanza et al., 1996). Emergência do ambiente e discurso da sustentabilidade O discurso do desenvolvimento sustentável foi sendo le gitimado, oficializado e difundido amplamente com base na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, celebrada no Rio de Janeiro, em 1992. Mas a consciência ambiental surgiu nos anos 60 com a Pri mavera Silenciosa de Rachel Carson, e se expandiu nos anos 70, depois da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, celebrada em Estocolmo, em 1972. Na quele momento é que foram assinalados os limites da racio nalidade econômica e os desafios da degradação ambiental ao projeto civilizatório da modernidade. A escassez, alicerce da teoria e prática econômica, converteu-se numa escassez global que já não se resolve mediante o progresso técnico, pela substituição de recursos escassos por outros mais abun dantes ou pelo aproveitamento de espaços não saturados para 16 o depósito dos rejeitos gerados pelo crescimento desenfreado da produção. Na percepção desta crise ecológica foi sendo configurado um conceito de ambiente como uma nova visão do desenvol vimento humano, que reintegra os valores e potenciais da na tureza, as externalidades sociais, os saberes subjugados e a complexidade do mundo negados pela racionalidade mecani- cista, simplificadora, unidimensional e fragmentadora que conduziu o processo de modernização. O ambiente emerge como um saber reintegrador da diversidade, de novos valores éticos e estéticos e dos potenciais sinergéticos gerados pela articulação de processos ecológicos, tecnológicos e culturais. O saber ambiental ocupa seu lugar no vazio deixado pelo pro gresso da racionalidade científica, como sintoma de sua falta de conhecimento e como sinal de um processo interminável de produção teórica e de ações práticas orientadas por uma utopia: a construção de um mundo sustentável, democrático, igualitário e diverso (Leff, 1986). Portanto, a degradação ambiental se manifesta como sin toma de uma crise de civilização, marcada pelo modelo de modernidade regido pelo predomínio do desenvolvimento da razão tecnológica sobre a organização da natureza. A questão ambiental problematiza as próprias bases da produção; apon ta para a desconstrução do paradigma econômico da moder nidade e para a construção de futuros possíveis, fundados nos limites das leis da natureza, nos potenciais ecológicos, na pro dução de sentidos sociais e na criatividade humana. Neste processo de reconstrução são elaboradas as estraté gias do ecodesenvolvimento (Sachs, 1982),postulando a ne cessidade de fundar novos modos de produção e estilos de vida nas condições e potencialidades ecológicas de cada re gião, assim como na diversidade étnica e na autoconfiança das populações para a gestão participativa dos recursos. As 17 gracihelem Highlight propostas do ecodesenvolvimento são traçadas num momen to em que as teorias da dependência, do intercâmbio desigual e da acumulação interna de capital orientavam o planejamen to do desenvolvimento. Não obstante, antes que as estratégias do ecodesenvolvi mento conseguissem vencer as barreiras da gestão setoriali- zada do desenvolvimento, reverter os processos de planeja mento centralizado e penetrar nos domínios do conhecimen to estabelecido, as próprias estratégias de resistência à mu dança da ordem econômica foram dissolvendo o potencial crítico e transformador das práticas do ecodesenvolvimento. Daí surge a busca de um conceito capaz de ecologizar a eco nomia, eliminando a contradição entre crescimento econô mico e preservação da natureza. A uma década da Conferência de Estocolmo, os países do Terceiro Mundo, e da América Latina em particular, viram-se atravancados na crise da dívida, caindo em graves processos de inflação e recessão. A recuperação econômica surgiu en tão como uma prioridade e razão de força maior das políticas governamentais. Neste processo foram configurados os pro gramas neoliberais de diversos países, ao mesmo tempo que avançavam e se complexificavam os problemas ambientais do orbe. Começa então naquele momento a cair em desuso o discurso do ecodesenvolvimento, suplantado pelo discurso do “desenvolvimento sustentável”. Embora muitos dos re presentantes de ambos os discursos concordassem, as estraté gias de poder da ordem econômica dominante foram trans formando o discurso ambiental crítico, submetendo-o aos di tames da globalização econômica. As estratégias de apropriação dos recursos naturais no processo de globalização econômica transferiram assim seus efeitos para o campo teórico e ideológico. O ambiente foi ca indo nas malhas do poder do discurso do crescimento susten 18 gracihelem Highlight tável. Porém, o conceito de ambiente cobra um sentido estra tégico no processo político de supressão das “extemalidades do desenvolvimento” - a exploração econômica da natureza, a degradação ambiental, a desigual distribuição social dos custos ecológicos e a marginalização social - que persistem apesar da ecologização dos processos produtivos e da capita lização da natureza. A pedido do secretário-geral das Nações Unidas, em 1984, foi criada a Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desen volvimento para avaliar os avanços dos processos de degrada ção ambiental e a eficácia das políticas ambientais para enfren- tá-los. Depois de três anos de estudos, deliberações e audiên cias públicas, a Comissão publicou suas conclusões num do cumento intitulado Nosso futuro comum (CMMAD, 1988), também conhecido como Informe Bruntland. Nosso futuro comum reconhece as disparidades entre as nações e a forma como se acentuam com a crise da dívida dos países do Terceiro Mundo. Busca entretanto um terreno co mum onde propor uma política de consenso, capaz de dissol ver as diferentes visões e interesses de países, povos e clas ses sociais, que plasmam o campo conflitivo do desenvolvi mento. Assim começou a configurar-se umatermos relativos (como marginaliza das do sistema), mas em termos absolutos, ao solapar seus meios naturais de produção de subsistência. O processo de modernização desloca as economias tradi cionais de subsistência, impondo processos de despossessão de terras e saberes, gerando desigualdades sociais pelas con dições não eqüitativas de distribuição e acesso aos recursos naturais. Por isso, a questão da eqüidade na sustentabilidade não pode ser resolvida com uma melhor distribuição da renda ou uma melhor “distribuição ecológica”, já que enfrentam a impossível intemalização dos custos ecológicos não valori zados diretamente pelo mercado. A eqüidade ambiental não passa por um ajuste de custos (de contas) entre valorização ecológica e contabilidade econômica, mas pela contraposi ção de duas racionalidades culturais e produtivas diferentes. Neste sentido, a racionalidade ambiental afirma a diversida de como fonte e condição da eqüidade; a diferença como a forja de novas identidades que haverão de conjugar-se em formas solidárias na construção de outro mundo. As estratégias de poder da cidadania emergente Perante o poder de simulação e dissolução dos movimen tos sociais e da crítica social que fazem os poderes estabeleci dos, entre as rachaduras dos poderes anquilosados, está se re 129 construindo hoje a sociedade civil. As respostas da cidadania face à globalização surgem como formas de resistência dian te da capitalização da natureza e da cultura, da produção ma terial e simbólica. O movimento ambiental cidadão não pro põe uma redistribuição de poder nem reclama um melhor ba lanço dos custos ecológicos do processo econômico, mas abre novos processos políticos e jurídicos para a apropriação social da natureza] O movimento ambiental não é uma fuga ao passado, mas a invenção de um novo futuro; não é a recusa da ciência, mas a fusão dos saberes tradicionais e do conheci mento moderno.t A ciência e a tecnologia já não são exclusivamente meios de dominação do homem e exploração da natureza, mas obje tos de apropriação desigual para fundar projetos civilizató- rios diferenciados. São armas de dois gumes. A microeletrô- nica e as telecomunicações não são ferramentas para subju gar os despossuídos, mas instrumentos de luta em defesa dos direitos humanos que enlaçam um movimento solidário in ternacional. Também abriram a possibilidade de transmitir os fatos ocultados pelos mecanismos dos poderes estabelecidos e de mostrar o uso ilegítimo da violência e do poder do Esta do. Deste modo, os meios tecnológicos gerados pela globali zação estão sendo convertidos em instrumentos de poder e li beralização para as classes dominantes. Com as armas da pós-modemidade cibernética, o subco- mandante Marcos conseguiu subverter o poder vertical do Estado mexicano, lançando ao mundo os comunicados de “durito” pela Internet. Através dos meios de comunicação es tabeleceu-se uma solidariedade internacional e convocou-se a cúpula da humanidade frente ao neoliberalismo. Em outro caso, um vídeo que devia provar a inocência das autoridades no assassinato de camponeses em Aguas Blancas, no estado de Guerrero, no México, voltou-se como um bumerangue contra seus executores, ao mostrá-los crivando os campone 130 ses e semeando em seus corpos provas falsas de sua ameaça contra os “guardiães da ordem”. Os tiros de graça se refletem no olhar acusador do povo. Vários exemplos mexicanos recentes mostram os sinais das novas relações de poder que surgem do conflito ambien tal e do processo de emancipação dos grupos dominados da população. Em sua luta pela democracia, o movimento do Exército Zapatista de Libertação Nacional foi reconhecido como uma força política com direito de participar na refor ma do Estado. O reconhecimento à cultura e à autonomia dos povos indígenas está exigindo seus direitos a autodeter- minar suas formas de organização social. Isto certamente vai ajudar a recuperar seu patrimônio de recursos naturais e culturais e a colocá-los a funcionar dentro de novas formas de autogestão produtiva. Neste sentido, os “chimas”, antigos habitantes da região de Los Chimalapas, a reserva de biodiversidade mais rica do México, vêm reconhecendo seus direitos de propriedade da terra e sua recusa de serem peças de museu de uma reserva étnica e co-partícipes das novas formas de exploração dos re cursos da biodiversidade. Estes camponeses indígenas que habitam esta Reserva Campesina de Biodiversidade, assim decretada pelo governo federal, estão descobrindo que a bio diversidade representa o patrimônio de recursos naturais e culturais com o qual coevoluíram na história. Eles, assim como os demais povos indígenas que habitam as regiões bio- diversas do planeta, estão enfrentando uma alternativa: 1) ver as empresas de biotecnologia do Norte apropri- ar-se desse patrimônio através de seus “direitos de propriedade intelectual” , e receber uma compensa ção pelo serviço que oferecem à globalização eco- nômico-ecológica ao concessionar seu habitat e sua riqueza a uma empresa; 131 2) converter-se em novos sujeitos históricos, capazes de reapropriar-se de seu patrimônio de recursos na turais e culturais, recuperando seus saberes biotec- nológicos tradicionais, enriquecendo-os com conhe cimentos modernos; reivindicar o direito de apro priar-se da ciência e da tecnologia modernas para in crementar suas capacidades de produção e conser vação dessa biodiversidade, em vez de aceitarem ser sujeitos passivos e ceder seus direitos sobre seus re cursos (Torres, 1997). Outro caso significativo de luta pela democratização do Estado tem sido o protesto contra a contaminação de Pemex (a empresa estatal responsável pela exploração dos hidrocar- bonetos e seus derivados) no estado de Tabasco, no México, que é ao mesmo tempo um protesto pela política esbanjadora na gestão da paraestatal e contra a cessão do patrimônio de um recurso estratégico aos poderes neoliberais. Este movi mento contra a contaminação e de resistência à venda da in dústria petroquímica é uma luta ambientalista que vincula o reconhecimento ao valor do recurso com sua gestão racional e democrática. A ameaça de uma possível privatização da in dústria petroquímica suscitou uma resistência e uma mobili zação da cidadania com respostas criativas. Como reação di ante das especulações de privatização para capitalizar a in dústria, o Partido da Revolução Democrática lançou uma convocatória nacional para a compra das ações da empresa entre mexicanos. Neste sentido, vão se configurando os novos atores so ciais e as novas estratégias de poder da cidadania, para for jar, em oposição à modernidade, um mundo novo, onde a racionalidade ambiental recebe, conjuga e dispersa as lu zes e as vozes pela democracia, pela sustentabilidade e pela justiça social. 132 9 - 0 CONCEITO DE RACIONALIDADE AMBIENTAL* O processo civilizatório da modernidade fundou-se em princípios de racionalidade econômica e instrumental que moldaram as diversas esferas do corpo social: os padrões tec nológicos, as práticas de produção, a organização burocráti ca e os aparelhos ideológicos do Estado. A problemática ecológica questiona os custos socioambientais derivados de uma racionalidade produtiva fundada no cálculo econômi co, na eficácia dos sistemas de controle e previsão, na uni formização dos comportamentos sociais e na eficiência de seus meios tecnológicos. A questão ambiental estabelece assim a necessidade de introduzir reformas democráticas no Estado, de incorporar normas ecológicas ao processo econô mico e de criar novas técnicas para controlar os efeitos conta- minantes e dissolver as extemalidades socioambientais gera das pela lógica do capital. Além destes propósitos normativos, o conceito de ambi ente abre novas perspectivas ao processo de desenvolvimen to, sobre novos princípios éticos e potenciais ecológicos, pro pondo uma transformação dos processos econômicos, políti cos,tecnológicos e educativos para construir uma racionali dade social e produtiva alternativa. O discurso ambientalista - mesmo em suas formas menos radicais, orientadas a refun- cionalizar a ordem econômica dominante mediante a incor poração de normas ecológicas e a aplicação de novos instru * Texto redigido a partir de um artigo publicado cm Formación Ambiental, vol. 4, n. 7,1993. 133 mentos econômicos - mobiliza um conjunto de mudanças so ciais e transformações institucionais para internalizar as ba ses ecológicas e sociais de um desenvolvimento sustentável. Sob a perspectiva ambiental do desenvolvimento susten tável, as contradições entre a lógica do capital, os processos ecológicos e os sistemas vivos não resultam da oposição de duas lógicas abstratas; sua solução não consiste em subsumir o comportamento econômico na lógica do vivo ou em internali z a r - como um conjunto de normas - as condições de sustenta bilidade ecológica na dinâmica do capital. As contradições en tre a racionalidade ecológica e a racionalidade capitalista se dão através de um confronto de diferentes valores e potenciais, arraigados em esferas institucionais e em paradigmas de co nhecimento, através de processos de legitimação com que se defrontam diferentes classes, grupos e atores sociais. A lógica da unidade econômica rural e o estilo étnico pró prio de uma cultura remetem a racionalidades sociais consti tuídas como sistemas complexos de ideologias-valores-práti- cas-comportamentos-ações, que são irredutíveis a uma lógi ca unificadora. Neste sentido, a racionalidade ambiental não é a expressão de uma lógica, mas o efeito de um conjunto de interesses e de práticas sociais que articulam ordens mate riais diversas que dão sentido e organizam processos sociais através de certas regras, meios e fins socialmente construí dos. Estes processos especificam o campo das contradições e relações entre a lógica do capital e as leis biológicas; entre a dinâmica dos processos ecológicos e as transformações dos sistemas socioambientais. Além da possível ecologização da ordem social, a resolu ção da problemática ambiental e a construção de uma racio nalidade ambiental que oriente a transição para um desen volvimento sustentável requer a mobilização de um conjunto de processos sociais: a formação de uma consciência ecoló 134 gica; o planejamento transetorial da administração pública e a participação da sociedade na gestão dos recursos ambien tais; a reorganização interdisciplinar do saber, tanto na pro dução como na aplicação de conhecimentos. A possível des- construção da racionalidade capitalista e a construção de uma racionalidade ambiental passa, pois, pelo confronto de inte resses opostos e pela conciliação de objetivos comuns de di versos atores sociais. Toda racionalidade social articula um sistema de teorias e conceitos, de normas jurídicas e instrumentos técnicos, de significações e valores culturais. Desta maneira, opera atra vés de uma racionalidade teórica, instrumental e substantiva, estabelecendo critérios e legitimando ações dos agentes so ciais. A categoria de racionalidade ambiental integra os prin cípios éticos, as bases materiais, os instrumentos técnicos e jurídicos e as ações orientadas para a gestão democrática e sustentável do desenvolvimento; por sua vez, converte-se num conceito normativo para analisar a consistência dos prin cípios do ambientalismo em suas formações teóricas e ideo lógicas, das transformações institucionais e programas go vernamentais, assim como dos movimentos sociais, para al cançar estes fins. Neste sentido, a categoria de racionalidade ambiental funciona como um conceito heurístico que orienta e promove a praxeologia do ambientalismo e que ao mesmo tempo permite analisar a eficácia dos processos e das ações “ambientalistas”. A racionalidade ambiental se constrói e concretiza numa inter-relação permanente de teoria e práxis. A questão am biental, incluída sua problemática gnoseológica, surge no terreno prático de uma problemática social generalizada que orienta o saber e a pesquisa para o campo estratégico do po der e da ação política. Assim, a categoria de racionalidade ambiental não só é útil para sistematizar os enunciados teóri cos do discurso ambiental, mas também serve para analisar 135 seu potencial e coerência em sua expressão no movimento ambientalista, na dialética que se estabelece entre o poder transformador do conceito ao “incorporar as condições de aplicação do conceito no próprio sentido do conceito” (Ba- chelard, 1938/1948: 73)'. Neste sentido, a construção de uma racionalidade ambiental depende da constituição de novos atores sociais que objetivem através de sua mobilização e concretizem em suas práticas os princípios e potenciais do ambientalismo. A racionalidade capitalista esteve associada a uma racio nalidade científica e tecnológica que busca incrementar a ca pacidade de certeza, previsão e controle sobre a realidade, as segurando uma eficácia crescente entre meios e fins. O saber ambiental questiona a racionalidade científica como instru mento de dominação da natureza e sua pretensão de dissolver as extemalidades do sistema através de uma gestão racional do processo de desenvolvimento. Neste sentido Marcuse ad vertiu que: No desenvolvimento da racionalidade capitalista, a irracionalidade se converte em razão: razão como desenvolvimento frenético da produtividade, como conquista da natureza, como incremento da riqueza de bens; mas irracional, porque a alta produção, o do mínio da natureza e a riqueza social se convertem em forças destrutivas (Marcuse, 1968/1972). A racionalidade ambiental incorpora um conjunto de va lores e critérios que não podem ser avaliados em termos do modelo de racionalidade econômica, nem reduzidos a uma medida de mercado. Seus princípios constituem uma estraté- 1. “Esse racionalismo dialético nào pode scr automático nem pode ser de inspiração lógica: é preciso que seja cultural, isto é, que nâo se elabore no segredo de um gabinete, na me ditação de possibilidades mais ou menos cvancscentcs de uma mente pessoal. É neces sário que o racionalista (...) se instrua sobre a evolução da ciência humana; e necessá rio, por conseguinte, que aceite uma longa preparação para receber a problemática de seu tempo” (Bachclard, 1973: 60). 136 aia conceituai que orienta a realização dos propósitos ambi entais, frente aos constrangimentos que a institucionalização do mercado e a razão tecnológica impõem ao seu processo de construção. A racionalidade ambiental se constrói mediante a articu lação de quatro esferas de racionalidade: a) uma racionalidade substantiva, isto é, um sistema axiológico que define os valores e objetivos que ori entam as ações sociais para a construção de uma ra cionalidade ambiental (v. gr. sustentabilidade ecoló gica, eqüidade social, diversidade cultural, demo cracia política); b) uma racionalidade teórica que sistematiza os valores da racionalidade substantiva articulando-os com os processos ecológicos, culturais, tecnológicos, polí ticos e econômicos que constituem as condições materiais, os potenciais e as motivações que susten tam a construção de uma nova racionalidade social e produtiva; c) uma racionalidade instrumental que cria os vínculos técnicos, funcionais e operacionais entre os objeti vos sociais e as bases materiais do desenvolvimento sustentável, através de um sistema de meios efica zes; d) uma racionalidade cultural - entendida como um sis tema singular e diverso de significações que não se submetem a valores homogêneos nem a uma lógica ambiental geral - , que produz a identidade e integri dade de cada cultura, dando coerência a suas práti cas sociais e produtivas em relação com as potencia lidades de seu entorno geográfico e de seus recursos naturais. R a c io n a l id a d e a m b ie n ta l s u b s t a n t iv a O discurso ambiental é conformado por um conjunto devalores que dão novos fundamentos e reorientam o processo de desenvolvimento. Estes princípios éticos e teóricos podem resumir-se nos seguintes: 1) fomentar o pleno desenvolvimento das capacidades (produtivas, afetivas e intelectuais) de todo ser hu mano, satisfazer suas necessidades básicas e melho rar sua qualidade de vida; 2) preservar a diversidade biológica do planeta e res peitar a identidade cultural de cada povo; 3) conservar e potenciar as bases ecológicas de susten tabilidade do sistema de recursos naturais como con dição para um desenvolvimento sustentável; 4) preservar o patrimônio dos recursos naturais e cultu rais - inclusive do saber autóctone e das práticas tra dicionais das comunidades - por seus valores intrín secos e culturais, e não só por seu valor no mercado; 5) arraigar o pensamento da complexidade em novas formas de organização social e produtiva, integran do processos de diferentes ordens de materialidade e racionalidade; 6) construir formas alternativas de desenvolvimento a partir do potencial ambiental de cada região - do sis tema complexo de recursos ecológicos, tecnológi cos e culturais - e das identidades étnicas de cada população; 7) distribuir a riqueza, a renda e o poder, através da des centralização econômica, da gestão participativa e da distribuição democrática dos recursos ambien tais de cada região; 138 8) atender às necessidades e aspirações da população, a partir de seus próprios interesses e contextos cul turais; 9) erradicar a pobreza e a guerra, estabelecendo meios pacíficos para dirimir os conflitos ambientais; 10) fortalecer os direitos de autonomia cultural, a capa cidade de autogestão de recursos naturais e a auto determinação tecnológica dos povos. Estes princípios e valores devem ser sistematizados e operacionalizados através de teorias, métodos e políticas que os articulem com suas bases materiais (mobilização de pro cessos naturais, tecnológicos e sociais), com a promoção de programas científicos, estratégias políticas, instrumentos téc nicos, normas jurídicas e movimentos sociais, com o fim de ir construindo novas relações de produção e novas forças pro dutivas para um desenvolvimento sustentável. Racionalidade ambiental teórica A racionalidade ambiental não pode definir-se tão-so- mente em termos de sua racionalidade substantiva (que su bordina a realidade aos valores), mas deve fundar-se em pro cessos materiais que dão suporte aos valores qualitativos que orientam a reconstrução da realidade e de novas formas de desenvolvimento. Estes princípios gerais orientaram a elabo ração de uma teoria crítica da produção e do desenvolvimen to sustentável. O conceito de racionalidade ambiental constitui, assim, uma categoria crítica para a construção de uma racionalidade produtiva alternativa. Tomando congruentes os postulados e Princípios ambientais, permite ativar um conjunto de proces sos materiais e desencadear as sinergias de suas complexas articulações, dando suporte a novas estratégias produtivas fundadas nos potenciais do ambiente. Daí emerge um novo paradigma de produção, fundado na articulação de níveis de produtividade ecológica, cultural e tecnológica, dentro de um processo prospectivo e dinâmico que orienta as práticas científicas, tecnológicas e culturais. Propõe-se assim a articulação de um sistema de recursos na turais com um sistema tecnológico apropriado e com siste mas culturais que dão suporte material e sentidos diferencia dos à construção de ecossistemas produtivos integrados às forças produtivas e às relações sociais, políticas e econômi cas de diferentes formações socioambientais. A racionalidade teórica ambiental sistematiza os postula dos do discurso ambientalista e dá coerência à organização dos diferentes processos naturais e sociais que constituem o suporte material de uma nova racionalidade produtiva, con- trastável em seus espaços de aplicação com as práticas produ tivas derivadas da lógica do mercado e da razão tecnológica. Desta forma, a racionalidade teórica gera critérios para avali ar projetos e formas alternativas de desenvolvimento. Racionalidade ambiental instrumental O desenvolvimento sustentável fundado nos princípios de racionalidade ambiental incorpora valores culturais e pro cessos ecológicos que são incomensuráveis e irredutíveis ao cálculo econômico e à eficiência tecnológica. Porém, não es capa à necessidade de gerar meios adequados aos seus fins, para conseguir realizá-los. A intemalização destes princípios ambientais na organização social e produtiva requer instru mentos técnicos, ordenamentos jurídicos, arranjos institucio nais e processos de legitimação que traduzam os propósitos do desenvolvimento sustentável em ações, programas e me canismos que dêem eficácia aos seus objetivos. 140 Colocar em prática os princípios do desenvolvimento sustentável exige elaborar novos instrumentos para imple mentar os projetos de gestão ambiental: inventários e méto dos de avaliação das contas do patrimônio de recursos natu rais e culturais (Cepal, 1991; Sejenovich e Gallo Mendoza, 1996); indicadores sobre o potencial ambiental, o desenvol vimento humano e a qualidade de vida; métodos de avaliação do impacto ambiental. Esta racionalidade técnica ou instru mental inclui a produção de ecotécnicas e tecnologias “lim pas”, assim como os ordenamentos jurídicos, os instrumen tos econômicos e os arranjos institucionais que conformam os meios eficazes para a gestão ambiental. Mas também faz parte desta esfera de racionalidade a eficácia das estratégias de poder que mobilizam os atores sociais para promover as mudanças políticas e sociais que permitam a emergência e operatividade desta racionalidade ambiental. Racionalidade cultural Os princípios de racionalidade ambiental levam a conce ber a sociedade nacional como um Estado multiétnico que in tegra diversas organizações comunitárias e identidades cul turais. Neste sentido, o desenvolvimento sustentável deve integrar as diferentes formações socioeconômicas e grupos étnicos de uma nação, e implica a participação das comunida des na percepção, gestão e manejo de seus recursos. A racio nalidade cultural deriva do princípio de diversidade estabele cido pela racionalidade ambiental substantiva e de sua coe rência teórica, mas ao mesmo tempo é um elemento de sua eficácia técnica. Os saberes técnicos e as práticas tradicionais são parte in dissociável dos valores culturais de diferentes formações so ciais; constituem recursos produtivos para a conservação da natureza e capacidades próprias para a autogestão dos recur sos de cada comunidade. Desta maneira, satisfazem suas ne cessidades básicas e orientam seu desenvolvimento dentro de estilos étnicos e formas diversas de significação cultural. Racionalidade am biental/racionalidade capitalista A construção de uma racionalidade ambiental resulta de um conjunto de processos que integram diferentes “esferas de racionalidade”. Estes processos vão legitimando a tomada de decisões, dando funcionalidade a suas operações práticas e eficácia a seus processos produtivos. O conceito de raciona lidade conecta os processos “superestruturais” da razão com a racionalidade dos processos que constituem a base produti va. Desta forma, nas práticas de apropriação e transformação da natureza se confrontam e amalgamam diferentes raciona lidades: a racionalidade capitalista de uso dos recursos; a ra cionalidade ecológica das práticas produtivas; a racionalida de dos estilos étnicos de uso da natureza. A racionalidade capitalista não se combate apenas com os valores de uma nova ecosofia - da “ecologia profunda” (Naess e Rothenberg, 1989; Devall e Sessions, 1985) ou da filosofia da ecologia social (Bookchin, 1989, 1990). A des- construção da racionalidade capitalista requer a construção de outra racionalidade social. E a partir deste lugar de exter- nalidade e marginalidade que lhe atribui a racionalidadeeco nômica que o paradigma ambiental projeta seus juízos éticos, seus valores culturais e seus potenciais produtivos sobre os efeitos da produtividade e do cálculo econômico guiado pelo sinal único do lucro. A realização do conceito de racionalidade ambiental é a concretização de uma utopia. Esta não é a materialização de princípios ideais abstratos, mas emerge como uma resposta social a outra racionalidade que teve seu momento histórico de construção, de legitimação e de tecnologização. A racio nalidade ambiental surge de outros princípios, mas dentro da 142 racionalidade capitalista que plasma a realidade econômica, política e tecnológica dominante. O processo que vai de seu surgimento até a consolidação de suas propostas é um pro cesso de transição para a sustentabilidade, caracterizado pelas oposições de perspectivas e interesses envolvidos em ambas as racionalidades, mas também por suas estratégias de dominação, suas táticas de negociação e seus espaços de complementaridade. A constituição de uma racionalidade ambiental e a transi ção para um futuro sustentável exigem mudanças sociais que transcendem o confronto entre duas lógicas (econômica-eco- lógica) opostas. É um processo político que mobiliza a trans formação de ideologias teóricas, instituições políticas, fun ções governamentais, normas jurídicas e valores culturais de uma sociedade; que se insere na rede de interesses de classes, grupos e indivíduos que mobilizam as mudanças históricas, transformando os princípios que regem a organização social. Portanto, a racionalidade ambiental não é a extensão da lógica do mercado à capitalização da natureza, mas a resul tante de um conjunto de significações, normas, valores, inte resses e ações socioculturais; é a expressão do conflito entre o uso da lei (do mercado) por uma classe, a busca do bem co mum com a intervenção do Estado e a participação da socie dade civil num processo de reapropriação da natureza, orien tando seus valores e potenciais para um desenvolvimento sus tentável e democrático. Assim como cada ciência apresenta condições específi cas para transformar-se a partir da problematização induzi da pela perspectiva ambiental em seus paradigmas de co nhecimento, assim cada nação, cada Estado e cada povo en frentam diferentes situações para dessujeitar-se dos meca nismos dominantes do mercado, desmontar o mecanismo tecnológico, desarmar os aparelhos ideológicos e burocráti 143 cos, com o propósito de construir uma racionalidade social alternativa, a partir dos princípios éticos e das bases materi ais do ambientalismo. A racionalidade ambiental se constrói desconstruindo a racionalidade capitalista dominante em todas as ordens da vida social. Neste sentido, não só é necessário analisar as contradições e oposições entre ambas as racionalidades, mas também as estratégias para construir uma nova economia com bases de eqüidade e sustentabilidade; de uma nova or dem global capaz de integrar as economias autogestionárias das comunidades e permitir que construam suas próprias for mas de desenvolvimento a partir de uma gestão participativa e democrática de seus recursos ambientais. 144 10 - A FORM AÇÃO DO SABER AMBIENTAL* A construção de urna racionalidade ambiental implica a formação de um novo saber e a integração interdisciplinar do conhecimento, para explicar o comportamento de sistemas socioambientais complexos. O saber ambiental problemati- za o conhecimento fragmentado em disciplinas e a adminis tração setorial do desenvolvimento, para constituir um cam po de conhecimentos teóricos e práticos orientado para a re- articulação das relações sociedade-natureza. Este conheci mento não se esgota na extensão dos paradigmas da ecologia para compreender a dinâmica dos processos socioambien tais, nem se limita a um componente ecológico nos paradig mas atuais do conhecimento. O saber ambiental excede as “ciências ambientais”, constituídas como um conjunto de es pecializações surgidas da incorporação dos enfoques ecológi cos às disciplinas tradicionais - antropologia ecológica; ecolo gia urbana; saúde, psicologia, economia e engenharia ambien tais - e se estende além do campo de articulação das ciências (Leff, 1986/2000), para abrir-se ao terreno dos valores éticos, dos conhecimentos práticos e dos saberes tradicionais. O saber ambiental emerge do espaço de exclusão gerado no desenvolvimento das ciências, centradas em seus objetos de conhecimento, e que produz o desconhecimento de pro cessos complexos que escapam à explicação dessas discipli nas. Exemplo disto é o campo de extemalidades no qual a economia situa os processos naturais e culturais, e inclusive a Texto redigido com base num artigo publicado em Formación Ambiental, vol. 4, n. 7, 1993. 145 ineqüítativa distribuição da renda e a desigualdade social ge rada pela lógica do mercado e pela maximização de benefí cios a curto prazo. O discurso ambiental vai se conformando a partir de uma posição crítica da razão instrumental e da lógica do mercado, que emerge da natureza extemalizada e do social marginaliza do pela racionalidade econômica. Os pontos cegos e os impen sáveis dessa razão modemizante - o ambiente excluído, opri mido, degradado e desintegrado - não se preenchem ecologi- zando a economia, mas transformando seus paradigmas de co nhecimento para construir uma nova racionalidade social. Sob esta perspectiva, o ambiente transforma as ciências e gera um processo de ambientalização interdisciplinar do saber. O método analítico e a consciência subjetiva como prin cípios do conhecimento do ser e da matéria, e o mecanismo como causa eficiente de sua transformação, orientaram o pro gresso das ciências e das tecnologias, como também suas aplicações ao processo econômico. O estruturalismo crítico, o pensamento da complexidade e o discurso ambiental pro vocaram uma crítica da razão analítica e da autoconsciência do sujeito como princípios do conhecimento objetivo e da unificação do saber. Contribuíram para estas mudanças no discurso científico e ideológico os avanços da cibernética e da termodinâmica de sistemas abertos na compreensão dos processos de desestruturação (entrópicos) e de organização da matéria (neguentrópicos), assim como das características de auto-organização, generatividade, criatividade e produti vidade dos sistemas complexos. Isso estabeleceu os limites do pensamento mecanicista para apreender o desenvolvi mento dos processos da vida e da economia (Piaget, 1969; Georgescu-Roegen, 1971; Canguilhem, 19716, 1977; Prigo- gine e Stengers, 1984; Morin, 1977, 1980, 1993). A desorganização ecossistêmica do planeta e a crescente entropia dos processos produtivos, guiados pela razão tecno 146 lógica e pela lógica do mercado, criaram a necessidade de en foques integradores do conhecimento para compreender as causas e a dinâmica de processos socioambientais que, por sua complexidade, excedem a capacidade de conhecimento dos paradigmas científicos dominantes, exigindo uma recom posição holística, sistêmica e interdisciplinar do saber (Apos tei et al., 1975; Bertalanffy, 1976; Garcia, 1986, 1994, 2000; Leff, 1981,1986,2000a, 2001; Jolivet, 1992). Isso deu origem a um método e um paradigma da complexidade, capazes de pensar o real de maneira integrada e muítidimensional. Daí surgiram um método construtivista e uma ecologia generaliza da para tratar de compreender os processos de organização da matéria complexa e as relações entre processos de diversas or dens de materialidade (físicos, biológicos, simbólicos). Neste processo surge o conceito de ambiente referido a um objeto complexo, integrado por processos de ordem natu ral, técnica e social, cujas causas e objetivos não podem ser absorvidos num modelo global, por complexo, aberto e holís- tico que pretenda ser. Os processos ecológicos, econômicos, tecnológicos e culturais que confluem num sistema socioam- biental são conformados pelosinteresses e racionalidades de atores sociais e organizações institucionais diversos. O saber ambiental é constituído não só pela confluência de discipli nas científicas estabelecidas, mas pela emergência de um con junto de saberes teóricos, técnicos e estratégicos, atravessa dos por estratégias de poder no saber (Foucault, 1969, 1980), donde se depreende seu sentido teórico e o potencial de suas aplicações. O racionalismo crítico de Bachelard combatia a razão ho- mogeneizante ao afirmar que: O racionalismo integral deve ser um racionalismo dialético que decida a estrutura na qual deva comprometer-se o pen samento para informar uma experiência. (...) A questão não é definir um racionalismo geral que compilaria a parte 147 comum dos racionalismos regionais. Por esta via não se en contraria senão um racionalismo mínimo. (...) As estrutu ras se apagariam. Pelo contrário, trata-se de multiplicar e de afinar as estruturas, o que do ponto de vista racionalista deve ser expresso como uma atividade de estruturação, co mo uma determinação da possibilidade de múltiplas axio- máticas para enfrentar a multiplicação de experiências (Bachelard, 1949: 133). Neste sentido, o pensamento da complexidade e dos prin cípios de racionalidade ambiental se comprometem e infor mam (mas nunca uniformizam) uma multiplicidade de expe riências e práticas que adquirem sua concreção no singular de cada cultura e configuram a especificidade do local, e que, a partir de sua diversidade, estruturam esta nova racionalidade. A partir da complexidade da problemática ambiental e dos múltiplos processos que a caracterizam, questionou-se a fragmentação e a compartimentalização do conhecimento disciplinar, incapaz de explicá-la e resolvê-la. Entretanto, a retotalização do saber proposta pela problemática ambiental é mais do que a soma e a articulação dos paradigmas científi cos existentes; implica a transformação de seus conhecimen tos para internalizar o saber ambiental emergente. A necessá ria inter e transdisciplinaridade do saber ambiental transcen de os alcances de um paradigma globalizante, a unificação das homologias estruturais de diferentes teorias, ou a integra ção de saberes diversos por uma metalinguagem comum1. Mais do que uma dimensão, uma variável ou um espaço de integração dos saberes constituídos, o ambiente é um pro cesso de transformação do conhecimento impulsionado por uma crise da racionalidade econômica e instrumental da mo dernidade. Mais do que um paradigma oniabrangente do sa 1. Como assinala Lyotard (1979:67, 104), “o vínculo social c dc linguagem, mas não c feito de uma fibra única. E uma textura onde se cntrccruza (...) um número indeterminado dc jogos dc linguagem que obedece a regras diferentes (...) Não há na ciência uma meta linguagem geral dentro da qual todas as demais possam ser transcritas c avaliadas”. 148 ber, uma ecologização do conhecimento, um método geral para o desenvolvimento das ciências, ou uma reorganização sistêmica dos saberes atuais, a questão ambiental problemati- za, sob uma perspectiva crítica, toda uma plêiade de conheci mentos teóricos e técnicos, para incorporar neles um saber com plexo , transformando assim as ciências historicamente constituídas, legitimadas e institucionalizadas. O saber ambiental está em processo de gestação, em bus ca de suas condições de legitimação ideológica, de concreção teórica e de objetivação prática. Este saber emerge de um pro cesso transdisciplinar de problematização e transformação dos paradigmas dominantes do conhecimento; transcende as teorias ecologistas, os enfoques energetistas e os métodos ho- lísticos no estudo dos processos sociais. Neste sentido, inte gra fenômenos naturais e sociais e articula processos materi ais que conservam sua especificidade ontológica e epistemo- lógica, irredutível a um metaprocesso homologador e a um logos unificador. O saber ambiental confronta assim a transparência da lin guagem e a consciência do sujeito como pilares da racionali dade científica fundante da modernidade. O saber ambiental busca a recuperação do sentido; mas esta não aparece como uma fuga da ordem simbólica para fora do campo do interes se social e da produção, como uma emancipação do simbóli- co-cultural para fora da ordem sócio-histórica. O saber am biental não se esgota na finalização (aplicação) do conheci mento existente para resolver problemas complexos; não é a retotalização e o acabamento do conhecimento fracionado por uma aproximação holística, num método interdisciplinar e numa teoria de sistema. Emerge da falta insaciável de co nhecimento que impele o saber para a busca de novos senti dos de civilização, novas compreensões teóricas e novas for mas práticas de apropriação do mundo. 149 UF Pe CF CH BI BL IO TE CA SE TC r I A l As construções teóricas do saber ambiental não se con trastam, confirmam ou refutam com a realidade existente e na objetividade do real, mas na potencialidade de suas produ ções históricas sustentadas em processos materiais e no senti do das ações sociais que mobilizam a construção de uma nova racionalidade. A partir de sua marginalidade, o saber ambiental faz falar as verdades silenciadas, os saberes subju gados, as vozes caladas e o real submetidos ao poder da obje- tivação cientificista do mundo. O saber ambiental subverte o logocentrismo e descons- trói o círculo fechado das ciências e da racionalidade homo- geneizante e unidimensional da modernidade. Emerge das margens da filosofia (Derrida, 1989) que animou a epopéia do progresso científico. O saber ambiental inscreve-se na busca de novas matrizes de racionalidade que dêem espaço aos sentidos não formalizáveis; ao incomensurável, ao diver so e ao heterogêneo; a categorias (racionalidade ambiental) que abram o campo a uma multiplicação de experiências. O saber ambiental se constrói a partir de sua falta de conheci mento, integrando os princípios e valores que animam a ética ecologista, as sabedorias e práticas tradicionais de manejo dos recursos naturais e as ciências e técnicas que servem de suporte às estratégias do desenvolvimento sustentável. Este saber não conforma um corpo unitário de conhecimentos, mas vai sendo constituído em relação com a estrutura teórica e o objeto de conhecimento de cada ciência. Desta forma, o saber ambiental emergente transforma os paradigmas do co nhecimento das ciências naturais e sociais. Cada ciência im põe as condições epistemológicas e os interesses disciplina- res à reconstrução de seus paradigmas, num processo hetero gêneo e desigual do qual emergem as disciplinas ambientais. As ciências sociais formaram o cerco mais resistente à incorporação do saber ambiental, por causa do enraizamen to que nelas tiveram as ideologias teóricas provenientes do 150 naturalismo, do mecanicismo e do subjetivismo metodoló- aicos. Estas cristalizaram nos paradigmas do contrato social o equilíbrio econômico, o ordenamento jurídico e a submis são ideológica, nos quais se apóiam as relações dominantes de poder. Na consciência ambiental são gerados novos princípios, valores e conceitos para uma nova racionalidade produtiva e social, e projetos alternativos de civilização, de vida, de de senvolvimento. O saber ambiental abre assim uma perspecti va ao progresso do conhecimento, questionando os dogmas ideo lógicos e problematizando os paradigmas científicos com base nos quais foi constituída a civilização moderna. A emergência do saber ambiental abriu novas frentes para o desenvolvimento das disciplinas sociais: a relação entre cultura e natureza, a complementaridade entre geografia e ecologia, a influência do meio na consciência e no comporta mento social, as bases ecológicas de uma economia sustentá vel e a análise da dinâmica de sistemas socioambientais com plexos. Desta maneira, o saber ambiental transforma o cam po do conhecimento gerando novos objetos interdisciplina- res de conhecimento,novos campos de aplicação e novos processos sociais de objetivação onde se constrói a racionali dade ambiental. O saber ambiental se constitui através de processos polí ticos, culturais e sociais, que obstaculizam ou promovem a realização de suas potencialidades para transformar as rela ções sociedade-natureza. O objeto das “ciências am bien tais” não surge da recomposição interdisciplinar dos cam pos atuais do conhecimento, nem da ecologização das ciên cias sociais. É um processo teórico que se dá através de mo vimentos sociais e mudanças institucionais que incidem na concretização do conceito de ambiente, em suas condições de aplicação e na transformação que induz nos paradigmas “normais” do conhecimento. 151 O saber ambiental é pois gerado num processo de cons cientização, de produção teórica e de pesquisa científica. O processo educativo permite repensar e reelaborar o saber, na medida em que se transformam as práticas pedagógicas cor rentes de transmissão e assimilação do saber preestabelecido e fixado em conteúdos curriculares e nas práticas de ensino. O saber ambiental não só adquire um sentido crítico, mas também prospectivo, que vai sendo internalizado em diferen tes áreas do conhecimento teórico e prático, ampliando seu campo de compreensão, com um maior poder explicativo das ciências sobre os processos complexos da realidade socioam- biental, do qual deverão derivar instrumentos mais eficazes de prevenção, controle e manejo do meio ambiente (Leff, 1987). O saber ambiental coloca o problema da articulação das espacialidades e temporalidades de diferentes processos na turais e sociais: a harmonização e conflito entre os ciclos eco nômicos e ecológicos, entre a valorização econômica e os va lores culturais; entre a maximização dos ganhos, dos tempos de regeneração dos recursos naturais e dos processos de ino vação e assimilação tecnológica; entre os diferentes espaços ecológicos, geográficos, culturais, políticos e econômicos onde se concretizam as ações da gestão ambiental. A aplicação do saber aos programas de gestão ambiental levanta a necessidade de elaborar indicadores interprocessu- ais capazes de analisar, avaliar e monitorar sistemas e proces sos ambientais complexos (a qualidade de vida; a valorização econômica, cultural e social dos recursos; os impactos ambi entais e as mudanças globais; o condicionamento ambiental da dinâmica demográfica e do espaço urbano/regional), nos quais intervém processos de diversos níveis de materialidade e ordens de racionalidade. 152 O saber ambiental leva a um diálogo e amálgama de sabe- res, desde os níveis mais altos de abstração conceituai até os níveis do saber prático e cotidiano onde se expressam suas es tratégias e práticas. Na convergência destes processos, encru zilhada da recomposição do conhecimento, o saber ambiental leva a marca da diferença. Da mestiçagem de saberes não sur ge uma fusão perfeita de suas diferenças, mas um novo tecido que entrelaça os fios do saber numa fuga de várias linhas de sentido e onde se conjugam novas forças sociais e potenciais ambientais, onde se funda uma nova ordem, entre o sensível e o inteligível. Ali se enlaça uma nova ética e uma nova episte- mé onde se forja uma nova racionalidade e se constituem no vas subjetividades2. A gestão ambiental local parte do saber ambiental das co munidades, onde se funde a consciência de seu meio, o saber sobre as propriedades e as formas de manejo sustentável de seus recursos, com suas formações simbólicas e o sentido de suas práticas sociais, onde se integram diversos processos no intercâmbio de saberes sobre o ambiente: a) O saber ambiental de cada comunidade inserido em suas formações ideológicas, suas práticas culturais, suas técnicas tradicionais. 2. Neste sentido, Emma León (1998) afirmou que “além de seu caráter axiológieo c ético, o saber ambiental tem um forte componente cpistcmico que não deve ser entendido como uma teoria do conhecimento cientifico, mas como um ângulo dc leitura referente aos pontos cie situação a partir dos quais os suj citos constroem suas relações dc apropri ação do mundo c se constituem a si mesmos. O que foi dito traça as teorias do conheci mento no campo dc reflexão dos saberes c das práticas culturais, na perspectiva dc uma revisão das matrizes geradas pelos âmbitos dc sentido. Assim, a categoria dc racionali dade ambiental produz efeitos na construção dc significados c dc conteúdos dc realida des que se concretizam cm planos dc organização, gestão c administração, mas que re metem a um plano constituinte das lógicas dc estruturação que dão configuração c sen tido às relações dc apropriação do mundo e da natureza. Na ordem epistcmica, isto sig nifica que a clássica premissa das relações dc apropriação, enunciada sob a figura sujei- to-objeto (onde a natureza seria objeto dc manipulação, consumo c domínio), dá lugar a uma premissa constitutiva c estruturante das relações entre o sujeito c sua realidade, cuja mútua mediação leva tal realidade e sujeito a formar-se na prática c através da cx- pcricncia” . 153 b) O saber ambiental que é gerado na sistematização e no intercâmbio de experiências de uso e manejo sus tentável dos recursos naturais. c) A transferência e aplicação de conhecimentos cientí ficos e tecnológicos sobre um meio ambiente, sua apropriação cultural e sua assimilação às práticas e saberes tradicionais de uso dos recursos. Isto abre novos temas à antropologia ambiental: o estudo da cotidianidade, dos saberes culturais e suas possibilidades de hibridação com conhecimentos e técnicas modernos para incrementar o potencial ambiental e as capacidades de auto gestão das comunidades. As estratégias acadêmicas, as políticas educativas, os mé todos pedagógicos, a produção de conhecimentos científi- co-tecnológicos e a formação de capacidades se entrelaçam com as condições políticas, econômicas e culturais de cada região e de cada nação para a construção de um saber e uma racionalidade ambientais que orientam os processos de re apropriação da natureza e as práticas do desenvolvimento sustentável. 154 11 - SOCIOLOGIA DO CONHECIM ENTO E RACIONALIDADE AMBIENTAL* A crise ambiental deu origem a um questionamento da racionalidade econômica dominante, assim como das ciên cias, dos conhecimentos e saberes que serviram de suporte teórico e de meios instrumentais ao processo civilizatório, fundado no domínio do homem sobre a natureza. Esta pro- blematização ambiental do conhecimento implica transfor mações do saber que vão além da construção de um paradig ma reintegrador dos conhecimentos fracionados através de um enfoque sistêmico, de um método interdisciplinar, ou de um processo de finalização das ciências (Bõhme et al., 1976), entendido como a aplicação dos conhecimentos teóri cos motivada pela demanda social para a solução de proble mas ambientais. Os princípios e objetivos do ambientalismo expressam uma falta constitutiva das ciências. Esta falta de conheci mento é uma falta no conhecimento que não é reintegrável pelo progresso das ciências, de modo a virem eliminando suas impurezas e seus espaços de irracionalidade. O saber ambiental é o ponto de não conhecimento que impulsiona a produção do saber, sabendo que este é um processo insaciá vel e interminável de produção de conhecimentos. Neste sentido, o saber ambiental emergente leva a redefinir seus objetos de estudo e a refundar seus métodos de análise da Texto redigido com base numa exposição feita no Seminário dc História e Metodologia da Ciência, organizado pelo Centro dc Investigação c Estudos Avançados (Cinvcstav), na Cidade do México, a 28 dc abril dc 1993. 155 realidade. É nesta perspectiva de reconstrução do conheci mento que a racionalidade ambiental propõe um forte pro grama à sociologia do conhecimento. Esta sociologia ambiental do conhecimento muda o ân gulo de visibilidade das relações sociedade-natureza, domi nado pelos fundamentosepistemológicos, pelas “ciências exa tas” (o positivismo lógico) e sua colonização ecologista, para métodos integradores de processos de ordem natural e social através da articulação de ciências e paradigmas teóricos que respondem a processos de diferentes ordens de materialidade e racionalidade. Dali exerce uma crítica aos enfoques emer gentes (biossociologia, ecologia humana, energetismo so cial), que subsumem a ordem simbólica e social nos proces sos de ordem física e biológica, para abrir um campo de refle xão sobre as determinações e condições sociais (históricas, econômicas, culturais, políticas) do saber ambiental (Leff, 1986/2000, 2001). A teorização do ambiental nesta perspectiva tem implica ções importantes para a epistemologia e para a teoria do co nhecimento. Assim, diante do positivismo e do racionalismo que as teorias científicas pretendem contrastar, refutar ou ve rificar, com a objetividade da realidade dos fatos, as constru ções teóricas da racionalidade ambiental se avaliam na po tencialidade de sua virtual objetivação como projeto históri co, fundado nos processos materiais que o sustentam, nos processos de significação que mobilizam novos atores so ciais para a realização de suas utopias e das condições socio- políticas nas quais se desenvolvem (obstaculizando ou pro movendo) suas estratégias de poder. Este programa de sociologia do conhecimento abre um campo de estudo das condições ambientais (ecológicas e so ciais) que induzem estes processos de produção e transforma ções do conhecimento na construção de uma racionalidade 156 ambiental. Esta racionalidade adquire um sentido mais amplo e concreto nos países do Terceiro Mundo e nas regiões tropi cais, onde o ambiente constitui um potencial produtivo e um movimento transformador da racionalidade social. Neste sen tido, o ambiente, como sistema complexo, funda um paradig ma produtivo gerador de sinergias produtivas que surgem da articulação de processos ecológicos, tecnológicos e culturais. A transformação do conhecimento a partir dos princípios de racionalidade ambiental é um processo que se defronta com as barreiras teóricas de cada disciplina e com a rigidez institucional das esferas onde funcionam os saberes legitima dos, através de uma matriz de interesses opostos, diferencia dos e desiguais dos atores que mobilizam e se enfrentam no campo da luta ambiental. Ali os movimentos sociais pela rea propriação de saberes, práticas e estilos de vida tradicionais e alternativos confrontam os paradigmas dominantes das ciên cias (economicismo, biologismo, energetismo, tecnologis- mo), e sua vontade cientificista e tecnocrática para resolver a problemática ambiental. A transformação do conhecimento à qual induz a questão ambiental como uma problemática social generalizada não pode ser simplesmente entendida como uma resultante dos interesses (de classe) que orientam o desenvolvimento das ciências ou suas orientações práticas para a resolução de pro blemas concretos. Trata-se de um questionamento às ciências a partir de sua negação e extemalização do ambiente. Esta perspectiva reconhece o “peso específico” dos paradigmas teóricos constituídos na história das ciências (sua estrutura conceituai e seu objeto de conhecimento, a partir dos quais constrói seus referentes no real), e que estabelecem as condi ções de possibilidade para transformar-se intemalizando o saber ambiental emergente. A sociologia ambiental do conhecimento estuda pois a transformação das ciências ao serem problematizadas pelo 157 saber ambiental, mas inclui também toda uma gama de sabe res práticos, sintonizados com os princípios e objetivos, com os valores e os meios instrumentais da racionalidade ambien tal. Esta postura se distancia das filosofias do conhecimento que vêem no discurso ambiental apenas uma questão ética que afetaria o comportamento dos seres humanos, impulsio naria novos direitos humanos, geraria uma nova força social, ou que orientaria as aplicações do conhecimento para o de senvolvimento sustentável, mas que não afetaria os funda mentos das ciências e os processos cognitivos. Sob esta pers pectiva, o ambientalismo contribuiria para a construção de uma axiologia no campo da filosofia, mas não teria implica ções epistemológicas para o desenvolvimento das ciências; os fundamentos das ciências, os processos de produção de conhecimentos, a objetividade e compreensão de seus obje tos de conhecimento, suas condições de verificação e falsifi cação ficaram a salvo da revolução ambiental. As transformações do conhecimento, induzidas pela cons trução de uma racionalidade ambiental, transcendem a cons tituição de um paradigma interdisciplinar integrador dos di ferentes processos que confluem numa problemática am biental (ecologia, cibernética, termodinâmica de sistemas aber tos). Ela não nega o valor e o potencial destes novos paradig mas e métodos, mas coloca ênfase na relação que a reconstru ção do mundo, exigida pela crise ambiental, mantém com a reconstituição do conhecimento, enquanto este tem sido o instrumento teórico, ideológico e tecnológico da racionalida de socioeconômica dominante. Estas transformações do conhecimento afetam sobretudo as ciências sociais, nas quais seu referente real se constitui e transforma como efeito do conhecimento, do saber e das nar rativas sobre o mundo externo construído pelos discursos das ciências sociais. Neste sentido, a perspectiva ambiental do saber é atravessada pelo campo do poder. A racionalidade 158 ambiental, como formação social, se constrói a partir de seu discurso teórico, mas se expressa na realidade através de mu danças sociais que se refletem em transformações do conhe cimento e suas aplicações em novas formas de organização social e produtiva. As transformações do conhecimento induzidas pelo sa ber ambiental têm, pois, efeitos epistemológicos (mudanças nos objetos de conhecimento), teóricos (mudanças nos para digmas de conhecimento) e metodológicos (interdisciplinari- dade, sistemas complexos). O ambiente constitui um campo de externalidade e complementaridade das ciências. Em tor no de cada objeto de conhecimento constrói-se um saber am biental que problematiza e transforma seus paradigmas de conhecimento. Exemplos disto existem nos desenvolvimen tos recentes da economia, da antropologia, da geografia, do direito e da sociologia: Economia: Para esta disciplina, o ambiente é constituído por um campo de extemalidades, excluído de seu objeto de conhecimento. A racionalidade econômica exclui a valoriza ção dos potenciais ecológicos e os serviços ambientais, os processos de degradação entrópica, os valores culturais, os direitos humanos, a qualidade de vida, os processos de longo prazo e as preferências futuras dos consumidores. O saber ambiental questiona a economia construída como uma racio nalidade antinatura e a curto prazo, sem bases de sustentabi lidade e de eqüidade. Neste sentido problematiza tanto os pressupostos evolucionistas da economia marxista (o adven to do socialismo pelo desenvolvimento das forças produtivas e o domínio da ciência sobre a natureza), como a economia de mercado e a tecnologia como mecanismos de controle e solu ção da escassez de recursos e dos desequilíbrios ecológicos. Desta maneira, as limitações da economia para internalizar suas extemalidades (os processos ecológicos que sustentam a produção; os valores culturais que significam e dão sentido 159 ao processo de desenvolvimento; a eqüidade, a distribuição e a democracia) mostram a necessidade de construir um novo paradigma produtivo. Direito: O saber ambiental incorpora os novos direitos humanos a um ambiente sadio e produtivo, os direitos comu nitários à autogestão de seu patrimônio de recursos e à norma- tividade social sobre as condições de acesso e uso dos bens co muns da humanidade. Isto questiona a ordem jurídica constituí da sobre os princípios do direito privado e abre umnovo cam po de direitos culturais, ambientais e coletivos a um ordena mento jurídico que responda a novas formas de propriedade e apropriação dos meios de vida e de produção, promovidos por processos emergentes de socialização da natureza. Antropologia e etnociências: A antropologia ecológica está evoluindo a partir da antropologia cultural de Steward - que via no nível de integração sociocultural a especificidade da articulação da organização cultural com as condições de seu meio ambiente - e da lei básica de evolução de White - que via no incremento do controle e uso de energia a lei de evolução cultural (Adams, 1975), para o neofuncionalismo e neo-evolucionismo que incorporam princípios de racionali dade energética e ecológica na explicação da organização cultural (Rappaport, 1971), e a adaptação funcional das po pulações à “capacidade de carga” dos ecossistemas (Vessuri, 1986). Também as etnociências estão passando por um ques tionamento epistemológico a partir da perspectiva da racio nalidade ambiental, que leva à análise do diálogo, ao amálga ma e às relações de poder entre os saberes locais, autóctones e tradicionais, com as ciências e tecnologias modernas (cf. cap. 19 deste volume). Geografia e ecologia: Estas disciplinas estabelecem no vos campos de colaboração (Bertrand, 1982; Tricart, 1978 e 1982; Tricart e Killian, 1982), para espacializar a ecologia e 160 dar escalas temporais à geografia, com o propósito de cons truir unidades operacionais de manejo dos recursos naturais. Daí surgiram novos ramos da geografia física, a ecologia da paisagem e a geografia humana, como também novos métodos para integrar a análise cartográfica da geografia descritiva com as explicações dos processos dinâmicos dos ecossistemas (To ledo, 1994). A ecologia funcional gerou conceitos como resi- liência, taxa ecológica de exploração e capacidade de carga, que respondem á necessidade de internalizar os efeitos das práticas produtivas e dos processos econômicos na estrutura e funcionamento dos ecossistemas (Gallopín, 1986). O saber ambiental surge num sentido prospectivo e numa perspectiva construtivista, onde os conceitos se produzem numa relação dialética com seus momentos de expressão na construção de seu referente empírico: a realidade social. Isso exige uma perspectiva epistemológica na qual o sentido da ciência não é o de um processo de desenvolvimento do conhe cimento, no qual as teorias vão adquirindo maior compreensi- vidade e força explicativa através de sua verificação e falsifi cação com uma realidade preexistente (Popper, 1979). Na perspectiva ambiental do conhecimento, os conceitos encarnam interesses e estratégias de poder que orientam a construção da realidade social a partir de juízos de valor e através de proces sos sociais de significação fundados no potencial de processos materiais (das sinergias de suas relações na constituição de sis temas complexos), que são apreendidos na construção de no vos objetos (interdisciplinares) de conhecimento. Neste sentido, é possível propor uma dialética entre a construção do conhecimento e a construção do real. Assim, por exemplo, a economia fundada na racionalização de recur sos escassos, na lógica do mercado e no equilíbrio de fatores produtivos legitimou a ideologia da ordem econômica e insti tucionalizou seu funcionamento, criando agentes econômi cos, produzindo sujeitos do consumo e ajustando o compor tamento humano às leis ditadas pelo mercado. Por sua vez, o conceito de racionalidade ambiental orienta a construção de uma realidade social e uma racionalidade produtiva fundadas em novos valores éticos e bases de produtividade, que partem de outros princípios de realidade: diversidade, complexida de, interdependência, sinergia, equilíbrio, eqüidade, solidarie dade, sustentabilidade e democracia. A sociologia ambiental do conhecimento exige uma pos tura antiempirista que vai além do racionalismo crítico, en quanto não admite a realidade dada e suas tendências como base de verificação dos paradigmas dominantes do conheci mento. Apresenta-se como uma posição que parte do fato de pensar a realidade social sob a ótica de sua negatividade para abrir uma perspectiva construtivista do conhecimento. Neste sentido, Marx contribui para a crítica da economia clássica introduzindo o conflito de classe e convertendo-a numa eco nomia política; Georgescu-Roegen (1971) faz uma crítica ra dical à economia, ao mostrar as raízes materiais de todo pro cesso econômico e seu limite marcado pela lei da entropia, abrindo o campo da economia ecológica. O pensamento da complexidade leva assim a construir um novo paradigma da produção, como um sistema de relações entre processos eco lógicos, tecnológicos e sociais. Esta postura crítica e antiempirista, que tem afinidade com os princípios da racionalidade ambiental, transfere o campo da sociologia do conhecimento para uma epistemolo- gia política. Nesta perspectiva, o conhecimento é concebido dentro de um campo de relações de poder no saber, donde emergem estratégias conceituais para a construção da reali dade social. O processo de produção teórica e o valor cientí fico do conhecimento não se estabelecem como um proces so progressivo que vai ajustando os conceitos a uma realida de preestabelecida. O real social sempre é construído por ideologias teóricas e práticas, por utopias que geram sentido 162 (Mannheim, 1936/1972). Nesta perspectiva, a construção de conceitos mobiliza forças materiais e processos que existem como potência na natureza e na sociedade. Partindo desta perspectiva, é possível pensar o ambiente como um espaço de articulação de processos de diferentes ordens de materialidade e racionalidade, capazes de gerar um potencial ambiental de desenvolvimento, e não como uma externalidade ou um custo do sistema econômico. A partir destes princípios epistemológicos foi possível cons truir o conceito de produtividade ecotecnológica, que arti cula processos de produtividade ecológica, tecnológica e cultural, e de racionalidade ambiental, que articula siste mas de valores, conceitos, instrumentos e comportamentos, dando coerência a um paradigma produtivo alternativo (Leff, 1994a, 2000Ò). Estes conceitos levam à construção de no vas bases materiais que sustentam este paradigma como po tencial e mobilizam a ação social para sua realização, através de uma nova teoria da produção e sua concretização em pro jetos alternativos de desenvolvimento. As formações teóricas e ideológicas, assim como as práti cas do ambientalismo surgem, pois, com um sentidoprospec- tivo, reorientando valores, instrumentando normas e estabe lecendo políticas para construir uma nova racionalidade so cial. Desta maneira, o saber ambiental adquire um sentido prático e estratégico na reconstrução da realidade social. O saber ambiental vai se configurando a partir de seu espaço de externalidade e negatividade, como um novo campo epistê- mico, no qual se desenrolam as bases conceituais e metodoló gicas para abordar uma análise integrada da realidade com plexa, na qual se articulam processos de diferentes ordens on- tológicas (física, biológica, simbólica). Neste sentido, o sa ber ambiental fundamenta, orienta e promove um processo de transição para uma nova racionalidade social, que incor pora as condições ecológicas e sociais de um desenvolvimen to sustentável. O saber ambiental e a racionalidade ambiental não são pois princípios epistemológicos para a reunificação do saber ou para a integração interdisciplinar das ciências. São catego rias que funcionam como estratégias conceituais, que se constroem e concretizam através de múltiplas inter-relações entre a teoria e a práxis. A problemática gnoseológica e epis- temológica do ambientalismo surge de uma problemática so cial generalizada que orienta o saber para os fins de uma ra cionalidade ambiental, através do campo estratégico do po der e da ação política. Assim,a categoria de racionalidade ambiental não só é útil para sistematizar os enunciados teóri cos do discurso ambiental, mas também para analisar sua coerência em seus momentos de expressão, estabelecendo-se uma dialética entre o poder transformador do conceito no real e sua própria construção através de suas aplicações (Bache- lard, 1938/1948). A sociologia do saber ambiental abre um campo de estu do sobre seus condicionamentos sociais, de maneira que pos sam estabelecer-se explicações causais sobre a produção de conhecimentos, crenças e saberes, a partir de um determina do contexto social. Estes condicionamentos sociais não im plicam necessariamente uma rejeição ou uma incompatibili dade com os critérios de racionalidade interna das ciências. As explicações racionais sobre a adequação das teorias à rea lidade e seus efeitos de conhecimento não cedem diante de um determinismo social abstrato que submeteria a racionali dade das ciências a leis gerais da sociedade, ou uma corres pondência direta entre interesses de classes e formas de co nhecimento. Face à epistemologia racionalista e à filosofia analítica, que fundam suas explicações do conhecimento em normas internas de racionalidade, critérios de falsificação e condições de validação do conhecimento na experiência do 164 niundo empírico e da realidade objetiva, a sociologia do sa ber ambiental permite estabelecer as correlações entre os cri térios epistemológicos internos das ciências e o contexto só- cio-histórico no qual se gera, se aplica e se legitima este co nhecimento (Olivé, 1985). A sociologia do saber ambiental abre assim uma perspec tiva de análise das contradições e formas de convivência en tre os enunciados descritivos, explicativos, valorativos e pro- positivos que se entremesclam nas formações teóricas e ideo lógicas do discurso ambiental, e os princípios de racionalida de econômica e da lógica do mercado, que se constituíram na norma da racionalidade legitimada pela realidade existente mas que reduz o campo de construção do real possível. Assim, os princípios de racionalidade ambiental consti tuem um metaparadigma, no sentido de que permitem avaliar o caráter ambiental dos paradigmas emergentes de conheci mento, das organizações sociais e produtivas e de diferentes ações políticas e comportamentos sociais. Desta maneira, fun cionam como uma estratégia conceituai que mobiliza os pro cessos sociais para objetivar as forças materiais e os valores que mantêm uma racionalidade produtiva alternativa. Este metaparadigma cria suas condições de verificação, na medida em que, como verdade potencial, mobiliza os processos so ciais capazes de objetivar as forças materiais que mantêm uma nova racionalidade social, fundada nos princípios e objetivos do ambientalismo. Neste sentido, a racionalidade ambiental se constrói num processo histórico de produção de verdades; de objetivação das forças materiais que conformam o potencial ambiental de desenvolvimento; de legitimação de novos va lores; de instrumentação de novos princípios; de legalização de novas regras, normas e condições ambientais. A racionalidade ambiental propõe assim uma crítica radi cal ao conceito de racionalidade histórica, onde a realidade 165 social aparece como expressão de leis naturais, imanentes e necessárias da história, manifestas na evolução do ser huma no, no desenvolvimento das forças produtivas, no consumo exponencial de energia, na razão tecnológica, na centraliza ção do poder e no triunfo da racionalidade econômica. A construção da racionalidade ambiental (a adequação de seus meios a seus fins), passa pela legitimação ideológica de seus princípios; a legalização de suas normas; a teorização, cienti- fização dos processos que lhe dão suporte material; e a instru mentação de seus meios eficazes. O conceito de racionalidade ambiental é uma colocação teórica para analisar a transformação dos paradigmas de co nhecimento e a transição para novas formas de organização so cial. Estas mudanças de racionalidade não implicam a apropri ação dos próprios meios (de conhecimento, de produção) por outra classe, ou uma melhor distribuição econômica, ecológi ca ou espacial das próprias forças produtivas. A transformação do conhecimento e das formas de gestão dos recursos produti vos não se consegue pela tomada do poder do aparelho do Estado nem por um golpe de Estado às ciências e ao saber. Desta ruptura epistemológica e desta postura sociológica sobre as relações entre o saber, o conhecimento e o real, são deduzidos os princípios conceituais para pensar o ambiente como um potencial produtivo e a racionalidade ambiental como a articulação de valores, significações e objetivos que orientam um processo de reconstrução social, onde o pensa mento da complexidade se abre caminho na encruzilhada da democracia, da eqüidade e da sustentabilidade, num campo atravessado pelas estratégias de poder no saber. 166 12 - MATEMATIZAÇÃO DO CONHECIM ENTO E SABER AMBIENTAL* As medições da ciência e o sentido do saber Q ue relação existe entre as matemáticas e o saber ambien tal emergente, orientado pelos propósitos práticos de um de senvolvimento eqüitativo e sustentável, um saber que ainda está longe de ter axiomatizado ou formalizado seus conheci mentos e de se ter constituído como um paradigma científico? O espaço desse saber ambiental está além dos limites em que se estabeleceu a racionalidade econômica e a matemati- zação das diferentes ordens do saber, como critérios de legiti mação do conhecimento científico, situando o saber ambien tal num campo de externalidade à ordem social estabelecida e à racionalidade das ciências. Entretanto, o saber ambiental se relaciona com diversos campos matematizáveis do conheci mento, com métodos sistêmicos e interdisciplinares e com formações discursivas e conhecimentos técnicos sem preten são de cientificidade, que conformam um campo heterogê neo de saberes em tomo do desenvolvimento sustentável. As ciências exatas se demarcaram dos saberes argumen- tativos por causa da diferença do conhecimento matematizá- vel. O número, a equação, o algoritmo e o sistema distingui- ram o conhecimento científico dos saberes das “ciências” so ciais. Isto não evitou que as matemáticas tenham colonizado Texto redigido com base numa exposição feita no Seminário Matemáticas c Ciências So ciais, realizado pelo Centro dc Investigações Interdisciplinares cm Ciências c Humani dades da UNAM, dc 25 dc fevereiro a Io dc março de 1991. 167 o território do social. Assim as correntes neoclássicas da eco nomia e da sociologia formularam suas teorias marginalistas com as quais um conjunto de processos e realidades foram fi cando à margem de seus modelos e de suas curvas de equilí brio, despencando e afogando-se no oceano do não matema- tizável, do não quantificável, do incomensurável. O que esca pava à norma da racionalidade científica foi ignorado, nega do. Mas o que foi habitando este mar de extemalidades, o que escapava ao cálculo e à medição, não foi o ambiente margi nal, mas o ambiente substantivo: a valorização do ser huma no e da natureza, o avanço da pobreza extrema e da desnutri ção das maiorias, a perda da biodiversidade e a destruição da base de recursos naturais, o desflorestamento e a erosão dos solos, a degradação do ambiente e da qualidade de vida. Esses pontos cegos da racionalidade científica não elimi nam o valor e a utilidade das matemáticas e sua fecunda apli cação ao entendimento racional da realidade. Mas é na defi nição dos objetos de conhecimento de cada ciência, de suas estratégias epistemológicas e seus métodos de pesquisa que se estabelece a relação entre o real e suas formas de conheci mento. Daí se deduz não só a tematização do campo conceitu ai de cada paradigma e sua abertura ou fechamento a outros terrenos do conhecimento e da realidade, mas também a defi nição do que é correlacionável, numerável, quantificável. Aí seestabelecem as relações entre esferas ontológicas e cam pos epistêmicos que transcendem suas homologias estrutu rais e matematizáveis. Cada projeto teórico produz os dados, as significações sobre a realidade e as articulações possíveis com outros discursos teóricos; os fatos formalizáveis e a sei va ontológica que transborda o sinal matemático fertilizando o processo do conhecimento. O saber ambiental articula processos que correspondem a diferentes ordens materiais, que são incomensuráveis e irre dutíveis a uma unidade de medida. O terreno do saber am 168 biental tem por referente um sistema complexo, onde a for malização matemática reduz a especificidade ontológica e o sentido existencial destes processos. A. Lichnerowicz(1975: 147- 148) assinala assim as limitações do isomorfismo na apre ensão de objetos ontológicos diferentes: O matemático trabalha sempre com um dicionário quase perfeito e freqüentemente identifica sem escrúpulos obje tos de natureza diferente quando um (...) isomorfismo lhe assegura que só estaria dizendo a mesma coisa duas vezes em duas línguas diferentes. O isomorfismo toma o lugar da identidade. O Ser se encontra colocado entre parênteses, e é precisamente esta característica não ontológica que dá às matemáticas seu poder, sua fidelidade e sua polivalência. (...) Podemos tecer uma matemática de uma textura arbitra riamente cerrada, mas a onda ontológica escorrerá neces sariamente nela. No poder da matematização e na abstração do número produz-se uma dessubstantivação do real; perde-se o sentido dos processos, sua significação subjetiva e sua especificidade material. A economia neoclássica oferece um bom exemplo do poder ordenador (racional) da formalização matemática e sua impotência para conter o transbordamento de suas exter- nalidades socioambientais, a redução dos valores humanos à ordem contábil e o sentido da existência humana a suas ações racionais na lógica do mercado1. A economia matemática tentou estender seus instrumen tos analíticos para “internalizar suas extemalidades”. Assim, os preços-sombra atribuem valores aos serviços ambientais, aos valores éticos, a tudo isto que não se valoriza em forma natural” no processo de formação dos preços de mercado, utilizando para isto apreciações pessoais, estimações consen suais ou tendências institucionais. A economia neoclássica Diante da dcspcrsonalizaçâo do ser humano ao ser reduzido a um número, para fins de sua exploração ou extermínio, a sabedoria hebraica conta as pessoas dizendo: “não é um, não 6 dois, não e três...” postula que os efeitos ecodestrutivos do processo econômico não se devem à impossibilidade de seus paradigmas de valo rizar e quantificar os recursos naturais, os valores culturais e a dignidade humana, mas ao fato de não haver incluído esses “fatores externos” dentro do cálculo econômico. E a solução é simples: chamar esses fatores de capital natural, institucio nal, social, humano, e atribuir-lhes um preço (Gutman, 1986; cf. cap. 1 deste volume). O ambiente é justamente esse campo de extemalidades que permaneceu marginalizado, desterrado e anatematizado do território do matematizável e quantificável pela raciona lidade econômica. A globalização e complexificação do am biente leva à necessidade de gerar novas perspectivas epis- temológicas e metodológicas, capazes de pensar 3 interde pendência entre estes processos físicos, biológicos e so ciais, que correspondem a diferentes ordens ontológicas e esferas de racionalidade, para apreender sua causalidade múltipla e suas relações estruturais dentro de sistemas am bientais complexos. A questão ambiental abre deste modo um campo de dis persão e diversificação de saberes. Esta perspectiva gnoseo- lógica contrasta com o projeto positivista de unificação das ciências, e com a teoria geral de sistemas (Bertalanffy, 1976) que procura articular os diferentes campos do conhecimento nos espaços “ashurados” (assegurados) onde se sobrepõem suas homologias estruturais. Porém, nem todos os saberes ambientais são construídos ou podem dar lugar a estruturas homologáveis e a saberes matematizáveis. Daí 0 fracasso das tentativas de subsumir a articulação de processos incomensuráveis num padrão ho mogêneo: 0 economicismo que busca integrar um capital na tural, humano, institucional, através das medidas unificado ras do mercado; 0 energetismo social que busca abrir um cam 170 po generalizado para a análise econômico-ecológica fundada num cálculo de fluxos de energia dos processos produtivos e a circulação ecológica dos dejetos da produção e do consu mo; o pensar que o cálculo econômico e o fluxo de energia possam amalgamar-se numa mistura perfeitamente miscível e fluir pelo mesmo encanamento conceituai. A construção do saber ambiental aparece assim como uma estratégia teórica oposta ao projeto unificador da ciência “normal”. A articulação de lógicas, de conhecimentos e de saberes, que a construção de uma racionalidade ambiental re quer, confronta o reducionismo teórico ao qual levam as ana logias conceituais, os isomorfismos estruturais e a unificação terminológica de diversas formalizações científicas. Neste sentido, o saber ambiental rompe a inércia do movimento centrípeto da cientificidade sobre a base da matematização dos campos conceituais, abrindo um processo de reconstru ção de diversos paradigmas teóricos e a produtividade de um diálogo de saberes. Isto leva a uma tematização diferenciada do campo am biental e a novas estratégias para a articulação de ciências e saberes. O saber ambiental privilegia o qualitativo frente ao quantificável da realidade social. O conceito de qualidade de vida, como propósito do processo de desenvolvimento, colo ca a necessidade de elaborar novos indicadores interdiscipli- nares, onde os valores e significações sociais se integrem com as mediações sobre processos de ordem natural. Sistemas ambientais: modelos e prognósticos A recente história do saber ambiental e os estudos de prospectiva propiciaram uma aproximação ao instrumental matemático. Mediante a aplicação de modelos matemáticos extrapolaram-se as tendências conjugadas de conjuntos de variáveis e simularam-se diversos cenários futuros. O estudo pioneiro mais importante no campo do desenvolvimento sus tentável foi o promovido pelo Clube de Roma: Os limites do crescimento (Meadows et al., 1972). Esta análise prospectiva entrelaça as tendências no crescimento da população e da economia, do uso de energia, da contaminação e do esgota mento de recursos finitos, através de um modelo matemático, para diagnosticar os limiares além dos quais se chegaria a uma catástrofe ecológica. Este modelo deu lugar ao “antimodelo latino-america no”. Com o sugestivo e crítico título de Catástrofe ou nova sociedade (Herrera et al., 1976), este estudo mostrava que os limites ao desenvolvimento não eram físicos, nem provi nham da explosão demográfica ou da limitação dos recursos naturais. O modelo latino-americano demonstrou que os re cursos naturais eram vastos (e é possível que ainda o sejam hoje) para gerar um processo de desenvolvimento sustentá vel, com a condição de redefinir as necessidades básicas, re distribuir a riqueza, aproveitar os potenciais ecológicos e reo- rientar o tipo de desenvolvimento. Os diferentes resultados destas aplicações do instrumen tal matemático, da informática e dos métodos de simulação não provêm da maior ou menor perfeição do modelo cons truído, mas das perguntas básicas, dos pressupostos teóri- co-ideológicos e da seleção das variáveis pertinentes (Garcia, 1986, 1994). A existência vai se modelando através dos mo delos que os cientistas fazem da realidade, cujas percepções e preconceitos são, por sua vez, moldados por ideologias teóri cas e interesses sociais (Feyerabend, 1982). O saber ambiental não se constrói só com a aplicação da matemática ou da teoria de sistemas aos paradigmas e méto dos das ciências “ambientais”.estratégia polí tica para a sustentabilidade ecológica do processo de globa lização e como condição para a sobrevivência do gênero hu mano, através do esforço compartilhado de todas as nações do orbe. O desenvolvimento sustentável foi definido como “um processo que permite satisfazer as necessidades da po pulação atual sem comprometer a capacidade de atender as gerações futuras”. O discurso da “sustentabilidade” leva portanto a lutar por um crescimento sustentado, sem umajustificação rigorosa da capacidade do sistema econômico de internalizar as condi ções ecológicas e sociais (de sustentabilidade, eqüidade, jus 19 tiça e democracia) deste processo. A ambivalência do discur so da sustentabilidade surge da polissemia do termo sustaina- bility, que integra dois significados: um, que se traduz em castelhano como sustentable, que implica a intemalização das condições ecológicas de suporte do processo econômico; outro, que aduz a durabilidade do próprio processo econômi co. Neste sentido, a sustentabilidade ecológica constitui uma condição da sustentabilidade do processo econômico1. Todavia, o discurso da sustentabilidade chegou a afirmar o propósito e a possibilidade de conseguir um crescimento econômico sustentado através dos mecanismos do mercado, sem justificar sua capacidade de internalizar as condições de sustentabilidade ecológica, nem de resolver a tradução dos diversos processos que constituem o ambiente (tempos eco lógicos de produtividade e regeneração da natureza, valores culturais e humanos, critérios qualitativos que definem a qua lidade de vida) em valores e medições do mercado. O Infor me Bruntland oferece uma perspectiva renovada à discussão da problemática ambiental e do desenvolvimento. Com base nisso foram convocados todos os chefes de Estado do planeta à Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, celebrada no Rio de Janeiro, em junho de 1992. Nesta conferência foi elaborado e aprovado um progra ma global (conhecido como Agenda 21) para regulamentar o processo de desenvolvimento com base nos princípios da sustentabilidade. Desta forma foi sendo prefigurada uma po 1. Aqui, c preciso diferenciar claramente o sentido das noções de “desenvolvimento susten tável”, "sustentabilidade "c “crescimento sustentado” nas estratégias do discurso am biental neoliberal, da noção de sustentabilidade constitutiva do conceito de ambiente, como marca da ruptura da racionalidade econômica que negou a natureza c como uma condição para a construção de uma nova racionalidade ambiental (Lcff, 1994o, cap. 12: “Disjuntivas do desenvolvimento sustentável: mudança social ou racionalização do capital”). Em castelhano, diferenciei ambos os sentidos conceituais utilizando o termo sostenible para referir-me ao ambientalismo neoliberal, e sustentable no sentido de uma racionalidade ambiental. É mais difícil fazer esta diferenciação conceituai em lín gua portuguesa. De forma arbitrária, sem dúvida, ao longo do livro usarei o termo “sus tentável” como sinônimo dc sustentable e “sustentado” como sinônimo de sostenible. 20 lítica para a mudança global que busca dissolver as contradi ções entre meio ambiente e desenvolvimento. Neste processo, a noção de sustentabilidade foi sendo di vulgada e vulgarizada até fazer parte do discurso oficial e da linguagem comum. Porém, além do mimetismo discursivo que o uso retórico do conceito gerou, não definiu um sentido teórico e prático capaz de unificar as vias de transição para a sustentabilidade. Neste sentido, surgem as dissensões e con tradições do discurso sobre o desenvolvimento sustentável (Redclift, 1987/1992); seus sentidos diferenciados e os inte resses opostos na apropriação da natureza (Martínez Alier, 1995; Leff, 1995). Estes interesses se manifestaram nas dificuldades para conseguir acordos internacionais sobre os instrumentos jurí dicos para orientar a passagem para a sustentabilidade. Neste sentido, alguns países do Norte se recusaram a assinar uma declaração com força jurídica obrigatória sobre a conserva ção e desenvolvimento sustentával das florestas, e manifesta ram sua resistência e seus interesses desde a aprovação, rati ficação e protocolo da convenção sobre a diversidade bioló gica. Por trás destes acordos estão em jogo as estratégias e di reitos de apropriação da natureza. Nestas negociações, os países do Norte defendem os interesses das empresas trans- nacionais de biotecnologia para apropriar-se dos recursos ge néticos localizados no Terceiro Mundo através dos direitos de propriedade intelectual. Ao mesmo tempo, grupos indíge nas e camponeses defendem sua diversidade biológica e étni ca, isto é, seu direito de apropriar-se de seu patrimônio histó rico de recursos naturais e culturais. O ano de 1992 marcou também os quinhentos anos da conquista dos povos da América Latina, da colonização cul tural e da apropriação capitalista do território que fora o habi tat dos povos pré-hispânicos, das culturas meso-americanas e 21 andinas. A emancipação dos povos indígenas aparece como um dos fatos políticos mais relevantes do fim do século. Eles foram conquistando espaços políticos para legitimar seus di reitos a seus territórios étnicos; suas línguas e costumes; sua dignidade, sua autonomia e seus direitos de cidadania. Está se forjando uma nova consciência dos povos indígenas sobre seus direitos de autogerir os recursos naturais e o entorno ecológico onde se desenvolveram suas culturas. A problemática ambiental surge nas últimas décadas do século XX como o sinal mais eloqüente da crise da racionali dade econômica que conduziu o processo de modernização. Diante da impossibilidade de assimilar as propostas de mudan ça que surgem de uma nova racionalidade (ambiental) para re construir as bases éticas e produtivas de um desenvolvimento alternativo, as políticas do desenvolvimento sustentável vão desativando, diluindo e deturpando o conceito de ambiente. Se nos anos 70 a crise ambiental alertou para a necessida de de frear o crescimento diante da iminência do colapso eco lógico (Meadows et al., 1972), agora o discurso neoliberal afirma que já não existe contradição entre ambiente e cresci mento. Os mecanismos de mercado se convertem no meio mais certo e eficaz de internalizar as condições ecológicas e os valores ambientais ao processo de crescimento econômi co. Nesta perspectiva, os problemas ecológicos não surgem como resultado da acumulação de capital. Para a proposta neoliberal teríamos que atribuir direitos de propriedade e pre ços aos bens e serviços da natureza para que as clarividentes leis do mercado se encarreguem de ajustar os desequilíbrios ecológicos e as diferenças sociais, a fim de alcançar um de senvolvimento sustentável com eqüidade e justiça. O discurso dominante da sustentabilidade promove um crescimento econômico sustentável, eludindo as condições ecológicas e termodinâmicas que estabelecem limites e con 22 dições à apropriação e transformação capitalista da natureza. Neste sentido, procura-se incorporar a natureza ao capital mediante uma dupla operação: por um lado, tenta-se interna lizar os custos ambientais do progresso; além disso, instru- mentaliza-se uma operação simbólica - um “cálculo de signi ficação” (Baudrillard, 1974) - que recodifica o homem, a cul tura e a natureza como formas aparentes de uma mesma es sência: o capital. Assim os processos ecológicos e simbólicos são reconvertidos em capital natural, humano e cultural, para serem assimilados ao processo de reprodução e expansão da ordem econômica, reestruturando as condições da produção mediante uma gestão economicamente racional do ambiente. Deste modo, a ideologia do desenvolvimento sustentável desencadeia um delírio e uma inércia incontrolável de cresci mento (Daly, 1991). O discurso da sustentabilidade monta um simulacro que, ao negar os limites do crescimento, acele ra a corrida desenfreada do processo econômicoAs estratégias do saber am biental ultrapassam as correlações possíveis do já dado, para 172 abrir um processo de construção da história, sob novos prin cípios éticos e processos materiais que afetam as formula ções e desenvolvimentos das ciências. Crer nas regressões múltiplas para prognosticar o futuro ambiental coloca-nos di ante do risco de perder de vista a determinação de suas cau sas. assim como a produção estratégica de conhecimentos para construir outros futuros possíveis. As aplicações das ferramentas da matemática à proble mática ambiental vêm sendo multiplicadas com a crescente globalização dos efeitos ambientais do crescimento econô mico e do desenvolvimento da tecnologia. Surgiram assim novas técnicas de diagnóstico e monitoramento, desde a apli cação dos sensores remotos para a avaliação dos recursos na turais, até os sistemas de informação geográfica. Estas técni cas constituem um poderoso instrumento de diagnóstico; per mitem projetar tendências e fazer prognósticos sobre mudan ças ambientais. Contudo, seu uso não vem necessariamente associado ao desenvolvimento de métodos para a análise de sistemas ambientais complexos, das relações epistêmicas en tre ciências naturais e ciências sociais, e da imbricação de processos de diferentes ordens de materialidade: física, bio lógica, cultural, econômica, tecnológica e social. As mate máticas poderão articular os campos formalizáveis das ciên cias, mas não poderão estabelecer os vínculos e o diálogo en tre os conhecimentos e os saberes que conformam o campo da racionalidade ambiental. Mudança global, ciências sociais e sistemas complexos O caráter global e complexo dos problemas ambientais, com seus efeitos transfronteiriços e transdisciplinares, susci tou a necessidade de encontrar métodos capazes de articular processos sociais e naturais de diferentes escalas espaciais e temporais, e de diferentes ordens conceituais, em enfoques 173 compreensivos que expliquem os fenômenos multicausados e heterogêneos que constituem os sistemas ambientais. A di ficuldade com a qual se defronta este projeto está não só na possibilidade de identificar as variáveis significativas, de or denar processos quantificáveis e de analisar suas interações e relações como componentes de um sistema modelável. O problema maior surge da incerteza que caracteriza todo prog nóstico ambiental quando ele é projetado para cenários futu ros possíveis (Gallopín, 1983). A interdisciplinaridade, na perspectiva da mudança glo bal, foi proposta com o projeto sobre as dimensões humanas da mudança global “The Human Dimensions of Global Change Programme” (HDGCP), lançado em 1987 (Ifias/ISSC/ONU, 1988). O projeto parte da aceitação de que o projeto do “Pro grama Internacional da Biosfera e da Geosfera” não poderia continuar modelando seus dados e pretendendo simular a realidade físico-biológica sem incorporar “variáveis huma nas” que vêm tendo cada vez maior peso nesses processos de mudança global. Porém, as ciências sociais e a dimensão humana foram incorporadas ao estudo das mudanças globais predominante mente dentro dos paradigmas das ciências exatas e seus mo delos prospectivos, ou no marco epistêmico de uma ecologia generalizada. Buscou-se assim desenhar novos modelos que relacionem sistemas naturais e humanos, nos quais as ativi dades humanas se definem quer em termos de fluxos físicos (processos demográficos, metabolismo industrial, fluxo de materiais e energia nos processos de produção e consumo), ou fluxos de informação (cultura, valores, tomada de deci sões) (Ifias, ONU/ISSC/USSR Academy of Sciences, 1990; Ifias/ISSC/ONU/Unam, 1990). Os modelos físicos pareciam falhar por falta de informa ção sobre a sociedade, e o programa se lançou à busca de no 174 vos dados que pudessem preencher as lacunas de seus mode los matemáticos, sem uma análise das condições epistemoló- aicas e metodológicas para integrar conhecimentos das ciên cias físico-biológicas e dos processos socioculturais, para identificar os processos que são modeláveis e previsíveis dentro das mudanças socioambientais globais. Desta manei ra o humano e o social foram sendo integrados através de suas manifestações em processos de ordem física dentro de siste mas homogêneos de informação. Esta metodologia continua legitimando uma racionalidade social bem particular - a nova ordem mundial hegemônica - imposta pela civilização mo derna ocidental, como um destino natural inelutável. Dentro dessa razão de força maior, só restaria à ciência prever, prog nosticar e avaliar os impactos desta racionalidade econômica nos sistemas naturais, analisar as vulnerabilidades sociais e ambientais que pudessem surgir das taxas cada vez mais ace leradas de mudança global, e criar estratégias para mitigar es ses impactos e adaptar-se a eles. O Seminário do HDGCP, realizado na Cidade do México, em novembro de 1990, abriu novas perspectivas conceituais e metodológicas para o estudo dos sistemas ambientais. Di ante do desafio de encontrar métodos para incorporar a di mensão humana das mudanças globais, surgiu a necessida de de criar modelos heurísticos e instrumentos de explora ção. Assim se estaria abandonando a concepção exclusiva do modelo como instrumento de prognóstico, para passar a definir estratégias conceituais e metodológicas capazes de eliminar as causas dessas tendências, possibilitando o co nhecimento da articulação de diferentes processos, assim como a construção coletiva de novas racionalidades sociais e de futuros alternativos. Aos poucos vai se aceitando que a compreensão dos pro blemas ambientais requer novas metodologias nas ciências sociais, inclusive o desenvolvimento de novos conceitos nos 175 sistemas de contabilidade econômica e a criação de novos campos interdisciplinares (Jacobson e Price, 1990). Abre-se assim a possibilidade de analisar os diferentes níveis de inter- determinação dos processos que conformam os sistemas so- cioambientais complexos, assim como o desenvolvimento de estratégias e projetos locais que orientem não só a adaptação diante das mudanças globais, mas também a construção de novas racionalidades e formas de desenvolvimento. O que foi dito coloca diferentes questões à integração de processos macro e micro dos conhecimentos científicos com os saberes locais. Nesta relação, os níveis superiores estabe lecem condições aos processos de nível inferior, ao mesmo tempo que as estratégias locais que constroem uma nova ra cionalidade ambiental se agregam para gerar processos no ní vel superior e alcançar escalas regionais e globais. Neste sen tido, os sistemas econômicos mundial e nacional estabele cem as condições legais, institucionais, econômicas e tecno lógicas que fixam os recursos e conhecimentos disponíveis para a gestão ambiental local. Por sua vez, os projetos de au to-suficiência e autogestão promovidos pelos movimentos de base se articulam com a economia nacional, influindo na eco nomia mundial e nas mudanças globais do planeta. O saber ambiental reorienta a produção de conhecimen tos científicos e tecnológicos para a construção de novos pa radigmas de produção. Aí o ambiente, como sistema comple xo, articula os valores culturais das comunidades - que defi nem suas necessidades e valorizam seus recursos para satis fazê-las - , a produtividade dos recursos naturais dos ecossis temas que habitam, a produtividade tecnológica de seus pro cessos de trabalho, e a produtividade social que provém das formas de organização produtiva de cada comunidade e suas formas de articulação com a economia de mercado (Leff, 1994a, 20006). 176 A “função objetivo” deste paradigma é a elevação da qua lidade de vida da população e não a maximização do valor econômico produzido; uma parte substancial da produção são valores de uso para o autoconsumo, que não passam pelos circuitos de formação de preços nem circulam em forma de mercadorias. O sistema pode ser avaliadoatravés da monito ração da estabilidade e produtividade sustentada do sistema complexo de recursos, mas não busca maximizar o fluxo de energia e materiais no ecossistema. A incomensurabilidade do valor econômico, dos valores culturais e da eficiência energética impedem estabelecer uma função-objetivo que possa ser satisfeita por um algoritmo e uma unidade homogênea de medida. Mas fomentam a cons trução de diversas unidades ambientais de produção que ge ram efeitos sinergéticos positivos no equilíbrio dos ecossiste mas, na eliminação da pobreza e no desenvolvimento susten tável. Neste sentido, a racionalidade ambiental incorpora sa beres e conhecimentos que contribuem para cumprir com ob jetivos sociais primordiais que não puderam ser resolvidos com a aplicação dos modelos de prognóstico e de aplicação das ciências exatas e pela racionalidade econômica. Desmonte da lógica unitária e construção do saber ambiental Da visão matematizável, endurecida pela hegemonia da racionalidade científica, surge a pergunta sobre o sentido das ciências sociais. Na própria fonte das ciências humanas e so ciais está aquilo que Mills (1967) chamou de imaginação so ciológica. O conhecimento social, além de contribuir para contrastar e validar os dados da realidade, também é um saber Prospectivo, no sentido que Mannheim (1936/1972) atribuiu as utopias: como construções ideais que mobilizam os atores sociais para sua realização. A energia social, além de me 177 dir-se em calorias, se manifesta sobretudo pela sua capacida de criativa, inovadora e organizativa. Daí se coloca a possibilidade de conceber uma nova ra cionalidade social que, partindo dos valores e identidades dos povos, permita aproveitar o potencial dos ecossistemas e das forças da natureza amplificadas pela ciência e pela tecnolo gia, para satisfazer as necessidades básicas e melhorar a qua lidade de vida das maiorias. A preocupação pelos problemas ambientais globais está eludindo o problema fundamental das relações sociedade-natureza nas comunidades de base e no esboço de estratégias de desenvolvimento sustentável no nível local (Cepaur, 1989). Urge assim encontrar metodolo gias para integrar processos de diferente escala de magnitude (local, regional, nacional, global), processos de dimensões in- comensuráveis e de diversa ordem conceituai. A necessidade de entender o ambiente como um sistema complexo confronta o positivismo lógico em sua busca de unidade do conhecimento e uniformidade do saber. A ques tão ambiental abre assim uma nova perspectiva epistemoló- gica para compreender o desenvolvimento do conhecimento. A lógica da dispersão discursiva não postula o reino da anar quia conceituai como libertação de toda ordem que reduz a formalidade teórica à sujeição. O saber ambiental se constitui através da desconstrução dos paradigmas dominantes do co nhecimento e através da produção e articulação de saberes, para construir novas racionalidades sociais possíveis. Para isto é necessário derrubar as fortalezas da “ciência normal”, levantar as comportas que permitam o fluxo interdisciplinar de conhecimentos e abrir um diálogo produtivo entre saberes. Neste projeto inscrevem-se os desenvolvimentos meto dológicos que, mediante a identificação de variáveis signifi cativas e processos de diferentes ordens de materialidade, permitem analisar a dinâmica dos sistemas ambientais com 178 plexos. Assim podemos entender os efeitos das decisões so bre o uso dos recursos e a aplicação de modelos tecnológicos ein sua vulnerabilidade, estabilidade e desestabilidade dos ecossistemas e dos sociossistemas; a perda de fertilidade e de biodiversidade, a degradação dos solos, sua erosão e deserti- ficação; a marginalização, desnutrição e pobreza das popula ções (Garcia et al., 1981, 1982, 1986, 1988a, 19886), Esta perspectiva ambiental do conhecimento, ao romper com o projeto unitário de A Ciência - de sua formalização e matematização como critérios últimos de legitimação do co nhecimento - abre a construção de um saber ambiental que transforma conhecimentos, gera novos sentidos e produz ver dades que mobilizam a reconstrução da realidade, libertando processos naturais e sociais que permaneceram subjugados e agrilhoados pela racionalidade científica, tecnológica e eco nômica dominante. 1 3 - 0 INCONSCIENTE IN(TER)DISCIPLINAR* N o processo de transição da modernidade para a pós-mo- dernidade, enfrentam-se as tendências da unidade do conhe cimento e da homogeneização cultural, com a valorização da diversidade e da diferença. Estas tendências se refletem nas posições subjetivas diante do saber e no campo da interdisci- plinaridade. Aí o sujeito, dividido em e por seu desejo, dife renciado por sua sociedade, aspira por cobrir sua falta de sa ber com uma imagem de corpo inteiro, total, irrepreensível, ocultando seu desconhecimento sob o manto unitário de A Ciência, integrado pelos retalhos dos saberes disciplinares. A nostalgia de uma totalidade originária, a ambição de um sa ber absoluto marcam um retomo mítico a um saber total, an terior à divisão constitutiva do desejo de conhecer. O projeto interdisciplinar surge com o propósito de reori- entar a formação profissional através de um pensamento ca paz de apreender a unidade da realidade para solucionar os complexos problemas gerados pela racionalidade social, econômica e tecnológica dominante. Este projeto busca fun damentar-se num método capaz de fazer convergir os olhares dispersos dos saberes disciplinares sobre uma realidade ho mogênea, racional e funcional, eliminando as divisões esta belecidas pelas fronteiras dos territórios científicos, cance lando o espaço próprio de seus objetos de conhecimento, para reconstruir um mundo unitário. * y\ partir tlc um texto escrito originalmente em 1984, como prólogo à segunda edição do i vro lnterdisciphnariedad, dc Roberto Follari (1982). Versões anteriores foram publica das cm Formación Ambiental, vol. 1, n. 2, 1990-1991, c na Revista de la Vniversida Guadaiajara, n. 10, 1998. A especificidade teórica das ciências absorve-se num sis tema generalizado de conhecimentos, que busca complemen tar suas estruturas teóricas e abrir caminho a um intercâmbio analógico de conceitos num campo terminológico unificado. Daí o propósito de construir uma tecnologia interdisciplinar; orientada por um objetivo prático, comum a diferentes cam pos do saber. A redução do sentido conceituai de diferentes teorias ci entíficas às suas homologias estruturais, numa teoria geral de sistemas, associa-se com o desenvolvimento unidimensional da tecnologia e sua implantação aos mais diversos contextos ecológicos e culturais. Esta racionalidade científico-tecnoló- gica constitui um projeto oposto à produtividade do hetero gêneo, ao potencial do diferenciável, à integridade do especí fico e à articulação do diverso que fundamentam uma racio nalidade ambiental. A produtividade primária dos recursos naturais, decor rente de sua complexa organização ecossistêmica, vem sendo degradada pela uniformização da colheita de mercadorias su jeitas ao cálculo univalente do lucro econômico. A produtivi dade dialógica dos sentidos teóricos, que resulta do encontro dos discursos científicos, reduz-se à síntese lógica de seus enunciados, à analogia de seus significados sintáticos, ao iso- morfismo de suas estruturas conceituais. A produtividade po tencial do intercâmbio disciplinar dissolve-se no consenti mento de uma linguagem comum à produção unidimensional de idéias e à cultura de estilos de vida homogêneos. Nesta solução utilitária esfumam-se as complexas estru turas ecológicas e culturais construídas durante um longo processo de coevolução e heterogênese histórica. O triunfo d° progresso unitário subjuga a ressignificação do mundo às ordens de um Estado de urgência e ao poder do pragmatismo •deológico dominante, gerando um processo de desorganiza ção cultural, degradação do ambientevivido, erosão do solo habitado. Desta forma, inverte-se o processo neguentrópico fundado na crescente complexidade, produtividade e criati vidade das estruturas materiais constitutivas da matéria iner te, da substância viva, da ordem simbólica. Diante das revoluções sociais e culturais, das revoltas estu dantis e dos movimentos de libertação, da efervescência teóri ca e crítica que deram vazão à história, à sexualidade e ao saber nos anos 1960, surge o projeto interdisciplinar como um meca nismo de controle e de solução das crises energéticas, de recur sos e de valores, que abatem a civilização tecnológica de nosso tempo, como uma norma sobre as pulsões, sobre a produção de saberes, sobre as aspirações profissionais. A interdisciplinaridade busca construir uma realidade multifacetária, porém homogênea, cujas perspectivas são o reflexo das luzes que sobre ela projetam os diferentes enfo ques disciplinares. O conhecimento global ao qual aspira se conforma na convergência de um conjunto de visões parciais que se integram organicamente como um código de obje- tos-sinais do saber. A totalidade holística que os métodos in- terdisciplinares buscam difere da totalidade característica do pensamento simbólico, assim como do corpo integrado de conceitos donde os discursos científicos deduzem seu senti do próprio, constitutivo de seus objetos de conhecimento e de estruturas teóricas indissociáveis em partes, em variáveis, em fatores, em dimensões. Diante desta concepção da totalidade teórica, como viga mento de níveis de integração, coerência e sentido do conheci mento, o holismo ao qual aspira o pensamento interdisciplinar aparece como uma visão projetada para um objeto teórico ine xistente e imaginário que levita sobre campos concretos de aplicação; que se precipita no buraco de sua origem (insigni ficante (hole), antes de alcançar seu ente totalizador, seu ser-total. 182 Nestas tendências do pensamento homogeneizador proli feram as correntes globalizadoras e colonizadoras do pensa mento científico: logicismo, biologismo ecologismo; tantos “ismos” que sacodem as estruturas do conhecimento científi co Aspiração generalizadora que se traduz num poder totali tário do saber sobre as condições de emergência, produção e articulação das ciências. A vontade de uma totalidade sistê mica como projeto metodológico afoga o processo de produ ção dos objetos de conhecimento das ciências, a historicidade do saber que depende das lutas ideológicas pelo conhecimen to, o caráter emancipador do saber e a pulsão epistemofílica do sujeito da ciência. A sistematização do saber, a normalização das ações so ciais, a uniformização dos estilos culturais aparecem como o sinal unitário do regime totalitário do valor de câmbio. A teoria geral de sistemas pretende englobar os diferentes campos do conhecimento sob o signo analógico de identidade, ocultando a especificidade teórica que produz a organização e a integri dade conceituai das ciências. Fascínio por um sistema trans- disciplinar que ultrapassa as fronteiras do conhecimento para promover a livre transferência de noções tecnológicas entre continentes científicos. Sistema monetário que legitima a ple na situação de saberes, o livre intercâmbio de mercadorias-co- nhecimento que acompanham a capitalização da natureza. A lei do valor, que outrora havia parcelado as tarefas pro dutivas para igualar toda força de trabalho frente aos meios de produção do capital, impõe agora sua legalidade como norma ao trabalho intelectual; estabelece uma regra de equi valência entre os modos de pensar, sobre os métodos de pes quisar, sobre as formas de conhecer, sobre as alternativas so ciais de aplicação do saber, levando à desvalorização do co nhecimento diante dos imperativos pragmáticos do capital. 183 O eficientismo tecnológico como meio e finalidade do progresso elimina as contradições e a polissemia dos discursos científicos. A equivalência de todos os saberes no intercâmbio disciplinar reduz o sentido teórico do conceito para construir operadores nocionais e terminologias funcionais para um flu xo contínuo do saber, para o projeto de uma perfeita circulari dade das ciências, para a promoção de um comércio sem fron teiras dos produtos intelectuais, técnicos, ideológicos. A produtividade dialógica e dialética dos discursos cien tíficos se esgota no reconhecimento especular e no sentido especulativo dos saberes uniformizados por uma linguagem comum. O saber se acopla à unidade dos homens face à trans formação da mercadoria, único objeto que deve ser renova do, diversificado e multiplicado continuamente para ser con sumido num ato massivo, para capturar todos os olhares di vergentes, para burlar a satisfação da demanda sempre laten te, para devorar o insaciável desejo de ser. Mas a história do conhecimento não se desdobra numa su perfície recoberta de mosaicos de diferentes disciplinas cientí ficas e técnicas. Não é a área de confluência dos saberes dados. Não é o ponto de convergência de suas utilidades práticas. Não é a realização de uma demanda social imposta como juízo pe nal sobre o desenvolvimento das ciências para a resolução dos problemas econômicos e socioambientais imediatos. A dialé tica do conhecimento não é processo de identificação ou lugar de coincidência, mas princípio de dissidência, de divergência e dispersão dos discursos científicos, tendente a satisfazer a falta de conhecimento. Não é um círculo tautológico do saber, mas um espaço de expansão do conhecimento a partir das ressigni- ficações teóricas sobre processos materiais e ordens ontológi- cas diferenciadas. Processo no qual a criatividade do pensa mento e as mudanças sociais se entrelaçam na busca de novos sentidos de civilização e de alternativas de organização para o desenvolvimento dos povos. 184 O projeto interdisciplinar inscreve-se dentro da ressignifi- cação da vida e da reconstrução do mundo atual. Mas não serão os princípios de uma totalidade holística ou de uma visão sistê mica que haverão de suturar as feridas abertas pela divisão do ser, pelo controle tecnológico da sociedade ou pela opressão do poder totalitário. A prática interdisciplinar pode fazer con- fluir uma multiplicidade de saberes sobre diversos problemas teóricos e práticos; mas não pode saturar os vazios do conheci mento nem dar às ciências uma compreensão totalizante do real. Torres de observação pluridisciplinar poderão ser edifica- das sobre um campus universitário, mas a convergência dos olhares num objetivo prático não conseguirá construir o tão desejado objeto unitário e universal de A Ciência. A interdisciplinaridade não é pois um princípio episte- mológico para legitimar saberes, nem uma consciência teóri ca para a produção científica, nem um método para a articula ção de seus objetos de conhecimento. É uma prática intersub- jetiva que produz uma série de efeitos sobre a aplicação dos conhecimentos das ciências e sobre a integração de um con junto de saberes não científicos; sua eficácia provém da espe cificidade de cada campo disciplinar, bem como do jogo de interesses e das relações de poder que movem o intercâmbio subjetivo e institucionalizado do saber. O movimento interdisciplinar é uma revolta intelectual na qual, ao cessar a agitação dentro do fluido miscível do sa ber, as homologias estruturais de sua substância conceituai encontram novas superfícies de contato; os estamentos disci plinares mudam de hierarquia em função da correlação das forças teóricas e ideológicas em jogo. Mas somente poderão instigar revoluções no seio das ciências quando o encontro de diferentes disciplinas científicas e técnicas produzir um novo objeto de conhecimento (Canguilhem, 1977). O questionamento inquisidor sobre uma ciência a partir do olhar externo e estranho de outra disciplina, a partir dos 185 efeitos que suas aplicações produzem em seus campos expe rimentais e na transformação da realidade, pode levantarno vamente alguns problemas teóricos e gerar um processo de assimilação de novos conceitos e metodologias de pesquisa. Mas o objeto teórico de cada ciência e a especificidade disci plinar de cada especialidade imporão as condições do que pode ser repensado teoricamente, do que deve ser retrabalha- do na prática de pesquisa, do que se entretece numa nova es trutura de conhecimentos. O processo interdisciplinar mobilizará a produção de no vos conhecimentos, enquanto às disciplinas particulares lhes reste um potencial a desenvolver em seu intercâmbio com ou tros saberes; enquanto os sujeitos do saber conservem um im pulso por conhecer o desconhecido, a necessidade de descobrir e construir algo real além do restrito horizonte de visibilidade da realidade; enquanto exista uma capacidade para conjeturar o que não é dedutível a partir da análise sintética do dado; en quanto não se esgote a necessidade emancipadora de construir novas utopias nem a curiosidade por explorar alternativas além das opções que as situações herdadas e as tendências atu ais oferecem; enquanto continue vivo o impulso por saber, o pensamento crítico e o movimento criador das idéias. 186 14 - PSICANÁLISE E SABER AMBIENTAL* Ambientalizar a psicologia ou psicanalisar o ambiente: Encontro de dois saberes frente à ciência O saber ambiental, a partir das perspectivas do pensa mento da complexidade, surge nos espaços de extemalidade dos paradigmas dominantes do conhecimento, transforman do os conceitos e métodos de diferentes disciplinas. Desta maneira, a economia, o direito, a antropologia e a sociologia vêm internalizando as condições ambientais que redefinem seus objetos de conhecimento e seus campos de estudo (Leff etal., 1986/2000; Leff et al., 1994). Também a psicologia vem se “ambientalizando”. Desta maneira, analisa as formas como as condições ambientais afetam as capacidades cognitivas, mobilizam os comporta mentos sociais e causam impacto à saúde mentaOTambém o campo emergente da psicologia ambiental contribui para a análise das percepções e interpretações das pessoas sobre seu meio ambiente, vinculando-se ao terreno da psicologia social no estudo da formação de uma consciência ambiental e seus efeitos na mobilização dos atores sociais do ambientalismo. (Contudo, o encontro do saber ambiental com a psicanáli se se apresenta num espaço que não é o da complementarida de nem da articulação de seus saberes, mas de seus paralelis- mos, suas solidariedades e suas disjunções.^E talvez seja em relação com o saber que funda suas práticas e em sua cumpli- * Conferência apresentada no Primeiro Encontro Latino-Americano de Psicologia Am biental, ENEP Iztacala, UNAM, T-3 de julho de 1998. 187 >r cidade na subversão do conhecimento científico que se enca ram de frente esses saberes. O projeto científico da modernidade abre uma nova via à aventura do conhecimento a partir da constituição do sujeito de A Ciência que, a partir da certeza de seu pensamento tenta construir um conhecimento objetivo, livre de todo traço de subjetividade e emotividade, para alcançar a verdade, a iden tidade do conhecimento com o real. Este sujeito autoconsci- ente converte-se no princípio e ao mesmo tempo no maior obstáculo para alcançar o conhecimento objetivo. Bachelard mostrou a necessidade de fazer uma “psicaná lise” dos interesses subjetivos que constituem a base afetiva do saber, para derrubar os obstáculos epistemológicos e abrir as vias à formação de um espírito científico capaz de aceder ao conhecimento objetivo. Neste sentido, “descobrir os obs táculos epistemológicos é contribuir para fundar os rudimen tos de uma psicanálise da razão” (Bachelard, 1938/1948:61). Bachelard vai à busca de um racionalismo crítico que questiona essa pretensão universalista do conhecimento e as soluções solipsistas do idealismo fundado no logocentrismo, nas possibilidades de formalização que se assentam na iden tidade do real e encontram sua justificação na identificação do eu, na certeza do sujeito e na verdade do cogito cartesiano que sustentam o projeto epistemológico da racionalidade ci entífica. Desta maneira, a ciência chega “a expulsar todo psi- cologismo e a fundar logicamente o conhecimento objetivo”. Mas, “esse duplo êxito é a própria ruína do interesse do co nhecimento, é a impossibilidade de trabalhar ao mesmo tem po a diferenciação da realidade e a diferenciação dos pensa mentos” (Bachelard, 1949: 131-132). Perante a ótica do saber ambiental - que observa as falhas do iluminismo científico e do triunfalismo tecnológico - o progresso da ciência, empurrado pelo impulso de saber e por 188 sua vontade de controlar e dominar o real, provocou a destrui ção da natureza, exilando-a de sua terra natal, acelerando a morte entrópica do planeta, subjugando as culturas forjado- ras de sentidos e desconhecendo em sua passagem seus sabe res. A objetividade da ciência deixou que lhe escorresse o real que hoje fala em nome da natureza violada, denunciando o poder dominador do conhecimento científico. A emergência do saber ambiental questiona as bases éti cas e epistemológicas da racionalidade científica e econômi ca que fundam e mantêm o projeto de modernidade que de sembocou na crise ecológica. Mas o que poderia a psicanálise trazer a esta iniciativa? A pulsão epistemofílica reata a aven tura do conhecimento a partir da perspectiva aberta pelo sa ber ambiental, como aquela falta de conhecimento que im pulsiona um processo interminável de produção de conheci mentos (Leff, 1986/2000). O encontro frente a frente entre saber ambiental e saber psicanalítico não produz a “ambientalização” da psicanálise mediante uma introjeção de suas perspectivas epistemológi cas e políticas; tampouco permite “psicanalisar” o ambienta- lismo com o propósito de eliminar as subjetividades que o ha bitam e sanear sua patologia discursiva, erradicando o discur so perverso do desenvolvimento sustentável. Tanto o saber ambiental como a psicanálise compartilham a impossibilida de de conhecer a verdade que impulsiona o saber, que ascen de para os cimos da racionalidade científica, e destas alturas se precipita sobre a natureza e a cultura. Neste encontro de saberes emergem dois temas privilegia-' dos sobre os quais discorrem a psicanálise e o saber ambiental: 1) A lei como limite a partir do qual se ordena a teoria sobre o campo do possível na ordem do real. 2) A relação entre o conhecimento, o saber e a verdade. 189 A Ie i- l im ite e a p r o ib iç ã o Tanto a psicanálise como o saber ambiental se fundam numa lei-limite a partir da qual se questionam os saberes “pré-científicos” e se organiza um novo campo teórico. A cas tração, a divisão dos sexos, o Édipo e a proibição do incesto or ganizam as formações do inconsciente, objeto da psicanálise, demarcando-o do biologismo e do energetismo pré-freudiano que imperavam no campo da psicologia (Lacan, 1976). De modo análogo, o saber ambiental reconhece na segunda lei da termodinâmica a lei-limite que questiona a falsa fundamenta ção mecanicista da economia (Georgescu-Roegen, 1971). Daí se observa a destruição ecológica e a morte entrópica causadas pelo crescimento econômico, abrindo o campo à construção de uma racionalidade ambiental. A degradação da natureza aparece nesta perspectiva como efeito da racionalidade econômica que nega e desconhece a natureza, que tenta reduzir e capitalizar a ordem da vida e da cultura. Esta análise se situa além do psicologismo que vê na destruição da natureza o triunfo do instinto de morte sobre o instinto de vida - de Tânatos sobre Eros. Pois o que o encon tro da psicanálise com o saber ambiental descobre não é uma essência autodestrutiva do ser humano, mas como sua pulsão para uma verdade impossível de alcançar o lançou a uma epo péia científica para dominar a natureza, transferir seu in saciável desejo à ordem do econômico, para um horizonte ilimitado de crescimento que lheé vedado na ordem da cultu ra pela lei de proibição do incesto. E é neste rodeio que o mal-estar da cultura se converte num processo destruidor da vida e da natureza. Pois caso se tratasse de deter um instinto de morte como causa do ecocídio, pouco poderia fazer a “consciência am biental” para desativar suas determinações genéticas. Tra ta-se então de ver a destruição da natureza através do rodeio 190 do saber; de um saber que emerge da falta insaciável do co nhecimento e que busca um ideal de completitude, um espe táculo sem limites, um crescimento sem fronteiras, gerando uma racionalidade que, em sua autojustifícação, se cega di ante do limite. Por outro lado, a lei-limite abre um processo emancipador do saber, forjador de utopias e de sentidos civi- lizatórios, pelos quais a cultura avança a partir do desejo de vidá)e da erotização do mundo. Aos olhos do saber ambiental, a economia fundou-se numa lei (mecânica) fora da lei (simbólica) da proibição, do limite. Face à cultura e ao inconsciente que se fundam na lei de Édipo e na proibição do incesto (onde o funcionamento da lei no registro do simbólico estrutura o real e funda o imagi nário), a ordem econômica se funda numa ideologia do pro gresso infinito das forças produtivas; de uma escassez fictícia que impulsiona a emergência de uma ciência encarregada de racionalizar recursos e equilibrar fatores produtivos. A eco nomia aparece assim como um processo imaginário que, sem fundamento nas leis que instauram a ordem simbólica e que regem o real da natureza, gera uma hiper-realidade, uma de formação, uma monstruosidade, uma metástase do real (Bau- drillard, 1973). As leis da termodinâmica estabelecem o limite que leva a ressignificar o processo econômico e a construir uma nova economia fundada no real da entropia e nos processos de sig nificação da cultura. A partir daí se coloca a emergência de uma racionalidade ambiental, onde se articula o potencial da natureza com a tecnologia e com a ordem da cultura. Num pa ralelismo com a articulação da ordem simbólica, imaginária e real nas formações do inconsciente, as formações ambientais integram a ordem (real) da natureza - aquela ordem ontológi- ca que existe antes da linguagem e da cultura - , através de significados que provêm da ordem (simbólica) da cultura, através do imaginário do conhecimento e da tecnologia. A 191 entropia como lei-limite reata a ordem da natureza, a técnica e a cultura. A lei-limite trança os três registros e os coloca em tensão numa nova racionalidade produtiva. O ecocídio da economia é seu desconhecimento da natu reza, sua precipitação para a morte entrópica do planeta por sua autocomplacência no progresso e sua embriaguez de cres cimento. A crise ambiental atual mostra essa negação dos li mites da produção que, em vez de ressignifícar a vida econô mica, persiste em sua compulsão à repetição numa obsessão pelo crescimento infinito. Neste sentido, o ecocídio não apa rece como a manifestação primeira de uma pulsão de morte, mas como a imposição da racionalidade econômica que des conhece e nega a lei-limite da natureza. Nesta perspectiva, o saber ambiental não se enlaça com o discurso economicista em busca de suas complementarida- des, suas interfases sistêmicas, suas relações interdisciplina- res. O ambiente emerge como sintoma do limite que deve re organizar o processo produtivo; como irrupção de uma nova racionalidade (no conhecimento, na produção) a partir da fal ta, da cisão, da incompletitude; como ponto de fuga para a di ferenciação de racionalidades culturais e estilos de vida. Conhecimento, saber, verdade O saber ambiental e o saber psicanalítico avançam por di ferenciação, não por fusão inter ou transdisciplinar. Ambos se encontram na desnaturalização da natureza e em sua ins crição na ordem simbólica. O saber ambiental é um saber en raizado na organização ecossistêmica da natureza, mas está sempre incorporado à subjetividade e à ordem da cultura. Desta maneira, a natureza como objeto de apropriação social é sempre uma natureza significada. O saber ambiental se de marca assim do projeto de ecologização do pensamento filo 192 sófico, da ética e das ciências sociais que geraram o ecologis- mo como ideologia. Na emergência do saber ambiental podemos encontrar uma gênese similar ao advento do sujeito: num primeiro mo mento reconhece no reflexo imaginário do discurso ecologis ta seu corpo desmembrado e fracionado. Esse ambientalismo infantil busca recompor suas mutilações no olhar especular integrador que a teoria de sistemas, o pensamento da comple xidade e os métodos da interdisciplinaridade oferecem. O ambientalismo entra em diálogo com os paradigmas estabe lecidos, busca seus campos de complementaridade e, a ponto de identificar-se com seu outro dominador no discurso do de senvolvimento sustentável, descobre a força transformadora de seu saber, sua pulsão vital e seu desejo de emancipação; re conhece a falta de conhecim ento que o impele a d iferen ciar-se e a não confundir-se com outros saberes. Por isso, o saber ambiental é desconstrução dos saberes consabidos e construção, a partir de sua alteridade, de novos conhecimen tos, de novas utopias, de novos direitos e novas identidades que impulsionam a história para frente. A palavra nunca chega a tocar a coisa, o conceito jamais se confunde com o processo que apreende e significa, o mito é sempre a dança ritual do real. Na modernidade surge o diá logo metafórico e dialético entre o conceito e o real, entre a natureza e a poesia. O conceito abstrato procura tocar a reali dade empírica, a ciência dominar a natureza. O pensamento da pós-modemidade dissolve o diálogo entre a palavra e a coi sa, entre o símbolo e seu referente. A modernidade desembo ca numa hiper-realidade irrefreável e inapreensível, num jogo do código que simula mas já não decodifica o real, na dessubstantivação e no sem-sentido de toda teoria, na irreve rente irreferenciabilidade de todo discurso, num processo inelutável para a morte entrópica (Baudrillard, 1973). 193 Saber ambiental e saber psicanalitico abrem novamente a história do conhecimento, o sentido do saber e o lugar do sujei to. Ambos os saberes combatem as postulações cientificistas (estruturalistas) que pretendem eliminar o sujeito numa cres cente objetividade do conhecimento. Assim, a afirmação sobre a ciência como “ideologia da supressão do sujeito” (Lacan), enfrenta a proposta a partir do estruturalismo de um “processo sem sujeito” (Althusser). O saber ambiental é movido pela pul- são de conhecimento, mas surge como um saber personaliza do, definido por interesses, sentidos existenciais e significados culturais de sujeitos históricos. O saber ambiental implica co locar em jogo a subjetividade na produção de conhecimentos, e traz consigo uma apropriação subjetiva do saber para ser aplicado em diferentes práticas e estratégias sociais. O iluminismo científico busca a verdade na certeza do su jeito da ciência, na coerência lógica de seus enunciados, na matematização de suas funções. O saber psicanalitico e o sa ber ambiental reconhecem a incerteza, a incomensurabilida- de, a complexidade e a incompletitude do conhecimento. O saber psicanalitico não pretende constituir-se numa ciência do sujeito convertido em objeto de conhecimento. A psicaná lise admite que “o sujeito é esse real incontornável do qual depende todo saber, mas que, por sua vez, não pode ser apre endido pelo saber” (Saal, 1998:127). A psicanálise não busca esgotar as determinações sobre o sujeito. Tem muito mais em vista a disjunção entre o saber e a verdade; a verdade à qual faltam palavras para dizer-se. Daí se desconstrói a ilusão do projeto científico que busca a identificação do ser e da ciên cia, do conceito e do real, do sujeito e do objeto, das palavras e das coisas. O saber ambiental emerge do campo de extema- lidade dos núcleos de racionalidade científica. É o indizível,o ignorado, o desconhecido pela ciência; ocupa o lugar da ver dade, do real incontornável pelas ciências. 194 Mas não devemos confundir a verdade com aquele im pulso indizivel que arrasta cada sujeito ao saber, com a verda de como projeto epistemológico que busca a identidade entre o saber e o real, problema que não se reduz a reconhecer a ver dade como causa do saber. A impossibilidade de que o sujeito saiba sua verdade não corresponde aos limites com os quais se defrontam as estratégias teóricas para construir conceitos e objetos de conhecimento para apreender o real. Pois se a pala vra nunca se identifica com a coisa, certamente a eficácia tec nológica fala da aproximação da ciência e do real, embora isto gere o desconhecimento e a negação da própria natureza em sua vontade de dominá-la. Na psicanálise a verdade fala sem poder dizer-se; é o into cável na palavra, o invisível diante do olhar. A partir da cas tração, da divisão dos sexos, a partir da falta em saber, a ver dade impulsiona a busca do conhecimento. Daí a disjunção entre saber e verdade e a impossível fusão do conhecimento com a verdade e o real. O saber ambiental emerge da opressão do conhecimento, do desconhecimento do saber gerado pelo projeto científico, subjugando e fragmentando saberes, es magando identidades, economizando e tecnologizando o co nhecimento, fixando seu olhar na realidade empírica ou ele vando-o à idéia abstrata e à perfeição matemática. Se não há relação sexual que devolva ao sujeito sua incompletitude constitutiva, o saber ambiental descobre que não há uma rela ção interdisciplinar capaz de cumular os vazios e desconheci mentos das ciências para restituir à racionalidade científica o que perdeu de verdade e saber para constituir seu paradigma de cientificidade. Saber ambiental e psicanálise se encontram em sua re sistência a qualquer saber totalitário, a todo imperialismo científico (mesmo aquele proveniente da ecologia como ciência das ciências, como saber da complexidade e das in terdependências). Ambos os saberes se encontram nessa 195 /* pulsão para a vida que incita a busca do conhecimento. Se a psicanálise abre os canais do saber do indivíduo diante do impossível encontro com a verdade, o saber ambiental abre as vias da história através da construção de novos valores, saberes e conhecimentos. O saber da psicanálise responde à demanda do sujeito de saber sua verdade. Não tem em vista a história nem as ciên cias; tem em vista a pulsão básica do ser humano a partir das formações do inconsciente. Sem dúvida se nutre de outros discursos teóricos e filosóficos para armar o saber que guia sua prática; a partir daí encontra as raízes profundas do mal-estar na cultura e sabe o que as ciências não podem conhecer em sua vontade de saber. Se na psicanálise o real e a verdade fa lam sempre com vozes veladas, o saber ambiental descobre o real da economia - a natureza negada - , falando a partir de sua exclusão na teoria e no discurso econômico. O saber é fonte de certezas e identificações. O sujeito se afirma pelo que acha que sabe. A psicanálise questiona toda certeza que opera desconhecendo a verdade como causa. O saber ambiental questiona a racionalidade científica que cerceia a natureza e cerca a história. Mas desencadeia novos saberes, propicia o diálogo e hibridações com o conheci mento, gera novas identidades fundadas em sua relação com saberes mutantes, implica processos de reincorporação e rea- propriação de novos conhecimentos. O saber ambiental combate pois as certezas de paradigmas legitimados e insti tucionalizados e capta as manifestações de outros saberes, de outros sentidos e significações, a partir dos quais se cons- troem novas utopias. Na busca de sua verdade, o inconsciente lançou o sujeito para identificações coletivas com ideologias de massas que geraram os dramas históricos produzidos pelos poderes tota litários e pelos fundamentalismos de nosso tempo. O saber 196 ambiental se confronta com a tenacidade das identificações com o saber disciplinar; além do questionamento do saber psicanalitico sobre o sujeito científico que emerge de sua au- toconsciência e da certeza de sua existência a partir de seu pensar, o saber ambiental observa o sujeito formado num pa radigma científico, de onde fala de certa maneira sobre o mundo, adota certos gestos e ostentações, finca seus valores em “sua ciência”, e elabora suas certezas sobre o mundo que ultrapassam o campo de sua prática científica. Destas identi dades surgem os interesses disciplinares como obstáculos epistemológicos. O saber ambiental olha assim a dispersão do discurso da sustentabilidade e das posições subjetivas que sustentam suas narrativas. Abre-se assim um campo de confronto de identi dades, sentidos e práticas do ambientalismo. E ali se forjam novas identificações com o saber no campo acadêmico; fun- dam-se novas identidades culturais e se constituem novos atores sociais em relação com as significações diferenciadas dos discursos da sustentabilidade. Na perspectiva desta multiplicação de subjetividades no campo do saber ambiental, a verdade como falta de conheci mento desencadeia os desvarios do conhecimento em seu afã de apreender o real: lança o sentido emancipador do saber para o campo do poder no saber (Foucault, 1980), onde se de batem as diferentes posturas e imposturas perante o desen volvimento sustentável. Ali se enlaça esse real (formação do inconsciente) que empurra ao saber com o real dos campos epistemológicos onde se produzem conhecimentos; o saber da psicanálise dialoga com os objetos das ciências, com a his tória e a linguagem a partir do real da castração e das forma ções do inconsciente. O real para o qual aponta a psicanálise é tão inacessível como é inapreensível o real que as ciências buscam capturar, 197 mas respondem a diferentes ordens ontológicas e a diferentes estratégias epistemológicas: o primeiro está em relação entre o saber consciente e a verdade do inconsciente; as ciências, entre o conhecimento e as ordens da realidade ontológica. O saber psicanalitico tenta fazer o sujeito falar a partir de sua incom- pletitude fundamental e constitutiva para desencadear seu de sejo; o saber ambiental faz com que o conhecimento avance a partir de sua falta de saber para abrir os canais da história. Para a psicanálise a verdade indizível lança o sujeito à fala, à busca de saber. O saber ambiental, colocado na órbita da construção social, fala dos interesses e utopias que mobi lizam o conhecimento; legitima e racionaliza ações, entrela çando-se nas tramas do poder. O saber ambiental fala dos efeitos de dominação do conhecimento e da função estratégi ca do saber. O saber psicanalitico discorre sobre a verdade. É um sa ber que sabe que não sabe, que crê saber porque é impossível saber a verdade, que sabe que o sujeito não poderá dizer a ver dade que o impulsiona. É um saber que sabe o que não poderá encontrar, mas que busca desencadear e desviar a pulsão de vida para outros saberes. Assim, a psicanálise como teoria do inconsciente se atribui um saber que guia sua prática. É um saber que afirma não saber o que lhe demanda o sujeito, mas que deve saber como conduzir esta demanda de saber. E o sa ber ambiental sabe que os saberes constituídos pela racionali dade científica dominante aceleram a morte entrópica, e pro cura abrir caminhos para a sustentabilidade através da consti tuição de novos saberes. Assim, a partir de seus enfoques tangenciais, psicanálise e saber ambiental desconstroem as certezas da modernidade e abrem novos horizontes de possibilidades à vida e à história. 15 - UNIVERSIDADE, INTERDISCIPLINARIDADE E FORM AÇÃO AMBIENTAL* Dependência tecnológica e desenvolvimento sustentável A crescente complexidade e o agravamento dos proble mas socioambientais, gerados pelo triunfo da racionalidade econômica e da razão tecnológica que a sustenta, levaram a colocar a necessidadede reorientar os processos de produção e aplicação de conhecimentos, assim como a formação de ha bilidades profissionais, para conduzir um processo de transi ção para um desenvolvimento sustentável. Esta necessidade é maior nos países periféricos, onde a fragilidade e dependên cia de seus sistemas científico-tecnológicos, a desvinculação dos processos produtivos e a inadequação às suas condições sociais, culturais e ambientais são causa e expressão de seu subdesenvolvimento. A dependência científico-tecnológica manifesta-se como uma relação disfuncional entre o custo e as condições de aquisição do conhecimento importado; nas capacidades de cada país, cada indústria e cada comunidade para sua apro priação, adaptação e operação; no desaproveitamento e des truição dos recursos naturais e culturais devido à implanta ção de modelos tecnológicos externos; e no intercâmbio de sigual entre produtos primários e mercadorias tecnológicas estabelecido pelas condições do mercado. Esta dependência adquire novos significados na perspectiva do desenvolvi * Texto redigido a partir do artigo “Las ciências socialcs y la formación ambiental a nivel universitário", Revista Interamericana de Planificación, vol. XXI, n. 83-84, 1987, p. 106-126. 199 UF PE CF CH BI BL IO TE CA SE TO f.U mento sustentável, face às novas formas de apropriação ci entífica e tecnológica da natureza e às estratégias da nova ordem mundial para o manejo sustentável dos recursos am bientais do planeta. O discurso desenvolvimentista definiu a crença de que a transferência de tecnologia moderna seria o meio mais eficaz para reduzir as disparidades entre os países industrializados e os países em desenvolvimento. Acreditou-se que uma articu lação funcional do sistema científico-tecnológico ao sistema econômico e produtivo estabelecido, assim como o aprovei tamento das vantagens comparativas oferecidas pela dotação de recursos humanos, naturais e tecnológicos de cada país, fecharia a brecha entre países ricos e pobres, dissolvendo as desigualdades regionais e sociais internas num processo de homogeneização tecnológica e cultural. Neste sentido, a agenda econômico-ecológica da globali zação reforça a dependência científico-tecnológica dos paí ses do Sul, ao exigir a transferência de tecnologias limpas dos países do Norte (em condições preferenciais), em vez de prio rizar o fortalecimento de uma capacidade científica e tecno lógica própria, destinada a incrementar o potencial ambiental e o aproveitamento endógeno de seus recursos naturais. Nesta problemática de dependência e desenvolvimento desigual, a crise ambiental marca os limites ecológicos e so ciais da racionalidade produtiva dominante. Daí nasce uma consciência ambiental que enfrenta o mito do desenvolvi- mentismo e a esperança de alcançar os benefícios da globa lização econômico-ecológica. As estratégias de apropria ção da natureza (a biodiversidade) e o controle dos equilí- brios ecológicos (a mudança climática) dos centros de po der econômico, científico e tecnológico dos países do Norte geram uma desigual distribuição dos custos e potenciais ecológicos, assim como das oportunidades de acesso e apro veitamento dos recursos do planeta, nos níveis nacional, re gional e mundial. A internacionalização da racionalidade econômica e tec nológica dominante provocou a superexploração dos recur sos e a degradação do potencial produtivo dos ecossistemas dos países subdesenvolvidos. A produção de mercadorias, orientada pela maximização dos lucros e dos excedentes eco nômicos a curto prazo, gerou processos crescentes de conta minação da atmosfera, de solos e recursos hídricos; desmata- mento, erosão e desertificação; perda de fertilidade dos solos, de biodiversidade e de produtividade de seus ecossistemas; destruição das práticas tradicionais e valores culturais consti tutivos da diversidade étnica e das identidades dos povos; falta de estímulos ao desenvolvimento científico-tecnológico para gerar uma capacidade endógena para o uso sustentável dos recursos. A partir de uma perspectiva ambiental, a articulação dos conhecimentos existentes com o sistema econômico vigente orienta a pesquisa científica, a inovação tecnológica e a for mação de profissionais às demandas explícitas do mercado e do aparelho produtivo instalado, desestimulando a produ ção de conhecimentos e capacidades para construir uma ra cionalidade ambiental. A perspectiva ambiental do desen volvimento subverte e transcende as políticas econômicas, tecnológicas e educativas prevalecentes, orientando os pro cessos produtivos para o aproveitamento do potencial am biental de cada região, fundado na articulação de seus siste mas ecológicos, tecnológicos e culturais, para satisfazer as necessidades básicas e melhorar a qualidade de vida da po pulação. Esta estratégia requer políticas educativas e de ciência e tecnologia que gerem os conhecimentos, capacida des e habilidades para conduzir um processo endógeno de de senvolvimento sustentável. 201 A reorientação das atividades acadêmicas e da pesquisa que leva à construção de uma racionalidade ambiental impli ca a incorporação do saber ambiental emergente nos paradig mas teóricos, nas práticas disciplinares de pesquisa e nos conteúdos curriculares dos programas educacionais. Este sa ber se concretiza em contextos sociais, geográficos e cultu rais particulares e encontra condições desiguais de assimila ção nas diferentes disciplinas e nas instituições de pesquisa e de educação superior. A questão ambiental gera assim um sa ber que leva a uma transformação dos conhecimentos, dos conteúdos educacionais e da gestão social dos recursos natu rais, reorientando os sistemas de pesquisa, de educação e de produção. Universidade, sociedade e ambiente Embora as universidades e instituições de educação su perior gozem de autonomia formal (liberdade de pesquisa e de cátedra), suas atividades acadêmicas são afetadas pelos valores dominantes da sociedade na qual estão inscritas. Sua articulação com estas se estabelece através da demanda ex pressa de profissionais portadores de conhecimentos e de ha bilidades úteis e funcionais para o sistema, e da canalização de recursos que repercutem na orientação de suas atividades. Deste modo, o mercado define vocações e cria interesses pro fissionais que internalizam a função eficientista, produtivista e utilitarista da racionalidade econômica dominante na for mação de “capital humano”. A valorização do conhecimento, a capacidade técnica e as habilidades profissionais por parte da sociedade repercu tem nas orientações adotadas pelo trabalho acadêmico nas universidades. O prestígio social atribuído ao professor e ao pesquisador, os estímulos e obstáculos ao desenvolvimento 202 de linhas temáticas dentro dos paradigmas dominantes em cada disciplina, as demandas explícitas de profissionais no mercado de trabalho, o sentido de participação no processo de produção e transmissão do conhecimento, as aspirações da ascensão social pela aquisição de títulos e competências profissionais, assim como a remuneração e as possibilida des de realização pessoal no trabalho intelectual e docente produzem um conjunto de motivações e frustrações que in fluem na organização dos programas de ensino e de pesquisa nas universidades. Estas influências e interesses determinam as possibilida des de transformar as estruturas educacionais mediante a ino vação de métodos pedagógicos, a renovação de planos de es tudo, a reorganização curricular ou a reorientação das ativi dades científicas nas universidades. Estas condições sociais do trabalho acadêmico se traduzem em estímulos ou desestí- mulos de professores, pesquisadores e estudantes para intro duzir novos projetos de formação profissional e de pesquisa científica. Neste contexto se coloca o projeto de incorporar o saber ambiental nas universidades. A reorientação da pesquisa, a reelaboraçãodos conteúdos curriculares e dos métodos pedagógicos, na perspectiva do desenvolvimento sustentável, implicam a construção de um saber ambiental e sua internalização nos paradigmas científi cos e nas práticas docentes que prevalecem. Este processo se defronta com obstáculos que provêm da institucionalização dos paradigmas dominantes, legitimados e arraigados nos critérios de valorização do conhecimento no meio acadêmico e na sociedade em seu conjunto. A formação ambiental se projeta assim a contracorrente das demandas e interesses da vida acadêmica das universidades e da racionalidade econô mica dominante. As perspectivas metodológicas e os conteúdos concretos dos programas educacionais relativos ao ambiente dependem da própria conceitualização da problemática ambiental, dos processos que a constituem e de sua inscrição dentro de uma racionalidade social e um determinado processo de desenvol vimento. As condições de dominação econômica e de depen dência tecnológica dos países do Terceiro Mundo, a caracte rização de suas causas e seus efeitos sobre a superexploração de seus recursos e a degradação de seus ecossistemas, sua di versidade étnica e seu potencial ecológico para um desenvol vimento alternativo fazem com que a questão ambiental apa reça como uma dimensão mais complexa do que nos países industrializados. Não obstante os diferentes significados que adota nos países do Norte e do Sul, o conceito de ambiente vem evolu indo de uma perspectiva naturalista ou ecológica para a in corporação dos processos sociais que determinam a proble mática ambiental (Leff [coord.], 1986, 2000; Leff [coord.], 1994)'. Apesar desta evolução conceituai, nos programas de educação ambiental predominou uma visão ecologista. Neste sentido, incorporaram-se conceitos básicos de ecologia, como também de técnicas de avaliação e controle de impactos am bientais nas carreiras tradicionais. Menores têm sido os es forços por ambientalizar as ciências sociais e por incorpo rá-las à produção de um saber ambiental e dos conhecimentos 1. “A atenção conccntrou-sc cm primeiro lugar sobre os problemas de conservação dos re cursos naturais c de preservação da vida animal c vegetal (...) de um ambiente conside rado essencialmente cm seus aspectos biológicos c físicos, passou-se a uma concepção mais ampla, que dá lugar a seus aspectos econômicos c socioculturais, c que sublinha melhor as correlações existentes entre esses diversos aspectos. (...) A concepção do ambiente, reduzida a seus aspectos naturais, não permite apreciar nem as interações en tre seus elementos, nem a contribuição que as ciências sociais podem trazer à compre ensão c ao melhoramento do ambiente humano. (...) Sc c verdade que os aspectos bioló gicos c físicos constituem a base natural do ambiente humano, as dimensões sociocul turais c econômicas definem (...) as orientações c os instrumentos conceituais e técni cos que permitem ao homem compreender c utilizar melhor os recursos da biosfera para a satisfação de suas ncccssidadcs” (Uncsco, 1980: 22-23). 204 necessários para construir uma racionalidade ambiental (Leff, 1994b f. Saber ambiental e transformações do conhecimento no processo educacional A racionalidade econômica dominante gerou formações teóricas e ideológicas que legitimam os valores do mundo ocidental, como também os meios científicos e tecnológicos que buscam elevar a produtividade das forças produtivas. O interesse social inseriu-se assim no desenvolvimento históri co das ciências e nos paradigmas de conhecimento que domi nam as práticas acadêmicas e de pesquisa. Com a emergência da crise ambiental, o processo educacional orientou um pro cesso de conscientização para regular condutas sociais que evitem efeitos negativos sobre o ambiente e criar habilidades técnicas para resolver problemas ambientais. A educação re lativa ao ambiente concebe-se como um “treinamento em proteção ambiental”, ou como uma “instrução que permita aos estudantes resolver problemas ambientais e lhes dê uma visão e convicções como base para um comportamento res ponsável com a natureza” (Hundt, 1986: 41). São apenas in cipientes os programas de formação ambiental orientados para a construção de uma racionalidade alternativa, capaz de compreender, promover, mobilizar e articular os processos naturais, tecnológicos e sociais que abram as opções para ou tro desenvolvimento. A perspectiva ambiental do desenvolvimento não só ques tiona os comportamentos da sociedade da opulência e da abundância diante dos limites físicos que se opõem à sua con servação e expansão. Implica também a reformulação crítica 2- Na Amcrica Latina são ainda incipicntcs os programas dc cducação ambiental no campo das ciências sociais, sintoma da distância que existe entre uma conccitualização pró pria sobre a problemática ambiental do desenvolvimento c sua incorporação nos pro gramas dc pesquisa c dc formação (PNUMA, 1985, 1995; PNUMA/Uncsco, 1988). 205 dos paradigmas do conhecimento nos quais se aninharam formações ideológicas que respondem aos interesses de clas ses e de grupos sociais que apóiam este modelo de desenvol vimento. Destas teorias surgem os instrumentos de planeja mento e os critérios de tomada de decisões dos agentes eco nômicos que afetam as formas de valorização e apropriação dos recursos naturais, assim como os processos de degrada ção ambiental e a distribuição de seus custos econômicos e ecológicos. A ética ambiental promove uma mudança de atitudes, as sociada à transformação dos conhecimentos teóricos e práti cos nos quais se funda a racionalidade social e produtiva do minante. Os requisitos de conhecimentos para a construção de uma racionalidade ambiental dependem da perspectiva ideológica e política que deu origem à sua demanda. Esta de termina as estratégias conceituais e metodológicas para a pro dução de conhecimentos, reorientando a pesquisa e o desen volvimento tecnológico. Isto não quer dizer que todos os pa radigmas científicos se vejam questionados pelas diferentes perspectivas ideológicas dentro das quais se propõe a proble mática ambiental, ou que os recursos técnicos provenientes dos conhecimentos especializados existentes não possam aplicar-se à solução de problemas ambientais pontuais: análi se de toxidez, tratamento de águas, reciclagem de lixo, tecno logias “limpas” e economia de energia. Muitos programas de pesquisa necessários para induzir um manejo sustentável de recursos não questionam os para digmas, métodos e técnicas de diversos ramos científicos. Assim, os estudos sobre a capacidade de carga dos ecossiste mas, sobre sua produtividade ecológica e as condições de re generação de seus recursos sujeitos a regimes alternativos de manejo integrado e de culturas combinadas, não discutem as teorias e métodos correntes da ecologia. Da mesma maneira, o estudo de recursos potenciais, de sua produtividade bioló gica e suas formas de aproveitamento gera novos objetos de 206 pesquisa, mas não novos objetos teóricos ou métodos de ex perimentação para a fitologia, a biotecnologia, a toxicologia ou a tecnologia de processos. Entretanto, na análise das causas, dos fatores condicio- nantes e das vias não técnicas de resolução da problemática ambiental, articulam-se processos de diversas ordens de ma terialidade que remetem à reconstrução do conhecimento. Sob esta perspectiva, a problemática ambiental requer a cria ção de um corpo complexo e integrado de conhecimentos so bre os processos naturais e sociais que intervém em sua gêne se e em sua resolução. Neste sentido, o potencial ambiental de cada região integra as condições ecológicas, culturais e tecnológicas que reorganizam a produção na perspectiva de um desenvolvimento sustentável. A construção desta racionalidade exige a transformação dos paradigmas científicos tradicionais e a produção de no vos conhecimentos, o diálogo, hibridação e integração de sa beres, assim como a colaboração dediferentes especialida des, propondo a organização interdisciplinar do conhecimen to para o desenvolvimento sustentável. Isso gera novas pers pectivas epistemológicas e métodos para a produção de co nhecimentos, assim como para a integração prática de diver sos saberes no tratamento de um problema comum (Apostei et al., 1975). Traçam-se assim novas estratégias teóricas para a produção científica e a inovação tecnológica, orientadas pe los problemas da gestão ambiental e pelas perspectivas do de senvolvimento sustentável (Leff [coord.], 1986, 2000). A necessidade de compreender a complexidade da pro blemática ambiental, bem como os múltiplos processos que a caracterizam, provocou um questionamento da fragmenta ção e da compartimentalização de um saber disciplinar, inca paz de explicar e resolver esta problemática. Mas a retotaliza- ção do saber que a problemática ambiental requer não é a soma nem a integração dos conhecimentos disciplinares her dados. A inter e transdisciplinaridade que o saber ambiental 207 exige não é a busca de um paradigma globalizante do conhe cimento, a organização sistêmica do saber e a uniformização conceituai por meio de uma metalinguagem interdisciplinar (Leff, 1981). Além do propósito de gerar um paradigma onia- brangente, de ecologizar o saber ou de formular uma metodo logia geral para o desenvolvimento do conhecimento, o saber ambiental problematiza o conhecimento, mas sem desconhe cer a especificidade das diferentes ciências historicamente constituídas, ideologicamente legitimadas e socialmente ins titucionalizadas (Leff, 1986). O que a problemática ambiental propõe às ciências - quanto à produção de conhecimentos - e às universidades - quanto à formação de recursos humanos - transcende a cria ção de um espaço acadêmico formado pela integração das disciplinas tradicionais ou a geração de um campo homogê neo e totalizador das “ciências ambientais”, de valor univer sal. A incorporação do saber ambiental às práticas científicas e docentes vai além de uma exigência de atualização dos cur rículos universitários a partir da internalização de uma “di mensão” ambiental e de um pensamento ecológico, generali- zável aos diferentes paradigmas do conhecimento. O saber ambiental não nasce de uma reorganização sistê mica dos conhecimentos atuais. Esta se gera através da trans formação de um conjunto de paradigmas do conhecimento e de formações ideológicas, a partir de uma problemática so cial que os questiona e os ultrapassa. O saber ambiental se constrói por um conjunto de processos de natureza diferente, que gera sentidos culturais e projetos políticos diversos, que não cabem num modelo global, por holístico e aberto que ele seja. A lógica dos processos ecológicos, culturais e tecnoló gicos envolvidos está integrada com a racionalidade das for mações teóricas, das organizações produtivas, das estruturas institucionais e de interesses sociais diversos, onde se mobili za e se concretiza o potencial para a construção de uma racio nalidade ambiental que conduz as práticas do desenvolvi mento sustentável. 208 A transformação do conhecimento induzida pelo saber ambiental é um processo mais complexo do que o da intema- lização de uma nova “dimensão” no corpo das diferentes dis ciplinas científicas e técnicas estabelecidas. Cada ciência, cada disciplina impõe suas condições teóricas e institucio nais para a produção e intemalização de um saber ambiental, num processo desigual e heterogêneo do qual emergem as disciplinas ambientais. Algumas formações teóricas são mais dúcteis à mestiçagem e ao amálgama de saberes, como o mostram os atuais paradigmas das disciplinas antropológicas que incorporaram os conceitos e métodos das análises ener géticas e ecossistêmicas nos estudos da organização produti va e das sociedades tradicionais (Vessuri, 1986). Outros para digmas, como os da economia, apresentam estruturas concei tuais mais resistentes à incorporação dos processos ecológi cos, o longo prazo, os valores humanos e as significações cul turais no cálculo econômico (Gutman, 1986). A produção de um saber ambiental, assim como sua incor poração nos programas universitários de pesquisa e docência são processos atravessados por relações de poder. A elabora ção de programas de educação ambiental se sustenta numa análise crítica das condições de assimilação do saber ambien tal dentro dos paradigmas legitimados do conhecimento, na emer gência de novos conceitos e métodos das disciplinas ambien tais e na elaboração de métodos pedagógicos para a transmis são do saber ambiental. Nestes processos se elaboram os con teúdos curriculares de novas carreiras ou especializações am bientais e se esboçam os métodos para seu ensino. Interdisciplinaridade e educação ambiental A problemática ambiental irrompeu com a emergência de uma complexidade crescente dos problemas do desenvolvi mento, exigindo a integração de diversas disciplinas científí- 209 cas e técnicas para sua explicação e sua resolução. Desta for ma, propôs-se a reconstrução do conhecimento disciplinar a partir de enfoques holísticos e aproximações sistêmicas para a formação de novas habilidades profissionais. A interdisci- plinaridade no terreno educacional surge como um projeto pedagógico “com o propósito de treinar inteligências capazes de apreender, quase na forma de uma percepção gestáltica, a unidade do real” (Boisot, 1975). Desde a conferência de Estocolmo sobre o Meio Ambi ente Humano, celebrada em 1972, a educação ambiental foi apresentada como um meio prioritário de alcançar os fins de um desenvolvimento sustentável. Depois, a Conferência Inter- governamental de Educação Ambiental, celebrada em Tbilisi, em 1977, estabeleceu os princípios gerais que deviam orien tar os esforços de uma educação relativa ao ambiente. A edu cação ambiental entende-se, portanto, como a formação de uma consciência fundada numa “nova ética que deverá resis tir à exploração, ao desperdício e à exaltação da produtivida de concebida como um fim em si mesma”. Este processo de formação e conscientização não só deve sensibilizar, mas modificar as atitudes e fazer adquirir os novos enfoques e conhecimentos [que] a inter- disciplinaridade exige, isto é, a cooperação entre as disci plinas tradicionais indispensáveis para apreender a complexidade dos problemas do ambiente e para a formu lação de suas soluções (Unesco, 1980: 8-19)3 . Não obstante a validade do propósito interdisciplinar no campo do saber ambiental, avançou-se pouco desde seus prin cípios gerais para novas formas institucionais de organização 3. “A educação relativa ao ambiente (...) tem como meta permitir ao ser humano compreen der a natureza complexa do ambiente, tal como ele resulta da interação dc seus aspec tos biológicos, fisicos, sociais, econômicos c culturais. (...) Em conseqüência (...) de verá ofcrcccr (...) os meios para interpretar a interdependência desses diversos ele mentos no espaço e no tempo, para favorecer uma utilização mais sensata c prudente dos recursos do universo para a satisfação das necessidades da humanidade" (Uncs- co/Uncp, 1985: 12). 210 e avaliação da pesquisa científica, novos métodos pedagógi cos que incorporem o pensamento da complexidade e o saber ambiental em novos programas educacionais orientados para o desenvolvimento sustentável, fundado numa racionalidade ambiental. A experiência mostrou a rigidez institucional das universidades, onde o conhecimento continua compartimen- tado em campos disciplinares, em centros, faculdades, insti tutos e departamentos. O saber ambiental é mais do que um conhecimento com posto pelo amálgama dos saberes atuais ou pela conjunção das diversas disciplinas para resolver um problema concreto. O saber ambiental questiona os paradigmas dominantes do conhecimento para construir novos objetos interdisciplinares de estudo. Esta prática teórica se dá dentro de cada ciência e é este conhecimento transformadoque deve ser incorporado nos novos programas educacionais. Neste sentido, a interdis- ciplinaridade na produção de conhecimentos e nos processos educacionais enfrenta obstáculos epistemológicos, metodo lógicos e institucionais. Longe disto, a interdisciplinaridade na educação relativa ao ambiente se tem apresentado como uma visão meramente instrumental de aplicações do conhe cimento, como o propósito de desenvolver uma pedagogia de projetos interdisciplinares com vistas a realizar uma ação específica concernente ao ambiente. Neste momento, as diferentes disciplinas tradi cionais não existem mais por si mesmas (...) elas se conver tem em instrumentos indispensáveis à realização desse projeto. O ponto de partida não é mais a disciplina mas um projeto educativo baseado na ação a realizar frente ao am biente, propondo soluções alternativas a um problema, ou chegando a um ordenamento do espaço, vinculado com um conjunto de objetivos a alcançar (...). Em função das neces sidades inerentes ao projeto [as disciplinas] juntam seus esforços para estudar o mesmo fenômeno através de óticas diferentes e complementares (Unesco/Unep, 1985: 15). 211 A interdisciplinaridade na educação ambiental orientou-se por um fim prático, perdendo de vista as bases teóricas e epis- temológicas que estabelecem as condições para a articulação de saberes orientada por uma racionalidade ambiental4. Po rém, as ciências não se submetem sem conflitos e resistências a um projeto de integração proveniente de uma demanda ex terna, seja por um projeto educativo ou pela necessidade de resolver um problema prático. Sua possível integração de pende de sua capacidade diferenciada para assimilar um sa ber ambiental complexo numa perspectiva comum de análi se. Em muitos casos, a cooperação interdisciplinar transcen de a integração dos saberes disponíveis, induzindo um pro cesso de reorganização de conhecimentos, métodos e técni cas de diversas disciplinas, que transformam seus conceitos e abrem novos campos de aplicação. Abre-se aí uma diversidade de métodos interdisciplina res, dentro da especificidade teórica das disciplinas e da espe cificidade ontológica dos processos que caracterizam uma problemática ambiental5. Este princípio epistemológico e me todológico é necessário para evitar todo reducionismo das complexas causas desta problemática, como também para orientar os processos de pesquisa e as ações sociais para a construção de uma racionalidade ambiental, para caminhar rumo a um desenvolvimento sustentável. 4. Para uma análise crítica do projeto interdisciplinar, a partir dc uma perspectiva epistemo- lógica crítica e da perspectiva da América Latina, cf. Follari, 1982 c 1990; Leff (comp.) 1977; Leff, 1981, 1986, 2001. 5. “As disciplinas e campos que devem conjugar-se possuem, cada qual, um corpus distin tivo dc conhecimentos, um complexo característico dc estruturas teóricas c estratégias heurísticas, c usam uma variedade dc métodos c técnicas para desenvolver c expandir esse corpo dc conhecimentos c dc explicações estruturais que constitui efetivamente a disciplina, com seus pressupostos filosóficos [ontológicos] distintivos c inclusive con- flitivos. E claro que estes traços que caracterizam as várias disciplinas não têm ordens dc importância iguais c constantes. Não existe um caminho único para a atividade in terdisciplinar bem-sucedida, não há uma solução única para conseguir uma integração interdisciplinar” (Moss, 1986: 75-76). 212 Os conhecimentos e métodos necessários para compre ender e resolver uma problemática ambiental dependem das condições geográficas, ecológicas, políticas, econômicas e culturais que constituem o entorno no qual se inserem as uni versidades para formar profissionais competentes. É neste ambiente que repercute a aplicação dos conhecimentos gera dos nas práticas sociais e na organização produtiva de dife rentes comunidades. A partir das diferentes perspectivas con ceituais e contextos sociais, nos quais se inscreve a educação ambiental, podem ser definidos diversos graus de incorpora ção da dimensão ambiental6. A reestruturação de conteúdos de diferentes matérias e a reorientação dos temas de estudo das disciplinas tradicionais implicam um processo de produção e transformação do co nhecimento para a elaboração de conteúdos ambientais de di versas matérias, carreiras e pós-graduações. Nesta perspecti va, a educação relativa ao ambiente implica mudanças nos conteúdos educacionais que vão além de uma melhor inte gração das diversas disciplinas contidas nos programas curri culares tradicionais. Os objetivos da educação ambiental não se alcançam com o ensino de métodos sistêmicos, com uma prática pedagógica interdisciplinar ou com a incorporação de uma matéria de caráter integrador - a ecologia - dentro dos programas existentes. A educação ambiental exige a criação de um saber ambiental e sua assimilação transformadora às disciplinas que deverão gerar os conteúdos concretos de no vas temáticas ambientais. 6. Estas “modalidades vão da simples introdução dc noções sobre o ambiente nas discipli nas tradicionais à total integração delas cm tomo dc um projeto dc ação comunitária so bre o ambiente, passando pelas convergências dc disciplinas que apresentam algumas afinidades conceituais c metodológicas. (...) Entre as modalidades dc incorporação da educação relativa ao ambiente (...) convem assinalar a reorientação dos temas de estu do das disciplinas tradicionais. (...) Entretanto, a via mais recomendável parece ser a de revisar c reestruturar o conjunto de conteúdos dc diferentes matérias (...). Enfim, o mé todo mais complexo, mas talvez também o mais satisfatório, consiste cm romper os compartimentos tradicionais e integrar o conteúdo de diversas matérias do programa num marco ligado aos problemas principais do ambiente” (Unesco, 1980: 39-40). 213 O saber ambiental nas ciências naturais, tecnológicas e sociais A questão ambiental não é apenas um problema ecológi co ou técnico. Sua solução não se reduz a incorporar normas ecológicas aos agentes econômicos ou dispositivos tecnoló gicos aos processos produtivos. O saber ambiental se consti tui a partir de uma nova percepção das relações entre proces sos naturais, tecnológicos e sociais, na qual estes últimos ocupam um lugar preponderante em sua gênese e em suas vias de resolução. A produção e a incorporação do saber ambiental no pro cesso de desenvolvimento e nas práticas acadêmicas vincu- la-se aos interesses e comportamentos de diversos atores so ciais (empresários, funcionários, planejadores, produtores e consumidores, cientistas e tecnólogos, comunidades locais e educadores) que incidem na percepção e uso dos recursos reconhecidos e potenciais, na organização da produção e na inovação de padrões tecnológicos para sua exploração e transformação, bem como nos hábitos de consumo da socie dade. Assim, a consciência ambiental promove ações e mo biliza forças sociais que propiciam o aproveitamento sus tentável dos recursos e a redução dos níveis de contamina ção, melhorando as condições ambientais e a qualidade de vida da população. A intemalização do saber ambiental nas disciplinas natu rais, tecnológicas e sociais é um processo desigual. As ciên cias sociais são talvez as mais resistentes, pois nelas se incor poraram os paradigmas teóricos que, partindo de uma filoso fia natural e de uma praxeologia mecanicista, cristalizaram nos princípios do direito privado, do contrato social, a racio nalidade econômica e uma razão tecnológica, legitimando as estruturas de poder, os arranjos institucionais e a organização 214 produtiva que conformaram a racionalidade social contra na- tura da civilização moderna. A incorporação do saber ambiental às ciências naturais opera-se como um avanço “mais orgânico” no desenvolvi mento de seus paradigmas tradicionais (os desenvolvimentos da ecologia no terreno da biologia). Por sua vez, as disciplipara a morte entrópica. A racionalidade econômica desconhece toda lei de conservação e reprodução social para dar curso a uma degra dação do sistema que transcende toda norma, referência e sentido para controlá-lo. Se as ecosofias, a ecologia social e o ecodesenvolvimento tentaram dar novas bases morais e pro dutivas a um desenvolvimento alternativo, o discurso do neo- liberalismo ambiental opera como uma estratégia fatal que gera uma inércia cega, uma precipitação para a catástrofe. A fatalidade de nosso tempo se expressa na negação das causas da crise socioambiental e nessa obsessão pelo cresci mento que se manifesta na ultrapassagem dos fins da raciona lidade econômica. Somos governados não tanto pelo crescimento, mas por crescimentos. Nossa sociedade está fundada na prolifera ção, num crescimento que prossegue apesar de não poder ser medido por nenhum objetivo claro. Uma sociedade ex- crescente cujo desenvolvimento é incontrolável, que ocor- 23 re sem considerar sua autodefinição, onde a acumulação de efeitos anda a par com o desaparecimento das causas. O re sultado é um congestionamento sistêmico bruto e uma dis- função causada por (...) um excesso de imperativos funcio nais, por uma espécie de saturação. As próprias causas ten dem a desaparecer, a tom ar-se indecifráveis, gerando a in tensificação de processos que operam no vazio. Na medi da em que existe uma disfunção do sistema, um desvio das leis conhecidas que governam sua operação, existe sempre a perspectiva de transcender o problema. Mas quando o sistema se precipita sobre seus pressupostos básicos, ul trapassando seus próprios fins a ponto de não poder en contrar nenhum remédio, então não estamos diante de uma crise mas de uma catástrofe... O que chamamos crise é de fato a antecipação de sua inércia absoluta (Baudrillard, 1993:31,32). A retórica do desenvolvimento sustentável converteu o sentido crítico do conceito de ambiente numa proclamação de políticas neoliberais que nos levariam aos objetivos do equilí brio ecológico e da justiça social por uma via mais eficaz: o crescimento econômico orientado pelo livre mercado. Este discurso promete alcançar seu propósito sem uma fundamen tação sobre a capacidade do mercado de dar o justo valor à na tureza e à cultura; de internalizar as extemalidades ambientais e dissolver as desigualdades sociais; de reverter as leis da en tropia e atualizar as preferências das futuras gerações. Isto leva a fazer a pergunta sobre a possível sustentabili dade do capitalismo como um sistema que tem o irresistível impulso para o crescimento, mas que é incapaz de deter a de gradação entrópica que ele gera ( 0 ’Connor, 1994). Diante da crise ambiental, a racionalidade econômica resiste à mudan ça, induzindo com o discurso da sustentabilidade uma estra tégia de simulação e perversão do pensamento ambiental. O desenvolvimento sustentável converteu-se num trompe d 'oeil que distorce a percepção das coisas, burla a razão crítica e lança à deriva nossa atuação no mundo. 24 O discurso do desenvolvimento sustentável vai engolin do o ambiente como conceito que orienta a construção de urna nova racionalidade social. A estratégia discursiva da globalização gera uma metástase do pensamento crítico, dis solvendo a contradição, a oposição e a alteridade, a diferença e a alternativa para oferecer-nos em seus excrementos retóri cos uma re-visão do mundo como expressão do capital. A realidade já não é só refuncionalizada para reintegrar as ex- ternalidades de uma racionalidade econômica que a rechaça. Além da possível valorização e reintegração do ambiente, este é recodificado como elemento do capital globalizado e da ecologia generalizada. A reintegração da economia ao sistema mais amplo da ecologia dar-se-ia pela homologia de sua raiz etimológica: oikos. Mas nesta operação analógica desconhecem-se os pa radigmas diferenciados de conhecimento nos quais se desen volveu o saber sobre a vida e a produção. Desta forma, os po tenciais da natureza são reduzidos à sua valorização no mer cado como capital natural; o trabalho, os princípios éticos, os valores culturais, as potencialidades do homem e sua capaci dade inventiva são reconvertidos em formas funcionais de um capital humano. Tudo pode ser reduzido a um valor de mercado, representável nos códigos do capital. O discurso do desenvolvimento sustentável inscreve-se assim numa “política da representação” (Escobar, 1995), que simplifica a complexidade dos processos naturais e destrói as identidades culturais para assimilá-las a uma lógica, a uma ra zão, a uma estratégia de poder para a apropriação da natureza como meio de produção e fonte de riqueza. Neste sentido, as estratégias de sedução e simulação do discurso da sustentabili dade constituem o mecanismo extra-econômico por excelên cia da pós-modemidade para a reintegração do ser humano e da natureza à racionalidade do capital ( 0 ’Connor, 1993), ge rando formas mais sofisticadas, sutis e eficazes para a explora ção do trabalho e a apropriação dos recursos naturais, que a aplicação da violência direta e a lógica pura do mercado. O capital, em sua fase ecológica, está passando das for mas tradicionais de apropriação primitiva e selvagem dos re cursos das comunidades do Terceiro Mundo, dos mecanis mos econômicos do intercâmbio desigual entre matérias-pri mas dos países subdesenvolvidos e dos produtos tecnológi cos do Primeiro Mundo, a uma nova estratégia que legitima a apropriação econômica dos recursos naturais através dos di reitos privados de propriedade intelectual. Esta estratégia eco nômica é complementada com uma operação simbólica que define a biodiversidade como patrimônio comum da humani dade e recodifica as comunidades do Terceiro Mundo como parte do capital humano do planeta. As estratégias fatais do neoliberalismo ambiental resul tam de seu pecado capital: sua gula infinita e incontrolável. O discurso da globalização aparece como um olhar glutão que engole o planeta e o mundo, mais do que como uma visão ho- lística capaz de integrar os potenciais sinergéticos da nature za e os sentidos criativos da diversidade cultural. Esta opera ção simbólica submete todas as ordens do ser aos ditames de uma racionalidade globalizante e homogeneizante. Desta for ma, prepara as condições ideológicas para a capitalização da natureza e a redução do ambiente à razão econômica. O discurso da sustentabilidade busca reconciliar os con trários da dialética do desenvolvimento: o meio ambiente e o crescimento econômico. Este mecanismo ideológico não sig nifica apenas uma volta de parafuso a mais da racionalidade econômica, mas opera uma volta e um torcimento da razão; seu intuito não é internalizar as condições ecológicas da pro dução, mas proclamar o crescimento econômico como um processo sustentável, firmado nos mecanismos do livre mer- Í2 6 , y ,/r7 H cado como meio eficaz de assegurar o equilíbrio ecológico e a igualdade social. Por sua vez, a tecnologia se encarregaria de reverter os efeitos da degradação ambiental nos processos de produção, distribuição e consumo de mercadorias. A tecnologia, que contribuiu para o esgotamento dos recursos, resolveria o pro blema da escassez global, fazendo descansar a produção num manejo indiferenciado de matéria e energia; os demônios da morte entrópica seriam exorcizados pela eficiência tecnoló gica. Os sistemas ecológicos reciclariam os rejeitos; a biotec nologia inscreveria a vida no campo da produção; o ordena mento ecológico permitiria relocalizar e dispersar os proces sos produtivos, estendendo o suporte territorial para um maior crescimento econômico. A vontade de manter um crescimen to econômico sustentado e de desmaterializar a produção provocam um salto mortal para o vazio: o sistema produtivo recicla os rejeitos em suas próprias entranhas; a máquina anu la a lei natural que a cria. O desenvolvimento sustentável con verte-se na nova pedra filosofalnas tecnológicas desempenham uma função instrumental dentro da racionalidade econômica, e seus desenvolvimentos para adaptar-se aos objetivos do desenvolvimento sustentá vel não transtornam os princípios físicos, biológicos, mecâ nicos e termodinâmicos nos quais se fundam. A incorporação de normas ecológicas e a internalização de custos ambientais ao projeto de equipamentos e de processos produtivos modi fica os projetos tecnológicos para gerar tecnologias mais lim pas e melhor adaptadas aos sistemas ecológicos. A inovação tecnológica orientada para o desenvolvimento sustentável abre assim novos campos de pesquisa (biotecnologia, tecno logia ecológica), mas não modifica as leis físicas e biológicas nas quais se fundam os processos tecnológicos. Entretanto, a construção de uma racionalidade ambiental implica novas formas de organização social e produtiva, va lores culturais, formas de significação e relações de poder que impõem a transformação das disciplinas sociais que ex plicam os processos ideológicos e o comportamento dos ato res sociais que participam nestes processos. Desta maneira, os movimentos sociais em torno de seus direitos culturais e da apropriação dos recursos naturais estão gerando novos princípios jurídicos; a internalização dos custos ambientais, a valorização dos recursos naturais e as considerações a longo prazo reclamam um novo paradigma econômico. A constru ção de uma racionalidade ambiental implica pois a descons- trução da concepção mecanicista do processo econômico, que se traduziu em instrumento de exploração dos recursos naturais e de controle social. 215 A problemática ambiental gera novas perspectivas para a análise sociológica dos movimentos sociais: sobre os interes ses e valores que mobilizam uma tomada de consciência so bre a exploração excessiva dos recursos naturais, a degrada ção ambiental, a perda de valores culturais e a destruição de práticas tradicionais; sobre a desigual distribuição dos custos ecológicos do crescimento econômico e a participação social na gestão dos recursos das comunidades; sobre os processos de inovação tecnológica e organização produtiva para a auto- gestão econômica de seus recursos; sobre a reestruturação do Estado e a participação dos cidadãos na organização institu cional e no processo de tomada de decisões. A incorporação do saber ambiental - constituído por es tes processos sociais - às disciplinas naturais e tecnológicas vai além da internalização de critérios ecológicos na análise das relações sociedade-natureza e nos estudos das disciplinas sociais, geográficas, etnológicas e antropológicas (geografia humana, antropologia ecológica, ecologia humana, sociobio- logia, etnoecologia, etc.). O saber ambiental questiona por tanto os reducionismos ecologistas e energetistas, como tam bém o determinismo biológico e geográfico destas discipli nas; partindo daí gera estudos mais complexos e concretos sobre a articulação dos processos que incidem num contexto social e num espaço geográfico, integrando as condições so ciais, políticas, econômicas e culturais aos fenômenos natu rais (ecológicos, geofísicos) que incidem nos processos pro dutivos de uma formação social. A incorporação destes aspectos sociológicos do saber ambiental às disciplinas tecnológicas introduz novas consi derações para a avaliação do impacto ambiental, para a loca lização industrial, o projeto urbano, o desenvolvimento tec nológico e a produção agrícola. Estes critérios ambientais re- orientam a inovação dos processos produtivos para sistemas tecnológicos apropriados, que integram as condições ecoló 216 gicas de cada região, bem como os valores culturais e as con dições de assimilação e apropriação destas tecnologias pelos produtores diretos e pelas comunidades locais. Assim, os processos tecnológicos se orientam para a conservação e de senvolvimento do potencial ambiental de cada região, para satisfazer as necessidades básicas e melhorar a qualidade de vida de seus habitantes. Deste modo, a construção de uma racionalidade ambien tal implica a incorporação dos critérios sociológicos do saber ambiental na formação de economistas, ecólogos, tecnólo gos, engenheiros, empresários e administradores públicos, a fim de que estes critérios se convertam em princípios norma tivos de sua prática profissional. Incorporação do saber ambiental no nível universitário A ambientalização da educação é um processo mais com plexo do que a ensamblagem de disciplinas dispersas, que sua integração sistêmica e a colaboração de especialistas proveni entes de diversos campos do conhecimento para tratar (pesqui sar, ensinar) um problema em comum. A produção e a incor poração do saber ambiental nas universidades se dá num pro cesso de abertura dos paradigmas teóricos, das barreiras insti tucionais e dos interesses disciplinares, onde se demarcam as práticas acadêmicas dos centros de educação superior. Esta transgressão da ordem universitária não só requer conhecimento dos obstáculos a salvar para a reorganização dos saberes constituídos, mas também uma reflexão sobre a natureza do saber ambiental que se pretende inscrever em suas práticas de pesquisa e docência, sobretudo no âmbito das ciências sociais (Leff [coord.], 1994). A incorporação do saber ambiental na formação profis sional requer a elaboração de novos conteúdos curriculares de cursos, carreiras e especialidades. A formação numa disci 217 plina ambiental implica a construção e legitimação desse sa ber, sua transmissão na aula e sua prática no exercício profis sional. A formação do saber ambiental, sua dispersão temáti ca e a especificidade de suas especializações depende das transformações possíveis dos paradigmas científicos tradi cionais onde se insere o saber ambiental. A orientação da for mação de habilidades profissionais deve considerar o con texto geográfico, cultural e político no qual deverão exer cer-se, assim como as problemáticas ambientais particulares às quais deverão responder estas capacidades. Nestas condi ções surge o saber que deverá plasmar-se em conteúdos curri culares, estratégias de pesquisa e métodos pedagógicos para a formação ambiental. A formação do saber ambiental, sob esta visão crítica e prospectiva, não alcançou uma maturidade suficiente para permear os paradigmas científicos e as estruturas acadêmicas dominantes das universidades, sobretudo a partir da perspecti va histórica, política, geográfica e cultural dos países do Tercei ro Mundo. Se é que existe um cúmulo de saberes práticos, ain da não se criou um novo paradigma, como um conhecimento positivo para a construção e operação de uma racionalidade produtiva que incorpore o potencial ambiental ao desenvolvi mento das forças produtivas e às identidades culturais de nos sas sociedades. Pelo que dissemos, dentro da necessária rela ção que deve existir entre a pesquisa e a docência para a incor poração do saber ambiental na vida acadêmica, a prática teóri ca é fundamental para o processo de formação do saber am biental. As práticas docentes dependem da produção destes novos conhecimentos para a elaboração de conteúdos curri culares que incorporem os novos paradigmas ambientais. A construção do saber ambiental passa pela constituição de seu conceito e de um espaço para sua objetivação prática. Sua formação se opera através de relações de poder que obs- taculizam ou promovem a gestação, emergência e realização de seu potencial transformador das relações entre as forma- 218 ões sociais e seu entorno natural. Este saber ambiental nasce de um processo de transformação do conhecimento que se es tabelece em relação direta com suas condições de aplicação. A racionalidade ambiental, como uma estratégia alternativa de desenvolvimento, articula assim a esfera de racionalidade teórica com a esfera de racionalidade instrumental (técnica, operativa) de seus princípios. E um processo social, síntese de teoria e práxis,que asseguraria o perpetuum mobile do crescimento econômico. O discurso do desenvolvimento sustentável pressupõe que a economia entrou numa fase de pós-escassez, isto é, que a produção, como base da vida social, foi superada pela moder nidade. Esta estratégia discursiva desloca a valorização dos custos ambientais para a capitalização do mundo como forma abstrata e norma generalizada da sociedade. Este simula cro da ordem econômica pretende ter libertado o homem das cadeias da produção, reintegrando-o à ordem simbólica (Baudrillard, 1980). Se é certo que o processo de transição para a modernidade gerou estas novas formas de sujeição ideológica nas estraté gias discursivas da globalização, nem a pobreza extrema, nem a não satisfação das necessidades básicas, nem a deterioração 27 das condições de vida das maiorias permitem supor que foi superada a produção como condição de vida. A operação simbólica do discurso do desenvolvimento sustentável fun ciona como uma ideologia para legitimar as novas formas de apropriação da natureza às quais já não só poderão opor-se os direitos tradicionais pela terra, pelo trabalho ou pela cultura. A resistência à globalização implica a necessidade de desati var o poder de simulação e perversão das estratégias desta nova ordem econômica. Para isto é necessário construir uma racionalidade social e produtiva que, reconhecendo o limite como condição de sustentabilidade, funde a produção nos po tenciais da natureza e da cultura. O discurso do desenvolvimento sustentável inscreve as políticas ambientais nos ajustes da economia neoliberal para solucionar os processos de degradação ambiental e o uso ra cional dos recursos ambientais; ao mesmo tempo, responde à necessidade de legitimar a economia de mercado que resiste à explosão, à qual está predestinada por sua própria “ingravi- dez” mecanicista. Assim, precipitamo-nos para o futuro sem : ̂ uma perspectiva clara para desconstruir a ordem antiecológi- ca herdada da racionalidade econômica e para caminhar para uma nova ordem social, orientada pelos princípios de susten tabilidade ecológica, democracia participativa e racionalida de ambiental (Leff, 1994a). O discurso oficial do desenvolvimento sustentável pene trou nas políticas ambientais e em suas estratégias de partici pação social. Dali convida diferentes grupos de cidadãos (em presários, acadêmicos, trabalhadores, indígenas, trabalhado res rurais) a somar esforços para construir um futuro comum. Esta operação de cooperação busca integrar os diversos ato res do desenvolvimento sustentável, mas dissimula seus inte resses diversos num olhar especular que converge para a re- presentatividade universal de todo ente no reflexo do argên- teo capital. Dissolve-se assim a possibilidade de divergir di- 28 ante do propósito de alcançar um crescimento sustentável, uma vez que este se define, em boa linguagem neoclássica, como a contribuição igualitária do valor que o capital huma no adquire no mercado como fator produtivo. A cidadania global emerge da democracia representativa, não para convo car o cidadão integral, mas suas funções sociais, fragmenta das pela racionalidade econômica: como consumidor, legis lador, intelectual, religioso, educador. O neoliberalismo ambiental busca debilitar as resistências da cultura e da natureza para subsumi-las dentro da lógica do capital. Seu propósito é legitimar o espólio dos recursos natu rais e culturais das populações dentro de um esquema combi nado, globalizado, onde seja possível dirimir os conflitos num campo neutro. Através deste olhar especular (especula tivo) pretende-se que as populações indígenas valorizem seus recursos naturais e culturais (sua biodiversidade e seus saberes tradicionais) como capital natural, que aceitem uma compensação econômica pela cessão desse patrimônio às empresas transnacionais de biotecnologia. Seriam estas as ins tâncias encarregadas de administrar racionalmente os “bens comuns”, em benefício do equilíbrio ecológico, do bem-estar da humanidade atual e das gerações futuras. Diante destas estratégias de apropriação econômica e simbólica da natureza e da cultura, emerge hoje uma ética ambiental que propõe a revalorização da vida do ser humano. Esta ética se expressa nas lutas de resistência das comunida des indígenas e camponesas a serem convertidas em reservas etnológicas, a ceder seu patrimônio de recursos naturais e a renunciar à sua identidade cultural. Esta reivindicação, que é hoje da humanidade inteira, já foi expressa em 1854 pelo che fe Seattle em resposta à oferta do Grande Chefe Branco de Washington para comprar as terras dos índios peles-verme- lhas e transferi-los para uma reserva: 29 Como se pode comprar ou vender o firmamento ou o calor da terra? Se não somos donos da frescura do ar nem do bri lho das águas, como poderiam vocês comprá-los? Cada parcela desta terra é sagrada para o meu povo. Cada flores ta reluzente de pinheiros, cada grão de areia nas praias, cada gota de orvalho nos bosques fechados, cada outeiro e até o som de cada inseto é sagrado à memória e ao passado do meu povo. A seiva que circula pelas veias das árvores leva consigo as memórias dos peles-vermelhas. Somos parte da terra e ela é parte de nós. As flores perfumadas são nossas irmãs; o veado, o cavalo, a águia, todos eles são nos sos irmãos. Os penhascos escarpados, os prados úmidos, o calor do corpo do cavalo e do homem, todos pertencemos à mesma família. (...) A água cristalina que corre nos rios e regatos não é simplesmente água, mas também representa o sangue de nossos antepassados. O murmúrio da água é a voz do pai de meu pai (...) e cada reflexo fantasmagórico nas claras águas dos lagos conta os fatos e memórias das vi das de nossa gente. Sabemos que o homem branco não compreende nosso modo de vida. Ele não sabe distinguir entre um pedaço de terra e outro, pois é um estranho que chega de noite e toma da terra o que precisa. A terra não é sua irmã, mas sua ini miga, e uma vez conquistada, segue seu caminho, deixan do para trás a tumba de seus pais. Seqüestra a terra, arranca-a de seus filhos. Pouco lhe importa. Tanto a tumba de seus pais como o patrimônio de seus filhos são esqueci dos. Trata sua mãe, a terra, e seu irmão, o firmamento, como objetos que se compram, se exploram e se vendem como ovelhas ou como contas coloridas. Seu apetite devorará a terra deixando atrás de si só um deserto. Que seria do homem sem os animais? Se todos fossem ex terminados, o homem também morreria de uma grande so lidão espiritual. Porque o que acontece com os animais também acontecerá com o homem. Tudo está entrelaçado. Tudo o que acontece à terra, acontecerá aos filhos da terra. O homem não teceu a trama da vida, ele é apenas um fio. Mas vocês caminharão para a destruição, rodeados de gló ria, inspirados na força do Deus que os trouxe a esta terra e que por algum desígnio especial lhes deu domínio sobre ela 30 e sobre os peles-vermelhas. Onde está a floresta? Onde está a águia? Termina a vida e começa a sobrevivência. Também hoje os processos de emancipação dos grupos indígenas estão gerando diversas manifestações de resistên cia diante das políticas da globalização e da capitalização da vida; é daí que emergem as estratégias das comunidades para auto-administrar seu patrimônio de recursos naturais e cultu rais. Está havendo um confronto de interesses para assimilar as condições de sustentabilidade aos mecanismos do merca do diante de um processo político de reapropriação social da natureza. Este movimento de resistência se articula à constru ção de um paradigma alternativo de sustentabilidade, no qual os recursos ambientais se convertem em potenciais capazes de reconstruir o processo econômico dentro de uma nova ra cionalidade produtiva, propondo um projeto social baseado na produtividade da natureza, nas autonomias culturais e na democracia participativa (Leff, 1994a). Neste sentido,o conceito de ambiente se defronta com as estratégias fatais da globalização. O princípio de sustentabili dade surge como uma resposta à fratura da razão modemiza- dora e como uma condição para construir uma nova raciona lidade produtiva, fundada no potencial ecológico e em novos sentidos de civilização a partir da diversidade cultural do gê nero humano. Trata-se da reapropriação da natureza e da re- invenção do mundo; não só de “um mundo no qual caibam muitos mundos”2, mas de um mundo conformado por uma di versidade de mundosv abrindo o cerco da ordem econômi- co-ecológica globalizada. 2. Formulação do subcomandantc Marcos c expressão do “sonho zapatista” (Lc Bot, 1997). 31 2 - DÍVIDA FINANCEIRA, DÍVIDA ECOLÓGICA, DÍVIDA DA RAZÃO* As dívidas, seus devedores, seus danos N a perspectiva da sustentabilidade não há uma, mas três dívidas. Todas elas surgem do mesmo pecado original, mas levam a diferentes formas de redimi-lo, de saldar o endivida do como contrato assumido, e a diferentes formas de tomar posição como devedores do perdido. Isto abre um rombo que se bifurca entre a dor da morte e a luta pela vida, para recupe rar o que não devia ter sido alienado - os recursos e as mentes - a via para deixar de ser devedores permanentes do sistema, para bater-se em duelo para recuperar o próprio. Daí três dívidas e três posições diante da dívida: a) A dívida financeira: assumida ou não assumida, pa gável ou não pagável, negociável, refinanciável. b) A dívida ecológica: incomensurável, mas capaz de ser revalorizada, internalizada, redistribuída. c) A dívida da razão: que abre o caminho do dessujeita- mento, da ressignificação, da construção de um de senvolvimento alternativo, fundado numa nova ra cionalidade produtiva. * Texto redigido com base na exposição feita na conferência “A dívida externa c o fim do mi lênio”, organizada pelo Parlamento Latino-Americano c pelo Congresso da República da Venezuela, de 10 a 13 de julho de 1997. A dívida financeira e o jogo da globalização econômica A dívida financeira aparece como uma perda no jogo do sistema econômico globalizado. Isto levou a uma crise que afeta as condições de produção sustentável dos países subde senvolvidos, cujos recursos são dessangrados pelos condutos de uma dívida contraída com altas taxas de juros. Na aceitação das regras do jogo do mercado financeiro introduzem-se furtivamente as condições de desigualdade, mas sem indício de falha legal. As condições foram estabele cidas. Apostou-se e perdeu-se. O juro composto decompôs nosso sistema econômico e social, degradando suas bases ecológicas, culturais e sociais de sustentabilidade; aparece como uma voragem que, como um câncer, devora toda possi bilidade de reposição, de regeneração. A dívida é impagável. O cadeado trava, põe em xeque o desenvolvimento, assedia os recursos e impõe-lhes suas con dições de exploração para saldar a dívida contraída: para con tinuar sendo sujeitos de crédito, de credibilidade; para apos tar novas inversões que continuariam extraindo recursos para pagar a dívida. Se esta dívida não devastou ainda mais os re cursos do Terceiro Mundo, é porque a própria crise econômi ca limitou as capacidades de reinversão dos capitais; ou por que foram reaplicados em países onde se prognosticam me lhores condições de rentabilidade. A queda do socialismo real abriu campos promissores aos capitais em busca de inversão nos países que eufemisticamen- te se denominam “em vias de transição”, calando seu destino real: ou o paraíso do mundo capitalizado, ou os abismos da derrocada ecológica. Esta falta de reinversão no Terceiro Mun do também mostra que o montante da dívida não significa uma condição real para o funcionamento do sistema, mas afeta so mente a distribuição de seus benefícios econômicos. O que se 33 negocia são as condições de extração e repartição de lucros fa bulosos através das operações financeiras. A dívida implicou num acordo das regras do jogo que não só institui ganhadores e perdedores, mas que coloca os se gundos em posição de devedores permanentes para o desen volvimento sustentável do jogo da dívida. Para que haja dívi da, os países devedores devem assumir os termos que os en- gancham como iguais, num jogo desigual, sempre com a pro messa de que aprendendo a apostar na roleta da globalização econômica - das vantagens comparativas, da valorização da natureza - certamente se fechará a brecha entre ricos e po bres. Seduzidos pela idéia de eliminação da diferença, os paí ses pobres foram arrastados pelos torvelinhos do capital mun dial, pelas artimanhas do capital financeiro. Os países deve dores se fascinaram com as miragens do progresso e perde ram o jogo. Lançaram-se à perdição na embriaguez do cresci mento. Trocaram a vida por tequila. O efeito tequila é justa mente a desvalorização da vida como sentido e potência, além do erro de cálculo e da corrupção das finanças. Neste enredo da dívida, os países do Terceiro Mundo pe dem que se perdoe a dívida, pedem um trato preferencial, pe dem ajuda para inscrever-se no jogo da globalização. Mas não buscam dessujeitar-se dessa racionalidade econômica; não vislumbram outra via de desenvolvimento. Querem crer que as falhas do mercado e as perversões do sistema financei ro serão salvas; que o crescimento econômico restituirá a dí vida histórica com o subdesenvolvimento através do finan ciamento do Norte e da transferência de tecnologia em ter mos preferenciais. Portanto, a dívida econômica funciona como um meca nismo ideológico que consolida a dependência como dívida moral. Pensa-se que Deus dá, que a dívida como um deus ca pitalizado será dadivosa com os pobres. Quando os países po 34 bres viram sua pobreza como efeito da rapina dos países in dustrializados, surgiram as teorias da dependência e do sub desenvolvimento, as ideologias da libertação, as lutas de eman cipação. Quando o subdesenvolvimento se converte num problema de desajustes, de desvantagens, de má sorte, pedi mos perdão e nos lamentamos dos governos corruptos, dos financistas que erraram o cálculo, das falhas (passageiras) do mercado. Os devedores desta dívida pedem sua remissão, novos créditos, uma nova oportunidade para mostrar que podem ser bons sócios e pagadores responsáveis no negócio da globali zação econômica. Mas não mudam o modo de ver nem o rumo. A origem se desvanece no horizonte do passado; na perda da memória histórica; no espólio dos saberes tradicio nais, subjugados e dominados pela ciência e pela tecnologia modernas. Não resta mais do que o presente avassalador, o pragmatismo globalizador. Não há projeção para o futuro fora das inércias que agitam o inundo atual; não há alternativa nem opção; não resta mais do que pedir misericórdia e justiça para continuar sendo parte de um mundo que gravita fora da história, movido pela insensatez econômica. A dívida ecológica: revalorização da vida e redistribuição dos custos do crescimento A economia ecológica trouxe à superfície o corpo sub merso do iceberg da dívida. O jogo da dívida não é uma ques tão moral sujeita a um cálculo estritamente econômico. O que está em jogo não é a dívida financeira do Terceiro Mundo, mas a dívida oculta do Primeiro e Segundo Mundos: o hiper- consumo do Norte e a superexploração ecológica do Sul, a pi lhagem, a rapina e a devastação dos recursos do mundo “sub desenvolvido” que alimentou o desenvolvimento industrial, 35 esvaziando seus potenciais produtivos e deteriorando seus recursos ambientais. Estas “extemalidades” do sistema econômico constituem uma dívida mais profunda, que solapa as bases do desenvol vimento. O subdesenvolvimento não é a condição de atraso na corrida do crescimento econômico; o subdesenvolvimen to é o aniquilamento dos potenciais próprios de nossos países para conseguir um desenvolvimento sustentável, diverso como seus recursos ecológicos e suas culturas. A dívida externa é tão-somente um reflexo dadívida das extemalidades. A dívida ecológica refere-se à subvalorização atual dos recursos naturais (os hidrocarbonetos, as matérias-primas) que subvencionam e financiam o desenvolvimento agrícola e industrial do Norte. Desta maneira, o petróleo barato do Sul subsidia a agricultura capitalista do Norte, criando um círcu lo perverso que desloca a agricultura de subsistência das zo nas rurais do Terceiro Mundo, que gera os sem-terra e a perda de saberes tradicionais. E esta “lavada de recursos” é legiti mada pela exatidão do cálculo econômico que extemaliza como lixo tudo aquilo que não se submete às suas medidas, desvalorizando o ser humano, a cultura, a natureza. As novas inversões de capitais aparecem como verdadeiras inversões térmicas: o crescimento econômico destrói as riquezas bioló gicas incrementando o aquecimento global do planeta. Neste sentido, abre-se um debate não só pela injustiça distributiva do sistema econômico, mas pela distribuição eco lógica, entendida como a repartição desigual dos custos e po tenciais ecológicos, dessas extemalidades econômicas que são incomensuráveis em termos dos valores do mercado, mas que se assumem como novos custos a serem internalizados, seja por via dos instrumentos econômicos, das valorizações ecológicas ou dos movimentos sociais que surgem e se multi plicam em resposta à deterioração do ambiente. Mais em reconhecimento de um imperativo ecológico do que de uma dívida, o engenho negociador propôs imediata mente depois da crise financeira dos anos 80 a troca de dívida por natureza. Alguns países latino-americanos se prontifica ram a explorar esta fórmula para abater parte de suas dívidas, reconvertendo-as num mecanismo para financiar a conserva ção da natureza. Outros países se viram menos tentados pela filantropia ecológica do Norte. Não só porque a examinaram com mais perspicácia e reclamaram com mais veemência seu poder de decisão no manejo das reservas da natureza, mas também porque os montantes que os organismos ecologistas estavam dispostos a inverter não eram significativos em rela ção aos montantes da dívida. Com o avanço da ecologização da globalização econômi ca, sem tardar essa cosmetologia verdosa das negociações da dívida foi suplantada por mecanismos mais sutis e sofistica dos. Na perspectiva das ações orientadas para um futuro co mum, os mecanismos de “implementação conjunta” foram sendo traduzidos em empréstimos e doações para a proteção da natureza e a pesquisa da biodiversidade. Estes donativos do Norte se traduziram em inversões em bioprospecção; são o cavalo de Tróia no qual desembarcam cientistas e biotec- nólogos do Norte, não para proteger a natureza, mas para apropriar-se de sua riqueza genética. Neste processo de im plementação conjunta, os países do Sul poderiam ser com pensados com uma porcentagem das regalias provenientes da comercialização da biodiversidade; mas como confirmam estudos recentes neste terreno, na realidade estas regalias não chegam a materializar-se, e em alguns casos essa trans ferência de saberes e recursos é trocada por um pacote de ci garros. As atuais estratégias de apropriação da natureza, mo vidas pelos imperativos da globalização e da sustentabilida de, parecem atualizar o espólio e sujeição de quinhentos anos dos povos indígenas. 37 A dívida ecológica é mais vasta e profunda do que a dívida financeira. Não só é impagável, mas é incomensurável. Não se trata do saldo de uma má negociação ou da perda de uma apos ta no lucro econômico descarrilada pelos desvarios das taxas de juros. Trata-se de um espólio histórico, da pilhagem da na tureza que se dissimula numa presumível superioridade nas capacidades intelectuais e empresariais do Norte, de uma con jugação mais eficaz e eficiente de seus fatores produtivos. Hoje esta pilhagem se projeta para o futuro através dos mecanismos de apropriação da natureza por via da etnobio- prospecção e dos direitos de propriedade intelectual do Norte sobre os direitos de propriedade das nações e povos do Tercei ro Mundo. A biodiversidade representa seu patrimônio de re cursos naturais e culturais, com os quais coevoluíram na his tória, o habitat onde se arraigam os significados culturais de sua existência. Estes são intraduzíveis em valores econômi cos. É aqui que se estabelece o limiar entre o que é negociável e barganhável entre dívida e natureza, e o que impede dirimir o conflito de distribuição ecológica em termos de compensa ções econômicas. Os devedores da morte da natureza pedem que se intema- lizem os custos da deterioração ambiental, que as vítimas dos holocaustos ecológicos sejam indenizadas, que sejam valori zados os recursos naturais e incorporados às contas nacio nais, que aquele que contamina pague pelo que fez. Pedem que haja compensação justa para os governos e as comunida des do Terceiro Mundo no negócio da biodiversidade. Mas esta dívida ecológica não poderá dirimir-se no campo da glo balização econômica. O que se anuncia é justamente o dessu- jeitamento dessa ordem na qual não se vislumbra uma eqüi dade possível. Eis a razão por que alguns povos indígenas, grupos so ciais e indivíduos estejam se distinguindo desses processos 38 gracihelem Highlight gracihelem Highlight gracihelem Highlight de valorização e negociação, e que uma parte importante - embora ainda silenciosa - do movimento ambientalista se manifeste por meio de lutas de resistência e de dessujeita- mento da globalização. Estas lutas mostram muito mais sua decisão de legitimar novos direitos culturais, ambientais e coletivos do que a disposição de negociar uma compensação pelos danos sofridos como resultado do impacto ecológico ou a aceitar uma distribuição dos benefícios da comercializa ção da natureza. A dívida da razão: racionalidade ambiental e desenvolvimento sustentável A dívida financeira poderá ser perdoada; a dívida ecoló gica, valorizada segundo os parâmetros do mercado, os códi gos do capital ou a expressão das forças políticas no mercado ou nos tribunais de justiça. Porém, uma vez saldadas as con tas, satisfeitas as demandas e reivindicações, restam seus de vedores sujeitos à mesma razão, atados às mesmas causas, no jogo da repartição dos custos e benefícios deixados por uma ordem homogeneizante, unipolar, que dita as normas do co mércio, do intercâmbio, da justiça e da eqüidade. Estas dívidas são o legado de uma razão constitutiva da modernidade na qual estamos inseridos. É uma dívida com a razão que quis libertar o homem e os povos da ignorância mi- tifícadora, das cadeias da escassez, e que acabou ocultando seus intuitos, impondo uma razão que escraviza, sujeitando a razão às normas da racionalidade econômico-tecnológica e aos efeitos da racionalização gerada pela razão do poder. Este movimento da razão certamente nos legou o conhecimento científico, o pensamento crítico, a liberdade e a democracia; mas também nos legou uma razão cegante do mundo (a mão invisível, as leis cegas do mercado) que nos aterram porque em sua invisibilidade burlam e eludem a razão. 39 A meta iluminista da modernidade e a emancipação do homem através da razão converteram-se em alienação, ao não poder compreender as causas (embora conheça as ra zões) que movem o mundo no qual vivemos - nem as leis do mercado que nos salvarão se nos dobrarmos com fé cega ao seu governo global; nem os mecanismos tecnológicos que governam a produção, fascinando-nos com sua potência ga- láctico-espacial, biotecnológica e eletrônica - , porque esca pam à nossa capacidade de entendimento, de decisão, de ação. A dívida externa aparece então como processo de alienação, de reendividamento. A dívida sempre foi um mecanismo de sujeição ideológi ca e econômica. O desenvolvimento endógeno, autodetermi- nado, implica uma dessujeição da dívida. Isto vai além da re negociação e do refinanciamento do crescimento e dos ajus tes econômicos, e leva a repensar as condições e potenciaispara um desenvolvimento sustentável, fundado numa racio nalidade ambiental. Diante da racionalidade econômica e instrumental que domina o processo de globalização, a racio nalidade ambiental se funda em novos princípios éticos, va lores culturais e potenciais produtivos. A globalização econômica está gerando uma retotaliza- ção do mundo sob o valor unidimensional do mercado, superex- plorando a natureza, homogeneizando culturas, subjugando saberes e degradando a qualidade de vida das maiorias. A ra cionalidade ambiental gera uma reorganização da produção baseada no potencial produtivo da natureza, no poder da ciência e da tecnologia modernas e nos processos de signifi cação que definem identidades culturais e sentidos existenci ais dos povos em diversas formas de relação entre os seres humanos e a natureza. A sinergia na articulação destes pro cessos faz com que na racionalidade ambiental o todo seja mais do que os processos que a constituem, gerando um pro 40 cesso produtivo sustentável, aberto à diversidade cultural e à diversificação das formas de desenvolvimento. Este é o grande desafio, o da dívida que se mantém agri- lhoada ao desenvolvimento autodeterminado, democrático e sustentável dos povos da América Latina e do Terceiro Mun do. Um desafio que obriga a questionar os mecanismos de submissão que nos mantêm em dívida pennanente, como apên dices dependentes da ordem mundial. Os devedores desta dívida pedem para escapar desta ar madilha, querem cortar o cordão umbilical da dependência e da opressão, querem desvincular-se da globalização. Pedem um mundo novo onde se possa saldar a dívida da unificação forçosa do desenvolvimento unidimensional e se abram os canais de um desenvolvimento diversificado. Pedem uma nova verdade, uma nova racionalidade para entender o mun do em sua complexidade, em sua diversidade. Estes são os desafios com os quais se defronta o projeto civilizatório da humanidade ao vislumbrar o próximo milênio. 41 3 - ECONOM IA ECOLÓGICA E ECOLOGIA PRODUTIVA* A construção da economia ecológica A crise ambiental coloca em questão os fundamentos da racionalidade econômica. Por isso surgiram diferentes res postas, desde as filosofias da natureza até os novos movimen tos sociais que buscam integrar a democracia participativa, a descentralização econômica e a reapropriação da natureza como um sistema ambiental produtivo. Neste contexto, a eco nomia ecológica e a ecologia política vão sendo configuradas como novos campos teóricos e de ação política, distinguin- do-se da economia ambiental (a economia neoclássica dos recursos naturais e a da contaminação ambiental), contrapon do novos enfoques ao objetivo de internalizar as extemalida- des ambientais através dos mecanismos do mercado. A economia fundada nos princípios da mecânica dester rou a vida e a natureza do campo da produção, minando as condições de sustentabilidade ecológica do desenvolvimen to. A extrapolação das extemalidades econômicas para o ter reno dos conflitos socioambientais está mobilizando a re construção do processo de produção em novas bases. A revolução copemicana deslocou a Terra do centro do uni verso, derrubando a ordem cósmica e sacudindo as hierarquias sociais que sustentavam as relações feudais de poder. A convul * Texto redigido com base na conferência intitulada “From Ecological Economics to Pro- ductive Ecology: Perspective on Sustainable Development from the South”, apresentada na III Conferência da Sociedade Internacional de Economia Ecológica, San José, Costa Rica, de 24 a 28 de outubro de 1994, publicada em Costanza et al. (1996). 42 gracihelem Highlight são dos fundamentos que sustentam hoje a ordem econômica dominante nos coloca diante do desafio de transformar, a partir de suas bases, o paradigma insustentável da economia. A resistência a esta mudança paradigmática levou a eco nomia neoclássica a ajustar os ciclos econômicos, atribuindo preços de mercado à natureza, com a esperança de que as mercadorias poderão continuar circulando de maneira contí nua em torno da esfera (perfeita) da ordem econômica. Por sua vez, a economia ecológica está construindo um novo pa radigma teórico, abrindo as fronteiras interdisciplinares com diferentes campos científicos (ecologia, demografia, tecno logia, termodinâmica, antropologia, teoria de sistemas), para valorizar e incorporar as condições ecológicas do desenvol vimento. Conseqüentemente surgiram diferentes estratégias conceituais e abordagens metodológicas que se fundem no crisol da sustentabilidade. As propostas teóricas da economia ecológica estendem-se também à ecologia humana. Nela floresceram as perspectivas neomalthusianas que consideram a sustentabilidade através de uma relação entre crescimento populacional, escassez de re cursos e limites ecológicos, onde uma “capacidade de carga” dos ecossistemas fixaria os limites ao crescimento econômico e demográfico. Por sua vez, alguns enfoques da antropologia ecológica estão reduzindo a racionalidade da apropriação cul tural da natureza a uma contabilidade energético-social. O dar- winismo social e a síntese sociobiológica estão ecologizando (colonizando) a ordem simbólica e social. A bioeconomia de Georgescu-Roegen (1971) fez uma crítica radical à economia a partir da perspectiva da segunda lei da termodinâmica. Daí surge a concepção do processo econômico como uma transformação produtiva de massa e energia sujeitas à degradação irreversível de energia útil (que se manifesta em última instância sob a forma de calor) de 43 gracihelem Highlight todo processo metabólico e produtivo. Este inelutável pro cesso de degradação da energia, exacerbado pelo ritmo acele rado de crescimento econômico, manifesta-se no aquecimen to global do planeta pela crescente produção de gases de efei to estufa e a diminuição da capacidade de absorção de dióxi do de carbono, por causa dos processos de desflorestamento, levando à morte entrópica da vida na Terra. A partir de uma visão ecossistêmica da produção, a eco nomia ecológica busca subsumir a economia dentro da ecolo gia, considerada esta como uma teoria mais abrangente, a ciên cia por excelência das inter-relações. Desta forma sugere-se reordenar a economia dentro da ecologia, introduzindo um conjunto de critérios, condições e normas ecológicos a serem respeitados pelo sistema econômico (Passet, 1979). A econo mia ecológica lança um olhar crítico sobre a degradação eco lógica e energética resultante dos processos de produção e consumo, tentando sujeitar o intercâmbio econômico às con dições do metabolismo geral da natureza. Entretanto, a produção continua sendo guiada e domina da pela lógica do mercado. A proteção do meio ambiente é considerada como um custo e condição do processo econô mico, cuja “sustentabilidade” gravita em torno dos princípios de sua racionalidade mecanicista e sua valorização a curto prazo. A ecologia questiona a economia sem refundar as ba ses da produção nos potenciais da natureza e da diversidade cultural. Sem uma nova teoria capaz de orientar o desenvol vimento sustentável, as políticas ambientais continuam sen do subsidiárias das políticas neoliberais. Nesta busca por internalizar as condições ecológicas de uma produção sustentável, a economia ecológica está fazen do seu nicho acadêmico, embora ainda não definível por um paradigma teórico e um programa de pesquisa acabado (Cos- tanza, 1989). A economia ecológica ainda não cortou o cor 44 dão umbilical que a prende à economia neoclássica dos recur sos naturais em sua concepção do ambiente como um custo ou um limite (e não como um potencial). Mas suas fronteiras estão se abrindo à complexidade emergente, à distribuição ecológica e à democracia política, onde travam as lutas so ciais pela apropriação dos recursos naturais e os serviços am bientais (Funtowicz e Ravetz, 1994; Martínez Alier, 1995). Daí surgem diferentes perspectivas da sustentabilidade,