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<p>Tomaz Tadeu da Silva DOCUMENTOS de IDENTIDADE Uma introdução às teorias do currículo Autêntica</p><p>Copyright 1999 by Tomaz Tadeu da Silva CAPA Jairo Alvarenga Fonseca, composição sobre as pinturas "The teacher (sub a)" e "Jesus - Serene", de Marlene Dumas, reproduzidas com autorização da artista, do livro Marlene Dumas, de autoria de Dominic van den Boogerd, Barbara Bloom e Mariuccia Casadio, publicado pela editora Phaidon. EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Waldenia Alvarenga Santos Ataide REVISÃO Roberto Arreguy Maia S586d Silva, Tomaz Tadeu da Documentos de identidade ; uma introdução às teorias do currículo / Tomaz Tadeu da Silva - Belo Horizonte: Autêntica, 1999. 156p. ISBN 85-86583-44-8 I. Educação 2. Currículos escolares. I. Título CDU 37 371.214.1 1999 Todos os direitos desta edição publicação reservados à Autêntica Editora Rua Tabelião Ferreira de Carvalho, 584 - Cidade Nova 31170-180 - Belo Horizonte - MG - PABX: (031) 481 4860 www.autenticaeditora.com.br</p><p>Agradecimentos Meu muito obrigado às pessoas que leram as primeiras versões deste livro e me deram valiosas sugestões: Alfredo, Antonio Flávio, Gelsa, Guacira, Sandra. Agra- deço, especialmente, à Guacira, estímulo e o apoio que me fizeram sobreviver às solitárias sessões frente à tela do computador. Agradeço à Rejane, da Autêntica Editora, pelo apoio irrestrito à concepção do livro.</p><p>Sumário I. INTRODUÇÃO Teorias do currículo: O que é isto? II. DAS TEORIAS TRADICIONAIS ÀS TEORIAS CRÍTICAS Nascem os "estudos sobre currículo": as teorias tradicionais 21 Onde a crítica começa: ideologia, reprodução, resistência 29 Contra a concepção técnica: os reconceptualistas 37 A crítica neomarxista de Michael Apple 45 O currículo como política cultural: Henry Giroux 51 Pedagogia do oprimido versus pedagogia dos conteúdos 57 O currículo como construção social: a "nova sociologia da educação" 65 Códigos e reprodução cultural: Basil Bernstein 71 Quem escondeu O currículo oculto? 77 III. AS TEORIAS PÓS-CRÍTICAS Diferença e identidade: currículo multiculturalista 85 As relações de gênero e a pedagogia feminista 91 O currículo como narrativa étnica e racial 99 Uma coisa "estranha" no currículo: a teoria queer 105 O fim das metanarrativas: pós-modernismo III A crítica pós-estruturalista do currículo 117 Uma teoria pós-colonialista do currículo 125 Os Estudos Culturais e O currículo 131 A pedagogia como cultura, a cultura como pedagogia 139 IV. DEPOIS DAS TEORIAS CRÍTICAS E PÓS-CRÍTICAS Currículo: uma questão de saber, poder e identidade 145 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 151</p><p>Teorias do currículo: o que é isto? que é uma teoria do currículo? esperando para ser descoberta, Quando se pode dizer que se tem uma descrita e explicada, uma coisa chamada "teoria do currículo"? Onde começa e "currículo". currículo seria um objeto como se desenvolve a história das teorias que precederia a teoria, a qual só entraria do currículo? que distingue uma "teoria em cena para descobri-lo, descrevê-lo, do currículo" da teoria educacional mais explicá-lo. ampla? Quais são principais teorias do Da perspectiva do pós-estruturalismo, currículo? que distingue as teorias tra- hoje predominante na análise social e cul- dicionais das teorias críticas do currículo? tural, é precisamente esse viés represen- E que distingue as teorias críticas do tacional que torna problemático próprio currículo das teorias pós-críticas? conceito de teoria. De acordo com essa Podemos começar pela discussão da visão, é impossível separar a descrição própria noção de "teoria". Em geral, está simbólica, da realidade - isto implícita, na noção de teoria, a suposição é, a teoria de seus "efeitos de realida- de que a teoria "descobre" "real", de A "teoria" não se limitaria, pois, a que há uma correspondência entre a "te- descobrir, a descrever, a explicar a reali- oria" e a "realidade". De uma forma ou dade: a teoria estaria irremediavelmente de outra, a noção envolvida é sempre re- implicada na sua produção. Ao descre- presentacional, especular, mimética: a ver um "objeto", a teoria, de certo modo, teoria representa, reflete, espelha a reali- inventa-o. objeto que a teoria suposta- dade. A teoria é uma representação, uma mente descreve é, efetivamente, um pro- imagem, um reflexo, um signo de uma duto de sua criação. realidade que cronologicamente, on- Nessa direção, faria mais sentido falar tologicamente a precede. Assim, para não em teorias, mas em discursos ou tex- já entrar no nosso tema, uma teoria do tos. Ao deslocar a ênfase do conceito de currículo começaria por supor que existe, teoria para de discurso, a perspectiva</p><p>pós-estruturalista quer destacar precisa- Podemos ver como isso funciona num mente envolvimento das descrições lin- caso concreto. Provavelmente o currículo güísticas da "realidade" em sua produção. aparece pela primeira vez como um ob- Uma teoria supostamente descobre e jeto específico de estudo e pesquisa nos descreve um objeto que tem uma exis- Estados Unidos dos anos vinte. Em co- tência independente relativamente à teo- nexão com processo de industrializa- ria. Um discurso, em troca, produz seu ção e os movimentos imigratórios, que próprio objeto: a existência do objeto é intensificavam a massificação da escolari- inseparável da trama que su- zação, houve um impulso, por parte de postamente descreve. Para voltar ao pessoas ligadas sobretudo à administra- nosso exemplo do "currículo", um dis- ção da educação, para racionalizar pro- curso sobre currículo aquilo que, cesso de construção, desenvolvimento e numa outra concepção, seria uma teoria testagem de currículos. As idéias desse não se restringe a representar uma grupo encontram sua máxima expressão coisa que seria que existi- no livro de Bobbitt, The curriculum (1918). ria antes desse discurso e que está ali, ape- Aqui, currículo é visto como um pro- nas à espera de ser descoberto e descrito. cesso de racionalização de resultados edu- Um discurso sobre currículo, mesmo cacionais, cuidadosa e rigorosamente que pretenda apenas descrevê-lo "tal especificados e medidos. modelo insti- como ele realmente é", que efetivamen- tucional dessa concepção de currículo é te faz é produzir uma noção particular de a fábrica. Sua inspiração "teórica" é a "ad- currículo. A suposta descrição é, efetiva- ministração de Taylor. No mente, uma criação. Do ponto de vista do modelo de currículo de Bobbitt, os estu- conceito pós-estruturalista de discurso, a dantes devem ser processados como um "teoria" está envolvida num processo cir- produto fabril. No discurso curricular de cular: ela descreve como uma descober- Bobbitt, pois, currículo é supostamen- ta algo que ela própria criou. Ela primeiro te isso: a especificação precisa de objeti- cria e depois descobre, mas, por um arti- vos, procedimentos e métodos para a fício retórico, aquilo que ela cria acaba obtenção de resultados que possam ser aparecendo como uma descoberta. precisamente mensurados. Se pensamos 12</p><p>no modelo de Bobbitt através da noção Da perspectiva da noção de discurso, es- tradicional de teoria, ele teria descoberto tamos dispensados dessa operação, na e descrito que, verdadeiramente, é o medida em que tanto supostas asserções "currículo". Nesse entendimento, "cur- sobre a realidade quanto asserções so- rículo" sempre foi isso que Bobbitt diz bre como a realidade deveria ser têm ser: ele se limitou a descobri-lo e a des- "efeitos de realidade" similares. Para di- crevê-lo. Da perspectiva da noção de zer de outra forma, supostas asserções "discurso", entretanto, não existe ne- sobre a realidade acabam funcionando nhum objeto "lá fora" que se possa cha- como se fossem asserções sobre como a mar de "currículo". que Bobbitt fez, realidade deveria ser. Elas têm mesmo como outros antes e depois dele, foi criar efeito: de fazer com que a realidade se uma noção particular de "currículo". torne que elas dizem que é ou deveria Aquilo que Bobbitt dizia ser "currículo" ser. Para retomar exemplo de Bobbitt, passou, efetivamente, a ser o "currículo". é irrelevante saber se ele está dizendo que Para um número considerável de esco- currículo é, efetivamente, um proces- las, de professores, de estudantes, de ad- so industrial e administrativo ou, em vez ministradores educacionais, "aquilo" que disso, que o currículo deveria ser um pro- Bobbitt definiu como sendo currículo tor- cesso industrial e administrativo. efei- nou-se uma realidade. to final, de uma forma ou outra, é que o A noção de discurso teria uma vanta- currículo se torna um processo industrial gem adicional. Ela nos dispensaria de e administrativo. fazer esforço de separar como sería- Apesar dessas advertências, a utilização mos obrigados, se ficássemos limitados à da palavra "teoria" está muito amplamen- noção tradicional de teoria asserções te difundida para poder ser simplesmente sobre a realidade de asserções sobre abandonada. Em vez de simplesmente como deveria ser a realidade. Como sa- abandoná-la, parece suficiente adotar uma bemos, as chamadas "teorias do currícu- compreensão da noção de "teoria" que lo", assim como as teorias educacionais nos mantenha atentos ao seu papel ativo mais amplas, estão recheadas de afirma- na constituição daquilo que ela suposta- ções sobre como as coisas deveriam ser. mente descreve. É nesse sentido que a 13</p><p>palavra "teoria", ao lado das palavras "dis- em diferentes momentos, em diferentes curso" e será utilizada ao teorias, currículo tem sido definido?). longo deste livro. Talvez mais importante e mais interes- A adoção de uma noção de teoria que sante do que a busca da definição última levasse em conta seus efeitos discursivos de "currículo" seja a de saber quais ques- nos pouparia de uma outra dor de cabe- tões uma "teoria" do currículo ou um ça: a das definições. Todo livro de currí- discurso curricular busca responder. Per- culo que se preze inicia com uma boa correndo as diferentes e diversas teorias discussão sobre que é, afinal, do currículo, quais questões comuns elas lo". Em com as definições tentam, explícita ou implicitamente, res- dadas pelo dicionário para, depois, per- ponder? Além das questões comuns, que correr as definições dadas por uns quan- questões específicas caracterizam as di- tos manuais de currículo. Na perspectiva ferentes teorias do currículo? Como es- aqui adotada, que vê as "teorias" do cur- sas questões específicas distinguem as rículo a partir da noção de discurso, as diferentes teorias do currículo? definições de currículo não são utilizadas A questão central que serve de pano para capturar, finalmente, verdadeiro de fundo para qualquer teoria do currícu- significado de currículo, para decidir qual lo é a de saber qual conhecimento deve delas mais se aproxima daquilo que ser ensinado. De uma forma mais sintética currículo essencialmente é, mas, em vez a questão central é: quê? Para respon- disso, para mostrar que aquilo que cur- der a essa questão, as diferentes teorias rículo é depende precisamente da forma podem recorrer a discussões sobre a como ele é definido pelos diferentes au- natureza humana, sobre a natureza da tores e teorias. Uma definição não nos aprendizagem ou sobre a natureza do revela que é, essencialmente, currí- da cultura e da sociedade. As culo: uma definição nos revela que uma diferentes teorias se diferenciam, inclusi- determinada teoria pensa que currí- ve, pela diferente ênfase que dão a esses culo é. A abordagem aqui é muito menos elementos. Ao final, entretanto, elas têm ontológica (qual é verdadeiro "ser" do que voltar à questão básica: que eles ou currículo?) e muito mais histórica (como, elas devem saber? Qual conhecimento ou 14</p><p>saber é considerado importante ou válido consideram ideal. Qual é tipo de ser hu- ou essencial para merecer ser considera- mano desejável para um determinado tipo do parte do currículo? de sociedade? Será a pessoa racional e ilus- A pergunta "o quê?", por sua vez, nos trada do ideal humanista de educação? Será revela que as teorias do currículo estão a pessoa otimizadora e competitiva dos envolvidas, explícita ou implicitamente, atuais modelos neoliberais de educação? em desenvolver critérios de seleção que Será a pessoa ajustada aos ideais de cida- justifiquem a resposta que darão àquela dania do moderno estado-nação? Será a questão. currículo é sempre o resulta- pessoa desconfiada e crítica dos arranjos do de uma seleção: de um universo mais sociais existentes preconizada nas teorias amplo de conhecimentos e saberes sele- educacionais críticas? A cada um desses ciona-se aquela parte que vai constituir, "modelos" de ser humano corresponderá precisamente, currículo. As teorias do um tipo de conhecimento, um tipo de currículo, tendo decidido quais conheci- currículo. mentos devem ser selecionados, buscam No fundo das teorias do currículo está, justificar por que "esses conhecimentos" pois, uma questão de "identidade" ou de e não "aqueles" devem ser selecionados. "subjetividade". Se quisermos recorrer à Nas teorias do currículo, entretanto, a etimologia da palavra que vem pergunta "o quê?" nunca está separada de do latim "curriculum", "pista de corrida", uma outra importante pergunta: "o que podemos que no curso dessa "corri- eles ou elas devem ser?" ou, melhor, "o da" que é currículo acabamos por nos que eles ou elas devem se tornar?". Afinal, tornar que somos. Nas discussões coti- um currículo busca precisamente modifi- dianas, quando pensamos em currículo car as pessoas que vão "seguir" aquele pensamos apenas em conhecimento, esque- currículo. Na verdade, de alguma forma, cendo-nos de que conhecimento que essa pergunta precede à pergunta "o quê?", constitui currículo está inextricavelmen- na medida em que as teorias do currículo te, centralmente, vitalmente, envolvido na- deduzem tipo de conhecimento consi- quilo que somos, naquilo que nos tornamos: derado importante justamente a partir de na nossa identidade, na nossa subjetivida- descrições sobre o tipo de pessoa que elas de. Talvez possamos dizer que, além de uma 15</p><p>questão de conhecimento, currículo é teorias tradicionais pretendem ser apenas também uma questão de identidade. É so- isso: "teorias" neutras, científicas, desin- bre essa questão, pois, que se concentram teressadas. As teorias críticas e as teorias também as teorias do currículo. pós-críticas, em contraste, argumentam Da perspectiva pós-estruturalista, po- que nenhuma teoria é neutra, científica ou demos dizer que currículo é também desinteressada, mas que está, inevitavel- uma questão de poder e que as teorias mente, implicada em relações de poder. do currículo, na medida em que buscam As teorias tradicionais, ao aceitar mais fa- dizer que currículo deve ser, não cilmente status quo, os conhecimentos e podem deixar de estar envolvidas em os saberes dominantes, acabam por se questões de poder. Selecionar é uma ope- concentrar em questões técnicas. Em ge- ração de poder. Privilegiar um tipo de ral, elas tomam a resposta à questão "o conhecimento é uma operação de po- quê?" como dada, como óbvia e por isso der. Destacar, entre as múltiplas possibi- buscam responder a uma outra questão: lidades, uma identidade ou subjetividade "como?". Dado que temos esse conheci- como sendo a ideal é uma operação de mento (inquestionável?) a ser transmitido, poder. As teorias do currículo não es- qual é a melhor forma de transmiti-lo? As tão, neste sentido, situadas num campo teorias tradicionais se preocupam com "puramente" epistemológico, de compe- questões de organização. As teorias críti- tição entre "puras" teorias. As teorias do cas e pós-críticas, por sua vez, não se limi- currículo estão ativamente envolvidas tam a perguntar "o quê?", mas submetem na atividade de garantir consenso, de este "quê" a um constante questionamen- obter hegemonia. As teorias do currí- to. Sua questão central seria, pois, não tanto culo estão situadas num campo episte- "o quê?", mas "por quê?". Por que esse mológico social. As teorias do currículo conhecimento e não outro? Quais interes- estão no centro de um território con- ses fazem com que esse conhecimento e testado. não outro esteja no currículo? Por que É precisamente a questão do poder que privilegian um determinado tipo de identi- vai separar as teorias tradicionais das teo- dade ou subjetividade e não outro? As te- rias críticas e pós-críticas do currículo. As orias críticas e pós-críticas de currículo 16</p><p>estão preocupadas com as conexões en- TEORIAS TRADICIONAIS tre saber, identidade e poder. ensino Como vimos, uma teoria define-se pe- aprendizagem los conceitos que utiliza para conceber a avaliação "realidade". Os conceitos de uma teoria metodologia didática dirigem nossa atenção para certas coisas organização que sem eles não Os concei- planejamento tos de uma teoria organizam e estruturam eficiência nossa forma de ver a "realidade". Assim, objetivos uma forma útil de distinguirmos as dife- rentes teorias currículo é através do TEORIAS CRÍTICAS exame dos diferentes conceitos que elas ideologia empregam. Neste sentido, as teorias críti- reprodução cultural e social cas de currículo, ao deslocar a ênfase dos poder conceitos simplesmente pedagógicos de classe social ensino e aprendizagem para os conceitos capitalismo de ideologia e poder, por exemplo, nos relações sociais de produção permitiram ver a educação de uma nova conscientização perspectiva. Da mesma forma, ao enfatiza- emancipação e libertação rem conceito de discurso em vez do currículo oculto conceito de ideologia, as teorias pós-críti- resistência cas de currículo efetuaram um outro im- TEORIAS PÓS-CRÍTICAS portante deslocamento na nossa maneira identidade, alteridade, diferença de conceber currículo. Por isso, à medi- subjetividade da que percorrermos, nos tópicos a se- significação e discurso guir, as diferentes teorias do currículo, saber-poder pode ser útil ter em mente seguinte qua- representação dro, que resume as grandes categorias de cultura teoria de acordo com os conceitos que gênero, raça, etnia, sexualidade elas, respectivamente, enfatizam. multiculturalismo 17</p><p>II. DAS TEORIAS TRADICIONAIS ÀS TEORIAS CRÍTICAS</p><p>Nascem os "estudos sobre currículo": as teorias tradicionais A existência de teorias sobre currí- diferentes épocas, bem antes da institucio- culo está identificada com a emergência do nalização do estudo do currículo como campo do currículo como um campo pro- campo especializado, não deixaram de fa- fissional, especializado, de estudos e pes- zer especulações sobre o currículo, mes- quisas sobre currículo. As professoras e mo que não utilizassem termo. os professores de todas as épocas e luga- Mas as teorias educacionais e peda- res sempre estiveram envolvidos, de uma gógicas não são, estritamente falando, forma ou outra, com currículo, antes teorias sobre currículo. Há anteceden- mesmo que surgimento de uma palavra tes, na história da educação ocidental especializada como pudesse moderna, institucionalizada, de preocu- designar aquela parte de suas atividades que pações com a organização da atividade hoje conhecemos como "currículo". A educacional e até mesmo de uma aten- emergência do currículo como campo de ção consciente à questão do que ensi- estudos está estreitamente ligada a pro- nar. A Didactica magna, de Comenius, é cessos tais como a formação de um corpo um desses exemplos. A própria emer- de especialistas sobre currículo, a forma- gência da palavra curriculum, no sentido ção de disciplinas e departamentos univer- que modernamente atribuímos ao ter- sitários sobre currículo, a institucionalização mo, está ligada a preocupações de or- de setores especializados sobre currículo ganização e método, como ressaltam as na burocracia educacional do estado e pesquisas de David Hamilton. termo surgimento de revistas acadêmicas espe- curriculum, entretanto, no sentido que cializadas sobre currículo. hoje lhe damos, só passou a ser utiliza- De certa forma, todas as teorias peda- do em países europeus como França, gógicas e educacionais são também teorias Alemanha, Espanha, Portugal muito re- sobre currículo. As diferentes filosofias centemente, sob influência da literatu- educacionais e as diferentes pedagogias, em ra educacional americana. 21</p><p>É precisamente nessa literatura que educação de massas de acordo com suas termo surge para designar um campo es- diferentes e particulares visões. É nesse pecializado de estudos. Foram talvez as momento que se busca responder ques- condições associadas com a institucionali- tões cruciais sobre as finalidades e os con- zação da educação de massas que permiti- tornos da escolarização de massas. Quais ram que campo de estudos do currículo os objetivos da educação escolarizada: surgisse, nos Estados Unidos, como um formar trabalhador especializado ou campo profissional especializado. Estão proporcionar uma educação geral, acadê- entre essas condições: a formação de uma mica, à população? que se deve ensi- burocracia estatal encarregada dos negó- nar: as habilidades básicas de escrever, cios ligados à educação; estabelecimen- e contar; as disciplinas acadêmicas hu- to da educação como um objeto próprio manísticas; as disciplinas científicas; as de estudo científico; a extensão da educa- habilidades práticas necessárias para as ção escolarizada em níveis cada vez mais ocupações profissionais? Quais as fontes altos a segmentos cada vez maiores da principais do conhecimento a ser ensina- população; as preocupações com a manu- do: conhecimento acadêmico; as disci- tenção de uma identidade nacional, como plinas científicas; os saberes profissionais resultado das sucessivas ondas de imigra- do mundo ocupacional adulto? que ção; processo de crescente industriali- deve estar no centro do ensino: os sabe- zação e urbanização. res "objetivos" do conhecimento organi- É nesse contexto que Bobbitt escre- zado ou as percepções e as experiências ve, em 1918, livro que iria ser conside- "subjetivas" das crianças e dos jovens? Em rado marco no estabelecimento do termos sociais, quais devem ser as finali- currículo como um campo especializado dades da educação: ajustar as crianças e de estudos: The curriculum. livro de os jovens à sociedade tal como ela existe Bobbitt é escrito num momento crucial ou prepará-los para transformá-la; a pre- da história da educação estadunidense, paração para a economia ou a prepara- num momento em que diferentes forças ção para a democracia? econômicas, políticas e culturais procu- As respostas de Bobbitt eram claramen- ravam moldar os objetivos e as formas da te conservadoras, embora sua intervenção 22</p><p>buscasse transformar radicalmente siste- século XX. Mas ela iria concorrer com ma educacional. Bobbitt propunha que a vertentes consideradas mais progressistas, escola funcionasse da mesma forma que como a liderada por John Dewey, por qualquer outra empresa comercial ou in- exemplo. Bem antes de Bobbitt, Dewey dustrial. Tal como uma indústria, Bobbit tinha escrito, em 1902, um livro que tinha queria que sistema educacional fosse ca- a palavra no título, The child and paz de especificar precisamente que resul- the curriculum. Neste livro, Dewey estava tados pretendia obter, que pudesse muito mais preocupado com a constru- estabelecer métodos para obtê-los de for- ção da democracia que com funciona- ma precisa e formas de mensuração que mento da economia. Também em contraste permitissem saber com precisão se eles com Bobbitt, ele achava importante levar foram realmente alcançados. sistema edu- em consideração, no planejamento curri- cacional deveria começar por estabelecer cular, os interesses e as experiências das de forma precisa quais são seus objetivos. crianças e jovens. Para Dewey, a educação Esses objetivos, por sua vez, deveriam se não era tanto uma preparação para a vida basear num exame daquelas habilidades ocupacional adulta, como um local de vi- necessárias para exercer com eficiência as vência e prática direta de princípios ocupações profissionais da vida adulta. democráticos. A influência de Dewey, en- modelo de Bobbitt estava claramente vol- tretanto, não iria se refletir da mesma tado para a economia. Sua palavra-chave era forma que a de Bobbitt na formação do "eficiência". sistema educacional deveria currículo como campo de estudos. ser tão eficiente quanto qualquer outra A atração e influência de Bobbitt de- empresa econômica. Bobbitt queria trans- vem-se provavelmente ao fato de que sua ferir para a escola modelo de organização proposta parecia permitir à educação tor- proposto por Frederick Taylor. Na propos- nar-se científica. Não havia por que dis- ta de Bobbitt, a educação deveria funcionar cutir abstratamente as finalidades últimas de acordo com os princípios da adminis- da educação: elas estavam dadas pela pró- tração científica propostos por Taylor. pria vida ocupacional adulta. Tudo que A orientação dada por Bobbitt iria era preciso fazer era pesquisar e mapear constituir uma das vertentes dominantes quais eram as habilidades necessárias para da educação estadunidense no restante do as diversas ocupações. Com um mapa 23</p><p>preciso dessas habilidades, era possível, de padrões é tão importante na educação então, organizar um currículo que per- quanto, digamos, numa usina de fabrica- mitisse sua aprendizagem. A tarefa do es- ção de aços, pois, de acordo com Bobbitt, pecialista em currículo consistia, pois, em "a educação, tal como a usina de fabrica- fazer levantamento dessas habilidades, ção de aço, é um processo de moldagem". desenvolver currículos que permitissem exemplo dado pelo próprio Bobbitt é que essas habilidades fossem desenvol- esclarecedor. Numa oitava série, ilustra ele, vidas e, finalmente, planejar e elaborar algumas crianças realizam adições "a um instrumentos de medição que possibili- ritmo de 35 combinações por minuto", tassem dizer com precisão se elas foram enquanto outras, "ao lado, adicionam a um realmente aprendidas. ritmo médio de 105 combinações por Na perspectiva de Bobbitt, a questão minuto". Para Bobbitt, estabelecimento do currículo se transforma numa ques- de um padrão permitiria acabar com essa tão de organização. currículo é sim- variação. Nas últimas décadas, diz ele, os plesmente uma mecânica. A atividade educadores vieram a que é pos- supostamente científica do especialista em sível estabelecer padrões definitivos para currículo não passa de uma atividade os vários produtos educacionais. A capa- burocrática. Não é por acaso que con- cidade para adicionar a uma velocidade de ceito central, nessa perspectiva, é "desen- 65 combinações por minuto (...) é uma volvimento curricular", um conceito que especificação tão definida quanto a que se iria dominar a literatura estadunidense pode estabelecer para qualquer aspecto do sobre currículo até os anos 80. Numa trabalho da fábrica de aços". perspectiva que considera que as finali- modelo de currículo de Bobbitt iria dades da educação estão dadas pelas exi- encontrar sua consolidação definitiva num gências profissionais da vida adulta, livro de Ralph Tyler, publicado em 1949. currículo se resume a uma questão de paradigma estabelecido por Tyler iria desenvolvimento, a uma questão técnica. dominar campo do currículo nos Esta- Tal como na indústria, é fundamental, dos Unidos, com influência em diversos na educação, de acordo com Bobbitt, que países, incluindo Brasil, pelas próximas se estabeleçam padrões. estabelecimento quatro décadas. Com livro de Tyler, os 24</p><p>estudos sobre currículo se tornam deci- É precisamente a esta questão que Tyler didamente estabelecidos em torno da dedica a maior parte de seu livro. Tyler idéia de organização e identifica três fontes nas quais se devem Apesar de admitir a filosofia e a socieda- buscar os objetivos da educação, afirman- de como possíveis fontes de objetivos do que cada uma delas deve ser igualmen- para currículo, paradigma formulado te levada em consideração: estudos por Tyler centra-se em questões de or- sobre os próprios aprendizes; 2. estudos ganização e desenvolvimento. Tal como sobre a vida contemporânea fora da edu- no modelo de Bobbitt, currículo é, aqui, cação; 3. sugestões dos especialistas das essencialmente, uma questão técnica. diferentes disciplinas. Aqui, Tyler expan- de modelo de Bobbitt, ao incluir duas Vejamos, de forma sintética, modelo fontes que não eram contempladas por proposto por Tyler. Bobbitt: a psicologia e as disciplinas acadê- A organização e desenvolvimento micas. A segunda fonte é uma demonstra- do currículo deve buscar responder, de ção de certa continuidade relativamente acordo com Tyler, quatro questões bási- ao modelo de Bobbitt. cas: que objetivos educacionais deve Essas fontes gerariam, entretanto, um a escola procurar atingir?; 2. que número excessivo de objetivos, os quais cias educacionais podem ser oferecidas poderiam, além disso, ser mutuamente que tenham probabilidade de alcançar contraditórios. Para consertar essa situa- esses propósitos?; 3. como organizar ção, Tyler sugere submetê-los a duas es- eficientemente essas experiências educa- pécies de "filtros": a filosofia social e cionais?; 4. como podemos ter certeza de educacional com a qual a escola está com- que esses objetivos estão sendo alcança- prometida e a psicologia da aprendizagem. dos?" As quatro perguntas de Tyler cor- Tyler insiste na afirmação de que os respondem à divisão tradicional da objetivos devem ser claramente definidos atividade educacional: "currículo" "en- e estabelecidos. Os objetivos devem ser sino e instrução" (2 e 3) e "avaliação" (4). formulados em termos de comportamen- Em termos estritos, pois, apenas a pri- to explícito. Essa orientação comporta- meira questão diz respeito a "currículo". mentalista iria se radicalizar, aliás, nos anos 25</p><p>60, com revigoramento de uma tendên- educação universitária da Idade Média e cia fortemente tecnicista na educação do Renascimento, na forma dos chama- estadunidense, representada, sobretudo, dos trivium (gramática, retórica, dialética) por um livro de Robert Mager, Análise de e quadrivium (astronomia, geometria, mú- objetivos, também influente no Brasil na sica, aritmética). Obviamente, currícu- mesma época. É apenas através dessa for- lo clássico humanista tinha implicitamente mulação precisa, detalhada e comporta- uma "teoria" do currículo. Basicamente, mental dos objetivos que se pode nesse modelo, objetivo era introduzir responder às outras perguntas que cons- os estudantes ao repertório das grandes tituem paradigma de Tyler. A decisão obras literárias e artísticas das heranças sobre quais experiências devem ser pro- clássicas grega e latina, incluindo domí- piciadas e sobre como organizá-las de- nio das respectivas línguas. Supostamen- pende dessa especificação precisa dos te, essas obras encarnavam as melhores objetivos. Da mesma forma, é impossível realizações e os mais altos ideais do espí- avaliar, como adiantava Bobbitt, sem que rito humano. conhecimento dessas se estabelecesse com precisão quais são obras não estava separado do objetivo de os padrões de referência. formar um homem (sim, macho da es- É interessante observar que tanto os pécie) que encarnasse esses ideais. modelos mais tecnocráticos, como os de Cada um dos modelos curriculares Bobbitt e Tyler, quanto os modelos mais contemporâneos, tecnocrático e o pro- progressistas de currículo, como de gressista, ataca o modelo humanista por Dewey, que emergiram no início do sé- um flanco. tecnocrático destacava a abs- culo XX, nos Estados Unidos, constituíam, tração e a suposta inutilidade para a vida de certa forma, uma reação ao currículo moderna e para as atividades laborais clássico, humanista, que havia domina- das habilidades e conhecimentos cultiva- do a educação secundária desde sua ins- dos pelo currículo clássico. latim e grego titucionalização. Como se sabe, esse - e suas respectivas literaturas - pouco currículo era herdeiro do currículo das serviam como preparação para trabalho chamadas "artes liberais" que, vindo da da vida profissional contemporânea. Não Antiguidade Clássica, se estabelecera na se aceitava, aqui, nem mesmo os argumen- 26</p><p>tos que no século XIX tinham sido de- com chamado movimento de "recon- senvolvidos pela perspectiva do "exercí- ceptualização do currículo". Mas esta é cio mental", segundo a qual a aprendizagem uma outra história. de matérias como latim, por exemplo, servia para exercitar os "músculos men- Leituras tais", de uma forma que podia se aplicar a HAMILTON, David. "Sobre as origens dos termos outros conteúdos. modelo progressis- classe e curriculum". Teoria e educação, 6, 1992: ta, sobretudo aquele "centrado na crian- p.33-51. ça", atacava currículo clássico por seu KLIEBARD, Herbert M. "Os princípios de Tyler". distanciamento dos interesses e das ex- In Rosemary G. Messick, Lyra Paixão e Lília da periências das crianças e dos jovens. Por R. Bastos (org.). Currículo: análise e debate. Rio: estar centrado nas matérias clássicas, Zahar, 1980: p.39-52. currículo humanista simplesmente des- KLIEBARD, Herbert M. "Burocracia e teoria do cur- considerava a psicologia infantil. Ambas as rículo". In Rosemary G. Messick, Lyra Paixão e contestações só puderam surgir, obvia- Lília da R. Bastos (org.). Currículo: análise e deba- mente, no contexto da ampliação da es- te. Rio: Zahar, 1980: p.107-126. colarização de massas, sobretudo da MOREIRA, Antonio F. B. e SILVA, Tomaz T. da. escolarização secundária que era foco do "Sociologia e teoria crítica do currículo: uma introdução". In Antonio F. B. Moreira e Tomaz currículo clássico humanista. currículo T. da Silva (orgs.). Currículo, sociedade e cultura. clássico só pôde sobreviver no contexto São Paulo: Cortez, 1999: p.7-38. de uma escolarização secundária de aces- TYLER, Ralph básicos de currículo e ensi- so restrito à classe dominante. A demo- no. Porto Alegre: Globo, 1974. cratização da escolarização secundária significou também fim do currículo hu- Nota manista clássico. Para não sobrecarregar texto, as fontes de todas Os modelos mais tradicionais de cur- as citações estão listadas ao final do livro, na seção rículo, tanto os técnicos quanto os pro- "Referências bibliográficas". gressistas de base psicológica, por sua vez, só iriam ser definitivamente contestados, nos Estados Unidos, a partir dos anos 70, 27</p><p>Onde a crítica começa: ideologia, reprodução, resistência Como sabemos, a década de 60 foi literatura inglesa reinvidica prioridade para uma década de grandes agitações e trans- a chamada "nova sociologia da educação", formações. Os movimentos de indepen- um movimento identificado com o soció- dência das antigas colonias européias; os logo inglês Michael Young. Uma revisão protestos estudantis na França e em vá- brasileira não deixaria de assinalar o im- rios outros países; a continuação do mo- portante papel da obra de Paulo Freire, vimento dos direitos civis nos Estados enquanto os franceses certamente não Unidos; os protestos contra a guerra do deixariam de destacar papel dos ensaios os movimentos de contracultura; fundamentais de Althusser, Bourdieu e movimento feminista; a liberação sexual; Passeron, Baudelot e Establet. Uma avalia- as lutas contra a ditadura militar no Bra- ção mais equilibrada argumentaria, entre- sil: são apenas alguns dos importantes tanto, que movimento de renovação da movimentos sociais e culturais que carac- teoria educacional que iria abalar a teoria terizaram os anos 60. Não por coincidên- educacional tradicional, tendo influência cia foi também nessa década que surgiram não apenas teórica, mas inspirando verda- livros, ensaios, teorizações que colocavam deiras revoluções nas próprias em xeque pensamento e a estrutura cias educacionais, "explodiu" em vários educacional tradicionais. locais ao mesmo tempo. É compreensível que as pessoas en- As teorias críticas do currículo efetu- volvidas em revisar esses movimentos am uma completa inversão nos fundamen- tendam a reivindicar a precedência para tos das teorias tradicionais. Como vimos, aqueles movimentos iniciados em seu os modelos tradicionais, como de Tyler, próprio país. Assim, para a literatura edu- por exemplo, não estavam absolutamente cacional estadunidense, a renovação da preocupados em fazer qualquer tipo de teorização sobre currículo parece ter sido questionamento mais radical relativamen- exclusividade do chamado "movimento de te aos arranjos educacionais existentes, às reconceptualização". Da mesma forma, a formas dominantes de conhecimento ou, 29</p><p>de modo mais geral, à forma social domi- currículo, como, por exemplo, a "nova nante. Ao tomar status quo como refe- sociologia da educação" ou "movimen- rência desejável, as teorias tradicionais se to de reconceptualização" da teoria cur- concentravam, pois, nas formas de orga- ricular. É importante, de qualquer forma, nização e elaboração do currículo. Os revisar também aquelas teorias críticas modelos tradicionais de currículo restrin- mais gerais sobre educação pela influên- giam-se à atividade técnica de como fazer cia que teriam sobre desenvolvimento currículo. As teorias críticas sobre cur- da teoria crítica do currículo. Poderíamos rículo, em contraste, começam por começar por uma breve cronologia dos locar em questão precisamente os marcos fundamentais tanto da teoria edu- pressupostos dos presentes arranjos so- cacional crítica mais geral quanto da teo- ciais e educacionais. As teorias críticas des- ria crítica sobre currículo: confiam do status quo, 1970 - Paulo Freire, A pedagogia do oprimido pelas desigualdades e injustiças sociais. As 1970 - Louis Althusser, A ideologia e os teorias tradicionais eram teorias de aceita- aparelhos ideológicos de estado ção, ajuste e adaptação. As teorias críticas 1970 Pierre Bourdieu e Jean-Claude são teorias de desconfiança, questionamen- Passeron, A reprodução to e transformação radical. Para as teorias 1971 críticas importante não é desenvolver Baudelot e Establet, L'école capi- taliste en France técnicas de como fazer currículo, mas desenvolver conceitos que nos permitam 1971 Basil Bernstein, Class, codes and que currículo faz. control, V. / É preciso fazer uma distinção, inicial- 1971 - Michael Young, Knowledge and mente, entre, de um lado, as teorizações control: new directions for the socio- críticas mais gerais como, por exemplo, logy of education importante ensaio de Althusser sobre 1976 - Samuel Bowles e Herbert Gintis, a ideologia ou livro conjunto de Schooling in capitalist America dieu e Passeron, A reprodução, e, de ou- 1976 - William Pinar e Madeleine Gru- tro, aquelas teorizações centradas de met, Toward a poor curriculum forma mais localizada em questões de 1979 - Michael Apple, Ideologia e currículo 30</p><p>agora famoso ensaio do filósofo relhos ideológicos de estado (a religião, francês Louis Althusser, A ideologia e os a mídia, a escola, a família). aparelhos ideológicos de Estado, iria for- Na primeira parte do ensaio, Althusser necer as bases para as críticas marxistas dá, implicitamente, uma definição bastan- da educação que se seguiriam. Particu- te simples de ideologia. A ideologia é cons- larmente, Althusser, nesse ensaio, iria tituída por aquelas crenças que nos levam fazer a importante conexão entre edu- a aceitar as estruturas sociais (capitalistas) cação e ideologia que seria central às existentes como boas e desejáveis. Essa subseqüentes teorizações críticas da definição é substancialmente modificada na educação e do currículo baseadas na segunda parte do ensaio, na qual concei- análise marxista sociedade. A referên- to de ideologia se torna bastante mais com- cia que Althusser faz à educação neste plexo, mas esta é uma outra discussão. A breve ensaio é bastante sumária. Essen- produção e a disseminação da ideologia é cialmente, argumenta Althusser, a per- feita, como vimos, pelos aparelhos ideo- manência da sociedade capitalista lógicos de estado, entre os quais se situa, depende da reprodução de seus com- de modo privilegiado, na argumentação ponentes propriamente econômicos de Althusser, justamente a escola. A es- (força de trabalho, meios de produção) cola constitui-se num aparelho ideológico e da reprodução de seus componentes central porque, afirma Althusser, atinge ideológicos. Além da continuidade das praticamente toda a população por um condições de sua produção material, a período prolongado de tempo. sociedade capitalista não se sustentaria Como a escola transmite a ideologia? se não houvesse mecanismos e instituições A escola atua ideologicamente através de encarregadas de garantir que status quo seu currículo, seja de uma forma mais di- não fosse contestado. Isso pode ser obti- reta, através das matérias mais suscetíveis do através da força ou do convencimen- ao transporte de crenças explícitas sobre to, da repressão ou da ideologia. primeiro a desejabilidade das estruturas sociais exis- mecanismo está a cargo dos aparelhos re- tentes, como Estudos Sociais, História, pressivos de estado (a polícia, o judiciário); Geografia, por exemplo; seja de uma for- segundo é responsabilidade dos apa- ma mais indireta, através de disciplinas</p><p>mais "técnicas", como Ciências e Mate- nos deu, como vimos, um tipo de res- mática. Além disso, a ideologia atua de posta: a escola contribui para a reprodu- forma discriminatória: ela inclina as pes- ção da sociedade capitalista ao transmitir, soas das classes subordinadas à submis- através das matérias escolares, as crenças são e à obediência, enquanto as pessoas que nos fazem ver os arranjos sociais exis- das classes dominantes aprendem a co- tentes como bons e desejáveis. Baudelot e mandar e a controlar. Essa diferenciação Establet, num livro também agora clássi- é garantida pelos mecanismos seletivos A escola capitalista na França, iriam que fazem com que as crianças das clas- desenvolver, em detalhes, a tese althus- ses dominadas sejam expelidas da escola seriana. Caberia, entretanto, a dois eco- antes de chegarem àqueles níveis onde nomistas estadunidenses, Samuel Bowles se aprendem os hábitos e habilidades pró- e Herbert Gintis, fornecer uma respos- prios das classes dominantes. ta um pouco diferente àquela pergunta A problemática central da análise mar- central sobre as conexões entre produ- xista da educação e da escola consiste, ção e educação. como mostra exemplo de Althusser, Em seu livro, A escola capitalista na em buscar estabelecer qual é a ligação América, Bowles e Gintis introduzem entre a escola e a economia, entre a edu- conceito de correspondência para esta- cação e a produção. Uma vez que, na aná- belecer a natureza da conexão entre es- lise marxista, a economia e a produção cola e produção. Como vimos, estão no centro da dinâmica social, qual é enfatizava papel do conteúdo das maté- papel da educação e da escola nesse rias escolares na transmissão da ideologia processo? Como a escola e a educação capitalista, embora a definição de ideolo- contribuem para que a sociedade conti- gia que ele dava na segunda parte de seu nue sendo capitalista, para que a socie- ensaio (a ideologia como prática) apontas- dade continue sendo dividida entre se para a possibilidade de uma outra utili- capitalistas (proprietários dos meios de zação desse conceito. Em contraste com de um lado, e trabalhadores essa ênfase no conteúdo, Bowles e Gintis (proprietários unicamente de sua capaci- enfatizam a aprendizagem, através da vi- dade de trabalho), de outro? Althusser vência das relações sociais da escola, das 32</p><p>atitudes necessárias para se qualificar escola e as relações sociais do local de como um bom trabalhador capitalista. As trabalho que a educação contribui para relações sociais do local de trabalho capi- a reprodução das relações sociais de talista exigem certas atitudes por parte produção da sociedade capitalista. Tra- do trabalhador: obediência a ordens, pon- ta-se de um processo bidirecional. Num tualidade, assiduidade, confiabilidade, no primeiro movimento, a escola é um re- caso do trabalhador subordinado; capa- flexo da economia capitalista ou, mais es- cidade de comandar, de formular planos, pecificamente, do local de trabalho de se conduzir de forma autônoma, no capitalista. Esse reflexo, por sua vez, ga- caso dos trabalhadores situados nos ní- rante que, num segundo movimento, de veis mais altos da escala ocupacional. retorno, o local de trabalho capitalista Como, no esquema de Bowles e Gintis, a receba justamente aquele tipo de traba- escola garante que essas atitudes sejam de que necessita. incorporadas à psique do estudante, ou A crítica da escola capitalista, nesse es- seja, do futuro trabalhador? tágio inicial, não ficaria limitada, entretan- A escola contribui para esse processo to, à análise marxista. Os sociólogos não propriamente através do conteúdo franceses Pierre Bourdieu e Jean-Claude explícito de seu currículo, mas ao espe- Passeron iriam desenvolver uma crítica da no seu funcionamento, as relações educação que, embora centrada no con- sociais do local de trabalho. As escolas di- ceito de "reprodução", afastava-se da aná- rigidas aos trabalhadores subordinados lise marxista em vários aspectos. Além do tendem a privilegian relações sociais nas conceito de "reprodução", a análise de quais, ao praticar papéis subordinados, os Bourdieu e Passeron desenvolvia-se atra- estudantes aprendem a subordinação. Em vés de conceitos que eram devedores, contraste, as escolas dirigidas aos trabalha- embora apenas metaforicamente, de con- dores dos escalões superiores da escala ceitos econômicos. Mas, contrariamente ocupacional tendem a favorecer relações à análise marxista, funcionamento da es- sociais nas quais os estudantes têm a opor- cola e das instituições culturais não é tunidade de praticar atitudes de comando deduzido do funcionamento da economia. e autonomia. É, pois, através de uma cor- Bourdieu e Passeron vêem, entretanto, respondência entre as relações sociais da funcionamento da escola e da cultura 33</p><p>através de metáforas econômicas. Nessa por Bourdieu e Passeron para se referir às análise, a cultura não depende da econo- estruturas sociais e culturais que se tor- mia: a cultura funciona como uma econo- nam internalizadas. mia, como demonstra, por exemplo, a domínio simbólico, que é domínio utilização do conceito de "capital cultural". por excelência da cultura, da significação, Para Bourdieu e Passeron, a dinâmica atua através de um ardiloso mecanismo. da reprodução social está centrada no pro- Ele adquire sua força precisamente ao de- cesso de reprodução cultural. É através da finir a cultura dominante como sendo a reprodução da cultura dominante que a cultura. Os valores, os hábitos e costumes, reprodução mais ampla da sociedade fica os comportamentos da classe dominante garantida. A cultura que tem prestígio e são aqueles que são considerados como valor social é justamente a cultura das clas- constituindo a cultura. Os valores e hábi- ses dominantes: seus valores, seus gostos, tos de outras classes podem ser qualquer seus costumes, seus hábitos, seus modos outra coisa, mas não são a cultura. Agora de se comportar, de agir. Na medida em é que vem truque. A eficácia dessa defi- que essa cultura tem valor em termos so- nição da cultura dominante como sendo a ciais; na medida em que ela vale alguma coi- cultura depende de uma importante ope- sa; na medida em que ela faz com que a ração. Para que essa definição alcance sua pessoa que a possui obtenha vantagens máxima eficácia é necessário que ela não materiais e simbólicas, ela se constitui como apareça como tal, que ela não apareça jus- capital cultural. Esse capital cultural existe tamente como que ela é, como uma de- em diversos estados. Ela pode se manifes- finição arbitrária, como uma definição que tar em estado objetivado: as obras de arte, não tem qualquer base objetiva, como uma as obras literárias, as obras teatrais etc. A definição que está baseada apenas na força cultura pode existir também sob a forma (agora propriamente econômica) da clas- de títulos, certificados e diplomas: é ca- se dominante. É essa força original que pital cultural institucionalizado. Finalmen- permite que a classe dominante possa de- te, capital cultural manifesta-se de forma finir sua cultura como a cultura, mas nes- incorporada, introjetada, internalizada. se mesmo ato de definição oculta-se a Nessa última forma ele se confunde com força que torna possível que ela possa im- habitus, precisamente termo utilizado por essa definição arbitrária. Há, portanto, 34</p><p>aqui, dois processos em funcionamento: como uma linguagem estrangeira: é incom- de um lado, a imposição e, de outro, a preensível. A vivência familiar das crian- ocultação de que se trata de uma imposi- ças e jovens das classes dominadas não ção, que aparece, então, como natural. É os acostumou a esse código, que lhes a esse duplo mecanismo que Bourdieu e aparece como algo estranho e alheio. Passeron chamam de dupla violência do resultado é que as crianças e jovens das processo de dominação cultural. classes dominantes são bem-sucedidas na Agora, onde entram a escola e a edu- escola, que lhes permite acesso aos cação nesse processo? Em Bourdieu e graus superiores do sistema educacional. Passeron, contrariamente a outras análi- As crianças e jovens das classes domina- ses críticas, a não atua pela incul- das, em troca, só podem encarar fra- cação da cultura dominante às crianças e casso, ficando pelo caminho. As crianças jovens das classes dominadas, mas, ao e jovens das classes dominantes seu contrário, por um mecanismo que acaba capital cultural reconhecido e fortalecido. por funcionar como um mecanismo de As crianças e jovens das classes domina- exclusão. currículo da escola está ba- das têm sua cultura nativa desvalorizada, seado na cultura dominante: ele se ex- ao mesmo tempo que seu capital cultural, pressa na linguagem dominante, ele é já inicialmente baixo ou nulo, não sofre transmitido através do código cultural qualquer aumento ou valorização. Com- dominante. As crianças das classes domi- pleta-se ciclo da reprodução cultural. É nantes podem facilmente essencialmente através dessa reprodução esse código, pois durante toda sua vida cultural, por sua vez, que as classes sociais elas estiveram imersas, tempo todo, se mantêm tal como existem, garantindo nesse código. Esse código é natural para processo de reprodução social. elas. Elas se sentem à vontade no clima Em geral, tem-se deduzido da análise cultural e afetivo construído por esse de Bourdieu e Passeron (e, particularmen- código. É seu ambiente nativo. Em te, das análises individuais de Bourdieu) contraste, para as crianças e jovens das uma pedagogia e um currículo que, em classes dominadas, esse código é sim- oposição ao currículo baseado na cultura plesmente indecifrável. Eles não sabem dominante, se centrariam nas culturas do que se trata. Esse código funciona dominadas. Trata-se, provavelmente, de 35</p><p>um mal-entendido. Sua análise não nos diz Leituras que a cultura dominante é indesejável e ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de Estado que a cultura dominada seria, em troca, Rio: Graal, 1983. desejável. Dizer que a classe dominante BOURDIEU, Pierre e PASSERON, Jean-Claude define arbitrariamente sua cultura como A reprodução. Rio: Francisco Alvez, 1975. desejável não é a mesma coisa que dizer BOURDIEU, Pierre. Escritos de educação. Petrópolis que a cultura dominada é que é desejável. Vozes, 1999. (Organização de Maria Alice No que Bourdieu e Passeron atra- gueira e Afrânio Catani) vés do conceito de pedagogia racional, é BOWLES, Samuel e GINTIS. Herbert. La instrucción escolar en la América capitalista. México: que as crianças das classes dominadas te- XXI, 1981. nham uma educação que lhes possibilite SILVA, Tomaz Tadeu da. que produz e o que reproduz ter na escola - a mesma imersão du- em educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992 radoura na cultura dominante que faz parte na família - da experiência das crian- ças das classes dominantes. Fundamental- mente, sua proposta pedagógica consiste em advogar uma pedagogia e um currículo que reproduzam, na escola, para as crian- ças das classes dominadas, aquelas condi- ções que apenas as crianças das classes dominantes têm na família. Em seu conjunto, esses textos formam a base da teoria educacional crítica que iria se desenvolver nos anos seguintes. Eles podem ter sido amplamente criticados e questionados na explosão da literatura tica ocorrida nos anos 70 e 80, sobretudo por seu suposto determinismo econômi- mas, depois deles, a teoria curricular seria radicalmente modificada. A teorização cur- ricular recente ainda vive desse legado. 36</p><p>Contra a concepção técnica: os reconceptualistas No final dos anos sessenta, podia-se já com a Conferência sobre Currículo dizer que a hegemonia da concepção téc- organizada pelo grupo, na Universidade nica do currículo estava com seus dias de Rochester, Nova York, em 1973. contados. Como vimos, esboçavam-se, em movimento de reconceptualização ex- vários países, ao mesmo tempo, movimen- primia uma insatisfação crescente de tos de reação às concepções burocráticas pessoas do campo do currículo com os e administrativas de currículo. Em países parâmetros tecnocráticos estabeleci- como França e Inglaterra, os contornos dos pelos modelos de Bobbitt e Tyler. As mais gerais de uma teoria educacional crí- pessoas identificadas com que passou a tica tendiam a partir de campos não dire- ser conhecido como "movimento de re- tamente pedagógicos ou educacionais, começavam a perce- como a sociologia crítica (Bourdieu, por ber que a compreensão do currículo exemplo) e a filosofia marxista (Althusser, como uma atividade meramente técnica por exemplo). Nos Estados Unidos e Ca- e administrativa não se enquadrava mui- nadá, entretanto, o movimento de crítica to bem com as teorias sociais de origem às perspectivas conservadoras sobre cur- sobretudo européia com as quais elas rículo tinha origem no próprio campo de estavam familiarizadas: a fenomenologia, a estudo da educação. hermenêutica, marxismo, a teoria críti- Os antecedentes da rejeição dos pres- ca da Escola de Frankfurt. Aquilo que, nas supostos da concepção técnica de currí- perspectivas tradicionais, era entendido culo tal como consolidada pelo modelo de como currículo era precisamente que, Tyler esboçavam-se já nos escritos de au- de acordo com aquelas teorias sociais, tores como James McDonald e Dwayne precisava ser questionado e criticado. Huebner. Um movimento mais organiza- Assim, por exemplo, do ponto de vista do e visível, entretanto, somente ia ganhar da fenomenologia, as categorias de apren- impulso sob a liderança de William Pinar, dizagem, objetivos, medição e avaliação 37</p><p>nada tinham a ver com os significados do Aqui, a ênfase não estava no papel das "mundo da vida" através dos quais as estruturas ou em categorias teóricas abs- pessoas constroem e percebem sua ex- tratas (como ideologia, capitalismo, contro- periência. De acordo com a perspectiva le, dominação de classe), mas nos significados fenomenológica, essas categorias tinham subjetivos que as pessoas dão às suas ex- que ser "postas entre parênteses", ques- periências pedagógicas. e Em tionadas, para se chegar à "essência" da ambas as perspectivas tratava-se de desa- educação e do currículo. Do ponto de vista fiar os modelos técnicos dominantes; em marxista, para tomar um outro exemplo, ambas as perspectivas procurava-se-lançar a ênfase na eficiência e na racionalidade mão de estratégias analíticas que permitis- administrativa apenas refletia a dominação sem colocar em xeque as compreensões do capitalismo sobre a educação e cur- naturalizadas do mundo social em parti- rículo, contribuindo para a reprodução das cular, da pedagogia e do currículo. No caso desigualdades de classe. da fenomenologia, da hermenêutica, da au- Esses dois exemplos refletem, aliás, um tobiografia, entretanto, desnaturalizar as antagonismo entre os dois campos nos categorias com as quais, ordinariamente, quais, nos Estados Unidos, dividiu-se a crí- compreendemos e vivemos cotidiano, tica dos modelos tradicionais. De um lado, significa focalizá-las através de uma perspec- estavam aquelas pessoas que utilizavam os tiva profundamente pessoal e subjetiva. Há conceitos marxistas, filtrados através de um vínculo com social, na medida em que análises marxistas contemporâneas, como essas categorias são criadas e mantidas, in- as de Gramsci e da Escola de e através da linguagem, para fazer a crítica da escola e do currículo mas, em última análise, o foco está nas ex- existentes. Essas análises enfatizavam periências e nas significações subjetivas. Em papel das estruturas econômicas e políti- contraste, na crítica de inspiração marxista, cas na reprodução cultural e social atra- desnaturalizar mundo "natural" da peda- vés da outro gogia e do currículo significa submetê-lo a lado, colocavam-se as críticas da educação uma análise científica, centrada em concei- e do currículo tradicionais inspiradas em tos que rompem com as categorias de sen- estratégias interpretativas de investigação, comum com as quais, ordinariamente, como a fenomenologia e vemos e compreendemos aquele mundo. 38</p><p>movimento de reconceptualização, em Edmund Husserl, sendo posterior- tal como definido por seus próprios ini- mente desenvolvida por autores como ciadores, pretendia incluir tanto as verten- Heiddegen e Merleau-Ponty. ato feno- tes fenomenológicas quanto as menológico fundamental consiste em sub- marxistas, mas as pessoas envolvidas nes- meter o entendimento que normalmente sas últimas recusaram, em geral, uma iden- temos do mundo cotidiano a uma sus- tificação plena com aquele movimento. Na pensão. A investigação fenomenológica verdade, procuraram até distanciar-se de começa por colocar os significados ordi- um movimento que viam como excessi- nários do cotidiano "entre vamente centrado em questões subjetivas, Aqueles significados que tomamos como como um movimento muito pouco políti- naturais constituem apenas a "aparência" Para autores de inspiração marxista, das coisas. Temos que colocar essa apa- como Michael Apple, movimento de re- rência em dúvida, em questão, para que conceptualização, embora constituísse um possamos à sua "essência". A in- questionamento do modelo técnico do- vestigação fenomenológica coloca em minante, era visto como um recuo ao pes- questão assim, as categorias do senso co- soal, ao narcisístico e ao subjetivo. Ao final, mum, mas elas não são substituídas por rótulo da "reconceptualização" que ca- categorias teóricas e científicas abstratas. racterizou um movimento hoje dissolvido Ela está focalizada, em vez disso, na expe- no pós-estruturalismo, no feminismo, nos riência vivida, no "mundo da vida", nos estudos culturais, ficou limitado às concep- significados subjetiva e intersubjetivamen- ções fenomenológicas, hermenêuticas e te construídos. conceito de "significa- autobiográficas de crítica aos modelos tra- do" não tem, para a fenomenologia, dicionais de currículo. É por isso que, nesta mesmo sentido que, depois, teria para seção, limitaremos nossa discussão a es- uma semiologia estruturalista, a qual sur- sas concepções. As perspectivas mais mar- ge e se desenvolve, de certa forma, pre- xistas e estruturais, como a de Michael cisamente em reação e oposição a ela. Apple e a de Henry Giroux, serão trata- "significado", para a fenomenologia, não das em outra seção. pode ser simplesmente determinado por A concepção contemporânea de fe- seu valor "objetivo" numa cadeia de opo- nomenologia tem origem, como sabemos, sições estruturais, como na semiologia. 39</p><p>significado é, ao invés disso, algo pro- rompimento fundamental com a episte- fundamente pessoal e subjetivo. Sua mologia tradicional. A tradição fenome- nexão com social se dá não através de nológica de análise do currículo é aquela estruturas sociais impessoais e abstratas, que talvez menos reconhece a estrutu- mas através de conexões intersubjetivas. ração tradicional do currículo em disci- Para a fenomenologia, significado mani- plinas ou matérias. Para a perspectiva festa-se na linguagem, através da lingua- fenomenológica, com sua ênfase na ex- gem, mas é também aquilo que de certa periência, no mundo vivido, nos signifi- forma escapa à linguagem ordinária, ao cados subjetivos e intersubjetivos, pouco senso comum implantado na linguagem. sentido fazem as formas de compreen- Os verdadeiros significados de nossas são técnica e científica implicadas na or- experiências têm de voltar à linguagem ganização e estruturação do currículo para encontrar sua expressão, mas eles em torno de disciplinas. As disciplinas têm, antes, de certa forma, de ser recu- tradicionais estão concebidas em tor- perados embaixo da linguagem, naquilo no de conceitos científicos, instrumen- que foge à linguagem, no seu substrato. tais, isto é, do mundo de segunda ordem Intelectuais como Max van Mannen, dos conceitos e não do mundo de pri- Ted Aoki (ambos do Canadá) e Madelei- meira ordem das experiências diretas. ne Grumet (Estados Unidos), que esti- No máximo, as disciplinas e matérias tra- veram centralmente envolvidos, naqueles dicionais aparecem como categorias a países, no desenvolvimento de uma com- serem questionadas, a serem "colocadas preensão fenomenológica do currículo, entre parênteses". não estavam preocupados tanto com os cur- aspectos filosóficos da fenomenologia rículo não é, pois, constituído de fatos, nem quanto com as possibilidades que a feno- mesmo de conceitos teóricos e abstratos: menologia apresentava para o estudo do currículo é um local no e currículo. A perspectiva fenomenológica aprendizes têm a oportunidade de exami- de currículo é, em termos epistemológi- nar, de forma renovada, aqueles significa- a mais radical das perspectivas críti- dos da vida cotidiana que se acostumaram cas, na medida em que representa um a ver como dados e naturais. currículo 40</p><p>é visto como experiência e como local de da vida cotidiana, rotineira, seja da pró- interrogação e questionamento da expe- pria pessoa que faz a análise, seja das pes- riência. Na perspectiva fenomenológica, soas envolvidas na situação analisada. são, primeiramente, as próprias categorias Assim, para dar um exemplo pedagógico, das perspectivas tradicionais sobre currí- uma professora iniciante poderia analisar culo, sobre pedadogia e sobre ensino que sua própria experiência ao dar suas pri- são submetidas à suspensão e à redução meiras aulas. Ela procuraria evitar, antes fenomenológicas. "aprendiza- de mais nada, uma descrição que se limi- gem", "avaliação", "metodologia" são tasse ao significado comumente atribuído conceitos de segunda ordem, que aprisio- a uma situação como essa, assim como nam a experiência pedagógica e educa- buscaria fugir de uma descrição demasia- cional do mundo vivido de docentes e damente dependente de categorias abs- estudantes. Depois, é a própria tratas ou Ela se centraria, ao cia dos estudantes que se torna objeto da invés disso, na do significa- investigação fenomenológica. Assim, en- do que essa experiência tem para ela. Ela quanto no currículo tradicional os estu- buscaria a "essência" dessa experiência, dantes eram encorajados a adotar a atitude não no sentido de uma "essência" anterior, supostamente científica que caracterizava pré-existente, mas no sentido de uma as disciplinas acadêmicas, no currículo fe- "essência" que esteja para além das cate- nomenológico eles são encorajados a apli- gorias tanto do senso comum quanto da car à sua própria experiência, ao seu ciência. Além de uma demorada intros- próprio mundo vivido a atitude que ca- pecção, a professora, transformada em racteriza a investigação fenomenológica. analista fenomenológica, poderia lançar A atitude fenomenológica envolve, mão dos significados que outras pessoas primeiramente, selecionar temas(que pos- atribuem a essa situação, bem como dos sam ser submetidos à análise fenomeno- significados com que a situação possa lógica. Em geral, esses temas, como se ter sido descrita na literatura e na arte. depreende dos exemplos desenvolvidos A análise fenomenológica termina numa na literatura educacional de análise feno- escrita fenomenológica, na qual a analista menológica, são temas/que fazem parte reconstitui, através da linguagem (sempre 4</p><p>uma experiência de segunda ordem), a descrição objetiva, abstrata, universalizada, experiência vivida por ela ou por outras dos conceitos de tempo utilizados pela pessoas envolvidas na situação. criança. Uma análise fenomenológica, em Os temas submetidos à análise na lite- contraste, procuraria destacar os aspec- ratura fenomenológica sobre currículo tos subjetivos, vividos, concretos, situados, parecem quase sempre "banais", precisa- da experiência de tempo da criança. mente porque são retirados da É precisamente caráter situacional, cia banalizada da vida cotidiana. Em certo singular, único, concreto da experiência sentido, que a análise fenomenológica vivida aqui e agora que a análise procura é desbanalizá-los, torná-los, outra fenomenológica procura destacar. A aná- vez, significativos. Assim, por exemplo, um lise fenomenológica foge dos universais e conjunto de textos fenomenológicos di- abstratos do conhecimento vulgados recentemente pelo canadense conceitual, para se focalizar no concreto Max van Manen, na Internet, focaliza os e no histórico do mundo vivido. A análi- seguintes temas, entre outros: a se fenomenológica é, assim, profunda- sentir-se em casa; a saudação "como vai mente pessoal, subjetiva, você?"; a experiência de ser madrasta; a Em seus momentos mais reveladores, ela "malhação" (exercício físico); bem como é comovedoramente poética. Ela revela temas nem tão banais como a morte, a mais por evocar e sugerir do que por doença e a experiência de se receber um mostrar e convencer. diagnóstico médico. Algumas vezes Na teorização sobre currículo, a análi- objeto da análise fenomenológica coincide se fenomenológica tem sido, com objeto de outros tipos de análise, mente, combinada com duas outras mas a abordagem é radicalmente diferen- estratégias de investigação: a hermenêuti- te. Um dos textos mencionados focaliza, ca e a autobiografia. Por exemplo, Max van por exemplo, a noção de tempo da crian- Manen, já citado, pratica aquilo que ele ça. Pode-se comparar, aqui, essa análise chama de "hermenêutica fenomenológica", com aquelas análises de inspiração piagetia- uma abordagem que combina as estratégias na da mesma temática. A análise piagetia- da descrição fenomenológica com as estra- na estaria centrada, provavelmente, numa tégias da 42</p><p>De forma geral, a hermenêutica, tal como verbo currere, em latim, correr. É, antes desenvolvida modernamente por autores de tudo, um verbo, uma atividade e não como Gadamer, destaca, em contraste uma coisa, um substantivo. Ao enfatizar com a suposta existência de um significa- verbo, deslocamos a ênfase da "pista do único e determinado, a possibilidade de corrida" para ato de a de múltipla interpretação que têm os pista". É como atividade que o currículo textos entendidos, aqui, não apenas deve ser compreendido - uma ativida- como texto escrito, mas como qual- de que não se limita à nossa vida escolar, quer conjunto de significados. Embora a educacional, mas à nossa vida inteira. tal como definida origi- Em oposição tanto às perspectivas tra- nalmente por Husserl, esteja centrada dicionais quanto às perspectivas críticas numa descrição das coisas tais como elas macrossociológicas, o método autobiográ- são, ela também envolve, em última aná- fico, na visão de Pinar, permite focalizar o lise, a utilização de uma gama de estraté- concreto, o singular, o situacional, o histó- gias interpretativas. rico na nossa vida. Ele permite conectar a autobiografia tem sido combinada individual ao social de uma forma que as com uma orientação fenomenológica para outras perspectivas não fazem. método enfatizar os aspectos formativos do cur- autobiográfico não se limita a desvelar os rículo, entendido, de forma ampla, como momentos e os aspectos formativos de experiência vivida. Em alguns autores, nossa vida, sobretudo de nossa vida edu- como Wiliam Pinar, por exemplo, recor- cacional e pedagógica: ele próprio tem re-se também a recursos analíticos da uma dimensão formativa, autotransfor- psicanálise. Nessa perspectiva, o método mativa. Em última análise, ao menos na autobiográfico nos permitiria investigar as linguagem dos anos iniciais de desenvol- formas pelas quais nossa subjetividade e vimento da perspectiva autobiográfica, a identidade são formadas. William Pinar autobiografia tem um objetivo libertador, recorre à etimologia da palavra curriculum emancipador Ao permitir que se façam para dar-lhe um sentido renovado. Ele conexões entre conhecimento esco- destaca que essa palavra, significando ori- a história de vida ginalmente "pista de corrida", deriva do intelectual e profissional, a autobiografia 43</p><p>contribui para a transformação do pró- a autobiografia poderia ser utilizada como .prio eu. Na perspectiva da autobiogra- um recurso educacional nesse nível edu- fia, uma maior compreensão de si implica cacional, mas fica difícil pensar na auto- um agir mais consciente, responsável e biografia como uma abordagem única do comprometido. processo curricular. Tal como a perspectiva mais geral de análise fenomenológica do currículo, a au- Leituras tobiografia, como uma visão epistemológi- MARTINS, Joel. Um enfoque fenomenológico do curri- ca que vai contra as formas racionalistas culo: educação como São Paulo: Cortez, de conhecer das ciências sociais, não com- 1992. bina bem com a forma como o currículo DOMINGUES, José Luiz. "Interesses humanos e oficial está organizado, isto é, em torno de paradigmas curriculares". Revista brasileira de matérias ou disciplinas. Talvez seja por isso estudos pedagógicos, 67(156), 1986: p.351-66 que os exemplos dados nessa literatura tendam a se referir à área de formação docente. William Pinar, por exemplo, su- gere que se examine autobiograficamente nossa vida escolar e educacional: como foi nossa experiência educacional quando entramos na escola; quais episódios lem- bramos; quais nossos sentimentos nesses episódios; quais as conexões entre nosso eu e conhecimento formal? Por seu caráter autotransformativo, essa inves- tigação autobiográfica seria extremamen- te importante no processo de formação docente. A literatura autobiográfica é menos clara no que se refere à aplicação do método autobiográfico à educação de crianças e jovens. Pode-se imaginar como 44</p><p>A crítica neomarxista de Michael Apple início da crítica neomarxista às teo- outras esferas sociais, como a educação e rias tradicionais do currículo e ao papel a cultura, por exemplo. Há, pois, uma rela- ideológico do currículo está fortemente ção estrutural entre economia e educação, identificado com pensamento de Michael entre economia e cultura. Nos termos da Apple. Trabalhos anteriores, como os de terminologia introduzida por autores como Althusser e Bourdieu, por exemplo, ti- Bernstein e Bourdieu, há um vínculo en- nham estabelecido as bases de uma crítica tre reprodução cultural e reprodução so- radical à educação liberal, mas não tinham cial. Mais especificamente, há uma clara propriamente tomado como foco de seu conexão entre a forma como a economia questionamento currículo e conheci- está organizada e a forma como currícu- mento escolar. Apple aproveita-se dessas lo está organizado. críticas e de outras tradições da teoriza- Para Apple, entretanto, essa ligação não ção social crítica mais ampla (Raymond é uma ligação de determinação simples e Williams, por exemplo), para uma direta. A preocupação em evitar uma con- análise crítica do currículo que iria ser cepção mecanicista e determinista dos muito influente nas décadas seguintes. vínculos entre produção e educação já Apple toma como ponto de partida os estava presente em seu primeiro livro, elementos centrais da crítica marxista da Ideologia e currículo, publicado pela primei- sociedade. A dinâmica da sociedade capi- ra vez nos Estados Unidos em 1979, mas talista gira em torno da dominação de ela iria se tornar ainda mais forte nos seus classe, da dominação dos que detêm con- livros posteriores. Basicamente, para ele, trole da propriedade dos recursos mate- não é suficiente postular um vínculo en- riais sobre aqueles que possuem apenas tre, de um lado as estruturas econômi- sua força de trabalho. Essa característica cas e sociais mais amplas e, de outro, a da organização da economia na sociedade educação e-o currículo. Esse vínculo é capitalista afeta tudo aquilo que ocorre em mediado por processos que ocorrem no 45</p><p>campo da educação e do currículo e que Bernstein e Michael Young, que Michael são aí ativamente produzidos. Ele é me- Apple vai colocar currículo no cen- diado pela ação humana. Aquilo que ocor- tro das teorias educacionais críticas. Con- re na educação e no currículo não pode trapondo-se às perspectivas tradicionais ser simplesmente deduzido do funciona- sobre currículo, Apple vê currículo em mento da economia. termos estruturais e relacionais. É essa preocupação que leva Apple a currículo está estreitamente relaciona- recorrer ao conceito de tal do às estruturas econômicas e sociais como formulado por Antonio Gramsci e mais amplas Q currículo não é um desenvolvido por Raymond Williams. É po neutro, inocente e desinteressado de conceito de hegemonia que permite ver conhecimentos. Contrariamente ao que campo social como um campo contes- supõe o modelo de Tyler, por exemplo, tado, como um campo onde os grupos o currículo não é organizado através de dominantes se vêem obrigados a recor- um processo de seleção que recorre às rer a um esforço permanente de conven- fontes imparciais da filosofia ou dos valo- cimento ideológico para manter sua res supostamente consensuais da socie- dominação. É precisamente através des- dade. conhecimento corporificado no se esforço de convencimento que a do- currículo é um conhecimento particular. minação econômica se transforma em A seleção que constitui o currículo é o hegemonia cultural. Esse convencimento resultado de um processo que reflete os atinge sua máxima eficácia quando se interesses particulares das classes e gru- transforma em senso comum, quando se pos dominantes. naturaliza. campo cultural não é um sim- Na análise de Apple, a preocupação ples reflexo da economia: ele tem a sua não é com a validade epistemológica do própria dinâmica. As estruturas econô- conhecimento corporificado no currícu- micas não são suficientes para garantir a lo. A questão não é saber qual conhecimen- consciência; a consciência precisa ser to é verdadeiro, mas qual conhecimento é conquistada em seu próprio campo. considerado verdadeiro. A preocupação é É com esses elementos, acrescidos com as formas pelas quais certos conhe- de elementos tomados de empréstimo cimentos são considerados como legíti- a autores como Pierre Bourdieu, Basil mos, em detrimento de outros, vistos 46</p><p>como ilegítimos. Nos modelos tradicio- por exemplo, de Bowles e Gintis, que nais, conhecimento existente é toma- chamaram a atenção para papel exerci- do como dado, como inquestionável. Se do pelas relações sociais da escola no pro- existe algum questionamento, ele não vai cesso de reprodução social. É caso além de critérios epistemológicos estrei- também de Bernstein, que centrou sua tos de verdade e falsidade. Como conse- análise menos naquilo que é transmitido os modelos técnicos de currículo e mais na forma como é transmitido. De limitam-se à questão do "como" organi- outro, situam-se aquelas críticas que de- zar currículo. Na perspectiva política ram mais importância ao currículo explí- postulada por Apple, a questão importan- cito, oficial, ao "conteúdo" do te é, ao invés disso, a questão do "por Pode-se dizer que este foi o caso de quê". Por que esses conhecimentos e não Althusser, ao menos na primeira parte outros? Por que esse conhecimento é de seu ensaio sobre a ideologia e os apa- considerado importante e não outros? E relhos ideológicos de estado. Apple pro- para evitar que esse "por que" seja res- cura realizar uma análise que dê igual pondido simplesmente por critérios de importância aos dois aspectos do currí- verdade e falsidade, é extremamente im- culo, embora se possa notar uma ênfase portante perguntar: "trata-se do conhe- ligeiramente maior no seu cimento de quem?". Quais interesses plícito, naquilo que ele chama de "currí- guiaram a seleção desse conhecimento Ele considera necessário particular? Quais são as relações de po- examinar tanto aquilo que ele chama de der envolvidas no processo de seleção "regularidades do cotidiano escolar" que resultou nesse currículo particular? quanto currículo explícito; tanto ensi- No que concerne ao papel do currículo no implícito de normas, valores e disposi- no processo de reprodução cultural e so- ções quanto os pressupostos ideológicos cial, essa crítica inicial do currículo esteve e epistemológicos das disciplinas que cons- tituem o currículo oficial. freqüentemente dividida entre duas ênfa- ses. De um lado, estavam aquelas críticas Como boa parte da literatura socioló- que enfatizavam papel do chamado "cur- gica crítica sobre currículo desse período rículo oculto" nessa reprodução. É o caso, inicial, Apple colocava uma grande ênfase, 47</p><p>em Ideologia e currículo, no processo que a Em seu primeiro livro, Ideologia e cur- escola exerce na distribuição do conheci- rículo, Apple, em consonância com pa- mento oficial. A suposição é de que a es- radigma marxista adotado, enfatizava as cola simplesmente transmite e distribui relações sociais de classe, embora admi- conhecimento que é produzido em algum tindo, talvez secundariamente, a impor- outro lugar. Apple, entretanto, concede tância das relações de gênero e raça no um papel igualmente importante à escola processo de reprodução cultural e social como produtora de conhecimento, sobre- exercido pelo currículo. A importância tudo daquilo que ele chama de "conheci- atribuída a essas diferentes dinâmicas iria mento técnico". "conhecimento técnico" se tornar mais equilibrada nos livros pos- relaciona-se diretamente com a estrutura teriores. que se manteria, entretanto, e funcionamento da sociedade capita- era uma comum preocupação com lista, uma vez que se trata de conheci- poder. que torna sua análise mento relevante para a economia e a é precisamente essa centralidade produção. Obviamente, essa produção se da às relações de poder. Currículo e po- dá principalmente nos níveis superiores der essa é a equação que do sistema educacional, isto é, na universi- estrutura a crítica do currículo desenvol- dade. Mas na medida em que os requisitos vida por Apple. A questão básica é a da de entrada na universidade pressionam os conexão entre, de um lado, a produção, currículos dos outros níveis educacionais, distribuição e consumo dos recursos esses currículos refletem a mesma ênfa- materiais, econômicos e, de outro, a pro- se no "conhecimento técnico". É esse dução, distribuição e consumo de recur- tipo de conhecimento que acaba sendo SOS simbólicos como a cultura, visto como tendo prestígio, em detri- conhecimento, a educação e o currículo. mento de outras formas de conhecimen- Como vimos, já em seu primeiro livro to, como conhecimento estético e Apple procurava construir uma perspec- artístico, por exemplo. Trata-se de mais tiva de análise crítica do currículo que um dos mecanismos pelos quais o cur- incluísse as mediações, as contradições e rículo se liga com processo de repro- ambigüidades do processo de reprodu- dução cultural e social. ção cultural e social. Entretanto, apenas 48</p><p>com desenvolvimento posterior da te- de divisão da sociedade afetam currícu- orização crítica é que as contradições e lo? Como a forma como currículo pro- resistências iriam ganhar um papel mais cessa conhecimento e as pessoas destacado. Ao ênfase ao conceito de contribui, por sua vez, para reproduzir hegemonia, Apple chama atenção para aquela divisão? Qual conhecimento - de fato de que a reprodução social não é um quem - é privilegiado no currículo? Quais processo e garantido. As pes- grupos se beneficiam e quais grupos são soas precisam ser convencidas da dese- prejudicados pela forma como currícu- jabilidade e legitimidade dos lo está organizado? Como se formam re- sociais existentes. Mas esse convencimen- sistências e oposições ao currículo oficial? to não se dá conflito e re- Ao enfatizar essas questões, Michael Apple sistência. É precisamente esse caráter contribui, de forma importante, para poli- conflagrado que caracteriza um campo tizar a teorização sobre currículo. cultural como do currículo. Como uma luta em torno de valores, significados e propósitos sociais, campo social e cul- Leituras tural é feito não apenas de imposição e APPLE, Michael. Ideologia e currículo. São Paulo: domínio, mas também de resistência e Brasiliense, 1982. oposição. A descrição do currículo como APPLE, Michael. "Vendo a educação de forma sendo também um campo de resistência relacional: classe e cultura na sociologia do está apenas esboçada em Ideologia e cur- conhecimento escolar". Educação e realidade, rículo. Ela seria reforçada posteriormente 1986: p.19-34. por influência, principalmente, da pesquisa APPLE, Michael. "Currículo e poder". Educação e de Paul Willis relatada no livro Aprenden- realidade, 14(2), 1989: p.46-57. do a ser trabalhador. APPLE, Michael. Educação e poder. Porto Alegre: Em suma, na perspectiva de Apple, Artes Médicas, currículo não pode ser compreendido MOREIRA, Antonio Flavio B. A contribuição de e transformado - se não fizermos per- Michael Apple para desenvolvimento de uma guntas fundamentais sobre suas conexões teoria curricular crítica no Brasil. Fórum educa- com relações de poder. Como as formas cional, 1989, 13 (4), p.17-30. 49</p><p>currículo como política cultural: Henry Entre os autores que, nos Estados incorporam, embora de forma limitada Unidos, ajudaram a desenvolver uma te- contida, as recentes contribuições orização crítica sobre currículo, destaca- pós-modernismo e do pós-estruturalismo. se, sem dúvida, a figura de Henry Giroux. A síntese que se segue baseia-se, pois, nos Embora iniciando um pouco mais tarde seus primeiros livros: culture, and do que Michael Apple, Giroux contribuiu the process of schooling (1981) e Theory de forma decisiva para traçar os contor- and resistance in education (1983). nos de uma teorização crítica que iria, Tal como ocorreu com outros auto- depois, florescer de modo talvez lines- res dessa fase inicial, também a crítica de perado. Tal como fizemos com Michael Giroux esteve centrada, nesse momen- Apple, vamos nos restringir aqui a fazer to, numa reação às perspectivas empíri- uma síntese das teorizações e conceitos cas e técnicas sobre currículo então desenvolvidos em sua primeira fase. Giroux dominantes. Utilizando-se de conceitos tem se voltado, desde então, para temáti- desenvolvidos pelos autores da Escola de cas e direções que algumas vezes pare- Frankfurt (Adorno, Horkheimer, Marcuse), cem um tanto distantes daquelas nas Giroux ataca a racionalidade técnica e quais se concentrava inicialmente, nisso utilitária, bem como positivismo diferindo bastante de Apple. Nos seus últimos livros, Giroux tem se preocupa- perspectivas dominantes sobre currícu- do cada vez mais com a problemática da lo. Na análise de Giroux, as perspectivas cultura popular tal como se apresenta no dominantes, ao se concentrarem em cri- cinema, na música e na televisão. Embora térios de eficiência e racionalidade buro- sempre em conexão com a questão pe- crática, de levar em consideração dagógica e curricular, suas análises pare- caráter ético e político das cem ter se tornado crescentemente mais ações humanas e sociais e, particularmen- culturais. do que propriamente educacio- te, no caso do currículo, de conhecimen nais. Além disso, seus últimos escritos to. Como resultado desse apagamento do 5</p><p>caráter social e histórico do conhecimen- No momento em que Giroux come- to, as teorias tradicionais sobre currículo, ça a escrever já estavam em circulação as assim como próprio currículo, contri- teorizações que teriam, depois, tanta in- buem para a reprodução das desigualda- fluência sobre a teoria educacional crítica: des e das injustiças sociais. a crítica da ideologia de Althusser; a crítica desenvolvimento das teorias críti- cultural de Bourdieu e Passeron; o princí- cas sobre currículo, como vimos, esteve pio da correspondência de Bowles e Gin- estreitamente ligado - em contraposi- tis. Giroux tal como Apple, não estava ção ao empiricismo e ao pragmatismo satisfeito com a rigidez estrutural e com vulgar das perspectivas tradicionais - à as pessimistas dessas teo- utilização da teoria social crítica mais am- rizações. Seu trabalho inicial iria se con- pla. Giroux foi, entretanto, talvez um dos centrar, em boa parte, no desenvolvimento poucos autores a se utilizar, nessa fase, de uma cuidadosa crítica dessas perspec- dos insights teóricos dos investigadores da tivas, bem como no esboço de alternati- Escola de Frankfurt. se inclinava, vas que pudessem superar aquilo que ele nesse momento, para uma posição que via como falhas e omissões dessas teorias. era claramente tributária do marxismo, Assim, por exemplo, ele criticava Bowles mas ele queria evitar, ao mesmo tempo, e Gintis pelo caráter mecanicista e deter- uma identificação com a rigidez econo- minista de seu princípio da correspondên- micista de certos enfoques marxistas. A cia que não deixava nenhum espaço para produção teórica da Escola de Frankfurt, a mediação e a ação humanas. Nesse mo- com sua ênfase na dinâmica cultural e na delo, aquilo que ocorria na escola e no crítica da razão iluminista e da racionali- currículo estava determinado, de antemão, dade técnica, ajustava-se perfeitamente a pelo que acontecia na economia e na pro- esse objetivo. A Escola de Frankfurt for- dução. Por outro lado, a teorização que necia uma crítica à epistemologia implíci- Bourdieu e Passeron faziam do processo ta na racionalidade técnica que podia ser de reprodução cultural e social dava um prontamente aplicada à crítica tanto das peso excessivo à dominação e à cultura perspectivas dominantes sobre currícu- dominante, em detrimento das culturas la quanto ao próprio currículo existente. dominadas e de processos de resistência. 52</p><p>Giroux é igualmente crítico, entre- currículo e, de outro, as relações sociais tanto, daquelas vertentes da crítica mais amplas de controle e poder. educacional que se inspiravam mais na É no conceito de resistência, entre- fenomenologia e nos modelos interpre- tanto, que Giroux vai buscar as bases para tativos de teorização social do que nos uma teorização crítica, mas diversos estruturalismos. Como descre- alternativa, sobre a pedagogia e currí- vi noutro capítulo, uma das correntes do culo. Giroux esteve preocupado, nessa movimento de reconceptualização da fase inicial, em apresentar uma alterna- teorização curricular, nos Estados Uni- tiva que superasse o e dos, estava centrada no estudo fenome- imobilismo sugeridos pelas teorias da nológico das compreensões que as reprodução. Ele já fala aqui numa "peda- próprias pessoas que participam da cena gogia da possibilidade" - um conceito que educacional têm de seus atos e significa- vai se tornar central às teorizações de sua dos. Na Inglaterra, uma parte importan- fase intermediária. Contra a dominação te da chamada "nova sociologia da rígida das estruturas econômicas e sociais educação" também estava preocupada sugeridas pelo núcleo "duro" das teorias em desenvolver análises que levassem críticas da reprodução, Giroux sugere que em conta as formas pelas quais estudan- existem mediações e ações no nível da tes e docentes desenvolvem, através de escola e do currículo que podem traba- processos de negociação, seus próprios contra os desígnios do poder e do significados sobre conhecimento, controle. A vida social em geral e a peda- currículo e a vida educacional em geral. gogia e currículo em particular não são que estava em jogo, na pespectiva feitos apenas de dominação e controle. dessas análises, era a construção social Deve haver um lugar para a oposição e a desses significados pelos próprios agen- resistência, para a rebelião e a subversão. tes no espaço da escola e do currículo. Giroux critica essas análises por não da- Como outros autores, Giroux é ampla- rem suficiente ou nenhuma atenção às mente influenciado, nesse aspecto, pela conexões entre, de um lado, as formas pesquisa do sociólogo inglês, Paul Willis Ex- como essas construções se desenvol- aluno do importante Centre for Contem- vem no espaço restrito da escola e do porary Cultural Studies, da Universidade 53</p><p>Birmingham, Paul Willis iria se tornar co- demonstrado por estudantes e professo- nhecido pela pesquisa relatada no livro res para desenvolver uma pedagogia e um Aprendendo a ser trabalhador. Também currículo que tenham um conteúdo cla- insatisfeito com determinismo econô- ramente político e que seja crítico das mico das teorias da reprodução, Willis crenças e dos arranjos sociais dominan- quer saber que leva jovens de classe tes. Ao menos nessa fase, Giroux com- operária a voluntariamente escolher preende currículo fundamentalmente empregos de classe operária. Para isso, através dos conceitos de emancipação e Willis acompanha um grupo de jovens de libertação. Novamente, sob forte influên- classe operária de uma escola secundária cia dos teóricos da Escola de Frankfurt, em suas atividades tanto na escola quan- ele vê processo de emancipação como to no trabalho. Basicamente, que Willis um dos objetivos de uma ação social po- argumenta é que encaminhamento des- litizada. É através de um processo peda- ses jovens para ocupações de classe ope- gógico que permita às pessoas se tornarem rária não é simples resultado passivo conscientes do papel de controle e po- de uma lei econômica ou social. Essa des- der exercido pelas instituições e pelas tinação é ativamente criada na própria estruturas sociais que elas podem se tor- cultura juvenil operária, através, sobretu- nar emancipadas ou libertadas de seu do, da celebração, nessa cultura, de uma poder e controle. masculinidade fortemente associada com Três conceitos são centrais a essa con- a cultura operária do chão de fábrica. In- cepção emancipadora ou libertadora do felizmente, resultado final é mesmo, currículo e da pedagogia: esfera pública, mas que Willis vislumbra aí, nessa cul- intelectual voz. Tomando tura, é um momento e um espaço de cria- de empréstimo a Habermas conceito ção autônoma e ativa que poderia ser de "esfera pública", Giroux argumenta explorado para uma resistência mais po- que a escola e currículo devem funcio- liticamente informada. nar como uma "esfera pública democrá- essa possibilidade da resistência que A escola e currículo devem ser Giroux vai desenvolver em seus primei- locais onde os estudantes tenham a opor- ros trabalhos. Ele acredita que é tunidade de exercer as habilidades de- vel canalizar potencial de resistência mocráticas da discussão e da participação, 54</p><p>de questionamento dos pressupostos do possibilidades que estavam ausentes nas te- senso comum da vida social. Por outro orias críticas da reprodução então predo- lado, os professores e as professoras não minantes. Por outro lado, embora Paulo podem ser vistos como técnicos ou bu- salientasse a importância da parti- rocratas, mas como pessoas ativamente cipação das pessoas envolvidas no ato envolvidas nas atividades da crítica e do pedagógico na construção de seus pró- questionamento, a serviço do processo prios significados, de sua própria cultura, de emancipação e libertação. Tomando ele não deixava de enfatizar também as como base a noção de "intelectual orgâ- estreitas conexões entre a pedagogia e a nico" de Gramsci, Giroux vê os profes- política, entre a educação e poder. A sores e as professoras como "intelectuais crítica que Freire faz da "educação ban- transformadores". Finalmente, o concei- cária" e sua concepção do conhecimen- to de "voz", que Giroux desenvolveria na to como um ato ativo e dialético também fase intermediária de sua obra, aponta para combinavam com os esforços de Giroux a necessidade de construção de um espa- em desenvolver uma perspectiva de cur- onde os anseios, os desejos e os pensa- rículo que contestasse os modelos técni- mentos dos estudantes e das estudantes então dominantes. possam ser ouvidos e atentamente consi- Para sintetizar: numa tendência que derados. Através do conceito de "voz", iria ganhar mais impulso posteriormen- Giroux concede um papel ativo à sua par- te, Giroux vê a pedagogia e currículo ticipação - um papel que contesta as re- através da noção de "política cultural". lações de poder através das quais essa voz currículo envolve a construção de signi- tem sido, em geral, suprimida. ficados e valoresculturais currículo Há uma reconhecida influência de não está simplesmente envolvido com a Paulo Freire na obra de Henry Giroux. transmissão de "fatos" e conhecimentos Por um lado, a concepção libertadora de currículo é um-local onde, educação de Paulo Freire e sua noção ativamente, se produzem e se criam sig- de ação cultural forneciam-lhe as bases nificados sociais. Esses significados, entre- para desenvolvimento de um currícu- tanto, não são simplesmente significados lo e de uma pedagogia que apontavam para que se situam no nível da consciência 55</p><p>pessoal ou individual. Eles estão mente ligados a relações sociais de poder e Trata-se de significados em disputa, de significados que são im- postos, mas também contestados. Na visão de Giroux, há pouca diferença en- tre, de um lado, campo da pedagogia e do currículo e, de outro, campo da cultura. que está em jogo, em ambos, é uma política cultural. Leituras GIROUX, Henry Escola crítica e política cultural. São Paulo: Cortez, 1987. GIROUX, Henry. Pedagogia radical. Subsídios. São Paulo: Cortez, 1983. GIROUX, Henry. Teoria crítica e resistência em edu- cação Petrópolis: Vozes, 1986. 56</p><p>Pedagogia do oprimido versus pedagogia dos conteúdos Parece evidente que Paulo livro Pedagogia do oprimido que melhor desenvolveu uma teorização especifica representa pensamento pelo qual ele sobre currículo. Em sua obra, entretan- iria se tornar internacionalmente conhe- to, como ocorre com outras teorias pe- cido e reconhecido. Educação como práti- dagógicas, ele discute questões que estão ca da liberdade está ainda muito ligado ao relacionadas com aquelas que comumen- pensamento da chamada "ideologia do te estão associadas com teorias mais pro- desenvolvimento" que caracterizava priamente curriculares. Pode-se que pensamento de esquerda da época. Em seu esforço de teorização consiste, ao seu primeiro livro, a palavra-chave é, pre- menos em parte, em responder à ques- cisamente, "desenvolvimento". No se- tão curricular fundamental: "o que ensi- gundo, a centralidade do conceito de nar?". Em sua preocupação com a questão "desenvolvimento" é deslocada pelo de epistemológica fundamental ("o que sig- revolução Além disso, os elementos nifica conhecer?"), Paulo Freire desen- propriamente pedagógicos do pensamen- volveu uma obra que tem implicações to de Freire estão aí pouco desenvolvi- importantes para a teorização sobre dos: metade do livro é dedicada a uma currículo. Além disso, é conhecida sua análise da formação social brasileira. influência sobre as teorizações de auto- Pedagogia do oprimido, por outro lado, res e autoras mais diretamente ligados ao difere, em aspectos fundamentais, das ou- desenvolvimento de perspectivas mais tras teorizações que iriam constituir as propriamente curriculares. bases de uma teoria educacional crítica Aqui, como fizemos com outros au- (Althusser, Bourdieu e Passeron, Bowles tores, vamos nos restringir aos seus li- e Gintis). Em primeiro lugar, diferentemen- vros iniciais, particularmente Educação te daquelas teorizações, sua análise deve como prática da liberdade (1967) e Peda- muito mais à filosofia do que à sociologia gogia do oprimido (1970). Na verdade, é e à economia política. É verdade que a 57</p><p>análise que Freire faz da formação social sua análise estão claramente ausentes de brasileira na primeira parte de Educação análises mais estruturalistas da educação. como prática da liberdade é profundamen- Não se pode imaginar Althusser ou te histórica e sociológica. Já a análise que Bourdieu e Passeron falando, como faz Freire faz do processo de dominação em Freire em Pedagogia do oprimido e em li- Pedagogia do oprimido está baseada numa vros posteriores, de "amor", "fé nos ho- dialética hegeliana das relações entre se- mens", "esperança" ou "humildade". e servo, ampliada e modificada pela Finalmente, a teorização de Freire é leitura do "primeiro Marx", do marxismo claramente pedagógica, na medida em que humanista de Erich Fromm, da fenomeno- ele não se limita a como são a edu- logia existencialista e cristã e de críticos do cação e a pedagogia existentes, mas apre- processo de dominação colonial (Memmi, senta uma teoria bastante elaborada de Fanon). foco está, aqui, muito menos na como elas devem ser. Essas diferenças dominação como um reflexo das relações refletem-se inclusive nos títulos dos res- econômicas e muito mais na dinâmica pró- pectivos livros: enquanto o de Freire res- pria do processo de dominação. salta termo "pedagogia", livro de Em segundo lugar, as críticas socioló- Bowles e Gintis, por exemplo, sugere uma gicas da educação tomam como base a análise da escola na sociedade capitalista estrutura e funcionamento da educa- estadunidense, e de Baudelot e Establet ção institucionalizada nos países desen- propõe-se, claramente, a analisar a "es- volvidos. Está implícita na análise de Freire, cola capitalista na França". por sua vez, uma crítica à escola tradicio- A crítica de Freire exis- nal, mas sua preocupação está voltada tente está sintetizada no conceito de para o desenvolvimento da educação de "educação bancária". A educação bancá- adultos em países subordinados na ordem ria expressa uma visão epistemológica mundial. Na verdade, em Pedagogia do que concebe conhecimento como sen- oprimido, Freire adia a transformação da do constituído de informações e de fatos educação formal para depois da revolu- a serem simplesmente transferidos do ção. Pode-se dizer ainda que os concei- professor para o aluno. conhecimento tos humanistas utilizados por Freire em se confunde com um ato de depósito 58</p><p>bancário. Nessa concepção, conheci- conhecer e aquilo que se conhece. Utili- mento é algo que existe fora e indepen- zando conceito fenomenológico de "in- dentemente das pessoas envolvidas no tenção", conhecimento, para Freire, é ato pedagógico. Refletindo aqui a crítica sempre "intencionado", isto é, está sem- mais cientificista ligada à "ideologia do de- pre dirigido para alguma coisa. senvolvimento", bem como as críticas à mundo, pois, não existe a não ser escola tradicional feitas pelos ideólogos da como "mundo para nós", como mundo "Escola Nova", Freire ataca caráter ver- para a nossa consciência. Freire está aqui balista, narrativo, dissertativo do currículo longe das concepções pós-estruturalistas tradicional. Na sua ênfase excessiva num recentes que concebem conhecimen- verbalismo vazio, conhecimento to como estreitamente relacionado com expresso no currículo tradicional está suas formas de representação no texto e profundamente desligado da situação exis- no discurso. A representação implicada tencial das pessoas envolvidas no ato de na perspectiva de Freire é a do mundo conhecer. Na concepção bancária da edu- na consciência. ato de conhecer en- cação, educador exerce sempre um volve fundamentalmente tornar "pre- papel ativo, enquanto educando está li- sente" mundo para a consciência. mitado a uma recepção passiva. ato de conhecer não é, entretanto, Através do conceito de "educação para Freire, um ato isolado, individual. Freire busca desenvol- Conhecer envolve intercomunicação, in- ver uma concepção que possa se consti- tersubjetividade. Essa intercomunicação tuin numa alternativa à concepção bancária é mediada pelos objetos a serem conhe- que ele critica. Na base dessa "educação cidos. Na concepção de Freire, é através problematizadora" está uma compreen- dessa intercomunicação que os homens são radicalmente diferente do que sig- mutuamente se educam, intermediados nifica "conhecer". Aqui, a perspectiva de pelo mundo É essa intersub- Freire é claramente fenomenológica. Para jetividade do conhecimento que permite ele, conhecimento é sempre conheci- a Freire conceber ato pedagógico como mento de alguma coisa. Isso significa que um ato dialógico. A educação bancária não existe uma separação entre o ato de torna desnecessário o diálogo, na medida 59</p><p>em que apenas educador exerce algum bastante tradicionais, tais como "conteú- papel ativo relativamente ao conhecimen- dos" e "conteúdos programáticos", para to. Se conhecer é uma questão de depó- falar sobre currículo. Ele está bem cons- sito e acumulação de informações e fatos, ciente, entretanto, da necessidade do o educando é concebido em termos de desenvolvimento de um currículo que falta, de carência, de ignorância, relativa- esteja de acordo com sua concepção de mente àqueles fatos e àquelas informações. educação e pedagogia. A diferença relati- currículo e a pedagogia se resumem ao vamente às perspectivas tradicionais de papel de preenchimento daquela carên- currículo está na forma como se cons- cia. Em vez do diálogo, há aqui uma co- troem esses "conteúdos programáticos". municação unilateral. Na perspectiva da Pode-se comparar, nesse aspecto, o educação problematizadora, ao invés dis- método sugerido por Paulo Freire, com so, todos os sujeitos estão ativamente os métodos seguidos por modelos mais envolvidos no ato de conhecimento. tradicionais, como o de Tyler, por exem- mundo objeto a ser conhecido plo. Tyler sugeria estudos sobre os apren- não é simplesmente "comunicado"; ato dizes e sobre a vida ocupacional adulta pedagógico não consiste em simplesmen- bem como a opinião dos especialistas das te "comunicar mundo". Em vez disso, diferentes disciplinas como fontes para educador e educandos criam, dialogica- desenvolvimento de objetivos educacio- mente, um conhecimento do mundo. nais, tudo isso filtrado pela filosofia e pela É sobre essas bases que Freire vai psicologia educacionais. Na perspectiva de desenvolver seu famoso "método". Ele não Freire, é a própria experiência dos edu- se limita a criticar o currículo implícito no candos que se torna a fonte primária de conceito de "educação bancária". Freire busca dos "temas significativos" ou "temas fornece, já em Pedagogia do oprimido, ins- geradores" que vão constituir "conteú- truções detalhadas de como desenvolver do programático" do currículo dos pro- um currículo que seja a expressão de sua gramas de educação de adultos. Freire não concepção de "educação problematiza- nega papel dos especialistas que, inter- dora". É curioso observar que Freire uti- disciplinarmente, devem organizar esses liza nesse livro expressões e conceitos temas em unidades programáticas, mas o 60</p>