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Tomaz Tadeu da Silva DOCUMENTOS de IDENTIDADE Uma introdução às teorias do currículo N. Cham.: 37.016 S586d Autor: Silva, Tomaz Tadeu da, Título: Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo 409146 Ac. 1414082 de Ex.6 UFOP ICHS autênticaTraçar um mapa dos estudos sobre currí- culo desde sua gênese, nos anos vinte, até as atuais teorias pós-críticas é que se propõe este livro. Em capítulos curtos e redigidos em linguagem direta, autor nos fornece um panorama sintético, mas abrangente, das prin- cipais perspectivas sobre currículo. que ensinar?" se constituiu na questão que, a princípio, as teorias do currículo ten- taram responder. Concebida nas perspectivas tradicionais como uma questão simplesmente técnica, ela se tornaria mais complexa na me- dida em que as teorias críticas e pós-críticas passavam a conceber o currículo como um campo ético e moral. As perspectivas tradicio- nais tomavam a resposta à questão que ensinar?" como dada e se concentravam na questão do "como ensinar". Para essas pers- pectivas, "teorizar" currículo resumia-se em discutir as melhores e mais eficientes formas de organizá-lo. As teorias críticas iriam contestar, de forma radical, esse raciocínio. Seu primeiro movimen- to seria, justamente, de questionar conhe- cimento corporificado no currículo. Elas então perguntam: por que este conhecimento faz parte do currículo e não outro? Por que alguns conhecimentos são considerados válidos e não outros? Quais são interesses e as relações de poder que fazem com que determinados conhecimentos acabem fazendo parte do cur- rículo, enquanto outros são excluídos?TOMAZ TADEU DA SILVA Documentos de identidade Uma introdução às teorias do currículo409146TOMAZ TADEU DA SILVA Documentos de identidade Uma introdução às teorias do currículo Ex: 409146 edição reimpressão autênticaCopyright © 1999 Tomaz Tadeu da Silva Todos direitos reservados pela Autêntica Editora Ltda. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica, sem a autorização prévia da Editora. EDITORA RESPONSÁVEL Rejane Dias EDITORA ASSISTENTE Cecilia Martins REVISÃO Roberto Arreguy Maia e Cecília Martins CAPA Jairo Alvarenga Fonseca, composição sobre as pinturas "The teacher (sub a)" e "Jesus Serene", de Marlene Dumas, reproduzidas com autorização da artista, do livro Marlene Dumas, de autoria de Dominic van den Boogerd, Barbara Bloom e Mariuccia Casadio, publicado pela editora Phaidon. DIAGRAMAÇÃO Waldênia Alvarenga Silva, Tomaz Tadeu da S586d Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo / Tomaz Tadeu da Silva 3. ed.; 15. reimp. Belo Horizonte: Autêntica, 2023. 156 p. ISBN 978-85-86583-44-5 1. Educação 2. Currículos escolares. I. Título CDU 37 371.214.1 GRUPO AUTÊNTICA Belo Horizonte São Paulo Rua Carlos Turner, 420 Av. Paulista, 2.073 Conjunto Nacional Silveira 31140-520 Horsa Sala 309 Bela Vista Belo Horizonte MG 01311-940 São Paulo SP Tel.: (55 31) 3465 4500 Tel.: www.grupoautentica.com.br SAC: atendimentoleitor@grupoautentica.com.brNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO CMAP Cod. 1.03.00 Grupo: 52 18.00.4006 UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO Data: 5 1 JUL. 2024 N° 1 54234 SISBIN - SISTEMA DE BIBLIOTECA D Processo 23109.006526/2024-76 ASS.: Pedido Biblioteca compra NF 12467 Valor R$ 42,63 Agradecimentos Ass.: Data 1 JUL. 2024 Meu muito obrigado às pessoas que leram as primeiras versões deste livro e me deram valiosas sugestões: Alfredo, Antonio Flavio, Gelsa, Guacira, Sandra. Agradeço, especialmente, à Guacira, estímulo e apoio que me fizeram sobreviver às solitárias sessões frente à tela do Tompamento N° FEDERAL DE OURO CMAP computador. Agradeço à Rejane, da Autêntica Editora, pelo apoio irrestrito à concepção do livro. 9 PRETODE CWb S 32 D due D DE DE LEDE DESumário I. INTRODUÇÃO Teorias do currículo: O que é isto? II. DAS TEORIAS TRADICIONAIS ÀS TEORIAS CRÍTICAS Nascem "estudos sobre currículo": as teorias tradicionais 21 Onde a crítica começa: ideologia, reprodução, resistência 29 Contra a concepção técnica: reconceptualistas 37 A crítica neomarxista de Michael Apple 45 O currículo como política cultural: Henry Giroux 51 Pedagogia do oprimido versus pedagogia dos conteúdos 57 O currículo como construção social: a "nova sociologia da educação" 65 Códigos e reprodução cultural: Basil Bernstein 71 Quem escondeu O currículo oculto? 77 III. AS TEORIAS PÓS-CRÍTICAS Diferença e identidade: currículo multiculturalista 85 As relações de gênero e a pedagogia feminista 91 O currículo como narrativa étnica e racial 99 Uma coisa "estranha" no currículo: a teoria queer 105 O fim das metanarrativas: O pós-modernismo A crítica pós-estruturalista do currículo 117 Uma teoria pós-colonialista do currículo 125 Os Estudos Culturais e O currículo 131 A pedagogia como cultura, a cultura como pedagogia 139 IV. DEPOIS DAS TEORIAS CRÍTICAS E PÓS-CRÍTICAS Currículo: uma questão de saber, poder e identidade 145 REFERÊNCIAS 151I. INTRODUÇÃOTeorias do currículo: que é isto? O que é uma teoria do currículo? Quan- para ser descoberta, descrita e explicada, do se pode dizer que se tem uma "teoria do uma coisa chamada "currículo". O currícu- currículo"? Onde começa e como se desen- lo seria um objeto que precederia a teoria, volve a história das teorias do currículo? O a qual só entraria em cena para descobri-lo, que distingue uma "teoria do currículo" da descrevê-lo, explicá-lo. teoria educacional mais ampla? Quais são Da perspectiva do pós-estruturalismo, as principais teorias do currículo? O que hoje predominante na análise social e distingue as teorias tradicionais das teorias cultural, é precisamente esse viés repre- críticas do currículo? E que distingue as sentacional que torna problemático O teorias críticas do currículo das teorias próprio conceito de teoria. De acordo pós-críticas? com essa visão, é impossível separar a Podemos começar pela discussão da descrição simbólica, linguística da reali- própria noção de "teoria". Em geral, está dade isto é, a teoria de seus "efeitos implícita, na noção de teoria, a suposição de realidade". A "teoria" não se limitaria, de que a teoria "descobre" "real", de pois, a descobrir, a descrever, a explicar que há uma correspondência entre a a realidade: a teoria estaria irremedia- "teoria" e De uma forma ou velmente implicada na sua produção. Ao de outra, a noção envolvida é sempre re- descrever um "objeto", a teoria, de certo presentacional, especular, mimética:a teoria modo, inventa-o. O objeto que a teoria representa, reflete, espelha a realidade. A supostamente descreve é, efetivamente, teoria é uma representação, uma imagem, um produto de sua criação. um reflexo, um signo de uma realidade que Nessa direção, faria mais sentido falar cronologicamente, ontologicamente a não em teorias, mas em discursos ou textos. precede. Assim, para já entrar no nosso Ao deslocar a ênfase do conceito de teoria tema, uma teoria do currículo começaria para de discurso, a perspectiva pós-es- por supor que existe, "lá fora", esperando truturalista quer destacar precisamenteenvolvimento das descrições linguísti- aparece pela primeira vez como um objeto cas da "realidade" em sua produção. Uma específico de estudo e pesquisa nos Esta- teoria supostamente descobre e descreve dos Unidos dos anos vinte. Em conexão um objeto que tem uma existência in- com processo de industrialização e dependente relativamente à teoria. Um movimentos imigratórios, que intensifica- discurso, em troca, produz seu próprio vam a massificação da escolarização, houve objeto:a existência do objeto é inseparável um impulso, por parte de pessoas ligadas da trama linguística que supostamente sobretudo à administração da educação, descreve. Para voltar ao nosso exemplo do para racionalizar processo de construção, "currículo", um discurso sobre currículo desenvolvimento e testagem de currículos. aquilo que, numa outra concepção, seria As ideias desse grupo encontram sua má- uma teoria não se restringe a represen- xima expressão no livro de Bobbitt, The tar uma coisa que seria O "currículo", que curriculum (1918).Aqui, currículo é visto existiria antes desse discurso e que está ali, como um processo de racionalização de apenas à espera de ser descoberto e descri- resultados educacionais, cuidadosa e ri- to. Um discurso sobre currículo, mesmo gorosamente especificados e medidos. que pretenda apenas descrevê-lo "tal como modelo institucional dessa concepção de ele realmente é", que efetivamente faz é currículo é a fábrica. Sua inspiração "teóri- produzir uma noção particular de currículo. ca" é a "administração de Taylor. A suposta descrição é, efetivamente, uma No modelo de currículo de Bobbitt, criação. Do ponto de vista do conceito pós- estudantes devem ser processados como estruturalista de discurso, a "teoria" está um produto fabril. No discurso curricular envolvida num processo circular: ela des- de Bobbitt, pois, currículo é suposta- creve como uma descoberta algo que ela mente isso: a especificação precisa de própria criou. Ela primeiro cria e depois objetivos, procedimentos e métodos para descobre, mas, por um artifício retórico, a obtenção de resultados que possam ser aquilo que ela cria acaba aparecendo como precisamente mensurados. Se pensamos uma descoberta. no modelo de Bobbitt através da noção Podemos ver como isso funciona num tradicional de teoria, ele teria descoberto caso concreto. Provavelmente currículo e descrito que, verdadeiramente, é 12"currículo". Nesse entendimento, "cur- deveria ser têm "efeitos de realidade" rículo" sempre foi isso que Bobbitt diz ser: similares. Para dizer de outra forma, su- ele se limitou a descobri-lo e a descrevê-lo. postas asserções sobre a realidade acabam Da perspectiva da noção de "discurso", funcionando como se fossem asserções entretanto, não existe nenhum objeto "lá sobre como a realidade deveria ser. Elas fora" que se possa chamar de "currículo". têm mesmo efeito: de fazer com que O que Bobbitt fez, como outros antes e a realidade se torne que elas dizem que depois dele, foi criar uma noção particular é ou deveria ser. Para retomar O exemplo de"currículo" .Aquilo que Bobbitt dizia ser de Bobbitt, é irrelevante saber se ele está "currículo" passou, efetivamente, a ser dizendo que currículo é, efetivamente, "currículo". Para um número considerável um processo industrial e administrativo ou, de escolas, de professores, de estudantes, em vez disso, que currículo deveria ser de administradores educacionais, "aquilo" um processo industrial e administrativo. O que Bobbitt definiu como sendo currículo efeito final, de uma forma ou outra, é que tornou-se uma realidade. currículo se torna um processo industrial e administrativo. A noção de discurso teria uma van- tagem adicional. Ela nos dispensaria de Apesar dessas advertências, a utilização fazer esforço de separar como sería- da palavra "teoria" está muito amplamente mos obrigados, se ficássemos limitados à difundida para poder ser simplesmente noção tradicional de teoria asserções abandonada. Em vez de simplesmente sobre a realidade de asserções sobre como abandoná-la, parece suficiente adotar uma deveria ser a realidade. Como sabemos, compreensão da noção de "teoria" que nos as chamadas "teorias do assim mantenha atentos ao seu papel ativo na como as teorias educacionais mais amplas, constituição daquilo que ela supostamente estão recheadas de afirmações sobre como descreve. É nesse sentido que a palavra as coisas deveriam ser. Da perspectiva "teoria", ao lado das palavras "discurso" da noção de discurso, estamos dispensa- e "perspectiva", será utilizada ao longo dos dessa operação, na medida em que deste livro. tanto supostas asserções sobre a realidade A adoção de uma noção de teoria que quanto asserções sobre como a realidade levasse em conta seus efeitos discursivos 13nos pouparia de uma outra dor de cabeça: culo ou um discurso curricular busca a das definições. Todo livro de currículo responder. Percorrendo as diferentes que se preze inicia com uma boa discussão e diversas teorias do currículo, quais sobre que é, afinal, "currículo". Em geral, questões comuns elas tentam, explícita começam com as definições dadas pelo ou implicitamente, responder? Além das dicionário para, depois, percorrer as defi- questões comuns, que questões especí- nições dadas por uns quantos manuais de ficas caracterizam as diferentes teorias currículo. Na perspectiva aqui adotada, que do currículo? Como essas questões es- vê as "teorias" do currículo a partir da no- pecíficas distinguem as diferentes teorias ção de discurso, as definições de currículo do currículo? não são utilizadas para capturar, finalmente, A questão central que serve de pano verdadeiro significado de currículo, para de fundo para qualquer teoria do currículo decidir qual delas mais se aproxima daquilo é a de saber qual conhecimento deve ser que currículo essencialmente é, mas, em ensinado. De uma forma mais sintética vez disso, para mostrar que aquilo que o a questão central é: O quê? Para respon- currículo é depende precisamente da for- der a essa questão, as diferentes teorias ma como ele é definido pelos diferentes podem recorrer a discussões sobre a autores e teorias. Uma definição não nos natureza humana, sobre a natureza da revela que é, essencialmente, currículo: aprendizagem ou sobre a natureza do uma definição nos revela que uma deter- conhecimento, da cultura e da sociedade. minada teoria pensa O que currículo é.A As diferentes teorias se diferenciam, inclu- abordagem aqui é muito menos ontológica sive, pela diferente ênfase que dão a esses (qual é verdadeiro "ser" do currículo?) e elementos. Ao final, entretanto, elas têm muito mais histórica (como, em diferentes que voltar à questão básica: que eles ou momentos, em diferentes teorias, o currí- elas devem saber? Qual conhecimento ou culo tem sido definido?). saber é considerado importante ou válido Talvez mais importante e mais in- ou essencial para merecer ser considerado teressante do que a busca da definição parte do currículo? última de "currículo" seja a de saber A pergunta "o quê?", por sua vez, nos quais questões uma "teoria" do currí- revela que as teorias do currículo estão 14envolvidas, explícita ou implicitamente, em dos atuais modelos neoliberais de educa- desenvolver critérios de seleção que justifi- ção? Será a pessoa ajustada aos ideais de quem a resposta que darão àquela questão. cidadania do moderno estado-nação? Será O currículo é sempre o resultado de uma a pessoa desconfiada e crítica dos arranjos seleção: de um universo mais amplo de sociais existentes preconizada nas teorias nhecimentos e saberes seleciona-se aquela educacionais críticas? A cada um desses parte que vai constituir, precisamente, "modelos" de ser humano corresponderá um currículo. As teorias do currículo, tendo tipo de conhecimento, um tipo de currículo. decidido quais conhecimentos devem ser No fundo das teorias do currículo está, selecionados, buscam justificar por que pois, uma questão de "identidade" ou de "esses conhecimentos" e não "aqueles" "subjetividade". Se quisermos recorrer à devem ser selecionados. etimologia da palavra "currículo", que vem Nas teorias do currículo, entretanto, a do latim curriculum, "pista de corrida", po- quê?" nunca está separada de demos dizer que no curso dessa "corrida" uma outra importante pergunta: "o que que é O currículo acabamos por nos tornar eles ou elas devem ser?" ou, melhor, "o que somos. Nas discussões cotidianas, que eles ou elas devem se tornar?" .Afinal, quando pensamos em currículo pensamos um currículo busca precisamente modi- apenas em conhecimento, esquecendo-nos ficar as pessoas que vão "seguir" aquele de que conhecimento que constitui currículo. Na verdade, de alguma forma, currículo está inextricavelmente, central- essa pergunta precede à quê?", mente, vitalmente, envolvido naquilo que na medida em que as teorias do currículo somos, naquilo que nos tornamos: na nossa deduzem tipo de conhecimento con- identidade, na nossa subjetividade. Talvez siderado importante justamente a partir possamos dizer que, além de uma questão de descrições sobre tipo de pessoa que de conhecimento, o currículo é também elas consideram ideal. Qual é tipo de ser uma questão de identidade. É sobre essa humano desejável para um determinado questão, pois, que se concentram também tipo de sociedade? Será a pessoa racional as teorias do currículo. e ilustrada do ideal humanista de educação? Da perspectiva pós-estruturalista, Será a pessoa otimizadora e competitiva podemos dizer que currículo é também 15uma questão de poder e que as teorias do mais facilmente status quo, os conheci- currículo, na medida em que buscam dizer mentos e saberes dominantes, acabam que currículo deve ser, não podem por se concentrar em questões técnicas. deixar de estar envolvidas em questões de Em geral, elas tomam a resposta à questão poder. Selecionar é uma operação de po- "o quê?" como dada, como óbvia e por isso der. Privilegiar um tipo de conhecimento buscam responder a uma outra questão: é uma operação de poder. Destacar, entre "como?". Dado que temos esse conheci- as múltiplas possibilidades, uma identidade mento (inquestionável?) a ser transmitido, ou subjetividade como sendo a ideal é uma qual é a melhor forma de transmiti-lo? As operação de poder.As teorias do currículo teorias tradicionais se preocupam com não estão, neste sentido, situadas num cam- questões de organização.As teorias críticas "puramente" epistemológico, de com- e pós-críticas, por sua vez, não se limitam petição entre "puras" teorias. As teorias a quê?", mas submetem este do currículo estão ativamente envolvidas "quê" a um constante questionamento. na atividade de garantir O consenso, de Sua questão central seria, pois, não tanto obter hegemonia. As teorias do currículo "o quê?", mas "por quê?". Por que esse estão situadas num campo epistemológico conhecimento e não outro? Quais inte- social. As teorias do currículo estão no resses fazem com que esse conhecimento centro de um território contestado. e não outro esteja no currículo? Por que É precisamente a questão do poder privilegiar um determinado tipo de iden- que vai separar as teorias tradicionais das tidade ou subjetividade e não outro? As teorias críticas e pós-críticas do currículo. teorias críticas e pós-críticas de currículo As teorias tradicionais pretendem ser estão preocupadas com as conexões entre apenas isso: "teorias" neutras, científicas, saber, identidade e poder. desinteressadas. As teorias críticas e as Como vimos, uma teoria define-se teorias pós-críticas, em contraste, argu- pelos conceitos que utiliza para conce- mentam que nenhuma teoria é neutra, ber a "realidade". Os conceitos de uma científica ou desinteressada, mas que está, teoria dirigem nossa atenção para certas inevitavelmente, implicada em relações de coisas que sem eles não "veríamos". Os poder. As teorias tradicionais, ao aceitar conceitos de uma teoria organizam e 16estruturam nossa forma de ver a "realida- planejamento de".Assim, uma forma útil de distinguirmos eficiência as diferentes teorias do currículo é através objetivos do exame dos diferentes conceitos que TEORIAS CRÍTICAS elas empregam. Neste sentido, as teorias ideologia críticas de currículo, ao deslocar a ênfase reprodução cultural e social dos conceitos simplesmente pedagógicos poder de ensino e aprendizagem para os con- classe social ceitos de ideologia e poder, por exemplo, capitalismo nos permitiram ver a educação de uma relações sociais de produção nova perspectiva. Da mesma forma, ao conscientização enfatizarem conceito de discurso em emancipação e libertação vez do conceito de ideologia, as teorias currículo oculto pós-críticas de currículo efetuaram um resistência outro importante deslocamento na nossa TEORIAS PÓS-CRÍTICAS maneira de conceber currículo. Por isso, identidade, alteridade, diferença à medida que percorrermos, nos tópicos subjetividade a seguir, as diferentes teorias do currículo, significação e discurso pode ser útil ter em mente seguinte saber-poder quadro, que resume as grandes categorias representação de teoria de acordo com os conceitos que cultura elas, respectivamente, enfatizam. gênero, raça, etnia, sexualidade multiculturalismo TEORIAS TRADICIONAIS ensino aprendizagem avaliação metodologia didática organização Biblioteca de Guimarães 17 ICHS/UFOP - Mariana-MGdo buscam que de de / com Como S de organizamII. DAS TEORIAS TRADICIONAIS ÀS TEORIAS CRÍTICASNascem os "estudos sobre currículo": as teorias tradicionais A existência de teorias sobre currículo tucionalização do estudo do currículo como está identificada com a emergência do campo campo especializado, não deixaram de fazer do currículo como um campo profissional, especulações sobre currículo, mesmo que especializado, de estudos e pesquisas sobre não utilizassem termo. currículo. As professoras e professores de Mas as teorias educacionais e peda- todas as épocas e lugares sempre estiveram gógicas não são, estritamente falando, envolvidos, de uma forma ou outra, com teorias sobre O currículo. Há anteceden- currículo, antes mesmo que surgimento de tes, na história da educação ocidental uma palavra especializada como "currículo" moderna, institucionalizada, de preocu- pudesse designar aquela parte de suas ativida- pações com a organização da atividade des que hoje conhecemos como "currículo". educacional e até mesmo de uma atenção A emergência do currículo como campo de consciente à questão do que ensinar. estudos está estreitamente ligada a proces- A Didactica magna, de Comenius, é um SOS tais como a formação de um corpo de desses exemplos.A própria emergência da especialistas sobre currículo, a formação de palavra curriculum, no sentido que moder- disciplinas e departamentos universitários so- namente atribuímos ao termo, está ligada bre currículo, a institucionalização de setores a preocupações de organização e método, especializados sobre currículo na burocracia como ressaltam as pesquisas de David educacional do estado e surgimento de Hamilton. O termo curriculum, entretanto, revistas acadêmicas especializadas sobre no sentido que hoje lhe damos, só passou currículo. a ser utilizado em países europeus como De certa forma, todas as teorias peda- França,Alemanha, Espanha, Portugal muito gógicas e educacionais são também teorias recentemente, sob influência da literatura sobre currículo. As diferentes filosofias educacional americana. educacionais e as diferentes pedagogias, É precisamente nessa literatura que em diferentes épocas, bem antes da insti- termo surge para designar um campo 21especializado de estudos. Foram talvez as nalidades e contornos da escolarização condições associadas com a institucionaliza- de massas. Quais objetivos da educação ção da educação de massas que permitiram escolarizada: formar trabalhador espe- que campo de estudos do currículo sur- cializado ou proporcionar uma educação gisse, nos Estados Unidos, como um campo geral, acadêmica, à população? O que se profissional especializado. Estão entre essas deve ensinar: as habilidades básicas de condições: a formação de uma burocracia escrever, ler e contar; as disciplinas acadê- estatal encarregada dos negócios ligados à micas humanísticas; as disciplinas científicas; educação; estabelecimento da educação as habilidades práticas necessárias para as como um objeto próprio de estudo científi- ocupações profissionais? Quais as fontes a extensão da educação escolarizada em principais do conhecimento a ser ensinado: níveis cada vez mais altos a segmentos cada conhecimento acadêmico; as disciplinas vez maiores da população; as preocupações científicas; saberes profissionais do mun- com a manutenção de uma identidade do ocupacional adulto? O que deve estar nacional, como resultado das sucessivas no centro do ensino: os saberes "objetivos" ondas de imigração; O processo de cres- do conhecimento organizado ou as per- cente industrialização e urbanização. cepções e as experiências "subjetivas" das É nesse contexto que Bobbitt escreve, crianças e dos jovens? Em termos sociais, em 1918, livro que iria ser considerado quais devem ser as finalidades da educação: marco no estabelecimento do currículo ajustar as crianças e os jovens à sociedade como um campo especializado de estudos: tal como ela existe ou prepará-los para The curriculum. livro de Bobbitt é escrito transformá-la; a preparação para a econo- num momento crucial da história da educa- mia ou a preparação para a democracia? ção estadunidense, num momento em que As respostas de Bobbitt eram claramente diferentes forças econômicas, políticas e conservadoras, embora sua intervenção bus- culturais procuravam moldar os objetivos casse transformar radicalmente sistema e as formas da educação de massas de educacional. Bobbitt propunha que a escola acordo com suas diferentes e particulares funcionasse da mesma forma que qualquer visões. É nesse momento que se busca outra empresa comercial ou industrial. responder questões cruciais sobre as fi- Tal como uma indústria, Bobbit queria 22que sistema educacional fosse capaz de tinha escrito, em 1902, um livro que tinha especificar precisamente que resultados a no título, The child and pretendia obter, que pudesse estabelecer the curriculum. Neste livro, Dewey estava métodos para obtê-los de forma precisa e muito mais preocupado com a construção formas de mensuração que permitissem sa- da democracia que com funcionamento ber com precisão se eles foram realmente da economia. Também em contraste com alcançados. sistema educacional deveria Bobbitt, ele achava importante levar em começar por estabelecer de forma precisa consideração, no planejamento curricu- quais são seus objetivos. Esses objetivos, lar, os interesses e as experiências das por sua vez, deveriam se basear num crianças e jovens. Para Dewey, a educação exame daquelas habilidades necessárias não era tanto uma preparação para a para exercer com eficiência as ocupações vida ocupacional adulta, como um local profissionais da vida adulta. O modelo de de vivência e prática direta de princípios Bobbitt estava claramente voltado para a democráticos. A influência de Dewey, economia. Sua palavra-chave era "eficiên- entretanto, não iria se refletir da mesma cia". sistema educacional deveria ser tão forma que a de Bobbitt na formação do eficiente quanto qualquer outra empresa currículo como campo de estudos. econômica. Bobbitt queria transferir para A atração e influência de Bobbitt a escola modelo de organização propos- devem-se provavelmente ao fato de que to por Frederick Taylor. Na proposta de sua proposta parecia permitir à educação Bobbitt, a educação deveria funcionar de tornar-se científica. Não havia por que acordo com princípios da administração discutir abstratamente as finalidades últi- científica propostos por Taylor. mas da educação: elas estavam dadas pela A orientação dada por Bobbitt iria própria vida ocupacional adulta. Tudo que constituir uma das vertentes dominantes era preciso fazer era pesquisar e mapear da educação estadunidense no restante do quais eram as habilidades necessárias para século XX. Mas ela iria concorrer com as diversas ocupações. Com um mapa pre- vertentes consideradas mais progressis- ciso dessas habilidades, era possível, então, tas, como a liderada por John Dewey, por organizar um currículo que permitisse sua exemplo. Bem antes de Bobbitt, Dewey aprendizagem. A tarefa do especialista em 23currículo consistia, pois, em fazer levan- exemplo dado pelo próprio Bobbitt é es- tamento dessas habilidades, desenvolver clarecedor. Numa oitava série, ilustra ele, currículos que permitissem que essas habi- algumas crianças realizam adições "a um lidades fossem desenvolvidas e, finalmente, ritmo de 35 combinações por minuto", planejar e elaborar instrumentos de medi- enquanto outras, "ao lado, adicionam a ção que possibilitassem dizer com precisão um ritmo médio de 105 combinações por se elas foram realmente aprendidas. minuto". Para Bobbitt, estabelecimento Na perspectiva de Bobbitt, a questão do de um padrão permitiria acabar com essa currículo se transforma numa questão de variação. Nas últimas décadas, diz ele, organização. currículo é simplesmente educadores vieram a "perceber que é uma mecânica. A atividade supostamente possível estabelecer padrões definitivos científica do especialista em currículo não para os vários produtos educacionais. A passa de uma atividade burocrática. Não capacidade para adicionar a uma velocidade é por acaso que conceito central, nessa de 65 combinações por minuto [...] é uma perspectiva, é "desenvolvimento curricu- especificação tão definida quanto a que se lar", um conceito que iria dominar a litera- pode estabelecer para qualquer aspecto tura estadunidense sobre currículo até do trabalho da fábrica de anos 80. Numa perspectiva que considera modelo de currículo de Bobbitt iria que as finalidades da educação estão dadas encontrar sua consolidação definitiva num pelas exigências profissionais da vida adulta, livro de Ralph Tyler, publicado em 1949. currículo se resume a uma questão de paradigma estabelecido por Tyler iria desenvolvimento, a uma questão técnica. dominar o campo do currículo nos Esta- Tal como na indústria, é fundamental, dos Unidos, com influência em diversos na educação, de acordo com Bobbitt, que se países, incluindo Brasil, pelas próximas estabeleçam padrões. O estabelecimento quatro décadas. Com livro de Tyler, de padrões é tão importante na educação estudos sobre currículo se tornam de- quanto, digamos, numa usina de fabricação cididamente estabelecidos em torno da de aços, pois, de acordo com ideia de organização e desenvolvimento. educação, tal como a usina de fabricação Apesar de admitir a filosofia e a sociedade de aço, é um processo de moldagem". como possíveis fontes de objetivos para o 24currículo, paradigma formulado por Tyler vida contemporânea fora da educação; 3. centra-se em questões de organização e sugestões dos especialistas das diferentes desenvolvimento. Tal como no modelo de disciplinas. Aqui, Tyler expande O modelo Bobbitt, o currículo é, aqui, essencialmente, de Bobbitt, ao incluir duas fontes que uma questão técnica. Vejamos, de forma não eram contempladas por Bobbitt: a sintética, modelo proposto por Tyler. psicologia e as disciplinas acadêmicas. A organização e O desenvolvimento A segunda fonte é uma demonstração do currículo deve buscar responder, de de certa continuidade relativamente ao acordo com Tyler, quatro questões básicas: modelo de Bobbitt. que objetivos educacionais deve a es- Essas fontes gerariam, entretanto, um cola procurar atingir?; 2. que experiências número excessivo de objetivos, quais educacionais podem ser oferecidas que poderiam, além disso, ser mutuamente con- tenham probabilidade de alcançar esses traditórios. Para consertar essa situação, propósitos?; 3. como organizar eficiente- Tyler sugere submetê-los a duas espécies mente essas experiências educacionais?; 4. de "filtros": a filosofia social e educacional como podemos ter certeza de que esses com a qual a escola está comprometida e objetivos estão sendo alcançados?" As a psicologia da aprendizagem. quatro perguntas de Tyler correspondem Tyler insiste na afirmação de que à divisão tradicional da atividade educa- objetivos devem ser claramente definidos cional: "currículo" (1), "ensino e instrução" e estabelecidos. Os objetivos devem ser (2 e 3) e "avaliação" (4). formulados em termos de comportamento Em termos estritos, pois, apenas a pri- explícito. Essa orientação comportamen- meira questão diz respeito a "currículo". talista iria se radicalizar, aliás, nos anos 60, É precisamente a esta questão que Tyler com revigoramento de uma tendência dedica a maior parte de seu livro. Tyler fortemente tecnicista na educação estadu- identifica três fontes nas quais se devem nidense, representada, sobretudo, por um buscar objetivos da educação, afirmando livro de Robert Mager, Análise de objetivos, que cada uma delas deve ser igualmente também influente no Brasil na mesma levada em consideração: I. estudos sobre época. É apenas através dessa formulação próprios aprendizes; 2. estudos sobre a precisa, detalhada e comportamental dos 25objetivos que se pode responder às outras os estudantes ao repertório das grandes perguntas que constituem paradigma de obras literárias e artísticas das heranças Tyler. A decisão sobre quais experiências clássicas grega e latina, incluindo domí- devem ser propiciadas e sobre como nio das respectivas línguas. Supostamente, organizá-las depende dessa especificação essas obras encarnavam as melhores rea- precisa dos objetivos. Da mesma forma, é lizações e mais altos ideais do espírito impossível avaliar, como adiantava Bobbitt, humano. O conhecimento dessas obras sem que se estabelecesse com precisão não estava separado do objetivo de formar quais são os padrões de referência. um homem (sim, macho da espécie) que É interessante observar que tanto encarnasse esses ideais. modelos mais tecnocráticos, como os de Cada um dos modelos curriculares Bobbitt e Tyler, quanto modelos mais contemporâneos, O tecnocrático e O pro- progressistas de currículo, como de gressista, ataca modelo humanista por Dewey, que emergiram no início do sé- um flanco. O tecnocrático destacava a abs- culo nos Estados Unidos, constituíam, tração e a suposta inutilidade para a vida de certa forma, uma reação ao currículo moderna e para as atividades laborais das clássico, humanista, que havia domina- habilidades e conhecimentos cultivados pelo do a educação secundária desde sua currículo clássico. O latim e grego e institucionalização. Como se sabe, esse suas respectivas literaturas pouco serviam currículo era herdeiro do currículo das como preparação para trabalho da vida chamadas "artes liberais" que, vindo da profissional contemporânea. Não se aceita- Antiguidade Clássica, se estabelecera na va, aqui, nem mesmo os argumentos que no educação universitária da Idade Média e século XIX tinham sido desenvolvidos pela do Renascimento, na forma dos chamados perspectiva do "exercício segundo trivium (gramática, retórica, dialética) e a qual a aprendizagem de matérias como quadrivium (astronomia, geometria, músi- latim, por exemplo, servia para exercitar os ca, aritmética). Obviamente, currículo "músculos mentais", de uma forma que po- clássico humanista tinha implicitamente dia se aplicar a outros conteúdos. O modelo uma "teoria" do currículo. Basicamente, progressista, sobretudo aquele "centrado nesse modelo, objetivo era introduzir na criança", atacava O currículo clássico 26por seu distanciamento dos interesses e Leituras das experiências das crianças e dos jovens. HAMILTON, David. "Sobre as origens dos termos Por estar centrado nas matérias clássicas, classe e curriculum". Teoria e educação, 6, 1992: currículo humanista simplesmente desconsiderava a psicologia infantil. KLIEBARD, Herbert "Os princípios de Tyler". Ambas as contestações só puderam surgir, In Rosemary G. Messick, Lyra Paixão e Lília da obviamente, no contexto da ampliação R. Bastos (org.). Currículo: análise e debate. Rio: Zahar, 1980: p.39-52. da escolarização de massas, sobretudo da escolarização secundária que era foco KLIEBARD, Herbert M. "Burocracia e teoria do cur- do currículo clássico humanista. O cur- rículo". In Rosemary G. Messick, Lyra Paixão e Lília da R. Bastos (org.). Currículo: análise e debate. rículo clássico só pôde sobreviver no Rio: Zahar, 1980: P. 107-126. contexto de uma escolarização secundária MOREIRA, Antonio F. B. e SILVA, Tomaz T. da. de acesso restrito à classe dominante. A "Sociologia e teoria crítica do currículo: uma democratização da escolarização secundá- introdução". In Antonio F.B. Moreira e Tomaz T. ria significou também fim do currículo da Silva (orgs.). Currículo, sociedade e cultura. São humanista clássico. Paulo: Cortez, 1999: p.7-38. Os modelos mais tradicionais de cur- TYLER, Ralph básicos de currículo e ensino. rículo, tanto técnicos quanto os pro- Porto Alegre: Globo, 1974. gressistas de base psicológica, por sua vez, só iriam ser definitivamente contestados, Nota nos Estados Unidos, a partir dos anos 70, 'Para não sobrecarregar texto, as fontes de todas com chamado movimento de "reconcep- as citações estão listadas ao final do livro, na seção tualização do currículo". Mas esta é uma "Referências". outra história. Biblioteca Alphonsus de Guimarães ICHS/UFOP Mariana-MG 27ser in 8 que sb D ob on Como educação de must de modelo uma doOnde a crítica começa: ideologia, reprodução, resistência Como sabemos, a década de 60 foi uma de para a chamada "nova sociologia da década de grandes agitações e transforma- um movimento identificado ções. Os movimentos de independência com sociólogo inglês Michael Young. das antigas colonias europeias; protestos Uma revisão brasileira não deixaria de estudantis na França e em vários outros assinalar O importante papel da obra de países; continuação do movimento dos di- Paulo Freire, enquanto franceses certa- reitos civis nos Estados Unidos; protestos mente não deixariam de destacar papel contra a guerra do Vietnã; movimentos dos ensaios fundamentais de Althusser, de contracultura; movimento feminista; a Bourdieu e Passeron, Baudelot e Establet. liberação sexual; as lutas contra a ditadura Uma avaliação mais equilibrada argumen- militar no Brasil: são apenas alguns dos im- taria, entretanto, que O movimento de portantes movimentos sociais e culturais renovação da teoria educacional que iria que caracterizaram anos 60. Não por abalar a teoria educacional tradicional, coincidência foi também nessa década que tendo influência não apenas teórica, mas surgiram livros, ensaios, teorizações que inspirando verdadeiras revoluções nas colocavam em xeque O pensamento e a próprias experiências educacionais, "ex- estrutura educacional tradicionais. plodiu" em vários locais ao mesmo tempo. É compreensível que as pessoas en- As teorias críticas do currículo efetuam volvidas em revisar esses movimentos uma completa inversão nos fundamentos tendam a reivindicar a precedência para das teorias tradicionais. Como vimos, os aqueles movimentos iniciados em seu modelos tradicionais, como de Tyler, próprio país.Assim, para a literatura edu- por exemplo, não estavam absolutamente cacional estadunidense, a renovação da preocupados em fazer qualquer tipo de teorização sobre currículo parece ter sido questionamento mais radical relativamente exclusividade do chamado "movimento de aos arranjos educacionais existentes, às reconceptualização". Da mesma forma, formas dominantes de conhecimento ou, de a literatura inglesa reivindica priorida- modo mais geral, à forma social dominante. 29Ao tomar status quo como referência movimento de da te- desejável, as teorias tradicionais se con- oria curricular. É importante, de qualquer centravam, pois, nas formas de organização forma, revisar também aquelas teorias crí- e elaboração do currículo. Os modelos ticas mais gerais sobre educação pela influ- tradicionais de currículo restringiam-se ência que teriam sobre desenvolvimento à atividade técnica de como fazer o currí- da teoria crítica do currículo. Poderíamos culo. As teorias críticas sobre currículo, começar por uma breve cronologia dos em contraste, começam por colocar em marcos fundamentais tanto da teoria edu- questão precisamente os pressupostos cacional crítica mais geral quanto da teoria dos presentes arranjos sociais e edu- crítica sobre currículo: cacionais. As teorias críticas desconfiam 1970 Paulo Freire, A pedagogia do oprimido do status quo, responsabilizando-o pelas 1970 Louis Althusser, A ideologia e os desigualdades e injustiças sociais. As teo- aparelhos ideológicos de estado rias tradicionais eram teorias de aceitação, 1970 - Pierre Bourdieu e Jean-Claude ajuste e adaptação. As teorias críticas são Passeron, A reprodução teorias de desconfiança, questionamento 1971 Baudelot e Establet, L'école capita- e transformação radical. Para as teorias liste en France críticas importante não é desenvolver 1971 Basil Bernstein, Class, codes and técnicas de como fazer O currículo, mas control, V. desenvolver conceitos que nos permitam compreender que currículo faz. 1971 Michael Young, Knowledge and con- trol: new directions for the sociology É preciso fazer uma distinção, inicialmen- of education te, entre, de um lado, as teorizações críticas 1976 Samuel Bowles e Herbert Gintis, mais gerais como, por exemplo, importan- Schooling in capitalist America te ensaio de Althusser sobre a ideologia ou livro conjunto de Bourdieu e Passeron, A 1976 William Pinar e Madeleine Grumet, reprodução, e, de outro, aquelas teorizações Toward a poor curriculum centradas de forma mais localizada em 1979 Michael Apple, Ideologia e currículo questões de currículo, como, por exemplo, a "nova sociologia da educação" ou 30O agora famoso ensaio do filósofo de estado (a religião, a mídia, a escola, a francês Louis Althusser, A ideologia e os família). aparelhos ideológicos de Estado, iria for- Na primeira parte do ensaio, Althusser necer as bases para as críticas marxistas dá, implicitamente, uma definição bastante da educação que se seguiriam. Parti- simples de ideologia. A ideologia é consti- cularmente, Althusser, nesse ensaio, tuída por aquelas crenças que nos levam a iria fazer a importante conexão entre aceitar as estruturas sociais (capitalistas) educação e ideologia que seria central às existentes como boas e desejáveis. Essa subsequentes teorizações críticas da edu- definição é substancialmente modificada cação e do currículo baseadas na análise na segunda parte do ensaio, na qual marxista da sociedade. A referência que conceito de ideologia se torna bastante Althusser faz à educação neste breve en- mais complexo, mas esta é uma outra saio é bastante sumária. Essencialmente, discussão. A produção e a disseminação argumenta Althusser, a permanência da da ideologia é feita, como vimos, pelos sociedade capitalista depende da reprodu- aparelhos ideológicos de estado, entre ção de seus componentes propriamente quais se situa, de modo privilegiado, na econômicos (força de trabalho, meios argumentação de Althusser, justamente a de produção) e da reprodução de seus escola.A escola constitui-se num aparelho componentes ideológicos. Além da con- ideológico central porque, afirma Althusser, tinuidade das condições de sua produção atinge praticamente toda a população por material, a sociedade capitalista não se um período prolongado de tempo. sustentaria se não houvesse mecanismos Como a escola transmite a ideologia? e instituições encarregadas de garantir A escola atua ideologicamente através que status quo não fosse contestado. de seu currículo, seja de uma forma mais Isso pode ser obtido através da força ou direta, através das matérias mais suscetíveis do convencimento, da repressão ou da ao transporte de crenças explícitas sobre ideologia. O primeiro mecanismo está a a desejabilidade das estruturas sociais cargo dos aparelhos repressivos de estado existentes, como Estudos Sociais, História, (a polícia, judiciário); segundo é res- Geografia, por exemplo; seja de uma forma ponsabilidade dos aparelhos ideológicos mais indireta, através de disciplinas mais 31"técnicas", como Ciências e Matemática. resposta:a escola contribui para a reprodu- Além disso, a ideologia atua de forma ção da sociedade capitalista ao transmitir, discriminatória: ela inclina as pessoas das através das matérias escolares, as crenças classes subordinadas à submissão e à obe- que nos fazem ver arranjos sociais exis- diência, enquanto as pessoas das classes tentes como bons e desejáveis. Baudelot e dominantes aprendem a comandar e a Establet, num livro também agora clássico, controlar. Essa diferenciação é garantida A escola capitalista na França, iriam desen- pelos mecanismos seletivos que fazem volver, em detalhes, a tese althusseriana. com que as crianças das classes dominadas Caberia, entretanto, a dois economistas sejam expelidas da escola antes de chega- estadunidenses, Samuel Bowles e Herbert rem àqueles níveis onde se aprendem Gintis, fornecer uma resposta um pouco hábitos e habilidades próprios das classes diferente àquela pergunta central sobre dominantes. as conexões entre produção e educação. A problemática central da análise mar- Em seu livro,A escola capitalista na Améri- xista da educação e da escola consiste, Bowles e Gintis introduzem O conceito como mostra O exemplo de Althusser, em de correspondência para estabelecer a buscar estabelecer qual é a ligação entre natureza da conexão entre escola e pro- a escola e a economia, entre a educação e dução. Como vimos, Althusser enfatizava a produção. Uma vez que, na análise mar- papel do conteúdo das matérias escolares xista, a economia e a produção estão no na transmissão da ideologia capitalista, centro da dinâmica social, qual é O papel embora a definição de ideologia que ele da educação e da escola nesse processo? dava na segunda parte de seu ensaio (a Como a escola e a educação contribuem ideologia como prática) apontasse para a para que a sociedade continue sendo possibilidade de uma outra utilização desse capitalista, para que a sociedade continue conceito. Em contraste com essa ênfase sendo dividida entre capitalistas (proprietá- no conteúdo, Bowles e Gintis enfatizam rios dos meios de produção), de um lado, a aprendizagem, através da vivência das e trabalhadores (proprietários unicamente relações sociais da escola, das atitudes ne- de sua capacidade de trabalho), de outro? cessárias para se qualificar como um bom Althusser nos deu, como vimos, um tipo de trabalhador capitalista. As relações sociais 32do local de trabalho capitalista exigem cer- relações sociais de produção da sociedade tas atitudes por parte do trabalhador: obe- capitalista. Trata-se de um processo bidire- diência a ordens, pontualidade, assiduidade, cional. Num primeiro movimento, a escola confiabilidade, no caso do trabalhador é um reflexo da economia capitalista ou, subordinado; capacidade de comandar, de mais especificamente, do local de trabalho formular planos, de se conduzir de forma capitalista. Esse reflexo, por sua vez, garante autônoma, no caso dos trabalhadores que, num segundo movimento, de retor- situados nos níveis mais altos da escala no, O local de trabalho capitalista receba ocupacional. Como, no esquema de Bowles justamente aquele tipo de trabalhador de e Gintis, a escola garante que essas atitudes que necessita. sejam incorporadas à psique do estudante, A crítica da escola capitalista, nesse es- ou seja, do futuro trabalhador? tágio inicial, não ficaria limitada, entretanto, A escola contribui para esse processo à análise marxista. Os sociólogos franceses não propriamente através do conteúdo Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron explícito de seu currículo, mas ao espelhar, iriam desenvolver uma crítica da educação no seu funcionamento, as relações sociais que, embora centrada no conceito de"re- do local de trabalho. As escolas dirigidas produção", afastava-se da análise marxista aos trabalhadores subordinados tendem a em vários aspectos. Além do conceito de privilegiar relações sociais nas quais, ao pra- a análise de Bourdieu e Pas- ticar papéis subordinados, estudantes seron desenvolvia-se através de conceitos aprendem a subordinação. Em contraste, que eram devedores, embora apenas me- as escolas dirigidas aos trabalhadores dos taforicamente, de conceitos econômicos. escalões superiores da escala ocupacional Mas, contrariamente à análise marxista, O tendem a favorecer relações sociais nas funcionamento da escola e das instituições quais estudantes têm a oportunidade de culturais não é deduzido do funciona- praticar atitudes de comando e autonomia. mento da economia. Bourdieu e Passeron É, pois, através de uma correspondência vêem, entretanto, O funcionamento da entre as relações sociais da escola e as escola e da cultura através de metáforas relações sociais do local de trabalho que a econômicas. Nessa análise, a cultura não educação contribui para a reprodução das depende da economia: a cultura funciona 33como uma economia, como demonstra, domínio simbólico, que é domínio por exemplo, a utilização do conceito de por excelência da cultura, da significação, "capital cultural". atua através de um ardiloso mecanismo. Para Bourdieu e Passeron, a dinâmica da Ele adquire sua força precisamente ao reprodução social está centrada no processo definir a cultura dominante como sendo a de reprodução cultural. É através da repro- cultura. Os valores, hábitos e costumes, dução da cultura dominante que a reprodu- comportamentos da classe dominante ção mais ampla da sociedade fica garantida. são aqueles que são considerados como A cultura que tem prestígio e valor social é constituindo a cultura. Os valores e hábi- justamente a cultura das classes dominantes: tos de outras classes podem ser qualquer seus valores, seus gostos, seus costumes, outra coisa, mas não são a cultura. Agora seus hábitos, seus modos de se comportar, é que vem O truque. eficácia dessa defi- de agir. Na medida em que essa cultura tem nição da cultura dominante como sendo valor em termos sociais; na medida em que a cultura depende de uma importante ela vale alguma coisa; na medida em que ela operação. Para que essa definição alcance faz com que a pessoa que a possui obtenha sua máxima eficácia é necessário que ela vantagens materiais e simbólicas, ela se não apareça como tal, que ela não apareça constitui como capital cultural. Esse capital justamente como que ela é, como uma cultural existe em diversos estados. Ela definição arbitrária, como uma definição pode se manifestar em estado objetivado: que não tem qualquer base objetiva, como as obras de arte, as obras literárias, as obras uma definição que está baseada apenas na teatrais etc.A cultura pode existir também força (agora propriamente econômica) da sob a forma de títulos, certificados e diplo- classe dominante. É essa força original que mas: é O capital cultural institucionalizado. permite que a classe dominante possa de- Finalmente, capital cultural manifesta-se de finir sua cultura como a cultura, mas nesse forma incorporada, introjetada, internaliza- mesmo ato de definição oculta-se a força da. Nessa última forma ele se confunde com que torna possível que ela possa impor habitus, precisamente o termo utilizado essa definição arbitrária. Há, portanto, aqui, por Bourdieu e Passeron para se referir às dois processos em funcionamento: de um estruturas sociais e culturais que se tornam lado, a imposição e, de outro, a ocultação internalizadas. de que se trata de uma imposição, que 34aparece, então, como natural. É a esse du- estranho e alheio. O resultado é que as plo mecanismo que Bourdieu e Passeron crianças e jovens das classes dominantes chamam de dupla violência do processo de são bem-sucedidas na escola, que lhes dominação cultural. permite acesso aos graus superiores do Agora, onde entram a escola e a edu- sistema educacional. As crianças e jovens cação nesse processo? Em Bourdieu e das classes dominadas, em troca, só podem Passeron, contrariamente a outras análises encarar fracasso, ficando pelo caminho. críticas, a escola não atua pela inculcação As crianças e jovens das classes dominantes da cultura dominante às crianças e jovens veem seu capital cultural reconhecido e das classes dominadas, mas, ao contrário, fortalecido. As crianças e jovens das classes por um mecanismo que acaba por funcio- dominadas têm sua cultura nativa desvalo- nar como um mecanismo de exclusão. O rizada, ao mesmo tempo que seu capital currículo da escola está baseado na cultura cultural, já inicialmente baixo ou nulo, não dominante: ele se expressa na linguagem sofre qualquer aumento ou valorização. dominante, ele é transmitido através do Completa-se ciclo da reprodução cultural. código cultural dominante. As crianças É essencialmente através dessa reprodução das classes dominantes podem facilmente cultural, por sua vez, que as classes sociais compreender esse código, pois durante se mantêm tal como existem, garantindo toda sua vida elas estiveram imersas, processo de reprodução social. tempo todo, nesse código. Esse código é Em geral, tem-se deduzido da análise de natural para elas. Elas se sentem à vontade Bourdieu e Passeron (e, particularmente, das no clima cultural e afetivo construído por análises individuais de Bourdieu) uma peda- esse código. É seu ambiente nativo. Em gogia e um currículo que, em oposição ao contraste, para as crianças e jovens das currículo baseado na cultura dominante, se classes dominadas, esse código é simples- centrariam nas culturas dominadas. Trata-se, mente indecifrável. Eles não sabem do que provavelmente, de um mal-entendido. Sua se trata. Esse código funciona como uma análise não nos diz que a cultura dominante linguagem estrangeira: é incompreensível. é indesejável e que a cultura dominada seria, A vivência familiar das crianças e jovens em troca, desejável. Dizer que a classe do- das classes dominadas não os acostumou minante define arbitrariamente sua cultura a esse código, que lhes aparece como algo como desejável não é a mesma coisa que 35dizer que a cultura dominada é que é dese- Leituras jável. O que Bourdieu e Passeron propõem, ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de Estado. através do conceito de pedagogia racional, Rio: Graal, 1983. é que as crianças das classes dominadas BOURDIEU, Pierre e PASSERON, Jean-Claude. tenham uma educação que lhes possibilite A reprodução. Rio: Francisco Alvez, 1975. ter na escola a mesma imersão dura- BOURDIEU, Pierre. Escritos de educação. Petrópolis: Vozes, 1999. (Organização de Maria Alice No- doura na cultura dominante que faz parte gueira e Afrânio Catani) na família da experiência das crianças BOWLES, Samuel e GINTIS, Herbert. La instrucción das classes dominantes. Fundamentalmen- escolar en la América capitalista. México: Siglo te, sua proposta pedagógica consiste em XXI, 1981. advogar uma pedagogia e um currículo que SILVA, Tomaz Tadeu da. que produz e 0 que reproduz reproduzam, na escola, para as crianças das em educação. Porto Alegre:Artes Médicas, 1992. classes dominadas, aquelas condições que apenas as crianças das classes dominantes têm na família. Em seu conjunto, esses textos formam a base da teoria educacional crítica que iria se desenvolver nos anos seguintes. Eles podem ter sido amplamente criticados e questiona- dos na explosão da literatura crítica ocorrida nos anos 70 e 80, sobretudo por seu suposto determinismo econômico, mas, depois deles, a teoria curricular seria radicalmente modifi- cada.A teorização curricular recente ainda vive desse legado. 36Contra a concepção técnica: os reconceptualistas No final dos anos sessenta, podia-se pelo grupo, na Universidade de Rochester, já dizer que a hegemonia da concepção Nova York, em 1973. movimento de re- técnica do currículo estava com seus dias conceptualização exprimia uma insatisfação contados. Como vimos, esboçavam-se, em crescente de pessoas do campo do cur- vários países, ao mesmo tempo, movimen- rículo com os parâmetros tecnocráticos tos de reação às concepções burocráticas estabelecidos pelos modelos de Bobbitt e e administrativas de currículo. Em países Tyler. As pessoas identificadas com que como França e Inglaterra, os contornos passou a ser conhecido como "movimen- mais gerais de uma teoria educacional crítica to de reconceptualização" começavam a tendiam a partir de campos não diretamente perceber que a compreensão do currículo pedagógicos ou educacionais, como a so- como uma atividade meramente técnica e ciologia crítica (Bourdieu, por exemplo) e a administrativa não se enquadrava muito filosofia marxista (Althusser, por exemplo). bem com as teorias sociais de origem Nos Estados Unidos e Canadá, entretanto, sobretudo europeia com as quais elas movimento de crítica às perspectivas estavam familiarizadas: a fenomenologia, a conservadoras sobre currículo tinha origem hermenêutica, marxismo, a teoria crítica no próprio campo de estudo da educação. da Escola de Frankfurt. Aquilo que, nas Os antecedentes da rejeição dos pres- perspectivas tradicionais, era entendido supostos da concepção técnica de currí- como currículo era precisamente que, de culo tal como consolidada pelo modelo acordo com aquelas teorias sociais, precisa- de Tyler esboçavam-se já nos escritos de va ser questionado e criticado. Assim, por autores como James McDonald e Dwayne exemplo, do ponto de vista da fenomeno- Huebner. Um movimento mais organizado logia, as categorias de aprendizagem, objeti- e visível, entretanto, somente ia ganhar im- vos, medição e avaliação nada tinham a ver pulso sob a liderança de William Pinar, com com significados do "mundo da vida" a I Conferência sobre Currículo organizada através dos quais as pessoas constroem 37 Biblioteca Alphonsus de Guimarães Mariana-MGe percebem sua experiência. De acordo significados subjetivos que as pessoas dão com a perspectiva fenomenológica, essas às suas experiências pedagógicas e curricu- categorias tinham que ser "postas entre lares. Em ambas as perspectivas tratava-se parênteses", questionadas, para se chegar de desafiar modelos técnicos dominan- à "essência" da educação e do currículo. tes; em ambas as perspectivas procurava-se Do ponto de vista marxista, para tomar lançar mão de estratégias analíticas que um outro exemplo, a ênfase na eficiência e permitissem colocar em xeque as compre- na racionalidade administrativa apenas re- ensões naturalizadas do mundo social e, em fletia a dominação do capitalismo sobre a particular, da pedagogia e do currículo. No educação e currículo, contribuindo para caso da fenomenologia, da hermenêutica, a reprodução das desigualdades de classe. da autobiografia, entretanto, desnaturalizar Esses dois exemplos refletem, aliás, um as categorias com as quais, ordinariamente, antagonismo entre dois campos nos quais, compreendemos e vivemos cotidiano, nos Estados Unidos, dividiu-se a crítica dos significa focalizá-las através de uma pers- modelos tradicionais. De um lado, estavam pectiva profundamente pessoal e subjetiva. aquelas pessoas que utilizavam conceitos Há um vínculo com social, na medida em marxistas, filtrados através de análises mar- que essas categorias são criadas e mantidas, xistas contemporâneas, como as de Gramsci intersubjetivamente e através da linguagem, e da Escola de Frankfurt, para fazer a crítica mas, em última análise, foco está nas da escola e do currículo existentes. Essas experiências e nas significações subjetivas. análises enfatizavam papel das estrutu- Em contraste, na crítica de inspiração ras econômicas e políticas na reprodução marxista, desnaturalizar mundo "natu- cultural e social através da educação e do ral" da pedagogia e do currículo significa currículo. De outro lado, colocavam-se as submetê-lo a uma análise científica, cen- críticas da educação e do currículo tradicio- trada em conceitos que rompem com as nais inspiradas em estratégias interpretativas categorias de senso comum com as quais, de investigação, como a fenomenologia e a ordinariamente, vemos e compreendemos hermenêutica. Aqui, a ênfase não estava no aquele mundo. papel das estruturas ou em categorias teó- O movimento de reconceptualização, tal ricas abstratas (como ideologia, capitalismo, como definido por seus próprios iniciadores, controle, dominação de classe), mas nos pretendia incluir tanto as vertentes feno- 38menológicas quanto as vertentes marxistas, entendimento que normalmente temos mas as pessoas envolvidas nessas últimas re- do mundo cotidiano a uma suspensão. cusaram, em geral, uma identificação plena A investigação fenomenológica começa com aquele movimento. Na verdade, pro- por colocar os significados ordinários curaram até distanciar-se de um movimento do cotidiano "entre Aqueles que viam como excessivamente centrado significados que tomamos como naturais em questões subjetivas, como um movimen- constituem apenas a "aparência" das coi- to muito pouco político. Para autores de sas. Temos que colocar essa aparência em inspiração marxista, como Michael Apple, dúvida, em questão, para que possamos movimento de reconceptualização, em- chegar à sua "essência". A investigação fe- bora constituísse um questionamento do nomenológica coloca em questão, assim, as modelo técnico dominante, era visto como categorias do senso comum, mas elas não um recuo ao pessoal, ao narcisístico e ao são substituídas por categorias teóricas e subjetivo. final, rótulo da "reconceptu- científicas abstratas. Ela está focalizada, em alização" que caracterizou um movimento vez disso, na experiência vivida, no "mundo hoje dissolvido no pós-estruturalismo, no da vida", nos significados subjetiva e inter- feminismo, nos estudos culturais, ficou subjetivamente construídos. O conceito limitado às concepções fenomenológicas, de "significado" não tem, para a fenome- hermenêuticas e autobiográficas de críti- nologia, mesmo sentido que, depois, teria ca aos modelos tradicionais de currículo. para uma semiologia estruturalista, a qual É por isso que, nesta seção, limitaremos surge e se desenvolve, de certa forma, nossa discussão a essas concepções. As precisamente em reação e oposição a ela. perspectivas mais marxistas e estruturais, O para a fenomenologia, como a de Michael Apple e a de Henry não pode ser simplesmente determinado Giroux, serão tratadas em outra seção. por seu valor "objetivo" numa cadeia de A concepção contemporânea de feno- oposições estruturais, como na semiologia. menologia tem origem, como sabemos, em significado é, ao invés disso, algo profun- Edmund Husserl, sendo posteriormente damente pessoal e subjetivo. Sua conexão desenvolvida por autores como Heiddeger com social se dá não através de estru- e Merleau-Ponty. O ato fenomenológico turas sociais impessoais e abstratas, mas fundamental consiste em submeter através de conexões intersubjetivas. Para 39a fenomenologia, significado manifesta-se fenomenológica, com sua ênfase na expe- na linguagem, através da linguagem, mas é riência, no mundo vivido, nos significados também aquilo que de certa forma escapa subjetivos e intersubjetivos, pouco sentido à linguagem ordinária, ao senso comum fazem as formas de compreensão técnica implantado na linguagem. Os verdadeiros e científica implicadas na organização e significados de nossas experiências têm estruturação do currículo em torno de de voltar à linguagem para encontrar sua disciplinas. As disciplinas tradicionais expressão, mas eles têm, antes, de certa estão concebidas em torno de concei- forma, de ser recuperados embaixo da tos científicos, instrumentais, isto é, do linguagem, naquilo que foge à linguagem, mundo de segunda ordem dos conceitos no seu substrato. e não do mundo de primeira ordem das Intelectuais como Max van Mannen, experiências diretas. No máximo, as dis- Ted Aoki (ambos do Canadá) e Madeleine ciplinas e matérias tradicionais aparecem Grumet (Estados Unidos), que estiveram como categorias a serem questionadas, centralmente envolvidos, naqueles países, a serem "colocadas entre no desenvolvimento de uma compreensão Na perspectiva fenomenológica, o currí- fenomenológica do currículo, não esta- culo não é, pois, constituído de fatos, nem vam preocupados tanto com aspectos mesmo de conceitos teóricos e abstratos: filosóficos da fenomenologia quanto com currículo é um local no qual docentes e as possibilidades que a fenomenologia aprendizes têm a oportunidade de exami- apresentava para estudo do currículo.A nar, de forma renovada, aqueles significados perspectiva fenomenológica de currículo é, da vida cotidiana que se acostumaram a em termos epistemológicos, a mais radical ver como dados e naturais. O currículo é das perspectivas críticas, na medida em que visto como experiência e como local de representa um rompimento fundamental interrogação e questionamento da expe- com a epistemologia tradicional.A tradição riência. Na perspectiva fenomenológica, são, fenomenológica de análise do currículo primeiramente, as próprias categorias das é aquela que talvez menos reconhece a perspectivas tradicionais sobre currículo, estruturação tradicional do currículo em sobre pedagogia e sobre ensino que são disciplinas ou matérias. Para a perspectiva submetidas à suspensão e à redução feno- 40menológicas. "Objetivos", "aprendizagem", que se limitasse ao significado comumente "avaliação", "metodologia" são todos con- atribuído a uma situação como essa, assim ceitos de segunda ordem, que aprisionam como buscaria fugir de uma descrição de- a experiência pedagógica e educacional do masiadamente dependente de categorias mundo vivido de docentes e estudantes. abstratas ou científicas. Ela se centraria, ao Depois, é a própria experiência dos estu- invés disso, na singularidade do significado dantes que se torna objeto da investiga- que essa experiência tem para ela. Ela ção fenomenológica. Assim, enquanto no buscaria a "essência" dessa experiência, currículo tradicional estudantes eram não no sentido de uma "essência" ante- encorajados a adotar a atitude supostamen- rior, pré-existente, mas no sentido de te científica que caracterizava as disciplinas uma "essência" que esteja para além das acadêmicas, no currículo fenomenológico categorias tanto do senso comum quan- eles são encorajados a aplicar à sua própria to da ciência. Além de uma demorada experiência, ao seu próprio mundo vivido introspecção, a professora, transforma- a atitude que caracteriza a investigação da em analista fenomenológica, poderia fenomenológica. lançar mão dos significados que outras A atitude fenomenológica envolve, pri- pessoas atribuem a essa situação, bem meiramente, selecionar temas que possam como dos significados com que a situação ser submetidos à análise fenomenológica. possa ter sido descrita na literatura e na arte. Em geral, esses temas, como se depreende A análise fenomenológica termina numa dos exemplos desenvolvidos na literatura escrita fenomenológica, na qual a analista educacional de análise fenomenológica, são reconstitui, através da linguagem (sempre temas que fazem parte da vida cotidiana, uma experiência de segunda ordem), a rotineira, seja da própria pessoa que faz a experiência vivida por ela ou por outras análise, seja das pessoas envolvidas na situ- pessoas envolvidas na situação. ação analisada. Assim, para dar um exem- Os temas submetidos à análise na literatu- plo pedagógico, uma professora iniciante ra fenomenológica sobre currículo parecem poderia analisar sua própria experiência quase sempre "banais", precisamente porque ao dar suas primeiras aulas. Ela procuraria são retirados da experiência banalizada da evitar, antes de mais nada, uma descrição vida cotidiana. Em certo sentido, que a 41análise fenomenológica procura é desbana- fenomenológica procura destacar. aná- lizá-los, torná-los, outra vez, significativos. lise fenomenológica foge dos universais Assim, por exemplo, um conjunto de textos e abstratos do conhecimento científico, fenomenológicos divulgados recentemente conceitual, para se focalizar no concreto pelo canadense Max van Manen, na Internet, e no histórico do mundo vivido.A análise focaliza seguintes temas, entre outros: fenomenológica é, assim, profundamente a espera; sentir-se em casa; a saudação pessoal, subjetiva, idiossincrática. Em seus "como vai você?"; a experiência de ser ma- momentos mais reveladores, ela é como- drasta; a "malhação" (exercício físico); bem vedoramente poética. Ela revela mais por como temas nem tão banais como a morte, evocar e sugerir do que por mostrar e a doença e a experiência de se receber convencer. um diagnóstico médico. Algumas vezes Na teorização sobre currículo, a análi- objeto da análise fenomenológica coincide se fenomenológica tem sido, frequentemen- com objeto de outros tipos de análise, te, combinada com duas outras estratégias mas a abordagem é radicalmente diferente. de investigação: a hermenêutica e a auto- Um dos textos mencionados focaliza, por biografia. Por exemplo, Max van Manen, exemplo, a noção de tempo da criança. já citado, pratica aquilo que ele chama de Pode-se comparar, aqui, essa análise com "hermenêutica uma aquelas análises de inspiração piagetiana da abordagem que combina as estratégias mesma temática.A análise piagetiana estaria da descrição fenomenológica com as es- centrada, provavelmente, numa descrição tratégias interpretativas da hermenêutica. objetiva, abstrata, universalizada, dos con- De forma geral, a hermenêutica, tal ceitos de tempo utilizados pela criança. como desenvolvida modernamente por Uma análise fenomenológica, em contraste, autores como Gadamer, destaca, em procuraria destacar aspectos subjetivos, contraste com a suposta existência de vividos, concretos, situados, da experiência um significado único e determinado, a de tempo da criança. possibilidade de múltipla interpretação É precisamente caráter situacional, que têm textos entendidos, aqui, singular, único, concreto da experiência não apenas como texto escrito, mas vivida aqui e o agora que a análise como qualquer conjunto de significados. 42Embora a fenomenologia, tal como de- Em oposição tanto às perspectivas finida originalmente por Husserl, esteja tradicionais quanto às perspectivas críticas centrada numa descrição das coisas tais macrossociológicas, método autobiográ- como elas são, ela também envolve, em fico, na visão de Pinar, permite focalizar última análise, a utilização de uma gama concreto, singular, situacional, de estratégias interpretativas. histórico na nossa vida. Ele permite Já a autobiografia tem sido combinada nectar individual ao social de uma forma com uma orientação fenomenológica que as outras perspectivas não fazem. para enfatizar aspectos formativos O método autobiográfico não se limita do currículo, entendido, de forma ampla, a desvelar os momentos e aspectos como experiência vivida. Em alguns auto- formativos de nossa vida, sobretudo de res, como Wiliam Pinar, por exemplo, re- nossa vida educacional e pedagógica: ele corre-se também a recursos analíticos da próprio tem uma dimensão formativa, psicanálise. Nessa perspectiva, método autotransformativa Em última análise, autobiográfico nos permitiria investigar ao menos na linguagem dos anos iniciais as formas pelas quais nossa subjetividade de da perspectiva e identidade são formadas. William Pinar autobiográfica, a autobiografia tem um recorre à etimologia da palavra curriculum objetivo libertador, emancipador. Ao para dar-lhe um sentido renovado. Ele permitir que se façam conexões entre destaca que essa palavra, significando conhecimento escolar, a história de originalmente "pista de deriva vida e O desenvolvimento intelectual do verbo currere, em latim, correr. É, antes e profissional, a autobiografia contribui de tudo, um verbo, uma atividade e não para a transformação do próprio eu. Na uma coisa, um substantivo. Ao enfatizar perspectiva da autobiografia, uma maior verbo, deslocamos a ênfase da "pista compreensão de si implica um agir mais de corrida" para ato de "percorrer a consciente, responsável e comprometido. pista". É como atividade que currículo Tal como a perspectiva mais geral de deve ser compreendido uma atividade análise fenomenológica do currículo, a que não se limita à nossa vida escolar, autobiografia, como uma visão epistemoló- educacional, mas à nossa vida inteira. gica que vai contra as formas racionalistas 43de conhecer das ciências sociais, não com- Leituras bina bem com a forma como currículo MARTINS, Joel. Um enfoque fenomenológico do currí- oficial está organizado, isto é, em torno de culo: educação como poíesis. São Paulo: Cortez, 1992. matérias ou disciplinas. Talvez seja por isso que exemplos dados nessa literatura DOMINGUES, José Luiz. "Interesses humanos e tendam a se referir à área de formação paradigmas Revista brasileira de estudos pedagógicos, 67(156), 1986: docente. William Pinar, por exemplo, su- gere que se examine autobiograficamente nossa vida escolar e educacional: como foi nossa experiência educacional quando entramos na escola; quais episódios lem- bramos; quais nossos sentimentos nesses episódios; quais as conexões entre nosso eu e o conhecimento formal? Por seu caráter autotransformativo, essa investi- gação autobiográfica seria extremamente importante no processo de formação docente. A literatura autobiográfica é menos clara no que se refere à aplicação do método autobiográfico à educação de crianças e jovens. Pode-se imaginar como a autobiografia poderia ser utiliza- da como um recurso educacional nesse nível educacional, mas fica difícil pensar na autobiografia como uma abordagem única do processo curricular. 44A crítica neomarxista de Michael Apple início da crítica neomarxista às te- outras esferas sociais, como a educação e a orias tradicionais do currículo e ao papel cultura, por exemplo. Há, pois, uma relação ideológico do currículo está fortemente estrutural entre economia e educação, identificado com pensamento de Michael entre economia e cultura. Nos termos Apple. Trabalhos anteriores, como os de da terminologia introduzida por autores Althusser e Bourdieu, por exemplo, tinham como Bernstein e Bourdieu, há um vínculo estabelecido as bases de uma crítica radical entre reprodução cultural e reprodução à educação liberal, mas não tinham propria- social. Mais especificamente, há uma clara mente tomado como foco de seu questio- conexão entre a forma como a economia namento currículo e conhecimento está organizada e a forma como currículo escolar. Apple aproveita-se dessas críticas está organizado. e de outras tradições da teorização social Para Apple, entretanto, essa ligação não crítica mais ampla (Raymond Williams, por é uma ligação de determinação simples exemplo), para elaborar uma análise crítica e direta. A preocupação em evitar uma do currículo que iria ser muito influente nas concepção mecanicista e determinista décadas seguintes. dos vínculos entre produção e educação Apple toma como ponto de partida já estava presente em seu primeiro livro, elementos centrais da crítica marxista Ideologia e currículo, publicado pela primeira da sociedade. A dinâmica da sociedade vez nos Estados Unidos em 1979, mas ela capitalista gira em torno da dominação de iria se tornar ainda mais forte nos seus classe, da dominação dos que detêm livros posteriores. Basicamente, para ele, controle da propriedade dos recursos ma- não é suficiente postular um vínculo entre, teriais sobre aqueles que possuem apenas de um lado, as estruturas econômicas e sua força de trabalho. Essa característica sociais mais amplas e, de outro, a educa- da organização da economia na sociedade ção e currículo. Esse vínculo é mediado capitalista afeta tudo aquilo que ocorre em por processos que ocorrem no campo da 45educação e do currículo e que são aí ativa- das teorias educacionais críticas. Con- mente produzidos. Ele é mediado pela ação trapondo-se às perspectivas tradicionais humana. Aquilo que ocorre na educação e sobre currículo, Apple vê currículo no currículo não pode ser simplesmente em termos estruturais e relacionais. deduzido do funcionamento da economia. O currículo está estreitamente relacionado É essa preocupação que leva Apple a às estruturas econômicas e sociais mais recorrer ao conceito de hegemonia, tal amplas. O currículo não é um corpo neutro, como formulado por Antonio Gramsci e inocente e desinteressado de conheci- desenvolvido por Raymond Williams. É mentos. Contrariamente ao que supõe conceito de hegemonia que permite ver modelo de Tyler, por exemplo, currículo campo social como um campo contestado, não é organizado através de um processo como um campo onde grupos domi- de seleção que recorre às fontes imparciais nantes se veem obrigados a recorrer a um da filosofia ou dos valores supostamente esforço permanente de convencimento consensuais da sociedade. conhecimento ideológico para manter sua dominação. É corporificado no currículo é um conheci- precisamente através desse esforço de con- mento particular. A seleção que constitui vencimento que a dominação econômica currículo é resultado de um processo se transforma em hegemonia cultural. Esse que reflete interesses particulares das convencimento atinge sua máxima eficácia classes e grupos dominantes. quando se transforma em senso comum, Na análise de Apple, a preocupação quando se naturaliza. O campo cultural não é com a validade epistemológica do não é um simples reflexo da economia: ele conhecimento corporificado no currículo. tem a sua própria dinâmica. As estruturas A questão não é saber qual conhecimento econômicas não são suficientes para garan- é verdadeiro, mas qual conhecimento é tir a consciência; a consciência precisa ser considerado verdadeiro. A preocupação é conquistada em seu próprio campo. com as formas pelas quais certos conheci- É com esses elementos, acrescidos mentos são considerados como legítimos, de elementos tomados de empréstimo em detrimento de outros, vistos como a autores como Pierre Bourdieu, Basil ilegítimos. Nos modelos tradicionais, Bernstein e Michael Young, que Michael conhecimento existente é tomado como Apple vai colocar currículo no centro dado, como inquestionável. Se existe algum 46questionamento, ele não vai além de crité- caso também de Bernstein, que centrou rios epistemológicos estreitos de verdade sua análise menos naquilo que é transmi- e falsidade. Como consequência, mode- tido e mais na forma como é transmitido. los técnicos de currículo limitam-se à ques- De outro, situam-se aquelas críticas que tão do "como" organizar currículo. Na deram mais importância ao currículo perspectiva política postulada por Apple, explícito, oficial, ao "conteúdo" do currí- a questão importante é, ao invés disso, a culo. Pode-se dizer que este foi caso de questão do "por Por que esses Althusser, ao menos na primeira parte de nhecimentos e não outros? Por que esse seu ensaio sobre a ideologia e aparelhos conhecimento é considerado importante ideológicos de estado. Apple procura rea- e não outros? E para evitar que esse "por lizar uma análise que dê igual importância que" seja respondido simplesmente por aos dois aspectos do currículo, embora se critérios de verdade e falsidade, é extrema- possa notar uma ênfase ligeiramente maior mente importante perguntar: "trata-se do no seu conteúdo explícito, naquilo que ele conhecimento de quem?". Quais interesses chama de "currículo oficial". Ele considera guiaram a seleção desse conhecimento necessário examinar tanto aquilo que ele particular? Quais são as relações de poder chama de do cotidiano es- envolvidas no processo de seleção que colar" quanto currículo explícito; tanto resultou nesse currículo particular? ensino implícito de normas, valores e No que concerne ao papel do currí- disposições quanto pressupostos ide- culo no processo de reprodução cultural ológicos e epistemológicos das disciplinas e social, essa crítica inicial do currículo que constituem currículo oficial. esteve frequentemente dividida entre duas Como boa parte da literatura socioló- ênfases. De um lado, estavam aquelas crí- gica crítica sobre currículo desse período ticas que enfatizavam papel do chamado inicial, Apple colocava uma grande ênfase, "currículo oculto" nessa reprodução. É em Ideologia e currículo, no processo que caso, por exemplo, de Bowles e Gintis, a escola exerce na distribuição do conhe- que chamaram a atenção para papel cimento oficial. A suposição é de que a exercido pelas relações sociais da escola escola simplesmente transmite e distribui no processo de reprodução social. É conhecimento que é produzido em algum 47 Biblioteca Alphonsus de Guimarães ICHS/UFOP Mariana-MGoutro lugar.Apple, entretanto, concede um de reprodução cultural e social exercido papel igualmente importante à escola como pelo currículo. A importância atribuída a produtora de conhecimento, sobretudo essas diferentes dinâmicas iria se tornar daquilo que ele chama de "conhecimento mais equilibrada nos livros posteriores. O "conhecimento técnico" rela- O que se manteria, entretanto, era uma ciona-se diretamente com a estrutura e comum preocupação com poder. O que funcionamento da sociedade capitalista, torna sua análise "política" é precisamente uma vez que se trata de conhecimento essa centralidade atribuída às relações relevante para a economia e a produção. de poder. Currículo e poder essa é a Obviamente, essa produção se dá princi- equação básica que estrutura a crítica do palmente nos níveis superiores do sistema currículo desenvolvida por Apple.A ques- educacional, isto é, na universidade. Mas na tão básica é a da conexão entre, de um medida em que requisitos de entrada na lado, a produção, distribuição e consumo universidade pressionam currículos dos dos recursos materiais, econômicos e, de outros níveis educacionais, esses currículos outro, a produção, distribuição e consumo refletem a mesma ênfase no "conhecimen- de recursos simbólicos como a cultura, to É esse tipo de conhecimento conhecimento, a educação e currículo. que acaba sendo visto como tendo pres- Como vimos, já em seu primeiro livro tígio, em detrimento de outras formas Apple procurava construir uma perspec- de conhecimento, como o conhecimento tiva de análise crítica do currículo que estético e artístico, por exemplo. Tra- incluísse as mediações, as contradições e ta-se de mais um dos mecanismos pelos ambiguidades do processo de reprodução quais o currículo se liga com processo cultural e social. Entretanto, apenas com de reprodução cultural e social. desenvolvimento posterior da teorização Em seu primeiro livro, Ideologia e currícu- crítica é que as contradições e resistências em consonância com paradigma iriam ganhar um papel mais destacado. marxista adotado, enfatizava as relações Ao dar ênfase ao conceito de hegemonia, sociais de classe, embora admitindo, tal- Apple chama atenção para fato de que vez secundariamente, a importância das a reprodução social não é um processo relações de gênero e raça no processo tranquilo e garantido.As pessoas precisam 48ser convencidas da desejabilidade e legiti- nizado? Como se formam resistências e midade dos arranjos sociais existentes. Mas oposições ao currículo oficial? Ao enfatizar esse convencimento não se dá sem oposi- essas questões, Michael Apple contribui, de ção, conflito e resistência. É precisamente forma importante, para politizar a teoriza- esse caráter conflagrado que caracteriza ção sobre currículo. um campo cultural como do currículo. Como uma luta em torno de valores, signi- ficados e propósitos sociais, campo social Leituras e cultural é feito não apenas de imposição APPLE, Michael. Ideologia e currículo. São Paulo: Bra- e domínio, mas também de resistência e siliense, 1982. oposição. A descrição do currículo como sendo também um campo de resistência APPLE, Michael. "Vendo a educação de forma rela- cional: classe e cultura na sociologia do conhe- está apenas esboçada em Ideologia e cur- cimento escolar". Educação e realidade, 11(1), rículo. Ela seria reforçada posteriormente 1986: por influência, principalmente, da pesquisa APPLE, Michael. "Currículo e poder". Educação e de Paul Willis relatada no livro Aprendendo realidade, 14(2), 1989: a ser trabalhador. APPLE, Michael. Educação e poder. Porto Alegre:Artes Em suma, na perspectiva de Apple, Médicas, 1989. currículo não pode ser compreendido - e MOREIRA, Antonio Flavio A contribuição de transformado se não fizermos perguntas Michael Apple para desenvolvimento de uma fundamentais sobre suas conexões com teoria curricular crítica no Brasil. Fórum educa- relações de poder. Como as formas de cional, 1989, 13 (4), divisão da sociedade afetam o currículo? Como a forma como currículo processa conhecimento e as pessoas contribui, por sua vez, para reproduzir aquela divi- são? Qual conhecimento de quem é privilegiado no currículo? Quais grupos se beneficiam e quais grupos são prejudicados pela forma como currículo está orga- 49OF D $ on sb as de & no processocurrículo como política cultural: Henry Giroux Entre os autores que, nos Estados mitada e contida, as recentes contribuições Unidos, ajudaram a desenvolver uma teo- do pós-modernismo e do pós-estruturalis- rização crítica sobre currículo, destaca-se, mo. A síntese que se segue baseia-se, pois, sem dúvida, a figura de Henry Giroux. nos seus primeiros livros: Ideology, culture, Embora iniciando um pouco mais tarde and the process of schooling (1981) e Theory do que Michael Apple, Giroux contribuiu and resistance in education (1983). de forma decisiva para traçar contor- Tal como ocorreu com outros auto- nos de uma teorização crítica que iria, res dessa fase inicial, também a crítica de depois, florescer de modo talvez ines- Giroux esteve centrada, nesse momento, perado. Tal como fizemos com Michael numa reação às perspectivas empíricas e Apple, vamos nos restringir aqui a fazer técnicas sobre currículo então dominantes. uma síntese das teorizações e conceitos Utilizando-se de conceitos desenvolvidos desenvolvidos em sua primeira fase. Giroux pelos autores da Escola de Frankfurt tem se voltado, desde então, para temáticas (Adorno, Horkheimer, Marcuse), Giroux e direções que algumas vezes parecem ataca a racionalidade técnica e utilitária, um tanto distantes daquelas nas quais se concentrava inicialmente, nisso diferindo bem como positivismo das perspectivas dominantes sobre currículo. Na análise de bastante de Apple. Nos seus últimos livros, Giroux tem se preocupado cada vez mais Giroux, as perspectivas dominantes, ao se com a problemática da cultura popular tal concentrarem em critérios de eficiência como se apresenta no cinema, na música e e racionalidade burocrática, deixavam de na televisão. Embora sempre em conexão levar em consideração caráter histórico, com a questão pedagógica e curricular, suas ético e político das ações humanas e sociais análises parecem ter se tornado crescente- e, particularmente, no caso do currículo, mente mais culturais do que propriamente do conhecimento. Como resultado desse educacionais. Além disso, seus últimos apagamento do caráter social e histórico escritos incorporam, embora de forma li- do conhecimento, as teorias tradicionais 51

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