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Calvino e a cultura, de David W. Hall e Marvin Padgett © 2017 Editora Cultura Cristã. Publicado originalmente em inglês sob o título Calvin and culture © 2010, by David W. Hall and Marvin Padgett. Todos os direitos são reservados. Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida, estocada para recuperação posterior ou transmitida de qualquer forma ou meio que seja – eletrônico, mecânico, fotocópia, gravação ou de outro modo – exceto breves citações para fins de resenha ou comentário, sem o prévio consentimento de P&R Publishing Company, P.O.Box 817, Phillipsburg, New Jersey 08865-0817. Conselho Editorial Cláudio Marra (Presidente) Filipe Fontes Heber Carlos de Campos Jr Hermisten Maia Pereira da Costa Joel Theodoro da Fonseca Jr Misael Batista do Nascimento Tarcízio José de Freitas Carvalho Victor Alexandre Nascimento Ximenes Produção Editorial Tradução Claudio Chagas Revisão Claudete Água de Melo Sebastiana Gomes de Paula Denis Benjamin Silveira Editoração e e-book OM Designers Gráficos Capa Magno Paganelli Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) H174c Hall, David W. Calvino e a cultura / David W. Hall; Marvin Padgett; traduzido por Claudio Chagas. _ São Paulo: Cultura Cristã, 2017 Recurso eletrônico (ePub) ISBN 978-65-5989-014-9 Tradução Calvin and culture 1. Calvinismo 2. Cosmovisão cristã 3. Vida cristã I. Título CDU 275.4 A posição doutrinária da Igreja Presbiteriana do Brasil é expressa em seus “símbolos de fé”, que apresentam o modo Reformado e Presbiteriano de compreender a Escritura. São esses símbolos a Confissão de Fé de Westminster e seus catecismos, o Maior e o Breve. Como Editora oficial de uma denominação confessional, cuidamos para que as obras publicadas espelhem sempre essa posição. Existe a possibilidade, porém, de autores, às vezes, mencionarem ou mesmo defenderem aspectos que refletem a sua própria opinião, sem que o fato de sua publicação por esta Editora represente endosso integral, pela denominação e pela Editora, de todos os pontos de vista apresentados. A posição da denominação sobre pontos específicos porventura em debate poderá ser encontrada nos mencionados símbolos de fé. Rua Miguel Teles Júnior, 394 – CEP 01540-040 – São Paulo – SP Fones: 0800-0141963 / (11) 3207-7099 www.editoraculturacrista.com.br – cep@cep.org.br Superintendente: Haveraldo Ferreira Vargas Editor: Cláudio Antônio Batista Marra http://www.editoraculturacrista.com.br/ Este volume é carinhosamente dedicado à próxima geração com cosmovisão cristã, especialmente nossos próprios filhos, aos quais amamos muito: Megan Hall, Devon Hall, Andrew e Amanda Hall, Steve Padgett, Heather Kennedy, Tim Padgett. Sumário Folha de rosto Expediente Dedicatória Prefácio Agradecimentos Introdução Abreviações Capítulo 1 | 1929 e tudo aquilo, ou o que o calvinismo diz aos historiadores em busca de significado? Capítulo 2 | Lei, autoridade e liberdade no início do calvinismo Capítulo 3 | As artes e a tradição reformada Capítulo 4 | Contribuições de Calvino para a teoria e a política econômicas Capítulo 5 | Calvinismo e literatura Capítulo 6 | O legado de Calvino na filosofia Capítulo 7 | Calvino, política e ciência política Capítulo 8 | Calvinismo e ciência Capítulo 9 | O impacto de João Calvino nos negócios Capítulo 10 | Calvino e a música Capítulo 11 | Medicina: na tradição bíblica de João Calvino com aplicações modernas Capítulo 12 | Calvino como jornalista Capítulo 13 | O futuro do calvinismo como cosmovisão Colaboradores J Prefácio oão Calvino não foi apenas teólogo. Era formado em Direito e formulou leis para a cidade de Genebra. Ele refletiu muito sobre o papel do Estado. Foi ativo no desenvolvimento de música de adoração para a igreja. Fundou uma academia que ensinava matérias de muitas áreas da cultura. Mas para ele a teologia, o ensino da Escritura, sempre foi o principal. Apesar de toda importância geral, suas outras atividades eram de interesse secundário para ele. Esses interesses secundários não teriam, em si, justificado um livro intitulado Calvino e a cultura. A razão para este livro é encontrada na natureza da teologia de Calvino, a qual descreve não apenas o modo de Deus salvar pessoas pecadoras, mas uma cosmovisão significativamente diferente de qualquer filosofia humana ou outra religião. Como cosmovisão, a teologia de Calvino é abrangente. Ela afeta todas as áreas do estudo e da atividade humana. Assim, embora não seja tão famoso por outras realizações quanto pela sua teologia, Calvino inspirou um grande número de seguidores a aplicarem seu pensamento a todo tipo de atividade. Os títulos dos capítulos desta obra listam muitas delas: História, direito, artes, economia, literatura, filosofia, política, ciência, negócios, música, medicina e jornalismo. Na sua obra Institutas, Calvino começa nos dizendo que sem um conhecimento de Deus não temos conhecimento de nós mesmos e vice- versa. Assim, desde a primeira página da mais famosa obra de Calvino fica claro que o conhecimento de Deus, objeto de estudo da teologia, está ligado a tudo o que é humano. Deus não é apenas Senhor do reino “sagrado”, não apenas Senhor da salvação. Ele é Senhor sobre todas as áreas da vida humana. Não conseguimos compreender o sentido de qualquer atividade humana, seja pregação, música ou jornalismo, até vermos como essa atividade está relacionada a Deus. No seu ensaio, Leland Ryken escreve, citando Georgia Harkness: “conquanto Lutero tivesse afirmado a possibilidade de que ‘uma pessoa sirva a Deus no seu chamado, Calvino deu o passo mais ousado de afirmar que é possível ‘a uma pessoa servir a Deus pelo seu chamado’”. Para Calvino, Deus está interessado em tudo que há na sua criação. Ele quer que os seres humanos povoem e dominem a terra. Sem dúvida, a triste verdade é que em Adão todos pecamos, de modo que os nossos esforços não glorificam a Deus como deveriam. Porém, em Cristo, a redenção nos restaura ao seu serviço. Sem a redenção, não conseguimos conhecer a Deus corretamente. Embora Deus nos seja claramente revelado em nós mesmos e na criação (Rm 1.18-21), nós suprimimos esse conhecimento. Porque, como diz Calvino, não conseguimos conhecer Deus corretamente sem piedade, confiança e adoração (Institutas, 1.2.). Porém, segue-se que sem Cristo não conseguimos conhecer também a nós mesmos ou qualquer empreendimento humano legítimo. O evangelho de Cristo presente na Escritura nos redime de todos os pecados, incluindo o pecado do pensamento rebelde. As Escrituras, que proclamam esse evangelho, trazem o verdadeiro conhecimento de nós mesmos. Calvino diz: “Deus nos concede o verdadeiro conhecimento dele apenas nas Escrituras” (Institutas, 1.6.1). Ele continua: [...] assim como quando qualquer livro, por mais razoável que seja, é colocado à frente de idosos ou pessoas cuja visão é deficiente, embora eles percebam que há algo escrito dificilmente conseguem distinguir duas palavras consecutivas, mas, quando auxiliados por óculos, começam a ler nitidamente, do mesmo modo também a Escritura, reunindo as impressões da Divindade, que, até então, estavam confusas na nossa mente, dissipa as trevas e nos mostra claramente o verdadeiro Deus. E com esse “conhecimento verdadeiro de Deus” vem o conhecimento de nós mesmos e de toda a vida humana, esclarecido por meio dos “óculos” da Escritura. Assim, para Calvino a teologia não é apenas um tema dentre muitos. Ela é a chave para tudo o que é humano e, por conseguinte, para a cultura. A cultura é o que os seres humanos fazem com a criação de Deus. As marcas da queda a permeiam. Vemos crueldade no governo humano, niilismo na arte humana, mentiras no jornalismo humano. Porém, a redenção transforma as pessoas de maneira abrangente, para que elas introduzam a sabedoria de Deus nos seus locais de trabalho: compaixão e justiça no governo, significado na arte, verdade no jornalismo. Assim, a cosmovisão de Calvino, que é a cosmovisão da Escritura, necessariamente energiza o povo de Deus para servir a Deus por meio do chamadode cada um e, com isso, transformar tudo. Pessoas redimidas renovam e enobrecem tudo o que é humano. O pecado continua a tentá-las e elas caem. Porém, a partir de uma perspectiva histórica ampla, podemos ver que, por meio dos seus esforços motivados pelo Espírito, a cultura transforma-se para melhor. De fato, o evangelho motivou o povo de Deus a cuidar das viúvas e dos órfãos, a construir hospitais, a pintar e a esculpir, a opor-se à tirania, a levar a Palavra de Deus até os confins do mundo. Os autores deste livro foram bem escolhidos para descrever essa renovação. Eles são estudiosos cuidadosos e inteligentes que conhecem as Escrituras, entendem Calvino e são inspirados pelo evangelho. Estou muito satisfeito por ver esses ensaios tornarem-se disponíveis. Eu mesmo aprendi muito com eles e espero que eles tenham uma ampla circulação, de modo a empolgar muitas pessoas da igreja com os desafios desta cosmovisão que abala o mundo. John M. Frame N Agradecimentos o momento em que este livro segue para impressão, desejamos expressar a nossa mais profunda gratidão a todos os seus autores e, especialmente, à fantástica equipe de editores da P&R. Sem eles, e o ótimo trabalho editorial de Brian Kinney, nossos esforços teriam deixado a desejar. Muito obrigado. E Introdução ste livro procura explorar a cosmovisão gerada por João Calvino e seus discípulos. Com os catorze escritores colaboradores, ele fornece uma amostragem atual de Calvino e sua influência, procurando demonstrar como o calvinismo foi estendido e disseminado por uma ampla variedade de empreendimentos acadêmicos e culturais. Embora muitos contemporâneos devam a sua consciência do “cosmovisionismo” do cristianismo a pensadores modernos como Francis Schaeffer, R. C. Sproul ou Harry Blamires, esses exemplares se empoleiravam nos ombros de outros, como Cornelius Van Til, Herman Dooyweerd, Abraham Kuyper, James Orr e Guillaume Groen van Prinsterer. O calvinismo não só é difundido ao longo de diversas disciplinas, mas também parece ter um tipo de sucessão – ideológica, não institucional ou hierárquica – que o transporta para as próximas gerações. Poucas outras ramificações do cristianismo em geral, ou da Reforma protestante em particular, prosperaram tão amplamente ou tão tenazmente quanto o calvinismo nas suas extensões de cosmovisão. Ainda assim, alguns duvidam que o calvinismo seja um sistema coerente de vida; outros duvidam que Calvino, o clérigo, tivesse intencionado fornecer uma plataforma para um impacto cultural tão extenso. No entanto, se alguém perguntar: “A obra de Calvino de fato gerou muita atividade fora do âmbito eclesiástico?”, essa pergunta é facilmente respondida. Críticos e admiradores observam que, por qualquer motivo, durante o tempo de Calvino, bem como depois, os negócios prosperaram, a inventividade e a inovação tecnológica pareceram multiplicar-se, as artes se destacaram e foram patrocinadas por numerosos calvinistas, a música (primeiramente na igreja, mas, depois, num círculo cada vez mais amplo) foi cultivada e alimentada pelo pensamento reformador, pressupostos políticos mudaram radicalmente, os pobres foram atendidos, a educação avançou – a começar na Genebra de Calvino – e a ciência moderna teve início. As casas editoras, a escrita, o constitucionalismo e os mercados abertos pareceram descobrir um claro “antes e depois” com o estabelecimento do calvinismo em cada localidade geográfica. Assim, na prática, seu pensamento parece ter infundido, se não inspirado, uma cosmovisão que se infiltrou em todos os setores da vida. Este livro, escrito à distância de observação de quase cinco séculos, recorre a profissionais de diversos campos para avaliar como o calvinismo faz diferença nas suas áreas de especialização. Com uma só voz e muitos timbres diferentes, esse grupo (embora eles possam não concordar em todas as particularidades) afirma que o calvinismo, corretamente entendido, alimenta uma cosmovisão distintiva, viva e salutar. Se, porém, alguém fizer outra pergunta –“O próprio Calvino refere-se explicitamente a essas disciplinas, a que chamamos amplamente artes liberais na maioria dos currículos educacionais?” –, ela também é respondida, no mínimo já nas Institutas. Ao abordar o tema de qual conhecimento os seres humanos podem possuir a respeito de Deus e, especificamente, sob o tópico da verdade e autoridade da revelação de Deus, mesmo com o maior respeito por uma epistemologia de sola Scriptura, Calvino não via conflito no fato de cristãos envolverem-se em certas áreas extrabíblicas, bem como conhecê-las. Ele falou de “as inumeráveis evidências, tanto no céu quanto na terra, que declaram a maravilhosa sabedoria [de Deus]”, incluindo não apenas os temas mais obscuros a cuja observação mais cuidadosa se prestam a astronomia, a medicina e todas as ciências naturais, mas também aqueles que se lançam à vista até mesmo das pessoas mais incultas e ignorantes, de modo que elas são incapazes de abrir os olhos sem ser compelidas a testemunhá-los. De fato, homens que têm sorvido ou apenas experimentado as artes liberais penetram, com a ajuda delas, muito mais profundamente os segredos da sabedoria divina.1 O que pode ser surpreendente para alguns é ver a referência explícita de Calvino a disciplinas como medicina e astronomia –“Sem dúvida há necessidade de arte e labuta mais exigente para investigar o movimento das estrelas para determinar suas localizações determinadas, medir seus intervalos, observar as suas propriedades”2 – e a cornucópia de esforços científicos. Ele até mesmo elogia aqueles que experimentam essas diversas disciplinas humanistas. É claro que basta que nos lembremos da formação de Calvino no humanismo renascentista para nos lembrarmos de que Calvino estava mergulhado nessas artes liberais e conhecia o valor delas. Além disso, seu estudo das leis seria de auxílio a ele e aos seus chamados durante décadas. Lembre-se, também, de que foi a Academia de Calvino que procurou reproduzir uma escola de medicina e estava repleta de juristas (Hotman e Godefroy), antigos poetas (Beza, Marot), linguistas, especialistas políticos e historiadores. Além disso, algo do início do jornalismo – não apenas em teoria, mas com a séria ameaça de decapitação – era praticado por um grande número de gráficos, editores, escritores e publicadores que foram atraídos à Genebra de Calvino durante a sua vida. Sua combinação de apreço pela base científica da medicina, embora afirmando Deus como Criador, é vista nesse mesmo contexto, como ele observou: De modo semelhante no tocante à estrutura do corpo humano, é preciso ter a maior agudeza para pesar, com a habilidade de Galeno, sua articulação, simetria, beleza e uso. Todavia, como todos reconhecem, o corpo humano revela-se uma composição tão engenhosa que o seu Artífice é justamente julgado um operador de maravilhas.3 Calvino falou da história como “mestra da vida” (ao comentar sobre Rm 4.23-24) e como a “amante da vida” (do prefácio ao seu comentário sobre Atos), implicando que tanto os cristãos quanto os não cristãos podiam beneficiar-se da pedagogia do passado, e também que a história era um tema de real importância e valor. Em outra parte dos seus escritos, Calvino falou sobre questões econômicas, as artes, o papel da história (sua dependência de escritores anteriores não é apenas uma parte luminosa da sua escrita, mas também uma indicação de como ele valorizava as pesquisas do passado, se bem fundamentadas), o papel da lei na sociedade, e o lugar certo para a música e a beleza na vida cristã. Além disso, sua ênfase na vocação propriamente dita é, certamente, um argumento subsidiário de que Calvino pretendia que a sua teologia transbordasse num empório de cosmovisão. Que Calvino tenha se esforçado conscientemente para dar à luz uma cosmovisão ou para criar um movimento, é difícil dizer; é totalmente possível que a extensão do seu sucesso em inspirar e facilitar um sistema de vida que continha uma cosmovisão robusta possa ter sido uma surpresa que Calvino aindaestá observando enquanto espera na grande nuvem de testemunhas (Hb 12.1). O que este livro documenta e explora é o resultado da obra de Calvino que, de fato, deu origem ao calvinismo como uma torrente intelectual poderosa e duradoura nas correntes do pensamento e da prática da vida. Se isso nos atribuir um lugar entre as testemunhas, seremos gratos por simplesmente fazermos parte da multidão. Ao explorarmos o impacto cultural do calvinismo por meio dessa cosmovisão, pretendemos prestar uma homenagem sincera, embora estejam incluídas algumas críticas apreciativas. Pensamos que o pai do calvinismo apreciaria o equilíbrio saudável de tributo e análise aqui contido. Assim, dedicamos este livro aos organizadores de todos os futuros centenários e celebrações de Calvino, com os nossos agradecimentos e melhores desejos, como esperamos desfrutar os próximos a partir de assentos mais elevados do estádio, com um grande grupo de outras testemunhas. David Hall e Marvin Padgett 1 Institutas, 1.5.2 2 Institutas, 1.5.2 3 Ibid. Abreviações AP Associated press CO João Calvino, Ioannis Calvini opera quae supersunt omnia, org. Guilielmus Baum, Eduardus Cunitz e Eduardus Reuss, 59 v., série Corpus Reformatorum, v. 29-87 (Brunswick: C. A. Schwetschke and Son, 1863-1900) Com. Comentário, de CO CR W. Baum, E. Cunitz e E. Reuss (orgs.), Corpus Reformandum: Joannis Calvini opera quae supersunt omnia (Brunswick: Schwetschke, 1863-80) CSR Christian scholar’s review Institutas João Calvino, Institutas da religião cristã, diversas edições. Salvo nota em contrário, esta é a edição da Library of Christian classics, John T. McNeill (org.), Ford Lewis Battles (trad.) (Filadélfia: Westminster Press, 1960). Essa edição é traduzida do texto de Calvino de 1559, em latim, confrontado com suas outras edições. ID Intelligent Design JCR The journal of Christian reconstruction KJV King James version Lect. Aula, de CO NASB New American standard Bible NIV New international version PCA Presbyterian Church in America R. Consist. Robert M. Kingdon et al. (orgs.), Registres du Consistoire de Genève au temps de Calvin, 21 v. (Genebra: Droz, 1996-) RMJ Reformed music journal Serm. Sermão, de CO WSC Breve Catecismo de Westminster WTJ Westminster theological journal O 1 1929 e tudo aquilo, ou o que o calvinismo diz aos historiadores em busca de significado? Darryl G. Hart ano de 1929 foi um dos mais importantes na vida de muitos cidadãos dos Estados Unidos. Como a maioria das pessoas sabe, esse foi o tempo do Grande “Crash” de Wall Street [a queda da bolsa de valores de Nova York], que evoluiu para a Grande Depressão. A maioria dos historiadores dos Estados Unidos reconhece essa crise como uma das mais profundas da vida da nação. A crise econômica mais recente gerou uma conscientização ainda maior sobre a história econômica da nação, enquanto tanto aqueles que tomam as decisões políticas quanto os cidadãos buscam aprender lições da Depressão. Em 1929 houve outro acontecimento, um que é geralmente omitido dos livros escolares sobre história dos Estados Unidos, mas sem dúvida ainda mais importante do que o declínio dos preços das ações que atingiu Wall Street em 29 de outubro de 1929. Esse acontecimento foi a reorganização do Princeton Seminary e o subsequente início do Westminster Seminary, para dar sequência à missão original de Princeton. Os acontecimentos mais importantes em torno do ajuste administrativo de Princeton fazem parte da controvérsia fundamentalista que envolveu presbiterianos liberais e conservadores durante a maior parte da década de 1920. Embora Princeton não tenha vivenciado diretamente uma tomada de controle liberal, sua nova estrutura administrativa depois de 1929 significava que os conservadores eram minoria no conselho que supervisionava os padrões acadêmicos e teológicos. A decisão de J. Gresham Machen, com o apoio de muitos conservadores presbiterianos, de fundar um seminário sucessor de Princeton foi, indiscutivelmente, um dos principais desenvolvimentos da controvérsia presbiteriana. Ainda que a fundação de Westminster não afetasse tantos americanos quanto o crash do mercado de ações, as apostas no novo seminário foram maiores, por refletirem não o preço de bens temporais, mas o valor de realidades eternas – referentes à redenção comprada por Cristo. Da perspectiva da eternidade, a queda da antiga Princeton e a criação de Westminster foram mais importantes do que a queda dos preços das ações na Bolsa de Valores de Nova York.1 Se essa comparação não for adequada para iniciar maquinações mentais em torno do tema de fazer a história segundo uma perspectiva calvinista, talvez o melhor para isso seja a perspectiva de Machen sobre o significado de 1929 para os presbiterianos conservadores. No seu discurso de convocação para Westminster, proferido diante do corpo docente, dos alunos e de simpatizantes no centro da cidade de Filadélfia, Machen admitiu estar perplexo ao tentar entender a morte do Princeton Seminary. Ele disse: À primeira vista, pode parecer uma grande calamidade; triste está o coração daqueles homens e mulheres cristãos do mundo todo que amam o evangelho que o antigo Princeton proclamava. Não conseguimos compreender plenamente os caminhos de Deus ao permitir tão grande mal. Contudo, o bem pode vir até mesmo de algo tão mau quanto isso.2 Como estudioso da Escritura, Machen sabia que, ao longo da história da redenção, muitas vezes Deus realizou os seus propósitos por meio de acontecimentos que davam a impessão de que o povo de Deus estava sofrendo derrota. A história de José e seus irmãos, a escolha do diminuto Davi como rei de Israel e, acima de tudo, a morte de Cristo na cruz – tudo isso tornava plausível a percepção de Machen de que o bem poderia surgir do mal no curso da história da redenção. Ainda assim, ele não tinha certeza no tocante a Princeton. Se Machen estava incerto sobre como interpretar os acontecimentos na igreja, quanto mais relutante ele não deveria estar ao tentar interpretar a importância da Grande Depressão? Por mais inquietante que a incerteza histórica possa ser, os instintos calvinistas de Machen estavam exatamente corretos. Embora muitos historiadores e teólogos afirmem que especificamente a fé reformada, e de modo mais geral o cristianismo, equipem os historiadores com discernimento sobre o significado de acontecimentos históricos, há uma realidade mais profunda: a de que a fé reformada pode dificultar as tentativas de extrair o sentido último de acontecimentos históricos. Como o próprio exemplo de Machen sugere, a fé reformada incentiva a humildade epistemológica ao tentar dizer o que Deus está fazendo na história. Em vez de acrescentar no sentido de se obter uma narrativa completa, com início, meio, transições entre capítulos e um fim otimista, a história de uma perspectiva calvinista é, na verdade, cheia de mistério. Ninguém sabia disso melhor do que João Calvino, cuja doutrina de providência e instrução sobre a maneira de ver o mundo representa um dos melhores pontos de partida para os protestantes reformados que estudam o passado e desejam compreendê-lo. A providência segundo Calvino Em geral, os protestantes reformados têm apresentado poucas objeções à doutrina da providência. Pelo fato de muitos aceitarem a fé reformada precisamente devido à compreensão tradicional da soberania de Deus, faz perfeito sentido a crença de que – segundo o Breve Catecismo de Westminster – a providência envolve Deus “preservar e governar as suas criaturas e todas as suas ações da maneira mais santa, sábia e poderosa”. A providência implica uma ordem criada, na qual Deus está no comando e os seres humanos não precisam se preocupar se os propósitos dele serão cumpridos (BCW, P. 11). Calvino não estava mais confortável com a providência do que outros protestantes reformados ao desenvolver a doutrina no livro 1 das Institutas. Essa foi a seção da sua exposição sistemática da religião cristã em que ele discutiu o conhecimento de Deus, o Criador, pelo homem. Ao fimdessa seção das Institutas, Calvino discutiu devidamente, em primeiro lugar, a obra da criação de Deus e, em seguida, as suas obras de providência, dois atos divinos intimamente ligados devido ao relacionamento entre a criação a partir do nada e a subsequente preservação necessária à manutenção do que foi originalmente criado. A definição básica de Calvino da providência era: Deus governa o céu e a terra de tal modo que ele “regula todas as coisas para que nada aconteça sem a sua deliberação”.3 O reformador francês explicou que essa regulação não era simplesmente uma extensão da natureza, como se Deus tivesse simplesmente criado o mundo e o deixado seguir em frente sem apoio direto contínuo e sem governo. Calvino escreveu: “Esses que confinam a providência de Deus a limites tão estreitos, como se ele permitisse que todas as coisas fossem levadas em livre curso segundo uma lei universal da natureza, tanto roubam de Deus a sua glória quanto de si mesmos uma doutrina muito proveitosa”.4 Em outras palavras, a providência não é passiva, como se Deus meramente estivesse sentado “de braços cruzados” observando o universo, mas “como o guardião das chaves, ele governa todos os acontecimentos”.5 Na categoria geral da regulação da criação por Deus, Calvino distinguiu quatro camadas de providência. A primeira era o mundo natural, como “a alternância de dias e noites, de inverno e verão”. Esse aspecto da providência incluía o mundo animal, no qual Deus “dá alimento aos filhotes dos corvos” e governa o voo dos pássaros segundo um “plano definido”.6 Essas eram obras de Deus porque os dias e as estações seguiam uma “certa lei” estabelecida pelo próprio Deus.7 Uma segunda camada referia-se ao cuidado providencial de Deus pelo homem. Calvino insistia que “sabemos que o universo foi criado para o bem da humanidade”.8 Aqui, Calvino citou Jeremias (Jr 10.23) e Salomão (Pv 16.9) para mostrar que Deus dirige os passos do homem até o ponto de Calvino negar ao homem o controle das suas próprias questões dentro dos limites de uma ordem natural dada por Deus. Calvino escreveu: “O profeta e Salomão atribuem a Deus não apenas poder, mas também escolha e determinação”. Ele acrescentou que é “uma loucura absurda homens miseráveis assumirem a responsabilidade de agir sem Deus, sendo incapazes de sequer falar senão conforme a vontade dele”. Isso significava que nada acontece ao homem por acaso, porque nada no mundo é “realizado sem determinação [de Deus]”.9 O terceiro nível de providência estendia-se às ocorrências naturais. Os exemplos usados aqui por Calvino foram o clima e a procriação humana. “Sempre que o mar se agita com a rajada dos ventos”, essas forças testificam da presença do poder de Deus e confirmam o ensino da Escritura de que Deus “[…] falou e fez levantar o vento tempestuoso, que elevou as ondas do mar” (Sl 107.25). A fertilidade humana também foi uma indicação do controle de todas as coisas por Deus. Ainda que todos os homens e mulheres (com poucas exceções) possuíssem o poder de procriar, alguns casamentos eram mais estéreis ou férteis do que outros. O motivo da diferença era o “favor especial” de Deus.10 A quarta e última dimensão da providência delineada por Calvino é a mais relevante para considerar o controle de Deus da história e o que uma perspectiva reformada do conhecimento histórico poderia envolver. Calvino rejeitava veementemente a doutrina estoica do destino, embora soubesse que o seu próprio ensino da providência pudesse soar como se ele estivesse dizendo que a atividade de Deus no controle de todas as coisas deixava o homem num estado passivo, apenas sujeito em vez de atuante no espaço e no tempo com propósito. Calvino podia negar o estoicismo porque rejeitava a necessidade de causas. A ordem criada não se manifestava de maneira mecânica, mas em conformidade com o decreto e os atributos eternos de Deus. Do mesmo modo, Deus regia e governava todas as coisas segundo seu ser, sabedoria, poder, santidade, bondade e verdade. Em vez de uma lei abstrata ou uma força distante estar no centro de todas as coisas, a criação se desenvolveu segundo um Deus pessoal, e a providência encorporava essa personalidade. Para Calvino, isso significava que “não apenas o céu, a terra e as criaturas inanimadas, mas também os planos e as intenções dos homens são de tal modo regidos pela providência de Deus que são levados por ela diretamente ao fim que lhes foi determinado”.11 Essa execução do decreto de Deus eliminava qualquer espaço para sorte ou casualidade. Calvino escreveu: “Nada é mais absurdo do que qualquer coisa acontecer sem Deus ordená-la, porque ela aconteceria sem causa alguma”.12 Várias perguntas surgem naturalmente da discussão da providência por Calvino. Qual é a relação entre a soberania divina e a liberdade humana? O homem tem livre-arbítrio? Qual é a diferença entre as causas secundárias – os modos pelos quais Deus realiza os seus propósitos por meio das ações do homem ou de circunstâncias da ordem criada (como o nascer do sol ou a força da gravidade) – e as causas principais de Deus, como a sua intervenção poderosa e direta na ordem criada na forma de milagres, revelação especial e a encarnação? Embora importantes para a compreensão da doutrina reformada da providência, essas perguntas são um tanto irrelevantes para avaliar uma perspectiva calvinista da história que decorra do ensino de Calvino sobre a providência. Calvino não parou para pensar sobre essas perguntas, mas nas Institutas passou diretamente de uma exposição da providência para um aspecto do controle de Deus diretamente relacionado à investigação histórica e crucial para sua obra. Ele disse que, independentemente do quanto Deus estivesse no controle de todos os acontecimentos e do quanto os cristãos acreditem na soberania divina de nada ocorrer na história por casualidade ou sorte, para nós os desdobramentos da providência “são fortuitos”.13 Os cristãos sabem que tudo é “ordenado pelo plano de Deus” e se desenrola segundo “uma dispensação certa”, embora em sua experiência de existência humana, circunstâncias naturais e desenvolvimento social, o homem não seja capaz de discernir significado ou direção suficientemente para contradizer a impressão de que a vida é marcada por acidentes ou sortes. Calvino insistia em que não estava argumentando que a sorte “governa o mundo e os homens, com todas as coisas caindo para cima e para baixo ao acaso”. Essa era uma visão tola e não tinha lugar no “seio do cristão”. Mesmo assim, pelo fato de que “ordem, razão, finalidade e necessidade” da vida cotidiana “em sua maior parte estejam escondidas no propósito de Deus e não serem apreendidas pela opinião humana”, as coisas que acontecem segundo a vontade e o plano soberano de Deus “são, em certo sentido, fortuitas”.14 Calvino usou o seguinte exemplo para provar seu argumento: Imaginemos, por exemplo, um comerciante que, entrando numa floresta com um grupo de homens fiéis, de maneira imprudente afasta-se dos seus companheiros e, na sua perambulação, chega ao esconderijo de um ladrão, cai entre ladrões e é assassinado. Sua morte foi não apenas prevista pelo olho de Deus, mas também determinada pelo seu decreto. Isso porque não é dito que ele previu durante quanto tempo a vida de cada homem se estenderia, mas que ele determinou e fixou os limites que os homens não podem ultrapassar (Jó 14.5). Contudo, no tocante à capacidade da nossa mente, todas as coisas ali contidas parecem fortuitas.15 A maioria das ocorrências humanas, quer sejam consideradas “em sua própria natureza ou ponderadas segundo o nosso conhecimento e julgamento”, na superfície parece não ter qualquer significado intrínseco a não ser que ocorre segundo o propósito eterno de Deus. No caso de morte do comerciante, um cristão a considerará “fortuita por natureza”, mas não duvidará de que “a providência de Deus exerceu autoridade sobre a sorte ao dirigir o seu fim”.16 No entanto, para Calvino, encontrar alguns significados imediatos nas questões do mundo não era impossível. Eleadvertiu contra pensar que Deus “zomba dos homens, jogando-os para todos os lados como bolas”. Ele também aconselhou que, se o homem tivesse uma mente “calma e composta”, sempre veria que Deus tinha as melhores razões para a maneira como os acontecimentos se desenrolam, de modo a incentivar a paciência, corrigir “sentimentos perversos”, incentivar a abnegação ou despertar de “indolência”.17 Ao mesmo tempo, Calvino ensinou que, embora Deus tenha revelado o significado de certos mistérios, nem todas as partes da história são transparentes. Aqui, ele recorreu à instrução de Moisés em Deuteronômio 29.29, isto é, que as coisas secretas pertencem a Deus, mas as reveladas podiam ser vistas e entendidas. Desse modo, Calvino estava reconhecendo que a Escritura revelava o sentido último da história ao revelar Deus, seu plano de redenção e sua vontade para os cristãos.18 O homem poderia ser encorajado pela verdade revelada de que Deus tinha “cuidado especial” pelo seu povo.19 No entanto, Calvino não estava disposto a ir além da revelação geral encontrada na Escritura. O homem tinha de se contentar com um sentido geral de providência divina – de que Deus operava tudo em conformidade com o seu plano e para o bem dos seus filhos. Uma vez que esse plano que, em última análise, era bom também envolvia dificuldades e sofrimentos, interpretar os acontecimentos segundo eles agradavam ou consolavam o homem era loucura. Pelo fato de o momento mais revelador da história ter envolvido a morte do Filho unigênito de Deus, os cristãos precisam lembrar-se de que adversidade ou sofrimento era “enviado por justa dispensação de Deus”.20 A lição que o entendimento de Calvino da providência parecia ter para os historiadores é aquela um tanto decepcionante de que a história é geralmente indecifrável à parte de Cristo. A história fica sem sentido a menos que a Escritura seja verdadeira ao declarar a glória de Deus conforme revelada na vida e obra do Filho de Deus encarnado. Porém, a verdade da revelação de Deus em Cristo não leva aonde muitos eruditos reformados pensam que ela leva. O evangelho explica por que as pessoas existem e para onde a história está indo. Porém, além da resposta da escola dominical a todo questionamento histórico –“Cristo” – os historiadores não têm acesso real à interpretação do sentido último de acontecimentos e atores históricos. Por exemplo, à pergunta “Por que Andrew Jackson venceu a eleição de 1828 para presidente dos Estados Unidos?”, a resposta “Cristo” ou “o evangelho” ou “a glória de Deus” dificilmente satisfaz. Os historiadores têm muito maior probabilidade de falar de mudanças na demografia dos Estados Unidos, da reputação de Jackson como herói de guerra, a concessão de direitos de voto a cidadãos anteriormente excluídos do processo eleitoral. Qualquer número dessas explicações imediatas ou temporais dá sentido ao que mudou com a vitória de Jackson. Porém, essas não são exatamente respostas cristãs. Elas não estão em desacordo com a verdade cristã de que Deus controla todas as coisas, incluindo causas secundárias como as que explicam o sucesso de Jackson. Elas simplesmente não têm relação direta com a obra de Cristo pelo bem do povo de Deus.21 Esforços para ligar acontecimentos da história à pessoa e à obra de Cristo podem ser totalmente desastrosos, não apenas segundo padrões históricos, mas também de acordo com a ortodoxia cristã. Se alguém argumentasse que Jesus Cristo realizou a salvação para que Andrew Jackson fosse eleito o sétimo presidente dos Estados Unidos, o argumento seria difícil se baseado unicamente no que a Escritura revela. Cristo governa as nações e governou providencialmente a eleição de 1828, mas dizer que Cristo estava cumprindo a sua obra redentora por intermédio da administração Jackson não faz justiça a qualquer número de políticas ou iniciativas contrárias à vontade revelada de Deus implementadas por Jackson.22 Enquanto isso, dizer que Jackson estava realizando as intenções de Cristo é igualmente absurdo e evidentemente falso. Cristãos reformados podem debater a atuação adequada do magistrado e até que grau ele pode ser responsável pela verdadeira religião no seu âmbito, mas poucos historiadores reformados argumentaram – como Eusébio fez com Constantino – que determinado governante estava fornecendo significado à história por estar realizando a obra e o propósito redentores de Cristo. Porém, o simples fato de os historiadores – mesmo os reformados – não deterem a chave interpretativa que revela o significado dos acontecimentos ou atores que não têm relação direta com o resultado da história da redenção não faz com que o trabalho deles seja em vão. É nesse caso que o ensino de Calvino sobre a providência é especialmente útil. Pelo fato de que Deus governa todas as coisas e tudo acontecer segundo o seu propósito eterno, os historiadores não estudam os acidentes, mesmo que os acontecimentos que eles tentam explicar não possuam uma qualidade inevitável. Os historiadores não só estudam uma ordem significativa (e são criados de maneira a perceber a ordem em oposição ao caos no movimento da história), mas também conseguem enxergar as conexões entre causas secundárias, sendo, desse modo, capazes de dar explicações sábias e cultas de por que certas coisas acontecem, segundo a infinidade de circunstâncias em que o homem vive em decorrência da criação e da providência de Deus. Em outras palavras, os historiadores são capazes de identificar a diferença que tirania, justiça, escassez, criatividade, virtude e produtividade fazem para a história de povos, nações e sociedades. Não obstante, não são capazes de ligar esses atributos e fatores à direção e ao significado da história de uma perspectiva eterna; ou seja, os historiadores são incapazes de, definitivamente, dizer como essas circunstâncias contribuem para o avanço do reino de Cristo. Então, a doutrina da providência de Calvino era uma reiteração do entendimento profundo e bíblico que Agostinho tinha da história e do seu significado. Em A cidade de Deus, o bispo de Hipona escreveu: Não sabemos por qual juízo de Deus este homem bom é pobre e aquele homem ruim é justo; porque aquele que, em nossa opinião, deve sofrer intensamente por sua vida dissoluta se diverte, enquanto a tristeza persegue aquele cuja vida louvável nos leva a supor que ele deveria estar feliz; por que o homem inocente sai do tribunal não só não vingado, mas até mesmo condenado, sendo injustiçado pela iniquidade do juiz ou oprimido por provas falsas, enquanto, por outro lado, seu adversário culpado sai não apenas impune, mas até mesmo tem as suas alegações admitidas; por que o ímpio goza de boa saúde enquanto o piedoso definha na doença. […] Porém, quem é capaz de juntar ou enumerar todos os contrastes desse tipo? No entanto, se esse estado anômalo de coisas fosse uniforme nesta vida, na qual, como diz o sagrado salmista, “O homem é como um sopro; os seus dias, como a sombra que passa” (Sl 144.4) – tão uniforme que somente os homens maus ganharam a prosperidade transitória da terra, enquanto somente os bons sofreram seus males —, isso poderia ser atribuído ao juízo justo e até mesmo benigno de Deus. […] Porém agora, como é, uma vez que não só vemos homens bons envolvidos nos males da vida, e homens maus desfrutando das coisas boas dela, o que parece injusto, mas também que com frequência o mal vem aos homens maus, e o bem surpreende os bons, quão insondáveis são os juízos de Deus, e quão inescrutáveis, os seus caminhos (Rm 11.33). Portanto, embora não saibamos por que juízo essas coisas são feitas ou cuja permissão para serem feitas vem de Deus, possuidor da mais elevada virtude, da mais elevada sabedoria, da mais elevada justiça, de nenhuma enfermidade, de nenhuma temeridade e de nenhuma injustiça, nos é salutar aprender a considerar irrelevantes tais coisas, sejam elas boas ou más, que acontecem indiferentemente a homens bons e maus, e cobiçar as coisas que pertencem somente a homens bons, e fugir dos males que só pertencem a homens maus (20.2).23Historiadores deficientes? Por mais claro que Calvino tenha sido a respeito da natureza da providência, os historiadores cristãos têm sido relutantes quanto a obedecer ao sinal de parada colocado por ele nas explicações históricas de acontecimentos que carecem de interpretação bíblica. Desde o surgimento de uma associação conscientemente cristã de estudiosos, não somente em história acadêmica, diversos acadêmicos evangélicos e reformados desenvolveram argumentos sobre o valor de historiadores cristãos exercerem seu ensino com motivações ou perspectivas explicitamente religiosas. Frequentemente, esses argumentos incluíam a ideia de que a historiografia cristã deveria ser, de algum modo, perceptivelmente diferente do trabalho dos seus pares seculares. É claro que a diferença entre as interpretações cristãs e seculares decorre precisamente das diferentes crenças e convicções que os acadêmicos cristãos possuem em virtude de sua fé. Não obstante, apelar para Calvino quanto a esse ponto é anacrônico, uma vez que uma academia secular teria sido inconcebível para ele. Porém, seu ensino sobre a providência é relevante para muitos dos recentes argumentos apresentados em nome da diferença que o cristianismo faz para a erudição histórica. C. Gregg Singer, professor de História na Catawba College, representou a perspectiva de um conjunto mais antigo de acadêmicos cristãos que ensinavam e escreviam antes de os evangélicos dos Estados Unidos começarem a fazer pós-graduação como parte normal da sua formação. Ele acreditava que os historiadores seculares rejeitavam “a possibilidade de significado e propósito final na história”. Consequentemente, a tarefa dos historiadores cristãos era “confrontar o mundo incrédulo com uma interpretação da história que é tanto fiel à Escritura por um lado quanto, por outro, relevante para o clima intelectual” dos tempos.24 A doutrina da providência era fundamental. Para Singer, ela assegurava que “a história tem tanto significado quanto propósito porque é real”. Ele tinha razão quanto à sensação de um cristão de viver no espaço e no tempo e imaginando para onde a história está indo. Porém, ao aplicar essa verdade a julgamentos históricos, Singer soava menos certo. Por exemplo, a decadência da cultura ocidental na última metade do século 20 “fazia parte do propósito soberano de Deus de aniquilar as filosofias pagãs do mundo antigo”.25 Singer levou isso um passo adiante ao convocar o historiador cristão a demonstrar que “o declínio da própria cultura ocidental é o resultado direto do triunfo da Renascença sobre a Reforma na vida ocidental”. Ele acrescentou que as revoluções na França e nos Estados Unidos foram o resultado de “paganismo ressurgente” no século 18. Fazer esses julgamentos era a “tarefa do historiador”, disse ele.26 Um grupo mais jovem de historiadores surgiu para assumir a defesa de uma abordagem cristã à história. A avaliação que eles faziam do Ocidente e seu declínio, talvez refletindo a diferença entre a “Melhor geração” dos Estados Unidos e a geração dos baby boomers, não era tão lúgubre quanto a de Singer. Porém, como Singer, eles argumentaram que convicções religiosas separavam sua compreensão da história da dos estudiosos seculares e os capacitava a discernir o significado ou padrão divino no desenrolar dela. A avaliação mais abrangente e criteriosa foi a de David Bebbington, historiador evangélico inglês cujo livro Patterns in history [Padrões na História] (1979) contrastava concepções cristãs da história com concepções antigas, modernas, marxistas e historicistas. Os argumentos de Bebbington sobre o cristianismo envolvendo uma visão linear da história, um fim ou telos, e um Deus que intervinha no espaço e no tempo, o que distingue o cristianismo de outras perspectivas intelectuais, foram claramente bem recebidos. Ele ainda mostrou o quanto a história acadêmica ocidental moderna – embora frequentemente rejeitando Deus – tomou emprestado do triunfo do cristianismo sobre a filosofia pagã.27 Porém, quando tomou a verdade de que Deus intervém na história e deu aos historiadores cristãos uma medida de acesso ao significado da história, graças à sua crença num Deus que é atuante no mundo, Bebbington pareceu ir além de onde a doutrina da providência de Calvino permitia. Por exemplo, Bebbington escreveu que “quando o bem surge surpreendentemente do mal, Deus está, evidentemente, operando”.28 Ele também sugeriu que auxiliados, como foram, por uma moral divinamente revelada, os estudiosos cristãos deveriam ser capazes de fazer julgamentos morais sobre o passado. Bebbington alertou contra os cristãos interpretarem o passado de um modo providencial quando seus leitores ou plateias estivessem interessados apenas em “história técnica”. Todavia, “o historiador cristão pode discernir Deus operando no passado, sem necessariamente escrever sobre ele”.29 George M. Marsden argumentou de modo semelhante a Bebbington, embora mostrando diretamente a influência de argumentos kuyperianos (ou neocalvinistas) sobre seu pensamento. Segundo Marsden, a fé cristã influenciou a erudição histórica de três modos importantes. O primeiro foi a escolha de um tema. Invariavelmente, devido às suas crenças, os cristãos valorizariam alguns aspectos da pesquisa histórica como mais vantajosos do que outros. O segundo foi o tipo de pergunta que um historiador cristão faria a respeito de um tema. “Os estudiosos cristãos têm a probabilidade de estar mais interessados num conjunto diferente de questões do que outros estudiosos e de discernir coisas diferentes por causa de sua crença.”30 A terceira influência sobre a historiografia cristã veio na seleção de teorias pelas quais abordar um tema e um conjunto de perguntas. Por exemplo, “estudiosos que aceitam a autoridade de textos antigos não têm a probabilidade de aceitar a radical desconstrução pós-moderna da autoridade de todos os textos ou de que os seres humanos são, de fato, os únicos criadores da realidade”.31 Marsden acrescentou que a contribuição específica que os historiadores cristãos poderiam fazer seria exibirem padrões morais no seu trabalho e resistirem ao relativismo cultural e histórico.32 Embora Marsden tenha interagido menos diretamente com ideias de propósito ou significado na história, seu argumento sugeriu que os historiadores cristãos poderiam fazer julgamentos sobre o passado que não estavam disponíveis aos seus pares, em virtude de sua compreensão da verdade revelada de Deus. Um último exemplo de reflexão sobre a natureza da história cristã vem de Ronald A. Wells, que ensinou na Calvin College durante grande parte da sua carreira e escreveu o livro History through the eyes of faith [A história vista pelos olhos da fé] (1989), dedicado à história da Christian College Coalition. Wells estava escrevendo com uma finalidade um tanto diferente da de Singer, Bebbington ou Marsden, uma vez que seu livro deveria suplementar pesquisas para livros didáticos sobre a civilização ocidental. Mesmo assim, ele argumentou que os estudantes universitários cristãos precisavam compreender seu lugar na vinda do reino de Deus, e isso levará a certas avaliações da história ocidental. Por exemplo, mostraria que o “humanismo secular-científico do Iluminismo” havia levado a humanidade a um “beco sem saída”.33 Wells argumentou que os cristãos conseguiam discernir um padrão de desolação moral e espiritual na história do Ocidente. Ele acrescentou que, dado que “o racionalismo do Iluminismo é incompatível com a fé cristã, e dado que os Estados Unidos deveriam ser um campo de testes das crenças progressistas do Iluminismo, sempre foi claro – em termos [do cristão] – que esse tipo de teste seria um fracasso”.34 Wells pode ter discordado de Singer quanto à natureza da experiência norte- americana, mas, como ele, Wells e também Marsden e Bebbington (numa extensão menor), sentiram-se à vontade para fazer avaliações morais da história. Essa perspectiva moral era tanto um dom quanto uma responsabilidade para o historiador cristão. Sem dúvida, Calvino não terianegado a validade dos padrões morais divinamente revelados e que todos os atores históricos serão julgados segundo a lei de Deus. Porém, que essa seja propriamente tarefa do historiador é outra questão. Uma perspectiva moral da história também não necessariamente entra em ressonância com a doutrina da providência conforme explicada por Calvino. Certamente, juízos morais estão presentes na obra de historiadores seculares, talvez no lado diferente de uma questão, mas os julgamentos morais não são o domínio exclusivo dos historiadores profissionais cristãos. Temas como escravidão, nazismo, patriarcado e capitalismo são especialmente reveladores, uma vez que, mesmo sem fé, os historiadores tiveram pouca dificuldade em condenar essas características do passado. Ao mesmo tempo, apreciar a variedade, a complexidade e o mistério do passado – seja decorrente de um apelo à providência ou não – raramente resulta da certeza moral que os cristãos e os historiadores incrédulos demonstraram. Essa certeza está em desacordo com a humildade interpretativa que Calvino incentivou na sua doutrina da providência. Aceitando os limites do significado O calvinismo nutriu criatividade intelectual, tradições de realização acadêmica e instituições fortes de ensino superior. Essas realizações nem sempre cultivaram a modéstia intelectual entre os protestantes reformados. Devido a um talento para interpretar a Bíblia e refletir sobre suas verdades de maneiras sistemáticas, os calvinistas geralmente se orgulharam de sua tradição como um dos grupos intelectualmente mais avançados dos protestantes. Quer esse orgulho seja apropriado ou não, os historiadores que trabalham dentro de uma perspectiva reformada podem ter os ingredientes para fornecer a modéstia intelectual necessária para impedir a arrogância nos eruditos reformados. A doutrina da providência é um bom lugar para começar. Embora essa verdade, especialmente como Calvino a expôs, pareça incentivar os estudiosos cristãos a encontrar significado em toda parte – porque Deus está no controle de tudo –, ela faz precisamente o oposto. Pelo fato de Deus ter criado e sustentar todas as coisas segundo a sua infinita sabedoria, bondade e justiça, tudo que existe na ordem criada tem significado e propósito. Além disso, devido a esse significado e propósito residirem inequivocamente no decreto eterno de Deus, não há qualquer ambiguidade na importância da criação, pelo menos na mente de Deus. Essa perspectiva abrangente da relação de Deus com a criação tentou acadêmicos cristãos a pensar que são capazes de conhecer a mente de Deus e, portanto, o significado e o propósito das matérias que estudam. O problema com o qual os estudiosos cristãos precisam lutar é que Deus revelou apenas uma parte da sua mente, da sua vontade e do seu propósito. Os protestantes reformados acreditam que Deus revela-se nos dois livros: o livro da natureza e o livro da Escritura. Porém, apenas um desses livros revela Cristo, cuja vida, ministério e redenção constituem o significado da criação. O outro livro, a revelação geral, revela de fato o seu autor, mas apenas de maneira suficiente para condenar a incredulidade e a perversidade. O livro da natureza não revela Cristo. Por essa razão, os esforços cristãos para encontrar sentido nas páginas da história, no mundo natural, no desenvolvimento social ou na natureza humana chocam-se com o muro dos limites da Escritura. Ir além desse muro é envolver-se em especulação. Isso é tão verdadeiro para a história quanto para outras esferas da investigação humana. Os biólogos cristãos não têm uma ideia melhor sobre o significado dos micróbios do que os matemáticos cristãos têm sobre as equações algébricas ou os professores de inglês têm sobre Hamlet. Os historiadores cristãos podem ser tentados, mais do que outros estudiosos cristãos, a especular sobre a importância dos seus estudos porque o cristianismo está ligado à história. A própria Bíblia começa com as origens humanas e termina com uma visão do fim dos tempos. A Escritura pareceria convidar quem crê nas suas verdades a compreender os desenvolvimentos humanos intervenientes à luz da narrativa bíblica da criação, queda, redenção e consumação. Embora a Escritura seja clara sobre o significado de vários pontos altos do drama histórico por ela revelados, quase nada tem a dizer sobre as circunstâncias históricas que tornaram lugares como Atenas, Roma, Londres e Filadélfia, por exemplo, lugares tão importantes na história do Ocidente. Aceitar os limites que o cristianismo impõe à busca de significado na história contraria o conhecimento de que os cristãos conhecem o significado último da dela. O truque é aceitar outra verdade, ou seja, que há uma diferença entre encontrar o significado último da história humana (que é Cristo) e o significado imediato de guerras, eleições presidenciais, leis e movimentos de massas (que é incerto). Com essa distinção em mente, os historiadores cristãos podem afirmar, com confiança, que o significado da história da redenção é claramente revelado, enquanto no domínio da história secular eles possam trabalhar numa estrutura interpretativa que decorre das pessoas, instituições e ideias que eles adotam e exploram (tais como o valor do republicanismo e da liberdade, ou as vantagens da monarquia constitucional, ou a necessidade de estados-nações fortes, ou o valor das instituições e cultura locais). Essa não é uma posição de relativismo ou ceticismo. Ela é o resultado necessário de não conhecer todos os propósitos ocultos de Deus na trama e urdidura da sua criação. A distinção entre os segredos ocultos e revelados de Deus não é menos verdadeira para a história da igreja. Com a conclusão do cânon da Escritura e a perda de acesso a interpretações divinamente reveladas de acontecimentos da história da redenção, os historiadores cristãos da igreja estão igualmente sem condições de determinar por que a Reforma, por exemplo, começou na Alemanha, assim como os historiadores cristãos que estudam a história da política são incapazes de explicar, em última análise, as causas da Revolução Francesa.35 Embora não tivesse formação de historiador, Machen certamente parecia compreender os limites impostos pelo cristianismo aos seus poderes de discernir significado na História. Embora mais animado pela importância dos avanços do mundo presbiteriano do que pelas fortunas em declínio de Wall Street, Machen não estava mais disposto a identificar o significado dos avanços do Seminário de Princeton do que a atribuir uma importância divina à débil economia dos Estados Unidos. Esse tipo de restrição interpretativa pode ser raro para os calvinistas, mas, se os historiadores reformados conseguirem aprender a sua disciplina, poderão fornecer um serviço crucial como modelos do tipo de humildade intelectual que deve caracterizar o discernimento cristão. 1 Sobre os acontecimentos que levaram à reorganização de Princeton e à criação de Westminster, veja Bradley J. Longfield, The Presbyterian controversy: Fundamentalists, modernists, and moderates, Religion in America (Nova York: Oxford University Press, 1991). 2 J. Gresham Machen, “Westminster theological seminary: Its purpose and plan”, in D. G. Hart (org.), J. Gresham Machen: Selected Shorter Writings (Phillipsburg, NJ: P&R Publishing, 2004), 194. 3 Institutas, 1.16.3. 4 Ibid. 5 Institutas 1.16.4. 6 Institutas, 1.16.5. 7 Ibid. 8 Institutas, 1.16.6. 9 Ibid. 10 Institutas, 1.16.7. 11 Institutas, 1.16.8. 12 Ibid. 13 Institutas, 1.16.9. 14 Ibid. 15 Ibid. 16 Ibid. 17 Institutas, 1.17.1. 18 Institutas, 1.17.2. 19 Institutas, 1.17.6. 20 Institutas, 1.17.8. 21 Livros recentes sobre Andrew Jackson incluem Sean Wilentz, Andrew Jackson (Nova York: Times Books, 2005) e Jon Meacham, American Lion: Andrew Jackson in the White House (Nova York: Random House, 2008). 22 Por exemplo, o tratamento dado por Jackson aos norte-americanos nativos – transferindo-os para os territórios do Oeste – e sua indiferença ao abolicionismo, bem como sua conduta pessoal, são geralmente consideradasmanchas no seu caráter. Para alguma perspectiva sobre o homem Jackson, veja Meacham, American lion, 25–32. 23 Agostinho, The city of God against the pagans, trad. e org. R. W. Dyson (Nova York: Cambridge University Press, 1998). 24 C. Gregg Singer, Christian approaches: To philosophy, to history (Memphis: Craig Press, 1978), 35. 25 Ibid., 36. 26 Ibid., 37. 27 David Bebbington, Patterns in history: A Christian perspective on historical thought (Grand Rapids: Baker, 1990), cap. 3. 28 Ibid., 184. 29 Ibid., 186–87. 30 George M. Marsden, “What difference might Christian perspectives make”, in Ronald A. Wells (org.), History and the Christian historian (Grand Rapids: Eerdmans, 1998), 15. 31 Ibid., 16. 32 Ibid., 17–18. 33 Ronald A. Wells, History through the eyes of faith, Christian College Coalition Series (San Francisco: Harper & Row, 1989), 234. 34 Ibid., 230. 35 Esses parágrafos resumem o argumento contido em D. G. Hart, “History in search of meaning: The conference on faith and history”, in Wells (org.), History and the Christian historian, 68-87. A 2 Lei, autoridade e liberdade no início do calvinismo John Witte Jr. reforma calvinista transformou não apenas a teologia e a igreja, mas também a lei e o Estado. O próprio João Calvino era um advogado de boa formação e criou mais de uma centena de estatutos para Genebra – incluindo novas constituições para a igreja e o Estado locais, novas leis e procedimentos civis e criminais, e muitas ordenanças distintas sobre sexualidade e suntuosidade, casamento e vida familiar, moralidade e caridade, educação e assistência aos pobres, dentre muitos outros tópicos.1 Calvino também foi membro do consistório de Genebra durante duas décadas, tendo julgado milhares de casos, e lidou com muitas questões legais intrincadas na sua obra Institutas, nos comentários, sermões, concílios e correspondências.2 A atenção de Calvino aos detalhes legais tornar-se-ia uma marca registrada das primeiras comunidades calvinistas nos primórdios das modernas França, Holanda, Escócia, Inglaterra, Alemanha e suas colônias de além-mar. Os calvinistas de cada uma dessas comunidades desenvolveram elaborados novos decretos para todos os tipos de temas de direito público, privado e criminal. Com frequência, seus consistórios locais eram tribunais legais sofisticados, tanto quanto os seus mais amplos sínodos, conselhos e presbitérios, que promoviam audiências e faziam novas leis para a igreja. Suas universidades produziram um grande número de juristas, que lideraram a igreja e o Estado na reforma do direito, da política e da sociedade.3 Este capítulo dá exemplos de alguns dos principais ensinos legais e contribuições de Calvino e juristas calvinistas posteriores antes de 1700. Ele se concentra nos modelos singulares de lei e liberdade, autoridade e disciplina, e igreja e Estado desenvolvidos pelos calvinistas com base na força dos seus ensinamentos teológicos fundamentais. Depois de analisar em detalhe as visões de Calvino, o capítulo concentra-se nas contribuições distintas de calvinistas selecionados franceses, holandeses, ingleses e norte- americanos que escreveram em resposta a grandes crises legais e políticas. O objetivo é simples: ilustrar como Calvino e o calvinismo influenciaram a área do direito. João Calvino e Genebra A reforma de Genebra por Calvino traçou uma conduta habilidosa entre os luteranos, que tendiam a subordinar a igreja ao Estado, e os anabatistas, que tendiam a retirar totalmente a igreja do Estado e da sociedade. Como os luteranos, Calvino insistia em que cada governo local (como o de Genebra) fosse uma comunidade cristã uniforme que aderisse aos princípios gerais da Bíblia e da lei natural e os traduzisse em leis positivas detalhadas para a vida pública e a privada. Como os anabatistas, Calvino insistia na separação básica dos cargos e operações de igreja e Estado, deixando a igreja governar a si mesma sem interferência do Estado. Porém, diferentemente daqueles dois grupos, Calvino insistia em que os funcionários da igreja e os do Estado desempenhassem papéis legais complementares na criação da comunidade cristã local e de suas leis, e no cultivo dos direitos e deveres dos cidadãos. Visões iniciais de Calvino João Calvino desenvolveu alguns dos seus ensinos legais já nas Institutas de 1536. Nessa obra-prima inicial, Calvino ecoou o pedido protestante pela liberdade cristã já tornada famosa por Martinho Lutero e outros reformadores uma geração antes – liberdade da consciência individual das leis canônicas católicas e controles clericais, liberdade dos funcionários políticos do poder e privilégio eclesiástico, liberdade dos membros do clero local da regra papal central, liberdade das jovens igrejas protestantes da opressão pela igreja e pelo Estado em violação dos direitos e liberdades das pessoas. Calvino pedia por uma separação básica entre igreja e Estado. A igreja detém o poder espiritual da Palavra. Os ministros devem pregar a Palavra e ministrar os sacramentos. Os doutores devem catequizar os jovens e instruir os paroquianos. Os presbíteros devem manter a disciplina e a ordem e julgar disputas. Os diáconos devem controlar as finanças da igreja e coordenar seu cuidado para com os pobres e necessitados. No seu Ecclesiastical ordinances [Ordenanças eclesiásticas] de 1541, Calvino elaborou que cada um desses funcionários da igreja está sujeito à limitação do seu próprio cargo e à supervisão dos demais funcionários. O Estado detém o poder legal da espada. Os funcionários do Estado são “vice-regentes”, “vigários” e “ministros” de Deus nesta vida terrena. Eles são investidos com a autoridade e majestade de Deus e “chamados” para a função “mais sagrada e, de longe, a mais honrada de todos os chamados de toda a vida dos homens mortais”. Eles são comandados a adotar e exemplificar clemência, integridade, honestidade, compaixão, humanidade e outras virtudes piedosas. Os governantes políticos precisam reger em conformidade com leis positivas escritas, não por decreto pessoal. Suas leis precisam abranger os princípios bíblicos de amor a Deus e ao próximo, mas eles não devem adotar as leis bíblicas per si – particularmente, não as leis judaicas cerimoniais e jurídicas do Antigo Testamento. Em vez disso, “apenas a equidade precisa ser o objetivo, a regra e o limite de todas as leis”. Por meio de tais leis imparciais escritas, os governantes políticos precisam promover a paz e a ordem no reino terreno, punir o crime e o delito civil, e proteger a vida e as propriedades das pessoas, “para assegurar que os homens possam manter entre si relacionamentos inculpáveis”, no espírito de “justiça civil”.4 Esses deveres e limites dados por Deus definem não apenas o cargo político, mas também a liberdade política dos crentes cristãos. A liberdade política e a autoridade política “são constituídas em conjunto”, disse Calvino. A liberdade política dos cristãos não é tanto um direito subjetivo quanto uma função do cargo político. Quando os funcionários políticos respeitam os deveres e limites dos seus cargos, os cristãos desfrutam de ampla liberdade política para dar “manifestação pública de sua fé”. No entanto, quando os funcionários políticos traem a sua função, por negligência, injustiça, excesso ou tirania absoluta, a liberdade política do crente é abreviada ou até mesmo destruída. Como conse quência, disse Calvino, “aqueles que desejam que cada pessoa preserve os seus direitos e que todos os homens possam viver livres de prejuízos precisam defender a ordem política até o máximo da sua capacidade”.5 Calvino insistia que as pessoas têm um dever piedoso de obedecer aos funcionários políticos tirânicos até os limites da consciência cristã. “Os poderes existentes são ordenados por Deus”, e a Bíblia ordena repetidamente a nossa obediência a eles (Rm 13.1-7; Tt 3.1; 1Pe 2.13-14). Calvino insistia que essas obrigações de obediência permanecem até mesmo quando as autoridades tornam-se abusivas e arbitrárias. Isso é particularmente verdadeiro para a esfera política,o que proporciona ordem e estabilidade para a prosperidade de pessoas, bem como para famílias, igrejas, empresas e outras estruturas sociais. Alguma ordem política é melhor do que nenhuma, e desobediência privada geralmente acarreta desordem maior. Alguma justiça e equidade prevalecem até mesmo nas piores tiranias, e até mesmo isso é ameaçado quando pessoas tomam a lei nas suas próprias mãos. Às vezes, tiranias são provas de Deus à nossa fé ou punição pelos nossos pecados, e nós insultamos Deus ainda mais se resistirmos aos seus instrumentos. Portanto, as pessoas devem obedecer e suportar com paciência e oração, e deixar para Deus a vingança e a retribuição. Porém, a honra a autoridades terrenas não pode ser desonra a Deus, continuou Calvino. Quando autoridades terrenas ordenam a seus súditos que desobedeçam a Deus, que desconsiderem a Escritura ou que transgridam a consciência, seus cidadãos e súditos políticos não apenas podem desobedecer, como devem desobedecer. Calvino escreveu que a nossa “obediência nunca deve nos afastar da obediência a ele [Deus], a cuja vontade os desejos de todos os reis devem estar sujeitos, a cujos decretos os seus comandos devem submeter-se”. Calvino escreveu, “Se eles ordenarem algo contra ele [Deus], desconsidere”. Isso porque amar e honrar a Deus é o primeiro e mais importante mandamento. Todas as autoridades que traem a sua função para detrimento ou difamação de Deus perdem o cargo e são reduzidas a pessoas comuns. Elas já não são mais autoridades, mas meros “bandidos” e “criminosos”. “Ditaduras e autoridades injustas não são governos ordenados por Deus” e “Aqueles que praticam a tirania blasfema” já não são “ministros de Deus” da lei.6 Para Calvino, a questão que permanecia era a maneira como essas autoridades abusivas ou tirânicas devem ser desobedecidas. Calvino recomendou uma solução “moderada e justa”. Ele sabia o suficiente sobre a revolta e os tumultos desencadeados pelos radicais anabatistas da sua época, e havia lido o suficiente na história clássica sobre os perigos de simplesmente liberar a multidão contra os tiranos. Assim, procurou uma reação mais estruturada e construtiva, tanto pelas autoridades do Estado quanto da igreja, mesmo conclamando as pessoas a desobedecer discretamente às leis que violavam a consciência e os mandamentos cristãos. Nenhum regime político é governado por “uma só pessoa”, argumentou Calvino. Até mesmo os monarcas têm todo um círculo de funcionários menores – conselheiros, juízes e chanceleres – encarregados da implementação da lei. Além disso, muitas comunidades têm “magistrados do povo, nomeados para conter a obstinação dos reis”, tais como os éforos da antiga Grécia ou os parlamentares eleitos dos nossos dias. Esses magistrados inferiores, funcionários especialmente eleitos, têm o dever de proteger as pessoas por meio de resistência ativa, e até mesmo revolta, se os magistrados mais elevados se tornam abusivos ou tirânicos na violação da autoridade e da lei de Deus.7 Os líderes da igreja, por sua vez, precisam pregar e profetizar em voz alta contra a injustiça da tirania e pedir que os magistrados tirânicos se arrependam do seu abuso, que retornem às suas funções políticas e restaurem a liberdade política dos cristãos religiosos. Calvino iniciou a edição de 1536 das Institutas com uma petição semelhante a essa ao rei Francisco I, em nome dos protestantes perseguidos da França. Na sua epístola dedicatória a Francisco, Calvino afirmou que, como cristão, era obrigado a “defender a Igreja contra fúrias [políticas]” e a “abraçar a causa comum de todos os cristãos”. Mais adiante, Calvino disse que, contra a “tirania arrogante”, um cristão precisa “aventurar-se corajosamente a gemer por liberdade”.8 Visões posteriores de Calvino Nos seus escritos maduros, Calvino elaborou um entendimento legal e político muito mais completo, com base numa teoria ampliada dos usos da lei moral nesta vida terrena e do papel da igreja em ajudar a compreender esses usos da lei. Calvino descreveu a lei moral como um conjunto de mandamentos morais, gravado na consciência, repetido nas Escrituras e resumido no Decálogo. Ele utilizou uma terminologia amplamente variada para descrever essa lei: “a voz da natureza”, a “lei gravada”, “a lei da natureza”, “a lei natural”, a “mente interior”, a “regra de equidade”, o “senso natural”, “o senso do juízo divino”, “o testemunho do coração” e a “voz interior”, dentre outros termos. Calvino disse que Deus faz três usos da lei moral para governar a humanidade. Primeiro, Deus usa a lei moral teologicamente – para condenar todas as pessoas na própria consciência delas e obrigá-las a buscar a graça libertadora de Deus. Ao estabelecer um modelo e espelho de perfeita justiça, a lei moral “adverte, informa, declara culpado e, por último, condena cada homem quanto à sua própria injustiça”. Assim, a lei moral perfura a sua vaidade, diminui o seu orgulho e o leva ao desespero. Calvino acreditava que esse desespero é uma precondição necessária para o pecador buscar a ajuda de Deus e ter fé na graça de Deus. Segundo, Deus usa a lei moral civilmente – para conter a pecaminosidade dos não cristãos. Calvino escreveu: “[A] lei é como um cabresto, para conter os furiosos e de outro modo ilimitados desejos da carne. […] Dificultados por medo ou vergonha, os pecadores não se atrevem a executar o que conceberam na própria mente, nem a ventilar abertamente o furor da sua luxúria”. A lei moral lhes impõe uma “justiça constrangida e forçada” ou uma “justiça civil”. Terceiro, Deus usa a lei moral educacionalmente – para ensinar aos cristãos, aqueles que aceitaram a sua graça, os meios e as medidas de santificação, de desenvolvimento espiritual. Até mesmo os santos mais devotos, embora livres da condenação da lei moral, ainda precisam seguir os mandamentos “para aprender mais minuciosamente […] a vontade do Senhor [e] ser despertados para a obediência”. A lei lhes ensina não apenas a “justiça civil” comum a todas as pessoas, mas também a “justiça espiritual” que é apropriada aos cristãos santificados. Como mestre, a lei não só os reprime contra violência e violação, mas também cultiva neles a caridade e o amor. Ela não apenas pune atos nocivos de assassinato, roubo e fornicação, mas também proíbe maus pensamentos de ódio, cobiça e luxúria.9 Assim, a lei moral cria duas vertentes de normas: “normas civis”, que são comuns a todas as pessoas, e “normas espirituais”, que são distintamente cristãs. Esses dois conjuntos de normas, por sua vez, dão origem a duas vertentes de moralidade: uma “moralidade do dever” simples, exigida de todas as pessoas, independentemente da sua fé, e uma “moralidade da aspiração” mais elevada, exigida dos cristãos na reflexão de sua fé.10 Esse sistema de duas vertentes da moralidade correspondia, aproximadamente, à divisão correta de responsabilidades entre a igreja e o Estado, como Calvino a via nos seus últimos anos. Era responsabilidade da igreja ensinar normas espirituais aspiracionais. O Estado tinha a responsabilidade de impor normas civis obrigatórias. Essa divisão de responsabilidade foi refletida nas divisões processuais entre o consistório e o conselho municipal da Genebra de Calvino. Na maioria dos casos que não envolviam crimes graves, o consistório chamaria primeiramente as partes aos seus deveres espirituais mais elevados, apoiando as suas recomendações com (ameaças de) disciplina espiritual. Se esse conselho espiritual não obtivesse o resultado desejado, as partes seriam encaminhadas ao conselho municipal para obrigá-las, usando sanções civis e criminais, a honrar, no mínimo, os seus deveres civis básicos. Calvino baseou essa divisão do trabalho legal no pressuposto de que a igreja era uma entidade legal distinta, com suas próprias responsabilidades legais na comunidade cristã local. Essa foi uma nova ênfase nos seus escritos posteriores. Deus dotou esse governo eclesiástico de três formas de poder (potestas), argumentou Calvino nas Institutas de 1559. A igreja detém o “poder doutrinário”para definir suas próprias confissões, credos, catecismos e outras essências da fé cristã que são revestidas de autoridade, e expô-las livremente no púlpito e na tribuna. A igreja detém “poder legislativo” para promulgar para si mesma “uma constituição bem ordenada” que garanta “ordem e organização adequada”, “proteção e segurança” na administração da igreja dos seus assuntos e decência adequada, e “dignidade apropriada” em culto, liturgia e ritual. Além disso, a igreja detém “poder jurisdicional” para fazer cumprir leis eclesiásticas positivas destinadas a manter a disciplina e evitar escândalos entre os seus membros.11 Calvino insistiu que o poder jurisdicional da igreja permanece “totalmente espiritual” em caráter. Suas regras disciplinares precisam ser “fundamentadas na autoridade de Deus, provenientes da Escritura e, portanto, totalmente divinas”. Suas sanções precisam ser limitadas a advertência, instrução e, em casos graves, expulsão e excomunhão – com as penalidades civis e criminais devendo ser consideradas e aplicadas pelo juiz. Sua administração precisa sempre ser “moderada e leve”, e entregue “não à decisão de um homem”, mas a um consistório, com procedimentos corretos e o apropriado respeito à regra da lei.12 Porém, o consistório tinha uma vasta jurisdição sobre questões referentes a casos de sexo, casamento e vida familiar, caridade e assistência aos pobres, educação e cuidados infantis, e “moralidade pública”, que incluía “idolatria e outros tipos de superstição, desrespeito para com Deus, heresia, rebeldia contra pai e mãe ou magistrado, sedição, motim, agressão, adultério, fornicação, furto, avareza, sequestro, estupro, fraude, perjúrio, falso testemunho, frequentar tabernas, jogos de aposta, deleites desregrados e outros vícios escandalosos”.13 A teoria eclesiástica madura de Calvino combinava engenhosamente os princípios de estado de direito, democracia e liberdade. Primeiramente, Calvino recomendava respeito pelo estado de direito dentro da igreja. Ele concebeu leis que definiam as doutrinas e as normas disciplinares da igreja, os direitos e deveres dos funcionários e dos paroquianos, e procedimentos para legislação e adjudicação. Assim, a igreja ficava protegida contra as intrusões da lei do Estado e das vicissitudes pecaminosas de membros. Os funcionários da igreja eram limitados quanto ao seu próprio arbítrio. Os paroquianos compreendiam os seus deveres espirituais. Quando novas regras eram emitidas, elas eram discutidas, promulgadas e bem conhecidas. Questões que estavam maduras para avaliação eram resolvidas por tribunais apropriados. Partes que tinham casos a serem ouvidos esgotavam suas soluções na lei da igreja. Com certeza, esse princípio do estado de direito dentro da igreja foi um ideal frequentemente violado, tanto nos dias de Calvino quanto nas gerações seguintes. Contudo, esse princípio ajudou a garantir ordem, organização e ortodoxia no âmbito da igreja reformada. Em segundo lugar, Calvino recomendava respeito pelo processo democrático dentro da igreja. Nas igrejas calvinistas posteriores, pastores, presbíteros, mestres e diáconos eram, em última análise, eleitos pelos membros comungantes da congregação. As congregações realizavam periodicamente reuniões para avaliar o desempenho dos seus funcionários eclesiásticos, discutir novas iniciativas dentro dos seus corpos e debater controvérsias que tivessem surgido. Os delegados para sínodos e concílios da igreja eram eleitos pelos seus pares. As reuniões do conselho eram abertas ao público e permitiam aos paroquianos apresentarem suas reivindicações. Implícita nesse processo democrático estava uma disposição para acolher mudanças na doutrina, na liturgia e no governo; para acomodar novas visões e percepções; e para rejeitar ideias e instituições cuja utilidade e veracidade já não eram mais sustentáveis. Com certeza, esse princípio nem sempre isolou a igreja de um dogmatismo beligerante na época de Calvino ou nas gerações seguintes. Contudo, ele ajudou a garantir constante reflexão, renovação e reforma dentro da igreja. Em terceiro lugar, Calvino recomendava respeito pela liberdade dentro da igreja. Os crentes cristãos deveriam ser livres para entrar e sair da membresia; participar dos cargos e serviços da igreja sem medo de coerção física e perseguição; reunir-se, adorar, orar e participar dos sacramentos sem medo de represália política; eleger os seus dirigentes religiosos; debater e deliberar assuntos de fé e disciplina; ocupar-se de questões discricionárias de fé, a adiaphora, sem leis e estruturas indevidas. Também esse princípio foi um ideal que Calvino e seus seguidores comprometeram, particularmente ao apoiar a execução de Miguel Serveto por heresia e blasfêmia. Contudo, esse princípio ajudou a garantir constante ação, adesão e agitação para a reforma por parte de membros individuais. Calvino foi o mentor dessa integração desses três princípios fundamentais numa nova eclesiologia. Processos democráticos impediam que o princípio de estado de direito promovesse uma ortodoxia ossificada e antiquada. O estado de direito impedia o princípio democrático de promover uma fé influenciada por modas passageiras e opiniões públicas. A liberdade individual impedia tanto o governo corporativo quanto os princípios democráticos de tiranizarem minorias eclesiásticas. Juntos, esses princípios permitiam que a igreja encontrasse um equilíbrio perpétuo único entre lei e liberdade, estrutura e espírito, ordem e inovação, dogma e adiaphora. Esse delicado mecanismo eclesiástico ajudou a tornar as igrejas calvinistas notavelmente adaptáveis e resilientes ao longo dos séculos em muitos países e culturas. Essa teoria integrada da igreja tinha implicações para a teoria do Estado. Nos seus escritos, Calvino deu a entender amplamente que uma combinação semelhante de estado de direito, processo democrático e liberdade individual poderia servir igualmente bem ao Estado. Ele acreditava que essa combinação forneceria a melhor proteção para a liberdade da igreja e dos seus membros. O que Calvino esboçou, seus seguidores elaboraram. No decorrer dos dois séculos seguintes, calvinistas europeus e norte-americanos teceram as visões básicas de Calvino para formar uma robusta teoria constitucional de governo republicano apoiada nos pilares do estado de direito, nos processos democráticos e na liberdade individual. Teodoro de Beza e o calvinismo francês Pouco depois da morte de Calvino, em 1564, seus ensinos sobre lei e liberdade e igreja e Estado enfrentaram sua primeira grande crise. No Massacre do Dia de São Bartolomeu de 1572, mais de cem mil calvinistas franceses foram assassinados num mês de barbárie instigada pelas autoridades católicas francesas. Apenas uma década antes, o calvinismo parecia estar pronto para concorrer com o catolicismo pelo coração e a alma da França. Por volta de 1562, algo em torno de dois milhões de almas franceses haviam se convertido ao calvinismo e se reunido em mais de duas mil novas igrejas em toda a França. O número de convertidos e igrejas calvinistas estava crescendo rapidamente em todas as classes da sociedade francesa, mas especialmente entre a aristocracia. Em grande parte, esse crescimento foi resultado das campanhas disciplinadas de obra missionária, publicação de livros, implantação de igrejas, construção de escolas e obras de caridade oferecidas pelos calvinistas. Em parte, ele foi também resultado da fácil exportação do robusto sistema de Genebra de governo da cidade- estado local e da disciplina espiritual idealmente adequada a muitas das pequenas cidades e vilas francesas que se converteram ao calvinismo. Depois de 1560, o calvinismo francês alastrou-se em decorrência da crescente capacidade militar dos calvinistas franceses. Nesse ano, a despeito de fortes protestos vindos de Genebra, um grupo de calvinistas tentou um golpe de estado contra o jovem rei francês Henrique II. Isso resultou em duras represálias em diversas comunidades calvinistas e o estabelecimento de um tribunal inquisitorialfrancês tendo como alvo os calvinistas. Em 1562, forças católicas francesas massacraram uma congregação calvinista reunida para adorar na cidade de Vassy. Isso desencadeou uma década de enormes disputas entre forças católicas e calvinistas em muitas partes da França. O Massacre do Dia de São Bartolomeu, que explodiu depois de um período de calmaria nas hostilidades, colocou o calvinismo francês em grave crise. Os ensinos de Calvino forneciam pouca orientação para reagir a uma crise dessa magnitude. Calvino presumiu que todas as comunidades locais teriam a mesma fé. Como os calvinistas poderiam aceitar o pluralismo religioso e exigir tolerância como uma minoria religiosa numa comunidade de maioria católica? Calvino presumiu que a igreja e o Estado cooperariam na gestão de um governo piedoso. E se a igreja e o Estado entrassem em choque ou, pior ainda, em conluio contra os calvinistas? Calvino presumiu que os súditos cristãos deveriam obedecer às autoridades políticas até os limites da consciência cristã, e suportar perseguição com penitência, paciência e oração na esperança de que um magistrado melhor viesse. Mas, e se a perseguição crescesse e se tornasse um total massacre? Oração, fuga e martírio eram as únicas opções para os cristãos conscienciosos? Não havia lugar para resistência e revolta, ou mesmo regicídio e revolução em casos extremos? Esses desafios haviam se apresentado aos calvinistas em diversos lugares ao longo das décadas de 1540 e 1560, os quais tornaram-se fortes questões de vida e morte para os calvinistas franceses depois de 1572. Foi o sucessor de Calvino escolhido a dedo em Genebra, Teodoro de Beza, quem reagiu de modo mais decisivo a essa crise – trabalhando lado a lado com sumidades calvinistas como John Ponet, John Knox e Christopher Goodman, da Inglaterra e da Escócia; os franceses Lambert Daneau, François Hotman, Philippe DuPlessis Mornay e Pedro Mártir Vermigli; bem como os reformadores suíços Heinrich Bullinger e Pierre Viret. Devido à originalidade de suas ideias e da sua autoridade como sucessor de Calvino, as formulações de Beza mostraram-se as mais influentes. Sua obra mais importante foi o pequeno tratado The rights of rulers over their subjects and the duty of subjects toward their rulers [Os direitos dos governantes sobre os seus súditos e os deveres dos súditos para com os seus governantes], de 1574.14 Beza argumentou que todo governo político é formado por uma aliança ou contrato jurado entre os governantes e seus súditos diante de Deus, que serve como testemunha e juiz. Nessa aliança, Deus concorda em proteger e abençoar a comunidade em troca de obediência às leis de Deus e da natureza, particularmente da maneira definida no Decálogo. Os governantes concordam em exercer a autoridade política de Deus na comunidade, e honrar essas leis superiores e proteger os direitos das pessoas. As pessoas concordam em exercer a vontade política de Deus para a comunidade elegendo e peticionando aos seus governantes, e honrando-os e obedecendo-os desde que eles permaneçam fiéis à aliança política. Beza argumentou que, se as pessoas violam os termos dessa aliança política e se tornam criminosas, Deus capacita os governantes a processá-las e puni-las e, em casos extremos, sentenciá-las à morte. Porém, se os governantes violam os termos da aliança política e se tornam tiranos, Deus capacita as pessoas a resistir e removê-los do cargo e, em casos extremos, sentenciá-los à morte. Todavia, o poder de remover tiranos não reside diretamente nas pessoas, mas nos seus representantes, os magistrados inferiores, que são constitucionalmente chamados a organizar e dirigir o povo em resistência ordeira – em total guerra e revolução, se necessário. Para Beza, os tiranos eram governantes que violavam os termos da aliança política, particularmente a sua exigência fundamental de que todos têm o dever de honrar os direitos de Deus de ser adorado, e os direitos do povo de Deus de cumprir os deveres da fé em conformidade com a lei de Deus. Beza fez dos direitos do povo o fundamento e a condição do bom governo. “As pessoas não são feitas para os governantes, mas os governantes para as pessoas”, ele escreveu. Se o magistrado governa corretamente, as pessoas têm o dever de obedecer a ele. Porém, se o magistrado abusa da sua autoridade, violando a aliança política, as pessoas, por intermédio dos seus representantes, têm o direito e o dever de resistir a ele como tirano. O problema que permaneceu para Beza foi o de como fundamentar a sua doutrina dos direitos e determinar quais direitos eram tão fundamentais que, se violados por um tirano, desencadeariam o direito de resistência organizada. Aqui, Beza reformulou inteligentemente os principais argumentos de Calvino, tomando emprestadas suas sugestões das declarações do fim da vida do próprio Calvino sobre os “direitos naturais” ou “direitos comuns da humanidade”, e os “direitos e liberdades iguais” de todas as pessoas.15 Os primeiros e mais importantes direitos, argumentou Beza, tinham de ser direitos religiosos –“liberdade de consciência” e “livre exercício da religião”. Afinal de contas, em primeiro lugar, as pessoas são súditas de Deus e chamadas a honrar e adorar a Deus acima de tudo. Se o magistrado viola esses direitos religiosos, nada mais pode ser sagrado e seguro. Beza continuou sua catequese: O que é essencial para a proteção da liberdade de consciência e o livre exercício da religião é a capacidade de viver em total conformidade com a lei de Deus. O que é a lei de Deus? Em primeiro lugar e acima de tudo, é o Decálogo, que estabelece os deveres fundamentais da vida cristã correta. O que esses Dez Mandamentos envolvem? Os direitos de adorar a Deus, guardar o sábado, evitar ídolos estrangeiros e juramentos falsos, segundo a primeira tábua do Decálogo; e os direitos de casar-se, ter filhos e família, e de vida, propriedade e reputação, protegidos pela segunda tábua. O Decálogo é a única lei de Deus? Não, a lei natural que Deus inscreveu no coração de todas as pessoas ensina outros direitos essenciais para a proteção de uma pessoa e de um povo. Beza tocou em vários desses direitos naturais mais amplos: liberdade de missão e formação religiosas; liberdade de governo da igreja e emigração; liberdades de expressão, reunião e petição; e liberdade de casamento, divórcio e contrato privado. Beza não fez muito para fundamentar e sistematizar esses direitos naturais, nem deixou claro qual deles era tão fundamental que a sua violação poderia desencadear resistência organizada. Porém, estabeleceu grande parte da lógica de um cálculo dos direitos fundamentais que calvinistas posteriores aperfeiçoariam e expandiriam. Johannes Althusius e o calvinismo holandês Esses tipos de argumentos tiveram aplicação imediata na revolta dos calvinistas holandeses contra a tirania do seu soberano distante, o imperador espanhol Filipe II. Na década de 1560, Filipe impôs à Holanda uma série de restrições cada vez mais onerosas – pesados impostos, regulamentos comerciais, recrutamento militar, aquartelamento forçado de soldados, e outras mais – em violação de cartas centenárias dos direitos e liberdades das províncias holandesas. Pior ainda, Filipe instaurou a terrível Inquisição espanhola na Holanda, assassinando milhares de calvinistas e outros, confiscando enormes quantidades de propriedades privadas num esforço determinado para erradicar o protestantismo e impor os vastos novos decretos do Concílio Católico de Trento. No fim da década de 1560 e na de 1570, sob a liderança inspirada de Guilherme de Orange e outros, os holandeses puseram em ação os princípios calvinistas de resistência e revolução. Incitados por pregação estrondosa e milhares de panfletos, calvinistas e outros holandeses finalmente eliminaram seus opressores espanhóis. Eles promulgaram uma declaração de independência, justificando sua revolta contra a Espanha pelo poder de “verdades claras” sobre “as leis e liberdades da natureza”. Estabeleceram um governo confederado com sete províncias soberanase um governo nacional, cada qual com sua própria constituição e declaração de direitos. Algumas dessas constituições provinciais adotaram as proteções de direitos mais avançadas da época, tornando a Holanda um refúgio para muitos – embora não todos – dissidentes culturais e religiosos de toda a Europa.16 A revolta holandesa e a fundação da República Holandesa atraíram vários poderosos juristas calvinistas e teóricos políticos, incluindo C. P. Hooft; Peter Bertius; Paul Buis; Daniel Berckringer; Gisbertus, Paulus e Johannes Voetius; William Apollonius; Jacob Triglandus; Antonius Walaeus; Martinus Schookius; R. H. Schele; Antonius Matthaeus I, II e III; e Ulrich Huber. A obra mais original veio da prolífica pena do jurista calvinista Johannes Althusius, nascido na Alemanha, que serviu como conselheiro municipal e membro do consistório na cidade de Emden no início do século 17. Com base numa vasta gama de fontes bíblicas, clássicas, católicas e protestantes, Althusius sistematizou e expandiu enormemente muitos dos ensinamentos políticos e legais fundamentais de Calvino, Beza e outros correligionários. Ele sustentou que a República é formada por uma aliança entre as autoridades e o povo diante de Deus; que a base dessa aliança é a lei de Deus e da natureza; que o Decálogo é a melhor expressão dessa lei superior; que igreja e Estado são separados na forma, mas unidos na função; que tanto as famílias quanto as igrejas e os estados precisam proteger os direitos e as liberdades das pessoas; e que violações desses direitos e liberdades, ou das leis divinas e naturais que as informam e capacitam, são exemplos de tirania que precisam motivar uma resistência constitucional organizada. Althusius acrescentou várias ideias fundamentais a essa herança calvinista em suas duas obras-primas: Politics [Política] (1603-1614) e A theory of justice [Uma teoria da justiça] (1617-1618).17Althusius desenvolveu uma teoria da lei natural que ainda tratava o Decálogo como a melhor fonte e resumo da lei natural, mas intercalava seus mandamentos com todo tipo de novos ensinamentos bíblicos, clássicos e cristãos. Ele desenvolveu uma teoria do direito positivo que julgava a validade e utilidade contemporâneas de qualquer lei humana, incluindo as leis positivas de Moisés e as leis canônicas da igreja, contra a lei natural da Escritura e tradição e contra a lei fundamental do Estado. Ele pediu que uma constituição escrita detalhada fosse a lei fundamental da comunidade; e também pela proteção perene da norma jurídica e do estado de direito no seio da igreja e do Estado. Desenvolveu uma teoria abrangente da soberania popular como expressão da soberania divina que cada pessoa reflete como imagem de Deus. Desenvolveu uma teoria detalhada e refinada de direitos naturais – direitos religiosos e sociais, públicos e privados, materiais e processuais, contratuais e de propriedade. Demonstrou extensamente como cada um desses direitos se baseava no Decálogo e em outras formas de direito natural, e como cada um deles deveria ser protegido por leis e procedimentos públicos, privados e criminais promulgados pelo Estado. Particularmente notável foi o seu apelo à tolerância religiosa e liberdade absoluta de consciência para todos como corolário e consequência natural do ensino calvinista sobre a soberania absoluta de Deus, cujo relacionamento com as suas criaturas não poderia ser transgredido. Ainda mais impressionantes foram duas teorias de Althusius: a “teoria simbiótica” da natureza humana; e a “teoria da aliança” da sociedade e da política. Embora reconhecendo o ensino calvinista tradicional da depravação total das pessoas, Althusius enfatizou que Deus criou todas as pessoas como seres morais, amorosos, comunicativos e sociais, cujas vidas são mais plenamente realizadas por meio de relações simbióticas com outras, nas quais elas podem compartilhar adequadamente corpo e alma, vida e espírito, pertences e direitos. Assim, embora nasçam livres, iguais e individuais, as pessoas são, por natureza e necessidade, inclinadas a formar associações – casamentos e famílias, clubes e corporações, cidades e províncias, estados-nação e impérios. Cada uma dessas associações, desde o mais ínfimo lar até o mais vasto império, é formada por uma aliança ou contrato mutuamente consensual jurado por todos os membros dessa associação diante uns dos outros e de Deus. Cada associação é um lugar de autoridade e liberdade que liga tanto governantes quanto súditos aos termos do seu contrato de fundação e aos mandamentos das leis fundamentais de Deus e da natureza. Cada associação confirma e protege a soberania e a identidade dos seus membros constituintes, bem como os seus direitos e liberdades naturais. Althusius aplicou essa teoria do contrato social cristão mais plenamente na sua descrição do Estado. Usando a história política do antigo Israel como seu melhor exemplo, ele mostrou histórica e filosoficamente como estados- nação desenvolvem-se gradualmente a partir de famílias, que se transformam em tribos, estas em cidades, estas em províncias, estas em nações, e estas em impérios. Cada nova camada de soberania política é formada por alianças juradas diante de Deus por representantes das unidades menores, e essas alianças acabam tornando-se as constituições escritas do governo. As constituições definem e separam os cargos executivos, legislativos e judiciais desse governo e governam as relações entre os seus governantes e súditos, clérigos e magistrados, associações e indivíduos. Elas determinam as relações entre e dentre nações, províncias, cidades e associações privadas e públicas – as quais Althusius chamou de uma forma de federalismo (de foedus, aliança em latim). As constituições também deixam claros os atos e omissões políticos que constituem a tirania, bem como os procedimentos e as soluções disponíveis para quem sofre abusos. Althusius produziu a mais abrangente teoria calvinista de direito e política no início do período moderno; muitas das suas visões anteciparam ensinamentos que se tornariam axiomáticos para o constitucionalismo ocidental. John Milton e o calvinismo inglês Essas ideias encontraram aplicação imediata uma geração depois, na Inglaterra, e tornaram-se parte do que John Milton chamou “uma nova reforma da Reforma” de leis, autoridade e liberdade. O catalisador para essa nova reforma inglesa foi, mais uma vez, a tirania – dessa vez, da monarquia inglesa contra o povo da Inglaterra, incluindo a crescente população de ingleses calvinistas descendentes dos primeiros puritanos que haviam se estabelecido na Inglaterra um século antes. Em 1640, esses calvinistas juntaram-se a muitos outros em rebelião armada contra os excessos da coroa inglesa – os opressivos impostos e taxas reais, as rigorosas novas leis dos influentes anglicanos, os abusos das cortes real e eclesiástica, e muito mais. Quando o Parlamento foi chamado a reunir-se em 1640, depois de um hiato de onze anos, seus líderes tomaram o poder pela força das armas. Uma guerra civil eclodiu entre os apoiadores do Parlamento e os apoiadores do rei. O partido parlamentar, dominado por calvinistas, finalmente prevaleceu e promulgou, em 1649, uma lei “declarando e constituindo o povo da Inglaterra como uma Comunidade e um Estado livre”. O Parlamento aboliu a monarquia e, notavelmente, o rei Charles foi julgado por um tribunal especial, condenado por traição e decapitado em público. O Parlamento também aboliu a aristocrática Casa dos Lordes e declarou que a autoridade suprema residia no povo e seus representantes. O anglicanismo foi formalmente extinto e as estruturas episcopais foram substituídas por formas de igrejas calvinistas. “Representação igual e proporcional” foi garantida na eleição de representantes locais para o Parlamento. Desse modo, a Inglaterra estaria sob “o regime democrático” do Parlamento e do líder militar calvinista, Oliver Cromwell. No entanto, depois da morte de Cromwell em 1658, o governo da comunidade desmoronou. O rei Charles II, filho de Charles I, voltouà Inglaterra, recuperou o trono em 1660 e restaurou o tradicional governo monárquico, o estatuto anglicano e a lei vigente antes da revolução. Contudo, essa era de Restauração teve curta duração. Quando seu sucessor, o rei Tiago II, o outro filho de Charles I, começou a abusar das suas prerrogativas reais como seu pai havia feito, o Parlamento o forçou a abdicar em 1688 a favor da nova dinastia de Guilherme e Maria. Essa foi a Revolução Gloriosa. Ela estabeleceu o governo pelo rei e pelo Parlamento, e introduziu um grande número de novas garantias para os súditos ingleses, notavelmente as estabelecidas na Declaração de Direitos e no Decreto de Tolerância, de 1689. A revolução inglesa desencadeou uma torrente de escritos e legislações pedindo a reforma das leis inglesas e o cumprimento dos direitos e liberdades dos ingleses. Parte do esforço foi estender os tradicionais direitos de vida, liberdade e propriedade contidos na Carta Magna (1215) a todas as igrejas e todos os cidadãos, não somente aos anglicanos e homens livres aristocráticos. Outro aspecto do esforço foi ampliar a Petição de Direito (1628), um documento parlamentar que havia estabelecido vários direitos públicos, privados e processuais para o povo e seus representantes no Parlamento. Porém, os esforços mais radicais e memoráveis da revolução inglesa foram as muitas petições e plataformas emitidas nas décadas de 1640 e 1650 pedindo o estabelecimento de um governo democrático dedicados à proteção de uma panóplia de direitos e liberdades. Estes incluíam a liberdade de religião, expressão, imprensa e reunião; o direito à objeção consciente a juramentos, dízimos e serviço militar; liberdade contra o aquartelamento forçado de soldados e marinheiros; liberdade de propriedade privada e de tomadas injustas; liberdade contra tributação e regulamentação excessivas; liberdade de contrato particular, herança, casamento e divórcio; direito de julgamento por júri civil e criminal; e todos os tipos de proteções processuais penais. Eles também incluíam proibição de legislação retroativa e de leis de confisco de bens, detenções sem mandado, e buscas e apreensões ilegais; direito de fiança, de julgamento justo e rápido, de enfrentar os próprios acusadores e de representação em juízo; privilégio contra autoincriminação, liberdade contra investigação e punição cruéis, e direito de recurso. Embora a maioria dessas propostas de direitos tenha sido anulada – parcialmente pelo Protetorado de Cromwell e inteiramente pelo governo de Restauração de 1660 –, elas forneceram um marco normativo para ser tornado real pela posterior lei comum. Já na Revolução Gloriosa de 1689, as liberdades de religião, expressão e reunião foram parcialmente realizadas, assim como várias proteções processuais penais. Muitas mais dessas propostas de direitos ganharam uma viva expressão e experimentação com os colonos ingleses da América do Norte. Dezenas de robustos calvinistas ingleses surgiram para liderar essa “reforma da Reforma”, incluindo-se Henry Ireton, John Lilburne, Richard Overton, John Owen, Henry Parker, Isaac Pennington, William Prynne, John Pym, Henry Robinson, Samuel Rutherford, John Saltmarsh, Henry Vane, William Walwyn, Gerrard Winstanley e muitos outros. Foi o grande poeta e filósofo político John Milton quem forneceu a teoria política de integração mais interessante. Embora algumas das ideias de Milton se desviassem para além das convenções calvinistas, a maioria das suas ideias políticas permaneceu dentro da tradição calvinista e, de fato, as estendeu.18 Usando Calvino e uma gama de calvinistas continentais, Milton argumentou que cada pessoa é criada à imagem de Deus com “uma ânsia perene” de amar a Deus, ao próximo e a si mesmo. Cada pessoa tem a lei de Deus escrita no coração, na mente e na consciência, e na Escritura, mais notavelmente no Decálogo. Cada pessoa é uma criatura caída e falível, com necessidade perpétua de graça e perdão divinos, que são dados livremente a todos os que pedem. Cada pessoa é uma criatura comunal, naturalmente inclinada a formar associações privadas, domésticas, eclesiásticas e políticas. Cada associação dessas é criada por uma aliança ou contrato consensual que define a sua forma e função, bem como os direitos e poderes dos seus membros, todos eles sujeitos aos limites da lei natural. Cada associação é encabeçada por uma autoridade que governa em favor do bem dos seus súditos e deverá ser combatida caso torne-se abusiva ou tirânica. Toda essa resistência precisa ser a mais moderada, ordeira e pacífica possível, mas poderá crescer até revolta e regicídio, caso isso seja necessário na esfera política. Na elaboração de sua própria reforma dos direitos, Milton apegou-se ao que ele pensava ser a lição mais importante dos reformadores calvinistas: que a Reforma precisa sempre avançar, semper reformanda. Milton insistiu em que a Inglaterra não deveria idolatrar ou idealizar qualquer ensinamento protestante, nem mesmo os de Calvino e os dos pais de Genebra. Em vez disso, a Inglaterra deveria desenvolver e aprofundar, aplicar e aperfeiçoar esses ensinamentos num esforço contínuo de reformar a igreja, o Estado e a sociedade novamente. Milton apegou-se adicionalmente ao que entendia como ensinamento fundamental do calvinismo: Deus chama cada pessoa a ser um profeta, sacerdote e rei, e investe cada pessoa com direitos e deveres naturais para falar, adorar e governar na igreja e no Estado, na família e na sociedade ao mesmo tempo. Para Milton, as forças motrizes da Reforma perpétua da Inglaterra não eram, portanto, somente clérigos ou magistrados, acadêmicos ou aristocratas. Os verdadeiros reformadores eram, igualmente, os plebeus e chefes de família, artesãos e agricultores de todo tipo pacífico. Toda pessoa foi criada por Deus com liberdade de consciência, razão e vontade. Toda pessoa foi chamada por Deus para desempenhar vocações cristãs privadas e responsabilidades sociais públicas para expressar amor a Deus, ao próximo e a si mesma. Essa foi uma forma de populismo cristão e soberania popular que a tradição calvinista não havia enfatizado tanto anteriormente. Milton foi ainda mais longe, ultrapassando ensinamentos calvinistas tradicionais na definição dos direitos e liberdades religiosos, domésticos e civis de que cada pessoa precisa desfrutar no cumprimento dessas funções de profeta, sacerdote e rei. Dentre as liberdades religiosas, ele defendeu: liberdade de consciência; liberdade de exercício religioso, adoração, associação e publicação; igualdade de múltiplas crenças bíblicas perante a lei; separação entre igreja e Estado; e a extinção de uma religião nacional. Dentre as liberdades domésticas, ele enfatizou urgentemente o direito de casamento e divórcio em conformidade com os ensinamentos explícitos unicamente da Escritura, bem como direitos inerentes de alimentar, disciplinar e educar os filhos, e de ter um lar próprio livre de buscas e apreensões indesejadas de documentos e bens. Dentre as liberdades civis, ele ofereceu uma brilhante defesa das liberdades de expressão e de imprensa, e defendeu fervorosamente os direitos de eleição democrática, representação, petição e oposição, bem como de contratos e associações privados e de julgamento por júri. Todos esses argumentos foram ecoados em centenas de panfletos, sermões e tratados eruditos calvinistas nos dois lados do Atlântico, e iriam tornar-se lugar-comum entre os reformadores constitucionais calvinistas dos séculos 18 e 19. Teologia da aliança e política na Nova Inglaterra colonial Uma das mais vívidas ampliações e aplicações dessas ideias legais e políticas inglesas em ação ocorreram na Massachusetts puritana e em outras colônias da Nova Inglaterra a partir de 1620. Os colonos puritanos receberam, em suas licenças de fundação, liberdade para experimentar localmente muitas das propostas e ideais mais radicais que os revolucionários calvinistas ingleses haviam proposto.19 Embora adaptando o governo congregacional e o governo consistorial de Genebra dentro da igreja, oscolonos adotaram propostas inglesas para um governo de estado democrático. Em seu Body of liberties [Corpo de liberdades] (1641), o jurista e teólogo calvinista Nathaniel Ward elaborou para a colônia de Massachusetts Bay uma declaração de direitos de 25 páginas, que capturava cada um dos direitos e liberdades propostos por Calvino, Beza, Althusius, Milton e os panfletários puritanos, e acrescentou muitos mais direitos e liberdades, particularmente na proteção de mulheres, crianças e animais. Body of liberties foi um texto-âncora para o constitucionalismo colonial da Nova Inglaterra e antecipou muitas das disposições referentes aos direitos das constituições estaduais posteriores. Embora fossem frequentemente violados e ignorados por líderes coloniais autocráticos e teocráticos, esses instrumentos jurídicos forneceram um substrato legal essencial dos direitos que se revelou duradouro. Vários puritanos da Nova Inglaterra, mais notavelmente John Winthrop, John Cotton, Thomas Hooker, Samuel Willard e três membros da família Mather – Richard, Increase e Cotton – destilaram visões calvinistas predominantes da pessoa numa teoria básica de autoridade e liberdade, sociedade e política. Por um lado, argumentaram eles, toda pessoa é criada à imagem de Deus e justificada pela fé em Deus. Cada pessoa é chamada a uma vocação distinta, porém igual em dignidade e santidade a todas as outras. Cada pessoa é um profeta, sacerdote e rei, e responsável para exortar, ministrar e governar na comunidade. Portanto, cada pessoa é igual diante de Deus e diante do seu próximo. Cada pessoa é investida com liberdade natural de viver, crer e amar, e servir a Deus e ao próximo. Cada pessoa tem direito à Escritura vernacular, à educação, ao trabalho em uma vocação. Por outro lado, cada pessoa é pecadora e propensa ao mal e ao egoísmo. Cada pessoa necessita da restrição da lei para impedi-la de fazer o mal e levá-la ao arrependimento. Cada pessoa necessita da associação de outros para exortá-la, ministrar a ela e governá-la com lei e com amor. Portanto, cada pessoa é, inerentemente, uma criatura comunal. Toda pessoa pertence a uma família, uma igreja e uma comunidade política. Os protestantes acreditam que essas instituições sociais de família, igreja e Estado são divinas na origem e humanas na organização. Elas são criadas por Deus e governadas por decretos divinos. Elas são iguais perante Deus e são chamadas a desempenhar funções divinas distintas na comunidade. A família é chamada a educar e nutrir crianças, a instruí-las e discipliná-las, a dar exemplo de amor e cooperação. A igreja é chamada a pregar a palavra, ministrar os sacramentos, educar os jovens, ajudar os necessitados. O Estado é chamado a proteger a ordem, punir o crime, promover a comunidade. Embora de origem divina, essas instituições são formadas por meio de alianças humanas. Essas alianças confirmam as funções divinas, os cargos criados, dessas instituições. Essas alianças também organizam esses cargos para que sejam protegidos contra os excessos pecaminosos de funcionários que os ocupem. Assim, família, igreja e Estado são organizados como instituições públicas, acessíveis e responsáveis umas pelas outras e pelos seus membros. A igreja deve ser organizada segundo um sistema de governo congregacional democrático, com separação de poderes eclesiásticos entre pastores, presbíteros e diáconos; eleição dos funcionários para prazos limitados nos cargos; e pronta participação da congregação na vida e liderança da igreja. Ecoando alguns dos seus correligionários europeus, os puritanos da Nova Inglaterra moldaram essas doutrinas teológicas em formas democráticas. Por um lado, eles moldaram as doutrinas da pessoa e da sociedade em formas sociais democráticas. Uma vez que todas as pessoas são iguais perante Deus, elas precisam permanecer iguais perante os agentes políticos de Deus no Estado. Uma vez que Deus dotou todas as pessoas com liberdades naturais de vida e de crença, o Estado tem a obrigação de lhes garantir as liberdades civis semelhantes. Uma vez que Deus chamou todas as pessoas a serem profetas, sacerdotes e reis, o Estado precisa proteger as suas liberdades de falar, pregar e governar na comunidade. Uma vez que Deus criou as pessoas como criaturas sociais, o Estado precisa promover e proteger uma pluralidade de instituições sociais, particularmente a igreja e a família. Por outro lado, os puritanos da Nova Inglaterra moldaram as doutrinas do pecado em formas políticas democráticas. O cargo político precisa ser protegido contra a pecaminosidade do funcionário político. Assim como o poder eclesiástico, o poder político precisa ser distribuído em ramos autocontrolados executivo, legislativo e judiciário. Os funcionários precisam ser eleitos para mandatos limitados. As leis precisam ser claramente codificadas; e a discrição, rigorosamente guardada. Se os funcionários abusarem do seu cargo, precisarão ser desobedecidos. Se persistirem em seu abuso, deverão ser removidos, mesmo que pela força revolucionária e pelo regicídio. Conclusões No seu Contrato social de 1762, Jean-Jacques Rousseau ofereceu essa caridosa avaliação do seu compatriota João Calvino: Aqueles que consideram Calvino apenas como um teólogo deixam de reconhecer a amplitude da sua genialidade. A edição de nossas sábias leis, na qual ele teve grande participação, lhe dá tanto crédito quanto as suas Institutas. […] Enquanto o amor ao país e à liberdade não estiver extinto entre nós, a memória desse grande homem será reverenciada.20 Uma avaliação semelhante pode ser feita sobre grande parte do início do calvinismo moderno. O calvinismo foi um movimento teológico e legal, uma reforma da igreja e do Estado. Começando com Calvino e Beza, versados nesses dois campos, teólogos e juristas juntos formaram a liderança das igrejas reformadas e fizeram amplo uso de púlpitos como também de editoras. Para todo novo catecismo calvinista do início da era moderna havia uma nova ordenança calvinista; para cada nova confissão de fé, uma nova elaborada lei de direitos. Os primeiros calvinistas modernos acreditavam na lei natural e positiva como um impedimento ao pecado, um incentivo à graça, um professor de virtude cristã. Eles também acreditavam no estado de direito, estruturando suas igrejas e estados de modo semelhante, para minimizar os excessos pecaminosos dos seus governantes e maximizar as liberdades dos seus súditos para que vivessem as suas vidas de maneira a obedecerem a Deus de maneira mais disposta e fácil em tudo. 1 Em parte este capítulo é retirado dos meus livros The reformation of rights: Law, religion, and human rights in early modern Calvinism (Cambridge: Cambridge University Press, 2007) e Sex, marriage, and family in John Calvin’s Geneva, 3 v. (Grand Rapids: Eerdmans, 2005-), com Robert M. Kingdon; esses volumes incluem fontes detalhadas que não são duplicadas aqui. 2 Veja os escritos sobre temas legais de Calvino em CO 10/1; Les sources du droit du canton de Genève, org. Emile Rivoire e Victor van Berchem, 4 v. (Aarau: H. R. Sauerländer, 1927-35); Registres de la compagnie des pasteurs de Genève au temps de Calvin, org. Jean-Francois Bergier e Robert M. Kingdon, 2 v. (Genebra: Droz, 1964); R. Consist. Ver discussão em Josef Bohatec, Calvin und das Recht (Graz: H. Boehlaus, 1934); Josef Bohatec, Calvins Lehre von Staat und Kirche mit besonderer Berücksichtigung des Organismusgedankens (Breslau: M. & H. Marcus, 1937; reimpr., Aalen, 1961); Walter Köhler, Zürcher Ehegericht und Genfer Konsistorium, 2 v. (Leipzig: M. Heinsius Nachfolger, 1932-42); Robert M. Kingdon, Adultery and divorce in Calvin’s Geneva (Cambridge, MA / Londres, 1995). 3 Christoph Strohm, Calvinismus und Recht: Weltanschaulich-konfessionelle Aspekte im Werke reformierter Juristen in der frühen Neuzeit (Tübingen: Mohr Siebeck, 2008). 4 Institutas (1536), 1.33, 6.33-49. 5 Ibid., 6.54; Comm. Rm 13.10. 6 Institutas (1536), 6.56; Comm. Romanos 13.1–7; Comm. Atos 5.29; 7.17. 7 Institutas (1536), 6.55. 8 Ibid., prefácio;carta a Melanchthon (28/jun/1545), CO, 12.98-100. 9 Institutas (1559), 2.7.6-12; 2.8.6, 51; 3.3.9; 3.6.1; 3.17.5-6; 3.19.3-6; Comm. Gálatas 3.19; 5.13; Serm. Deuteronômio 5.4-27; Comm. 1Pedro 1.14. 10 Essas expressões são de Lon L. Fuller, The morality of law, ed. rev. (New Haven: Yale University Press, 1969). 11 Institutas (1559), 4.1.5; 4.8.1; 4.10.27-38; 4.11.1. 12 Ibid., 4.10.5, 30; 4.11.1-6; 4.12.1-4, 8-11. 13 Les sources du droit du canton de Genève, v. 3, item nº 992. 14 Ver Thoodore de Beza, Du droit des magistrats, org. Robert M. Kingdon (Genebra: Droz, 1970), e materiais adicionais em Beza, Tractationum theologicarum, 3 v., 2ª ed. (Genebra, 1582). 15 Comm. Gênesis 4.13; ibid., Harm. Lei Números 3.5-10,18-22; Deuteronômio 5.19; ibid., Salmos 7.6-8; Lect. Jeremias 22.1-3; 22.13-14; Lect. Ezequiel 8.17; Comm. 1Coríntios 7.37. 16 E. H. Kossman e A. Mellink (orgs.), Texts concerning the revolt of the Netherlands (Londres, Nova York: Cambridge University Press, 1974). 17 Carl J. Friedrich (org.), Politica methodice digesta of Johannes Althusius (Althaus) (Cambridge, MA: Harvard University Press, 1932); Carl J. Friedrich (org.), Dicaeologicae libri tres, totum et universum Jus, quo utimur, methodice complectentes (Herborn, 1617; Frankfurt, 1618). 18 Ver Don M. Wolfe (org.), Complete prose works of John Milton, 7 v. (New Haven: Yale University Press, 1953-80), com outros escritos em William Haller, Tracts in the Puritan revolution, 1638-1647, 3 v. (Nova York: Columbia University Press, 1934); Don M. Wolfe (org.), Leveller manifestoes of the Puritan revolution (Nova York, Londres: T. Nelson and Sons, 1944); A. S. P. Woodhouse, Puritanism and liberty, being the army debates (1647–49), 2ª ed. (Chicago, 1951). 19 Ver documentos representativos em Edmund S. Morgan (org.), Puritan political ideas 1558– 1794 (reimpr., Indianapolis: Hackett Publishing, 2003). 20 Du contrat social (1762), 2, 7n., in Jean-Jacques Rousseau, The social contract and discourse on the origin of inequality, org. Lester G. Crocker (Nova York: Pocket Books, 1967), 44n. P 3 As artes e a tradição reformada William Edgar or que tantos presumem que os protestantes da tradição reformada são, na melhor das hipóteses, extremamente cautelosos quanto às artes? Hans Rookmaaker, ele mesmo um reformado, considera que os puritanos entregaram-se a um misticismo pietista que negava os prazeres das artes visuais por causa da prioridade que davam ao culto espiritual. Ele denomina isso uma “corrente secundária de misticismo”, que buscava a santidade de uma maneira subjetivista e legalista que se mantinha afastada do assim chamado mundanismo das belas artes.1 Com frequência, o protestantismo caíu nesse medo da cultura. As missões tinham tal prioridade que atividades como as artes pareciam, na melhor das hipóteses, uma distração. Com o nascimento das missões modernas, os avivamentos evangélicos produziram a visão popular de que gostar das artes era semelhante a polir o bronze no Titanic afundando. Como é afirmado que o evangelista Dwight L. Moody disse, “Eu olho para este mundo como um navio naufragado; Deus deu-me um bote salva-vidas e me disse: ‘Moody, salve tantos quantos você conseguir’”.2 Há mais do que isso nessa história? Sim, muito mais. Para contá-la corretamente, precisamos voltar ao filisteu mais frequentemente acusado, João Calvino. Contra Calvino As opiniões de que Calvino e o calvinismo degradam as artes são abundantes. Voltaire disse que Calvino foi responsável pelo fato de a cidade de Genebra ser severa, hostil aos prazeres do teatro e das artes.3 Ferdinand Brunetière, crítico literário na Terceira República da França, equiparou o calvinismo ao horror à arte. Podemos acrescentar Orentin Douen, que é implacável na sua crítica a Calvino, a quem ele considera o “ennemi de tout plaisir et de toute distraction, même des arts et de la musique”.4 Para o historiador católico-romano Louis Réau, a iconoclastia calvinista pertence, muito simplesmente, à “história do vandalismo”.5 Essas críticas têm certa plausibilidade. Numa carta a um jovem estudante, escrita em 1540, Calvino incentiva uma maior dedicação à religião. Ele faz a seguinte comparação: “Aqueles que procuram no conhecimento mais do que uma ocupação honrada com a qual enganar o tédio da ociosidade, eu compararia àqueles que passam as suas vidas olhando para pinturas”.6 Reabilitações Isso resolve a questão? Dificilmente, embora atingir clareza sobre Calvino e seu legado a respeito das artes é algo repleto de armadilhas. Pelo menos dois tipos principais de reabilitação foram tentados. Eles se baseiam em duas historiografias. A primeira é representada por Abraham Kuyper (1837- 1920) e Émile Doumergue (1844-1937) e seus herdeiros. A abordagem de Kuyper ao calvinismo e às artes é mais bem determinada na quinta palestra, “Calvinismo e arte”, nas Palestras sobre o calvinismo de 1898, patrocinadas pela Fundação L. P. Stone da Princeton University.7 Não surpreendentemente, os pensamentos de Kuyper – embora provenientes de uma linhagem reformada – contêm um ethos decididamente pertencente ao século 19. Sua orientação é teológica e apologética. Segundo ele, as artes existem para elevar “o Belo e o Sublime em seu significado eterno”. Elas são um dos dons mais ricos de Deus para a humanidade. Kuyper acredita que elas têm o papel de promover um “misticismo correto” que ajuda a reconhecer os benefícios da verdadeira religião, embora ele tenha protestado contra a tendência de abandonar esse misticismo em favor de uma “intoxicação pela arte”.8 Percebe-se uma afinidade com Matthew Arnold também aqui (quer Kuyper o tenha lido ou não). Segundo esse influente pensador britânico, a cultura é “o melhor que foi pensado e dito no mundo”. Além disso, a cultura existe “para fazer a razão e a vontade de Deus prevalecerem”.9 Aqui, Kuyper defendeu o papel do calvinismo em mover-se evolutivamente para uma “multiformidade de tendências de vida”, em oposição a colocar tudo sob a tutela do Estado ou outras instituições estabelecidas. O efeito disso é libertar as artes de atuarem meramente no contexto da adoração. Por mais estreitamente que elas estejam alinhadas com o “estágio inferior do desenvolvimento humano”, agora é tempo de evoluir para longe dessa congruência e, de fato, enviar as artes para fora da igreja.10 Ele acrescentou que, pelo fato de a arte ser “incapaz de expressar a própria essência da religião”, ela deve viver numa esfera própria. Segundo ele, o calvinismo libertou a arte da tutela da igreja e, assim, ainda mais do que a Renascença, foi o primeiro a reconhecer a sua maturidade.11 Isso não significa que a religião seja incapaz de gerar um estilo de arte. Pelo contrário, Kuyper argumentou que, diferentemente do Iluminismo racionalista, o calvinismo gerou uma rica herança nas artes.12 O calvinismo fez isso não atingindo algum estágio superior que proíbe a expressão simbólica da religião em termos visuais, mas estabelecendo uma visão do mundo e da vida que inspira os artistas a interpretar o mundo e representá- lo de determinada maneira.13 Para defender Calvino contra a acusação de filistinismo, Kuyper citou muitas passagens nas quais o reformador demonstra aprovação das artes. Porém, seu argumento central é que o calvinismo promove um bom princípio estético, derivado da visão de Calvino da criação. Assim, o chamado do artista é “descobrir nas formas naturais a ordem do belo e, enriquecido por esse conhecimento superior, produzir um mundo belo que transcende o belo da natureza”. Assim, as artes devem nos lembrar do que foi perdido em decorrência da maldição e o que se deve esperar no “perfeito esplendor vindouro” da criação.14 Então, como é isso nas artes visuais? Por meio do calvinismo, e também pela graça comum de Deus, muito fruto foi produzido. Kuyper encontra exemplos importantes na Holanda, onde, segundo ele, a poesia e, mais especialmente, a música e a pintura fluíram de uma orientação “reformada”. Ele citou Rembrandt e outros pintores e argumentou que eles partiramda doutrina da eleição pela graça gratuita, o que levou à implicação de importância especial para as pessoas mais simples e os acontecimentos comuns aos olhos de Deus. Consequentemente, argumentou ele, as artes puderam concentrar-se muito mais no aparentemente pequeno e insignificante e elevar pessoas reais, em vez de pessoas de alta posição.15 Usando uma retórica decididamente populista e romântica, Kuyper declarou que “o poder eclesiástico já não mais conteve o artista, e o ouro principesco já não mais o prendeu a grilhões. Se artista, ele era também homem, misturando-se livremente com o povo, e descobrindo o que há por dentro e por detrás de sua vida humana, algo muito diferente do que palácio e castelo até então lhe haviam permitido”.16 A mesma evolução ocorreu na música. Não mais ligados à igreja, os compositores estavam livres do canto gregoriano e, agora, “escolhiam suas melodias do mundo livre da música”.17 Émile Doumergue adota uma abordagem semelhante. Embora francês, ele também vai de Calvino à idade de ouro da arte holandesa, particularmente Rembrandt.18 Os calvinistas não apenas libertaram as artes, mas as tornaram relevantes para o povo e enfatizaram a possibilidade de interioridade psicológica e espiritual. Dentre os herdeiros desses pontos de vista devemos incluir Léon Wencélius, cuja obra clássica L’esthétique de Calvin [A estética de Calvino] do mesmo modo defende a cosmovisão reformada como um gerador das artes.19 Hans Rookmaaker ecoaria essas visões uma geração depois. Rookmaaker foi um historiador de arte, de modo que seria de esperar que ele entrasse em muito mais detalhe do que Kuyper ou Doumergue, o que certamente ele fez. Seus ensaios sobre artistas individuais, como Dürer, Bruegel, Rubens e tantos mais, nos introduzem aos modos pelos quais uma visão do mundo e da vida informa as pinturas.20 A obra mais conhecida de Rookmaaker é uma crítica do mundo contemporâneo através da lente das artes. Modern art and the death of a culture [A arte moderna e a morte da cultura] é uma fascinante viagem pela história da arte com uma historiografia de declínio, baseada na epistemologia dos artistas nas suas diferentes épocas.21 Além da brilhante apreciação do modo como uma cosmovisão ilumina a história e a cultura nesses pensadores, não devemos deixar de observar o espírito romântico e até mesmo hegeliano que informa a abordagem de Kuyper e Doumergue, embora a abordagem de Rookmaaker seja mais complexa. Acreditamos que a ideia de que a cultura e tudo o que se relaciona a ela emana de uma cosmovisão, uma consciência religiosa que caracteriza toda a atividade humana em dado período, é – pelo menos em parte – uma ideia bíblica. Porém, a ampla periodização, a busca de um ethos ou de um zeitgeist que caracterize uma determinada era, pode levar a anacronismos e supersimplificações quando não tivermos o cuidado de honrar os detalhes. Na pior das hipóteses, essa abordagem pode levar a uma insalubre aprovação de guerras culturais. Nuança e contexto Reações podiam ser esperadas e foram muitas. Porém, com elas, uma porta foi aberta para uma segunda historiografia de como o calvinismo se relaciona com as artes. Um dos primeiros a colocar em questão a primeira historiografia é Ernst Gombrich. Sua principal contribuição à discussão é In search of cultural sistory [Em busca de história cultural].22 Ele questiona se diferentes épocas estão realmente unidas por um único zeitgeist*. Ao observar as artes, ele observa as muitas escolas e abordagens rivais existentes em cada período. Cada uma delas tem a sua própria coerência, mas, inconscientemente ou não, tem também elementos em comum com as outras, tornando problemática a ideia de uma cosmovisão regendo um movimento que afeta a maneira como os artistas trabalham. Além de Gombrich, todo tipo de crítica à cultura surgiu, desafiando o modelo hegeliano. Pode-se pensar em escolas como o culturalismo, o estruturalismo e o pós-estruturalismo, a Escola de Frankfurt, o feminismo, as visões foucaultianas, e muitas outras.23 A versão extrema dessa nova direção precisa estar nas diversas abordagens conhecidas como pós- modernismo. Esse termo ilusório pode, no mínimo, referir-se a várias tendências que se opõem a historiografias de “metanarrativa”. Jean- François Lyotard notoriamente pediu por “incredulidade em relação às metanarrativas, o grand récit, particularmente como oferecido pela ciência e pela educação”.24 Para ele e muitos outros, o conhecimento não é um fim em si, mas capital cultural, poder para chegar a um fim específico. Essas escolas, decididamente anti-hegelianas, trazem corretivos e recato necessários ao empreendimento de estudos sobre a cultura. Contudo, elas não deixam de ter os seus próprios interesses ocultos, alguns dos quais tornam difícil quase qualquer generalização. Por exemplo, o seríssimo analista de cultura Pierre Bourdieu procura localizar valor e significado no mundo da experiência cotidiana. Embora tenha começado como quase um relativista puro, ele buscou princípios universais na sua fase acadêmica mais madura.25 Ele nos guia solicitamente ao longo de diversos sabores culturais, para desvendar as muitas camadas de estilos de vida e hábitos. Ainda assim, o seu propósito é identificar os relacionamentos entre poder e dominação econômica de um grupo sobre outro. Nas palavras de Storey, o resultado não intencional pode ser que: “O muito proclamado colapso de padrões ensaiados (quase semanalmente) na assim chamada mídia ‘de qualidade’ dos nossos novos tempos pós-modernos pode ser nada além de um sentido percebido de que as oportunidades de usar a cultura e fazer e marcar distinção social estão se tornando cada vez mais difíceis de encontrar”.26 O que aconteceu aqui é que o impacto cultural e as diferenças culturais são simplesmente mais complexos de identificar. Os recursos que nos são dadas pelos segundos historiadores são extremamente úteis desde que sejamos capazes de discernir as ideologias por trás das suas abordagens não tão inocentes. Aplicada à questão do calvinismo e as artes, essa segunda historiografia traz esclarecimentos úteis. Ela não só nos dá direção para responder à pergunta mais ampla “O calvinismo forma uma sensibilidade cultural que é coerente?”, mas também nos ajuda a sermos mais empiricamente responsáveis. E, adicionalmente, nos lembra de como a cultura funciona. Permanece a pergunta sobre se os ideais estéticos de Calvino poderiam cristalizar-se num movimento tão profundamente enraizado que poderia acabar originando um fruto semelhante ao dos paisagistas holandeses do século 17, como reivindicado por Kuyper e Doumergue. Em busca de um meio-termo Philip Benedict também é cético quanto às reivindicações da primeira historiografia. Ele compartilha algumas das dúvidas da segunda, mas não está disposto a abandonar a busca de algum tipo de conexão entre o calvinismo e as artes.27 Como Gombrich e seus herdeiros, Benedict questiona se algo tão abrangente quanto o calvinismo poderia vir a dominar com sucesso toda uma região, transformando totalmente a sua cultura. Por exemplo, ele ressalta que estudos cuidadosos de determinadas regiões e épocas revelam que o calvinismo não conseguiu atingir uma reformulação total da cultura artística ou musical e recriá-la com uma nova imagem. A realidade é mais complexa. Eis aqui um caso em apreço. A obra The peasants of Languedoc [Os camponeses de Languedoc], de Emmanuel LeRoy Ladurie, afirma que as Cevenas eram tão impregnadas da cultura calvinista que até mesmo canções de ninar foram tomadas dos salmos, não sendo utilizadas canções locais ou tradicionais. No entanto, Benedict observa que Ladurie baseou suas conclusões na obra de folcloristas do século 19. Estudos mais atuais mostram algo diferente. Novamente, Benedict ressalta que, nas Cevenas, o ministro huguenote Pierre Jurieu desejou treinar o coração “para que concebesse os seus pensamentos e fizesse as suas meditações somente nos termos do Espírito Santo, conforme expressados nos salmos”.28 Porém, Benedict argumentaque essa aspiração era totalmente impossível na realidade, porque “a Bíblia sempre teve de fazer as pazes com crenças, motivos e gêneros derivados de fontes não bíblicas, até mesmo nos maiores redutos de fidelidade calvinista”.29 Ele cita um exemplo interessante: a crença popular de que maio era um mês de azar para casar-se. Ele descobriu que os huguenotes das Cevenas se abstiveram tão prontamente quanto os católicos romanos, a despeito da sua retórica contra a religião supersticiosa. Benedict argumenta, adicionalmente, que os círculos das pessoas dadas a interesses literários, artísticos, científicos ou antiquários estavam em locais onde as diferenças confessionais da época eram facilmente superadas. Ele afirma que católicos e huguenotes se reuniam ali para cultivar os seus interesses comuns de maneiras em que os seus pontos de vista religiosos podem não ter sido particularmente infletidos.30 Como E. W. Zeeden e outros mostraram, havia até mesmo superposição na literatura devocional popular.31 Minha própria observação confirma a abordagem de Benedict. Recentemente viajei pela Europa Central, onde testemunhei as democracias florescentes nascidas a partir de 1989. Ninguém negaria a transformação. Contudo, a sombra do antigo regime opressivo ainda espreita. Por mais que se possa querer dizer sobre os vestígios do comunismo, é difícil negar a influência desse sistema burocrático nas comunicações, na arquitetura e na vida religiosa. O ethos ainda paira sobre muitas das democracias recém- nascidas. Ao mesmo tempo, o próprio comunismo dependia parcialmente de antigos sistemas autoritários; embora particularmente brutal, ele não era totalmente diferente dos modelos anteriores de tirania. Então, para aceitar o argumento de Benedict, não devemos desistir de tentar encontrar conexões entre o calvinismo e as artes, mas precisamos encontrá-las dando atenção a questões mais simples e mais concretas do que os esquemas grandiosos de Kuyper e Doumergue parecem permitir. Uma dessas questões é se pronunciamentos teológicos tiveram implicações importantes para o lugar das artes na igreja e na vida. Em que extensão os artistas foram afetados pelas crenças, permissões e proibições religiosas ligadas ao calvinismo? Três temas nos guiarão. Primeiro, as visões de Calvino das artes. Precisaremos conhecer algo de sua abordagem às imagens, tanto sua iconoclastia quanto sua aprovação cautelosa das artes em seu lugar. Segundo, o desenvolvimento de uma ontologia reformada para as artes. Aqui, desejaremos passar da cosmovisão estabelecida por Calvino para implicações e aplicações provavelmente não previstas pelo reformador. E, terceiro, uma palavra final sobre mudança de cultura. Aqui, lançaremos um breve olhar à questão das apropriações. Iconoclastia, o cenário É um fato que João Calvino pregava fortemente e praticava a reforma do culto. Uma das suas polêmicas constantes foi contra a idolatria, e particularmente o uso de imagens como auxiliares para o culto. Na maioria das vezes, as suas invectivas são rotuladas como iconoclastia. Seus pontos de vista não foram desenvolvidos num vácuo. O culto de imagens era muito difundido na Idade Média e tornou-se particularmente forte no século 15. As práticas incluíam devoção a relíquias, peregrinações a santuários e outros lugares simbólicos, o culto dos santos e a externalização da missa, incluindo multidões sangrando e o pleno desenvolvimento da festa de Corpus Christi.32 Já havia críticas a essa piedade popular bem antes da Reforma, mesmo no Ocidente, que geralmente havia resistido aos iconodules da igreja bizantina. Embora o papa Gregório I e até mesmo Tomás de Aquino tenham defendido o uso de imagens para a instrução dos analfabetos, diversos pregadores e movimentos advertiram contra elas. Pode-se pensar nos cistercienses e nos franciscanos, que advertiram contra o uso de símbolos para adornar locais de culto. Pode-se também pensar nos precursores da Reforma, homens como John Wycliffe e Jan Hus, que fizeram críticas moderadas a imagens, particularmente aquelas usadas para exaltar a Virgem Maria numa quase competição com Cristo. Erasmo Sem dúvida o mais sistemático dos críticos do fim do século 15 e início do século 16 foi Erasmo de Roterdã (c. 1466-1536). Seu amplamente lido Enchiridion Militis Christiani (1503) é um forte folheto contra a corrupção da igreja.33 Nele, Erasmo lamentou o formalismo e o materialismo de prática corrente e afirmou a natureza interior, espiritual da adoração. Embora claramente influenciado por Platão, ele pleiteava uma estreita relação entre Deus e a alma humana. A veneração de imagens era consequentemente condenada, com exceção feita aos que “por fraqueza de espírito” só conseguem adorar segundo a carne.34 Ainda assim, argumentou Erasmo, não poderia haver algo mais “repugnante” do que o culto a relíquias ou outros assim chamados objetos abençoados, uma vez que o próprio Cristo evitava todo uso de poder divino e instruiu seus seguidores a se dirigirem diretamente a ele no céu, sem intermediários.35 As visões de Erasmo exerceram enorme influência sobre os reformadores, até mesmo naqueles que pensavam que faltava coerência à sua teologia de um modo geral. A Suíça em geral e Genebra em particular foram profundamente marcadas pela iconoclastia da Reforma. A obra Histoire de la Réformation au XVIème siècle [História da Reforma no século 16], de Merle d’Aubigné, acompanha a história do movimento protestante na Suíça, em grande parte por meio dos atos de iconoclastia.36 Sua avaliação é que, “nos tempos da Reforma, os doutores atacavam o papa; e o povo, as imagens”.37 Ele não está muito errado. Segundo Carlos M. N. Eire, embora na Reforma a iconoclastia variasse em lugar e intensidade, ela era proeminente porque significava testar publicamente se o culto católico-romano era legal ou não e estabelecia de que maneira a Missa poderia ser substituída por uma religião espiritual e baseada na Palavra.38 Ele argumenta que a Suíça tornou- se um lugar crucial para a exibição desse padrão por pelo menos três razões: (1) É onde Ulrico Zuínglio foi capaz de produzir a teologia iconoclasta mais consistente e influente.39 (2) A Suíça foi a primeira área, muito mais do que Alemanha, onde a iconoclastia tornou-se uma política consistente, particularmente nos padrões estabelecidos pelos quais as suas cidades se tornavam oficialmente protestantes. (3) Pelo fato de as cidades terem uma estrutura republicana, as pessoas eram mais capazes de participar e usar a iconoclastia como uma tática política. A cidade de Genebra Nos anos que precederam a chegada de Calvino (particularmente 1530- 1536), Genebra vivenciou esse processo intensamente. Sua aliança com Berna significava ter importantes incentivos para reformar, particularmente na luta para se tornar independente tanto da Casa de Savoia quanto do príncipe-bispo de Genebra.40 Em 1527 o concílio de Berna havia encenado uma disputa na qual a fé protestante triunfou sobre crenças e práticas romanas tais como os méritos de Cristo, a tradição, a transubstanciação, a missa e o culto de imagens. A Reforma triunfou a partir de então. Genebra caiu sob o controle de Berna, primeiramente por meio de uma aliança militar com os seus exércitos contra os Savoia. Ao atravessar os territórios do sul, o exército bernês destruiu imagens, aquartelou seus cavalos em igrejas e, em geral, impôs à cidade os seus próprios serviços, incluindo pregadores. Embora tenham se retirado, esses exércitos haviam começado a agitar as pessoas para um comportamento anticatólico. Então, em 1532 o papa Clemente VII proclamou uma indulgência geral em Genebra. Os simpatizantes protestantes rebelaram-se e colocaram cartazes por toda a cidade zombando do sistema de indulgências e proclamando que o perdão estava disponível orando-se diretamente a Cristo. Depois desses incidentes, a Reforma começou a enraizar-se na cidade por razões teológicas. Guillerme Farel, Pierre Olivetan e outros começaram a chegar em 1532, e pregavam clandestinamente. Quando encontravamoposição, diziam estar pregando “na autoridade de Deus”, acusando os sacerdotes de impingirem tradições e invenções humanas às pessoas.41 Embora expulsos, Farel e Olivetan voltariam em 1533 com seu amigo Antoine Fromment, para continuar pregando princípios da Reforma. A pregação era seguida por tumulto; muitos ornamentos e estátuas de igrejas foram destruídos. As disputas e revoltas se acumularam e, finalmente, depois de uma mensagem pregada por Farel na catedral em agosto de 1535, ocorreu uma grave revolta, destruindo a maioria dos ícones, incluindo o retábulo de Foyseau. Embora houvesse leis que proibiam ou, pelo menos, cerceavam essa atividade, o Conselho da Cidade simpatizava claramente com os iconoclastas. Em 25 de maio de 1536, o Conselho aprovou por unanimidade “Viver segundo a santa lei do evangelho e da Palavra de Deus, conforme é pregada, desejando abandonar todas as missas e outras cerimônias e abusos papais, imagens e ídolos”.42 A iconoclastia em Genebra foi tanto um ato revolucionário quanto uma afirmação teológica. Obviamente, suas motivações eram mistas. Porém, a preocupação central era verdadeiramente uma convicção religiosa.43 Como Ecolampádio colocou isso, descrevendo os conflitos religiosos em Basileia, a hesitação do governo havia sido um “nó difícil” de desatar, mas a iconoclastia representa “a cunha do Senhor”, que simplesmente cortou o nó.44 Aqui temos uma ação política que concretiza uma convicção teológica. Assim, a iconoclastia nunca foi puro vandalismo, mas uma proposta de reforma. Foi esse o caso de Genebra. Calvino e os ícones Ao chegar a Genebra, Calvino encontrou uma magistratura já comprometida com essa abordagem. Embora nunca houvesse defendido o tiranicídio, ele favorecia a iconoclastia. Como havia acontecido com os reformadores anteriores, seus pontos de vista precisam ser contemplados no contexto geral da sua teologia. Sua própria jornada espiritual deve ter desempenhado um papel nas suas convicções. Embora pouco saibamos sobre a sua conversão, temos o testemunho frequentemente citado no seu Commentary on the Psalms [Comentário sobre os salmos], em que ele disse que, “por uma súbita conversão”, Deus o puxou para fora de “tão profundo abismo de lama” quanto às “superstições do papado”.45 Nas Institutas, desde a primeira edição até a última, ele desenvolve argumentos prolongados contra imagens na adoração. Na edição de 1559, a discussão é robusta, especialmente na seção relevante sobre o conhecimento de Deus (1.11-12) e a parte sobre o segundo mandamento (2.8.17-21). A base para a teologia de adoração de Calvino, da qual decorrem os seus ataques à idolatria, é o propósito central da doutrina da vida: a glória de Deus. Nas poderosas palavras do Catecismo de Genebra: 1. Quelle est la principale fin de la vie humaine? C’est de connaître Dieu. 2. Pourquoi dis-tu cela? Parce qu’il nous a créés et mis au monde pour être glorifié en nous. Et c’est bienraison que nous rapportions notre vie à sa gloire puisqu’il en est lecommencement. 3. Quel est le souverain bien des hommes? Cela même.46 Mais adiante no catecismo, na seção referente aos Dez Mandamentos, as seguintes razões são dadas como uma explicação do segundo mandamento: 144. Veut-il du tout défendre de faire aucune image? Non, mais il défend de faire aucune image, ou pour figurer Dieu, ou pour adorer. 145. Pourquoi est-ce qu’il n’est point licite de représenter Dieu visiblement? Parce qu’il n’y a nulle convenance entre lui, qui est Esprit éternel, incompréhensible, et une matière corporelle, morte, corruptible et visible.47 Aqui, devemos observar o que logo descobriremos: que Calvino não proíbe qualquer tipo de imagem, mas apenas imagens de Deus. Em toda a sua pregação e escrita, Calvino insistiu em que somente Deus era digno de toda a glória. Ele argumenta que qualquer uso de imagens conduz à idolatria. No Livro I das Institutas, ele ataca vários abusos papais citando os Pais. Por exemplo, ele rebate o argumento “papista” de que as imagens são para ajudar os ignorantes a desenvolverem uma melhor ideia da teologia, citando Agostinho e outros que dizem que as estátuas são uma maneira de “tirar o medo e colocar o erro”.48 Mestres da igreja caíam na veneração de imagens porque “eles mesmos eram mudos”. Imaginando haver alguma divindade na imagem, “Portanto, quando você se prostra em veneração, representando a si mesmo numa imagem, seja de um deus ou de uma criatura, você já está preso em alguma superstição”.49 Seus ataques frequentes à “idolatria” católico-romana são centrados em roubar de Deus o que lhe é devido. No cerne da oposição de Calvino às imagens na adoração há uma preocupação com a natureza espiritual da verdade. Na verdade, pelo fato de Deus ser, para ele, a meta de todos os atos e aspirações humanos, e pelo fato de ser um espírito puro, nunca devemos tentar formar qualquer réplica terrena dele. Para Calvino, a adoração a Deus deve ser espiritual, para que possa corresponder à sua natureza. Um nível adicional que leva Calvino a banir as imagens da adoração é o seu entendimento do cumprimento de todas as figuras do Antigo Testamento que anunciavam Cristo. Calvino reconhecia a propriedade das imagens no período da preparação. Porém, uma vez que Cristo veio e a igreja foi fundada, todas as imagens, exceto as representações nos dois sacramentos, são abolidas. Assim, as imagens eram frequentemente destruídas. A escultura era particularmente visada; as pinturas, um pouco menos; os vitrais eram preservados com frequência. Um constante chamado à vigilância era característica dos reformadores. Às vezes, isso podia ser bastante extremo, como na Inglaterra puritana.50 Ao mesmo tempo, não se deve esquecer que os reformadores da magistratura nunca promulgaram uma condenação geral de imagens, nem proibiram a correta apreciação das artes. Música Devemos mencionar que a abordagem de Calvino à música era a mesma. Como Charles Garside demonstrou, a preferência de Calvino por cantar principalmente os salmos, sem acompanhamento, durante o culto vem da mesma convicção. Ao chegar a Genebra, ele encontrou as pessoas ainda “ignorantes” devido aos problemas que a cidade havia vivenciado. Assim, o canto dos salmos foi uma das primeiras ações pleiteadas por Calvino, juntamente com a disciplina da igreja, incluindo a excomunhão (para salvaguardar a Ceia do Senhor), o catecismo e o licenciamento para casamento. Sem esses, ele não sabia como poderia haver uma vida eclesiástica bem ordenada ou “regulada” segundo a Palavra de Deus.51 Por que os salmos? Eles são orações dadas pelo próprio Deus. Seguindo Agostinho, Calvino insistiu em que os adoradores soubessem o que estavam cantando, de modo que fez com que eles fossem cantados em francês.52 Mesmo sendo menos músico do que Martinho Lutero, Calvino desenvolveu uma teologia da música que separava o canto para dentro da igreja e o canto para fora da igreja. Ainda assim, onde quer que fosse praticada, a música precisava ser adequadamente singela. Ele acreditava firmemente que a música pode elevar a alma até uma alegria celestial. Como tal, a música é o presente de Deus. Ao mesmo tempo (ecoando Platão), ele advertiu contra a música imoderada que poderia levar à “indecência” (impudicité) e “efeminação por delícias desordenadas” (de nous effeminer en délices désordonnées).53 Ele exigiu que toda a congregação cantasse e proibiu o uso de corais. Assim, os salmos deveriam ser apresentados musicalmente tanto com seriedade quanto com excelência. Aqui não é o lugar para discorrer sobre a apropriação, por Calvino, de Louis Bourgeois e Claude Goudimel, que escreveram melodias simples, mas elegantes, para os textos sagrados. Ele desaprovava os instrumentos musicais na adoração por pensar que eles pertenciam aos tempos do Antigo Testamento, quando as pessoas eram espiritualmente menos maduras, “enquanto ainda eram tenras e semelhantes a crianças, por tais rudimentos até a vinda de Cristo. Mas agora, quando a clara luz do evangelho dissipou as sombras da lei e nos ensinou queDeus deve ser servido de uma maneira mais simples, seria desempenhar um papel tolo e equivocado imitar o que o profeta ordenou somente para as pessoas do seu próprio tempo”.54 Antiarte? Alguns dão a impressão de que as fortes opiniões de Calvino contra as imagens vinham de sua oposição às artes em geral. Apesar de afirmações como a descrita acima ao seu aluno, é injusto rotulá-lo como contrário às artes. Embora denunciasse fortemente imagens de pessoas santas porque elas seriam como convites abertos à idolatria, ele reconheceu o lugar para a expressão artística na vida. Nas Institutas, encontramos vários exemplos em que ele vê a legitimidade das artes visuais. Por exemplo, juntamente com a condenação de altares e “peregrinações votivas para ver imagens”, ele acrescenta: “contudo, eu não fui tomado pela superstição de pensar que absolutamente nenhuma imagem é permissível”. Ele diz: “Porém, porque escultura e pintura são dons de Deus, busco um uso puro e legítimo para cada uma delas”. Embora seja errado representar Deus porque ele é invisível, é bom esculpir ou pintar coisas que o olho pode ver. Reconhecidamente, essa permissão é dada de uma maneira um tanto relutante.55 Porém, há outras. Sua declaração mais abrangente sobre as artes em geral é encontrada nas Institutas (2.2.12-16). A discussão está contida na questão mais ampla dos vestígios de dons e do livre-arbítrio. Calvino afirma que os nossos dons naturais foram corrompidos, incluindo a razão – o poder de entendimento – e o arbítrio. Ainda assim, há a graça comum. Calvino observa que ainda podemos operar nas áreas de governo, administração do lar, todas as habilidades mecânicas e artes liberais. Apesar da queda, ainda sabemos sobre a necessidade de lei para administrar as organizações humanas. Nas Institutas (2.2.14), ele discute as artes liberais e as artes manuais. Ele observa que quase ninguém é desprovido de talento em alguma arte. Discorda de Platão, que disse que a capacidade de aperfeiçoar as artes vem meramente da memória. Calvino diz que, pelo contrário, ela é inata. Nas Institutas (2.2.15-16), ele celebra os dons do Espírito de Deus àqueles que não confessam o nome de Cristo. Esses dons incluem discernimento de ordem cívica, equidade, arte da disputa, física, matemática, poesia e “as artes úteis”.56 Calvino tinha semelhanças e diferenças em relação aos outros reformadores. Zuínglio, muito iconoclasta no tocante à adoração, escreveu em 1525: “Ninguém é maior admirador do que eu da pintura e da estatuária”. Ele permitia a liberdade para que imagens enfeitassem a casa, embora tendo o cuidado de limitar as artes visuais na igreja.57 Onde e de que tipos? É evidente que Calvino não é contrário às artes em geral, nem seu tipo de iconoclastia e restrições à música na adoração indica uma aversão às artes, como afirmam Brunetière, Douen, Réau e outros. Com certeza, não se pode desconsiderar o poder dos argumentos iconoclastas de Calvino e dos outros reformadores. Mais do que a maioria das polêmicas, ele atingiu o âmago da piedade medieval. Ainda assim, havia espaço legítimo para um razoável apreço pelas artes. Então, eis a pergunta. A visão de Calvino gerou algo mais do que ele poderia ter previsto? Os seus sucessores, especialmente os que desenvolveram uma visão positiva das artes, basearam-se corretamente na cosmovisão estabelecida por Calvino para nos dar fenômenos como as pinturas bíblicas de Rembrandt, as paisagens holandesas e muito mais, até os mundos reformadas dos séculos 19 e 20 e seus campos estéticos florescentes, não excluindo a música? Eis como Christopher Richard Joby argumenta de modo convincente haver uma evolução verdadeira.58 Ele diz que o modo em que Calvino restringiu a prática musical ao canto a cappella de (principalmente) salmos na adoração foi equilibrado pelo seu chamado à imaginação, e isso caracterizou a evolução do calvinismo nas artes. Clément Marot precisou demonstrar uma criatividade excepcional para metrificar a poesia dos salmos e estabelecer os ritmos para os padrões na música. Por vezes, Marot tomou liberdades com o texto, com o intuito de estabelecer um argumento teológico, quase na forma do midrash hebraico.59 Essa “ontologia e epistemologia” justificou posteriores modificações e reformas na prática musical, como o uso do órgão na Holanda e as extensas revisões feitas por Isaac Watts. De modo semelhante, as artes visuais encontraram lugar na cultura do calvinismo explorando os motivos visuais não proposicionais e transformando-os em conceitos didáticos.60 Dito de modo um tanto diferente e em termos mais contemporâneos, a cosmovisão desenvolvida por Calvino incluiu um profundo respeito pela poesia e interpretação visual, além de simplesmente um forte conservadorismo na prática da adoração. Essa cosmovisão evoluiu para uma apreciação mais completa da criação e, assim, um maior consolo com as artes visuais. Portanto, não deveríamos nos surpreender ao descobrir, por exemplo, que no início do século 17 desenvolveu-se na Holanda uma polêmica entre Jacob Trigland e os quacres. Trigland, um cristão reformado, defendeu a propriedade das pinturas (exceto nus) contra os quacres, que proibiam a posse de qualquer tipo de pintura.61 Conexões específicas Eis aqui alguns exemplos específicos de modos como se pode dizer que uma sensibilidade calvinista é representada em formas de arte específicas. Comecemos com alguns exemplos muito básicos e óbvios, passando depois a exemplos mais indiretos. Uma conexão é bem conhecida, embora talvez não seja tanto uma declaração sobre questões estéticas maiores. Inúmeras bíblias ilustradas foram produzidas por artistas reformados. Curiosamente, as ilustrações bíblicas de Estrasburgo e Zurique eram mais ricas e mais originais do que as produzidas em Wittenberg.62 Poderíamos também pensar nas obras devocionais, cujos salmos a serem utilizados devocionalmente eram frequentemente impressos em edições contendo vinhetas ricas e variadas em xilogravura. Elas encaminhariam o leitor para o mundo do Novo Testamento, dando uma interpretação cristológica a muitos dos salmos. Ao mesmo tempo, imagens do Antigo Testamento poderiam ser suficientes. Uma edição apresenta um sacerdote com o seu holocausto para ilustrar o salmo 150.63 Importantes para o desenvolvimento da arte da Reforma foram as polêmicas daquele tempo. Frequentemente, as ilustrações eram semelhantes a cartuns, apresentando seus argumentos de modo que atraiam as pessoas. A sátira vívida era particularmente popular. Lucas Cranach (o Velho), famoso pelo seu retrato de Martinho Lutero, foi um cartunista favorito contra a Igreja Católica Romana. Seu Antichristus foi tão popular em Genebra que teve nove edições publicadas. De fato, as artes visuais eram regularmente utilizadas para promover todas as ideias da Reforma. Ao subirmos para a Holanda, mais perto do fim do século 16, descobrimos que Jan Swart van Groningen (1500-c.1560) foi um prolífico gravador e ilustrador cujas obras frequentemente se baseavam em passagens bíblicas e ensinavam uma visão protestante. Seu par de desenhos “O caminho largo” e “O caminho estreito”, inspirados em Mateus 7.13-14, contrasta os importantes e poderosos a caminho da destruição e as pessoas mais humildes, capazes de confiar na fé simples, a caminho do céu.64 Ali, von Groningen mostra a mulher de Potifar denunciando José na história que acabaria revelando: “Vós [...] intentastes o mal contra mim; porém Deus o tornou em bem” (Gn 50.20).65 Pode-se também pensar em Dirck P. Crabeth (1501-1577 ) de Gouda, cujos desenhos e vitrais continham ideias distintamente reformadas.66 Crabeth era frequentemente fascinado pela necessidade do novo nascimento na jornada para o céu, em vez de boas obras. E também, as ligações entre o calvinismo e as artes são óbvias em certas formas de arte, particularmente aquelas diretamente relacionadas à adoração. Por exemplo, símbolos de comunhão, conhecidos como méreaux, teriam desenhos como um pastor, uma Bíblia aberta, um cálice de comunhão ou algo semelhante. Ospróprios cálices de comunhão poderiam ser ornamentados com imagens de temas bíblicos. Arquitetura Há uma clara ligação entre os princípios calvinistas e a arquitetura e o mobiliário da igreja. Questões arquitetônicas geravam menos controvérsia, uma vez que, em muitos casos, com frequência os protestantes simplesmente assumiam o controle de igrejas católicas existentes e as modificavam de modo a obedecerem a princípios reformados de culto. Substituir o altar por um púlpito como ponto focal era uma afirmação típica de adoração centrada na Palavra.67 Calvino não escreveu muito sobre a configuração de igrejas, mas isso permite que durante os primeiros quinhentos anos da igreja houvesse “uma doutrina mais pura prosperando” e “as igrejas fossem comumente desprovidas de imagens”.68 Ele usa Agostinho para apoio. Pode-se argumentar, como faz Joby, que usar Agostinho prova que havia imagens antes do século 5º. e, provavelmente, muito antes.69 Provavelmente, Calvino está argumentando contra estátuas e sinais ostensivos, não contra qualquer imagem que seja. O modo primário de conhecer as intenções de Calvino é examinar St. Pierre em Genebra sob o seu ministério. Quando ele assumiu a pregação regular ali (certamente a partir de 1541 e, ocasionalmente, de 1536 até o seu exílio), havia uma considerável iconoclastia. Tanto o púlpito quanto o coral foram demolidos. O púlpito foi transferido para o primeiro pilar à esquerda, simbólica e praticamente importante: a pregação da Palavra tornou-se o elemento central do culto reformado. Além disso, toda a configuração do espaço foi alterada, passando da abordagem de “receptáculo”, pela qual Deus se encontra com o seu povo no altar na Eucaristia, para o uso “relacional” do espaço, pelo qual Deus se encontra com o seu povo na assembeia.70 Esse padrão foi duplicado e desenvolvido na Escócia e na Holanda.71 Na França, antes da revogação do Edito de Nantes, um bom número de igrejas acomodou esses princípios da Reforma centrados na Palavra. A disposição das cadeiras em torno do púlpito sinalizava não apenas uma assembleia para ouvir, mas também uma comunhão mais íntima.72 Quando novos edifícios eram construídos, frequentemente eram notáveis pela simplicidade. Cévenols construiria igrejas na forma de celeiros semelhantes aos utilizados nas fazendas.73 Com frequência eram encontrados toques como um cata-vento na forma de um galo, para significar a pregação da Palavra.74 Em tudo isso, a igreja como edifício representa algo sobre santificação e, é claro, identidade cristã. Apesar de toda a sua ênfase sobre a invisibilidade de Deus e a impropriedade de representá-lo com imagens, Calvino acredita que o mundo e a consciência humana testificam da imanência de Deus. Como Jérôme Cottin ressalta no fascinante livro Le regard et la parole [O olhar e a palavra], Calvino pratica “estética sem imagens”, enquanto Lutero tem “imagens sem estética”. Em qualquer caso, embora Deus possa ser conhecido de maneira visível, ele nos dá análogos de sua presença de modo que “Não se pode, portanto, separar a beleza de Deus do espetáculo do mundo. O universo é belo porque é o teatro da glória de Deus”.75 Assim, embora o uso de imagens na igreja esteja quase ausente no próprio tempo de Calvino, imagens sóbrias poderiam desenvolver-se, e desenvolveram-se, no espaço de adoração, mas especialmente no domínio privado ou “secular”. Para Calvino, elas podiam servir não apenas para o prazer, mas também para memória e instrução na verdade cristã.76 Desdobramentos na Holanda Agora, passemos às conexões menos diretas. Quanta transferência de tais princípios estéticos houve para o restante das artes, particularmente aquelas não destinadas às igrejas? É aqui que as coisas tornam-se interessantes e complexas. Novamente, Joby e outros defendem uma evolução da cosmovisão de Calvino para uma sensibilidade que cresceu nas artes visuais. Concentremo-nos na questão da arte paisagística a partir do século 17 holandês. Hans Rookmaaker argumenta que surgiu um problema com a Renascença, a saber, que cenas históricas (ou cenas naturais) exigem realismo e interpretação.77 Deveria ser mostrado o que os olhos podiam ver (o que poderia acabar no que hoje chamamos de positivismo, ou simplesmente reconhecer dados brutos) ou representar a interpretação, o que poderia exigir abandonar a cena literal e destacar a interpretação? Esse problema esteve especialmente presente na retratação da narrativa bíblica. Se a imagem é feita para ser historicamente exata, será semelhante a uma fotografia, mas não será capaz de interpretação teológica. Segundo Rookmaaker, esse dilema levou muitos pintores do século 17 em países da Reforma a simplesmente abandonarem a pintura de cenas bíblicas. Então, duas possibilidades surgiram. A primeira é representada em Rembrandt. Segundo Rookmaaker, apenas Rembrandt superou esse problema, usando meios de composição e psicológicos para transmitir significado. Na sua pintura Cristo na estrada para Emaús, vemos três homens andando por um caminho. Fica claro que o do meio, que é Jesus, é o mais importante. Rembrandt consegue isso desenhando uma casa no lado direito da tela, desse modo “criando um ritmo, homem-Cristo-homem-casa, com a ênfase em Cristo e na casa”.78 Nenhum halo é necessário, porque a silhueta de uma das árvores ao fundo é semelhante a um halo.79 Outras representações de Cristo em Emaús nos contam sobre a abordagem de Calvino à Eucaristia: Cristo está presente – ele está lá no sursum corda, quer o apreendamos totalmente de maneira racional ou não; a ceia é para os pecadores; eles estão na terra e, não obstante, misticamente transportados para o céu (o jogo de luz acrescenta um tom sobrenatural); o pão e o vinho são meios da presença real; Cristo está sempre presente com o seu povo.80 Essas observações são confirmadas pelo historiador de arte Christian Tümpel, que argumentou de modo convincente que a tradição holandesa de histórias bíblicas reproduzidas de uma maneira tão psicológica ou prática representa “uma fundamental contribuição protestante à arte”. Tümpel reconhece que Rembrandt teve um mestre católico (Pieter Lastman), embora acredite que o gênero foi inteiramente desenvolvido numa cultura calvinista.81 Quer Rembrandt tenha sido o único ou não a fazer essa conquista, como Rookmaaker sustentou, a visão de que seu calvinismo informou esses tipos de opções faz sentido. Arte paisagística A segunda abordagem à pintura de paisagens era pintá-las de modo que celebrassem a criação e Deus, o Criador. Rookmaaker dá um exemplo interessante. Paisagem, de Jan Van Goyen (1646), é uma representação do mundo, não como poderia ser fotografado como uma fatia fina, mas como é em toda sua beleza, complexidade e fragilidade. Esses tipos de pinturas são tão reais que imaginamos que seríamos capazes de vê-las ao vivo ou capturá-las em fotografia. Isso é impossível, uma vez que essa é uma composição extremamente planejada, não uma reprodução. Em contraste, digamos, com as paisagens frequentemente nostálgicas ou idealistas de Poussin, Van Goyen “canta sua canção em louvor da beleza do mundo aqui e agora, o mundo que Deus criou, a plenitude da realidade em que vivemos – basta abrirmos os nossos olhos”.82 Embora sejam paisagens, elas estão plenas de significado teísta, simplesmente pela maneira como cada motivo é exibido, sua “musicalidade” e o pressuposto subjacente de que estamos vivendo no mundo de Deus, um mundo caído, mas sendo redimidos. (Nisso, então, Kuyper e Doumergue tinham um argumento: o calvinismo contribuiu para separar as artes somente da igreja e ajudou a libertá-las para retratar toda a vida, incluindo as paisagens.) Esse ponto de vista pode ser sustentado hoje, particularmente à luz dos desafios da segunda historiografia? Eis aqui os elementos da discussão. Juntamente com um bom número de historiadores de arte, Rookmaaker acredita que de 1615 a 1630, em lugares como Haarlem, desenvolveu-se um novo estilo que é geralmente mais realista e “secular” do que a tradicional arte paisagística flamenga“semelhante a mosaico”. Isso foi alimentado por vários fatores, incluindo uma reação contra a mitologia, tendendo na direção a uma espécie de “arte pela arte”, ou simplesmente uma atenção a sentimentos ou humores pessoais. Havia um forte fator cristão envolvido. Maarten de Klijn argumenta que, segundo Francis Bacon, o calvinismo via a natureza como o “segundo livro” de Deus, o primeiro sendo a Bíblia. Assim, representações da criação deveriam mostrar o poder de Deus e a beleza de uma ordem divina sem recorrer a luzes e sombras, halos ou coisas semelhantes. Essa mentalidade também explica a mudança de um tipo de imagem mais maneirista para um tipo mais realista.83 Outros historiadores de arte encontram conexões semelhantes entre o desfrute do mundo e a visão calvinista da criação. Um dos melhores estudos sobre a conexão entre a cosmovisão reformada e os paisagistas holandeses é Jacob van Ruisdael and the perception of landscape [Jacob van Ruisdael e a percepção da paisagem], de E. John Walford.84 O livro fornece uma visão geral da obra do artista e sua recepção crítica. Walford discute a maneira como a representação por meio de pintura comunica significado. Conquanto os detalhes sejam escrupulosamente observados, tudo está a serviço da cosmovisão mais ampla, incluindo a glória da criação, mas também a queda com sua ameaça à beleza original. Walford discute diversos aspectos da arte do pintor: seus temas e motivos; sua seleção, combinação e representação de determinados elementos da paisagem; sua observação escrupulosa dos detalhes da vegetação nativa e da aglomeração das nuvens; e sua compreensão das forças conflitantes de crescimento e inevitável dissolução na natureza. As serenas imagens de grandiosidade são contrastadas com a definitiva transitoriedade da natureza. Boudewijn Bakker argumenta que o artista reformado Claes Jansz Visscher (1587-1652) pinta em cânticos de louvor a Deus, o Criador. Bakker examina uma interessante série de gravuras denominada Plaisante plaetsen (c. 1612). Essa série é uma viagem imaginária ao longo de marcos históricos e instalações industriais de Haarlem. Algumas das cenas fazem alusão a acontecimentos dolorosos, como o cerco da cidade em 1573, mas muitos aludem aos indicadores da nova prosperidade da cidade e do seu sucesso.85 Num deles há uma mulher folheando um livro de viagens. Há mensagens em latim e holandês, explicando que, mesmo que uma pessoa não tenha tempo para ir aos “lugares agradáveis” nos arredores de Haarlem, as vistas podem ser apreciadas por meio das pinturas.86 Bakker sugere que a apreciação desses tipos de cenas é motivada pela cosmovisão cristã, pela qual compreendemos a natureza como uma “canção adequada em louvor a Deus”.87 Nem todos concordam com essa conexão. Reindert L. Falkenburg pede que observemos mais atentamente a série de Visscher.88 Ele concorda que a sequência tem o objetivo de agradar aos olhos do espectador, particularmente por trazer à lembrança um passatempo favorito – fazer caminhadas fora das muralhas da cidade e desfrutar dos estímulos sensoriais. Todavia, ele questiona se há uma conexão clara com uma cosmovisão calvinista. Ele até mesmo questiona se esses prazeres sensuais opõem-se, de algum modo importante, à visão calvinista. Ele imagina se uma ética calvinista poderia até associar esses prazeres à queda, não ao “segundo livro” de Deus. Falkenburg não se opõe totalmente a encontrar algum elemento calvinista na série. Ele simplesmente nos pede para ponderar a complexidade de tais associações. Ele cita Huygen Leeflang, que argumenta haver uma multiplicidade de relações semânticas que os observadores possam ter associado a imagens da paisagem, em vez de estabelecer um significado único e abrangente. Isso pode incluir um secularismo do Iluminismo, orgulho da nova República, particularmente devido à sua prosperidade econômica, ou louvor ao Criador.89 Não obstante, Falkenburg argumenta a pouca probabilidade de o escopo incluir o calvinismo. Ele pensa que “o desenvolvimento em direção a uma linguagem realista e elementos acessórios seculares na paisagem holandesa do início do século 17 não tem, como princípio geral, probabilidade de estar ligado a uma visão religiosa, e mais especificamente calvinista, da natureza”.90 Em minha opinião, poderia ser as duas coisas. Uma sensibilidade reformada e uma perspectiva iluminista nem sempre são mutuamente excludentes. Em alguns casos, elas se complementam razoavelmente bem.91 No final, alinho-me com Philip Benedict e outros que, por um lado, criticaram as associações radicais de Kuyper, Doumergue e outros, e, por outro, abriram portas para uma importante pesquisa sobre as conexões entre o calvinismo e as escolhas feitas pelos pintores. Apropriações e transformação cultural Se esses argumentos forem válidos, isso significa que precisamos olhar de maneira um pouco diferente para identificar verdadeiramente uma abordagem reformada às artes. Então, de que modo a cosmovisão que emana de Reforma de Calvino afeta culturas em nível local? No domínio das artes, isso significará pelo menos três linhas de pesquisa. (1) Deve ser feito um trabalho comparativo sobre as semelhanças e diferenças entre a arte feita num contexto primariamente protestante ou católico-romano. No primeiro caso, por exemplo, sabemos que levou tempo para as artes voltarem a gozar do total favor depois das constrições da iconoclastia. Frequentemente, o próprio número de artistas diminuiu até que um equilíbrio melhor pudesse ser restaurado.92 O apoio eclesiástico diminuiu consideravelmente nesses países. Finalmente, porém, as coisas melhoraram. As pessoas começaram a querer possuir pinturas. Nas áreas primariamente católicas, as artes continuaram a florescer, mas foram afetadas por fatores como a Contrarreforma católica e o Iluminismo. O caso era diferente quando protestantes e católicos viviam mais ou menos lado a lado. (2) Relacionado a isso, que escolhas de tema eram feitas por artistas ou mecenas protestantes e católicos? Na Amsterdã do século 17, por exemplo, embora o contraste não fosse nítido, é possível notar que os católicos tendem a possuir mais pinturas com temas diretamente religiosos do que os protestantes. Quando o tema era religioso, os calvinistas preferiam histórias do Antigo Testamento, depois o Novo Testamento e, depois, cenas da Natividade. Os católicos preferiam a crucificação, a Virgem e os santos.93 Como Philip Benedict demonstra, essas escolhas refletem as diferenças de sensibilidade entre os dois grupos, particularmente no sentido de que os polêmicos protestantes exigiam histórias verdadeiras, bíblicas, ou paisagens que mostrassem a criação de Deus, em vez deliberadamente rejeitar crucificações e outros motivos associados à piedade católica. Ao mesmo tempo, havia a propriedade comum, o que significava que as diferentes sensibilidades nem sempre eram tão manifestas como poderíamos pensar. (3) Por fim, a questão das apropriações culturais. Há também fruto a ser encontrado no estudo das apropriações culturais. Um pioneiro nessa pesquisa é Roger Chartier, que estudou extensamente os inúmeros meios pelos quais um grupo se apropriará, para os seus próprios propósitos, de materiais encontrados no ambiente à sua volta.94 Isso nos leva de volta às nossas discussões sobre costumes populares locais e cosmovisões mais amplas. Também torna as decisões sobre escolhas aparentemente tão modestas quanto preferir uma pintura sobre uma história do Antigo Testamento em vez da crucificação. Por outro lado, poderia considerar tais grandes tendências como a secularização da arte, tirando as artes do contexto da adoração e lançando-a no mundo exterior, deixando a igreja para viver mais plenamente no mundo de Deus. O chamado hoje Há muito trabalho a ser feito. A boa notícia é que, nos tempos recentes, os cristãos – particularmente na tradição reformada – deixaram de perguntar se alguém pode se envolver nas artes visuais e começaram a perguntar de que maneira isso deve ser feito. A tarefa para os artistas precisacomeçar com o nível de habilidade. Independentemente de qualquer outra coisa que possamos dizer sobre a arte na tradição calvinista, ela precisa buscar a excelência no ofício. Em segundo lugar, o tema terá de refletir a cosmovisão que nos foi ensinada pelos nossos antepassados holandeses. É fácil dizer as palavras criação, queda, redenção, mas, para elas serem algo mais do que um mantra, teremos de aplicá-las diligentemente no nosso trabalho. Em terceiro lugar, ser um artista não é um chamado fácil. A igreja não está cem por cento por trás das vocações criativas. É um empreendimento de alto risco entrar no mundo das artes com a sua integridade cristã acima de tudo. Porém, o mundo estético necessita desesperadamente de artistas capazes de rejeitar tanto o sentimentalismo quanto o niilismo e mostrar uma terceira via que articule o nosso sofrimento, mas também a nossa esperança no Senhor. 1 Hans R. Rookmaaker, Modern art and the death of a culture (Downers Grove, IL: Inter-Varsity Press, 1970), 30. 2 Para uma breve história desse aspecto do protestantismo e das artes, ver Hilary Brand e Adrienne Chaplin: Art and soul: Signposts for Christians in the arts (Carlisle, UK: Piquant, 2001), cap. 3. 3 Ver também Graham Gartgett, “Goldsmith as translator of Voltaire”, The modern language review 98 (2003): 842-56. Justiça seja feita, Voltaire acabaria tornando-se um defensor dos huguenotes e louvaria Genebra pela sua diligência. 4 Isso significa “inimigo de todo prazer e de toda diversão, até mesmo das artes e da música” (Orentin Douen, Clément Marot et le psautier Huguenot, v. 1 [Paris: Imprimerie Nationale, 1878], 377). 5 Louis Réau, Histoire du vandalisme: Les monuments détruits de l’art français (Paris: Robert Laffont, 1995 [orig. 1959]). 6 CR, 11.56. 7 Abraham Kuyper e Émile Doumergue, “Calvinism and art”, Lectures on Calvinism (Grand Rapids: Eerdmans, 1931), 142-70. 8 Ibid., 143. 9 Matthew Arnold, Culture and anarchy (Cambridge: Cambridge University Press, 1960 [orig. 1882]), 6, 42. 10 Kuyper e Doumergue, “Calvinism and art”, 146-47. 11 Ibid., 157. 12 Ibid., 148, 151-52. 13 Ibid., 152. 14 Ibid., 154-55. 15 Ibid., 165-66. 16 Ibid., 167. 17 Ibid., 168. 18 Émile Doumergue, L’art et le sentiment dans l’oeuvre de Calvin (Genebra: Société Genevoise d’Edition, 1902; reimpr. Genebra: Slatkine Reprints, 1970), 13-14, 36-34. 19 Léon Wencelius, L’esthétique de Calvin (Paris: Les Belles Lettres, 1937). 20 Ver, por exemplo, seus artigos sobre história da arte ocidental, reunidos em Hans Rookmaaker, Western art and the meanderings of a culture, v. 4 de Complete works, org. Marleen Hengelaar- Rookmaaker (Carlisle, UK: Piquant, 2002), 1-187. 21 Esses generalistas não são os únicos que ligam o calvinismo a, digamos, paisagistas holandeses do século 17. Maarten de Klijn e outros historiadores de arte contemporâneos também estabelecem essas conexões. 22 Ernst Gombrich, In search of cultural history (Nova York: Oxford University Press,1969). Rookmaaker comenta esse livro favoravelmente em Western art, 275-77. Meu palpite é de que Gombrich estava se movendo em direção a essa segunda historiografia. * zeitgeist: “espírito da época” ou “sinal dos tempos”. (N. da R.) 23 Ver Jean-François Lyotard, The postmodern condition: A report on knowledge (Manchester: Manchester University Press, 1984), 46. Para um excelente resumo dessas e de outras escolas em relação a estudos culturais, ver John Storey, An introduction to culture theory and popular culture, 2ª ed. (Athens, GA: University of Georgia Press, 1998). 24 Jean-François Lyotard, The postmodern condition: A report on knowledge (Minneapolis: University of Minnesota Press, 1984), xxiii; ad loc. 25 Ver, por exemplo, Pierre Bourdieu, Distinction: A social critique of the judgment of taste, trad. Richard Nice (Cambridge, MA: Harvard University Press, 1984). Nota de Rules of Art: “Para Bourdieu, artistas e outros agentes possuem certos capitais, dos quais existem quatro tipos básicos: primeiro, o capital econômico – ações e quotas, mas também o excedente presente em salários muito altos; segundo, capital social – a rede de apoiadores influentes que você pode usar para apoiar as suas ações; terceiro, capital cultural – incluindo o conhecimento do campo artístico e da sua história, o que, por sua vez, serve para distinguir o pintor ingênuo do pintor profissional, e incluindo também o capital erudito de um tipo formal (pós-graduação, prêmio de uma bolsa para visitante de Roma etc.); finalmente, capital simbólico – a sua reputação ou honra, como um artista que é leal a outros artistas e assim por diante”. Bridget Fowler, Pierre Bourdieu and cultural theory: Critical investigations (Londres: Sage Publications, 1997). 26 Storey, Introduction to culture theory, 198. 27 Philip Benedict, “Calvinism as a culture?” em Paul Corby Finney (org.), Seeing beyond the word: Visual arts and the Calvinist tradition (Grand Rapids: Eerdmans, 1999), 1-45. 28 Pierre Jurieu, traité de la devotion (Ruão, 1675), 184. 29 Benedict, “Calvinism as a culture?” 25. 30 Ibid., 26. 31 Ibid. Ver E. W. Zeeden, Die Entstehung der Konfessionen (Munique: Oldenbourg, 1965); e Quentin Skinner, “The origins of the Calvinist theory of revolution”, em Barbara C. Malament (org.), After the Reformation: Essays in honor of J. H. Hexter (Filadélfia: University of Pennsylvania Press, 1980), 309-30. 32 Ver, por exemplo, Hermann Heimpel, “Characteristics of the late Middle Ages in Germany”, em G. Strauss (org.), Pre-Reformation Germany (Nova York: MacMillan, 1972), 68. 33 W. Welzing (org.), Erasmus von Rotterdam: Ausgewählte Schriften, v. 1 (Darmstadt, Alemanha Ocidental: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1968). Para uma edição em inglês, ver Raymond Himelink (trad.), Enchiridion, or The manual of the Christian knight (Londres: Kessinger, 2003). 34 Ibid., 90-91. 35 Ibid., 204. 36 Merle d´Aubigné, Histoire de la Réformation au XVIème siècle (Paris: Firmin Didot Frères, 1938). 37 Ibid., 767. 38 Carlos M. N. Eire, War against the idols: The reformation of worship from Erasmus to Calvin (Cambridge: Cambridge University Press, 1986), 107. 39 O livro De vera et falsa religione, de Ulrico Zuínglio, teve influência direta sobre Calvino. Compare S. M. Jackson (org.), The Latin works and the correspondence of Huldreich Zwingli: Together with selections from his German works, v. 3 (Nova York: Putnam’s Sons, 1912), 332, com Institutas de Calvino, 1.11.9. 40 É possível atribuir a essa disputa a data de 1519, quando patriotas de Genebra liderados por Besançon Hughes, o “sujeito do juramento”, tiveram sucesso em sua luta. Ele acabou conseguindo o apoio daqueles que assinaram tratados com Berna e Friburgo, e pode ter dado aos Confederados suíços o nome Eidgenossen, do qual deriva o termo huguenote. 41 Ver Provana di Collegno, “Rapports de Guillaume Farel avec les Vaudois du Piémont”, Bulletin de la Société d’Études des Hautes-Alpes (1891): 257-78. 42 R. Consist., 13:576, tradução minha. 43 Carlos M. N. Eire, War against the idols, 155. 44 Ibid., 156. 45 CR, 31.22. 46 1. Qual é o principal propósito da vida humana? É conhecer a Deus. 2. Por que você diz isso? Porque ele nos criou e nos colocou no mundo para ser glorificado em nós. E essa é, certamente, a razão para conectar a nossa vida à sua glória, já que ele é o seu início. 3. E o que é o bem supremo dos homens? O mesmo. 47 144. Isso proíbe toda e qualquer imagem? Não, mas proíbe fazer qualquer imagem para retratar Deus ou para adorar. 145. Por que é ilícito representar Deus visivelmente? Porque não há conformidade entre ele, que é um Espírito eterno incompreensível, e um objeto físico, morto, corruptível e visível. 48 Institutas, 1.11.6-7. 49 Ibid., 1.11.7. 50 Ver Patrick Collinson: From iconoclasm to iconophobia (Reading: The University of Reading, 1986). 51 CR, 10.7. 52 Ibid., 2.17. 53 Ibid., 2.16. 54 Comm. Sl 81.3. 55 Institutas, 1.11.12. 56 Sem dúvida ele pensa em Cícero, que cita Timaeus, de Platão, na sua obra Tusculan disputations (1.36.64). Leon Wenceliusapresenta uma extensa discussão sobre essa e outras passagens em diversas partes dos escritos de Calvino. Wencelius, L’esthétique de Calvin, 97-126. 57 Ver S. M. Jackson e C. N. Heller (orgs.), Commentary on true and false religion (Peabody: Labyrinth Press, 1981). 58 Christopher Richard Joby, Calvinism and the arts: A reassessment (Leeuven, Paris, Dudley: Peeters, 2007). 59 Ibid., 86. 60 Ibid., 87. 61 Citado em Benedict, “Calvinism as a culture?” 32. 62 Bíblias ilustradas seriam desencorajadas em Genebra depois de 1566, porque os artistas estavam tornando-se demasiadamente criativos. Ibid., 33. 63 Les cent cinquante Psalmes du royal prophete Dauid (Paris: Par Iean Ruelle demourant en la rue S/. Jacques a l’enseigne S. Nicolas, 1554?). Essa obra está disponível online em http://www2.lib.virginia.edu/rmds/portfolio/gordon/religion/poictevin.html 64 Ver Max J. Friedländer, “Zu Jan Swart van Groningen”, Oud Holland 63, 1-6 (1948): 2-9. 65 J. Q. Van Regteren Altena, “Teekeningen van Dirck Crabeth”, Oud Holland 55, 1-6 (1938): 107- 14. 66 Aqui é retratado o rei Salomão. Filipe II havia desposado recentemente Maria Tudor e se imaginava um segundo Salomão católico. Dirck Crabeth está dizendo: “Sim, mas apenas se você seguir os caminhos do Senhor”. 67 A Segunda confissão helvética exigia que os edifícios escolhidos para serem igrejas fossem “expurgados de tudo que não seja adequado à igreja” e que fossem banidos “vestimentas luxuosas, todo orgulho e tudo que seja impróprio à humildade, disciplina e modéstia cristãs” (XXII). 68 Institutas, 1.11.13. A palavra usada por Calvino, imagines, tem sentido um pouco mais amplo do que a palavra “imagens” e provavelmente referia-se ao simbolismo em geral. 69 Joby, Calvinism and the arts, 91. 70 Os termos são extraídos de Catharine Randall, Building codes: The aesthetics of Calvinism in early modern Europe (Filadélfia: University of Pennsylvania Press, 1999), 26. 71 Ver, por exemplo, a cathedral de St. Giles, Edimburgo, e a de St. Bavokerk, Haarlem. Joby, Calvinism and the arts, 95-101. 72 Ver André Biéler, Liturgie et architecture: Le temple des chrétiens (Genebra: Labor et Fides, 1961). 73 Por exemplo, o projeto semelhante a celeiro usando longarinas era derivado de estruturas rurais das Cevenas. Ver Hélène Guicharnaud, “An introduction to the architecture of protestant temples”, em Finney (org.), Seeing beyond the Word, 141. 74 Ou, segundo alguns, para lembrar aos observadores católicos romanos que Pedro (que eles consideram ter sido o primeiro papa) traiu Cristo três vezes antes de o galo cantar. 75 Jérôme Cottin, Le regard et la parole: Une théologie protestante de l’image (Genebra: Labor et Fides, 1994), 303-4. 76 Olivier Millet, Calvin: Un home, une œuvre, un auteur (Gollion, Switzerland: Infolio, 2008), 167. 77 A discussão que se segue é extraída de H. R. Rookmaaker, Modern art and the death of a culture, 16-19. Ver também Joby, Calvinism and the arts, caps. 5–7. 78 H. R. Rookmaaker, Modern art and the death of a culture, 18. 79 Ver H.-M. Rotermund, “The motif of radiance in Rembrandt’s Biblical drawings, em Journal of the Warburg and Courtauld Institutes 15, 3-4 (1952): 101-21. 80 Joby, Calvinism and the arts, 161-69. 81 Christian Tümpel: “Die reformation und die Kunst der Niederlande”, em Werner Hoffman (org.), Luther und die Folgen für die Kunst (Munique: Prestel, 1983), 314-15. 82 H. R. Rookmaaker, Modern art and the death of a culture, 23. 83 Marten de Klijn, De invloed van het Calvinisme op de Noord-Nederlandse landscapschilderkunst, 1570-1630 (Apeldoorn: Willem de Zwijgerstichting, 1982). 84 E. John Walford, Jacob van Ruisdael and the perception of landscape (Londres: Yale University Press), 1991. 85 Ver Mariët Westermann, The art of the Dutch republic, 1585-1718 (Londres: Laurence King Publishing, 2004), 104. 86 Um bom website é www.oldmasterprint.com, especialmente a página “Early flemish landscape from the sixteenth century”, http://www.oldmasterprint.com/xxd.htm 87 Boudewijn Bakker, “Levenspelgrimage of vrome wandeling? Claes Janszoon Visscher en zijn serie ‘Plaisante Plaetsen’”, Oud Holland 107, 1 (1993): 97-116. 88 Ver, por exemplo, Reindert L. Falkenburg, “Landschapschilderkunst en doperse spiritualiteit in de zeventiende eeuw – een connectie?” Doopsgezinde Bijdragen 16 (1990): 129-53. 89 H. Leefland, “Het landschap in boek en prent”, em Boudewijn Bakker, Nederland naar’t leven: Landschapsprenten uit de Gouden Eeuw (Zwolle/Amsterdã: Waanders, 1993), 18-32. 90 Reindert L. Falkenburg, “Calvinism and the emergence of Dutch seventeenth-century landscape art”, em Paul Corby Finney (org.), Seeing beyond the Word: Visual arts and the Calvinist tradition (Grand Rapids, 1999), 364. 91 Isso é verdadeiro nos Estados Unidos, onde os Fundadores compartilhavam elementos das duas. Nem todo movimento iluminista foi tão secular quanto o francês. Na Holanda havia mais congruência. 92 Ver Carl C. Christensen, “The Reformation and the decline of German art”, em Central European history 6 (1973): 207-32. 93 John Michael Montias, “Works of art in seventeenth-century Amsterdam: An analysis of subjects and attributions”, em David Freedberg e Jan de Vries (orgs.), Art in history/History in art: Studies in seventeenth-century Dutch culture (Santa Monica, CA: Oxford University Press, 1991), Quadro 5. 94 Roger Chartier e Lydia G. Cochrane, On the edge of the cliff: History, language and practices, Parallax: Re-visions of culture and society (Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1996), 40- 43. Ver também Roger Chartier, Forms and meanings: Texts, performances, and audiences from codex to computer, New cultural studies (Filadélfia: University of Pennsylvania Press, 1995), 83-87. https://www.oldmasterprint.com/ https://www.oldmasterprint.com/xxd.htm C 4 Contribuições de Calvino para a teoria e a política econômicas Timothy D. Terrell omo teólogo e conselheiro estatutário da cidade de Genebra, João Calvino fez contribuições tão vitais para a Reforma protestante que dificilmente podemos conceber a Reforma sem a sua obra. Também nos será difícil imaginar o desenvolvimento da civilização ocidental orientada para o mercado sem Calvino e seus seguidores se apreciarmos devidamente o seu impacto na teoria econômica e no governo. A obra teológica de Calvino era eminentemente prática, não apenas pelo seu incentivo à piedade pessoal, mas também nos modos como informava a participação do cristão em questões públicas. Como Alister McGrath ressaltou, “A visão de Calvino da fé cristã ia muito além da piedade de uma fé privatizada ou dos enigmas cerebrais de uma teologia intelectualizada. Para Calvino, a teologia oferecia uma estrutura para o envolvimento com a vida pública”.1 Embora as ideias de Calvino sejam frequentemente associadas a uma “tirania do puritanismo”2 (nas palavras de Max Weber) ou a uma teocracia sisuda e arrogante, na verdade o pensamento de Calvino contribuiu para a supressão da tirania. E, embora Calvino certamente tenha mantido alguns dos erros do seu tempo, sua obra aprimorou a teoria econômica e o governo, e levou a defesas morais duradouras da liberdade. Durante toda a sua vida, Calvino teve interesse em questões políticas, como ressaltou Douglas Kelly.3 No entanto, o objetivo deste ensaio não é elucidar as ideias de Calvino sobre os propósitos gerais do governo civil ou a estruturação pela qual um governo cristão deve operar. Em vez disso, o objetivo aqui é mostrar como o pensamento de Calvino transformou o pensamento econômico e a política econômica. É evidente que há uma probabilidade de haver substanciais áreas de sobreposição com a filosofia política. Em particular, as ideias de Calvino sobre governo incluíam limitações sobre a autoridade do magistrado civil, as quais tendiam a aumentar a liberdade econômica. A discussão de outras questões políticas, como o relacionamento entre as autoridades civis e eclesiásticas, será deixada para outros.4 Há várias áreas nas quais a obra de Calvino aprimorou a defesa daliberdade econômica. Primeira, a ética calvinista de trabalho forneceu uma defesa das ocupações “seculares”, para que, nas sociedades influenciadas pelo calvinismo, os comerciantes e industriais fossem menos comumente vistos como cristãos de segunda classe. Segunda, as ideias de Calvino sobre juros e usura marcaram um avanço importante no liberalismo, em oposição às restrições inconsistentes e o pensamento geralmente confuso da época. Terceira, o pensamento calvinista – talvez devido a conflitos com governantes católicos – começou a reivindicar ao magistrado civil limites que forneceram uma base ética para uma política econômica de laissez- faire. O espírito do capitalismo e a ética calvinista Max Weber observa a frequente correlação entre o calvinismo e o sucesso nos negócios: Um olhar sobre as estatísticas ocupacionais de qualquer país de composição religiosa mista traz à tona, com notável frequência […] o fato de que os líderes de negócios e proprietários de capital, bem como as categorias mais elevadas de mão de obra qualificada, e mais ainda o pessoal mais técnica e comercialmente treinado dos empreendimentos modernos, são, em sua esmagadora maioria, protestantes.5 É característico e, em certo sentido, comum que, nas igrejas huguenotes francesas, monges e homens de negócios (comerciantes, artesãos) eram particularmente numerosos entre os prosélitos, especialmente na época da perseguição. Até mesmo os espanhóis sabiam que a heresia (isto é, o calvinismo dos holandeses) promovia o comércio, e isso coincide com as opiniões expressadas por Sir William Petty na sua discussão sobre os motivos do desenvolvimento do capitalismo na Holanda. Gothein denomina corretamente a diáspora calvinista de sementeira da economia capitalista.6 Uma pesquisa informal da história econômica fornece vários exemplos, não necessariamente confiáveis, de relativo sucesso em países com cenário calvinista. A Grã-Bretanha predominantemente calvinista foi bem-sucedida em termos econômicos, juntamente com muitas ex-colônias (p. ex., os Estados Unidos, a Austrália, a Nova Zelândia e Hong Kong). Em contraste, os católicos da Espanha e de Portugal não só ficaram atrás da Grã-Bretanha, mas deixaram um legado colonial geralmente não estelar (p. ex., o México, as Américas Central e do Sul, as Filipinas e Macau). É difícil resistir às comparações, embora os críticos tenham, há muito tempo, atacado essas conexões empíricas. Em essência, o argumento de Weber é que o protestantismo levou ao capitalismo ao elevar a mordomia ascética a uma virtude para todos os cristãos em seus chamados, não apenas os monges. A ideia do chamado levou os calvinistas a serem menos de outro mundo e mais focados neste mundo, em comparação com outras religiões e seitas. Como escreveu Anthony Giddens, isso “projeta um comportamento religioso no mundo do dia a dia e contrasta com o ideal católico da vida monástica, cujo objetivo é transcender as exigências da existência mundana”.7 Dizendo de outra maneira, o homem que é “tão focado no céu que se torna inútil na terra” não seria um calvinista. Weber estava bem ciente de que nenhum fator isolado poderia explicar o florescimento de economias de mercado em algumas nações e a estagnação de outras nações. Todavia, os outros fatores que podem ajudar a explicar o surgimento do capitalismo são de fato poderosos. Os críticos de Weber argumentaram que ele subestimava as contribuições católicas para o surgimento do capitalismo. Inovação financeira, um “espírito capitalista” e correspondente sucesso nos negócios seriam encontrados em áreas católico-romanas, como o norte da Itália, enquanto uma das áreas mais rigorosamente calvinistas do mundo, a Escócia, manteve-se relativamente subdesenvolvida.8 Houve também os calvinistas financeiramente bem-sucedidos que eram bons mordomos, mas não ascetas – eles não se importavam com o consumo abundante. Contra Weber, Murray Rothbard acreditava que a ideia de Calvino do chamado não resultou no capitalismo, mas pode ter afetado o pensamento econômico ao glorificar o trabalho. A Grã-Bretanha calvinista produziu Adam Smith, um presbiteriano liberal que, depois de David Hume, chegou perto de uma teoria do valor-trabalho: O valor de qualquer bem […] para a pessoa que o possui, e que significa ela mesma não o usar ou consumir, mas trocá-lo por outros bens, é igual à quantidade de trabalho que a capacita a comprá-lo ou controlá-lo. Portanto, o trabalho é a verdadeira medida do valor de troca de todos os bens.9 Mais tarde, Karl Marx incorporaria à sua própria obra o erro da teoria do valor-trabalho, com consequências desastrosas. Marx argumentou que, se o trabalho era a fonte de toda a riqueza, então, se o proprietário de capital extraísse qualquer parte do valor da produção para si mesmo, aquele valor só poderia ter sido injustamente extraído do trabalhador. As obras de economistas como Jean-Baptiste Say, Jules Dupuit, William Stanley Jevons e Leon Walras finalmente empurraram o pensamento econômico em direção à teoria da utilidade, como substituto para a teoria do valor-trabalho. Com a teoria da utilidade, o valor de qualquer bem ou serviço pode variar de pessoa para pessoa, dependendo de quão útil ele é para o indivíduo. Portanto, o valor não é algo a ser descoberto, mas sim imputado ao bem ou serviço pelo avaliador. Além disso, pelo fato de compradores e vendedores poderem atribuir valores diferentes ao mesmo bem, torna-se possível a troca mutuamente benéfica. Isso já estava claro no tempo de Aristóteles,10 embora tenha levado mais de dois mil anos para que o pensamento econômico adotasse plenamente a ideia. Ao sustentar que o calvinismo incentiva uma teoria do valor-trabalho, Rothbard segue essencialmente Emil Kauder: Calvino e seus discípulos colocaram o trabalho no centro de sua teologia social. […] Todo o trabalho desta sociedade é investido de aprovação divina. Qualquer filósofo social ou economista exposto ao calvinismo será tentado a conferir ao trabalho uma posição elevada no seu tratado social ou econômico, não havendo melhor modo de enaltecer o trabalho do que combinando o trabalho com a teoria do valor-trabalho, tradicionalmente a própria base de um sistema econômico. Assim, o valor torna-se valor do trabalho, que não é meramente um instrumento científico para mensurar relações de troca, mas também o vínculo espiritual que combina a Vontade Divina com a vida econômica do dia a dia.11 Conquanto elogie o trabalho diligente e intencional, o calvinismo pode ter incentivado a acumulação de capital. Weber observou a ênfase calvinista no sucesso na vocação de uma pessoa, bem como a não ênfase no consumo. Incentivar a produção numa vocação e o ascetismo no consumo leva a vários problemas, o que afetou negativamente o pensamento de Adam Smith e intrigou Weber. Claramente, tudo que é produzido e não consumido imediatamente é poupado. A poupança em si tornou-se importante para um erro em Smith. Como Edwin West escreveu, “Como um prudente mordomo da propriedade de um aristocrata escocês, Smith mal conseguia disfarçar uma forte preferência pessoal por muita frugalidade privada e, portanto, por ‘trabalho produtivo’, no interesse da acumulação para o futuro pela nação”.12 Essa poupança leva inevitavelmente à acumulação de capital. Uma sociedade que possui quantidades relativamente grandes de capital irá tornar-se mais especializada na produção. Os trabalhadores necessitarão de mercados maiores para praticarem seus comércios especializados, e os produtores de bens de capital e de consumo especializados necessitarão de populações maiores para as quais vender os seus produtos. Como Adam Smith ressaltou, a divisão do trabalho é limitada pela extensão do mercado. Na medida em que o capital aumenta, do mesmo modo aumenta também a pressão por um mercado maior. Na medida em que incentivava a acumulação de capital, o calvinismo também geraria um grupo de proprietários de capital interessados na preservação dos direitos de propriedade sobre o seu capital. Esse grupo de interesse em desenvolvimentonão só incentivaria modificações na lei civil para proteger essa propriedade contra depredações por ladrões e pelo Estado, mas pressionaria o próprio protestantismo a enfatizar os direitos de propriedade individual em oposição ao coletivismo coercitivo. É esse último ponto que H. M. Robertson está argumentando ao escrever que a “doutrina do ‘chamado’ não produziu um espírito de capitalismo. O espírito de capitalismo foi responsável por uma gradual modificação e desgaste da doutrina puritana”.13 É possível que o capitalismo tenha reforçado o calvinismo tanto quanto o calvinismo reforçou o capitalismo. Ekelund e Hebert ressaltam que até mesmo a forma protestante de culto e a rejeição do calendário católico podem ter impactado o crescimento econômico: Geralmente […] os rituais protestantes eram mais simples, com menos pompa e ostentação, e as igrejas eram menos elaboradas. Muito menos recursos eram dedicados às igrejas protestantes em comparação com as grandes catedrais católico-romanas da Europa. Além disso, é totalmente possível que a rejeição, pelo protestantismo, das numerosas festas sancionadas pela Igreja Católica tenha levado a um aumento do número de dias úteis, aumentando com isso o fator de trabalho sob os regimes protestantes. Adicionalmente, o sistema de “indulgências por peregrinações” a igrejas e lugares sagrados diminuiu drasticamente nos países protestantes, um fator que também pode ter contribuído para o crescimento econômico.14 Inadvertidamente, Calvino pode ter fomentado a liberdade econômica de outro modo muito mais amplo. Ao promover a Reforma, Calvino deu impulso a um concorrente à Igreja Católica Romana. Ernst Troeltsch, que argumentou que a Reforma protestante havia perpetuado um “espírito medieval” por tentar resistir à modernização, afirmou que a Reforma havia, intencionalmente, modernizado a Europa. As influências modernizadoras foram “principalmente efeitos indiretos e inconscientemente produzidos […] até mesmo em influências secundárias acidentais e, novamente, em influências produzidas contra a sua vontade”.15 Robert Nelson, traçando paralelos entre o puritanismo calvinista ascético e o moderno movimento ambientalista, observa que, de todos os efeitos do calvinismo, um dos impactos mais importantes foi simplesmente a eliminação da autoridade da Igreja Católica Romana sobre vastas áreas da Europa, abrindo assim uma nova latitude para a experimentação em todos os tipos de questões sociais e intelectuais. É muito provável que Calvino tenha se sentido perturbado – horrorizado pode ser a melhor palavra – por muitas das características da modernidade que, hoje, são parcialmente atribuídas ao legado do calvinismo. Nessa aversão pelos desenvolvimentos modernos, Calvino agora conseguiria encontrar alguns novos compatriotas surpreendentes – um número aparentemente crescente de pessoas que acreditam que as Américas pré-colombianas, outras sociedades primitivas em todo o mundo, os relacionamentos “naturais” entre as criaturas do mundo animal e, aparentemente, virtualmente qualquer existência pré-moderna e/ou animal possui uma reputação moral superior à da nossa civilização atual.16 É inimaginável que Calvino tivesse atribuído uma superioridade moral a sociedades primitivas pagãs; certamente, Calvino não era primitivista. Assim, os paralelos traçados por Nelson entre o ascetismo calvinista e as sociedades não desenvolvidas são realmente fracos. Contudo, é irônico que o ascetismo calvinista possa ter, inadvertidamente, promovido a característica de consumo de luxo de tantas nações capitalistas. Calvino sobre a atividade mercantil Calvino tinha reservas quanto à atividade mercantil. Seus escritos evidenciam não pouca vituperação aos empresários. Gary North afirma que Calvino “tinha pouco respeito pelos empresários em geral”, a quem ele chamava “’aqueles ladrões’ que esperam por uma catástrofe para aumentarem os preços dos seus produtos”.17 No entanto, embora possa ter tido pouca consideração pelo egoísmo do empresário, Calvino estava longe de condenar essa atividade como vocação. De fato, em comparação com muitos do seu tempo, Calvino era pouco hostil em relação aos comerciantes. Como observa Stone, o mundo real de Calvino envolvia lojistas, comerciantes e artesãos, bem como clérigos e acadêmicos. Ele era relativamente desprovido da aversão medieval pelo comércio, tanto quanto da preferência de Lutero pela vida pastoral. Seu mundo era o do comércio urbano e ele o apoiava. A troca de dinheiro e bens era apoiada. A instituição do dinheiro em si não era suspeita. Deus havia provido a instituição para o bem da humanidade.18 Seria também difícil explicar o notável aumento do número de comerciantes trabalhando na Genebra de Calvino se as políticas calvinistas em relação aos comerciantes fossem hostis. E. William Monter encontra um aumento dos comerciantes, de cinquenta em 1536 para 180 nos últimos anos da década de 1550.19 A liberdade de consciência levou Calvino a defender que as partes de um contrato deviam ter a liberdade de determinarem os termos do seu acordo. Como escreve North: “Calvino […] favoreceu o princípio geral da aliança; homens que celebram alianças devem ser limitados por consciências não restringidas por inumeráveis pronunciamentos legais”.20 North também observa: “Embora não completamente autônoma e soberana, a consciência do homem recebeu um novo papel a desempenhar na administração da propriedade. […] A consciência tinha mais responsabilidade e menos diretrizes para orientar a ação humana”.21 Calvino compreendia alguns dos fundamentos de economia que permitiam que os negócios prosperassem. McGrath explica: Embora não tenha desenvolvido uma ‘teoria econômica’ em qualquer sentido abrangente do termo, ele parece ter sido plenamente consciente de princípios econômicos básicos, reconhecendo a natureza produtiva do capital e do trabalho humano. Ele elogiou a divisão do trabalho pelos seus benefícios econômicos e o modo em que ele enfatiza a interdependência humana e a existência social. O direito das pessoas de possuírem propriedade, negado pela ala radical da Reforma, era apoiado por Calvino.22 A defesa da propriedade privada por Calvino (em oposição aos anabatistas do seu tempo, que apoiavam a abolição da propriedade privada) é vista na seguinte seleção de Four last books of the Pentateuch [Os quatro últimos livros do Pentateuco], Êxodo 16.17: Isso porque, para a preservação da sociedade humana, é necessário que cada um possua o que é seu; que alguns adquiram propriedade por compra, que para outros isso deva vir por herança, para outros pelo título de apresentação; que cada um aumente a sua parte proporcionalmente à sua diligência, força física ou outras qualificações. Enfim, o governo político exige que cada pessoa desfrute do que lhe pertence.23 Mais adiante no mesmo capítulo, Calvino indica que a transferência de riqueza para benefício dos pobres deve permanecer um ato voluntário, não coagido por pessoa alguma. Também Paulo faz a distinção com sabedoria, ao ordenar que deve haver uma igualdade, não decorrente de um uso promíscuo e confuso da propriedade, mas pelos ricos de maneira espontânea e generosa aliviando as necessidades dos seus irmãos, e não com tristeza ou por necessidade.24 Aparentemente, Calvino tinha uma compreensão pouco clara de algo que Adam Smith viria a ressaltar dois séculos e meio depois – que um bem não intencional poderia advir de uma atividade mal motivada. Ele observou: “Algo que não é nem abençoado nem desejável em si pode tornar-se algo bom para o devoto”.25 Dessa maneira, até mesmo o comerciante impulsionado por egoísmo poderia produzir algo bom. McGrath observa: “Uma cultura de livre empresa prosperou em Genebra, em grande parte graças à atitude benigna de Calvino para com a economia e as finanças”.26 Contudo, seria um erro classificar Calvino como um defensor da política econômica de laissez-faire. Calvino pode ter reconhecido a legitimidade dos negócios em geral, mas via um papel tão substancial para a regulação econômica,que não pode ser considerado um defensor incondicional dos mercados livres.27 O desenvolvimento do pensamento calvinista em séculos posteriores pode ter fornecido apoio a uma maior liberdade econômica, mas o próprio Calvino viu muitas razões para a intervenção dos governos na economia. O governo municipal de Genebra apoiava um hospital (que também servia como orfanato, agência de bem-estar social e serviço de saúde pública), fornecia educação pública, regulava os preços e limitava os preços das gráficas (evidentemente, para o benefício das publicações da própria igreja).28 Jeannine Olson observa que o bem-estar público em Genebra foi, em grande parte, coincidente com as transformações semelhantes ocorridas em outros lugares da Europa: Em Genebra, o bem-estar social se assemelhava à organização de bem-estar de muitas outras cidades do início dos tempos modernos da Europa em sua conversão dos sistemas de bem-estar urbano de instituições descentralizadas geridas por ordens religiosas para sistemas centralizados controlados por conselhos municipais. Nas cidades que se tornaram protestantes, como Genebra, essa conversão frequentemente coincidia com a Reforma local; era necessário substituir as funções do bem-estar das ordens religiosas católico-romanas. Assim, quando Genebra se tornou protestante, as instituições de bem-estar da cidade foram transferidas para o controle do conselho municipal e centradas no hospital da cidade. A criação da Bourse française representou como que um afastamento dessa tendência à centralização, porque a Bourse era supervisionada por diáconos e pastores e financiada independentemente do conselho municipal.29 Stone observa que o intervencionismo calvinista teve amplo alcance. “Além do sistema de bem-estar e educação, a obra de Calvino e dos pastores foi buscar sugestões para os corrimãos e guarda-corpos para proteger as crianças em escadas e varandas. Lareiras e chaminés foram regulamentadas e foram feitos esforços para limpar a cidade e reparar as ruas.” Houve também “uma regulamentação estrita proibindo o recrutamento de mercenários de Genebra”.30 Vemos que a moderna esquerda cristã não teve de procurar muito para encontrar apoio na obra de Calvino. De fato, há muito no pensamento econômico do tempo de Calvino que pode aquecer o coração de um intervencionista. Calvino não era diferente de muitos acadêmicos e de alguns outros reformadores, como Martinho Lutero. Sobre o ensaio de Lutero “Comércio e usura”, de 1524, Gary North comenta: Sua perspectiva é medieval. Como os comentaristas escolásticos que o precederam, especialmente os dos séculos 12 e 13, ele se opunha à liberdade quantgo aos preços. Os comerciantes não podem seguir a regra de comprar barato e vender caro. “Numa base assim, o comércio pode ser nada mais do que assaltar e roubar a propriedade alheia. […] A regra não deve ser ‘eu posso vender as minhas mercadorias tão caro quanto puder ou desejar’, e sim ‘eu posso vender as minhas mercadorias como devo, ou seja, como é certo e justo’.” O problema para a análise de Lutero, como havia acontecido aos acadêmicos e canonistas escolásticos, dizia respeito aos limites éticos da equidade. Quão caro o comerciante pode vender?31 Cinco anos depois, no Catecismo Maior, Lutero escreveria sobre o mercado como um “covil de ladrões”, em que “todos fazem uso do mercado em sua própria maneira voluntariosa, orgulhosos e desafiadores, como se tivessem o direito normal de vender a um preço tão alto quanto desejarem e ninguém pudesse interferir”.32 O pensamento econômico de Lutero era confuso, e muitos dos outros pensadores econômicos da época não eram muito melhores. Calvino não promoveu o pensamento econômico por uma revolucionária eliminação de tudo que era antibíblico ou logicamente insustentável sobre a economia medieval. Ele absorveu e refletiu o ambiente do pensamento social cristão do século 16. É o substancial fardo de erro que permanece em Calvino que dá à moderna esquerda calvinista uma ligação justificável com a política social de Calvino.33 Parte disso pode ser visto nos comentários de Calvino sobre o que hoje seria chamado de um “salário mínimo”. Em Old Testament harmony [A harmonia da lei], Calvino escreveu: Recomenda-se humanidade a todos nós, para não acontecer de, enquanto os pobres trabalham a nosso serviço, abusarmos deles arrogantemente como se fossem nossos escravos ou sermos iliberais e mesquinhos em relação a eles, uma vez que nada pode ser mais injusto do que, tendo nos servido, eles não tenham, no mínimo, o suficiente para viver frugalmente.34 No entanto, Calvino quase chega a transformar essa exigência moral em obrigação legal. Segundo François Dermange, Calvino “faz distinção explícita entre essa interpretação religiosa da justiça e a justiça legal e política. Deus convoca as consciências a comparecerem perante o seu tribunal, não perante um juiz terreno; portanto, é preciso dizer que essa lei é ‘espiritual’”.35 Essa distinção está faltando em muitos estadistas moralmente preocupados da atualidade, que frequentemente agem como se, caso fosse prático, qualquer exigência moral devesse ser também uma exigência legal. Isso é um non sequitur* com consequências terríveis. Os cristãos de hoje com tendências esquerdistas costumam cometer um duplo erro na sua leitura de passagens bíblicas sobre a justiça. Primeiro, a justiça da distribuição de bens é determinada pela observação dos resultados em vez dos processos. Riqueza pode ser obtida sem coerção por trabalho voluntário e contrato, mas a distribuição é considerada injusta se for desigual. Segundo, as injustiças cometidas pelo Estado no processo de redistribuição dessa riqueza são consideradas menos problemáticas do que as injustiças iniciais do mercado. Como escreve Ronald Stone, O bem-estar das pessoas […] é uma clara responsabilidade do governo, como Calvino entendia. A tendência ao controle governamental dos negócios está clara nos escritos e ações de Calvino. As tendências de muitos calvinistas mais recentes ao apoio à economia de laissez-faire e ao darwinismo social não parecem encontrar base em Calvino. Certamente, a crueldade do darwinismo social desregrado não é consistentemente compatível com os ensinamentos de Calvino.36 É evidente que o socialismo também não seria “consistentemente compatível com os ensinamentos de Calvino”. Calvino era incoerente quanto às aplicações da sua teologia, particularmente se seu pensamento for examinado ao longo de várias décadas. Na prática, embora o hospital público de Genebra fosse financiado pelo governo municipal, houve importantes alternativas baseadas na igreja que revelavam a grande estima de Calvino pela caridade não governamental. Por exemplo, a Bourse française, que cuidava de refugiados, pobres, deficientes ou órfãos de Genebra, era uma organização privadamente financiada.37 Além disso, excetuando-se os impostos cobrados de todos, Calvino se opunha à retirada obrigatória de riqueza dos ricos para dar aos pobres. Calvino […] nos lembra de que a caridade não dispensa a justiça. Seu propósito é condenar juízes que querem “afastar-se da equidade em favor dos pobres”, em nome do evangelho, e “seguir uma ideia tola de misericórdia” favorecendo os pobres. Em nome da justiça, não deve haver qualquer questão sobre prover as necessidades dos destituídos causando danos aos ricos. O reformador concorda com Paulo: enquanto os ricos têm o dever de dar esmolas, não se deve obrigá-los a compartilhar as suas posses. Qualquer que seja o mérito de caridade e a preocupação de libertar os pobres da tirania, ninguém deve se desviar da justiça, nem um fio de cabelo sequer.38 A ligação que Stone faz do darwinismo às políticas de laissez-faire é do mesmo modo injusta. Políticas que permitem que recursos sejam alocados segundo acordos voluntários no mercado de trabalho tendem a resultar em recursos a serem destinados aos seus usos mais valorizados, pelo menos segundo a informação sobre valor disponibilizada por meio dos preços de mercado. Políticas que substituema alocação de mercado por coerção, como faz toda redistribuição administrada pelo Estado, tendem a resultar na destinação de recursos para os usos mais valorizados pelos magistrados civis encarregados da distribuição, sem o benefício da informação sobre preços. Se há uma competição de estilo darwinista na alocação de recursos, a competição para agradar os clientes pela finalidade de lucro (para que os produtores mais eficientes sobrevivam) é meramente substituída pela competição para obter poder político (para que os intermediários de riqueza mais eficientes sobrevivam). A competição darwiniana não desaparece quando poder coercitivo é concedido ao Estado, independentemente de quais possam ser as disposições constitucionais para a atribuição desse poder. Processos democráticos para atribuir poder coercitivo a representantes políticos não garantem que os recursos serão alocados com mais justiça do que o processo de mercado. O problema com o darwinismo social não é que as pessoas mais produtivas tendam a acumular uma maior amplitude de autoridade sobre os recursos. Isso pode não ser mais censurável do que, digamos, o darwinismo das ideias, no qual as melhores ideias são ouvidas e postas em prática. Em vez disso, o problema com o darwinismo social é que a autoridade sobre os recursos não é um fim em si mesma. A boa administração inclui atender a necessidades que não são bem comunicadas por meio de um sistema de preços de mercado. A pessoa tem uma condição para ser generosa para com os pobres, por exemplo. Isso não implica o emprego de poder coercitivo para extrair riqueza daqueles que são relutantes a serem tão generosos quanto os detentores do poder acreditam que eles deveriam ser. Nisso, os estudiosos modernos que encontram coerência entre Calvino e as políticas de livre mercado têm embasamento em Calvino. Calvino estava ciente (especialmente depois de ter testemunhado a perseguição de protestantes patrocinada pelo Estado) da necessidade de limites sobre o magistrado civil. Esses limites voltarão a ser analisados mais adiante neste capítulo. Calvino e os calvinistas sobre a usura Calvino promoveu um avanço duradouro no pensamento econômico ao criticar as proibições medievais à usura. Certamente Calvino não foi o primeiro a atacar a doutrina da usura e não foi consistente ao fazê-lo, mas contribuiu para o fim de uma proibição antibíblica e socialmente destrutiva. Num período em que as restrições quanto às exigências de juros estavam sendo corroídas por exceções e qualificações, Calvino apelou à consciência, afirmando que a autoridade civil não poderia restringir os termos de um contrato de empréstimo. Em decorrência do seu contato com o mundo dos negócios, Calvino sabia o suficiente para reconhecer o absurdo do argumento medieval de que o dinheiro era “estéril”. A esterilidade do dinheiro significava que o dinheiro em si não poderia gerar um retorno, de modo que um pagamento sobre o uso de dinheiro colocava necessariamente em situação pior o tomador do empréstimo. Porém, diferentemente de Lutero antes dele, Calvino via que ter o uso do dinheiro durante algum tempo daria ao tomador a possibilidade de comprar e vender com lucro antes de devolver o dinheiro. Uma vez que esse lucro era possível, o dinheiro não poderia ser estéril. Calvino escreveu: “O lucro não está no próprio dinheiro, mas no retorno que provém do seu uso”.39 Rejeitando a ideia de que as restrições sobre os juros presentes na lei mosaica eram aplicáveis em detalhes na atualidade,40 Calvino argumentou apenas que os juros não deveriam ser cobrados sobre os empréstimos feitos a pessoas pobres.41 É claro que, com a forte visão de Calvino sobre a autoridade do Estado, qualquer lei civil que restringisse o pagamento de juros precisaria ser cumprida. Assim como Lutero, a Genebra de Calvino limitava as taxas de juros a 5 por cento. Algum tempo depois, o máximo foi aumentado para 6,67 por cento.42 Calvino foi incoerente. Se, exceto no caso de empréstimos para os pobres, o pagamento de juros era legítimo, Calvino não deveria ter se oposto a alguém ser um agiota profissional. Contudo, ele opôs-se. Caberia a calvinistas posteriores solucionar essa incoerência. O calvinista holandês Claude Saumaise, também conhecido como Claudius Salmasius (1588- 1653), justificou não apenas a agiotagem profissional, mas também os empréstimos com juros a pessoas pobres. Saumaise viu que ter mais agiotas significava maior concorrência e, assim, taxas mais baixas. Portanto, era lógico que a existência de mais agiotas profissionais seria mais vantajosa para os pobres.43 Em sua maneira incisiva, Saumaise escreveu: “Prefiro ser chamado usurário a ser alfaiate”.44 O Antigo Testamento proibia somente os juros cobrados a compatriotas judeus; mesmo assim, aparentemente, para empréstimos caritativos (ver, p. ex., Lv 25.35-37); assim, muitas das restrições medievais que Calvino teria derrubado não tinham, de qualquer modo, base na lei divina. Porém, ao impor limites máximos às taxas de juros, Calvino (assim como Lutero) estava transcendendo a lei mosaica. Calvino havia insistido em que os credores usassem a Bíblia como um guia para determinar o que é “certo e justo” no tocante a taxas de juros, negligenciando o que deveria ter sido óbvio para um estudioso da Bíblia como ele – que a Bíblia nada diz sobre qual taxa é certa ou justa. Os juros são permitidos ou proibidos; a usura, corretamente definida, é a cobrança de juros de qualquer valor nos casos em que é proibida. O Antigo Testamento nunca impõe um limite às taxas de juros. Estudiosos anteriores, em grande parte na tradição escolástica católico- romana, chegaram essencialmente às mesmas visões de Calvino. Conrad Summenhart (1465-1511) defendeu, em 1499, um aumento drástico do número de exceções à proibição básica da usura. Porém, foi útil Calvino ter rejeitado a proibição formal. Murray Rothbard, não amigo do calvinismo, elogiou Calvino por, pelo menos, prescindir da proibição eclesiástica sobre os juros. O resultado estranho foi que, ao restringir a sua explícita doutrina pró-usura com a qualificação, na prática Calvino convergiu para os pontos de vista de acadêmicos como Biel, Summenhart, Cajetan e Eck. Calvino começou com uma vasta defesa teórica da cobrança de juros e, então, restringiu-a com qualificações; os acadêmicos liberais começavam com a proibição da usura e, depois, a qualificavam. Porém, embora na prática os dois grupos convergissem e os acadêmicos, ao descobrir e elaborar sobre as exceções à proibição da usura, tivessem sido teoricamente mais sofisticados e produtivos, a ousada ruptura de Calvino com a proibição formal foi um grande avanço libertador no pensamento e na prática ocidentais. Isso também transferiu da igreja ou do Estado para a consciência da pessoa a responsabilidade pela aplicação dos ensinos a respeito da usura. Como Tawney coloca a questão, “A característica importante na sua discussão [de Calvino] da questão é que ele assume o crédito como sendo um incidente normal e inevitável na vida de uma sociedade”.45 O calvinismo e os limites ao magistrado civil A doutrina calvinista da depravação total aplicava-se igualmente aos cidadãos e ao magistrado civil, e levava à conclusão – se não com muita coerência no próprio Calvino, então finalmente nos seus seguidores – de que o poder do magistrado civil deve ser cuidadosamente circunscrito. Logo no início, Calvino se atinha à visão de que o rei estava acima da lei, a doutrina do princeps legibus solutus est. Todavia, Calvino gradualmente mudou seu pensamento. Embora fosse atraído pela ideia de um magistrado civil esclarecido com poder substancial, Calvino tinha suficiente suspeita do caráter dos funcionários governamentais para recomendar uma separação de poderes. Isso estava evidente já nas Institutas de 1536 (a edição final citada é a de 1559) e, em 1543, na sua reforma cívica que exigia a concordância de dois conselhos locais antes que uma lei pudesse ser sancionada.46 Nas Institutas, Calvino escreveu: Não vou negar que a aristocracia,ou um sistema composto por aristocracia e democracia, supera de longe todos os outros, não por si mesmo, mas porque é muito raro os reis se controlarem de tal maneira que a sua vontade nunca discorde do que é justo e certo; ou que eles tenham sido dotados de tal enorme entusiasmo e prudência, que cada um saiba quanto é o suficiente. Portanto, o erro ou o defeito dos homens faz com que, para muitos, seja mais seguro e mais suportável exercer o governo de modo a poderem ajudar uns aos outros, ensinar e admoestar uns aos outros; e, se alguém afirmar-se injustamente, poderá haver vários censores e mestres para conter sua obstinação.47 Como Calvino pregou em 1562, “O orgulho cega [os príncipes] tão totalmente, que eles pensam que devem ser colocados no nível de Deus”.48 Este provérbio tem sido usado por tiranos há muito tempo: “O que importa é a vontade, não a razão”. Em outras palavras, eles não se consideram sujeitos à lei alguma. […] Os governantes julgam que tudo é legítimo para eles e não se consideram sujeitos à lei de Deus, nem consideram que a sua adoração diz respeito a eles. Nisso eles estão terrivelmente enganados. […] Embora o poder dos príncipes terrenos seja grande neste mundo, ainda assim eles precisam perceber que são ministros e servos de Deus e do povo.49 Nessa época, Calvino era atraído pela ideia de um magistrado civil esclarecido seguindo a regra da lei. Em 1561, Calvino defendeu um estilo republicano de governo, citando Deuteronômio 1 como apoio.50 Contudo, apesar de sua inclinação à eleição popular de funcionários públicos (não a ponto de rejeitar a monarquia), Calvino tinha uma visão sombria da capacidade de homens comuns, não políticos, sequer pensarem sobre questões constitucionais, escrevendo: “Obviamente, seria um passatempo inútil para os homens da vida privada, que são desqualificados para deliberar sobre a organização de qualquer comunidade, debater sobre qual seria o melhor tipo de governo para o lugar onde vivem”.51 Além disso, Calvino acreditava que o simples fato de pensar em mudar a forma de governo sob a qual se vivia era “tolo” e “prejudicial”.52 Calvino não era um revolucionário, tanto que ensinou a não resistência ao governo, pelo menos por cidadãos individuais. Nas Institutas, ele escreveu que “é nosso dever mostrar-nos conformes e obedientes a quem quer que ele coloque sobre os lugares onde vivemos”,53 e no seu Comentários sobre Romanos, culpou pela tirania as pessoas sujeitas a um tirano: “Pois, uma vez que um príncipe perverso é o flagelo do Senhor para punir os pecados do povo, lembremo-nos de que acontece por culpa nossa essa excelente bênção de Deus se transformar em maldição”.54 No entanto, Calvino não rejeitava a resistência por parte dos magistrados menores. Estou falando o tempo todo de pessoas sem cargo. Porque, se houver agora algum magistrado do povo, nomeado para conter a obstinação dos reis […] estou tão longe de proibi-los de suportar, em conformidade com o seu dever, a feroz licenciosidade dos reis, que, se eles fizerem vista grossa para reis que violentamente atacarem e agridirem as pessoas comuns humildes, declaro que sua dissimulação envolve perfídia nefasta, porque eles traem desonestamente a liberdade das pessoas, das quais eles sabem ter sido nomeados protetores por ordenança de Deus.55 Além disso, os seguidores de Calvino tornaram-se extremamente revolucionários, alguns até mesmo defendendo o assassinato de tiranos.56 Kelly escreve: Calvino […] estava determinado a mostrar que os verdadeiros protestantes eram leais ao magistrado civil e não eram, em sentido algum, revolucionários políticos. Esse desejo de justificar outros evangélicos da acusação de radicalismo político é, sem dúvida, parte da razão pela qual Calvino foi excepcionalmente conservador durante toda a sua vida ao se opor fortemente a movimentos revolucionários contra maus governantes. […] Calvino dissociou-se de maneira impaciente da posição mais radical de John Knox de resistência civil, na Escócia, no final da década de 1550. Todavia, o pensamento de Calvino sofreu alguma evolução quanto a esse aspecto na década de 1560, durante as guerras religiosas na França.57 Em 1561, comentando sobre Daniel 6.22, Calvino escreve: “Porque os príncipes terrenos deixam de lado o seu poder quando se levantam contra Deus, sendo indignos de ser contados como parte da humanidade. Em vez disso, devemos desafiá-los totalmente em vez de obedecer a eles”.58 Um dos seguidores mais revolucionários de Calvino, Philippe du Plessis Mornay (1549-1623), acreditava que o propósito dos governos civis era proteger os direitos naturais das pessoas. Isso incluía o fundamento de um sistema econômico de livre mercado – o direito à propriedade privada. Além disso, esse direito e outros não podiam ser totalmente alienados do povo, pois este meramente delega a sua soberania e pode recuperá-la (via magistrados inferiores) se o governante tornar-se tirânico. A visão que Calvino tinha do papel limitado do magistrado civil, mesmo com suas incoerências referentes a questões políticas específicas, pode ter sido uma de suas contribuições mais importantes e duradouras. Aparentemente, Calvino reconhecia alguns dos perigos inerentes ao governo civil, mesmo ao defender esse governo contra seitas protestantes revolucionárias. Na medida em que prescrevia salvaguardas contra esse perigo inerente, como a separação de poderes, o republicanismo e a autoridade inalienável de magistrados menores em relação aos magistrados maiores, Calvino forneceu as bases para os baluartes institucionais da sociedade ocidental contra o planejamento central. No contexto do planejamento central ambientalmente orientado, E. Calvin Beisner argumentou que esse tipo de planejamento contradiz outro padrão moral cristão: evitar a soberba. Afirmar que um burocrata ou um comitê de burocratas pode ter conhecimento suficiente para planejar uma economia é reivindicar um dos atributos de Deus: a onisciência. Beisner escreveu: À luz da grande complexidade da sociedade humana e dos ecossistemas da terra, a humildade aplicada à gestão ambiental deve levar-nos a hesitar consideravelmente diante da noção de que sabemos o suficiente sobre eles para gerenciá-los (como oposto a fazer cumprir as regras de justiça) – particularmente de que somos suficientemente confiantes em nosso conhecimento para afirmar as nossas preferências de gestão em lugar das livres escolhas daqueles que discordam de nós.59 Com seu ceticismo quanto à capacidade da razão humana de chegar a uma solução “certa” para os problemas humanos, Calvino recomendava o cumprimento da lei. A lei serve como um guia muito mais confiável para o comportamento humano do que a nossa própria razão independente e, quando se trata da lei bíblica, ela acrescenta a confiança da revelação divina. Nossa própria natureza, totalmente depravada como é, precisa submeter-se a uma sabedoria externa a nós mesmos. Nas Institutas, Calvino nos lembra de que Paulo “referindo-se às duas Tábuas da Lei […] nos ordena a nos despirmos da nossa própria natureza e negarmos tudo que a nossa razão e a nossa vontade ditarem”.60 Em trecho anterior das Institutas, Calvino reconhece o poder humano da razão, mas sustenta que ele é fortemente limitado: Portanto, uma vez que a razão, pela qual o homem faz a distinção entre o bem e o mal, e pela qual ele compreende e julga, é um dom natural, ela não poderia ser completamente eliminada, mas foi parcialmente enfraquecida e parcialmente corrompida, de modo que suas ruínas disformes aparecem. João fala com esse mesmo sentido: “A luz resplandece nas trevas, e as trevas não prevaleceram contra ela” [Jo 1.5]. Nessas palavras, ambos os fatos são claramente expressados. Primeiro, na natureza pervertida e degenerada do homem algumas faíscas ainda brilham. Elas demonstram que ele é um ser racional, diferindo dos animais irracionais por ser dotado de entendimento. Contudo, segundo, eles exibem essa luz sufocada por densa ignorância, de modo que não pode se expressar eficazmente. Demodo semelhante, a vontade, por ser inseparável da natureza do homem, não pereceu, mas ficou tão ligada a maus desejos que não consegue esforçar-se pelo que é certo.61 Então, por extensão, com base nos comentários de Calvino sobre o altruísmo e a razão, nossa humildade deveria ampliar-se de maneira a respeitar a sabedoria coletiva dos outros como incorporada na lei e nas convenções, e ter o mais alto apreço pela lei de Deus. Afirmar a nossa própria capacidade de raciocinar de maneira independente por meio de problemas sociais (grande parte dos quais seria problemas econômicos, é claro) seria estimar exageradamente as nossas próprias capacidades de compreender as complexidades da sociedade humana e ditar o que é melhor. Calvino referiu-se ao que chamou instintos naturais e “razão manifesta” no seu esforço para explicar a convergência das convenções sociais. Ele encontrou evidências dessa sabedoria coletiva na própria existência de leis e convenções duradouras, em vez de na capacidade da pessoa de reavaliar e derrubar uma convenção obsoleta pela sua própria capacidade. Em relação ao estudo de “governo, administração do lar,62 todas as habilidades mecânicas e as artes liberais”, Calvino escreveu: dado que o homem é, por natureza, um animal social, ele tende, por instinto natural, a nutrir e preservar a sociedade. Consequentemente, observa-se na mente de todos os homens a existência de impressões universais de certo tratamento justo e ordem civis. Disso decorre não ser possível encontrar algum homem que não entenda que todo tipo de organização humana precisa ser regulado por leis, e que não compreenda os princípios dessas leis. Daí surge o invariável consentimento de todas as nações e dos indivíduos mortais no tocante às leis. Isso se dá porque as suas sementes foram, sem professor ou legislador, implantadas em todos os homens.63 Nesse caso, Calvino deliberadamente ignorou algumas importantes diferenças entre os homens quanto à forma das leis, e da disposição de outros para desconsiderarem essas leis. Todavia, mais importante aqui foi o seu ceticismo quanto à capacidade dos homens de aprimorarem essas leis e convenções com pura razão. Nas Institutas, ele escreveu: Como os filósofos fixaram limites para o certo e o honrável, dos quais eles derivam os direitos individuais e todas as virtudes, do mesmo modo também a Escritura não é desprovida da sua própria ordem nessa questão, mas se atém a uma lindíssima dispensação, muito mais certa do que todas as filosóficas. A única diferença é que, por serem homens ambiciosos, eles se esforçaram diligentemente para atingir uma requintada clareza de ordem para mostrar a agilidade de sua sagacidade. Porém, por ensinar sem afetação, o Espírito de Deus não aderiu tão exata ou continuamente a um plano metódico; contudo, quando estabelece um em qualquer lugar, ele sugere suficientemente que não deve ser negligenciado por nós.64 Não se deve confiar na razão do homem isoladamente. Como Calvino escreveu, “Pelo fato de a nossa lentidão precisar de muitos incentivos e ajudas, será proveitoso estabelecer, a partir de várias passagens da Escritura, um padrão para a condução da vida, para que aqueles que se arrependerem sinceramente possam não errar em seu zelo”.65 Portanto, para Calvino, a razão não orientada por princípios bíblicos mais elevados era propensa a erros. Zelo, ou boas intenções, não eliminava a tendência ao erro. A ordem não devia ser alcançada pelo raciocínio dos filósofos, mas por seguir a lei de Deus. Ele escreveu que a instrução bíblica tem como um aspecto principal uma “regra […] que não nos deixa vagar em nosso zelo pela justiça”.66 Assim, o calvinismo criou um conservadorismo no tocante às questões sociais – tradição em vez de novidade, dever em vez de comodismo, cumprimento de regras em vez de julgamentos ad hoc. A vida do calvinista deve ser governada por deferência à sabedoria dos outros e, mais especialmente, à lei de Deus. Assim, vemos nas sociedades influenciadas pelo calvinismo várias instituições que reconhecem a superioridade da convenção sobre a razão, por exemplo, uma tradição judicial de stare decisis, exigindo no julgamento uma forte consideração dos precedentes. Assim, os escritos teológicos de Calvino sobre as limitações éticas e intelectuais do homem têm profundas implicações para a economia, embora ele não reconhecesse explicitamente muitas delas ou até mesmo demonstrasse coerência em suas próprias conclusões sobre políticas. A descentralização inata do conhecimento econômico desafia qualquer tentativa de centralizar o controle informado. Economias baseadas no mercado usam preços para condensar e comunicar as informações dispersas entre bilhões de pessoas, a maioria das quais é estranha entre si. Os preços representam um resumo das avaliações do valor de diferentes recursos, bens e serviços. Num importante ensaio publicado em 1945, o economista Friedrich A. Hayek observou que o problema de comunicar informação relevante a qualquer planejador econômico central é, talvez, insuperável, porque a informação mais pertinente é, frequentemente, do tipo que não pode ser gravado e transmitido a um órgão econômico central. Segundo Hayek, os economistas têm procurado a melhor organização econômica: “se possuirmos todas as informações relevantes, se pudermos ter como ponto de partida um determinado sistema de preferências e se dominarmos o total conhecimento dos meios disponíveis”.67 Hayek ressaltou que essa abordagem é equivocada, porque ninguém jamais possui todas as informações relevantes ou tem certeza de preferências individuais. Mesmo hoje, aqueles que desejarem planejar a atividade econômica são incitados ao excesso de confiança por grandes quantidades de estatísticas agregadas e torrentes de outros dados. Os planejadores não percebem quão profundamente eles limitam as suas próprias capacidades ao reprimirem os preços que transmitem a informação mais importante. Embora Calvino não reconhecesse todas as implicações de sua doutrina da depravação total, os legisladores atuais que apreciam ideias de Calvino seriam céticos quanto à capacidade que eles mesmos têm de organizar uma economia. Conclusão As melhores contribuições de Calvino à economia e à filosofia política podem ter chegado até onde ele permaneceu mais próximo da sua área de relativa especialização – a teologia. Sua incoerência e confusão pareciam crescer à medida que ele se afastava dos seus fundamentos teológicos, embora tenha dado um importante passo à frente nas suas reflexões a respeito da usura. Todavia, em última análise a sua doutrina da depravação total, a sua teologia do trabalho e o ataque à dicotomia secular/sagrado pode ter tido maior importância do que os seus pontos de vista sobre questões específicas de política econômica. Além disso, embora Calvino (especialmente no início de sua vida) tenha mantido a uma posição indefensável sobre a autoridade do magistrado civil, o desenvolvimento da sua teologia levou a melhores resultados entre muitos dos seus seguidores. A contribuição do calvinismo à segurança moral e legal dos direitos de propriedade tem grande valor. Ao enfatizar o sucesso profissional e a poupança, o calvinismo incentivou a acumulação de capital, que pode ter levado a uma pressão por direitos de propriedade mais seguros. A incoerência de Calvino quanto aos direitos de propriedade foi suficiente para que os esquerdistas modernos possam encontrar na obra de Calvino muita munição contra o livre mercado. No entanto, a associação entre o calvinismo e os direitos de propriedade não é totalmente um acidente de pressões de grupos de interesse. Ao favorecer a liberdade cristã e a liberdade de consciência, Calvino eliminou algumas das barreiras à liberdade de contrato. As objeções morais de Calvino a alguns termos contratuais (p. ex., não fornecer um “salário mínimo”) nem sempre o levaram a defender a intervenção do Estado nesses termos. E, contrariamente às experiências comunistas da sua época, Calvino encontrou na Bíblia apoio à propriedade privada.Calvino frustrará qualquer leitor que tente encontrar uma defesa profunda da política de laissez-faire, e muito menos um apoio consistente ao estatismo. Contudo, apesar das suas incoerências, Calvino auxiliou o desenvolvimento da política econômica moralmente informada que hoje caracteriza o liberalismo clássico histórico. 1 Alister McGrath, “Calvino and the Christian calling”, First things 94 (jun-jul/1999): 31-35. 2 Max Weber, The protestant ethic and the spirit of capitalism (Nova York: Routledge, 2001), 37. 3 Douglas Kelly, The emergence of liberty in the modern world: The influence of Calvin on five governments from the 16th through 18th centuries (Phillipsburg, NJ: P&R Publishing, 1992), 4-5. 4 Um importante recurso a esse respeito é Ordenanças eclesiásticas, de Calvino (1541), no qual Calvino discute a necessidade da liberdade da igreja da interferência política. Ver David W. Hall, The legacy of John Calvin (Phillipsburg, NJ: P&R Publishing, 2008), 20-21. 5 Weber, Protestant ethic, 35. 6 Ibid., 43. 7 Anthony Giddens, na introdução a Weber, Protestant Ethic, xii. 8 Ver Murray N. Rothbard, Economic thought before Adam Smith, v. 1 (Londres: Edward Elgar, 1995), 142. 9 Adam Smith, An inquiry into the nature and causes of the wealth of nations (1776; reimpr. Indianapolis: Liberty Press, 1981), 47. 10 Aristóteles, Ética a Nicômaco, 1133a5-30. 11 Emil Kauder, A history of marginal utility theory (Princeton, NJ: Princeton University Press, 1965), 5. 12 Edwin G. West, Adam Smith (New Rochelle, NY: Arlington House, 1969), 173. 13 H. M. Robertson, Aspects of the rise of economic individualism ([1933]; Cambridge: Cambridge University Press, 1959), 27. 14 Robert B. Ekelund Jr. e Robert F. Hebert, A history of economic theory and method, 5ª ed. (Long Grove, IL: Waveland Press, 2007), 91. 15 Ernst Troeltsch, Protestantism and progress: A historical study of the relation of Protestantism to the modern world (Boston: Beacon Press, 1958), 87. 16 Robert H. Nelson, “Environmental Calvinism: The Judeo-Christian roots of ecotheology”, em Roger E. Meiners e Bruce Yandle (orgs.), Taking the environment seriously (Lanham, MD: Rowman and Littlefield, 1993), 251. 17 Gary North, “The economic thought of Luther and Calvin”, JCR 2, 1 (verão, 1975): 98. 18 Ronald H. Stone, “The Reformed economic ethics of John Calvin”, em Robert L. Stivers (org.), Reformed faith and economics (Lanham, MD: University Press of America, 1989), 41-42. 19 E. William Monter, Calvin’s Geneva (Nova York: John Wiley & Sons, 1967). 20 North, “The economic thought of Luther and Calvin”, 98. 21 Ibid. 22 McGrath, “Calvin and the Christian calling”, 31-35. 23 João Calvino, Four last books of the Pentateuch, em Stivers, Reformed faith and economics, 76. 24 Ibid. 25 João Calvino, citado em McGrath, “Calvin and the Christian calling”, 31-35. 26 Ibid. 27 Ver, p. ex., Fred Graham, The constructive revolutionary: John Calvin and his socio-economic impact (Atlanta: John Knox Press, 1971), 127-44. 28 Stone, “The reformed economic ethics of John Calvin”, 43. 29 Jeannine E. Olson, Calvin and social welfare: Deacons and the Bourse Francaise (Selinsgrove, PA: Susquehanna University Press, 1989), 12. 30 Stone, “The reformed economic ethics of John Calvin”, 43. 31 North, “The economic thought of Luther and Calvin”, 79. 32 Martinho Lutero, “Greater catechism” (1529), em Henry Wace e K. A. Buchheim (orgs.), Luther’s primary works (Londres: Hodder and Stoughton, 1896), 72. 33 Porém, algumas dessas ligações são capciosas. Por exemplo, com base em algumas das declarações de Calvino sobre comunidade, justiça e caridade, David Little argumenta que Calvino teria defendido a tributação progressiva. Como muitos da esquerda cristã são propensos a fazer, Little infere, de exortações à generosidade, que o Estado deve estar envolvido na ampla redistribuição da riqueza. Reconhecendo, até certo ponto, o seu próprio non sequitur, Little só pode afirmar que, para ser coerente, Calvino poderia estar inclinado a redistribuir via tributação progressiva, devido a ter defendido a intervenção do Estado em alguns outros casos. Dadas as incoerências temporais e lógicas em Calvino, essa é uma interpretação forçada. Até mesmo Little admite que a ênfase de Calvino “no livre consentimento em relações sociais econômicas e outras entra, como dizemos, em conflito com a ênfase compensatória numa ordem econômica obrigatória” e que o pensamento de Calvino sobre essas questões era ambivalente e incompleto. Ver David Little, “Economic justice and the grounds for a theory of progressive taxation in Calvin’s thought”, em Stivers, Reformed faith and economics, 61- 84. 34 João Calvino, Old Testament harmony, 3.114, sobre Dt 24.14-15, citado em François Dermange, “Calvin’s view of property: A duty rather than a right”, em Edward Dommen e James D. Bratt (orgs.), John Calvin rediscovered: The impact of his social and economic thought (Louisville: Westminster John Knox Press, 2007), 39. 35 Dermange, “Calvin’s view of property”, 40. * Uma conclusão que não decorre das premissas. (N. da R.) 36 Stone, “The reformed economic ethics of John Calvin”, 45. 37 Ver Hall, The legacy of John Calvin, 16-17. 38 Dermange, “Calvin’s view of property”, 43. 39 Citado em Stone, “The reformed economic ethics of John Calvin”, 41. 40 Na sua essência, a visão de Calvino sobre a lei seguia a tradição do direito natural. Calvino não considerava qualquer lei civil do Antigo Testamento como obrigatória para os cristãos atuais, exceto as implicações civis dos Dez Mandamentos. Ele acreditava que esse resumo da lei estava escrito na consciência dos seres humanos, de modo que, na medida em que até mesmo uma autoridade secular seguisse essa lei natural, ela poderia encontrar a aprovação cristã. Ver Institutas, 4.20.16. Ver também Dermange, “Calvin’s view of property”, 44-48. 41 Calvino desenvolveu sete restrições sobre os juros, brevemente discutidas por Christoph Stückelberger: “A primeira restrição é que ‘dos pobres não devem ser cobrados juros, nem deve ser constrangido alguém que sofre por um desastre ou está em situação de necessidade absoluta de pobreza. […] A segunda restrição é que aqueles que emprestam não devem ser tão focados no ganho a ponto de não contribuir com obras de caridade necessárias nem tão preocupados com colocar o seu dinheiro em segurança a ponto de não conseguir reconhecer o valor dos seus irmãos e irmãs pobres. […] A terceira restrição é que [no caso de um empréstimo com juros] nada deve acontecer que não esteja de acordo com a justiça natural, e não deve ser considerado apropriado em parte alguma ao analisarmos a questão segundo a injunção de Cristo (i.e., o que você quer que os outros façam a você etc.). […] [A quarta restrição é que] o tomador do empréstimo deve obter tanto ou mais do lucro com o dinheiro emprestado [quanto o credor]. […] Em quinto lugar, não consideremos o que é permissível em termos de costume comum recebido, nem avaliar o que é certo e justo segundo os padrões iníquos do mundo, mas usemos a Palavra de Deus como um preceito. […] Em sexto lugar, não consideremos somente o que é vantajoso para o indivíduo com quem temos de lidar, mas consideremos também o que é conveniente para o público, pois muito claramente os juros pagos por um comerciante é um subsídio público. Assim, devemos determinar adequadamente que o contrato é, geralmente, bom e não prejudicial. […] Em sétimo lugar, não infrinjamos o padrão permitido pelas leis civis da região ou localidade – embora isso nem sempre seja suficiente, porque essas leis permitem coisas que elas não seriam capazes de corrigir ou suprimir proibindo-as. Então, temos de preferir a justiça, que reduz os excessos”. Christoph Stückelberger, “Calvin, calvinism, and capitalism”, em Dommen e Bratt, John Calvin rediscovered, 128-29. 42 A teoria econômica preveria que o resultado de um teto para as taxas de juros seria uma escassez dos empréstimos, isto é, que os pretensos tomadores teriam dificuldade para encontrar um empréstimo. Calvinoe outros que apoiaram tais tetos substituíram os empréstimos a juros altos pela impossibilidade de encontrar um empréstimo. É claro que “presentes” para os credores e outros métodos de evadir as restrições não eram incomuns nessas circunstâncias e, provavelmente, reduziram alguns dos problemas criados pelos tetos. 43 Rothbard, Economic thought before Adam Smith, v. 1, 144. 44 Ibid., 145. 45 Ibid., 141. 46 Hall, The legacy of John Calvin, 24. 47 Institutas, 4.20.8. 48 João Calvino, Sermão 29, Sermons on 2Samuel: Chapters 1-13, trad. Douglas Kelly (Edimburgo: Banner of Truth, 1992). 49 Ibid. 50 Sobre Deuteronômio 1.14-16, Calvino escreveu: “Por isso, mais claramente parece que aqueles que deviam presidir o julgamento não foram nomeados apenas pela vontade de Moisés, mas eleitos pelos votos do povo. E esse é o tipo mais desejável de liberdade: que não devamos ser obrigados a obedecer a toda pessoas que possa ser tiranicamente colocada sobre as nossas cabeças; mas que permita a eleição, de modo que ninguém governe se não for aprovado por nós. E isso é confirmado adicionalmente no versículo seguinte, no qual Moisés relata que aguardou o consentimento do povo e que nada era tentado se não agradasse a todos”. Charles Raynal e John Leith (orgs.), Calvino studies colloquium, trad. Douglas Kelly (Davidson, NC: Davidson College Presbyterian Church, 1982). Infelizmente, Calvino não conseguiu ver que o processo democrático não é garantia de liberdade. Até mesmo autoridades democraticamente eleitas podem ser tiranas. 51 Institutas, 4.20.8. 52 Ibid. 53 Ibid. 54 João Calvino, Commentaries on the Epistle of Paul the Apostle to the Romans, citado em John T. McNeill (org.), Calvino on God and political duty (Indianápolis: ITT Bobbs-Merrill, 1956), 85-86. 55 Institutas, 4.20.31. 56 David Hall fornece uma lista de oito obras importantes que “legitimaram a ideia de resistência dos cidadãos contra a expansão governamental que excedesse os limites adequados”, em grande parte daqueles que tiveram contato direto com Calvino: De Regno Christi (de Martin Bucer, 1551), A short treatise of political power (de John Ponet, 1556), How superior powers ought to be obeyed of their subjects; and wherein they may lawfully by God’s word be disobeyed and resisted (de Christopher Goodman, 1558), The world and the empire (de Peter Viret, 1561), Francogallia (de François Hotman, 1573), De jure magisterium (de Theodore Beza, 1574), De jure regni apud Scotos (de George Buchanan, 1579) e Vindiciae contra tyrannos (de Hubert Languet, 1579). Hall, The legacy of John Calvin, 24. 57 Kelly, The emergence of liberty in the modern world, 11. 58 João Calvino, Commentaries on the Prophet Daniel, v. 1 (Grand Rapids: Baker, 1979), 382. 59 E. Calvin Beisner, Where garden meets wilderness: Evangelical entry into the environmental debate (Grand Rapids: Eerdmans, 1997). 60 Institutas, 3.7.3. 61 Ibid., 2.2.12. 62 “Economia” deriva da palavra grega que significa “administração doméstica”, originalmente encontrada em Xenofonte. 63 Institutas, 2.2.13. 64 Ibid., 3.6.1. 65 Ibid. 66 Ibid. 67 Friedrich A. Hayek, “The use of knowledge in society”, American economic review 35, 4 (set/1945): 519. A 5 Calvinismo e literatura Leland Ryken ideia de uma abordagem calvinista à literatura poderia parecer uma defesa difícil. A pesquisa de Norman R. Cary Christian criticism in the twentieth century: Theological approaches to literature [Crítica cristã no século 20: Abordagens teológicas à literatura] não resulta numa “escola” calvinista de teoria literária.1 Contudo, consigo lembrar-me de dois acontecimentos do meu passado que apontam para uma abordagem calvinista discernível à arte de escrever e ao estudo da literatura. Quando a pessoa que era então meu colega no Departamento de Inglês da Wheaton College resenhou um livro de Calvin Seerveld, ele foi altamente crítico. Pessoa de convicções anglocatólicas, ele expressou descrença de que alguém fosse capaz de escrever uma apologia cristã às artes sem mencionar a encarnação de Cristo como pedra angular dessa apologia. Lembro-me de ter pensado que isso não era motivo para admirar- se. Numa reflexão adicional, ocorreu-me que a razão pela qual a abordagem de Seerveld parecia ser natural era que eu compartilhava da sua orientação calvinista. Um segundo episódio está centrado no meu próprio livro, The liberated imagination: Thinking Christianly about the arts [A imaginação libertada: Pensando sobre as artes de modo cristão].2 Ele foi usado como livro-texto por um grupo de professores de música de uma faculdade reformada. Devido a eu ensinar em Wheaton e não numa faculdade reformada, os professores não me identificaram com a sua própria tradição, embora tenham entrado em ressonância com a minha abordagem às artes. Conta-se que, quando se tornou conhecido que eu tinha formação cristã reformada, um professor deixou escapar: “Eu sabia”. Devido a não haver qualquer escola discernível de teoria literária que tenha Calvino como sua fonte, é fácil negligenciar a relevância do calvinismo na formulação de uma abordagem cristã à literatura e ao seu estudo. É aqui que os dois episódios se revelam úteis, porque nos alertam de que os estudiosos de convicção calvinista veem a literatura e seu estudo de um modo que os diferencia de outras abordagens cristãs. Além disso, escrever este ensaio levou-me a ver pela primeira vez até que ponto a minha própria abordagem à literatura e ao seu estudo representa uma abordagem calvinista. Na discussão que se segue, delineei as maneiras pelas quais o pensamento calvinista produz uma poética (“filosofia da literatura”) cristã. Em essência, essa poética é o que tenho defendido ao longo de quatro décadas. Em alguns casos, o calvinismo exerceu influência sobre o meu pensamento, enquanto em outros vou observar compatibilidade em vez de dívida consciente. Calvino produz relativamente poucas declarações diretamente relacionadas à literatura e às artes, mas há declarações seminais apenas suficientes para servir ao meu propósito. Para mostrar que houve uma tradição de pensamento calvinista ao longo dos séculos, vou fazer citações seletivas de alguns dos principais pensadores da tradição calvinista ao longo de três séculos, incluindo Jonathan Edwards, Abraham Kuyper e Francis Schaeffer. O mandato cultural Sabemos que fomos criados com o propósito expresso de ser empregados em trabalho de vários tipos, e que nenhum sacrifício é mais agradável a Deus do que quando cada homem aplica-se diligentemente ao seu próprio chamado. (João Calvino, comentário sobre Lc 10.38) Na época em que eu estudava em escolas cristãs da região rural de Iowa, diziam-me que o calvinismo era distinto por ter “uma visão do mundo e da vida”. Os detalhes disso nunca me foram enunciados, embora, pela maneira como a frase era pronunciada pelas figuras de autoridade de minha vida, eu percebesse que algo importante estava em jogo. No início da minha carreira de ensino e escrita, deparei-me com a ideia sob um ângulo diferente e, dessa vez, ela assumiu uma importância seminal no meu pensamento sobre a literatura e as artes. O que aprendi foi que o cristianismo engloba tanto um mandato missionário (resumido na Grande Comissão) quanto um mandato cultural. A passagem primordial para um mandato cultural é Gênesis 1.26-28, que narra como Deus ordenou a Adão e Eva que exercessem domínio sobre a terra. No pensamento calvinista, esse não é apenas um comando agrícola, referente ao solo literal, mas também um comando cultural. Assim estendida, a declaração significa que a humanidade foi colocada por Deus sobre toda a criação, incluindo a parte dela produzida por pessoas (geralmente chamada cultura). Uma busca de fontes revela rapidamente que a ideia de um mandato cultural pertence quase exclusivamente à tradição calvinista ou reformada, onde é lugar-comum.3 A importância da ideia de um mandato cultural para a atividade da literatura é incalculável. Para começar, ele dá à literatura um lugar para situar-se. Se a cultura é intencionadae sancionada por Deus, o mesmo ocorre com a literatura. Além disso, se a atividade literária não é simplesmente permitida, mas ordenada, a sua legitimidade é ainda mais fortemente afirmada. Foi assim que entendi o meu interesse pela literatura a partir do momento em que a ideia de um mandato cultural estabeleceu-se no meu pensamento. A visão de que Deus deu aos seus seguidores não apenas um mandato missionário, mas também um mandato cultural, abala de uma só vez a dicotomia sagrada-secular que caracterizou boa parte do pensamento evangélico não reformado. Frequentemente vi ser citada a afirmação de C. S. Lewis apresentada a seguir e, de fato, nos meus primeiros escritos eu mesmo a citei com aprovação: “Desde o início, o cristão sabe que a salvação de uma única alma é mais importante do que a produção e preservação de todos os épicos e tragédias do mundo”.4 Já não cito mais a afirmação com aprovação. Por um lado, Lewis pressupõe que os épicos e tragédias do mundo não podem ser o meio pelo qual Deus leva uma pessoa à fé. Quando fui contratado para escrever um ensaio sobre literatura e a vida espiritual, entrevistei cristãos do meu círculo de conhecidos quanto ao papel da literatura na sua vida espiritual. Rapidamente descobri um grupo substancial para o qual a literatura imaginativa havia desempenhado um papel crucial na sua ida à salvação em Cristo – alguns comparavam isso à ida de alguém à fé numa cruzada evangelística. De modo mais geral, a afirmação de Lewis mostra uma visão inadequada do mandato cultural que Deus deu à raça humana. Se a raça humana deve exercer domínio sobre a ordem terrena, toda esfera e ato de domínio é digna. Não há justificativa para organizar as atividades de modo a formarem uma hierarquia. Se Deus ordena algo, isso é digno e não concorre inerentemente com o mandato missionário. Uma doutrina calvinista complementar reforça a ideia do mandato cultural, especificamente a doutrina da vocação ou do chamado. O ensino dos reformadores sobre a vocação é bem pensado e matizado, mas seu esquema básico é simples. As ideias principais, conforme articuladas por Calvino, são as seguintes: (1) Deus é soberano nos acontecimentos da vida de uma pessoa. Parte dessa soberania é que as tarefas que vêm às pessoas em sua vida são “deveres designados” (denominados “chamados”) que foram “atribuídos […] pelo Senhor”.5 (2) Pelo fato de Deus ser o “guia em todas essas coisas” de uma pessoa, os nossos compromissos diários não são simplesmente tarefas encerradas em si mesmas, mas fazem parte de um serviço religioso a Deus, com o resultado de que, se “você obedecer ao seu chamado”, isso “será contado como muito precioso aos olhos de Deus”.6 (3) Nenhuma vocação é mais santa do que outra; nas palavras de Calvino, “aos olhos de Deus, é uma coisa só a prática [isto é, a vocação] de uma pessoa neste mundo, na medida em que esta diversidade não impeça um acordo na piedade”.7 Segundo Georgia Harkness, embora Lutero tenha afirmado a possibilidade de que uma pessoa pode “servir a Deus no âmbito do seu chamado”, Calvino deu o passo mais ousado ao afirmar que uma pessoa pode “servir a Deus por meio do seu chamado”.8 A aplicação da doutrina calvinista da vocação à literatura é abrangente. Ela eleva a vida do escritor e do professor de literatura a uma posição de importância aos olhos de Deus e, portanto, à vista dos próprios escritores e professores. A tradição calvinista deu ao poeta Chad Walsh a estrutura conceitual e o vocabulário para dizer que o escritor “pode, honestamente, ver-se como uma espécie de assistente terreno de Deus (como também o pode o carpinteiro), continuando a obra delegada da criação, tornando ainda mais completa a plenitude da criação”.9 Meu repertório de palestras inclui uma intitulada “O chamado do escritor cristão”. Nela, começo delineando ideias da Reforma sobre a vocação, que depois aplico às atividades exercidas por autor literário. Sem a estrutura das ideias da Reforma sobre a vocação, só me restaria uma coleção humanamente inventada de ideias sobre escritores e suas obras, sem qualquer autoridade teológica apoiando as minhas afirmações. O apoio de Calvino à cultura e sua defesa da ideia de vocação podem parecer distantes da produção e do estudo da literatura, mas não são. Ao longo da minha carreira, as ideias calvinistas sobre o mandato e a vocação culturais forneceram minha plataforma básica para ser um porta-voz da literatura, livre de ansiedade quanto a se a minha vocação literária é uma ocupação cristã legítima. Não ter tido essa confiança teria subvertido a minha ocupação a cada esquina do caminho. Uma cosmovisão calvinista libertou Francis Schaeffer para afirmar que “uma obra de arte tem um valor intrínseco”, independentemente da sua “propagação de uma mensagem específica”, não existindo “unicamente [como] um veículo para algum tipo de evangelismo constrangido”.10 Os estudiosos de círculos evangélicos não reformados que acreditam num mandato missionário, mas não num mandato cultural, geralmente carregaram um fardo de ansiedade quanto ao valor da literatura em si. A doutrina da criação Pelo fato de a escultura e a pintura serem dons de Deus, eu busco um uso puro e legítimo para cada uma, [como] coisas que o Senhor nos confiou para a sua glória e o nosso bem.11 Anteriormente, recordei a ocasião em que meu colega admirou-se do fato de um livro sobre estética não destacar a encarnação de Jesus, como a tradição anglocatólica sempre fez. Minha própria opinião é que, embora certos pontos essenciais sobre arte e literatura possam ser deduzidos e ilustrados a partir da encarnação de Jesus num corpo humano, outras doutrinas cristãs estabelecem esses pontos de maneira mais direta e convincente. A literatura começa na criatividade de um escritor. Os escritores criam, a partir da imaginação, mundos que não existem antes de uma obra literária ser trazida à existência. É por isso que a teoria literária (especialmente nos dois últimos séculos) concentrou-se tão fortemente na criatividade como objeto de pesquisa. Não se pode conceber a literatura e as artes sem pensar em criatividade. O mistério de como grandes obras de arte vêm a existir é tão intrigante que um interesse pela literatura e pelas artes inevitavelmente dá origem à pergunta sobre os processos criativos. Entrevistas com escritores tornaram- se um importante gênero crítico na era moderna, e essas entrevistas quase universalmente enveredam por uma investigação sobre como os escritores compõem e como obras literárias específicas surgiram. Os títulos de livros e ensaios confirmam o quanto o mundo em geral considera importante compreender o processo criativo: Criatividade: Fluxo e psicologia da descoberta e da invenção; “A criação de um poema”; Dostoievski e o processo criativo; O processo criativo; Cinquenta poetas contemporâneos: O processo criativo. Quando perguntamos como o alto valor que as artes conferem à criatividade encaixa-se numa cosmovisão cristã, acredito que as duas coisas estão em total acordo. Em parte, chegamos a essa conclusão ao observar o primeiro capítulo da Bíblia, no qual aprendemos que Deus é um Criador que declarou a sua obra como “muito boa” (Gn 1.31). Se, depois, rastreamos as referências à obra de Deus em toda a Bíblia, descobrimos que ele é um ser cuja essência é declarar: “Eis que faço coisa nova, […]” (Is 43.19), culminando na sua criação de um novo céu e uma nova terra em imagens que ecoam a história da criação do início de Gênesis (Ap 22.1-5). Um aspecto importante da história da criação é a criação do homem por Deus à sua imagem. A passagem-chave é Gênesis 1.26-27, que registra Deus dizendo: “Façamos o homem à nossa imagem, […]” e o escritor narra poeticamente: “Criou Deus, pois, o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou”. O principal atributo de Deus que conhecemos ao ler essa passagem é que ele é um criador. Portanto, dentro do seu contexto narrativo a coisa mais óbvia que Deus e as pessoas têm em comum é a sua capacidade de criar. Por implicação, a criatividade é um dom queDeus conferiu às pessoas. Se perguntarmos o que a tradição teológica mais fez das ideias gêmeas de Deus como Criador e das pessoas como imago dei como pedras angulares da teoria literária, a resposta é que essa é a tradição reformada. Nem uma frase sequer da teoria literária encapsulou mais do meu próprio pensamento do que a seguinte declaração do Abraham Kuyper: “Como portador da imagem de Deus, o homem possui a possibilidade de criar algo bonito e também de deleitar-se com isso”.12 Kuyper elaborou o conceito do seguinte modo: Essa habilidade artística, essa capacidade para a arte […] pode ter espaço na natureza humana, devemos à nossa criação segundo a imagem de Deus. […] Assim, podemos imitar o trabalho manual de Deus. […] Como portadores da sua imagem, é nosso privilégio ter uma percepção deste mundo belo, reproduzi-lo artisticamente e apreciá-lo humanamente.13 Um representante posterior desse ponto de vista calvinista é Francis Schaeffer. Na sua monografia Art and the Bible [A arte e a Bíblia], Schaeffer ecoa os temas de Kuyper. Um desses temas é que “tanto Deus quanto o homem criam”, que “a palavra criar é apropriada” para o que o artista faz, e que as obras de arte são “expressões da natureza e do caráter da humanidade […] a exteriorização da criatividade inerente à natureza do homem”.14 Em segundo lugar, Schaeffer é capaz de enraizar na doutrina da criação a sua opinião de que “a arte cristã não é, de modo algum, sempre […] arte que trata de temas religiosos”. Ele escreve: “A criação de Deus está totalmente envolvida com temas religiosos? E o que dizer do universo, dos pássaros, das árvores, das montanhas? […] Quando Deus criou a partir do nada por meio da sua palavra falada, ele não criou apenas objetos ‘religiosos’”.15 Quando nos voltamos para os escritos de Calvino, encontramos a mesma orientação. As ideias-chave são as seguintes: (1) Pelo fato de Deus ser o criador e o governante da criação, “todas as artes emanam dele e, portanto, precisam ser consideradas invenções divinas”.16 (2) As artes não são capacidades humanas autônomas, mas dons que Deus confere às pessoas; ao comentar sobre os artistas que produziram os trabalhos manuais para o tabernáculo, Calvino escreve que “qualquer capacidade possuída por qualquer pessoa emana de uma única fonte e é conferida por Deus”.17 (3) A capacidade artística é parte da imagem de Deus nas pessoas: “os muitos dons proeminentes com que a mente humana é dotada proclamam que algo divino foi gravado nela”.18 (4) Em virtude de carregarem a imagem de um Deus criador, os seres humanos são capazes de uma criação verdadeira: eles possuem a “energia e capacidade […] para elaborar algo novo em cada arte ou para aperfeiçoar e polir o que foi aprendido de um antecessor”.19 O pensamento calvinista sobre a criatividade divina e humana nos permite seguir um curso intermediário entre dois extremos na cena atual. O movimento Romântico do início do século 19 elevou a criatividade humana autônoma totalmente fora de proporção, até mesmo a ponto de endeusá-la. A tradição calvinista coloca a criatividade humana em seu lugar sob Deus e a trata como um dom do qual as pessoas são mordomos. Quanto a isso, é importante observar que Calvino refere-se regularmente às artes como um dom de Deus, como quando ele fala do “dom de Deus gratuitamente oferecido nestas artes” e das artes como “dons que o Senhor deixou para a natureza humana”.20 Porém, há também atualmente uma perversa tradição de descrédito entre certos segmentos do evangelicalismo que deprecia o conceito da criatividade humana, até mesmo a ponto de negar que ela existe. Os pontos de vista da tradição calvinista delineados acima servem como um corretivo para esse equívoco também. Nas palavras de Francis Schaeffer, “é importante compreender que tanto Deus quanto o homem criam. Ambos fazem algo”.21 Uma última importância da doutrina da criação é que ela fornece uma explicação teológica do motivo pelo qual as pessoas criam. Precisamos de investigação empírica para explicar como as pessoas criam, mas tentativas puramente seculares para explicar por que elas criam mostram-se frívolas. A discussão da questão por Calvino fornece três explicações impecáveis. A primeira é que um Deus criativo criou as pessoas à sua imagem: Deus equipa os artistas “conforme o caráter que ele concedeu a cada tipo pela lei da criação”.22 A segunda é que Deus dota os artistas com o dom da arte: no tocante aos artistas que trabalharam no tabernáculo, Calvino afirma que “Deus já havia conferido agudeza e inteligência aos artífices em questão”.23 E a terceira é que o Espírito de Deus equipa até mesmo os artistas incrédulos: “ninguém se destaca até mesmo no trabalho manual mais desprezado e humilde, exceto na medida em que o Espírito de Deus opera nele”.24 Graça comum Não devemos esquecer os excelentes benefícios do divino Espírito, que ele distribui a quem quer, para o bem comum da humanidade. (Institutas, 2.2.16) Tal como a doutrina da criação, a doutrina da graça comum representa uma contribuição distinta do calvinismo à teoria literária. Enquanto a doutrina da criação fala particularmente à produção de obras de literatura, a graça comum se refere mais à leitura e ao estudo de obras já compostas. Quase todos os escritos sobre a graça comum foram produzidos por teólogos de tradição calvinista (e até mesmo holandesa) – o próprio Calvino e nomes como Hodge, Berkhof, Kuyper, Van Til e Osterhaven.25 A doutrina da graça comum sustenta que Deus dota todas as pessoas, cristãs e, igualmente, não cristãs, com uma capacidade para o verdadeiro, o bom e o belo. O próprio Calvino é o melhor ponto de partida e podemos discernir três tópicos principais no seu pensamento sobre o tema. Primeiro, escritores não cristãos são capazes de expressar o que eu denomino o verdadeiro, o bom e o belo, com o resultado de que “sempre que nos depararmos com essas questões em escritores seculares, deixemos que a admirável luz da verdade brilhando nelas nos ensinem que a mente do homem, embora caída e pervertida de sua integridade, é, não obstante, vestida e ornamentada com os excelentes dons de Deus”.26 Segundo, e como uma extensão da primeira ideia, podemos afirmar a verdade onde quer que a encontremos: “Toda a verdade vem de Deus; consequentemente, se homens ímpios disseram algo que seja verdadeiro e justo, não devemos rejeitá-lo, porque isso veio de Deus”.27 Terceiro, o Espírito de Deus é a fonte última de tudo que é bom na literatura, e podemos honrar a Deus como essa fonte. Calvino escreve, por exemplo: “Se considerarmos o Espírito de Deus como a única fonte de verdade, nem rejeitaremos a própria verdade, nem a desprezaremos onde quer que ela apareça, a menos que desejemos desonrar o Espírito de Deus”.28 E, novamente, “Não podemos ler os escritos dos antigos […] sem grande admiração. […] No entanto, consideraremos algo louvável ou nobre sem, ao mesmo tempo, reconhecer que isso vem de Deus?”29 A importância da graça comum para o empreendimento literário é imensa. Ela significa, primeiramente, que não precisamos investigar a ortodoxia religiosa de um escritor antes de podermos afirmar o que é digno no que esse escritor produziu. Sempre que encontramos o verdadeiro, o bom ou o belo, podemos aplaudi-lo. Isso está longe de ser universalmente aceito pelos cristãos. Entre os cristãos sinceros, muitas vezes sinto um mal- estar, se não uma total hostilidade, em relação a obras literárias de autoria de não cristãos. A genealogia desse desconforto remonta a alguns dos patriarcas da igreja, que lutaram com a questão de como conciliar sua fé cristã com sua formação na cultura clássica. Alguns deles rejeitaram a cultura clássica. A doutrina da graça comum também nos leva a concluir que podemos e devemos dedicar tempo para ler literatura secular, bem como literatura manifestamente cristã para nossa edificação e deleite. Finalmente, não é incomum deparar-nos com o sentimento de que os cristãos (ou calvinistas) devem, de algum modo, ser culpados pelo fato de não seremos melhores escritores do mundo. Poderíamos também tentar atribuir culpa aos cristãos não serem os melhores atletas, pianistas ou cozinheiros. A verdade é como Calvino afirmou: “qualquer que seja a capacidade possuída por qualquer [artista] […] ela é conferida por Deus”,30 que “distribui” os seus dons “a quem ele quiser”.31 Beleza Nas ervas, nas árvores e nos frutos, à parte dos seus diversos usos há uma aparência bela e um odor agradável. (Institutas, 3.10.2) Desde que comecei a ensinar e escrever sobre literatura, defendi a importância da beleza na literatura e na arte. Eu havia apenas plantado a minha bandeira pela causa da beleza quando ela saiu de moda como valor estético. Nunca vacilei na minha devoção à beleza como um ingrediente principal da experiência literária; uma das poucas coisas que deram certo na minha disciplina durante as últimas quatro décadas é que a beleza teve um merecido retorno como valor estético entre os estudiosos que teorizam sobre literatura e arte. No meu primeiro livro de teoria literária, segui meu capítulo introdutório com um movimento ousado que refletia as minhas convicções. Dei prioridade à “Literatura e a busca da beleza” com a seguinte explicação: “Coloquei este capítulo sobre a beleza no início do livro por uma razão importante: a beleza é a dimensão da literatura que está sempre recebendo valor insuficiente na crítica literária”.32 É claro que a Bíblia é o texto fundamental sobre a beleza. Gênesis 2.9 evidencia isso: “Do solo fez o S����� Deus brotar toda sorte de árvores agradáveis à vista e boas para alimento”. Eis aí o desígnio de Deus para o bem-estar humano, e ele inclui duas coisas complementares – o útil e o puramente estético. As condições para a vida boa nunca mudaram desde aquele momento no Paraíso. O tipo de mundo criado por Deus revela que ele valoriza tanto o utilitário quanto o estético. Inúmeros outros afluentes se somam à aprovação da beleza pela Bíblia. Um deles está nas descrições da arte que adornava o tabernáculo e o templo do Antigo Testamento, incluindo passagens que atribuem beleza a esses lugares (Êx 28.2; Ed 7.27; Sl 96.6; Is 60.13). Outras passagens atribuem beleza a Deus como um dos seus atributos (p. ex., Sl 27.4; Ez 16.14-15,17). As palavras beleza, bonito e belo aparecem aproximadamente 120 vezes em traduções da Bíblia para a nossa língua, de uma maneira predominantemente positiva. Embora a Bíblia seja o texto fundamental para estabelecer o lado puramente estético da literatura como um valor, fui fortemente influenciado a defender a causa por escritores da tradição calvinista. O próprio Calvino nos deu uma fórmula clássica ao chamar a criação terrena de teatro da glória de Deus.33 Afirmando a legitimidade da beleza e o prazer que temos nela, Calvino escreveu de modo admirável: Se ponderarmos para que fim Deus criou os alimentos, descobriremos que ele queria não apenas suprir a necessidade, mas também o prazer e a alegria. […] O Senhor vestiu as flores com grande beleza que saúda os nossos olhos, a doçura do aroma que bafeja nas nossas narinas; não obstante, será ilegítimo os nossos olhos serem afetados por essa beleza, ou o nosso olfato pela doçura desse odor? […] Em suma, ele não tornou muitas coisas atraentes a nós, além do seu uso necessário?34 Ainda mais impressionantes do que esses breves comentários de Calvino são as ideias de Jonathan Edwards, para quem a beleza é um conceito teológico tão fundamental que um estudioso chamado Roland André Delattre escreveu um livro inteiro sobre ela, intitulado Beauty and sensibility in the thought of Jonathan Edwards [Beleza e sensibilidade no pensamento de Jonathan Edwards].35 O livro é transbordante de citações evocativas de Edwards sobre a beleza, juntamente com uma extensa análise do seu pensamento sobre o tema. Tudo isso excede o escopo da minha discussão aqui, mas a declaração seguinte foi uma pedra angular para o meu pensamento sobre a importância teológica da beleza para o empreendimento literário: “Isso porque, pelo fato de ser infinitamente o maior ser, Deus está autorizado a ser infinitamente o mais belo e excelente: e toda a beleza de ser encontrada em toda a criação não é senão o reflexo dos raios difundidos desse Ser que tem uma infinita plenitude de esplendor e glória”.36 Calvino e Edwards não foram os únicos a exercerem influência calvinista sobre mim no tocante à beleza. Também Abraham Kuyper produziu afirmações clássicas sobre a importância da beleza nas suas palestras sobre o calvinismo. Eis uma delas: “o belo […] tem uma existência objetiva, sendo ele mesmo a expressão de uma perfeição Divina. […] Sabemos isso pela criação que nos rodeia. […] Pois, como poderia toda essa beleza existir se não criada por Alguém que preconcebeu o belo no seu próprio ser e o produziu a partir da sua própria perfeição Divina?”37 Kuyper também escreveu: “Depois da criação, Deus viu que tudo era bom. Imagine que todo olho humano fosse fechado e todo ouvido humano fosse tapado – ainda assim, o belo permanece, e Deus o vê e ouve”.38 O apoio calvinista à beleza como critério estético tem dupla importância para a literatura. Uma aplicação é focada em escritores de literatura. Se a beleza da forma é tão importante quanto a tradição calvinista afirma, os esforços do escritor para aperfeiçoar as propriedades formais de uma obra são validados. Ernest Hemingway reescreveu a conclusão de seu romance Adeus às armas dezessete vezes, num esforço para torná-lo bom. O poeta galês Dylan Thomas fez mais de duzentas versões manuscritas do seu poema “Fern hill” [Colina das samambaias]. Pode um escritor literário justificar o tempo despendido em polir a técnica de uma obra? Se afirmarmos a importância da beleza, a resposta é sim. Há um paralelo para os leitores e os críticos literários. Que as obras de literatura possuem beleza de forma e de técnica é indiscutível. O que deve ser determinado é se esse aspecto da literatura é merecedor de atenção. Se afirmarmos a beleza como uma propriedade estética, o caminho está aberto para os leitores e os críticos darem sua atenção aos aspectos formais das obras literárias. Uma vez que a beleza é essencialmente não utilitária, no momento em que exaltamos a beleza da forma, abrimos a porta para uma defesa hedonista da literatura (uma defesa da literatura apoiada no prazer e na satisfação). A defesa hedonista da literatura tem sido uma marca distintiva da minha própria teoria literária e é apoiada por um ponto de vista calvinista. Verdade na literatura Aprouve ao Senhor consagrar a sua verdade à memória eterna unicamente nas Escrituras.39 Certa vez, um ex-diretor do meu Departamento de Inglês teorizou a existência, no nosso departamento, de duas abordagens principais à integração de fé cristã e estudo literário. Ele as rotulou como abordagens da encarnação e da perspectiva. A primeira delas acredita que, se os professores de literatura são cristãos, tudo que eles fazem com obras literárias representa uma integração da sua disciplina com a fé cristã. O segundo rótulo implica que a integração não acontece automaticamente, mas requer análise e aplicação conscientes de critérios intelectuais às obras de literatura. Essa dicotomia é útil para ver o que distingue uma abordagem calvinista à literatura. Um dos tipos de verdade que a literatura incorpora é a veracidade à experiência humana. Pode-se dizer que a literatura encarna a verdade sobre a realidade. Genericamente falando, os teóricos literários das tradições católica e anglicana têm a probabilidade de concentrarem-se nesse aspecto da literatura. Às vezes, essa abordagem é denominada de sacramentalista, bem como de encarnacional. Para os teóricos dessa tradição, o fato de a literatura incorporar a experiência humana em formas distintamente artísticas é suficiente para torná-la religiosa e/ou cristã. Os conceitos de mito, símbolo e sacramento são considerados os aspectos importantes da integração entre a literatura e a fé cristã. O que importa é a natureza inerente da literatura e suas afinidades coma fé cristã. Eis aqui dois exemplos de declaração: (1) A literatura e a religião são realmente íntimas em suas áreas de interesse. As duas usam símbolos [e são] míticas”.40 (2) Não se pode traçar uma linha clara entre poesia e religião, no mínimo porque a religião envolve adequadamente a totalidade da vida e o homem como um todo. […] Em última análise, a expressão religiosa e a poesia têm em comum o fato de testificarem da realidade, e por meios simbólicos.41 Uma abordagem de perspectiva não questiona que a veracidade da realidade e da experiência humana constitui um dos principais valores da literatura, mas discorda de que esse fato constitua uma integração adequada de literatura e fé cristã. Uma abordagem calvinista à literatura recusa-se a renunciar ao critério da verdade intelectual como um aspecto importante da análise literária. Em outras palavras, o conteúdo intelectual da literatura precisa ser identificado e avaliado. Penso ser óbvio que a doutrina e o conteúdo intelectual da fé cristã importavam supremamente para os adeptos do calvinismo. O rigor intelectual e a complexidade das Institutas de Calvino sugerem o sabor da tradição que se originou com Calvino. Uma parte importante dessa orientação é a convicção de que as ideias precisam ser ponderadas e a verdade precisa ser diferenciada do erro. Aplicada à literatura e às artes, essa mentalidade produz um comentário como este de Francis Schaeffer: O fato de algo ser uma obra de arte não o torna sagrado. […] Como cristãos, devemos ver que o fato de um artista – até mesmo um grande artista – retratar uma cosmovisão, em escrita ou pintura, não significa que devemos aceitar automaticamente essa cosmovisão. […] A verdade de uma cosmovisão apresentada por um artista precisa ser julgada com outras bases que não apenas a grandiosidade artística.42 Uma vez aceito que as ideias incorporadas à literatura precisam ser testadas por critérios intelectuais de verdade e erro, surge naturalmente a pergunta sobre o que constitui o padrão pelo qual as ideias devem ser julgadas. Penso que qualquer pessoa familiarizada com a teoria e a crítica literárias que produzi concordará imediatamente que uma característica distintiva foi a extensão do meu apelo à Bíblia como minha fonte primária de ideias sobre literatura e minha avaliação de obras específicas de literatura. Embora atribuir primazia à Bíblia possa ser amplamente evangélico em vez de especificamente reformado, é o caso, no entanto, que devemos à Reforma o princípio de primazia da Bíblia. Calvino é uma das fontes a partir de quem a primazia da Escritura estabeleceu-se no pensamento cristão. Num ensaio intitulado “Calvin and the Holy Scriptures” [Calvino e as Escrituras Sagradas], Kenneth Kantzer observa vários exemplos em que Calvino se refere à Bíblia em termos como “padrão infalível”, “a regra infalível da santa verdade [de Deus]”, “a regra certa e infalível” e a “certeza infalível” da Bíblia.43 Nas Institutas, Calvino cita o Antigo Testamento 2.474 vezes e o Novo Testamento, 4.330 vezes.44 O próprio Calvino escreveu que “a igreja reconhece que a Escritura é a verdade do seu próprio Deus”, com o resultado de que “ela venera a Escritura sem hesitar”.45 Teóricos e críticos literários que aceitam essa visão da autoridade bíblica têm a probabilidade de anunciar a sua distinção ao analisar obras de literatura. Quando um crítico literário apela à Bíblia como o repositório oficial da verdade cristã, o efeito é muito diferente de quando os críticos apelam aos credos da cristandade ou a teólogos específicos, como Agostinho e Tillich, ou a nenhuma autoridade religiosa, mas simplesmente às qualidades inerentes da literatura (tais como simbolismo e mito). Além disso, recorrer à Bíblia como última instância de recurso em questões de verdade intelectual resulta numa certa rigidez de pensamento quando os estudiosos literários avaliam as afirmações de verdade encontradas em obras de literatura. A imaginação literária não escapou dos efeitos da queda. Posso imaginar que alguns dos meus leitores teriam esperado que eu dissesse mais do que disse a esse respeito. Minha resposta é múltipla. (1) Quando realmente cumpro o meu papel de crítico literário na tradição calvinista, discernir a verdade do erro em obras específicas de literatura constitui uma parcela muito maior do meu esforço do que sugeriu a apologia anterior à literatura. (2) Os efeitos da queda sobre o empreendimento literário representam um abuso da literatura e não são um comentário sobre a natureza inerente da literatura. (3) Como extensão disso, não se pode elaborar uma defesa da literatura com base nos abusos dela. (4) A ênfase do calvinismo na depravação humana carrega um freio embutido contra ver a literatura com um otimismo ingênuo; a maravilha é que Calvino expressa consistentemente uma atitude positiva em relação à cultura e às artes. Resumo: Uma abordagem calvinista à literatura Que esse seja o nosso princípio: que o uso dos dons de Deus não é mal direcionado quando dirigido ao fim para o qual o próprio Autor os criou e destinou para nós, já que ele os criou para o nosso bem. (Institutas, 3.10.2) Neste ponto é evidente que, não obstante fontes publicadas não reconhecerem nenhuma escola calvinista de teoria e crítica literárias, essa abordagem existe. Também acabei percebendo que eu mesmo abordo a literatura com base nessa tradição. Portanto, o resumo que se segue é em parte validado pelo fato de vir de um praticante da abordagem que descrevo. Preciso observar também que, embora até este ponto do meu ensaio eu tenha dividido o material em temas distintos, esses temas são realmente interligados e formam um todo coerente. Uma abordagem calvinista à literatura começa num nível amplo de crença de que a cultura é boa a princípio, tendo sido instituída por Deus. Além disso, Deus conclama suas criaturas a seguirem as suas vocações nas diversas esferas que compõem a cultura, uma das quais é a literatura. O dom conferido primariamente por essa perspectiva é uma tremenda confiança na legitimidade e no valor de dedicar-se à escrita e de estudar literatura. Falando pessoalmente, nunca tive dúvidas quanto ao mérito do meu chamado como professor e crítico cristão de literatura. Esse acolhimento de um mandato cultural faz parte da doutrina mais ampla da criação. A doutrina da criação afirma a ordem terrena como sendo valiosa aos olhos de Deus. Isso tem grande importância para o empreendimento literário porque o assunto da literatura (incluindo a antologia literária que conhecemos como Bíblia) é a experiência humana, incorporada o mais concretamente possível. Transito em círculos cristãos, onde o elemento humano na vida e na Bíblia é frequentemente desprezado, como se somente Deus importasse. Em oposição a isso, tenho me percebido citando com crescente regularidade a frase inicial das Institutas de Calvino, com sua declaração de que o verdadeiro conhecimento “consiste em duas partes: o conhecimento de Deus e de nós mesmos”. Além disso, a ideia da criação da humanidade à imagem de Deus fornece uma explicação teológica para o porquê de os escritores criarem, e uma garantia de que a criatividade humana é um dom implantado por Deus nas pessoas. Isso não precisa mover-se na direção da idolatria, mas pode ser incluído na noção de mordomia dos dons de Deus. Nas palavras do poeta renascentista Sir Philip Sidney, “Demos a correta honra ao Criador celestial daquele criador [o escritor] que, depois de ter feito o homem à sua própria semelhança, o colocou além e acima de todas as obras daquela segunda natureza”, isto é, o mundo da imaginação literária.46 Por apenas uma breve extensão, a ideia do mandato cultural e da doutrina da criação se estende para abraçar a ênfase calvinista na graça comum. Também isso dá aos entusiastas da literatura um lugar para ficarem. Se Deus revela-se em toda a ordem criada, por meio do trabalho de incrédulos e de cristãos, os reinos de ouro (metáfora de John Keats para o mundo da literatura imaginativa) tornam-se abertos paraos cristãos percorrerem. Isso desmente um equívoco comum de que a preocupação do calvinismo com a depravação humana produz inevitavelmente uma visão negativa da literatura e da cultura humana. A “visão de mundo e da vida” que era apregoado na minha formação do ensino fundamental e médio resulta numa visão equilibrada que é capaz de ver tanto o bom quanto o ruim no que encontra no mundo e na literatura. Com a legitimidade da literatura firmemente estabelecida, a pergunta adicional torna-se quais aspectos da literatura são merecedores de atenção. O mundo em geral sem dúvida ficará surpreso ao saber que a tradição calvinista deu proeminência à beleza como valor estético. Para mim, pessoalmente, ela ainda forneceu uma plataforma para a defesa hedonista da literatura com base no deleite e enriquecimento humano. Porém, é claro que a questão da verdade intelectual não pode ser dispensada simplesmente porque obras de literatura são belas e agradáveis. Os autores literários não são apenas fiéis à experiência humana; eles também oferecem uma interpretação das experiências que eles retratam. Esses pontos de vista – em última análise somando-se para formar uma cosmovisão – precisam ser testados segundo um padrão de verdade bíblica. Quando fazemos essa exploração, ocorre que, embora a moralidade da maior parte da literatura que eu ensino seja amplamente cristã, os valores e a cosmovisão não são. A genialidade de uma abordagem calvinista à literatura é que ela não nos obriga a rejeitar tudo de um escritor ou obra de literatura simplesmente porque não podemos aprovar tudo. Vou terminar citando uma afirmação que fiz no meu primeiro livro de teoria literária. Quando a escrevi, não tinha conhecimento de até que ponto estava escrevendo sob a influência de minha herança calvinista: a carreira das artes, incluindo a literatura, é uma vocação importante. A vida abundante começa agora e permeia a pessoa toda, incluindo os seus impulsos artísticos. 1 Norman R. Cary, Christian criticism in the twentieth century: Theological approaches to literature, Série Literary criticism (Port Washington, NY: Kennikat, Associated Faculty Press, 1976). 2 Leland K. Ryken, The liberated imagination: Thinking Christianly about the arts (Wheaton, IL: H. Shaw Publishers, 1989). 3 Não encontrei referência ao mandato cultural nos escritos de Calvino. Portanto, pareceria que a expressão é um produto do calvinismo depois de Calvino. Seu pertencimento em grande parte a um pensamento calvinista é corroborado pela observação de Nancy Pearcey de que quando ela leciona sobre o mandato da cultura, “muitas pessoas dizem nunca haver encontrado o conceito anteriormente”. Nancy Pearcey, Total truth: Liberating Christianity from its cultural captivity (Wheaton, IL: Crossway Books, 2005), 399. 4 C. S. Lewis, Christian reflections (Grand Rapids: Eerdmans, 1967), 10. 5 Institutas, 3.11.6. 6 Ibid. 7 João Calvino, Calvin’s commentaries, trad. William Pringle (Grand Rapids: Baker, 1999), 20, 25. Todas as citações dos comentários de Calvino são extraídas dessa coleção multivolumes. 8 Georgia Harkness, John Calvin: The man and his ethics (Nashville: Abingdon, 1958), 179. 9 Chad Walsh, “The advantages of the Christian faith for a writer”, em Leland Ryken (org.), The Christian imagination: The practice of faith in literature and writing (Colorado Springs: WaterBrook, 2002), 169. 10 Francis Schaeffer, Art and the Bible (Downers Grove, IL: InterVarsity, 1973), 33, 37, 61. 11 Institutas, 1.11.12 12 Abraham Kuyper, Lectures on Calvinism (Grand Rapids: Eerdmans, 1931), 142. 13 Ibid., 156-57. 14 Schaeffer, Art and the Bible, 35-36. 15 Ibid., 59. 16 Comm., 3.3.291. 17 Ibid., 3.3.291-92. 18 Institutas, 1.15.2. 19 Ibid., 2.2.14. 20 Ibid., 2.2.16. 21 Schaeffer, Art and the Bible, 35. 22 Institutas, 1.1.16. 23 Comm., 3.3.292. 24 Ibid., 3.3.291. 25 Uma cartilha sobre a doutrina calvinista da graça comum inclui as seguintes fontes (em ordem cronológica): Charles Hodge, Systematic theology (1887; reimpr. Londres: James Clarke, 1960), 2.654-75; Herman Kuyper, Calvin on common grace (Grand Rapids: Smitter, 1928); Louis Berkhof, Reformed dogmatics (Grand Rapids: Eerdmans, 1932), 2.22-32; Cornelius Van Til, Common grace (Filadélfia: Presbyterian and Reformed, 1954); M. Eugene Osterhaven, “Common Grace”, em Carl F. H. Henry (org.), Basic Christian Doctrines (Nova York: Holt, Rinehart and Winston, 1952), 171-77. O livro Common grace de Abraham Kuyper não está disponível em inglês. 26 Institutas, 2.2.15. 27 Comm., 21.300-1. 28 Institutas, 2.2.15. 29 Ibid. 30 Comm., 3.3.291-92. 31 Institutas, 2.2.16. 32 Leland Ryken, Triumphs of the imagination: Literature in Christian perspective (Downers Grove, IL: InterVarsity, 1974), 33. 33 Institutas, 3.10.2. 34 Ibid. 35 Roland André Delattre, Beauty and sensibility in the thought of Jonathan Edwards: An essay in aesthetics and theological ethics (New Haven: Yale University Press, 1968). 36 Jonathan Edwards, The nature of true virtue, in The works of Jonathan Edwards (New Haven: Yale University Press, 1989), 8.550-51. 37 Abraham Kuyper, Lectures on Calvinism, 156. 38 Ibid. 39 Institutas, 1.7.1 40 Cleanth Brooks, “Christianity, myth, and the symbolism of poetry”, em Finley Eversole (org.), Christian faith and the contemporary arts (Nashville: Abingdon, 1957), 105. 41 Amos Wilder, “Poetry and religion”, em Eversole, Christian faith and the contemporary arts, 113-14. 42 Schaeffer, Art and the Bible, 41. 43 Kenneth Kantzer, “Calvin and the Holy Scriptures”, em John F. Walvoord (org.), Inspiration and interpretation (Grand Rapids: Eerdmans, 1957), 142. 44 John T. McNeill, The history and character of Calvinism (Londres: Oxford University Press, 1967), 213. 45 Institutas, 1.7.2. 46 Sir Philip Sidney, “An apology for poetry”, em Charles Kaplan (org.), Criticism: The major statements (Nova York: St. Martin’s, 1964), 114. P 6 O legado de Calvino na filosofia William C. Davis rovavelmente, Calvino ficaria desgostoso ao saber da existência deste capítulo, pelo menos inicialmente. Quase toda menção de “filosofia” nas Institutas e nos Comentários é negativa; por isso, ele poderia preferir que o seu legado na filosofia fosse a morte da disciplina. Para consternação de muitos, dentre os quais Calvino, a filosofia não desapareceu. Sistemas filosóficos pagãos não cristãos multiplicaram-se sem restrição desde o século 16. Porém, ainda mais surpreendente para Calvino pode ser o crescimento e a proliferação de escolas e sistemas filosóficos cristãos – até mesmo cristãos reformados. Neste capítulo, vou resumir alguns dos modos mais importantes pelos quais a influência de Calvino continua a ser sentida na obra de filósofos. Vou focar o impacto duradouro de Calvino na epistemologia e na metafísica; mesmo nessas áreas, meu tratamento será seletivo. Muito mais poderia ser dito sobre o legado de Calvino às subdisciplinas filosóficas da ética (como no hedonismo cristão de Desiring God [Desejando Deus], de John Piper), da estética (como em Art in action [Arte em ação], de Nicholas Wolterstorff, ou Modern art and the death of a culture [A Arte moderna e a morte de uma cultura], de Hans Rookmaa ker) e da filosofia política (como em The myth of religious neutrality [O mito da neutralidade religiosa], de Roy Clouser, ou In pursuit of justice [Em busca de justiça], de James Skillen).1 Até mesmo um levantamento parcial da contínua influência de Calvino na epistemologia e na metafísica mostrará que os filósofos têm uma profunda dívida para com Calvino, não apenas pelos seus discernimentos, mas também pela tradição de investigação acadêmica fundamentada nos seus métodos, que os seus seguidores continuam seguindo. O calvinismo como uma tradição de pesquisa, não uma escola filosófica O principal objetivo de Calvino nas suas Institutas e nos seus Comentários foi fornecer uma base bíblica sistemática para a prática pastoral.2 Por causa disso, é provável que ele ficasse consternado ao descobrir que os seus escritos foram tomados, por alguns dos seusseguidores, também como uma base para especulação filosófica. Com facilidade demais, a filosofia especulativa pode tornar-se independente das preocupações pastorais, e devemos lamentar a utilização da obra de Calvino como uma desculpa para a concepção de soluções áridas e sem vida para enigmas sofísticos. Porém, a filosofia especulativa não precisa ser seca ou pastoralmente morta. Para os filósofos envolvidos com unir problemas verdadeiros aos temas pastorais da apologética, liberdade humana e escatologia pessoal, a obra de Calvino estabelece uma base que seria amplamente apreciada; certamente, ele não desprezaria a orientação prática que a reflexão filosófica dos seus seguidores frequentemente seguiram depois do seu tempo. Para Calvino e os últimos tempos da Idade Média, “filosofia” referia-se, mais frequentemente, ao exercício da razão autônoma, isto é, a razão humana isolada da obra corretiva da revelação divina.3 Como calvinistas posteriores, incluindo Dooyeweerd, ecoariam, Calvino fazia distinção entre filosofia e filosofia cristã precisamente na questão da dependência da revelação de Deus.4 Para Calvino, a “filosofia cristã” só é possível quando a investigação de questões filosóficas se submete ao Espírito Santo e à revelação de Deus na natureza e à revelação especial na Palavra.5 O entusiasmo iluminista pela autonomia em vez da dependência tornou os séculos 18 e 19 especialmente inóspitos à obra autoconsciente calvinista na filosofia. Ao longo de três séculos de pensamento Iluminista sobre uma “boa” filosofia, o legado de Calvino à disciplina da filosofia foi levado adiante mais como uma tradição de investigação do que como um corpo de conclusões sobre teorias filosóficas. A influência de Calvino sobre questões puramente filosóficas é mais fácil de rastrear na subdisciplina da epistemologia, na qual suas prolíficas sugestões sobre a nossa dependência da revelação de Deus para todo o nosso conhecimento e os efeitos incapacitantes da queda ainda são temas de exame minucioso.6 Porém, numa inspeção mais aprofundada, até mesmo na epistemologia o seu legado é mais uma questão de método do que uma visão recebida ou um sistema filosófico. Epistemologia As Institutas de Calvino iniciam com afirmações epistemológicas radicais. Não apenas todos sabem da existência de Deus,7 mas o conhecimento de Deus está estreitamente ligado ao conhecimento que a pessoa tem de si mesma.8 Calvino não desperdiça tempo imaginando ou respondendo a objeções céticas. Em vez disso, ele se concentra nas implicações pastorais desse conhecimento “duplo”: todos nós somos adoradores; todos nós conhecemos a Deus e conhecemos a nós mesmos; e, deixados à nossa própria vontade, adoraremos a ídolos inventados por nós mesmos.9 Desde a queda de Adão e Eva, a nossa capacidade de conhecer está comprometida; a única solução para os nossos defeitos epistêmicos é a obra do Espírito Santo corrigindo os nossos pensamentos e emoções pela aplicação da Palavra de Deus à nossa mente e ao nosso coração. Nesse programa ambicioso, Calvino inicia um novo capítulo na epistemologia ocidental. Por razões bíblicas e pastorais, ele toma como certo que o conhecimento de si mesmo e o conhecimento de Deus são características comuns da vida humana. Ele também assume sem argumento que o conhecimento não depende da mediação de sacerdotes ou intelectuais. Pelo fato de que seus objetivos são pastorais, Calvino está disposto a dar relativamente pouca atenção a questões teóricas. Como resultado, é muito mais fácil estar confiante quanto ao perfil de uma epistemologia calvinista do que insistir em detalhes sobre definições e mecanismos. Por exemplo, Calvino sustentava claramente que todas as pessoas encontram-se lutando com algum tipo de consciência da existência de Deus. Ele é muito menos específico sobre como pensa que essa consciência surge. De modo semelhante, a corrupção das faculdades humanas resultante da queda é uma parte crucial das afirmações de Calvino sobre a existência social e religiosa humana. Porém, os modos exatos pelos quais essa corrupção surge e se alastra recebem menos atenção. De um ponto de vista pastoral, faz sentido concentrar-se mais no fato da necessidade do que nos mecanismos precisos que a alimentam e sustentam. Contudo, mesmo com um foco pastoral, é evidente que três temas da obra de Calvino tiveram e terão um impacto importante no desenvolvimento da filosofia ocidental. Esses três são o papel central da Palavra de Deus para o nosso conhecimento, a universalidade do conhecimento de Deus e da fé como um tipo de conhecimento, e os efeitos noéticos da queda. Vou considerar cada um deles. A autoridade da Escritura Para Calvino, todo conhecimento depende de revelação. O que passamos a conhecer sobre o mundo à nossa volta por experiência ou reflexão depende de revelação geral. Embora não cristãos tendam a pensar que arrancamos esse conhecimento do mundo pelos nossos próprios poderes sem qualquer necessidade de ajuda divina, os filósofos calvinistas reconhecem a nossa dependência de Deus nos conceder graciosamente a capacidade de compreendermos o mundo, sustentar essas habilidades e manter a ordem do próprio mundo. Porém, a obra de Deus na revelação geral é tão uniforme que é fácil considerá-la algo garantido. Até mesmo filósofos cristãos da era do Iluminismo foram inclinados a escrever como se os poderes humanos fossem, por si só, suficientes para dominar questões científicas.10 A confiança nesses poderes cresceu à medida que a investigação científica começou a tornar a existência humana mais confortável e eficiente no século 18. O aumento da confiança na ciência e o método científico de investigação cresceram a ponto de muitos filósofos estarem dispostos a acreditar que a razão humana e a experiência desprovidas de ajuda podem servir como o padrão definitivo contra o qual todas as afirmações de conhecimento são julgadas.11 Quando Calvino estava escrevendo, antes da ascensão da ciência como padrão definitivo, sua acolhida da autoridade da Escritura não parecia notável. Porém, mesmo na sua época ela era ousada – e continua a ser uma posição ousada hoje, mesmo depois do declínio da confiança abjeta na ciência. Calvino afirmou a singular autoridade da Escritura, a despeito da oposição da Igreja Católica Romana. Durante anos a hierarquia da igreja romana havia ensinado que a autoridade da Bíblia depende da aprovação da igreja. Calvino inverteu essa dependência, afirmando que a autoridade da igreja se estende apenas enquanto se mantém coerente com a Palavra de Deus.12 O padrão último contra o qual todas as afirmações de conhecimento devem ser julgadas é a Palavra de Deus, que autentica a si mesma.13 Calvino não separou Deus da sua Palavra. Nisso, ele seguiu o raciocínio de Hebreus 6: as promessas de Deus (a Palavra de Deus) não podem repousar sobre algo mais certo do que o próprio Deus. Calvino reconhece a Bíblia como autenticadora de si mesma porque é a Palavra de Deus.14 Ele reconhece que isso leva naturalmente a outra pergunta. Como sabemos que a Bíblia é a Palavra de Deus? Para Calvino, a resposta é o testemunho interior do Espírito Santo. Sabemos que a Bíblia é a Palavra de Deus porque Deus Espírito nos assegura isso.15 Embora essa resposta tenha pouca probabilidade de ser satisfatória para aqueles que não foram assegurados pelo Espírito, a posição de Calvino é filosoficamente firme. A única autoridade que poderia autorizar a Palavra de Deus é o próprio Deus. Nenhuma outra autoridade é convocada ou introduzida ilegalmente. Portanto, os seguidores filosóficos de Calvino compartilhavam uma visão muito elevada da autoridade da Palavra de Deus. Enquanto Descartes estava anunciando a alvorada da era moderna em suas Meditações, os teólogos de Westminster ofereciam uma alternativa calvinista. Procurando um ponto de partida que autenticasse a si mesmo independente da Igreja Católica Romana, Descartes escolheu iniciar pelas suas ideias claras e distintas. Ele aceitava tudo que é imediatamente evidente à sua autoconsciência como a pedrade toque da verdade que autentica a si mesma.16 A Confissão de Fé de Westminster reconhece tudo o que é “expressamente declarado na Escritura” como o ponto de partida.17 A maioria dos filósofos desde aquela divisão na década de 1640 seguiu Descartes. Em vez de fazer os seus sistemas se apoiarem definitivamente na verdade da Palavra de Deus, eles tentaram encontrar uma maneira de transformar em autoridade final “o que é imediatamente evidente” à nossa mente. O resultado foi uma frustração bem documentada.18 No entanto, para os propósitos deste ensaio, o caminho filosoficamente menos percorrido, do qual Calvino foi pioneiro, é muito mais interessante. Os epistemólogos modernos procuraram entre os poderes humanos naturais uma fonte de conhecimento confiável e que autentica a si mesma. Os filósofos calvinistas foram os únicos a partir da autoautenticadora Palavra de Deus. Porém, isso não aconteceu logo depois Calvino. Até o século 20, o apelo do otimismo modernista foi tão grande que os epistemólogos cristãos estavam confortáveis com confiar em alguma capacidade humana juntamente com a Palavra de Deus. Jonathan Edwards ficou impressionado com o poder da razão natural.19 Thomas Reid e muitos seguidores do século 19 apoiavam-se na confiabilidade do “senso comum” maduro para derrotar o ceticismo e fornecer um ponto de partida para o conhecimento.20 Foi apenas depois das obras de Cornelius Van Til, John Frame, Gordon Clark e Alvin Plantinga, no século 20, que os filósofos cristãos começaram a oferecer teorias do conhecimento que dão à Palavra de Deus o lugar reservado para ela no sistema de Calvino. A “epistemologia cristã” de Van Til é habilmente desenvolvida na obra de John Frame. Sua teoria do conhecimento é dominada pelo direito absoluto de Deus de exercer o seu domínio sobre todas as coisas, incluindo as reivindicações de conhecimento.21 O próprio Deus não é apenas o padrão da verdade: a sua Palavra é a única fonte, infalível e autoautenticadora da verdade. Devido a isso, os critérios de Deus para “verdade” e “conhecimento” precisam ser pressupostos num ato de reverente submissão antes de poder ser feita qualquer reivindicação de conhecimento. Aqueles que afirmam saber alguma coisa sem se submeterem às exigências do senhorio de Deus são rebeldes que só têm sucesso com “capital emprestado”.22 Todavia, embora insistisse na futilidade da epistemologia sem submissão/pressuposição, Van Til não elaborou uma teoria detalhada do conhecimento. O “dogmatismo” de Gordon Clark deu mais detalhes, mas no seu zelo para silenciar os céticos, na sua epistemologia Clark torna impossíveis muitas afirmações importantes sobre o conhecimento. A abordagem de Clark é simples: só conhecemos o que é explicitamente declarado na Escritura e o que pode ser deduzido da Escritura por “consequências boas e necessárias”.23 O ceticismo radical é derrotado desde o início, porque a Palavra de Deus autoriza a si mesma como fonte de conhecimento. As regras de “consequências boas e necessárias” são autorizadas (insiste Clark) porque são usadas pelos escritores da Bíblia. Como resultado, o dogmatismo de Clark lhe permite afirmar que ele sabe que Deus existe, que Jesus é o Cristo e que Jesus ressuscitou de entre os mortos. Porém, embora esses sejam itens cruciais de conhecimento para os cristãos, a epistemologia de Clark luta com outras verdades importantes. Por exemplo, Clark admitiu não saber que Cristo morreu por Gordon Clark. Pelo fato de que “Gordon Clark” não é mencionado na Bíblia, ele não tinha como deduzir, a partir da Escritura, qualquer conclusão que o mencionasse. Ele nem sequer sabia da sua própria existência. Clark viu as regras da lógica utilizadas na Escritura e, assim, se sentiu autorizado a utilizar essas regras. Ele não estava disposto a seguir o exemplo do escritor do Evangelho de Lucas e usar o que aprendeu por experiência sensorial e testemunhas oculares para estender o que ele contava como conhecimento (ver Lc 1.1-4). O zelo de Clark por uma epistemologia calvinista não pode ser questionado; porém, o valor do seu dogmatismo é limitado pelo seu inevitável escorregão para o ceticismo quanto à aplicação de verdades espirituais à nossa vida hoje. A tentativa mais recente de desenvolver uma epistemologia que leva a sério a autoridade autoautenticadora da Escritura aparece na versão “estendida” do “Modelo A/C”, de Alvin Plantinga, em Warranted Christian belief [Crença cristã autorizada].24 Os detalhes da abordagem de Plantinga são explicados na próxima seção. Aqui é suficiente observar duas características do uso da Escritura por Plantinga. Em primeiro lugar, Plantinga reconhece a necessidade da Escritura para o nosso conhecimento das verdades espirituais. Embora insista na adequação de percepção sensorial, intuição racional, memória e nossos outros poderes para nos darem conhecimento do mundo, Plantinga reconhece que algumas verdades só podem ser conhecidas pela operação do Espírito Santo por meio das Escrituras. Por exemplo, sabemos que Jesus ressuscitou de entre os mortos porque, quando lemos Lucas 24, o Espírito Santo revela à nossa mente e sela no nosso coração a verdade de que Jesus ressuscitou. Nossos outros poderes são insuficientes para apreender essa verdade, como Calvino afirma nas Institutas: “as coisas que pertencem à nossa salvação são por demais elevadas para serem percebidas pelos nossos sentidos, vistas pelos nossos olhos ou manipuladas pelas nossas mãos”.25 Em segundo lugar, Plantinga adota explicitamente a insistência de Calvino de que a Palavra de Deus é autoautenticadora.26 A autoridade da Palavra de Deus não depende de ser considerada aceitável pela razão autônoma, pelos sentidos ou pelo consenso da comunidade. Algumas das conclusões teológicas de Plantinga são angustiantes (p. ex., sobre o livre-arbítrio ou as limitações de Deus na criação), mas o papel que ele dá à Escritura na sua epistemologia é um desenvolvimento promissor de um tema calvinista fundamental.27 Conhecimento de Deus28 O Catecismo de Genebra, de Calvino, começava com a pergunta: “Qual é o principal propósito do homem?” A resposta a essa pergunta foi: “Conhecer a Deus, por quem ele foi criado”.29 Calvino vê claramente o conhecimento de Deus como uma preocupação pastoral vital. Há muito ele tem sido uma preocupação central dos filósofos; hoje, o conhecimento de Deus é a única área da filosofia em que o nome de Calvino é conhecido de maneira positiva. O mundo filosófico atual conhece Calvino por apenas três ideias, duas das quais não são bem acolhidas. As duas ideias que não são bem acolhidas são a predestinação que destrói a liberdade e a ideia deprimente de que os seres humanos sofrem de depravação. A única ideia positiva que os filósofos atribuem a Calvino é o sensus divinitatus, a doutrina epistemológica de que os seres humanos consideram a crença em Deus um tanto inevitável. Isso conta como uma ideia positiva até mesmo para os filósofos não cristãos, porque a maioria dos filósofos considera o ceticismo irritante. A ideia de que o conhecimento de Deus depende de um poder distinto semelhante à percepção é intrigante. Calvino recebe o crédito por afirmar que temos essa capacidade; os filósofos ainda estão debatendo as suas afirmações. O que Calvino diz sobre o nosso conhecimento imediato de Deus ecoa as palavras de Paulo em Romanos 1. Calvino escreve: Que há na mente humana, e de fato por instinto natural, algum senso de Divindade consideramos incontestável, uma vez que o próprio Deus, para impedir qualquer homem de alegar ignorância, dotou todos os homens com alguma ideia da sua divindade, cuja memória se renova constantemente e, ocasionalmente, amplia-se, isso tudo para que um homem, estando ciente da existência de um Deus, e que ele é o seu Criador, possa ser condenado pela sua própria consciência quando não o adorar, nem consagrar a sua vida a servi-lo.30 Seguindo o exemplo de Paulo, Calvino destaca a universalidade do conhecimento de Deus para afirmar a culpabilidade universal por não adorar a Deus. O foco deCalvino é que todos sabem que existe um Deus que merece adoração. Ele não está fazendo um relato detalhado de como o conhecimento surge. Uma parte do legado de Calvino na disciplina de filosofia consiste em esforços de elaborar os detalhes epistemológicos que cercam a provocante afirmação paulina de Calvino. Durante o início do período moderno da filosofia (1640-1800), Descartes afirmou, na sua obra Meditações, que todos nós temos uma ideia de um criador infinito e perfeito de todas as coisas. Ele sustentou que essa ideia é colocada lá diretamente por Deus, como se Deus estivesse deixando uma assinatura na sua obra.31 Descartes não diz como a crença surge, se por instinto ou por alguma outra faculdade; e a imprecisão sobre como a crença surge acabou afastando os filósofos da abordagem de Calvino. Depois de Descartes, ainda era esperado que o conhecimento de Deus fosse generalizado, mas os filósofos ficaram desgostosos com a sugestão de Calvino de que o instinto, a percepção ou até mesmo a memória produz a crença. A posição de Descartes de que a ideia de Deus é inata, também caiu em desgraça. No seu livro Ensaio sobre o entendimento humano, Locke rejeita todas as ideias inatas e argumenta que o conhecimento de Deus é universalmente disponível por demonstração de princípios autoevidentes.32 À exceção dos filósofos escoceses do “senso comum”, como Thomas Reid, gerações de filósofos cristãos seguiram o exemplo de Locke.33 Embora a crença em Deus possa surgir de uma espécie de instinto, pensava- se que o conhecimento da existência de Deus dependia de uma demonstração, uma prova. Alguns dos mais importantes filósofos calvinistas dos últimos trezentos anos sustentaram essencialmente essa posição; entre eles estão Jonathan Edwards, Charles Hodge, B. B. Warfield, John Gerstner e R. C. Sproul.34 O pensamento iluminista sobre o conhecimento tornou difícil para os filósofos e teólogos cristãos resistir à conclusão de que o conhecimento exigia justificação (epistêmica); e pensava-se que a prova demonstrativa era o tipo mais poderoso de justificação. No entanto, como se viu, dar uma prova demonstrativa da existência de Deus a partir de premissas incontroversas era difícil. Caso seja possível, muito poucos cristãos o fizeram. Então, se só sabemos que Deus existe por comprovação, poucas pessoas –incluindo Calvino –sabem que Deus existe. Os filósofos calvinistas e outros simpatizantes da explicação de Calvino para o nosso conhecimento de Deus quase sempre se afastaram de procurar uma prova demonstrativa para justificar a crença em Deus. Em vez disso, eles questionaram o pressuposto de que o conhecimento sempre requer uma justificação voltada a satisfazer os céticos. A obra Our reasonable faith [Nossa fé razoável], de Herman Bavinck (1909), adotou essa abordagem. Bavinck insistiu em que o nosso conhecimento de Deus obviamente tem seu próprio caráter peculiar. Ele é diferente de todos os outros conhecimentos que podem ser obtidos, e a diferença não é de grau, mas de princípio e essência […] [Ele] difere do conhecimento das coisas criadas em sua origem e objeto, bem como em sua essência e efeitos.35 O conhecimento de Deus difere em essência dos outros conhecimentos porque envolve o amor a Deus, não meramente a posse de informações. Esse conhecimento também difere de outros conhecimentos porque depende de fé. “Ele não é o produto de estudo e reflexão científicos, mas de fé infantil e simples.”.36 Relatos semelhantes do nosso conhecimento de Deus podem ser encontrados nas obras de outros filósofos do século 20. Um dos primeiros seguidores de Bavinck foi o teólogo reformado Cornelius Van Til, cujas ideias foram posteriormente desenvolvidas por Greg Bahnsen, John Frame e Scott Oliphint.37 Para esses “pressuposicionalistas”, o conhecimento do Deus da Bíblia e a submissão ao seu senhorio são o princípio de todo conhecimento e significado. Embora todas as pessoas conheçam Deus a partir do que foi revelado na criação, o verdadeiro conhecimento de Deus (em vez de supressão na injustiça) depende de fé operada em nós pelo Espírito Santo. Mais recentemente, filósofos conscientemente calvinistas como Paul Helm (Faith and reason [Fé e razão]) e Esther Lightcap Meek (Longing to know [Ansiando por conhecer]) trabalharam para desenvolver os detalhes epistemológicos da nossa consciência de existência de Deus.38 A obra de Van Til, Frame, Helm e Meek é bem conhecida entre calvinistas e alguns filósofos evangélicos. Porém, hoje o legado de Calvino na filosofia é mais amplamente conhecido por meio da obra de Plantinga, Wolterstorff e os (assim chamados) epistemólogos reformados.39 Misturando o fundacionalismo do senso comum de Thomas Reid com uma confiança holandesa como a de Bavinck, a obra Warrant and proper function [Justificativa e função adequadas], de Plantinga, desenvolve uma ampla estratégia epistemológica na qual o sensus divinitatus de Calvino é análogo a outras faculdades, como a visão e a audição. Como resultado, a nossa crença na existência de Deus é “corretamente básica” quando surge do nosso senso natural e instintivo da presença de Deus. Para Plantinga, o conhecimento da existência de Deus é como o nosso conhecimento de que existem outras mentes ou de que a árvore que vejo pela minha janela existe. Não só nos encontramos acreditando na existência de outras mentes e árvores sem elaborar provas racionais, mas sabemos que elas estão lá sem elaborar provas racionais. Essas crenças não são garantidas por decorrerem logicamente de outras crenças (mais básicas). Em vez disso, elas são garantidas por serem produzidas pelas faculdades (1) que funcionam corretamente (isto é, como foram projetadas), (2) no ambiente para o qual foram concebidas e (3) bem direcionadas à verdade pelo seu Projetista. Olhando pela minha janela, vejo-me acreditando haver uma árvore lá fora. Se essa crença é o resultado de os meus sentidos funcionarem como Deus os criou para funcionarem, e se Deus fez os meus olhos para apreenderem a verdade sobre o mundo externo, então a minha crença está justificada. Plantinga argumenta que uma crença pode ser garantida até mesmo sem uma justificativa. Por isso, devido ao conhecimento ter como garantia uma crença verdadeira, posso saber que existe uma árvore lá fora ainda que não consiga produzir uma prova para isso.40 Segundo Plantinga, o nosso conhecimento de Deus atende a todas essas condições. O instinto natural que Calvino denomina sensus divinitatus é a parte do nosso equipamento cognitivo que Deus projetou e nos deu para produzir em nós crenças sobre a sua existência. O ambiente para o qual ele foi concebido inclui a magnífica criação de Deus. Meramente pelas coisas que foram feitas, todas as pessoas sabem – ou são culpáveis por reprimir o conhecimento – da existência de Deus. Então, quando vejo a infinidade de estrelas numa noite clara e penso “Deve haver um Deus”, é correto dizer que eu sei que Deus existe. É correto dizer isso até mesmo quando sou incapaz de começar a criar um argumento que, a partir do esplendor dos céus como premissa, raciocinaria para concluir pela existência de Deus. Eu sei, devido à crença ter surgido da mesma maneira natural como surgiu a minha crença na árvore que vejo através da minha janela. Não é de admirar que os filósofos tenham criticado a abordagem de Plantinga ao conhecimento de Deus. Os não cristãos tentaram argumentar que o sensus divinitatus é diferente demais de faculdades menos controversas (como visão e memória) para contar a crença em Deus como corretamente básica mesmo que Deus exista. Filósofos cristãos fizeram objeções a Plantinga ter deixado demasiadamente pouco espaço para os argumentos racionais para a existência de Deus encontrados na teologia natural.41 A força dessas objeções ainda é uma questão de debate entre os filósofos cristãos e os filósofos não cristãos. Porém, o que não é discutível é a importância do funcionalismo correto de Plantinga nas discussões epistemológicas atuais. A atenção que a obra de Plantinga está recebendo é importantepara a filosofia cristã por no mínimo duas razões. A primeira é que a obra de Plantinga coloca as reivindicações de Calvino sobre o sensus divinitatus no centro dos debates atuais sobre a natureza do conhecimento. O ressurgimento do interesse em Calvino quanto a esse tema levou os filósofos a examinarem também o tratamento de outras questões por Calvino. A segunda característica importante do uso de Calvino por Plantinga refere-se ao modo como Plantinga estende a sua análise além do conhecimento da existência de Deus para outras crenças cristãs. Em Warrant and proper function, Plantinga desenvolve uma teoria do conhecimento que mostra como o sensus divinitatus é corretamente contado entre as faculdades do nosso “projeto”. Quando funciona corretamente, essa faculdade gera crença justificada na existência de Deus. Em Warranted Christian belief, Plantinga identifica a fé como outro módulo recebido de Deus do nosso equipamento formador de crenças.42 A discussão de Plantinga sobre a fé como fonte de conhecimento também segue as Institutas de Calvino. Plantinga argumenta que, quando está atuando corretamente, a fé é a faculdade pela qual o Espírito Santo revela à nossa mente e sela no nosso coração a verdade da Palavra de Deus.43 Assim, por exemplo, Plantinga insiste em que ele sabe que Jesus ressuscitou de entre os mortos porque, quando lê na Bíblia “Ele não está aqui, mas ressuscitou” (Lc 24.6), ele se descobre crendo que Jesus ressuscitou de entre os mortos. Mais do que apenas tendo a crença, ele descobre seu coração movido pelo esplendor da realidade. Nem a crença nem a emoção resultam de argumentação racional. A crença e a emoção são a obra do Espírito Santo por intermédio da faculdade cognitiva restaurada, projetada para apreender essa verdade espiritual. Os detalhes do relato da fé de Plantinga como fonte de conhecimento vão muito além da discussão de Calvino sobre a fé. Em parte, isso ocorre porque Plantinga baseia-se na obra de Jonathan Edwards sobre o papel das emoções no nosso conhecimento das verdades espirituais.44 Porém, mesmo onde a epistemologia de Plantinga se estende para além de Calvino e Edwards, as suas conclusões estão, geralmente, bem dentro do espírito e da intenção das afirmações de Calvino nas Institutas. No que se refere ao nosso conhecimento de Deus por meio do sensus divinitatus e do nosso conhecimento das grandes verdades do evangelho por meio da leitura da Palavra de Deus, a obra de Plantinga ampliou o legado filosófico de Calvino tanto quanto qualquer outro autor atual. Os efeitos noéticos da queda O Iluminismo era otimista quanto aos poderes humanos quase a ponto da irreflexão. Calvino é menos entusiasmado quanto à capacidade de os seres humanos caídos fazerem o bem e pensarem de modo correto sobre a realidade. Enquanto a maioria dos filósofos admite que os seres humanos são falíveis, Calvino é conhecido por uma visão muito mais pessimista, que enfatizava a profundidade e a extensão do estado caído das nossas faculdades. Os termos gerais usados pelos epistemologistas para o conjunto de habilidades que usamos para formar crenças são “dotação noética” ou “equipamento noético”. O termo “noético” refere-se à sabedoria ou entendimento. Ele estende-se além de meras ideias ou crenças, atingindo emoções, disposição, consciência prática. Ir além da mera formação de ideias é importante para o entendimento da contribuição de Calvino à epistemologia, uma vez que ele nunca trata a crença separadamente da ação ou escolha. Isso é evidente nas Institutas (1.15.8), em que a primeira atividade do intelecto é distinguir entre o bem e o mal. A consciência é uma função principal da nossa dotação noética. A visão física é outra parte da nossa dotação noética. Apesar de ter sido comprometida na queda, a visão espiritual pela fé também pode ser uma parte do nosso equipamento noético. Os efeitos noéticos da queda incluem todas as maneiras pelas quais a queda prejudicou o equipamento que usamos para formar crenças e sentimentos. Embora os dados bíblicos sejam limitados, podemos juntar alguns dos poderes noéticos que Adão e Eva possuíam antes da queda. Calvino menciona as capacidades de Adão e Eva pré-queda para destacar as nossas deficiências epistemológicas pós-queda. Ele observa, por exemplo, que antes da queda Adão e Eva tinham a percepção clara das coisas celestiais (ou espirituais).45 Para que eles tivessem comunhão com Deus (passeando no jardim), a presença de Deus precisava ter sido evidente com uma clareza que não vivenciamos agora. No seu trabalho de atribuir nomes aos animais, Adão demonstra uma imaculada capacidade de fiel mordomia do jardim. Além de usar a linguagem para exercer domínio, Adão também demonstrava a capacidade de amar o serviço fiel a Deus. Nas suas primeiras palavras a Eva, Adão demonstra uma habilidade de linguagem que é tanto poeticamente sutil quanto espiritualmente perceptiva. Antes da queda, Adão e Eva viam realidades espirituais (seres, valores, significados), amavam o que é verdadeiramente adorável e eram capazes de expressar esses poderes sem egoísmo, divisão ou idolatria.46 A queda de Adão e Eva desse estado sublime excede qualquer explicação. Com todas as suas vantagens noéticas – tanto cognitivas quanto afetivas –, é impossível imaginar um motivo suficiente ou sugerir um mecanismo que os levaria de uma alegre confiança a uma desesperada rebelião.47 Além dos ferimentos autoinfligidos que eles experimentaram na queda, Deus também impôs uma maldição pactual sobre eles e seus filhos. Nenhuma das nossas faculdades – incluindo a razão –está isenta de corrupção. Isso significa que não podemos usar qualquer faculdade (razão, sentidos, autoconsciência etc.) como o padrão contra o qual as demais faculdades são calibradas ou corrigidas. As limitações e distorções que agora afligem o pensamento e a emoção não nos dão uma desculpa para o nosso comportamento pecaminoso para com Deus e para com os outros, mas são suficientemente profundas para nos deixar epistemologicamente dependentes da graça de Deus. Para Calvino, essas consequências são características óbvias da narrativa bíblica. Mais do que apenas finitos, os seres humanos são caídos. Por causa disso, precisamos buscar fora de nós mesmos um padrão e a correção. Para a maioria dos filósofos, essa é uma conclusão inaceitavelmente negativa sobre as nossas capacidades. Para as questões espirituais, os poderes humanos caídos não são apenas ineptos; eles nos levam a adotar falsidades desagradáveis. Porém, no tocante às questões terrenas as coisas são diferentes. Com referência à percepção física e às questões comuns da vida, Calvino observa que o nosso equipamento noético é praticamente confiável. Podemos nos locomover sem colidir com as coisas; podemos encontrar e cultivar alimentos; reproduzimo-nos com sucesso; e construímos sociedades civis capazes de durar. A discussão de Calvino sobre os nossos poderes pós-queda destaca essa diferença entre questões espirituais e terrenas.48 Filósofos calvinistas mais recentes propuseram que a profundidade do impacto da queda nos nossos poderes segue um continuum. Kuyper, Dooyeweerd e Clouser argumentam que o impacto do pecado sobre os nossos assuntos noéticos é mais perturbador nas questões religiosas e que ele diminui à medida que o tema afasta-se cada vez mais das questões religiosas. Eles propõem que as disciplinas de matemática e da física são menos comprometidas pela queda do que as disciplinas da economia e da ética.49 A corrupção dos nossos poderes noéticos é um problema tanto individual quanto comunal. O egoísmo e a idolatria são incentivados pelo exemplo de outras pessoas, e todos nós acreditamos com facilidade demais que as opiniões e práticas da nossa tribo são superiores às opiniões e práticas de outras tribos.50 Críticos do século 20 que tratam do otimismo moderno sobre a razão humana escolheram esse tema calvinista, enfatizando a dimensão comunal da nossa disfunção noética. Filósofos cristãos como Merold Westphal creditaram a Calvino o alerta ao mundo filosóficoocidental sobre o nosso estado caído.51 Porém, os alertas calvinistas sobre os efeitos noéticos da queda foram ignorados por quase todos os filósofos iluministas. Ao longo de todo o período moderno, o legado de Calvino na filosofia incluiu ser uma voz minoritária recomendando cautela. Com o fim do otimismo iluminista e a emergência do pessimismo pós-moderno e pluralista, é provável que os filósofos calvinistas terão de equilibrar o relato da nosso epistêmico estado de caídos com observações sobre as habilidades epistêmicas retidas pela humanidade depois da queda. Metafísica: Livre-arbítrio e providência divina52 Tanto filósofos cristãos quanto não cristãos consideraram partes da epistemologia de Calvino úteis e dignas de desenvolvimento adicional. As posições metafísicas de Calvino não foram tão bem recebidas.53 A ênfase bíblica de Calvino na glória de Deus complica qualquer tentativa de dar à liberdade humana uma explicação filosoficamente cuidadosa. O problema do relacionamento entre a liberdade humana e o controle providencial de Deus de todas as coisas remonta, pelo menos, a De libero arbitrio, de Agostinho.54 A doutrina da providência divina de Calvino torna o desafio especialmente grande. Ao insistir na total independência de Deus de todas as coisas estranhas à sua própria natureza e na totalidade do decreto de Deus, Calvino só deixa espaço para teorias da liberdade humana que afirmem a compatibilidade da meticulosa providência de Deus e a liberdade humana moralmente importante.55 Nas gerações imediatamente subsequentes a Calvino, essas abordagens “compatibilistas” ao livre-arbítrio foram adotadas até mesmo por aqueles que não pertenciam aos círculos reformados.56 A obra Freedom of the will [Liberdade da vontade], de Jonathan Edwards, defendeu a posição calvinista, embora sem adotar o rótulo “calvinista”.57 No entanto, depois do século 18, os filósofos cristãos se uniram maciçamente ao restante do mundo filosófico na rejeição do compatibilismo de Calvino. Por causa disso, explicar a liberdade humana continua a ser um dos principais desafios enfrentados pelos filósofos calvinistas. O problema do “livre-arbítrio” mudou desde a época de Calvino. No século 16, as preocupações quanto à “liberdade” concentravam-se em saber se os seres humanos caídos retinham, ou não, a capacidade de fazer o bem. A providência de Deus não era a ameaça mais óbvia à liberdade humana; o maior obstáculo era representado pela maldição lançada por Deus sobre Adão e Eva. Contra a afirmação católico-romana de que a nossa vontade poderia fazer o bem pela nossa própria força, Calvino se uniu a Lutero na insistência de que o livre-arbítrio é escravo do pecado. Uma das bênçãos da inclusão em Cristo é a libertação dessa escravidão. Em vez de ser escravo do pecado, o povo de Deus é escravo da justiça. Os filósofos atuais não reconhecem isso como uma solução para o problema do “livre-arbítrio”, mas, para Calvino, esse era o âmago da solução.58 O atual problema filosófico do “livre-arbítrio” tem sua origem numa mudança de foco, ocorrida no século 17, sobre o que significa ser livre. Em vez de tratar a liberdade como a capacidade de fazer o bem, filósofos e teólogos chegaram a ver a liberdade como a capacidade de fazer de modo diferente (do que a pessoa, de fato, fez). Nessa definição, as pessoas são verdadeiramente livres apenas se realmente pudessem ter feito outra coisa em vez do que fizeram. Por exemplo, William Farel exigiu expontaneamente que Calvino permanecesse em Genebra apenas se Farel tivesse o poder de não fazer essa exigência. Não seria o suficiente dizer que Deus poderia ter ordenado que Farel não fizesse a exigência. Nesse caso, era Deus, não Farel, quem tinha o poder. Para Farel ter o poder de fazer diferente (e ser livre nesse novo sentido), a escolha teria de ser inteiramente, em última análise, de Farel. Determinar se Farel (ou qualquer pessoa) tem esse tipo de poder revela-se complicado; mas, durante os últimos duzentos anos, essa definição de liberdade dominou a discussão filosófica. Fora dos círculos reformados, pensa-se hoje amplamente que esse tipo de liberdade – denominado “liberdade libertária” – é uma condição necessária para ser considerado moralmente responsável.59 Assim, a menos que uma pessoa tenha esse tipo de poder, nada que ela faz é moralmente significativo e ela não pode ser moralmente elogiada ou culpada pelos seus atos. A última defesa estendida da antiga visão de liberdade foi dada por Jonathan Edwards na sua obra Freedom of the will, em 1754. Edwards argumentou favoravelmente ao determinismo teológico, a visão de que Deus determina tudo o que ocorre, incluindo o que os seres humanos desejam. Ele definiu os atos livres como sendo aqueles praticados conforme a vontade da pessoa. Sua posição era um compatibilismo calvinista e seu raciocínio se fundamentava numa compreensão bíblica da liberdade perfeita de Deus. Ele insistiu em que Deus é perfeitamente livre, embora seja incapaz de fazer outra coisa senão o que é perfeito. Edwards rejeitou a necessidade de definir a liberdade humana em termos da capacidade de fazer de maneira diferente, com base em que tal definição criaria uma regressão viciosa. Uma pessoa só seria livre se pudesse ter desejado desejar fazer diferente etc.60 A análise calvinista de Edwards da liberdade humana perdeu rapidamente o favor filosófico. Sua explicação do decreto soberano de Deus estava em descompasso com a tendência humanística do pensamento iluminista e, logo, Kant (1781) ofereceu uma ponte compatibilista à abordagem libertária pura à liberdade que hoje domina a discussão filosófica. Os filósofos cristãos e teólogos anteriores a Kant argumentaram consistentemente que só Deus possui liberdade libertária. Isso ocorre porque somente Deus é perfeitamente independente. Somente Deus tem, inteiramente dentro de si mesmo, o poder para escolher algo diferente. Somente um ser totalmente independente de Deus poderia ter esse tipo de poder. Filósofos não cristãos, como Roderick Chisholm, aceitaram abertamente a conclusão de que os seres humanos precisam ter uma autonomia semelhante à de Deus para serem considerados responsáveis.61 Até muito recentemente, os filósofos cristãos não estavam dispostos a ir tão longe. Porém, a força do pressuposto kantiano provou ser poderosa. Motivados pela convicção de que a responsabilidade moral exige liberdade libertária, a maioria dos filósofos cristãos agora aprova relatos libertários de liberdade humana que excluem – às vezes com precisão – o decreto de Deus como o determinador dos acontecimentos humanos.62 Para crédito deles, a maioria dos filósofos cristãos reconhece que uma liberdade que torna os seres humanos radicalmente independentes de Deus dá origem a sérias questões sobre a onisciência e providência de Deus. Até anos muito recentes, a maioria dos filósofos cristãos seguia a abordagem agostiniana inicial ao conhecimento do futuro por Deus e ao seu governo providencial de todas as coisas. Na sua obra De libero arbitrio, Agostinho explicou o perfeito conhecimento que Deus tinha dos acontecimentos futuros em termos de Deus olhando (passivamente) para frente. Deus conhecia o futuro por antevisão. Isso hoje é chamado de solução de “presciência simples”.63 Para preservar a liberdade humana, a providência de Deus foi limitada a todos os acontecimentos não determinados pelas livres escolhas humanas. Embora isso eleve as decisões humanas até o nível de decisões de Deus (em autonomia e poder), muitos seguiram Kierkegaard em ver isso como uma prova do poder de Deus: Deus é tão grande que pode criar seres que são radicalmente independentes dele.64 Os filósofos calvinistas não costumam ser persuadidos pela afirmação de que a glória de Deus é aumentada por ter a capacidade de criar seres de quem ele, então, deve depender. Segundo essa visão, embora saiba tudo, Deus deve aprender passivamente com as suas criaturas o que as suas vontades independentes determinaram. E os calvinistas não foram os únicos a ver que a solução da presciênciasimples é filosoficamente instável. Para Deus saber eternamente que, em 1536, Farel exigiria que Calvino permanecesse em Genebra, teria de ser eternamente verdadeiro que, em 1536, Farel exigiria que Calvino permanecesse em Genebra. As verdades eternas não podem ser diferentes. Assim, mesmo que o conhecimento de Deus seja meramente uma antevisão passiva, Farel não poderia ter agido de maneira diferente. Por causa disso, a maioria dos filósofos evangélicos agora admite que o quadro da presciência simples não é suficiente para preservar a liberdade libertária. Muitos também admitem que devem escolher entre três opções: determinismo calvinista, molinismo e teísmo aberto.65 Tanto para os molinistas quanto para os teístas abertos, a defesa da nossa liberdade libertária leva a uma disposição de ajustar o nosso entendimento da independência de Deus. Nos dois casos, a liberdade humana é equiparada à liberdade de Deus.66 Um homem que fizesse adoradores movidos à corda seria patético, mas Deus não é um homem. A Bíblia adverte repetidamente contra julgar Deus segundo os padrões humanos. Mais do que isso, Isaías nos conclama a obter consolo no fato de que há uma profunda diferença entre Deus e nós. Os caminhos de Deus não são os nossos caminhos, precisamente porque Deus perdoará quando nós não perdoaremos (Is 55). Além da inadequação de moldar Deus à nossa imagem (p. ex., retratando Deus como desejoso de um estreito relacionamento conosco, como se ele fosse um pai necessitado e nós, adolescentes teimosos), a posição libertária exige a conclusão de que algumas coisas boas (como a verdadeira adoração) não vêm, em última instância, de Deus. A Bíblia ensina que tudo que é bom vem de Deus (Tg 1.17). Se Deus tivesse de esperar que as vontades humanas escolhessem a verdadeira adoração, então pelo menos essa coisa boa não viria de Deus. Os filósofos calvinistas estiveram entre a minoria de filósofos que argumentam que a liberdade humana moralmente importante e algum tipo de determinismo são compatíveis. Porém, os calvinistas não são os únicos compatibilistas e, embora os compatibilistas frequentemente compartilhem linhas de argumentação, algumas versões do compatibilismo são biblicamente inaceitáveis. O argumento compatibilista mais influente dos últimos quarenta anos foi apresentado por Harry Frankfurt. Numa habilidosa série de histórias, Frankfurt mostra que a responsabilidade moral é possível até mesmo quando alguém não tem o poder de fazer diferente.67 A história deixou perplexos tantos libertários, que vale a pena esboçar os detalhes aqui: Suponha que um homem chamado Black tome todas as medidas necessárias para assegurar que um homem chamado Jones escolha agir de uma maneira e não de outra. (Por exemplo, Black pode implantar no cérebro de Jones um microchip que dê um choque paralisante em Jones sempre que este considere não agir da maneira específica que Black deseja.) Suponha, ainda, que o dispositivo de Black nunca tenha de entrar em ação, porque Jones escolhe fazer o que Black deseja. Nesse caso, Jones é claramente responsável pela escolha, mas não poderia ter feito de maneira diferente. A conclusão de Frankfurt é que a plausibilidade dessa história mostra que a capacidade de fazer diferente não é uma condição necessária para a responsabilidade moral. Essa história ajuda a causa calvinista por mostrar que a nossa percepção sobre a responsabilidade moral não exige que tenhamos a capacidade de fazer diferente. Assim, ela abre a possibilidade de que poderíamos ser moralmente livres, mesmo se fôssemos incapazes de fazer diferente (porque, em última análise, o decreto de Deus tira isso do nosso poder). Porém, a história de Frankfurt apenas mostra que a intuição libertária é apressada demais. Ela não resolve todos os problemas levantados por uma abordagem calvinista à liberdade. Dois desses problemas merecem ser destacados aqui, por terem probabilidade de dominar a próxima geração da obra filosófica calvinista sobre a liberdade humana: (a) como Deus pode nos considerar moralmente responsáveis por escolhas que, em última análise, encontram sua origem no decreto eterno de Deus, e (b) como os calvinistas podem evitar a acusação de que a doutrina do decreto eterno de Deus produz uma forma fatalista de determinismo? Quanto ao primeiro problema, a responsabilidade humana por atos decretados por Deus, os filósofos calvinistas terão de começar pelas afirmações da Bíblia sobre a liberdade humana. A revelação geral isoladamente não será suficiente para esclarecer a relação entre o decreto de Deus e nossas livres escolhas, porque nada que existe na criação dá uma visão adequada das prerrogativas e dos propósitos de Deus. A história de Frankfurt dá origem a perguntas sobre a necessidade da capacidade de fazer diferente para que haja uma liberdade moralmente importante, mas a história ainda sugere que Jones é o autor último da livre escolha. Os calvinistas não podem fingir que o decreto de Deus só desempenha um papel nos casos em que Jones escolha independentemente não fazer diferente. Jones sempre faz o que Deus decreta; e Jones não é a causa última da escolha. Os calvinistas sustentam que Jones é moralmente responsável, embora o decreto de Deus determine a escolha. Essa imagem é ofensiva para a maioria das pessoas, porque significa que Jones é moralmente culpado por todos os pecados cometidos por Jones, embora tenham sido decretados por Deus. Porém, a realidade bíblica é ainda pior. Além de Jones ser culpado, Deus não o é. Deus retém o crédito por todas as escolhas moralmente corretas de Jones, mas a culpa pelos pecados recai apenas sobre Jones. A justiça desse arranjo deixa-nos perplexos até que nos lembramos de que Deus não é outra criatura. Como Senhor e criador, Deus tem a autoridade de determinar todas as coisas como lhe aprouver. A questão não é se os caminhos de Deus fazem sentido para as nossas intuições racionais, e sim se as nossas intuições estarão em conformidade com as afirmações de Deus sobre os seus caminhos. Por causa disso, a Palavra de Deus deve ter a última palavra. Três passagens referem-se de modo especialmente claro à questão da liberdade humana e do decreto de Deus. Em Atos 2.22-24, Pedro afirma que Jesus foi entregue à morte por homens pecadores segundo o determinado desígnio e a presciência de Deus. Em Efésios 2.1-10, Paulo argumenta que a salvação é inteiramente obra da graça de Deus, e também que Deus preparou as nossas boas obras de antemão para que andemos nelas. Em Romanos 9.6-24, Paulo responde à acusação de que Deus é injusto pela determinação de punir a desobediência de Faraó mesmo depois de Deus ter endurecido o coração dele. Paulo deixa claro que o endurecimento serviu ao propósito de exaltar a glória de Deus, e ainda assim Faraó é justamente punido. Em todos esses casos, o decreto de Deus é compatível com a responsabilidade moral dos seres humanos envolvidos.68 É por causa dessa evidência bíblica que calvinistas como Edwards rejeitam os relatos libertários de liberdade e, em vez disso, afirmam que a liberdade para os seres humanos consiste na capacidade de agir segundo a nossa vontade. Coerção ou restrição externa imposta por outras criaturas mina a liberdade e a responsabilidade. O decreto eterno de Deus não limita ou elimina a nossa responsabilidade. No fim, liberdade não é o tipo de coisa que pode ser compartilhada. Para os seres humanos serem radicalmente livres no sentido libertário, Deus teria de ser dependente das vontades humanas. Deus teria de saber de nós o que desejamos fazer. As nossas vontades seriam fontes absolutas de bondade e, assim, Deus não seria a única fonte de bondade. Deus só poderia ter a certeza de que os seus propósitos seriam atingidos se os planos dele não dependessem de qualquer livre escolha humana. A Bíblia não sugere que Deus tenha qualquer dessas limitações. De fato, ela afirma que Deus não aprende ou espera, e que os seus planos certamente se cumprirão, embora incluam as nossas escolhas livres e responsáveis. O segundo desafio enfrentadopelos relatos calvinistas de livre-arbítrio humano é a ameaça do fatalismo. O decreto eterno e a meticulosa providência de Deus determinam todos os acontecimentos da história humana. Poderia parecer que disso segue-se que esforço e deliberação humanos são sem sentido. A vontade de Deus é inevitável. Quer eu me esforce, quer não, tudo acontecerá como Deus decretou. Os cristãos estão corretos em ficar insatisfeitos com o estoico ou o muçulmano que não faz qualquer esforço e simplesmente diz “o que será, será” ou “como Alá quiser”. Muitos filósofos cristãos concluíram que a abordagem calvinista à liberdade humana leva à mesma espécie de fatalismo quietista. Uma resposta calvinista a esse desafio precisa começar com a admissão de que os calvinistas nem sempre resistiram à tentação de cair no hipercalvinismo. Os hipercalvinistas usam o decreto eterno abrangente de Deus como uma desculpa para ignorar o apelo da Bíblia à ação diligente. Respostas preguiçosas ou desesperadas ao decreto soberano de Deus são, no mínimo, um tipo de fatalismo prático, e os calvinistas precisam lutar contra essa tentação atentando cuidadosamente à Escritura. O compatibilismo calvinista difere do fatalismo estoico em pelo menos dois modos importantes, e esses dois modos dependem do caráter pessoal do decreto de Deus. O quietismo estoico flui da crença de que o Logos que determina todos os acontecimentos é impessoal, imparcial e desinteressado. O Deus da Bíblia é pessoal, comprometido e amoroso. Mais do que isso, o Deus da Bíblia é sábio e deseja tanto os fins quanto os meios. Deus não faz as coisas a despeito ou à parte do livre-arbítrio humano. Em vez disso, Deus faz as coisas por meio do livre-arbítrio humano. Ele ordenou que Farel espontaneamente exigisse que Calvino permanecesse em Genebra, criando assim a exigência de Farel por meio da decisão de Farel de fazer a exigência. Um entendimento calvinista do livre-arbítrio leva a uma atividade zelosa (conforme desejada por Deus), não à inatividade. Neste ponto, a resposta mais comum dos filósofos evangélicos é que a posição calvinista transforma os seres humanos em meras marionetes e Deus num cruel mestre de marionetes.69 Para ver a força dessa resposta, suponha que eu construí uma máquina e prendi um gato nela. Suponha também que eu usei a máquina para forçar o gato a rasgar o caro tapete de um amigo. Nesse caso, o gato não seria moralmente responsável pelo dano. Se, depois, eu infligisse ao gato um doloroso castigo pelo seu “crime”, minhas ações seriam terrivelmente cruéis. Para os filósofos com expectativas libertárias sobre a liberdade, seria no mínimo tão injusto e cruel se o decreto de Deus determinasse acontecimentos e, depois, ele punisse as pessoas por cometerem os crimes que Deus decretou. A resposta calvinista deve concentrar-se no pressuposto libertário imperfeito de que não temos evidências sobre o modo como Deus pensa sobre o relacionamento entre a sua vontade e os nossos atos. Se a Palavra de Deus ficou em silêncio sobre essa questão, nós teríamos de depender das nossas intuições sobre marionetes e mestres de marionetes. Porém, a Palavra de Deus não é silente. Em Romanos 9 (e Jr 18.1-4, que Paulo ecoa), os seres humanos são comparados a barro nas mãos de um oleiro. Nessa analogia, os seres humanos não têm mais independência do que uma marionete. A despeito disso, Deus destina alguns vasos à destruição para sua glória. Essa é uma palavra dura, mas um quadro semelhante aparece em outro lugar da Escritura (ver Is 29.16; 46.10; 1Rs 22.13-40; Jó 42.2; At 2.23;4.28). Em vez de usar os nossos sentimentos sobre a nossa liberdade para corrigir a nossa leitura da Escritura, devemos usar a Escritura para corrigir as conclusões a que chegamos com base nos nossos sentimentos. Afinal, o que haveria de tão ruim em ser uma marionete a serviço da glória de Deus? Seria terrivelmente humilhante ser uma marionete totalmente controlada por outra criatura, mas Deus não é apenas outra criatura. Deus é Deus. O legado de Calvino nas contínuas discussões filosóficas sobre o livre-arbítrio exerce a sua influência, acima de tudo, nesses pontos. A glória, o conhecimento e a independência de Deus são mais importantes do que a autonomia e a dignidade humanas. E as nossas intuições precisam submeter-se à Palavra de Deus, não o contrário. Os filósofos calvinistas precisam trabalhar para explorar as implicações dessas exigências bíblicas, até mesmo quando as conclusões são impopulares. Embora seja improvável que o compatibilismo teológico atrairá um grande número de seguidores entre os filósofos não cristãos, o futuro da metafísica calvinista precisa se apegar à supremacia do senhorio de Deus e da suprema autoridade da Palavra de Deus. Conclusão: O futuro da filosofia calvinista Quinhentos anos depois do seu nascimento, a obra de Calvino continua a desempenhar um papel importante no desenvolvimento da filosofia ocidental. Embora os seus pontos de vista sejam, às vezes, descaracterizados ou mal compreendidos, sua insistência na glória de Deus e na dependência dos seres humanos caídos da graça de Deus ainda é amplamente influente. Nenhum desses temas (a glória de Deus e a depravação humana) será jamais bem-vindo entre os filósofos seculares. Porém, precisamente pelo fato de a doutrina paulina do sensus divinitatus de Calvino estar correta quanto ao conhecimento universal da existência e do poder de Deus, a filosofia calvinista será sempre atraente, mesmo quando impopular. O desafio para os futuros filósofos calvinistas é envolver-se com o mundo filosófico com cada vez mais confiança. O declínio do modernismo diminuiu o estigma há tanto tempo associado à sincera dependência da Palavra de Deus e ao reconhecimento da visão espiritual como fonte de conhecimento. O mundo filosófico está questionando pressupostos seculares antigos e estreitos. Calvinistas e outros filósofos cristãos que levam a sério a má notícia sobre o pecado e a boa notícia do evangelho não podem esperar ser populares. Porém, podemos e devemos esperar seguir o exemplo de Calvino e levar a Palavra de Deus a influenciar problemas e pressupostos filosóficos. Calvino poderia não ter desejado ter um movimento filosófico que levasse o seu nome, mas se agradaria de ver o seu compromisso com a glória de Deus e a Palavra de Deus continuando a fazer diferença na disciplina da filosofia.70 1 John Piper, Desiring God (Colorado Springs: Multnomah Books, 2003); Nicholas Wolterstorff, Art in action: Toward a Christian aesthetic (Grand Rapids: Eerdmans, 1980); Hans Rookmaaker, Modern art and the death of a culture (Wheaton, IL: Crossway Books, 1994); Roy Clouser, The myth of religious neutrality: An essay on the hidden role of religious belief in theories (Notre Dame, IN: University of Notre Dame Press, 2005), esp. 269-302; James Skillen, In pursuit of justice: Christian- democratic explorations (Nova York: Rowman & Littlefield, 2004). O legado de Calvino na arquitetura também é surpreendentemente extenso. Minha percepção desse legado é um resultado da obra do meu aluno Luke Irwin. Seu ensaio sobre esse legado está em www.covenant.edu/docs/academics/philosophy/studentwork/Irwin_on_Calvin_and_Architecture.pdf. Fui alertado para a importância do lugar de John Piper no legado de Calvino pelo meu aluno Nathan Newman. Seu ensaio sobre Calvino e Piper está em www.covenant.edu/docs/academics/philosophy/studentwork/Newman_on_Calvin_and_Piper.pdf. 2 Institutas, 1.11.1; “John Calvin to the reader”, 4; e “Prefatory address to King Francis”, 12-13. 3 Para uma explicação útil de Calvino sobre a filosofia, ver Charles Partee, Calvin and classical philosophy, Interpretation Bible studies (Louisville: Westminster John Knox Press, 2005). 4 Herman Dooyeweerd, In the twilight of Western thought (Nutley, NJ: Craig Press, 1980), 1-60, inicia com uma seção intitulada “The pretended autonomy of philosophical thought”. A “Introduction” de R. J. Rushdooney à sua edição da obra de Dooyeweerd enfatiza o problema do raciocínio autônomo. 5 Calvino sustentavaque a submissão ao Espírito Santo e à Palavra de Deus é necessária à filosofia cristã, mas não suficiente. Institutas, 3.7.1-3 também faz um chamado à abnegação. 6 Herman Bavinck, The philosophy of revelation (Whitefish, MT: Kessinger Publishing, 2008), faz suas Stone lectures de 1908-9, nas quais desenvolve a ênfase de Calvino na revelação na epistemologia. Para uma extensão recente desse tema às ciências naturais, ver Tim Morris e Don Petcher, Science and grace (Wheaton, IL: Crossway Books, 2006), 207-42. 7 Institutas, 1.1.3. 8 Ibid., 1.1.1. 9 Ibid., 1.1.10. 10 Um exemplo é Thomas Reid, An inquiry into the human mind on the principles of common sense, org. D. Brookes (University Park, PA: Pennsylvania State University Press, 2003); também George Turnbull, The principles of moral philosophy, ed. de 1740 (Hildesheim, Alemanha: Georg Olms Verlag, 1976). 11 David Hume, A treatise of human nature, org. L. A. Selby-Bigge, 2ª ed. (Oxford: Clarendon Press, 1978), publicada pela primeira vez em 1739-40; também Antoine-Nicholas de Condorcet, The progress of the human mind (Chicago: G. Lander, 2009), publicada pela primeira vez em 1795. 12 Institutas, 1.7.2. 13 Para simplificar, vou usar “Escritura”, “Bíblia” e “Palavra de Deus” como sinônimos. Embora os termos não sejam coextensivos, as diferenças não afetam as minhas afirmações contidas neste capítulo. 14 Institutas, 1.7.5, onde Calvino se refere a Is 43.10 e 54.13 como apoio. Sobre a autoridade da Escritura em Calvino, ver B. B. Warfield, Calvin and Augustine (Filadélfia: Presbyterian and Reformed, 1956), 70-79. 15 Institutas, 1.7.4. 16 Rene Descartes, Discourse on method and meditations on first philosophy (Miami: BN Publishing, 2008), especialmente a segunda meditação. Para explicações concisas sobre a epistemologia de Descartes, ver Frederick Copleston, History of philosophy (Nova York: Doubleday, 1994), 4.90-115, bem como Gordon Clark, Thales to Dewey (Unicoi, TN: Trinity Foundation, 1989). 17 The Westminster confession of faith (Glasgow: Free Presbyterian Publications, 1973), 1.6.22. 18 Lesslie Newbigin, Proper confidence (Grand Rapids: Eerdmans, 1995), 29-44, fornece um resumo conciso. 19 Jonathan Edwards, A treatise concerning religious affections, em John E. Smith, Harry S. Stout e Kenneth P. Minkema, A Jonathan Edwards reader (New Haven: Yale University Press, 1995), 137- 71. 20 Thomas Reid, Essays on the intellectual powers of man, org. D. Brookes (University Park, PA: Pennsylvania State University Press, 2002); ver tambémWilliam C. Davis, Thomas Reid’s moral epistemology on legal foundations (Londres: Thoemmes Continuum, 2006). 21 Cornelius Van Til, A Christian theory of knowledge (Nutley, NJ: Presbyterian and Reformed, 1969); John Frame, The doctrine of the knowledge of God (Phillipsburg, NJ: Presbyterian and Reformed, 1987). 22 Cornelius Van Til, Christian theistic evidences (Phillipsburg, NJ: Presbyterian and Reformed, 1969), 69. 23 Gordon Clark, A Christian view of men and things (Grand Rapids: Baker, 1981), 318-22. 24 Alvin Plantinga, Warranted Christian belief (Oxford: Oxford University Press, 2000), 241-89. 25 Institutas, 3.2.41. 26 Plantinga, Warranted Christian belief, 259-66, fornece uma discussão ampliada de Calvino sobre a autoautenticação da Escritura. 27 Para mais sobre Plantinga a respeito de livre-arbítrio e criação, ver sua obra The nature of necessity (Oxford: Oxford University Press, 1974), esp. 169-83. 28 Sou grato à minha aluna Lauren Fritz pelo apoio à pesquisa desta seção. O ensaio de Lauren, “John Calvin’s sensus divinitatus and the apologetic task”, está em www.covenant.edu/docs/academics/philosophy/studentwork/Fritz_on_ Calvin’s_Senus_Divinitatus.pdf. 29 João Calvino, The Genevan catechism (1536), disponível em inglês em www.ondoctrine.com/2cal0504.htm. 30 Institutas, 1.1.3. 30 Rene Descartes, Meditations on first philosophy, Terceira meditação. 32 John Locke, An essay concerning human understanding (Nova York: Oxford University Press, USA, 1977), 4.3.18. 33 Para um relato sobre o papel da Filosofia escocesa do senso comum no século 19, ver James McCosh, The Scottish philosophy (Hildesheim, Alemanha: Georg Olms Verlagsbuchhandlung, 1966). 34 Um resumo e defesa claros dessa posição são dados em R. C. Sproul, John Gerstner e Arthur Lindsley, Classical apologetics (Grand Rapids: Zondervan, 1984). 35 Herman Bavinck, Our reasonable faith (Grand Rapids: Baker, 1956), 26. 36 Ibid., 31. 37 Van Til, A Christian theory of knowledge; Greg Bahnsen, Pushing the antithesis (Powder Springs, GA: American vision, 2007); John Frame, The doctrine of the knowledge of God; e K. Scott Oliphint, Reasons (for faith): Philosophy in the service of theology (Phillipsburg, NJ: P&R Publishing, 2006). 38 Paul Helm, Faith and reason (Nova York: Oxford University Press, USA, 1999); Esther Lightcap Meek, Longing to know (Ada, MI: Brazos Press, 2003). 39 Alvin Plantinga, Warrant: The current debate (Oxford: Oxford University Press, 1993); Alvin Plantinga, Warrant and proper function (Oxford: Oxford University Press, 1993); Plantinga, Warranted Christian belief; Alvin Plantinga e Nicholas Wolterstorff (orgs.), Faith & rationality: Reason & belief in God (Notre Dame, IN: University of Notre Dame Press, 1983). A “epistemologia reformada” é “reformada” no sentido de originalmente (no artigo de Plantinga de 1980, “The reformed opbjection to natural theology”, lido para a American catholic philosophical association) voltado a elaborar sobre as visões calvinistas sobre epistemologia. Na sua “Introdução” a Faith & rationality, Wolterstorff admite que o sistema é denominado “epistemologia calvinista” ou “epistemologia reformada”, “não muito apropriadamente”, 7. 40 Essa teoria “funcionalista correta” do conhecimento é desenvolvida em detalhe em Warrant and proper function, de Plantinga. Os críticos de Plantinga incluem tanto cristãos quanto não cristãos. Ver Paul Helm, John Calvin’s ideas (Nova York: Oxford University Press, 2006), 209-45; Richard Swinburne, “Plantinga and warrant”, Religious studies 37, 2 (jun/2001): 203-14. Steve Wykstra, “’Not done in a corner’: How to be a sensible evidentialist about Jesus”, Philosophical books 43, 2 (Oxford: Blackwell, 2002), 92-116. 41 Michael L. Czapkay Sudduth, “The prospects for ‘mediate’ natural theology in John Calvin”, Religious studies 31, 1 (mar/1995): 53-68; e Michael L. Czapkay Sudduth, “Plantinga’s revision of the reformed tradition: Rethinking our natural knowledge of God,” Philosophical books vol. 43, 2 (Oxford: Blackwell, 2002), 81-91. 42 Plantinga, Warranted Christian belief, 246-52, 290-94. 43 Institutas, 3.2.7; Plantinga, Warranted Christian belief, 251-52. 44 Plantinga, Warranted Christian belief, 294-323. 45 Institutas, 1.15.3-4. 46 Calvino, Commentary on Genesis, v. 1 (Forgotten books, 2007), referente a Gênesis 1.26. 47 John Milton, Paradise lost (Nova York: Penguin classic, 2003), oferece a soberba de Satanás como uma explicação para a queda, ultrapassando em muito os dados bíblicos. 48 Institutas, 2.1.4-11. 49 Abraham Kuyper, Lectures on Calvinism (Grand Rapids: Eerdmans, 1931); Dooyeweerd, In the twilight of Western thought; e Clouser, The myth of religious neutrality. 50 Stephen Moroney, The noetic effects of sin: An historical and contemporary exploration of how sin affects our thinking (Lanham, MD: Lexington books, 1999). 51 Merold Westphal, “Taking St. Paul seriously: Sin as an epistemological category”, em T. P. Flint (org.), Christian philosophy (Notre Dame: University of Notre Dame Press, 1990), 216. 52 Sou grato ao meu aluno Colby Wilkins por um importante apoio na pesquisa e pelas observações úteis. O ensaio de Colby sobre o legado de Calvino em debates sobre o livre-arbítrio está em www.covenant.edu/docs/academics/philosophy/studentwork/Wilkins_on _Calvin_and_Compatibilism.pdf. 53 Uma seção inteira poderia ser dedicada ao impacto de Calvino sobre a pesquisa filosófica do relacionamento entre corpo e alma, e os problemas da identidade pessoal eda imortalidade humana. Calvino é incorretamente acusado de comunicar um ódio acriticamente platônico pelo corpo físico. Um bom lugar para começar no entendimento dessa questão e justificar a visão de Calvino seria John Cooper, Body, soul, and life everlasting: Biblical anthropology and the monism-dualism debate (Grand Rapids: Eerdmans, 2000); Paul Helm, John Calvin’s ideas, 129-56; e Margaret R. Miles, “Theology, anthropology, and the human body in Calvin’s Institutas of the Christian religion”, Harvard theological review 74, 3 (1981): 311. 54 Agostinho, On free choice of the will (Indianapolis: Hackett publishing, 1993), 3.4.11. Para uma afirmação contemporânea dessa posição de “simples presciência”, ver David P. Hunt, “Divine providence and simple foreknowledge”, Faith and philosophy 10, 3 (1993): 394-414. 55 O compatibilismo de Calvino é claro nas suas Institutas (1.17.3-5, 2.3.13-14, 2.4.8, 2.5.1-19) e na sua obra The bondage and liberation of the will: A defense of the orthodox doctrine of human choice against Pighius (Grand Rapids: Baker, 1996). 56 Um “compatibilista” sustenta simplesmente que a verdadeira liberdade humana e algum tipo de determinismo são compatíveis. Leibniz, por exemplo, era compatibilista, tanto quanto os escolásticos católicos romanos. Os filósofos que rejeitam o compatibilismo costumam sustentar uma posição “libertária”, segundo a qual a verdadeira liberdade só é possível se o determinismo for falso. No tocante à análise de Thomas, Molina e Banez por Leibniz, ver Jack D. Davidson, “Untying the knot: Leibniz on God’s knowledge of future free contingents”, History of philosophy quarterly 13, 1 (jan/1996): 89-116. 57 Jonathan Edwards, A careful and strict inquiry into the modern prevailing notions of freedom of the will, which is supposed to be essential to moral agency, virtue and vice, reward and punishment, praise and blame (originalmente publicado em 1754), em John E. Smith, Harry S. Stout e Kenneth P. Minkema, A Jonathan Edwards reader (New Haven: Yale University Press, 1995). Sobre ser calvinista, Edwards escreve: “Nestes dias, entre a maioria, o termo ‘calvinista’ é um termo mais reprovado do que o termo ‘arminiano’; contudo, não devo considerar totalmente fora de propósito ser chamado calvinista, para fins de distinção: embora negue totalmente uma dependência de Calvino, ou crer nas doutrinas que sustento, porque ele creu nelas e as ensinou; e não posso ser justamente acusado de crer em tudo exatamente como ele ensinou”, 193. 58 Institutas, 2.4 e 2.5, bem como The bondage and liberation of the will. Ver também Paul Helm, “Calvino and Bernard on freedom and necessity: A reply to Brummer”, Religious studies 30, 4 (Cambridge: Cambridge University Press, 1994), 457-65. 59 Uma das afirmações mais claras da conexão entre a liberdade libertária e a responsabilidade moral é dada por Peter van Inwagen em An essay on free will (Oxford: The Clarendon Press, 1983). 60 Edwards, Freedom of the will, 206-8. 61 Roderick Chisholm, “Human freedom and the self,” reimpresso em R. C. Hoy e L. N. Oaklander, Metaphysics (Belmont: Wadsworth Publishing, 1991), 364: “Se somos responsáveis e se o que tenho tentado dizer é verdade [que liberdade significa o poder de fazer diferente], temos uma prerrogativa que alguns atribuiriam somente a Deus: cada um de nós, ao agir, é uma força motriz não movida”. 62 Thomas Flint, “Two accounts of providence”, em Divine and human action: Essays in the metaphysics of theism, org. Thomas V. Morris (Ithaca, NY: Cornell University Press, 1988), 175-76. 63 John Sanders, “Why simple foreknowledge offers no more providential control than the openness of God”, Faith and philosophy 14, 1 (1997): 26. 64 Søren Kierkegaard, Concluding unscientific postscript (Princeton, NJ: Princeton University Press, 1974), 232. A sua afirmação mais explícita pode ser encontrada no seu Journals and papers, org. e trad. Howard V. Hong e Edna H. Hong (Bloomington, IN: Indiana University Press, 1970), citação número 1251: “Apenas a onipotência pode retirar-se ao mesmo tempo em que se doa. […] Aquele a quem devo tudo de fato fez-me independente”. Kierkegaard não lidou com a objeção de que “Deus tem o poder para fazer um ser absolutamente independente” é incoerente do mesmo modo que “Deus tem o poder de fazer uma pedra que ele é incapaz de levantar” é incoerente. 65 Molinismo é a posição desenvolvida por Luis de Molina no século 16. Ver seu Liberi arbitri cum gratiae donis, divina praescientia, providentia, praedestinatione et reprobatione concordia (The harmony of free will with divine grace, divine foreknowledge, providence, predestination, and reprobation), 1588. Uma tradução para o inglês da crucial Parte IV foi feita por Alfred J. Freddoso em Luis de Molina, On divine foreknowledge (Ithaca, NY and Londres: Cornell University Press, 1988). Uma explicação incomumente clara da doutrina do conhecimento do meio de Molina e suas implicações para a providência e a predestinação pode ser encontrada em Thomas Flint, “Two accounts of providence”, em Morris, Divine and human action, 147-81. Afirmações claras da posição teísta aberta podem ser encontradas em Clark Pinnock, Richard Rice, John Sanders, William Hasker e David Basinger, The openness of God (Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 1994) e em John Sanders, The God who Risks: A theology of divine providence (Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 1998). 66 Para mais sobre a inadequação bíblica das visões molinista e teísta aberta sobre a presciência de Deus, ver Paul Helm, The providence of God (Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 1994), 55-61; John Frame, The doctrine of God (Phillipsburg, NJ: P&R Publishing, 2002), 160-89; e meu breve artigo “Does God know the future?” em Modern reformation (set-out/1999). 67 Harry G. Frankfurt, “Alternate possibilities and moral responsibility”, The journal of philosophy 66, 23 (4/dez/1969): 829-39. O contraexemplo crucial começa na página 836. 68 Para uma extensa discussão das implicações dessas passagens para um compatibilismo calvinista, ver John Calvin Wingard, “Morally significant freedom, moral responsibility, and causal determinism: A compatibilist view”, Testamentum imperium 2 (2009): seleção nº 12 (www.preciousheart.net/ti/2009/index.htm). 69 Charles K. Cannon, “’As in a theater’: Hamlet in the light of Calvin’s doctrine of predestination”, Studies in English literature, 1500-1900 11, 2, Elizabethan and Jacobean drama (primavera de 1971): 211, menciona essa objeção comum. As referências ao problema na Internet são menos sutis: www.bcbsr.com/topics/calvinism_heresy.html. 70 Sou grato ao meu colega do Departamento de Filosofia da Covenant College, John Calvin Wingard, pela ajuda no desenvolvimento deste capítulo. Os alunos do meu seminário sobre Calvino no Covenant na primavera de 2009 forneceram horas de discussão e também pesquisas úteis. Além daqueles mencionados nas notas acima, esse seminário incluiu Sam Belz, Anna Cameron, Nathan Davis, Peter Garriott, Ross Meyer, Anna Phillips, Justin Richards, Graham Svendsen e Bryce Wilkins. 7 Calvino, política e ciência política Paul Marshall Há uma abordagem calvinista à política? As discordâncias sobre quase todos os teóricos importantes são, é claro, permanentes. Porém, como no seu próprio tempo, Calvino ainda parece provocar não apenas visões diferentes sobre sua obra e vida, mas, com frequência, pontos de vista radicalmente opostos. O teórico político Michael Walzer observou corretamente que “praticamente todo o mundo moderno foi encontrado no calvinismo: política liberal e associação voluntária; capitalismo e a disciplina social na qual ele se apoia; burocracia com seus procedimentos sistemáticos e seus funcionários supostamente diligentes e dedicados; e, finalmente, todas as formas rotineiras de repressão, falta de alegria e aspiração tensa”.1 Há ainda permanentes interpretações contestadoras da natureza, da situação, do lugar e da influência da visão da política de Calvino.2 Em particular, embora a própria expressão“ciência política” tenha, provavelmente, sido cunhada pelo calvinista Althusius, vários teóricos políticos contemporâneos argumentam que Calvino nada teve de original a dizer sobre política. Por ser generalizada, essa visão precisa ser abordada – especialmente porque essa tentativa de marginalização de Calvino é baseada numa rejeição secular a priori paroquial e dogmática da sua, ou, de fato, de qualquer teoria cristã robusta da política. Talvez o mais notável expoente da visão de não originalidade de Calvino seja Quentin Skinner, cuja obra The foundations of modern politial thought [As bases do pensamento político moderno] é, provavelmente, o mais influente levantamento recente na língua inglesa sobre a teoria política dos séculos 16 e 17. Skinner afirma que uma “teoria calvinista da revolução”, que tem sido frequentemente considerada o mais interessante dos ensinamentos de Calvino sobre a política, não existiu realmente.3 Precisamos ser cuidadosos quanto ao que Skinner quer dizer com isso. Com certeza, ele “não tem dúvida de que os revolucionários do início da Europa moderna eram, em geral, calvinistas professos” ou de que houve uma “teoria da revolução popular desenvolvida pelos calvinistas radicais na década de 1550” que moldou “a principal corrente do moderno pensamento constitucionalista”. Ele até mesmo se refere à obra Two treatises of governmente [Dois tratados sobre o governo], de Locke, como “o texto clássico da política calvinista radical”. Seu argumento não é que os calvinistas eram ignorantes ou não tinham teorias interessantes e complexas, e sim que “praticamente não há na teoria elementos especificamente calvinistas”. As teorias defendidas pelos calvinistas podem, realmente, ter sido – e, de fato, foram – muito importantes, mas as crenças calvinistas não acrescentaram elementos importantes às suas opiniões. Os calvinistas podem ter tido visões interessantes e influentes, mas elas não eram especificamente visões calvinistas. Em vez disso, suas teorias “estavam quase inteiramente contidas na linguagem legal e moral dos seus adversários católicos” ou poderiam até mesmo ser, “em grande parte, uma repetição da teoria constitucional luterana”.4 Para Skinner, certamente os calvinistas foram influentes. Contudo, essa influência limitou-se a transmitir ideias emprestadas de outros. Assim, embora tenham influenciado Locke, os calvinistas fizeram isso apenas de um modo derivado. A linha de influência importante foi que “os conceitos em termos dos quais Locke e seus sucessores desenvolveram seus pontos de vista sobre soberania popular e direitos de revolução já haviam sido, em grande parte, articulados e aperfeiçoados mais de um século antes nos escritos legais de juristas tão radicais quanto Salamonio, nos tratados teológicos de ocamistas como Almain e Mair”. De fato, Skinner nem mesmo está dizendo que os calvinistas eram meros condutores de teorias alheias, porque lhes dá crédito por “contribuições distintas” em abordar a questão da relação entre o cargo e a pessoa de um magistrado e na sua permissividade referente a quem pode resistir legitimamente a um tirano. Não obstante, ele insiste que tais contribuições e inovações não eram particularmente calvinistas, mas adaptações dentro de uma estrutura conceitual emprestada dos católicos. Para Skinner, os calvinistas foram certamente inovadores, mas não de uma maneira calvinista.5 Ele argumenta que, “numa extensão quase paradoxal […] os calvinistas radicais contaram com um esquema de conceitos derivados do estudo do direito romano e da filosofia moral escolástica”.6 Em suma, Skinner diz nada haver de original ou singular na teoria política calvinista; portanto, num sentido preciso, não há uma teoria política calvinista. A razão para Skinner se ater a essa visão influente não é devida a uma compreensão superior do pensamento de Calvino, mas porque ele simplesmente define o pensamento político de um modo que exclui qualquer contribuição calvinista por definição. Skinner quer oferecer um exame do pensamento político, mas também quer “indicar algo do processo pelo qual o conceito moderno do Estado veio a ser formado”, para mostrar como “os principais elementos de um conceito reconhecidamente moderno do Estado foram gradualmente adquiridos”.7 Esse outro objetivo dá origem ao título da sua obra principal, The foundations of modern political thought [As bases do pensamento político moderno], o que significa que ela é, dentre outras coisas, uma tentativa de explorar o que fundamenta o Estado moderno. Dados esses objetivos, é importante saber o que Skinner quer dizer com “moderno”. Para Skinner, um “Estado […] conceitualizado em termos distintamente modernos” seria “o único objeto apropriado da lealdade dos seus cidadãos” e não teria “rival dentro dos seus próprios territórios como poder legislativo e objeto de lealdade”. Disso decorre o “conceito moderno do Estado” de Skinner implicar, dentre outras coisas, a exclusão de qualquer crença religiosa do cerne da teoria política. Assim, para Skinner, a teoria política moderna exige não apenas a separação entre igreja e Estado, mas um Estado que não tenha “rival como um objeto de lealdade”. Isso exige um modo de teorizar sobre o governo que seja secular no sentido de que exclui qualquer raciocínio religioso.8 Porém, claramente, muitos dos principais textos de teoria política do século 16 não moldaram de modo importante categorias e concepções modernas (a menos que, semelhantemente aos liberais, simplesmente definamos “textos principais” como aqueles que influenciaram a era moderna). Tais obras, importantes em seu próprio tempo, mas incompatíveis com pessoas que se consideram “modernas”, seriam, em princípio, incluídas no primeiro objetivo de Skinner de “um relato esboço dos principais textos do período”, mas não no seu segundo objetivo de demonstrar “o processo pelo qual o Estado moderno” surgiu. Assim, dois dos objetivos da sua principal obra estão em tensão. Iluminar o “processo” requer ignorar ou subestimar textos, por mais originais que sejam, que estejam distantes das concepções modernas, enquanto “delinear os principais textos” requer destacá-los e expô-los. No caso do calvinismo, Skinner confundiu esses dois objetivos minimizando o que não é compatível com mentes “modernas”, que significam “seculares”, ao mesmo tempo implicando que isso realmente não existe. Dada essa definição de teoria política, Calvino precisa ser excluído simplesmente por definição, uma vez que ele não aborda o estudo da política do modo moderno aprovado. Certamente, ele não tem uma concepção “teocrática” da imposição da lei bíblica, algo que de modo firme e explícito condena: A lei de Deus dada por Moisés (não) é desonrada quando é revogada e novas leis são preferidas a ela […] porque o Senhor […] não deu essa lei para ser proclamada a todas as nações e para vigorar em todos os lugares. Em vez disso, precisamos fazer as nossas leis no tocante à condição de tempos, lugar e nação. […] Quão malicioso e odioso para com o bem- estar público seria um homem que é ofendido por tal diversidade.9 Em vez de postular um Estado que “não tem rival, dentro dos seus próprios territórios como poder legislativo e objeto de lealdade”, ele declara que a igreja, embora não normativamente rival, certamente é outro “objeto de lealdade”. Ele enraíza uma compreensão criativa da política diretamente dentro de uma cosmovisão cristã. Nisso, ele reflete muito sobre a Reforma e o próprio protestantismo. De fato, as contribuições fundamentais de Calvino ao estudo da política não vêm das particularidades detalhadas da teoria legal, mas da maneira como ele incorporou a política a uma cosmovisão ou cosmologia cristã particularmente protestante. As contribuições mais importantes de Calvino vieram no que agora poderíamos denominar uma sociologia política que reformula a natureza da ação política. Protestantismo e sociedade O pensamento de Calvino, embora tenha elementos distintivos, está enraizado nos temas gerais do protestantismo. Não obstanteos reformadores tenham se concentrado na teologia, na doutrina, na vida pessoal e na igreja, ao tentar reafirmar a primazia da fé e a primazia da Escritura eles também produziram mudanças, muitas vezes inadvertidadamente e, por vezes, não as que eles queriam, no entendimento do “eu”, na estrutura da família, na educação, na ciência, na literatura, na ética, na economia e na política. Por exemplo, a ênfase em que cada pessoa poderia estar diretamente relacionada a Deus por meio do mediador Jesus Cristo teve uma variedade de efeitos, dos quais mencionarei apenas dois, ambos relacionados, em primeiro lugar, à própria igreja. Um deles foi que, conquanto tivesse sido elevada, a igreja foi também, em certo sentido, destronada, pelo menos como organização. Ela já não era mais, em princípio, considerada como a cabeça, o corpo mais elevado, a líder da sociedade. Daí ter surgido a questão do relacionamento entre diferentes instituições da sociedade. Outro efeito, especialmente pronunciado na tradição da igreja livre, foi enfatizar a dimensão da igreja como um corpo de cristãos. Isso incentivou o que poderíamos chamar, vagamente, de estruturas mais democráticas. Muitos comentaristas encontraram as raízes da democracia e do constitucionalismo modernos nessa mudança eclesiástica, especialmente como transmitida por meio do calvinismo e do puritanismo. Talvez esse destronamento possa ser mais bem descrito como o destronamento do sacerdócio e das ordens monásticas. No catolicismo do final do período medieval, o padre, o monge e a freira tendiam a ser vistos como aqueles que eram, pelo menos potencialmente, verdadeiramente santos. Eles eram uma elite que podia dedicar suas vidas a coisas espirituais. As outras pessoas e os outros estilos de vida eram bons, vitais e necessários, mas eram considerados como pertencentes a uma ordem espiritual inferior. Quase sem exceção, os protestantes, incluindo Calvino, criticaram essa divisão de uma vida inferior e uma vida superior e afirmaram a potencial igualdade de todos os estilos de vida. Embora os cristãos medievais usassem habitualmente o termo “vocação” para referir-se somente ao sacerdócio e às ordens religiosas, os protestantes enfatizavam que todas as tarefas e estilos de vida eram “vocações”, “chamados”, “profissões”.10 Essa reafirmação de todos os tipos de trabalho e todos os estilos de vida como meios equivalentes de serviço cristão orientavam os cristãos para uma vocação divina no mundo. Uma das acusações de heresia contra William Tyndale, por exemplo, foi que ele havia afirmado: “Não há um trabalho melhor do que outro para agradar a Deus: derramar água, lavar pratos, ser sapateiro ou apóstolo, tudo é uma coisa só; lavar pratos e pregar são equivalentes no tocante a agradar a Deus”. Essa acusação pareceu ser dirigida à própria afirmação de Tyndale, mais tarde citada por William Perkins, de que “se compararmos atos e atos, há uma diferença entre lavar pratos e pregar a palavra de Deus; mas, no tocante a agradar a Deus, nenhuma: pois nem isso nem aquilo agrada, mas tanto um quanto o outro Deus escolheu, pôs seu espírito nele e purificou seu coração pela fé e confiança em Cristo”.11 Temas semelhantes foram consistentemente defendidos por Lutero, que escreveu: Se você é um trabalhador braçal, descobre que a Bíblia foi posta na sua oficina, na sua mão, no seu coração. Ela ensina e prega como você deve tratar o seu próximo […] basta olhar para as suas ferramentas […] sua agulha e dedal, seu barril de cerveja, seus bens, suas réguas, bitolas ou compassos. […] e você lerá essa declaração inscrita neles […] Você tem tantos pregadores quanto tem transações, produtos, ferramentas e outros equipamentos na sua casa e lar.12 Cosmovisão e sociedade de Calvino Quando abordamos Calvino para entender como os seus pontos de vista se encaixam numa cosmovisão cristã, surge uma abordagem distinta à sociedade. A visão de Calvino da soberania de Deus define a tendência geral do seu pensamento, incluindo seu pensamento social e político. Refletindo as concepções protestantes que acabamos de descrever, ela produz três temas básicos inter-relacionados. Um deles é que Deus é soberano sobre tudo que há no mundo. O segundo é que, pelo fato de a soberania residir somente em Deus, nenhuma instituição terrena pode reivindicar a soberania final para si mesma. O terceiro é que a soberania de Deus requer uma resposta humana ativa e voluntária em cada área da vida. No tocante à soberania de Deus, um dos temas centrais de Calvino é que o mundo, e tudo que há nele, é criado por Deus, ordenado por Deus, aponta para Deus e pode ser usado para dar honra a Deus e socorro ao homem: “A infinita sabedoria de Deus é revelada na admirável estrutura do céu e da terra”. O “fim para o qual todas as coisas foram criadas” era que “nenhuma das conveniências e coisas necessárias da vida deve faltar aos homens. Na própria ordem da criação é evidente a paternal solicitude de Deus para com o homem”.13 Esse foco na ordem de toda a criação tende a derrubar qualquer rejeição ascética do mundo. Ele também tende a derrubar qualquer esquema da natureza e da graça no qual certas partes do mundo, ou certos tipos de atividade, como a piedade ou a contemplação, são tratados como necessariamente mais santos do que outros. Às vezes, Calvino ainda mantém um esquema de natureza/graça e trata as atividades eclesiásticas como um reino mais elevado do que os outros. Não obstante, um grande impulso da sua obra é dedicado a enfatizar a soberania integral de Deus sobre todas as dimensões da vida. Por isso, ele diz que “a autoridade civil é um chamado não só santo e legítimo perante Deus, mas também o mais sagrado e, de longe, o mais honrado de todos os chamados de toda a vida dos homens mortais”.14 Para Calvino, o mundo é concebido como um todo ordenado, no qual o homem é colocado como senhor em sujeição voluntária à vontade de Deus. Bohatec até mesmo refere-se à sua “Pathos der Ordnung”, sua paixão pela ordem.15 Como diz Wolin, “o conceito geral de ordem foi uma premissa comum à sociedade religiosa e à sociedade política”. O método global empregado por Calvino para levar as duas sociedades a algum tipo de congruência foi tratar as duas como sujeitas ao princípio geral da ordem – ou, como diz André Biéler, “Tanto a vida religiosa quanto a vida material do cristão estão sujeitas à mesma ordem de Deus”.16 Dentro desse mundo ordenado, Calvino salienta que todas as atividades humanas devem ser “chamados” e, como tais, aos olhos de Deus elas são equivalentes. Como para Lutero, Tyndale e outros protestantes, essa igualdade refere-se às atividades humanas em si, mas também estende-se às organizações e instituições originadas de chamados humanos, nas quais eles são expressos e manisfestos. Cada parte da vida deve ser vivida com responsabilidade para com Deus e, portanto, nenhuma atividade ou instituição pode reivindicar ser o mediador pleno entre Deus e a humanidade. Essa diferenciação aplica-se à sociedade de maneira geral, porque “o Criador do mundo concedeu […] [à raça humana], por assim dizer, um edifício regularmente formado, dividido em vários compartimentos”.17 “A comunidade em geral está dividida, por assim dizer, em muitos jugos, dos quais surge uma obrigação mútua.”18 Ao inter-relacionar esses chamados, Calvino imagina a sociedade como sendo composta por grupos funcionalmente diversos, mas que se apoiam mutuamente, definidos pela vocação. Ele resume o dever de uma pessoa para com outra como o dever de “submissão mútua” – deve haver entre todos uma “ligação universal de sujeição”. “Deus nos ligou tão fortemente uns aos outros que nenhum homem deve se empenhar em evitar a sujeição; e onde quer que reine o amor, serviços mútuos serão prestados.” “Não excetuo sequer reis e governadores, que detêm a sua autoridade para o serviço à comunidade […] todos, por sua vez, devem ser exortados a se sujeitarem uns aos outros.”19 Essa sujeição mútua, e a igualdade de estilos de vida e atividades, levam a uma ênfase em que nenhumainstituição deve ter primazia de autoridade sobre as outras. Como observa Carney: Pareceria haver um caráter comum a todas as associações presentes na literatura política calvinista. Esse caráter comum não é nem individualista nem absolutista. Ele não começa com os direitos óbvios das pessoas, nem com a autoridade a priori dos governantes. Em vez disso, pergunta qual é a vocação (ou o propósito) de qualquer associação, e como essa associação pode ser organizada de modo a cumprir a sua finalidade essencial. A autoridade (ou regra) torna-se uma função da vocação; e um grande cuidado precisa ser tomado para fornecer estruturas constitucionais, tanto ideológicas quanto institucionais, para que a autoridade não se torne indevidamente fraca ou corrupta.20 Combinada com esse destaque sobre a soberania de Deus e a sujeição mútua está a ênfase de Calvino sobre a utilidade. Claramente, ele não é um utilitarista, mas enfatiza que precisamos utilizar os diversos dons que Deus nos deu. “Não é da vontade do Senhor que sejamos como blocos de madeira […] mas isso deve se aplicar a usar todos os talentos e vantagens que ele conferiu a nós.” Essa ênfase significa que Calvino tinha uma visão funcional, em vez de hierárquica, da vida econômica. O que é verdadeiro a respeito da economia aplica-se igualmente às instituições da sociedade em geral. Elas não devem ser dispostas numa ordem hierárquica que chegue até Deus, mas são dispostas lado a lado apoiando uma à outra em serviço mútuo a Deus em suas vocações específicas. Todo trabalho, toda vocação, todas as instituições, todos são igualmente Coram Deo. Isso produz aquilo a que Beyerhaus se refere como o efeito de “perfeito nivelamento” da ênfase de Calvino na soberania de Deus.21 Um resultado dessa concepção calvinista da ordem soberana foi “que uma sociedade poderia ser, ao mesmo tempo, bem organizada, disciplinada e coesa, contudo não ter um chefe”.22 A sociedade de Calvino não precisava de um chefe supremo; isso estava reservado para Deus. As linhas reais que Calvino busca traçar entre atividades e instituições, especialmente aquelas entre igreja e Estado, podem parecer totalmente confusas, especialmente para a mente “moderna”. Porém, ele sempre enfatizou que há uma “grande diferença entre o poder civil e o poder eclesiástico”, de modo que seria “imprudente misturar esses dois, que têm natureza totalmente diferente”.23 Assim, como Little ressalta, “mesmo nas condições ideais de Genebra, Calvino nunca permitiu que a igreja se tornasse organizacionalmente coincidente ou idêntica à magistratura. Em grau desconhecido na Zurique de Zuínglio, a Alemanha de Lutero ou a Inglaterra de Hooker, Calvino mantinha a independência da igreja diante da sociedade civil”.24 Resposta humana A ênfase de Calvino na igualdade é necessariamente compatível com a sua ênfase na voluntariedade e responsabilidade humanas. Ele ressaltou que a obediência de um cristão não deve, em primeiro lugar, ser prestada por medo das penas da lei, nem de má vontade para conquistar a salvação, nem nervosamente para provar a salvação. Em vez disso, a obediência deve ser prestada com gratidão em resposta ao dom da graça de Deus em Jesus Cristo: parte da liberdade cristã é que as consciências não observam a lei como se estivessem sob qualquer obrigação legal, mas que, estando libertas do jugo da lei, aceitam uma obediência voluntária à vontade de Deus. […] Elas nunca se envolverão com entusiasmo e presteza no serviço de Deus se não tiverem recebido anteriormente essa liberdade.25 Essa obediência livre é tanto maior porque não somos, em primeiro lugar, súditos de Deus nem servos de Deus: em vez disso, somos filhos de Deus: Veja como todas as nossas obras estão sob a maldição da lei se medidas pelo padrão da lei! Mas, então, como as almas infelizes se preparariam avidamente para uma obra pela qual poderiam esperar receber apenas maldição? Porém, se, libertas dessa exigência severa da lei, ou melhor, de todo o rigor da lei, elas ouvirem ser chamadas com bondade paterna por Deus, com alegria e grande avidez responderão e seguirão o seu líder. Em suma: As pessoas presas pelo jugo da lei são como servos a quem são atribuídas certas tarefas a cada dia pelos seus senhores. Esses servos pensam não ter realizado nada e não se atrevem a comparecer perante seus senhores se não tiverem cumprido a medida exata das suas tarefas. Porém, os filhos, que são tratados pelos seus pais de maneira mais generosa e franca, não hesitam em apresentar-lhes obras incompletas, feitas pela metade e até mesmo defeituosas, confiando em que sua obediência e prontidão de espírito será aceita pelos seus pais, mesmo não tendo realizado totalmente o que os seus pais pretendiam. Devemos ser esses filhos, confiando firmemente que os nossos serviços serão aprovados pelo nosso Pai extremamente misericordioso, por mais triviais, rudes e imperfeitos que possam ser.26 Embora possa parecer paradoxal para a mente moderna, precisamente devido à afirmação de Calvino sobre o cativeiro da vontade humana ao pecado, ele também conclama repetidamente por uma resposta livre e voluntária a Deus.27 Para Calvino, uma vez que a humanidade vive num estado de pecado, ainda deve, é claro, haver uma ordem de coerção. Todavia, concomitante a isso e além disso, como diz Little, o reino da consciência livre – como uma chave para toda a questão da ordem – é definitivo e fornece as diretrizes para o entendimento do plano de Deus e da sua obra no mundo. […] Nada é mais certo de que o Reino de Deus, para o qual todas as coisas convergem, inclui a superação dos mecanismos de coerção em favor da obediência voluntária.28 Essa ênfase sobre uma resposta livre e voluntária afeta toda a visão de Calvino sobre a sociedade. Ele resume o dever de uma pessoa para outra como o dever de “submissão mútua” – deve haver entre todos uma “ligação universal de sujeição”. “Deus nos ligou tão estreitamente uns aos outros que nenhum homem deve se esforçar para evitar a sujeição; e, onde quer que o amor reine, serviços mútuos serão prestados.”29 A visão de Calvino da atividade econômica ilustra esse padrão de sujeição mútua. Embora, devido à queda, o trabalho seja frequentemente difícil e doloroso, no início ele foi dado por Deus à humanidade, explicitamente como um presente e uma responsabilidade. O trabalho deve ser assumido de maneira voluntária e mútua como serviço a Deus e aos nossos semelhantes. O próprio comércio é uma maneira natural de as pessoas se comunicarem umas com as outras: não é suficiente alguém poder dizer: ‘Oh, eu trabalho, tenho meu comércio, defino o ritmo’. Isso não é suficiente, porque é preciso pensar sobre se isso é bom e proveitoso para a comunidade e se pode servir aos nossos próximos. […] E é por isso que somos comparados a membros de um corpo”.30 “A vida dos piedosos é justamente comparada ao comércio, porque eles devem, naturalmente, trocar e permutar mutuamente para manter o relacionamento.31 Na sua obra clássica sobre as visões de Calvino da sociedade e da economia, André Bieler o resume assim: “Deus criou o homem”, diz Calvino, “para que ele possa ser uma criatura de comunhão.” […] A comunhão é completada no trabalho e no inter-relacionamento das trocas econômicas. A comunhão humana é realizada nos relacionamentos decorrentes da divisão do trabalho, na qual cada pessoa foi chamada por Deus para um trabalho específico e parcial que complementa o trabalho dos outros. O intercâmbio de bens e serviços é o sinal concreto da profunda solidariedade que une a humanidade.32 Esse princípio livre e voluntário é ilustrado de modo notável no casamento. Calvino tem o que John Witte denomina o “primeiro modelo abrangente de aliança do casamento”.33 Sua obra Ordonnances sur les Mariages [Ordenanças para o casamento] afirma “que nenhum pai pode forçar seus filhos a qualquer casamento que possa parecer bom a ele, sem o beneplácito e consentimento deles, mas que o filho ou a filha que pode não querer aceitar o partido que o pai pode desejar dar-lhe, deve desculpar-se[…] e a recusa não implicará qualquer punição por parte do pai”.34 Mesmo se os filhos se casarem sem o consentimento dos pais, se forem maiores de idade e a falta de consentimento for devida a “negligência ou excesso de rigor dos seus pais”, um dote e acordo financeiro deve ser feito “como se houvessem consentido”. O mesmo tema ocorre até mesmo no tocante ao divórcio: Embora desde a Antiguidade o direito da mulher não tenha sido igual ao do seu marido em caso de divórcio, uma vez que, segundo o testemunho do apóstolo, a obrigação sobre o leito conjugal é mútua e recíproca [la cohabitation du lit], e por causa disso, a esposa não ser mais sujeita ao seu marido do que o marido à esposa; se um homem for condenado por adultério e a esposa exigir ser separada dele, isso lhe deve ser igualmente concedido.35 Ação política Até este ponto, não abordamos a visão de Calvino da política per se, mas sim a sua visão da sociedade como uma na qual cada parte é chamada a refletir a ordem e glória de Deus, sendo diferenciada segundo a vocação, entendendo que nenhuma é o centro do governo de Deus na terra, e que cada uma deve ser levada a cabo pela resposta livre, compromissada e voluntária do povo de Deus. Conquanto isso não seja política per se, tem implicações importantes, pois transforma o modo como a entendemos. Um efeito político foi produzido pela ênfase de Calvino sobre a atividade compromissada de todo o povo de Deus. Como observa Walzer, o que o calvinismo produziu “tendia a ser prático e social, programático e organizacional. Manifestos, exortações, polêmicas – essas foram as formas de sua expressão literária; alianças, assembleias, congregações e comunidades sagradas – esses foram os resultados da sua iniciativa organizacional”. O que era novo no calvinismo era a ideia de que “grupos organizados de homens poderiam desempenhar um papel criativo no mundo político […] reconstruindo a sociedade em conformidade com a palavra de Deus ou os planos dos seus companheiros”. Essa era uma visão distinta; ela absolutamente não havia entrado, no “pensamento de Maquiavel, Lutero ou Bodin. Ao estabelecer o Estado, esses três escritores basearam-se exclusivamente no príncipe, quer o imaginassem como um aventureiro, um magistrado cristão ou um burocrata hereditário. Todos os outros homens permaneciam sujeitos, condenados à passividade política”.36 Wolin faz um argumento semelhante, embora redigido em linguagem bastante revolucionária – que os reformadores eram líderes de movimentos de massa e dentre os primeiros a tentarem catalisar as massas para o propósito da ação social. […] considere, também, as implicações políticas da Reforma como um amplo movimento de revolta contra uma ordem estabelecida, revolta cujo sucesso dependia de radicalizar as massas ao descontentamento com as autoridades e instituições existentes […] quase nenhum traço dessas noções pode ser encontrados em Maquiavel ou Hobbes.37 Liberdade e democracia A visão de Calvino ia além de transformar a ação política engajada popular, por mais inovadora e importante que ela seja. Embora evitando estritamente uma linguagem sediciosa, ele expressava continuamente um ceticismo quanto à realeza. Devido aos perigos de um monarca tornar-se orgulhoso ou arrogante, Calvino escreve que o “vício ou inadequação dos homens torna, assim, mais seguro e mais tolerável que muitos exerçam o domínio, para que possam ser mutuamente ajudantes uns dos outros, ensinem e admoestem uns aos outros e, se alguém se afirmar injustamente, os muitos possam ser censores e mestres, reprimindo a sua obstinação”.38 Eleições são muito úteis para manter essa admoestação mútua; portanto: a condição mais desejável das pessoas é aquela em que elas criam os seus pastores por votação geral. Porque, quando alguém usurpa pela força o poder supremo, isso é tirania. E onde os homens nascem para a realeza, isso não parece estar em conformidade com a liberdade. Por isso, o profeta diz: levantaremos príncipes para nós mesmos; ou seja, o Senhor não só dará à igreja liberdade para respirar, mas também instituirá um governo definido e bem ordenado, e estabelecerá isso nos sufrágios comuns de todos.39 Por sua vez, a própria liberdade da qual brota esse sufrágio é um bem enorme e fundamental. Calvino o descreve como “mais de metade da vida”.40 Por isso, se temos a liberdade de escolher juízes e magistrados, dado que esse é um excelente dom, que ele seja preservado e usemo-lo em sã consciência. […] Que aqueles a quem Deus deu permissão e liberdade usem-na […] como um benefício singular e um tesouro impossível de ser suficientemente valorizado.41 Esse é o tipo mais desejável de liberdade: que não devemos ser obrigados a obedecer a toda pessoa que possa ser tiranicamente colocada sobre as nossas cabeças, mas que permite a eleição, de modo que ninguém deva governar se não for aprovado por nós.42 Essa liberdade se estende até mesmo à elaboração de leis. Como observamos anteriormente, Calvino sustenta que Deus não pretendia que a lei mosaica fosse “proclamada entre todas as nações e vigorar em todos os lugares”. Cabe a nós, guiados pela nossa fé, “fazer as nossas leis no tocante à condição de tempos, lugar e nação”.43 O sistema de governo defendido por Calvino não era uma democracia. Ele foi descrito como uma “democracia conservadora” – ou, nos seus próprios termos, “aristocracia, ou aristocracia equilibrada por democracia”. Em termos modernos, devemos simplesmente descrevê-lo como uma república. O sistema dos Estados Unidos é, por exemplo, uma mistura de elementos: monárquico (a presidência), aristocrático (o Senado) e democrático (a Câmara). Talvez estranhamente, dada a sua ênfase na responsabilidade e ação humanas, Calvino não exorta os seus leitores a implementarem um sistema desse tipo; ele meramente lhes diz que é um bom sistema e que, se eles vivem num bom sistema, devem considerar-se abençoados e dar graças a Deus. Ele também enfatiza a sujeição ao governante. Seja qual for o sistema político em que vivemos, é nosso dever honrar e obedecer ao governante como um ministro de Deus. A humanidade é pecadora e, por isso, Deus forneceu providencialmente uma ordem política para punir os malfeitores e conter a disseminação do pecado. Estamos sujeitos a essa ordem e à coerção que ela necessariamente envolve. É possível resistir a um governante injusto, talvez até mesmo derrubá-lo, mas isso não deve ser feito pela população em geral, mas somente por aqueles que ocupam posição de autoridade subordinada – os “magistrados inferiores”.44 Esse elogio à liberdade e ênfase sobre a obediência são temas constantes no pensamento de Calvino e no pensamento calvinista: “Embora o pensamento de Calvino invariavelmente ‘escorregue’ para um lado ou para outro, as duas direções sempre estão presentes, e cada uma atua como qualificação e condição para a outra”. Isso significa que sempre deve haver coerção e controle políticos, mas que essa coerção está em constante tensão com a nova ordem trazida à existência como uma resposta voluntária à Palavra de Deus, que é “uma comunidade voluntária harmoniosa na qual a eleição recai sobre os eleitos”. Idealmente, Calvino queria uma administração consensual na igreja e no Estado, mas esse ideal é sempre contido pela realidade do pecado. A exigência resultante é de um governo que restrinja a sedição, por um lado, mas garanta a ‘máxima participação viável’, por outro. Esse tipo de arranjo, a aplicação tanto à igreja quanto ao Estado, é uma combinação de democracia e aristocracia. Primitivamente, essa forma de governo pressupunha, com certeza, um sistema de limites e equilíbrios cuja importância não foi perdida, mais tarde, nos pensadores políticos calvinistas e não calvinistas.45 Segundo Marci Hamilton, “A teologia calvinista ensinou aos constituintes […] que os elementos paradoxais de desconfiança e esperança poderiam ser reunidos para a obtenção de bons resultados”.46 O apoio à nova constituição pela maioria dos pregadores calvinistas coloniais foi, portanto, mais do que oportunismoou assimilação cultural: ele refletia características de uma visão calvinista da ordem política. Althusius As mudanças introduzidas por Calvino no entendimento da política são bem ilustradas por Althusius, que desenvolveu uma noção distinta de ciência política, podendo até mesmo ter cunhado o termo.47 O calvinismo de Althusius não é meramente um aspecto incidental de sua biografia ou teologia. Os temas calvinistas da soberania de Deus sobre todas as associações e todas as ciências, da diferenciação entre as associações e as ciências segundo a vocação, e do apoio mútuo de todas as associações e ciências subjazem e moldam a sua obra. Althusius seguiu Calvino em enfatizar que uma visão funcional das instituições sociais é distinta de uma visão hierárquica, e argumentou que essa diferenciação exige uma correspondente diferenciação das ciências que estudam essas instituições. Para Althusius, “Devemos nos certificar de que damos a cada ciência o que lhe é devido”.48 Embora as igrejas necessitem de teologia, a política necessita da sua própria ciência política, uma disciplina enraizada numa compreensão cristã do mundo e especificamente dedicada ao seu próprio tema singular. Essa diferenciação entre teologia, ciência política e outras disciplinas não se destina a separar as outras disciplinas da Bíblia e da fé cristã, uma vez que Althusius ressalta que os compromissos religiosos moldam não somente a teologia, mas também a ciência política, a jurisprudência, a ética e assim por diante. Althusius entretece as ciências cuidadosamente: Portanto, na medida em que a essência da soberania ou do Decálogo é teológica, ética ou jurídica e está em conformidade com o propósito e a forma dessas artes, até agora essas artes reivindicam como adequadas a si mesmas o que tomam, para sua utilização, do Decálogo e dos direitos de soberania. […] Eu afirmo o Decálogo como adequado à ciência política na medida em que injeta um espírito vital na vida simbiótica, dá forma a ela e a mantém, em cujo sentido ele é essencial e homogêneo à ciência política e heterogêneo a outras artes. Então, concluí que, onde o cientista político termina, o jurista começa, assim como onde o moralista termina o teólogo começa, e onde o físico termina, o médico começa. Ninguém nega, porém, que todas as artes são unidas na prática.49 Como observa Hueglin, nessa concepção “a ciência política tem o direito distinto de interpretar a palavra de Deus, porque as duas tábuas do Decálogo dizem respeito à piedade e à justiça”. De fato, como observa Skillen, “A […] contribuição de Althusius não vem de afastar a política da autoridade e revelação divinas, mas de sua insistência em que a igreja não é aquela autoridade divina e não detém monopólio sobre as Escrituras”.50 O resultado é algo que até mesmo Skinner descreve como “uma concepção reconhecivelmente ‘moderna’ da ‘política’ como uma esfera de investigação com o seu próprio tema característico”.51 Althusius também moldou o federalismo.52 Daniel Elazar argumenta que sua obra Politcs foi o primeiro livro a apresentar uma teoria abrangente do republicanismo federal enraizada [a teoria] numa visão pactual da sociedade humana derivada [a visão], mas não dependente, de um sistema teológico. Ele apresentou uma teoria de construção eclesiológica baseada na ordem eclesiológica como uma associação política composta, estabelecida pelos seus cidadãos por meio das suas associações primárias com base no consentimento, em vez de um Estado apresentado como realidade, imposto por um governador ou uma elite. Além disso, “Althusius serve como uma ponte entre os fundamentos bíblicos da civilização ocidental e as modernas ideias e instituições políticas. [ …] Althusius confronta os mesmos problemas da política moderna sem alijar ou negar os fundamentos bíblicos”.53 A noção atualmente muito discutida da “subsidiariedade”, vagamente entendida como o princípio de que as questões devem ser tratadas pela autoridade competente menos centralizada, foi geralmente atribuída ao pensamento social católico. No entanto, nada menos do que uma equipe de pesquisa da União Europeia (EU), liderada pelo então presidente da UE Jacques Delors, concluiu que as suas origens estão no calvinismo, especialmente em Althusius.54 Althusius conseguiu desenvolver uma teoria social original que incorporava a teoria política original, bem como pode ter sido o primeiro a usar a expressão “ciência política”. Ele fez isso não apenas como calvinista dedicado, mas também como aquele cujo pensamento foi profundamente moldado por princípios calvinistas. Conclusões Para Calvino, toda a criação está igualmente sob a vontade soberana de Deus, as instituições da sociedade não são organizadas hierarquicamente, mas diferenciadas segundo a vocação e, por isso, devem ser dispostas lado a lado em apoio mútuo, e a obra de Deus é realizada pela livre e voluntária obediência do povo de Deus.55 O pensamento político e religioso formava uma esfera contínua de discurso no qual o principal elemento unificador era um conceito geral de ordem. Dentro desse esquema geral, “a sociedade política devia ser resgatada do limbo sendo restaurada a uma estrutura ordenada mais ampla. Ela devia tornar-se parte da cosmologia cristã”.56 O governo soberano de Deus está sobre todas as instituições e associações. Uma vez que cada uma dessas instituições é diferenciada segundo a sua vocação, e Deus não ser mediado exclusivamente por intermédio de uma delas, segue-se que nenhuma pode reivindicar soberania sobre as outras.57 Isso levou a uma ênfase sobre transferir a política de simplesmente uma ocupação de elite para uma ocupação participativa. Também levou a uma visão de aliança da política, que criou o federalismo moderno. Também levou à criação da ciência política como uma disciplina. Calvino reformulou a política e o estudo da política, não nos detalhes da soberania e da rebelião, mas situando a política e a ação política como uma resposta dos seres humanos que se submetem voluntariamente a Deus e, assim, buscam transformar a ordem social, econômica e política de modo que ela possa refletir a ordem de Deus. 1 Michael Walzer, Revolution of the saints: A study in the origins of radical politics (Cambridge: Harvard University Press, 1982), 300. 2 Ver John Witte, The reformation of rights: Law, religion, and human rights in early modern Calvinism (Cambridge: Cambridge University Press, 2007), 39-42. 3 Quentin Skinner, The foundations of modern political thought (Cambridge: Cambridge University Press, 1978), 1.15. Ver também sua obra “The origins of the Calvinist theory of revolution”, em B. C. Malament (org.), After the Reformation: Essays in honor of J. H. Hexter (Filadélfia: University of Pennsylvania Press, 1980), 309-30. Para uma visão geral de Skinner sobre Calvin, ver meu artigo “Quentin Skinner and the secularisation of political thought”, em Studies in political thought 2, 1 (outono de 1993): 85-104. 4 Skinner, The foundations of modern political thought, 1.15.239, 2.210.323. Do mesmo modo, Plamenatz sustentava que “A teoria política de Calvino […] é lúcida, coerente, sistemática e totalmente de segunda mão”. John Plamenatz, Man and society (Londres: Longman, 1963), 1.57. Ver os comentários de Oliver O’Donovan na sua obra Desire of the nations (Cambridge: Cambridge University Press, 1996), 210-11. 5 Skinner, The foundations of modern political thought, 1.225.230, 2.51.347-48. 6 Ibid., 15; ver também 2.74. 7 Ibid., 9. 8 Ibid., 1.9n1, 1.10, 2.211, 240, 351-52. Ele também sugere que a autoridade “puramente civil ou política” é “repudiada” por uma relação mais estreita entre fidelidade na igreja e no Estado. Quentin Skinner, “The state”, em T. Ball, J. Farr e R. L. Hanson (orgs.), Political innovation and conceptual change (Cambridge, Cambridge University Press, 1987), 90-131, esp. 122. Sobre o entendimento de Skinner do pensamento político, ver J. Tully, org., Meaning and context: Quentin Skinner and his critics (Princeton, NJ: Princeton University Press, 1988). Hancock sustenta