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<p>Introdução às</p><p>Sagradas Escrituras</p><p>Professor Me. Flávio Donizete Batista</p><p>Reitor</p><p>Prof. Ms. Gilmar de Oliveira</p><p>Diretor de Ensino</p><p>Prof. Ms. Daniel de Lima</p><p>Diretor Financeiro</p><p>Prof. Eduardo Luiz</p><p>Campano Santini</p><p>Diretor Administrativo</p><p>Prof. Ms. Renato Valença Correia</p><p>Secretário Acadêmico</p><p>Tiago Pereira da Silva</p><p>Coord. de Ensino, Pesquisa e</p><p>Extensão - CONPEX</p><p>Prof. Dr. Hudson Sérgio de Souza</p><p>Coordenação Adjunta de Ensino</p><p>Profa. Dra. Nelma Sgarbosa Roman</p><p>de Araújo</p><p>Coordenação Adjunta de Pesquisa</p><p>Prof. Dr. Flávio Ricardo Guilherme</p><p>Coordenação Adjunta de Extensão</p><p>Prof. Esp. Heider Jeferson Gonçalves</p><p>Coordenador NEAD - Núcleo de</p><p>Educação à Distância</p><p>Prof. Me. Jorge Luiz Garcia Van Dal</p><p>Web Designer</p><p>Thiago Azenha</p><p>Revisão Textual</p><p>Kauê Berto</p><p>Projeto Gráfico, Design e</p><p>Diagramação</p><p>Carlos Eduardo Firmino de Oliveira</p><p>2021 by Editora Edufatecie</p><p>Copyright do Texto C 2021 Os autores</p><p>Copyright C Edição 2021 Editora Edufatecie</p><p>O conteúdo dos artigos e seus dados em sua forma, correçao e confiabilidade são de responsabilidade</p><p>exclusiva dos autores e não representam necessariamente a posição oficial da Editora Edufatecie. Permi-</p><p>tidoo download da obra e o compartilhamento desde que sejam atribuídos créditos aos autores, mas sem</p><p>a possibilidade de alterá-la de nenhuma forma ou utilizá-la para fins comerciais.</p><p>Dados Internacionais de Catalogação na Publicação - CIP</p><p>B333i Batista, Flávio Donizete</p><p>Introdução às sagradas escrituras / Flávio Donizete</p><p>BatistaDal. Paranavaí: EduFatecie, 2022.</p><p>99 p. : il. Color.</p><p>1. Biblía – Estudo e ensino. I. Centro Universitário</p><p>UniFatecie. II. Núcleo de Educação a Distância. III. Título.</p><p>CDD : 23 ed. 220.7</p><p>Catalogação na publicação: Zineide Pereira dos Santos – CRB 9/1577</p><p>UNIFATECIE Unidade 1</p><p>Rua Getúlio Vargas, 333</p><p>Centro, Paranavaí, PR</p><p>(44) 3045-9898</p><p>UNIFATECIE Unidade 2</p><p>Rua Cândido Bertier</p><p>Fortes, 2178, Centro,</p><p>Paranavaí, PR</p><p>(44) 3045-9898</p><p>UNIFATECIE Unidade 3</p><p>Rodovia BR - 376, KM</p><p>102, nº 1000 - Chácara</p><p>Jaraguá , Paranavaí, PR</p><p>(44) 3045-9898</p><p>www.unifatecie.edu.br/site</p><p>As imagens utilizadas neste</p><p>livro foram obtidas a partir</p><p>do site Shutterstock.</p><p>AUTOR</p><p>Professor Me. Flávio Donizete Batista</p><p>O Professor Flávio Donizete Batista possui graduação em Filosofia pela Universidade</p><p>do Sagrado Coração (1999), graduação em Pedagogia pelo Centro Universitário Internacional</p><p>UNINTER (2017), e mestrado em Educação pela Universidade Estadual de Londrina</p><p>(2003). Atualmente é professor na área de Filosofia nos cursos de Pedagogia, Psicologia,</p><p>e também na área de Teologia. Professor efetivo da Secretaria de Estado da Educação do</p><p>Estado do Paraná, tendo aprovação em dois concursos públicos. Tem experiência na área</p><p>de Educação, com ênfase em Educação e Filosofia, atuando principalmente nos seguintes</p><p>temas: educação, ética, docência, ensino-aprendizagem e relação pedagógica.</p><p>CURRÍCULO LATTES: http://lattes.cnpq.br/4266799322940706</p><p>APRESENTAÇÃO DO MATERIAL</p><p>Olá, Prezado Acadêmico. Prezada Acadêmica.</p><p>Sejam todos bem-vindos a esse nosso estudo que agora iniciamos, e que nos ajudará</p><p>a fazer uma grande introdução às Sagradas Escrituras. Não queremos esgotar nenhum</p><p>assunto, ou apresentá-lo de modo exaustivo. Mas queremos ajudar a cada um que reconhece</p><p>a importância do estudo da Bíblia, e sua necessidade, para quem estuda a Teologia.</p><p>Quando a Bíblia é o assunto, palavras não faltam para expressar os diferentes</p><p>modos como cada um a entende ou dela se aproxima: respeito, simpatia, paixão, veneração,</p><p>Palavra de Deus, inspiração, religião, Igreja, manual de ética e preceitos morais. Há também</p><p>outras palavras que não soam tão amistosas, indicando certa distância e suspeição: livro</p><p>complicado, manipulado, objeto de poder e da transmissão de valores morais por parte das</p><p>igrejas e religiões contrárias à mentalidade racional e científica de nosso tempo; repertório de</p><p>lendas, cujo valor não ultrapassa os limites da literatura mítica e utópica. Tais sentimentos, às</p><p>vezes contraditórios, quase sempre equivocados e reducionistas, não podem ser ignorados</p><p>quando se pretende oferecer ao público um trabalho de caráter introdutório à Bíblia.</p><p>Nenhum sentimento positivo ou negativo em relação à Bíblia está imune dos</p><p>históricos mal-entendidos que herdamos da sociedade e da cultura. Um deles é opor</p><p>Bíblia e ciência e outro é considerá-la simplesmente como objeto de propriedade exclusiva</p><p>das igrejas. Diferentes igrejas tomaram a Bíblia como alicerce de suas doutrinas, de seus</p><p>trabalhos pastorais e relações de poder; justificaram com ela o modo como administraram</p><p>as coisas sagradas, ministram os sacramentos e celebram o culto religioso. Isso tudo é</p><p>legítimo, mas não retira da Bíblia o seu caráter literário, aberto e universal a quem dela</p><p>queira aproximar-se.</p><p>Quem disse ser preciso apresentar carteira de identidade ou vinculação religiosa</p><p>para ler a Bíblia ou atestado ideológico de compatibilidade com as ideias pretensamente</p><p>nela veiculadas? Nosso estudo nessa disciplina que ora iniciamos, pretende atingir aqueles</p><p>que sentem necessidade de compreender melhor o texto segundo o contexto que lhe deu</p><p>origem: estudantes do curso de Teologia, que são líderes de igreja e pessoas curiosas,</p><p>jovens iniciantes engajados no trabalho pastoral e talvez alguém sem religião, mas que se</p><p>autodefinem como tendo fé em Deus.</p><p>Independentemente do uso que se possa fazer da abordagem sociológica da Bíblia,</p><p>nosso objetivo é tentar desfazer preconceitos que a interpretação dogmática produziu ao ler</p><p>os textos sem considerar as intenções originais de seus autores. Não se trata de negar os</p><p>dogmas, mas de compreendê-los segundo a necessária consciência histórica e sociológica</p><p>que lhes deu origem, considerando-os como frutos de tudo aquilo que é produzido pela</p><p>vida na História. Desse modo, não precisamos negar os dogmas, mas reinterpretá-los,</p><p>atualizando seu sentido e valor diante das novas circunstâncias do mundo contemporâneo.</p><p>Chega de perseguição e discriminação àqueles que pensam de modo diferente</p><p>e interpretam a Bíblia de maneira aparentemente estranha. Infelizmente estamos longe</p><p>de superar esse preconceito. Aqueles que produzem opinião e interpretação discordantes</p><p>daquelas declaradas oficiais ainda hoje sofrem discriminação e perseguição, e são chamados</p><p>a prestar contar ao poder que julga ser guardião da “reta verdade” ou da “sagrada” doutrina.</p><p>Nosso estudo está estruturado em quatro grandes partes:</p><p>Na primeira parte, a palavra escrita, com a discussão sobre o ambiente e a estrutura</p><p>dos livros, formando as duas grandes partes da Bíblia cristã: O Antigo e o Novo Testamento.</p><p>Na segunda parte, uma abordagem sobre o cânon das escrituras, com se deu a</p><p>fixação dos livros em uma lista que teve seu processo de definição, de questionamento e</p><p>de aceitação, até chegar à estrutura atual da Bíblia.</p><p>A terceira, sobre a inspiração e a revelação, no aspecto que faz entendermos que</p><p>não são “somente” livros, mas que fazem parte de um grupo especial de livros reconhe-</p><p>cidos como Palavra de Deus.</p><p>Por fim, na quarta parte, vamos apresentar sobre a palavra escrita, um pouco de</p><p>seus processos de fixação e formação do texto escrito da Bíblia.</p><p>Desejo a todos um estudo que realmente ajude na realização de uma grande</p><p>introdução às Sagradas Escrituras. Isso não significa que tudo será novidade para todos, mas</p><p>que trata-se de uma forma organizada para ajudar cada um a começar e a dar continuidade a</p><p>este estudo tão importante para a Teologia e para a experiência pessoal e comunitária da fé.</p><p>Estamos juntos nessa jornada.</p><p>Grande abraço.</p><p>SUMÁRIO</p><p>UNIDADE I ...................................................................................................... 4</p><p>A Palavra Escrita</p><p>UNIDADE II ...................................................................................................</p><p>deuterocanônicos não pareciam ser tão convincentes quanto as</p><p>dos outros (HARRINGTON, 1985, p. 55).</p><p>Ao aceitar as Escrituras hebraicas, a Igreja primitiva não só aceita os livros</p><p>deuterocanônicos, mas opta por uma estrutura nova no elenco dos livros; de fato, dissocia os</p><p>assim chamados Livros Históricos (Js, Jt, 1-2 Sm, 1-2 Rs) dos Livros Proféticos e coloca estes</p><p>últimos no fim do Antigo Testamento, acentuando assim seu caráter de profecia cristológica</p><p>e de Introdução ao evento Jesus. Veremos que o mesmo vale para a nova denominação de</p><p>“Antigo Testamento”, expressão que pressupõe necessariamente o Novo Testamento.</p><p>2.2 A Formação do Cânon do Novo Testamento</p><p>A Igreja cristã possuía, desde o princípio de sua existência, um cânon das</p><p>Escrituras inspiradas: o Antigo Testamento. Contudo, para a Igreja primitiva, este Antigo</p><p>Testamento era, em seu sentido mais profundo, profecia de Cristo – um reconhecimento</p><p>de que, mesmo aqui, a autoridade última era o próprio Cristo. Cristo tinha comissionado</p><p>os seus apóstolos para proclamar a boa nova e edificar a comunidade cristã e os tinha</p><p>enchido do poder do Espírito Santo.</p><p>35UNIDADE I A Palavra Escrita 35UNIDADE II O Cânon das Escrituras</p><p>Eles tinham sido testemunhas oculares de sua obra e ouvintes de suas palavras;</p><p>e a importância deles foi ainda maior nos tempos apostólicos. Portanto, a Igreja primitiva</p><p>tinha três autoridades: o Antigo Testamento, o Senhor e os Apóstolos. Contudo, a autoridade</p><p>última, decisiva era Cristo, o Senhor, que falou imediatamente em suas palavras e obras e</p><p>mediatamente no testemunho de suas testemunhas (HARRINGTON, 1985, p. 55-56).</p><p>Sobre a formação do cânon, também para o Novo Testamento o processo é longo</p><p>e complexo. Embora no tempo da atividade de Jesus o cânon da Escritura hebraica não</p><p>estivesse ainda definido em todo o seu rigor, sua autoridade era indiscutida, como aparece</p><p>nas expressões “a Lei e os profetas” (Mt 5,17; 7,12; 22,40), “a Escritura” (Mc 12,10; Jo 2,22),</p><p>“as Escrituras” (Mt 21,42; At 17,2), “as Sagradas Escrituras” (Rm 1,2), “a Lei de Moisés, os</p><p>profetas e os salmos (Lc, 24,44), “está escrito” (Mt 2,5; Mc 1,2; Lc 2,3). Mas essa autoridade</p><p>da Escritura hebraica está intimamente conexa com a autoridade da palavra de Jesus; de</p><p>fato, no seu ministério, Ele oferece uma palavra que se coloca como o próprio cumprimento</p><p>da Escritura (Mt 5,17), radicalizando-a (Mt 5,21-28) e, ao mesmo tempo, relativizando-a (Mc</p><p>10,2-9); essa autoridade das palavras de Jesus aparece particularmente em Paulo (1Cor</p><p>7,10-11; 9,14; 11,23-25; 1Ts 4,15; At 20,35). A palavra de Jesus, porém, não é uma palavra</p><p>autoritária que se acrescenta à precedente da tradição hebraica, mas forma com ela um</p><p>todo único, definindo-a como autoridade definitiva (PRIOTTO, 2019, p. 38).</p><p>No começo, as palavras do Senhor e o relato de seus feitos eram repetidos e relatados</p><p>oralmente, mas logo eles começaram a ser redigidos. Em sua obra missionária, os apóstolos</p><p>tiveram a necessidade de escrever a certas comunidades. Pelo menos alguns desses escritos</p><p>eram trocados entre as igrejas e logo ganharam a mesma autoridade dos escritos do Antigo</p><p>Testamento. Contudo, é compreensível que tenha decorrido algum tempo antes que a coleção</p><p>desses escritos do tempo dos apóstolos tivesse tomado o seu lugar, com inquestionável autori-</p><p>dade, ao lado dos livros do Antigo Testamento, especialmente quando se considera que muitos</p><p>eram escritos ocasionais endereçadas às igrejas individuais (HARRINGTON, 1985, p. 56).</p><p>O conhecimento da palavra de Jesus nas comunidades cristãs primitivas, porém,</p><p>passa pelo anúncio, pela interpretação e pelo testemunho dos apóstolos, de Paulo e</p><p>de seus estreitos colaboradores. Enquanto testemunhas do Ressuscitado, eles são os</p><p>verdadeiros depositários da palavra de Jesus e os intérpretes fiéis: daí a importância de sua</p><p>palavra. Dessa forma, antes mesmo de se constituírem escritos, emerge uma palavra oral,</p><p>o querigma apostólico, cuja indiscutível e última autoridade faz referência à própria pessoa</p><p>de Jesus vivo e operante em sua Igreja. É unicamente essa Palavra que fundamenta e</p><p>constitui a comunidade cristã e é unicamente essa Palavra que preside a formação do Novo</p><p>Testamento, embora sua articulação histórica seja lenta, complexa e, com frequência, já</p><p>não plenamente atingível (PRIOTTO, 2019, p. 38-39).</p><p>36UNIDADE I A Palavra Escrita 36UNIDADE II O Cânon das Escrituras</p><p>As palavras escritas do Senhor, embora não sejam os escritos mais antigos do</p><p>Novo Testamento foram os primeiros a serem colocados em pé de igualdade com o Antigo</p><p>Testamento e reconhecidos como canônicos. Harrington (1985, p. 56) escreve que por</p><p>volta de 140, Pápias, bispo de Hierápolis, na Frígia, conhece Marcos e Mateus. Justino</p><p>(c. 150) cita os Evangelhos com autoridade. Hegésipo (c.180) fala da “Lei e Profetas do</p><p>Senhor”. Os mártires de Scilla, na Numídia (180), têm, como escritos sagrados, “os livros</p><p>e as epístolas de Paulo, homem justo”; somente os Antigo Testamento e os Evangelhos</p><p>eram chamados de “Livros”, isto é, Escrituras. Harrington (1985, p. 56) acrescenta que os</p><p>escritos dos Padres Apostólicos fornecem certa prova de que, desde as primeiras décadas</p><p>do século II, as grandes igrejas possuíam um livro ou grupo de livros que eram comumente</p><p>conhecidos como “Evangelho” e a que se fazia referência como a um documento que tinha</p><p>autoridade e era universalmente conhecido.</p><p>O primeiro grupo dos escritos é constituído pelas cartas paulinas; trata-se de cartas</p><p>destinadas a várias comunidades, mas também às comunidades de toda uma região (2Cor</p><p>1,1; Gl, 1,2) ou cartas que deveriam ser idas a outras comunidades (1Ts 5,27). Isso implica</p><p>a necessidade de conservá-las e recolhê-las, como aparece em 2Pd 3,15-16. Por volta da</p><p>metade do século II d.C., Marcião conhece um grupo de dez cartas (Rm, 1-2Cor; Gl; Ef;</p><p>Fl; Cl; 1-2Ts; Fm), em que faltam ainda as três cartas pastorais (1-2Tm; Tt); pouco depois,</p><p>pelo fim do século II, o célebre Fragmento Muratoriano, que provavelmente representa a</p><p>tradição da Igreja de Roma, recenseia treze cartas paulinas, com a exclusão da Carta aos</p><p>Hebreus; a aceitação desta última é mais penosa no Ocidente, no qual se imporá mais</p><p>tarde graças à autoridade de Hilário de Poitiers, de Jerônimo e de Agostinho, enquanto no</p><p>Oriente aparece desde o século III ao lado das outras cartas paulinas, seja em Clemente</p><p>de Alexandria, seja em Orígenes (PRIOTTO, 2029, p. 39).</p><p>Por volta da metade do século II, aparece o testemunho de um segundo grupo de</p><p>escritos, constituído pelos quatro Evangelhos (Mateus, Marcos, Lucas, João), escrito na</p><p>segunda metade do século I d.C. Justino os cita com o nome de “memórias dos apóstolos”,</p><p>atestando sua leitura, ao lado dos escritos proféticos do Antigo Testamento, na liturgia</p><p>eucarística. Seu uso litúrgico ao lado das Escrituras hebraicas manifesta sua importância e</p><p>autoridade (PRIOTTO, 2019, p. 39).</p><p>Essas duas primeiras coleções de escritos constituem o núcleo original do Novo</p><p>Testamento e testemunham a comum tradição apostólica da palavra de Jesus. Entre o século II</p><p>e III, a eles se acrescentam os Atos dos Apóstolos, cuja autoridade é claramente reconhecida,</p><p>porque ilustram admiravelmente a continuidade entre a obra de Jesus e a da Igreja.</p><p>37UNIDADE I A Palavra Escrita 37UNIDADE II O Cânon das Escrituras</p><p>As sete cartas restantes (Tg; 1-2Pd; 1-2-3Jo; Jd), à parte 1 Pedro e 1 João, constituem</p><p>o grupo mais instável da coleção neotestamentária. Com efeito, se a 1 Pedro é já conhecida por</p><p>Policarpo de Esmirna, citada como petrina por Irineu e Tertuliano e comentada por Clemente</p><p>de Alexandria e Orígenes, e se, igualmente a 1 João é conhecida e aceita desde a metade</p><p>do século II d.C., não é assim para as restantes cinco cartas. A 2 Pedro, sobretudo por causa</p><p>de sua duvidosa atribuição a Pedro, será aceita somente no fim do século IV; igualmente a</p><p>2 e 3 João, atribuídas ao “presbítero”, serão reconhecidas</p><p>como canônicas somente no final</p><p>do século IV, como transparece da trigésima nona carta festiva de Atanásio (367), do Sínodo</p><p>de Hipona (393) e do Sínodo de Cartago (397). A presença de citações de livros apócrifos</p><p>(Henoc e a Assunção de Moisés) provoca alguma dificuldade na aceitação da Carta de Judas;</p><p>todavia ela já é atestada pelo Fragmento Muratoriano e é considerada canônica pela maior</p><p>parte das Igrejas desde o início do século III (PRIOTTO, 2019, p. 39-40).</p><p>Enfim, o Apocalipse. Se as Igrejas ocidentais o aceitam e o comentam, nas Igrejas</p><p>Orientais ele encontra notáveis dificuldades para ser aceito como canônico, sobretudo por</p><p>causa do aparente apoio à heresia montanista e do milenarismo, e de seu forte caráter</p><p>profético; nas Igrejas da Síria, da Capadócia e da Palestina esta desconfiança se prolonga</p><p>ao menos até por volta dos séculos V-VI.</p><p>Concluindo, pode-se afirmar que já no final do século II emerge um forte núcleo</p><p>canônico constituído pelos quatro Evangelhos, pelos Atos dos Apóstolos, pelas treze cartas</p><p>paulinas, pela 1 Pedro e pela 1 João: vinte livros sobre os futuros vinte e sete; esse núcleo</p><p>é particularmente significativo se tivermos presente a diversidade e a amplidão das Igrejas</p><p>cristãs. No fim do século IV, não obstante resíduas flutuações, acrescentam-se ao precedente</p><p>núcleo os remanescentes sete livros, para formar, assim aquilo que nós conhecemos como</p><p>cânon neotestamentário. A mais antiga atestação é constituída pela trigésima nona carta</p><p>festiva de Atanásio (367), nos quais são elencados os vinte e sete livros do Novo Testamento.</p><p>A partir da segunda metade do século V o consenso é unânime, e isso até o século XVI,</p><p>quando Lutero e outros reformadores alemães rejeitaram Tiago, Judas, Hebreus e Apocalipse;</p><p>essa opção, todavia, não foi partilhada pelas outras Igrejas reformadas; os próprios luteranos,</p><p>um século depois, voltarão ao cânon tradicional (PRIOTTO, 2019, p. 40).</p><p>38UNIDADE I A Palavra Escrita 38UNIDADE II O Cânon das Escrituras</p><p>3. DOIS TESTAMENTOS E UM LIVRO ÚNICO: A BÍBLIA</p><p>Sem dúvida, o Novo Testamento reconhece a autoridade divina das Escrituras</p><p>hebraicas. Quando as cita, escreve: “Deus disse” (2Cor 6,16) ou “O Espírito Santo disse”</p><p>(Hb 3,7), e isso também quando Deus não é o interlocutor da passagem veterotestamentária</p><p>(cf. At 13,37 que cita Sl 16,10). Referindo-se à Palavra de Deus, Hb 4,12, inclui as Escrituras</p><p>junto com as palavras pronunciadas por Deus. Rm 3,2 caracteriza o Antigo Testamento</p><p>como “os oráculos de Deus”. Portanto, o Novo Testamento assume a Escritura hebraica</p><p>como Palavra de Deus, mas claramente no novo horizonte cristológico; desse modo</p><p>as citações neotestamentárias consagram as antigas Escrituras no seu valor profético,</p><p>proclamando que sua verdade está nesse Novo Testamento, que está se formando a</p><p>partir da tradição de Jesus.</p><p>Isso é confirmado pela própria designação de “Novo Testamento”. A expressão é</p><p>devida a um escritor cristão anônimo que, por volta do fim do século II d.C., assim designa</p><p>o conjunto desses livros; consequentemente, as Escrituras hebraicas são definidas como</p><p>“Antigo Testamento” (PRIOTTO, 2019, p. 41). O termo “testamento” deriva do vocábulo latino</p><p>testamentum, que, por sua vez, traduz o termo grego diathéke (aliança). A expressão significa,</p><p>pois, “nova aliança” e se refere à promessa de Jr 31,31: “Virão dias – oráculos do Senhor – em</p><p>que firmarei com a casa de Israel e a casa de Judá uma aliança nova”. A designação dos vinte</p><p>e sete livros da segunda parte da Bíblia cristã como “Novo Testamento” atesta, por isso, o</p><p>cumprimento da profecia de Jr 31,31-34 estipulada pelo sangue de Cristo (Lc 22,20; 2Cor 3,6).</p><p>39UNIDADE I A Palavra Escrita 39UNIDADE II O Cânon das Escrituras</p><p>Assim, assistimos à formação de dois cânones diferentes, o hebraico e o cristão</p><p>(mesmo com as várias diferenças entre as Igrejas). Os fatores que causam a formação de</p><p>um cânon hebraico são múltiplos: após a destruição do Templo em 70 d.C., e, portanto,</p><p>após cessar a liturgia legítima, a religião hebraica torna-se sempre mais uma religião do</p><p>Livro, com a consequente necessidade de uma Escritura normativa e imutável. As disputas</p><p>entre os fariseus e as seitas judaicas de tendência apocalíptica levaram indubitavelmente</p><p>para a fixação do cânon. Também a formação do Novo Testamento cristão, que, é verdade,</p><p>retomava as antigas Escrituras, mas em sentido cristológico, determinou a necessidade de</p><p>uma clara diferenciação. Enfim, a assunção da parte cristã da LXX, com a consequente</p><p>admissão dos livros deuterocanônicos, levou o judaísmo a limitar a canonicidade aos livros</p><p>bíblicos escritos em hebraico (PRIOTTO, 2019, p. 41).</p><p>Também a Igreja Cristã nascente sente a necessidade de distinguir-se da</p><p>comunidade judaica, porque o reconhecimento das Escrituras hebraicas passa já através</p><p>da interpretação cristológica, e por isso, ao centro das Escrituras não está mais a Torá</p><p>de Moisés, mas o Evangelho de Jesus. As controvérsias com as correntes heréticas e a</p><p>necessidade de superar o caráter apenas local de alguns livros acelerem a necessidade de</p><p>um cânon fixo de todas as Escrituras, processo tecnicamente facilitado, a partir do século</p><p>IV d.C., pelas novas capacidades de produzir códices capazes de conter uma coleção tão</p><p>ampla de escritos como a bíblica.</p><p>40UNIDADE I A Palavra Escrita 40UNIDADE II O Cânon das Escrituras</p><p>4. O CÂNON DAS ESCRITURAS: O SENTIDO DE UM FATO</p><p>Enquanto norma, o cânon comporta uma autoridade que a ponha e um sujeito</p><p>que a receba: não são livros da Escritura que se autorizam sozinhos como cânon: a</p><p>lista dos livros canônicos não é escriturística. O livro escriturístico nasce no contexto de</p><p>um processo revelador que vai do profeta ao discípulo e, enfim, à comunidade crente.</p><p>Exatamente porque ali reconhece a Palavra de Deus, a Igreja põe a Bíblia nas mãos do</p><p>crente. Portanto, por parte da Igreja, a canonização é um ato de reconhecimento e de</p><p>obediência da fé; esse reconhecimento comporta tanto a transcendência absoluta de Deus</p><p>em relação à Igreja quanto a própria identidade da Igreja, que se constitui precisamente</p><p>reconhecendo e aceitando a Palavra de Deus atestada na Escritura. Nessa perspectiva, a</p><p>Igreja é sobretudo o sujeito que obedece a autoridade; seu ato se define, em primeiro lugar,</p><p>como um receber. Ora, não se pode receber senão aquilo que já existe; nesse sentido, as</p><p>Escrituras constituem uma realidade precedente, fruto da iniciativa admirável e gratuita de</p><p>Deus. Mas, segundo uma mediação que pertence à lógica da encarnação da Palavra, o</p><p>ato de receber próprio da Igreja torna-se necessariamente também um ato de autoridade,</p><p>enquanto é ela que autoriza o cânon das Escrituras, isto é, decide aquilo que pertence a</p><p>estas e aquilo que, ao contrário, lhe é estranho. Existe, pois, um paradoxo: o ato do sujeito</p><p>que se submete na obediência e na humildade ao cânon das Escrituras é, ao mesmo tempo,</p><p>um ato de autoridade (PRIOTTO, 2019, p. 46).</p><p>41UNIDADE I A Palavra Escrita 41UNIDADE II O Cânon das Escrituras</p><p>Esse ato de obediência e de autoridade acontece na pregação apostólica; essa</p><p>pregação é constitutiva da Igreja, porque ela só existe na medida em que as Escrituras se</p><p>tornam e permanecem o objeto de sua pregação. Indubitavelmente, esta dualidade de um</p><p>ato único (obediência/recepção e ato de autoridade) remete para a estrutura ministerial</p><p>da Igreja: de um lado, ela se submete à Palavra revelada das Escrituras, de outro, a</p><p>oferece ao povo de Deus para conservá-lo na obediência da fé. Todavia, o ato eclesial</p><p>de determinação do cânon não é um ato automático e fácil, nem uma decisão que segue</p><p>imediatamente à recepção, mas um ato difuso no tempo e no espaço, caracterizado pela</p><p>lentidão dos processos históricos; quando as listas do cânon começam a aparecer na</p><p>Igreja antiga e, depois, nos concílios, trata-se sempre de confirmação daquilo que já era</p><p>conhecido e reconhecido (PRIOTTO, 2019,</p><p>p. 46-47).</p><p>A determinação do cânon aconteceu, pois, numa comunidade crente; isso significa</p><p>que não pode existir Escritura senão numa tradição viva, que preside sua composição e,</p><p>depois, sua transmissão, quer dizer, sua canonização e interpretação. O cânon das Escrituras</p><p>é, pois, um fato de tradição. Por sua natureza está no coração da relação entre Escritura e</p><p>Igreja: a Igreja produz o cânon através de sua fidelidade ao evento que a fundamenta, de</p><p>maneira tal que ele se torna a norma dessa mesma fidelidade. Sem Igreja não acontece</p><p>Escritura, nem Igreja sem Escritura. Trata-se de uma estrutura permanente na vida da Igreja,</p><p>afinal, a decisão sobre o Cânon é o primeiro ato de obediência e de autoridade: o fundamento</p><p>de toda autoridade da Igreja é a necessidade de manter a Igreja na obediência da fé.</p><p>Quais são os critérios que presidiram o reconhecimento dos livros sagrados? Priotto</p><p>(2019, p. 48) responde que o cânon das Escrituras hebraicas, como se apresentava na</p><p>tradição da LXX, teve um papel evidente para a determinação do Antigo Testamento por parte</p><p>da Igreja primitiva. Para o Novo Testamento, podemos reconhecer três critérios principais:</p><p>a) O critério do testemunho original, que se torna necessariamente critério temporal;</p><p>trata-se de livros na época apostólica, isto é, na época da geração das testemunhas</p><p>do evento fundador.</p><p>b) O critério eclesial: trata-se de livros aceitos em determinadas Igrejas, especialmente</p><p>por seu uso litúrgico, e progressivamente reconhecidos por todas as Igrejas; são os</p><p>livros dos quais a Igreja vive e, graças aos quais, exprime a própria fé;</p><p>c) O critério cristológico: a Igreja reconheceu os escritos que apresentavam uma</p><p>imagem de Cristo conforme o querigma apostólico.</p><p>Essa Igreja que reconhece os livros sagrados é uma Igreja dotada de uma estrutura</p><p>ministerial, isto é, trata-se de comunidades presididas por bispos.</p><p>42UNIDADE I A Palavra Escrita 42UNIDADE II O Cânon das Escrituras</p><p>É significativo, afinal, que o tempo em que a Igreja está reconhecendo e definindo</p><p>o cânon é também o tempo em que se está dando a estrutura do episcopado. Ora, a</p><p>verdade dessa estrutura ministerial não é a de uma autoridade que se ergue acima da</p><p>Escritura – afinal, a Igreja não pode ser superior à Escritura –, mas a de uma autoridade</p><p>única da Escritura. Isso significa reconhecer que as Igrejas que se referiram definitivamente</p><p>às Escrituras tinham consciência de que essas Escrituras fundamentavam o ministério de</p><p>seu episcopado (PRIOTTO, 2019, p. 48).</p><p>Por fim, o cânon constitui um ato tanto de fechamento quanto de abertura. O cânon</p><p>é, sobretudo, um ato de inclusão, embora longo e, por vezes, cansativo; isto é, ele inclui todo</p><p>o testemunho profético-apostólico, excluindo ao mesmo tempo aquilo que é heterodoxo ou</p><p>simplesmente não é essencial ao conteúdo da revelação. Esse ato de fechamento introduz</p><p>também uma pausa temporal entre uma época normativa, na qual a revelação é ainda aberta a</p><p>novas aquisições, e uma época na qual a relação com a comunidade crente com o evento da</p><p>revelação passa já através da mediação objetiva do cânon das Escrituras. Essa pausa temporal</p><p>para a Bíblia hebraica aconteceu no início do século III d.C.; para a Bíblia cristã coincide com a</p><p>passagem da época apostólica para a época pós-apostólica (PRIOTTO, 2019, p. 48).</p><p>Mas esse ato de fechamento é também um ato de abertura. Com efeito, o cânon não é</p><p>simplesmente um documento que codifica o conteúdo da revelação, mas é uma Palavra viva,</p><p>oferecida à comunidade para que possa interpretá-la, aprofundá-la e atualizá-la nas novas</p><p>circunstâncias históricas que ela vive. Esse ato de fechamento canônico só pode realizar-</p><p>se com fatos acontecidos; isto é, não pode ser estritamente contemporâneo ao fechamento</p><p>efetivo da época normativa. Afinal, por exemplo, a plena consciência da normatividade da</p><p>época apostólica aconteceu quando a geração apostólica já havia desaparecido.</p><p>Por fim, o ato de fechamento do cânon é a constituição de um “corpo escriturístico”;</p><p>é o novo corpo dado ao Verbo de Deus. Trata-se de uma metáfora significativa, porque se</p><p>esse corpo escriturístico remete necessariamente para a realidade do corpo de cristo, está</p><p>também indissoluvelmente ligado ao corpo da Igreja, que, por sua vez, vive tanto do corpo</p><p>das Escrituras quanto do corpo eucarístico (PRIOTTO, 2019, p. 49).</p><p>43UNIDADE I A Palavra Escrita 43UNIDADE II O Cânon das Escrituras</p><p>5. A FORMA CANÔNICA</p><p>Precisamos lembrar que a Bíblia não é apenas um elenco de livros chegados até nós</p><p>para reunir, um depois do outro, quase uma biblioteca, mas um livro cuja estrutura foi pensada</p><p>em função de uma teologia. Daí a necessidade de distinguir claramente a Bíblia hebraica da</p><p>cristã, embora a primeira seja textualmente igual. De fato, viu-se que a Bíblia hebraica tem</p><p>uma modulação teológica própria, centrada sobre a Torá de Moisés, da qual dependem tantos</p><p>os Profetas como os Escritos. A Bíblia cristã, porém, desloca o centro sobre Jesus, o último</p><p>revelador de Deus; por isso, se, por um lado, acentua a continuidade histórico-salvífica com a</p><p>aliança precedente emprestando sua Escritura hebraica, por outro a interpreta à luz de Jesus.</p><p>É assim que a Escritura hebraica se torna o Antigo Testamento, em que a colocação final dos</p><p>escritos proféticos introduz a vinda do revelador final, e o Novo Testamento, em particular o</p><p>grupo dos quatro Evangelhos, torna-se a nova e definitiva Torá: “Porque a Lei foi dada por</p><p>meio de Moisés, a graça e a verdade vieram por Jesus Cristo” (Jo 1,17).</p><p>Essa distinção entre Escritura hebraica e Escritura cristã não significa contraposição</p><p>recíproca, mas testemunha duas recepções eclesiais diversas, embora complementares,</p><p>na espera que se cumpra o que escreve Paulo:</p><p>A cegueira de uma parte de Israel só há de durar até que chegue à totalidade</p><p>das nações. Então, todo Israel será salvo, como está escrito: O Libertador virá</p><p>de Sião para afastar de Jacó as impiedades E esta será minha aliança com</p><p>eles, quando apagar os seus pecados – Rm 11,25-27 (PRIOTTO, 2019, p. 61).</p><p>44UNIDADE I A Palavra Escrita 44UNIDADE II O Cânon das Escrituras</p><p>SAIBA MAIS</p><p>Em sua história Eclesiástica, Eusébio de Casareia falou de livros cura autoridade</p><p>era reconhecida de forma unânime (omologoumenoi), daqueles discutidos</p><p>(amphiballomenoi) e dos que eram contrastados (Antilogoumenoi). Depois do Concílio</p><p>de Trento, a denominação adotada pela Igreja foi: protocanônicos, para designar os</p><p>livros canonizados em um primeiro momento; deuterocanônicos, os que entraram no</p><p>cânon de um segundo momento. E apócrifos (que significa “algo escondido, oculto”),</p><p>aqueles que não foram considerados canônicos.</p><p>Fonte: CATENASSI, Fabrízio Zandonadi. Introdução teológica e história de Israel. Curitiba: Intersaberes, 2018.</p><p>REFLITA</p><p>Qual a importância do estabelecimento do Cânon bíblico? Decretar o cânon não incorreu</p><p>no risco de deixar livros inspirados por Deus fora da Bíblia?</p><p>Fonte: O Autor (2022).</p><p>45UNIDADE I A Palavra Escrita 45UNIDADE II O Cânon das Escrituras</p><p>CONSIDERAÇÕES FINAIS</p><p>Concluímos mais uma etapa de nosso estudo. Esperamos que ele também tenha</p><p>sido frutuoso para sua formação teológica no aspecto da Introdução às Sagradas Escrituras.</p><p>Vimos o processo e a importância da definição do cânon bíblico. Pudemos perceber</p><p>que se tratou de um processo que fez, tanto os judeus, quanto a Igreja Cristã, estabelecer</p><p>quais os livros poderiam fazer parte desse conjunto que é atribuído aos livros que foram</p><p>escritos sob a inspiração de Deus.</p><p>Em nossa próxima unidade, vamos estudar de forma mais aprofundada o conceito</p><p>de inspiração e de revelação. Apesar de separados, por uma questão didática, são concei-</p><p>tos que se inter-relacionam com o cânon de forma inseparável.</p><p>Um ótimo estudo para todos.</p><p>46UNIDADE I A Palavra Escrita 46UNIDADE II O Cânon das Escrituras</p><p>LEITURA COMPLEMENTAR</p><p>Natureza da Canonicidade</p><p>Embora o cânon da Igreja Latina estivesse</p><p>fixado no século V, vimos que se</p><p>levantaram dúvidas em algumas partes com respeito à origem apostólica de muitos escritos</p><p>do Novo Testamento (Hebreus, Tiago, 2 Pedro, 2 e 3 João). As discussões com respeito a</p><p>Hebreus persistiram até a Idade Média e as dúvidas só foram acalmadas pela autoridade</p><p>de Tomás de Aquino e Nicolau de Lira, que sustentavam que a epístola era paulina. No</p><p>século XVI, a questão foi levantada uma vez mais. Erasmo (1536) viu-se censurado pelos</p><p>teólogos da Sorbonne por duvidar da origem apostólica de Hebreus, Tiago, 2 Pedro, 2 e 3</p><p>João e Apocalipse – embora ele não negasse a sua canonicidade. Hoje, quase todos os</p><p>exegetas concordam que Hebreus e 2 Pedro não forma escritas pelos apóstolos e que o</p><p>autor de Tiago não é o apóstolo do mesmo nome, ao passo que a autenticidade de João,</p><p>Apocalipse e algumas das epístolas paulinas é amplamente questionada. Devemos agora</p><p>examinar o critério de canonicidade (HARRINGTON, 1985, p. 59).</p><p>Segue-se da história da formação do cânon que a Igreja foi orientada, em parte,</p><p>pela prática e ensino de Cristo e seus apóstolos, que certamente consideravam o antigo</p><p>Testamento como a palavra de Deus. E foi a Igreja que declarou, para sempre, que o Antigo</p><p>Testamento era canônico. Contudo, como pode a Igreja ter sabido quais livros do Novo</p><p>Testamento são inspirados? Parece que isso não pode ser estabelecido por meio dos livros</p><p>individualmente. Não é provável que escritores, não conscientes de sua própria inspiração,</p><p>pudesse ter revelado a inspiração de um determinado livro; e mesmo que estivessem</p><p>cônscios de sua própria inspiração, tem de ser demonstrado que eles, de fato, revelaram</p><p>a inspiração de certos livros. Contudo, a inspiração de um grupo de escritos é parte da</p><p>verdade revelado que deve datar da época apostólica, isto é, da primeira geração da Igreja,</p><p>o período de sua formação. A pesquisa histórica sugere que, ao decidir que os livros do</p><p>Novo Testamento são inspirados, foi ao princípio da Apostolicidade que a Igreja recorreu.</p><p>Contudo, o critério invocado pelos Padres não é sempre a origem apostólica dos livros</p><p>num sentido restrito: algumas vezes, eles consideram os apóstolos não como os autores</p><p>dos livros, mas como o primeiro elo na cadeia de tradição que encontra sua expressão nos</p><p>livros (HARRINGTON, 1985, p. 59-60).</p><p>47UNIDADE I A Palavra Escrita 47UNIDADE II O Cânon das Escrituras</p><p>Citando o teólogo Karl Rahner, Harrington diz:</p><p>que é arbitrário afirmar que os apóstolos, ou um apóstolo, tinham deixado</p><p>uma formal e explícita revelação sobre a natureza inspirada dos escritos do</p><p>Novo Testamento in individuo, ou em alguma declaração que expressava</p><p>diretamente essa revelação. (...) A inspiração tem que ser concebida de tal</p><p>maneira que demonstre por si como a Igreja conhece a inspiração dos livros</p><p>do Novo Testamento, sem a necessidade de recorrer a qualquer declaração</p><p>a seu respeito nos tempos apostólicos, a qual não tem suporte histórico</p><p>(HARRINGTON, 1985, p. 60).</p><p>É verdade que, definitivamente, a inspiração de um escrito só pode ser conhecida</p><p>por meio da revelação; a questão é como deve ser concebida essa revelação. Desde que as</p><p>Escrituras nasceram da e com a Igreja, a Igreja não tem a necessidade da revelação explícita</p><p>de um apóstolo a fim de ser capaz de reconhecer os livros inspirados: ela os reconhece</p><p>congenitamente. A revelação requerida é dada pelo fato de que o escrito relevante surge como</p><p>uma autoexpressão genuína da Igreja primitiva. E pode haver um intervalo entre a revelação</p><p>do caráter inspirado de certos livros e a clara expressão desse fato. Na prática, a Igreja tinha</p><p>um cânon antes que existisse qualquer teoria de canonicidade ou lista de livros canônicos. Isso</p><p>explica a hesitação acerca da inspiração de certos escritos (HARRINGTON, 1985, p. 60).</p><p>48UNIDADE I A Palavra Escrita 48UNIDADE II O Cânon das Escrituras</p><p>MATERIAL COMPLEMENTAR</p><p>LIVRO</p><p>Título: Bibliologia</p><p>Autor: Roberto Rohregger.</p><p>Editora: Contentus.</p><p>Sinopse: Este livro estuda a formação da Bíblia levando em</p><p>consideração sua estrutura, idiomas originais e manuscritos mais</p><p>antigos, refletindo sobre o conceito de inspiração. A obra ainda discute</p><p>o modo como Jesus compreendia as Escrituras e questões sobre a</p><p>fidelidade do texto bíblico, além de fazer um estudo sobre alguns dos</p><p>manuscritos mais importantes, sobre o processo de tradução para o</p><p>português e sobre o contexto atual da Bíblia no Brasil.</p><p>FILME/VÍDEO</p><p>Título: A Bíblia, no início</p><p>Ano: 1966.</p><p>Sinopse: As maiores histórias do antigo testamento são trazidas</p><p>para as telas com um domínio e força impressionantes neste filme</p><p>internacional, que exibe os 22 primeiros capítulos do Gênesis. Esta</p><p>é a história espetacular do homem, de sua queda, sua sobrevivência</p><p>e sua fé indomável no futuro. Dando brilho à grandiosidade épica,</p><p>temos as interpretações de George C. Scott como Abrão, Ava</p><p>Garner como Sara e Peter O’Toole como a presença evocativa</p><p>do anjo de Deus. O lendário John Huston dirige esta obra e</p><p>também apresenta uma interpretação digna de nota como Noé.</p><p>Da abertura do filme em meio ao caos cósmico até sua mensagem</p><p>de esperança e salvação, a Bíblia mantém a todo momento sua</p><p>característica de uma conquista monumental do cinema.</p><p>49</p><p>Plano de Estudo:</p><p>● Um Deus que fala;</p><p>● A tradição da Palavra;</p><p>● A Palavra torna-se Escritura;</p><p>● Sobre o Cânon e a Inspiração;</p><p>● Sobre a Inspiração Escriturística;</p><p>● A Inspiração na Bíblia;</p><p>● A Revelação na Bíblia.</p><p>Objetivos da Aprendizagem:</p><p>● Conhecer os conceitos de inspiração e revelação bíblicas;</p><p>● Entender como se deu o processo de reconhecer</p><p>a Bíblia como livro inspirado por Deus.</p><p>UNIDADE III</p><p>A Palavra: A Inspiração Escriturística</p><p>e a Revelação Bíblica</p><p>Professor Me. Flávio Donizete Batista</p><p>50UNIDADE III A Palavra: A Inspiração Escriturística e a Revelação Bíblica</p><p>INTRODUÇÃO</p><p>Olá, Prezado Acadêmico. Olá, Prezada Acadêmica.</p><p>Espero encontrar você disposto a dar continuidade ao nosso estudo de Introdução</p><p>às Sagradas Escrituras. Até aqui, você percebeu o quanto é interessante todo esse mundo</p><p>bíblico, o quanto de informações e conhecimentos aprendemos, o que nos faz perceber que</p><p>o quanto ainda temos de buscar conhecê-lo cada vez mais.</p><p>Nesta unidade, vamos abordar a questão da inspiração e revelação bíblicas. Quais</p><p>os significados dessas realidades dentro da formação e da compreensão da Bíblia como</p><p>Palavra de Deus.</p><p>Veremos que ser inspirado é o que diferencia os livros bíblicos de todos os outros</p><p>demais livros, tornando-os Palavra de Deus e fonte da revelação de seu projeto para seu</p><p>povo. E é aí que residem, na inspiração e na revelação, as condições que vão tornar a</p><p>Bíblia o livro que molda e guia toda a história do povo de Deus.</p><p>Que no estudo desta unidade, aprendamos mais sobre a Bíblia e consigamos</p><p>compreender a experiência de fé que o povo fez da presença de seu Deus que quis falar</p><p>diretamente a ele.</p><p>Um excelente estudo a todos. Sempre busquem mais do que é apresentado. E</p><p>vamos em frente em nosso curso.</p><p>Grande abraço.</p><p>51UNIDADE III A Palavra: A Inspiração Escriturística e a Revelação Bíblica</p><p>1. UM DEUS QUE FALA</p><p>A Carta aos Hebreus começa afirmando que “Muitas vezes e de modos diversos</p><p>Deus falou antigamente a nossos pais e profetas. Agora, nos últimos dias, falou-nos pelo</p><p>Filho, que constituiu herdeiro de tudo, por que criou também o mundo (Hb 1,1-2). Priotto</p><p>(2019, p. 17) escreve que o centro e, consequentemente, o peso teológico de toda frase é</p><p>constituído pela expressão “falou pelo Filho” e, em particular pelo verbo “falou”, que define</p><p>todo o processo revelador de Deus com a categoria do falar. O uso do verbo evidencia a</p><p>revelação como relação e comunicação interpessoal; isto é, ela não é a comunicação de</p><p>uma mensagem abstrata ou de uma doutrina, mas a instauração de uma relação pessoal</p><p>com o homem. Essa relação atinge o ápice com a encarnação do Filho, a Palavra por</p><p>Excelência (Jo 1,14). Portanto, o Deus bíblico é um Deus que fala.</p><p>O valor simbólico da palavra é imenso, enquanto ela não é somente uma capacidade</p><p>entre as outras, mas a capacidade que define o homem enquanto tal. O homem não seria</p><p>homem se não lhe fosse concedido falar. Enquanto a linguagem concede isso, o ser do</p><p>homem apoia-se sobre a linguagem. Portanto, desde o início estamos na linguagem e</p><p>com a linguagem (PRIOTTO, 2019, p. 18).</p><p>As mais importantes funções da linguagem são três: a informação, a expressão e</p><p>o apelo. Se a primeira aparece como a mais evidente, sobretudo na civilização midiática</p><p>moderna, não é, porém, a mais importante, porque a comunicação de dados, de notícias</p><p>e de conhecimentos técnicos está certamente na base do progresso tecnológico, mas não</p><p>necessariamente do progresso humano.</p><p>52UNIDADE III A Palavra: A Inspiração Escriturística e a Revelação Bíblica</p><p>Isso acontece somente quando a palavra consente que o homem expresse sua</p><p>interioridade, aquilo que ele é, vive e sente, entrando assim na vida íntima do outro e</p><p>tornando-se comunhão; sem uma palavra que expressa e interpela, o homem não sai de</p><p>sua solidão existencial; graças a ela, porém, consegue construir uma comunhão, que se</p><p>torna amizade e amor (PRIOTTO, 2019, p. 18).</p><p>A primeira palavra que Deus pronuncia é a da criação; de fato, antes mesmo do</p><p>livro bíblico, existe o livro cósmico: “Os céus narram a glória de Deus, e o firmamento</p><p>proclama a obra de suas mãos. Um dia a outro dia transmite a mensagem, uma noite a</p><p>outra noite comunica a notícia” (Sl 19,2-3). Diversamente daquilo que é descrito nos antigos</p><p>mitos orientais, na narração bíblica a criação acontece somente através da palavra divina,</p><p>sem nenhuma luta ou esforço. Deus cria através de sua palavra na serena soberania de</p><p>sua ação gratuita; e é exatamente sua palavra que mantém unido todo o universo, porque</p><p>se Ele a retira, a criação recai no caos original: “Se escondes a tua face, eles se perturbam;</p><p>se retiras o teu alento, perecem e voltam ao seu pó. Envias teu Espírito, eles são criados, e</p><p>assim Tu renovas a face da terra (Sl 104, 29-30) (PRIOTTO, 2019, p. 19).</p><p>Particularmente solene é a palavra divina que precede a criação do homem, graças</p><p>àquele plural que vê Deus para e quase consultar sua corte para comunicar-lhe seu projeto:</p><p>“Façamos o ser humano à nossa imagem e segundo a nossa semelhança, para que domine</p><p>sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todos os animais selvagens</p><p>e todos os répteis que rastejam sobre a terra (Gn 1,26). Aqui a palavra precede o homem e,</p><p>precedendo-o, caracteriza-o na sua unicidade, isto é, no seu ser imagem de Deus. Depois, um</p><p>pouco adiante, pela primeira vez, Deus dirige sua palavra a um ser: não mais simplesmente</p><p>“Deus disse”, mas “Deus disse-lhes”. Assim, a palavra divina se oferece como diálogo,</p><p>interpelação e convite à comunhão. Um diálogo que percorrerá toda a revelação divina, até a</p><p>estupenda palavra final: “Sim, eu venho em breve!” (Ap 22,20) (PRIOTTO, 2019, p. 19).</p><p>53UNIDADE III A Palavra: A Inspiração Escriturística e a Revelação Bíblica</p><p>2. A TRADIÇÃO DA PALAVRA</p><p>Enquanto homo loquens, o ser humano é também homo tradens; isto é, o dom</p><p>da palavra se alarga também no tempo, tornando-se mensagem entre as gerações. A</p><p>palavra transmitida torna-se tradição e oferece ao homem não só maiores conhecimentos e</p><p>competências práticas, mas também uma autocompreensão mais rica. Isto é particularmente</p><p>significativo na religião bíblica, em que a tradição não é apenas um dado de fato, mas</p><p>também um imperativo, como recorda o salmo: “O que ouvimos e aprendemos, o que os pais</p><p>nos contaram, não o ocultaremos aos seus descendentes, mas o transmitiremos à geração</p><p>seguinte: os feitos gloriosos do Senhor, seu poder e as maravilhas que fez (Sl 78, 3-4).</p><p>Portanto, a Palavra de Deus revelada é conservada pela tradição oral e permite</p><p>sua extensão no tempo e no espaço, tornando-se um elemento estrutural irrenunciável. De</p><p>fato, ela não cessa como advento da tradição escrita, mas se torna o necessário elemento</p><p>interpretativo. A tradição judaica sempre reivindicou a importância teológica da tradição oral.</p><p>Sobre o Novo testamento, podemos afirmar que Jesus não deixa escrito algum, mas</p><p>com sua palavra e sua ação e, em particular, com sua morte e ressurreição, dá origem a uma</p><p>tradição essencialmente oral (cf. 1 Cor 15,1-2). Se os escritos aparecem muito cedo, graças</p><p>sobretudo às cartas que Paulo envia às comunidades, nos primeiros decênios, porém, a tradição</p><p>sobre Jesus é propriamente uma tradição oral, caracterizada pelo anúncio e pela celebração</p><p>litúrgica; sua codificação por escrito não só não eliminará esse caráter, mas o exaltará enquanto</p><p>elemento indispensável para sua correta interpretação. (PRIOTTO, 2019, p. 26).</p><p>54UNIDADE III A Palavra: A Inspiração Escriturística e a Revelação Bíblica</p><p>3. A PALAVRA TORNA-SE ESCRITURA</p><p>Em um certo ponto, essa palavra transmitida oralmente foi posta por escrito.</p><p>Remetendo a descrição da formação histórica dos dois testamentos para um parágrafo</p><p>posterior, é importante destacar o significado do aparecimento do escrito. Esse processo,</p><p>especialmente para o Antigo Testamento, é longo e complexo, porque exige a harmonização</p><p>entre uma pluralidade de tradições orais e de escritos precedentes não sempre coerentes</p><p>entre si, até uma redação final fiel e, ao mesmo tempo, inovadora. Além da complexidade</p><p>dessa problemática, um exemplo nos ajudará a compreender o significado teológico desse</p><p>ato de pôr por escrito a Palavra revelada: o de Jeremias.</p><p>O exemplo é constituído pelo fato de serem postas por escrito as palavras reveladas</p><p>a Jeremias, exemplo particularmente significativo porque revela um processo articulado</p><p>e, mais ainda, num período, o do exílio, durante o qual a formação da literatura bíblica é</p><p>particularmente intensa. O processo de codificação escrita articula-se em três momentos.</p><p>Impedido de entrar no templo e de falar, o profeta dita ao escrita Baruc todas as palavras</p><p>que o Senhor lhe havia dito (Jr 36,4-5); o autor é sempre Jeremias, mas como o suporte</p><p>essencial de Baruc; a fidelidade do escrito é evidenciada pela repetida expressão “todas as</p><p>palavras” (36, 2.4.13.18) e pela mesma finalidade, isto é, a conversão do povo (36,7). Como</p><p>segundo momento, segue a leitura do rolo (36,8-26); o primeiro leitor é o próprio Baruc, que</p><p>depois de tê-lo lido pessoalmente e ter atestado sua fidelidade, o lê ao povo e aos chefes.</p><p>55UNIDADE III A Palavra: A Inspiração Escriturística e a Revelação Bíblica</p><p>Depois o rolo é lido por Judi na presença do rei e por ele queimado: a intenção é</p><p>destruir a Palavra. Por fim, um terceiro momento (36,27-32) descreve a reescrita do rolo</p><p>por parte de Baruc, sob ditado de Jeremias, onde se afirma não só a fidelidade ao primeiro</p><p>rolo, mas também seu enriquecimento de novas palavras; os acréscimos não constituem</p><p>uma alteração da mensagem, mas uma fidelidade criativa devida à circunstância da</p><p>rejeição (PRIOTTO, 2019, p. 27-29).</p><p>Embora a redação dos livros bíblicos seja complexa e, em geral, envolta no</p><p>silêncio, o exemplo acima permite compreender os dados essenciais do processo de</p><p>revelação. Primeiramente, ele interessa não só ao profeta, mas também a todos aqueles</p><p>que, de maneira diversa e segundo diferentes modalidades, tornam possível no tempo e</p><p>no espaço o acolhimento, a conservação, o aprofundamento, a defesa e a atualização da</p><p>palavra revelada. Com isso, é preciso alargar o conceito de autor, estendendo-o à obra</p><p>escondida, mas indispensável, de escribas; de fato, eles não são meros copistas, mas</p><p>participam ativamente do carisma profético, acolhendo e conservando a palavra do profeta,</p><p>mas também defendendo-a dos ataques perseguidores, aprofundando-a e atualizando-a</p><p>nas novas circunstâncias históricas. É graças à obra desses escribas fiéis que a Palavra</p><p>revelada, superando o limite do espaço e do tempo, chega a todo o povo de Deus na história.</p><p>Trata-se de um único dado</p><p>não apenas histórico, mas teológico, que terá importantes</p><p>consequências na definição da inspiração do Livro Sagrado (PRIOTTO, 2019, p. 29).</p><p>O que se disse, mostra como se passa da Palavra anunciada ao profeta para a</p><p>Palavra escrita. A presença de escritos nos quais são recolhidas as palavras proféticas não</p><p>corresponde ainda automaticamente à Escritura, como a possuímos hoje; com efeito, a</p><p>formação literária do livro da Bíblia trata-se de um processo muito longo e complexo. Para</p><p>o momento, basta afirmar que a Palavra profética dada aos poucos por Deus no curso da</p><p>revelação torna-se tradição escrita, que depois será recolhida em um único livro, que nos</p><p>conhecemos como Sagrada Escritura ou Bíblia, constituída de duas partes: O Antigo e o</p><p>Novo Testamentos (PRIOTTO, 2019, p. 29).</p><p>56UNIDADE III A Palavra: A Inspiração Escriturística e a Revelação Bíblica</p><p>4. SOBRE O CÂNON E A INSPIRAÇÃO</p><p>As comunidades crentes, através de um longo e articulado processo, reconheceram</p><p>a normatividade de determinados livros, agrupando-os num cânon preciso. Ora, além de</p><p>vários critérios, o fundamento último da normatividade dos livros bíblicos é a fé na sua</p><p>inspiração; isto é, trata-se de livros fundamentados sobre a própria autoridade de Deus,</p><p>manifestada através de seu Espírito. Em particular, o fundamento último da normatividade</p><p>do Novo Testamento, inclusive o Antigo Testamento cristão, é a autoridade de Jesus Cristo</p><p>expressa pelo dom do Espírito. Somente quando, sob a direção do Espírito, se reconhece</p><p>essa autoridade cristológica, um escrito eclesialmente originário pode ser acolhido como</p><p>canônico (PRIOTTO, 2019, p. 66).</p><p>Canonização e inspiração, pois, são dois conceitos intimamente conexos entre si e</p><p>isso por causa da circularidade existente entre Igreja e Escritura. Tomando o caso do Novo</p><p>Testamento – fundamentalmente, porém, vale a mesma coisa para as Escrituras hebraicas – a</p><p>Igreja cristã precede o Novo Testamento e é ela que o constrói em dois momentos historicamente</p><p>sucessivos, mas teologicamente contemporâneos: primeiramente, escrevendo na época</p><p>apostólica os textos que o compõem, depois, reconhecendo-lhes o caráter de Escritura, isto</p><p>é, constituindo-os corpo canônico, revestido da mesma autoridade que as antigas Escrituras.</p><p>Por outro lado, a Escritura precede a Igreja, porque o Novo Testamento foi escrito à luz do</p><p>Antigo Testamento e, sobretudo, porque o Novo Testamento é o testemunho do evento Jesus,</p><p>de quem ele deriva sua autoridade (PRIOTTO, 2019, p. 66).</p><p>57UNIDADE III A Palavra: A Inspiração Escriturística e a Revelação Bíblica</p><p>Assim os escritos apostólicos são julgados canônicos porque são reconhecidos</p><p>como inspirados. A inspiração precede e fundamenta o cânon; mas eles são reconhecidos</p><p>como inspirados pela Igreja, que tem a iniciativa de julgá-los canônicos. Desse modo, o</p><p>cânon torna-se o critério prioritário da inspiração; o texto como inspirado porque pertence</p><p>ao cânon. Essa circularidade entre o que é recebido passivamente e o que é determinado</p><p>ativamente é estrutural, feita de uma solidariedade originária e recíproca.</p><p>58UNIDADE III A Palavra: A Inspiração Escriturística e a Revelação Bíblica</p><p>5. SOBRE A INSPIRAÇÃO ESCRITURÍSTICA</p><p>Embora não haja nenhuma menção explícita nas páginas do Antigo Testamento, há</p><p>muitas páginas que a sugerem. Somos informados, por exemplo, que foi por ordem divina que</p><p>Moisés escreveu o livro da aliança (Ex 24,4-5;34, 27) e que Jeremias registrou num livro os</p><p>oráculos do Senhor (Jr 30,2; 36,2). Os judeus faziam uma tríplice divisão dos livros sagrados</p><p>e criam que todos eles procediam de Deus. Assim a Torah era considerada como a Palavra de</p><p>Deus e os Profetas falavam a Palavra de Deus; estes, como os Escritos, constituíam os “livros</p><p>sagrados” mencionados em 1MC 12,9. A Igreja Cristã herdou essas Escrituras e aceitou o</p><p>caráter sagrado delas. Jesus já as tinha citado como Palavra de Deus (Mt 22,31; Mc 7,13;</p><p>Jo 10,34-35). Os apóstolos fizeram a mesma coisa (At 1,16; 4,25; 28,25). Os argumentos</p><p>podiam estar baseados nas Escrituras como na autoridade divina (Rm 3,2; 1Cor 14,21; Hb</p><p>3,7; 10,15). Há dois textos clássicos, 2Tm 3,16 e 2Pd 1,21, que, com referência ao Antigo</p><p>Testamento, consideram respectivamente a extensão e a natureza da inspiração.</p><p>A crença da Igreja na inspiração divina das Escrituras também é clara, com re-</p><p>ferência aos tempos mais primitivos e no ensino dos teólogos de todas as épocas. No</p><p>século II, as Escrituras são classificadas de “oráculos de Deus” que “foram ditados pelo</p><p>Espírito Santo”, o qual usou os escritores sagrados como “instrumentos”. Mais tarde, os</p><p>escritores falaram do Espírito Santo como “autor” das Escrituras e afirmaram que ambos os</p><p>Testamentos foram inspirados pelo Espírito. O ensino sobre a inspiração pode ser resumido</p><p>em duas declarações: a) Deus (o Espírito Santo) é o autor das Escrituras Sagradas; b) o</p><p>escritor humano é instrumento de Deus.</p><p>59UNIDADE III A Palavra: A Inspiração Escriturística e a Revelação Bíblica</p><p>6. A INSPIRAÇÃO NA BÍBLIA</p><p>Além da palavra theopneustos de 2 TM 3,16, o termo “inspiração” não aparece</p><p>na Bíblia. Contudo, alguma coisa muito mais importante do que a ocorrência ou não de</p><p>um termo específico, a realidade da “possessão do Espírito”, é encontrada com muita</p><p>frequência. Ao mesmo tempo, a maneira pela qual esta é descrita é extremamente</p><p>variada. Será interessante examinar brevemente o extenso padrão da maneira que</p><p>Deus usa para mover os homens no contexto de seu plano salvífico para a humanidade.</p><p>Veremos imediatamente que a “inspiração” é muito mais ampla do que o carisma particular</p><p>desfrutado pelos escritores bíblicos.</p><p>No antigo Testamento, o “Espírito de Lahweh” é uma força misteriosa que entra</p><p>poderosamente na história do povo escolhido e executa as obras de Iahweh, salvador</p><p>e juiz. Ele se apodera dos homens escolhidos e os transforma, dá-lhes poder para</p><p>representar papeis excepcionais, e por sua instrumentalidade guia o destino de Israel</p><p>e as etapas da história da salvação. Nos textos mais antigos, a ação do Espírito é mais</p><p>abrupta e transitória: o Espírito de Iahweh “inflama” (Jz 13,25), “cai sobre” (Ez 11,5),</p><p>“arrebata” (1Rs 18,12; 2Rs 2,16), “vem poderosamente sobre” (Jz 14,6). Ele pode</p><p>despertar naqueles que toca, extraordinária força física, que é empregada no serviço</p><p>do povo de Deus (Jz 13,25; 14,6-19; 15,14), pode inflamar os homens para realizar os</p><p>feitos de proeza em batalha (Jz 6,34; 11,29; 1Sm 11,6-7). Em resumo, muitos dos juízes,</p><p>sem preparação ou predisposição, foram abrupta e totalmente mudados, tornaram-se</p><p>capazes de extraordinárias ações de coragem e de força e foram dotados de uma nova</p><p>personalidade, que fez deles líderes e salvadores de seu povo.</p><p>60UNIDADE III A Palavra: A Inspiração Escriturística e a Revelação Bíblica</p><p>O Espírito também provoca entusiasmo e êxtase proféticos (Nm 11,24-30; 1Sm</p><p>10,5-13; 19,20-24), o poder para operar milagres (1Rs 17,14; 2Rs 2,15;4-1-44), o dom de</p><p>profecia (Nm 24,2; 1Cr 12,19; 2 Cr 20,14; 24,20) e a interpretação dos sonhos (Gn 40,8;</p><p>41,16.38; Dn 4,5;5,11;6,4). Em todos esses casos, o Espírito “vem sobre” os homens como</p><p>um dom de Deus sumamente livre.</p><p>Os textos posteriores apresentam o Espírito de Iahweh repousando, num modo</p><p>de residir sobre os líderes carismáticos. Ele vem repousar sobre Moisés (Nm 11,17-25),</p><p>sobre Josué (Js 27,18; Dt 34,9), sobre Saul (1Sm 16,14) e sobre Davi (1Sm 16,13; 2Sm</p><p>23,2). Os reis, ao contrário dos juízes, eram encarregados de uma função permanente, e</p><p>o rito da unção, que os consagrava, manifestava a marca do Espírito e os investia de uma</p><p>majestade sagrada (1Sm 10,1; 16,13). Mas o Espírito repousou também sobre Elias (2Rs</p><p>2,9) e Eliseu (2,15); e os profetas eram os privilegiados portadores do Espírito.</p><p>Os profetas tinham consciência de que uma pressão soberana – sobrepujando até</p><p>as próprias inclinações – os obrigava a falar (Am 3,8; 7,14-15; Jr 20,7-9). Eles falam – e</p><p>a</p><p>palavra pode custar-lhes muito, pode ser arrancada deles – mas sabem que ela não se</p><p>originou neles: é realmente a Palavra do Senhor que os envia, pois é através do Espírito de</p><p>Iahweh que os profetas recebem a palavra de Iahweh (Is 30,1; Zc 7,2). O Espírito transforma</p><p>o profeta numa “cidade fortificada”, numa “coluna de ferro” (Jr 1,18; 20,11) e faz sua fronte</p><p>de “diamante mais duro que a pederneira” (Ez 3,8-9; Is 6,6-9). Na era messiânica, todos</p><p>os de Israel possuirão inspiração profética oriunda de derramamento geral do Espírito (Jl</p><p>3,1-2; Is 32,15; Ez 39,29).</p><p>Voltando para o Novo Testamento, descobrimos que, nos escritos de Lucas, o</p><p>conceito de Espírito é semelhante à ideia do Antigo Testamento. Diz-se de quase todas as</p><p>pessoas mencionadas em Lc 1-2 que são movidas por ou cheias do Espírito Santo: João</p><p>Batista desde o ventre de sua mãe (1,15-18), seus pais, Zacarias (1,67ss) e Isabel (1,41ss),</p><p>bem como Simeão (2,27ss) e Ana (2,36). Em todos os casos, o Espírito Santo é apresen-</p><p>tado como um poder divino sobrenatural (cf. 1,35). Jesus como Messias é o portador do</p><p>Espírito Santo – esta é a verdade enfatizada por Lucas. Depois do batismo e tentação,</p><p>foi “no poder do Espírito” que Jesus retornou à Galileia e começou sua obra messiânica</p><p>(4,14) e suas primeiras palavras foram uma citação de Is 61, 1-2: “O Espírito do Senhor</p><p>está sobre mim, porque me escolheu para pregar a boa nova aos pobres” (Lc 4,18). Todo</p><p>o ministério público é, assim, colocado sob o sinal do Espírito e todas as obras e ensino de</p><p>Cristo devem ser vistos à luz dessa introdução. E, no final, o Senhor ressuscitado garantiu</p><p>que enviaria a “promessa do Pai”, o “poder do alto”, sobre os seus discípulos (24,49; At</p><p>1,8), pois o Espírito é o dom do Senhor ressuscitado e elevado ao céu (Jo 7,38-39;1,26).</p><p>Do Pentecostes em diante, o Espírito é o guia e poder motivador da missão cristã. Ele que</p><p>impulsionou o Messias é agora derramado pelo Senhor ressuscitado sobre sua Igreja (At</p><p>1,8; 2,4) e a profecia de Joel 2,28-32 se cumpre (At 2,17-21).</p><p>61UNIDADE III A Palavra: A Inspiração Escriturística e a Revelação Bíblica</p><p>Em Paulo, o Espírito é basicamente a força dinâmica divina e celestial que existe</p><p>de modo especial no Cristo ressuscitado e enche o seu Corpo, a Igreja. O Espírito não é</p><p>óbvia e explicitamente concebido como ser pessoal distinto. Um texto isolado em Mateus</p><p>(28,19) - uma fórmula batismal pós-ressureição é uma explícita declaração do caráter</p><p>pessoal do Espírito. E João nos relata que o Espírito Santo é um Paráclito, um Advogado,</p><p>exatamente como o Filho (14,16).</p><p>Nosso rápido exame, pelo menos, mostrou que, na Bíblia, a ação do Espírito é variada;</p><p>contudo pode ser classificada sob dois títulos gerais. Em primeiro lugar, há uma inspiração</p><p>para agir, isto é, o movimento eficaz do Espírito que segura um homem a fim de fazê-lo</p><p>realizar certos feitos. Esses não são apenas proezas esporádicas ou gestos simbólicos,</p><p>mas também empreendimentos de grande importância e de significado histórico decisivo,</p><p>pois, como vimos, o Espírito de Iahweh recruta e estimula aqueles a quem Deus encarregou</p><p>de conduzir a história sagrada. Em segundo lugar, há, especialmente, nos profetas, uma</p><p>inspiração para falar. Os profetas são os intérpretes do Espírito e o efeito de sua inspiração é</p><p>a proclamação daqueles “oráculos de Iahweh” que ensinam e dirigem o povo.</p><p>Por certo, não é por acaso que, embora se diga que o Espírito impulsiona os homens</p><p>a falar ou a agir, a Bíblia não tenha sido exemplo do Espírito descendo sobre um homem</p><p>a fim de movê-lo a pensar e a escrever. Naturalmente, ainda podemos falar de inspiração</p><p>“escriturística”, mas, em vista da evidência, devemos ser cautelosos para não fazer dela a</p><p>manifestação absoluta e exclusiva da inspiração nas Escrituras. Podemos, legitimamente,</p><p>falar da inspiração escriturística, porque, na verdade, a Bíblia é o termo, desejado e dirigido</p><p>por Deus, dos eventos da história sagrada e do ensino oral que a preserva em forma escrita.</p><p>Contudo, é necessário não restringir a inspiração a este estágio final, mas estendê-la, como</p><p>a Bíblia faz, aos mais antigos e não menos importantes estágios da palavra vivida pelos</p><p>pastores e líderes do povo de Deus. Contudo, quando afirmamos que a Bíblia nunca nos</p><p>mostra o Espírito descendo sobre um homem a fim de movê-lo a pensar, não queremos</p><p>dizer que nas Escrituras não haja lugar para o pensamento e o conhecimento. O fato com</p><p>respeito ao assunto é que, na Bíblia, “conhecimento” nunca é especulativo apenas - é algo</p><p>relacionado tanto como coração e ação como com o intelecto. Na Bíblia, a inspiração é o</p><p>movimento do Espírito que atinge o homem por inteiro e faz com que ele pense ou conheça</p><p>primeiro animado a agir, ou a falar, ou a escrever.</p><p>Assim, finalizamos com três formas de inspiração. A “inspiração para agir”,</p><p>considerada acima, pode ser descrita como inspiração pastoral, que impulsionava os</p><p>“pastores” ou líderes do povo de Deus. Em seguida, há a inspiração oral, desfrutada pelos</p><p>proclamadores da palavra: profetas e apóstolos. Finalmente, vem a inspiração escriturística,</p><p>que prolonga e completa as outras duas. Todas as três juntas formam aquilo que podemos</p><p>descrever como inspiração “bíblica”. Por esta razão, é muito importante ligar a inspiração</p><p>escriturística com seus antecedentes e vê-la em seu ambiente histórico.</p><p>62UNIDADE III A Palavra: A Inspiração Escriturística e a Revelação Bíblica</p><p>7. A REVELAÇÃO NA BÍBLIA</p><p>Começamos a entender a ideia bíblica de “revelação”, quando apreendemos o sen-</p><p>tido a palavra hebraica dabar (“palavra”). Para o hebreu, a palavra era mais que a expres-</p><p>são verbal do pensamento; ele considerava a palavra falada uma entidade dinâmica - ela</p><p>está carregada de poder. Então, dabar não significa apenas “palavra”, mas também “coisa”</p><p>ou “feito”; mais precisamente “o fundo de uma coisa em que reside o seu mais profundo</p><p>significado”. Contudo, dabar, naturalmente, também expressa uma ideia. É evidente que</p><p>dabar, significando uma “coisa-palavra”, ultrapassa o significado do grego logos. Se, então,</p><p>a “palavra” humana tem poder e eficácia, compreender-se-á prontamente que, sobretudo,</p><p>a palavra de Iahweh é eficaz (HARRINGTON, 1985, p. 32).</p><p>No Antigo Testamento, Iahweh se revela, ele fala aos homens, por meio dos profe-</p><p>tas, na lei, na natureza e na história. Certamente, Israel sabia dos três tipos de porta-vozes</p><p>divinamente indicados, o profeta, o sábio e o sacerdote, e da distinção na sua maneira de</p><p>falar: “não perecerá a lei (instrução) do sacerdote, nem o conselho do sábio, nem a palavra</p><p>do profeta” (Jr 18,18). Iahweh coloca a sua missão na boca do profeta (Jr 1,9), que não pode</p><p>resistir ao chamado divino (Am 7,5; Jr 20,9), e o profeta, por sua vez, proclama a palavra</p><p>de Deus ao povo. A palavra profética é uma força decisiva na história de Israel; seu poder</p><p>efetivo não pode ser contradito (1Rs 2,27; 2 Rs 1,17;9,36), é um fogo consumidor e é “como</p><p>um martelo que arrebenta as rochas” (Jr 23,29). Diferindo em sua ação da Palavra divina</p><p>que cai poderosamente sobre o profeta, a sabedoria divina pode vir mais calmamente sobre</p><p>os homens para ensiná-los (Pr 8,1-21. 32-36; Sb 7-8).</p><p>63UNIDADE III A Palavra: A Inspiração Escriturística e a Revelação Bíblica</p><p>Contudo, em nenhum caso é um fenômeno humano: os profetas e os sábios estão</p><p>em comunicação com o Deus vivo. E, naquela comunicação, o que eles aprendem não é</p><p>para eles apenas: é uma mensagem a ser transmitida a todo o povo de Deus.</p><p>O profeta falava numa determinada situação e aos seus contemporâneos - embora,</p><p>posteriormente, suas palavras fossem consideradas como relevantes até além de seu contexto</p><p>imediato. Contudo, desde o princípio, a Torah – o “ensino”, a “lei” - era considerada a Palavra</p><p>para todas as pessoas e para todos os tempos. E Israel recebeu na Torah “as palavras”</p><p>(Ex 34,28) de Iahweh (Ex 20,1;22). Iahweh esperava que Israel ouvisse e, conscientemente,</p><p>vivesse de acordo com a palavra que tinha aceitado</p><p>(Dt 13,1). Sua palavra está próxima:</p><p>palavra falada que pode entrar no coração do homem e produzir fruto (3,11-14). Ela revela o</p><p>caminho da vida ou da morte, colocando diante de Israel dois caminhos (30,15-20).</p><p>A Palavra divina é criadora. Contudo, é necessário ver este fato ou, mais precisa-</p><p>mente, a concretização dessa verdade, em sua perspectiva própria. Ao estudarmos como</p><p>os hebreus compreenderam a criação, devemos começar por notar que a sua experiência</p><p>de Deus era, em primeiro lugar, uma experiência de salvação, e que seu conceito de Deus</p><p>e da atividade dele estava fundado nos eventos da história da salvação, no fato de que</p><p>Deus tinha se aproximado de seu povo. Gradualmente, por meio da reflexão sobre a ação</p><p>divina em favor deles, os israelitas se tornaram conscientes da soberania de Deus sobre</p><p>os outros povos e sobre todos os homens, e começaram a ver-se como criaturas “frente a</p><p>frente” com o Criador. Eles tinham de compreender que Iahweh, o Deus de Israel, é o Deus</p><p>Criador; mas ele permanece o Deus que chamou Israel à existência e o cercou com seu</p><p>amor (HARRINGTON, 1985, p. 34).</p><p>A Palavra de Iahweh é revelação. Falando aos homens, Deus se revela; sua Palavra</p><p>é uma lei e regra de vida, um descobrir o significado das coisas e dos eventos e uma pro-</p><p>messa para o futuro. No Sinai, Moisés foi o mediador para o seu povo do código religioso e</p><p>moral de Deus, as “dez palavras” (Ex 20,1-17; Dt 5,6-22). Anteriormente Iahweh tinha falado</p><p>aos patriarcas e se deu a conhecer a Moisés de maneira especial (Ex 3,13-15) e ao povo:</p><p>“Eu sou o Senhor teu Deus, que te tirei da terra do Egito (Ex 20,2). A Palavra de Deus revela</p><p>o significado da história do povo (Js 24,2-13); mas não apenas isso: ela também esclarece</p><p>Israel sobre os estágios próximos do plano divino (Gn 15,13-16; Ex 3,7-10; Js 1,1-5 etc.). E,</p><p>além do futuro imediato, que é frequentemente pintado como cores sombrias, ele revela o</p><p>que acontecerá nos “últimos dias”, quando Deus realizar completamente seu plano.</p><p>A um só tempo criadora e reveladora, a Palavra de Deus é uma realidade dinâmica,</p><p>um poder que, infalivelmente, alcança os resultados que Deus tem em vista.</p><p>64UNIDADE III A Palavra: A Inspiração Escriturística e a Revelação Bíblica</p><p>Enviada por Deus ao mundo como um agente supremamente eficaz – “Minha Pala-</p><p>vra que sai de minha boca não voltará para mim vazia, mas realizará aquilo que proponho</p><p>e prosperará naquilo para que a enviei” (Is 55,11) – não se enfraquece ou falha (40,8).</p><p>Ela dirige o curso da história (44,7-8.26-28) e executa a vingança divina: “Tua Palavra</p><p>todo-poderosa precipitou-se do céu... levando a espada afiada de teu autêntico comando e</p><p>permaneceu e encheu todas as coisas de morte (Sb 18,15-16; cf. Ap 18,11-16). Tal poder,</p><p>observável na natureza e na história, assegura a eficácia dos oráculos de salvação. Na</p><p>verdade, “a palavra de nosso Deus permanece para sempre” (Is 40,8); de época em época,</p><p>ela continua a ser uma revelação e uma força vital (HARRINGTON, 1985, p. 34).</p><p>No Novo Testamento, a Palavra de Deus é frequentemente a mensagem de sal-</p><p>vação, o Evangelho (Lc 8,11; 2 Tm 2,9; Ap 1,9). Ela foi proclamada por Paulo (At 13,5; 1</p><p>Ts 2,13) e pelos outros apóstolos (At 6,2) e pelo próprio Jesus (Mc 2,2; Lc 5,1). Contudo,</p><p>o Evangelho que Paulo e os apóstolos pregaram era, na realidade, Cristo (1Cor 1,23; Gl</p><p>3,1; At 2,36;4,12). Isso era inevitável em vista da verificação cristã de que, nele, Deus tinha</p><p>falado sua Palavra definitiva: “De muitas e várias maneiras, outrora, Deus falou aos nossos</p><p>pais pelos profetas; mas, nestes últimos dias, ele falou a nós por seu Filho” (Hb 1,1-2). E foi</p><p>na pessoa de Jesus que João também focalizou a sua atenção; ele viu muito claramente</p><p>que Jesus mesmo é a mensagem da salvação, a Palavra, o Logos, a perfeita autorrevela-</p><p>ção de Deus. Ao falar do Logos como a Palavra feita carne, ao declarar que todas as coisas</p><p>foram feitas por ele, ao enfatizar o seu poder para tornar os homens “filhos de Deus”, João</p><p>sublinha a verdade de que a Revelação de Deus no Logos é para nós.</p><p>O uso concreto, existencial da “palavra” – o aspecto dominante do termo em toda</p><p>a Bíblia – indica o modo para a compreensão, num contexto bíblico, da ideia correlata de</p><p>“revelação”. A Bíblia não é uma soma de “verdades” abstratas, um corpo de doutrinas. As</p><p>Escrituras revelam o próprio Deus, uma pessoa viva: o Criador que governa o mundo (Is</p><p>45,12), o santo que convoca os homens para um serviço de amor (Ex 20,1ss; 34,6; Os</p><p>11,1ss), o Senhor da história que guia os tempos e eventos para uma meta de salvação (Ex</p><p>14,18; Am 2,9-10; Jr 32,20; Is 45,1ss; 52,10). Deus se revela por seu impacto sobre a vida</p><p>dos indivíduos e de seu povo. E, na revelação total no Novo Testamento, o que Jesus tornou</p><p>conhecido não foi um sistema a ser aprendido, mas caminho a ser seguido (cf. Jo 11,6). Ele</p><p>falou, mas sua pessoa e seus feitos falaram mais alto que suas palavras; e sua mensagem</p><p>foi uma mensagem de salvação. Os biblistas concordam, cada vez mais, em afirmar que a</p><p>revelação vem a nós essencialmente na estrutura da história: não há revelação do mistério</p><p>de Deus e de Cristo exceto no testemunho transmitido acerca do que eles fizeram e estão</p><p>fazendo para nós, isto é, exceto em relação à nossa salvação (HARRINGTON, 1985, p. 35).</p><p>65UNIDADE III A Palavra: A Inspiração Escriturística e a Revelação Bíblica</p><p>É claro que, se devemos ser fiéis aos dados da Bíblia, não devemos compreender</p><p>a “revelação” apenas no sentido de afirmações de verdade abstrata, puramente especula-</p><p>tiva; devemos compreendê-la no sentido que inclina todo o campo da automanifestação de</p><p>Deus, devemos abarcar tanto ações como palavras – pois Deus não é essência abstrata,</p><p>mas uma pessoa viva. E o mediador ou intérprete desta revelação não é apenas o “profeta”</p><p>que “recebeu” uma visão ou um oráculo, e, em seguida, o transmitiu a outros; ele é, antes</p><p>de tudo, um homem que teve um encontro com Deus, um homem que chegou a reconhecer</p><p>o Salvador e Criador, que experimentou o amor criador e salvífico de Deus.</p><p>Restringir a revelação estritamente à assim chamada “profecia” acarretaria o risco</p><p>de negligenciar todo o contexto existencial da ação, da história e da intervenção pessoal</p><p>que cerca a Palavra falada de Deus como uma Palavra viva e vivida. Fracassar em reco-</p><p>nhecer a revelação nos eventos da história sagrada como na iluminação concedida aos</p><p>profetas significaria um perigoso empobrecimento da extrema riqueza daquele encontro</p><p>que Deus ofereceu aos homens na Bíblia. Prestar atenção apenas ao ensino de Jesus e</p><p>não ao significado daquilo que ele fez e do que ele foi seria condenar-se a ser classificado</p><p>entre aqueles que não o conhecem. Não reconhecer que a pessoa da Palavra encarnada</p><p>domina Novo Testamento é perder a sua mensagem. O cristianismo não está fundado</p><p>sobre o sermão da montanha, mas sobre o Senhor vivo (HARRINGTON, 1985, p. 36).</p><p>Porque a religião bíblica é básica e essencialmente histórica, os eventos sempre</p><p>falarão mais alto que as palavras. Isso é assim porque os escritores sagrados estão</p><p>preocupados com o significado dos eventos; e assim é porque eles estão interessados no</p><p>passado. E sua meditação e análise guiadas pelo Espírito produzem uma mensagem para</p><p>o presente e esperança para o futuro. Não há desenvolvimento hábil e lógico de doutrina</p><p>pelo acúmulo de “proposições”; o processo é tão complexo como a própria história. A Bíblia</p><p>não é um manual de teologia.</p><p>Nosso estudo da evidência bíblica nos fez compreender que, do princípio ao fim do</p><p>Antigo Testamento, o Espírito de Deus e a Palavra de Deus não cessam de operar juntos.</p><p>Se o profeta dá testemunho sobre a Palavra, é porque o Espírito se apoderou dele; se Israel,</p><p>um dia, for capaz de se ligar (em seu coração) a esta Palavra, só pode ser no Espírito. E,</p><p>no Novo Testamento, os pregadores começam a proclamar a Palavra apenas quando o</p><p>Espírito vem sobre eles. Podemos crer</p><p>que a relação entre revelação e inspiração pode</p><p>ser esclarecida por meio de um exame do que existir entre Palavra e Espírito. Revelação</p><p>é a manifestação da Palavra; inspiração é o movimento do Espírito: dois distintos, mas</p><p>inseparáveis poderes divinos; ou, se se prefere, aspectos correlatos do poder divino.</p><p>66UNIDADE III A Palavra: A Inspiração Escriturística e a Revelação Bíblica</p><p>Podemos concluir que, quando vistas na perspectiva da Bíblia, seria errôneo</p><p>considerar inspiração e revelação como dois carismas bem separados. De fato, inspiração</p><p>e revelação, nas Escrituras são distintas, mas elas operam simultaneamente. Um homem é</p><p>elevado e movido pelo Espírito para dirigir uma fase da história da salvação, para falar como</p><p>profeta ou registrar o essencial dessa pedagogia divina; mas a atividade toda é “revelação”,</p><p>manifestação pessoal de um Deus vivo. Deus revela a verdade que ele mesmo é em termos</p><p>das experiências vividas, faladas e conscientes de seu povo e para aquele fim ele inspira o</p><p>líder, o pregador e o escritor que percebem a verdade e que a transmitem por vivê-la, por</p><p>proclamá-la e por escrevê-la (HARRINGTON, 1985, p. 37).</p><p>SAIBA MAIS</p><p>“Com efeito, nos Livros Sagrados, o Pai que está nos céus vem amorosamente ao</p><p>encontro de seus filhos a conversar com eles; e é tão grande a força e a virtude da</p><p>Palavra de Deus, que se torna o apoio vigoroso da Igreja, a solidez da fé para os filhos</p><p>da Igreja, o alimento da alma e a fonte pura e perene da vida espiritual! Por isso se</p><p>devem aplicar por Excelência à Sagrada Escritura as palavras: “A palavra de Deus é viva</p><p>e eficaz” (Hb 4,12) e “é capaz de edificar e dar-vos a herança em todos os santificados”</p><p>(At 20,32). - Trecho da Encíclica Dei Verbum, do Concílio Vaticano II.</p><p>Fonte: CATENASSI, Fabrízio Zandonadi. Introdução teológica e história de Israel. Curitiba: Intersaberes, 2018, p. 36.</p><p>REFLITA</p><p>A Bíblia deve ser lida através dos óculos da sensibilidade e da problemática que hoje</p><p>marcam a vida dos homens. Na ligação entre a realidade de hoje e a história bíblica do</p><p>passado, surge a luz da revelação de Deus na estrada da vida, mostrando que essa</p><p>nossa caminhada pela vida, esta nossa história, é uma história de salvação onde Deus</p><p>já está, mas onde sua presença ainda não é percebida - Carlos Mesters, biblista.</p><p>Fonte: CATENASSI, Fabrízio Zandonadi. Introdução teológica e história de Israel. Curitiba: Intersaberes, 2018.</p><p>67UNIDADE III A Palavra: A Inspiração Escriturística e a Revelação Bíblica</p><p>CONSIDERAÇÕES FINAIS</p><p>Prezados, chegamos ao final de mais esta unidade de estudo. Nela estudamos</p><p>sobre a realidade da palavra humana e da palavra divina. A comunicação, característica</p><p>constitutiva de nossa existência, encontra na palavra sua forma por excelência de realização.</p><p>A Bíblia é a Palavra de Deus, revelada aos homens. E pudemos estudar como isso</p><p>foi compreendido pelo povo de Deus, em sua experiência de povo escolhido, formando</p><p>comunidades de fé que se reúnem em torno da Bíblia. O Deus da Bíblia é um Deus que</p><p>inspira e que se revela.</p><p>Esperamos que a leitura atenta do material tenha ajudado você a compreender a</p><p>importância desses conceitos - inspiração e revelação - fazendo com que você tenha uma</p><p>melhor compreensão da Bíblia dentro desses dois conceitos.</p><p>Parabéns pelo seu estudo.</p><p>68UNIDADE III A Palavra: A Inspiração Escriturística e a Revelação Bíblica</p><p>MATERIAL COMPLEMENTAR</p><p>LIVRO</p><p>Título: Introdução às Sagradas Escrituras</p><p>Autor: Raimundo Novato Vieira.</p><p>Editora: Contentus.</p><p>Sinopse: Este livro tem como foco o estudo da Bíblia. Pensando</p><p>na importância de um estudo contextualizado, traça um histórico</p><p>da Antiguidade até a pós-Modernidade. Trata de analisar, ainda,</p><p>a influência de diferentes elementos na Bíblia, como culturas,</p><p>línguas, ambientes sociogeográfico e religioso, e os materiais</p><p>utilizados para a escrita. A obra também trabalha a relevância de</p><p>conceitos como inspiração e inerrância para os estudos bíblicos, a</p><p>formação do cânon, gêneros literários e a hermenêutica.</p><p>FILME/VÍDEO</p><p>Título: Moisés.</p><p>Ano: 1995.</p><p>Sinopse: Moisés foi um homem comum chamado por Deus para</p><p>libertar seu povo, os Israelitas. Sua missão, libertá-los da escravi-</p><p>dão no Egito e levá-los para Canaã, a terra prometida. Quando os</p><p>israelitas correram risco de captura pelo exército do Faraó, Deus</p><p>dividiu o Mar Vermelho para que Moisés e os que o acompanhavam</p><p>pudessem fugir. Mais tarde durante a dura jornada, Deus proferiu</p><p>através de Moisés, Os Dez Mandamentos, a lei divina.</p><p>69</p><p>Plano de Estudo:</p><p>● Línguas, material de escrita e manuscritos;</p><p>● As testemunhas do texto hebraico da Bíblia;</p><p>● As versões da Bíblia Hebraica;</p><p>● As testemunhas do texto do Novo Testamento;</p><p>● As versões do Antigo e do Novo Testamento;</p><p>● A formação literária da Bíblia Hebraica;</p><p>● A formação literária do Novo Testamento.</p><p>Objetivos da Aprendizagem:</p><p>● Conhecer os diferentes aspectos do texto</p><p>bíblico, quanto à suas versões.</p><p>● Conhecer o processo de formação literária</p><p>da Bíblia Hebraica e do Novo Testamento.</p><p>UNIDADE IV</p><p>O Texto da Bíblia</p><p>Professor Me. Flávio Donizete Batista</p><p>70UNIDADE IV O Texto da Bíblia</p><p>INTRODUÇÃO</p><p>Olá, Prezado Acadêmico. Olá, Prezada Acadêmica.</p><p>Até o momento, percorremos diferentes e importantes aspectos referentes à</p><p>Sagradas Escrituras. Pudemos perceber como se deu a formação da lista (cânon) dos livros</p><p>e como estes livros são considerados inspirados por Deus e instrumentos da revelação</p><p>divina à humanidade.</p><p>Nesta unidade, vamos olhar alguns aspectos do texto bíblico, propriamente</p><p>dito, as suas versões e os caminhos que percorreu até chegar ao conjunto de livros que</p><p>chamamos Bíblia.</p><p>Espero que todos aproveitem o estudo e percebam que tudo o que estudamos até</p><p>aqui, trata-se da ponta de um iceberg, e que sempre precisamos estar em uma atitude de</p><p>permanente busca do conhecimento.</p><p>Grande abraço a todos.</p><p>71UNIDADE IV O Texto da Bíblia</p><p>1. LÍNGUAS, MATERIAL DE ESCRITA E MANUSCRITOS</p><p>Como vimos na primeira unidade de nosso estudo, vamos recuperar algumas</p><p>informações sobre as línguas e os materiais de escrita da Bíblia.</p><p>As línguas originais da Bíblia são o hebraico, o aramaico e o grego. O hebraico e o</p><p>aramaico pertencem à família das línguas semitas. O hebraico é a língua de grande parte</p><p>do Antigo Testamento, enquanto o aramaico é a língua de algumas breves seções (Esd</p><p>4,8-6,18; 7,12-26; Dn 2,4-7,2; duas palavras em Gênesis 31,47 e uma frase em Jr 10,11).</p><p>O grego, ao invés, na forma falada da época helenista (koiné: comum), é a língua do Novo</p><p>Testamento, de 2 Macabeus e do Livro da Sabedoria; o Eclesiástico chegou até nós só em</p><p>grego e, a partir das descobertas modernas, parcialmente também em hebraico; enfim,</p><p>chegaram até nós também os acréscimos deuterocanônicos de Ester e de Daniel, e os</p><p>livros de Judite, Tobias, 1 Macabeus e Baruc.</p><p>O material de escrita é variado: pedra (Ex 24,12; 31,18; 32,15; 34,1; Dt 4,13;</p><p>Js 8,32), metal (1Mc 8,22; 14,18.26.48), argila (em forma de tabuletas ou de óstracos),</p><p>papiro e pergaminho. Os dois últimos é que forma sobretudo usados para a redação dos</p><p>manuscritos bíblicos: sua forma característica era o rolo e, mais tarde, o códice. O papel de</p><p>panos, embora inventado pelos chineses no século I d.C., aparece na Síria e Palestina só</p><p>a partir do século VIII, espalhado pelos árabes; do século XII-XIII começa a ser usado para</p><p>os manuscritos bíblicos, substituindo aos poucos o pergaminho.</p><p>72UNIDADE IV O Texto da Bíblia</p><p>Os manuscritos hebraicos antigos têm só texto consonântico; as vogais foram</p><p>inseridas mais tarde, a partir do século VI; mais tarde ainda, acrescentam-se os acentos.</p><p>Com frequência, os manuscritos antigos apresentam uma escrita contínua, evidentemente</p><p>para poupar material, ou apresentam um espaço muito reduzido entre as palavras. Os</p><p>manuscritos gregos mais antigos são escritos em caracteres maiúsculos; depois, porém,</p><p>prevalece a grafia minúscula, porque mais veloz e menos cara. A parte final de um</p><p>manuscrito</p><p>se chama “cólofon”; ele serve para oferecer os dados essenciais do manuscrito, relativos ao</p><p>conteúdo, ao escriba e a seu trabalho.</p><p>Desde a Antiguidade sentiu-se a necessidade de se subdividir o texto bíblico em</p><p>seções, seja para uso didático, seja para o uso litúrgico. As primeiras tentativas de dividir</p><p>a Bíblia em capítulos e em versículos remontam a Stephen Langton, nos inícios do século</p><p>XIII. A atual divisão deve-se a Robert Estienne, que, em 1555, pública a Vulgata com a</p><p>divisão em capítulos e versículos, como nós conhecemos (PRIOTTO, 2019, p. 129-130).</p><p>73UNIDADE IV O Texto da Bíblia</p><p>2. AS TESTEMUNHAS DO TEXTO HEBRAICO DA BÍBLIA</p><p>O texto hebraico é testemunhado primeiramente pelo Texto Massorético, assim</p><p>chamado porque foi vocalizado entre os séculos VI-X d.C. pelos massoretas (os homens</p><p>da tradição [massorá = tradição]. Três manuscritos testemunham esse texto:</p><p>1) O Códice dos profetas, escrito em 895 d.C., que contém os profetas anteriores</p><p>(Js, Jz, 1-2Sm, 1-2RS) e os profetas posteriores (Is, Jr, Ez e os Profetas Menores).</p><p>2) O Códice de Alepo, escrito em 925/930 d.C., não completo, mas provavelmente</p><p>o melhor manuscrito.</p><p>3) O Códice de Leningrado, escrito em 1008 d.C., reproduz a Bíblia hebraica inteira</p><p>e é a base das edições críticas modernas (PRIOTTO, 2019, p. 131).</p><p>A partir de 1896, foram descobertos numerosos fragmentos de manuscritos mais</p><p>antigos, que ampliaram grandemente o conhecimento da história textual da Bíblia hebraica.</p><p>Os mais importantes são:</p><p>1. Os fragmentos da Gueniza do Cairo, mais de 200 mil, remontam ao VI-VII século</p><p>d.C., entre os quais um manuscrito hebraico do Eclesiástico, até então disponível</p><p>só na versão grega.</p><p>2. Os manuscritos de Qumran, remontam ao período que vai do século II a.C. ao sé-</p><p>culo I d.C. São testemunhados todos os livros bíblicos, excetuados Ester, Judite, 1-2</p><p>Macabeus, Baruc, Sabedoria; de Isaías, Habacuc e Jeremias existe o texto completo.</p><p>3. O Papiro de Nash, remonta ao I ou II século a.C., contendo o decálogo e Dt 6,4.</p><p>74UNIDADE IV O Texto da Bíblia</p><p>4. O Pentateuco Samaritano, redescoberto pelo peregrino Pietro dela Valle em 1616; um</p><p>texto conhecido desde a Antiguidade cristã e rabínica, mas depois caído no esquecimento.</p><p>Pertence a uma tradição muito antiga, que depois evoluiu muito, adaptando-se ao longo</p><p>dos séculos às exigências da comunidade samaritana contemporânea.</p><p>5. O texto hebraico na base da LXX – É o texto hebraico pressuposto por essa</p><p>tradução do século III-II a.C., pressupõe um texto pré-massorético, todavia, com o</p><p>limite de uma tradução (PRIOTTO, 2019, p. 131).</p><p>A partir dessas testemunhas pode-se sintetizar o percurso do texto hebraico em</p><p>três partes:</p><p>1. Período da flutuação – Até o século I d.C. coexistem vários tipos textuais, como</p><p>os encontramos no LXX (séc. III-II a.C.), em Qumran (séc. II a.C, - I d.C.) e no</p><p>Pentateuco samaritano (século V d.C.).</p><p>2. Fixação do texto normativo, consonântico – Com a fixação do cânon depois</p><p>da destruição do Templo sentiu-se a exigência de fixar também o texto, assim,</p><p>restabelece-se aquilo que será o Texto Massorético.</p><p>3. Fixação das vogais – Do século VI-X d.C. o texto hebraico e aramaico da Bíblia</p><p>chega à definitiva estabilidade por obra dos escribas, os massoretas, que colocam</p><p>os sinais vocálicos e retomam e aprofundam as observações sobre cada uma das</p><p>palavras ou frases feitas pelos escribas na época precedente; o conjunto dessas</p><p>observações se chama massorá e é anotada à margem ou no fim dos manuscritos</p><p>(PRIOTTO, 2019, p. 132).</p><p>75UNIDADE IV O Texto da Bíblia</p><p>3. AS VERSÕES DA BÍBLIA HEBRAICA</p><p>3.1 A versão LXX</p><p>É a versão em grego da Bíblia hebraica realizada em Alexandria do Egito. A partir</p><p>do século III a.C. inicia-se a tradução do Pentateuco, depois se prossegue com a tradução</p><p>dos outros livros até a conclusão, por volta do século II a.C. Além dos livros canônicos</p><p>hebraicos aparecem também 1 Esdras, Sabedoria, Eclesiástico, Judite, Tobias, Baruc, Carta</p><p>de Jeremias, 1-2 Macabeus e, enfim, os acréscimos deuterocanônicos aos livros de Ester</p><p>e de Daniel. Também a extensão dos livros é diferente em relação ao Texto Massorético,</p><p>como, por exemplo, no caso do Livro de Jeremias, que é o 1/8 mais breve do que o Texto</p><p>Massorético. O nome deriva do livro apócrifo Carta de Aristeias que fala de 72 tradutores (6</p><p>x 12, isto é, para cada tribo israelita); número que foi arredondado para 70.</p><p>Não se trata de um trabalho unitário, desenvolvido por um único escriba ou por um</p><p>grupo de escribas, mas da soma de traduções individuais feitas por pessoas diferentes no</p><p>espaço de um século e meio. Provavelmente, a intenção era dotar a comunidade judaica</p><p>de Alexandria de uma tradução grega da Torá para uso litúrgico e jurídico. Sua importância</p><p>nasce do fato que constitui o primeiro exemplo de tradução de todo um corpus; sua datação</p><p>antiga faz dela uma testemunha preciosa para o conhecimento histórico do texto hebraico e</p><p>de sua interpretação. Ela representa o anel de conjunção entre os dois testamentos, e a Igreja</p><p>primitiva a adota como “Antigo Testamento”, reconhecendo-lhe uma importância única.</p><p>76UNIDADE IV O Texto da Bíblia</p><p>3.2 As outras versões gregas</p><p>Tendo sido adotada pela Igreja, muito cedo a LXX foi hostilizada pelos hebreus,</p><p>que, por isso, dotaram-se de novas traduções, mais coerentes com o Texto Massorético. E</p><p>são as seguintes:</p><p>1) Áquila – É o nome de um prosélito judeu, que trabalha uma tradução servil, palavra</p><p>por palavra e, portanto, absurda, porque incorre em berrantes erros de gramática</p><p>e de sintaxe grega; de fato, a intenção era a de reproduzir exatamente, ou antes</p><p>materialmente, o TM. Existem apenas alguns fragmentos. Remonta a 140 d.C.</p><p>2) Teodocião – É o nome de um judeu de Éfeso, que, por volta de 180 d.C., faz uma</p><p>revisão da LXX com a intenção de aproximá-la o mais possível do TM. Foi quase</p><p>completamente perdida, excetuado o Livro de Daniel, que, mas edições cristãs,</p><p>suplantou a versão original do LXX.</p><p>3) Símaco – Provavelmente trata-se de um samaritano convertido ao judaísmo,</p><p>que, por volta de 200 d.C. faz uma tradução fiel ao hebraico, mas em bom grego;</p><p>restam só fragmentos.</p><p>4) Héxapla – Como se pode imaginar, as traduções precedentes causaram uma</p><p>negativa influência sobre a transcriação da LXX, produzindo confusões. Orígenes</p><p>procura pôr ordem no assunto e, entre 228 e 240 d.C. termina uma extraordinária</p><p>edição da Bíblia, a Héxapla, com um texto articulado em seis colunas paralelas:</p><p>o texto hebraico, a transliteração do hebraico com letras gregas, Áquila, Símaco,</p><p>LXX, Teodocião. Teve especial cuidado com a quinta coluna, isto é, o texto hexaplar</p><p>da LXX, mas que, a seguir, sofrerá alterações pelas frequentes transcrições, que</p><p>provocarão novas recensões (PRIOTTO, 2019, p. 133).</p><p>3.3 As versões aramaicas</p><p>Após o exílio, na Palestina toma conta sempre mais a linguagem aramaica, de</p><p>modo que se torna necessário – especialmente no culto sinagogal – traduzir o texto</p><p>hebraico para o aramaico. Essa tradução, aliás só oral, foi chamada targúm. Assim nascem</p><p>traduções estandardizadas, muitas vezes ricas de paráfrases e sumamente interessantes</p><p>para conhecer a interpretação antiga do texto bíblico. Lá pelo fim do século I a.C. começa</p><p>a se fixar o targúm por escrito. Eis suas principais testemunhas:</p><p>77UNIDADE IV O Texto da Bíblia</p><p>1) Targúm do Pentateuco – Ele compreende algumas recensões: (a) o Targúm</p><p>Pseudo-Jonatam (= Jerushalmí I), cujas seções mais antigas remontam à época</p><p>pré-cristã; (b) o Targúm Fragmentário (Jerushalmí II), com seções de todos os livros</p><p>do Pentateuco; sua paráfrase por vezes é notável, outras vezes é antiga e genuína;</p><p>(c) os fragmentos da Guenizá do Cairo, testemunhas da variedades de recensões;</p><p>(d) o Códice Neóphyti, que contém o Targúm palestinense completo, numa versão</p><p>executada provavelmente já no século I d.C. e, portanto, particularmente significativo</p><p>para a contemporaneidade</p><p>27</p><p>O Cânon das Escrituras</p><p>UNIDADE III .................................................................................................. 49</p><p>A Palavra: A Inspiração Escriturística e a Revelação Bíblica</p><p>UNIDADE IV .................................................................................................. 69</p><p>O Texto da Bíblia</p><p>4</p><p>Plano de Estudo:</p><p>● Materiais e línguas bíblicas;</p><p>● Crescente fértil: onde tudo começou;</p><p>● Os livros da Bíblia;</p><p>● A Formação da Bíblia.</p><p>Objetivos da Aprendizagem:</p><p>● Introduzir o estudante no estudo das Sagradas Escrituras;</p><p>● Ajudar na compreensão da estrutura básica da Bíblia Sagrada;</p><p>● Contribuir para o entendimento dos processos de escrita</p><p>e formação dos livros que compõem a Bíblia Sagrada.</p><p>UNIDADE I</p><p>A Palavra</p><p>Escrita</p><p>Professor Me. Flávio Donizete Batista</p><p>5UNIDADE I A Palavra Escrita</p><p>INTRODUÇÃO</p><p>Olá, Prezado (a) Estudante.</p><p>Estamos iniciando nosso estudo de Introdução às Sagradas Escrituras. Podemos</p><p>dizer que é uma das partes mais encantadoras do estudo da Teologia, e responsável por</p><p>ajudar na leitura e compreensão da mensagem que está presente nos livros, escritos em</p><p>um longo processo de formação e maturação de sua própria identidade de Palavra de Deus.</p><p>Vamos abordar, inicialmente, o tema da Palavra Escrita, mostrando sua estrutura</p><p>mais básica: Antigo Testamento e Novo Testamento. Serão apresentados alguns aspectos</p><p>históricos do Povo de Israel e da Igreja cristã nascente, que ajudarão na compreensão dos</p><p>processos de formação do livro.</p><p>Não podemos esquecer que há um caráter introdutório no estudo das Sagradas</p><p>Escrituras. Outros elementos serão aprofundados no decorrer de nossos estudos, quando</p><p>os livros serão apresentados e analisados dentro de disciplinas específicas, a partir de seus</p><p>gêneros e tipos próprios.</p><p>Que todos tenham uma excelente oportunidade de iniciar o estudo das Sagradas</p><p>Escrituras, com a fé e a razão plenamente sintonizadas, para que a construção de um</p><p>sólido conhecimento teológico seja uma realidade para todos.</p><p>Ótimos estudos e uma frutuosa caminhada acadêmica para todos nós.</p><p>Grande abraço.</p><p>6UNIDADE I A Palavra Escrita</p><p>1. MATERIAIS E LÍNGUAS BÍBLICAS</p><p>A Bíblia é a Palavra de Deus, revelada a nós em linguagem humana. faremos</p><p>uma breve apresentação sobre os materiais em que ela foi escrita e em quais línguas sua</p><p>redação foi feita.</p><p>1.1 Materiais utilizados na escrita da Bíblia</p><p>A escrita não era uma atividade simples no tempo bíblico. Não era qualquer pessoa</p><p>que escrevia, e esta precisava estar dedicada exclusivamente à escrita, aprendendo a</p><p>escrever e a trabalhar como um copista. Somente uma sociedade estruturada de maneira</p><p>a ter uma mínima estrutura de governo poderia ter o grupo que se dedicasse à atividade</p><p>redacional. No entanto, há registros de escritos rudimentares em períodos muito antigos da</p><p>história da humanidade. Além de registros pictóricos (pintura rupestre), que datam mais de 40</p><p>mil anos a.C., há indícios na Europa e na Ásia de uma escrita que datam do sétimo milênio</p><p>a.C., com sistemas linguísticos ainda muito rudimentares. (CATENASSI, 2018, p. 60-61).</p><p>Na Palestina, assim como no Antigo Oriente, as formas menos correntes de</p><p>escrita estão as feitas em pedras e em metal. Nas construções de templos e tumbas, era</p><p>comum que espaços nas paredes fossem preenchidos com inscrições. Em caso de vitórias</p><p>militares ou da publicação de documentos oficiais, podia-se recorrer à construção de uma</p><p>estela. A narrativa bíblica da construção das tábuas da Lei conserva a escrita em pedra (Ex</p><p>24,12; Dt 4,13). Inscrições em metal são mais raras, geralmente utilizadas para textos de</p><p>grande importância. O texto bíblico guarda testemunhos de registros em bronze (1Mc 8,22;</p><p>14,18.27.48) (CATENASSI, 2018, p. 61).</p><p>7UNIDADE I A Palavra Escrita</p><p>No Vale do Tigre e do Eufrates, na região mesopotâmica, a terra de aluvião fazia ser</p><p>típica a escrita em tabuinhas de argila, feita com um estilete de bambu ou metal, que depois</p><p>secavam ao sol ou eram cozidas. Foram encontradas muitas dessas tabuinhas em várias</p><p>regiões do antigo Oriente, sendo muitas delas conhecidas no campo de estudo bíblico.</p><p>Outra forma corrente e barata de escrita era a óstraca, ou seja, fragmentos de</p><p>algum artefato de cerâmica que se havia quebrado. Foram encontrados vestígios antigos</p><p>na Samaria e na cidade de Laquis (CATENASSI, 2018, p. 63).</p><p>Na escrita bíblica, dois materiais ocuparam lugar central: o papiro e o pergaminho.</p><p>O primeiro foi desenvolvido no antigo Egito, em 3000 a.C.; a partir de uma planta de caule</p><p>bastante fibroso, cortado em pequenas tiras. Catenassi descreve com detalhes:</p><p>Essas lascas eram entrelaçadas formando uma lâmina grande, na forma do</p><p>pergaminho como o conhecemos, que então era prensada, alisada com um</p><p>tipo de martelo e, ao final, polida. As folhas formadas eram unidas, coladas</p><p>ou costuradas, formando um rolo de muitos metros, como aparece em Jr 36.</p><p>Os papiros foram comercializados em grande escala pelo Egito, chegando à</p><p>Palestina pela Fenícia, mas as condições de umidade em geral colaboraram</p><p>para sua degradação e difícil conservação (CATENASSI, 2018, p. 63).</p><p>Perto do ano 100 a.C., na cidade de Pérgamo (na Ásia Menor) foi aperfeiçoada</p><p>uma técnica de preparação do couro de carneiros e cabras para a escrita. Esse material</p><p>resultante foi conhecido como pergaminho. Contudo, o uso da pele de animais para a</p><p>escrita é muito antigo, sendo atestado no Egito dois mil anos antes de Cristo. Também o</p><p>pergaminho era costurado em forma de rolo, como o papiro. Continuamos com Catenassi:</p><p>Com o tempo, diante da dificuldade de manusear os rolos, os papiros e os</p><p>pergaminhos foram organizados e costurados na forma de um caderno e com</p><p>capas de madeira ou de couro, formando os chamados códices, facilitando</p><p>a leitura. Essa técnica começou a ser usada no século I d.C., e foi bem</p><p>assimilada no mundo cristão. Para os judeus, os livros sagrados só podiam</p><p>aparecer no formato de rolo (CATENASSI, 2018, p. 65).</p><p>Depois de conhecer os materiais que receberam os textos bíblicos, vamos estudar</p><p>as três línguas nas quais a Bíblia foi escrita.</p><p>1.2 As línguas bíblicas</p><p>Todo trabalho de pesquisa teológico em Sagrada Escritura exige um tempo de</p><p>dedicação para as línguas bíblicas, já que o exegeta tem que partir dos textos em sua</p><p>língua original e propor uma tradução.</p><p>Vamos conhecer algumas características das línguas que integram a Bíblia: o</p><p>hebraico, o aramaico e o grego.</p><p>O hebraico é chamado na Bíblia de “língua de Canaã” (Is 19,18) ou o “judaico” (Is</p><p>36,11; 2Cr 32,18).</p><p>8UNIDADE I A Palavra Escrita</p><p>Quase a totalidade do AT foi escrita nesse idioma - adiante veremos as exceções.</p><p>Trata-se de uma língua semita, que nasceu no Antigo Oriente Próximo e Médio, derivada do</p><p>alfabeto fenício, o primeiro a ser construído, entre os séculos XVIII e XVII a.C. O hebraico</p><p>começou a aparecer próximo de 1200 a.C. na Palestina, e o documento mais antigo que</p><p>temos é um calendário encontrado em Gazer por volta de 925 a.C. Assim como o fenício,</p><p>heraico é escrito da direita para a esquerda (CATENASSI, 2018, p. 66-67).</p><p>O hebraico foi a língua escrita e falada na Palestina até a época romana. Temos o</p><p>testemunho das cartas do judeu Bar Kokba, por ocasião das revoltas contra Roma (132-135</p><p>d.C.), que atesta o uso dela. Próximo do ano 200 d.C. e, posteriormente, com o avanço do</p><p>mundo árabe, outras línguas foram sendo utilizadas na região por aproximadamente 16</p><p>séculos até o hebraico começar a ser ensinado nas escolas de Israel na segunda metade</p><p>do século XX, ainda que nunca tenha caído em desuso completo, pois continuava sendo a</p><p>língua oficial da Bíblia judaica, usada nas sinagogas (CATENASSI, 2018, p. 68).</p><p>O aramaico é uma língua muito parecida com o hebraico - tendo inclusive as</p><p>mesmas consoantes em seus alfabetos. Ambos são derivações e adaptações do alfabeto</p><p>fenício, acrescentando mais sons que esse primeiro alfabeto. O aramaico foi usado pelas</p><p>tribos nômades que invadiram a</p><p>ao Novo testamento; (e) o Targúm Ónqelos, que abarca</p><p>todo o Pentateuco; é de origem palestinense, mas foi editado na Babilônia. Gozou</p><p>de grande autoridade. A paráfrase é sóbria e está contida na mesma tradução.</p><p>2) Targúm dos Profetas (ou de Jonatan bem Uzziel) – Abarca os Profetas anteriores</p><p>(Js – Rs) e os Profetas posteriores (Is – Ez); é de origem palestinense, mas recebe</p><p>sua estrutura definitiva no III-IV século d.C na Babilônia. É uma paráfrase, mais do</p><p>que uma tradução.</p><p>3) Targúm dos Escritos – É a obra de muitos autores, como testemunha a grande</p><p>variedade de língua e de estilo; não é anterior ao século V d.C. A paráfrase é muito</p><p>desenvolvida.</p><p>78UNIDADE IV O Texto da Bíblia</p><p>4. AS TESTEMUNHAS DO TEXTO DO NOVO TESTAMENTO</p><p>Nenhum texto clássico chegou até nós em tal número de exemplares e em</p><p>formas textuais tão diferentes como no Novo Testamento. Conhecem-se cerca de cinco</p><p>mil manuscritos, aos quais se acrescentam mais de dez mil manuscritos das versões</p><p>antigas e milhares de citações dos Padres da Igreja, para um total de cerca de duzentos e</p><p>cinquenta mil variantes. A maior parte das variantes, porém, diz respeito simplesmente à</p><p>ortografia, à gramática ou ao estilo; pouquíssimas referem-se a mudanças do significado</p><p>textual. Naturalmente, os originais foram perdidos desde os primeiros tempos, mas as</p><p>testemunhas mais antigas estão a apenas três ou quatro séculos dos originais e, em</p><p>alguns casos, somente dois séculos. E até, no caso do Papiro Ryland (P52) a distância do</p><p>original é só de três ou quatro decênios.</p><p>Para catalogar os manuscritos usa o método elaborado por C. R. Gregory.</p><p>Os manuscritos maiúsculos (ou unciais) são indicados por um número precedido pelo</p><p>zero (p.ex., 01 = Códice Sinaítico); os manuscritos minúsculos são indicados como os</p><p>números árabes; os papiros são indicados com um “P” e um número exponencial (P52=</p><p>Papiro Ryland); os lecionários, porém são indicados com um “l” e um número exponencial</p><p>(l1596= Lecionário de Viena). Enfim, os manuscritos latinos são indicados com as letras</p><p>minúsculas do alfabeto latino (a, b, c...) (PRIOTTO, 2019, p. 135).</p><p>79UNIDADE IV O Texto da Bíblia</p><p>4.1 Papiros</p><p>Provém quase todos do Egito. São cerca de 96 e mais da metade remonta ao III e</p><p>ao IV século d.C., portanto, antes dos grandes códices do século IV; daí sua importância.</p><p>Os principais são:</p><p>1) Papiro Ryland (P52) – É o papiro mais antigo (125 d.C. e traz Jo 18,31-33.37).</p><p>2) Papiros Chester Beatty (P45.46.47) – Remontam ao século III d.C. e contêm seções</p><p>dos Evangelhos, dos Atos dos Apóstolos, de São Paulo e do Apocalipse.</p><p>3) Papiro Bodmer II (P66) – É importante tanto por sua antiguidade (cerca de 200</p><p>d.C.) como porque traz quase todo o Evangelho de João.</p><p>4) P72 – Remonta ao século II d.C. e traz a Carta de Judas e 1-2 Pedro, que, naquele</p><p>tempo não tinham ainda obtido uma colocação segura no cânon.</p><p>5) P75 – Remonta a cerca de 200 d.C. e é o mais antigo testemunho de Lucas e um</p><p>dos mais antigos de João. O texto é muito semelhante ao do Códice Vaticano (B =</p><p>02), o que faz essa forma textual remontar ao século III d.C (PRIETTO, 2019, p. 135).</p><p>4.2 Códices maiúsculos</p><p>Os códices maiúsculos são aproximadamente 299; os mais importantes são:</p><p>1) O Códice Sinaítico (01 = A) – Foi descoberto por K. von Tischendorf no Mosteiro</p><p>de Santa Catarina do Sinai. Remonta à primeira metade do século IV d.C. e contém</p><p>o Antigo Testamento da LXX (com algumas lacunas) e todo o Novo Testamento,</p><p>com o acréscimo da Carta de Barnabé e do Pastor Hermas. Assemelha-se muito</p><p>ao Códice Vaticano, com a vantagem de ser completo sobre o Novo Testamento.</p><p>2) O Códice Vaticano (03 = B) – Encontra-se na Biblioteca vaticana. Contém o</p><p>Antigo Testamento da LXX (com exceção de Gn 1,1 - 46, 28 e dos Sl 105,27 –</p><p>137,6) e o Novo Testamento (com exceção de Hb 9,15 – 13,25); 1-2 TM; Tt; Fm;</p><p>Ap); é considerado o códice mais antigo (inícios do século IV d.C.) e provém muito</p><p>provavelmente do Egito.</p><p>3) O Códice Alexandrino (02 = A) – Contém o Antigo Testamento grego e o Novo</p><p>Testamento, com notáveis lacunas, e, além disso, a Primeira Carta de Clemente</p><p>Romano e parte da segunda; foi transcrito no Egito, por volta do fim do século IV d.C.</p><p>4) O Códice Ocidental (05 = D) – É também chamado de Códice de Beza, remonta</p><p>ao século V ou VI d.C.; é o mais antigo códice bilingue (grego e latim) e traz só os</p><p>Evangelhos e os Atos dos Apóstolos (PRIETTO, 2019, p. 135-136).</p><p>4.3 Códices minúsculos</p><p>São chamados assim porque redigidos em caracteres cursivos ou minúsculos; são</p><p>mais de 2.792 e se difundem do século IX até a invenção da imprensa. Não têm um grande</p><p>valor, exceto quando reproduzem um arquétipo antigo.</p><p>80UNIDADE IV O Texto da Bíblia</p><p>Quando entre eles existe uma parentela, constituem uma família, como por exemplo,</p><p>a família Lake (f1), que compreende os códices 118, 131, 209, 582, e a família ferrar (f13),</p><p>caracterizada por três subgrupos encabeçados respectivamente pelos manuscritos 13,69 e 983.</p><p>4.4 Lecionários</p><p>São manuscritos que contêm as leituras litúrgicas do Novo Testamento. Existem</p><p>2.193; em geral, são posteriores ao século IX. A pesquisa recente acentua sua importância.</p><p>4.5 Citações dos Padres</p><p>Oferecem um material tão abundante a ponto de abraçar praticamente a totalidade</p><p>do Novo Testamento. Mesmo que às vezes seja difícil decidir se se trata de citações</p><p>reais ou simplesmente citações mnemônicas ou parafrásticas, essas citações podem ser</p><p>importantes porque, com frequência, trazem um texto mais antigo do que o dos grandes</p><p>códices do século IV.</p><p>4.6 Recensões</p><p>Em base a semelhanças e afinidades, os manuscritos do Novo Testamento foram</p><p>classificados em quatro grupos textuais, chamados recensões:</p><p>1) Recensão alexandrina (ou neutra). É o tipo de texto que veio se formando do</p><p>Egito e é considerado o melhor. Normalmente é o mais breve e evita reelaborações</p><p>gramaticais ou estilísticas. Pertencem a ela manuscritos muito antigos e importantes,</p><p>como B, a, A. O arquétipo que está na base dessa recensão remonta ao século II.</p><p>2) Recensão ocidental. É chamada assim porque testemunhada por manuscritos</p><p>ocidentais, como a Vetus Latina, as citações dos Padres latinos e dos manuscritos</p><p>greco-latinos; todavia, está presente também nos Padres gregos. Embora conotada por</p><p>numerosos acréscimos, omissões e harmonizações, espelha um testemunho textual</p><p>antigo, cujo arquétipo remonta ao século II. Pertence a essa recensão o códice D.</p><p>3) Recensão cesariense. Remonta a uma reelaboração efetuada no Egito por</p><p>volta da primeira metade do século III d.C. e foi difundida de Cesareia Marítima,</p><p>sobretudo graças a Orígenes. Distingue-se da recensão alexandrina pela melhor</p><p>forma linguística e pela infiltração de alguns elementos da recensão ocidental.</p><p>Pertencem a essa recensão as famílias Ferrar e Lake.</p><p>4) Recensão bizantina (ou antioquenha, ou siríaca ou koiné). É a recensão mais</p><p>recente, mas também a mais difundida. Provavelmente teve origem em Antioquia da</p><p>Síria por volta da metade do século IV e dali difundiu-se por todo o Império Bizantino.</p><p>Caracteriza-se por um texto amplo, por correções de estilo e por acréscimos</p><p>explicativos, com a intenção de tornar o texto mais fluente e mais elegante. A essa</p><p>recensão pertence o códice A (PRIOTTO, 2019, p. 137).</p><p>81UNIDADE IV O Texto da Bíblia</p><p>5. AS VERSÕES DO ANTIGO E DO NOVO TESTAMENTO</p><p>A rápida difusão do cristianismo entre as populações de língua não grega comportou</p><p>muito cedo, a partir de 180 d.C., a necessidade de novas traduções. Em relação às duas</p><p>traduções vistas acima, a da LXX e do Targúm, essas novas traduções referem-se à Bíblia</p><p>cristão, isto é, aos dois testamentos. Eis as traduções mais importantes.</p><p>5.1 Versões Latinas</p><p>1) A Vetus Latina (a versão latina antiga). Trata-se de uma tradução ou do conjunto de</p><p>traduções anteriores à versão Vulgata de Jerônimo (século IV). Essa obra de tradução</p><p>iniciou na África em fins do século II com Tertuliano e difundiu-se</p><p>velozmente por</p><p>todo o Ocidente com contínuas adaptações para a linguagem litúrgica dos diversos</p><p>países. Traduz o texto grego da LXX anterior à recensão de Orígenes; isso significa</p><p>que seu texto é muito antigo e possui um notável valor crítico. A difusão é, talvez,</p><p>também a multiplicação das traduções causava confusão; daí a necessidade de</p><p>uma revisão crítica, que aconteceu por obra de Jerônimo. Primeiramente, em 383,</p><p>ele revisou o Novo Testamento, respeitando o mais possível o antigo texto latino,</p><p>mas eliminando erros de tradução evidentes e abrandando as durezas estilísticas.</p><p>Depois, revisou também o Antigo Testamento, traduzido pela LXX, do qual nos</p><p>ficaram 1-2 Macabeus, Baruc, Eclesiástico e Sabedoria, porque a seguir serão</p><p>inseridos na Vulgata, sem ulteriores correções. Da Vetus Latina sobraram apenas</p><p>poucos fragmentos, especialmente pelo que concerne ao Antigo Testamento.</p><p>82UNIDADE IV O Texto da Bíblia</p><p>2) A Vulgata. Em 390, Jerônimo começa a trabalhar na tradução da Bíblia hebraica,</p><p>diretamente do hebraico, terminando-a em 405. Quanto aos deuterocanônicos, traduz</p><p>Tobias e Judite de um modelo aramaico e as seções deuterocanônicas de Daniel e</p><p>Ester de um modelo grego; os outros deuterocanônicos (1-2 Mc, Br, Ecl, Sb), como</p><p>se disse antes, entram na Vulgata na forma da precedente revisão da Vetus Latina.</p><p>Em pouco tempo a Vulgata se impôs como Bíblia oficial da Igreja latina. Foi revisada</p><p>em 1592 em consequência da injunção do Concílio de Trento (a Sisto-Clementina);</p><p>nos anos 1926-1987 aparece a revisão preparada pelos Beneditinos da Abadia</p><p>de São Jerônimo em Roma, mas só para o Antigo Testamento. Em 1979, após o</p><p>Concílio Vaticano II, foi publicada uma nova tradução em latim dos textos originais, a</p><p>Neo-Vulgata, para uso litúrgico (PRIOTTO, 2019, p. 138-139).</p><p>5.2 Versões siríacas</p><p>Das versões siríacas que chegaram até nós, duas se referem a toda a Bíblia (a</p><p>Peshitta e a Siro-palestinense), duas se referem ao Antigo Testamento (a Siro-Héxapla</p><p>e a de Jaqub de Edessa) e três referem-se ao Novo Testamento (Vetus Syra, Filoxênia,</p><p>Harclense). Recordamos de modo particular a Peshitta, também chamada “Vulgata siríaca”</p><p>e ainda em uso na Igreja siríaca. Sua origem é muito antiga, ainda que os manuscritos</p><p>sejam do século V d.C. Quanto ao Antigo Testamento, discute-se se a tradução é de</p><p>origem judaica ou cristã e se foi feita de um texto hebraico ou do Targúm; importante foi</p><p>também a influência da LXX, especialmente para os Salmos, Isaías e os 12 profetas. Em</p><p>relação ao Novo Testamento, faltam as cartas católicas mais breves (2-3 Jo; 2 Pd, Jd) e</p><p>o Apocalipse (PRIOTTO, 2019, p. 139).</p><p>83UNIDADE IV O Texto da Bíblia</p><p>6. A FORMAÇÃO LITERÁRIA DA BÍBLIA HEBRAICA</p><p>O Antigo Testamento foi se formando ao longo de três eixos mestres que são a Lei (Torá),</p><p>os Profetas e os Escritos. Esses três eixos mestres não só constituem a estrutura da atual Bíblia</p><p>hebraica, mas revelam a caminhada progressiva do consenso que veio se formando em torno</p><p>desses livros com efeito, é enquanto Lei que os primeiros cinco livros foram reconhecidos como</p><p>obrigatórios e depois como canônicos, tanto pelos judeus como pelos samaritanos e depois</p><p>também pelo Novo Testamento. Na tradição judaica, à Lei seguem os Profetas; lentamente a</p><p>tradição havia reunidos tantos as narrações escritas no espírito dos Profetas (Primeiros Profetas),</p><p>como as palavras dos próprios profetas (Últimos Profetas). A terceira coleção dos Escritos, mais</p><p>recente e menos unitária, agrupa textos bastante diferentes entre si mais e continua aberta</p><p>a ulteriores aquisições (cf. os escritos deuterocanônicos); encontrará sua delimitação só no</p><p>período cristão, seja no cânon hebraico, seja no cristão (PRIOTTO, 2019, p. 146-147).</p><p>6.1 A formação da Lei (Pentateuco)</p><p>Apesar da pluralidade e, com frequência, da contradição das novas propostas em</p><p>polêmica com a passada hipótese documentária1 , emergem algumas orientações de fundo,</p><p>das quais, independentemente das opções que se querem fazer, não se pode facilmente</p><p>prescindir. podemos sintetizá-las em alguns pontos.</p><p>1) É sempre mais evidente a tomada de consciência da complexidade do texto bíblico do</p><p>Pentateuco. Diante das tentações de soluções fáceis e exclusivistas, aparece a necessidade</p><p>de uma aproximação humilde, que saiba ter em consideração as diversidades,ou melhor,</p><p>as riquezas escondidas num texto, fruto de uma longa maturação de fé.</p><p>1Tal hipótese, definida e sistematizada por J. Wellhausen, sustenta que o Pentateuco seja o resultado da fusão de quatro</p><p>documentos, convencionalmente chamados Javista, (“J”), Eloísta (“E”), Sacerdotal (“P”) e Deuteronomista (“D).</p><p>84UNIDADE IV O Texto da Bíblia</p><p>2) Em polêmica contra a precedente tendência de “atomizar” o texto, hoje sente-se</p><p>a necessidade de estudar o texto em seu teor atual; daí um rico florescimento de</p><p>estudos que, embora na variedade de métodos, valorizem o texto na sua riqueza</p><p>literária. É somente a partir dessa aproximação sincrônica que se pode proceder,</p><p>depois, a uma análise diacrônica.</p><p>3) O exílio babilônico fez Israel mergulhar numa crise religiosa e política sem</p><p>precedentes na história nacional. Ela constitui um ineludível divisor de águas no</p><p>processo de transmissão e sobretudo aprofundamento das tradições do Pentateuco,</p><p>porque responde - da parte do judaísmo nascente - à inevitável exigência de definir</p><p>claramente a própria identidade religiosa e social, no momento em que os passados</p><p>parâmetros (dinastia davídica, realeza, independência territorial, Templo) pareciam</p><p>definitivamente destruídos. É desse trauma histórico que nascem as duas grandes</p><p>redações, deuteronomista e sacerdotal (PRIOTTO, 2019, p. 147-148).</p><p>Partindo dessas premissas, pode-se projetar a seguinte formação do Pentateuco.</p><p>Existem tradições pré-exílicas, tanto escritas como orais, mas que nunca foram reunidas</p><p>numa narração única antes do trabalho da corrente sacerdotal e deuteronomista no tempo</p><p>do exílio e de imediato pós-exílio. Portanto, elas se compõem de materiais originariamente</p><p>independentes; isso não significa que estas tradições constituíram corpos fechados, sem</p><p>contato algum entre si, mas simplesmente que não foram reunidas literariamente numa única</p><p>narração. Embora na consciência da impossibilidade de uma maior precisão, podemos indicar</p><p>como pré-exílicos alguns textos: o código da aliança (Ex 20,22-23,33), o código deuteronômico</p><p>(Dt 12-26), alguns relatos patriarcais concernentes a Abraão (Gn 12-25) e Jacó (Gn 26-36),</p><p>um relato de origem alternativa ao patriarcal concernente à saída do Egito (Ex 1-14), com o</p><p>acréscimo provável de uma primeira versão do evento teofânico do Sinai (Ex 19-24).</p><p>A contribuição do grupo sacerdotal e do grupo deuteronomista na época do exílio</p><p>e do segundo Templo é fundamental no processo de formação do Pentateuco. A mais</p><p>importante é sobretudo o complexo que é designado por “P”, cuja articulação, porém, não é</p><p>fácil de determinar. Trata-se de uma narração independente, que integrando os contributos</p><p>das tradições precedentes, narra uma história salvífica que vai da criação até a ereção do</p><p>santuário no deserto (Ex 40). O fundo é uma concepção comum aos mitos da criação do</p><p>Oriente Próximo que, com frequência, terminam com a construção de um templo em que</p><p>o Deus vem morar; mas a intenção puramente teológica, isto é, a de anunciar a volta da</p><p>presença de YHWH, comprometida pela intromissão da violência na terra no tempo do</p><p>dilúvio (Gn 6,11-13), no quadro de uma progressiva revelação de Deus (‘elohím: Gn 1,1; ‘el</p><p>shadday: Gn 17,1; YHWH: Ex 6,3).</p><p>85UNIDADE IV O Texto da Bíblia</p><p>Desse modo, P interpreta as tradições precedentes como três etapas de uma mesma</p><p>história, toda orientada para a plena revelação daquele Deus, YHWH, que habita em meio</p><p>à comunidade sacerdotal de Israel, e assim, fundamenta a legitimidade da comunidade</p><p>judaica pós-exílica, que reconstrói o Templo sobre o modelo do santuário mosaico e ali</p><p>opera o culto de um Deus não só nacional, mas universal. a Esse primeiro complexo de</p><p>P deve ainda unir-se, embora num segundo tempo, a assim chamada Torá sacerdotal (Lv</p><p>1-16), que constitui sua conclusão, e o código da santidade (Lv 17-6/27).</p><p>Ao lado da contribuição da corrente sacerdotal está a corrente deuteronomista. No</p><p>início, essa tradição é constituída de código deuteronômico (Dt 12-26) acima citado e por</p><p>sua redescoberta e proclamação na época de Josias (2Rs 22,1-23,30); depois, durante o</p><p>exílio, provavelmente na Babilônia, da parte de círculos distintos dos sacerdotais, segue</p><p>uma reflexão sobre a história de Israel à luz do Deuteronômio (PRIOTTO, 2019, p. 149).</p><p>Desconsiderando a forma literária de tal reflexão, sobre a qual existem interpretações</p><p>divergentes (Dt - Js; Dt - 2Rs; Ex - 2Rs…), aparece fortemente o tema de uma identidade</p><p>judaica ligada à terra e à observância de uma lei que é, ao mesmo tempo, cultual e ética.</p><p>Trata-se, então, de harmonizar a tradição sacerdotal com a tradição deuteronomista, coisa</p><p>que aconteceu lentamente no século V: 1) graças ao trabalho de síntese das principais</p><p>tradições legais de Israel da parte do código de santidade (Lv 17-26/27); 2) graças à</p><p>redação do Livros dos Números, que assim se torna o anel de conjunção entre Gênesis-</p><p>Levítico e Deuteronômio e também o espaço para integrar na Torá os últimos elementos</p><p>antes de seu fechamento definitivo; 3) e enfim, graças ao trabalho paciente dos escribas</p><p>que, com cuidadas e significativas inserções orientam o texto para o novo horizonte do</p><p>Pentateuco. No processo de fusão das duas tradições prevalece a sacerdotal, porque a</p><p>opção da Torá como Pentateuco significa o abandono de qualquer projeto de Hexateuco</p><p>(Gn - Js), isto é, a dissociação da Torá da posse da terra. Se o horizonte permanece o</p><p>da promessa da terra, continua fundamental o fato de que toda a Torá seja transmitida a</p><p>Moisés, e através dele a Israel, fora do país de Canaã, motivo pelo qual a posse da terra</p><p>torna-se secundária em relação à Lei e a ela subordinada.</p><p>Esse processo de síntese das tradições conhece, porém, um passado longo e difícil</p><p>de ser seguido, porque aceita as instâncias dos vários grupos judaicos então existentes</p><p>(judeus da província de Yehud, samaritanos, judeus da diáspora) e contemporaneamente</p><p>as instâncias nem sempre fáceis do Império Persa. É com a época asmoneia que,</p><p>verossimilmente, o Pentateuco atinge sua forma última, soldando juntas a tradição da Torá</p><p>de Moisés com o Templo e suas disposições (PRIOTTO, 2019, p. 150).</p><p>86UNIDADE IV O Texto da Bíblia</p><p>6.2 A formação dos Livros Proféticos</p><p>6.2.1 Os profetas anteriores</p><p>A tradição judaica associa os livros de Josué, Juízes, 1-2 Samuel, 1-2 Reis aos</p><p>profetas, seja por causa da crença de uma composição da parte dos profetas, seja por</p><p>sua real harmonia com a mensagem profética. Esses livros constituem uma unidade não</p><p>só porque apresentam a história de Israel da conquista da terra prometida até a perda</p><p>dela com o exílio babilônico, mas sobretudo porque estão unidos por uma mesma língua</p><p>e teologia, a do Deuteronômio. Embora a história literária desse conjunto seja bastante</p><p>complexa, podem-se captar algumas linhas mestras.</p><p>O estilo e a teologia deuteronomista são fortemente influenciados pelos tratados</p><p>assírios, motivo pelo qual é verossímil a presença dos primeiros escribas deuteronomistas entre</p><p>os funcionários dos soberanos assírios. Se é difícil hipotizar uma primeira edição da história</p><p>deuteronomista (Dt - 2Rs) sob Josias, parece razoável imaginar a existência de uma “biblioteca”</p><p>deuteronomista no Templo de Jerusalém, dotada de escritos concernentes às tradições mais</p><p>antigas de Israel, como um rolo sobre a conquista do país, ou um ou mais rolos sobre a história</p><p>da realeza, baseados no modelo dos anais do Oriente Próximo antigo (PRIOTTO, 2019, p. 151).</p><p>Já existe um consenso sobre a importância do exílio babilônico nos escritos</p><p>deuteronomistas, e, por isso, a hipótese sobre uma obra deuteronomista que compreende</p><p>os livros que vão do Deuteronômio a 2 Reis tem fundamento suficiente. Todavia, os autores</p><p>/ redatores dessa história, provavelmente não se encontram na Judeia, mas antes na</p><p>diáspora babilônica. Efetivamente, a conclusão de 2Rs 25,21, que descreve plasticamente</p><p>a deportação de Judá de sua terra, compreende-se melhor a partir da perspectiva do exílio</p><p>do que da perspectiva de uma residente no país. A redação da história deuteronomista</p><p>na Babilônia pode ser entendida como resposta à crise de identidade sofrida pelos</p><p>exilados judeus. De fato, a explicação da catástrofe torna esta última mais compreensível,</p><p>e a insistência sobre a Torá mosaica consente conservar a identidade hebraica também</p><p>fora da terra prometida. Durante a época persa, essa história deuteronomista conhece</p><p>novas releituras, que testemunham preocupações religiosas e políticas (pureza étnica</p><p>da comunidade) que voltam a ser encontradas nos livros de Esdras e Neemias; assim,</p><p>determinados destaques da Torá refletem claramente a importância do novo culto sinagogal</p><p>na diáspora. Esse trabalho redacional continua até a época helenista, quando a história</p><p>deuteronomista chega à sua forma definitiva.</p><p>87UNIDADE IV O Texto da Bíblia</p><p>6.2.2 Os profetas posteriores</p><p>No centro da investigação já não está o estudo do profeta, acompanhado da</p><p>pesquisa das pequenas unidades que podiam remontar a ele, mas o estudo do livro profético,</p><p>portador de sentido em toda a sua extensão. De fato, os vários redatores que sucederam</p><p>não são uns desajeitados glosadores, mas escribas que reivindicam integralmente o</p><p>carisma profético na medida em que testemunham com suas atividades de escritor uma</p><p>surpreendente capacidade de inovação e, na esteira do mestre, de continuidade profética.</p><p>As etapas da redação e da transmissão da mensagem profética são as seguintes:</p><p>1) São postos por escrito os lóguia orais: isso significa já um ato de interpretação,</p><p>porque a palavra oral é tirada de sua situação de origem e acrescentada a uma</p><p>compilação de outros lóguia.</p><p>2) São acrescentadas pequenas unidades, seja em relação ao contexto imediato,</p><p>seja em relação a todo o livro, quando constituem o esqueleto de amplas seções ou</p><p>do próprio livro (cf. por exemplo, os acréscimos que organizam a estrutura: “palavras</p><p>contra Israel” - “palavras contra os povos” - “palavras de salvação para Israel”).</p><p>3) Algumas vezes é inserido um texto que tem valor redacional para todo o livro,</p><p>como por exemplo Is 35, que, provavelmente por volta do fim do século IV ou do início</p><p>do século III, reúne pela primeira vez as tradições do Proto e do Dêutero-Isaías.</p><p>4) Também podem ser notados laços redacionais entre os próprios livros, laços que</p><p>servem para fixar um corpus propheticum (Is - Ml).</p><p>5) Enfim, alguns acréscimos textuais podem relacionar-se a outros corpos</p><p>escriturísticos: por exemplo, a promessa de um novo céu e de uma nova terra de</p><p>Is 65-66 constitui claramente uma recensão de Gn 1-3 (PRIOTTO, 2019, p. 152).</p><p>De que maneira aconteciam esses acréscimos? A circulação dos livros era muito</p><p>restrita e os ambientes culturalmente vivos, depois do exílio, concentravam-se provavelmente</p><p>em Jerusalém. Agora, a intenção primeira era não só a conservação do texto, mas também</p><p>a preservação do sentido; motivo pelo qual os novos desenvolvimentos não se apresentam</p><p>como tais, mas são redigidos na forma profética e colocados de modo anônimo na boca do</p><p>profeta ao qual o livro é atribuído. em nível de corpo profético, o Livro de Isaías assume o</p><p>papel de uma voz diretora, e por isso testemunha uma profecia que, do tempo assírio, chega</p><p>até o advento de um céu novo e de uma terra nova (cf. Eclo 48,24-25). Nesse caminho</p><p>geral, os outros profetas transmitem profecias complementares cada um na própria época.</p><p>88UNIDADE IV O Texto da Bíblia</p><p>Essa articulação da transmissão profética testemunha, pois, não só uma</p><p>preocupação histórica,</p><p>mas sobretudo teológica; os acréscimos posteriores são eles</p><p>próprios profecia, porque reinterpretam e atualizam profeticamente a antiga palavra</p><p>profética. Uma leitura puramente historicista trairia seu sentido profundo. A profecia é</p><p>um fenômeno que Israel compartilha com os povos circunvizinhos; todavia, o que lhe é</p><p>precípuo é exatamente essa contínua reinterpretação e atualização da palavra profética,</p><p>motivo pelo qual ela testemunha um significado para as gerações seguintes. É por isso</p><p>que a profecia do Antigo Testamento se conservou até hoje.</p><p>Sendo a Torá já um corpus com autoridade, o grupo dos escritos proféticos podia</p><p>tornar-se um corpus só em conexão com o primeiro. A junção do segundo ao primeiro</p><p>não era, pois, só uma operação material, mas significava que os profetas transmitiam e</p><p>interpretavam a Torá, exatamente como mostrará o posterior serviço sinagogal com a dupla</p><p>leitura da Torá e dos Profetas. É possível que a passagem final de Ml 3,22-24, com sua</p><p>significativa alusão à lei de Moisés, queira fechar todo corpo profético, conciliando-o com o</p><p>final de Dt 34 e a interpretando-a não como uma palavra diferente, mas como a atualização</p><p>e a interpretação da única Torá de Moisés.</p><p>6.2.3 A formação dos Escritos</p><p>É sob esse título, bastante vago, que a tradição judaica reuniu o último bloco dos</p><p>livros sagrados. Diversamente das duas grandes unidades precedentes, esta contém escritos</p><p>bastante diferentes entre si e, em geral, tardios; além disso, constitui um espaço aberto a</p><p>novas aquisições, até que as comunidades judaica e cristã decidiram, com critérios e tempos</p><p>diferentes, fechar o cânon, pondo assim um termo ao crescimento quantitativo da Bíblia.</p><p>A ordem dos livros não é homogênea nas várias tradições. Nas edições da Bíblia</p><p>impressa, impôs-se a seguinte classificação: os três grandes escritos: Salmos, Jó e Pro-</p><p>vérbios; o grupo dos cinco rolos (meghillot): Cântico dos Cânticos, Rute, Lamentações,</p><p>Eclesiastes, Ester; enfim, Daniel, Esdras, Neemias, 1-2 Crônicas. A tradição da diáspora</p><p>grega, adotada depois pela Igreja Cristã, acrescentou-lhe ainda os seguintes livros: Tobias,</p><p>Judite, 1-2 Macabeus, Baruc, Eclesiástico, Sabedoria e os assim chamados acréscimos</p><p>deuterocanônicos a Ester e a Daniel.</p><p>89UNIDADE IV O Texto da Bíblia</p><p>7. A FORMAÇÃO LITERÁRIA DO NOVO TESTAMENTO</p><p>A formação literária do Novo Testamento, com a da Bíblia hebraica, compartilha</p><p>os mesmos pressupostos, isto é, está intimamente conexa com a história da comunidade</p><p>crente, reflete os vários ambientes que a caracterizam (liturgia, catequese, missão…) e</p><p>depende de uma precedente tradição oral. Todavia, o curto espaço de tempo em que se</p><p>desenvolve (70/80 anos) permite a reconstrução de um percurso diacrônico bastante mais</p><p>fácil em relação ao da Bíblia hebraica.</p><p>Seguindo o quadro histórico-cronológico, diferente em relação à atual estrutura</p><p>redacional. aparecem sucessivamente quatro grupos de escritos: as Cartas Paulinas, os</p><p>Evangelhos com os Atos dos Apóstolos, os Escritos Joaninos e, enfim, as Cartas Católicas.</p><p>7.1 As cartas paulinas</p><p>O epistolário paulino foi redigido entre os anos 50 e 60 d.C., portanto antes dos</p><p>Evangelhos sinóticos que vão da segunda metade dos anos 60 até o fim dos anos 80.</p><p>Naturalmente, referimo-nos ao nível redacional, porque, como se verá, os Evangelhos se</p><p>apoiam sobre fontes precedentes às cartas paulinas, como, aliás, também estas últimas,</p><p>embora não tão largamente. A articulação canônica das cartas segue um critério quantitativo,</p><p>da mais volumosa (Rm) à mais breve (Fm). Com referência à obra direta de Paulo, a crítica</p><p>literária contemporânea distingue três grupos: as cartas autorais ou prolegómena (1 Ts,</p><p>1-2 Cor, Gl, Rm, Fm, Fl), as cartas da primeira tradição paulina (2Ts, Cl, Ef) e as cartas da</p><p>segunda tradição paulina ou antilegómena das cartas pastorais (1 Tm, Tt, 2 Tm).</p><p>90UNIDADE IV O Texto da Bíblia</p><p>Se as cartas autorais fazem referência à própria obra do Apóstolo, as do segundo</p><p>grupo testemunham não tanto uma escola ou uma corrente, mas antes a viva tradição</p><p>das comunidades por ele fundadas, que não só conservaram, mas também adaptaram e</p><p>atualizaram seu ensinamento nos novos contextos de suas vidas; assim, as cartas pastorais</p><p>exprimem uma ulterior atualização do pensamento de Paulo em tempos e circunstâncias já</p><p>distantes de seu tempo (PRIOTTO, 2019, p. 155).</p><p>A história literária das cartas paulinas é, em parte, análoga à dos textos evangélicos.</p><p>De fato inicia antes de mais nada pelas tradições circulantes nas comunidade pré-paulinas,</p><p>isto é, pelo depósito das tradições recebidas do Senhor e das antigas comunidades (cf.</p><p>1,Cor 11,23; 15,3-5) e por elementos tradicionais sob as formas literárias mais diversas:</p><p>fragmentos literários do querigma primitivo (p. ex., 1Ts 1,10; Gl 1,4), fórmulas litúrgicas</p><p>(1Cor 8,6; 11,24-25; 16,22), hinos (Fl 2,6-11; 1Cor 13), trechos homiléticos e parenéticos ou</p><p>de exortação moral com catálogos dos vícios e das virtudes (p. ex., Gl 5,19-23), midrashim</p><p>cristãos (Gl 4,21-31; 1Cor 10,1-11; 2Cor 3,4018), instruções domésticas… (como Cl 3,18-</p><p>4,1). Em nível de história da redação, Paulo retoma e integra esses diversos elementos no</p><p>quadro da nova síntese literária que ele põe por escrito.</p><p>Paulo não escreve nenhuma carta de próprio punho, mas serve-se da colaboração</p><p>de um secretário que a redige sob ditado (cf. Rm 16,22); porém, coloca nelas sua assinatura,</p><p>acompanhada de algumas frases de fechamento (1Cor 16,21; Gl 6,11; 2Ts 3,17). Na carta</p><p>a Filêmon, o autógrafo torna-se garantia de débito pelos danos causados pelo escravo</p><p>Onésimo em relação ao patrão (v. 19). Dotado de meios financeiros limitados, Paulo escreve</p><p>provavelmente em papiro, em pequenos trechos literários, para, depois, colar tudo junto; isso,</p><p>aliás, explica certas dissonâncias entre os diversos elementos de uma carta. A alusão aos</p><p>pergaminhos em 2Tm 4,13 reflete o ambiente posterior da última tradição paulina e não a</p><p>original. No cabeçalho das cartas, estão presentes, além de Paulo, outros comitentes e</p><p>colaboradores, como Timóteo, Silvano e Sóstenes e até toda a comunidade (cf. 1Ts 1,1;</p><p>1Cor 1,1 2Cor 1,1; Fm 1,1; Gl 1,2); a eles, com frequência, acrescentam-se os portadores</p><p>das cartas, como Febe e Epafrodito (cf. Rm 16,1-2; Fl 2,25-30); esse horizonte comunitário é</p><p>confirmado pelo destinatário, que é exatamente a comunidade: “Peço-vos encarecidamente</p><p>no Senhor que esta carta seja lida perante todos os irmãos” (1Ts 5,27). Tudo isso confere às</p><p>cartas de Paulo um caráter não só profundamente pessoal, mas também comunitário.</p><p>No final das cartas paulinas, aparece no cânon do Novo Testamento a Carta aos</p><p>Hebreus, embora o estilo e a impostação argumentativa difiram das cartas de Paulo e seu</p><p>nome nunca apareça. Todavia, é preciso reconhecer que se trata de um escrito próximo ao</p><p>ambiente paulino.</p><p>91UNIDADE IV O Texto da Bíblia</p><p>É uma homilia cristológica, escrita antes da destruição do Templo e caracterizada</p><p>por uma extraordinária familiaridade com o Antigo Testamento e com o culto de Jerusalém</p><p>(PRIOTTO, 2019, p. 157).</p><p>O corpus das cartas paulinas não foi improvisado e não coincidiu com a gradual</p><p>inserção das cartas assim que eram escritas, mas exigiu um certo lapso de tempo (50 anos?)</p><p>e um processo do qual é difícil conhecer exatamente as modalidades; mas podemos imaginar</p><p>as linhas mestras. À exceção de 1-2 Timóteo, Tito e Filêmon, as cartas não são endereçadas</p><p>a pessoas, mas às Igrejas; só a Carta aos Gálatas é endereçada expressamente a diversas</p><p>comunidades vizinhas. As cartas eram lidas nas assembleias litúrgicas (cf. 1Ts 5,27) e</p><p>conservadas com veneração. Num só caso se acena a uma troca de cartas (Cl 4,16), mas é</p><p>fácil pensar que os destinatários de uma carta a transmitissem também às outras comunidades,</p><p>após ter feito uma cópia dela; o próprio Paulo sabe que suas cartas eram lidas por um grande</p><p>público e despertavam vivos comentários (2Cor</p><p>10,9-11). É provável que, depois da morte do</p><p>Apóstolo, muito cedo se tenha feito uma coleção de suas cartas (cf. 2Pd 3,15-16).</p><p>7.2 Evangelhos sinóticos e Atos dos Apóstolos</p><p>Seguindo o exemplo de Jesus, depois da ressurreição também os apóstolos se</p><p>dedicam, além do serviço litúrgico, a uma obra de anúncio (At 6,4), centrado no mistério</p><p>pascal (At 2,32-33); eram hebreus que pregavam a outros hebreus, proclamando Jesus,</p><p>o crucificado, como Senhor e Mestre (At 2,36). Esse conteúdo essencial do anúncio é</p><p>chamado de querigma, do qual possuímos exemplo concretos nas narrações dos Atos</p><p>(p. ex., 10, 37-43). Portanto, nos anos imediatamente após a morte de Jesus temos uma</p><p>tradição essencialmente oral, segundo o significado etimológico do termo “evangelho”, que</p><p>significa exatamente mensagem proclamada oralmente (cf. 1Cor 15,1).</p><p>A composição dos Evangelhos foi precedida de uma rica tradição oral; já os antigos</p><p>sabiam que os Evangelhos nasceram da precedente pregação oral, como testemunha</p><p>Irineu, segundo o qual foi confiado aos escritos aquilo que antes foi pregado oralmente.</p><p>Trata-se de episódios e de cenas perfeitamente delimitáveis e separáveis, sem que percam</p><p>nada de seu significado: controvérsias, parábolas, palavras proféticas, normas comunitárias,</p><p>milagres… Contudo, são fragmentos inseparáveis de sua função pastoral e, em geral, da</p><p>vida das comunidades cristãs. Se não houve a preocupação de fixar os ditos e fatos numa</p><p>narração unitária, nem uma preocupação histórica com um fim em si mesma, todavia, esses</p><p>elementos fragmentários eram lembrados e anunciados num quadro global do ministério de</p><p>Jesus segundo algumas linhas mestras, que constituem a estrutura atual dos Evangelhos:</p><p>pregação do Batista, batismo de Jesus, ministério na Galiléia, ministério em Jerusalém,</p><p>paixão, morte, ressurreição e aparições do Ressuscitado. Foi a ressurreição que marcou o</p><p>ponto-chave do anúncio evangélico, o ponto de referência interpretativo de toda a obra de</p><p>Jesus; e por isso as lembranças pré-pascais não encontram sua justa interpretação numa</p><p>fidelidade material, mas à luz da ressurreição de Jesus.</p><p>92UNIDADE IV O Texto da Bíblia</p><p>A formação dos vários episódios (perícopes) foi motivada pela própria vida da</p><p>Igreja primitiva, particularmente pela celebração litúrgica, pela catequese e pela missão.</p><p>De fato, foi por desenvolver essas funções fundamentais que os apóstolos recordavam</p><p>as palavras de Jesus e narravam os episódios de sua vida. Acrescentem-se a isso as</p><p>necessidades práticas da comunidade: o comportamento dos cristãos, a defesa contra</p><p>acusações e calúnias, a lembrança afetuosa de um “amigo”. No seguimento dos apóstolos,</p><p>muitas outras pessoas comprometeram-se nesta tarefa eclesial, da qual nasceram os</p><p>escritos evangélicos: não um relato de crônica, mas a interpretação autêntica da obra de</p><p>Jesus à luz de sua ressurreição.</p><p>Mesmo sendo o testemunho de uma comunidade de fé, os Evangelhos são a</p><p>obra de determinadas pessoas, identificadas desde a tradição mais antiga como Mateus,</p><p>Marcos e Lucas. Eles realizaram um precioso trabalho de redação da tradição precedente,</p><p>oral e, em parte, já escrita, e como autênticos autores, escreveram suas obras com um</p><p>caráter pessoal. A “história da redação” (Redaktionsgeschichte, em alemão), em particular,</p><p>estudou e evidenciou as diversas estruturas literárias e teólogicas de cada evangelho,</p><p>que testemunham fielmente o querigma, mas de maneira original e complementar. Seu</p><p>valor histórico é inegável, não no quadro de uma visão positivista da história, entendida</p><p>como gravação material dos fatos, mas num quadro de uma história significativa, que tira a</p><p>verdade do ponto culminante da vida de jesus, isto é, de sua ressurreição, e da vida de uma</p><p>Igreja guiada pelo Espírito (PRIOTTO, 2019, p. 159).</p><p>Resta ainda uma questão sobre a formação literária dos Evangelhos, isto é, a</p><p>assim chamada questão sinótica. Os primeiros três Evangelhos são semelhantes entre si:</p><p>têm muito material em comum, conservam a mesma ordem ao narrar os acontecimentos</p><p>principais, por vezes quase idênticos até nas expressões e em passagens inteiras. Por isso</p><p>são chamados “sinóticos” (do grego syn [junto] + ópsis [visão] = visão de conjunto), porque</p><p>podem ser lidos juntos em três colunas paralelas. Elas não são iguais, e por isso não</p><p>constituem simplesmente três variantes de um mesmo escrito; mas nem tão diferentes a</p><p>ponto de serem independentes um do outro. Então, como explicar as muitas convergências</p><p>e, ao mesmo tempo, as outras tantas divergências? Essa é exatamente a questão sinótica.</p><p>A explicação mais simples e mais convincente, apesar de alguma incerteza, é a assim</p><p>chamada teoria das fontes, segundo a qual devem-se pressupor duas fontes. Uma fonte é</p><p>Marcos (M), da qual se servem tanto Mateus quanto Lucas. Todavia, Mateus e Lucas têm em</p><p>comum cerca de 240 versículos que faltam em Marcos e que, portanto, não podem derivar dele.</p><p>93UNIDADE IV O Texto da Bíblia</p><p>Deve-se pressupor que Mateus e Lucas tenham tomado os versículos que têm</p><p>em comum de uma outra fonte (Q, do alemão Quelle), que nos é desconhecida, mas</p><p>reconstruível ao menos com os 240 versículos comuns aos dois evangelistas. Tratar-se-ia</p><p>de uma coleção de lóguia, isto é, de ditos do Senhor, transmitido pela comunidade sem</p><p>moldura narrativa. Enfim, é preciso reconhecer que, tanto Mateus como Lucas, cada</p><p>um tem material próprio e que, portanto, tiraram de fontes próprias. Como conclusão, os</p><p>Evangelhos de Mateus e de Lucas derivariam de duas fontes: Marcos e a fonte Q; às quais</p><p>deve-se acrescentar material próprio deles.</p><p>Por fim, ao Evangelho de Lucas é preciso achegar também os Atos dos Apóstolos,</p><p>que não são simplesmente a continuação do Evangelho, mas uma segunda parte dele, unida</p><p>à primeira, mas não distinta, como mostram os dois prólogos. Portanto, Lucas compôs dois</p><p>escritos, que se pedem e se integram mutuamente, mas provavelmente escritos em tempos</p><p>sucessivos. A obra é constituída por um complexo material tradicional, de origem diversa, mas</p><p>que Lucas dispôs num quadro histórico-teológico muito original. Dado o forte interesse pela</p><p>comunidade cristã de Antioquia não é de excluir que essa cidade seja, ao menos para a primeira</p><p>parte (cap. 1-12), o lugar de proveniência das tradições dos Atos. Quanto à segunda parte da</p><p>obra (cap. 13-28) é possível que o evangelista a tenha tirado, ao menos em parte, de um</p><p>“itinerário” ou “diário de viagem”, dada a complexidade da narração, rica de inúmeros detalhes.</p><p>7.3 A obra joanina</p><p>A tradição atribuiu ao Apóstolo João um importante grupo de escritos: o Quarto</p><p>Evangelho, as três cartas e o Apocalipse. Não obstante algumas significativas diferenças,</p><p>tais escritos pertencem a um mesmo ambiente religioso e cultural, chamado a “comunidade</p><p>joanina”, situado na região de Éfeso, na Ásia Menor, lá pelo fim do século I. A garantia</p><p>da tradição apostólica nesta comunidade era precisamente o Apóstolo João, chegado ali</p><p>nos últimos decênios do século I d.C., após uma precedente permanência de Paulo. É</p><p>esse ambiente efesino que plasma definitivamente esses escritos, ainda que as tradições</p><p>veiculadas possam pertencer a tempos e lugares diversos.</p><p>Os estudiosos modernos procuraram reconstruir a caminhada diacrônica desse</p><p>Evangelho, aliás, com resultados incertos e, muitas vezes, muito hipotéticos. Certamente,</p><p>seguindo nisso também a antiga tradição patrística, na base está a pregação e a atividade</p><p>pastoral do Apóstolo João na Igreja de Éfeso e na região circunstante, em que ele transmite</p><p>a quem não estiveram presentes a própria experiência e a própria interpretação da fé.</p><p>94UNIDADE IV O Texto da Bíblia</p><p>Trata-se, em geral, de uma tradição oral; ela é recolhida provavelmente por mais</p><p>discípulos, fato que explica a diversidade das narrações e dos discursos e a diversidade</p><p>de estilo que encontramos atualmente no evangelho escrito. Um discípulo mais em vista, o</p><p>evangelista, compõe um conjunto</p><p>que reúne o ministério da Galileia e da Judeia, sem, contudo,</p><p>incluir todos os elementos da tradição joanina. Um redator final retoma o escrito precedente,</p><p>incluindo elementos antigos que ficaram fora e elementos novos devidos a um horizonte</p><p>que já não é simplesmente o judaico-palestinense, mas também o grego; daí a inserção do</p><p>prólogo (1,1-18), alguns acréscimos da reflexão teológica (3,16-21.31-36), o discurso sem</p><p>ligação de 12,44-50, o segundo discurso de adeus (15,1-17) depois da conclusão de 14,31, a</p><p>meditação do capítulo 17 e, enfim, o capítulo 21 depois da conclusão de 20,30-31.</p><p>Ao Apóstolo João é também atribuída a composição de três cartas; são escritos</p><p>estreitamente afins, ainda que seu valor teológico seja diverso. De fato, enquanto a 1 João</p><p>é uma joia e também o cume da teologia neotestamentária, a segunda e a terceira cartas</p><p>são simples bilhetes. Um estudo comparado entre as três cartas e o Quarto Evangelho</p><p>mostra claramente um estreito parentesco literário e teológico e por isso vale o que acima</p><p>se disse do Evangelho: provêm da mesma tradição, que vai da pregação do Apóstolo à</p><p>recepção dos discípulos e, enfim, à redação final.</p><p>O Apocalipse é um autêntico anúncio do Evangelho a uma comunidade que já é</p><p>cristã, mas que é provada por graves dificuldades: a autoridade romana embebida de cultura</p><p>helenista pagã, a forte oposição às comunidades judaicas, tensões e contraposições no</p><p>seio da comunidade cristã. O autor apresenta-se diversas vezes com o nome de João e</p><p>se qualifica como “profeta” (cf., respectivamente, Ap 1,1.4.9; 22,8; e Ap 10,11; 19,10; 22,9).</p><p>A antiga tradição patrística, a partir de Justino e Irineu, identificou-o com o Apóstolo João;</p><p>algumas tradições discordantes são causadas sobretudo pelo uso desse livro por parte de</p><p>grupos heréticos e por sua difícil interpretação. A diversidade de estilo e de problemática</p><p>teológica não são tais de negar a comum referência a João, tanto do apocalipse quanto do</p><p>Quarto Evangelho; de qualquer forma, é comum o ambiente da comunidade joanina do fim do</p><p>século I; o contexto é o da perseguição de Domiciano (81-96 d.C.). (PRIOTTO, 2019, p. 161).</p><p>7.4 As cartas católicas</p><p>Além do corpus paulino e joanino, o Novo Testamento conhece ainda um grupo de</p><p>cartas denominadas “católica”: a carta de Tiago, duas cartas de Pedro e a Carta de Judas.</p><p>Esse título significa literalmente “universais”, enquanto não destinadas a uma comunidade</p><p>particular, mas ao conjunto das Igrejas. Designa, além disso, sua ortodoxia e, portanto, seu</p><p>direito de pertencer ao cânon escriturístico, apesar das dúvidas e incertezas iniciais.</p><p>95UNIDADE IV O Texto da Bíblia</p><p>A Carta de Tiago, apesar da abertura, não é uma carta, é, antes, uma homilia ou,</p><p>melhor, uma coleção de temas homiléticos. O autor é um judeu-cristão da segunda ou</p><p>terceira geração, culto e bom conhecedor da LXX, que compôs a obra, provavelmente na</p><p>Síria, por volta do fim do século I (PRIOTTO, 2019, p. 162).</p><p>A 1 Pedro, mais do que uma carta, é uma catequese ligada à liturgia batismal,</p><p>dirigida a cristãos já batizados para convocá-los à graça do sacramento recebido e à</p><p>consequente coerência de vida. O provável autor é Silvano, isto é, Silas, colaborador</p><p>de Paulo (cf. At 15,22) e agora secretário e colaborador de Pedro. Após a morte do</p><p>apóstolo em 64, ele recolheu sua lembrança e seu pensamento nesse escrito enviado às</p><p>comunidades cristãs da Anatólia (1Pd 1,1).</p><p>A 2 Pedro diferencia-se bastante da primeira quanto à língua, ao estilo e à impostação</p><p>teológica; é escrita por volta do início do século II, numa situação histórica muito mudada,</p><p>caracterizada pelo aparecimento de correntes heréticas e por um libertinismo moral.</p><p>Apresentando-se como o Apóstolo Pedro, já próximo à morte, o autor quer deixar como que</p><p>um testamento espiritual que salvaguarde e marque o testemunho apostólico sobre Jesus.</p><p>Trata-se de um discípulo do apóstolo, que vive e age provavelmente no Egito, no qual de</p><p>fato a carta começou a ser ouvida e estimada.</p><p>A Carta de Judas é uma breve homilia de caráter judeu-helenista, na qual se</p><p>polemiza contra as nascentes heresias e se exorta a uma digna conduta cristã. Quem</p><p>escreve é um judeu-cristão de cultura helenista, que, querendo defender a mensagem</p><p>apostólica de interpretações arbitrárias, a atribui ao Apóstolo Judas, uma figura que no seu</p><p>ambiente gozava de uma autoridade particular.</p><p>96UNIDADE IV O Texto da Bíblia</p><p>SAIBA MAIS</p><p>O que é Helenismo.</p><p>O contato entre romanos e judeus ocorre por volta da primeira metade do século II</p><p>a.C. Neste contexto, está em desenvolvimento a chamada “civilização helenística”. O</p><p>que é isto? Trata-se de uma cultura que superou os limites de fronteiras geográficas.</p><p>Ser grego ou ser helênico não era uma questão de nacionalidade, mas de mentalidade</p><p>marcada pela novidade de um pensamento onde havia uma valorização da sabedoria,</p><p>da liberdade, da beleza do corpo, dentro de uma filosofia que se impõe aos poucos na</p><p>vida das culturas orientais. A religião também se apresentava de maneira nova, diferente,</p><p>misturando-se aos esportes através dos cultos em homenagem aos deuses do Olimpo,</p><p>originando os famosos jogos olímpicos da Antiguidade. Através do helenismo, uma</p><p>cultura “globalizada” se expande e invade a vida familiar, os costumes, valores, língua,</p><p>política e religião. Ser helenizado significa o mesmo que ser cidadão do mundo.</p><p>Fonte: SCHLAEPFER, Carlos Frederico (org.). A Bíblia: elementos historiográficos e literários.</p><p>Petrópolis: Vozes, 2019.</p><p>REFLITA</p><p>Quem disse ser preciso apresentar carteira de identidade ou vinculação religiosa para</p><p>ler a Bíblia ou atestado ideológico de compatibilidade com as ideias pretensamente nela</p><p>veiculadas?</p><p>Fonte: O Autor (2022).</p><p>97UNIDADE IV O Texto da Bíblia</p><p>CONSIDERAÇÕES FINAIS</p><p>Olá, Prezado Acadêmico. Olá, Prezada Acadêmica.</p><p>Chegamos ao final de nossa quarta e última unidade da disciplina de Introdução</p><p>às Sagradas Escrituras, em que pudemos estudar os processos que levaram à formação</p><p>do Antigo e do Novo Testamento, na perspectiva cristã e também, primeiramente, da Bíblia</p><p>hebraica, na perspectiva judaica.</p><p>Foi importante perceber como se deu o processo de fixação dos livros sagrados e,</p><p>mesmo brevemente, um pouco do contexto da formação literária de cada um dos grandes</p><p>blocos que compõem a Bíblia.</p><p>Vimos que sendo livros, passaram por um processo de formação como qualquer</p><p>outro livro, mas não são, de fato, iguais aos outros livros. Tiveram seu reconhecimento</p><p>sempre associados a uma perspectiva de fé e de vivência comunitária. Fé e tradição, juntas</p><p>no reconhecimento de que Deus fala ao seu povo, e esse povo guarda e registra aquilo que</p><p>seu Deus lhe falou.</p><p>98UNIDADE IV O Texto da Bíblia</p><p>MATERIAL COMPLEMENTAR</p><p>LIVRO</p><p>Título: Introdução Teológica e História de Israel</p><p>Autor: Fabrízio Zandonadi Catenassi.</p><p>Editora: Intersaberes.</p><p>Sinopse: Para que possamos realmente entender os contextos</p><p>e as tradições que deram origem à Bíblia, precisamos analisar as</p><p>etapas e os eventos que mais marcaram a história do povo de</p><p>Israel. Neste sentido, é essencial também refletirmos sobre como</p><p>a compreensão da Sagrada Escritura foi amadurecendo ao longo</p><p>dos tempos e como a recepção desses textos foi sendo progressi-</p><p>vamente assimilada pelos fiéis. Esse livro se dispõe a essa tarefa.</p><p>FILME/VÍDEO</p><p>Título: Evangelho Segundo São Mateus</p><p>Ano: 1964.</p><p>Sinopse: Acompanha a vida de Jesus Cristo, do nascimento à</p><p>ressurreição, a partir do texto de São Mateus. As parábolas, os</p><p>primeiros discípulos, a revolta, a determinação, os milagres, a</p><p>intolerância, a solidão e a impaciência.</p><p>99</p><p>REFERÊNCIAS</p><p>CATENASSI, Fabrízio Zandonadi. Introdução teológica e história de Israel. Curitiba:</p><p>Intersaberes, 2018.</p><p>HARRINGTON, Wilfrid J. Chave para a Bíblia. São Paulo: Paulinas, 1985.</p><p>LARA, Valter Luiz. A Bíblia e o desafio da interpretação sociológica. São Paulo: Paulus,</p><p>2009, p. 26.</p><p>PRIOTTO, Michelangelo. Introdução Geral</p><p>às Escrituras. Petrópolis: Vozes, 2019.</p><p>SCHLAEPFER, Carlos Frederico (org.). A Bíblia: elementos historiográficos e literários.</p><p>Petrópolis: Vozes, 2019.</p><p>100</p><p>CONCLUSÃO GERAL</p><p>Prezado Acadêmico. Prezada Acadêmica.</p><p>Nos cursos de graduação em Teologia, as disciplinas introdutórias à Sagradas</p><p>Escrituras geralmente trazem certos desafios para os estudantes que chegam ao mundo</p><p>acadêmico com uma visão pouco crítica da Bíblia. Por isso, em nosso estudo, buscamos</p><p>ajudar a cada um de vocês, queridos estudantes, a irem construindo um conhecimento</p><p>sobre as Sagradas Escrituras de maneira a poder compreendê-las dentro de um contexto</p><p>acadêmico, para que a própria fé seja fortalecida.</p><p>Por isso, abordamos nas quatro unidades alguns aspectos que são fundamentais</p><p>nesse processo: aspectos referentes à escrita, ao contexto histórico e geográfico, à</p><p>dimensão teológica dos textos, quanto à inspiração e à revelação dos textos.</p><p>Esperamos que tenha sido um estudo válido. Confiamos na dedicação de todos e</p><p>temos a certeza que entenderam que se trata de uma introdução, o que exigirá a continuidade</p><p>do estudo com novos desafios e novas fontes.</p><p>Na Teologia, a Bíblia tem um lugar especial. Que nossos teólogos e futuros</p><p>teólogos se sintam à vontade transitando nesse espaço, buscando e fazendo descobertas,</p><p>conhecendo na Bíblia o registro e realização da proposta de salvação que Deus apresentou</p><p>ao seu povo, iniciada antes mesmo de Jesus Cristo e que, com sua vinda, trouxe à sua</p><p>plenitude salvífica.</p><p>Grande abraço a todos. Sucesso em seus estudos.</p><p>Até uma próxima oportunidade</p><p>+55 (44) 3045 9898</p><p>Rua Getúlio Vargas, 333 - Centro</p><p>CEP 87.702-200 - Paranavaí - PR</p><p>www.unifatecie.edu.br</p><p>UNIDADE I</p><p>A Palavra</p><p>Escrita</p><p>UNIDADE II</p><p>O Cânon das Escrituras</p><p>UNIDADE III</p><p>A Palavra: A Inspiração Escriturística</p><p>e a Revelação Bíblica</p><p>UNIDADE IV</p><p>O Texto da Bíblia</p><p>Mesopotâmia e a Síria no decorrer do segundo e do pri-</p><p>meiro milênio a.C., que, com o tempo, intermediaram o comércio entre a Mesopotâmia,</p><p>a Ásia Menor e a costa mediterrânea. Dessa forma, funcionava como língua comercial</p><p>(CATENASSI, 2018, p. 69-70). Nosso autor continua:</p><p>A partir do exílio da babilônia, os judeus falavam essa língua junto com o</p><p>hebraico e, depois do exílio, o aramaico tornou-se a língua cotidiana de fala,</p><p>ao passo que o hebraico era reservado à literatura sagrada e à liturgia, típico</p><p>do mundo sinagogal (CATENASSI, 2018, p. 70).</p><p>Partes do livro de Esdras refletem a documentação persa e são escritas no</p><p>aramaico oficial: Esd 4,8-6,18). Algumas passagens do Antigo Testamento aparecem,</p><p>sem explicação aparente, em dialetos aramaicos que surgiram após a dominação grega</p><p>(século IV a.C.): Jr 10,11 e Dn 2,4b-7,28. Testemunhos eclesiásticos antigos de Eusébio</p><p>de Cesareia afirmam que o Evangelho de Mateus foi escrito originalmente em aramaico</p><p>ou hebraico (CATENASSI, 2018, p. 70).</p><p>9UNIDADE I A Palavra Escrita</p><p>A terceira língua em que a Bíblia foi escrita é o grego, que difere do modelo dos</p><p>clássicos gregos, refletindo uma forma popularmente falada e escrita na bacia oriental</p><p>do Mediterrâneo a partir de Alexandre Magno (século IV a.C. - conhecido como a koiné.</p><p>Explica Catenassi:</p><p>As conquistas de Alexandre levavam não só a dominação política sobre as</p><p>regiões submetidas ao Império, como também a ampla disseminação da</p><p>cultura grega, em um processo chamado de helenização. Com isso, a língua</p><p>grega também foi sendo assimilada pelas colônias; no Novo Testamento,</p><p>era certamente uma “língua universal” das grandes cidades, que conectava</p><p>o mundo do Antigo Oriente e a Europa. Nos centros urbanos do Novo</p><p>Testamento, o povo falava o heraico nas sinagogas, o aramaico em casa e o</p><p>grego no comércio (CATENASSI, 2018, p. 70).</p><p>No Novo Testamento, os textos que chegaram até nós foram todos escritos em</p><p>grego. Porém, também textos sagrados do Antigo Testamento foram produzidos nesta língua,</p><p>provavelmente por sua origem em ambientes de fora da Palestina - é o caso de Tobias,</p><p>Judite, 1 e 2 Macabeus, Baruc e Sabedoria. Os livros de Daniel e Ester contêm algumas</p><p>seções em grego. O livro do Eclesiástico chegou a nós somente por sua tradução grega,</p><p>mas originalmente estava escrito em hebraico. Pode ser que o mesmo tenha acontecido</p><p>com alguns dos outros livros em grego citados anteriormente. Abordaremos esse assunto</p><p>novamente em nosso estudo.</p><p>10UNIDADE I A Palavra Escrita</p><p>2. CRESCENTE FÉRTIL: ONDE TUDO COMEÇOU</p><p>A geografia bíblica é uma ciência de suma importância para conhecermos a Bíblia</p><p>pois, a partir do “pano de fundo” geográfico, vamos percebendo melhor seu processo de</p><p>formação. O tema geografia bíblica está sempre sendo aprimorado - e as novas descobertas</p><p>e ferramentas de análise contribuem para o aprimoramento dessa ciência.</p><p>Na primeira fase da formação da Bíblia, temos um arco que pode ser chamado</p><p>de Meia-Lua Fértil ou Crescente Fértil, que circunscreve as regiões do Egito (com o rio</p><p>Nilo), da Palestina (como um corredor de passagem entre o Ocidente e o Oriente) e do</p><p>Oriente (a Assíria, a Babilônia, a Pérsia, especialmente a região entre os rios Tigre e</p><p>Eufrates). Para percorrer o caminho entre o Egito e a Mesopotâmia era obrigatório passar</p><p>pela Palestina, quer no caminho de ida ou mesmo no caminho de volta. O deserto da</p><p>Arábia era praticamente intransponível com os recursos e meios da época e, por isso, o</p><p>caminho era sempre pela costa ocidental da Palestina e depois a travessia das montanhas</p><p>em direção à Mesopotâmia e vice-versa.</p><p>A “Meia-Lua Fértil” abrange todo o mundo antigo da Bíblia. O povo de Israel, nos</p><p>seus primórdios, possui uma história que se relaciona com os povos vizinhos e antecessores</p><p>dele. As dificuldades de locomoção eram grandes, os recursos de viagem muito parcos e a</p><p>segurança das caravanas estava sempre ameaçada. Desta forma, as viagens se limitavam</p><p>ao caminho que, geração após geração, costumava-se fazer.</p><p>11UNIDADE I A Palavra Escrita</p><p>Carlos Frederico descreve bem esse ambiente:</p><p>A “Meia-Lua Fértil” era o caminho destes povos nômades ou seminômades</p><p>entre o Egito e a Mesopotâmia, compreendendo também a Pérsia. Nesta</p><p>região, os impérios se sucediam nas conquistas, no domínio e na influência</p><p>de uma cultura sobre a outra ao longo dos séculos. Por outro lado, antes</p><p>mesmo de o ser humano começar a cultivar a terra, o Egito e a Mesopotâmia</p><p>se constituíam em celeiros naturais, quer naquilo que a própria natureza</p><p>oferecia através da fertilidade do solo, quer através dos animais e peixes</p><p>que viviam nos rios e lagos formados pelo Nilo (Egito) e Tigre e Eufrates</p><p>(Mesopotâmia) (SCHLAEPFER, 2019, p. 15).</p><p>É dentro dessa circunscrição geográfica que encontramos os primeiros relatos</p><p>da criação, do dilúvio, das histórias de personagens importantes, de heróis invencíveis e</p><p>da presença da divindade como aliada às situações humanas, particularmente quanto ao</p><p>sofrimento e à dor (cf. Gn 1-11).</p><p>A caminhada dos patriarcas bíblicos também está dentro desse quadro: Nacor, pai</p><p>de Taré, vivia na Mesopotâmia (Gn 11,24). Taré se tornou o pai de Abraão e um dia decidiu</p><p>tomar o caminho para Canaã, mas ao chegar em Harã, estabeleceu-se ali (Gn 11,31).</p><p>Abraão, casado com Sara, recebeu uma visão de Deus que lhe pediu para ir para Canaã,</p><p>com sua mulher e seus servos, aos setenta e cinco anos de idade (Gn 12,1-9). Ao chegar</p><p>a Canaã, houve uma grande fome e, então, Abraão teve que ir até o Egito para procurar</p><p>alimentos e sobrevivência (Gn 12,10). Mais tarde, são os descendentes de Abraão que</p><p>retornam ao Egito para providenciar víveres com a família de Jacó e seus filhos (Gn 42-50).</p><p>No Egito inicia-se uma nova etapa do povo da Bíblia com o êxodo (Ex3, 1ss).</p><p>12UNIDADE I A Palavra Escrita</p><p>3. OS LIVROS DA BÍBLIA</p><p>A Bíblia pode ser descrita como a coleção de escritos reconhecidos como</p><p>inspirados; frequentemente, essa coleção também é chamada de Escrituras, Escritura</p><p>Sagrada, os Livros Sagrados e, especialmente, o Testamento. A palavra “Bíblia” veio até</p><p>nós do grego através do latim. A expressão grega ta biblia (“os livros”); no latim tardio, a</p><p>palavra tomada por empréstimo bíblia (plural neutro em grego) foi considerada como um</p><p>substantivo latino, feminino, singular, significando “o livro”. Por isso, para nós, a Bíblia é</p><p>o Livro por excelência (HARRINGTON, 1985, p. 09).</p><p>Embora haja um sentido verdadeiro em que a Bíblia pode ser considerada como</p><p>uma grande obra – a obra de um divino Autor – contudo, do ponto de vista humano, ela</p><p>não é um livro; não é mesmo o livro; é uma biblioteca ou, melhor ainda, é a literatura de um</p><p>povo, o povo escolhido, o povo de Deus. Esta é uma observação importante, um fato que</p><p>deve ser aceito de pronto, se quisermos ter uma compreensão adequada da Bíblia.</p><p>Observamos que a Escritura está dividida em duas partes: falamos do Antigo</p><p>Testamento e do Novo Testamento. A palavra “testamento” é uma tradução aproximada do</p><p>grego diatheke; indica uma característica fundamental da revelação, isto é, o pacto ou aliança</p><p>que Deus contraiu com um povo, a quem ele tinha escolhido, o povo de Israel. Essa aliança</p><p>(berith em hebraico), que foi renovada mais uma vez, era também um contrato, visto que o</p><p>povo também, por seu lado, aceitou certas condições, especialmente, a obrigação de ser fiel</p><p>a ele, o único Deus verdadeiro. O Antigo Testamento é a história desse povo à luz do Pacto,</p><p>história de grande infidelidade de sua parte – trazendo, inevitavelmente, merecido castigo em</p><p>sua sucessão – e de constante fidelidade da parte de Deus (HARRINGTON, 1985, p. 10).</p><p>13UNIDADE I A Palavra Escrita</p><p>O propósito de Deus, isto é, a redenção da humanidade, devia ser alcançado pelo</p><p>envio de seu Filho ao mundo. A vinda do Filho de Deus naturalmente marcou o começo</p><p>de uma nova era. Deus contraiu uma nova e final aliança, selada com o sangue de Cristo,</p><p>com um novo povo – contudo,</p><p>descendente diretamente do antigo – a Igreja. O Novo</p><p>Testamento relata o cumprimento do plano de Deus. Contudo, esse plano estava ali desde</p><p>o começo, pois os Testamentos, embora distintos, estão estreitamente ligados. O Antigo</p><p>Testamento conduz e é a preparação, a preparação de Deus, para o Novo. Na verdade, o</p><p>Antigo Testamento só pode ser totalmente compreendido à luz do seu cumprimento, que é</p><p>o Novo Testamento (HARRINGTON, 1985, p. 10).</p><p>3.1 Estrutura da Bíblia</p><p>Os judeus, muito sabidamente, fizeram uma divisão flexível de sua Bíblia; eles falavam</p><p>da Lei, dos Profetas e dos (outros) escritos. A Lei, na avaliação deles tinha o lugar de maior</p><p>destaque, consistia dos cinco livros de Moisés, o Pentateuco. Entre os profetas, eles catalogavam</p><p>não apenas os livros que nos classificamos como proféticos, mas também Josué, Juízes,</p><p>Samuel e Reis, chamados por eles de Profetas Anteriores. Significativamente, não colocavam</p><p>Daniel entre os Profetas (como fazemos), mas o punham na terceira divisão, os Escritos, que</p><p>agrupavam os livros restantes. A divisão hebraica tem muito a recomendá-la, especialmente o</p><p>fato de que (isto é particularmente verdadeiro com respeito aos Escritos) não procura ajustar os</p><p>vários livros dentro de predeterminadas categorias. Podemos indicá-la assim:</p><p>QUADRO 1 - ESTRUTURA DA BÍBLIA HEBRAICA</p><p>Fonte: (HARRINGTON, 1985, p. 11).</p><p>Desde o século XIII, os católicos dividem o Antigo Testamento em livros históricos,</p><p>didáticos e proféticos. A divisão fornece uma boa indicação do caráter geral dos diferentes</p><p>livros; mas não deve ser supervalorizada, porque, em certos casos, pode ser bem</p><p>equivocada. Contudo, será útil dar uma lista dos livros bíblicos de acordo com essa divisão.</p><p>A Lei (torah) O Pentateuco</p><p>Os Profetas (nebiim)</p><p>Anteriores: Josué a Reis</p><p>Posteriores: Isaías, Jeremias, Ezequiel e os 12</p><p>profetas menores.</p><p>Os Escritos (Kethubim)</p><p>1) Salmos, Provérbios, Jó – os “grandes”</p><p>escritos.</p><p>2) Cânticos dos Cânticos, Rute, Lamentações;</p><p>Eclesiastes</p><p>3) Daniel, Esdras, Neemias, 1 e 2 Crônicas</p><p>14UNIDADE I A Palavra Escrita</p><p>QUADRO 2 - ESTRUTURA DO ANTIGO TESTAMENTO FEITA PELOS CRISTÃOS NO SÉCULO XIII</p><p>Fonte: (HARRINGTON, 1985, p. 11).</p><p>Nas versões usadas pela Igreja Católica, muitos desses nomes comumente são</p><p>grafados de modo diferente, e o mesmo acontece com respeito à maioria de outros nomes</p><p>próprios. A razão disto é simples. Os nomes próprios são baseados na Vulgata, que, por sua</p><p>vez, adotou as formas gregas dos nomes como eles ocorrem na versão do Antigo Testamento</p><p>conhecida como Setenta (Septuaginta). Nessa matéria, a conformidade seria muito bem</p><p>recebida, e há um crescente movimento entre os católicos para aceitar as formas hebraicas.</p><p>O Novo Testamento é, algumas vezes, dividido com base no modelo do Antigo, em</p><p>livros históricos, didáticos e proféticos.</p><p>QUADRO 3 - ESTRUTURA DO NOVO TESTAMENTO</p><p>Fonte: (HARRINGTON, 1985, p. 12).</p><p>Históricos</p><p>O Pentateuco (Gênesis, Êxodo, Levítico,</p><p>Números, Deuteronômio)</p><p>O Pentateuco (Gênesis, Êxodo, Levítico,</p><p>Números, Deuteronômio);</p><p>Josué, Juízes, 1 e 2 Samuel, 1 e 2 Reis, 1 e</p><p>2 Crônicas, Esdras, Neemias, Tobias, Judite,</p><p>Ester, 1 e 2 Macabeus.</p><p>Didáticos (e poéticos)</p><p>Jó, Salmos, Provérbios, Eclesiastes (Coélet),</p><p>Cântico dos Cânticos, Sabedoria, Eclesiástico</p><p>(Sirácida).</p><p>Proféticos</p><p>Quatro profetas maiores:</p><p>Isaías, Jeremias (mais Lamentações e Baruc),</p><p>Ezequiel, Daniel.</p><p>Doze profetas menores:</p><p>Oséias, Joel, Amós, Abdias, Jonas, Miquéias,</p><p>Naum, Habacuc, Sofonias, Ageu, Zacarias,</p><p>Malaquias.</p><p>Históricos Os quatro Evangelhos, Atos dos Apóstolos.</p><p>Didáticos</p><p>Epístolas de São Paulo: Romanos, 1 e</p><p>2 Coríntios, Gálatas, Efésios, Filipenses,</p><p>Colossenses, 1 e 2 Tessalonicenses, 1 e 2</p><p>Timóteo, Tito, Filemon; a Epístola aos Hebreus;</p><p>as Epístolas Católicas: Tiago, 1 e 2 Pedro, 1, 2</p><p>e 3 João; Judas.</p><p>Profético O Apocalipse.</p><p>15UNIDADE I A Palavra Escrita</p><p>4. A FORMAÇÃO DA BÍBLIA</p><p>4.1 O Antigo Testamento</p><p>A formação do Antigo Testamento foi um longo processo. A história sagrada</p><p>começa com a escolha de Abraão feita por Deus em alguma data durante o século XIX</p><p>a.C; e as origens do Antigo Testamento, as tradições formadas em torno dos patriarcas,</p><p>remontam, em germe, a Abraão, o homem das promessas divinas, e a seus descendentes</p><p>imediatos. Contudo, foi com Moisés, o líder natural e o legislador, quem, no século XIII, de</p><p>uma variegada multidão de refugiados forjou uma nação, iniciou um poderoso movimento</p><p>religioso e deu o impulso para a grande obra literária que é a dádiva de Israel – e, em última</p><p>análise, de Deus – à humanidade (HARRINGTON, 1985, p. 13).</p><p>O Pentateuco traz a marca de Moisés, mas a obra, como nós a conhecemos, recebeu</p><p>sua forma final muitos séculos depois de Moisés: no século VI ou, mais provavelmente,</p><p>no século V a.C. A literatura profética teve início com Amós e Oséias no século VIII e foi</p><p>completada com Joel e Zacarias 9-14 no século IV a.C. Os livros históricos se estendem</p><p>de Josué (baseados em tradições que remontam ao século XIII a.C.) a 1 Macabeus, escrito</p><p>por volta do começo do século I a.C. O século VI a.C., que viu a forma final dos Provérbios</p><p>e o aparecimento de Jó, foi a época áurea da literatura sapiencial, mas o movimento</p><p>tinha começado sob Salomão no século X a.C., enquanto o livro da Sabedoria surgiu mal</p><p>começava a metade do século antes de Cristo. Isso é suficiente – mesmo quando nada</p><p>tenha sido dito da gênese complexa de cada livro – para assinalar que a formação do Antigo</p><p>Testamento foi lenta e complexa.</p><p>16UNIDADE I A Palavra Escrita</p><p>Devemos estar conscientes de que a maior parte dos livros do Antigo Testamento</p><p>é obra de muitas mãos, obra que se desenvolveu através de um longo período, talvez</p><p>séculos. Todos aqueles que colaboraram na produção de cada livro, quer tenham escrito a</p><p>substância dele, quer tenham simplesmente acrescentado alguns detalhes, foram inspirados.</p><p>A maioria deles não tinha consciência de estar sendo movidos por Deus; daqui em diante,</p><p>nós também consideraremos apenas o lado humano da Bíblia e a consideraremos como</p><p>um empreendimento coletivo, a obra de todo um povo que depositou na Bíblia, através dos</p><p>séculos, os tesouros de sua tradição. Ela é a literatura de um povo, entrelaçada na história</p><p>desse povo. Esboçaremos essa atividade literária desde os seus começos e a colocaremos</p><p>contra o seu fundo; desta maneira, obteremos uma visão do Antigo Testamento que facilitará</p><p>grandemente a nossa compreensão dele (HARRINGTON, 1985, p. 13).</p><p>Muito do Antigo Testamento está baseado na tradição oral. A parte que vem no</p><p>início de nossa Bíblia – do Pentateuco a Samuel – se baseia em muitas tradições orais</p><p>centradas principalmente em torno dos patriarcas, Moisés, Josué, os Juízes, Samuel, Davi</p><p>e, posteriormente, numa seção dos Reis, Elias e Eliseu. Essas tradições, mesmo antes</p><p>que fossem colocadas na forma escrita, formavam uma verdadeira literatura. “Literatura” é,</p><p>primariamente, uma forma de arte; em certo sentido, é acidental que a maior parte da literatura</p><p>tenha recebido a forma escrita, porque se trata principalmente de palavras e de linguagem</p><p>(quer escritas quer não). Embora os livros bíblicos, como os conhecemos, tenham se formado</p><p>numa data relativamente tardia, isso assinala apenas o registro por escrito das tradições</p><p>que tinham começado, e em muitos casos tinha alcançado completo desenvolvimento,</p><p>muitos séculos antes. Frequentemente, a data de um livro bíblico não é indicação da data do</p><p>material contido no livro; e, quando falamos de “tradições”, não excluímos a possibilidade –</p><p>na verdade, a certeza – de que muitas delas podem ter sido redigidas bem cedo. De fato, a</p><p>atividade literária tardia em Israel estava relacionada, em larga medida, com a reedição de</p><p>antigos escritos. Então, não ignorarmos ou subestimamos, de maneira alguma, a contribuição</p><p>dos séculos anteriores, quando estabelecemos o começo da literatura bíblica, estritamente</p><p>compreendida, no reinado de Salomão (HARRINGTON,</p><p>1985, p. 14).</p><p>Em face da agressão filisteia, que, na metade do século XI tinha derrotado a</p><p>anfictionia israelita (isto é, a confederação dos doze clãs unidos em aliança com Iahweh),</p><p>Israel fez a sua primeira proposta para organizar-se como monarquia. A despeito da</p><p>promessa inicial, Saul fracassou, mas a ideia da monarquia não foi abandonada. Foi feito</p><p>um novo começo com Davi, que teve êxito em estabelecer um reino e mesmo um modesto</p><p>império; tal situação foi mantida e explorada por seu filho, Salomão.</p><p>17UNIDADE I A Palavra Escrita</p><p>A fim de conduzir a administração do reino e império, surgiu uma classe de escribas,</p><p>homens cultos. Os anais reais foram guardados e os assuntos do Estado registrados e arquivados.</p><p>Esse expediente forneceu a matéria-prima para os escritos de natureza histórica. Muito cedo,</p><p>no tranquilo reinado de Salomão (cerca de 970-931 a.C.) um escritor de dotes excepcionais</p><p>produziu a primeira obra do Antigo Testamento, a história da corte de Davi: 2Sm 9-20 e 1Rs</p><p>1-2. Um escritor contemporâneo, de não menor capacidade literária e dotado de uma mente</p><p>mais aguda, operando antigas tradições, escreveu uma teologia da história que forma um dos</p><p>quatro principais fios do Pentateuco. Davi (cerca de 1010-970 a.C), cuja habilidade poética é</p><p>abundantemente testemunhada, foi o autor de alguns dos Salmos. Estes foram o núcleo do</p><p>Saltério. A obra toda, que recebeu dele o seu impulso original, foi tradicionalmente atribuída</p><p>a ele. Quase da mesma maneira, a literatura sapiencial, que se desenvolveu nos séculos</p><p>seguintes, foi atribuída a Salomão, o proverbial homem sábio, que começara o movimento entre</p><p>os hebreus ou, pelo menos, forneceu a atmosfera para o seu início.</p><p>Depois da morte de Salomão, o reino, unido por Davi, dividiu-se e Israel (ou o Reino</p><p>do Norte) e Judá, dali em diante, seguiram rumos separados. Uma cisma religiosa seguiu a</p><p>divisão política, e só Judá permaneceu fiel, não apenas à dinastia de Davi, mas também a</p><p>uma forma mais pura de religião autêntica. Em Israel, um gole de estado seguiu-se a outro,</p><p>e a adoração de Lahweh – nos santuários cismáticos de Betel e Dã – foi muito afetada por</p><p>influências estrangeiras. O livro dos Reis nos dá a história religiosa paralela dos dois reinos.</p><p>Foi em Israel que Elias e Eliseu, os defensores de Lahweh, apareceram; em torno</p><p>deles, desenvolveram-se as tradições que encontramos em 1RS 17-2Rs 1 (Elias) e em</p><p>2Rs 2-13 (Eliseu). Foi em Israel também, durante o reinado de Jeroboão II (783-743 a.C.)</p><p>que os primeiros dos assim chamados profetas “escritores”, Amós e Oséias, levaram a</p><p>cabo sua missão, ainda que Amós não fosse judaíta. Por volta da mesma época, outro fio</p><p>da tradição do Pentateuco, paralelo à tradição javista que se desenvolveu em Judá, tomou</p><p>forma definida. Essa tradição do norte – em sua forma final obra do Eloísta, como agora</p><p>nomeamos esse autor – confrontada com os abusos na adoração de Lahweh correntes</p><p>em Israel, foi compreensivelmente mais conservadora que a outra, colocando como seu</p><p>ideal a religião do êxodo e do deserto. Logo depois de Amós e Oséias, os profetas Isaías</p><p>e Miquéias surgiram em Judá. Contudo, apenas a primeira parte do livro de Isaías (isto é,</p><p>os capítulos 1-39) – e não ele todo – pode ser atribuída a esse grande profeta do século</p><p>VIII. O próprio Isaías nos fala acerca dos discípulos que se reuniram em torno de si</p><p>(8,16). Esse é que publicaram as profecias dele; os escritores inspirados que, mais tarde,</p><p>fizeram acréscimos à obra de seu mestre vieram daquela mesma escola, que continuou</p><p>através dos séculos (HARRINGTON, 1985, p. 15).</p><p>18UNIDADE I A Palavra Escrita</p><p>Entrementes, o terrível flagelo da Assíria tinha começado a fazer-se sentir e os</p><p>dias do Reino do Norte estavam contados. Samaria, sua capital, sucumbiu diante de Sar-</p><p>gão II em 721 a.C.; a população da terra, de acordo com a política assíria, foi deportada;</p><p>e Israel, como uma entidade separada, desapareceu da história. Antes da tragédia final,</p><p>alguns refugiados, homens religiosos que tinha interpretado a situação, fugiram para Judá,</p><p>trazendo consigo suas tradições sagradas. Como resultado disso, sob Ezequias (716-687</p><p>a.C.), foram combinados os dois mais antigos fios do Pentateuco (as tradições do Javista</p><p>e do Eloísta). Outra herança do norte, levada para Jerusalém na mesma época, foi a parte</p><p>legislativa do Deuteronômio (o código deuteronômico, Dt 12-26). Este mais tarde iria ter</p><p>um efeito poderoso e de longo alcance.</p><p>O grande poder que tinha destruído Israel ameaçava Judá também, mas este,</p><p>graças em grande medida aos esforços de Isaías, conseguiu sobreviver. Um século mais</p><p>tarde, a Assíria, embora aparentemente em seu apogeu, sucumbiu e desapareceu com</p><p>dramática rapidez. No curto período que cobriu o declínio da Assíria, antes que seu suces-</p><p>sor, o império neo-babilônico pudesse afirmar-se, a Judá foi concedida uma breve trégua</p><p>e o jovem e piedoso rei, Josias (640-609 a.C.), pode começar uma reforma religiosa. Uma</p><p>das primeiras obras a serem empreendidas foi a restauração do Templo – que tinha sido</p><p>melancolicamente negligenciada – e durante o trabalho de renovação o “livro da Lei” foi</p><p>descoberto (2Rs 22,8-10). Tratava-se do código deuteronômico que tinha sido levado para</p><p>Jerusalém pelos refugiados de Israel e eventualmente esquecido. Providencialmente vindo</p><p>agora à luz outra vez, ele se tornou a constituição da reforma e foi publicado na estrutura</p><p>de um discurso de Moisés; essa primeira edição corresponde aos capítulos 5-28 do nosso</p><p>Deuteronômio. Mais tarde, ela foi reeditada durante o Exílio, quando os outros discursos de</p><p>Moisés foram acrescentados, um no começo e o outro no fim (HARRINGTON, 1985, p. 16).</p><p>O Deuteronômio (ou, mais precisamente, a primeira edição dele) deu o impulso</p><p>para uma obra literária muito importante. A perspectiva deuteronômica era profundamente</p><p>religiosa e notável em seu singular objetivo: a nação permanecia ou caía respectivamente</p><p>por sua fidelidade ou infidelidade a Lahweh e à sua Lei. A história do Povo Escolhido foi</p><p>medida por esse padrão e o resultado forneceu a resposta a um embaraçante problema.</p><p>O problema era este: de um lado, estavam as promessas divinas, que não podiam</p><p>falhar, e, de outro lado, uma catástrofe após a outra tinham sucedido à nação – Israel</p><p>tinha desaparecido e Judá mal tinha sobrevivido. Os deuteronomistas (como podemos</p><p>convencionalmente designá-los) viram muito claramente que todos aqueles males tinham</p><p>sobrevindo a eles, porque o povo tinha sido constantemente infiel ao seu Deus; esta foi a</p><p>lição evidente que tiraram de sua história.</p><p>19UNIDADE I A Palavra Escrita</p><p>Esses homens começaram a editar as mais antigas tradições históricas, no processo</p><p>de dar àquela história a especial perspectiva religiosa deles. Contudo, eles tiveram o</p><p>cuidado de não fazer violência ao material, atingindo o seu objetivo ou por meio de modestas</p><p>inserções ou por fornecer uma estrutura característica. Por exemplo, no Livro dos Juízes,</p><p>o ciclo de infidelidade, punição, arrependimento e libertação, no qual a história de cada um</p><p>dos grandes Juízes é colocada, é obra desses editores. Durante o reinado de Josias, os</p><p>livros de Josué-Juízes-Samuel-Reis foram editados, com o Deuteronômio (capítulos 5-28)</p><p>como introdução. 2Rs e Dt foram completados durante o Exílio (587-538 a.C.) e, no começo</p><p>desse período, a história de Josué-Reis foi editada pela segunda (e última) vez. Os profetas</p><p>Sofonias e Naum surgiram durante o reinado de Josias; Habacuc surgiu um pouco mais</p><p>tarde que Naum: ambos foram contemporâneos de Jeremias (HARRINGTON, 1985, p. 17).</p><p>Depois da morte prematura de Josias (609 a.C.), o Reino de Judá caminhou</p><p>rapidamente para a destruição; seus últimos e trágicos anos estão refletidos na vida e pessoa</p><p>de Jeremias. A pregação deste grande profeta não foi considerada – exceto na medida em</p><p>que ele foi perseguido por causa dela – mas, depois da sua morte, ela exerceu</p><p>uma profunda</p><p>influência. Sua mensagem foi escrita e publicada por seu fiel discípulo, Baruc. Em 587 a.C.,</p><p>Jerusalém caiu diante de Nabucodonosor, como Jeremias tinha enfaticamente declarado,</p><p>e seus habitantes foram deportados para a Babilônia. Isto deve ter parecido o fim, mas no</p><p>insondável desígnio de Deus o Exílio devia ser o cadinho no qual a religião de Lahweh seria</p><p>purificada de toda a escória; ele marca, também, um momento decisivo na formação da Bíblia.</p><p>Lado a lado com o movimento deuteronômico, havia outro, do qual a Lei de</p><p>Santidade (Lv 17-26) é representante. Esse movimento foi inspirado pela perspectiva da</p><p>classe sacerdotal, que insistia na santidade de Lahweh e que pintava a nação como um</p><p>povo sacerdotal, cuja vida toda era uma liturgia. Ezequiel, que tinha sido transportado para a</p><p>Babilônia com outros judaítas, em algum tempo antes da queda de Jerusalém, provavelmente</p><p>em 598 a.C., foi um produto dessa escola, ao passo que seu contemporâneo, Jeremias,</p><p>estava na linha do Deuteronômio. Durante o exílio, os sacerdotes, agora separados do</p><p>Templo e de seu culto, voltaram-se para as antigas tradições, especialmente para a</p><p>legislação mosaica, e as editaram e apresentaram com um ponto claro de vista cúltico.</p><p>Quase toda a legislação encontrada de Gênesis a Números pertence a essa tradição,</p><p>embora inclua muita narrativa além dela; e, depois do Exílio, foram os sacerdotes que</p><p>deram ao Pentateuco a sua forma atual (HARRINGTON, 1985, p. 18).</p><p>Nem todos os judaítas tinham sido deportados; uns poucos permaneceram e, de</p><p>certo tempo em tempo, eles iam chorar diante das ruínas do Templo.</p><p>20UNIDADE I A Palavra Escrita</p><p>Foi nessas circunstâncias que se formou o livro das Lamentações. É universalmen-</p><p>te admitido que esse livro não é obra de Jeremias, embora o escrito seja atribuído a ele pela</p><p>Vulgata – mas não na Bíblia Hebraica. Baruc, colocado imediatamente após Lamentações</p><p>na Vulgata, é de data incerta. Em Babilônia os exilados foram confortados por um profeta</p><p>anônimo, um tardio, mas autêntico discípulo de Isaías; sua obra, contida em Is 40-55,</p><p>foi composta nos anos anteriores a 538 a.C. (quando Ciro, o Grande, tendo conquistado</p><p>Babilônia, permitiu que os judeus retornassem à Palestina). Esses capítulos marcam um</p><p>clímax teológico (e poético) do Antigo Testamento. Logo depois do retorno a Jerusalém, os</p><p>capítulos 55-66 foram acrescentados a Isaías por outros membros da escola isaiana. Não</p><p>era isso o fim, porque, no século V, os capítulos 34-35 e 24-25, finalmente, completaram a</p><p>obra que tinha começado no século VIII. Contudo, com o Segundo Isaías (como nomeamos</p><p>o desconhecido autor de Is 40-55), a profecia tinha atingido o seu clímax; pouco a pouco,</p><p>ela declinaria, para desaparecer no século IV, até o tempo do cumprimento.</p><p>Os primeiros exilados retornaram da Babilônia para Jerusalém em 538 a.C.; final-</p><p>mente, o Templo e a cidade foram reconstruídos. A obra de restauração foi encorajada e</p><p>apoiada pelos profetas Ageu e Zacarias (apenas Zc 1-8 pertencem a este período). No</p><p>começo deste período - o mais tardar no começo do século V – a Torah foi finalmente</p><p>completada. O Deuteronômio, porque completava a história de Moisés, foi separada da</p><p>grande obra histórica (Josué-Reis) e unido aos primeiros quatro livros da Bíblia. Assim se</p><p>formou o Pentateuco. O pequeno Livro de Rute, provavelmente foi escrito logo depois do</p><p>retorno (embora possa ter aparecido, possivelmente, antes do Exílio). Os últimos profetas</p><p>apareceram nos séculos V e IV: o autor ou autores de Is 34-35; 24-27; Malaquias; Abdias;</p><p>Joel e o autor de Zc 9-14 (HARRINGTON, 1985, p. 19).</p><p>Nesse tempo também, especialmente no século V, floresceu outro tipo de literatura:</p><p>a literatura sapiencial. Contudo, não era absolutamente novo, porque já sob Salomão uma</p><p>perspectiva prática encontrou expressão em ditos e máximas de orientação para o dia a dia.</p><p>Pelo termo ‘sabedoria’ deve-se entender não apenas um conhecimento enciclopédico de</p><p>todas as coisas sob o sol, mas também a concisa definição de todas as formas de conduta</p><p>humana, particularmente a arte de ser perfeito cavalheiro. Essa arte, tão indispensável para</p><p>se atingir uma carreira bem-sucedida, tinha sido praticada durante séculos no Egito. Em</p><p>Israel, contudo, essa sabedoria prática era sempre inspirada, pelo menos em certa medida,</p><p>pela fé em Lahweh, tendência muito marcante depois do Exílio. No século V, o livro dos</p><p>Provérbios (parte do qual remontam ao tempo de Salomão) tomou forma final e, um pouco</p><p>depois, surgiu a obra-prima poética da Bíblia: Jó.</p><p>21UNIDADE I A Palavra Escrita</p><p>O livro de Jó não é absolutamente a única obra poética da Bíblia. Em primeiro</p><p>lugar, há os Salmos: sem dúvida, Davi compôs alguns deles e o seu número continuou</p><p>a aumentar ininterruptamente. A construção do Segundo Templo (depois da volta do</p><p>Exílio) e o restabelecimento do culto do Templo deram um novo impulso à composição</p><p>desses poemas litúrgicos e à adaptação dos antigos Salmos. Pelo fim do século V, é</p><p>muito provável que o Saltério, como o conhecemos, estivesse completo. Naquele mesmo</p><p>século, apareceu o Cântico dos Cânticos.</p><p>A redação da história não terminou como Exílio, e a restauração, dominada pela</p><p>figura de Esdras e Neemias, teve também seu historiador. Os livros de 1, 2 Crônicas,</p><p>Esdras e Neemias, (quatro livros em nossa Bíblia) realmente formam um único volume,</p><p>obra de um único autor, a quem convencionamos chamar de Cronista. Na primeira parte</p><p>de seu escrito (1, 2Cr), o autor segue, em larga medida, os livros de Samuel e Reis. Na</p><p>segunda parte, ele depende das memórias de Esdras e Neemias e de outros documentos</p><p>do mesmo período. As diferenças entre 1, 2 Cr e Sm-Rs são notáveis, porque, enquanto</p><p>as últimas constituem uma história religiosa, o Cronista escreveu uma teologia da história.</p><p>Como os deuteronomistas, ele extraiu uma mensagem religiosa da história de seu povo;</p><p>mas ele usa o material muito mais livremente do que aqueles. ele escreveu para os seus</p><p>contemporâneos e mostrou-lhes, uma vez mais, que a existência da nação dependia de</p><p>sua fidelidade ao seu Deus; ele teria seu povo como uma comunidade santa na qual as</p><p>promessas feitas a Davi podiam, por fim, ser cumpridas. A obra foi escrita no século IV,</p><p>antes do advento de Alexandre, o Grande. Um pouco mais cedo, nos dias de Esdras,</p><p>e em oposição a uma estreita perspectiva nacionalista, o autor de Jonas, um brilhante</p><p>escritor satírico, acentuou a universal providência de Deus. E, por volta do mesmo tempo,</p><p>o livro de Tobias, em forma não diferente de uma novela moderna, exaltou a providência</p><p>diária de Deus (HARRINGTON, 1985, p. 20).</p><p>Em 333 a.C., com a conquista da Síria e Palestina por Alexandre, começou, em</p><p>Judá, o período grego. Para os judeus ou pelo menos para aqueles que eram fiéis a suas</p><p>tradições, isso significava não a assimilação da cultura grega, como ocorreu em outros</p><p>tempos, mas resistência ao modo grego de vida. Uma indicação disso talvez possa ser</p><p>vista no surgimento de uma forma literária tipicamente hebraica, o midrash1 . Essa forma já</p><p>havia influenciado a obra do Cronista, mas é no começo do período grego que encontramos</p><p>o primeiro midrash bíblico desenvolvido. Nesse período também (por volta da metade do</p><p>século III), podemos datar o Qoheleth (Eclesiastes) e, algum tempo depois, por volta de 180</p><p>a.C., outro escritor de literatura sapiencial Ben Sirac, escreveu o Sirácida (Eclesiástico).</p><p>1Midrash é um método de exegese que se desenvolveu tardiamente no Judaísmo.</p><p>22UNIDADE I A Palavra Escrita</p><p>Logo os judeus tiveram de enfrentar uma grande crise. Quando Antíoco (175-163</p><p>a.C.) foi elevado ao trono da Síria, determinou que seus súditos judeus fossem forçados</p><p>a adotar o modo grego de vida. A consequente perseguição religiosa provocou a revolta</p><p>dos Macabeus, que começou em 167 a.C. Quase no fim da primeira parte da luta (167-164</p><p>a.C.), o autor de Daniel publicou sua obra a fim de</p><p>encorajar seus compatriotas. A primeira</p><p>parte da obra (Dn 1-6) é um midraxe; e em Dn 7-12 encontramos um exemplo perfeito de</p><p>uma forma literária judaica então em voga: o apocalipse. Daniel apareceu antes de 164</p><p>a.C. (numa data mais tardia, o livro foi suplementado pela adição de 3,24-90 e os capítulos</p><p>13-14). O livro de Esdras foi escrito um pouco depois de Daniel.</p><p>As últimas obras históricas da Bíblia apreendem o espírito dos agitados tempos de</p><p>Macabeus. Por volta do ano 100 a.C., 1 Macabeus foi publicado. 2 Macabeus composto em</p><p>grego e adaptado da obra de um certo Jason de Cirene, surgiu um pouco mais cedo, por</p><p>volta de 120 a.C. Ele cobre muito do mesmo terreno de 1 Mc e, como este, é um escrito de</p><p>natureza histórica, mas num estilo de oratória e tende a usar detalhes com certa liberdade.</p><p>O livro de Judite, um midraxe, apareceu no começo do século I.</p><p>Se os judeus palestinenses resistiram efetivamente à helenização, alguns judeus</p><p>do importante centro de Alexandria assimilaram com sucesso o pensamento grego, sem</p><p>sacrificar a herança judaica. A última obra do Antigo Testamento, o livro da Sabedoria, foi</p><p>escrita por um desses. Contudo, embora seja um produto da escola alexandrina e tenha</p><p>sido escrito em grego, a influência grega não deveria ser exagerada; seu autor não foi</p><p>filósofo, mas um autêntico “homem sábio” de Israel (HARRINGTON, 1985, p. 21).</p><p>4.2 O Novo Testamento</p><p>O Novo Testamento difere do Antigo em muitos aspectos importantes, mas, como o</p><p>Antigo Testamento, está estreitamente ligado à vida e desenvolvimento de um povo, o novo</p><p>povo de Deus: a Igreja Primitiva. Semelhantemente, embora todo o Novo Testamento tenha</p><p>se formado dentro do século I da era cristã, contudo, sua gênese também é complexa. E</p><p>exatamente como os judeus consideram os cinco livros de Moisés, a Lei, como a primeira</p><p>e mais importante parte do Antigo Testamento, também os cristãos consideram os quatro</p><p>Evangelhos como o centro do Novo Testamento. Eles têm a sua origem na pregação</p><p>apostólica, mas os primeiros três Evangelhos, como nós os conhecemos, não apareceram</p><p>antes de uma geração ou mais depois da ressurreição: Marcos é datado de 64-65 d.C. e</p><p>Mateus e Lucas de um tempo imediatamente antes (ou, talvez, logo depois) de 70 d.C. -</p><p>data da destruição de Jerusalém pelos romanos. Lucas escreveu os Atos dos Apóstolos</p><p>logo depois de seu Evangelho (HARRINGTON, 1985, p. 22).</p><p>23UNIDADE I A Palavra Escrita</p><p>No ínterim, entre os anos 51 e 67, Paulo tinha escrito suas epístolas, ou cartas,</p><p>a várias igrejas, frequentemente tratando de problemas especiais. Nessas epístolas,</p><p>encontramos o começo e o primeiro desenvolvimento de nossa teologia especificamente</p><p>cristã; lendo nas entrelinhas, aprendemos acerca da vida cristã e das dificuldades que a</p><p>Igreja primitiva enfrentou. A epístola aos Hebreus foi escrita um pouco antes de 70 d.C. por</p><p>um discípulo de Paulo. Tiago apareceu no ano 50 d.C. ou, mais provavelmente, em 58 d.C.;</p><p>Pedro escreveu sua epístola (1Pd) por volta de 64 d.C. Das outras epístolas “católicas”</p><p>(assim chamadas porque, em geral, elas são endereçadas aos cristãos em geral), Judas e</p><p>2 Pd foram escritas na década de 70/80 d.C. e 2, 3 Jo, seguidas por 1Jo, foram escritas na</p><p>última década do século. O Apocalipse, livro que não é tão misterioso quanto parece, em</p><p>sua forma final, data de cerca do ano 95 d.C. O século mais cheio de eventos da história</p><p>tinha finalizado aproximadamente quando o Quarto Evangelho foi publicado.</p><p>Tudo o que tem sido dito acerca da formação de ambos os Testamentos não é, de</p><p>forma alguma, irrelevante, mas tem uma dependência prática de nosso estudo da inspiração.</p><p>Não é sem importância (especialmente no tocante ao Antigo Testamento) o não podermos</p><p>nomear os autores da maioria dos livros; se o problema fosse simplesmente esse, não</p><p>nos atrapalharia, porque podemos dizer que o eventual autor – quem quer ele possa ter</p><p>sido – era inspirado. Contudo, na prática, raramente podemos indicar um único indivíduo</p><p>como autor de um livro todo. Assinalamos, por exemplo, que Isaías contém material que se</p><p>estende do século VIII ao século V. nossa noção de inspiração deve ser bastante flexível</p><p>para se ajustar a essa situação e outras semelhantes.</p><p>Deve ficar bem claro por ora que o Antigo Testamento é o resultado de um</p><p>esforço coletivo. O mesmo é proporcionalmente verdadeiro acerca do Novo Testamento,</p><p>especialmente dos Evangelhos. A obra de um evangelista não era uma responsabilidade</p><p>privada; na realidade, ele era o último liame de uma cadeia. O Evangelho, construído sobre</p><p>as obras e palavras de Cristo, existiu primeiro na Igreja; e o evangelista, embora ele próprio</p><p>diretamente inspirado por Deus, era também o porta-voz de uma Igreja guiada pelo Espírito</p><p>de Deus. Assim, o Novo Testamento, não menos que o Antigo, testemunha a verdade de</p><p>que a palavra escrita de Deus, como a sua Palavra Encarnada, veio serenamente até</p><p>nós, crescendo e desenvolvendo-se até o momento de sua manifestação aos homens. Os</p><p>escritores sagrados eram movidos pelo Espírito de maneira especial, mas a longa preparação</p><p>que seus labores coroaram foi parte do plano salvífico de Deus, de sua solicitude por seu</p><p>Povo Escolhido, o antigo e o novo Israel (HARRINGTON, 1985, p. 23).</p><p>24UNIDADE I A Palavra Escrita</p><p>SAIBA MAIS</p><p>A diferença entre protestantes e católicos, no que se refere à Bíblia, surgiu no século</p><p>XVI com a reforma luterana. Lutero, no intuito de garantir um retorno às fontes mais</p><p>antigas e originais da religião, resolveu substituir a Bíblia cristã em voga, cuja tradução</p><p>era baseada na versão latina de São Jerônimo, feita no século IV, mais conhecida como</p><p>Vulgata, pela versão hebraica da Bíblia, considerada por ele mais original e autêntica. A</p><p>Vulgata tinha como base duas versões: a hebraica e a grega, esta por sua vez, traduzida</p><p>do hebraico para o grego no século III a.C. Essa famosa tradução ficou conhecida como</p><p>Septuaginta, assim chamada por ser a Bíblia que a tradição considerou ter sido traduzida</p><p>por setenta anciãos judeus reunidos em Alexandria. Essa versão grega foi de fato a</p><p>Bíblia utilizada pelos judeus da diáspora e mais tarde tornou-se a versão que serviu</p><p>de base para a composição da maior parte dos livros do Antigo Testamento (alguns</p><p>preferem chamar de Primeiro Testamento, por questões ecumênicas), além de ser a</p><p>Bíblia usada pelos primeiros cristãos de língua grega.</p><p>Fonte: LARA, Valter Luiz. A Bíblia e o desafio da interpretação sociológica. São Paulo: Paulus, 2009, p. 26.</p><p>SAIBA MAIS</p><p>Nenhum sentimento positivo ou negativo em relação à Bíblia está imune dos históricos</p><p>mal-entendidos que herdamos da sociedade e da cultura. Um deles é opor Bíblia e ciência</p><p>e outro é considerá-la simplesmente como objeto de propriedade exclusiva das igrejas.</p><p>Fonte: O Autor (2022).</p><p>25UNIDADE I A Palavra Escrita</p><p>CONSIDERAÇÕES FINAIS</p><p>Prezado Acadêmico(a)!</p><p>Chegamos ao final de nossa primeira unidade. Espero que ela tenha ajudado a</p><p>apresentar alguns elementos que nos ajudarão a entender mais as Sagradas Escrituras,</p><p>construindo nossos conhecimentos bíblicos.</p><p>Foi importante estudar alguns elementos iniciais do mundo bíblico e do processo de</p><p>estruturação dessa obra que tem despertado tanto interesse e profunda transformação na</p><p>vida de quem a estuda, independente de qual seja a intenção que tenha ao estudá-la. Mas</p><p>lembre-se que nunca queremos esgotar o assunto. Mas despertar o interesse e a busca por</p><p>novos conhecimentos.</p><p>Espero que você continue animado em nosso estudo. Até a próxima unidade.</p><p>Grande abraço.</p><p>26UNIDADE I A Palavra Escrita</p><p>MATERIAL COMPLEMENTAR</p><p>LIVRO</p><p>Título: Introdução às Sagradas Escrituras Católicas</p><p>Autor: Cristiane Aleixo Simões.</p><p>Editora: Contentus.</p><p>Sinopse: Este livro trata de questões específicas do estudo da</p><p>Bíblia, seu contexto, geografia do mundo bíblico, formação do seu</p><p>povo e a experiência de um Deus único. Desenvolve discussões</p><p>sobre a influência de determinadas</p><p>culturas, autoria e linguagem</p><p>dos textos. Reflete também acerca de diferentes questões sobre</p><p>a tradição, sua importância e papel em diferentes contextos. A</p><p>obra também promove um pensamento sobre a leitura e releitura</p><p>bíblica, historicamente e nos dias atuais.</p><p>FILME/VÍDEO</p><p>Título: Lutero</p><p>Ano: 2003.</p><p>Sinopse: Retrata a vida de Martim Lutero, que desafiou todas as</p><p>autoridades políticas e religiosas de seu tempo, pois acreditava que</p><p>algumas atividades praticadas pela Igreja Católica eram imorais.</p><p>O filme também evidencia conflitos religiosos que permanecem</p><p>atuais até os dias de hoje.</p><p>27</p><p>Plano de Estudo:</p><p>● Protocanônicos, Deuterocanônicos e Apócrifos;</p><p>● A Formação do Cânon Bíblico;</p><p>● Dois testamentos e um livro único: a Bíblia;</p><p>● O cânon das Escrituras: o sentido de um fato;</p><p>● A forma canônica.</p><p>Objetivos da Aprendizagem:</p><p>● Saber o significado do cânon bíblico;</p><p>● Entender um pouco de seu processo de formação;</p><p>● Conhecer a importância de se ter um cânon no processo</p><p>de definição das Sagradas Escrituras.</p><p>UNIDADE II</p><p>O Cânon das Escrituras</p><p>Professor Me. Flávio Donizete Batista</p><p>28UNIDADE I A Palavra Escrita 28UNIDADE II O Cânon das Escrituras</p><p>INTRODUÇÃO</p><p>Olá, Prezado Acadêmico. Olá, Prezada Acadêmica.</p><p>Vamos dar prosseguimento ao nosso estudo de Introdução às Sagradas Escrituras.</p><p>Esperamos que sua experiência de aprendizagem esteja sendo válida, de maneira a</p><p>conhecer um pouco mais da Bíblia e de sua importância no estudo teológico.</p><p>Nesta unidade, vamos estudar o Cânon Bíblico. Vamos saber sobre seu significado</p><p>e seu processo de definição. Trata-se de um tema importante, pois é necessário saber</p><p>quais os critérios usados para chegar à lista de livros que consideramos canônicos hoje,</p><p>entendendo um pouco como tudo aconteceu.</p><p>Estudaremos a definição do cânon no Antigo Testamento e no Novo Testamento,</p><p>mostrando como o processo foi decisivo para que tivéssemos hoje uma coleção de livros</p><p>que não são considerados quaisquer livros, mas como aqueles que fazer parte de um grupo</p><p>especial: o de inspirados pelo próprio Deus.</p><p>Um excelente estudo para todos.</p><p>Grande abraço.</p><p>29UNIDADE I A Palavra Escrita 29UNIDADE II O Cânon das Escrituras</p><p>1. PROTOCANÔNICOS, DEUTEROCANÔNICOS E APÓCRIFOS</p><p>O termo grego kanon significava originalmente uma “vara de medir” e, mais tarde,</p><p>num sentido derivado, uma “regra” ou “norma”. Desde o século II, recebe o significado de</p><p>“norma de fé”. A partir do século IV, o adjetivo “canônico” é aplicado aos livros bíblicos,</p><p>enquanto o termo “cânon” inicia a ser utilizado na Igreja Latina no sentido de catálogo</p><p>dos livros bíblicos reconhecidos. Portanto, o termo “cânon” aplicado à Bíblia significa</p><p>primeiramente norma de fé e em sentido derivado o elenco dos livros bíblicos que contêm</p><p>essa norma de fé (PRIOTTO, 2019, p. 30).</p><p>Há também o termo canonicidade, que significa que um livro inspirado, destinado</p><p>à Igreja, foi recebido como tal por ela. Embora todos os livros canônicos sejam inspirados</p><p>e nenhum livro inspirado exista fora do cânon, contudo, as noções de canonicidade e</p><p>inspiração não são as mesmas. Os livros são inspirados porque Deus é seu autor; eles são</p><p>canônicos porque a Igreja os reconheceu e os admitiu como inspirados, pois só a Igreja, por</p><p>meio da revelação, pode reconhecer o fato sobrenatural da inspiração. O reconhecimento</p><p>pela Igreja não acrescenta nada à inspiração de um livro, mas reveste o livro de uma</p><p>autoridade absoluta do ponto de vista da fé e, ao mesmo tempo, é o sinal e garantia da</p><p>inspiração (HARRINGTON, 1985, p. 51).</p><p>A determinação dos livros canônicos não aconteceu de maneira fácil e automática,</p><p>mas exigiu uma longa caminhada e, por vezes, difícil; a terminologia é variada.</p><p>30UNIDADE I A Palavra Escrita 30UNIDADE II O Cânon das Escrituras</p><p>Quando comparamos as versões católicas e protestantes do Antigo Testamento,</p><p>verificamos que as últimas enumeram 39 livros – como a Bíblia hebraica – enquanto as</p><p>católicas aceitam 45 livros. Priotto (2019) lembra que alguns livros foram reconhecidos</p><p>normativos desde o início (por exemplo, os cinco livros do Pentateuco ou os Evangelhos);</p><p>daí a denominação de “protocanônicos” para os livros bíblicos sempre e sem discussão</p><p>reconhecidos como normativos. Ao invés, são denominados “deuterocanônicos” os livros</p><p>bíblicos cuja canonicidade foi objeto de contestação e reconhecida mais tarde. Os livros</p><p>deuterocanônicos do Antigo Testamento são sete: Tobias, Judite, Baruc, Sabedoria,</p><p>Eclesiástico, 1-2 Macabeus; a eles acrescentam-se algumas seções escritas em grego do</p><p>Livro de Daniel (3,24-90; 13-14) e do livro de Ester (1,1a-r; 3,13a-g; 4,17a-z; 5,1a-f.2a-b;</p><p>8,12a-x; 10,3a-k). Os livros deuterocanônicos do Novo Testamento são Hebreus, Tiago, 2</p><p>Pedro, 2-3 João, Apocalipse e as perícopes de Mc 16,9-20 e Jo 7,53-8,11 (PRIOTTO, 2019,</p><p>p. 31). Harrington escreve o seguinte:</p><p>Os católicos chamam estes livros de deuterocanônicos – uma infeliz desig-</p><p>nação, visto que parece implicar que eles não têm a mesma autoridade que</p><p>os outros livros. O que realmente significa é que houve uma certa hesitação</p><p>acerca de tê-los universalmente aceitos como canônicos, isto é, Escrituras.</p><p>Por contraste, os livros protocanônicos são aqueles sobre os quais nunca</p><p>houve dúvidas na Igreja (HARRINGTON, 1985, p. 51).</p><p>A respeito do cânon do Novo Testamento, houve muita discussão no início da</p><p>Reforma: Lutero e outros reformadores alemães rejeitaram as cartas de Tiago, de Judas, a</p><p>Carta aos hebreus e o Apocalipse; outras Igrejas reformadas, embora não os rejeitassem,</p><p>consideraram os deuterocanônicos do Novo Testamento como livros “de segunda</p><p>classe”; outras Igrejas ainda não puseram em discussão o cânon do Novo Testamento.</p><p>No século XVII, os próprios luteranos voltaram ao cânon tradicional do Novo Testamento.</p><p>No protestantismo hodierno, os deuterocanônicos do Antigo Testamento continuam a ser</p><p>excluídos do cânon, embora comecem a ser mais apreciados e lidos, e a ser trazidos no</p><p>fim da Bíblia; os deuterocanônicos do Novo Testamento, porém, são aceitos e trazidos na</p><p>ordem tradicional (PRIOTTO, 2019, p. 31).</p><p>Uma palavra sobre os livros apócrifos. O nome apócrifo é aplicado pelos católicos</p><p>a certos escritos judaicos e cristãos que tiveram a pretensão à autoridade divina, mas</p><p>que, de fato, não são Escrituras inspiradas. Os apócrifos do Antigo Testamento, produto</p><p>do judaísmo, são atribuídos a vários patriarcas e profetas e refletem as ideias religiosas</p><p>e morais do mundo judaico do século II a.C. ao século I d.C. Os apócrifos do Novo</p><p>Testamento são obras de origem cristã. Atribuídos, em geral, a apóstolos, eles refletem</p><p>as crenças, doutrinas e tradições de certos círculos, tanto ortodoxos como heréticos dos</p><p>primeiros séculos da Igreja.</p><p>31UNIDADE I A Palavra Escrita 31UNIDADE II O Cânon das Escrituras</p><p>2. A FORMAÇÃO DO CÂNON BÍBLICO</p><p>Vamos percorrer, mesmo que sucintamente, as etapas que historicamente levaram</p><p>à determinação dos vários livros bíblicos e à sua composição num único livro, a Bíblia. As</p><p>etapas desse processo são três: a formação do cânon do Antigo Testamento, a formação do</p><p>cânon do Novo Testamento e a união dos dois cânones numa única escritura.</p><p>2.1 A formação do cânon do Antigo Testamento</p><p>No seio do judaísmo, um dos primeiros atestados da existência de uma “Bíblia”,</p><p>isto é, de uma coleção de livros sagrados, aparece no prólogo do Eclesiástico (138 a.C.);</p><p>ali se mencionam a Lei, os Profetas e um terceiro grupo ainda não bem definido (“os outros</p><p>livros”, “os livros que seguem”) que corresponde, provavelmente, aos Escritos. A versão</p><p>dos LXX oferece certamente um princípio de seleção, mas num quadro aberto, como é</p><p>demonstrado pela presença dos sete livros deuterocanônicos (TB, Jt, Br, Sb, Eclo, 1-2</p><p>Mc) e dos acréscimos gregos aos livros de Daniel e de Ester; de fato, trata-se de uma</p><p>tradução ocorrida no curso de dois ou três séculos, atestado só por códices cristãos, com</p><p>divergências sobre a presença de determinados livros</p><p>(PRIOTTO, 2019, p. 35).</p><p>Também a biblioteca de Qumran, mesmo atestando um princípio de seleção, não</p><p>comporta um cânon fechado, mas mais propriamente o testemunho de uma praxe exegética</p><p>e litúrgica. Seja como for, embora num quadro fragmentário, falta o Livro de Ester; são,</p><p>porém, conhecidos alguns livros deuterocanônicos, como a Carta de Jeremias (Br 6), Tobias</p><p>e Eclesiástico; por fim, estão presentes também livros apócrifos, como Jubileus, Henoc e os</p><p>Testamentos do Doze Patriarcas, além, naturalmente, dos textos próprios da comunidade.</p><p>32UNIDADE I A Palavra Escrita 32UNIDADE II O Cânon das Escrituras</p><p>Também o testemunho do Novo Testamento, embora importante, não faz referência</p><p>a um cânon preciso e refere-se essencialmente à Lei e aos Profetas; sobre os Escritos, em</p><p>Lc 24,44, ao lado da Lei e dos Profetas, sobressai a menção dos Salmos, que corresponde</p><p>provavelmente ao terceiro grupo dos Escritos. Dos deuterocanônicos são citados</p><p>Eclesiástico, Sabedoria, 1-2 Macabeus, Tobias, aos quais se acrescentam alguns livros</p><p>populares como os Salmos de Salomão, 1-2 Esdras, 4 Macabeus, a Assunção de Moisés e</p><p>Henoc (PRIOTTO, 2019, p. 35-36).</p><p>Um primeiro testemunho explícito sobre o cânon bíblico aparece no escritor</p><p>hebreu Flávio Josefo (37-107 d.C.), em sua obra Contra Apionem: “Não existe entre nós</p><p>uma infinidade de livros discutidos e contraditórios, mas apenas vinte e dois, que abraçam</p><p>a história de todos os tempos e que são justamente considerados divinos” (PRIOTTO,</p><p>2019, p. 36). Se para os cinco livros de Moisés trata-se evidentemente do Pentateuco,</p><p>para os treze livros dos Profetas e os quatro livros dos Hinos não há especificação alguma;</p><p>todavia, pelas indicações presentes nos outros escritos de Flávio Josefo, o elenco pode</p><p>facilmente ser deduzido: os treze livros dos profetas correspondem a Josué, Juízes +</p><p>Rute, 1-2 Samuel, 1-2 Reis, Isaías, Jeremias + Lamentações, Ezequiel, os doze profetas</p><p>menores, Jó, Ester, Daniel, Esdras-Neemias, 1-2 Crônicas; e os quatro Livros dos Hinos</p><p>correspondem a Salmos, Provérbios, Cântico dos Cânticos, Eclesiastes. Trata-se de vinte</p><p>e dois livros, correspondentes às letras do alfabeto hebraico: uma cifra altamente simbólica</p><p>para definir a plenitude da revelação. Pouco mais tarde, o apócrifo 4Esd 14,18-47 elenca</p><p>vinte e quatro livros sagrados dos hebreus; trata-se da mesma lista de Flávio Josefo, porque</p><p>Rute e Lamentações são computados à parte (PRIOTTO, 2019, p. 36).</p><p>No tempo de Cristo, havia ainda alguma incerteza acerca do cânon e da canonicidade</p><p>de certos livros. Só foi depois da destruição de Jerusalém (70 d.C.) que um grupo de doutores</p><p>judeus, que procurava preservar aquilo que restava do passado, se reuniu em Jâmnia, por</p><p>volta do ano 90 d.C., e aceitaram formalmente o restrito cânon dos fariseus. Por várias</p><p>razões, incluindo o fato de que a Bíblia grega tinha sido adotada pelos cristãos, certos livros</p><p>que faziam parte daquela Bíblia (isto é, nossos livros deuterocanônicos) foram rejeitados. A</p><p>decisão do Sínodo de Jâmnia foi apenas para os judeus – e dali em diante eles aceitaram a</p><p>lista menor. Ela não podia ser de importância universal, porque agora a sinagoga tinha sido</p><p>substituída pela Igreja. No tempo da Reforma, os protestantes, desejando fazer traduções</p><p>diretamente do hebraico, tomaram plena consciência dessa discrepância; eles terminaram</p><p>por considerar o cânon judaico como o cânon autêntico (HARRINGTON, 1985, p. 54).</p><p>33UNIDADE I A Palavra Escrita 33UNIDADE II O Cânon das Escrituras</p><p>Com a destruição do Templo em 70 d.C. e o consequente desaparecimento da liturgia</p><p>sacrifical, o judaísmo palestinense configura-se sempre mais como uma religião do Livro,</p><p>sobretudo, graças à contribuição da corrente farisaica, que, pondo ao centro o livro, salva</p><p>o judaísmo, tornando-se sua expressão mais significativa; daí os esforços para definir com</p><p>exatidão as componentes do Livro Sagrado. As discussões concentram-se especialmente</p><p>sobre o terceiro grupo dos Escritos, em particular sobre a canonicidade de Eclesiastes e do</p><p>Cântico dos Cânticos, como demonstram as discussões de Jâmnia; também a ordem dos</p><p>livros é ainda flexível. Trata-se, porém, de um debate que interessa um círculo restrito de</p><p>especialistas, porque, na realidade, esses livros são largamente difundidos e aceitos pelos</p><p>fiéis. Embora na ausência de um pronunciamento oficial sobre uma definição propriamente</p><p>dita do cânon, pode-se afirmar que, com o início do século III d.C., o judaísmo já definiu o</p><p>próprio cânon, como atesta a afirmação do Talmude (PRIOTTO, 2019, p. 36-37).</p><p>A Igreja Cristã se desenvolveu no ambiente da Diáspora. Na prática, a Bíblia</p><p>da Igreja foi a Bíblia grega. Da parte cristã, o acolhimento e o reconhecimento dos</p><p>livros daquele que já é chamado de Antigo Testamento passa através da mediação da</p><p>LXX; com efeito, o cristianismo se desenvolve muito cedo, prevalentemente no mundo</p><p>de língua grega e, por isso, foi natural da parte da Igreja o uso da Bíblia grega, que,</p><p>como já se viu, contém também os assim chamados livros deuterocanônicos e alguns</p><p>acréscimos a Daniel e Ester. Com isso, é promovido um cânon mais longo em relação ao</p><p>da tradição de língua hebraica. Todavia, as razões dessa opção não são simplesmente</p><p>de ordem linguística, porque a aceitação desses livros permite aos cristãos ligar melhor o</p><p>Antigo Testamento ao Novo Testamento; a aceitação de livros como Tobias, Judite e 1-2</p><p>Macabeus cria uma ponte narrativa entre a história de Israel e o nascimento de Jesus;</p><p>a recepção de livros recentes, como o Eclesiástico e a Sabedoria, permite afirmar que</p><p>a revelação não terminará com a reforma de Esdras; por sua vez, a presença de livros</p><p>escritos originalmente em grego, como 2 Macabeus, Sabedoria e os acréscimos a Daniel</p><p>e Ester, consentem que o cristianismo primitivo saia do mundo restrito de língua hebraica</p><p>para o mundo helenista e pagão (PRIOTTO, 2019, p. 37).</p><p>Na realidade, a aceitação desses livros deuterocanônicos não foi pacífica e imediata,</p><p>como mostra um debate que se prolonga até quase o século VIII. Se, no Oriente, Orígenes,</p><p>Atanásio e Cirilo de Jerusalém optam pelo cânon breve dos hebreus, no Ocidente, Agostinho</p><p>defende valorosamente o cânon longo, contra um Jerônimo defensor da veritas hebraica.</p><p>34UNIDADE I A Palavra Escrita 34UNIDADE II O Cânon das Escrituras</p><p>Se, no Oriente, o Concílio de Laodicéia, na Frígia (360), defende o cânon breve,</p><p>no Ocidente, os Concílios de Hipona (393) e de Cartago (397 e 419) e a Carta de Inocêncio</p><p>I a Exupério de Tolosa (405) defendem o cânon longo; mas ainda em 692, o Concílio</p><p>Quinissexto, em Trullo, testemunha uma certa ambiguidade ratificando ao mesmo tempo os</p><p>diversos cânones do Concílio de Laodicéia e de Cartago. Somente o Concílio de Florença</p><p>(1442) e, depois, o de Trento (1546) dissiparam qualquer dúvida, enumerando e definindo</p><p>solenemente o cânon longo (PRIOTTO, 2019, p. 37-38).</p><p>Harrington (1985, p. 55) afirma que no Concílio de Laodicéia, o cânon defendido</p><p>favorece a impressão de que a atitude do Oriente, de um modo geral, era desfavorável</p><p>aos livros deuterocanônicos; para o Antigo Testamento, ele enumera apenas os livros da</p><p>Bíblia hebraica. Contudo, deve ser observado que os Padres admitiam que esses livros</p><p>podiam ser lidos para a edificação do fiel e eram úteis para a instrução dos catecúmenos.</p><p>Além disso, eles frequentemente expressavam grande estima pelos livros, admitindo-os</p><p>na adoração litúrgica lado a lado com os outros, e até os citaram com as fórmulas “Está</p><p>escrito” e “Deus diz nas Escrituras”.</p><p>A atitude dos Padres Orientais pode ser explicada por dois fatores principais: 1) Na</p><p>controvérsia com os judeus, a fim de ter uma base comum de argumentação, os Padres se</p><p>restringiram ao cânon judaico aceito; 2) Os apócrifos judaicos, reivindicando canonicidade,</p><p>estavam em circulação; assim, todos os livros tinham de ser cuidadosamente examinados,</p><p>e as credenciais dos livros</p>