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<p>Silvia MATHEUS Sílvia Ester Orrú AUTISMO, Ester LINGUAGEM Orri E EDUCAÇÃO Interação social no cotidiano escolar Obra importante para professores que, por meio dessa leitura, encontrarão subsídios para nortear o trabalho com seus alunos autistas em salas de aula comuns, onde todos terão a oportunidade de desenvolver habilidades e capacidades inerentes a cada indivíduo. Um livro que promove a reflexão, a discussão e as possibilidades de novas ideias que caminhem em prol 3a da inclusão da pessoa com autismo na escola, na família Edição e na sociedade. LINGUAGEM E EDUCAÇÃO Interação social no cotidiano escolar ISBN 978-85-88081-70-3 wak wak editora 91788588081703 editora</p><p>2007 by Sílvia Ester Orrú Gerente Editorial: Alan Kardec Pereira Editor: Waldir Pedro Projeto Gráfico: Wak Editora Revisão Gramatical: Lucíola Medeiros Brasil Concepção da Capa: Ricardo Alain Leyva Nápoles Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Orrú, Sílvia Ester, Autismo, linguagem e educação: interação social no coti- diano escolar / Sílvia Ester Orrú. 3. ed. - Rio de Janeiro : Wak Ed., 2012 188p. : 21cm Inclui Bibliografia ISBN 978-85-88081-70-3 1. Crianças autistas - Educação. 2. Autismo. 3.Educação Especial. I. Título À memória de meu pai, Gervásio Francisco Orrú, 07-1621 CDD 371.94 CDU 376.43 minha referência e inspiração na vida acadêmica, pessoal e espiritual; presença na ausência. 2012 Proibida a reprodução total ou parcial. À Marlene Orrú, minha mãe, mulher virtuosa e Os infratores serão processados na forma da lei. corajosa. Direitos dessa edição reservado a Wak Editora Ao Ricardo Alain, meu companheiro, amigo e amor presente; um coração girassol em minha vida. WAK EDITORA Av. N. Sra. de Copacabana 945 - sala 107 - Copacabana Rio de Janeiro - CEP 22060-001 - RJ Minha gratidão por não me deixarem desistir de Tels.: (21) 3208-6095 e 3208-6113 Fax (21) 3208-3918 compartilhar meus sonhos e wakeditora@uol.com.br www.wakeditora.com.br</p><p>AGRADECIMENTOS A Deus, o autor e o consumador de minha fé, por cada manhã nos renovar com o seu amor e esperança. À professora Dra. Maria Cecília Carareto Ferreira por seu apoio e presença no desenrolar das ideias expostas, pelos momentos de diálogo, por sua atenção às possibilidades de educação das pessoas com necessidades especiais e pelo incentivo à realização deste trabalho. À professora Célia Toloto Ferreira pelo acolhimento e amizade que sempre me deu. Aos alunos com autismo, protagonistas desse trabalho, por me ensinarem segredos sobre convivências.</p><p>SUMÁRIO PREFÁCIO 11 INTRODUÇÃO 15 1 - RETOMANDO DITOS SOBRE O AUTISMO 17 1.1 Origem da palavra 17 1.2 Kanner - o início dos estudos 18 1.2.1 Autismo versus Esquizofrenia 19 1.3 Outros pesquisadores 20 1.3.1 Autismo e deficits cognitivos 21 1.3.2 Psicogenicidade versus Organicidade 22 1.3.3 Conceito atual do Autismo 23 1.4 Critérios internacionais para o diagnóstico do autismo 24 1.4.1 Autismo no Brasil 27 1.5 Hipóteses causais 27 1.5.1 Condições clínicas associadas ao Autismo 28 1.5.2 O Autismo em 50 anos de estudo pela Ciência 29 1.6 desenvolvimento da pessoa com autismo 30</p><p>2.4.2 Vigotsky e a participação do outro no 1.6.1 Temple Grandin: a história de uma autista 33 processo de aprendizagem 76 1.6.2 exemplo de Jerry 35 Resumindo 77 1.6.3 Compreendendo o Autismo e suas especificidades 37 1.6.4 As dificuldades com os deficits de comu- 3 - VIGOTSKY E AS BASES CONCEITUAIS PARA A nicação e linguagem 38 COMPREENSÃO DA LINGUAGEM 79 Concluindo 40 3.1 As contribuições de Lúria para a linguagem 81 3.2 O desenvolvimento da atividade consciente do homem segundo o Marxismo 83 2 - REVISANDO A HISTÓRIA E os CONCEITOS DAS PRÁTICAS EDUCACIONAIS NA PESSOA COM 3.3 A atividade consciente do homem e a linguagem 86 AUTISMO 43 3.4 Pensamento e Linguagem 90 2.1 A educação da pessoa autista na educação 3.5 Os signos na constituição da espécie humana 95 especial 43 3.6 Desenvolvimento da aprendizagem e formação 2.1.1 Uma concepção de educação centrada de conceitos 97 no deficit e na doença 50 3.7 Contribuições da obra de Vigotsky na educação 2.1.2 Marx e a concepção de homem e sujeito 51 de autistas 102 2.1.3 A história se repete com os autistas 53 3.8 Tempo de inclusão e transformação 104 2.2 Os estudos da análise do comportamento e a 3.9 A linguagem é própria da espécie humana 110 modificação do comportamento no trabalho 3.10 Sistemas Suplementares Alternativos de Comu- com autistas - uma forte tendência 54 nicação na produção de significado para pessoas 2.2.1 Desenvolvimento e aprendizagem 56 com autismo 110 2.2.2 Behaviorismo e Autismo 58 Resumindo 112 2.3 programa TEACCH e a modificação do comportamento 60 A CONSTITUIÇÃO DA LINGUAGEM DE ALUNOS 2.4 Comunicação, autismo e linguagem 63 AUTISTAS: NARRATIVAS DE UMA 2.4.1 A presença do condicionamento no CIA VIVENCIADA 113 programa TEACCH 73 4.1 Destaque às professoras 152</p><p>LINGUAGEM E EDUCAÇÃO / 11 4.2 Comentários gerais 160 CONSIDERAÇÕES FINAIS 167 PREFÁCIO REFERÊNCIAS 175 Sinto-me distinguida pelo convite para escrever este pre- fácio. convite é, sem dúvida, outra manifestação da relação de amizade, respeito e confiança que se estabeleceu na relação entre orientadora e orientanda. Ao mesmo tempo, desafiada a, em poucas palavras, criar uma referência que situe o leitor no sentido da obra, sem avançar nos escritos da autora. Começo apresentando este texto. Ele nasce do trabalho de tese da autora que se mostrou e se mostra uma pessoa compromissada com a educação de forma geral, questionadora e, por muitas vezes, inconformada com os rumos da educação das crianças e dos jovens com autismo. O trabalho problematiza concepções sobre o autismo, a partir de um retrospecto histórico sobre sua definição. Esta retrospectiva vem acrescentar ao conjunto de publicações sobre o tema um recontar da história que, em muito, pode auxiliar os iniciantes a se situarem no estudo do tema. Questiona rapidamente as diferentes abordagens educa- cionais para enfatizar a necessidade de uma educação que par- ta de um referencial que tome o educando nas suas relações concretas, focando a linguagem e seu desenvolvimento como constitutiva das funções psicológicas superiores e dimensão prioritária no processo de desenvolvimento humano da pes- soa com autismo. Tal como se apresenta na epígrafe do capítulo quatro, o lugar de centralidade atribuído à linguagem emerge da pre- ocupação da autora, compartilhada por muitos de nós, no texto a seguir: Como ajudar os autistas a aproximarem-se de um</p><p>12 / SÍLVIA ESTER LINGUAGEM E EDUCAÇÃO / 13 mundo de significados e de relações humanas signifi- mano transcorre no sentido das relações interpessoais para as cativas? Que meios podemos empregar para ajudá-los a comunicarem-se, atrair sua atenção e interesse pelo funções intrapessoais, isto é, ocorre uma reconstrução indivi- mundo das pessoas para retirá-los do seu mundo dual das formas de ação intersubjetivas e dos processos ritualizado, inflexível e fechado em si mesmo? intermentais que, no movimento de passagem, vão, continua- Angel Rivière mente, configurando o funcionamento pessoal. Nessa busca, lança um olhar crítico às formas com que os Contribui na compreensão desta migração o construto de Sistemas Suplementares Alternativos de Comunicação (CSA) mediação que ainda precisa ser melhor estudado. Por media- são utilizados na educação dessas pessoas e investe em uma ção, segundo a base teórica apropriada pela autora, pressupõe- outra maneira de conceber a função das formas alternativas se que a figura e a palavra são experienciadas singularmente de comunicação e, portanto, de inseri-las no cotidiano dos pro- pelas pessoas com autismo no interior das suas relações com os cessos educativos. educadores e os pares falantes, experiência esta que não se dá Toma o Sistema de Comunicação com Figuras (PCS) para de forma direta do sujeito com o objeto e a palavra que desig- verificar se a CSA, no processo de educação de alunos com na, mas se dá por meio do significado que se encontra entretecido autismo, pode constituir-se como apoio na construção de sig- com significações dos participantes da interação, significações nos e no desenvolvimento da linguagem. Para isso, insere as constituídas histórica e culturalmente. figuras, de forma generalizada, nas diversas situações e ativi- A mudança de perspectiva contribui para a mudança na dades do cotidiano escolar, segundo as necessidades de cada concepção da relação dos sistemas de comunicação alternati- aluno. Nesta nova perspectiva, os símbolos pictóricos, dife- va com desenvolvimento da linguagem e com o próprio de- rentemente das perspectivas em que eles tomam o lugar das senvolvimento humano geral. palavras não ditas, compartilham os momentos da fala que se A linguagem é tomada em uma perspectiva enunciativa- apresentam nas relações interpessoais, portanto se apresen- discursiva e não de forma reduzida como ações verbais entre tam claramente como recursos semióticos. um locutor e um ouvinte, assim seu desenvolvimento requer Tais recursos detêm a função semiótica na medida em que, que o sujeito se aproprie de um sistema de expressão semiótica captados pela percepção e atenção da pessoa com autismo, em condição interativa, sistema que funciona em si, para o desempenham papel fundamental nos processos de produção outro e para o próprio sujeito com função estruturante do ser de sentidos que estavam interditados pela ausência da pala- humano e da consciência. Isto requer que as formas de CSA vra. Nesses processos, a palavra vai assumindo uma presença sejam plenamente inseridas em atividades humanas cultural- que se mostra mais favorecedora da produção de sentidos dada mente significativas, desempenhando todas as funções da lin- suas características generalizantes, polissêmicas e ideológicas. guagem e constituindo-se em possibilidades de mediação Nos processos educativos, a qualidade das interações ver- semiótica que viabilize a apropriação de formas de atividades bais alavancadas pelos educadores nas suas relações com os humanas práticas e mentais, cada vez mais maduras, no âmbi- educandos vai permitindo que as palavras ausentes hoje tor- to de uma cultura. nem-se presentes amanhã. As histórias de Luca, Marco, Ana, Renato, Thiago, Roger O núcleo conceitual dessa perspectiva tem suas bases na e Rodrigo narradas por suas professoras apontam para po- teoria histórico-cultural. Segundo ela, o desenvolvimento hu- tencial de alavancagem do desenvolvimento humano quando</p><p>LINGUAGEM E EDUCAÇÃO / 15 14 / SÍLVIA ESTER a CSA é tomada nesta perspectiva teórica e quando as propo- sições educativas passam a ser conduzidas sob este olhar his- tórico-cultural. As professoras distinguem-se por sua vontade de promo- INTRODUÇÃO ver desenvolvimento destes seus alunos tão singulares e evi- denciam que mudanças nas práticas pedagógicas requerem uma mudança de concepções e novas capacitações que lhes permitam desenvolvimento profissional. A proposta deste livro é contribuir com responsabili- No conjunto, esta publicação nos recorda diferentes olha- dade e muito carinho com pais, responsáveis, profissionais res e interpretações que podem contribuir para uma compre- da área da educação e demais interessados nas crianças com ensão mais ampla e aprofundada da área e, ao mesmo tempo, a Síndrome do Autismo, em uma visão otimista de que há elabora os indícios de um fértil referencial para as definições e bastante o que fazer para melhorar sua qualidade de vida as inovações que estamos almejando sobre a educação da pes- em sociedade. soa com autismo. Os educadores, por meio dessa leitura, poderão encon- Deixa implícita a complexidade que está presente nos pro- trar subsídios que nortearão o trabalho com seus alunos cessos de transformações de certas práticas sociais como a autistas em salas de aula comuns, onde todos terão a oportu- educação, na medida em que estas práticas trazem arraigadas nidade de desenvolver habilidades e capacidades inerentes a em si as marcas da história que constituem uma outra forma cada indivíduo. de conceber e educar a pessoa com autismo. Ao mesmo tem- Esta proposta traz consigo as contribuições dos Sistemas po, tem o poder de nos remeter a um estado de excitação dian- Suplementares Alternativos de Comunicação analisados e tra- te das novas possibilidades que se apresentam fecundas. balhados sob a perspectiva da abordagem histórico-cultural Que este seja para os leitores o sentido final deste livro. de Vigotsky, tendo em vista a produção de significado para pessoas com autismo e, consequentemente, para a constitui- Maria Cecília Carareto Ferreira ção de sua linguagem. Mestre em Educação Especial (título Esperamos com este livro promover reflexões, discus- obtido na Vanderbilt University Nashiville USA) sões e possibilidades de novas ideias que caminhem em prol Doutora em Educação área de Psicologia Educacional (título obtido na UNICAMP, SP Brasil) da inclusão da pessoa com autismo na escola, na família, na Docente do Programa de Pós-Graduação em Educação, sociedade. da Universidade Metodista de Piracicaba, SP Brasil.</p><p>LINGUAGEM E EDUCAÇÃO / 17 1 RETOMANDO DITOS SOBRE AUTISMO "O que cresce além dos muros alegra os olhos. Em todos existe uma tênue esperança." Sellín (autista) Na história do autismo, encontramos pesquisadores im- portantes por suas argumentações sobre a síndrome, sobre os critérios internacionais para seu o diagnóstico e, ainda, por trabalharem as possíveis hipóteses que poderiam ocasionar o seu Em uma perspectiva interdisciplinar, consideramos esse conhecimento relevante para o profissional que trabalha com a pessoa autista. Por ser o discurso circulante, traz esclareci- mentos sobre a síndrome, sua constituição social, suas dificul- dades reais e as desvantagens sociais que esses alunos podem apresentar no processo de ensino e aprendizagem. 1.1 ORIGEM DA PALAVRA Autismo é uma palavra de origem grega (autós), que signi- fica por si mesmo. É um termo usado, dentro da psiquiatria, para denominar comportamentos humanos que se centrali- zam em si mesmos, voltados para o próprio indivíduo. É co- mum, também, a utilização de adjetivos para se denominar o</p><p>18 / ESTER LINGUAGEM E EDUCAÇÃO / 19 autismo, tais como: autismo puro, núcleo autístico, autismo 1.2.1 Autismo versus Esquizofrenia (primário no caso de não associação com outras patologias), autismo secundário, autismo de alto funcionamento, autismo Kanner diferenciava o distúrbio autístico do grupo das de baixo funcionamento, entre outros. esquizofrenias, discordando do que fora afirmado por em 1911, por entender não se tratar de uma doença indepen- 1.2 KANNER O INÍCIO DOS ESTUDOS dente sim, de mais um dos sintomas da esquizofrenia. Bleuler enfatizava a "deteriorização emocional" no quadro clínico da Na década de 40, Léo Kanner, um psiquiatra austríaco, esquizofrenia, ressaltando, no autismo, mais o distúrbio com residente nos Estados Unidos, dedicou-se ao estudo e à pes- relação à realidade do que ao contato afetivo. Todavia, Kanner, quisa de crianças que apresentavam comportamentos estra- desde o início, constatou que, apesar de o esquizofrênico se nhos e peculiares, caracterizados por por ou- isolar do mundo, havia uma grande diferença em relação ao tros sintomas aliados a uma imensa dificuldade no estabele- autista, pois este jamais conseguiu, sequer, penetrar nesse cimento de relações interpessoais. No ano de 1943, publicou mundo mencionado por Bleuler. um informe: "Alterações autistas do contato afetivo", em que descrevia caso das onze crianças, por ele estudadas, que Sua pesquisa a respeito dessa síndrome continuou, ainda, apresentavam características fortes de distúrbio do desen- por vários anos, embora algumas alterações tivessem sido volvimento. inseridas no conceito e na definição de "autismo". O funda- Kanner, o primeiro a publicar uma investigação minucio- mento sempre era mesmo, mas evitava-se enquadrá-lo como sa sobre a doença, relatou o caso das onze crianças como um sintoma esquizofrênico. quadro de "autismo extremo, obsessividade, estereotipias e Em 1948, Kanner escreveu em seu manual de psiquiatria nomeando-o "Distúrbios Autísticos do Contato infantil que a maioria das crianças que chegavam até ele com Afetivo". As características apresentadas por esse grupo de essas características tinha algumas coisas em comum, os pais crianças eram: incapacidade para estabelecer relações com as ou avós eram, na maioria das vezes, médicos, escritores, jor- pessoas, um vasto conjunto de atrasos e alterações na aquisi- nalistas, cientistas e estudiosos que apresentavam uma inteli- ção e uso da linguagem e uma obsessão em manter o ambiente gência acima da média e que também apresentavam certa ob- intacto, acompanhada da tendência a repetir uma sequência sessão no ambiente familiar. limitada de atividades ritualizadas. O alheamento em que vivi- Tal indagação levou-o, no ano de 1955, a considerar a con- am era extremo, desde os primeiros anos de vida, como se não duta dos pais e suas crises de personalidade, como principal estivessem no mundo, sem responder a nenhum estímulo ex- fator para desenvolvimento da síndrome na criança, ainda terno, mantendo-se em um isolamento rígido e peculiar. Apre- em sua vida intrauterina. O fato se deveria à gestação contur- sentavam, porém, aparência agradável e inteligente, além de bada ou rejeitada pela qual o feto passara, sem relacionar-se possuírem habilidades especiais e uma memória excepcional. com a mãe e, consequentemente, com os pais ou qualquer ou- 1 Repetição de gestos amaneirados, permanência em posições estranhas, que 3 Introdutor do termo "autismo" para designar a perda de contato com a fazem parte de um dos sintomas não essenciais da esquizofrenia. realidade, desencadeando uma impossibilidade ou extrema dificuldade de 2 Tendência a repetir automaticamente sons ou palavras ouvidas. comunicação com outras pessoas.</p><p>20 / SÍLVIA ESTER LINGUAGEM E EDUCAÇÃO / 21 tra pessoa após o nascimento, perdendo totalmente sua possi- Bettelheim, nascido em Viena no ano de 1903, construiu para a bilidade de comunicar-se. psicanálise (1944) a seguinte hipótese sobre o autismo, con- Kanner (1948) revisou seu conceito de autismo diversas forme nos apresenta AMY (2001: 35-36): vezes. Em 1949, passou a referir-se ao quadro como A criança encontra no isolamento autístico (como os Infantil Precoce", pela dificuldade no contato com as pessoas, prisioneiros de Dachau4 ) o único recurso possível a desejo obsessivo por certas coisas e objetos, pela rotina nas uma experiência intolerável do mundo exterior, ex- situações, alterações na linguagem e mutismo, que os levava a periência negativa vivida muito precocemente em sua grandes problemas na comunicação interpessoal. Considerou- relação com a mãe e seu ambiente familiar. É por isso que fala de "crianças vítimas de graves perturbações o como uma psicopatologia com as subsequentes observações: afetivas" (o que por sinal é totalmente verdadeiro para o autismo infantil precoce é uma síndrome bem definida, pas- certas crianças que ele acolheu, mas que não eram sível de ser observada com pequenas dificuldades no curso necessariamente autistas). (...) Bettelheim abriu as dos dois primeiros anos de vida da criança. Sua natureza bási- portas a teorias extremamente culpabilizantes para ca é intimamente relacionada com a esquizofrenia infantil, pelo os pais, que se viram como a causa primeira do atraso que o autismo infantil poderia ser uma manifestação precoce de seus filhos. da esquizofrenia infantil. A psicanalista inglesa, Frances Tustin, chamava os autistas Cinco anos depois, o pesquisador salientava o autismo de "crianças encapsuladas", baseando-se na hipótese de que o como uma psicose, em virtude da falta de comprovações dos desenvolvimento psicológico teria paralisado em um estágio laboratórios, por meio dos exames realizados. Em 1956, insis- prematuro da vida do bebê, em virtude de um trauma oriundo tiu na consolidação conceitual da síndrome, mas sentia a ne- da percepção sobre a separação do corpo da criança do corpo cessidade aprofundar-se mais sobre o entendimento do fenô- de sua mãe, provocando uma experiência psíquica fantasmática. meno em nível biológico, psicológico e social. Em 1968, acres- Em uma de suas conferências realizadas em Paris, ela destacou centou às suas considerações a necessidade do diagnóstico di- a criança autista como uma criança tomada de pânico, apesar ferencial com deficientes mentais e afásicos. Na revisão de de, muitas vezes, parecer passiva e indiferente, evidenciando seus primeiros casos, ocorridos há 30 anos, propôs que novas que a criança autista luta contra suas angústias por meio de expectativas fossem estudadas por meio da bioquímica, afir- asseguramento com o auxílio de formas ou objetos. mando, em 1973, a pertinência da síndrome como parte do Tustin enfatizava a importância de uma abordagem quadro das psicoses infantis. educativa para os autistas, fazendo referência a Montessori, A partir de Kanner, muitos outros pesquisadores surgi- Rudolf Steiner e Walden que haviam estabelecido um método ram e foram, aos poucos, registrando suas ideias hipotéticas educativo para os portadores da síndrome. sobre a origem do autismo e dos conceitos traçados, advindos de suas experiências com pessoas com a síndrome. 1.3.1 Autismo e deficits cognitivos 1.3 OUTROS PESQUISADORES Ritvo (1976) demonstrou, em seu livro publicado sobre o Após autismo ser apresentado por Kanner, Bruno 4 Bettelheim esteve preso nos campos de concentração de Dachau e Buchenwald, onde observou fenômenos de isolamento vividos por certos prisioneiros.</p><p>22 / SÍLVIA ESTER LINGUAGEM E EDUCAÇÃO / 23 autismo, os deficits cognitivos inerentes a essas crianças, cuja ma que o autista sofre a ausência de influências externas, vive caracterização ocorreria desde o nascimento, levando-se em conta em total isolamento e seus sintomas se apresentam bem mais suas particularidades comportamentais. E apresentou, também, cedo do que aparecem nos casos de esquizofrenia. Diz, tam- a possibilidade de a síndrome ocorrer em associação com outras bém, que o autismo pode ser adquirido e que essa possibilida- patologias específicas, em que o autismo seria a derivação de de foi percebida pela primeira vez durante os anos 60, com a uma patologia exclusiva do Sistema Nervoso Central. epidemia da rubéola, provocando o desenvolvimento da síndrome durante a gestação. Afirma, ao mesmo tempo, que 1.3.2 Psicogenicidade versus Organicidade tanto o autismo como outras síndromes com características autísticas podem surgir durante a vida adulta, apesar de ser A partir desse contexto, inicia-se a controvérsia das posi- um fato mais raro que ocorreria, mais especificamente, de- ções diferenciadas da psicogenicidade e da organicidade. pois de certas formas de encefalite. A psicogenicidade, influenciada pela escola francesa, descreve o autismo como decorrente de uma desorganização 1.3.3 Conceito atual do Autismo da personalidade no quadro das psicoses, conforme a posição da Classificação Internacional das Doenças Mentais CID-9, Atualmente, autismo é considerado, conforme a de- publicada no ano de 1990. finição apresentada por Gilberg em seus estudos sobre diag- Já os adeptos da organicidade determinam o autismo nóstico e tratamento do autismo infantil, uma "síndrome como decursivo dos distúrbios globais de desenvolvimento comportamental com etiologias múltiplas e curso de um dis- das habilidades de comunicação verbal e não verbal e da ativi- túrbio de desenvolvimento" (GILLBERG, 1990). Até 1989, di- dade imaginativa. É identificada por sinais e sintomas zia-se, estatisticamente, que a síndrome acometia crianças comportamentais, segundo a posição da American Psychiatric com idade inferior a três anos, com predominância de quatro Association (APA) DSM-III-R (Diagnostic and Statistical crianças a cada dez mil nascidas. Manifestava-se, majoritari- Manual III edition, 1989). amente, em indivíduos do sexo masculino, sendo a cada qua- Vários pesquisadores basearam-se nas primeiras defi- tro casos confirmados três do sexo masculino e um caso para nições do autismo e deram suas opiniões a respeito desse o feminino. fenômeno patológico. Gauderer (1986) defendeu a síndrome Segundo Gaspar (1998), neuropediatra, o autismo tem como uma inadequação do sujeito ao meio social ou uma sido notório em 20 crianças a cada dez mil nascidos, número doença crônica como se fosse um mal incurável e que vem crescendo nos últimos anos, não se restringindo à inabilitável, de origem orgânica, com fatores neurológicos raça, à etnia ou ao grupo social. De causa ainda não especifica- de deterioração interacional. mente determinada, o aumento pode ser em virtude, também, Sacks5 (1995) afirma, fenomenologicamente, a oposição de um maior e melhor diagnóstico e de informações resultan- do autismo à ligação com a esquizofrenia, como era proposto tes de mais estudos e divulgações sobre a síndrome que atinge no início das investigações. Concordando com Kanner, reafir- indivíduos de todos os países do mundo. 5 Conferir deste autor histórias de casos pertinentes ao autismo relatados nos livros "Tempo de Despertar" e "Um antropólogo em Marte".</p><p>24 / SÍLVIA ESTER LINGUAGEM E EDUCAÇÃO / 25 1.4 CRITÉRIOS INTERNACIONAIS PARA DIAGNÓSTI- CO DO AUTISMO o DSM-III foi novamente revisado em 1987. Foram, então, catalogados 16 critérios para transtorno autista, agrupados Os Transtornos Globais do Desenvolvimento (TGD), des- em três categorias diferentes, devendo o paciente manifestar, critos no DSM-III-R (1989) e CID-10, EDUSP (1995), constitu- pelo menos, oito dos critérios, dos quais em um mínimo de em um grupo de natureza diferente dos distúrbios da infância dois seriam critérios do item A: comprometimento da interação e que abrangem autismo. Em virtude da sua complexidade social; um pertenceria ao item B: comprometimento da comu- clínica, há necessidade de que as pessoas, que apresentam ca- nicação; e um representaria o item C: repertório restrito de racterísticas inerentes ao autismo, sejam avaliadas atividades, para receber o diagnóstico de transtorno autista. pormenorizadamente. De acordo com Steiner (2002:1-2), O DSM-III-R dá importância à evolução da síndrome, observando os sinais do distúrbio, na maioria dos casos, por entre os TGD, autismo é o maior representante, ca- racterizado por um desenvolvimento anormal ou al- toda a vida, mesmo havendo diversificações com a idade cro- terado, manifestado antes da idade dos três anos, ha- nológica e o comprometimento das deficiências. vendo uma perturbação característica do funciona- Em 1994, a APA publicou a quarta edição do DSM, mu- mento em cada um dos três domínios seguintes: dando o termo "global" para "invasivo" e alterando os critéri- interação social, comunicação e comportamento, os diagnósticos. No ano seguinte, realizou-se a tradução brasi- comumente focalizado e repetitivo. Além disso, leira. A expressão "Transtornos Invasivos do Desenvolvimen- transtorno costuma se acompanhar de numerosas outras manifestações inespecíficas, como fobias, per- to" é representada por danos graves e agressivos em várias turbações do sono ou da alimentação, crises de birra áreas do desenvolvimento, em que se percebe prejuízo nas ou agressividade (autoagressividade). A forma habilidades da interação social recíproca, de comunicação, na atípica se diferencia do autismo (típico) por se iniciar presença de comportamentos, nos interesses e nas atividades após os três anos de idade e (ou) pela falta de manifes- estereotipadas. Vejamos o que diz o DSM-IV: tações suficientes em um ou dois dos três do- Os prejuízos qualitativos que definem essas condições mínios psicopatológicos (interações sociais recíprocas, representam um desvio acentuado em relação ao ní- comunicação e comportamentos) implicados no vel de desenvolvimento ou idade mental do indiví- autismo infantil. duo. Esta seção abarca Transtorno Autista, Transtor- Em 1980, o DSM teve sua terceira edição publicada pela no de Rett, Transtorno Desintegrativo da Infância, APA, desta vez, com critérios mais específicos sobre a Transtorno de Asperger e Transtorno Invasivo do De- síndrome: deficits sociais difusos, amplos deficits no desen- senvolvimento sem outra especificação. (APA, 1995) volvimento da linguagem, padrões incomuns da fala, respos- A Organização Mundial de Saúde (OMS) publicou, em 1993, tas bizarras ao ambiente e ausência de delírios ou alucinações a décima versão do Código Internacional de Doenças (CID-10), típicos da esquizofrenia, exigindo sua manifestação até o tri- atualizando a classificação de Transtornos Mentais e de Com- gésimo sexto mês. portamento, pela qual se enquadrou o autismo na categoria Sendo falho em vários aspectos, por causa da falta de "Transtornos Invasivos do Desenvolvimento". Suas caracte- um foco evolutivo da síndrome, critérios restritos e mais ên- rísticas são: anormalidades qualitativas na interação social fase aos problemas de linguagem do que aos de comunicação, recíproca e nos padrões de comunicação, por repertório de interesses e atividades restritas, repetitivas e estereotipadas,</p><p>26 / SÍLVIA ESTER LINGUAGEM E EDUCAÇÃO / 27 sob o código de F84. Tais anormalidades qualitativas, referen- 1.4.1 Autismo no Brasil tes ao funcionamento global do indivíduo em quaisquer situa- ções, caracterizam-se por prejuízo severo e incapacitante, em No Brasil, devem existir, estatisticamente, de 75 mil a 195 diversas áreas do desenvolvimento humano, podendo variar mil autistas, baseado na proporção internacional, já que ne- em grau de acometimento. Essa versão da CID-10 sobre o nhum censo semelhante foi realizado. Nossa classificação ofi- autismo passou a ser adotada pelo Brasil, em 1996. cial do autismo é realizada, levando-se em conta os critérios Em razão de tanta polêmica para fins de caracterização e da CID-1, em conjunto com o DSM-IV. É importante ressaltar enquadramento da síndrome em uma das ainda hoje a necessidade de uma anamnese específica e uma observação se encontram dificuldades para o seu diagnóstico preciso, quer comportamental para mais eficiência e confiabilidade pendamos para o caminho das etiologias ou pensemos de for- diagnóstica. A escala CARS também se mostra um recurso útil ma clínica. De acordo com a literatura, há casos supostamente para o diagnóstico. baseados como advindos de condição médica, enquanto há outros caracterizados por anormalidades na interação social 1.5 HIPÓTESES mútua e nos padrões de comunicação, como também pelos diferentes aspectos ligados ao interesse e a diferente- As questões sobre os possíveis agentes causadores do mente realizadas. De acordo com a ASA Autism Society of autismo são muito polêmicas. Inquirem-se desde causas psi- América (1999), "o autismo é um distúrbio de desenvolvimen- cológicas, disfunções cerebrais e alterações de neurotrans- to, permanente e severamente incapacitante". missores e fatores ambientais, como definidores da doença, Para o de autismo, pode ser utilizado um vasto até os de natureza genética, sendo esta última levantada e ana- protocolo de investigação, a partir da realização de exames lisada mais recentemente por diversos cientistas. Com o tem- para pesquisa de possíveis condições específicas, geneticamen- po, os critérios baseados em comportamentos anormais va- te determinadas ou não, de realização de pelo menos um dos gos foram substituídos por critérios específicos, relacionados exames de neuroimagem propostos, e fazendo uso do agrupa- a alterações no desenvolvimento da interação social, da co- mento de alguns dos critérios do (APA, 1995) e da municação e das atividades. CID-108 (OMS, 1993), além de anamnese detalhada, exame fí- A partir da década de 70, avanços se deram nos estudos a sico, dando atenção aos sinais comumente associados a respeito do autismo, tanto na literatura especializada para o cromossopatias e a outras afecções de etiologia genética, ava- diagnóstico da síndrome como nos estudos sobre o enfoque liação neuropsicológica, análise bioquímica para erros do me- de suas possíveis causas. Foi a época em que pesquisas realiza- tabolismo, exames de cariótipo, eletroencefalograma, resso- das apontaram que a epilepsia é 60 vezes mais frequente entre nância magnética de crânio, SPECT, além de outros possíveis os autistas do que na população geral, que a deficiência mental exames complementares. se fazia presente em mais de 75% dos casos de autismo, em decorrência de possíveis danos neurológicos extensos, pro- 6 Diagnóstico não é sinônimo de classificação. diagnóstico é ativo e pessoal, vocando limitações em uma série de processos cognitivos, sen- enquanto a classificação é impessoal e equilibrada, prendendo-se à doença em si. do, então, atualmente, considerado como decorrente de pro- Anexo 1 Manual Diagnóstico e Estatística de Transtornos Mentais. cessos neurobiológicos e não mais um distúrbio puramente 8 Anexo 2 Classificação Internacional de Doenças.</p><p>28 / SÍLVIA ESTER LINGUAGEM E EDUCAÇÃO / 29 psicológico em suas causas. (STEINER, 2000: 4) A síndrome do autismo também é encontrada nos estu- O que sabemos é que existem diversos aspectos atípicos dos realizados em pares de gêmeos, sendo estes, tanto do autismo, identificados em descrições que abrangem suas monozigóticos como dizigóticos, confirmando a participa- características clínicas e neurológicas, alterações eletroen- ção do genótipo na especificação de características do cefalográficas, neuroanatômicas, citogenéticas ou bioquími- (BAILEY et al., 1995 apud STEINER, 1998: 101). cas; tais pesquisas, porém, analisam esses assuntos de forma As percentagens concluídas foram significantes nas pesqui- isolada ou associada apenas à parte deles. Em virtude dos dife- sas diversas, realizadas por vários profissionais da saúde e rentes instrumentos diagnósticos, pela diversidade de exames em localidades distintas. complementares realizados e pela possibilidade de associação No momento presente, estão se realizando estudos com outros distúrbios, é necessária cautela no diagnóstico e de alguns genes, possíveis candidatos a serem identifica- na diferenciação do autismo sem uma causa definida. dos comomecanismos de herança para o autismo. Embo- Em geral, é comum diagnosticar-se uma doença, com base ra não sejam definitivos para clarear-lhe a origem, mos- em resultados concretos (exames ou "visíveis" tram-se úteis no estímulo da busca ardilosa para o me- aos olhos (síndrome de Down). A ausência de indícios visuais lhor conhecimento da síndrome, suas hipóteses e possi- dificulta o diagnóstico do autismo. Nos casos de autismo asso- bilidades de desenvolvimento. ciado a outra patologia, muitas crianças têm recebido atendi- mento médico insuficiente às suas necessidades. Precisam, 1.5.2 O Autismo em 50 anos de estudo pela Ciência além de medicamentos específicos para a doença distinguida, um atendimento e um programa adequado às necessidades Embora a ciência já tenha percorrido um longo trajeto inerentes ao autismo. Não é incomum um indivíduo com mais para a compreensão do autismo, muito ainda falta para con- de uma condição clínica associada ao autismo; pelo contrário, clusões mais concretas serem estabelecidas. No momento, é uma situação frequente. podemos destacar os seguintes pontos baseados na revisão da literatura: 1.5.1 Condições clínicas associadas ao Autismo 1. O autismo se faz presente antes dos três anos de idade e deve ser considerado como uma síndrome compor- De acordo com o Jornal de Pediatria (abril/2004), a tamental que engloba comprometimento nas áreas re- prevalência de distúrbios neurológicos a cada 100.000 nasci- lacionadas à comunicação, quer seja verbal ou não- mentos é de 130 para o autismo. Dentre as diversas condições verbal, na interpessoalidade, em ações simbólicas, no médicas associadas ao autismo, as que mais se destacam são: a comportamento geral e no distúrbio do desenvolvi- síndrome de Down, epilepsia, X Fragil e problemas pré-natais mento neuropsicológico. e perinatais. Há também infecções que podem ser associadas a 2. O autismo não é exclusivo, é próprio da espécie huma- possíveis causas do autismo: Toxoplasmose (pré-natal), Vari- na e pode vir associado a múltiplas etiologias, haven- cela (pré-natal), Caxumba (pré-natal), Citomegalovírus (pré- do, inclusive, a participação de fatores genéticos e natal), Sífilis (pré-natal), Herpes Simples (pós-natal) e Rubéo- la (pré-natal). 9 Conjunto de genes de um indivíduo ou de indivíduos com a mesma constituição genética.</p><p>30 / SÍLVIA ESTER LINGUAGEM E EDUCAÇÃO / 31 ambientais. Ocorre, em média, a cada quatro indiví- refere à síndrome, suas manifestações comportamentais dife- duos em dez mil nascimentos, sendo quatro vezes mai- renciam-se segundo seu nível linguístico e simbólico, quoci- or sua incidência no sexo masculino. ente intelectual, temperamento, acentuação sintomática, his- 3. Deficiência mental, hiperatividade, deficits de aten- tórico de vida, ambiente, condições clínicas, assim como to- ção, processos convulsivos e deficiência auditiva des- dos nós. Portanto, nem tudo que venha dar resultado para tacam-se como as síndromes neurológicas mais asso- uma pessoa com autismo serve de referência positiva à outra ciadas ao autismo. pessoa com a mesma síndrome. 4. Conforme a complexa neurobiologia do autismo e a Na maior parte dos dados colhidos por meio de anamne- grande lista de condições clínicas a ele associadas, ain- ses realizadas por profissionais atuantes nas instituições volta- da não se conhecem quais mecanismos neuropatoló- das para esse tipo de atendimento, constata-se que os diagnósti- gicos dão origem aos comportamentos autísticos, por cos de autismo são fechados a partir dos três anos de idade. Do não se manifestarem de forma mais homogênea em nascimento ao segundo ano de vida, de cada cinco casos, quatro todos os casos descritos até hoje. não são identificados com clareza. (COLL, 1995: 278) 5. Resultados advindos de exames de neuroimagem têm No período de 1999 a 2004, entrevistamos pais de crianças demonstrado alterações diversas, relacionadas ao Sis- autistas que frequentavam uma escola de educação especial. tema Nervoso Central de autistas, principalmente re- Observamos que, na maioria das vezes, a criança com essa ferente ao cerebelo. síndrome, no período que vai do nascimento até o primeiro 6. a utilização de um vasto protocolo para ano de vida, era calma, excessivamente tranquila, "muito bo- a investigação diagnóstica da síndrome, devendo esta azinha" ou, ao contrário disso, irrequieta, chorando muito e ser sistemática e com critérios estabelecidos por meio com problemas relacionados ao sono. Do primeiro ano de de uma abordagem interdisciplinar. Tal procedimen- vida até o segundo, é relatado que demorou a andar, demorou to deve realizar-se não somente com fins de confirma- a falar e quando falou, repentinamente, sua fala cessou. A par- ção diagnóstica, mas, inclusive, para trazer contribui- tir do segundo ano de vida, passou a apresentar comporta- ções à compreensão das bases neurobiológicas e os mentos estranhos. Dizem: "Ele é esquisito". mecanismos etiopatogênicos essenciais dessa catego- período do reconhecimento de uma possível síndrome ria. (STEINER, op. cit., p. 143) é obscuro e demorado, tanto pela parte dos pais como por muitos médicos, em virtude da complexidade do quadro, pela 1.6 O DESENVOLVIMENTO DA PESSOA COM AUTISMO falta de informações básicas sobre síndromes não identificadas por meio de exames laboratoriais, impedindo de haver um pro- A respeito do desenvolvimento da pessoa com autismo, cesso de intervenção mais precoce e claro. Desta forma, tor- as afirmações que se seguem são oriundas da literatura acu- nam-se raros tais diagnósticos antes dos 12 meses de idade. mulada sobre a síndrome; igualmente, referem-se a como esse Durante os três primeiros anos de vida, as condutas funci- indivíduo tem sido compreendido e tratado pela sociedade. onais normais, desenvolvidas por uma criança que não apre- O autista, sendo um indivíduo único, é exclusivo enquan- senta a síndrome, são, no autista, progressivamente desestru- to pessoa. Embora tenha características peculiares no que se turadas e/ou perdidas, ou mesmo nunca chegam a se desen-</p><p>32 / ESTER LINGUAGEM E EDUCAÇÃO / 33 volver. Dentre essas funções, estão: a falta da aquisição de pode ficar horas observando algo que lhe chame a atenção, e regras estabelecidas, surdez aparente, ações antecipadas não perplexa diante de alta sonoridade ou, ainda, irritada ao me- praticadas, em geral, a partir do sexto mês (exemplo: sorrir ao nor ruído. ver a mãe se aproximar etc.). Observa-se, também, a ausência Com a adolescência, tendem a aumentar os conflitos pesso- de criatividade na exploração dos objetos e dos procedimentos ais e interpessoais na pessoa com autismo. É possível aparece- de comunicação, normalmente intencionais, que se desenvol- rem novas complicações, como crises de epilepsia, acréscimo veriam a partir do primeiro ano de vida, aproximadamente. das estereotipias, problemas alimentares, ciclos depressivos, Obviamente, pelo comprometimento observado, funções aumento da excitação e ansiedade. (COLL, op. cit., p. 280) simbólicas, como a imitação de gestos e atitudes e o emprego de palavras com o fim de se comunicar, dificilmente atingem 1.6.1 Temple Grandin: a história de uma autista seu objetivo interacional, quando desenvolvidos. Podem, tam- bém, manifestar resistência a mudanças de rotina, modifica- Segundo Temple Grandin (1992:5), a época da puberdade ções no ambiente de seu costume, medo anormal de outras é um agravante do comportamento de autistas. Ela diz: "Na pessoas, objetos ou lugares. infância eu era hiperativa, mas nunca havia me sentido "ner- Certas crianças com autismo desenvolvem-se normal- vosa" até chegar à puberdade. Nesta época, o meu comporta- mente, durante sua primeira infância, chegando, até mesmo, mento foi de mal a pior." As alterações sensoriais, assaltos de a adquirir uma linguagem funcional. Todavia, esta vai se per- ansiedade e o desencadear de uma hipersensibilidade geral dendo progressivamente ou tornando-se suscetível de vieram após sua primeira menstruação. Em seu depoimento, consequências sérias por causa da tal condição; assim, mui- ela menciona algumas atividades que lhe davam certo alívio, tas delas acabam em um intenso isolamento social, envolvi- quando sofria "crises de colite" e "ataques nervosos". Essas das em seus rituais e estereótipos e, praticamente, sem ne- atividades contemplavam exercícios físicos, trabalhos manu- nhuma comunicação externa. ais, o uso de certos medicamentos e, inclusive, rodar em sua Muitas das alterações apresentadas por crianças autistas cadeira giratória. ocorrem em razão da falta de reciprocidade e compreensão na Temple Grandin comenta que as turbulências hormonais comunicação, afetando, além da parte verbal, as condutas sim- da adolescência lhe causaram dificuldades. Era como se fosse bólicas que dão significados às interpretações das circunstân- sacudida para cima e para baixo. Esse período melhorou quan- cias socialmente vividas, dos sinais sociais e das emoções nas do terminou a universidade e passou a tomar alguns medica- relações interpessoais. mentos classificados como antidepressivos para se tranqüili- Durante período de idade que vai dos dois aos cinco zar. Eis um trecho sobre as experiências que teve: anos, apresentam-se intensas modificações na criança autista. As buscas frenéticas pelo sentido básico da vida são É frequente sua alienação diante do mundo que a cerca, bem coisa do passado. Não fico mais fixada em uma coisa, como é indiferente aos estímulos externos que sobrevêm a já que não me sinto mais impelida. Durante os últimos ela. Enclausura-se nos rituais sem um propósito definido e quatro anos, escrevi pouco em meu diário porque o age com indiferença em relação às pessoas; quando contrari- antidepressivo me tirou muito do fervor. Com a pai- ada ou não compreendida, pode autoagredir-se, assim como xão atenuada, minha carreira e meus negócios vão bem. Estando mais relaxada, entendo-me melhor com</p><p>34 / SÍLVIA ESTER LINGUAGEM E EDUCAÇÃO / 35 as pessoas, e os problemas de saúde causados pelo ções tão horríveis quanto autismo, a psicose manía- estresse, como a colite, desapareceram. E, contudo, se co-depressiva e a esquizofrenia. No entanto, se os genes a medicação tivesse sido prescrita para mim quando que causaram essas condições fossem eliminados, tinha vinte e poucos anos, poderia não ter alcançado preço a pagar poderia ser terrivelmente alto. É tudo o que conquistei. Os "nervos" e as fixações foram vel que pessoas com um pouco desses traços sejam mais grandes motivadores até esfacelarem meu corpo com criativas, ou mesmo gênios. (...) Se a ciência elimi- problemas de saúde decorrentes do estresse. nasse esses genes, talvez todo o mundo fosse tomado (GRANDIN, 1986 apud SACKS, op. cit., p. 280) por contadores. (GRANDIN, 1990 apud SACKS, ibidem) Com relação à compreensão da pessoa com autismo, cremos que quanto mais clara e objetiva se der a comunica- ção, mais receptiva será e maiores serão as possibilidades 1.6.2 exemplo de Jerry de se obter retorno. Isso é observável, tanto em casos de autistas de alto funcionamento como nos casos de autismo Outro exemplo descrito de autismo é de Jerry, uma cri- associado a outras patologias, que trazem consigo um re- ança diagnosticada por Léo Kanner como autista. Aos 31 anos baixamento intelectual. Em geral, eles têm dificuldades com de idade, Jerry contou sua história a Jules Bemporad (1979) metáforas e ironias. Para a maioria dos autistas, tudo tem (apud COLL, op. cit.,: 280-282) que, após investigá-la, publi- um sentido literal, e essa é uma das causas que fazem com cou-a em um artigo. que os sentimentos e as coisas abstratas em geral sejam, Conforme a descrição realizada por Coll (1995), Jerry era para eles, tão difíceis de lidar. um autista de alto funcionamento, sem antecedentes compro- Semelhante ao pensamento de Howard Gardner (1995:78), metedores até sua primeira infância. Porém, seu comporta- relacionado às "inteligências múltiplas", Grandim comenta mento era diferente do das outras crianças, desde seus primei- sobre a tendência de ver o cérebro de forma modular e consti- ros meses de vida. Era indiferente com as outras pessoas, in- tuído por uma variedade de poderes computacionais isolados clusive com sua mãe. Chorava muito, tinha problemas com a e independentes, atribuindo, por um lado, as habilidades in- alimentação e com barulhos diversos. Começou a falar somente críveis que ela e possuem e, por outro, a falta aos três anos, mas sem função comunicativa. Depois, passou a extrema de outras capacidades a essa questão do cérebro. Seus desenvolver talento musical e memória significante. Antes de estudos são profundos e concretos a respeito do autismo, che- completar quatro anos, encantava-se com as composições de gando a ter uma substância teórica e prática empírica Mozart e Bach. Começou a escrever sozinho, copiando dizeres significante. Em uma de suas palestras, ela mencionou Sacks de rótulos e cartazes sem saber seus significados. Aos cinco (op. cit., p. 297) e encerrou, dizendo: "Se pudesse estalar os anos, teve seu diagnóstico de autismo confirmado por Léo dedos e deixar de ser autista, não o faria porque então não Kanner. Sua capacidade intelectual era normal, mas sua lin- seria mais eu. O autismo é parte do que eu sou". Algum tempo guagem era anormal, ecolálica e sem função comunicativa. depois, escreveu um artigo sobre o assunto: Quando passou a frequentar a escola, aos seis anos de ida- de, sofria por não conseguir relacionar-se com as outras cri- Adultos conscientes de seu autismo e seus pais ficam frequentemente irritados com esse distúrbio. Podem anças, além de ter, sobre si, o peso de não aguentar os ruídos se perguntar por que a natureza ou Deus criou condi- existentes na escola. Interessou-se pela matemática a partir</p><p>36 / SÍLVIA ESTER LINGUAGEM E EDUCAÇÃO / 37 da terceira série; fazia e pendurava em seu quarto as tabuadas de multiplicar. Um dia foi humilhado por seu professor, quan- tras pessoas, permitir-lhe satisfazer-se por meio da relação, desenvolver seus modelos simbólicos? Como do tinha dez anos de idade. Isso concorreu para que deixasse podemos normalizar, na medida do possível, sua expe- colégio e fosse tomado por grande desolação, sendo transferi- riência e sua conduta? (COLL, op. cit., p. 282) do para uma instituição residencial. Voltou-se obsessivamen- te para os exercícios aritméticos por não conseguir sustentar as amizades que tentava fazer e pelas dificuldades encontra- 1.6.3 Compreendendo o Autismo e suas especificidades das em relacionar-se, fato que atribuía à sua gagueira. Passou a ficar mais sensível diante de sons e odores intensos. Exemplos como os citados, decorrentes de estudos e aná- Quando jovem-adulto, tornou-se mais ciente de sua soli- lises realizadas, podem contribuir para uma melhor compre- dão e de seu isolamento. Foi aceito em um centro educacio- ensão do comportamento autista. Diante daquilo que se apre- nal, desenvolvendo algumas relações superficiais. Já na ida- senta a um autista como novidade, mesmo sendo indiscutivel- de adulta, ao término de seus estudos, era capaz de realizar mente necessário para sua aprendizagem, é preciso ter caute- trabalhos e atividades, desde que lhe fossem passadas em la. O que é novo pode lhe gerar angústia e repulsa, por não pormenores. Não distinguia, contudo, coisas importantes de compreender o motivo de tal imposição, pois tem uma outras irrelevantes. síndrome comprometedora de sua função simbólica, agravante Ao analisar relato da experiência de Jerry, observa-se de alterações em sua comunicação. Deve ser evidenciado pelo seu temor em relacionar-se com outras pessoas, aversão a profissional o respeito à individualidade dessa pessoa, acei- mudanças de rotina, medo e confusão intensos, durante sua tando seus limites e propondo estratégias para a superação infância e adolescência, em virtude da imprevisibilidade ofe- das barreiras apresentadas, incentivando o desenvolvimento recida circunstancialmente, com a qual não sabia lidar. Sentia e crescimento de seu potencial global. necessidade de relacionar-se, mas também sentia medo de ten- A imagem de um "autismo clássico" tem sido assustadora tar esse relacionamento por não compreender o interior das para a maioria das pessoas, inclusive para muitos médicos. outras pessoas, o que o impedia de deixar que desabrochasse a Quando as pessoas são questionadas sobre o autismo, geral- empatia com o outro. Assim, parecia agir com insensibilidade. mente são levadas a dizer que se trata de crianças que se deba- mas, na verdade, o que ocorria era a incapacidade de colocar- tem contra a parede, têm movimentos esquisitos, ficam balan- se no lugar do outro e expressar seus sentimentos ou ideias de o corpo e chegam até a dizer que são perigosos e preci- forma sistemática e empática. sam ficar trancados em uma instituição para deficientes men- Coll comenta o caso de Jerry e acrescenta: tais. São falas que revelam desinformação a respeito dessa Casos como o de Jerry nos proporcionam um acesso síndrome. privilegiado à compreensão do autismo e, por conse- No entanto, concordamos com Sacks, quando este afir- guinte, constituem uma premissa importante para a ma: formulação de estratégias adequadas de educação e tratamento. Que meio temos que proporcionar à cri- É verdade que, curiosamente, a maioria das pessoas ança autista para diminuir seu medo, aumentar a fala apenas de crianças autistas e nunca de adultos, previsibilidade de seu ambiente, aproximá-la de ou- como se de alguma maneira as crianças simplesmen- te sumissem da face do planeta. Mas, embora possa</p><p>38 / SÍLVIA ESTER LINGUAGEM E EDUCAÇÃO / 39 haver de fato um quadro devastador aos três anos de Estudos realizados em autistas por Wong & Wong (1991) idade, alguns jovens autistas, ao contrário das expec- apud Schwartzman (op. cit., p. 47) indicam que o período de tativas, podem conseguir desenvolver uma lingua- gem satisfatória, alcançar um mínimo de habilidades comunicação cerebral é mais extenso, marcando uma sociais e mesmos conquistas altamente intelectuais; disfunção neurológica e prejudicando a recepção sensorial podem se tornar seres humanos autônomos, aptos para por meio da audição, provocando desordem de linguagem, uma vida pelo menos aparentemente completa e nor- de aquisição de conhecimentos e de evolução social, sendo mal mesmo se encobrindo uma singularidade autista específicos na síndrome, embora possam não apresentar si- persistente e até profunda. (op. cit., p. 255) nais de patognomonia. Segundo os relatos descritos, podemos perceber que, quan- A defasagem ou a ausência do desenvolvimento da comu- do o processo de intervenção é planejado de maneira continua nicação fora descrita, em 1943, por Léo Kanner, em 50% dessa e avaliativa, não ocorrendo tardiamente, há uma maior opor- clientela e, na década de 70, foi relacionada com as alterações tunidade de a pessoa com autismo desenvolver-se e estruturar- comportamentais por Wing (1975) e Rutter (1979), em razão se em seu próprio contexto. do transtorno decorrente da linguagem. Relatos de pais e profissionais que convivem com pes- 1.6.4 As dificuldades com os deficits de comunicação e soas autistas evidenciam a anormalidade de respostas a linguagem estímulos verbais e não verbais, a falta de verbalização e mímica, a resistência ao diálogo, a indiferença aos estímu- deficit de comunicação também tem sido foco de preo- los sensoriais ou hipersensibilidade e a caracterização cupação, apresentado em estudos sobre o desenvolvimento atípica e bizarra, relacionadas às reações a som e paladar. de pessoas com autismo, sendo sublinhado nos critérios de Grandin (1996) comenta que sua audição funcionava se- diagnóstico como severamente acometido por graves danos, melhante aos amplificadores de sons, estando no último em razão da própria síndrome. volume e que seus ouvidos pareciam ser ofendidos como A evolução dos sistemas simbólicos de estrutura concreta se tivessem os nervos feridos pela broca de um dentista e para outros sistemas mais complexos ou abstratos, inerentes à que, por essa razão, pessoas autistas deveriam ser poupa- linguagem, ocorre normalmente no ser humano, contribuindo das de grandes ruídos. para seu ajustamento social e sua participação pessoal no grupo Não apenas os autistas em situação de maior comprome- ao qual pertence, impulsionando-o a interagir com os demais. timento mas também autistas de alto funcionamento apre- É fundamentalmente por meio da linguagem que indiví- sentam problemas em sua comunicação, podendo manifes- duo realiza sua interação social e cultural, avançando em seu tar ecolalias e uso estereotipado da fala. Assim, dentro dos envolvimento social e definindo sua própria identidade. Con- problemas de linguagem do autista, a literatura destaca: tudo, é na linguagem e na comunicação em que se concentra o a ausência de fala, puxando, empurrando ou conduzin- maior obstáculo no autismo, uma vez que poucos autistas de- do fisicamente o parceiro de comunicação para expres- senvolvem habilidades para conversação, embora muitos de- sar o seu desejo; senvolvam habilidades verbais e grande parte consiga desen- retardo no desenvolvimento da fala, retrocesso dessa ca- volver somente habilidades não verbais de comunicação. pacidade já adquirida e emudecimento em alguns casos;</p><p>40 / SÍLVIA ESTER LINGUAGEM E EDUCAÇÃO / 41 expressões por meio do uso de uma ou duas palavras ao se, porém, a denominação de desenvolvimento social ao pro- invés da elaboração de frases; cesso de incorporação da criança autista ao grupo social em ausência de espontaneidade na fala; que vive. pouca fala comunicativa, com tendências ao monólogo; que circula nessa literatura é que, com a criança autista, fala nem sempre correspondente ao contexto; as condutas sociais se dão de forma inadequada para sua cul- utilização do pronome pessoal de terceira pessoa do dis- tura, principalmente no que diz respeito à relação afetiva ma- curso ao invés da primeira; nifesta e na expressão dos comportamentos de interação, cuja frases gramaticalmente incorretas; diferença se manifesta mesmo em relação a crianças com ou- expressões bizarras, neologismos; tras patologias. Elas nos surpreendem com certa impene- estranha linguagem melódica e monótona; trabilidade e distância, demonstradas nas formas de interação dificuldade na compreensão de frases complexas; ou ausência de interação. dificuldade na compreensão de informações ou signifi- Relembrando a tese de Kanner (1943), o autista vem ao cados abstratos; mundo com uma incapacidade inata e de procedência biológi- mímica e gesticulação mínimas; ca para desenvolver o contato afetivo normal com as pessoas. ecolalia imediata e/ou posterior; Lamentavelmente, a questão acerca do desenvolvimento so- predominância do uso de substantivos e verbos; cial do autista não tem estado sempre presente nos programas pouca alteração na expressão emocional; voltados à sua aprendizagem ou aos programas de educação ausência ou pouco contato olho a olho; especial. O desconhecimento sobre o desenvolvimento social falta de função nas formas verbais e na palavra; da pessoa com autismo percorre tanto a área educacional quan- pouca tolerância para frustrações; to a área clínica, evidenciando a falta de mais estudos para interesses e iniciativas limitadas. proporcionar-lhes melhor qualidade de vida. Resumindo, em mais de 50 anos de pesquisa sobre o autismo descoberto por Kanner no final de seus estudos, reto- mamos que: Concluímos que, de acordo com os testes e os critérios do a) as descrições específicas sobre a inteligência e o aspecto DSM-IV e CID-10, utilizados para o diagnóstico da síndrome afetivo deixaram lacunas; do autismo, tanto as pessoas com autismo de baixo rendimen- b) a exposição circunstanciada da semiologia do autismo to como os de alto funcionamento têm demonstrado capaci- não sofreu alterações com o passar dos anos; dades limitadas no desenvolvimento de sua linguagem. c) o conceito e a compreensão do quadro como síndrome É importante ressaltar que ambientes ruidosos e baru- movimenta-se de um estágio inicial de uma psicopato- lhentos incomodam e causam danos à comunicação de autistas, logia para uma síndrome clínica; bem como ao seu estado mental, psicológico e emocional, ini- d) com os anos, a etiopatogenia do autismo irá contrapor- bindo-os de ficarem junto com as demais pessoas. se de uma posição psicopatológica para uma posição bio- Na literatura, pouco se fala sobre a questão social do lógica (genética e/ou bioquímica); autista, ocorrendo, em maior número, as considerações a res- peito das dificuldades ou da ausência de interação social. Dá- Dentro desse quadro do autismo, os problemas relaciona-</p><p>42 / LINGUAGEM E EDUCAÇÃO / 43 dos à comunicação são apontados como sendo severamente incapacitantes. Contudo, as palavras de Búrger Sellín, em nos- sa epígrafe, incitam-nos a esperar o que pode ser alcançado por meio de uma educação que não se detém diante da supos- ta imposição dos fatores biológicos, mas que reconhece em 2 todos os seres humanos a capacidade de transformar-se, ao transformar o ambiente que o rodeia, em uma existência em REVISANDO A HISTÓRIA E os que as relações sociais e a linguagem desempenham um pa- CONCEITOS DAS PRÁTICAS EDUCACIONAIS pel constitutivo. NA PESSOA COM AUTISMO Considerando as dificuldades encontradas pelo indivíduo autista nos processos de desenvolvimento e aprendizagem, vemos a necessidade de discutir, no próximo capítulo, a ques- tão da educação da pessoa com autismo no contexto da educa- 2.1 A EDUCAÇÃO DA PESSOA AUTISTA NA EDUCA- ção especial, ressaltando a necessidade de se repensar sua edu- ÇÃO ESPECIAL cação, colocando no desenvolvimento da linguagem o eixo principal da intervenção pedagógica, utilizando-se da Comu- As políticas educacionais têm apresentado a educação nicação Suplementar Alternativa como um código simbólico como uma condição básica para o desenvolvimento humano. de apoio na construção do signo. Esse processo de educação formal tem percorrido diversos contextos e diferentes momentos históricos, evidenciando, muitas vezes, dificuldades no que diz respeito à garantia de um ensino de qualidade para todos. contexto e as dificuldades para garantirem ao cidadão o direito à educação têm perpassado momentos críticos, mas também de transformações, em diversos países, inclusive no Brasil, especialmente no que diz respeito à educação das pes- soas com deficiências variadas. A luta desses deficientes com outras pessoas envolvidas, direta ou indiretamente com essa causa, tem feito com que a educação especial no Brasil seja um marco de conquistas rela- cionadas aos direitos humanos. Atualmente, as pessoas com necessidades educativas especiais têm garantido seu direito à saúde, à vida social, ao trabalho e à educação, como todo cida- dão, conforme é previsto pelo Ministério Público, pela União, pelos Estados e Municípios. Historicamente, pessoas com necessidades especiais</p><p>44 / SÍLVIA ESTER LINGUAGEM E EDUCAÇÃO / 45 foram colocadas à margem da sociedade, impedidas de desen- volver suas capacidades e habilidades como indivíduos e cida- durante o Modernismo lançou o homem à procura de novos dãos, sendo rotuladas com adjetivos que as limitam como in- horizontes que, até então, eram considerados suspeitos, pois a capazes ou doentes, apenas por influência de uma cultura ba- educação passava da transformação humanista para a cientí- seada nos princípios do belo e do perfeito. fica, valorizando-se o conhecimento somente quando este pre- parava o indivíduo para a vida e para a ação. Em civilizações antigas, os "diferentes" chegaram a ser sacrificados pelo fato de serem considerados inúteis e como Contudo, apenas no final do século XVIII, por causa da bus- ca do saber e do florescimento da liberdade individual do ser um "peso" para a sociedade. Durante séculos, foram reputa- dos como seres à parte, que precisavam ficar fora do convívio humano, foi que as bases dos hospitais psiquiátricos de Bicêtre por influência de Pinel, passaram a soltar os "loucos" das corren- de grupos sociais. Em meados da Idade quando o tes e a tratar os doentes mentais de modo mais humano. pensamento dominante se baseava na religiosidade da época, como o panteísmo do extremo oriente, o misticismo hindu e o No século XIX, quando o pensamento pedagógico era a magicismo babilônico, seu comportamento estranho era ex- formação do homem dentro dos moldes da ciência, Herbert plicado como manifestações sobrenaturais, provavelmente Spencer definia seu conceito de processo educativo como "um por não terem explicação compreensiva para a época. processo gradativo que deve seguir o ritmo das capacidades e aptidões do educando, que também se revelam Com a decadência do Império Romano e com o limite do domínio da cultura greco-romana no período da Idade Mé- gradativamente" (GILES, 1983: 86). Foi durante este período dia, a crença no sobrenatural se evidenciou ainda mais. O que se usaram várias expressões para diferenciar a educação e homem era concebido como um ser subordinado a poderes o atendimento dessas pessoas. (MAZZOTTA, 1996: 17) advindos do bem e do mal e, nessa interpretação, epilépticos Pelos caminhos da História, podemos acompanhar o modo como a pessoa com necessidades especiais foi tratada e conce- e psicóticos não passavam de pessoas possuídas pelo demô- nio e sujeitas a castigos por certos grupos cristãos ou, em bida, conforme os padrões relacionados aos valores sociais, morais, filosóficos, éticos e religiosos nas diferentes culturas. raras receptores de espíritos divinos adorados e reverenciados como profetas e adivinhos da época. Por meio As ações registradas pela História a respeito da rejeição, da intervenção das organizações cristãs no final do período dos maus tratos e da falta de visão, relacionadas aos que apre- Medieval, as pessoas submetidas às barbáries das determi- sentavam alguma deficiência, abriram lugar ao paternalismo e ao assistencialismo, resistindo ao conhecimento dos direitos nações preconcebidas pela Igreja passaram a ser assistidas do cidadão. como vítimas desprotegidas. Entretanto, mesmo assim, a marginalidade prevalecia. O Brasil, em função de suas relações internacionais, foi in- fluenciado por países da Europa e pelos Estados Unidos, por Com o e a revalorização da cultura greco- volta do século XIX, formando grupos para atendimento a romana, a busca do conhecimento científico deu lugar à preo- cegos, surdos, deficientes mentais e físicos, por iniciativa de cupação com indivíduo e com as soluções científicas para seus problemas. O avanço da medicina após o Renascimento e órgãos oficiais e, em alguns casos privados, por meio de alguns educadores que, preocupados com a questão, empenharam-se 10 Cf. in Mazzotta, 1996. na concretização de atividades inovadoras em função delas. 11 Cf. in Larroyo, F., 1970. 12 Cf. in Foucault, M., 1994.</p><p>LINGUAGEM E EDUCAÇÃO / 47 46 / SÍLVIA ESTER No entanto, apesar da formação desses grupos, somente "preferencialmente" e "sempre que possível" darem a apa- no século XX, entre o término da década de 50 e início da déca- rência de existirem reais preocupações com a educação do da de 60, foi que a política educacional do país incluiu a educa- indivíduo em questão. Na realidade, conforme se situa na ção no rol de suas atenções. Todavia, a sociedade Portaria Interministerial 186, em uma atitude astuta, nem mostrou-se interessada desde o começo deste século, com pu- sequer havia exigência de professor especializado para a con- blicações de trabalhos de origem técnica e científica relacio- dução de classes especiais, mas este seria contratado "sem- nados à educação daqueles indivíduos especiais. pre que possível". Evitava-se, dessa forma, um posicionamento político e Na trajetória de 1971 até 1985, a educação especial, como transformador que acarretaria a desacomodação geral de to- forma de tratamento, passou a ser uma medida participante de uma política educacional que passou a ver "educação de dos os órgãos do Governo, das verbas destinadas e do não conhecimento pleno de seus direitos, propostos na Constitui- excepcionais" como um caminho de conduta, objetivando, no final, a escolarização. ção, desviados pelas conotações ambíguas e premeditadas. A Definiu-se, também, o conjunto de clientes atendidos pe- razão específica da educação especial fica emaranhada nos los serviços especializados de origem por ór- refugos de uma política não muito bem compreendida, em que os instrumentos legais e os recursos não correspondem às ne- gãos ou entidades participantes do Centro Nacional de Educa- cessidades e às demandas dessa modalidade de ensino. ção Especial, pelos serviços de reabilitação da Fundação Bra- sileira de Assistência, pelos serviços de saúde da Previdência A partir de 1986, época da construção de um governo de- mocrático, a Educação Especial passou a ser compreendida Social e pelos serviços de reabilitação profissional prestados como inerente à Educação, enfatizando o pleno desenvolvi- pelo INPS/MPAS. A denominação usada para essa clientela mento das potencialidades "do educando com necessidades foi "os excepcionais", sendo a linha seguida de característica preventiva e exigindo-se diagnóstico de especiais"16 por meio da Portaria CENESP/MEC 69, de 28 excepcionalidade para tais atendimentos encaminhados pelos de agosto de 1986, além de ditar normas à prestação de servi- serviços da LBA/MPAS ou, na falta desses, pelos serviços de apoio técnico e/ou financeiro à Educação Especial nos especializados de origem e educacional, sistemas públicos e privados de ensino. Dois anos depois desse avanço com relação à educação existentes na comunidade. Nota-se que, durante um período de 13 anos (1972-1985), especial, foi publicada oficialmente a nova Constituição Bra- que afirma como dever do Estado o atendimento edu- as tendências políticas educacionais privilegiavam uma edu- cacional especializado às pessoas com deficiência na rede re- cação especial plenamente terapêutica, deixando os termos gular de ensino, e que passavam, a partir de então, a serem 13 Este é atualmente o termo utilizado, porém, anteriormente, teria sido: vistas como cidadãos brasileiros com seus direitos assegura- educação de deficientes e educação de excepcionais. dos por normas ditadas pela Constituição. As preocupações 14 Excepcionais de características e tipos variados que, passando ou não pelo relacionadas às suas necessidades especiais começavam a sur- tratamento de reabilitação, mostravam-se aptos a serem aceitos nos sistemas de ensino, quer fossem regular, supletiva e/ou especializada. 16 Expressão usada pela primeira vez em substituição do termo "aluno 15 sentido clínico e/ou terapêutico continuava a abafar o fim real da excepcional". educação especial. encaminhamento da criança era submetido sempre a 17 Cf. in BRASIL (Congresso Nacional). Redação final do Projeto de Lei um diagnóstico estigmatizante, objetivando a rigorosidade da cientificidade 1.258-C, de 1988. e adequabilidade.</p><p>48 / SÍLVIA ESTER LINGUAGEM E EDUCAÇÃO / 49 gir, e a legislação iniciou seu trabalho, já em atraso, a fim de deficiência, na rede regular de ensino, preferencialmente, e as melhorar-lhes as condições de vida em sociedade. condições especiais de escolarização para os superdotados. Para tanto, foram promulgadas leis, dispondo sobre nor- Passos significativos foram dados para a melhoria da mas de construções e adequação de logradouros e edifícios educação especial, desde o ano de 1957 até 1993. Não cabe de utilização pública e de transportes coletivos para a pes- aqui discutir toda a questão política, os entraves sociais soa com deficiência, além da criação da CORDE ou financeiros que impediram uma tomada de posição mais Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Porta- ativa, relacionada aos direitos da pessoa com necessida- dora de Aqui vale lembrar que, diante da es- des especiais como cidadão brasileiro. No Brasil, as políti- treita visão educacional seguida durante longos anos, as cas que deveriam ser responsáveis pela concretização de propostas de mudanças apresentadas depois de 1986, mes- uma educação compromissada com as pessoas com neces- mo com expressões dúbias e tendencionalmente sidades especiais costumam ser contraditórias, pois tra- discriminatórias, vêm beneficiando as pessoas com defici- zem consigo o reflexo dos conflitos socioeconômicos, en- ência em seus aspectos sociais e educacionais e que estão tre outras dificuldades. em busca de seu espaço dentro da sociedade. No período de 1993 até 1996, muitos projetos foram enca- A criação do Estatuto da Criança e do Adolescente, pela minhados ao Senado para a exigência de medidas mais con- Lei 8.069, de 13 de julho de 1990, foi um avanço para o tundentes quanto aos direitos da pessoa com deficiência e, exercício de direitos, rumo à cidadania, pois não há distinção como resultado de 25 anos de seguimentos definidos pela Lei entre a criança ou o adolescente portador ou não de deficiên- 5.692/71, a Nova Lei de Diretrizes e Bases da Educa- cia; simplesmente, é legal para todos, fazendo valer sua condi- ção Nacional 9.394, em 20 de dezembro de 1996, alterando ção pessoal de indivíduo em Logo em segui- antigos padrões da educação brasileira, inclusive os referen- da, no ano de 1991, foi editada a Resolução pelo fun- tes à educação especial. do Nacional para Desenvolvimento da Educação, De maneira geral, forma-se uma nova perspectiva para a condicionando o repasse do salário-educação para aplicação, educação especial. O marco diferencial é dado por colocá-la de pelo menos oito por cento dos recursos educacionais, no mais unida à educação escolar e ao ensino público, que passa a ensino especial, para os Estados e ser caracterizada como modalidade de educação escolar, de- Em 1993, foi fixado um dos mais importantes projetos de signada às pessoas com necessidades educacionais especiais, para a educação nacional, disciplinando a educação esco- iniciada ainda na educação lar como dever do Estado e da família, cabendo ao Poder Pú- A lei também é fundamental à preparação e à blico o atendimento educacional especializado às pessoas com capacitação do professor em plano nacional, para o traba- 18 Cf. Lei 7.853, de 24 de Estabelece normas gerais para o lho heterogêneo e includente da pessoa com necessidades exercício dos direitos individuais e sociais das pessoas portadoras de deficiência e sua efetiva integração social. especiais no ensino regular, medida que colabora com 19 Infelizmente, no ano seguinte, foi encaminhado pelo Governo Collor um a educação nacional, exigindo melhor qualificação do pro- projeto, solicitando alterações nesse orçamento, recorrendo à retirada de fessor para ministrar aulas. 20 vários bilhões de cruzeiros destinados à educação especial, para outros fins. Projeto de Lei 101, da Câmara Federal, que afirma as Diretrizes e Bases 21 Cf. LDBEN 9.394, Capítulo V, da Educação Especial: Artigo 58, 1996. da Educação Nacional LDB (Senado Federal, 1993). 22 Cf. LDBEN, 9394, Artigo 60, 1996.</p><p>50 / SÍLVIA ESTER LINGUAGEM E EDUCAÇÃO / 51 2.1.1 Uma concepção de educação centrada no deficit e na muitos que, se não fosse a cultura, teria impedido sua capaci- doença dade de realização como sujeito. No embate gerado pela atual política de inclusão, um as- 2.1.2 Marx e a concepção de homem e sujeito pecto fundamental é o de que a educação especial, em jetória histórica, apresenta-nos uma concepção centrada no Entre o término do século XIX e começo do século XX, deficit e/ou doença no que diz respeito à pessoa com deficiên- Marx nos traz contribuições acerca da concepção de homem, cia, desmerecendo a importância dos aspectos socioculturais que categorizam a noção de sujeito e de indivíduo, desencade- próprios da condição humana. Assim, o conceito de deficiên- ando um questionamento arrojado, problematizando sujei- cia paira sobre a pessoa que apresenta um deficit intelectual to como "o senhor de si" para submetê-lo "à ideologia, à lin- com funcionamento abaixo da média, somada a problemas de guagem, ao inconsciente" (SMOLKA, 1997:33). De acordo com comportamento e adaptação social, rotulando-a como inca- Marx, o ser humano se diferencia dos demais animais não por paz de aprender ou de acompanhar um ensino regular, além de causa de suas propriedades biológicas, mas por suas proprie- não problematizar seu contexto histórico-social, destinando- dades histórico-sociais, caracterizando a concepção de homem a, desse modo, a processos de exclusão de espaços sociais na a partir de sua concretude e não como um ser abstrato, pura- comunidade à qual pertence. mente biológico, mas como um produto histórico que sofre Para dar racionalidade científica aos processos sociais de transformações a partir do correr da evolução da sociedade e, exclusão, a educação muito se apoiou em medidas psico- inclusive, no contexto das classes sociais. métricas de inteligência. Infelizmente, as avaliações norteadas Marx, por meio de sua concepção ontológica do homem pelas disposições da psicometria abalaram os sistemas escola- como ser social, revela as relações sociais que existem nos res no que se refere à educabilidade da capacidade intelectual, bastidores dos próprios fenômenos sociais e seu aspecto his- os quais ficaram inativos quanto à educação e à reabilitação tórico. Logo, tal como expôs de maneira sucinta em sua VI dessas crianças. tese sobre Feuerbach: "a essência humana não é uma abstra- A literatura científica mostra que as práticas educacio- ção inerente ao indivíduo singular. Em sua realidade, é con- nais, desenvolvidas até então, pouco podem contribuir para a junto das relações sociais". (MARX e ENGELS, 1999: 13) inserção da pessoa com deficiência na sociedade. Isto nos re- Portanto, a pessoa com necessidades especiais, enquanto mete à necessidade de transcendermos os aspectos técnicos e ser humano, vive e também aspira por desfrutar de seus so- clínicos já mencionados, principalmente na esfera da forma- nhos, deseja, que vem implicar sua constituição de sujeito ção de educadores, tendo em vista a educação da pessoa e não que apenas seu treino em certas competências. não é apenas "influenciado" ou diretamente "controla- A problemática sobre as necessidades educativas especi- do" em uma relação causa-efeito pelo contexto social. ais tem sido concebida, em diversas sociedades, como uma A sociedade não é um mero "contexto" no qual ho- questão abrangente dos aspectos culturais e sociais de um povo mem irá se desenvolver. É constitutiva do homem, que difere nas aparências o "deficiente" e "não deficiente", pois as "condições sociais" estão na origem da sua cons- deixando o rastro do estigma acompanhar e marcar a vida de ciência. Ao participar do processo de constituição (tanto social quanto o de sua particularidade), homem se</p><p>52 / SÍLVIA ESTER LINGUAGEM E EDUCAÇÃO / 53 constitui. homem traz em sua especificidade, em sua individualidade, aspectos da própria sociedade. ção especializada, onde se encontra com diversos profissio- (KASSAR, 1999:8) nais da área da saúde e com professores que se deixam dirigir Vigotsky (1989) nos indica que o processo educacional, por concepções firmadas nas limitações de tal criança, naqui- baseado na concepção do deficit, praticamente impossibilita a lo que ela não pode ou não consegue fazer sozinha. pessoa com deficiência de desenvolver-se no âmbito das fun- ções psicológicas superiores, na medida em que as práticas 2.1.3 A história se repete com os autistas educativas ficam reduzidas. Esta redução ocorre nas concep- ções tecnicistas de educação que são hegemônicas na educa- Dessa mesma forma, tudo isso aconteceu com as pessoas ção especial e na formação de seus recursos humanos, autistas: foram criadas instituições especializadas para onde são encaminhadas, ali ficando segregadas e limitadas às con- baseada no empirismo associacionista, onde a apren- dizagem é entendida como mudança comportamental cepções reducionistas. e onde se postula que conhecimento da realidade está Na maioria das vezes, a criança com autismo convive em dado, independentemente do sujeito, e a ele chega por uma sala de aula com mais duas ou três crianças com o mesmo meio dos sentidos, na ocorrência das experiências in- perfil. A criança exposta a essa situação não tem referências soci- dividuais, sendo papel da educação o desenvolvimen- ais que a auxiliem a superar suas dificuldades, as quais costumam to de habilidades, as atitudes e a transmissão de co- ser relatadas nos critérios diagnósticos, pois seus colegas mani- (...) Estas são práticas que se fundamen- festam as mesmas características que ela própria apresenta. tam no positivismo funcionalista e este tem sido pre- dominante na orientação das escolas formadoras de Entretanto, a educação especial tem sido repensada a par- recursos humanos para a educação especial. tir da influência de novos paradigmas na educação, relevando (FERREIRA, 1994:6) a necessidade de se respeitar a heterogeneidade de capacida- Assim sendo, podemos, então, perceber e compreender des e de comportamentos dos sujeitos envolvidos na ação de que o fracasso escolar e a exclusão da pessoa com necessida- educar, procurando reorientar o trabalho do educador, até des especiais têm sido consequência da história de cada crian- então, estruturado pela descrição e hierarquização de carac- ça, pertencente a uma realidade social e, também, rotulada terísticas imutáveis nos quadros das deficiências, distantes de segundo os critérios e os procedimentos, muitas vezes, esta- sua condição histórica. belecidos no próprio meio escolar, como determinantes do Somente a partir da reflexão sobre a concepção que te- fracasso ou não desse ser humano. Nessa história, o sujeito mos de indivíduo, apoiada em pressupostos explicativos acaba sendo concebido de maneira fragmentada, em uma pers- acerca do seu desenvolvimento deficiente ou não, é que pectiva mecanicista ou organicista de ser humano, não sendo podemos compreender a deficiência como uma categoria compreendido como constituído pelo mundo cultural e sua presente na sociedade. história enquanto ser social. As abordagens educacionais para o trabalho com alunos Nas entrelinhas, os critérios utilizados estão afirmando autistas têm ficado em torno da visão em razão que esta criança está sujeita não apenas ao fracasso escolar mas também ao fracasso de ser concebida como um ser huma- 23 A psicanálise e as teorias cognitivistas também fizeram considerações acerca no, pois, em geral, a criança é encaminhada a alguma institui- do trabalho com autistas. No entanto, o que prevalece na maioria dos métodos utilizados ainda é a abordagem comportamental.</p><p>54 / SÍLVIA ESTER LINGUAGEM E EDUCAÇÃO / 55 de sua hegemonia, sobressaindo no trabalho com autistas a cepções psicológicas acerca do comportamento, as quais são vertente da modificação do comportamento por condiciona- assinaladas pela preocupação em relação às questões referen- mento operante. tes à aprendizagem. Fez uso da Lei do Efeito para conceituar que a aprendizagem é composta pela associação estímulo-res- 2.2 ESTUDOS DA ANÁLISE DO COMPORTAMENTO posta, seja positivo ou negativo, às respostas do indivíduo. E A MODIFICAÇÃO DO COMPORTAMENTO NO TRABA- De acordo com os estudos de Skinner (1974:7-11), suas LHO COM AUTISTAS UMA FORTE TENDÊNCIA conjecturas teóricas são: o comportamento é equivalente ao que pode ser estuda- A teoria behaviorista tem como característica não abor- do com objetividade; dar conceitos referentes aos estados mentais, fazendo-o ape- o homem é compreendido como sendo uma máquina que nas em relação a comportamentos observáveis. Pavlov e responde a estímulos externos; Watson, em seus estudos e pesquisas a respeito do comporta- há necessidade de instrumentos (aprendizagem) que co- mento humano, contribuíram para o surgimento dessa teoria operem para a modificação e o melhoramento dessa má- por meio do método de trabalho centrado na observação e na quina; experiência laboratorial, pelos quais os estados mentais são as ideias sobre liberdade, autonomia, dignidade e criati- influenciados e se constituem de forma lógica, a partir de dis- vidade são dissimulações acerca do comportamento, sem posições do comportamento. mérito explicativo e científico, quando expressam so- Skinner (1904-1990), psicólogo americano, que foi alu- mente formas diversas de condicionamento; no de Watson, é um dos proponentes para o behaviorismo os fenômenos são revelados para o pesquisador, de for- com relação ao comportamento (observável) determinado ma que a Psicologia recusa toda alusão à consciência, já pela sua relação com o meio químico, físico e social na for- que esta não pode ser observada de maneira experimen- ma de estímulos antecedentes como discriminativos de uma tal; contingência e consequentes como reforço ou punição que o comportamento pode ser formado por meio do con- vem fortalecer ou enfraquecer a frequência de emissão do trole de reforços positivos e negativos, resultando em comportamento com a instituição do conceito de condicio- uma relação eventual entre reforço (causa) e comporta- namento operante, em que todo o comportamento fica su- mento (efeito). jeito a mecanismos de controle, por meio de situações de O modelo utilizado para representação, no behavioris- reforço ou punições. mo, é a máquina. Assim, com relação ao homem, este é en- Skinner procurava trabalhar cientificamente com o que tendido como um ser passivo, um organismo que é era observável, dando maior atenção para a definição de como reativo, definido, controlado e manipulado pelo meio e suas o comportamento era provocado pelas forças externas. Em forças externas. Sua mente é compreendida como sendo sua concepção, todas as nossas ações e nossa maneira de ser uma tábula rasa, e todos os fenômenos humanos como rea- são formadas como resultado de experiências de punição, ções do organismo às forças externas. Logo, qualquer cri- reforçamento ou extinção. ança normal pode ser transformada em um especialista, por Skinner fez do associacionismo o fundamento de suas con- meio de estímulos selecionados, tal como afirma Watson</p><p>56 / SÍLVIA ESTER LINGUAGEM E EDUCAÇÃO / 57 (1925) apud Freire, R. (1997:108): Deem-me uma dúzia de crianças sadias, de boa consti- A abordagem comportamental, em sua concepção tuição e a liberdade de poder criá-las à minha manei- mecanicista de mundo e de homem, compreende a aprendiza- ra. Tenho a certeza de que, se escolher uma delas ao gem e o desenvolvimento como processos semelhantes, em acaso e puder educá-la poderei que a aprendizagem corresponde, reciprocamente, ao desen- transformá-la em qualquer tipo de especialista que eu volvimento. Logo, desenvolvimento é uma reação do sujeito queira: médico, advogado, artista, grande comerci- aos estímulos do meio ambiente, similar a um reflexo mecâni- ante e até mesmo em mendigo e ladrão, independen- temente de seus talentos, propensões, tendências, ap- co da aprendizagem. Naturalmente, a aprendizagem e o de- tidões, vocações e da raça de seus ascendentes. senvolvimento são resultados do condicionamento do meio, e a educação é tida como um programa de formação que treina- 2.2.1 Desenvolvimento e aprendizagem ria nos alunos passivos, com comportamentos inadaptados, conteúdos, hábitos, comportamentos e ações desejáveis para Para os behavioristas, fator que determina o desen- conviverem em sociedade. volvimento e a aprendizagem como dois processos que se Dessa forma, quanto ao desenvolvimento da linguagem, sobrepõem é a relação com o meio ambiente. A aprendiza- percebe-se o diálogo como cadeia complexa de comportamento gem é concebida como uma mudança observável nos com- verbal e relações de reciprocidade entre o aluno e seu profes- portamentos do indivíduo. A circunstância de aprendiza- sor, o aluno e seus colegas, sendo todas as ações reduzidas ao gem envolve recompensa e controle, planejamento condicionamento do sujeito por meio de conteúdos seleciona- criterioso das contingências de aprendizagem, das dos pelo professor para a memorização reprodutiva de com- sequências de atividades e modelagem do comportamento portamentos, vazios de sentido e de significado. do homem, por meio de manipulações de reforços, Em prol do condicionamento de habilidades e comporta- desconsiderando os elementos que não podem ser observa- mentos, é empregada uma técnica denominada Análise de Ta- dos ou sujeitos a esse mesmo comportamento. refas, que está relacionada com a lógica pedagógica no estabe- Nessa abordagem, a aprendizagem pode ser diretamente lecimento de sequências de aprendizagem. Assim, são analisa- observável pelas respostas emitidas pelo aluno; o professor das as tarefas referentes aos objetivos determinados pelo pro- tem a função de manipular as condições do ambiente do alu- fessor. Posteriormente, estabelecem-se as sequências de ati- no, o qual, por sua vez, assume o papel de receptor do conhe- vidades e, finalmente, é avaliado o que os alunos respondem cimento. A avaliação das metas de ensino é realizada a partir daquela sequência. Com essa técnica, o professor separa em da média das respostas do'aluno, evidenciadas pelas mudan- partes o comportamento que deseja alcançar do aluno como ças ocorridas em seu comportamento. resultado final. São passos fragmentados que vão do mais sim- Na Educação Especial, o modelo comportamental está ples ao mais complexo, visando a facilitar-lhe a aprendizagem. centrado na interdependência entre intervenção e avaliação, Para Skinner, é possível controlar a evolução da aprendi- portanto, o diagnóstico é realizado mediante a observação das zagem do aluno por meio da apresentação das informações em competências e das dificuldades apresentadas por meio de tes- períodos não longos, oportunidade em que é avaliado a partir tes, com base em critério e observação do comportamento, de sua participação ativa por meio de respostas reproduzidas, que responderão o que aluno poderá ou não realizar. tendo como indicação de acerto ou erro a emissão imediata de um reforço.</p><p>58 / SÍLVIA ESTER LINGUAGEM E EDUCAÇÃO / 59 2.2.2 Behaviorismo e Autismo comportamentos dos repertórios citados, são utilizadas as ações de imitar e de observar instruções apresentadas (reper- As primeiras pesquisas comportamentais enfocando a cri- tórios de apoio), nomeação, posse de objetos e descrição de ança com autismo foram as de Ferster (1961) e Ferster e ações diversas (verbais); reconhecimento das partes do corpo DeMyer (1961, 1962), realizadas em laboratório, cuja contri- e discriminações perceptivo-motoras. A ação de imitar sem- buição foi explicitar, de forma concreta, a aplicabilidade dos pre acontece a partir do modelo que é fornecido pelo profes- princípios de aprendizagem ao estudo de crianças com distúr- sor, seguindo uma determinada sequência. bios de desenvolvimento, de acordo com as adequações No treino das instruções verbais que visam ao aprendi- ambientais que provocavam alterações no comportamento zado de responder a instruções simples e complexas, o pro- delas. As muitas pesquisas publicadas a partir da década de 60 fessor induz o aluno a emitir as respostas desejadas por meio relataram diversos programas de intervenção que apresenta- de pistas verbais que vão, aos poucos, dissipando-se, confor- vam os princípios da teoria de aprendizagem como aplicáveis, me as respostas do aluno estejam sob o controle das instru- não apenas a comportamentos simples mas também a outros ções que lhe foram repassadas. Detalhando: o professor apre- de natureza mais complexa e clinicamente significantes. senta ao aluno blocos lógicos e lhe diz o nome de cada um No trabalho com alunos autistas, Ferster (1961) discutiu a deles. Solicita ao aluno que pegue a forma que representa o questão da aprendizagem do comportamento autista, tendo quadrado. Na ausência da resposta correta, o professor aju- como fundamento os pressupostos operantes que entendem da o aluno a reconhecer a peça solicitada por meio de repeti- ser comportamento humano controlado por suas conse- ções verbais e indicações, até que este seja capaz de pegar quências e, em razão de variáveis históricas e ambientais, o aquela peça corretamente. comportamento da criança com autismo não é funcional. Para o analista do comportamento, o tratamento do autismo Segundo essa concepção, haveria uma relação mútua en- envolve um procedimento abrangente e estruturado de ensino- tre a baixa frequência de respostas e a baixa de aprendizagem, em conjunto com terapias médicas, seguindo os reforçadores condicionados e estímulos discriminativos, o que critérios funcionais e sociais, a fim de superar rótulos, diagnós- concordaria com o curso dos acontecimentos referentes à ticos ou resultados psicométricos nem sempre precisos. A tera- interação e à aquisição empobrecida e um tanto ineficaz da- pia comportamental trabalha com três fases que se dividem em: quelas crianças com a síndrome. avaliação comportamental, seleção de metas e objetivos, ela- Em uma abordagem comportamental, os procedimentos boração de programas de tratamento e intervenção. para trabalho com autistas compreendem avaliação Enfim, todas as ações pretendidas por um professor na comportamental, treino de repertórios de apoio, verbais e abordagem comportamental são fartas de treino e de repeti- perceptivo-motores, treino em interação social, comporta- ções para que o aluno aprenda a realizar o comportamento mento verbal e comportamentos acadêmicos, cujo objetivo é desejado e adequado. No trabalho com autistas, o professor a redução de comportamentos e a ampliação da procura reduzir ao máximo a possibilidade de erro nas respos- atenção do sujeito. Como procedimento do treinamento de tas de seu aluno, para que este não se encontre em situação de frustração. Ocorre que em tais pressupostos, próprios do 24 Entendem-se comportamentos estereotipados e fala ecolálica acompanha- behaviorismo, não são privilegiadas as relações sociais genuí- dos de falta de atenção.</p><p>60 / SÍLVIA ESTER LINGUAGEM E EDUCAÇÃO / 61 nas e próprias do ser humano, das quais procedem o desen- O programa TEACCH visa indicar, especificar e definir volvimento da atividade consciente do homem, a internalização de conhecimentos, a generalização, o desenvolvimento do sen- de maneira operacional os comportamentos que devem ser tido e do significado. trabalhados. Ele possibilita desenvolvimento de repertó- rios que são usados para avaliar os aspectos referentes à Os métodos educacionais fundamentados na teoria interação e organização do comportamento, além do de- comportamental buscam o treino do sujeito, de acordo com senvolvimento do indivíduo nos diferentes níveis. O ambi- a emissão de comportamentos exploratórios e adequados, sob instruções previamente colocadas. Posteriormente. ocor- ente é totalmente manipulado pelo professor ou pelo pro- fissional que atua com o autista, visando ao desaparecimento re a avaliação comportamental, mediante observação direta ou à redução de comportamentos inadequados a partir de e com registros que demonstram a frequência dos comporta- reforço positivo. mentos manifestados. O método TEACCH utiliza estímulos visuais e audiocinestesicovisuais para produzir comunicação. As ativi- 2.3 O PROGRAMA TEACCH E A MODIFICAÇÃO DO COMPORTAMENTO dades são programadas individualmente e mediadas por um profissional. Nas salas de aula, em geral, costumam estar, no máximo, cinco alunos com a síndrome. O professor, entendi- No percorrer da perspectiva teórica behaviorista, desen- volve-se, dentre as poucas abordagens educativas pertinentes do como um mediador, aplica uma tarefa a um dos alunos, ao autismo, o método TEACCH. enquanto os demais permanecem trabalhando sozinhos, com o auxílio de um assistente treinado que os observa. A O TEACCH (Treatment and Education of Autistic and related Communication hadicapped Children) Tratamento metodologia de ensino se dá a partir da condução das mãos do aluno que faz uso dos símbolos, em um contínuo direciona- e Educação para Autistas e Crianças com Deficits relaciona- dos à Comunicação surgiu, em 1966, como uma prática mento de sua ação até que se encontre em condições (ou se psicopedagógica, a partir de um projeto de pesquisa desenvol- mostre capaz) de realizar a atividade proposta sozinho, po- rém, com o uso do recurso visual. vido na Escola de Medicina da Universidade da Carolina do O método procura, principalmente, enfocar a comunica- Norte, pelo Dr. Eric Schopler que questionava a prática clíni- ca de sua época a mesma que concebia a origem do autismo ção do aluno, crendo que a ela se antepõe a lingua- segundo uma causa emocional, devendo ser tratado pela con- gem expressiva. As atividades realizadas são conduzidas pela cepção da psicanálise. linguagem dos símbolos apresentados. Os princípios do TEACCH também enfocam que é muito difícil e mesmo im- Atualmente, é um dos métodos frequentemente utiliza- dos no Brasil e no mundo por instituições que trabalham com provável que um autista construa a generalização do que autistas e tem seus princípios baseados na teoria aprendeu e a realização de analogias, por isso estrutura total- mente o ambiente com os símbolos e direciona suas ativida- comportamental. Ele é considerado um programa educacio- nal e clínico com uma prática psicopedagógica que observa os des. (FARAH, L.S.D.; GOLDENBERG, M., 2001: 22) Por outro lado, afirma que o autista possui a capacidade comportamentos de crianças autistas em distintas situações, de acordo com vários estímulos. de pensar e compreender, porém, de maneira distinta, indivi- 25 Comunicação receptiva/emitiva são termos utilizados neste método.</p><p>62 / SÍLVIA ESTER LINGUAGEM E EDUCAÇÃO / 63 dualizada. Para tanto, desenvolve repertórios de comporta- la CARS (Childhood Autism Rating Scale) destinada à avalia- mentos baseados em rotinas que são direcionadas por ção e ao diagnóstico do autismo, com o objetivo de classificar recurso visual em uma estruturação física e de material utili- o nível de manifestação da síndrome em crianças em idade zado, que prima por reduzir problemas de comportamentos pré-escolar. Foi criado também o PEP (Psychoeducational inadequados e por organizar seu comportamento para que pos- Profile) como instrumento avaliativo para crianças entre seis sa haver aprendizagem. O programa cria condições para avali- meses e sete anos, de acordo com observação minuciosa de ar o aluno por tarefas que o classifiquem de acordo com o oito áreas do desenvolvimento. Visando ao atendimento dos nível de desenvolvimento cognitivo e interacional apresenta- adolescentes com autismo, com qualidade eficiente, foi de- do, por acreditar que o desenvolvimento de comportamentos senvolvido o APEP (Adolescent and Adult Psychoeducational adequados gera autonomia. Profile) como uma continuação do PEP, enfocando compor- As características educativas do TEACCH são encontra- tamentos e planejamento educacional. das em sua compreensão das técnicas de atuação a partir de Por ser observado como uma síndrome que acomete se- trabalho individualizado, objetivos a serem alcançados a cur- veramente indivíduo, o autismo traz consigo estigma de to prazo, observação e avaliação contínuas, material apropri- que não há nada, ou quase nada, que se possa fazer no âmbito ado e adequado à criança que pode ser disponibilizado com educacional aos seus portadores. Assim, as terapias e os mé- facilidade e que permite comunicação. Os utilizados todos de atuação se restringem mais a modificações de com- são imagens que podem substituir, na comunicação, a portamento. inexistência de linguagem, conduzindo a criança a comporta- Nossa tese se origina da percepção de que as concepções e mentos cada vez mais satisfatórios, por meio de interações os métodos acima citados se fundamentam nos deficits que sucessivas e compreensão de seu ambiente. O programa tam- impossibilitam a pessoa com autismo a desenvolver as fun- bém prima pela organização e estruturação do ambiente físico ções psicológicas superiores, na medida em que a síndrome a e por uma rotina diária previsível que não dê margem a erros e restringe a uma existência empobrecida socialmente, isolan- confusão para a criança, em função dos deficits inerentes ao do-a de experiências a serem vivenciadas em diferentes espa- seu problema. culturais. É preciso atentar para a necessidade de trans- O TEACCH é relevante no trabalho com autistas, no que formação no âmbito educacional desse aluno, de forma que diz respeito a uma metodologia eficaz para as modificações de ele supere a falta de sentido inerente a treinos isolados de com- comportamentos. Tem sido adotado e aplicado em países portamentos e de forma que ele amplie o universo cultural e anglo-saxões pelas diversas associações e instituições existen- social de suas escolas. tes. No entanto, tal programa educativo se atém ao aspecto do condicionamento em que o sucesso ou o fracasso pode estar 2.4 COMUNICAÇÃO, AUTISMO E LINGUAGEM sujeito a atos de recompensa ou de reprovações. Primando pela eficiência, TEACCH desenvolveu a esca- Entre as funções da linguagem temos a "comunicação" que se faz por meio da ação de emitir, transmitir e de receber in- 26 Os códigos atualmente são conhecidos como Comunicação Suplementar formações por meio de métodos e/ou processos estabeleci- e/ou Alternativa e se constituem elementos imprescindíveis no método TEACCH. dos que podem decorrer da linguagem falada, escrita ou codi-</p><p>64 / SÍLVIA ESTER LINGUAGEM E EDUCAÇÃO / 65 ficada por signos ou símbolos, que permitem e possibilitam a sua efetivação. (FERREIRA, 1986) em relação ao desenvolvimento da linguagem falada. Tais sis- Essa visão de comunicação está em uma perspectiva temas de comunicação são os que proporcionam expressão comportamental e é concebida como um ato de so- por meio de símbolos distintos da fala funcional de quem se cial que ocorre entre, pelo menos, duas pessoas que se co- comunica, sendo classificados em sistemas de comunicação municam em formas diversas e por diferenciadas razões. A sem ajuda e sistemas de comunicação com ajuda. (BASIL, 1988) princípio, a comunicação ocorre quando uma pessoa envia Os sistemas classificados como "sem ajuda" não reque- rem nenhum instrumento ou auxílio técnico externo para que uma mensagem e uma outra pessoa a recebe, havendo aqui a comunicação se efetue e se exprimem com: uma comunicação partida da intencionalidade de se impactar o comportamento da outra pessoa. A comu- gestos de uso comum, pertencentes a uma comunidade nicação que não é intencional é uma conduta que acaba sen- (afirmação, negação com a cabeça, aceno com as do interpretada por outros, não deixando, no entanto, de códigos gestuais não linguísticos (sistema de comunica- ter algum significado. ção manual de tribos indígenas). A comunicação é um processo complexo de transmissão Já os sistemas de comunicação "com ajuda" abarcam de de informação utilizado pelo ser humano com o propósito de forma ampla os elementos de representação, desde os influenciar o comportamento daqueles que nos rodeiam, com- iconográficos até os mais complexos e abstratos. São eles: partilhando informação, exprimindo desejos e sistemas com elementos muito representativos: objetos, Esse processo contínuo que ocorre em um ambiente natural e fotografias, desenhos representativos; no cotidiano pode ser preenchido por outras formas, tais sistemas constituídos por desenhos lineares, como é o caso como: a mímica, as ações práticas, as expressões faciais, a ori- dos pictogramas. entação corporal, os gestos como o indicar, os desenhos, os símbolos ou as palavras que se materializam segundo uma for- A fim de que tais pessoas possam desenvolver a capacida- ma multimodal. de de exprimir seus pensamentos e sentimentos, foi desenvol- A comunicação verbal é o meio de comunicação mais co- vida a Comunicação Suplementar e/ou Alternativa como um mum entre os seres humanos. Contudo, nem todas as pessoas meio de comunicação que pode ser considerado uma verda- são capazes de verbalizar ou de utilizar a fala de modo que sejam deira ferramenta de apoio ao professor, aos familiares e ao compreendidas, como é o caso daquelas que se encontram im- grupo social a que aqueles indivíduos pertencem. A Comuni- possibilitadas de falar ou de escrever, em virtude da sua incapa- cação Suplementar e/ou Alternativa (CSA) toma como refe- cidade neuromotora, originada pela patologia que portam. rência todo o tipo de comunicação suplementar ou de supor- O modo de pensar a função comunicativa da te, especialmente baseada em símbolos gráficos e em tec- descrito acima, ensejou a possibilidade da criação de sistema nologias de apoio (nomeadamente os computadores e as de comunicação não verbal para as pessoas com deficiência interfaces específicas) de suporte ao processo de comunica- ção, permitindo à pessoa que se encontra nesta situação exce- 27 termo comunicação expressiva corresponde à expressão de sentimentos der os limites de parte de suas incapacidades, conforme qua- afetos (2004:21). e emoções. É comumente utilizado no método Teacch. Cf. MEC dro e o ritmo de cada um. De acordo com Chun (1991), não seria possível obter a</p><p>66 / SÍLVIA ESTER LINGUAGEM E EDUCAÇÃO / 67 história em detalhes a respeito do desenvolvimento da Comu- responsável era Shirley MacNaughton. (CHUN, R. Y; nicação Suplementar e/ou Alternativa no Brasil, já que os pri- MOREIRA, E. C, 1997: 137-175) meiros trabalhos sobre o assunto se encontram desconheci- No início, o método foi aplicado com crianças que não dos por terem sido registrados de maneira informal. A partir falavam, em virtude da paralisia cerebral, sendo tempos de- da década de 70, novas concepções surgiram com relação à pois estendido a pessoas com outras patologias (retardo men- imagem da pessoa com deficiência, não a vendo apenas por tal, afasia, autismo, entre outras). A partir de 1974, a utilização meio de seus comprometimentos e danos mas também pelas do Sistema Bliss de Comunicação acabou extrapolando os li- suas habilidades, enfatizando sua integração social. Antes, a mites daquele centro, passando, em 1975, à criação da abordagem oralista predominava nas intervenções em reabi- Blissymbolics Communication Foundation, conhecida presen- litação; contudo, por meio desse novo olhar acerca da pessoa temente como Blissymbolics Communication International com deficiência, a ação social da comunicação se torna mais em Toronto. saliente e visível. No Brasil, em 1978, a Associação Educacional Quero-Que- No ano de 1971, uma equipe de profissionais do Ontário ro de Reabilitação Motora e Educação Especial foi uma das Crippled Children's Centre, em Toronto, Canadá, desenvol- instituições pioneiras na implantação desse sistema como veu um estudo dedicado à descoberta de um meio alternativo método de ensino nos anos 80. Na década de 80, a Comunica- de comunicação para a clientela com distúrbios neuromotores, ção Suplementar e/ou Alternativa se expandiu pelo Canadá, que não manifestavam a fala funcional. Até então, dos diver- desenvolvendo-se principalmente nos Estados Unidos, Ingla- métodos investigados em instituições especializadas para terra e Austrália. Como fonte inspiradora, no ano de 1981, foi o processo de ensino/tratamento de crianças em circunstân- desenvolvido nos Estados Unidos o Picture Communication cias semelhantes, todos se mostravam não satisfatórios, limi- Symbols, por Roxana Mayer Johnson. tando o desempenho linguístico a poucos contextos, termo Comunicação Suplementar e/ou Alternativa desprestigiando outras diversas situações de comunicação que (CSA) é utilizado para definir outras formas de comunicação poderiam ser aproveitadas. como o uso de gestos, da língua de sinais, das expressões faciais, Diante de tal situação, descobriram em Signs and Symbols o uso de pranchas de alfabeto ou símbolos pictográficos e até around the World, de Elizabeth Helfman, um sistema simbóli- o uso de sistemas sofisticados de computador com VOZ sinteti- co de nível internacional criado por Charles K. Bliss (baseado zada. Tem em vista o auxílio ao desenvolvimento da autono- na escrita pictográfica chinesa e nas ideias do filósofo Leibniz), mia pessoal por meio de recursos tecnológicos, técnicas de o Blissymbolics Sistema Bliss de Comunicação. Seu objetivo inteligência artificial, como a utilização de esquemas monta- era o de desenvolver uma maneira de criar uma linguagem dos por fotos, figuras extraídas de revistas, conforme o con- universal entre os homens (desenvolvido entre 1942 e 1965), texto e a necessidade a ser suprida. A terminologia básica a ou seja, um instrumento de comunicação mundial. Esse siste- define da seguinte forma: ma não foi inicialmente destinado a pessoas com distúrbios de comunicação, começando apenas a ser usado com esta finali- Comunicação aumentativa é "toda comunicação que su- plemente a fala (gestos, expressão facial, linguagem cor- dade em 1971, depois de algumas adaptações realizadas junta- mente com Charles Bliss e a equipe canadense, cuja principal poral, comunicação gráfica etc.)" (BLACKSTONE, 1986). Comunicação Suplementar e/ou Alternativa "é uma área</p><p>68 / SÍLVIA ESTER LINGUAGEM E EDUCAÇÃO / 69 da prática clínica que se destina a compensar (temporária interagir com pessoas distintas em seus variados contextos e ou permanentemente) os prejuízos ou as incapacidades experiências. dos indivíduos com severos distúrbios da comunicação Há diversos sistemas simbólicos que estão englobados na expressiva" (ASHA, CSA e que auxiliam o trabalho com pessoas com deficits nas Segundo Vanderheiden e Yoder (1986), o termo alterna- habilidades de comunicação. Vários desses sistemas já vêm tiva empregado em conjunto com aumentativa refere-se a sendo incorporados a recursos de informática, que facilitam o indivíduos que têm a fala prejudicada, de maneira que neces- armazenamento de símbolos. Dentre eles, podemos citar: sitam de um meio de comunicação (não que o amplie) alter- Core Picture Vocabulary: Código pictográfico criado por nativo a ela. Don Jonston no ano de 1985. Constitui-se por um vocabu- Chun (1991) considera que o termo mais apropriado seja lário de 109 significados. Sua versão é padronizada e auto- Comunicação Suplementar e/ou Alternativa, pois aborda toda adesiva. forma de comunicação que complemente, substitua ou apóie a fala (olhar, vocalizações, gestos, expressão facial, sorriso, Picture Communication Symbols: Código pictográfico de- alteração de tônus muscular etc.). senvolvido por Roxana Mayer em 1980. Constitui-se com A CSA é constituída por símbolos que possibilitam repre- cerca de 3.000 símbolos. Está disponível em programas de sentações visuais, auditivas ou táteis. Eles podem ser dividi- computador, no formato de selos e adesivos. dos em: Pictogram Ideogram Communication: Código que, em símbolos que não necessitam de recursos externos: quan- parte, é pictográfico e, em parte, é ideográfico. Criado por do a pessoa utiliza apenas o seu corpo para se comunicar. George Goudation. Constitui-se por 416 elementos. São exemplos desse sistema os gestos, os sinais manuais, PICSYMS: Sistema gráfico criado por F. Carlson nos Esta- as vocalizações e as expressões faciais; dos Unidos. É utilizado em idade infantil e constituído por símbolos que necessitam de recursos externos: requerem cerca de 850 símbolos. instrumentos ou equipamentos, além do corpo do usuá- Símbolos Bliss: Sinais gráficos fundamentados no signifi- rio, para produzir uma mensagem. Esses sistemas podem cado e não na fonética. Desenvolvidos por Charles K. Bliss. ser muito simples, ou de baixa tecnologia; tecnologicamen- Seu uso iniciou-se na década de 70 em nível internacional. te complexos ou de alta tecnologia. PECS Picture Exchange Communication System: Sis- objetivo da CSA é favorecer a capacidade das pessoas tema de Intercâmbio de imagens PECS foi desenvolvido no estabelecimento e na manutenção da interação social e a pelas dificuldades ao longo dos anos, com outros progra- possibilidade da comunicação. O símbolo, seu formato de mas de comunicação (BONDY e FROST, 1994). produção e o ato de emissão e recepção de informações são Rebus: Inicialmente, criado em 1968 e adaptado e expan- um meio e não um fim em si mesmo. Também objetiva que as dido para indivíduos com problemas de comunicação nos pessoas que utilizam o sistema de comunicação generalizem Estados Unidos. É composto por 800 símbolos em preto e o que aprendem de comunicação, de forma que possam branco que, combinados, podem representar mais de 2.000 palavras. 28 American Speech-Language-Hearing Association.</p><p>LINGUAGEM E EDUCAÇÃO / 71 70 / SÍLVIA ESTER Essas alternativas de comunicação, a partir da utilização ensinar e interagir com pessoas que se encontram nas situa- de sistemas de símbolos, permitem a representação do voca- ções mencionadas, para haver eficácia, é preciso que seu usu- bulário e de imagens representativas de situações diversas que ário apresente motivação para se comunicar, demonstrada por podem ser dispostas em cartões individuais, cartazes, agendas meio do desejo de estabelecer uma comunicação interativa; ou cadernos de comunicação, possibilitando a criação de fra- que haja aceitação e envolvimento de sua parte e das pessoas ses, o apontamento do que se deseja, a expressão de sentimen- que o acompanham na utilização de um determinado sistema tos, o conhecimento adquirido, a interação social, além de de comunicação, haja atenção aos estímulos do contexto em aumentar a qualidade de vida das pessoas, principalmente da- que o usuário está inserido pois há a necessidade de que a quelas com dificuldades graves, que acabam sendo isoladas pessoa tenha certa habilidade cognitiva e nível de acuidade do convívio social. visual e haja envolvimento de outros profissionais que Sua utilização tanto pode ser um meio temporário de co- acompanham em seu desenvolvimento e tratamento. municação até que a pessoa adquira uma fala funcional, como No ato de se desenvolver um trabalho com CSA, foi preci- também um meio permanente de comunicação, no caso de levar em consideração alguns fatores que, com certeza, in- comprometimentos severos de fala. A CSA é um mecanismo tervêm no processo. É de suma importância ao educador, em facilitador para o desenvolvimento da comunicação oral e que seu trabalho com a pessoa, fazendo uso de CSA, que construa pode ser trabalhada por meio da mediação do outro (profes- um programa de intervenção baseado no perfil de seu usuário, sor, família, grupo social...), também otimizando o desenvol- no seu contexto e na sua história de vida. Esse programa de vimento de habilidades, conceitos, estruturas lingüísticas e o intervenção deverá ser pensado e construído, levando-se em processo de aprendizagem da leitura e escrita. conta, além do usuário, seus interlocutores principais e os con- A CSA é um instrumento a ser utilizado como ferramenta textos mais respectivos com suas necessidades cruciais a se- de apoio no desenvolvimento da linguagem e no suporte rem relevadas. Como parte integrante do programa de inter- pedagógico para o trabalho com pessoas que possuem difi- venção, devem estar incluídos, de forma significativa, os as- culdades de comunicação inerentes à dificuldade na pronún- pectos referentes às implicações emocionais próprias das re- cia e na articulação das palavras (disartria) que se apresen- lações interpessoais de comunicação. tam em patologias degenerativas, retirada parcial ou total da Em virtude das experiências vivenciadas e acumuladas laringe (laringectomia) e fala incompreensível. Também é em nosso trabalho, vamos nos ao Picture Communication utilizada como auxiliar no caso de alterações de linguagem Symbols Sistema Pictográfico de Comunicação, uti- adquirida, como a perda total ou parcial da fala (afasia), in- lizado por crianças com autismo. O sistema, desenvolvido em capacidade verbal na execução de movimentos coordena- 1981 por Roxana Mayer Johnson, compunha-se de 700 símbo- dos, sem que exista paralisia (apraxia verbal), perda ou per- los iniciais, sendo, posteriormente, ampliado para aproxima- turbações da condição de reconhecimento perceptivo sen- damente 3.200 símbolos. É um sistema gráfico visual que sorial que impossibilitam a pessoa de reconhecer a natureza 29 Figuras no final desse capítulo Picture Communication Symbols (PCS): e a significação das coisas em geral, em nível auditivo, visual exemplos de figuras do PCS. PCS é comumente utilizado pelo método TEACCH no trabalho com alunos autistas e paralisia cerebral. Por ter sido ou táctil (agnosias). criado em formato de software, garante maior facilidade em sua implanta- Todavia, embora a CSA seja significativa para o ato de ção no cotidiano do profissional e do aluno.</p><p>72 / SÍLVIA ESTER LINGUAGEM E EDUCAÇÃO / 73 compreende desenhos simples, podendo ser acrescido de fo- 2.4.1 A presença do condicionamento no programa TEACCH tografias, figuras, números, círculos para cores, alfabeto e ou- tros desenhos ou conjuntos de símbolos. O sistema de trabalho do TEACCH e da maioria das for- Suas características referentes a vocabulário estão com- mas de trabalhar com comunicação suplementar alternativa, postas em uma divisão de seis categorias principais, represen- não mencionadas aqui, é fundamentado na relação causa-efei- tadas por cores, conforme a função de cada símbolo. O Branco to e na noção de sequência por meio de atividades individuais. (miscelânea) representa: artigos, conjunções, preposições, Tais atividades informam o aluno sobre qual atividade ele deve conceito de tempo, alfabeto, cores etc. O Amarelo representa realizar, quantas vezes e por quanto tempo deverá fazê-la, dan- pessoas e pronomes pessoais. A cor Laranja os substantivos. O do-lhe pistas para saber quando concluiu a atividade e qual Azul representa advérbios e adjetivos e a cor Rosa os símbolos será sua próxima tarefa. Após o ensino individual e a apresen- referentes a expressões sociais. tação de domínio da atividade, o aluno passará a realizar tais O suporte físico para a disposição dos símbolos varia, des- atividades de maneira sistemática. de suportes de baixa tecnologia, tais como: pranchas de co- O professor, ou profissional, procurará encontrar atra- municação, pastas, agendas, álbum de fotos, cartazes de pre- tivos aceitos pelo aluno. Uma vez encontrados, o profissional gas, até equipamentos eletrônicos de alta tecnologia, como apresenta ao aluno um símbolo pictórico que representa aque- softwares, microcomputadores, sintetizadores de voz, pran- le objeto. Por exemplo, o aluno gosta de biscoito. Enquanto chas eletrônicas. aluno tenta pegar os biscoitos, profissional o orienta a apon- Por sua vez, a seleção dos símbolos a serem utilizados é tar para pedir primeiro a figura que representa este objeto e a decorrente de avaliações das habilidades motoras e cognitivas entrega em sua mão. No momento em que o aluno faz solici- do usuário, no intuito de verificar a forma aplicada para a indi- cação dos símbolos (apontar, indicar com o olhar, apontar por tado, o profissional lhe diz: "Você quer biscoitos!", entregan- meio de ponteiras adaptadas, acionar dispositivos eletrôni- do-os nas mãos do aluno. Então, percebe-se aqui que o profis- cos...). Para a definição dessa disposição, a técnica de seleção sional não pergunta ao aluno o que ele deseja, mas espera-se mais apropriada ao usuário releva qual a sua posição em rela- que todas as ações aconteçam a partir das indicações por meio ção ao suporte físico de comunicação, sua precisão na indica- das figuras que representam algum objeto ou ação a ser reali- ção dos símbolos, o nível de cansaço resultante do trabalho e o zada. Os alunos são ensinados a darem a figura representativa ritmo em que se dá a comunicação. em troca daquilo que desejam obter sem, contudo, haver rela- Por meio de anamnese e de uma avaliação detalhada em ções dialógicas entre os comunicantes. abordagem conjunta com a equipe multidisciplinar, é que se- A sistematização desse trabalho costuma ocorrer da se- rão determinados quais os aspectos importantes do processo guinte maneira: educacional e terapêutico. Logo, há necessidade de se auxiliar o profissional dispõe de diversas figuras durante o perío- futuro usuário no desenvolvimento de pré-habilidades para do de treinamento que costumam ficar dentro de pouchet, a utilização do sistema suplementar e/ou alternativo de co- aventais ou caixas, além de haver um quadro ou algo se- municação escolhido e, para tanto, realizar a seleção do reper- melhante onde tais símbolos se encontram disponíveis para tório básico de símbolos a ser utilizado e estar atento ao ritmo os alunos; na introdução de novos símbolos. o profissional sempre procura evitar que o aluno cometa</p><p>LINGUAGEM E EDUCAÇÃO / 75 74 / SÍLVIA ESTER um aluno que não consegue identificar os reforços expos- algum erro que lhe reforce o fracasso na atividade; tos deverá ser observado para receber uma recompensa sempre que o aluno queira algo, deverá apresentar ao pro- mais satisfatória e que tenha mais potencial, a fim de que fissional a figura correspondente; somente após essa con- ele tenha a oportunidade de ser capaz de dar a resposta duta, é que obterá a resposta desejada; desejada. em geral, não se costuma dar incentivos verbais; evita-se dizer ao aluno "O que você quer? O que aconteceu? Pegue Portanto, percebemos no TEACCH que a associação en- a figura"; tre o símbolo pictórico e o significado da informação a ser todas as ações são organizadas pelo profissional para que, veiculada nem sempre é requerida em situações dialógicas nas no decorrer do dia, o aluno possa solicitar-lhe algumas relações sociais. delas; Vemos, como resultado desta investigação educativa, que, sempre que.o aluno alcance a figura correspondente, de- embora a síndrome do autismo desencadeie diversos compro- verá ser recompensado; metimentos no desenvolvimento global, muitas vezes, a cri- ança observada não apresenta um melhor desenvolvimento a ação de o profissional estender a mão é a dica para que o em sua interação social, linguagem e aprendizagem, não em aluno lhe dê a figura esperada; razão da síndrome propriamente dita mas em razão da sua pri- treino de figuras é realizado com um grupo de figuras, vação social e cultural. utilizando uma por vez (exemplo: grupo de figuras refe- De acordo com Amaral (1995: 63-65), pode ocorrer algo rente a frutas. Faz-se o treino da figura da maçã, posteri- com o indivíduo, que lhe provoque alterações na estrutura ou ormente, o da laranja etc.); no funcionamento do corpo (patologia). Tais alterações, quan- a forma de aluno solicitar o que deseja é se direcionar ao do evidentes, são exteriorizadas por anomalias na estrutura, quadro onde estão dispostas as figuras, selecionar a figura na aparência ou no funcionamento de um órgão ou sistema, adequada e a entregar na mão do profissional; gerando a deficiência e esta, por sua vez, modifica a capacida- o profissional procura fazer elogios ao aluno, apenas quan- de de realização (incapacidade), podendo o indivíduo se en- do este consegue associar corretamente a figura ao objeto contrar em situação de (prejuízo) desvantagem que resulta em desejado; no entanto, em caso de erro, o profissional pro- deficiência ou incapacidade em relação a outros indivíduos. cura não demonstrar um tipo de reação contrária; Em relação à pessoa com autismo, por ser acometida a quantidade de figuras introduzidas depende da valori- pela síndrome que traz alterações e transtornos globais em zação do estímulo e do número de vezes que o aluno teve seu desenvolvimento e desencadeia manifestações que podem sucesso em suas respostas para ser capaz de dominar a ser observadas, principalmente, no seu comportamento alte- rando-lhe a capacidade de desenvolvimento na área da lingua- atividade proposta; gem, da interação social e das representações simbólicas, é cada aluno deve ter seu próprio sistema individual de co- evidente que o autista apresentará desvantagens diversas, se municação, de forma que possa sempre estar com ele, e for comparado a outros indivíduos. devem ser, de preferência, apenas aquelas figuras já do- minadas por ele em forma de temas de trabalho;</p><p>76 / SÍLVIA ESTER LINGUAGEM E EDUCAÇÃO / 77 2.4.2 Vigotsky e a participação do outro no processo de xiliar a construção da linguagem que traz consigo a possibili- aprendizagem dade de produção de significações, geradas na relação com o outro, em ambientes culturalmente contextualizados. No mesmo sentido de Amaral (ibidem), Vigotsky funda- Logo, atuar sob o signo da comunicação é reduzir a ques- menta a participação do outro na constituição do sujeito em tão da linguagem humana e seu papel no desenvolvimento de sua relação com o mundo, por meio da ação mediadora. um sujeito, pois é, no processo de interação entre a criança e Desde os primeiros dias do desenvolvimento da crian- seus interlocutores, que se dá a aquisição da linguagem em si, ça, suas atividades adquirem um significado próprio desenvolvendo, deste modo, sua capacidade de simbolizar o em um sistema de comportamento social e, sendo dirigidas a objetivos definidos, são refratadas por meio mundo que a cerca, para o outro, dando sentido aos processos do prisma do ambiente da criança. caminho do obje- de interação social e, para si, na forma internalizada necessá- to até a criança e desta até o objeto passa por meio de ria ao desenvolvimento das funções psicológicas superiores. outra pessoa. Essa estrutura humana complexa é o produto de um processo de desenvolvimento profun- damente enraizado nas ligações entre história indivi- RESUMINDO dual e história social. (VIGOTSKY, 1994:40) Vê-se, então, que a linguagem, embora comunicativa e Procuramos, até então, retratar a pessoa com autismo no constitutiva do pensamento, é, também, organizadora, contexto da Educação Especial e sua trajetória, enquanto alu- planejadora da ação e reguladora do comportamento. Portan- no passivo, em uma educação submersa por longo período nas to, embora os Sistemas Suplementares e ou Alternativos de concepções fundamentadas no behaviorismo, as quais tam- comunicação sejam de grande utilidade como um apoio para o bém influíram consideravelmente no que se refere ao diag- trabalho com pessoas que apresentam deficits no desenvolvi- nóstico, ao tratamento e à educação de pessoas com autismo, mento da linguagem, no cognitivo e no emocional, como nos baseados em fatores biológicos condicionados aos sintomas casos de deficiência mental e de autismo, é essencial a atuação próprios da síndrome do autismo. de um educador que mantenha diálogo e ação mediadora cons- Apresentamos o programa TEACCH como método de tra- tante com seus alunos. tamento terapêutico e educacional aceito nas instituições Evidentemente, a diferença do resultado obtido durante especializadas para autistas, tendo como base a abordagem o processo de ensino e aprendizagem da criança com autismo comportamental, fazendo uso da CSA como instrumento fun- está na proposta da abordagem utilizada, pois os símbolos em damental para intervir na modificação do comportamento do si mesmos não têm vida própria. Falta ao autista uma aborda- aluno, em uma perspectiva estímulo-resposta. gem educacional que não se reduza ao treinamento de habili- Introduzimos a importância da participação do outro no dades de comunicação, mas sim que esteja aberta à sua consti- processo de aprendizagem do ser humano, conforme nos de- tuição enquanto sujeito, a partir do desenvolvimento da lin- monstra Vigotsky, tema que se seguirá no próximo capítulo. guagem, da interação social, de sua contextualização históri- ca. Nessa perspectiva, para efeito desta tese, a CSA é utilizada como um mediador semiótico à construção do signo, para au-</p><p>LINGUAGEM E EDUCAÇÃO / 79 PICTURE COMMUNICATION SYMBOLS (PCS) SÍMBOLOS DE COMUNICAÇÃO PICTÓRICA Eu quero livro ajuda 3 comer dormir VIGOTSKY E AS BASES CONCEITUAIS PARA A COMPREENSÃO DA LINGUAGEM ok! mais sim não X "Los niños saben más de lo que parecen, y si les dijeran que escribiesen lo que saben, muy buenas cosas que José Marti (1853-1895) eu quero brincar fome Após anos de estudos sobre o comportamento, a persona- bobo lindo salada lidade e a constituição subjetiva da pessoa, os estudos da psi- cologia, em uma perspectiva histórico-dialética do marxismo, têm procurado demonstrar que a gênese das funções psicoló- gicas reside na interação sociocultural, e não em uma compe- feliz triste beber tência endógena. Vigotsky (1994), há mais de 50 anos, afirmava que o de- senvolvimento cultural da criança se dá, primeiramente, em nível social e, depois, em nível individual, no interior da pró- pria criança. Ele assim explica essa gênese: Primeiramente o indivíduo realiza ações externas, que serão interpretadas pelas pessoas a seu redor, de acor- Olá! eu comer bolo do com os significados culturalmente estabelecidos. A partir dessa interpretação, é que será possível para o indivíduo atribuir significados a suas próprias ações e desenvolver processos psicológicos internos que podem ser interpretados por ele próprio a partir dos mecanis- mos estabelecidos pelo grupo cultural e compreendi-</p><p>80 / SÍLVIA ESTER LINGUAGEM E EDUCAÇÃO / 81 dos por meio dos códigos compartilhados pelos mem- pensamento, que assegura a transmissão do sensorial bros desse grupo. (VIGOTSKY, 1994: 15) ao racional na representação do mundo. Neste sentido: 1987:81) Todas as funções no desenvolvimento da criança apa- Aceita-se, comumente, a afirmação de que o homem é um recem duas vezes: primeiro no nível social, e, depois, ser consciente de suas ações; porém, embora enquanto ser, no nível individual; primeiro entre pessoas ele seja o único que se encontra imerso em um contexto (interpsicológica), e, depois, no interior da criança rico, social e cultural, de onde emergem sentidos e significa- (intrapsicológica). [...]. Todas as funções superiores originam-se das relações reais entre indivíduos hu- dos. Há correntes de pensamentos que, não raramente, manos. (VIGOTSKY, 1994: 75) conflitam com tal posicionamento, alegando serem os moti- Para Vigotsky, as funções psicológicas superiores deveri- vos biológicos a melhor explicação para uma compreensão científica do comportamento do ser humano. am ser compreendidas nas relações sociais presentes na vida do indivíduo, sendo o homem participante do processo de cri- homem é o único ser capaz de assimilar a experiência ação de seu meio, e não determinado por ele. Ele é um ser que não é a sua própria e repassá-la para outros indivíduos de geração em geração. A imitação, portanto, é limitada na for- social e cultural em uma história de desenvolvimento, que parte mação do comportamento do animal, sendo esta transmitida do interpessoal para o intrapessoal, tendo a linguagem como mediadora de todas as suas relações. de maneira prática e direta, advinda da própria experiência. No homem, porém, a transmissão da experiência ocorre de forma articulada pelas muitas informações presentes na his- 3.1 AS CONTRIBUIÇÕES DE LÚRIA PARA A LINGUAGEM tória das gerações passadas. Dessa assimilação de experiências materiais ou intelectu- ais, é que se caracteriza a história social do homem, de onde Com relação à linguagem, esta é compreendida por Lúria emana sua atividade consciente, a qual, de acordo com Lúria (1987) como um sistema complexo de sinais convencionais que (1979), pode ser explicada em três traços fundamentais: representam objetos, ações, características ou relações e pos- Primeiramente, a atividade consciente do homem não se sibilitam a transmissão de conhecimentos constituídos no pro- encontra, necessariamente, vinculada a motivos biológicos, cesso histórico-social e de fundamental relevância no que con- pois a maioria de nossas ações não depende das necessidades diz ao desenvolvimento dos processos cognitivos e da consci- biológicas. Ao contrário, a atividade do homem é regulada por ência do ser humano; age, inclusive, como uma ponte do co- necessidades mais complexas que, costumeiramente, são cha- nhecimento sensorial para o racional, como um processo de madas de superiores ou intelectuais. Entre elas, encontramos contínua conscientização, constituído por meio das formas as "necessidades cognitivas que incitam o homem à aquisição sociais de vivências históricas humanas. de novos conhecimentos, à necessidade de comunicação, à A palavra faz pelo homem o grandioso trabalho de necessidade de ser útil à sociedade e ocupar, nesta, determi- análise e classificação dos objetos, que se formou no longo processo da história social. Isto dá à linguagem a nada posição etc.". (LÚRIA, 1979: 71-72). A atividade consci- possibilidade de tornar-se não apenas meio de comu- ente do homem vai além das questões biológicas, pois, muitas nicação, mas também o veículo mais importante do vezes, encontra-se em embate com elas, vindo até mesmo a</p><p>82 LINGUAGEM E EDUCAÇÃO / 83 contê-las ou, contrariamente, a colocar-se em situações de ris- ciente do homem também apresenta uma terceira fonte, ou pela autonomia de seu comportamento em relação aos seja, a assimilação da experiência de toda a humanidade que motivos biológicos. se constrói, no processo de sua história social, pelo acúmulo Em segundo lugar, a atividade consciente do homem não de conhecimentos e habilidades que são transmitidos de gera- se encontra delimitada pelos efeitos causados por estímulos ção em geração no processo de aprendizagem. exteriores sobre a mente ou os sentidos, acrescidos das expe- Desde a mais tenra idade, a criança constrói seu compor- riências individuais repentinas. O homem tem a capacidade de tamento de acordo com a influência do que acontece à sua pensar e ponderar sobre as condições do meio, de maneira volta, assimilando habilidades diversas que foram muito mais penetrante e intensa do que o animal. Assim, é-lhe construídas no processo da história social. Pela fala, as ou- possível separar mentalmente seus pensamentos e sentimen- tras pessoas lhe repassam os conhecimentos rudimentares e, tos por algum fato ou objeto e também transpor as relações de em um tempo vindouro, por meio da linguagem, assimila as dependência profundas das coisas e seus conhecimentos acer- mais importantes aquisições da humanidade no espaço esco- ca das relações e sujeições casuais dos acontecimentos. A par- lar. Grande parte desses conhecimentos, habilidades e ma- tir deles é capaz de fazer sua interpretação e tomar tais ocor- neiras de proceder é o resultado de aquisições ocorridas pela rências como orientações que foram acrescidas por leis e ra- assimilação da experiência histórico-social de gerações. Esse zões mais profundas do que apenas por impressões exterio- é o principal quesito que distingue a atividade consciente do res. Desse modo, é possível perceber a razão de haver um fun- homem do comportamento animal. damento que declara, com firmeza, que o comportamento A Psicologia fundamentada no marxismo sustenta que as humano, firmado no reconhecimento da necessidade, é livre. particularidades inerentes apenas ao homem podem ser en- Como exemplo, Lúria (1979:73) comenta: contradas em uma perspectiva histórico-social de atividade, sendo esta relacionada com trabalho social, com a utilização Ao sair a passeio em um claro dia de outono, o homem pode levar guarda-chuva, pois sabe que o tempo é ins- de instrumentos de trabalho e com o emergir da linguagem. tável no outono. Aqui ele obedece a um profundo CQ- Com os animais, não acontece dessa maneira, pois toda a ativi- nhecimento das leis da natureza e não da impressão dade psíquica se origina das condições das formas de vida para imediata de um tempo de sol e céu claro. Sabendo que sua orientação no meio ambiente. a água do poço está envenenada, o homem nunca irá bebê-la, mesmo que esteja com muita sede; neste caso, seu comportamento não é orientado pela impressão 3.2 O DESENVOLVIMENTO DA ATIVIDADE CONSCI- imediata da água que o atrai, mas por um conheci- ENTE DO HOMEM SEGUNDO O MARXISMO mento mais profundo que ele tem da situação. O terceiro aspecto, chamado por Lúria (1979: 73) de traço característico que distingue a atividade consciente do homem Os fundamentos a respeito da origem da atividade consci- do comportamento animal, é que ao contrário do animal, cujo ente do homem devem ser procurados nas condições sociais de vida historicamente produzidas que possibilitam transfor- comportamento tem apenas duas fontes a) os programas hereditários de comportamento, jacentes no genótipo e b) os mações estruturais do comportamento. Portanto, os motivos resultados da experiência individual direta a atividade cons- biológicos do comportamento, os motivos superiores e as ne-</p><p>84 / SÍLVIA ESTER LINGUAGEM E EDUCAÇÃO / 85 cessidades surgidas acompanham o comportamento que se comportamento, não mais conduzidos pelos motivos biológi- subordina à percepção imediata. As formas superiores de com- cos, mas por uma atividade consciente, produto de novas for- portamento como resultado da abstração das influências mas histórico-sociais. diatas do meio, em conjunto com "os programas de comporta- Como segunda condição para a formação da atividade mento consolidados por via hereditária, e a influência da ex- consciente do homem, está o surgimento da linguagem. Por periência passada do próprio indivíduo" proporcionam o nas- tempos, a Psicologia não deu atenção merecida à linguagem cer da transmissão e a assimilação da experiência de toda a como fator fundamental na formação dos processos men- humanidade como uma terceira fonte formadora da ativida- tais da criança. Eram atitudes baseadas no pensamento beha- de. (LÚRIA, 1979: 75) viorista, orientado por Thorndike, Watson e Guthrie, em Encontramos, na ciência histórica, o trabalho social, o que as formas complexas da atividade da criança tinham emprego de instrumentos de trabalho e também o surgimento sua origem no convencionamento de hábitos que determi- da linguagem como fatores fundamentais que dizem respeito à navam a linguagem como um dos aspectos dos hábitos mo- passagem da história natural dos animais para a história social tores, sem qualquer relação específica com a conduta e a do homem, contribuindo para o emergir da sua consciência. formação intelectual. Durante a sua história, o homem tanto utilizou instrumen- Juntamente com esta concepção mecanicista, surgiu o tos de trabalho, como também os preparou, conforme suas pensamento idealista que compreendia o desenvolvimento dos necessidades de sobrevivência, distinguindo, dessa forma, sua processos psíquicos como originários de uma fonte ou ativi- atividade daquela do comportamento do animal, já que, para dade interna, em que a linguagem estava longe de fazer parte tanto, era preciso fazer uso de um processo de elaboração re- no complexo de atividade e desenvolvimento das capacidades pleto de sentidos e significados, o que requer uma atividade intelectuais da criança. Contudo, no ano de 1934, Vigotsky consciente. apresentou a linguagem como decisiva na formação dos pro- O fato de o homem perceber a necessidade de preparar cessos psíquicos, colocando em execução diversos experimen- seus instrumentos de trabalho interfere. totalmente em sua tos referentes à formação da atenção ativa, processos de de- estrutura de comportamento, pois esta é uma atividade com- senvolvimento da memória em que, por meio da aquisição da plexa em prol de uma necessidade a ser suprida e que, no caso linguagem, a memorização se tornava ativa e voluntária. do homem primitivo, era a sua alimentação. Na passagem da Como já exposto, de acordo com Lúria (1979: 78), "cos- história natural do animal para a história social do homem, há tuma-se entender por linguagem um sistema de códigos por um momento em que o homem não age mais impulsionado por meio dos quais são designados os objetos do mundo exterior, motivos biológicos e, sim, com ações próprias e exclusivas, suas ações, qualidades, relações entre eles etc.". Na lingua- regidas por objetivos tomados pela consciência que vão ad- gem, as palavras qualificam objetos, ações, características quirindo, conforme os resultados se concretizam. de objetos. Tal linguagem, constituída por palavras que se Na medida em que homem realiza as diversas ações para unem em frases, é principal meio de comunicação do ho- chegar a um determinado objetivo, seu comportamento sofre mem, utilizado para que informações sejam conservadas e transformações, surgindo, assim, uma atividade própria que é transmitidas, e experiências assimiladas sejam repassadas de consciente e que, portanto, vem a influir em novas formas de geração em geração.</p><p>86 / SÍLVIA ESTER LINGUAGEM E EDUCAÇÃO / 87 3.3 A ATIVIDADE CONSCIENTE DO HOMEM E 'A LIN- portando seu aspecto exterior ou seu tamanho. A pala- GUAGEM vra, portanto, abstrai o que diz respeito aos indícios do objeto e generaliza objetos diferentes pelas caracterís- Segundo a concepção marxista, a origem da linguagem ticas exteriores, porém inerentes à mesma categoria, está nas condições possibilitadas pelas relações sociais tra- transmitindo ao homem a experiência das gerações. A balho, cujo início se refere ao período de passagem da história palavra opera, por meio do homem, a ação de analisar natural para a história humana, enfocando a necessidade de e classificar os objetos que foram sendo construídos compartilhar e repassar às gerações informações e ao longo da história social, possibilitando à linguagem cias anteriormente assimiladas. transformar-se no instrumento mais importante do Enquanto a língua se constituiu como um sistema de códi- pensamento para a passagem do sensorial para o racio- gos independentes que nomeava os objetos, as ações e as ca- nal na representação do mundo, além de ser uma for- racterísticas, servindo como forma de transmissão de infor- ma de comunicação. mações, a linguagem, por sua vez, foi fundamental para que, 3) Como instrumento fundamental para a transmissão de posteriormente, o homem organizasse sua atividade consci- informação da história social do homem, a linguagem ente, dando forma à consciência. Assim, no decorrer da possibilita a assimilação de toda a informação e a expe- ria, a atividade consciente do homem sofre transformações, riência produzidas ao longo da prática histórico-soci- das quais Lúria (1979: 80-81) ressalta três: al, sendo possível ao homem dominar um conjunto ili- 1) Ao nomear os objetos e os acontecimentos do mundo ex- mitado de conhecimentos, habilidades e formas de terior com palavras isoladas ou combinadas, a lingua- comportamento que não poderiam ser desenvolvidas gem proporciona a discriminação desses objetos, pos- por um indivíduo que se encontrasse isolado. A lingua- sibilita o voltar a atenção para eles e preservá-los na gem é, no homem, uma nova espécie de desenvolvi- memória, sendo possível trabalhar com sua imagem, mento psíquico, não conhecido nos animais, constitu- mesmo não estando eles presentes. A linguagem "du- indo-se imprescindivelmente no desenvolvimento da plica o mundo permanecendo a informa- consciência. ção advinda do mundo exterior e criando um mundo A linguagem se transpõe em todos os campos da atividade de imagens interiores. consciente do homem, proporcionando uma renovação supe- 2) As palavras de uma língua nomeiam coisas como tam- rior aos processos psíquicos, reorganizando de maneira sólida bém abstraem as suas peculiaridades. Relacionam o os processos de percepção do mundo exterior e gerando ou- que é perceptível a determinadas categorias, garantin- tras leis dessa percepção. A linguagem, portanto, interfere e do processo de abstração e generalização como con- transforma, no homem, seus processos de atenção, proporci- tribuinte para a formação da consciência. A exemplo, onado-lhe condições de regê-la com livre arbítrio. Ela tam- "a palavra relógio indica que esse objeto serve para bém altera os processos de memória humana quando, apoiada marcar as horas; a palavra mesa indica que esse objeto nos processos do discurso, torna-se atividade mnemônica serve para ser coberto". Ambas as palavras também consciente, com a qual o homem dispõe de fins especiais refe- indicam todas as propriedades desses objetos, não im-, rentes às ações de lembrar, de organizar o que deve ser lem-</p><p>88 / SÍLVIA ESTER LINGUAGEM E EDUCAÇÃO / 89 brado, encontrando-se apto para ampliar seu volume de in- como el desarrollo orgánico tiene lugar en un medio formações na memória e de se colocar de maneira arbitrá- cultural, se convierte en un proceso biológico condici- ria para o passado, a fim de selecionar nele, pelo processo onado históricamente. Por otro lado, el desarrollo cul- de memorização, o que lhe é relevante em determinada cir- tural adquiere un carácter particular e incomparable, cunstância. ya que se realiza simultánea y fusionadamente con É por meio da linguagem que o homem se aparta da expe- la maduración orgánica, por tanto, su portador re- sulta ser el organismo del niño que madura, que cam- riência imediata e principia a imaginação, fato não existente bia, crece. com os animais. Pela linguagem, são constituídas as comple- Conquanto o pensamento e a linguagem, em suas origens, xas formas de pensamento abstrato e generalizado que são não sejam iguais, aquisições muito importantes da história da humanidade, ga- rantindo a passagem do sensorial para racional. Da mesma principal fato com que deparamos na análise genéti- ca do pensamento e da linguagem é o de que a relação forma, a linguagem contribui para transformações na reorga- entre esses processos não é uma grandeza constante, nização da vivência emocional, o que gera um outro novo ní- imutável, ao longo de todo o desenvolvimento, mas vel dos processos psíquicos. Nas palavras de Lúria (1979: 84), uma grandeza variável. A relação entre pensamento e linguagem modifica-se no processo de desenvolvimen- basta instruir o homem no sentido de erguer o braço ou girar a chave em resposta a um sinal vermelho e to tanto no sentido quantitativo quanto qualitativo. não fazer nenhum movimento a um azul para surgir Noutros termos, o desenvolvimento da linguagem e do imediatamente e consolidar-se essa nova relação. O pensamento realiza-se de forma não paralela e desi- advento de qualquer ação, executável com base em gual. As curvas desse desenvolvimento convergem e divergem constantemente, cruzam-se, nivelam-se em instrução discursiva, dispensa qualquer reforço incon- determinados períodos e seguem paralelamente, che- dicional (ou biológico). gam a confluir em algumas de suas partes para depois A atividade consciente do homem o difere, radicalmente, tornar a bifurcar-se. (VIGOTSKY, 2000:111) do comportamento animal, sendo possível perceber sua ilimi- Conforme o autor, em uma perspectiva dialética de desen- tada plasticidade e o caráter dirigível de seus processos. Lúria, volvimento, o cognitivo, assim como todas as funções psicoló- mesmo preocupado com tais questões que conduziam a Psico- gicas superiores, durante o processo de desenvolvimento, inter- logia para a compreensão do homem como ser histórico, soci- relacionam-se, como, por exemplo, a partir de uma revolução, al e cultural, não desconsiderava os aspectos fisiológicos e bi- a linguagem passa a ser linguagem pensada e o pensamento se ológicos. Ao contrário, falava que a compreensão dos fenô- torna pensamento verbal, de forma que opere sobre a organiza- menos de consciência do homem, enquanto ser social, estava ção do pensamento, mas dele também dependendo. também relacionada aos motivos biológicos, já que o compor- Na essência da tese histórico-social, no que diz respeito tamento não pode se fazer compreender tão somente pelas. ao funcionamento psicológico do ser humano, este se consti- condições sociais de vida, mas, juntamente, com as possibili- tui na inter-relação de diferentes funções, desempenhando a dades de comportamento que foram sendo consolidadas por linguagem um papel fundamental em todo o processo. Duran- meio da hereditariedade jacente no genótipo, além das condi- te seus estudos, Vigotsky concentrou-se no caráter histórico e ções orgânicas reais vivenciadas pelo indivíduo. Segundo social da mente do homem e nos mecanismos do tornar-se ser Vigotsky (1987:40), humano, procurando compor categorias e conceitos para a</p><p>90 / SÍLVIA ESTER LINGUAGEM E EDUCAÇÃO / 91 construção de uma teoria psicológica que respondesse a ques- duo, proporcionando-lhe, por meio da atividade cognitiva, a tões referentes ao psiquismo humano a partir da dialética. Nessa apropriação dos saberes produzidos pela história e pelas for- busca, emerge o conceito de mediação. mas de saber e de pensar do próprio homem. Nesse processo A ação do homem tem impacto de desenvolvimento por de apropriação cultural, está a linguagem como mediadora e encontrar-se sob a dependência da criação de condições téc- formadora da consciência. nicas e semióticas. É pela atividade humana que homem pro- Na relação entre pensamento e linguagem, Vigotsky duz, modifica a natureza e a estabelece em objeto de conheci- (1987:108-109) destaca a relação entre pensamento e palavra: mento, transformando-se simultaneamente em sujeito do co- A relação entre o pensamento e a palavra não é uma nhecimento. A relação do sujeito é dialética e é mediada pela coisa, mas um processo, um movimento contínuo de semiótica, sendo os meios técnicos e semióticos, sempre da vaivém do pensamento para a palavra, e vice-versa. esfera social e cultural. Nesse processo, a relação entre o pensamento e a pala- Nesse processo, os objetos são compreendidos por repre- vra passa por transformações que, em si mesmas, po- sentações ou imagens sensoriais, inerentes ao próprio objeto. dem ser consideradas um movimento no sentido fun- Para a transposição entre o que é próprio do objeto e sua gene- cional. pensamento não é simplesmente expresso em palavras; é por meio delas que ele passa a existir. ralização e abstração, a imagem deve ser simbolizada pelo sig- [...] pensamento passa por muitas transformações no que está repleto de significados de origem cultural e social. até transformar-se em fala. Não é só expressão que Assim sendo, pode-se perceber, na criança, a compreensão do encontra na fala: encontra a sua realidade e a sua objeto semiótico em razão de a imagem estar ligada a seu sig- forma. nificado, a partir da utilização da palavra. Logo, a representa- Para Vigotsky, o pensamento é o reflexo generalizado da ção simbólica é tanto uma função para fazer presente alguma realidade que se concretiza por meio da linguagem, estando coisa que não se encontra presente como também é o próprio sempre conectado ao pensamento geral, diferenciando-se da objeto representado em seu significante. A palavra é o signo palavra que traz consigo uma característica de abstração. que tem a função de apontar o objeto e de significar seu con- Exemplificando, a expressão de um pensamento se dá por meio ceito como sendo um instrumento do pensamento. Tal como de palavras separadas; no entanto, o pensamento engloba de afirma Vigotsky (2000:398), "encontramos no significado da uma só vez a ação pensada, o contexto, a cor, o local etc. Dessa palavra essa unidade que reflete da forma mais simples a uni- forma, tornando existentes objetos e acontecimentos da reali- dade do pensamento e da linguagem". dade por meio da utilização da palavra, ser humano ultra- passa as percepções e as sensações imediatas e passa a conce- ber que tudo aquilo em que pensa está além de uma extensão 3.4 PENSAMENTO E LINGUAGEM daquilo que se pode perceber, ou seja, a ação de formar idéias por meio da palavra gera a possibilidade de se atingir que Desse modo, podemos perceber a existência da relação comumente é incompreensível para a capacidade de perceber entre a atividade produtiva do ser humano e sua atividade e para a representação. cognitiva, já que a produtiva envolve a transmutação de sabe- Uma palavra não se refere a um objeto isolado, mas a res históricos produzidos pelos homens em saberes do indiví- um grupo ou classe de objetos; portanto, cada palavra já é uma generalização. A generalização é um ato ver-</p><p>92 / SÍLVIA ESTER LINGUAGEM E EDUCAÇÃO / 93 bal do pensamento e reflete a realidade de modo bem diverso daquele da sensação e da percepção. Essa dife- seu sentido no contexto do discurso. A variação de con- rença está implícita na proposição segundo a qual há texto implica, portanto, variação de sentido. um salto dialético não apenas entre a total ausência A linguagem é, portanto, um instrumento da consciência da consciência (na matéria inanimada) e a sensação, com atributo de compor, controlar e planejar o pensamento mas também entre a sensação e o pensamento. em uma função de intercâmbio social. Os significados das pa- (VIGOTSKY, 1987:4) lavras constituem a consciência do indivíduo, ao mesmo tem- Assim, é pela generalização que o ser humano pode tirar po em que são constituídos no contexto interindividual. Dessa conclusões a respeito daquilo que não percebe de imediato, maneira, percebemos a existência das relações de indo além da percepção por meio do real para maior rigor e interdependência entre pensamento e fala, entre a fala interi- profundidade, a partir da generalização encontrada nos obje- or e a exterior, entre o sentido e significado, entre homem tos e nos fenômenos que são resultados das associações reais e e o mundo. fundamentais entre si. É do pensamento que emanam os co- Para Vigotsky, a formação da consciência e o desenvolvi- adquiridos pelo ser humano em sua relação com mento cognitivo ocorrem de fora para dentro do indivíduo, o mundo natural e cultural, estando unido de forma dialética seguindo um processo de internalização, não de forma ao conhecimento sensorial. nica mas também impregnada de atitude por parte do sujeito. Para Vigotsky, o processo de aquisição da língua na fala Esse processo de transformação possibilita a construção do da criança tem suas raízes no processo social, partindo do meio conhecimento e da cultura e está relacionado a uma atividade externo para, aos poucos, transformar-se em um sistema de mental que responde pelo domínio dos instrumentos de medi- signos. Quando isto acontece, a fala da criança se distingue em ação do homem com o mundo. Portanto, "o pensamento e a dois sistemas de pensamento que se encontram extremados, linguagem são a chave para a construção da natureza da cons- porém, simultaneamente entrosados. Enquanto um dos siste- ciência humana". (VIGOTSKY, 2000: 485) mas procura se adaptar ao mundo externo, surgindo como Os meios culturais aqui, em específico, a fala não são fala social adulta, o outro inicia sua internalização, transfor- externos às nossas mentes; ao contrário, eles se desenvol- mando-se, progressivamente, em uma linguagem pessoal. Nes- vem nelas, Assim, uma criança que pas- se processo de discurso interno, sentido da palavra torna-se sou a dominar a linguagem como ferramenta cultural jamais ascendente ao significado da mesma palavra. É importante res- saltar que, segundo Vigotsky, existe uma diferença entre sig- será novamente a mesma. Portanto, a cultura e a mediação nificado e sentido. Nas palavras de Pino (2000:39), semiótica constituem o eixo da teoria de Vigotsky sobre o funcionamento mental do homem, estando ela relacionada para ele sentido é a soma dos eventos psicológicos que com a existência concreta do sujeito em seu processo social, a palavra evoca na consciência. É um todo fluido e dinâmico, com zonas de estabilidade variável, uma ao mesmo tempo em que é produto da sua vida e de suas atividades sociais. das quais, a mais estável e precisa é o significado. Esta é uma construção social, de origem convencional (ou A mediação semiótica, por sua vez, como cerne em sua e de natureza relativamente teoria, possibilita a explicação dos processos de internalização As alterações de sentido não afetam a estabilidade do e as relações entre pensamento e linguagem e a significado. Segundo Vigotsky, as palavras adquirem interação entre sujeito e o objeto do conhecimento. É por</p><p>LINGUAGEM E EDUCAÇÃO / 95 94 / SÍLVIA ESTER meio da atividade mediada que o sujeito se encontra ativo, do sujeito. A palavra é que vai constituindo as relações entre construindo seu próprio conhecimento. as pessoas, normatizando, conceituando o certo e errado, Na abordagem histórico-cultural, a mediação semiótica é definindo verdades e mentiras, delimitando os discursos, dis- indispensável para a interiorização de signos; a palavra, por tinguindo o normal do anormal, o deficiente do não deficien- sua vez, é o elemento principal e comum entre o locutor é o te. Enfoca que o homem participa de uma realidade social ape- interlocutor, e está sempre repleta de conteúdos ou sentidos. nas por meio de interação entre sujeitos, sendo esta mediada Segundo Vigotsky (1987:104), pelos signos. Aponta horizontes de natureza prática, norteando argumentações tanto para a criança dita "normal" como para significado de uma palavra representa um a "anormal". amálgama tão estreito do pensamento e da lingua- gem, que fica difícil dizer se se trata de um fenômeno Na abordagem histórico-cultural, Vigotsky (1998:73) da fala ou de um fenômeno do pensamento. Uma pala- enfoca a função que é tomada pelos instrumentos e signos vra sem significado é um som vazio; o significado, por- como mediadores da ação do homem no mundo, sendo ins- tanto, é um critério da "palavra", seu componente in- trumento utilizado na transformação da natureza, e O signo na dispensável. regulação do comportamento do indivíduo. "O controle da A palavra se encontra presente em todas as ações nas quais natureza e o controle do comportamento estão mutuamente existem compreensão e interpretação, de forma que todos os ligados, assim como a alteração provocada pelo homem sobre signos, mesmo aqueles não verbais e que não são trocados por a natureza altera a própria natureza do homem". palavras, também se apoiam nas próprias palavras e se juntam com elas. A palavra não é algo possuído pelo indivíduo, mas é a mediação de circunstâncias interativas diversas. 3.5 OS SIGNOS NA CONSTITUIÇÃO DA ESPÉCIE HUMANA A mediação semiótica, que é fundamentalmente humana, torna o diálogo imprescindível. Este não deve ser compreen- dido somente como vozès que se revezam entre si, mas como o Vigotsky contribui para a importância da criação e da uti- encontro à inclusão de falas em um espaço e um tempo onde o lização de signos na constituição da espécie humana, sendo a social e histórico estão presentes. Na concepção vigotskyana, linguagem o principal deles, inclusive para exprimir o próprio são as relações sociais e a linguagem as constituintes da ativi- pensamento: "a transmissão racional e intencional de experi- dade mental. De acordo com Pino (2000:42), ência e pensamento a outros requer um sistema mediador, cujo protótipo é a fala humana, oriunda da necessidade de inter- o conceito de mediação semiótica na perspectiva e nas câmbio durante trabalho" (VIGOTSKY, 1987:5). Ela implica dimensões aqui propostas é um bom instrumento conceitual para pensar o psiquismo humano como um fatores que determinam o desenvolvimento da consciência processo permanente de produção que envolve o indi- que, por sua vez, permite haver a discriminação e a conserva- víduo e seu meio sociocultural em uma interação cons- ção de um objeto na memória por meio de seu nome, realizan- tante. Esse conceito revela-nos não só a origem social do a transição do sensorial para racional na representação das funções psíquicas como também a natureza do mundo. Complementando, segundo Kassar (1999: 69,70), semiótica da atividade psíquica. é em um determinado mundo (no contato com ou- A teoria histórico-cultural aponta também para a media- tro) que sujeito nasce, cresce, se desenvolve, se cons- ção semiótica por meio do signo e outro, como constitutivos</p><p>96 / SÍLVIA ESTER LINGUAGEM E EDUCAÇÃO / 97 titui. É nesse mundo (de incontáveis e encantáveis 3.6 DESENVOLVIMENTO DA APRENDIZAGEM E FOR- outros) que será, por ele, internalizado, no processo de MAÇÃO DE CONCEITOS sua constituição social. (...) Na ontogênese, cada novo ser humano passa por processos de apropriação dos signos e, assim, a utilização desses signos externos vai, pela apropriação individual, transformando-se 'em Sobre desenvolvimento e aprendizagem, Vigotsky diz que processos internos de mediação. Os processos de medi- são fatos distintos e relacionados, sendo preciso considerar ação vão se constituindo ao longo do desenvolvimen- o nível de desenvolvimento já conquistado e também o nível to, não estando presentes nas crianças ao nascerem, de desenvolvimento proximal, ligado à capacidade de reso- sofrendo, portanto, transformações ao longo da vida lução de problemas, a partir do auxílio de outras pessoas que de cada pessoa. A esse processo contínuo dá-se o nome se encontram mais possibilitadas, indicando que poderá ser de internalização. o contato com o outro com o mun- autônoma no porvir quando o seu nível de desenvolvimento do humano possibilita o desenvolvimento cultural. (...) Dessa forma, os sistemas simbólicos se desenvol- o permitir. vem e organizam os signos em estruturas complexas e aspecto mais essencial de nossa hipótese é a noção de articuladas. O processo de significação marca toda a que os processos de desenvolvimento não coincidem atividade humana. com os processos de aprendizado. Ou melhor, o proces- Pode-se notar que os sinais que evidenciam a sociedade se de desenvolvimento progride de forma mais lenta e empregam como constitutivos do sujeito, tornando os signos atrás do processo de aprendizado; desta sequenciação, resultam, então, as zonas de desenvolvimento próprios dos princípios elementares da mediação que alteram proximal. [...] Embora o aprendizado esteja direta- e transformam o desenvolvimento humano, da mesma forma mente relacionado ao curso do desenvolvimento da que os instrumentos criados pelo homem. A linguagem, por- criança, os dois nunca são realizados em igual medida tanto, proporciona a constituição da atividade psicológica, a ou em paralelo. desenvolvimento nas crianças nun- transformação e o desenvolvimento do pensamento, sendo ca acompanha o aprendizado escolar da mesma ma- constitutiva para o homem e permitindo haver a interação neira como uma sombra acompanha o objeto que o projeta. Na realidade, existem relações dinâmicas al- social, a internalização e a generalização de significados. Para tamente complexas entre os processos de desenvolvi- tais processos, concorre a aprendizagem, que ocorre median- mento e de aprendizado, as quais não podem ser englo- te a transformação construtiva de pensamentos, sentimentos badas por uma formulação hipotética imutável. e ações, envolvendo uma interação entre conhecimentos pre- VIGOTSKY:1994:118-119) liminares e conhecimentos novos que constroem outros signi- Vigotsky, estudando a questão da aprendizagem e sua in- ficados psicológicos, resultantes em outras pensamen- fluência no processo de desenvolvimento mental, elaborou o to e linguagem. conceito de Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP), no qual explica que a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma determinar por meio da solução indepen- dente de problemas, e o nível de desenvolvimento po- tencial, determinado por meio da solução de proble- mas sob a orientação de um adulto ou em colaboração</p><p>98 / SÍLVIA ESTER LINGUAGEM E EDUCAÇÃO / 99 com companheiros mais capazes. (VIYGOTSKY, dos contextos escolares, por meio do desenvolvimento de ha- 1984:97) bilidades e capacidades que se constroem no aluno com au- Com relação às atividades escolares, a ação mediada na xílio de outra pessoa mais experiente, no caso, professor. Zona de Desenvolvimento Proximal desperta processos inter- Após serem internalizadas, tais habilidades e capacidades se nos diversos e executa funções e processos até então não ma- tornam conquistas independentes da criança. É importante, duros no aluno, auxiliando o professor, enquanto agente de também, ressaltar que as interações constituídas entre a cri- como um instrumento importante em seu traba- ança e o professor não se caracterizam como uma mediação lho, levando-se em conta as mediações histórico-culturais pre- estritamente harmoniosa; ao contrário, podem se dar em meio sentes em situações e contextos escolares. a tensões e conflitos e, por isso, a mediação deve ser entendida O professor, em sua relação com o aluno, conduz a apre- como um processo complexo. A isto, refere-se Vigotsky ensão dos significados tomados, como também dos conceitos (1987:50): elaborados, além de fazer uso de instrumentos e da própria A formação de conceitos é o resultado de uma ativida- linguagem em seu processo de ensino e aprendizagem, tornan- de complexa em que todas as funções intelectuais bási- do o conhecimento mais acessível. Ele atua como um agente cas tomam parte. No entanto, o processo não pode ser de mediações entre o contato de seu aluno e a cultura que é reduzido à associação, à atenção, à formação de ima- desenvolvida na relação com os outros, proporcionando aqui- gens, à inferência ou às tendências determinantes. Todas são indispensáveis, porém insuficientes sem o sição de conhecimentos a partir de circunstâncias diversas que uso do signo, ou palavra, como o meio pelo qual condu- geram a compreensão significativa. zimos as nossas operações mentais, controlamos seu Para ele, a criança se encontra exposta a inúmeros signos curso e as canalizamos em direção à solução do proble- que necessitam ser interpretados e aos significados dentro ma que enfrentamos. de um contexto organizado por criações simbólicas inerentes a O processo de formação de conceitos pelo sujeito é funda- uma determinada cultura. Logo, além das condições genéticas e mental para seu conhecimento do mundo, qualificando o real neurológicas que são imprescindíveis na transformação do in- e seus significados. Neste sentido, Vigotsky traz relevantes divíduo, também há uma solicitação para que o meio cultural contribuições para o ensino e para as atividades escolares no proporcione à criança o desenvolvimento de perímetros de co- desenvolvimento da consciência reflexiva do aluno, já que tais municação complexos e alternativos para a incorporação do processos são proventos de conceitos surgidos ainda na conteúdo cultural, das capacidades e do conhecimento cia, sendo as funções intelectuais básicas desenvolvidas na construído pelo homem na sociedade. Esses perímetros de co- puberdade, quando as abstrações transcendem os significa- municação progridem na mesma proporção de seus perímetros dos resultantes de suas experiências imediatas. Contudo, vale neurológicos, permitem o desenvolvimento gradual do pensa- ressaltar que a relação entre o sujeito e o contexto se dá de mento e da linguagem como condições básicas para o indivíduo maneira interdependente, dialética e contraditória, estando a tomar significado do mundo no qual está inserido. apropriação dos significados subordinada aos contextos de- A partir da Zona de Desenvolvimento Proximal, as ativi- terminados, às atividades e à participação dos sujeitos. dades escolares passam a ter uma relação estreita com a com- Vigotsky (1987), em sua investigação, divide processo preensão da qualidade social do desenvolvimento humano e de formação de conceitos em três etapas.</p>