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Prévia do material em texto

Calvino e a cultura, de David W. Hall e Marvin Padgett © 2017 Editora Cultura Cristã. Publicado
originalmente em inglês sob o título Calvin and culture © 2010, by David W. Hall and Marvin
Padgett. Todos os direitos são reservados. Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida,
estocada para recuperação posterior ou transmitida de qualquer forma ou meio que seja – eletrônico,
mecânico, fotocópia, gravação ou de outro modo – exceto breves citações para fins de resenha ou
comentário, sem o prévio consentimento de P&R Publishing Company, P.O.Box 817, Phillipsburg,
New Jersey 08865-0817.
Conselho Editorial
Cláudio Marra (Presidente)
Filipe Fontes
Heber Carlos de Campos Jr
Hermisten Maia Pereira da Costa
Joel Theodoro da Fonseca Jr
Misael Batista do Nascimento
Tarcízio José de Freitas Carvalho
Victor Alexandre Nascimento Ximenes
Produção Editorial
Tradução
Claudio Chagas
Revisão
Claudete Água de Melo
Sebastiana Gomes de Paula
Denis Benjamin Silveira
Editoração e e-book
OM Designers Gráficos
Capa
Magno Paganelli
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
H174c Hall, David W.
Calvino e a cultura / David W. Hall; Marvin Padgett; 
traduzido por Claudio Chagas. _ São Paulo: Cultura 
Cristã, 2017
Recurso eletrônico (ePub)
ISBN 978-65-5989-014-9
Tradução Calvin and culture
1. Calvinismo 2. Cosmovisão cristã 3. Vida cristã 
I. Título
CDU 275.4
A posição doutrinária da Igreja Presbiteriana do Brasil é expressa em seus “símbolos de fé”, que
apresentam o modo Reformado e Presbiteriano de compreender a Escritura. São esses símbolos a
Confissão de Fé de Westminster e seus catecismos, o Maior e o Breve. Como Editora oficial de uma
denominação confessional, cuidamos para que as obras publicadas espelhem sempre essa posição.
Existe a possibilidade, porém, de autores, às vezes, mencionarem ou mesmo defenderem aspectos
que refletem a sua própria opinião, sem que o fato de sua publicação por esta Editora represente
endosso integral, pela denominação e pela Editora, de todos os pontos de vista apresentados. A
posição da denominação sobre pontos específicos porventura em debate poderá ser encontrada nos
mencionados símbolos de fé.
Rua Miguel Teles Júnior, 394 – CEP 01540-040 – São Paulo – SP
Fones: 0800-0141963 / (11) 3207-7099
www.editoraculturacrista.com.br – cep@cep.org.br
Superintendente: Haveraldo Ferreira Vargas
Editor: Cláudio Antônio Batista Marra
http://www.editoraculturacrista.com.br/
Este volume é carinhosamente dedicado à próxima geração
com cosmovisão cristã, especialmente nossos próprios filhos,
aos quais amamos muito: Megan Hall, Devon Hall, Andrew e
Amanda Hall, Steve Padgett, Heather Kennedy, Tim Padgett.
Sumário
Folha de rosto
Expediente
Dedicatória
Prefácio
Agradecimentos
Introdução
Abreviações
Capítulo 1 | 1929 e tudo aquilo, ou o que o calvinismo diz
aos historiadores em busca de significado?
Capítulo 2 | Lei, autoridade e liberdade no início do
calvinismo
Capítulo 3 | As artes e a tradição reformada
Capítulo 4 | Contribuições de Calvino para a teoria e a
política econômicas
Capítulo 5 | Calvinismo e literatura
Capítulo 6 | O legado de Calvino na filosofia
Capítulo 7 | Calvino, política e ciência política
Capítulo 8 | Calvinismo e ciência
Capítulo 9 | O impacto de João Calvino nos negócios
Capítulo 10 | Calvino e a música
Capítulo 11 | Medicina: na tradição bíblica de João Calvino
com aplicações modernas
Capítulo 12 | Calvino como jornalista
Capítulo 13 | O futuro do calvinismo como cosmovisão
Colaboradores
J
Prefácio
oão Calvino não foi apenas teólogo. Era formado em Direito e formulou
leis para a cidade de Genebra. Ele refletiu muito sobre o papel do Estado.
Foi ativo no desenvolvimento de música de adoração para a igreja. Fundou
uma academia que ensinava matérias de muitas áreas da cultura. Mas para
ele a teologia, o ensino da Escritura, sempre foi o principal. Apesar de toda
importância geral, suas outras atividades eram de interesse secundário para
ele. Esses interesses secundários não teriam, em si, justificado um livro
intitulado Calvino e a cultura.
A razão para este livro é encontrada na natureza da teologia de Calvino,
a qual descreve não apenas o modo de Deus salvar pessoas pecadoras, mas
uma cosmovisão significativamente diferente de qualquer filosofia humana
ou outra religião.
Como cosmovisão, a teologia de Calvino é abrangente. Ela afeta todas
as áreas do estudo e da atividade humana. Assim, embora não seja tão
famoso por outras realizações quanto pela sua teologia, Calvino inspirou
um grande número de seguidores a aplicarem seu pensamento a todo tipo de
atividade. Os títulos dos capítulos desta obra listam muitas delas: História,
direito, artes, economia, literatura, filosofia, política, ciência, negócios,
música, medicina e jornalismo.
Na sua obra Institutas, Calvino começa nos dizendo que sem um
conhecimento de Deus não temos conhecimento de nós mesmos e vice-
versa. Assim, desde a primeira página da mais famosa obra de Calvino fica
claro que o conhecimento de Deus, objeto de estudo da teologia, está ligado
a tudo o que é humano. Deus não é apenas Senhor do reino “sagrado”, não
apenas Senhor da salvação. Ele é Senhor sobre todas as áreas da vida
humana. Não conseguimos compreender o sentido de qualquer atividade
humana, seja pregação, música ou jornalismo, até vermos como essa
atividade está relacionada a Deus.
No seu ensaio, Leland Ryken escreve, citando Georgia Harkness:
“conquanto Lutero tivesse afirmado a possibilidade de que ‘uma pessoa
sirva a Deus no seu chamado, Calvino deu o passo mais ousado de afirmar
que é possível ‘a uma pessoa servir a Deus pelo seu chamado’”. Para
Calvino, Deus está interessado em tudo que há na sua criação. Ele quer que
os seres humanos povoem e dominem a terra.
Sem dúvida, a triste verdade é que em Adão todos pecamos, de modo
que os nossos esforços não glorificam a Deus como deveriam. Porém, em
Cristo, a redenção nos restaura ao seu serviço. Sem a redenção, não
conseguimos conhecer a Deus corretamente. Embora Deus nos seja
claramente revelado em nós mesmos e na criação (Rm 1.18-21), nós
suprimimos esse conhecimento. Porque, como diz Calvino, não
conseguimos conhecer Deus corretamente sem piedade, confiança e
adoração (Institutas, 1.2.). Porém, segue-se que sem Cristo não
conseguimos conhecer também a nós mesmos ou qualquer empreendimento
humano legítimo.
O evangelho de Cristo presente na Escritura nos redime de todos os
pecados, incluindo o pecado do pensamento rebelde. As Escrituras, que
proclamam esse evangelho, trazem o verdadeiro conhecimento de nós
mesmos. Calvino diz: “Deus nos concede o verdadeiro conhecimento dele
apenas nas Escrituras” (Institutas, 1.6.1). Ele continua:
[...] assim como quando qualquer livro, por mais razoável que seja, é colocado à frente de
idosos ou pessoas cuja visão é deficiente, embora eles percebam que há algo escrito
dificilmente conseguem distinguir duas palavras consecutivas, mas, quando auxiliados por
óculos, começam a ler nitidamente, do mesmo modo também a Escritura, reunindo as
impressões da Divindade, que, até então, estavam confusas na nossa mente, dissipa as trevas
e nos mostra claramente o verdadeiro Deus.
E com esse “conhecimento verdadeiro de Deus” vem o conhecimento de
nós mesmos e de toda a vida humana, esclarecido por meio dos “óculos” da
Escritura.
Assim, para Calvino a teologia não é apenas um tema dentre muitos. Ela
é a chave para tudo o que é humano e, por conseguinte, para a cultura. A
cultura é o que os seres humanos fazem com a criação de Deus. As marcas
da queda a permeiam. Vemos crueldade no governo humano, niilismo na
arte humana, mentiras no jornalismo humano. Porém, a redenção
transforma as pessoas de maneira abrangente, para que elas introduzam a
sabedoria de Deus nos seus locais de trabalho: compaixão e justiça no
governo, significado na arte, verdade no jornalismo.
Assim, a cosmovisão de Calvino, que é a cosmovisão da Escritura,
necessariamente energiza o povo de Deus para servir a Deus por meio do
chamadode cada um e, com isso, transformar tudo. Pessoas redimidas
renovam e enobrecem tudo o que é humano. O pecado continua a tentá-las e
elas caem. Porém, a partir de uma perspectiva histórica ampla, podemos ver
que, por meio dos seus esforços motivados pelo Espírito, a cultura
transforma-se para melhor. De fato, o evangelho motivou o povo de Deus a
cuidar das viúvas e dos órfãos, a construir hospitais, a pintar e a esculpir, a
opor-se à tirania, a levar a Palavra de Deus até os confins do mundo.
Os autores deste livro foram bem escolhidos para descrever essa
renovação. Eles são estudiosos cuidadosos e inteligentes que conhecem as
Escrituras, entendem Calvino e são inspirados pelo evangelho. Estou muito
satisfeito por ver esses ensaios tornarem-se disponíveis. Eu mesmo aprendi
muito com eles e espero que eles tenham uma ampla circulação, de modo a
empolgar muitas pessoas da igreja com os desafios desta cosmovisão que
abala o mundo.
John M. Frame
N
Agradecimentos
o momento em que este livro segue para impressão, desejamos
expressar a nossa mais profunda gratidão a todos os seus autores e,
especialmente, à fantástica equipe de editores da P&R. Sem eles, e o ótimo
trabalho editorial de Brian Kinney, nossos esforços teriam deixado a
desejar. Muito obrigado.
E
Introdução
ste livro procura explorar a cosmovisão gerada por João Calvino e seus
discípulos. Com os catorze escritores colaboradores, ele fornece uma
amostragem atual de Calvino e sua influência, procurando demonstrar como
o calvinismo foi estendido e disseminado por uma ampla variedade de
empreendimentos acadêmicos e culturais.
Embora muitos contemporâneos devam a sua consciência do
“cosmovisionismo” do cristianismo a pensadores modernos como Francis
Schaeffer, R. C. Sproul ou Harry Blamires, esses exemplares se
empoleiravam nos ombros de outros, como Cornelius Van Til, Herman
Dooyweerd, Abraham Kuyper, James Orr e Guillaume Groen van
Prinsterer. O calvinismo não só é difundido ao longo de diversas
disciplinas, mas também parece ter um tipo de sucessão – ideológica, não
institucional ou hierárquica – que o transporta para as próximas gerações.
Poucas outras ramificações do cristianismo em geral, ou da Reforma
protestante em particular, prosperaram tão amplamente ou tão tenazmente
quanto o calvinismo nas suas extensões de cosmovisão.
Ainda assim, alguns duvidam que o calvinismo seja um sistema coerente
de vida; outros duvidam que Calvino, o clérigo, tivesse intencionado
fornecer uma plataforma para um impacto cultural tão extenso.
No entanto, se alguém perguntar: “A obra de Calvino de fato gerou
muita atividade fora do âmbito eclesiástico?”, essa pergunta é facilmente
respondida. Críticos e admiradores observam que, por qualquer motivo,
durante o tempo de Calvino, bem como depois, os negócios prosperaram, a
inventividade e a inovação tecnológica pareceram multiplicar-se, as artes se
destacaram e foram patrocinadas por numerosos calvinistas, a música
(primeiramente na igreja, mas, depois, num círculo cada vez mais amplo)
foi cultivada e alimentada pelo pensamento reformador, pressupostos
políticos mudaram radicalmente, os pobres foram atendidos, a educação
avançou – a começar na Genebra de Calvino – e a ciência moderna teve
início. As casas editoras, a escrita, o constitucionalismo e os mercados
abertos pareceram descobrir um claro “antes e depois” com o
estabelecimento do calvinismo em cada localidade geográfica. Assim, na
prática, seu pensamento parece ter infundido, se não inspirado, uma
cosmovisão que se infiltrou em todos os setores da vida. Este livro, escrito à
distância de observação de quase cinco séculos, recorre a profissionais de
diversos campos para avaliar como o calvinismo faz diferença nas suas
áreas de especialização. Com uma só voz e muitos timbres diferentes, esse
grupo (embora eles possam não concordar em todas as particularidades)
afirma que o calvinismo, corretamente entendido, alimenta uma cosmovisão
distintiva, viva e salutar.
Se, porém, alguém fizer outra pergunta –“O próprio Calvino refere-se
explicitamente a essas disciplinas, a que chamamos amplamente artes
liberais na maioria dos currículos educacionais?” –, ela também é
respondida, no mínimo já nas Institutas.
Ao abordar o tema de qual conhecimento os seres humanos podem
possuir a respeito de Deus e, especificamente, sob o tópico da verdade e
autoridade da revelação de Deus, mesmo com o maior respeito por uma
epistemologia de sola Scriptura, Calvino não via conflito no fato de cristãos
envolverem-se em certas áreas extrabíblicas, bem como conhecê-las. Ele
falou de “as inumeráveis evidências, tanto no céu quanto na terra, que
declaram a maravilhosa sabedoria [de Deus]”, incluindo
não apenas os temas mais obscuros a cuja observação mais cuidadosa se prestam a
astronomia, a medicina e todas as ciências naturais, mas também aqueles que se lançam à
vista até mesmo das pessoas mais incultas e ignorantes, de modo que elas são incapazes de
abrir os olhos sem ser compelidas a testemunhá-los. De fato, homens que têm sorvido ou
apenas experimentado as artes liberais penetram, com a ajuda delas, muito mais
profundamente os segredos da sabedoria divina.1
O que pode ser surpreendente para alguns é ver a referência explícita de
Calvino a disciplinas como medicina e astronomia –“Sem dúvida há
necessidade de arte e labuta mais exigente para investigar o movimento das
estrelas para determinar suas localizações determinadas, medir seus
intervalos, observar as suas propriedades”2 – e a cornucópia de esforços
científicos. Ele até mesmo elogia aqueles que experimentam essas diversas
disciplinas humanistas. É claro que basta que nos lembremos da formação
de Calvino no humanismo renascentista para nos lembrarmos de que
Calvino estava mergulhado nessas artes liberais e conhecia o valor delas.
Além disso, seu estudo das leis seria de auxílio a ele e aos seus chamados
durante décadas. Lembre-se, também, de que foi a Academia de Calvino
que procurou reproduzir uma escola de medicina e estava repleta de juristas
(Hotman e Godefroy), antigos poetas (Beza, Marot), linguistas,
especialistas políticos e historiadores. Além disso, algo do início do
jornalismo – não apenas em teoria, mas com a séria ameaça de decapitação
– era praticado por um grande número de gráficos, editores, escritores e
publicadores que foram atraídos à Genebra de Calvino durante a sua vida.
Sua combinação de apreço pela base científica da medicina, embora
afirmando Deus como Criador, é vista nesse mesmo contexto, como ele
observou:
De modo semelhante no tocante à estrutura do corpo humano, é preciso ter a maior agudeza
para pesar, com a habilidade de Galeno, sua articulação, simetria, beleza e uso. Todavia,
como todos reconhecem, o corpo humano revela-se uma composição tão engenhosa que o
seu Artífice é justamente julgado um operador de maravilhas.3
Calvino falou da história como “mestra da vida” (ao comentar sobre Rm
4.23-24) e como a “amante da vida” (do prefácio ao seu comentário sobre
Atos), implicando que tanto os cristãos quanto os não cristãos podiam
beneficiar-se da pedagogia do passado, e também que a história era um
tema de real importância e valor.
Em outra parte dos seus escritos, Calvino falou sobre questões
econômicas, as artes, o papel da história (sua dependência de escritores
anteriores não é apenas uma parte luminosa da sua escrita, mas também
uma indicação de como ele valorizava as pesquisas do passado, se bem
fundamentadas), o papel da lei na sociedade, e o lugar certo para a música e
a beleza na vida cristã. Além disso, sua ênfase na vocação propriamente
dita é, certamente, um argumento subsidiário de que Calvino pretendia que
a sua teologia transbordasse num empório de cosmovisão.
Que Calvino tenha se esforçado conscientemente para dar à luz uma
cosmovisão ou para criar um movimento, é difícil dizer; é totalmente
possível que a extensão do seu sucesso em inspirar e facilitar um sistema de
vida que continha uma cosmovisão robusta possa ter sido uma surpresa que
Calvino aindaestá observando enquanto espera na grande nuvem de
testemunhas (Hb 12.1). O que este livro documenta e explora é o resultado
da obra de Calvino que, de fato, deu origem ao calvinismo como uma
torrente intelectual poderosa e duradoura nas correntes do pensamento e da
prática da vida. Se isso nos atribuir um lugar entre as testemunhas, seremos
gratos por simplesmente fazermos parte da multidão.
Ao explorarmos o impacto cultural do calvinismo por meio dessa
cosmovisão, pretendemos prestar uma homenagem sincera, embora estejam
incluídas algumas críticas apreciativas. Pensamos que o pai do calvinismo
apreciaria o equilíbrio saudável de tributo e análise aqui contido.
Assim, dedicamos este livro aos organizadores de todos os futuros
centenários e celebrações de Calvino, com os nossos agradecimentos e
melhores desejos, como esperamos desfrutar os próximos a partir de
assentos mais elevados do estádio, com um grande grupo de outras
testemunhas.
David Hall e Marvin Padgett
1 Institutas, 1.5.2
2 Institutas, 1.5.2
3 Ibid.
Abreviações
AP Associated press
CO João Calvino, Ioannis Calvini opera quae supersunt omnia, org.
Guilielmus Baum, Eduardus Cunitz e Eduardus Reuss, 59 v.,
série Corpus Reformatorum, v. 29-87 (Brunswick: C. A.
Schwetschke and Son, 1863-1900)
Com. Comentário, de CO
CR W. Baum, E. Cunitz e E. Reuss (orgs.), Corpus Reformandum:
Joannis Calvini opera quae supersunt omnia (Brunswick:
Schwetschke, 1863-80)
CSR Christian scholar’s review
Institutas João Calvino, Institutas da religião cristã, diversas edições.
Salvo nota em contrário, esta é a edição da Library of Christian
classics, John T. McNeill (org.), Ford Lewis Battles (trad.)
(Filadélfia: Westminster Press, 1960). Essa edição é traduzida
do texto de Calvino de 1559, em latim, confrontado com suas
outras edições.
ID Intelligent Design
JCR The journal of Christian reconstruction
KJV King James version
Lect. Aula, de CO
NASB New American standard Bible
NIV New international version
PCA Presbyterian Church in America
R.
Consist.
Robert M. Kingdon et al. (orgs.), Registres du Consistoire de
Genève au temps de Calvin, 21 v. (Genebra: Droz, 1996-)
RMJ Reformed music journal
Serm. Sermão, de CO
WSC Breve Catecismo de Westminster
WTJ Westminster theological journal
O
1
1929 e tudo aquilo, ou o que o
calvinismo diz aos historiadores em
busca de significado?
Darryl G. Hart
ano de 1929 foi um dos mais importantes na vida de muitos cidadãos
dos Estados Unidos. Como a maioria das pessoas sabe, esse foi o tempo
do Grande “Crash” de Wall Street [a queda da bolsa de valores de Nova
York], que evoluiu para a Grande Depressão. A maioria dos historiadores
dos Estados Unidos reconhece essa crise como uma das mais profundas da
vida da nação. A crise econômica mais recente gerou uma conscientização
ainda maior sobre a história econômica da nação, enquanto tanto aqueles
que tomam as decisões políticas quanto os cidadãos buscam aprender lições
da Depressão.
Em 1929 houve outro acontecimento, um que é geralmente omitido dos
livros escolares sobre história dos Estados Unidos, mas sem dúvida ainda
mais importante do que o declínio dos preços das ações que atingiu Wall
Street em 29 de outubro de 1929. Esse acontecimento foi a reorganização
do Princeton Seminary e o subsequente início do Westminster Seminary,
para dar sequência à missão original de Princeton. Os acontecimentos mais
importantes em torno do ajuste administrativo de Princeton fazem parte da
controvérsia fundamentalista que envolveu presbiterianos liberais e
conservadores durante a maior parte da década de 1920. Embora Princeton
não tenha vivenciado diretamente uma tomada de controle liberal, sua nova
estrutura administrativa depois de 1929 significava que os conservadores
eram minoria no conselho que supervisionava os padrões acadêmicos e
teológicos. A decisão de J. Gresham Machen, com o apoio de muitos
conservadores presbiterianos, de fundar um seminário sucessor de Princeton
foi, indiscutivelmente, um dos principais desenvolvimentos da controvérsia
presbiteriana. Ainda que a fundação de Westminster não afetasse tantos
americanos quanto o crash do mercado de ações, as apostas no novo
seminário foram maiores, por refletirem não o preço de bens temporais, mas
o valor de realidades eternas – referentes à redenção comprada por Cristo.
Da perspectiva da eternidade, a queda da antiga Princeton e a criação de
Westminster foram mais importantes do que a queda dos preços das ações
na Bolsa de Valores de Nova York.1
Se essa comparação não for adequada para iniciar maquinações mentais
em torno do tema de fazer a história segundo uma perspectiva calvinista,
talvez o melhor para isso seja a perspectiva de Machen sobre o significado
de 1929 para os presbiterianos conservadores. No seu discurso de
convocação para Westminster, proferido diante do corpo docente, dos
alunos e de simpatizantes no centro da cidade de Filadélfia, Machen
admitiu estar perplexo ao tentar entender a morte do Princeton Seminary.
Ele disse:
À primeira vista, pode parecer uma grande calamidade; triste está o coração daqueles
homens e mulheres cristãos do mundo todo que amam o evangelho que o antigo Princeton
proclamava. Não conseguimos compreender plenamente os caminhos de Deus ao permitir
tão grande mal. Contudo, o bem pode vir até mesmo de algo tão mau quanto isso.2
Como estudioso da Escritura, Machen sabia que, ao longo da história da
redenção, muitas vezes Deus realizou os seus propósitos por meio de
acontecimentos que davam a impessão de que o povo de Deus estava
sofrendo derrota. A história de José e seus irmãos, a escolha do diminuto
Davi como rei de Israel e, acima de tudo, a morte de Cristo na cruz – tudo
isso tornava plausível a percepção de Machen de que o bem poderia surgir
do mal no curso da história da redenção. Ainda assim, ele não tinha certeza
no tocante a Princeton. Se Machen estava incerto sobre como interpretar os
acontecimentos na igreja, quanto mais relutante ele não deveria estar ao
tentar interpretar a importância da Grande Depressão?
Por mais inquietante que a incerteza histórica possa ser, os instintos
calvinistas de Machen estavam exatamente corretos. Embora muitos
historiadores e teólogos afirmem que especificamente a fé reformada, e de
modo mais geral o cristianismo, equipem os historiadores com
discernimento sobre o significado de acontecimentos históricos, há uma
realidade mais profunda: a de que a fé reformada pode dificultar as
tentativas de extrair o sentido último de acontecimentos históricos. Como o
próprio exemplo de Machen sugere, a fé reformada incentiva a humildade
epistemológica ao tentar dizer o que Deus está fazendo na história. Em vez
de acrescentar no sentido de se obter uma narrativa completa, com início,
meio, transições entre capítulos e um fim otimista, a história de uma
perspectiva calvinista é, na verdade, cheia de mistério. Ninguém sabia disso
melhor do que João Calvino, cuja doutrina de providência e instrução sobre
a maneira de ver o mundo representa um dos melhores pontos de partida
para os protestantes reformados que estudam o passado e desejam
compreendê-lo.
A providência segundo Calvino
Em geral, os protestantes reformados têm apresentado poucas objeções à
doutrina da providência. Pelo fato de muitos aceitarem a fé reformada
precisamente devido à compreensão tradicional da soberania de Deus, faz
perfeito sentido a crença de que – segundo o Breve Catecismo de
Westminster – a providência envolve Deus “preservar e governar as suas
criaturas e todas as suas ações da maneira mais santa, sábia e poderosa”. A
providência implica uma ordem criada, na qual Deus está no comando e os
seres humanos não precisam se preocupar se os propósitos dele serão
cumpridos (BCW, P. 11).
Calvino não estava mais confortável com a providência do que outros
protestantes reformados ao desenvolver a doutrina no livro 1 das Institutas.
Essa foi a seção da sua exposição sistemática da religião cristã em que ele
discutiu o conhecimento de Deus, o Criador, pelo homem. Ao fimdessa
seção das Institutas, Calvino discutiu devidamente, em primeiro lugar, a
obra da criação de Deus e, em seguida, as suas obras de providência, dois
atos divinos intimamente ligados devido ao relacionamento entre a criação
a partir do nada e a subsequente preservação necessária à manutenção do
que foi originalmente criado. A definição básica de Calvino da providência
era: Deus governa o céu e a terra de tal modo que ele “regula todas as
coisas para que nada aconteça sem a sua deliberação”.3 O reformador
francês explicou que essa regulação não era simplesmente uma extensão da
natureza, como se Deus tivesse simplesmente criado o mundo e o deixado
seguir em frente sem apoio direto contínuo e sem governo. Calvino
escreveu: “Esses que confinam a providência de Deus a limites tão
estreitos, como se ele permitisse que todas as coisas fossem levadas em
livre curso segundo uma lei universal da natureza, tanto roubam de Deus a
sua glória quanto de si mesmos uma doutrina muito proveitosa”.4 Em outras
palavras, a providência não é passiva, como se Deus meramente estivesse
sentado “de braços cruzados” observando o universo, mas “como o
guardião das chaves, ele governa todos os acontecimentos”.5
Na categoria geral da regulação da criação por Deus, Calvino distinguiu
quatro camadas de providência. A primeira era o mundo natural, como “a
alternância de dias e noites, de inverno e verão”. Esse aspecto da
providência incluía o mundo animal, no qual Deus “dá alimento aos filhotes
dos corvos” e governa o voo dos pássaros segundo um “plano definido”.6
Essas eram obras de Deus porque os dias e as estações seguiam uma “certa
lei” estabelecida pelo próprio Deus.7 Uma segunda camada referia-se ao
cuidado providencial de Deus pelo homem. Calvino insistia que “sabemos
que o universo foi criado para o bem da humanidade”.8 Aqui, Calvino citou
Jeremias (Jr 10.23) e Salomão (Pv 16.9) para mostrar que Deus dirige os
passos do homem até o ponto de Calvino negar ao homem o controle das
suas próprias questões dentro dos limites de uma ordem natural dada por
Deus. Calvino escreveu: “O profeta e Salomão atribuem a Deus não apenas
poder, mas também escolha e determinação”. Ele acrescentou que é “uma
loucura absurda homens miseráveis assumirem a responsabilidade de agir
sem Deus, sendo incapazes de sequer falar senão conforme a vontade dele”.
Isso significava que nada acontece ao homem por acaso, porque nada no
mundo é “realizado sem determinação [de Deus]”.9
O terceiro nível de providência estendia-se às ocorrências naturais. Os
exemplos usados aqui por Calvino foram o clima e a procriação humana.
“Sempre que o mar se agita com a rajada dos ventos”, essas forças
testificam da presença do poder de Deus e confirmam o ensino da Escritura
de que Deus “[…] falou e fez levantar o vento tempestuoso, que elevou as
ondas do mar” (Sl 107.25). A fertilidade humana também foi uma indicação
do controle de todas as coisas por Deus. Ainda que todos os homens e
mulheres (com poucas exceções) possuíssem o poder de procriar, alguns
casamentos eram mais estéreis ou férteis do que outros. O motivo da
diferença era o “favor especial” de Deus.10
A quarta e última dimensão da providência delineada por Calvino é a
mais relevante para considerar o controle de Deus da história e o que uma
perspectiva reformada do conhecimento histórico poderia envolver. Calvino
rejeitava veementemente a doutrina estoica do destino, embora soubesse
que o seu próprio ensino da providência pudesse soar como se ele estivesse
dizendo que a atividade de Deus no controle de todas as coisas deixava o
homem num estado passivo, apenas sujeito em vez de atuante no espaço e
no tempo com propósito. Calvino podia negar o estoicismo porque rejeitava
a necessidade de causas. A ordem criada não se manifestava de maneira
mecânica, mas em conformidade com o decreto e os atributos eternos de
Deus. Do mesmo modo, Deus regia e governava todas as coisas segundo
seu ser, sabedoria, poder, santidade, bondade e verdade. Em vez de uma lei
abstrata ou uma força distante estar no centro de todas as coisas, a criação
se desenvolveu segundo um Deus pessoal, e a providência encorporava essa
personalidade. Para Calvino, isso significava que “não apenas o céu, a terra
e as criaturas inanimadas, mas também os planos e as intenções dos homens
são de tal modo regidos pela providência de Deus que são levados por ela
diretamente ao fim que lhes foi determinado”.11 Essa execução do decreto
de Deus eliminava qualquer espaço para sorte ou casualidade. Calvino
escreveu: “Nada é mais absurdo do que qualquer coisa acontecer sem Deus
ordená-la, porque ela aconteceria sem causa alguma”.12
Várias perguntas surgem naturalmente da discussão da providência por
Calvino. Qual é a relação entre a soberania divina e a liberdade humana? O
homem tem livre-arbítrio? Qual é a diferença entre as causas secundárias –
os modos pelos quais Deus realiza os seus propósitos por meio das ações do
homem ou de circunstâncias da ordem criada (como o nascer do sol ou a
força da gravidade) – e as causas principais de Deus, como a sua
intervenção poderosa e direta na ordem criada na forma de milagres,
revelação especial e a encarnação? Embora importantes para a compreensão
da doutrina reformada da providência, essas perguntas são um tanto
irrelevantes para avaliar uma perspectiva calvinista da história que decorra
do ensino de Calvino sobre a providência.
Calvino não parou para pensar sobre essas perguntas, mas nas Institutas
passou diretamente de uma exposição da providência para um aspecto do
controle de Deus diretamente relacionado à investigação histórica e crucial
para sua obra. Ele disse que, independentemente do quanto Deus estivesse
no controle de todos os acontecimentos e do quanto os cristãos acreditem na
soberania divina de nada ocorrer na história por casualidade ou sorte, para
nós os desdobramentos da providência “são fortuitos”.13 Os cristãos sabem
que tudo é “ordenado pelo plano de Deus” e se desenrola segundo “uma
dispensação certa”, embora em sua experiência de existência humana,
circunstâncias naturais e desenvolvimento social, o homem não seja capaz
de discernir significado ou direção suficientemente para contradizer a
impressão de que a vida é marcada por acidentes ou sortes. Calvino insistia
em que não estava argumentando que a sorte “governa o mundo e os
homens, com todas as coisas caindo para cima e para baixo ao acaso”. Essa
era uma visão tola e não tinha lugar no “seio do cristão”. Mesmo assim,
pelo fato de que “ordem, razão, finalidade e necessidade” da vida cotidiana
“em sua maior parte estejam escondidas no propósito de Deus e não serem
apreendidas pela opinião humana”, as coisas que acontecem segundo a
vontade e o plano soberano de Deus “são, em certo sentido, fortuitas”.14
Calvino usou o seguinte exemplo para provar seu argumento:
Imaginemos, por exemplo, um comerciante que, entrando numa floresta com um grupo de
homens fiéis, de maneira imprudente afasta-se dos seus companheiros e, na sua
perambulação, chega ao esconderijo de um ladrão, cai entre ladrões e é assassinado. Sua
morte foi não apenas prevista pelo olho de Deus, mas também determinada pelo seu
decreto. Isso porque não é dito que ele previu durante quanto tempo a vida de cada homem
se estenderia, mas que ele determinou e fixou os limites que os homens não podem
ultrapassar (Jó 14.5). Contudo, no tocante à capacidade da nossa mente, todas as coisas ali
contidas parecem fortuitas.15
A maioria das ocorrências humanas, quer sejam consideradas “em sua
própria natureza ou ponderadas segundo o nosso conhecimento e
julgamento”, na superfície parece não ter qualquer significado intrínseco a
não ser que ocorre segundo o propósito eterno de Deus. No caso de morte
do comerciante, um cristão a considerará “fortuita por natureza”, mas não
duvidará de que “a providência de Deus exerceu autoridade sobre a sorte ao
dirigir o seu fim”.16
No entanto, para Calvino, encontrar alguns significados imediatos nas
questões do mundo não era impossível. Eleadvertiu contra pensar que Deus
“zomba dos homens, jogando-os para todos os lados como bolas”. Ele
também aconselhou que, se o homem tivesse uma mente “calma e
composta”, sempre veria que Deus tinha as melhores razões para a maneira
como os acontecimentos se desenrolam, de modo a incentivar a paciência,
corrigir “sentimentos perversos”, incentivar a abnegação ou despertar de
“indolência”.17 Ao mesmo tempo, Calvino ensinou que, embora Deus tenha
revelado o significado de certos mistérios, nem todas as partes da história
são transparentes. Aqui, ele recorreu à instrução de Moisés em
Deuteronômio 29.29, isto é, que as coisas secretas pertencem a Deus, mas
as reveladas podiam ser vistas e entendidas. Desse modo, Calvino estava
reconhecendo que a Escritura revelava o sentido último da história ao
revelar Deus, seu plano de redenção e sua vontade para os cristãos.18 O
homem poderia ser encorajado pela verdade revelada de que Deus tinha
“cuidado especial” pelo seu povo.19 No entanto, Calvino não estava disposto
a ir além da revelação geral encontrada na Escritura. O homem tinha de se
contentar com um sentido geral de providência divina – de que Deus
operava tudo em conformidade com o seu plano e para o bem dos seus
filhos. Uma vez que esse plano que, em última análise, era bom também
envolvia dificuldades e sofrimentos, interpretar os acontecimentos segundo
eles agradavam ou consolavam o homem era loucura. Pelo fato de o
momento mais revelador da história ter envolvido a morte do Filho
unigênito de Deus, os cristãos precisam lembrar-se de que adversidade ou
sofrimento era “enviado por justa dispensação de Deus”.20
A lição que o entendimento de Calvino da providência parecia ter para
os historiadores é aquela um tanto decepcionante de que a história é
geralmente indecifrável à parte de Cristo. A história fica sem sentido a
menos que a Escritura seja verdadeira ao declarar a glória de Deus
conforme revelada na vida e obra do Filho de Deus encarnado. Porém, a
verdade da revelação de Deus em Cristo não leva aonde muitos eruditos
reformados pensam que ela leva. O evangelho explica por que as pessoas
existem e para onde a história está indo. Porém, além da resposta da escola
dominical a todo questionamento histórico –“Cristo” – os historiadores não
têm acesso real à interpretação do sentido último de acontecimentos e atores
históricos. Por exemplo, à pergunta “Por que Andrew Jackson venceu a
eleição de 1828 para presidente dos Estados Unidos?”, a resposta “Cristo”
ou “o evangelho” ou “a glória de Deus” dificilmente satisfaz. Os
historiadores têm muito maior probabilidade de falar de mudanças na
demografia dos Estados Unidos, da reputação de Jackson como herói de
guerra, a concessão de direitos de voto a cidadãos anteriormente excluídos
do processo eleitoral. Qualquer número dessas explicações imediatas ou
temporais dá sentido ao que mudou com a vitória de Jackson. Porém, essas
não são exatamente respostas cristãs. Elas não estão em desacordo com a
verdade cristã de que Deus controla todas as coisas, incluindo causas
secundárias como as que explicam o sucesso de Jackson. Elas simplesmente
não têm relação direta com a obra de Cristo pelo bem do povo de Deus.21
Esforços para ligar acontecimentos da história à pessoa e à obra de
Cristo podem ser totalmente desastrosos, não apenas segundo padrões
históricos, mas também de acordo com a ortodoxia cristã. Se alguém
argumentasse que Jesus Cristo realizou a salvação para que Andrew
Jackson fosse eleito o sétimo presidente dos Estados Unidos, o argumento
seria difícil se baseado unicamente no que a Escritura revela. Cristo
governa as nações e governou providencialmente a eleição de 1828, mas
dizer que Cristo estava cumprindo a sua obra redentora por intermédio da
administração Jackson não faz justiça a qualquer número de políticas ou
iniciativas contrárias à vontade revelada de Deus implementadas por
Jackson.22 Enquanto isso, dizer que Jackson estava realizando as intenções
de Cristo é igualmente absurdo e evidentemente falso. Cristãos reformados
podem debater a atuação adequada do magistrado e até que grau ele pode
ser responsável pela verdadeira religião no seu âmbito, mas poucos
historiadores reformados argumentaram – como Eusébio fez com
Constantino – que determinado governante estava fornecendo significado à
história por estar realizando a obra e o propósito redentores de Cristo.
Porém, o simples fato de os historiadores – mesmo os reformados – não
deterem a chave interpretativa que revela o significado dos acontecimentos
ou atores que não têm relação direta com o resultado da história da
redenção não faz com que o trabalho deles seja em vão. É nesse caso que o
ensino de Calvino sobre a providência é especialmente útil. Pelo fato de que
Deus governa todas as coisas e tudo acontecer segundo o seu propósito
eterno, os historiadores não estudam os acidentes, mesmo que os
acontecimentos que eles tentam explicar não possuam uma qualidade
inevitável. Os historiadores não só estudam uma ordem significativa (e são
criados de maneira a perceber a ordem em oposição ao caos no movimento
da história), mas também conseguem enxergar as conexões entre causas
secundárias, sendo, desse modo, capazes de dar explicações sábias e cultas
de por que certas coisas acontecem, segundo a infinidade de circunstâncias
em que o homem vive em decorrência da criação e da providência de Deus.
Em outras palavras, os historiadores são capazes de identificar a diferença
que tirania, justiça, escassez, criatividade, virtude e produtividade fazem
para a história de povos, nações e sociedades. Não obstante, não são
capazes de ligar esses atributos e fatores à direção e ao significado da
história de uma perspectiva eterna; ou seja, os historiadores são incapazes
de, definitivamente, dizer como essas circunstâncias contribuem para o
avanço do reino de Cristo.
Então, a doutrina da providência de Calvino era uma reiteração do
entendimento profundo e bíblico que Agostinho tinha da história e do seu
significado. Em A cidade de Deus, o bispo de Hipona escreveu:
Não sabemos por qual juízo de Deus este homem bom é pobre e aquele homem ruim é
justo; porque aquele que, em nossa opinião, deve sofrer intensamente por sua vida dissoluta
se diverte, enquanto a tristeza persegue aquele cuja vida louvável nos leva a supor que ele
deveria estar feliz; por que o homem inocente sai do tribunal não só não vingado, mas até
mesmo condenado, sendo injustiçado pela iniquidade do juiz ou oprimido por provas falsas,
enquanto, por outro lado, seu adversário culpado sai não apenas impune, mas até mesmo
tem as suas alegações admitidas; por que o ímpio goza de boa saúde enquanto o piedoso
definha na doença. […] Porém, quem é capaz de juntar ou enumerar todos os contrastes
desse tipo? No entanto, se esse estado anômalo de coisas fosse uniforme nesta vida, na qual,
como diz o sagrado salmista, “O homem é como um sopro; os seus dias, como a sombra que
passa” (Sl 144.4) – tão uniforme que somente os homens maus ganharam a prosperidade
transitória da terra, enquanto somente os bons sofreram seus males —, isso poderia ser
atribuído ao juízo justo e até mesmo benigno de Deus. […] Porém agora, como é, uma vez
que não só vemos homens bons envolvidos nos males da vida, e homens maus desfrutando
das coisas boas dela, o que parece injusto, mas também que com frequência o mal vem aos
homens maus, e o bem surpreende os bons, quão insondáveis são os juízos de Deus, e quão
inescrutáveis, os seus caminhos (Rm 11.33). Portanto, embora não saibamos por que juízo
essas coisas são feitas ou cuja permissão para serem feitas vem de Deus, possuidor da mais
elevada virtude, da mais elevada sabedoria, da mais elevada justiça, de nenhuma
enfermidade, de nenhuma temeridade e de nenhuma injustiça, nos é salutar aprender a
considerar irrelevantes tais coisas, sejam elas boas ou más, que acontecem indiferentemente
a homens bons e maus, e cobiçar as coisas que pertencem somente a homens bons, e fugir
dos males que só pertencem a homens maus (20.2).23Historiadores deficientes?
Por mais claro que Calvino tenha sido a respeito da natureza da
providência, os historiadores cristãos têm sido relutantes quanto a obedecer
ao sinal de parada colocado por ele nas explicações históricas de
acontecimentos que carecem de interpretação bíblica. Desde o surgimento
de uma associação conscientemente cristã de estudiosos, não somente em
história acadêmica, diversos acadêmicos evangélicos e reformados
desenvolveram argumentos sobre o valor de historiadores cristãos
exercerem seu ensino com motivações ou perspectivas explicitamente
religiosas. Frequentemente, esses argumentos incluíam a ideia de que a
historiografia cristã deveria ser, de algum modo, perceptivelmente diferente
do trabalho dos seus pares seculares. É claro que a diferença entre as
interpretações cristãs e seculares decorre precisamente das diferentes
crenças e convicções que os acadêmicos cristãos possuem em virtude de sua
fé. Não obstante, apelar para Calvino quanto a esse ponto é anacrônico, uma
vez que uma academia secular teria sido inconcebível para ele. Porém, seu
ensino sobre a providência é relevante para muitos dos recentes argumentos
apresentados em nome da diferença que o cristianismo faz para a erudição
histórica.
C. Gregg Singer, professor de História na Catawba College, representou
a perspectiva de um conjunto mais antigo de acadêmicos cristãos que
ensinavam e escreviam antes de os evangélicos dos Estados Unidos
começarem a fazer pós-graduação como parte normal da sua formação. Ele
acreditava que os historiadores seculares rejeitavam “a possibilidade de
significado e propósito final na história”. Consequentemente, a tarefa dos
historiadores cristãos era “confrontar o mundo incrédulo com uma
interpretação da história que é tanto fiel à Escritura por um lado quanto, por
outro, relevante para o clima intelectual” dos tempos.24 A doutrina da
providência era fundamental. Para Singer, ela assegurava que “a história
tem tanto significado quanto propósito porque é real”. Ele tinha razão
quanto à sensação de um cristão de viver no espaço e no tempo e
imaginando para onde a história está indo. Porém, ao aplicar essa verdade a
julgamentos históricos, Singer soava menos certo. Por exemplo, a
decadência da cultura ocidental na última metade do século 20 “fazia parte
do propósito soberano de Deus de aniquilar as filosofias pagãs do mundo
antigo”.25 Singer levou isso um passo adiante ao convocar o historiador
cristão a demonstrar que “o declínio da própria cultura ocidental é o
resultado direto do triunfo da Renascença sobre a Reforma na vida
ocidental”. Ele acrescentou que as revoluções na França e nos Estados
Unidos foram o resultado de “paganismo ressurgente” no século 18. Fazer
esses julgamentos era a “tarefa do historiador”, disse ele.26
Um grupo mais jovem de historiadores surgiu para assumir a defesa de
uma abordagem cristã à história. A avaliação que eles faziam do Ocidente e
seu declínio, talvez refletindo a diferença entre a “Melhor geração” dos
Estados Unidos e a geração dos baby boomers, não era tão lúgubre quanto a
de Singer. Porém, como Singer, eles argumentaram que convicções
religiosas separavam sua compreensão da história da dos estudiosos
seculares e os capacitava a discernir o significado ou padrão divino no
desenrolar dela. A avaliação mais abrangente e criteriosa foi a de David
Bebbington, historiador evangélico inglês cujo livro Patterns in history
[Padrões na História] (1979) contrastava concepções cristãs da história com
concepções antigas, modernas, marxistas e historicistas. Os argumentos de
Bebbington sobre o cristianismo envolvendo uma visão linear da história,
um fim ou telos, e um Deus que intervinha no espaço e no tempo, o que
distingue o cristianismo de outras perspectivas intelectuais, foram
claramente bem recebidos. Ele ainda mostrou o quanto a história acadêmica
ocidental moderna – embora frequentemente rejeitando Deus – tomou
emprestado do triunfo do cristianismo sobre a filosofia pagã.27 Porém,
quando tomou a verdade de que Deus intervém na história e deu aos
historiadores cristãos uma medida de acesso ao significado da história,
graças à sua crença num Deus que é atuante no mundo, Bebbington pareceu
ir além de onde a doutrina da providência de Calvino permitia. Por
exemplo, Bebbington escreveu que “quando o bem surge
surpreendentemente do mal, Deus está, evidentemente, operando”.28 Ele
também sugeriu que auxiliados, como foram, por uma moral divinamente
revelada, os estudiosos cristãos deveriam ser capazes de fazer julgamentos
morais sobre o passado. Bebbington alertou contra os cristãos interpretarem
o passado de um modo providencial quando seus leitores ou plateias
estivessem interessados apenas em “história técnica”. Todavia, “o
historiador cristão pode discernir Deus operando no passado, sem
necessariamente escrever sobre ele”.29
George M. Marsden argumentou de modo semelhante a Bebbington,
embora mostrando diretamente a influência de argumentos kuyperianos (ou
neocalvinistas) sobre seu pensamento. Segundo Marsden, a fé cristã
influenciou a erudição histórica de três modos importantes. O primeiro foi a
escolha de um tema. Invariavelmente, devido às suas crenças, os cristãos
valorizariam alguns aspectos da pesquisa histórica como mais vantajosos do
que outros. O segundo foi o tipo de pergunta que um historiador cristão
faria a respeito de um tema. “Os estudiosos cristãos têm a probabilidade de
estar mais interessados num conjunto diferente de questões do que outros
estudiosos e de discernir coisas diferentes por causa de sua crença.”30 A
terceira influência sobre a historiografia cristã veio na seleção de teorias
pelas quais abordar um tema e um conjunto de perguntas. Por exemplo,
“estudiosos que aceitam a autoridade de textos antigos não têm a
probabilidade de aceitar a radical desconstrução pós-moderna da autoridade
de todos os textos ou de que os seres humanos são, de fato, os únicos
criadores da realidade”.31 Marsden acrescentou que a contribuição
específica que os historiadores cristãos poderiam fazer seria exibirem
padrões morais no seu trabalho e resistirem ao relativismo cultural e
histórico.32 Embora Marsden tenha interagido menos diretamente com
ideias de propósito ou significado na história, seu argumento sugeriu que os
historiadores cristãos poderiam fazer julgamentos sobre o passado que não
estavam disponíveis aos seus pares, em virtude de sua compreensão da
verdade revelada de Deus.
Um último exemplo de reflexão sobre a natureza da história cristã vem
de Ronald A. Wells, que ensinou na Calvin College durante grande parte da
sua carreira e escreveu o livro History through the eyes of faith [A história
vista pelos olhos da fé] (1989), dedicado à história da Christian College
Coalition. Wells estava escrevendo com uma finalidade um tanto diferente
da de Singer, Bebbington ou Marsden, uma vez que seu livro deveria
suplementar pesquisas para livros didáticos sobre a civilização ocidental.
Mesmo assim, ele argumentou que os estudantes universitários cristãos
precisavam compreender seu lugar na vinda do reino de Deus, e isso levará
a certas avaliações da história ocidental. Por exemplo, mostraria que o
“humanismo secular-científico do Iluminismo” havia levado a humanidade
a um “beco sem saída”.33 Wells argumentou que os cristãos conseguiam
discernir um padrão de desolação moral e espiritual na história do Ocidente.
Ele acrescentou que, dado que “o racionalismo do Iluminismo é
incompatível com a fé cristã, e dado que os Estados Unidos deveriam ser
um campo de testes das crenças progressistas do Iluminismo, sempre foi
claro – em termos [do cristão] – que esse tipo de teste seria um fracasso”.34
Wells pode ter discordado de Singer quanto à natureza da experiência norte-
americana, mas, como ele, Wells e também Marsden e Bebbington (numa
extensão menor), sentiram-se à vontade para fazer avaliações morais da
história. Essa perspectiva moral era tanto um dom quanto uma
responsabilidade para o historiador cristão.
Sem dúvida, Calvino não terianegado a validade dos padrões morais
divinamente revelados e que todos os atores históricos serão julgados
segundo a lei de Deus. Porém, que essa seja propriamente tarefa do
historiador é outra questão. Uma perspectiva moral da história também não
necessariamente entra em ressonância com a doutrina da providência
conforme explicada por Calvino. Certamente, juízos morais estão presentes
na obra de historiadores seculares, talvez no lado diferente de uma questão,
mas os julgamentos morais não são o domínio exclusivo dos historiadores
profissionais cristãos. Temas como escravidão, nazismo, patriarcado e
capitalismo são especialmente reveladores, uma vez que, mesmo sem fé, os
historiadores tiveram pouca dificuldade em condenar essas características
do passado. Ao mesmo tempo, apreciar a variedade, a complexidade e o
mistério do passado – seja decorrente de um apelo à providência ou não –
raramente resulta da certeza moral que os cristãos e os historiadores
incrédulos demonstraram. Essa certeza está em desacordo com a humildade
interpretativa que Calvino incentivou na sua doutrina da providência.
Aceitando os limites do significado
O calvinismo nutriu criatividade intelectual, tradições de realização
acadêmica e instituições fortes de ensino superior. Essas realizações nem
sempre cultivaram a modéstia intelectual entre os protestantes reformados.
Devido a um talento para interpretar a Bíblia e refletir sobre suas verdades
de maneiras sistemáticas, os calvinistas geralmente se orgulharam de sua
tradição como um dos grupos intelectualmente mais avançados dos
protestantes. Quer esse orgulho seja apropriado ou não, os historiadores que
trabalham dentro de uma perspectiva reformada podem ter os ingredientes
para fornecer a modéstia intelectual necessária para impedir a arrogância
nos eruditos reformados.
A doutrina da providência é um bom lugar para começar. Embora essa
verdade, especialmente como Calvino a expôs, pareça incentivar os
estudiosos cristãos a encontrar significado em toda parte – porque Deus está
no controle de tudo –, ela faz precisamente o oposto. Pelo fato de Deus ter
criado e sustentar todas as coisas segundo a sua infinita sabedoria, bondade
e justiça, tudo que existe na ordem criada tem significado e propósito. Além
disso, devido a esse significado e propósito residirem inequivocamente no
decreto eterno de Deus, não há qualquer ambiguidade na importância da
criação, pelo menos na mente de Deus. Essa perspectiva abrangente da
relação de Deus com a criação tentou acadêmicos cristãos a pensar que são
capazes de conhecer a mente de Deus e, portanto, o significado e o
propósito das matérias que estudam.
O problema com o qual os estudiosos cristãos precisam lutar é que Deus
revelou apenas uma parte da sua mente, da sua vontade e do seu propósito.
Os protestantes reformados acreditam que Deus revela-se nos dois livros: o
livro da natureza e o livro da Escritura. Porém, apenas um desses livros
revela Cristo, cuja vida, ministério e redenção constituem o significado da
criação. O outro livro, a revelação geral, revela de fato o seu autor, mas
apenas de maneira suficiente para condenar a incredulidade e a
perversidade. O livro da natureza não revela Cristo. Por essa razão, os
esforços cristãos para encontrar sentido nas páginas da história, no mundo
natural, no desenvolvimento social ou na natureza humana chocam-se com
o muro dos limites da Escritura. Ir além desse muro é envolver-se em
especulação.
Isso é tão verdadeiro para a história quanto para outras esferas da
investigação humana. Os biólogos cristãos não têm uma ideia melhor sobre
o significado dos micróbios do que os matemáticos cristãos têm sobre as
equações algébricas ou os professores de inglês têm sobre Hamlet. Os
historiadores cristãos podem ser tentados, mais do que outros estudiosos
cristãos, a especular sobre a importância dos seus estudos porque o
cristianismo está ligado à história. A própria Bíblia começa com as origens
humanas e termina com uma visão do fim dos tempos. A Escritura pareceria
convidar quem crê nas suas verdades a compreender os desenvolvimentos
humanos intervenientes à luz da narrativa bíblica da criação, queda,
redenção e consumação. Embora a Escritura seja clara sobre o significado
de vários pontos altos do drama histórico por ela revelados, quase nada tem
a dizer sobre as circunstâncias históricas que tornaram lugares como
Atenas, Roma, Londres e Filadélfia, por exemplo, lugares tão importantes
na história do Ocidente.
Aceitar os limites que o cristianismo impõe à busca de significado na
história contraria o conhecimento de que os cristãos conhecem o significado
último da dela. O truque é aceitar outra verdade, ou seja, que há uma
diferença entre encontrar o significado último da história humana (que é
Cristo) e o significado imediato de guerras, eleições presidenciais, leis e
movimentos de massas (que é incerto). Com essa distinção em mente, os
historiadores cristãos podem afirmar, com confiança, que o significado da
história da redenção é claramente revelado, enquanto no domínio da história
secular eles possam trabalhar numa estrutura interpretativa que decorre das
pessoas, instituições e ideias que eles adotam e exploram (tais como o valor
do republicanismo e da liberdade, ou as vantagens da monarquia
constitucional, ou a necessidade de estados-nações fortes, ou o valor das
instituições e cultura locais). Essa não é uma posição de relativismo ou
ceticismo. Ela é o resultado necessário de não conhecer todos os propósitos
ocultos de Deus na trama e urdidura da sua criação. A distinção entre os
segredos ocultos e revelados de Deus não é menos verdadeira para a
história da igreja. Com a conclusão do cânon da Escritura e a perda de
acesso a interpretações divinamente reveladas de acontecimentos da história
da redenção, os historiadores cristãos da igreja estão igualmente sem
condições de determinar por que a Reforma, por exemplo, começou na
Alemanha, assim como os historiadores cristãos que estudam a história da
política são incapazes de explicar, em última análise, as causas da
Revolução Francesa.35
Embora não tivesse formação de historiador, Machen certamente parecia
compreender os limites impostos pelo cristianismo aos seus poderes de
discernir significado na História. Embora mais animado pela importância
dos avanços do mundo presbiteriano do que pelas fortunas em declínio de
Wall Street, Machen não estava mais disposto a identificar o significado dos
avanços do Seminário de Princeton do que a atribuir uma importância
divina à débil economia dos Estados Unidos. Esse tipo de restrição
interpretativa pode ser raro para os calvinistas, mas, se os historiadores
reformados conseguirem aprender a sua disciplina, poderão fornecer um
serviço crucial como modelos do tipo de humildade intelectual que deve
caracterizar o discernimento cristão.
1 Sobre os acontecimentos que levaram à reorganização de Princeton e à criação de Westminster,
veja Bradley J. Longfield, The Presbyterian controversy: Fundamentalists, modernists, and
moderates, Religion in America (Nova York: Oxford University Press, 1991).
2 J. Gresham Machen, “Westminster theological seminary: Its purpose and plan”, in D. G. Hart
(org.), J. Gresham Machen: Selected Shorter Writings (Phillipsburg, NJ: P&R Publishing, 2004), 194.
3 Institutas, 1.16.3.
4 Ibid.
5 Institutas 1.16.4.
6 Institutas, 1.16.5.
7 Ibid.
8 Institutas, 1.16.6.
9 Ibid.
10 Institutas, 1.16.7.
11 Institutas, 1.16.8.
12 Ibid.
13 Institutas, 1.16.9.
14 Ibid.
15 Ibid.
16 Ibid.
17 Institutas, 1.17.1.
18 Institutas, 1.17.2.
19 Institutas, 1.17.6.
20 Institutas, 1.17.8.
21 Livros recentes sobre Andrew Jackson incluem Sean Wilentz, Andrew Jackson (Nova York:
Times Books, 2005) e Jon Meacham, American Lion: Andrew Jackson in the White House (Nova
York: Random House, 2008).
22 Por exemplo, o tratamento dado por Jackson aos norte-americanos nativos – transferindo-os para
os territórios do Oeste – e sua indiferença ao abolicionismo, bem como sua conduta pessoal, são
geralmente consideradasmanchas no seu caráter. Para alguma perspectiva sobre o homem Jackson,
veja Meacham, American lion, 25–32.
23 Agostinho, The city of God against the pagans, trad. e org. R. W. Dyson (Nova York: Cambridge
University Press, 1998).
24 C. Gregg Singer, Christian approaches: To philosophy, to history (Memphis: Craig Press, 1978),
35.
25 Ibid., 36.
26 Ibid., 37.
27 David Bebbington, Patterns in history: A Christian perspective on historical thought (Grand
Rapids: Baker, 1990), cap. 3.
28 Ibid., 184.
29 Ibid., 186–87.
30 George M. Marsden, “What difference might Christian perspectives make”, in Ronald A. Wells
(org.), History and the Christian historian (Grand Rapids: Eerdmans, 1998), 15.
31 Ibid., 16.
32 Ibid., 17–18.
33 Ronald A. Wells, History through the eyes of faith, Christian College Coalition Series (San
Francisco: Harper & Row, 1989), 234.
34 Ibid., 230.
35 Esses parágrafos resumem o argumento contido em D. G. Hart, “History in search of meaning:
The conference on faith and history”, in Wells (org.), History and the Christian historian, 68-87.
A
2
Lei, autoridade e liberdade no início do
calvinismo
John Witte Jr.
reforma calvinista transformou não apenas a teologia e a igreja, mas
também a lei e o Estado. O próprio João Calvino era um advogado de
boa formação e criou mais de uma centena de estatutos para Genebra –
incluindo novas constituições para a igreja e o Estado locais, novas leis e
procedimentos civis e criminais, e muitas ordenanças distintas sobre
sexualidade e suntuosidade, casamento e vida familiar, moralidade e
caridade, educação e assistência aos pobres, dentre muitos outros tópicos.1
Calvino também foi membro do consistório de Genebra durante duas
décadas, tendo julgado milhares de casos, e lidou com muitas questões
legais intrincadas na sua obra Institutas, nos comentários, sermões,
concílios e correspondências.2 A atenção de Calvino aos detalhes legais
tornar-se-ia uma marca registrada das primeiras comunidades calvinistas
nos primórdios das modernas França, Holanda, Escócia, Inglaterra,
Alemanha e suas colônias de além-mar. Os calvinistas de cada uma dessas
comunidades desenvolveram elaborados novos decretos para todos os tipos
de temas de direito público, privado e criminal. Com frequência, seus
consistórios locais eram tribunais legais sofisticados, tanto quanto os seus
mais amplos sínodos, conselhos e presbitérios, que promoviam audiências e
faziam novas leis para a igreja. Suas universidades produziram um grande
número de juristas, que lideraram a igreja e o Estado na reforma do direito,
da política e da sociedade.3
Este capítulo dá exemplos de alguns dos principais ensinos legais e
contribuições de Calvino e juristas calvinistas posteriores antes de 1700. Ele
se concentra nos modelos singulares de lei e liberdade, autoridade e
disciplina, e igreja e Estado desenvolvidos pelos calvinistas com base na
força dos seus ensinamentos teológicos fundamentais. Depois de analisar
em detalhe as visões de Calvino, o capítulo concentra-se nas contribuições
distintas de calvinistas selecionados franceses, holandeses, ingleses e norte-
americanos que escreveram em resposta a grandes crises legais e políticas.
O objetivo é simples: ilustrar como Calvino e o calvinismo influenciaram a
área do direito.
João Calvino e Genebra
A reforma de Genebra por Calvino traçou uma conduta habilidosa entre os
luteranos, que tendiam a subordinar a igreja ao Estado, e os anabatistas, que
tendiam a retirar totalmente a igreja do Estado e da sociedade. Como os
luteranos, Calvino insistia em que cada governo local (como o de Genebra)
fosse uma comunidade cristã uniforme que aderisse aos princípios gerais da
Bíblia e da lei natural e os traduzisse em leis positivas detalhadas para a
vida pública e a privada. Como os anabatistas, Calvino insistia na separação
básica dos cargos e operações de igreja e Estado, deixando a igreja governar
a si mesma sem interferência do Estado. Porém, diferentemente daqueles
dois grupos, Calvino insistia em que os funcionários da igreja e os do
Estado desempenhassem papéis legais complementares na criação da
comunidade cristã local e de suas leis, e no cultivo dos direitos e deveres
dos cidadãos.
Visões iniciais de Calvino
João Calvino desenvolveu alguns dos seus ensinos legais já nas Institutas de
1536. Nessa obra-prima inicial, Calvino ecoou o pedido protestante pela
liberdade cristã já tornada famosa por Martinho Lutero e outros
reformadores uma geração antes – liberdade da consciência individual das
leis canônicas católicas e controles clericais, liberdade dos funcionários
políticos do poder e privilégio eclesiástico, liberdade dos membros do clero
local da regra papal central, liberdade das jovens igrejas protestantes da
opressão pela igreja e pelo Estado em violação dos direitos e liberdades das
pessoas.
Calvino pedia por uma separação básica entre igreja e Estado. A igreja
detém o poder espiritual da Palavra. Os ministros devem pregar a Palavra e
ministrar os sacramentos. Os doutores devem catequizar os jovens e instruir
os paroquianos. Os presbíteros devem manter a disciplina e a ordem e julgar
disputas. Os diáconos devem controlar as finanças da igreja e coordenar seu
cuidado para com os pobres e necessitados. No seu Ecclesiastical
ordinances [Ordenanças eclesiásticas] de 1541, Calvino elaborou que cada
um desses funcionários da igreja está sujeito à limitação do seu próprio
cargo e à supervisão dos demais funcionários.
O Estado detém o poder legal da espada. Os funcionários do Estado são
“vice-regentes”, “vigários” e “ministros” de Deus nesta vida terrena. Eles
são investidos com a autoridade e majestade de Deus e “chamados” para a
função “mais sagrada e, de longe, a mais honrada de todos os chamados de
toda a vida dos homens mortais”. Eles são comandados a adotar e
exemplificar clemência, integridade, honestidade, compaixão, humanidade
e outras virtudes piedosas. Os governantes políticos precisam reger em
conformidade com leis positivas escritas, não por decreto pessoal. Suas leis
precisam abranger os princípios bíblicos de amor a Deus e ao próximo, mas
eles não devem adotar as leis bíblicas per si – particularmente, não as leis
judaicas cerimoniais e jurídicas do Antigo Testamento. Em vez disso,
“apenas a equidade precisa ser o objetivo, a regra e o limite de todas as
leis”. Por meio de tais leis imparciais escritas, os governantes políticos
precisam promover a paz e a ordem no reino terreno, punir o crime e o
delito civil, e proteger a vida e as propriedades das pessoas, “para assegurar
que os homens possam manter entre si relacionamentos inculpáveis”, no
espírito de “justiça civil”.4
Esses deveres e limites dados por Deus definem não apenas o cargo
político, mas também a liberdade política dos crentes cristãos. A liberdade
política e a autoridade política “são constituídas em conjunto”, disse
Calvino. A liberdade política dos cristãos não é tanto um direito subjetivo
quanto uma função do cargo político. Quando os funcionários políticos
respeitam os deveres e limites dos seus cargos, os cristãos desfrutam de
ampla liberdade política para dar “manifestação pública de sua fé”. No
entanto, quando os funcionários políticos traem a sua função, por
negligência, injustiça, excesso ou tirania absoluta, a liberdade política do
crente é abreviada ou até mesmo destruída. Como conse quência, disse
Calvino, “aqueles que desejam que cada pessoa preserve os seus direitos e
que todos os homens possam viver livres de prejuízos precisam defender a
ordem política até o máximo da sua capacidade”.5
Calvino insistia que as pessoas têm um dever piedoso de obedecer aos
funcionários políticos tirânicos até os limites da consciência cristã. “Os
poderes existentes são ordenados por Deus”, e a Bíblia ordena
repetidamente a nossa obediência a eles (Rm 13.1-7; Tt 3.1; 1Pe 2.13-14).
Calvino insistia que essas obrigações de obediência permanecem até mesmo
quando as autoridades tornam-se abusivas e arbitrárias. Isso é
particularmente verdadeiro para a esfera política,o que proporciona ordem
e estabilidade para a prosperidade de pessoas, bem como para famílias,
igrejas, empresas e outras estruturas sociais. Alguma ordem política é
melhor do que nenhuma, e desobediência privada geralmente acarreta
desordem maior. Alguma justiça e equidade prevalecem até mesmo nas
piores tiranias, e até mesmo isso é ameaçado quando pessoas tomam a lei
nas suas próprias mãos. Às vezes, tiranias são provas de Deus à nossa fé ou
punição pelos nossos pecados, e nós insultamos Deus ainda mais se
resistirmos aos seus instrumentos. Portanto, as pessoas devem obedecer e
suportar com paciência e oração, e deixar para Deus a vingança e a
retribuição.
Porém, a honra a autoridades terrenas não pode ser desonra a Deus,
continuou Calvino. Quando autoridades terrenas ordenam a seus súditos
que desobedeçam a Deus, que desconsiderem a Escritura ou que
transgridam a consciência, seus cidadãos e súditos políticos não apenas
podem desobedecer, como devem desobedecer. Calvino escreveu que a
nossa “obediência nunca deve nos afastar da obediência a ele [Deus], a cuja
vontade os desejos de todos os reis devem estar sujeitos, a cujos decretos os
seus comandos devem submeter-se”. Calvino escreveu, “Se eles ordenarem
algo contra ele [Deus], desconsidere”. Isso porque amar e honrar a Deus é o
primeiro e mais importante mandamento. Todas as autoridades que traem a
sua função para detrimento ou difamação de Deus perdem o cargo e são
reduzidas a pessoas comuns. Elas já não são mais autoridades, mas meros
“bandidos” e “criminosos”. “Ditaduras e autoridades injustas não são
governos ordenados por Deus” e “Aqueles que praticam a tirania blasfema”
já não são “ministros de Deus” da lei.6
Para Calvino, a questão que permanecia era a maneira como essas
autoridades abusivas ou tirânicas devem ser desobedecidas. Calvino
recomendou uma solução “moderada e justa”. Ele sabia o suficiente sobre a
revolta e os tumultos desencadeados pelos radicais anabatistas da sua época,
e havia lido o suficiente na história clássica sobre os perigos de
simplesmente liberar a multidão contra os tiranos. Assim, procurou uma
reação mais estruturada e construtiva, tanto pelas autoridades do Estado
quanto da igreja, mesmo conclamando as pessoas a desobedecer
discretamente às leis que violavam a consciência e os mandamentos
cristãos. Nenhum regime político é governado por “uma só pessoa”,
argumentou Calvino. Até mesmo os monarcas têm todo um círculo de
funcionários menores – conselheiros, juízes e chanceleres – encarregados
da implementação da lei. Além disso, muitas comunidades têm
“magistrados do povo, nomeados para conter a obstinação dos reis”, tais
como os éforos da antiga Grécia ou os parlamentares eleitos dos nossos
dias. Esses magistrados inferiores, funcionários especialmente eleitos, têm o
dever de proteger as pessoas por meio de resistência ativa, e até mesmo
revolta, se os magistrados mais elevados se tornam abusivos ou tirânicos na
violação da autoridade e da lei de Deus.7
Os líderes da igreja, por sua vez, precisam pregar e profetizar em voz
alta contra a injustiça da tirania e pedir que os magistrados tirânicos se
arrependam do seu abuso, que retornem às suas funções políticas e
restaurem a liberdade política dos cristãos religiosos. Calvino iniciou a
edição de 1536 das Institutas com uma petição semelhante a essa ao rei
Francisco I, em nome dos protestantes perseguidos da França. Na sua
epístola dedicatória a Francisco, Calvino afirmou que, como cristão, era
obrigado a “defender a Igreja contra fúrias [políticas]” e a “abraçar a causa
comum de todos os cristãos”. Mais adiante, Calvino disse que, contra a
“tirania arrogante”, um cristão precisa “aventurar-se corajosamente a gemer
por liberdade”.8
Visões posteriores de Calvino
Nos seus escritos maduros, Calvino elaborou um entendimento legal e
político muito mais completo, com base numa teoria ampliada dos usos da
lei moral nesta vida terrena e do papel da igreja em ajudar a compreender
esses usos da lei.
Calvino descreveu a lei moral como um conjunto de mandamentos
morais, gravado na consciência, repetido nas Escrituras e resumido no
Decálogo. Ele utilizou uma terminologia amplamente variada para
descrever essa lei: “a voz da natureza”, a “lei gravada”, “a lei da natureza”,
“a lei natural”, a “mente interior”, a “regra de equidade”, o “senso natural”,
“o senso do juízo divino”, “o testemunho do coração” e a “voz interior”,
dentre outros termos.
Calvino disse que Deus faz três usos da lei moral para governar a
humanidade. Primeiro, Deus usa a lei moral teologicamente – para
condenar todas as pessoas na própria consciência delas e obrigá-las a buscar
a graça libertadora de Deus. Ao estabelecer um modelo e espelho de
perfeita justiça, a lei moral “adverte, informa, declara culpado e, por último,
condena cada homem quanto à sua própria injustiça”. Assim, a lei moral
perfura a sua vaidade, diminui o seu orgulho e o leva ao desespero. Calvino
acreditava que esse desespero é uma precondição necessária para o pecador
buscar a ajuda de Deus e ter fé na graça de Deus. Segundo, Deus usa a lei
moral civilmente – para conter a pecaminosidade dos não cristãos. Calvino
escreveu: “[A] lei é como um cabresto, para conter os furiosos e de outro
modo ilimitados desejos da carne. […] Dificultados por medo ou vergonha,
os pecadores não se atrevem a executar o que conceberam na própria mente,
nem a ventilar abertamente o furor da sua luxúria”. A lei moral lhes impõe
uma “justiça constrangida e forçada” ou uma “justiça civil”. Terceiro, Deus
usa a lei moral educacionalmente – para ensinar aos cristãos, aqueles que
aceitaram a sua graça, os meios e as medidas de santificação, de
desenvolvimento espiritual. Até mesmo os santos mais devotos, embora
livres da condenação da lei moral, ainda precisam seguir os mandamentos
“para aprender mais minuciosamente […] a vontade do Senhor [e] ser
despertados para a obediência”. A lei lhes ensina não apenas a “justiça
civil” comum a todas as pessoas, mas também a “justiça espiritual” que é
apropriada aos cristãos santificados. Como mestre, a lei não só os reprime
contra violência e violação, mas também cultiva neles a caridade e o amor.
Ela não apenas pune atos nocivos de assassinato, roubo e fornicação, mas
também proíbe maus pensamentos de ódio, cobiça e luxúria.9
Assim, a lei moral cria duas vertentes de normas: “normas civis”, que
são comuns a todas as pessoas, e “normas espirituais”, que são
distintamente cristãs. Esses dois conjuntos de normas, por sua vez, dão
origem a duas vertentes de moralidade: uma “moralidade do dever”
simples, exigida de todas as pessoas, independentemente da sua fé, e uma
“moralidade da aspiração” mais elevada, exigida dos cristãos na reflexão de
sua fé.10 Esse sistema de duas vertentes da moralidade correspondia,
aproximadamente, à divisão correta de responsabilidades entre a igreja e o
Estado, como Calvino a via nos seus últimos anos. Era responsabilidade da
igreja ensinar normas espirituais aspiracionais. O Estado tinha a
responsabilidade de impor normas civis obrigatórias. Essa divisão de
responsabilidade foi refletida nas divisões processuais entre o consistório e
o conselho municipal da Genebra de Calvino. Na maioria dos casos que não
envolviam crimes graves, o consistório chamaria primeiramente as partes
aos seus deveres espirituais mais elevados, apoiando as suas recomendações
com (ameaças de) disciplina espiritual. Se esse conselho espiritual não
obtivesse o resultado desejado, as partes seriam encaminhadas ao conselho
municipal para obrigá-las, usando sanções civis e criminais, a honrar, no
mínimo, os seus deveres civis básicos.
Calvino baseou essa divisão do trabalho legal no pressuposto de que a
igreja era uma entidade legal distinta, com suas próprias responsabilidades
legais na comunidade cristã local. Essa foi uma nova ênfase nos seus
escritos posteriores. Deus dotou esse governo eclesiástico de três formas de
poder (potestas), argumentou Calvino nas Institutas de 1559. A igreja
detém o “poder doutrinário”para definir suas próprias confissões, credos,
catecismos e outras essências da fé cristã que são revestidas de autoridade, e
expô-las livremente no púlpito e na tribuna. A igreja detém “poder
legislativo” para promulgar para si mesma “uma constituição bem
ordenada” que garanta “ordem e organização adequada”, “proteção e
segurança” na administração da igreja dos seus assuntos e decência
adequada, e “dignidade apropriada” em culto, liturgia e ritual. Além disso, a
igreja detém “poder jurisdicional” para fazer cumprir leis eclesiásticas
positivas destinadas a manter a disciplina e evitar escândalos entre os seus
membros.11
Calvino insistiu que o poder jurisdicional da igreja permanece
“totalmente espiritual” em caráter. Suas regras disciplinares precisam ser
“fundamentadas na autoridade de Deus, provenientes da Escritura e,
portanto, totalmente divinas”. Suas sanções precisam ser limitadas a
advertência, instrução e, em casos graves, expulsão e excomunhão – com as
penalidades civis e criminais devendo ser consideradas e aplicadas pelo
juiz. Sua administração precisa sempre ser “moderada e leve”, e entregue
“não à decisão de um homem”, mas a um consistório, com procedimentos
corretos e o apropriado respeito à regra da lei.12 Porém, o consistório tinha
uma vasta jurisdição sobre questões referentes a casos de sexo, casamento e
vida familiar, caridade e assistência aos pobres, educação e cuidados
infantis, e “moralidade pública”, que incluía “idolatria e outros tipos de
superstição, desrespeito para com Deus, heresia, rebeldia contra pai e mãe
ou magistrado, sedição, motim, agressão, adultério, fornicação, furto,
avareza, sequestro, estupro, fraude, perjúrio, falso testemunho, frequentar
tabernas, jogos de aposta, deleites desregrados e outros vícios
escandalosos”.13
A teoria eclesiástica madura de Calvino combinava engenhosamente os
princípios de estado de direito, democracia e liberdade. Primeiramente,
Calvino recomendava respeito pelo estado de direito dentro da igreja. Ele
concebeu leis que definiam as doutrinas e as normas disciplinares da igreja,
os direitos e deveres dos funcionários e dos paroquianos, e procedimentos
para legislação e adjudicação. Assim, a igreja ficava protegida contra as
intrusões da lei do Estado e das vicissitudes pecaminosas de membros. Os
funcionários da igreja eram limitados quanto ao seu próprio arbítrio. Os
paroquianos compreendiam os seus deveres espirituais. Quando novas
regras eram emitidas, elas eram discutidas, promulgadas e bem conhecidas.
Questões que estavam maduras para avaliação eram resolvidas por tribunais
apropriados. Partes que tinham casos a serem ouvidos esgotavam suas
soluções na lei da igreja. Com certeza, esse princípio do estado de direito
dentro da igreja foi um ideal frequentemente violado, tanto nos dias de
Calvino quanto nas gerações seguintes. Contudo, esse princípio ajudou a
garantir ordem, organização e ortodoxia no âmbito da igreja reformada.
Em segundo lugar, Calvino recomendava respeito pelo processo
democrático dentro da igreja. Nas igrejas calvinistas posteriores, pastores,
presbíteros, mestres e diáconos eram, em última análise, eleitos pelos
membros comungantes da congregação. As congregações realizavam
periodicamente reuniões para avaliar o desempenho dos seus funcionários
eclesiásticos, discutir novas iniciativas dentro dos seus corpos e debater
controvérsias que tivessem surgido. Os delegados para sínodos e concílios
da igreja eram eleitos pelos seus pares. As reuniões do conselho eram
abertas ao público e permitiam aos paroquianos apresentarem suas
reivindicações. Implícita nesse processo democrático estava uma disposição
para acolher mudanças na doutrina, na liturgia e no governo; para acomodar
novas visões e percepções; e para rejeitar ideias e instituições cuja utilidade
e veracidade já não eram mais sustentáveis. Com certeza, esse princípio
nem sempre isolou a igreja de um dogmatismo beligerante na época de
Calvino ou nas gerações seguintes. Contudo, ele ajudou a garantir constante
reflexão, renovação e reforma dentro da igreja.
Em terceiro lugar, Calvino recomendava respeito pela liberdade dentro
da igreja. Os crentes cristãos deveriam ser livres para entrar e sair da
membresia; participar dos cargos e serviços da igreja sem medo de coerção
física e perseguição; reunir-se, adorar, orar e participar dos sacramentos
sem medo de represália política; eleger os seus dirigentes religiosos;
debater e deliberar assuntos de fé e disciplina; ocupar-se de questões
discricionárias de fé, a adiaphora, sem leis e estruturas indevidas. Também
esse princípio foi um ideal que Calvino e seus seguidores comprometeram,
particularmente ao apoiar a execução de Miguel Serveto por heresia e
blasfêmia. Contudo, esse princípio ajudou a garantir constante ação, adesão
e agitação para a reforma por parte de membros individuais.
Calvino foi o mentor dessa integração desses três princípios
fundamentais numa nova eclesiologia. Processos democráticos impediam
que o princípio de estado de direito promovesse uma ortodoxia ossificada e
antiquada. O estado de direito impedia o princípio democrático de
promover uma fé influenciada por modas passageiras e opiniões públicas. A
liberdade individual impedia tanto o governo corporativo quanto os
princípios democráticos de tiranizarem minorias eclesiásticas. Juntos, esses
princípios permitiam que a igreja encontrasse um equilíbrio perpétuo único
entre lei e liberdade, estrutura e espírito, ordem e inovação, dogma e
adiaphora. Esse delicado mecanismo eclesiástico ajudou a tornar as igrejas
calvinistas notavelmente adaptáveis e resilientes ao longo dos séculos em
muitos países e culturas.
Essa teoria integrada da igreja tinha implicações para a teoria do Estado.
Nos seus escritos, Calvino deu a entender amplamente que uma combinação
semelhante de estado de direito, processo democrático e liberdade
individual poderia servir igualmente bem ao Estado. Ele acreditava que essa
combinação forneceria a melhor proteção para a liberdade da igreja e dos
seus membros. O que Calvino esboçou, seus seguidores elaboraram. No
decorrer dos dois séculos seguintes, calvinistas europeus e norte-americanos
teceram as visões básicas de Calvino para formar uma robusta teoria
constitucional de governo republicano apoiada nos pilares do estado de
direito, nos processos democráticos e na liberdade individual.
Teodoro de Beza e o calvinismo francês
Pouco depois da morte de Calvino, em 1564, seus ensinos sobre lei e
liberdade e igreja e Estado enfrentaram sua primeira grande crise. No
Massacre do Dia de São Bartolomeu de 1572, mais de cem mil calvinistas
franceses foram assassinados num mês de barbárie instigada pelas
autoridades católicas francesas. Apenas uma década antes, o calvinismo
parecia estar pronto para concorrer com o catolicismo pelo coração e a alma
da França. Por volta de 1562, algo em torno de dois milhões de almas
franceses haviam se convertido ao calvinismo e se reunido em mais de duas
mil novas igrejas em toda a França. O número de convertidos e igrejas
calvinistas estava crescendo rapidamente em todas as classes da sociedade
francesa, mas especialmente entre a aristocracia. Em grande parte, esse
crescimento foi resultado das campanhas disciplinadas de obra missionária,
publicação de livros, implantação de igrejas, construção de escolas e obras
de caridade oferecidas pelos calvinistas. Em parte, ele foi também resultado
da fácil exportação do robusto sistema de Genebra de governo da cidade-
estado local e da disciplina espiritual idealmente adequada a muitas das
pequenas cidades e vilas francesas que se converteram ao calvinismo.
Depois de 1560, o calvinismo francês alastrou-se em decorrência da
crescente capacidade militar dos calvinistas franceses. Nesse ano, a despeito
de fortes protestos vindos de Genebra, um grupo de calvinistas tentou um
golpe de estado contra o jovem rei francês Henrique II. Isso resultou em
duras represálias em diversas comunidades calvinistas e o estabelecimento
de um tribunal inquisitorialfrancês tendo como alvo os calvinistas. Em
1562, forças católicas francesas massacraram uma congregação calvinista
reunida para adorar na cidade de Vassy. Isso desencadeou uma década de
enormes disputas entre forças católicas e calvinistas em muitas partes da
França. O Massacre do Dia de São Bartolomeu, que explodiu depois de um
período de calmaria nas hostilidades, colocou o calvinismo francês em
grave crise.
Os ensinos de Calvino forneciam pouca orientação para reagir a uma
crise dessa magnitude. Calvino presumiu que todas as comunidades locais
teriam a mesma fé. Como os calvinistas poderiam aceitar o pluralismo
religioso e exigir tolerância como uma minoria religiosa numa comunidade
de maioria católica? Calvino presumiu que a igreja e o Estado cooperariam
na gestão de um governo piedoso. E se a igreja e o Estado entrassem em
choque ou, pior ainda, em conluio contra os calvinistas? Calvino presumiu
que os súditos cristãos deveriam obedecer às autoridades políticas até os
limites da consciência cristã, e suportar perseguição com penitência,
paciência e oração na esperança de que um magistrado melhor viesse. Mas,
e se a perseguição crescesse e se tornasse um total massacre? Oração, fuga
e martírio eram as únicas opções para os cristãos conscienciosos? Não havia
lugar para resistência e revolta, ou mesmo regicídio e revolução em casos
extremos? Esses desafios haviam se apresentado aos calvinistas em diversos
lugares ao longo das décadas de 1540 e 1560, os quais tornaram-se fortes
questões de vida e morte para os calvinistas franceses depois de 1572.
Foi o sucessor de Calvino escolhido a dedo em Genebra, Teodoro de
Beza, quem reagiu de modo mais decisivo a essa crise – trabalhando lado a
lado com sumidades calvinistas como John Ponet, John Knox e Christopher
Goodman, da Inglaterra e da Escócia; os franceses Lambert Daneau,
François Hotman, Philippe DuPlessis Mornay e Pedro Mártir Vermigli; bem
como os reformadores suíços Heinrich Bullinger e Pierre Viret. Devido à
originalidade de suas ideias e da sua autoridade como sucessor de Calvino,
as formulações de Beza mostraram-se as mais influentes. Sua obra mais
importante foi o pequeno tratado The rights of rulers over their subjects and
the duty of subjects toward their rulers [Os direitos dos governantes sobre
os seus súditos e os deveres dos súditos para com os seus governantes], de
1574.14
Beza argumentou que todo governo político é formado por uma aliança
ou contrato jurado entre os governantes e seus súditos diante de Deus, que
serve como testemunha e juiz. Nessa aliança, Deus concorda em proteger e
abençoar a comunidade em troca de obediência às leis de Deus e da
natureza, particularmente da maneira definida no Decálogo. Os governantes
concordam em exercer a autoridade política de Deus na comunidade, e
honrar essas leis superiores e proteger os direitos das pessoas. As pessoas
concordam em exercer a vontade política de Deus para a comunidade
elegendo e peticionando aos seus governantes, e honrando-os e
obedecendo-os desde que eles permaneçam fiéis à aliança política. Beza
argumentou que, se as pessoas violam os termos dessa aliança política e se
tornam criminosas, Deus capacita os governantes a processá-las e puni-las
e, em casos extremos, sentenciá-las à morte. Porém, se os governantes
violam os termos da aliança política e se tornam tiranos, Deus capacita as
pessoas a resistir e removê-los do cargo e, em casos extremos, sentenciá-los
à morte. Todavia, o poder de remover tiranos não reside diretamente nas
pessoas, mas nos seus representantes, os magistrados inferiores, que são
constitucionalmente chamados a organizar e dirigir o povo em resistência
ordeira – em total guerra e revolução, se necessário.
Para Beza, os tiranos eram governantes que violavam os termos da
aliança política, particularmente a sua exigência fundamental de que todos
têm o dever de honrar os direitos de Deus de ser adorado, e os direitos do
povo de Deus de cumprir os deveres da fé em conformidade com a lei de
Deus. Beza fez dos direitos do povo o fundamento e a condição do bom
governo. “As pessoas não são feitas para os governantes, mas os
governantes para as pessoas”, ele escreveu. Se o magistrado governa
corretamente, as pessoas têm o dever de obedecer a ele. Porém, se o
magistrado abusa da sua autoridade, violando a aliança política, as pessoas,
por intermédio dos seus representantes, têm o direito e o dever de resistir a
ele como tirano.
O problema que permaneceu para Beza foi o de como fundamentar a sua
doutrina dos direitos e determinar quais direitos eram tão fundamentais que,
se violados por um tirano, desencadeariam o direito de resistência
organizada. Aqui, Beza reformulou inteligentemente os principais
argumentos de Calvino, tomando emprestadas suas sugestões das
declarações do fim da vida do próprio Calvino sobre os “direitos naturais”
ou “direitos comuns da humanidade”, e os “direitos e liberdades iguais” de
todas as pessoas.15 Os primeiros e mais importantes direitos, argumentou
Beza, tinham de ser direitos religiosos –“liberdade de consciência” e “livre
exercício da religião”. Afinal de contas, em primeiro lugar, as pessoas são
súditas de Deus e chamadas a honrar e adorar a Deus acima de tudo. Se o
magistrado viola esses direitos religiosos, nada mais pode ser sagrado e
seguro. Beza continuou sua catequese: O que é essencial para a proteção da
liberdade de consciência e o livre exercício da religião é a capacidade de
viver em total conformidade com a lei de Deus. O que é a lei de Deus? Em
primeiro lugar e acima de tudo, é o Decálogo, que estabelece os deveres
fundamentais da vida cristã correta. O que esses Dez Mandamentos
envolvem? Os direitos de adorar a Deus, guardar o sábado, evitar ídolos
estrangeiros e juramentos falsos, segundo a primeira tábua do Decálogo; e
os direitos de casar-se, ter filhos e família, e de vida, propriedade e
reputação, protegidos pela segunda tábua. O Decálogo é a única lei de
Deus? Não, a lei natural que Deus inscreveu no coração de todas as pessoas
ensina outros direitos essenciais para a proteção de uma pessoa e de um
povo. Beza tocou em vários desses direitos naturais mais amplos: liberdade
de missão e formação religiosas; liberdade de governo da igreja e
emigração; liberdades de expressão, reunião e petição; e liberdade de
casamento, divórcio e contrato privado. Beza não fez muito para
fundamentar e sistematizar esses direitos naturais, nem deixou claro qual
deles era tão fundamental que a sua violação poderia desencadear
resistência organizada. Porém, estabeleceu grande parte da lógica de um
cálculo dos direitos fundamentais que calvinistas posteriores aperfeiçoariam
e expandiriam.
Johannes Althusius e o calvinismo holandês
Esses tipos de argumentos tiveram aplicação imediata na revolta dos
calvinistas holandeses contra a tirania do seu soberano distante, o imperador
espanhol Filipe II. Na década de 1560, Filipe impôs à Holanda uma série de
restrições cada vez mais onerosas – pesados impostos, regulamentos
comerciais, recrutamento militar, aquartelamento forçado de soldados, e
outras mais – em violação de cartas centenárias dos direitos e liberdades das
províncias holandesas. Pior ainda, Filipe instaurou a terrível Inquisição
espanhola na Holanda, assassinando milhares de calvinistas e outros,
confiscando enormes quantidades de propriedades privadas num esforço
determinado para erradicar o protestantismo e impor os vastos novos
decretos do Concílio Católico de Trento. No fim da década de 1560 e na de
1570, sob a liderança inspirada de Guilherme de Orange e outros, os
holandeses puseram em ação os princípios calvinistas de resistência e
revolução. Incitados por pregação estrondosa e milhares de panfletos,
calvinistas e outros holandeses finalmente eliminaram seus opressores
espanhóis. Eles promulgaram uma declaração de independência,
justificando sua revolta contra a Espanha pelo poder de “verdades claras”
sobre “as leis e liberdades da natureza”. Estabeleceram um governo
confederado com sete províncias soberanase um governo nacional, cada
qual com sua própria constituição e declaração de direitos. Algumas dessas
constituições provinciais adotaram as proteções de direitos mais avançadas
da época, tornando a Holanda um refúgio para muitos – embora não todos –
dissidentes culturais e religiosos de toda a Europa.16
A revolta holandesa e a fundação da República Holandesa atraíram
vários poderosos juristas calvinistas e teóricos políticos, incluindo C. P.
Hooft; Peter Bertius; Paul Buis; Daniel Berckringer; Gisbertus, Paulus e
Johannes Voetius; William Apollonius; Jacob Triglandus; Antonius
Walaeus; Martinus Schookius; R. H. Schele; Antonius Matthaeus I, II e III;
e Ulrich Huber.
A obra mais original veio da prolífica pena do jurista calvinista
Johannes Althusius, nascido na Alemanha, que serviu como conselheiro
municipal e membro do consistório na cidade de Emden no início do século
17. Com base numa vasta gama de fontes bíblicas, clássicas, católicas e
protestantes, Althusius sistematizou e expandiu enormemente muitos dos
ensinamentos políticos e legais fundamentais de Calvino, Beza e outros
correligionários. Ele sustentou que a República é formada por uma aliança
entre as autoridades e o povo diante de Deus; que a base dessa aliança é a
lei de Deus e da natureza; que o Decálogo é a melhor expressão dessa lei
superior; que igreja e Estado são separados na forma, mas unidos na função;
que tanto as famílias quanto as igrejas e os estados precisam proteger os
direitos e as liberdades das pessoas; e que violações desses direitos e
liberdades, ou das leis divinas e naturais que as informam e capacitam, são
exemplos de tirania que precisam motivar uma resistência constitucional
organizada.
Althusius acrescentou várias ideias fundamentais a essa herança
calvinista em suas duas obras-primas: Politics [Política] (1603-1614) e A
theory of justice [Uma teoria da justiça] (1617-1618).17Althusius
desenvolveu uma teoria da lei natural que ainda tratava o Decálogo como a
melhor fonte e resumo da lei natural, mas intercalava seus mandamentos
com todo tipo de novos ensinamentos bíblicos, clássicos e cristãos. Ele
desenvolveu uma teoria do direito positivo que julgava a validade e
utilidade contemporâneas de qualquer lei humana, incluindo as leis
positivas de Moisés e as leis canônicas da igreja, contra a lei natural da
Escritura e tradição e contra a lei fundamental do Estado. Ele pediu que
uma constituição escrita detalhada fosse a lei fundamental da comunidade;
e também pela proteção perene da norma jurídica e do estado de direito no
seio da igreja e do Estado. Desenvolveu uma teoria abrangente da soberania
popular como expressão da soberania divina que cada pessoa reflete como
imagem de Deus. Desenvolveu uma teoria detalhada e refinada de direitos
naturais – direitos religiosos e sociais, públicos e privados, materiais e
processuais, contratuais e de propriedade. Demonstrou extensamente como
cada um desses direitos se baseava no Decálogo e em outras formas de
direito natural, e como cada um deles deveria ser protegido por leis e
procedimentos públicos, privados e criminais promulgados pelo Estado.
Particularmente notável foi o seu apelo à tolerância religiosa e liberdade
absoluta de consciência para todos como corolário e consequência natural
do ensino calvinista sobre a soberania absoluta de Deus, cujo
relacionamento com as suas criaturas não poderia ser transgredido.
Ainda mais impressionantes foram duas teorias de Althusius: a “teoria
simbiótica” da natureza humana; e a “teoria da aliança” da sociedade e da
política. Embora reconhecendo o ensino calvinista tradicional da
depravação total das pessoas, Althusius enfatizou que Deus criou todas as
pessoas como seres morais, amorosos, comunicativos e sociais, cujas vidas
são mais plenamente realizadas por meio de relações simbióticas com
outras, nas quais elas podem compartilhar adequadamente corpo e alma,
vida e espírito, pertences e direitos. Assim, embora nasçam livres, iguais e
individuais, as pessoas são, por natureza e necessidade, inclinadas a formar
associações – casamentos e famílias, clubes e corporações, cidades e
províncias, estados-nação e impérios. Cada uma dessas associações, desde o
mais ínfimo lar até o mais vasto império, é formada por uma aliança ou
contrato mutuamente consensual jurado por todos os membros dessa
associação diante uns dos outros e de Deus. Cada associação é um lugar de
autoridade e liberdade que liga tanto governantes quanto súditos aos termos
do seu contrato de fundação e aos mandamentos das leis fundamentais de
Deus e da natureza. Cada associação confirma e protege a soberania e a
identidade dos seus membros constituintes, bem como os seus direitos e
liberdades naturais.
Althusius aplicou essa teoria do contrato social cristão mais plenamente
na sua descrição do Estado. Usando a história política do antigo Israel como
seu melhor exemplo, ele mostrou histórica e filosoficamente como estados-
nação desenvolvem-se gradualmente a partir de famílias, que se
transformam em tribos, estas em cidades, estas em províncias, estas em
nações, e estas em impérios. Cada nova camada de soberania política é
formada por alianças juradas diante de Deus por representantes das
unidades menores, e essas alianças acabam tornando-se as constituições
escritas do governo. As constituições definem e separam os cargos
executivos, legislativos e judiciais desse governo e governam as relações
entre os seus governantes e súditos, clérigos e magistrados, associações e
indivíduos. Elas determinam as relações entre e dentre nações, províncias,
cidades e associações privadas e públicas – as quais Althusius chamou de
uma forma de federalismo (de foedus, aliança em latim). As constituições
também deixam claros os atos e omissões políticos que constituem a tirania,
bem como os procedimentos e as soluções disponíveis para quem sofre
abusos. Althusius produziu a mais abrangente teoria calvinista de direito e
política no início do período moderno; muitas das suas visões anteciparam
ensinamentos que se tornariam axiomáticos para o constitucionalismo
ocidental.
John Milton e o calvinismo inglês
Essas ideias encontraram aplicação imediata uma geração depois, na
Inglaterra, e tornaram-se parte do que John Milton chamou “uma nova
reforma da Reforma” de leis, autoridade e liberdade. O catalisador para essa
nova reforma inglesa foi, mais uma vez, a tirania – dessa vez, da monarquia
inglesa contra o povo da Inglaterra, incluindo a crescente população de
ingleses calvinistas descendentes dos primeiros puritanos que haviam se
estabelecido na Inglaterra um século antes. Em 1640, esses calvinistas
juntaram-se a muitos outros em rebelião armada contra os excessos da
coroa inglesa – os opressivos impostos e taxas reais, as rigorosas novas leis
dos influentes anglicanos, os abusos das cortes real e eclesiástica, e muito
mais. Quando o Parlamento foi chamado a reunir-se em 1640, depois de um
hiato de onze anos, seus líderes tomaram o poder pela força das armas. Uma
guerra civil eclodiu entre os apoiadores do Parlamento e os apoiadores do
rei. O partido parlamentar, dominado por calvinistas, finalmente prevaleceu
e promulgou, em 1649, uma lei “declarando e constituindo o povo da
Inglaterra como uma Comunidade e um Estado livre”. O Parlamento aboliu
a monarquia e, notavelmente, o rei Charles foi julgado por um tribunal
especial, condenado por traição e decapitado em público. O Parlamento
também aboliu a aristocrática Casa dos Lordes e declarou que a autoridade
suprema residia no povo e seus representantes. O anglicanismo foi
formalmente extinto e as estruturas episcopais foram substituídas por
formas de igrejas calvinistas. “Representação igual e proporcional” foi
garantida na eleição de representantes locais para o Parlamento. Desse
modo, a Inglaterra estaria sob “o regime democrático” do Parlamento e do
líder militar calvinista, Oliver Cromwell.
No entanto, depois da morte de Cromwell em 1658, o governo da
comunidade desmoronou. O rei Charles II, filho de Charles I, voltouà
Inglaterra, recuperou o trono em 1660 e restaurou o tradicional governo
monárquico, o estatuto anglicano e a lei vigente antes da revolução.
Contudo, essa era de Restauração teve curta duração. Quando seu sucessor,
o rei Tiago II, o outro filho de Charles I, começou a abusar das suas
prerrogativas reais como seu pai havia feito, o Parlamento o forçou a
abdicar em 1688 a favor da nova dinastia de Guilherme e Maria. Essa foi a
Revolução Gloriosa. Ela estabeleceu o governo pelo rei e pelo Parlamento,
e introduziu um grande número de novas garantias para os súditos ingleses,
notavelmente as estabelecidas na Declaração de Direitos e no Decreto de
Tolerância, de 1689.
A revolução inglesa desencadeou uma torrente de escritos e legislações
pedindo a reforma das leis inglesas e o cumprimento dos direitos e
liberdades dos ingleses. Parte do esforço foi estender os tradicionais direitos
de vida, liberdade e propriedade contidos na Carta Magna (1215) a todas as
igrejas e todos os cidadãos, não somente aos anglicanos e homens livres
aristocráticos. Outro aspecto do esforço foi ampliar a Petição de Direito
(1628), um documento parlamentar que havia estabelecido vários direitos
públicos, privados e processuais para o povo e seus representantes no
Parlamento. Porém, os esforços mais radicais e memoráveis da revolução
inglesa foram as muitas petições e plataformas emitidas nas décadas de
1640 e 1650 pedindo o estabelecimento de um governo democrático
dedicados à proteção de uma panóplia de direitos e liberdades. Estes
incluíam a liberdade de religião, expressão, imprensa e reunião; o direito à
objeção consciente a juramentos, dízimos e serviço militar; liberdade contra
o aquartelamento forçado de soldados e marinheiros; liberdade de
propriedade privada e de tomadas injustas; liberdade contra tributação e
regulamentação excessivas; liberdade de contrato particular, herança,
casamento e divórcio; direito de julgamento por júri civil e criminal; e todos
os tipos de proteções processuais penais. Eles também incluíam proibição
de legislação retroativa e de leis de confisco de bens, detenções sem
mandado, e buscas e apreensões ilegais; direito de fiança, de julgamento
justo e rápido, de enfrentar os próprios acusadores e de representação em
juízo; privilégio contra autoincriminação, liberdade contra investigação e
punição cruéis, e direito de recurso. Embora a maioria dessas propostas de
direitos tenha sido anulada – parcialmente pelo Protetorado de Cromwell e
inteiramente pelo governo de Restauração de 1660 –, elas forneceram um
marco normativo para ser tornado real pela posterior lei comum. Já na
Revolução Gloriosa de 1689, as liberdades de religião, expressão e reunião
foram parcialmente realizadas, assim como várias proteções processuais
penais. Muitas mais dessas propostas de direitos ganharam uma viva
expressão e experimentação com os colonos ingleses da América do Norte.
Dezenas de robustos calvinistas ingleses surgiram para liderar essa
“reforma da Reforma”, incluindo-se Henry Ireton, John Lilburne, Richard
Overton, John Owen, Henry Parker, Isaac Pennington, William Prynne,
John Pym, Henry Robinson, Samuel Rutherford, John Saltmarsh, Henry
Vane, William Walwyn, Gerrard Winstanley e muitos outros. Foi o grande
poeta e filósofo político John Milton quem forneceu a teoria política de
integração mais interessante. Embora algumas das ideias de Milton se
desviassem para além das convenções calvinistas, a maioria das suas ideias
políticas permaneceu dentro da tradição calvinista e, de fato, as estendeu.18
Usando Calvino e uma gama de calvinistas continentais, Milton argumentou
que cada pessoa é criada à imagem de Deus com “uma ânsia perene” de
amar a Deus, ao próximo e a si mesmo. Cada pessoa tem a lei de Deus
escrita no coração, na mente e na consciência, e na Escritura, mais
notavelmente no Decálogo. Cada pessoa é uma criatura caída e falível, com
necessidade perpétua de graça e perdão divinos, que são dados livremente a
todos os que pedem. Cada pessoa é uma criatura comunal, naturalmente
inclinada a formar associações privadas, domésticas, eclesiásticas e
políticas. Cada associação dessas é criada por uma aliança ou contrato
consensual que define a sua forma e função, bem como os direitos e
poderes dos seus membros, todos eles sujeitos aos limites da lei natural.
Cada associação é encabeçada por uma autoridade que governa em favor do
bem dos seus súditos e deverá ser combatida caso torne-se abusiva ou
tirânica. Toda essa resistência precisa ser a mais moderada, ordeira e
pacífica possível, mas poderá crescer até revolta e regicídio, caso isso seja
necessário na esfera política.
Na elaboração de sua própria reforma dos direitos, Milton apegou-se ao
que ele pensava ser a lição mais importante dos reformadores calvinistas:
que a Reforma precisa sempre avançar, semper reformanda. Milton insistiu
em que a Inglaterra não deveria idolatrar ou idealizar qualquer ensinamento
protestante, nem mesmo os de Calvino e os dos pais de Genebra. Em vez
disso, a Inglaterra deveria desenvolver e aprofundar, aplicar e aperfeiçoar
esses ensinamentos num esforço contínuo de reformar a igreja, o Estado e a
sociedade novamente. Milton apegou-se adicionalmente ao que entendia
como ensinamento fundamental do calvinismo: Deus chama cada pessoa a
ser um profeta, sacerdote e rei, e investe cada pessoa com direitos e deveres
naturais para falar, adorar e governar na igreja e no Estado, na família e na
sociedade ao mesmo tempo. Para Milton, as forças motrizes da Reforma
perpétua da Inglaterra não eram, portanto, somente clérigos ou magistrados,
acadêmicos ou aristocratas. Os verdadeiros reformadores eram, igualmente,
os plebeus e chefes de família, artesãos e agricultores de todo tipo pacífico.
Toda pessoa foi criada por Deus com liberdade de consciência, razão e
vontade. Toda pessoa foi chamada por Deus para desempenhar vocações
cristãs privadas e responsabilidades sociais públicas para expressar amor a
Deus, ao próximo e a si mesma. Essa foi uma forma de populismo cristão e
soberania popular que a tradição calvinista não havia enfatizado tanto
anteriormente.
Milton foi ainda mais longe, ultrapassando ensinamentos calvinistas
tradicionais na definição dos direitos e liberdades religiosos, domésticos e
civis de que cada pessoa precisa desfrutar no cumprimento dessas funções
de profeta, sacerdote e rei. Dentre as liberdades religiosas, ele defendeu:
liberdade de consciência; liberdade de exercício religioso, adoração,
associação e publicação; igualdade de múltiplas crenças bíblicas perante a
lei; separação entre igreja e Estado; e a extinção de uma religião nacional.
Dentre as liberdades domésticas, ele enfatizou urgentemente o direito de
casamento e divórcio em conformidade com os ensinamentos explícitos
unicamente da Escritura, bem como direitos inerentes de alimentar,
disciplinar e educar os filhos, e de ter um lar próprio livre de buscas e
apreensões indesejadas de documentos e bens. Dentre as liberdades civis,
ele ofereceu uma brilhante defesa das liberdades de expressão e de
imprensa, e defendeu fervorosamente os direitos de eleição democrática,
representação, petição e oposição, bem como de contratos e associações
privados e de julgamento por júri. Todos esses argumentos foram ecoados
em centenas de panfletos, sermões e tratados eruditos calvinistas nos dois
lados do Atlântico, e iriam tornar-se lugar-comum entre os reformadores
constitucionais calvinistas dos séculos 18 e 19.
Teologia da aliança e política na Nova Inglaterra
colonial
Uma das mais vívidas ampliações e aplicações dessas ideias legais e
políticas inglesas em ação ocorreram na Massachusetts puritana e em outras
colônias da Nova Inglaterra a partir de 1620. Os colonos puritanos
receberam, em suas licenças de fundação, liberdade para experimentar
localmente muitas das propostas e ideais mais radicais que os
revolucionários calvinistas ingleses haviam proposto.19 Embora adaptando o
governo congregacional e o governo consistorial de Genebra dentro da
igreja, oscolonos adotaram propostas inglesas para um governo de estado
democrático. Em seu Body of liberties [Corpo de liberdades] (1641), o
jurista e teólogo calvinista Nathaniel Ward elaborou para a colônia de
Massachusetts Bay uma declaração de direitos de 25 páginas, que capturava
cada um dos direitos e liberdades propostos por Calvino, Beza, Althusius,
Milton e os panfletários puritanos, e acrescentou muitos mais direitos e
liberdades, particularmente na proteção de mulheres, crianças e animais.
Body of liberties foi um texto-âncora para o constitucionalismo colonial da
Nova Inglaterra e antecipou muitas das disposições referentes aos direitos
das constituições estaduais posteriores. Embora fossem frequentemente
violados e ignorados por líderes coloniais autocráticos e teocráticos, esses
instrumentos jurídicos forneceram um substrato legal essencial dos direitos
que se revelou duradouro.
Vários puritanos da Nova Inglaterra, mais notavelmente John Winthrop,
John Cotton, Thomas Hooker, Samuel Willard e três membros da família
Mather – Richard, Increase e Cotton – destilaram visões calvinistas
predominantes da pessoa numa teoria básica de autoridade e liberdade,
sociedade e política. Por um lado, argumentaram eles, toda pessoa é criada
à imagem de Deus e justificada pela fé em Deus. Cada pessoa é chamada a
uma vocação distinta, porém igual em dignidade e santidade a todas as
outras. Cada pessoa é um profeta, sacerdote e rei, e responsável para
exortar, ministrar e governar na comunidade. Portanto, cada pessoa é igual
diante de Deus e diante do seu próximo. Cada pessoa é investida com
liberdade natural de viver, crer e amar, e servir a Deus e ao próximo. Cada
pessoa tem direito à Escritura vernacular, à educação, ao trabalho em uma
vocação. Por outro lado, cada pessoa é pecadora e propensa ao mal e ao
egoísmo. Cada pessoa necessita da restrição da lei para impedi-la de fazer o
mal e levá-la ao arrependimento. Cada pessoa necessita da associação de
outros para exortá-la, ministrar a ela e governá-la com lei e com amor.
Portanto, cada pessoa é, inerentemente, uma criatura comunal. Toda pessoa
pertence a uma família, uma igreja e uma comunidade política.
Os protestantes acreditam que essas instituições sociais de família,
igreja e Estado são divinas na origem e humanas na organização. Elas são
criadas por Deus e governadas por decretos divinos. Elas são iguais perante
Deus e são chamadas a desempenhar funções divinas distintas na
comunidade. A família é chamada a educar e nutrir crianças, a instruí-las e
discipliná-las, a dar exemplo de amor e cooperação. A igreja é chamada a
pregar a palavra, ministrar os sacramentos, educar os jovens, ajudar os
necessitados. O Estado é chamado a proteger a ordem, punir o crime,
promover a comunidade. Embora de origem divina, essas instituições são
formadas por meio de alianças humanas. Essas alianças confirmam as
funções divinas, os cargos criados, dessas instituições. Essas alianças
também organizam esses cargos para que sejam protegidos contra os
excessos pecaminosos de funcionários que os ocupem. Assim, família,
igreja e Estado são organizados como instituições públicas, acessíveis e
responsáveis umas pelas outras e pelos seus membros. A igreja deve ser
organizada segundo um sistema de governo congregacional democrático,
com separação de poderes eclesiásticos entre pastores, presbíteros e
diáconos; eleição dos funcionários para prazos limitados nos cargos; e
pronta participação da congregação na vida e liderança da igreja.
Ecoando alguns dos seus correligionários europeus, os puritanos da
Nova Inglaterra moldaram essas doutrinas teológicas em formas
democráticas. Por um lado, eles moldaram as doutrinas da pessoa e da
sociedade em formas sociais democráticas. Uma vez que todas as pessoas
são iguais perante Deus, elas precisam permanecer iguais perante os agentes
políticos de Deus no Estado. Uma vez que Deus dotou todas as pessoas com
liberdades naturais de vida e de crença, o Estado tem a obrigação de lhes
garantir as liberdades civis semelhantes. Uma vez que Deus chamou todas
as pessoas a serem profetas, sacerdotes e reis, o Estado precisa proteger as
suas liberdades de falar, pregar e governar na comunidade. Uma vez que
Deus criou as pessoas como criaturas sociais, o Estado precisa promover e
proteger uma pluralidade de instituições sociais, particularmente a igreja e a
família. Por outro lado, os puritanos da Nova Inglaterra moldaram as
doutrinas do pecado em formas políticas democráticas. O cargo político
precisa ser protegido contra a pecaminosidade do funcionário político.
Assim como o poder eclesiástico, o poder político precisa ser distribuído
em ramos autocontrolados executivo, legislativo e judiciário. Os
funcionários precisam ser eleitos para mandatos limitados. As leis precisam
ser claramente codificadas; e a discrição, rigorosamente guardada. Se os
funcionários abusarem do seu cargo, precisarão ser desobedecidos. Se
persistirem em seu abuso, deverão ser removidos, mesmo que pela força
revolucionária e pelo regicídio.
Conclusões
No seu Contrato social de 1762, Jean-Jacques Rousseau ofereceu essa
caridosa avaliação do seu compatriota João Calvino:
Aqueles que consideram Calvino apenas como um teólogo deixam de reconhecer a
amplitude da sua genialidade. A edição de nossas sábias leis, na qual ele teve grande
participação, lhe dá tanto crédito quanto as suas Institutas. […] Enquanto o amor ao país e à
liberdade não estiver extinto entre nós, a memória desse grande homem será reverenciada.20
Uma avaliação semelhante pode ser feita sobre grande parte do início do
calvinismo moderno. O calvinismo foi um movimento teológico e legal,
uma reforma da igreja e do Estado. Começando com Calvino e Beza,
versados nesses dois campos, teólogos e juristas juntos formaram a
liderança das igrejas reformadas e fizeram amplo uso de púlpitos como
também de editoras. Para todo novo catecismo calvinista do início da era
moderna havia uma nova ordenança calvinista; para cada nova confissão de
fé, uma nova elaborada lei de direitos. Os primeiros calvinistas modernos
acreditavam na lei natural e positiva como um impedimento ao pecado, um
incentivo à graça, um professor de virtude cristã. Eles também acreditavam
no estado de direito, estruturando suas igrejas e estados de modo
semelhante, para minimizar os excessos pecaminosos dos seus governantes
e maximizar as liberdades dos seus súditos para que vivessem as suas vidas
de maneira a obedecerem a Deus de maneira mais disposta e fácil em tudo.
1 Em parte este capítulo é retirado dos meus livros The reformation of rights: Law, religion, and
human rights in early modern Calvinism (Cambridge: Cambridge University Press, 2007) e Sex,
marriage, and family in John Calvin’s Geneva, 3 v. (Grand Rapids: Eerdmans, 2005-), com Robert
M. Kingdon; esses volumes incluem fontes detalhadas que não são duplicadas aqui.
2 Veja os escritos sobre temas legais de Calvino em CO 10/1; Les sources du droit du canton de
Genève, org. Emile Rivoire e Victor van Berchem, 4 v. (Aarau: H. R. Sauerländer, 1927-35);
Registres de la compagnie des pasteurs de Genève au temps de Calvin, org. Jean-Francois Bergier e
Robert M. Kingdon, 2 v. (Genebra: Droz, 1964); R. Consist. Ver discussão em Josef Bohatec, Calvin
und das Recht (Graz: H. Boehlaus, 1934); Josef Bohatec, Calvins Lehre von Staat und Kirche mit
besonderer Berücksichtigung des Organismusgedankens (Breslau: M. & H. Marcus, 1937; reimpr.,
Aalen, 1961); Walter Köhler, Zürcher Ehegericht und Genfer Konsistorium, 2 v. (Leipzig: M.
Heinsius Nachfolger, 1932-42); Robert M. Kingdon, Adultery and divorce in Calvin’s Geneva
(Cambridge, MA / Londres, 1995).
3 Christoph Strohm, Calvinismus und Recht: Weltanschaulich-konfessionelle Aspekte im Werke
reformierter Juristen in der frühen Neuzeit (Tübingen: Mohr Siebeck, 2008).
4 Institutas (1536), 1.33, 6.33-49.
5 Ibid., 6.54; Comm. Rm 13.10.
6 Institutas (1536), 6.56; Comm. Romanos 13.1–7; Comm. Atos 5.29; 7.17.
7 Institutas (1536), 6.55.
8 Ibid., prefácio;carta a Melanchthon (28/jun/1545), CO, 12.98-100.
9 Institutas (1559), 2.7.6-12; 2.8.6, 51; 3.3.9; 3.6.1; 3.17.5-6; 3.19.3-6; Comm. Gálatas 3.19; 5.13;
Serm. Deuteronômio 5.4-27; Comm. 1Pedro 1.14.
10 Essas expressões são de Lon L. Fuller, The morality of law, ed. rev. (New Haven: Yale
University Press, 1969).
11 Institutas (1559), 4.1.5; 4.8.1; 4.10.27-38; 4.11.1.
12 Ibid., 4.10.5, 30; 4.11.1-6; 4.12.1-4, 8-11.
13 Les sources du droit du canton de Genève, v. 3, item nº 992.
14 Ver Thoodore de Beza, Du droit des magistrats, org. Robert M. Kingdon (Genebra: Droz, 1970),
e materiais adicionais em Beza, Tractationum theologicarum, 3 v., 2ª ed. (Genebra, 1582).
15 Comm. Gênesis 4.13; ibid., Harm. Lei Números 3.5-10,18-22; Deuteronômio 5.19; ibid., Salmos
7.6-8; Lect. Jeremias 22.1-3; 22.13-14; Lect. Ezequiel 8.17; Comm. 1Coríntios 7.37.
16 E. H. Kossman e A. Mellink (orgs.), Texts concerning the revolt of the Netherlands (Londres,
Nova York: Cambridge University Press, 1974).
17 Carl J. Friedrich (org.), Politica methodice digesta of Johannes Althusius (Althaus) (Cambridge,
MA: Harvard University Press, 1932); Carl J. Friedrich (org.), Dicaeologicae libri tres, totum et
universum Jus, quo utimur, methodice complectentes (Herborn, 1617; Frankfurt, 1618).
18 Ver Don M. Wolfe (org.), Complete prose works of John Milton, 7 v. (New Haven: Yale
University Press, 1953-80), com outros escritos em William Haller, Tracts in the Puritan revolution,
1638-1647, 3 v. (Nova York: Columbia University Press, 1934); Don M. Wolfe (org.), Leveller
manifestoes of the Puritan revolution (Nova York, Londres: T. Nelson and Sons, 1944); A. S. P.
Woodhouse, Puritanism and liberty, being the army debates (1647–49), 2ª ed. (Chicago, 1951).
19 Ver documentos representativos em Edmund S. Morgan (org.), Puritan political ideas 1558–
1794 (reimpr., Indianapolis: Hackett Publishing, 2003).
20 Du contrat social (1762), 2, 7n., in Jean-Jacques Rousseau, The social contract and discourse on
the origin of inequality, org. Lester G. Crocker (Nova York: Pocket Books, 1967), 44n.
P
3
As artes e a tradição reformada
William Edgar
or que tantos presumem que os protestantes da tradição reformada são,
na melhor das hipóteses, extremamente cautelosos quanto às artes? Hans
Rookmaaker, ele mesmo um reformado, considera que os puritanos
entregaram-se a um misticismo pietista que negava os prazeres das artes
visuais por causa da prioridade que davam ao culto espiritual. Ele denomina
isso uma “corrente secundária de misticismo”, que buscava a santidade de
uma maneira subjetivista e legalista que se mantinha afastada do assim
chamado mundanismo das belas artes.1 Com frequência, o protestantismo
caíu nesse medo da cultura. As missões tinham tal prioridade que atividades
como as artes pareciam, na melhor das hipóteses, uma distração. Com o
nascimento das missões modernas, os avivamentos evangélicos produziram
a visão popular de que gostar das artes era semelhante a polir o bronze no
Titanic afundando. Como é afirmado que o evangelista Dwight L. Moody
disse, “Eu olho para este mundo como um navio naufragado; Deus deu-me
um bote salva-vidas e me disse: ‘Moody, salve tantos quantos você
conseguir’”.2
Há mais do que isso nessa história? Sim, muito mais. Para contá-la
corretamente, precisamos voltar ao filisteu mais frequentemente acusado,
João Calvino.
Contra Calvino
As opiniões de que Calvino e o calvinismo degradam as artes são
abundantes. Voltaire disse que Calvino foi responsável pelo fato de a cidade
de Genebra ser severa, hostil aos prazeres do teatro e das artes.3 Ferdinand
Brunetière, crítico literário na Terceira República da França, equiparou o
calvinismo ao horror à arte. Podemos acrescentar Orentin Douen, que é
implacável na sua crítica a Calvino, a quem ele considera o “ennemi de tout
plaisir et de toute distraction, même des arts et de la musique”.4 Para o
historiador católico-romano Louis Réau, a iconoclastia calvinista pertence,
muito simplesmente, à “história do vandalismo”.5
Essas críticas têm certa plausibilidade. Numa carta a um jovem
estudante, escrita em 1540, Calvino incentiva uma maior dedicação à
religião. Ele faz a seguinte comparação: “Aqueles que procuram no
conhecimento mais do que uma ocupação honrada com a qual enganar o
tédio da ociosidade, eu compararia àqueles que passam as suas vidas
olhando para pinturas”.6
Reabilitações
Isso resolve a questão? Dificilmente, embora atingir clareza sobre Calvino e
seu legado a respeito das artes é algo repleto de armadilhas. Pelo menos
dois tipos principais de reabilitação foram tentados. Eles se baseiam em
duas historiografias. A primeira é representada por Abraham Kuyper (1837-
1920) e Émile Doumergue (1844-1937) e seus herdeiros. A abordagem de
Kuyper ao calvinismo e às artes é mais bem determinada na quinta palestra,
“Calvinismo e arte”, nas Palestras sobre o calvinismo de 1898,
patrocinadas pela Fundação L. P. Stone da Princeton University.7 Não
surpreendentemente, os pensamentos de Kuyper – embora provenientes de
uma linhagem reformada – contêm um ethos decididamente pertencente ao
século 19. Sua orientação é teológica e apologética. Segundo ele, as artes
existem para elevar “o Belo e o Sublime em seu significado eterno”. Elas
são um dos dons mais ricos de Deus para a humanidade. Kuyper acredita
que elas têm o papel de promover um “misticismo correto” que ajuda a
reconhecer os benefícios da verdadeira religião, embora ele tenha
protestado contra a tendência de abandonar esse misticismo em favor de
uma “intoxicação pela arte”.8 Percebe-se uma afinidade com Matthew
Arnold também aqui (quer Kuyper o tenha lido ou não). Segundo esse
influente pensador britânico, a cultura é “o melhor que foi pensado e dito no
mundo”. Além disso, a cultura existe “para fazer a razão e a vontade de
Deus prevalecerem”.9
Aqui, Kuyper defendeu o papel do calvinismo em mover-se
evolutivamente para uma “multiformidade de tendências de vida”, em
oposição a colocar tudo sob a tutela do Estado ou outras instituições
estabelecidas. O efeito disso é libertar as artes de atuarem meramente no
contexto da adoração. Por mais estreitamente que elas estejam alinhadas
com o “estágio inferior do desenvolvimento humano”, agora é tempo de
evoluir para longe dessa congruência e, de fato, enviar as artes para fora da
igreja.10 Ele acrescentou que, pelo fato de a arte ser “incapaz de expressar a
própria essência da religião”, ela deve viver numa esfera própria. Segundo
ele, o calvinismo libertou a arte da tutela da igreja e, assim, ainda mais do
que a Renascença, foi o primeiro a reconhecer a sua maturidade.11
Isso não significa que a religião seja incapaz de gerar um estilo de arte.
Pelo contrário, Kuyper argumentou que, diferentemente do Iluminismo
racionalista, o calvinismo gerou uma rica herança nas artes.12 O calvinismo
fez isso não atingindo algum estágio superior que proíbe a expressão
simbólica da religião em termos visuais, mas estabelecendo uma visão do
mundo e da vida que inspira os artistas a interpretar o mundo e representá-
lo de determinada maneira.13 Para defender Calvino contra a acusação de
filistinismo, Kuyper citou muitas passagens nas quais o reformador
demonstra aprovação das artes. Porém, seu argumento central é que o
calvinismo promove um bom princípio estético, derivado da visão de
Calvino da criação. Assim, o chamado do artista é “descobrir nas formas
naturais a ordem do belo e, enriquecido por esse conhecimento superior,
produzir um mundo belo que transcende o belo da natureza”. Assim, as
artes devem nos lembrar do que foi perdido em decorrência da maldição e o
que se deve esperar no “perfeito esplendor vindouro” da criação.14
Então, como é isso nas artes visuais? Por meio do calvinismo, e também
pela graça comum de Deus, muito fruto foi produzido. Kuyper encontra
exemplos importantes na Holanda, onde, segundo ele, a poesia e, mais
especialmente, a música e a pintura fluíram de uma orientação “reformada”.
Ele citou Rembrandt e outros pintores e argumentou que eles partiramda
doutrina da eleição pela graça gratuita, o que levou à implicação de
importância especial para as pessoas mais simples e os acontecimentos
comuns aos olhos de Deus. Consequentemente, argumentou ele, as artes
puderam concentrar-se muito mais no aparentemente pequeno e
insignificante e elevar pessoas reais, em vez de pessoas de alta posição.15
Usando uma retórica decididamente populista e romântica, Kuyper declarou
que “o poder eclesiástico já não mais conteve o artista, e o ouro principesco
já não mais o prendeu a grilhões. Se artista, ele era também homem,
misturando-se livremente com o povo, e descobrindo o que há por dentro e
por detrás de sua vida humana, algo muito diferente do que palácio e
castelo até então lhe haviam permitido”.16 A mesma evolução ocorreu na
música. Não mais ligados à igreja, os compositores estavam livres do canto
gregoriano e, agora, “escolhiam suas melodias do mundo livre da música”.17
Émile Doumergue adota uma abordagem semelhante. Embora francês,
ele também vai de Calvino à idade de ouro da arte holandesa,
particularmente Rembrandt.18 Os calvinistas não apenas libertaram as artes,
mas as tornaram relevantes para o povo e enfatizaram a possibilidade de
interioridade psicológica e espiritual. Dentre os herdeiros desses pontos de
vista devemos incluir Léon Wencélius, cuja obra clássica L’esthétique de
Calvin [A estética de Calvino] do mesmo modo defende a cosmovisão
reformada como um gerador das artes.19
Hans Rookmaaker ecoaria essas visões uma geração depois.
Rookmaaker foi um historiador de arte, de modo que seria de esperar que
ele entrasse em muito mais detalhe do que Kuyper ou Doumergue, o que
certamente ele fez. Seus ensaios sobre artistas individuais, como Dürer,
Bruegel, Rubens e tantos mais, nos introduzem aos modos pelos quais uma
visão do mundo e da vida informa as pinturas.20 A obra mais conhecida de
Rookmaaker é uma crítica do mundo contemporâneo através da lente das
artes. Modern art and the death of a culture [A arte moderna e a morte da
cultura] é uma fascinante viagem pela história da arte com uma
historiografia de declínio, baseada na epistemologia dos artistas nas suas
diferentes épocas.21
Além da brilhante apreciação do modo como uma cosmovisão ilumina a
história e a cultura nesses pensadores, não devemos deixar de observar o
espírito romântico e até mesmo hegeliano que informa a abordagem de
Kuyper e Doumergue, embora a abordagem de Rookmaaker seja mais
complexa. Acreditamos que a ideia de que a cultura e tudo o que se
relaciona a ela emana de uma cosmovisão, uma consciência religiosa que
caracteriza toda a atividade humana em dado período, é – pelo menos em
parte – uma ideia bíblica. Porém, a ampla periodização, a busca de um
ethos ou de um zeitgeist que caracterize uma determinada era, pode levar a
anacronismos e supersimplificações quando não tivermos o cuidado de
honrar os detalhes. Na pior das hipóteses, essa abordagem pode levar a uma
insalubre aprovação de guerras culturais.
Nuança e contexto
Reações podiam ser esperadas e foram muitas. Porém, com elas, uma porta
foi aberta para uma segunda historiografia de como o calvinismo se
relaciona com as artes. Um dos primeiros a colocar em questão a primeira
historiografia é Ernst Gombrich. Sua principal contribuição à discussão é In
search of cultural sistory [Em busca de história cultural].22 Ele questiona se
diferentes épocas estão realmente unidas por um único zeitgeist*. Ao
observar as artes, ele observa as muitas escolas e abordagens rivais
existentes em cada período. Cada uma delas tem a sua própria coerência,
mas, inconscientemente ou não, tem também elementos em comum com as
outras, tornando problemática a ideia de uma cosmovisão regendo um
movimento que afeta a maneira como os artistas trabalham.
Além de Gombrich, todo tipo de crítica à cultura surgiu, desafiando o
modelo hegeliano. Pode-se pensar em escolas como o culturalismo, o
estruturalismo e o pós-estruturalismo, a Escola de Frankfurt, o feminismo,
as visões foucaultianas, e muitas outras.23 A versão extrema dessa nova
direção precisa estar nas diversas abordagens conhecidas como pós-
modernismo. Esse termo ilusório pode, no mínimo, referir-se a várias
tendências que se opõem a historiografias de “metanarrativa”. Jean-
François Lyotard notoriamente pediu por “incredulidade em relação às
metanarrativas, o grand récit, particularmente como oferecido pela ciência
e pela educação”.24 Para ele e muitos outros, o conhecimento não é um fim
em si, mas capital cultural, poder para chegar a um fim específico.
Essas escolas, decididamente anti-hegelianas, trazem corretivos e recato
necessários ao empreendimento de estudos sobre a cultura. Contudo, elas
não deixam de ter os seus próprios interesses ocultos, alguns dos quais
tornam difícil quase qualquer generalização. Por exemplo, o seríssimo
analista de cultura Pierre Bourdieu procura localizar valor e significado no
mundo da experiência cotidiana. Embora tenha começado como quase um
relativista puro, ele buscou princípios universais na sua fase acadêmica
mais madura.25 Ele nos guia solicitamente ao longo de diversos sabores
culturais, para desvendar as muitas camadas de estilos de vida e hábitos.
Ainda assim, o seu propósito é identificar os relacionamentos entre poder e
dominação econômica de um grupo sobre outro. Nas palavras de Storey, o
resultado não intencional pode ser que: “O muito proclamado colapso de
padrões ensaiados (quase semanalmente) na assim chamada mídia ‘de
qualidade’ dos nossos novos tempos pós-modernos pode ser nada além de
um sentido percebido de que as oportunidades de usar a cultura e fazer e
marcar distinção social estão se tornando cada vez mais difíceis de
encontrar”.26 O que aconteceu aqui é que o impacto cultural e as diferenças
culturais são simplesmente mais complexos de identificar. Os recursos que
nos são dadas pelos segundos historiadores são extremamente úteis desde
que sejamos capazes de discernir as ideologias por trás das suas abordagens
não tão inocentes.
Aplicada à questão do calvinismo e as artes, essa segunda historiografia
traz esclarecimentos úteis. Ela não só nos dá direção para responder à
pergunta mais ampla “O calvinismo forma uma sensibilidade cultural que é
coerente?”, mas também nos ajuda a sermos mais empiricamente
responsáveis. E, adicionalmente, nos lembra de como a cultura funciona.
Permanece a pergunta sobre se os ideais estéticos de Calvino poderiam
cristalizar-se num movimento tão profundamente enraizado que poderia
acabar originando um fruto semelhante ao dos paisagistas holandeses do
século 17, como reivindicado por Kuyper e Doumergue.
Em busca de um meio-termo
Philip Benedict também é cético quanto às reivindicações da primeira
historiografia. Ele compartilha algumas das dúvidas da segunda, mas não
está disposto a abandonar a busca de algum tipo de conexão entre o
calvinismo e as artes.27 Como Gombrich e seus herdeiros, Benedict
questiona se algo tão abrangente quanto o calvinismo poderia vir a dominar
com sucesso toda uma região, transformando totalmente a sua cultura. Por
exemplo, ele ressalta que estudos cuidadosos de determinadas regiões e
épocas revelam que o calvinismo não conseguiu atingir uma reformulação
total da cultura artística ou musical e recriá-la com uma nova imagem. A
realidade é mais complexa. Eis aqui um caso em apreço. A obra The
peasants of Languedoc [Os camponeses de Languedoc], de Emmanuel
LeRoy Ladurie, afirma que as Cevenas eram tão impregnadas da cultura
calvinista que até mesmo canções de ninar foram tomadas dos salmos, não
sendo utilizadas canções locais ou tradicionais. No entanto, Benedict
observa que Ladurie baseou suas conclusões na obra de folcloristas do
século 19. Estudos mais atuais mostram algo diferente. Novamente,
Benedict ressalta que, nas Cevenas, o ministro huguenote Pierre Jurieu
desejou treinar o coração “para que concebesse os seus pensamentos e
fizesse as suas meditações somente nos termos do Espírito Santo, conforme
expressados nos salmos”.28 Porém, Benedict argumentaque essa aspiração
era totalmente impossível na realidade, porque “a Bíblia sempre teve de
fazer as pazes com crenças, motivos e gêneros derivados de fontes não
bíblicas, até mesmo nos maiores redutos de fidelidade calvinista”.29 Ele cita
um exemplo interessante: a crença popular de que maio era um mês de azar
para casar-se. Ele descobriu que os huguenotes das Cevenas se abstiveram
tão prontamente quanto os católicos romanos, a despeito da sua retórica
contra a religião supersticiosa. Benedict argumenta, adicionalmente, que os
círculos das pessoas dadas a interesses literários, artísticos, científicos ou
antiquários estavam em locais onde as diferenças confessionais da época
eram facilmente superadas. Ele afirma que católicos e huguenotes se
reuniam ali para cultivar os seus interesses comuns de maneiras em que os
seus pontos de vista religiosos podem não ter sido particularmente
infletidos.30 Como E. W. Zeeden e outros mostraram, havia até mesmo
superposição na literatura devocional popular.31
Minha própria observação confirma a abordagem de Benedict.
Recentemente viajei pela Europa Central, onde testemunhei as democracias
florescentes nascidas a partir de 1989. Ninguém negaria a transformação.
Contudo, a sombra do antigo regime opressivo ainda espreita. Por mais que
se possa querer dizer sobre os vestígios do comunismo, é difícil negar a
influência desse sistema burocrático nas comunicações, na arquitetura e na
vida religiosa. O ethos ainda paira sobre muitas das democracias recém-
nascidas. Ao mesmo tempo, o próprio comunismo dependia parcialmente
de antigos sistemas autoritários; embora particularmente brutal, ele não era
totalmente diferente dos modelos anteriores de tirania.
Então, para aceitar o argumento de Benedict, não devemos desistir de
tentar encontrar conexões entre o calvinismo e as artes, mas precisamos
encontrá-las dando atenção a questões mais simples e mais concretas do que
os esquemas grandiosos de Kuyper e Doumergue parecem permitir.
Uma dessas questões é se pronunciamentos teológicos tiveram
implicações importantes para o lugar das artes na igreja e na vida. Em que
extensão os artistas foram afetados pelas crenças, permissões e proibições
religiosas ligadas ao calvinismo? Três temas nos guiarão. Primeiro, as
visões de Calvino das artes. Precisaremos conhecer algo de sua abordagem
às imagens, tanto sua iconoclastia quanto sua aprovação cautelosa das artes
em seu lugar. Segundo, o desenvolvimento de uma ontologia reformada
para as artes. Aqui, desejaremos passar da cosmovisão estabelecida por
Calvino para implicações e aplicações provavelmente não previstas pelo
reformador. E, terceiro, uma palavra final sobre mudança de cultura. Aqui,
lançaremos um breve olhar à questão das apropriações.
Iconoclastia, o cenário
É um fato que João Calvino pregava fortemente e praticava a reforma do
culto. Uma das suas polêmicas constantes foi contra a idolatria, e
particularmente o uso de imagens como auxiliares para o culto. Na maioria
das vezes, as suas invectivas são rotuladas como iconoclastia. Seus pontos
de vista não foram desenvolvidos num vácuo. O culto de imagens era muito
difundido na Idade Média e tornou-se particularmente forte no século 15.
As práticas incluíam devoção a relíquias, peregrinações a santuários e
outros lugares simbólicos, o culto dos santos e a externalização da missa,
incluindo multidões sangrando e o pleno desenvolvimento da festa de
Corpus Christi.32 Já havia críticas a essa piedade popular bem antes da
Reforma, mesmo no Ocidente, que geralmente havia resistido aos
iconodules da igreja bizantina. Embora o papa Gregório I e até mesmo
Tomás de Aquino tenham defendido o uso de imagens para a instrução dos
analfabetos, diversos pregadores e movimentos advertiram contra elas.
Pode-se pensar nos cistercienses e nos franciscanos, que advertiram contra
o uso de símbolos para adornar locais de culto. Pode-se também pensar nos
precursores da Reforma, homens como John Wycliffe e Jan Hus, que
fizeram críticas moderadas a imagens, particularmente aquelas usadas para
exaltar a Virgem Maria numa quase competição com Cristo.
Erasmo
Sem dúvida o mais sistemático dos críticos do fim do século 15 e início do
século 16 foi Erasmo de Roterdã (c. 1466-1536). Seu amplamente lido
Enchiridion Militis Christiani (1503) é um forte folheto contra a corrupção
da igreja.33 Nele, Erasmo lamentou o formalismo e o materialismo de
prática corrente e afirmou a natureza interior, espiritual da adoração.
Embora claramente influenciado por Platão, ele pleiteava uma estreita
relação entre Deus e a alma humana. A veneração de imagens era
consequentemente condenada, com exceção feita aos que “por fraqueza de
espírito” só conseguem adorar segundo a carne.34 Ainda assim, argumentou
Erasmo, não poderia haver algo mais “repugnante” do que o culto a
relíquias ou outros assim chamados objetos abençoados, uma vez que o
próprio Cristo evitava todo uso de poder divino e instruiu seus seguidores a
se dirigirem diretamente a ele no céu, sem intermediários.35 As visões de
Erasmo exerceram enorme influência sobre os reformadores, até mesmo
naqueles que pensavam que faltava coerência à sua teologia de um modo
geral.
A Suíça em geral e Genebra em particular foram profundamente
marcadas pela iconoclastia da Reforma. A obra Histoire de la Réformation
au XVIème siècle [História da Reforma no século 16], de Merle d’Aubigné,
acompanha a história do movimento protestante na Suíça, em grande parte
por meio dos atos de iconoclastia.36 Sua avaliação é que, “nos tempos da
Reforma, os doutores atacavam o papa; e o povo, as imagens”.37 Ele não
está muito errado. Segundo Carlos M. N. Eire, embora na Reforma a
iconoclastia variasse em lugar e intensidade, ela era proeminente porque
significava testar publicamente se o culto católico-romano era legal ou não
e estabelecia de que maneira a Missa poderia ser substituída por uma
religião espiritual e baseada na Palavra.38 Ele argumenta que a Suíça tornou-
se um lugar crucial para a exibição desse padrão por pelo menos três razões:
(1) É onde Ulrico Zuínglio foi capaz de produzir a teologia iconoclasta mais
consistente e influente.39 (2) A Suíça foi a primeira área, muito mais do que
Alemanha, onde a iconoclastia tornou-se uma política consistente,
particularmente nos padrões estabelecidos pelos quais as suas cidades se
tornavam oficialmente protestantes. (3) Pelo fato de as cidades terem uma
estrutura republicana, as pessoas eram mais capazes de participar e usar a
iconoclastia como uma tática política.
A cidade de Genebra
Nos anos que precederam a chegada de Calvino (particularmente 1530-
1536), Genebra vivenciou esse processo intensamente. Sua aliança com
Berna significava ter importantes incentivos para reformar, particularmente
na luta para se tornar independente tanto da Casa de Savoia quanto do
príncipe-bispo de Genebra.40 Em 1527 o concílio de Berna havia encenado
uma disputa na qual a fé protestante triunfou sobre crenças e práticas
romanas tais como os méritos de Cristo, a tradição, a transubstanciação, a
missa e o culto de imagens. A Reforma triunfou a partir de então. Genebra
caiu sob o controle de Berna, primeiramente por meio de uma aliança
militar com os seus exércitos contra os Savoia. Ao atravessar os territórios
do sul, o exército bernês destruiu imagens, aquartelou seus cavalos em
igrejas e, em geral, impôs à cidade os seus próprios serviços, incluindo
pregadores. Embora tenham se retirado, esses exércitos haviam começado a
agitar as pessoas para um comportamento anticatólico. Então, em 1532 o
papa Clemente VII proclamou uma indulgência geral em Genebra. Os
simpatizantes protestantes rebelaram-se e colocaram cartazes por toda a
cidade zombando do sistema de indulgências e proclamando que o perdão
estava disponível orando-se diretamente a Cristo.
Depois desses incidentes, a Reforma começou a enraizar-se na cidade
por razões teológicas. Guillerme Farel, Pierre Olivetan e outros começaram
a chegar em 1532, e pregavam clandestinamente. Quando encontravamoposição, diziam estar pregando “na autoridade de Deus”, acusando os
sacerdotes de impingirem tradições e invenções humanas às pessoas.41
Embora expulsos, Farel e Olivetan voltariam em 1533 com seu amigo
Antoine Fromment, para continuar pregando princípios da Reforma. A
pregação era seguida por tumulto; muitos ornamentos e estátuas de igrejas
foram destruídos. As disputas e revoltas se acumularam e, finalmente,
depois de uma mensagem pregada por Farel na catedral em agosto de 1535,
ocorreu uma grave revolta, destruindo a maioria dos ícones, incluindo o
retábulo de Foyseau. Embora houvesse leis que proibiam ou, pelo menos,
cerceavam essa atividade, o Conselho da Cidade simpatizava claramente
com os iconoclastas.
Em 25 de maio de 1536, o Conselho aprovou por unanimidade “Viver
segundo a santa lei do evangelho e da Palavra de Deus, conforme é pregada,
desejando abandonar todas as missas e outras cerimônias e abusos papais,
imagens e ídolos”.42
A iconoclastia em Genebra foi tanto um ato revolucionário quanto uma
afirmação teológica. Obviamente, suas motivações eram mistas. Porém, a
preocupação central era verdadeiramente uma convicção religiosa.43 Como
Ecolampádio colocou isso, descrevendo os conflitos religiosos em Basileia,
a hesitação do governo havia sido um “nó difícil” de desatar, mas a
iconoclastia representa “a cunha do Senhor”, que simplesmente cortou o
nó.44 Aqui temos uma ação política que concretiza uma convicção teológica.
Assim, a iconoclastia nunca foi puro vandalismo, mas uma proposta de
reforma. Foi esse o caso de Genebra.
Calvino e os ícones
Ao chegar a Genebra, Calvino encontrou uma magistratura já
comprometida com essa abordagem. Embora nunca houvesse defendido o
tiranicídio, ele favorecia a iconoclastia. Como havia acontecido com os
reformadores anteriores, seus pontos de vista precisam ser contemplados no
contexto geral da sua teologia. Sua própria jornada espiritual deve ter
desempenhado um papel nas suas convicções. Embora pouco saibamos
sobre a sua conversão, temos o testemunho frequentemente citado no seu
Commentary on the Psalms [Comentário sobre os salmos], em que ele disse
que, “por uma súbita conversão”, Deus o puxou para fora de “tão profundo
abismo de lama” quanto às “superstições do papado”.45 Nas Institutas,
desde a primeira edição até a última, ele desenvolve argumentos
prolongados contra imagens na adoração. Na edição de 1559, a discussão é
robusta, especialmente na seção relevante sobre o conhecimento de Deus
(1.11-12) e a parte sobre o segundo mandamento (2.8.17-21).
A base para a teologia de adoração de Calvino, da qual decorrem os seus
ataques à idolatria, é o propósito central da doutrina da vida: a glória de
Deus. Nas poderosas palavras do Catecismo de Genebra:
1. Quelle est la principale fin de la vie humaine?
C’est de connaître Dieu.
2. Pourquoi dis-tu cela?
Parce qu’il nous a créés et mis au monde pour être glorifié en
nous. Et c’est bienraison que nous rapportions notre vie à sa
gloire puisqu’il en est lecommencement.
3. Quel est le souverain bien des hommes?
Cela même.46
Mais adiante no catecismo, na seção referente aos Dez Mandamentos, as
seguintes razões são dadas como uma explicação do segundo mandamento:
144. Veut-il du tout défendre de faire aucune image?
Non, mais il défend de faire aucune image, ou pour figurer Dieu,
ou pour adorer.
145. Pourquoi est-ce qu’il n’est point licite de représenter Dieu
visiblement?
Parce qu’il n’y a nulle convenance entre lui, qui est Esprit
éternel, incompréhensible, et une matière corporelle, morte,
corruptible et visible.47
Aqui, devemos observar o que logo descobriremos: que Calvino não
proíbe qualquer tipo de imagem, mas apenas imagens de Deus.
Em toda a sua pregação e escrita, Calvino insistiu em que somente Deus
era digno de toda a glória. Ele argumenta que qualquer uso de imagens
conduz à idolatria. No Livro I das Institutas, ele ataca vários abusos papais
citando os Pais. Por exemplo, ele rebate o argumento “papista” de que as
imagens são para ajudar os ignorantes a desenvolverem uma melhor ideia
da teologia, citando Agostinho e outros que dizem que as estátuas são uma
maneira de “tirar o medo e colocar o erro”.48 Mestres da igreja caíam na
veneração de imagens porque “eles mesmos eram mudos”. Imaginando
haver alguma divindade na imagem, “Portanto, quando você se prostra em
veneração, representando a si mesmo numa imagem, seja de um deus ou de
uma criatura, você já está preso em alguma superstição”.49 Seus ataques
frequentes à “idolatria” católico-romana são centrados em roubar de Deus o
que lhe é devido.
No cerne da oposição de Calvino às imagens na adoração há uma
preocupação com a natureza espiritual da verdade. Na verdade, pelo fato de
Deus ser, para ele, a meta de todos os atos e aspirações humanos, e pelo fato
de ser um espírito puro, nunca devemos tentar formar qualquer réplica
terrena dele. Para Calvino, a adoração a Deus deve ser espiritual, para que
possa corresponder à sua natureza. Um nível adicional que leva Calvino a
banir as imagens da adoração é o seu entendimento do cumprimento de
todas as figuras do Antigo Testamento que anunciavam Cristo. Calvino
reconhecia a propriedade das imagens no período da preparação. Porém,
uma vez que Cristo veio e a igreja foi fundada, todas as imagens, exceto as
representações nos dois sacramentos, são abolidas.
Assim, as imagens eram frequentemente destruídas. A escultura era
particularmente visada; as pinturas, um pouco menos; os vitrais eram
preservados com frequência. Um constante chamado à vigilância era
característica dos reformadores. Às vezes, isso podia ser bastante extremo,
como na Inglaterra puritana.50 Ao mesmo tempo, não se deve esquecer que
os reformadores da magistratura nunca promulgaram uma condenação geral
de imagens, nem proibiram a correta apreciação das artes.
Música
Devemos mencionar que a abordagem de Calvino à música era a mesma.
Como Charles Garside demonstrou, a preferência de Calvino por cantar
principalmente os salmos, sem acompanhamento, durante o culto vem da
mesma convicção. Ao chegar a Genebra, ele encontrou as pessoas ainda
“ignorantes” devido aos problemas que a cidade havia vivenciado. Assim, o
canto dos salmos foi uma das primeiras ações pleiteadas por Calvino,
juntamente com a disciplina da igreja, incluindo a excomunhão (para
salvaguardar a Ceia do Senhor), o catecismo e o licenciamento para
casamento. Sem esses, ele não sabia como poderia haver uma vida
eclesiástica bem ordenada ou “regulada” segundo a Palavra de Deus.51 Por
que os salmos? Eles são orações dadas pelo próprio Deus. Seguindo
Agostinho, Calvino insistiu em que os adoradores soubessem o que estavam
cantando, de modo que fez com que eles fossem cantados em francês.52
Mesmo sendo menos músico do que Martinho Lutero, Calvino
desenvolveu uma teologia da música que separava o canto para dentro da
igreja e o canto para fora da igreja. Ainda assim, onde quer que fosse
praticada, a música precisava ser adequadamente singela. Ele acreditava
firmemente que a música pode elevar a alma até uma alegria celestial.
Como tal, a música é o presente de Deus. Ao mesmo tempo (ecoando
Platão), ele advertiu contra a música imoderada que poderia levar à
“indecência” (impudicité) e “efeminação por delícias desordenadas” (de
nous effeminer en délices désordonnées).53 Ele exigiu que toda a
congregação cantasse e proibiu o uso de corais. Assim, os salmos deveriam
ser apresentados musicalmente tanto com seriedade quanto com excelência.
Aqui não é o lugar para discorrer sobre a apropriação, por Calvino, de Louis
Bourgeois e Claude Goudimel, que escreveram melodias simples, mas
elegantes, para os textos sagrados. Ele desaprovava os instrumentos
musicais na adoração por pensar que eles pertenciam aos tempos do Antigo
Testamento, quando as pessoas eram espiritualmente menos maduras,
“enquanto ainda eram tenras e semelhantes a crianças, por tais rudimentos
até a vinda de Cristo. Mas agora, quando a clara luz do evangelho dissipou
as sombras da lei e nos ensinou queDeus deve ser servido de uma maneira
mais simples, seria desempenhar um papel tolo e equivocado imitar o que o
profeta ordenou somente para as pessoas do seu próprio tempo”.54
Antiarte?
Alguns dão a impressão de que as fortes opiniões de Calvino contra as
imagens vinham de sua oposição às artes em geral. Apesar de afirmações
como a descrita acima ao seu aluno, é injusto rotulá-lo como contrário às
artes. Embora denunciasse fortemente imagens de pessoas santas porque
elas seriam como convites abertos à idolatria, ele reconheceu o lugar para a
expressão artística na vida. Nas Institutas, encontramos vários exemplos em
que ele vê a legitimidade das artes visuais. Por exemplo, juntamente com a
condenação de altares e “peregrinações votivas para ver imagens”, ele
acrescenta: “contudo, eu não fui tomado pela superstição de pensar que
absolutamente nenhuma imagem é permissível”. Ele diz: “Porém, porque
escultura e pintura são dons de Deus, busco um uso puro e legítimo para
cada uma delas”. Embora seja errado representar Deus porque ele é
invisível, é bom esculpir ou pintar coisas que o olho pode ver.
Reconhecidamente, essa permissão é dada de uma maneira um tanto
relutante.55
Porém, há outras. Sua declaração mais abrangente sobre as artes em
geral é encontrada nas Institutas (2.2.12-16). A discussão está contida na
questão mais ampla dos vestígios de dons e do livre-arbítrio. Calvino afirma
que os nossos dons naturais foram corrompidos, incluindo a razão – o poder
de entendimento – e o arbítrio. Ainda assim, há a graça comum. Calvino
observa que ainda podemos operar nas áreas de governo, administração do
lar, todas as habilidades mecânicas e artes liberais. Apesar da queda, ainda
sabemos sobre a necessidade de lei para administrar as organizações
humanas. Nas Institutas (2.2.14), ele discute as artes liberais e as artes
manuais. Ele observa que quase ninguém é desprovido de talento em
alguma arte. Discorda de Platão, que disse que a capacidade de aperfeiçoar
as artes vem meramente da memória. Calvino diz que, pelo contrário, ela é
inata. Nas Institutas (2.2.15-16), ele celebra os dons do Espírito de Deus
àqueles que não confessam o nome de Cristo. Esses dons incluem
discernimento de ordem cívica, equidade, arte da disputa, física,
matemática, poesia e “as artes úteis”.56
Calvino tinha semelhanças e diferenças em relação aos outros
reformadores. Zuínglio, muito iconoclasta no tocante à adoração, escreveu
em 1525: “Ninguém é maior admirador do que eu da pintura e da
estatuária”. Ele permitia a liberdade para que imagens enfeitassem a casa,
embora tendo o cuidado de limitar as artes visuais na igreja.57
Onde e de que tipos?
É evidente que Calvino não é contrário às artes em geral, nem seu tipo de
iconoclastia e restrições à música na adoração indica uma aversão às artes,
como afirmam Brunetière, Douen, Réau e outros. Com certeza, não se pode
desconsiderar o poder dos argumentos iconoclastas de Calvino e dos outros
reformadores. Mais do que a maioria das polêmicas, ele atingiu o âmago da
piedade medieval. Ainda assim, havia espaço legítimo para um razoável
apreço pelas artes.
Então, eis a pergunta. A visão de Calvino gerou algo mais do que ele
poderia ter previsto? Os seus sucessores, especialmente os que
desenvolveram uma visão positiva das artes, basearam-se corretamente na
cosmovisão estabelecida por Calvino para nos dar fenômenos como as
pinturas bíblicas de Rembrandt, as paisagens holandesas e muito mais, até
os mundos reformadas dos séculos 19 e 20 e seus campos estéticos
florescentes, não excluindo a música?
Eis como Christopher Richard Joby argumenta de modo convincente
haver uma evolução verdadeira.58 Ele diz que o modo em que Calvino
restringiu a prática musical ao canto a cappella de (principalmente) salmos
na adoração foi equilibrado pelo seu chamado à imaginação, e isso
caracterizou a evolução do calvinismo nas artes. Clément Marot precisou
demonstrar uma criatividade excepcional para metrificar a poesia dos
salmos e estabelecer os ritmos para os padrões na música. Por vezes, Marot
tomou liberdades com o texto, com o intuito de estabelecer um argumento
teológico, quase na forma do midrash hebraico.59 Essa “ontologia e
epistemologia” justificou posteriores modificações e reformas na prática
musical, como o uso do órgão na Holanda e as extensas revisões feitas por
Isaac Watts. De modo semelhante, as artes visuais encontraram lugar na
cultura do calvinismo explorando os motivos visuais não proposicionais e
transformando-os em conceitos didáticos.60
Dito de modo um tanto diferente e em termos mais contemporâneos, a
cosmovisão desenvolvida por Calvino incluiu um profundo respeito pela
poesia e interpretação visual, além de simplesmente um forte
conservadorismo na prática da adoração. Essa cosmovisão evoluiu para
uma apreciação mais completa da criação e, assim, um maior consolo com
as artes visuais. Portanto, não deveríamos nos surpreender ao descobrir, por
exemplo, que no início do século 17 desenvolveu-se na Holanda uma
polêmica entre Jacob Trigland e os quacres. Trigland, um cristão reformado,
defendeu a propriedade das pinturas (exceto nus) contra os quacres, que
proibiam a posse de qualquer tipo de pintura.61
Conexões específicas
Eis aqui alguns exemplos específicos de modos como se pode dizer que
uma sensibilidade calvinista é representada em formas de arte específicas.
Comecemos com alguns exemplos muito básicos e óbvios, passando depois
a exemplos mais indiretos. Uma conexão é bem conhecida, embora talvez
não seja tanto uma declaração sobre questões estéticas maiores. Inúmeras
bíblias ilustradas foram produzidas por artistas reformados. Curiosamente,
as ilustrações bíblicas de Estrasburgo e Zurique eram mais ricas e mais
originais do que as produzidas em Wittenberg.62 Poderíamos também pensar
nas obras devocionais, cujos salmos a serem utilizados devocionalmente
eram frequentemente impressos em edições contendo vinhetas ricas e
variadas em xilogravura. Elas encaminhariam o leitor para o mundo do
Novo Testamento, dando uma interpretação cristológica a muitos dos
salmos. Ao mesmo tempo, imagens do Antigo Testamento poderiam ser
suficientes. Uma edição apresenta um sacerdote com o seu holocausto para
ilustrar o salmo 150.63
Importantes para o desenvolvimento da arte da Reforma foram as
polêmicas daquele tempo. Frequentemente, as ilustrações eram semelhantes
a cartuns, apresentando seus argumentos de modo que atraiam as pessoas. A
sátira vívida era particularmente popular. Lucas Cranach (o Velho), famoso
pelo seu retrato de Martinho Lutero, foi um cartunista favorito contra a
Igreja Católica Romana. Seu Antichristus foi tão popular em Genebra que
teve nove edições publicadas. De fato, as artes visuais eram regularmente
utilizadas para promover todas as ideias da Reforma.
Ao subirmos para a Holanda, mais perto do fim do século 16,
descobrimos que Jan Swart van Groningen (1500-c.1560) foi um prolífico
gravador e ilustrador cujas obras frequentemente se baseavam em passagens
bíblicas e ensinavam uma visão protestante. Seu par de desenhos “O
caminho largo” e “O caminho estreito”, inspirados em Mateus 7.13-14,
contrasta os importantes e poderosos a caminho da destruição e as pessoas
mais humildes, capazes de confiar na fé simples, a caminho do céu.64 Ali,
von Groningen mostra a mulher de Potifar denunciando José na história que
acabaria revelando: “Vós [...] intentastes o mal contra mim; porém Deus o
tornou em bem” (Gn 50.20).65 Pode-se também pensar em Dirck P. Crabeth
(1501-1577 ) de Gouda, cujos desenhos e vitrais continham ideias
distintamente reformadas.66 Crabeth era frequentemente fascinado pela
necessidade do novo nascimento na jornada para o céu, em vez de boas
obras.
E também, as ligações entre o calvinismo e as artes são óbvias em certas
formas de arte, particularmente aquelas diretamente relacionadas à
adoração. Por exemplo, símbolos de comunhão, conhecidos como méreaux,
teriam desenhos como um pastor, uma Bíblia aberta, um cálice de
comunhão ou algo semelhante. Ospróprios cálices de comunhão poderiam
ser ornamentados com imagens de temas bíblicos.
Arquitetura
Há uma clara ligação entre os princípios calvinistas e a arquitetura e o
mobiliário da igreja. Questões arquitetônicas geravam menos controvérsia,
uma vez que, em muitos casos, com frequência os protestantes
simplesmente assumiam o controle de igrejas católicas existentes e as
modificavam de modo a obedecerem a princípios reformados de culto.
Substituir o altar por um púlpito como ponto focal era uma afirmação típica
de adoração centrada na Palavra.67 Calvino não escreveu muito sobre a
configuração de igrejas, mas isso permite que durante os primeiros
quinhentos anos da igreja houvesse “uma doutrina mais pura prosperando”
e “as igrejas fossem comumente desprovidas de imagens”.68 Ele usa
Agostinho para apoio. Pode-se argumentar, como faz Joby, que usar
Agostinho prova que havia imagens antes do século 5º. e, provavelmente,
muito antes.69 Provavelmente, Calvino está argumentando contra estátuas e
sinais ostensivos, não contra qualquer imagem que seja.
O modo primário de conhecer as intenções de Calvino é examinar St.
Pierre em Genebra sob o seu ministério. Quando ele assumiu a pregação
regular ali (certamente a partir de 1541 e, ocasionalmente, de 1536 até o seu
exílio), havia uma considerável iconoclastia. Tanto o púlpito quanto o coral
foram demolidos. O púlpito foi transferido para o primeiro pilar à esquerda,
simbólica e praticamente importante: a pregação da Palavra tornou-se o
elemento central do culto reformado. Além disso, toda a configuração do
espaço foi alterada, passando da abordagem de “receptáculo”, pela qual
Deus se encontra com o seu povo no altar na Eucaristia, para o uso
“relacional” do espaço, pelo qual Deus se encontra com o seu povo na
assembeia.70 Esse padrão foi duplicado e desenvolvido na Escócia e na
Holanda.71
Na França, antes da revogação do Edito de Nantes, um bom número de
igrejas acomodou esses princípios da Reforma centrados na Palavra. A
disposição das cadeiras em torno do púlpito sinalizava não apenas uma
assembleia para ouvir, mas também uma comunhão mais íntima.72 Quando
novos edifícios eram construídos, frequentemente eram notáveis pela
simplicidade. Cévenols construiria igrejas na forma de celeiros semelhantes
aos utilizados nas fazendas.73 Com frequência eram encontrados toques
como um cata-vento na forma de um galo, para significar a pregação da
Palavra.74
Em tudo isso, a igreja como edifício representa algo sobre santificação
e, é claro, identidade cristã. Apesar de toda a sua ênfase sobre a
invisibilidade de Deus e a impropriedade de representá-lo com imagens,
Calvino acredita que o mundo e a consciência humana testificam da
imanência de Deus. Como Jérôme Cottin ressalta no fascinante livro Le
regard et la parole [O olhar e a palavra], Calvino pratica “estética sem
imagens”, enquanto Lutero tem “imagens sem estética”. Em qualquer caso,
embora Deus possa ser conhecido de maneira visível, ele nos dá análogos
de sua presença de modo que “Não se pode, portanto, separar a beleza de
Deus do espetáculo do mundo. O universo é belo porque é o teatro da glória
de Deus”.75 Assim, embora o uso de imagens na igreja esteja quase ausente
no próprio tempo de Calvino, imagens sóbrias poderiam desenvolver-se, e
desenvolveram-se, no espaço de adoração, mas especialmente no domínio
privado ou “secular”. Para Calvino, elas podiam servir não apenas para o
prazer, mas também para memória e instrução na verdade cristã.76
Desdobramentos na Holanda
Agora, passemos às conexões menos diretas. Quanta transferência de tais
princípios estéticos houve para o restante das artes, particularmente aquelas
não destinadas às igrejas? É aqui que as coisas tornam-se interessantes e
complexas. Novamente, Joby e outros defendem uma evolução da
cosmovisão de Calvino para uma sensibilidade que cresceu nas artes
visuais. Concentremo-nos na questão da arte paisagística a partir do século
17 holandês. Hans Rookmaaker argumenta que surgiu um problema com a
Renascença, a saber, que cenas históricas (ou cenas naturais) exigem
realismo e interpretação.77 Deveria ser mostrado o que os olhos podiam ver
(o que poderia acabar no que hoje chamamos de positivismo, ou
simplesmente reconhecer dados brutos) ou representar a interpretação, o
que poderia exigir abandonar a cena literal e destacar a interpretação? Esse
problema esteve especialmente presente na retratação da narrativa bíblica.
Se a imagem é feita para ser historicamente exata, será semelhante a uma
fotografia, mas não será capaz de interpretação teológica. Segundo
Rookmaaker, esse dilema levou muitos pintores do século 17 em países da
Reforma a simplesmente abandonarem a pintura de cenas bíblicas.
Então, duas possibilidades surgiram. A primeira é representada em
Rembrandt. Segundo Rookmaaker, apenas Rembrandt superou esse
problema, usando meios de composição e psicológicos para transmitir
significado. Na sua pintura Cristo na estrada para Emaús, vemos três
homens andando por um caminho. Fica claro que o do meio, que é Jesus, é
o mais importante. Rembrandt consegue isso desenhando uma casa no lado
direito da tela, desse modo “criando um ritmo, homem-Cristo-homem-casa,
com a ênfase em Cristo e na casa”.78 Nenhum halo é necessário, porque a
silhueta de uma das árvores ao fundo é semelhante a um halo.79 Outras
representações de Cristo em Emaús nos contam sobre a abordagem de
Calvino à Eucaristia: Cristo está presente – ele está lá no sursum corda,
quer o apreendamos totalmente de maneira racional ou não; a ceia é para os
pecadores; eles estão na terra e, não obstante, misticamente transportados
para o céu (o jogo de luz acrescenta um tom sobrenatural); o pão e o vinho
são meios da presença real; Cristo está sempre presente com o seu povo.80
Essas observações são confirmadas pelo historiador de arte Christian
Tümpel, que argumentou de modo convincente que a tradição holandesa de
histórias bíblicas reproduzidas de uma maneira tão psicológica ou prática
representa “uma fundamental contribuição protestante à arte”. Tümpel
reconhece que Rembrandt teve um mestre católico (Pieter Lastman),
embora acredite que o gênero foi inteiramente desenvolvido numa cultura
calvinista.81 Quer Rembrandt tenha sido o único ou não a fazer essa
conquista, como Rookmaaker sustentou, a visão de que seu calvinismo
informou esses tipos de opções faz sentido.
Arte paisagística
A segunda abordagem à pintura de paisagens era pintá-las de modo que
celebrassem a criação e Deus, o Criador. Rookmaaker dá um exemplo
interessante. Paisagem, de Jan Van Goyen (1646), é uma representação do
mundo, não como poderia ser fotografado como uma fatia fina, mas como é
em toda sua beleza, complexidade e fragilidade. Esses tipos de pinturas são
tão reais que imaginamos que seríamos capazes de vê-las ao vivo ou
capturá-las em fotografia. Isso é impossível, uma vez que essa é uma
composição extremamente planejada, não uma reprodução. Em contraste,
digamos, com as paisagens frequentemente nostálgicas ou idealistas de
Poussin, Van Goyen “canta sua canção em louvor da beleza do mundo aqui
e agora, o mundo que Deus criou, a plenitude da realidade em que vivemos
– basta abrirmos os nossos olhos”.82 Embora sejam paisagens, elas estão
plenas de significado teísta, simplesmente pela maneira como cada motivo é
exibido, sua “musicalidade” e o pressuposto subjacente de que estamos
vivendo no mundo de Deus, um mundo caído, mas sendo redimidos. (Nisso,
então, Kuyper e Doumergue tinham um argumento: o calvinismo contribuiu
para separar as artes somente da igreja e ajudou a libertá-las para retratar
toda a vida, incluindo as paisagens.)
Esse ponto de vista pode ser sustentado hoje, particularmente à luz dos
desafios da segunda historiografia? Eis aqui os elementos da discussão.
Juntamente com um bom número de historiadores de arte, Rookmaaker
acredita que de 1615 a 1630, em lugares como Haarlem, desenvolveu-se um
novo estilo que é geralmente mais realista e “secular” do que a tradicional
arte paisagística flamenga“semelhante a mosaico”. Isso foi alimentado por
vários fatores, incluindo uma reação contra a mitologia, tendendo na
direção a uma espécie de “arte pela arte”, ou simplesmente uma atenção a
sentimentos ou humores pessoais. Havia um forte fator cristão envolvido.
Maarten de Klijn argumenta que, segundo Francis Bacon, o calvinismo via
a natureza como o “segundo livro” de Deus, o primeiro sendo a Bíblia.
Assim, representações da criação deveriam mostrar o poder de Deus e a
beleza de uma ordem divina sem recorrer a luzes e sombras, halos ou coisas
semelhantes. Essa mentalidade também explica a mudança de um tipo de
imagem mais maneirista para um tipo mais realista.83
Outros historiadores de arte encontram conexões semelhantes entre o
desfrute do mundo e a visão calvinista da criação. Um dos melhores estudos
sobre a conexão entre a cosmovisão reformada e os paisagistas holandeses é
Jacob van Ruisdael and the perception of landscape [Jacob van Ruisdael e
a percepção da paisagem], de E. John Walford.84 O livro fornece uma visão
geral da obra do artista e sua recepção crítica. Walford discute a maneira
como a representação por meio de pintura comunica significado. Conquanto
os detalhes sejam escrupulosamente observados, tudo está a serviço da
cosmovisão mais ampla, incluindo a glória da criação, mas também a queda
com sua ameaça à beleza original. Walford discute diversos aspectos da arte
do pintor: seus temas e motivos; sua seleção, combinação e representação
de determinados elementos da paisagem; sua observação escrupulosa dos
detalhes da vegetação nativa e da aglomeração das nuvens; e sua
compreensão das forças conflitantes de crescimento e inevitável dissolução
na natureza. As serenas imagens de grandiosidade são contrastadas com a
definitiva transitoriedade da natureza.
Boudewijn Bakker argumenta que o artista reformado Claes Jansz
Visscher (1587-1652) pinta em cânticos de louvor a Deus, o Criador.
Bakker examina uma interessante série de gravuras denominada Plaisante
plaetsen (c. 1612). Essa série é uma viagem imaginária ao longo de marcos
históricos e instalações industriais de Haarlem. Algumas das cenas fazem
alusão a acontecimentos dolorosos, como o cerco da cidade em 1573, mas
muitos aludem aos indicadores da nova prosperidade da cidade e do seu
sucesso.85 Num deles há uma mulher folheando um livro de viagens. Há
mensagens em latim e holandês, explicando que, mesmo que uma pessoa
não tenha tempo para ir aos “lugares agradáveis” nos arredores de Haarlem,
as vistas podem ser apreciadas por meio das pinturas.86 Bakker sugere que a
apreciação desses tipos de cenas é motivada pela cosmovisão cristã, pela
qual compreendemos a natureza como uma “canção adequada em louvor a
Deus”.87
Nem todos concordam com essa conexão. Reindert L. Falkenburg pede
que observemos mais atentamente a série de Visscher.88 Ele concorda que a
sequência tem o objetivo de agradar aos olhos do espectador,
particularmente por trazer à lembrança um passatempo favorito – fazer
caminhadas fora das muralhas da cidade e desfrutar dos estímulos
sensoriais. Todavia, ele questiona se há uma conexão clara com uma
cosmovisão calvinista. Ele até mesmo questiona se esses prazeres sensuais
opõem-se, de algum modo importante, à visão calvinista. Ele imagina se
uma ética calvinista poderia até associar esses prazeres à queda, não ao
“segundo livro” de Deus.
Falkenburg não se opõe totalmente a encontrar algum elemento
calvinista na série. Ele simplesmente nos pede para ponderar a
complexidade de tais associações. Ele cita Huygen Leeflang, que argumenta
haver uma multiplicidade de relações semânticas que os observadores
possam ter associado a imagens da paisagem, em vez de estabelecer um
significado único e abrangente. Isso pode incluir um secularismo do
Iluminismo, orgulho da nova República, particularmente devido à sua
prosperidade econômica, ou louvor ao Criador.89 Não obstante, Falkenburg
argumenta a pouca probabilidade de o escopo incluir o calvinismo. Ele
pensa que “o desenvolvimento em direção a uma linguagem realista e
elementos acessórios seculares na paisagem holandesa do início do século
17 não tem, como princípio geral, probabilidade de estar ligado a uma visão
religiosa, e mais especificamente calvinista, da natureza”.90
Em minha opinião, poderia ser as duas coisas. Uma sensibilidade
reformada e uma perspectiva iluminista nem sempre são mutuamente
excludentes. Em alguns casos, elas se complementam razoavelmente bem.91
No final, alinho-me com Philip Benedict e outros que, por um lado,
criticaram as associações radicais de Kuyper, Doumergue e outros, e, por
outro, abriram portas para uma importante pesquisa sobre as conexões entre
o calvinismo e as escolhas feitas pelos pintores.
Apropriações e transformação cultural
Se esses argumentos forem válidos, isso significa que precisamos olhar de
maneira um pouco diferente para identificar verdadeiramente uma
abordagem reformada às artes. Então, de que modo a cosmovisão que
emana de Reforma de Calvino afeta culturas em nível local? No domínio
das artes, isso significará pelo menos três linhas de pesquisa.
(1) Deve ser feito um trabalho comparativo sobre as semelhanças e
diferenças entre a arte feita num contexto primariamente protestante ou
católico-romano. No primeiro caso, por exemplo, sabemos que levou tempo
para as artes voltarem a gozar do total favor depois das constrições da
iconoclastia. Frequentemente, o próprio número de artistas diminuiu até que
um equilíbrio melhor pudesse ser restaurado.92 O apoio eclesiástico
diminuiu consideravelmente nesses países. Finalmente, porém, as coisas
melhoraram. As pessoas começaram a querer possuir pinturas. Nas áreas
primariamente católicas, as artes continuaram a florescer, mas foram
afetadas por fatores como a Contrarreforma católica e o Iluminismo. O caso
era diferente quando protestantes e católicos viviam mais ou menos lado a
lado.
(2) Relacionado a isso, que escolhas de tema eram feitas por artistas ou
mecenas protestantes e católicos? Na Amsterdã do século 17, por exemplo,
embora o contraste não fosse nítido, é possível notar que os católicos
tendem a possuir mais pinturas com temas diretamente religiosos do que os
protestantes. Quando o tema era religioso, os calvinistas preferiam histórias
do Antigo Testamento, depois o Novo Testamento e, depois, cenas da
Natividade. Os católicos preferiam a crucificação, a Virgem e os santos.93
Como Philip Benedict demonstra, essas escolhas refletem as diferenças de
sensibilidade entre os dois grupos, particularmente no sentido de que os
polêmicos protestantes exigiam histórias verdadeiras, bíblicas, ou paisagens
que mostrassem a criação de Deus, em vez deliberadamente rejeitar
crucificações e outros motivos associados à piedade católica. Ao mesmo
tempo, havia a propriedade comum, o que significava que as diferentes
sensibilidades nem sempre eram tão manifestas como poderíamos pensar.
(3) Por fim, a questão das apropriações culturais. Há também fruto a ser
encontrado no estudo das apropriações culturais. Um pioneiro nessa
pesquisa é Roger Chartier, que estudou extensamente os inúmeros meios
pelos quais um grupo se apropriará, para os seus próprios propósitos, de
materiais encontrados no ambiente à sua volta.94 Isso nos leva de volta às
nossas discussões sobre costumes populares locais e cosmovisões mais
amplas. Também torna as decisões sobre escolhas aparentemente tão
modestas quanto preferir uma pintura sobre uma história do Antigo
Testamento em vez da crucificação. Por outro lado, poderia considerar tais
grandes tendências como a secularização da arte, tirando as artes do
contexto da adoração e lançando-a no mundo exterior, deixando a igreja
para viver mais plenamente no mundo de Deus.
O chamado hoje
Há muito trabalho a ser feito. A boa notícia é que, nos tempos recentes, os
cristãos – particularmente na tradição reformada – deixaram de perguntar se
alguém pode se envolver nas artes visuais e começaram a perguntar de que
maneira isso deve ser feito. A tarefa para os artistas precisacomeçar com o
nível de habilidade. Independentemente de qualquer outra coisa que
possamos dizer sobre a arte na tradição calvinista, ela precisa buscar a
excelência no ofício. Em segundo lugar, o tema terá de refletir a
cosmovisão que nos foi ensinada pelos nossos antepassados holandeses. É
fácil dizer as palavras criação, queda, redenção, mas, para elas serem algo
mais do que um mantra, teremos de aplicá-las diligentemente no nosso
trabalho. Em terceiro lugar, ser um artista não é um chamado fácil. A igreja
não está cem por cento por trás das vocações criativas. É um
empreendimento de alto risco entrar no mundo das artes com a sua
integridade cristã acima de tudo. Porém, o mundo estético necessita
desesperadamente de artistas capazes de rejeitar tanto o sentimentalismo
quanto o niilismo e mostrar uma terceira via que articule o nosso
sofrimento, mas também a nossa esperança no Senhor.
1 Hans R. Rookmaaker, Modern art and the death of a culture (Downers Grove, IL: Inter-Varsity
Press, 1970), 30.
2 Para uma breve história desse aspecto do protestantismo e das artes, ver Hilary Brand e Adrienne
Chaplin: Art and soul: Signposts for Christians in the arts (Carlisle, UK: Piquant, 2001), cap. 3.
3 Ver também Graham Gartgett, “Goldsmith as translator of Voltaire”, The modern language
review 98 (2003): 842-56. Justiça seja feita, Voltaire acabaria tornando-se um defensor dos
huguenotes e louvaria Genebra pela sua diligência.
4 Isso significa “inimigo de todo prazer e de toda diversão, até mesmo das artes e da música”
(Orentin Douen, Clément Marot et le psautier Huguenot, v. 1 [Paris: Imprimerie Nationale, 1878],
377).
5 Louis Réau, Histoire du vandalisme: Les monuments détruits de l’art français (Paris: Robert
Laffont, 1995 [orig. 1959]).
6 CR, 11.56.
7 Abraham Kuyper e Émile Doumergue, “Calvinism and art”, Lectures on Calvinism (Grand
Rapids: Eerdmans, 1931), 142-70.
8 Ibid., 143.
9 Matthew Arnold, Culture and anarchy (Cambridge: Cambridge University Press, 1960 [orig.
1882]), 6, 42.
10 Kuyper e Doumergue, “Calvinism and art”, 146-47.
11 Ibid., 157.
12 Ibid., 148, 151-52.
13 Ibid., 152.
14 Ibid., 154-55.
15 Ibid., 165-66.
16 Ibid., 167.
17 Ibid., 168.
18 Émile Doumergue, L’art et le sentiment dans l’oeuvre de Calvin (Genebra: Société Genevoise
d’Edition, 1902; reimpr. Genebra: Slatkine Reprints, 1970), 13-14, 36-34.
19 Léon Wencelius, L’esthétique de Calvin (Paris: Les Belles Lettres, 1937).
20 Ver, por exemplo, seus artigos sobre história da arte ocidental, reunidos em Hans Rookmaaker,
Western art and the meanderings of a culture, v. 4 de Complete works, org. Marleen Hengelaar-
Rookmaaker (Carlisle, UK: Piquant, 2002), 1-187.
21 Esses generalistas não são os únicos que ligam o calvinismo a, digamos, paisagistas holandeses
do século 17. Maarten de Klijn e outros historiadores de arte contemporâneos também estabelecem
essas conexões.
22 Ernst Gombrich, In search of cultural history (Nova York: Oxford University Press,1969).
Rookmaaker comenta esse livro favoravelmente em Western art, 275-77. Meu palpite é de que
Gombrich estava se movendo em direção a essa segunda historiografia.
* zeitgeist: “espírito da época” ou “sinal dos tempos”. (N. da R.)
23 Ver Jean-François Lyotard, The postmodern condition: A report on knowledge (Manchester:
Manchester University Press, 1984), 46. Para um excelente resumo dessas e de outras escolas em
relação a estudos culturais, ver John Storey, An introduction to culture theory and popular culture, 2ª
ed. (Athens, GA: University of Georgia Press, 1998).
24 Jean-François Lyotard, The postmodern condition: A report on knowledge (Minneapolis:
University of Minnesota Press, 1984), xxiii; ad loc.
25 Ver, por exemplo, Pierre Bourdieu, Distinction: A social critique of the judgment of taste, trad.
Richard Nice (Cambridge, MA: Harvard University Press, 1984). Nota de Rules of Art: “Para
Bourdieu, artistas e outros agentes possuem certos capitais, dos quais existem quatro tipos básicos:
primeiro, o capital econômico – ações e quotas, mas também o excedente presente em salários muito
altos; segundo, capital social – a rede de apoiadores influentes que você pode usar para apoiar as suas
ações; terceiro, capital cultural – incluindo o conhecimento do campo artístico e da sua história, o
que, por sua vez, serve para distinguir o pintor ingênuo do pintor profissional, e incluindo também o
capital erudito de um tipo formal (pós-graduação, prêmio de uma bolsa para visitante de Roma etc.);
finalmente, capital simbólico – a sua reputação ou honra, como um artista que é leal a outros artistas
e assim por diante”. Bridget Fowler, Pierre Bourdieu and cultural theory: Critical investigations
(Londres: Sage Publications, 1997).
26 Storey, Introduction to culture theory, 198.
27 Philip Benedict, “Calvinism as a culture?” em Paul Corby Finney (org.), Seeing beyond the
word: Visual arts and the Calvinist tradition (Grand Rapids: Eerdmans, 1999), 1-45.
28 Pierre Jurieu, traité de la devotion (Ruão, 1675), 184.
29 Benedict, “Calvinism as a culture?” 25.
30 Ibid., 26.
31 Ibid. Ver E. W. Zeeden, Die Entstehung der Konfessionen (Munique: Oldenbourg, 1965); e
Quentin Skinner, “The origins of the Calvinist theory of revolution”, em Barbara C. Malament (org.),
After the Reformation: Essays in honor of J. H. Hexter (Filadélfia: University of Pennsylvania Press,
1980), 309-30.
32 Ver, por exemplo, Hermann Heimpel, “Characteristics of the late Middle Ages in Germany”, em
G. Strauss (org.), Pre-Reformation Germany (Nova York: MacMillan, 1972), 68.
33 W. Welzing (org.), Erasmus von Rotterdam: Ausgewählte Schriften, v. 1 (Darmstadt, Alemanha
Ocidental: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1968). Para uma edição em inglês, ver Raymond
Himelink (trad.), Enchiridion, or The manual of the Christian knight (Londres: Kessinger, 2003).
34 Ibid., 90-91.
35 Ibid., 204.
36 Merle d´Aubigné, Histoire de la Réformation au XVIème siècle (Paris: Firmin Didot Frères,
1938).
37 Ibid., 767.
38 Carlos M. N. Eire, War against the idols: The reformation of worship from Erasmus to Calvin
(Cambridge: Cambridge University Press, 1986), 107.
39 O livro De vera et falsa religione, de Ulrico Zuínglio, teve influência direta sobre Calvino.
Compare S. M. Jackson (org.), The Latin works and the correspondence of Huldreich Zwingli:
Together with selections from his German works, v. 3 (Nova York: Putnam’s Sons, 1912), 332, com
Institutas de Calvino, 1.11.9.
40 É possível atribuir a essa disputa a data de 1519, quando patriotas de Genebra liderados por
Besançon Hughes, o “sujeito do juramento”, tiveram sucesso em sua luta. Ele acabou conseguindo o
apoio daqueles que assinaram tratados com Berna e Friburgo, e pode ter dado aos Confederados
suíços o nome Eidgenossen, do qual deriva o termo huguenote.
41 Ver Provana di Collegno, “Rapports de Guillaume Farel avec les Vaudois du Piémont”, Bulletin
de la Société d’Études des Hautes-Alpes (1891): 257-78.
42 R. Consist., 13:576, tradução minha.
43 Carlos M. N. Eire, War against the idols, 155.
44 Ibid., 156.
45 CR, 31.22.
46 1. Qual é o principal propósito da vida humana? É conhecer a Deus. 2. Por que você diz isso?
Porque ele nos criou e nos colocou no mundo para ser glorificado em nós. E essa é, certamente, a
razão para conectar a nossa vida à sua glória, já que ele é o seu início. 3. E o que é o bem supremo
dos homens? O mesmo.
47 144. Isso proíbe toda e qualquer imagem? Não, mas proíbe fazer qualquer imagem para retratar
Deus ou para adorar. 145. Por que é ilícito representar Deus visivelmente? Porque não há
conformidade entre ele, que é um Espírito eterno incompreensível, e um objeto físico, morto,
corruptível e visível.
48 Institutas, 1.11.6-7.
49 Ibid., 1.11.7.
50 Ver Patrick Collinson: From iconoclasm to iconophobia (Reading: The University of Reading,
1986).
51 CR, 10.7.
52 Ibid., 2.17.
53 Ibid., 2.16.
54 Comm. Sl 81.3.
55 Institutas, 1.11.12.
56 Sem dúvida ele pensa em Cícero, que cita Timaeus, de Platão, na sua obra Tusculan disputations
(1.36.64). Leon Wenceliusapresenta uma extensa discussão sobre essa e outras passagens em
diversas partes dos escritos de Calvino. Wencelius, L’esthétique de Calvin, 97-126.
57 Ver S. M. Jackson e C. N. Heller (orgs.), Commentary on true and false religion (Peabody:
Labyrinth Press, 1981).
58 Christopher Richard Joby, Calvinism and the arts: A reassessment (Leeuven, Paris, Dudley:
Peeters, 2007).
59 Ibid., 86.
60 Ibid., 87.
61 Citado em Benedict, “Calvinism as a culture?” 32.
62 Bíblias ilustradas seriam desencorajadas em Genebra depois de 1566, porque os artistas estavam
tornando-se demasiadamente criativos. Ibid., 33.
63 Les cent cinquante Psalmes du royal prophete Dauid (Paris: Par Iean Ruelle demourant en la rue
S/. Jacques a l’enseigne S. Nicolas, 1554?). Essa obra está disponível online em
http://www2.lib.virginia.edu/rmds/portfolio/gordon/religion/poictevin.html
64 Ver Max J. Friedländer, “Zu Jan Swart van Groningen”, Oud Holland 63, 1-6 (1948): 2-9.
65 J. Q. Van Regteren Altena, “Teekeningen van Dirck Crabeth”, Oud Holland 55, 1-6 (1938): 107-
14.
66 Aqui é retratado o rei Salomão. Filipe II havia desposado recentemente Maria Tudor e se
imaginava um segundo Salomão católico. Dirck Crabeth está dizendo: “Sim, mas apenas se você
seguir os caminhos do Senhor”.
67 A Segunda confissão helvética exigia que os edifícios escolhidos para serem igrejas fossem
“expurgados de tudo que não seja adequado à igreja” e que fossem banidos “vestimentas luxuosas,
todo orgulho e tudo que seja impróprio à humildade, disciplina e modéstia cristãs” (XXII).
68 Institutas, 1.11.13. A palavra usada por Calvino, imagines, tem sentido um pouco mais amplo do
que a palavra “imagens” e provavelmente referia-se ao simbolismo em geral.
69 Joby, Calvinism and the arts, 91.
70 Os termos são extraídos de Catharine Randall, Building codes: The aesthetics of Calvinism in
early modern Europe (Filadélfia: University of Pennsylvania Press, 1999), 26.
71 Ver, por exemplo, a cathedral de St. Giles, Edimburgo, e a de St. Bavokerk, Haarlem. Joby,
Calvinism and the arts, 95-101.
72 Ver André Biéler, Liturgie et architecture: Le temple des chrétiens (Genebra: Labor et Fides,
1961).
73 Por exemplo, o projeto semelhante a celeiro usando longarinas era derivado de estruturas rurais
das Cevenas. Ver Hélène Guicharnaud, “An introduction to the architecture of protestant temples”,
em Finney (org.), Seeing beyond the Word, 141.
74 Ou, segundo alguns, para lembrar aos observadores católicos romanos que Pedro (que eles
consideram ter sido o primeiro papa) traiu Cristo três vezes antes de o galo cantar.
75 Jérôme Cottin, Le regard et la parole: Une théologie protestante de l’image (Genebra: Labor et
Fides, 1994), 303-4.
76 Olivier Millet, Calvin: Un home, une œuvre, un auteur (Gollion, Switzerland: Infolio, 2008),
167.
77 A discussão que se segue é extraída de H. R. Rookmaaker, Modern art and the death of a
culture, 16-19. Ver também Joby, Calvinism and the arts, caps. 5–7.
78 H. R. Rookmaaker, Modern art and the death of a culture, 18.
79 Ver H.-M. Rotermund, “The motif of radiance in Rembrandt’s Biblical drawings, em Journal of
the Warburg and Courtauld Institutes 15, 3-4 (1952): 101-21.
80 Joby, Calvinism and the arts, 161-69.
81 Christian Tümpel: “Die reformation und die Kunst der Niederlande”, em Werner Hoffman
(org.), Luther und die Folgen für die Kunst (Munique: Prestel, 1983), 314-15.
82 H. R. Rookmaaker, Modern art and the death of a culture, 23.
83 Marten de Klijn, De invloed van het Calvinisme op de Noord-Nederlandse
landscapschilderkunst, 1570-1630 (Apeldoorn: Willem de Zwijgerstichting, 1982).
84 E. John Walford, Jacob van Ruisdael and the perception of landscape (Londres: Yale University
Press), 1991.
85 Ver Mariët Westermann, The art of the Dutch republic, 1585-1718 (Londres: Laurence King
Publishing, 2004), 104.
86 Um bom website é www.oldmasterprint.com, especialmente a página “Early flemish landscape
from the sixteenth century”, http://www.oldmasterprint.com/xxd.htm
87 Boudewijn Bakker, “Levenspelgrimage of vrome wandeling? Claes Janszoon Visscher en zijn
serie ‘Plaisante Plaetsen’”, Oud Holland 107, 1 (1993): 97-116.
88 Ver, por exemplo, Reindert L. Falkenburg, “Landschapschilderkunst en doperse spiritualiteit in
de zeventiende eeuw – een connectie?” Doopsgezinde Bijdragen 16 (1990): 129-53.
89 H. Leefland, “Het landschap in boek en prent”, em Boudewijn Bakker, Nederland naar’t leven:
Landschapsprenten uit de Gouden Eeuw (Zwolle/Amsterdã: Waanders, 1993), 18-32.
90 Reindert L. Falkenburg, “Calvinism and the emergence of Dutch seventeenth-century landscape
art”, em Paul Corby Finney (org.), Seeing beyond the Word: Visual arts and the Calvinist tradition
(Grand Rapids, 1999), 364.
91 Isso é verdadeiro nos Estados Unidos, onde os Fundadores compartilhavam elementos das duas.
Nem todo movimento iluminista foi tão secular quanto o francês. Na Holanda havia mais
congruência.
92 Ver Carl C. Christensen, “The Reformation and the decline of German art”, em Central
European history 6 (1973): 207-32.
93 John Michael Montias, “Works of art in seventeenth-century Amsterdam: An analysis of
subjects and attributions”, em David Freedberg e Jan de Vries (orgs.), Art in history/History in art:
Studies in seventeenth-century Dutch culture (Santa Monica, CA: Oxford University Press, 1991),
Quadro 5.
94 Roger Chartier e Lydia G. Cochrane, On the edge of the cliff: History, language and practices,
Parallax: Re-visions of culture and society (Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1996), 40-
43. Ver também Roger Chartier, Forms and meanings: Texts, performances, and audiences from
codex to computer, New cultural studies (Filadélfia: University of Pennsylvania Press, 1995), 83-87.
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C
4
Contribuições de Calvino para a teoria e
a política econômicas
Timothy D. Terrell
omo teólogo e conselheiro estatutário da cidade de Genebra, João
Calvino fez contribuições tão vitais para a Reforma protestante que
dificilmente podemos conceber a Reforma sem a sua obra. Também nos
será difícil imaginar o desenvolvimento da civilização ocidental orientada
para o mercado sem Calvino e seus seguidores se apreciarmos devidamente
o seu impacto na teoria econômica e no governo. A obra teológica de
Calvino era eminentemente prática, não apenas pelo seu incentivo à piedade
pessoal, mas também nos modos como informava a participação do cristão
em questões públicas. Como Alister McGrath ressaltou, “A visão de
Calvino da fé cristã ia muito além da piedade de uma fé privatizada ou dos
enigmas cerebrais de uma teologia intelectualizada. Para Calvino, a teologia
oferecia uma estrutura para o envolvimento com a vida pública”.1 Embora
as ideias de Calvino sejam frequentemente associadas a uma “tirania do
puritanismo”2 (nas palavras de Max Weber) ou a uma teocracia sisuda e
arrogante, na verdade o pensamento de Calvino contribuiu para a supressão
da tirania. E, embora Calvino certamente tenha mantido alguns dos erros do
seu tempo, sua obra aprimorou a teoria econômica e o governo, e levou a
defesas morais duradouras da liberdade.
Durante toda a sua vida, Calvino teve interesse em questões políticas,
como ressaltou Douglas Kelly.3 No entanto, o objetivo deste ensaio não é
elucidar as ideias de Calvino sobre os propósitos gerais do governo civil ou
a estruturação pela qual um governo cristão deve operar. Em vez disso, o
objetivo aqui é mostrar como o pensamento de Calvino transformou o
pensamento econômico e a política econômica. É evidente que há uma
probabilidade de haver substanciais áreas de sobreposição com a filosofia
política. Em particular, as ideias de Calvino sobre governo incluíam
limitações sobre a autoridade do magistrado civil, as quais tendiam a
aumentar a liberdade econômica. A discussão de outras questões políticas,
como o relacionamento entre as autoridades civis e eclesiásticas, será
deixada para outros.4
Há várias áreas nas quais a obra de Calvino aprimorou a defesa daliberdade econômica. Primeira, a ética calvinista de trabalho forneceu uma
defesa das ocupações “seculares”, para que, nas sociedades influenciadas
pelo calvinismo, os comerciantes e industriais fossem menos comumente
vistos como cristãos de segunda classe. Segunda, as ideias de Calvino sobre
juros e usura marcaram um avanço importante no liberalismo, em oposição
às restrições inconsistentes e o pensamento geralmente confuso da época.
Terceira, o pensamento calvinista – talvez devido a conflitos com
governantes católicos – começou a reivindicar ao magistrado civil limites
que forneceram uma base ética para uma política econômica de laissez-
faire.
O espírito do capitalismo e a ética calvinista
Max Weber observa a frequente correlação entre o calvinismo e o sucesso
nos negócios:
Um olhar sobre as estatísticas ocupacionais de qualquer país de composição religiosa mista
traz à tona, com notável frequência […] o fato de que os líderes de negócios e proprietários
de capital, bem como as categorias mais elevadas de mão de obra qualificada, e mais ainda
o pessoal mais técnica e comercialmente treinado dos empreendimentos modernos, são, em
sua esmagadora maioria, protestantes.5
É característico e, em certo sentido, comum que, nas igrejas huguenotes francesas,
monges e homens de negócios (comerciantes, artesãos) eram particularmente numerosos
entre os prosélitos, especialmente na época da perseguição. Até mesmo os espanhóis sabiam
que a heresia (isto é, o calvinismo dos holandeses) promovia o comércio, e isso coincide
com as opiniões expressadas por Sir William Petty na sua discussão sobre os motivos do
desenvolvimento do capitalismo na Holanda. Gothein denomina corretamente a diáspora
calvinista de sementeira da economia capitalista.6
Uma pesquisa informal da história econômica fornece vários exemplos,
não necessariamente confiáveis, de relativo sucesso em países com cenário
calvinista. A Grã-Bretanha predominantemente calvinista foi bem-sucedida
em termos econômicos, juntamente com muitas ex-colônias (p. ex., os
Estados Unidos, a Austrália, a Nova Zelândia e Hong Kong). Em contraste,
os católicos da Espanha e de Portugal não só ficaram atrás da Grã-Bretanha,
mas deixaram um legado colonial geralmente não estelar (p. ex., o México,
as Américas Central e do Sul, as Filipinas e Macau). É difícil resistir às
comparações, embora os críticos tenham, há muito tempo, atacado essas
conexões empíricas.
Em essência, o argumento de Weber é que o protestantismo levou ao
capitalismo ao elevar a mordomia ascética a uma virtude para todos os
cristãos em seus chamados, não apenas os monges. A ideia do chamado
levou os calvinistas a serem menos de outro mundo e mais focados neste
mundo, em comparação com outras religiões e seitas. Como escreveu
Anthony Giddens, isso “projeta um comportamento religioso no mundo do
dia a dia e contrasta com o ideal católico da vida monástica, cujo objetivo é
transcender as exigências da existência mundana”.7 Dizendo de outra
maneira, o homem que é “tão focado no céu que se torna inútil na terra” não
seria um calvinista. Weber estava bem ciente de que nenhum fator isolado
poderia explicar o florescimento de economias de mercado em algumas
nações e a estagnação de outras nações. Todavia, os outros fatores que
podem ajudar a explicar o surgimento do capitalismo são de fato poderosos.
Os críticos de Weber argumentaram que ele subestimava as contribuições
católicas para o surgimento do capitalismo. Inovação financeira, um
“espírito capitalista” e correspondente sucesso nos negócios seriam
encontrados em áreas católico-romanas, como o norte da Itália, enquanto
uma das áreas mais rigorosamente calvinistas do mundo, a Escócia,
manteve-se relativamente subdesenvolvida.8 Houve também os calvinistas
financeiramente bem-sucedidos que eram bons mordomos, mas não ascetas
– eles não se importavam com o consumo abundante.
Contra Weber, Murray Rothbard acreditava que a ideia de Calvino do
chamado não resultou no capitalismo, mas pode ter afetado o pensamento
econômico ao glorificar o trabalho. A Grã-Bretanha calvinista produziu
Adam Smith, um presbiteriano liberal que, depois de David Hume, chegou
perto de uma teoria do valor-trabalho:
O valor de qualquer bem […] para a pessoa que o possui, e que significa ela mesma não o
usar ou consumir, mas trocá-lo por outros bens, é igual à quantidade de trabalho que a
capacita a comprá-lo ou controlá-lo. Portanto, o trabalho é a verdadeira medida do valor de
troca de todos os bens.9
Mais tarde, Karl Marx incorporaria à sua própria obra o erro da teoria do
valor-trabalho, com consequências desastrosas. Marx argumentou que, se o
trabalho era a fonte de toda a riqueza, então, se o proprietário de capital
extraísse qualquer parte do valor da produção para si mesmo, aquele valor
só poderia ter sido injustamente extraído do trabalhador. As obras de
economistas como Jean-Baptiste Say, Jules Dupuit, William Stanley Jevons
e Leon Walras finalmente empurraram o pensamento econômico em direção
à teoria da utilidade, como substituto para a teoria do valor-trabalho. Com a
teoria da utilidade, o valor de qualquer bem ou serviço pode variar de
pessoa para pessoa, dependendo de quão útil ele é para o indivíduo.
Portanto, o valor não é algo a ser descoberto, mas sim imputado ao bem ou
serviço pelo avaliador. Além disso, pelo fato de compradores e vendedores
poderem atribuir valores diferentes ao mesmo bem, torna-se possível a troca
mutuamente benéfica. Isso já estava claro no tempo de Aristóteles,10 embora
tenha levado mais de dois mil anos para que o pensamento econômico
adotasse plenamente a ideia.
Ao sustentar que o calvinismo incentiva uma teoria do valor-trabalho,
Rothbard segue essencialmente Emil Kauder:
Calvino e seus discípulos colocaram o trabalho no centro de sua teologia social. […] Todo o
trabalho desta sociedade é investido de aprovação divina. Qualquer filósofo social ou
economista exposto ao calvinismo será tentado a conferir ao trabalho uma posição elevada
no seu tratado social ou econômico, não havendo melhor modo de enaltecer o trabalho do
que combinando o trabalho com a teoria do valor-trabalho, tradicionalmente a própria base
de um sistema econômico. Assim, o valor torna-se valor do trabalho, que não é meramente
um instrumento científico para mensurar relações de troca, mas também o vínculo espiritual
que combina a Vontade Divina com a vida econômica do dia a dia.11
Conquanto elogie o trabalho diligente e intencional, o calvinismo pode
ter incentivado a acumulação de capital. Weber observou a ênfase calvinista
no sucesso na vocação de uma pessoa, bem como a não ênfase no consumo.
Incentivar a produção numa vocação e o ascetismo no consumo leva a
vários problemas, o que afetou negativamente o pensamento de Adam
Smith e intrigou Weber. Claramente, tudo que é produzido e não consumido
imediatamente é poupado. A poupança em si tornou-se importante para um
erro em Smith. Como Edwin West escreveu, “Como um prudente mordomo
da propriedade de um aristocrata escocês, Smith mal conseguia disfarçar
uma forte preferência pessoal por muita frugalidade privada e, portanto, por
‘trabalho produtivo’, no interesse da acumulação para o futuro pela
nação”.12
Essa poupança leva inevitavelmente à acumulação de capital. Uma
sociedade que possui quantidades relativamente grandes de capital irá
tornar-se mais especializada na produção. Os trabalhadores necessitarão de
mercados maiores para praticarem seus comércios especializados, e os
produtores de bens de capital e de consumo especializados necessitarão de
populações maiores para as quais vender os seus produtos. Como Adam
Smith ressaltou, a divisão do trabalho é limitada pela extensão do mercado.
Na medida em que o capital aumenta, do mesmo modo aumenta também a
pressão por um mercado maior.
Na medida em que incentivava a acumulação de capital, o calvinismo
também geraria um grupo de proprietários de capital interessados na
preservação dos direitos de propriedade sobre o seu capital. Esse grupo de
interesse em desenvolvimentonão só incentivaria modificações na lei civil
para proteger essa propriedade contra depredações por ladrões e pelo
Estado, mas pressionaria o próprio protestantismo a enfatizar os direitos de
propriedade individual em oposição ao coletivismo coercitivo. É esse
último ponto que H. M. Robertson está argumentando ao escrever que a
“doutrina do ‘chamado’ não produziu um espírito de capitalismo. O espírito
de capitalismo foi responsável por uma gradual modificação e desgaste da
doutrina puritana”.13 É possível que o capitalismo tenha reforçado o
calvinismo tanto quanto o calvinismo reforçou o capitalismo.
Ekelund e Hebert ressaltam que até mesmo a forma protestante de culto
e a rejeição do calendário católico podem ter impactado o crescimento
econômico:
Geralmente […] os rituais protestantes eram mais simples, com menos pompa e ostentação,
e as igrejas eram menos elaboradas. Muito menos recursos eram dedicados às igrejas
protestantes em comparação com as grandes catedrais católico-romanas da Europa. Além
disso, é totalmente possível que a rejeição, pelo protestantismo, das numerosas festas
sancionadas pela Igreja Católica tenha levado a um aumento do número de dias úteis,
aumentando com isso o fator de trabalho sob os regimes protestantes. Adicionalmente, o
sistema de “indulgências por peregrinações” a igrejas e lugares sagrados diminuiu
drasticamente nos países protestantes, um fator que também pode ter contribuído para o
crescimento econômico.14
Inadvertidamente, Calvino pode ter fomentado a liberdade econômica de
outro modo muito mais amplo. Ao promover a Reforma, Calvino deu
impulso a um concorrente à Igreja Católica Romana. Ernst Troeltsch, que
argumentou que a Reforma protestante havia perpetuado um “espírito
medieval” por tentar resistir à modernização, afirmou que a Reforma havia,
intencionalmente, modernizado a Europa. As influências modernizadoras
foram “principalmente efeitos indiretos e inconscientemente produzidos
[…] até mesmo em influências secundárias acidentais e, novamente, em
influências produzidas contra a sua vontade”.15 Robert Nelson, traçando
paralelos entre o puritanismo calvinista ascético e o moderno movimento
ambientalista, observa que, de todos os efeitos do calvinismo,
um dos impactos mais importantes foi simplesmente a eliminação da autoridade da Igreja
Católica Romana sobre vastas áreas da Europa, abrindo assim uma nova latitude para a
experimentação em todos os tipos de questões sociais e intelectuais. É muito provável que
Calvino tenha se sentido perturbado – horrorizado pode ser a melhor palavra – por muitas
das características da modernidade que, hoje, são parcialmente atribuídas ao legado do
calvinismo. Nessa aversão pelos desenvolvimentos modernos, Calvino agora conseguiria
encontrar alguns novos compatriotas surpreendentes – um número aparentemente crescente
de pessoas que acreditam que as Américas pré-colombianas, outras sociedades primitivas
em todo o mundo, os relacionamentos “naturais” entre as criaturas do mundo animal e,
aparentemente, virtualmente qualquer existência pré-moderna e/ou animal possui uma
reputação moral superior à da nossa civilização atual.16
É inimaginável que Calvino tivesse atribuído uma superioridade moral a
sociedades primitivas pagãs; certamente, Calvino não era primitivista.
Assim, os paralelos traçados por Nelson entre o ascetismo calvinista e as
sociedades não desenvolvidas são realmente fracos. Contudo, é irônico que
o ascetismo calvinista possa ter, inadvertidamente, promovido a
característica de consumo de luxo de tantas nações capitalistas.
Calvino sobre a atividade mercantil
Calvino tinha reservas quanto à atividade mercantil. Seus escritos
evidenciam não pouca vituperação aos empresários. Gary North afirma que
Calvino “tinha pouco respeito pelos empresários em geral”, a quem ele
chamava “’aqueles ladrões’ que esperam por uma catástrofe para
aumentarem os preços dos seus produtos”.17 No entanto, embora possa ter
tido pouca consideração pelo egoísmo do empresário, Calvino estava longe
de condenar essa atividade como vocação. De fato, em comparação com
muitos do seu tempo, Calvino era pouco hostil em relação aos
comerciantes. Como observa Stone,
o mundo real de Calvino envolvia lojistas, comerciantes e artesãos, bem como clérigos e
acadêmicos. Ele era relativamente desprovido da aversão medieval pelo comércio, tanto
quanto da preferência de Lutero pela vida pastoral. Seu mundo era o do comércio urbano e
ele o apoiava. A troca de dinheiro e bens era apoiada. A instituição do dinheiro em si não
era suspeita. Deus havia provido a instituição para o bem da humanidade.18
Seria também difícil explicar o notável aumento do número de
comerciantes trabalhando na Genebra de Calvino se as políticas calvinistas
em relação aos comerciantes fossem hostis. E. William Monter encontra um
aumento dos comerciantes, de cinquenta em 1536 para 180 nos últimos
anos da década de 1550.19
A liberdade de consciência levou Calvino a defender que as partes de
um contrato deviam ter a liberdade de determinarem os termos do seu
acordo. Como escreve North: “Calvino […] favoreceu o princípio geral da
aliança; homens que celebram alianças devem ser limitados por
consciências não restringidas por inumeráveis pronunciamentos legais”.20
North também observa: “Embora não completamente autônoma e soberana,
a consciência do homem recebeu um novo papel a desempenhar na
administração da propriedade. […] A consciência tinha mais
responsabilidade e menos diretrizes para orientar a ação humana”.21
Calvino compreendia alguns dos fundamentos de economia que
permitiam que os negócios prosperassem. McGrath explica:
Embora não tenha desenvolvido uma ‘teoria econômica’ em qualquer sentido abrangente do
termo, ele parece ter sido plenamente consciente de princípios econômicos básicos,
reconhecendo a natureza produtiva do capital e do trabalho humano. Ele elogiou a divisão
do trabalho pelos seus benefícios econômicos e o modo em que ele enfatiza a
interdependência humana e a existência social. O direito das pessoas de possuírem
propriedade, negado pela ala radical da Reforma, era apoiado por Calvino.22
A defesa da propriedade privada por Calvino (em oposição aos
anabatistas do seu tempo, que apoiavam a abolição da propriedade privada)
é vista na seguinte seleção de Four last books of the Pentateuch [Os quatro
últimos livros do Pentateuco], Êxodo 16.17:
Isso porque, para a preservação da sociedade humana, é necessário que cada um possua o
que é seu; que alguns adquiram propriedade por compra, que para outros isso deva vir por
herança, para outros pelo título de apresentação; que cada um aumente a sua parte
proporcionalmente à sua diligência, força física ou outras qualificações. Enfim, o governo
político exige que cada pessoa desfrute do que lhe pertence.23
Mais adiante no mesmo capítulo, Calvino indica que a transferência de
riqueza para benefício dos pobres deve permanecer um ato voluntário, não
coagido por pessoa alguma.
Também Paulo faz a distinção com sabedoria, ao ordenar que deve haver uma igualdade,
não decorrente de um uso promíscuo e confuso da propriedade, mas pelos ricos de maneira
espontânea e generosa aliviando as necessidades dos seus irmãos, e não com tristeza ou por
necessidade.24
Aparentemente, Calvino tinha uma compreensão pouco clara de algo
que Adam Smith viria a ressaltar dois séculos e meio depois – que um bem
não intencional poderia advir de uma atividade mal motivada. Ele observou:
“Algo que não é nem abençoado nem desejável em si pode tornar-se algo
bom para o devoto”.25 Dessa maneira, até mesmo o comerciante
impulsionado por egoísmo poderia produzir algo bom.
McGrath observa: “Uma cultura de livre empresa prosperou em
Genebra, em grande parte graças à atitude benigna de Calvino para com a
economia e as finanças”.26 Contudo, seria um erro classificar Calvino como
um defensor da política econômica de laissez-faire. Calvino pode ter
reconhecido a legitimidade dos negócios em geral, mas via um papel tão
substancial para a regulação econômica,que não pode ser considerado um
defensor incondicional dos mercados livres.27 O desenvolvimento do
pensamento calvinista em séculos posteriores pode ter fornecido apoio a
uma maior liberdade econômica, mas o próprio Calvino viu muitas razões
para a intervenção dos governos na economia. O governo municipal de
Genebra apoiava um hospital (que também servia como orfanato, agência
de bem-estar social e serviço de saúde pública), fornecia educação pública,
regulava os preços e limitava os preços das gráficas (evidentemente, para o
benefício das publicações da própria igreja).28 Jeannine Olson observa que o
bem-estar público em Genebra foi, em grande parte, coincidente com as
transformações semelhantes ocorridas em outros lugares da Europa:
Em Genebra, o bem-estar social se assemelhava à organização de bem-estar de muitas
outras cidades do início dos tempos modernos da Europa em sua conversão dos sistemas de
bem-estar urbano de instituições descentralizadas geridas por ordens religiosas para
sistemas centralizados controlados por conselhos municipais. Nas cidades que se tornaram
protestantes, como Genebra, essa conversão frequentemente coincidia com a Reforma local;
era necessário substituir as funções do bem-estar das ordens religiosas católico-romanas.
Assim, quando Genebra se tornou protestante, as instituições de bem-estar da cidade foram
transferidas para o controle do conselho municipal e centradas no hospital da cidade. A
criação da Bourse française representou como que um afastamento dessa tendência à
centralização, porque a Bourse era supervisionada por diáconos e pastores e financiada
independentemente do conselho municipal.29
Stone observa que o intervencionismo calvinista teve amplo alcance.
“Além do sistema de bem-estar e educação, a obra de Calvino e dos
pastores foi buscar sugestões para os corrimãos e guarda-corpos para
proteger as crianças em escadas e varandas. Lareiras e chaminés foram
regulamentadas e foram feitos esforços para limpar a cidade e reparar as
ruas.” Houve também “uma regulamentação estrita proibindo o
recrutamento de mercenários de Genebra”.30
Vemos que a moderna esquerda cristã não teve de procurar muito para
encontrar apoio na obra de Calvino. De fato, há muito no pensamento
econômico do tempo de Calvino que pode aquecer o coração de um
intervencionista. Calvino não era diferente de muitos acadêmicos e de
alguns outros reformadores, como Martinho Lutero. Sobre o ensaio de
Lutero “Comércio e usura”, de 1524, Gary North comenta:
Sua perspectiva é medieval. Como os comentaristas escolásticos que o precederam,
especialmente os dos séculos 12 e 13, ele se opunha à liberdade quantgo aos preços. Os
comerciantes não podem seguir a regra de comprar barato e vender caro. “Numa base
assim, o comércio pode ser nada mais do que assaltar e roubar a propriedade alheia. […] A
regra não deve ser ‘eu posso vender as minhas mercadorias tão caro quanto puder ou
desejar’, e sim ‘eu posso vender as minhas mercadorias como devo, ou seja, como é certo e
justo’.” O problema para a análise de Lutero, como havia acontecido aos acadêmicos e
canonistas escolásticos, dizia respeito aos limites éticos da equidade. Quão caro o
comerciante pode vender?31
Cinco anos depois, no Catecismo Maior, Lutero escreveria sobre o
mercado como um “covil de ladrões”, em que “todos fazem uso do mercado
em sua própria maneira voluntariosa, orgulhosos e desafiadores, como se
tivessem o direito normal de vender a um preço tão alto quanto desejarem e
ninguém pudesse interferir”.32 O pensamento econômico de Lutero era
confuso, e muitos dos outros pensadores econômicos da época não eram
muito melhores. Calvino não promoveu o pensamento econômico por uma
revolucionária eliminação de tudo que era antibíblico ou logicamente
insustentável sobre a economia medieval. Ele absorveu e refletiu o
ambiente do pensamento social cristão do século 16. É o substancial fardo
de erro que permanece em Calvino que dá à moderna esquerda calvinista
uma ligação justificável com a política social de Calvino.33
Parte disso pode ser visto nos comentários de Calvino sobre o que hoje
seria chamado de um “salário mínimo”. Em Old Testament harmony [A
harmonia da lei], Calvino escreveu:
Recomenda-se humanidade a todos nós, para não acontecer de, enquanto os pobres
trabalham a nosso serviço, abusarmos deles arrogantemente como se fossem nossos
escravos ou sermos iliberais e mesquinhos em relação a eles, uma vez que nada pode ser
mais injusto do que, tendo nos servido, eles não tenham, no mínimo, o suficiente para viver
frugalmente.34
No entanto, Calvino quase chega a transformar essa exigência moral em
obrigação legal. Segundo François Dermange, Calvino “faz distinção
explícita entre essa interpretação religiosa da justiça e a justiça legal e
política. Deus convoca as consciências a comparecerem perante o seu
tribunal, não perante um juiz terreno; portanto, é preciso dizer que essa lei é
‘espiritual’”.35 Essa distinção está faltando em muitos estadistas moralmente
preocupados da atualidade, que frequentemente agem como se, caso fosse
prático, qualquer exigência moral devesse ser também uma exigência legal.
Isso é um non sequitur* com consequências terríveis.
Os cristãos de hoje com tendências esquerdistas costumam cometer um
duplo erro na sua leitura de passagens bíblicas sobre a justiça. Primeiro, a
justiça da distribuição de bens é determinada pela observação dos
resultados em vez dos processos. Riqueza pode ser obtida sem coerção por
trabalho voluntário e contrato, mas a distribuição é considerada injusta se
for desigual. Segundo, as injustiças cometidas pelo Estado no processo de
redistribuição dessa riqueza são consideradas menos problemáticas do que
as injustiças iniciais do mercado.
Como escreve Ronald Stone,
O bem-estar das pessoas […] é uma clara responsabilidade do governo, como Calvino
entendia. A tendência ao controle governamental dos negócios está clara nos escritos e
ações de Calvino. As tendências de muitos calvinistas mais recentes ao apoio à economia de
laissez-faire e ao darwinismo social não parecem encontrar base em Calvino. Certamente, a
crueldade do darwinismo social desregrado não é consistentemente compatível com os
ensinamentos de Calvino.36
É evidente que o socialismo também não seria “consistentemente
compatível com os ensinamentos de Calvino”. Calvino era incoerente
quanto às aplicações da sua teologia, particularmente se seu pensamento for
examinado ao longo de várias décadas. Na prática, embora o hospital
público de Genebra fosse financiado pelo governo municipal, houve
importantes alternativas baseadas na igreja que revelavam a grande estima
de Calvino pela caridade não governamental. Por exemplo, a Bourse
française, que cuidava de refugiados, pobres, deficientes ou órfãos de
Genebra, era uma organização privadamente financiada.37 Além disso,
excetuando-se os impostos cobrados de todos, Calvino se opunha à retirada
obrigatória de riqueza dos ricos para dar aos pobres.
Calvino […] nos lembra de que a caridade não dispensa a justiça. Seu propósito é condenar
juízes que querem “afastar-se da equidade em favor dos pobres”, em nome do evangelho, e
“seguir uma ideia tola de misericórdia” favorecendo os pobres. Em nome da justiça, não
deve haver qualquer questão sobre prover as necessidades dos destituídos causando danos
aos ricos. O reformador concorda com Paulo: enquanto os ricos têm o dever de dar esmolas,
não se deve obrigá-los a compartilhar as suas posses. Qualquer que seja o mérito de
caridade e a preocupação de libertar os pobres da tirania, ninguém deve se desviar da
justiça, nem um fio de cabelo sequer.38
A ligação que Stone faz do darwinismo às políticas de laissez-faire é do
mesmo modo injusta. Políticas que permitem que recursos sejam alocados
segundo acordos voluntários no mercado de trabalho tendem a resultar em
recursos a serem destinados aos seus usos mais valorizados, pelo menos
segundo a informação sobre valor disponibilizada por meio dos preços de
mercado. Políticas que substituema alocação de mercado por coerção,
como faz toda redistribuição administrada pelo Estado, tendem a resultar na
destinação de recursos para os usos mais valorizados pelos magistrados
civis encarregados da distribuição, sem o benefício da informação sobre
preços. Se há uma competição de estilo darwinista na alocação de recursos,
a competição para agradar os clientes pela finalidade de lucro (para que os
produtores mais eficientes sobrevivam) é meramente substituída pela
competição para obter poder político (para que os intermediários de riqueza
mais eficientes sobrevivam). A competição darwiniana não desaparece
quando poder coercitivo é concedido ao Estado, independentemente de
quais possam ser as disposições constitucionais para a atribuição desse
poder.
Processos democráticos para atribuir poder coercitivo a representantes
políticos não garantem que os recursos serão alocados com mais justiça do
que o processo de mercado. O problema com o darwinismo social não é que
as pessoas mais produtivas tendam a acumular uma maior amplitude de
autoridade sobre os recursos. Isso pode não ser mais censurável do que,
digamos, o darwinismo das ideias, no qual as melhores ideias são ouvidas e
postas em prática. Em vez disso, o problema com o darwinismo social é que
a autoridade sobre os recursos não é um fim em si mesma. A boa
administração inclui atender a necessidades que não são bem comunicadas
por meio de um sistema de preços de mercado. A pessoa tem uma condição
para ser generosa para com os pobres, por exemplo. Isso não implica o
emprego de poder coercitivo para extrair riqueza daqueles que são
relutantes a serem tão generosos quanto os detentores do poder acreditam
que eles deveriam ser.
Nisso, os estudiosos modernos que encontram coerência entre Calvino e
as políticas de livre mercado têm embasamento em Calvino. Calvino estava
ciente (especialmente depois de ter testemunhado a perseguição de
protestantes patrocinada pelo Estado) da necessidade de limites sobre o
magistrado civil. Esses limites voltarão a ser analisados mais adiante neste
capítulo.
Calvino e os calvinistas sobre a usura
Calvino promoveu um avanço duradouro no pensamento econômico ao
criticar as proibições medievais à usura. Certamente Calvino não foi o
primeiro a atacar a doutrina da usura e não foi consistente ao fazê-lo, mas
contribuiu para o fim de uma proibição antibíblica e socialmente destrutiva.
Num período em que as restrições quanto às exigências de juros estavam
sendo corroídas por exceções e qualificações, Calvino apelou à consciência,
afirmando que a autoridade civil não poderia restringir os termos de um
contrato de empréstimo.
Em decorrência do seu contato com o mundo dos negócios, Calvino
sabia o suficiente para reconhecer o absurdo do argumento medieval de que
o dinheiro era “estéril”. A esterilidade do dinheiro significava que o
dinheiro em si não poderia gerar um retorno, de modo que um pagamento
sobre o uso de dinheiro colocava necessariamente em situação pior o
tomador do empréstimo. Porém, diferentemente de Lutero antes dele,
Calvino via que ter o uso do dinheiro durante algum tempo daria ao
tomador a possibilidade de comprar e vender com lucro antes de devolver o
dinheiro. Uma vez que esse lucro era possível, o dinheiro não poderia ser
estéril. Calvino escreveu: “O lucro não está no próprio dinheiro, mas no
retorno que provém do seu uso”.39
Rejeitando a ideia de que as restrições sobre os juros presentes na lei
mosaica eram aplicáveis em detalhes na atualidade,40 Calvino argumentou
apenas que os juros não deveriam ser cobrados sobre os empréstimos feitos
a pessoas pobres.41 É claro que, com a forte visão de Calvino sobre a
autoridade do Estado, qualquer lei civil que restringisse o pagamento de
juros precisaria ser cumprida. Assim como Lutero, a Genebra de Calvino
limitava as taxas de juros a 5 por cento. Algum tempo depois, o máximo foi
aumentado para 6,67 por cento.42
Calvino foi incoerente. Se, exceto no caso de empréstimos para os
pobres, o pagamento de juros era legítimo, Calvino não deveria ter se
oposto a alguém ser um agiota profissional. Contudo, ele opôs-se. Caberia a
calvinistas posteriores solucionar essa incoerência. O calvinista holandês
Claude Saumaise, também conhecido como Claudius Salmasius (1588-
1653), justificou não apenas a agiotagem profissional, mas também os
empréstimos com juros a pessoas pobres. Saumaise viu que ter mais agiotas
significava maior concorrência e, assim, taxas mais baixas. Portanto, era
lógico que a existência de mais agiotas profissionais seria mais vantajosa
para os pobres.43 Em sua maneira incisiva, Saumaise escreveu: “Prefiro ser
chamado usurário a ser alfaiate”.44
O Antigo Testamento proibia somente os juros cobrados a compatriotas
judeus; mesmo assim, aparentemente, para empréstimos caritativos (ver, p.
ex., Lv 25.35-37); assim, muitas das restrições medievais que Calvino teria
derrubado não tinham, de qualquer modo, base na lei divina. Porém, ao
impor limites máximos às taxas de juros, Calvino (assim como Lutero)
estava transcendendo a lei mosaica. Calvino havia insistido em que os
credores usassem a Bíblia como um guia para determinar o que é “certo e
justo” no tocante a taxas de juros, negligenciando o que deveria ter sido
óbvio para um estudioso da Bíblia como ele – que a Bíblia nada diz sobre
qual taxa é certa ou justa. Os juros são permitidos ou proibidos; a usura,
corretamente definida, é a cobrança de juros de qualquer valor nos casos
em que é proibida. O Antigo Testamento nunca impõe um limite às taxas de
juros.
Estudiosos anteriores, em grande parte na tradição escolástica católico-
romana, chegaram essencialmente às mesmas visões de Calvino. Conrad
Summenhart (1465-1511) defendeu, em 1499, um aumento drástico do
número de exceções à proibição básica da usura. Porém, foi útil Calvino ter
rejeitado a proibição formal. Murray Rothbard, não amigo do calvinismo,
elogiou Calvino por, pelo menos, prescindir da proibição eclesiástica sobre
os juros.
O resultado estranho foi que, ao restringir a sua explícita doutrina pró-usura com a
qualificação, na prática Calvino convergiu para os pontos de vista de acadêmicos como
Biel, Summenhart, Cajetan e Eck. Calvino começou com uma vasta defesa teórica da
cobrança de juros e, então, restringiu-a com qualificações; os acadêmicos liberais
começavam com a proibição da usura e, depois, a qualificavam. Porém, embora na prática
os dois grupos convergissem e os acadêmicos, ao descobrir e elaborar sobre as exceções à
proibição da usura, tivessem sido teoricamente mais sofisticados e produtivos, a ousada
ruptura de Calvino com a proibição formal foi um grande avanço libertador no pensamento
e na prática ocidentais. Isso também transferiu da igreja ou do Estado para a consciência da
pessoa a responsabilidade pela aplicação dos ensinos a respeito da usura. Como Tawney
coloca a questão, “A característica importante na sua discussão [de Calvino] da questão é
que ele assume o crédito como sendo um incidente normal e inevitável na vida de uma
sociedade”.45
O calvinismo e os limites ao magistrado civil
A doutrina calvinista da depravação total aplicava-se igualmente aos
cidadãos e ao magistrado civil, e levava à conclusão – se não com muita
coerência no próprio Calvino, então finalmente nos seus seguidores – de
que o poder do magistrado civil deve ser cuidadosamente circunscrito. Logo
no início, Calvino se atinha à visão de que o rei estava acima da lei, a
doutrina do princeps legibus solutus est. Todavia, Calvino gradualmente
mudou seu pensamento. Embora fosse atraído pela ideia de um magistrado
civil esclarecido com poder substancial, Calvino tinha suficiente suspeita do
caráter dos funcionários governamentais para recomendar uma separação de
poderes. Isso estava evidente já nas Institutas de 1536 (a edição final citada
é a de 1559) e, em 1543, na sua reforma cívica que exigia a concordância de
dois conselhos locais antes que uma lei pudesse ser sancionada.46 Nas
Institutas, Calvino escreveu:
Não vou negar que a aristocracia,ou um sistema composto por aristocracia e democracia,
supera de longe todos os outros, não por si mesmo, mas porque é muito raro os reis se
controlarem de tal maneira que a sua vontade nunca discorde do que é justo e certo; ou que
eles tenham sido dotados de tal enorme entusiasmo e prudência, que cada um saiba quanto é
o suficiente. Portanto, o erro ou o defeito dos homens faz com que, para muitos, seja mais
seguro e mais suportável exercer o governo de modo a poderem ajudar uns aos outros,
ensinar e admoestar uns aos outros; e, se alguém afirmar-se injustamente, poderá haver
vários censores e mestres para conter sua obstinação.47
Como Calvino pregou em 1562, “O orgulho cega [os príncipes] tão
totalmente, que eles pensam que devem ser colocados no nível de Deus”.48
Este provérbio tem sido usado por tiranos há muito tempo: “O que importa é a vontade, não
a razão”. Em outras palavras, eles não se consideram sujeitos à lei alguma. […]
Os governantes julgam que tudo é legítimo para eles e não se consideram sujeitos à lei
de Deus, nem consideram que a sua adoração diz respeito a eles. Nisso eles estão
terrivelmente enganados. […] Embora o poder dos príncipes terrenos seja grande neste
mundo, ainda assim eles precisam perceber que são ministros e servos de Deus e do povo.49
Nessa época, Calvino era atraído pela ideia de um magistrado civil
esclarecido seguindo a regra da lei. Em 1561, Calvino defendeu um estilo
republicano de governo, citando Deuteronômio 1 como apoio.50 Contudo,
apesar de sua inclinação à eleição popular de funcionários públicos (não a
ponto de rejeitar a monarquia), Calvino tinha uma visão sombria da
capacidade de homens comuns, não políticos, sequer pensarem sobre
questões constitucionais, escrevendo: “Obviamente, seria um passatempo
inútil para os homens da vida privada, que são desqualificados para
deliberar sobre a organização de qualquer comunidade, debater sobre qual
seria o melhor tipo de governo para o lugar onde vivem”.51 Além disso,
Calvino acreditava que o simples fato de pensar em mudar a forma de
governo sob a qual se vivia era “tolo” e “prejudicial”.52
Calvino não era um revolucionário, tanto que ensinou a não resistência
ao governo, pelo menos por cidadãos individuais. Nas Institutas, ele
escreveu que “é nosso dever mostrar-nos conformes e obedientes a quem
quer que ele coloque sobre os lugares onde vivemos”,53 e no seu
Comentários sobre Romanos, culpou pela tirania as pessoas sujeitas a um
tirano: “Pois, uma vez que um príncipe perverso é o flagelo do Senhor para
punir os pecados do povo, lembremo-nos de que acontece por culpa nossa
essa excelente bênção de Deus se transformar em maldição”.54 No entanto,
Calvino não rejeitava a resistência por parte dos magistrados menores.
Estou falando o tempo todo de pessoas sem cargo. Porque, se houver agora algum
magistrado do povo, nomeado para conter a obstinação dos reis […] estou tão longe de
proibi-los de suportar, em conformidade com o seu dever, a feroz licenciosidade dos reis,
que, se eles fizerem vista grossa para reis que violentamente atacarem e agridirem as
pessoas comuns humildes, declaro que sua dissimulação envolve perfídia nefasta, porque
eles traem desonestamente a liberdade das pessoas, das quais eles sabem ter sido nomeados
protetores por ordenança de Deus.55
Além disso, os seguidores de Calvino tornaram-se extremamente
revolucionários, alguns até mesmo defendendo o assassinato de tiranos.56
Kelly escreve:
Calvino […] estava determinado a mostrar que os verdadeiros protestantes eram leais ao
magistrado civil e não eram, em sentido algum, revolucionários políticos. Esse desejo de
justificar outros evangélicos da acusação de radicalismo político é, sem dúvida, parte da
razão pela qual Calvino foi excepcionalmente conservador durante toda a sua vida ao se
opor fortemente a movimentos revolucionários contra maus governantes. […] Calvino
dissociou-se de maneira impaciente da posição mais radical de John Knox de resistência
civil, na Escócia, no final da década de 1550. Todavia, o pensamento de Calvino sofreu
alguma evolução quanto a esse aspecto na década de 1560, durante as guerras religiosas na
França.57
Em 1561, comentando sobre Daniel 6.22, Calvino escreve: “Porque os
príncipes terrenos deixam de lado o seu poder quando se levantam contra
Deus, sendo indignos de ser contados como parte da humanidade. Em vez
disso, devemos desafiá-los totalmente em vez de obedecer a eles”.58
Um dos seguidores mais revolucionários de Calvino, Philippe du Plessis
Mornay (1549-1623), acreditava que o propósito dos governos civis era
proteger os direitos naturais das pessoas. Isso incluía o fundamento de um
sistema econômico de livre mercado – o direito à propriedade privada.
Além disso, esse direito e outros não podiam ser totalmente alienados do
povo, pois este meramente delega a sua soberania e pode recuperá-la (via
magistrados inferiores) se o governante tornar-se tirânico.
A visão que Calvino tinha do papel limitado do magistrado civil, mesmo
com suas incoerências referentes a questões políticas específicas, pode ter
sido uma de suas contribuições mais importantes e duradouras.
Aparentemente, Calvino reconhecia alguns dos perigos inerentes ao
governo civil, mesmo ao defender esse governo contra seitas protestantes
revolucionárias. Na medida em que prescrevia salvaguardas contra esse
perigo inerente, como a separação de poderes, o republicanismo e a
autoridade inalienável de magistrados menores em relação aos magistrados
maiores, Calvino forneceu as bases para os baluartes institucionais da
sociedade ocidental contra o planejamento central.
No contexto do planejamento central ambientalmente orientado, E.
Calvin Beisner argumentou que esse tipo de planejamento contradiz outro
padrão moral cristão: evitar a soberba. Afirmar que um burocrata ou um
comitê de burocratas pode ter conhecimento suficiente para planejar uma
economia é reivindicar um dos atributos de Deus: a onisciência. Beisner
escreveu:
À luz da grande complexidade da sociedade humana e dos ecossistemas da terra, a
humildade aplicada à gestão ambiental deve levar-nos a hesitar consideravelmente diante da
noção de que sabemos o suficiente sobre eles para gerenciá-los (como oposto a fazer
cumprir as regras de justiça) – particularmente de que somos suficientemente confiantes em
nosso conhecimento para afirmar as nossas preferências de gestão em lugar das livres
escolhas daqueles que discordam de nós.59
Com seu ceticismo quanto à capacidade da razão humana de chegar a
uma solução “certa” para os problemas humanos, Calvino recomendava o
cumprimento da lei. A lei serve como um guia muito mais confiável para o
comportamento humano do que a nossa própria razão independente e,
quando se trata da lei bíblica, ela acrescenta a confiança da revelação
divina. Nossa própria natureza, totalmente depravada como é, precisa
submeter-se a uma sabedoria externa a nós mesmos. Nas Institutas, Calvino
nos lembra de que Paulo “referindo-se às duas Tábuas da Lei […] nos
ordena a nos despirmos da nossa própria natureza e negarmos tudo que a
nossa razão e a nossa vontade ditarem”.60
Em trecho anterior das Institutas, Calvino reconhece o poder humano da
razão, mas sustenta que ele é fortemente limitado:
Portanto, uma vez que a razão, pela qual o homem faz a distinção entre o bem e o mal, e
pela qual ele compreende e julga, é um dom natural, ela não poderia ser completamente
eliminada, mas foi parcialmente enfraquecida e parcialmente corrompida, de modo que suas
ruínas disformes aparecem. João fala com esse mesmo sentido: “A luz resplandece nas
trevas, e as trevas não prevaleceram contra ela” [Jo 1.5]. Nessas palavras, ambos os fatos
são claramente expressados. Primeiro, na natureza pervertida e degenerada do homem
algumas faíscas ainda brilham. Elas demonstram que ele é um ser racional, diferindo dos
animais irracionais por ser dotado de entendimento. Contudo, segundo, eles exibem essa luz
sufocada por densa ignorância, de modo que não pode se expressar eficazmente.
Demodo semelhante, a vontade, por ser inseparável da natureza do homem, não
pereceu, mas ficou tão ligada a maus desejos que não consegue esforçar-se pelo que é
certo.61
Então, por extensão, com base nos comentários de Calvino sobre o
altruísmo e a razão, nossa humildade deveria ampliar-se de maneira a
respeitar a sabedoria coletiva dos outros como incorporada na lei e nas
convenções, e ter o mais alto apreço pela lei de Deus. Afirmar a nossa
própria capacidade de raciocinar de maneira independente por meio de
problemas sociais (grande parte dos quais seria problemas econômicos, é
claro) seria estimar exageradamente as nossas próprias capacidades de
compreender as complexidades da sociedade humana e ditar o que é
melhor.
Calvino referiu-se ao que chamou instintos naturais e “razão manifesta”
no seu esforço para explicar a convergência das convenções sociais. Ele
encontrou evidências dessa sabedoria coletiva na própria existência de leis e
convenções duradouras, em vez de na capacidade da pessoa de reavaliar e
derrubar uma convenção obsoleta pela sua própria capacidade. Em relação
ao estudo de “governo, administração do lar,62 todas as habilidades
mecânicas e as artes liberais”, Calvino escreveu:
dado que o homem é, por natureza, um animal social, ele tende, por instinto natural, a nutrir
e preservar a sociedade. Consequentemente, observa-se na mente de todos os homens a
existência de impressões universais de certo tratamento justo e ordem civis. Disso decorre
não ser possível encontrar algum homem que não entenda que todo tipo de organização
humana precisa ser regulado por leis, e que não compreenda os princípios dessas leis. Daí
surge o invariável consentimento de todas as nações e dos indivíduos mortais no tocante às
leis. Isso se dá porque as suas sementes foram, sem professor ou legislador, implantadas em
todos os homens.63
Nesse caso, Calvino deliberadamente ignorou algumas importantes
diferenças entre os homens quanto à forma das leis, e da disposição de
outros para desconsiderarem essas leis. Todavia, mais importante aqui foi o
seu ceticismo quanto à capacidade dos homens de aprimorarem essas leis e
convenções com pura razão. Nas Institutas, ele escreveu:
Como os filósofos fixaram limites para o certo e o honrável, dos quais eles derivam os
direitos individuais e todas as virtudes, do mesmo modo também a Escritura não é
desprovida da sua própria ordem nessa questão, mas se atém a uma lindíssima dispensação,
muito mais certa do que todas as filosóficas. A única diferença é que, por serem homens
ambiciosos, eles se esforçaram diligentemente para atingir uma requintada clareza de ordem
para mostrar a agilidade de sua sagacidade. Porém, por ensinar sem afetação, o Espírito de
Deus não aderiu tão exata ou continuamente a um plano metódico; contudo, quando
estabelece um em qualquer lugar, ele sugere suficientemente que não deve ser
negligenciado por nós.64
Não se deve confiar na razão do homem isoladamente. Como Calvino
escreveu, “Pelo fato de a nossa lentidão precisar de muitos incentivos e
ajudas, será proveitoso estabelecer, a partir de várias passagens da Escritura,
um padrão para a condução da vida, para que aqueles que se arrependerem
sinceramente possam não errar em seu zelo”.65
Portanto, para Calvino, a razão não orientada por princípios bíblicos
mais elevados era propensa a erros. Zelo, ou boas intenções, não eliminava
a tendência ao erro. A ordem não devia ser alcançada pelo raciocínio dos
filósofos, mas por seguir a lei de Deus. Ele escreveu que a instrução bíblica
tem como um aspecto principal uma “regra […] que não nos deixa vagar
em nosso zelo pela justiça”.66 Assim, o calvinismo criou um
conservadorismo no tocante às questões sociais – tradição em vez de
novidade, dever em vez de comodismo, cumprimento de regras em vez de
julgamentos ad hoc. A vida do calvinista deve ser governada por deferência
à sabedoria dos outros e, mais especialmente, à lei de Deus. Assim, vemos
nas sociedades influenciadas pelo calvinismo várias instituições que
reconhecem a superioridade da convenção sobre a razão, por exemplo, uma
tradição judicial de stare decisis, exigindo no julgamento uma forte
consideração dos precedentes.
Assim, os escritos teológicos de Calvino sobre as limitações éticas e
intelectuais do homem têm profundas implicações para a economia, embora
ele não reconhecesse explicitamente muitas delas ou até mesmo
demonstrasse coerência em suas próprias conclusões sobre políticas. A
descentralização inata do conhecimento econômico desafia qualquer
tentativa de centralizar o controle informado.
Economias baseadas no mercado usam preços para condensar e
comunicar as informações dispersas entre bilhões de pessoas, a maioria das
quais é estranha entre si. Os preços representam um resumo das avaliações
do valor de diferentes recursos, bens e serviços. Num importante ensaio
publicado em 1945, o economista Friedrich A. Hayek observou que o
problema de comunicar informação relevante a qualquer planejador
econômico central é, talvez, insuperável, porque a informação mais
pertinente é, frequentemente, do tipo que não pode ser gravado e
transmitido a um órgão econômico central. Segundo Hayek, os economistas
têm procurado a melhor organização econômica: “se possuirmos todas as
informações relevantes, se pudermos ter como ponto de partida um
determinado sistema de preferências e se dominarmos o total conhecimento
dos meios disponíveis”.67 Hayek ressaltou que essa abordagem é
equivocada, porque ninguém jamais possui todas as informações relevantes
ou tem certeza de preferências individuais. Mesmo hoje, aqueles que
desejarem planejar a atividade econômica são incitados ao excesso de
confiança por grandes quantidades de estatísticas agregadas e torrentes de
outros dados. Os planejadores não percebem quão profundamente eles
limitam as suas próprias capacidades ao reprimirem os preços que
transmitem a informação mais importante. Embora Calvino não
reconhecesse todas as implicações de sua doutrina da depravação total, os
legisladores atuais que apreciam ideias de Calvino seriam céticos quanto à
capacidade que eles mesmos têm de organizar uma economia.
Conclusão
As melhores contribuições de Calvino à economia e à filosofia política
podem ter chegado até onde ele permaneceu mais próximo da sua área de
relativa especialização – a teologia. Sua incoerência e confusão pareciam
crescer à medida que ele se afastava dos seus fundamentos teológicos,
embora tenha dado um importante passo à frente nas suas reflexões a
respeito da usura. Todavia, em última análise a sua doutrina da depravação
total, a sua teologia do trabalho e o ataque à dicotomia secular/sagrado pode
ter tido maior importância do que os seus pontos de vista sobre questões
específicas de política econômica. Além disso, embora Calvino
(especialmente no início de sua vida) tenha mantido a uma posição
indefensável sobre a autoridade do magistrado civil, o desenvolvimento da
sua teologia levou a melhores resultados entre muitos dos seus seguidores.
A contribuição do calvinismo à segurança moral e legal dos direitos de
propriedade tem grande valor. Ao enfatizar o sucesso profissional e a
poupança, o calvinismo incentivou a acumulação de capital, que pode ter
levado a uma pressão por direitos de propriedade mais seguros. A
incoerência de Calvino quanto aos direitos de propriedade foi suficiente
para que os esquerdistas modernos possam encontrar na obra de Calvino
muita munição contra o livre mercado.
No entanto, a associação entre o calvinismo e os direitos de propriedade
não é totalmente um acidente de pressões de grupos de interesse. Ao
favorecer a liberdade cristã e a liberdade de consciência, Calvino eliminou
algumas das barreiras à liberdade de contrato. As objeções morais de
Calvino a alguns termos contratuais (p. ex., não fornecer um “salário
mínimo”) nem sempre o levaram a defender a intervenção do Estado nesses
termos. E, contrariamente às experiências comunistas da sua época, Calvino
encontrou na Bíblia apoio à propriedade privada.Calvino frustrará qualquer leitor que tente encontrar uma defesa
profunda da política de laissez-faire, e muito menos um apoio consistente
ao estatismo. Contudo, apesar das suas incoerências, Calvino auxiliou o
desenvolvimento da política econômica moralmente informada que hoje
caracteriza o liberalismo clássico histórico.
1 Alister McGrath, “Calvino and the Christian calling”, First things 94 (jun-jul/1999): 31-35.
2 Max Weber, The protestant ethic and the spirit of capitalism (Nova York: Routledge, 2001), 37.
3 Douglas Kelly, The emergence of liberty in the modern world: The influence of Calvin on five
governments from the 16th through 18th centuries (Phillipsburg, NJ: P&R Publishing, 1992), 4-5.
4 Um importante recurso a esse respeito é Ordenanças eclesiásticas, de Calvino (1541), no qual
Calvino discute a necessidade da liberdade da igreja da interferência política. Ver David W. Hall, The
legacy of John Calvin (Phillipsburg, NJ: P&R Publishing, 2008), 20-21.
5 Weber, Protestant ethic, 35.
6 Ibid., 43.
7 Anthony Giddens, na introdução a Weber, Protestant Ethic, xii.
8 Ver Murray N. Rothbard, Economic thought before Adam Smith, v. 1 (Londres: Edward Elgar,
1995), 142.
9 Adam Smith, An inquiry into the nature and causes of the wealth of nations (1776; reimpr.
Indianapolis: Liberty Press, 1981), 47.
10 Aristóteles, Ética a Nicômaco, 1133a5-30.
11 Emil Kauder, A history of marginal utility theory (Princeton, NJ: Princeton University Press,
1965), 5.
12 Edwin G. West, Adam Smith (New Rochelle, NY: Arlington House, 1969), 173.
13 H. M. Robertson, Aspects of the rise of economic individualism ([1933]; Cambridge: Cambridge
University Press, 1959), 27.
14 Robert B. Ekelund Jr. e Robert F. Hebert, A history of economic theory and method, 5ª ed. (Long
Grove, IL: Waveland Press, 2007), 91.
15 Ernst Troeltsch, Protestantism and progress: A historical study of the relation of Protestantism
to the modern world (Boston: Beacon Press, 1958), 87.
16 Robert H. Nelson, “Environmental Calvinism: The Judeo-Christian roots of ecotheology”, em
Roger E. Meiners e Bruce Yandle (orgs.), Taking the environment seriously (Lanham, MD: Rowman
and Littlefield, 1993), 251.
17 Gary North, “The economic thought of Luther and Calvin”, JCR 2, 1 (verão, 1975): 98.
18 Ronald H. Stone, “The Reformed economic ethics of John Calvin”, em Robert L. Stivers (org.),
Reformed faith and economics (Lanham, MD: University Press of America, 1989), 41-42.
19 E. William Monter, Calvin’s Geneva (Nova York: John Wiley & Sons, 1967).
20 North, “The economic thought of Luther and Calvin”, 98.
21 Ibid.
22 McGrath, “Calvin and the Christian calling”, 31-35.
23 João Calvino, Four last books of the Pentateuch, em Stivers, Reformed faith and economics, 76.
24 Ibid.
25 João Calvino, citado em McGrath, “Calvin and the Christian calling”, 31-35.
26 Ibid.
27 Ver, p. ex., Fred Graham, The constructive revolutionary: John Calvin and his socio-economic
impact (Atlanta: John Knox Press, 1971), 127-44.
28 Stone, “The reformed economic ethics of John Calvin”, 43.
29 Jeannine E. Olson, Calvin and social welfare: Deacons and the Bourse Francaise (Selinsgrove,
PA: Susquehanna University Press, 1989), 12.
30 Stone, “The reformed economic ethics of John Calvin”, 43.
31 North, “The economic thought of Luther and Calvin”, 79.
32 Martinho Lutero, “Greater catechism” (1529), em Henry Wace e K. A. Buchheim (orgs.),
Luther’s primary works (Londres: Hodder and Stoughton, 1896), 72.
33 Porém, algumas dessas ligações são capciosas. Por exemplo, com base em algumas das
declarações de Calvino sobre comunidade, justiça e caridade, David Little argumenta que Calvino
teria defendido a tributação progressiva. Como muitos da esquerda cristã são propensos a fazer, Little
infere, de exortações à generosidade, que o Estado deve estar envolvido na ampla redistribuição da
riqueza. Reconhecendo, até certo ponto, o seu próprio non sequitur, Little só pode afirmar que, para
ser coerente, Calvino poderia estar inclinado a redistribuir via tributação progressiva, devido a ter
defendido a intervenção do Estado em alguns outros casos. Dadas as incoerências temporais e lógicas
em Calvino, essa é uma interpretação forçada. Até mesmo Little admite que a ênfase de Calvino “no
livre consentimento em relações sociais econômicas e outras entra, como dizemos, em conflito com a
ênfase compensatória numa ordem econômica obrigatória” e que o pensamento de Calvino sobre
essas questões era ambivalente e incompleto. Ver David Little, “Economic justice and the grounds for
a theory of progressive taxation in Calvin’s thought”, em Stivers, Reformed faith and economics, 61-
84.
34 João Calvino, Old Testament harmony, 3.114, sobre Dt 24.14-15, citado em François Dermange,
“Calvin’s view of property: A duty rather than a right”, em Edward Dommen e James D. Bratt
(orgs.), John Calvin rediscovered: The impact of his social and economic thought (Louisville:
Westminster John Knox Press, 2007), 39.
35 Dermange, “Calvin’s view of property”, 40.
* Uma conclusão que não decorre das premissas. (N. da R.)
36 Stone, “The reformed economic ethics of John Calvin”, 45.
37 Ver Hall, The legacy of John Calvin, 16-17.
38 Dermange, “Calvin’s view of property”, 43.
39 Citado em Stone, “The reformed economic ethics of John Calvin”, 41.
40 Na sua essência, a visão de Calvino sobre a lei seguia a tradição do direito natural. Calvino não
considerava qualquer lei civil do Antigo Testamento como obrigatória para os cristãos atuais, exceto
as implicações civis dos Dez Mandamentos. Ele acreditava que esse resumo da lei estava escrito na
consciência dos seres humanos, de modo que, na medida em que até mesmo uma autoridade secular
seguisse essa lei natural, ela poderia encontrar a aprovação cristã. Ver Institutas, 4.20.16. Ver também
Dermange, “Calvin’s view of property”, 44-48.
41 Calvino desenvolveu sete restrições sobre os juros, brevemente discutidas por Christoph
Stückelberger: “A primeira restrição é que ‘dos pobres não devem ser cobrados juros, nem deve ser
constrangido alguém que sofre por um desastre ou está em situação de necessidade absoluta de
pobreza. […] A segunda restrição é que aqueles que emprestam não devem ser tão focados no ganho
a ponto de não contribuir com obras de caridade necessárias nem tão preocupados com colocar o seu
dinheiro em segurança a ponto de não conseguir reconhecer o valor dos seus irmãos e irmãs pobres.
[…] A terceira restrição é que [no caso de um empréstimo com juros] nada deve acontecer que não
esteja de acordo com a justiça natural, e não deve ser considerado apropriado em parte alguma ao
analisarmos a questão segundo a injunção de Cristo (i.e., o que você quer que os outros façam a você
etc.). […] [A quarta restrição é que] o tomador do empréstimo deve obter tanto ou mais do lucro com
o dinheiro emprestado [quanto o credor]. […] Em quinto lugar, não consideremos o que é permissível
em termos de costume comum recebido, nem avaliar o que é certo e justo segundo os padrões iníquos
do mundo, mas usemos a Palavra de Deus como um preceito. […] Em sexto lugar, não consideremos
somente o que é vantajoso para o indivíduo com quem temos de lidar, mas consideremos também o
que é conveniente para o público, pois muito claramente os juros pagos por um comerciante é um
subsídio público. Assim, devemos determinar adequadamente que o contrato é, geralmente, bom e
não prejudicial. […] Em sétimo lugar, não infrinjamos o padrão permitido pelas leis civis da região
ou localidade – embora isso nem sempre seja suficiente, porque essas leis permitem coisas que elas
não seriam capazes de corrigir ou suprimir proibindo-as. Então, temos de preferir a justiça, que reduz
os excessos”. Christoph Stückelberger, “Calvin, calvinism, and capitalism”, em Dommen e Bratt,
John Calvin rediscovered, 128-29.
42 A teoria econômica preveria que o resultado de um teto para as taxas de juros seria uma escassez
dos empréstimos, isto é, que os pretensos tomadores teriam dificuldade para encontrar um
empréstimo. Calvinoe outros que apoiaram tais tetos substituíram os empréstimos a juros altos pela
impossibilidade de encontrar um empréstimo. É claro que “presentes” para os credores e outros
métodos de evadir as restrições não eram incomuns nessas circunstâncias e, provavelmente,
reduziram alguns dos problemas criados pelos tetos.
43 Rothbard, Economic thought before Adam Smith, v. 1, 144.
44 Ibid., 145.
45 Ibid., 141.
46 Hall, The legacy of John Calvin, 24.
47 Institutas, 4.20.8.
48 João Calvino, Sermão 29, Sermons on 2Samuel: Chapters 1-13, trad. Douglas Kelly
(Edimburgo: Banner of Truth, 1992).
49 Ibid.
50 Sobre Deuteronômio 1.14-16, Calvino escreveu: “Por isso, mais claramente parece que aqueles
que deviam presidir o julgamento não foram nomeados apenas pela vontade de Moisés, mas eleitos
pelos votos do povo. E esse é o tipo mais desejável de liberdade: que não devamos ser obrigados a
obedecer a toda pessoas que possa ser tiranicamente colocada sobre as nossas cabeças; mas que
permita a eleição, de modo que ninguém governe se não for aprovado por nós. E isso é confirmado
adicionalmente no versículo seguinte, no qual Moisés relata que aguardou o consentimento do povo e
que nada era tentado se não agradasse a todos”. Charles Raynal e John Leith (orgs.), Calvino studies
colloquium, trad. Douglas Kelly (Davidson, NC: Davidson College Presbyterian Church, 1982).
Infelizmente, Calvino não conseguiu ver que o processo democrático não é garantia de liberdade. Até
mesmo autoridades democraticamente eleitas podem ser tiranas.
51 Institutas, 4.20.8.
52 Ibid.
53 Ibid.
54 João Calvino, Commentaries on the Epistle of Paul the Apostle to the Romans, citado em John T.
McNeill (org.), Calvino on God and political duty (Indianápolis: ITT Bobbs-Merrill, 1956), 85-86.
55 Institutas, 4.20.31.
56 David Hall fornece uma lista de oito obras importantes que “legitimaram a ideia de resistência
dos cidadãos contra a expansão governamental que excedesse os limites adequados”, em grande parte
daqueles que tiveram contato direto com Calvino: De Regno Christi (de Martin Bucer, 1551), A short
treatise of political power (de John Ponet, 1556), How superior powers ought to be obeyed of their
subjects; and wherein they may lawfully by God’s word be disobeyed and resisted (de Christopher
Goodman, 1558), The world and the empire (de Peter Viret, 1561), Francogallia (de François
Hotman, 1573), De jure magisterium (de Theodore Beza, 1574), De jure regni apud Scotos (de
George Buchanan, 1579) e Vindiciae contra tyrannos (de Hubert Languet, 1579). Hall, The legacy of
John Calvin, 24.
57 Kelly, The emergence of liberty in the modern world, 11.
58 João Calvino, Commentaries on the Prophet Daniel, v. 1 (Grand Rapids: Baker, 1979), 382.
59 E. Calvin Beisner, Where garden meets wilderness: Evangelical entry into the environmental
debate (Grand Rapids: Eerdmans, 1997).
60 Institutas, 3.7.3.
61 Ibid., 2.2.12.
62 “Economia” deriva da palavra grega que significa “administração doméstica”, originalmente
encontrada em Xenofonte.
63 Institutas, 2.2.13.
64 Ibid., 3.6.1.
65 Ibid.
66 Ibid.
67 Friedrich A. Hayek, “The use of knowledge in society”, American economic review 35, 4
(set/1945): 519.
A
5
Calvinismo e literatura
Leland Ryken
ideia de uma abordagem calvinista à literatura poderia parecer uma
defesa difícil. A pesquisa de Norman R. Cary Christian criticism in the
twentieth century: Theological approaches to literature [Crítica cristã no
século 20: Abordagens teológicas à literatura] não resulta numa “escola”
calvinista de teoria literária.1 Contudo, consigo lembrar-me de dois
acontecimentos do meu passado que apontam para uma abordagem
calvinista discernível à arte de escrever e ao estudo da literatura.
Quando a pessoa que era então meu colega no Departamento de Inglês
da Wheaton College resenhou um livro de Calvin Seerveld, ele foi
altamente crítico. Pessoa de convicções anglocatólicas, ele expressou
descrença de que alguém fosse capaz de escrever uma apologia cristã às
artes sem mencionar a encarnação de Cristo como pedra angular dessa
apologia. Lembro-me de ter pensado que isso não era motivo para admirar-
se. Numa reflexão adicional, ocorreu-me que a razão pela qual a abordagem
de Seerveld parecia ser natural era que eu compartilhava da sua orientação
calvinista.
Um segundo episódio está centrado no meu próprio livro, The liberated
imagination: Thinking Christianly about the arts [A imaginação libertada:
Pensando sobre as artes de modo cristão].2 Ele foi usado como livro-texto
por um grupo de professores de música de uma faculdade reformada.
Devido a eu ensinar em Wheaton e não numa faculdade reformada, os
professores não me identificaram com a sua própria tradição, embora
tenham entrado em ressonância com a minha abordagem às artes. Conta-se
que, quando se tornou conhecido que eu tinha formação cristã reformada,
um professor deixou escapar: “Eu sabia”.
Devido a não haver qualquer escola discernível de teoria literária que
tenha Calvino como sua fonte, é fácil negligenciar a relevância do
calvinismo na formulação de uma abordagem cristã à literatura e ao seu
estudo. É aqui que os dois episódios se revelam úteis, porque nos alertam de
que os estudiosos de convicção calvinista veem a literatura e seu estudo de
um modo que os diferencia de outras abordagens cristãs. Além disso,
escrever este ensaio levou-me a ver pela primeira vez até que ponto a minha
própria abordagem à literatura e ao seu estudo representa uma abordagem
calvinista.
Na discussão que se segue, delineei as maneiras pelas quais o
pensamento calvinista produz uma poética (“filosofia da literatura”) cristã.
Em essência, essa poética é o que tenho defendido ao longo de quatro
décadas. Em alguns casos, o calvinismo exerceu influência sobre o meu
pensamento, enquanto em outros vou observar compatibilidade em vez de
dívida consciente.
Calvino produz relativamente poucas declarações diretamente
relacionadas à literatura e às artes, mas há declarações seminais apenas
suficientes para servir ao meu propósito. Para mostrar que houve uma
tradição de pensamento calvinista ao longo dos séculos, vou fazer citações
seletivas de alguns dos principais pensadores da tradição calvinista ao longo
de três séculos, incluindo Jonathan Edwards, Abraham Kuyper e Francis
Schaeffer.
O mandato cultural
Sabemos que fomos criados com o propósito expresso de ser empregados em trabalho de
vários tipos, e que nenhum sacrifício é mais agradável a Deus do que quando cada homem
aplica-se diligentemente ao seu próprio chamado. (João Calvino, comentário sobre Lc
10.38)
Na época em que eu estudava em escolas cristãs da região rural de Iowa,
diziam-me que o calvinismo era distinto por ter “uma visão do mundo e da
vida”. Os detalhes disso nunca me foram enunciados, embora, pela maneira
como a frase era pronunciada pelas figuras de autoridade de minha vida, eu
percebesse que algo importante estava em jogo. No início da minha carreira
de ensino e escrita, deparei-me com a ideia sob um ângulo diferente e, dessa
vez, ela assumiu uma importância seminal no meu pensamento sobre a
literatura e as artes.
O que aprendi foi que o cristianismo engloba tanto um mandato
missionário (resumido na Grande Comissão) quanto um mandato cultural.
A passagem primordial para um mandato cultural é Gênesis 1.26-28, que
narra como Deus ordenou a Adão e Eva que exercessem domínio sobre a
terra. No pensamento calvinista, esse não é apenas um comando agrícola,
referente ao solo literal, mas também um comando cultural. Assim
estendida, a declaração significa que a humanidade foi colocada por Deus
sobre toda a criação, incluindo a parte dela produzida por pessoas
(geralmente chamada cultura). Uma busca de fontes revela rapidamente que
a ideia de um mandato cultural pertence quase exclusivamente à tradição
calvinista ou reformada, onde é lugar-comum.3 A importância da ideia de
um mandato cultural para a atividade da literatura é incalculável. Para
começar, ele dá à literatura um lugar para situar-se. Se a cultura é
intencionadae sancionada por Deus, o mesmo ocorre com a literatura.
Além disso, se a atividade literária não é simplesmente permitida, mas
ordenada, a sua legitimidade é ainda mais fortemente afirmada. Foi assim
que entendi o meu interesse pela literatura a partir do momento em que a
ideia de um mandato cultural estabeleceu-se no meu pensamento.
A visão de que Deus deu aos seus seguidores não apenas um mandato
missionário, mas também um mandato cultural, abala de uma só vez a
dicotomia sagrada-secular que caracterizou boa parte do pensamento
evangélico não reformado. Frequentemente vi ser citada a afirmação de C.
S. Lewis apresentada a seguir e, de fato, nos meus primeiros escritos eu
mesmo a citei com aprovação: “Desde o início, o cristão sabe que a
salvação de uma única alma é mais importante do que a produção e
preservação de todos os épicos e tragédias do mundo”.4
Já não cito mais a afirmação com aprovação. Por um lado, Lewis
pressupõe que os épicos e tragédias do mundo não podem ser o meio pelo
qual Deus leva uma pessoa à fé. Quando fui contratado para escrever um
ensaio sobre literatura e a vida espiritual, entrevistei cristãos do meu círculo
de conhecidos quanto ao papel da literatura na sua vida espiritual.
Rapidamente descobri um grupo substancial para o qual a literatura
imaginativa havia desempenhado um papel crucial na sua ida à salvação em
Cristo – alguns comparavam isso à ida de alguém à fé numa cruzada
evangelística. De modo mais geral, a afirmação de Lewis mostra uma visão
inadequada do mandato cultural que Deus deu à raça humana. Se a raça
humana deve exercer domínio sobre a ordem terrena, toda esfera e ato de
domínio é digna. Não há justificativa para organizar as atividades de modo
a formarem uma hierarquia. Se Deus ordena algo, isso é digno e não
concorre inerentemente com o mandato missionário.
Uma doutrina calvinista complementar reforça a ideia do mandato
cultural, especificamente a doutrina da vocação ou do chamado. O ensino
dos reformadores sobre a vocação é bem pensado e matizado, mas seu
esquema básico é simples. As ideias principais, conforme articuladas por
Calvino, são as seguintes: (1) Deus é soberano nos acontecimentos da vida
de uma pessoa. Parte dessa soberania é que as tarefas que vêm às pessoas
em sua vida são “deveres designados” (denominados “chamados”) que
foram “atribuídos […] pelo Senhor”.5 (2) Pelo fato de Deus ser o “guia em
todas essas coisas” de uma pessoa, os nossos compromissos diários não são
simplesmente tarefas encerradas em si mesmas, mas fazem parte de um
serviço religioso a Deus, com o resultado de que, se “você obedecer ao seu
chamado”, isso “será contado como muito precioso aos olhos de Deus”.6 (3)
Nenhuma vocação é mais santa do que outra; nas palavras de Calvino, “aos
olhos de Deus, é uma coisa só a prática [isto é, a vocação] de uma pessoa
neste mundo, na medida em que esta diversidade não impeça um acordo na
piedade”.7 Segundo Georgia Harkness, embora Lutero tenha afirmado a
possibilidade de que uma pessoa pode “servir a Deus no âmbito do seu
chamado”, Calvino deu o passo mais ousado ao afirmar que uma pessoa
pode “servir a Deus por meio do seu chamado”.8
A aplicação da doutrina calvinista da vocação à literatura é abrangente.
Ela eleva a vida do escritor e do professor de literatura a uma posição de
importância aos olhos de Deus e, portanto, à vista dos próprios escritores e
professores. A tradição calvinista deu ao poeta Chad Walsh a estrutura
conceitual e o vocabulário para dizer que o escritor “pode, honestamente,
ver-se como uma espécie de assistente terreno de Deus (como também o
pode o carpinteiro), continuando a obra delegada da criação, tornando ainda
mais completa a plenitude da criação”.9 Meu repertório de palestras inclui
uma intitulada “O chamado do escritor cristão”. Nela, começo delineando
ideias da Reforma sobre a vocação, que depois aplico às atividades
exercidas por autor literário. Sem a estrutura das ideias da Reforma sobre a
vocação, só me restaria uma coleção humanamente inventada de ideias
sobre escritores e suas obras, sem qualquer autoridade teológica apoiando
as minhas afirmações.
O apoio de Calvino à cultura e sua defesa da ideia de vocação podem
parecer distantes da produção e do estudo da literatura, mas não são. Ao
longo da minha carreira, as ideias calvinistas sobre o mandato e a vocação
culturais forneceram minha plataforma básica para ser um porta-voz da
literatura, livre de ansiedade quanto a se a minha vocação literária é uma
ocupação cristã legítima. Não ter tido essa confiança teria subvertido a
minha ocupação a cada esquina do caminho. Uma cosmovisão calvinista
libertou Francis Schaeffer para afirmar que “uma obra de arte tem um valor
intrínseco”, independentemente da sua “propagação de uma mensagem
específica”, não existindo “unicamente [como] um veículo para algum tipo
de evangelismo constrangido”.10 Os estudiosos de círculos evangélicos não
reformados que acreditam num mandato missionário, mas não num
mandato cultural, geralmente carregaram um fardo de ansiedade quanto ao
valor da literatura em si.
A doutrina da criação
Pelo fato de a escultura e a pintura serem dons de Deus, eu busco um uso puro e legítimo
para cada uma, [como] coisas que o Senhor nos confiou para a sua glória e o nosso bem.11
Anteriormente, recordei a ocasião em que meu colega admirou-se do
fato de um livro sobre estética não destacar a encarnação de Jesus, como a
tradição anglocatólica sempre fez. Minha própria opinião é que, embora
certos pontos essenciais sobre arte e literatura possam ser deduzidos e
ilustrados a partir da encarnação de Jesus num corpo humano, outras
doutrinas cristãs estabelecem esses pontos de maneira mais direta e
convincente.
A literatura começa na criatividade de um escritor. Os escritores criam, a
partir da imaginação, mundos que não existem antes de uma obra literária
ser trazida à existência. É por isso que a teoria literária (especialmente nos
dois últimos séculos) concentrou-se tão fortemente na criatividade como
objeto de pesquisa. Não se pode conceber a literatura e as artes sem pensar
em criatividade.
O mistério de como grandes obras de arte vêm a existir é tão intrigante
que um interesse pela literatura e pelas artes inevitavelmente dá origem à
pergunta sobre os processos criativos. Entrevistas com escritores tornaram-
se um importante gênero crítico na era moderna, e essas entrevistas quase
universalmente enveredam por uma investigação sobre como os escritores
compõem e como obras literárias específicas surgiram. Os títulos de livros e
ensaios confirmam o quanto o mundo em geral considera importante
compreender o processo criativo: Criatividade: Fluxo e psicologia da
descoberta e da invenção; “A criação de um poema”; Dostoievski e o
processo criativo; O processo criativo; Cinquenta poetas contemporâneos:
O processo criativo.
Quando perguntamos como o alto valor que as artes conferem à
criatividade encaixa-se numa cosmovisão cristã, acredito que as duas coisas
estão em total acordo. Em parte, chegamos a essa conclusão ao observar o
primeiro capítulo da Bíblia, no qual aprendemos que Deus é um Criador
que declarou a sua obra como “muito boa” (Gn 1.31). Se, depois,
rastreamos as referências à obra de Deus em toda a Bíblia, descobrimos que
ele é um ser cuja essência é declarar: “Eis que faço coisa nova, […]” (Is
43.19), culminando na sua criação de um novo céu e uma nova terra em
imagens que ecoam a história da criação do início de Gênesis (Ap 22.1-5).
Um aspecto importante da história da criação é a criação do homem por
Deus à sua imagem. A passagem-chave é Gênesis 1.26-27, que registra
Deus dizendo: “Façamos o homem à nossa imagem, […]” e o escritor narra
poeticamente: “Criou Deus, pois, o homem à sua imagem, à imagem de
Deus o criou”. O principal atributo de Deus que conhecemos ao ler essa
passagem é que ele é um criador. Portanto, dentro do seu contexto narrativo
a coisa mais óbvia que Deus e as pessoas têm em comum é a sua
capacidade de criar. Por implicação, a criatividade é um dom queDeus
conferiu às pessoas.
Se perguntarmos o que a tradição teológica mais fez das ideias gêmeas
de Deus como Criador e das pessoas como imago dei como pedras
angulares da teoria literária, a resposta é que essa é a tradição reformada.
Nem uma frase sequer da teoria literária encapsulou mais do meu próprio
pensamento do que a seguinte declaração do Abraham Kuyper: “Como
portador da imagem de Deus, o homem possui a possibilidade de criar algo
bonito e também de deleitar-se com isso”.12 Kuyper elaborou o conceito do
seguinte modo:
Essa habilidade artística, essa capacidade para a arte […] pode ter espaço na natureza
humana, devemos à nossa criação segundo a imagem de Deus. […] Assim, podemos imitar
o trabalho manual de Deus. […] Como portadores da sua imagem, é nosso privilégio ter
uma percepção deste mundo belo, reproduzi-lo artisticamente e apreciá-lo humanamente.13
Um representante posterior desse ponto de vista calvinista é Francis
Schaeffer. Na sua monografia Art and the Bible [A arte e a Bíblia],
Schaeffer ecoa os temas de Kuyper. Um desses temas é que “tanto Deus
quanto o homem criam”, que “a palavra criar é apropriada” para o que o
artista faz, e que as obras de arte são “expressões da natureza e do caráter
da humanidade […] a exteriorização da criatividade inerente à natureza do
homem”.14 Em segundo lugar, Schaeffer é capaz de enraizar na doutrina da
criação a sua opinião de que “a arte cristã não é, de modo algum, sempre
[…] arte que trata de temas religiosos”. Ele escreve: “A criação de Deus
está totalmente envolvida com temas religiosos? E o que dizer do universo,
dos pássaros, das árvores, das montanhas? […] Quando Deus criou a partir
do nada por meio da sua palavra falada, ele não criou apenas objetos
‘religiosos’”.15
Quando nos voltamos para os escritos de Calvino, encontramos a mesma
orientação. As ideias-chave são as seguintes: (1) Pelo fato de Deus ser o
criador e o governante da criação, “todas as artes emanam dele e, portanto,
precisam ser consideradas invenções divinas”.16 (2) As artes não são
capacidades humanas autônomas, mas dons que Deus confere às pessoas;
ao comentar sobre os artistas que produziram os trabalhos manuais para o
tabernáculo, Calvino escreve que “qualquer capacidade possuída por
qualquer pessoa emana de uma única fonte e é conferida por Deus”.17 (3) A
capacidade artística é parte da imagem de Deus nas pessoas: “os muitos
dons proeminentes com que a mente humana é dotada proclamam que algo
divino foi gravado nela”.18 (4) Em virtude de carregarem a imagem de um
Deus criador, os seres humanos são capazes de uma criação verdadeira: eles
possuem a “energia e capacidade […] para elaborar algo novo em cada arte
ou para aperfeiçoar e polir o que foi aprendido de um antecessor”.19
O pensamento calvinista sobre a criatividade divina e humana nos
permite seguir um curso intermediário entre dois extremos na cena atual. O
movimento Romântico do início do século 19 elevou a criatividade humana
autônoma totalmente fora de proporção, até mesmo a ponto de endeusá-la.
A tradição calvinista coloca a criatividade humana em seu lugar sob Deus e
a trata como um dom do qual as pessoas são mordomos. Quanto a isso, é
importante observar que Calvino refere-se regularmente às artes como um
dom de Deus, como quando ele fala do “dom de Deus gratuitamente
oferecido nestas artes” e das artes como “dons que o Senhor deixou para a
natureza humana”.20
Porém, há também atualmente uma perversa tradição de descrédito entre
certos segmentos do evangelicalismo que deprecia o conceito da
criatividade humana, até mesmo a ponto de negar que ela existe. Os pontos
de vista da tradição calvinista delineados acima servem como um corretivo
para esse equívoco também. Nas palavras de Francis Schaeffer, “é
importante compreender que tanto Deus quanto o homem criam. Ambos
fazem algo”.21
Uma última importância da doutrina da criação é que ela fornece uma
explicação teológica do motivo pelo qual as pessoas criam. Precisamos de
investigação empírica para explicar como as pessoas criam, mas tentativas
puramente seculares para explicar por que elas criam mostram-se frívolas.
A discussão da questão por Calvino fornece três explicações impecáveis. A
primeira é que um Deus criativo criou as pessoas à sua imagem: Deus
equipa os artistas “conforme o caráter que ele concedeu a cada tipo pela lei
da criação”.22 A segunda é que Deus dota os artistas com o dom da arte: no
tocante aos artistas que trabalharam no tabernáculo, Calvino afirma que
“Deus já havia conferido agudeza e inteligência aos artífices em questão”.23
E a terceira é que o Espírito de Deus equipa até mesmo os artistas
incrédulos: “ninguém se destaca até mesmo no trabalho manual mais
desprezado e humilde, exceto na medida em que o Espírito de Deus opera
nele”.24
Graça comum
Não devemos esquecer os excelentes benefícios do divino Espírito, que ele distribui a quem
quer, para o bem comum da humanidade. (Institutas, 2.2.16)
Tal como a doutrina da criação, a doutrina da graça comum representa
uma contribuição distinta do calvinismo à teoria literária. Enquanto a
doutrina da criação fala particularmente à produção de obras de literatura, a
graça comum se refere mais à leitura e ao estudo de obras já compostas.
Quase todos os escritos sobre a graça comum foram produzidos por
teólogos de tradição calvinista (e até mesmo holandesa) – o próprio Calvino
e nomes como Hodge, Berkhof, Kuyper, Van Til e Osterhaven.25 A doutrina
da graça comum sustenta que Deus dota todas as pessoas, cristãs e,
igualmente, não cristãs, com uma capacidade para o verdadeiro, o bom e o
belo.
O próprio Calvino é o melhor ponto de partida e podemos discernir três
tópicos principais no seu pensamento sobre o tema. Primeiro, escritores não
cristãos são capazes de expressar o que eu denomino o verdadeiro, o bom e
o belo, com o resultado de que “sempre que nos depararmos com essas
questões em escritores seculares, deixemos que a admirável luz da verdade
brilhando nelas nos ensinem que a mente do homem, embora caída e
pervertida de sua integridade, é, não obstante, vestida e ornamentada com
os excelentes dons de Deus”.26 Segundo, e como uma extensão da primeira
ideia, podemos afirmar a verdade onde quer que a encontremos: “Toda a
verdade vem de Deus; consequentemente, se homens ímpios disseram algo
que seja verdadeiro e justo, não devemos rejeitá-lo, porque isso veio de
Deus”.27
Terceiro, o Espírito de Deus é a fonte última de tudo que é bom na
literatura, e podemos honrar a Deus como essa fonte. Calvino escreve, por
exemplo: “Se considerarmos o Espírito de Deus como a única fonte de
verdade, nem rejeitaremos a própria verdade, nem a desprezaremos onde
quer que ela apareça, a menos que desejemos desonrar o Espírito de
Deus”.28 E, novamente, “Não podemos ler os escritos dos antigos […] sem
grande admiração. […] No entanto, consideraremos algo louvável ou nobre
sem, ao mesmo tempo, reconhecer que isso vem de Deus?”29
A importância da graça comum para o empreendimento literário é
imensa. Ela significa, primeiramente, que não precisamos investigar a
ortodoxia religiosa de um escritor antes de podermos afirmar o que é digno
no que esse escritor produziu. Sempre que encontramos o verdadeiro, o
bom ou o belo, podemos aplaudi-lo. Isso está longe de ser universalmente
aceito pelos cristãos. Entre os cristãos sinceros, muitas vezes sinto um mal-
estar, se não uma total hostilidade, em relação a obras literárias de autoria
de não cristãos. A genealogia desse desconforto remonta a alguns dos
patriarcas da igreja, que lutaram com a questão de como conciliar sua fé
cristã com sua formação na cultura clássica. Alguns deles rejeitaram a
cultura clássica. A doutrina da graça comum também nos leva a concluir
que podemos e devemos dedicar tempo para ler literatura secular, bem
como literatura manifestamente cristã para nossa edificação e deleite.
Finalmente, não é incomum deparar-nos com o sentimento de que os
cristãos (ou calvinistas) devem, de algum modo, ser culpados pelo fato de
não seremos melhores escritores do mundo. Poderíamos também tentar
atribuir culpa aos cristãos não serem os melhores atletas, pianistas ou
cozinheiros. A verdade é como Calvino afirmou: “qualquer que seja a
capacidade possuída por qualquer [artista] […] ela é conferida por Deus”,30
que “distribui” os seus dons “a quem ele quiser”.31
Beleza
Nas ervas, nas árvores e nos frutos, à parte dos seus diversos usos há uma aparência bela e
um odor agradável. (Institutas, 3.10.2)
Desde que comecei a ensinar e escrever sobre literatura, defendi a
importância da beleza na literatura e na arte. Eu havia apenas plantado a
minha bandeira pela causa da beleza quando ela saiu de moda como valor
estético. Nunca vacilei na minha devoção à beleza como um ingrediente
principal da experiência literária; uma das poucas coisas que deram certo na
minha disciplina durante as últimas quatro décadas é que a beleza teve um
merecido retorno como valor estético entre os estudiosos que teorizam
sobre literatura e arte.
No meu primeiro livro de teoria literária, segui meu capítulo
introdutório com um movimento ousado que refletia as minhas convicções.
Dei prioridade à “Literatura e a busca da beleza” com a seguinte
explicação: “Coloquei este capítulo sobre a beleza no início do livro por
uma razão importante: a beleza é a dimensão da literatura que está sempre
recebendo valor insuficiente na crítica literária”.32
É claro que a Bíblia é o texto fundamental sobre a beleza. Gênesis 2.9
evidencia isso: “Do solo fez o S����� Deus brotar toda sorte de árvores
agradáveis à vista e boas para alimento”. Eis aí o desígnio de Deus para o
bem-estar humano, e ele inclui duas coisas complementares – o útil e o
puramente estético. As condições para a vida boa nunca mudaram desde
aquele momento no Paraíso. O tipo de mundo criado por Deus revela que
ele valoriza tanto o utilitário quanto o estético.
Inúmeros outros afluentes se somam à aprovação da beleza pela Bíblia.
Um deles está nas descrições da arte que adornava o tabernáculo e o templo
do Antigo Testamento, incluindo passagens que atribuem beleza a esses
lugares (Êx 28.2; Ed 7.27; Sl 96.6; Is 60.13). Outras passagens atribuem
beleza a Deus como um dos seus atributos (p. ex., Sl 27.4; Ez 16.14-15,17).
As palavras beleza, bonito e belo aparecem aproximadamente 120 vezes em
traduções da Bíblia para a nossa língua, de uma maneira
predominantemente positiva.
Embora a Bíblia seja o texto fundamental para estabelecer o lado
puramente estético da literatura como um valor, fui fortemente influenciado
a defender a causa por escritores da tradição calvinista. O próprio Calvino
nos deu uma fórmula clássica ao chamar a criação terrena de teatro da
glória de Deus.33 Afirmando a legitimidade da beleza e o prazer que temos
nela, Calvino escreveu de modo admirável:
Se ponderarmos para que fim Deus criou os alimentos, descobriremos que ele queria não
apenas suprir a necessidade, mas também o prazer e a alegria. […] O Senhor vestiu as flores
com grande beleza que saúda os nossos olhos, a doçura do aroma que bafeja nas nossas
narinas; não obstante, será ilegítimo os nossos olhos serem afetados por essa beleza, ou o
nosso olfato pela doçura desse odor? […] Em suma, ele não tornou muitas coisas atraentes a
nós, além do seu uso necessário?34
Ainda mais impressionantes do que esses breves comentários de Calvino
são as ideias de Jonathan Edwards, para quem a beleza é um conceito
teológico tão fundamental que um estudioso chamado Roland André
Delattre escreveu um livro inteiro sobre ela, intitulado Beauty and
sensibility in the thought of Jonathan Edwards [Beleza e sensibilidade no
pensamento de Jonathan Edwards].35 O livro é transbordante de citações
evocativas de Edwards sobre a beleza, juntamente com uma extensa análise
do seu pensamento sobre o tema. Tudo isso excede o escopo da minha
discussão aqui, mas a declaração seguinte foi uma pedra angular para o meu
pensamento sobre a importância teológica da beleza para o empreendimento
literário: “Isso porque, pelo fato de ser infinitamente o maior ser, Deus está
autorizado a ser infinitamente o mais belo e excelente: e toda a beleza de
ser encontrada em toda a criação não é senão o reflexo dos raios difundidos
desse Ser que tem uma infinita plenitude de esplendor e glória”.36
Calvino e Edwards não foram os únicos a exercerem influência
calvinista sobre mim no tocante à beleza. Também Abraham Kuyper
produziu afirmações clássicas sobre a importância da beleza nas suas
palestras sobre o calvinismo. Eis uma delas: “o belo […] tem uma
existência objetiva, sendo ele mesmo a expressão de uma perfeição Divina.
[…] Sabemos isso pela criação que nos rodeia. […] Pois, como poderia
toda essa beleza existir se não criada por Alguém que preconcebeu o belo
no seu próprio ser e o produziu a partir da sua própria perfeição Divina?”37
Kuyper também escreveu: “Depois da criação, Deus viu que tudo era bom.
Imagine que todo olho humano fosse fechado e todo ouvido humano fosse
tapado – ainda assim, o belo permanece, e Deus o vê e ouve”.38
O apoio calvinista à beleza como critério estético tem dupla importância
para a literatura. Uma aplicação é focada em escritores de literatura. Se a
beleza da forma é tão importante quanto a tradição calvinista afirma, os
esforços do escritor para aperfeiçoar as propriedades formais de uma obra
são validados. Ernest Hemingway reescreveu a conclusão de seu romance
Adeus às armas dezessete vezes, num esforço para torná-lo bom. O poeta
galês Dylan Thomas fez mais de duzentas versões manuscritas do seu
poema “Fern hill” [Colina das samambaias]. Pode um escritor literário
justificar o tempo despendido em polir a técnica de uma obra? Se
afirmarmos a importância da beleza, a resposta é sim.
Há um paralelo para os leitores e os críticos literários. Que as obras de
literatura possuem beleza de forma e de técnica é indiscutível. O que deve
ser determinado é se esse aspecto da literatura é merecedor de atenção. Se
afirmarmos a beleza como uma propriedade estética, o caminho está aberto
para os leitores e os críticos darem sua atenção aos aspectos formais das
obras literárias. Uma vez que a beleza é essencialmente não utilitária, no
momento em que exaltamos a beleza da forma, abrimos a porta para uma
defesa hedonista da literatura (uma defesa da literatura apoiada no prazer e
na satisfação). A defesa hedonista da literatura tem sido uma marca
distintiva da minha própria teoria literária e é apoiada por um ponto de vista
calvinista.
Verdade na literatura
Aprouve ao Senhor consagrar a sua verdade à memória eterna unicamente nas Escrituras.39
Certa vez, um ex-diretor do meu Departamento de Inglês teorizou a
existência, no nosso departamento, de duas abordagens principais à
integração de fé cristã e estudo literário. Ele as rotulou como abordagens da
encarnação e da perspectiva. A primeira delas acredita que, se os
professores de literatura são cristãos, tudo que eles fazem com obras
literárias representa uma integração da sua disciplina com a fé cristã. O
segundo rótulo implica que a integração não acontece automaticamente,
mas requer análise e aplicação conscientes de critérios intelectuais às obras
de literatura.
Essa dicotomia é útil para ver o que distingue uma abordagem calvinista
à literatura. Um dos tipos de verdade que a literatura incorpora é a
veracidade à experiência humana. Pode-se dizer que a literatura encarna a
verdade sobre a realidade. Genericamente falando, os teóricos literários das
tradições católica e anglicana têm a probabilidade de concentrarem-se nesse
aspecto da literatura. Às vezes, essa abordagem é denominada de
sacramentalista, bem como de encarnacional.
Para os teóricos dessa tradição, o fato de a literatura incorporar a
experiência humana em formas distintamente artísticas é suficiente para
torná-la religiosa e/ou cristã. Os conceitos de mito, símbolo e sacramento
são considerados os aspectos importantes da integração entre a literatura e a
fé cristã. O que importa é a natureza inerente da literatura e suas afinidades
coma fé cristã. Eis aqui dois exemplos de declaração:
(1) A literatura e a religião são realmente íntimas em suas áreas de interesse. As duas usam
símbolos [e são] míticas”.40 (2) Não se pode traçar uma linha clara entre poesia e religião,
no mínimo porque a religião envolve adequadamente a totalidade da vida e o homem como
um todo. […] Em última análise, a expressão religiosa e a poesia têm em comum o fato de
testificarem da realidade, e por meios simbólicos.41
Uma abordagem de perspectiva não questiona que a veracidade da
realidade e da experiência humana constitui um dos principais valores da
literatura, mas discorda de que esse fato constitua uma integração adequada
de literatura e fé cristã. Uma abordagem calvinista à literatura recusa-se a
renunciar ao critério da verdade intelectual como um aspecto importante da
análise literária. Em outras palavras, o conteúdo intelectual da literatura
precisa ser identificado e avaliado.
Penso ser óbvio que a doutrina e o conteúdo intelectual da fé cristã
importavam supremamente para os adeptos do calvinismo. O rigor
intelectual e a complexidade das Institutas de Calvino sugerem o sabor da
tradição que se originou com Calvino. Uma parte importante dessa
orientação é a convicção de que as ideias precisam ser ponderadas e a
verdade precisa ser diferenciada do erro. Aplicada à literatura e às artes,
essa mentalidade produz um comentário como este de Francis Schaeffer:
O fato de algo ser uma obra de arte não o torna sagrado. […] Como cristãos, devemos ver
que o fato de um artista – até mesmo um grande artista – retratar uma cosmovisão, em
escrita ou pintura, não significa que devemos aceitar automaticamente essa cosmovisão.
[…] A verdade de uma cosmovisão apresentada por um artista precisa ser julgada com
outras bases que não apenas a grandiosidade artística.42
Uma vez aceito que as ideias incorporadas à literatura precisam ser
testadas por critérios intelectuais de verdade e erro, surge naturalmente a
pergunta sobre o que constitui o padrão pelo qual as ideias devem ser
julgadas. Penso que qualquer pessoa familiarizada com a teoria e a crítica
literárias que produzi concordará imediatamente que uma característica
distintiva foi a extensão do meu apelo à Bíblia como minha fonte primária
de ideias sobre literatura e minha avaliação de obras específicas de
literatura. Embora atribuir primazia à Bíblia possa ser amplamente
evangélico em vez de especificamente reformado, é o caso, no entanto, que
devemos à Reforma o princípio de primazia da Bíblia.
Calvino é uma das fontes a partir de quem a primazia da Escritura
estabeleceu-se no pensamento cristão. Num ensaio intitulado “Calvin and
the Holy Scriptures” [Calvino e as Escrituras Sagradas], Kenneth Kantzer
observa vários exemplos em que Calvino se refere à Bíblia em termos como
“padrão infalível”, “a regra infalível da santa verdade [de Deus]”, “a regra
certa e infalível” e a “certeza infalível” da Bíblia.43 Nas Institutas, Calvino
cita o Antigo Testamento 2.474 vezes e o Novo Testamento, 4.330 vezes.44
O próprio Calvino escreveu que “a igreja reconhece que a Escritura é a
verdade do seu próprio Deus”, com o resultado de que “ela venera a
Escritura sem hesitar”.45
Teóricos e críticos literários que aceitam essa visão da autoridade bíblica
têm a probabilidade de anunciar a sua distinção ao analisar obras de
literatura. Quando um crítico literário apela à Bíblia como o repositório
oficial da verdade cristã, o efeito é muito diferente de quando os críticos
apelam aos credos da cristandade ou a teólogos específicos, como
Agostinho e Tillich, ou a nenhuma autoridade religiosa, mas simplesmente
às qualidades inerentes da literatura (tais como simbolismo e mito). Além
disso, recorrer à Bíblia como última instância de recurso em questões de
verdade intelectual resulta numa certa rigidez de pensamento quando os
estudiosos literários avaliam as afirmações de verdade encontradas em
obras de literatura.
A imaginação literária não escapou dos efeitos da queda. Posso imaginar
que alguns dos meus leitores teriam esperado que eu dissesse mais do que
disse a esse respeito. Minha resposta é múltipla. (1) Quando realmente
cumpro o meu papel de crítico literário na tradição calvinista, discernir a
verdade do erro em obras específicas de literatura constitui uma parcela
muito maior do meu esforço do que sugeriu a apologia anterior à literatura.
(2) Os efeitos da queda sobre o empreendimento literário representam um
abuso da literatura e não são um comentário sobre a natureza inerente da
literatura. (3) Como extensão disso, não se pode elaborar uma defesa da
literatura com base nos abusos dela. (4) A ênfase do calvinismo na
depravação humana carrega um freio embutido contra ver a literatura com
um otimismo ingênuo; a maravilha é que Calvino expressa
consistentemente uma atitude positiva em relação à cultura e às artes.
Resumo: Uma abordagem calvinista à literatura
Que esse seja o nosso princípio: que o uso dos dons de Deus não é mal direcionado quando
dirigido ao fim para o qual o próprio Autor os criou e destinou para nós, já que ele os criou
para o nosso bem. (Institutas, 3.10.2)
Neste ponto é evidente que, não obstante fontes publicadas não
reconhecerem nenhuma escola calvinista de teoria e crítica literárias, essa
abordagem existe. Também acabei percebendo que eu mesmo abordo a
literatura com base nessa tradição. Portanto, o resumo que se segue é em
parte validado pelo fato de vir de um praticante da abordagem que
descrevo. Preciso observar também que, embora até este ponto do meu
ensaio eu tenha dividido o material em temas distintos, esses temas são
realmente interligados e formam um todo coerente.
Uma abordagem calvinista à literatura começa num nível amplo de
crença de que a cultura é boa a princípio, tendo sido instituída por Deus.
Além disso, Deus conclama suas criaturas a seguirem as suas vocações nas
diversas esferas que compõem a cultura, uma das quais é a literatura. O
dom conferido primariamente por essa perspectiva é uma tremenda
confiança na legitimidade e no valor de dedicar-se à escrita e de estudar
literatura. Falando pessoalmente, nunca tive dúvidas quanto ao mérito do
meu chamado como professor e crítico cristão de literatura.
Esse acolhimento de um mandato cultural faz parte da doutrina mais
ampla da criação. A doutrina da criação afirma a ordem terrena como sendo
valiosa aos olhos de Deus. Isso tem grande importância para o
empreendimento literário porque o assunto da literatura (incluindo a
antologia literária que conhecemos como Bíblia) é a experiência humana,
incorporada o mais concretamente possível. Transito em círculos cristãos,
onde o elemento humano na vida e na Bíblia é frequentemente desprezado,
como se somente Deus importasse. Em oposição a isso, tenho me percebido
citando com crescente regularidade a frase inicial das Institutas de Calvino,
com sua declaração de que o verdadeiro conhecimento “consiste em duas
partes: o conhecimento de Deus e de nós mesmos”.
Além disso, a ideia da criação da humanidade à imagem de Deus
fornece uma explicação teológica para o porquê de os escritores criarem, e
uma garantia de que a criatividade humana é um dom implantado por Deus
nas pessoas. Isso não precisa mover-se na direção da idolatria, mas pode ser
incluído na noção de mordomia dos dons de Deus. Nas palavras do poeta
renascentista Sir Philip Sidney, “Demos a correta honra ao Criador celestial
daquele criador [o escritor] que, depois de ter feito o homem à sua própria
semelhança, o colocou além e acima de todas as obras daquela segunda
natureza”, isto é, o mundo da imaginação literária.46
Por apenas uma breve extensão, a ideia do mandato cultural e da
doutrina da criação se estende para abraçar a ênfase calvinista na graça
comum. Também isso dá aos entusiastas da literatura um lugar para
ficarem. Se Deus revela-se em toda a ordem criada, por meio do trabalho de
incrédulos e de cristãos, os reinos de ouro (metáfora de John Keats para o
mundo da literatura imaginativa) tornam-se abertos paraos cristãos
percorrerem. Isso desmente um equívoco comum de que a preocupação do
calvinismo com a depravação humana produz inevitavelmente uma visão
negativa da literatura e da cultura humana. A “visão de mundo e da vida”
que era apregoado na minha formação do ensino fundamental e médio
resulta numa visão equilibrada que é capaz de ver tanto o bom quanto o
ruim no que encontra no mundo e na literatura.
Com a legitimidade da literatura firmemente estabelecida, a pergunta
adicional torna-se quais aspectos da literatura são merecedores de atenção.
O mundo em geral sem dúvida ficará surpreso ao saber que a tradição
calvinista deu proeminência à beleza como valor estético. Para mim,
pessoalmente, ela ainda forneceu uma plataforma para a defesa hedonista da
literatura com base no deleite e enriquecimento humano.
Porém, é claro que a questão da verdade intelectual não pode ser
dispensada simplesmente porque obras de literatura são belas e agradáveis.
Os autores literários não são apenas fiéis à experiência humana; eles
também oferecem uma interpretação das experiências que eles retratam.
Esses pontos de vista – em última análise somando-se para formar uma
cosmovisão – precisam ser testados segundo um padrão de verdade bíblica.
Quando fazemos essa exploração, ocorre que, embora a moralidade da
maior parte da literatura que eu ensino seja amplamente cristã, os valores e
a cosmovisão não são. A genialidade de uma abordagem calvinista à
literatura é que ela não nos obriga a rejeitar tudo de um escritor ou obra de
literatura simplesmente porque não podemos aprovar tudo.
Vou terminar citando uma afirmação que fiz no meu primeiro livro de
teoria literária. Quando a escrevi, não tinha conhecimento de até que ponto
estava escrevendo sob a influência de minha herança calvinista: a carreira
das artes, incluindo a literatura, é uma vocação importante. A vida
abundante começa agora e permeia a pessoa toda, incluindo os seus
impulsos artísticos.
1 Norman R. Cary, Christian criticism in the twentieth century: Theological approaches to
literature, Série Literary criticism (Port Washington, NY: Kennikat, Associated Faculty Press, 1976).
2 Leland K. Ryken, The liberated imagination: Thinking Christianly about the arts (Wheaton, IL:
H. Shaw Publishers, 1989).
3 Não encontrei referência ao mandato cultural nos escritos de Calvino. Portanto, pareceria que a
expressão é um produto do calvinismo depois de Calvino. Seu pertencimento em grande parte a um
pensamento calvinista é corroborado pela observação de Nancy Pearcey de que quando ela leciona
sobre o mandato da cultura, “muitas pessoas dizem nunca haver encontrado o conceito
anteriormente”. Nancy Pearcey, Total truth: Liberating Christianity from its cultural captivity
(Wheaton, IL: Crossway Books, 2005), 399.
4 C. S. Lewis, Christian reflections (Grand Rapids: Eerdmans, 1967), 10.
5 Institutas, 3.11.6.
6 Ibid.
7 João Calvino, Calvin’s commentaries, trad. William Pringle (Grand Rapids: Baker, 1999), 20, 25.
Todas as citações dos comentários de Calvino são extraídas dessa coleção multivolumes.
8 Georgia Harkness, John Calvin: The man and his ethics (Nashville: Abingdon, 1958), 179.
9 Chad Walsh, “The advantages of the Christian faith for a writer”, em Leland Ryken (org.), The
Christian imagination: The practice of faith in literature and writing (Colorado Springs:
WaterBrook, 2002), 169.
10 Francis Schaeffer, Art and the Bible (Downers Grove, IL: InterVarsity, 1973), 33, 37, 61.
11 Institutas, 1.11.12
12 Abraham Kuyper, Lectures on Calvinism (Grand Rapids: Eerdmans, 1931), 142.
13 Ibid., 156-57.
14 Schaeffer, Art and the Bible, 35-36.
15 Ibid., 59.
16 Comm., 3.3.291.
17 Ibid., 3.3.291-92.
18 Institutas, 1.15.2.
19 Ibid., 2.2.14.
20 Ibid., 2.2.16.
21 Schaeffer, Art and the Bible, 35.
22 Institutas, 1.1.16.
23 Comm., 3.3.292.
24 Ibid., 3.3.291.
25 Uma cartilha sobre a doutrina calvinista da graça comum inclui as seguintes fontes (em ordem
cronológica): Charles Hodge, Systematic theology (1887; reimpr. Londres: James Clarke, 1960),
2.654-75; Herman Kuyper, Calvin on common grace (Grand Rapids: Smitter, 1928); Louis Berkhof,
Reformed dogmatics (Grand Rapids: Eerdmans, 1932), 2.22-32; Cornelius Van Til, Common grace
(Filadélfia: Presbyterian and Reformed, 1954); M. Eugene Osterhaven, “Common Grace”, em Carl F.
H. Henry (org.), Basic Christian Doctrines (Nova York: Holt, Rinehart and Winston, 1952), 171-77.
O livro Common grace de Abraham Kuyper não está disponível em inglês.
26 Institutas, 2.2.15.
27 Comm., 21.300-1.
28 Institutas, 2.2.15.
29 Ibid.
30 Comm., 3.3.291-92.
31 Institutas, 2.2.16.
32 Leland Ryken, Triumphs of the imagination: Literature in Christian perspective (Downers
Grove, IL: InterVarsity, 1974), 33.
33 Institutas, 3.10.2.
34 Ibid.
35 Roland André Delattre, Beauty and sensibility in the thought of Jonathan Edwards: An essay in
aesthetics and theological ethics (New Haven: Yale University Press, 1968).
36 Jonathan Edwards, The nature of true virtue, in The works of Jonathan Edwards (New Haven:
Yale University Press, 1989), 8.550-51.
37 Abraham Kuyper, Lectures on Calvinism, 156.
38 Ibid.
39 Institutas, 1.7.1
40 Cleanth Brooks, “Christianity, myth, and the symbolism of poetry”, em Finley Eversole (org.),
Christian faith and the contemporary arts (Nashville: Abingdon, 1957), 105.
41 Amos Wilder, “Poetry and religion”, em Eversole, Christian faith and the contemporary arts,
113-14.
42 Schaeffer, Art and the Bible, 41.
43 Kenneth Kantzer, “Calvin and the Holy Scriptures”, em John F. Walvoord (org.), Inspiration and
interpretation (Grand Rapids: Eerdmans, 1957), 142.
44 John T. McNeill, The history and character of Calvinism (Londres: Oxford University Press,
1967), 213.
45 Institutas, 1.7.2.
46 Sir Philip Sidney, “An apology for poetry”, em Charles Kaplan (org.), Criticism: The major
statements (Nova York: St. Martin’s, 1964), 114.
P
6
O legado de Calvino na filosofia
William C. Davis
rovavelmente, Calvino ficaria desgostoso ao saber da existência deste
capítulo, pelo menos inicialmente. Quase toda menção de “filosofia” nas
Institutas e nos Comentários é negativa; por isso, ele poderia preferir que o
seu legado na filosofia fosse a morte da disciplina. Para consternação de
muitos, dentre os quais Calvino, a filosofia não desapareceu. Sistemas
filosóficos pagãos não cristãos multiplicaram-se sem restrição desde o
século 16. Porém, ainda mais surpreendente para Calvino pode ser o
crescimento e a proliferação de escolas e sistemas filosóficos cristãos – até
mesmo cristãos reformados. Neste capítulo, vou resumir alguns dos modos
mais importantes pelos quais a influência de Calvino continua a ser sentida
na obra de filósofos. Vou focar o impacto duradouro de Calvino na
epistemologia e na metafísica; mesmo nessas áreas, meu tratamento será
seletivo. Muito mais poderia ser dito sobre o legado de Calvino às
subdisciplinas filosóficas da ética (como no hedonismo cristão de Desiring
God [Desejando Deus], de John Piper), da estética (como em Art in action
[Arte em ação], de Nicholas Wolterstorff, ou Modern art and the death of a
culture [A Arte moderna e a morte de uma cultura], de Hans Rookmaa ker) e
da filosofia política (como em The myth of religious neutrality [O mito da
neutralidade religiosa], de Roy Clouser, ou In pursuit of justice [Em busca
de justiça], de James Skillen).1 Até mesmo um levantamento parcial da
contínua influência de Calvino na epistemologia e na metafísica mostrará
que os filósofos têm uma profunda dívida para com Calvino, não apenas
pelos seus discernimentos, mas também pela tradição de investigação
acadêmica fundamentada nos seus métodos, que os seus seguidores
continuam seguindo.
O calvinismo como uma tradição de pesquisa,
não uma escola filosófica
O principal objetivo de Calvino nas suas Institutas e nos seus Comentários
foi fornecer uma base bíblica sistemática para a prática pastoral.2 Por causa
disso, é provável que ele ficasse consternado ao descobrir que os seus
escritos foram tomados, por alguns dos seusseguidores, também como uma
base para especulação filosófica. Com facilidade demais, a filosofia
especulativa pode tornar-se independente das preocupações pastorais, e
devemos lamentar a utilização da obra de Calvino como uma desculpa para
a concepção de soluções áridas e sem vida para enigmas sofísticos. Porém,
a filosofia especulativa não precisa ser seca ou pastoralmente morta. Para os
filósofos envolvidos com unir problemas verdadeiros aos temas pastorais da
apologética, liberdade humana e escatologia pessoal, a obra de Calvino
estabelece uma base que seria amplamente apreciada; certamente, ele não
desprezaria a orientação prática que a reflexão filosófica dos seus
seguidores frequentemente seguiram depois do seu tempo.
Para Calvino e os últimos tempos da Idade Média, “filosofia” referia-se,
mais frequentemente, ao exercício da razão autônoma, isto é, a razão
humana isolada da obra corretiva da revelação divina.3 Como calvinistas
posteriores, incluindo Dooyeweerd, ecoariam, Calvino fazia distinção entre
filosofia e filosofia cristã precisamente na questão da dependência da
revelação de Deus.4 Para Calvino, a “filosofia cristã” só é possível quando a
investigação de questões filosóficas se submete ao Espírito Santo e à
revelação de Deus na natureza e à revelação especial na Palavra.5 O
entusiasmo iluminista pela autonomia em vez da dependência tornou os
séculos 18 e 19 especialmente inóspitos à obra autoconsciente calvinista na
filosofia.
Ao longo de três séculos de pensamento Iluminista sobre uma “boa”
filosofia, o legado de Calvino à disciplina da filosofia foi levado adiante
mais como uma tradição de investigação do que como um corpo de
conclusões sobre teorias filosóficas. A influência de Calvino sobre questões
puramente filosóficas é mais fácil de rastrear na subdisciplina da
epistemologia, na qual suas prolíficas sugestões sobre a nossa dependência
da revelação de Deus para todo o nosso conhecimento e os efeitos
incapacitantes da queda ainda são temas de exame minucioso.6 Porém,
numa inspeção mais aprofundada, até mesmo na epistemologia o seu legado
é mais uma questão de método do que uma visão recebida ou um sistema
filosófico.
Epistemologia
As Institutas de Calvino iniciam com afirmações epistemológicas radicais.
Não apenas todos sabem da existência de Deus,7 mas o conhecimento de
Deus está estreitamente ligado ao conhecimento que a pessoa tem de si
mesma.8 Calvino não desperdiça tempo imaginando ou respondendo a
objeções céticas. Em vez disso, ele se concentra nas implicações pastorais
desse conhecimento “duplo”: todos nós somos adoradores; todos nós
conhecemos a Deus e conhecemos a nós mesmos; e, deixados à nossa
própria vontade, adoraremos a ídolos inventados por nós mesmos.9 Desde a
queda de Adão e Eva, a nossa capacidade de conhecer está comprometida; a
única solução para os nossos defeitos epistêmicos é a obra do Espírito Santo
corrigindo os nossos pensamentos e emoções pela aplicação da Palavra de
Deus à nossa mente e ao nosso coração. Nesse programa ambicioso,
Calvino inicia um novo capítulo na epistemologia ocidental. Por razões
bíblicas e pastorais, ele toma como certo que o conhecimento de si mesmo e
o conhecimento de Deus são características comuns da vida humana. Ele
também assume sem argumento que o conhecimento não depende da
mediação de sacerdotes ou intelectuais.
Pelo fato de que seus objetivos são pastorais, Calvino está disposto a dar
relativamente pouca atenção a questões teóricas. Como resultado, é muito
mais fácil estar confiante quanto ao perfil de uma epistemologia calvinista
do que insistir em detalhes sobre definições e mecanismos. Por exemplo,
Calvino sustentava claramente que todas as pessoas encontram-se lutando
com algum tipo de consciência da existência de Deus. Ele é muito menos
específico sobre como pensa que essa consciência surge. De modo
semelhante, a corrupção das faculdades humanas resultante da queda é uma
parte crucial das afirmações de Calvino sobre a existência social e religiosa
humana. Porém, os modos exatos pelos quais essa corrupção surge e se
alastra recebem menos atenção. De um ponto de vista pastoral, faz sentido
concentrar-se mais no fato da necessidade do que nos mecanismos precisos
que a alimentam e sustentam. Contudo, mesmo com um foco pastoral, é
evidente que três temas da obra de Calvino tiveram e terão um impacto
importante no desenvolvimento da filosofia ocidental. Esses três são o papel
central da Palavra de Deus para o nosso conhecimento, a universalidade do
conhecimento de Deus e da fé como um tipo de conhecimento, e os efeitos
noéticos da queda. Vou considerar cada um deles.
A autoridade da Escritura
Para Calvino, todo conhecimento depende de revelação. O que passamos a
conhecer sobre o mundo à nossa volta por experiência ou reflexão depende
de revelação geral. Embora não cristãos tendam a pensar que arrancamos
esse conhecimento do mundo pelos nossos próprios poderes sem qualquer
necessidade de ajuda divina, os filósofos calvinistas reconhecem a nossa
dependência de Deus nos conceder graciosamente a capacidade de
compreendermos o mundo, sustentar essas habilidades e manter a ordem do
próprio mundo. Porém, a obra de Deus na revelação geral é tão uniforme
que é fácil considerá-la algo garantido. Até mesmo filósofos cristãos da era
do Iluminismo foram inclinados a escrever como se os poderes humanos
fossem, por si só, suficientes para dominar questões científicas.10 A
confiança nesses poderes cresceu à medida que a investigação científica
começou a tornar a existência humana mais confortável e eficiente no
século 18. O aumento da confiança na ciência e o método científico de
investigação cresceram a ponto de muitos filósofos estarem dispostos a
acreditar que a razão humana e a experiência desprovidas de ajuda podem
servir como o padrão definitivo contra o qual todas as afirmações de
conhecimento são julgadas.11
Quando Calvino estava escrevendo, antes da ascensão da ciência como
padrão definitivo, sua acolhida da autoridade da Escritura não parecia
notável. Porém, mesmo na sua época ela era ousada – e continua a ser uma
posição ousada hoje, mesmo depois do declínio da confiança abjeta na
ciência. Calvino afirmou a singular autoridade da Escritura, a despeito da
oposição da Igreja Católica Romana. Durante anos a hierarquia da igreja
romana havia ensinado que a autoridade da Bíblia depende da aprovação da
igreja. Calvino inverteu essa dependência, afirmando que a autoridade da
igreja se estende apenas enquanto se mantém coerente com a Palavra de
Deus.12 O padrão último contra o qual todas as afirmações de conhecimento
devem ser julgadas é a Palavra de Deus, que autentica a si mesma.13
Calvino não separou Deus da sua Palavra. Nisso, ele seguiu o raciocínio
de Hebreus 6: as promessas de Deus (a Palavra de Deus) não podem
repousar sobre algo mais certo do que o próprio Deus. Calvino reconhece a
Bíblia como autenticadora de si mesma porque é a Palavra de Deus.14 Ele
reconhece que isso leva naturalmente a outra pergunta. Como sabemos que
a Bíblia é a Palavra de Deus? Para Calvino, a resposta é o testemunho
interior do Espírito Santo. Sabemos que a Bíblia é a Palavra de Deus porque
Deus Espírito nos assegura isso.15 Embora essa resposta tenha pouca
probabilidade de ser satisfatória para aqueles que não foram assegurados
pelo Espírito, a posição de Calvino é filosoficamente firme. A única
autoridade que poderia autorizar a Palavra de Deus é o próprio Deus.
Nenhuma outra autoridade é convocada ou introduzida ilegalmente.
Portanto, os seguidores filosóficos de Calvino compartilhavam uma
visão muito elevada da autoridade da Palavra de Deus. Enquanto Descartes
estava anunciando a alvorada da era moderna em suas Meditações, os
teólogos de Westminster ofereciam uma alternativa calvinista. Procurando
um ponto de partida que autenticasse a si mesmo independente da Igreja
Católica Romana, Descartes escolheu iniciar pelas suas ideias claras e
distintas. Ele aceitava tudo que é imediatamente evidente à sua
autoconsciência como a pedrade toque da verdade que autentica a si
mesma.16 A Confissão de Fé de Westminster reconhece tudo o que é
“expressamente declarado na Escritura” como o ponto de partida.17 A
maioria dos filósofos desde aquela divisão na década de 1640 seguiu
Descartes. Em vez de fazer os seus sistemas se apoiarem definitivamente na
verdade da Palavra de Deus, eles tentaram encontrar uma maneira de
transformar em autoridade final “o que é imediatamente evidente” à nossa
mente. O resultado foi uma frustração bem documentada.18 No entanto, para
os propósitos deste ensaio, o caminho filosoficamente menos percorrido, do
qual Calvino foi pioneiro, é muito mais interessante.
Os epistemólogos modernos procuraram entre os poderes humanos
naturais uma fonte de conhecimento confiável e que autentica a si mesma.
Os filósofos calvinistas foram os únicos a partir da autoautenticadora
Palavra de Deus. Porém, isso não aconteceu logo depois Calvino. Até o
século 20, o apelo do otimismo modernista foi tão grande que os
epistemólogos cristãos estavam confortáveis com confiar em alguma
capacidade humana juntamente com a Palavra de Deus. Jonathan Edwards
ficou impressionado com o poder da razão natural.19 Thomas Reid e muitos
seguidores do século 19 apoiavam-se na confiabilidade do “senso comum”
maduro para derrotar o ceticismo e fornecer um ponto de partida para o
conhecimento.20 Foi apenas depois das obras de Cornelius Van Til, John
Frame, Gordon Clark e Alvin Plantinga, no século 20, que os filósofos
cristãos começaram a oferecer teorias do conhecimento que dão à Palavra
de Deus o lugar reservado para ela no sistema de Calvino.
A “epistemologia cristã” de Van Til é habilmente desenvolvida na obra
de John Frame. Sua teoria do conhecimento é dominada pelo direito
absoluto de Deus de exercer o seu domínio sobre todas as coisas, incluindo
as reivindicações de conhecimento.21 O próprio Deus não é apenas o padrão
da verdade: a sua Palavra é a única fonte, infalível e autoautenticadora da
verdade. Devido a isso, os critérios de Deus para “verdade” e
“conhecimento” precisam ser pressupostos num ato de reverente submissão
antes de poder ser feita qualquer reivindicação de conhecimento. Aqueles
que afirmam saber alguma coisa sem se submeterem às exigências do
senhorio de Deus são rebeldes que só têm sucesso com “capital
emprestado”.22 Todavia, embora insistisse na futilidade da epistemologia
sem submissão/pressuposição, Van Til não elaborou uma teoria detalhada
do conhecimento.
O “dogmatismo” de Gordon Clark deu mais detalhes, mas no seu zelo
para silenciar os céticos, na sua epistemologia Clark torna impossíveis
muitas afirmações importantes sobre o conhecimento. A abordagem de
Clark é simples: só conhecemos o que é explicitamente declarado na
Escritura e o que pode ser deduzido da Escritura por “consequências boas e
necessárias”.23 O ceticismo radical é derrotado desde o início, porque a
Palavra de Deus autoriza a si mesma como fonte de conhecimento. As
regras de “consequências boas e necessárias” são autorizadas (insiste Clark)
porque são usadas pelos escritores da Bíblia. Como resultado, o
dogmatismo de Clark lhe permite afirmar que ele sabe que Deus existe, que
Jesus é o Cristo e que Jesus ressuscitou de entre os mortos. Porém, embora
esses sejam itens cruciais de conhecimento para os cristãos, a epistemologia
de Clark luta com outras verdades importantes. Por exemplo, Clark admitiu
não saber que Cristo morreu por Gordon Clark. Pelo fato de que “Gordon
Clark” não é mencionado na Bíblia, ele não tinha como deduzir, a partir da
Escritura, qualquer conclusão que o mencionasse. Ele nem sequer sabia da
sua própria existência. Clark viu as regras da lógica utilizadas na Escritura
e, assim, se sentiu autorizado a utilizar essas regras. Ele não estava disposto
a seguir o exemplo do escritor do Evangelho de Lucas e usar o que
aprendeu por experiência sensorial e testemunhas oculares para estender o
que ele contava como conhecimento (ver Lc 1.1-4). O zelo de Clark por
uma epistemologia calvinista não pode ser questionado; porém, o valor do
seu dogmatismo é limitado pelo seu inevitável escorregão para o ceticismo
quanto à aplicação de verdades espirituais à nossa vida hoje.
A tentativa mais recente de desenvolver uma epistemologia que leva a
sério a autoridade autoautenticadora da Escritura aparece na versão
“estendida” do “Modelo A/C”, de Alvin Plantinga, em Warranted Christian
belief [Crença cristã autorizada].24 Os detalhes da abordagem de Plantinga
são explicados na próxima seção. Aqui é suficiente observar duas
características do uso da Escritura por Plantinga. Em primeiro lugar,
Plantinga reconhece a necessidade da Escritura para o nosso conhecimento
das verdades espirituais. Embora insista na adequação de percepção
sensorial, intuição racional, memória e nossos outros poderes para nos
darem conhecimento do mundo, Plantinga reconhece que algumas verdades
só podem ser conhecidas pela operação do Espírito Santo por meio das
Escrituras. Por exemplo, sabemos que Jesus ressuscitou de entre os mortos
porque, quando lemos Lucas 24, o Espírito Santo revela à nossa mente e
sela no nosso coração a verdade de que Jesus ressuscitou. Nossos outros
poderes são insuficientes para apreender essa verdade, como Calvino afirma
nas Institutas: “as coisas que pertencem à nossa salvação são por demais
elevadas para serem percebidas pelos nossos sentidos, vistas pelos nossos
olhos ou manipuladas pelas nossas mãos”.25 Em segundo lugar, Plantinga
adota explicitamente a insistência de Calvino de que a Palavra de Deus é
autoautenticadora.26 A autoridade da Palavra de Deus não depende de ser
considerada aceitável pela razão autônoma, pelos sentidos ou pelo consenso
da comunidade. Algumas das conclusões teológicas de Plantinga são
angustiantes (p. ex., sobre o livre-arbítrio ou as limitações de Deus na
criação), mas o papel que ele dá à Escritura na sua epistemologia é um
desenvolvimento promissor de um tema calvinista fundamental.27
Conhecimento de Deus28
O Catecismo de Genebra, de Calvino, começava com a pergunta: “Qual é o
principal propósito do homem?” A resposta a essa pergunta foi: “Conhecer
a Deus, por quem ele foi criado”.29 Calvino vê claramente o conhecimento
de Deus como uma preocupação pastoral vital. Há muito ele tem sido uma
preocupação central dos filósofos; hoje, o conhecimento de Deus é a única
área da filosofia em que o nome de Calvino é conhecido de maneira
positiva. O mundo filosófico atual conhece Calvino por apenas três ideias,
duas das quais não são bem acolhidas. As duas ideias que não são bem
acolhidas são a predestinação que destrói a liberdade e a ideia deprimente
de que os seres humanos sofrem de depravação. A única ideia positiva que
os filósofos atribuem a Calvino é o sensus divinitatus, a doutrina
epistemológica de que os seres humanos consideram a crença em Deus um
tanto inevitável. Isso conta como uma ideia positiva até mesmo para os
filósofos não cristãos, porque a maioria dos filósofos considera o ceticismo
irritante. A ideia de que o conhecimento de Deus depende de um poder
distinto semelhante à percepção é intrigante. Calvino recebe o crédito por
afirmar que temos essa capacidade; os filósofos ainda estão debatendo as
suas afirmações.
O que Calvino diz sobre o nosso conhecimento imediato de Deus ecoa
as palavras de Paulo em Romanos 1. Calvino escreve:
Que há na mente humana, e de fato por instinto natural, algum senso de Divindade
consideramos incontestável, uma vez que o próprio Deus, para impedir qualquer homem de
alegar ignorância, dotou todos os homens com alguma ideia da sua divindade, cuja memória
se renova constantemente e, ocasionalmente, amplia-se, isso tudo para que um homem,
estando ciente da existência de um Deus, e que ele é o seu Criador, possa ser condenado
pela sua própria consciência quando não o adorar, nem consagrar a sua vida a servi-lo.30
Seguindo o exemplo de Paulo, Calvino destaca a universalidade do
conhecimento de Deus para afirmar a culpabilidade universal por não
adorar a Deus. O foco deCalvino é que todos sabem que existe um Deus
que merece adoração. Ele não está fazendo um relato detalhado de como o
conhecimento surge. Uma parte do legado de Calvino na disciplina de
filosofia consiste em esforços de elaborar os detalhes epistemológicos que
cercam a provocante afirmação paulina de Calvino.
Durante o início do período moderno da filosofia (1640-1800),
Descartes afirmou, na sua obra Meditações, que todos nós temos uma ideia
de um criador infinito e perfeito de todas as coisas. Ele sustentou que essa
ideia é colocada lá diretamente por Deus, como se Deus estivesse deixando
uma assinatura na sua obra.31 Descartes não diz como a crença surge, se por
instinto ou por alguma outra faculdade; e a imprecisão sobre como a crença
surge acabou afastando os filósofos da abordagem de Calvino. Depois de
Descartes, ainda era esperado que o conhecimento de Deus fosse
generalizado, mas os filósofos ficaram desgostosos com a sugestão de
Calvino de que o instinto, a percepção ou até mesmo a memória produz a
crença. A posição de Descartes de que a ideia de Deus é inata, também caiu
em desgraça. No seu livro Ensaio sobre o entendimento humano, Locke
rejeita todas as ideias inatas e argumenta que o conhecimento de Deus é
universalmente disponível por demonstração de princípios autoevidentes.32
À exceção dos filósofos escoceses do “senso comum”, como Thomas
Reid, gerações de filósofos cristãos seguiram o exemplo de Locke.33
Embora a crença em Deus possa surgir de uma espécie de instinto, pensava-
se que o conhecimento da existência de Deus dependia de uma
demonstração, uma prova. Alguns dos mais importantes filósofos
calvinistas dos últimos trezentos anos sustentaram essencialmente essa
posição; entre eles estão Jonathan Edwards, Charles Hodge, B. B. Warfield,
John Gerstner e R. C. Sproul.34 O pensamento iluminista sobre o
conhecimento tornou difícil para os filósofos e teólogos cristãos resistir à
conclusão de que o conhecimento exigia justificação (epistêmica); e
pensava-se que a prova demonstrativa era o tipo mais poderoso de
justificação. No entanto, como se viu, dar uma prova demonstrativa da
existência de Deus a partir de premissas incontroversas era difícil. Caso
seja possível, muito poucos cristãos o fizeram. Então, se só sabemos que
Deus existe por comprovação, poucas pessoas –incluindo Calvino –sabem
que Deus existe.
Os filósofos calvinistas e outros simpatizantes da explicação de Calvino
para o nosso conhecimento de Deus quase sempre se afastaram de procurar
uma prova demonstrativa para justificar a crença em Deus. Em vez disso,
eles questionaram o pressuposto de que o conhecimento sempre requer uma
justificação voltada a satisfazer os céticos. A obra Our reasonable faith
[Nossa fé razoável], de Herman Bavinck (1909), adotou essa abordagem.
Bavinck insistiu em que o nosso conhecimento de Deus
obviamente tem seu próprio caráter peculiar. Ele é diferente de todos os outros
conhecimentos que podem ser obtidos, e a diferença não é de grau, mas de princípio e
essência […] [Ele] difere do conhecimento das coisas criadas em sua origem e objeto, bem
como em sua essência e efeitos.35
O conhecimento de Deus difere em essência dos outros conhecimentos
porque envolve o amor a Deus, não meramente a posse de informações.
Esse conhecimento também difere de outros conhecimentos porque
depende de fé. “Ele não é o produto de estudo e reflexão científicos, mas de
fé infantil e simples.”.36
Relatos semelhantes do nosso conhecimento de Deus podem ser
encontrados nas obras de outros filósofos do século 20. Um dos primeiros
seguidores de Bavinck foi o teólogo reformado Cornelius Van Til, cujas
ideias foram posteriormente desenvolvidas por Greg Bahnsen, John Frame
e Scott Oliphint.37 Para esses “pressuposicionalistas”, o conhecimento do
Deus da Bíblia e a submissão ao seu senhorio são o princípio de todo
conhecimento e significado. Embora todas as pessoas conheçam Deus a
partir do que foi revelado na criação, o verdadeiro conhecimento de Deus
(em vez de supressão na injustiça) depende de fé operada em nós pelo
Espírito Santo. Mais recentemente, filósofos conscientemente calvinistas
como Paul Helm (Faith and reason [Fé e razão]) e Esther Lightcap Meek
(Longing to know [Ansiando por conhecer]) trabalharam para desenvolver
os detalhes epistemológicos da nossa consciência de existência de Deus.38
A obra de Van Til, Frame, Helm e Meek é bem conhecida entre
calvinistas e alguns filósofos evangélicos. Porém, hoje o legado de Calvino
na filosofia é mais amplamente conhecido por meio da obra de Plantinga,
Wolterstorff e os (assim chamados) epistemólogos reformados.39
Misturando o fundacionalismo do senso comum de Thomas Reid com uma
confiança holandesa como a de Bavinck, a obra Warrant and proper
function [Justificativa e função adequadas], de Plantinga, desenvolve uma
ampla estratégia epistemológica na qual o sensus divinitatus de Calvino é
análogo a outras faculdades, como a visão e a audição. Como resultado, a
nossa crença na existência de Deus é “corretamente básica” quando surge
do nosso senso natural e instintivo da presença de Deus.
Para Plantinga, o conhecimento da existência de Deus é como o nosso
conhecimento de que existem outras mentes ou de que a árvore que vejo
pela minha janela existe. Não só nos encontramos acreditando na existência
de outras mentes e árvores sem elaborar provas racionais, mas sabemos que
elas estão lá sem elaborar provas racionais. Essas crenças não são
garantidas por decorrerem logicamente de outras crenças (mais básicas).
Em vez disso, elas são garantidas por serem produzidas pelas faculdades (1)
que funcionam corretamente (isto é, como foram projetadas), (2) no
ambiente para o qual foram concebidas e (3) bem direcionadas à verdade
pelo seu Projetista. Olhando pela minha janela, vejo-me acreditando haver
uma árvore lá fora. Se essa crença é o resultado de os meus sentidos
funcionarem como Deus os criou para funcionarem, e se Deus fez os meus
olhos para apreenderem a verdade sobre o mundo externo, então a minha
crença está justificada. Plantinga argumenta que uma crença pode ser
garantida até mesmo sem uma justificativa. Por isso, devido ao
conhecimento ter como garantia uma crença verdadeira, posso saber que
existe uma árvore lá fora ainda que não consiga produzir uma prova para
isso.40
Segundo Plantinga, o nosso conhecimento de Deus atende a todas essas
condições. O instinto natural que Calvino denomina sensus divinitatus é a
parte do nosso equipamento cognitivo que Deus projetou e nos deu para
produzir em nós crenças sobre a sua existência. O ambiente para o qual ele
foi concebido inclui a magnífica criação de Deus. Meramente pelas coisas
que foram feitas, todas as pessoas sabem – ou são culpáveis por reprimir o
conhecimento – da existência de Deus. Então, quando vejo a infinidade de
estrelas numa noite clara e penso “Deve haver um Deus”, é correto dizer
que eu sei que Deus existe. É correto dizer isso até mesmo quando sou
incapaz de começar a criar um argumento que, a partir do esplendor dos
céus como premissa, raciocinaria para concluir pela existência de Deus. Eu
sei, devido à crença ter surgido da mesma maneira natural como surgiu a
minha crença na árvore que vejo através da minha janela.
Não é de admirar que os filósofos tenham criticado a abordagem de
Plantinga ao conhecimento de Deus. Os não cristãos tentaram argumentar
que o sensus divinitatus é diferente demais de faculdades menos
controversas (como visão e memória) para contar a crença em Deus como
corretamente básica mesmo que Deus exista. Filósofos cristãos fizeram
objeções a Plantinga ter deixado demasiadamente pouco espaço para os
argumentos racionais para a existência de Deus encontrados na teologia
natural.41 A força dessas objeções ainda é uma questão de debate entre os
filósofos cristãos e os filósofos não cristãos. Porém, o que não é discutível é
a importância do funcionalismo correto de Plantinga nas discussões
epistemológicas atuais. A atenção que a obra de Plantinga está recebendo é
importantepara a filosofia cristã por no mínimo duas razões. A primeira é
que a obra de Plantinga coloca as reivindicações de Calvino sobre o sensus
divinitatus no centro dos debates atuais sobre a natureza do conhecimento.
O ressurgimento do interesse em Calvino quanto a esse tema levou os
filósofos a examinarem também o tratamento de outras questões por
Calvino.
A segunda característica importante do uso de Calvino por Plantinga
refere-se ao modo como Plantinga estende a sua análise além do
conhecimento da existência de Deus para outras crenças cristãs. Em
Warrant and proper function, Plantinga desenvolve uma teoria do
conhecimento que mostra como o sensus divinitatus é corretamente contado
entre as faculdades do nosso “projeto”. Quando funciona corretamente, essa
faculdade gera crença justificada na existência de Deus. Em Warranted
Christian belief, Plantinga identifica a fé como outro módulo recebido de
Deus do nosso equipamento formador de crenças.42 A discussão de
Plantinga sobre a fé como fonte de conhecimento também segue as
Institutas de Calvino. Plantinga argumenta que, quando está atuando
corretamente, a fé é a faculdade pela qual o Espírito Santo revela à nossa
mente e sela no nosso coração a verdade da Palavra de Deus.43 Assim, por
exemplo, Plantinga insiste em que ele sabe que Jesus ressuscitou de entre os
mortos porque, quando lê na Bíblia “Ele não está aqui, mas ressuscitou” (Lc
24.6), ele se descobre crendo que Jesus ressuscitou de entre os mortos. Mais
do que apenas tendo a crença, ele descobre seu coração movido pelo
esplendor da realidade. Nem a crença nem a emoção resultam de
argumentação racional. A crença e a emoção são a obra do Espírito Santo
por intermédio da faculdade cognitiva restaurada, projetada para apreender
essa verdade espiritual.
Os detalhes do relato da fé de Plantinga como fonte de conhecimento
vão muito além da discussão de Calvino sobre a fé. Em parte, isso ocorre
porque Plantinga baseia-se na obra de Jonathan Edwards sobre o papel das
emoções no nosso conhecimento das verdades espirituais.44 Porém, mesmo
onde a epistemologia de Plantinga se estende para além de Calvino e
Edwards, as suas conclusões estão, geralmente, bem dentro do espírito e da
intenção das afirmações de Calvino nas Institutas. No que se refere ao
nosso conhecimento de Deus por meio do sensus divinitatus e do nosso
conhecimento das grandes verdades do evangelho por meio da leitura da
Palavra de Deus, a obra de Plantinga ampliou o legado filosófico de
Calvino tanto quanto qualquer outro autor atual.
Os efeitos noéticos da queda
O Iluminismo era otimista quanto aos poderes humanos quase a ponto da
irreflexão. Calvino é menos entusiasmado quanto à capacidade de os seres
humanos caídos fazerem o bem e pensarem de modo correto sobre a
realidade. Enquanto a maioria dos filósofos admite que os seres humanos
são falíveis, Calvino é conhecido por uma visão muito mais pessimista, que
enfatizava a profundidade e a extensão do estado caído das nossas
faculdades. Os termos gerais usados pelos epistemologistas para o conjunto
de habilidades que usamos para formar crenças são “dotação noética” ou
“equipamento noético”. O termo “noético” refere-se à sabedoria ou
entendimento. Ele estende-se além de meras ideias ou crenças, atingindo
emoções, disposição, consciência prática. Ir além da mera formação de
ideias é importante para o entendimento da contribuição de Calvino à
epistemologia, uma vez que ele nunca trata a crença separadamente da ação
ou escolha. Isso é evidente nas Institutas (1.15.8), em que a primeira
atividade do intelecto é distinguir entre o bem e o mal. A consciência é uma
função principal da nossa dotação noética. A visão física é outra parte da
nossa dotação noética. Apesar de ter sido comprometida na queda, a visão
espiritual pela fé também pode ser uma parte do nosso equipamento
noético. Os efeitos noéticos da queda incluem todas as maneiras pelas quais
a queda prejudicou o equipamento que usamos para formar crenças e
sentimentos.
Embora os dados bíblicos sejam limitados, podemos juntar alguns dos
poderes noéticos que Adão e Eva possuíam antes da queda. Calvino
menciona as capacidades de Adão e Eva pré-queda para destacar as nossas
deficiências epistemológicas pós-queda. Ele observa, por exemplo, que
antes da queda Adão e Eva tinham a percepção clara das coisas celestiais
(ou espirituais).45 Para que eles tivessem comunhão com Deus (passeando
no jardim), a presença de Deus precisava ter sido evidente com uma clareza
que não vivenciamos agora. No seu trabalho de atribuir nomes aos animais,
Adão demonstra uma imaculada capacidade de fiel mordomia do jardim.
Além de usar a linguagem para exercer domínio, Adão também
demonstrava a capacidade de amar o serviço fiel a Deus. Nas suas primeiras
palavras a Eva, Adão demonstra uma habilidade de linguagem que é tanto
poeticamente sutil quanto espiritualmente perceptiva. Antes da queda, Adão
e Eva viam realidades espirituais (seres, valores, significados), amavam o
que é verdadeiramente adorável e eram capazes de expressar esses poderes
sem egoísmo, divisão ou idolatria.46
A queda de Adão e Eva desse estado sublime excede qualquer
explicação. Com todas as suas vantagens noéticas – tanto cognitivas quanto
afetivas –, é impossível imaginar um motivo suficiente ou sugerir um
mecanismo que os levaria de uma alegre confiança a uma desesperada
rebelião.47 Além dos ferimentos autoinfligidos que eles experimentaram na
queda, Deus também impôs uma maldição pactual sobre eles e seus filhos.
Nenhuma das nossas faculdades – incluindo a razão –está isenta de
corrupção. Isso significa que não podemos usar qualquer faculdade (razão,
sentidos, autoconsciência etc.) como o padrão contra o qual as demais
faculdades são calibradas ou corrigidas. As limitações e distorções que
agora afligem o pensamento e a emoção não nos dão uma desculpa para o
nosso comportamento pecaminoso para com Deus e para com os outros,
mas são suficientemente profundas para nos deixar epistemologicamente
dependentes da graça de Deus. Para Calvino, essas consequências são
características óbvias da narrativa bíblica. Mais do que apenas finitos, os
seres humanos são caídos. Por causa disso, precisamos buscar fora de nós
mesmos um padrão e a correção. Para a maioria dos filósofos, essa é uma
conclusão inaceitavelmente negativa sobre as nossas capacidades.
Para as questões espirituais, os poderes humanos caídos não são apenas
ineptos; eles nos levam a adotar falsidades desagradáveis. Porém, no
tocante às questões terrenas as coisas são diferentes. Com referência à
percepção física e às questões comuns da vida, Calvino observa que o nosso
equipamento noético é praticamente confiável. Podemos nos locomover
sem colidir com as coisas; podemos encontrar e cultivar alimentos;
reproduzimo-nos com sucesso; e construímos sociedades civis capazes de
durar. A discussão de Calvino sobre os nossos poderes pós-queda destaca
essa diferença entre questões espirituais e terrenas.48 Filósofos calvinistas
mais recentes propuseram que a profundidade do impacto da queda nos
nossos poderes segue um continuum. Kuyper, Dooyeweerd e Clouser
argumentam que o impacto do pecado sobre os nossos assuntos noéticos é
mais perturbador nas questões religiosas e que ele diminui à medida que o
tema afasta-se cada vez mais das questões religiosas. Eles propõem que as
disciplinas de matemática e da física são menos comprometidas pela queda
do que as disciplinas da economia e da ética.49
A corrupção dos nossos poderes noéticos é um problema tanto
individual quanto comunal. O egoísmo e a idolatria são incentivados pelo
exemplo de outras pessoas, e todos nós acreditamos com facilidade demais
que as opiniões e práticas da nossa tribo são superiores às opiniões e
práticas de outras tribos.50 Críticos do século 20 que tratam do otimismo
moderno sobre a razão humana escolheram esse tema calvinista,
enfatizando a dimensão comunal da nossa disfunção noética. Filósofos
cristãos como Merold Westphal creditaram a Calvino o alerta ao mundo
filosóficoocidental sobre o nosso estado caído.51 Porém, os alertas
calvinistas sobre os efeitos noéticos da queda foram ignorados por quase
todos os filósofos iluministas. Ao longo de todo o período moderno, o
legado de Calvino na filosofia incluiu ser uma voz minoritária
recomendando cautela. Com o fim do otimismo iluminista e a emergência
do pessimismo pós-moderno e pluralista, é provável que os filósofos
calvinistas terão de equilibrar o relato da nosso epistêmico estado de caídos
com observações sobre as habilidades epistêmicas retidas pela humanidade
depois da queda.
Metafísica: Livre-arbítrio e providência divina52
Tanto filósofos cristãos quanto não cristãos consideraram partes da
epistemologia de Calvino úteis e dignas de desenvolvimento adicional. As
posições metafísicas de Calvino não foram tão bem recebidas.53 A ênfase
bíblica de Calvino na glória de Deus complica qualquer tentativa de dar à
liberdade humana uma explicação filosoficamente cuidadosa. O problema
do relacionamento entre a liberdade humana e o controle providencial de
Deus de todas as coisas remonta, pelo menos, a De libero arbitrio, de
Agostinho.54 A doutrina da providência divina de Calvino torna o desafio
especialmente grande. Ao insistir na total independência de Deus de todas
as coisas estranhas à sua própria natureza e na totalidade do decreto de
Deus, Calvino só deixa espaço para teorias da liberdade humana que
afirmem a compatibilidade da meticulosa providência de Deus e a liberdade
humana moralmente importante.55
Nas gerações imediatamente subsequentes a Calvino, essas abordagens
“compatibilistas” ao livre-arbítrio foram adotadas até mesmo por aqueles
que não pertenciam aos círculos reformados.56 A obra Freedom of the will
[Liberdade da vontade], de Jonathan Edwards, defendeu a posição
calvinista, embora sem adotar o rótulo “calvinista”.57 No entanto, depois do
século 18, os filósofos cristãos se uniram maciçamente ao restante do
mundo filosófico na rejeição do compatibilismo de Calvino. Por causa
disso, explicar a liberdade humana continua a ser um dos principais
desafios enfrentados pelos filósofos calvinistas.
O problema do “livre-arbítrio” mudou desde a época de Calvino. No
século 16, as preocupações quanto à “liberdade” concentravam-se em saber
se os seres humanos caídos retinham, ou não, a capacidade de fazer o bem.
A providência de Deus não era a ameaça mais óbvia à liberdade humana; o
maior obstáculo era representado pela maldição lançada por Deus sobre
Adão e Eva. Contra a afirmação católico-romana de que a nossa vontade
poderia fazer o bem pela nossa própria força, Calvino se uniu a Lutero na
insistência de que o livre-arbítrio é escravo do pecado. Uma das bênçãos da
inclusão em Cristo é a libertação dessa escravidão. Em vez de ser escravo
do pecado, o povo de Deus é escravo da justiça. Os filósofos atuais não
reconhecem isso como uma solução para o problema do “livre-arbítrio”,
mas, para Calvino, esse era o âmago da solução.58
O atual problema filosófico do “livre-arbítrio” tem sua origem numa
mudança de foco, ocorrida no século 17, sobre o que significa ser livre. Em
vez de tratar a liberdade como a capacidade de fazer o bem, filósofos e
teólogos chegaram a ver a liberdade como a capacidade de fazer de modo
diferente (do que a pessoa, de fato, fez). Nessa definição, as pessoas são
verdadeiramente livres apenas se realmente pudessem ter feito outra coisa
em vez do que fizeram. Por exemplo, William Farel exigiu
expontaneamente que Calvino permanecesse em Genebra apenas se Farel
tivesse o poder de não fazer essa exigência. Não seria o suficiente dizer que
Deus poderia ter ordenado que Farel não fizesse a exigência. Nesse caso,
era Deus, não Farel, quem tinha o poder. Para Farel ter o poder de fazer
diferente (e ser livre nesse novo sentido), a escolha teria de ser
inteiramente, em última análise, de Farel. Determinar se Farel (ou qualquer
pessoa) tem esse tipo de poder revela-se complicado; mas, durante os
últimos duzentos anos, essa definição de liberdade dominou a discussão
filosófica. Fora dos círculos reformados, pensa-se hoje amplamente que
esse tipo de liberdade – denominado “liberdade libertária” – é uma
condição necessária para ser considerado moralmente responsável.59 Assim,
a menos que uma pessoa tenha esse tipo de poder, nada que ela faz é
moralmente significativo e ela não pode ser moralmente elogiada ou
culpada pelos seus atos.
A última defesa estendida da antiga visão de liberdade foi dada por
Jonathan Edwards na sua obra Freedom of the will, em 1754. Edwards
argumentou favoravelmente ao determinismo teológico, a visão de que
Deus determina tudo o que ocorre, incluindo o que os seres humanos
desejam. Ele definiu os atos livres como sendo aqueles praticados conforme
a vontade da pessoa. Sua posição era um compatibilismo calvinista e seu
raciocínio se fundamentava numa compreensão bíblica da liberdade perfeita
de Deus. Ele insistiu em que Deus é perfeitamente livre, embora seja
incapaz de fazer outra coisa senão o que é perfeito. Edwards rejeitou a
necessidade de definir a liberdade humana em termos da capacidade de
fazer de maneira diferente, com base em que tal definição criaria uma
regressão viciosa. Uma pessoa só seria livre se pudesse ter desejado desejar
fazer diferente etc.60
A análise calvinista de Edwards da liberdade humana perdeu
rapidamente o favor filosófico. Sua explicação do decreto soberano de Deus
estava em descompasso com a tendência humanística do pensamento
iluminista e, logo, Kant (1781) ofereceu uma ponte compatibilista à
abordagem libertária pura à liberdade que hoje domina a discussão
filosófica. Os filósofos cristãos e teólogos anteriores a Kant argumentaram
consistentemente que só Deus possui liberdade libertária. Isso ocorre
porque somente Deus é perfeitamente independente. Somente Deus tem,
inteiramente dentro de si mesmo, o poder para escolher algo diferente.
Somente um ser totalmente independente de Deus poderia ter esse tipo de
poder. Filósofos não cristãos, como Roderick Chisholm, aceitaram
abertamente a conclusão de que os seres humanos precisam ter uma
autonomia semelhante à de Deus para serem considerados responsáveis.61
Até muito recentemente, os filósofos cristãos não estavam dispostos a ir tão
longe. Porém, a força do pressuposto kantiano provou ser poderosa.
Motivados pela convicção de que a responsabilidade moral exige liberdade
libertária, a maioria dos filósofos cristãos agora aprova relatos libertários de
liberdade humana que excluem – às vezes com precisão – o decreto de Deus
como o determinador dos acontecimentos humanos.62
Para crédito deles, a maioria dos filósofos cristãos reconhece que uma
liberdade que torna os seres humanos radicalmente independentes de Deus
dá origem a sérias questões sobre a onisciência e providência de Deus. Até
anos muito recentes, a maioria dos filósofos cristãos seguia a abordagem
agostiniana inicial ao conhecimento do futuro por Deus e ao seu governo
providencial de todas as coisas. Na sua obra De libero arbitrio, Agostinho
explicou o perfeito conhecimento que Deus tinha dos acontecimentos
futuros em termos de Deus olhando (passivamente) para frente. Deus
conhecia o futuro por antevisão. Isso hoje é chamado de solução de
“presciência simples”.63 Para preservar a liberdade humana, a providência
de Deus foi limitada a todos os acontecimentos não determinados pelas
livres escolhas humanas. Embora isso eleve as decisões humanas até o nível
de decisões de Deus (em autonomia e poder), muitos seguiram Kierkegaard
em ver isso como uma prova do poder de Deus: Deus é tão grande que pode
criar seres que são radicalmente independentes dele.64
Os filósofos calvinistas não costumam ser persuadidos pela afirmação
de que a glória de Deus é aumentada por ter a capacidade de criar seres de
quem ele, então, deve depender. Segundo essa visão, embora saiba tudo,
Deus deve aprender passivamente com as suas criaturas o que as suas
vontades independentes determinaram. E os calvinistas não foram os únicos
a ver que a solução da presciênciasimples é filosoficamente instável. Para
Deus saber eternamente que, em 1536, Farel exigiria que Calvino
permanecesse em Genebra, teria de ser eternamente verdadeiro que, em
1536, Farel exigiria que Calvino permanecesse em Genebra. As verdades
eternas não podem ser diferentes. Assim, mesmo que o conhecimento de
Deus seja meramente uma antevisão passiva, Farel não poderia ter agido de
maneira diferente. Por causa disso, a maioria dos filósofos evangélicos
agora admite que o quadro da presciência simples não é suficiente para
preservar a liberdade libertária. Muitos também admitem que devem
escolher entre três opções: determinismo calvinista, molinismo e teísmo
aberto.65
Tanto para os molinistas quanto para os teístas abertos, a defesa da nossa
liberdade libertária leva a uma disposição de ajustar o nosso entendimento
da independência de Deus. Nos dois casos, a liberdade humana é
equiparada à liberdade de Deus.66 Um homem que fizesse adoradores
movidos à corda seria patético, mas Deus não é um homem. A Bíblia
adverte repetidamente contra julgar Deus segundo os padrões humanos.
Mais do que isso, Isaías nos conclama a obter consolo no fato de que há
uma profunda diferença entre Deus e nós. Os caminhos de Deus não são os
nossos caminhos, precisamente porque Deus perdoará quando nós não
perdoaremos (Is 55). Além da inadequação de moldar Deus à nossa imagem
(p. ex., retratando Deus como desejoso de um estreito relacionamento
conosco, como se ele fosse um pai necessitado e nós, adolescentes
teimosos), a posição libertária exige a conclusão de que algumas coisas
boas (como a verdadeira adoração) não vêm, em última instância, de Deus.
A Bíblia ensina que tudo que é bom vem de Deus (Tg 1.17). Se Deus
tivesse de esperar que as vontades humanas escolhessem a verdadeira
adoração, então pelo menos essa coisa boa não viria de Deus.
Os filósofos calvinistas estiveram entre a minoria de filósofos que
argumentam que a liberdade humana moralmente importante e algum tipo
de determinismo são compatíveis. Porém, os calvinistas não são os únicos
compatibilistas e, embora os compatibilistas frequentemente compartilhem
linhas de argumentação, algumas versões do compatibilismo são
biblicamente inaceitáveis. O argumento compatibilista mais influente dos
últimos quarenta anos foi apresentado por Harry Frankfurt. Numa
habilidosa série de histórias, Frankfurt mostra que a responsabilidade moral
é possível até mesmo quando alguém não tem o poder de fazer diferente.67
A história deixou perplexos tantos libertários, que vale a pena esboçar os
detalhes aqui:
Suponha que um homem chamado Black tome todas as medidas
necessárias para assegurar que um homem chamado Jones escolha agir de
uma maneira e não de outra. (Por exemplo, Black pode implantar no
cérebro de Jones um microchip que dê um choque paralisante em Jones
sempre que este considere não agir da maneira específica que Black deseja.)
Suponha, ainda, que o dispositivo de Black nunca tenha de entrar em ação,
porque Jones escolhe fazer o que Black deseja. Nesse caso, Jones é
claramente responsável pela escolha, mas não poderia ter feito de maneira
diferente. A conclusão de Frankfurt é que a plausibilidade dessa história
mostra que a capacidade de fazer diferente não é uma condição necessária
para a responsabilidade moral.
Essa história ajuda a causa calvinista por mostrar que a nossa percepção
sobre a responsabilidade moral não exige que tenhamos a capacidade de
fazer diferente. Assim, ela abre a possibilidade de que poderíamos ser
moralmente livres, mesmo se fôssemos incapazes de fazer diferente
(porque, em última análise, o decreto de Deus tira isso do nosso poder).
Porém, a história de Frankfurt apenas mostra que a intuição libertária é
apressada demais. Ela não resolve todos os problemas levantados por uma
abordagem calvinista à liberdade. Dois desses problemas merecem ser
destacados aqui, por terem probabilidade de dominar a próxima geração da
obra filosófica calvinista sobre a liberdade humana: (a) como Deus pode
nos considerar moralmente responsáveis por escolhas que, em última
análise, encontram sua origem no decreto eterno de Deus, e (b) como os
calvinistas podem evitar a acusação de que a doutrina do decreto eterno de
Deus produz uma forma fatalista de determinismo?
Quanto ao primeiro problema, a responsabilidade humana por atos
decretados por Deus, os filósofos calvinistas terão de começar pelas
afirmações da Bíblia sobre a liberdade humana. A revelação geral
isoladamente não será suficiente para esclarecer a relação entre o decreto de
Deus e nossas livres escolhas, porque nada que existe na criação dá uma
visão adequada das prerrogativas e dos propósitos de Deus. A história de
Frankfurt dá origem a perguntas sobre a necessidade da capacidade de fazer
diferente para que haja uma liberdade moralmente importante, mas a
história ainda sugere que Jones é o autor último da livre escolha. Os
calvinistas não podem fingir que o decreto de Deus só desempenha um
papel nos casos em que Jones escolha independentemente não fazer
diferente. Jones sempre faz o que Deus decreta; e Jones não é a causa
última da escolha. Os calvinistas sustentam que Jones é moralmente
responsável, embora o decreto de Deus determine a escolha. Essa imagem é
ofensiva para a maioria das pessoas, porque significa que Jones é
moralmente culpado por todos os pecados cometidos por Jones, embora
tenham sido decretados por Deus. Porém, a realidade bíblica é ainda pior.
Além de Jones ser culpado, Deus não o é. Deus retém o crédito por todas as
escolhas moralmente corretas de Jones, mas a culpa pelos pecados recai
apenas sobre Jones.
A justiça desse arranjo deixa-nos perplexos até que nos lembramos de
que Deus não é outra criatura. Como Senhor e criador, Deus tem a
autoridade de determinar todas as coisas como lhe aprouver. A questão não
é se os caminhos de Deus fazem sentido para as nossas intuições racionais,
e sim se as nossas intuições estarão em conformidade com as afirmações de
Deus sobre os seus caminhos. Por causa disso, a Palavra de Deus deve ter a
última palavra. Três passagens referem-se de modo especialmente claro à
questão da liberdade humana e do decreto de Deus. Em Atos 2.22-24, Pedro
afirma que Jesus foi entregue à morte por homens pecadores segundo o
determinado desígnio e a presciência de Deus. Em Efésios 2.1-10, Paulo
argumenta que a salvação é inteiramente obra da graça de Deus, e também
que Deus preparou as nossas boas obras de antemão para que andemos
nelas. Em Romanos 9.6-24, Paulo responde à acusação de que Deus é
injusto pela determinação de punir a desobediência de Faraó mesmo depois
de Deus ter endurecido o coração dele. Paulo deixa claro que o
endurecimento serviu ao propósito de exaltar a glória de Deus, e ainda
assim Faraó é justamente punido. Em todos esses casos, o decreto de Deus é
compatível com a responsabilidade moral dos seres humanos envolvidos.68
É por causa dessa evidência bíblica que calvinistas como Edwards
rejeitam os relatos libertários de liberdade e, em vez disso, afirmam que a
liberdade para os seres humanos consiste na capacidade de agir segundo a
nossa vontade. Coerção ou restrição externa imposta por outras criaturas
mina a liberdade e a responsabilidade. O decreto eterno de Deus não limita
ou elimina a nossa responsabilidade. No fim, liberdade não é o tipo de coisa
que pode ser compartilhada. Para os seres humanos serem radicalmente
livres no sentido libertário, Deus teria de ser dependente das vontades
humanas. Deus teria de saber de nós o que desejamos fazer. As nossas
vontades seriam fontes absolutas de bondade e, assim, Deus não seria a
única fonte de bondade. Deus só poderia ter a certeza de que os seus
propósitos seriam atingidos se os planos dele não dependessem de qualquer
livre escolha humana. A Bíblia não sugere que Deus tenha qualquer dessas
limitações. De fato, ela afirma que Deus não aprende ou espera, e que os
seus planos certamente se cumprirão, embora incluam as nossas escolhas
livres e responsáveis.
O segundo desafio enfrentadopelos relatos calvinistas de livre-arbítrio
humano é a ameaça do fatalismo. O decreto eterno e a meticulosa
providência de Deus determinam todos os acontecimentos da história
humana. Poderia parecer que disso segue-se que esforço e deliberação
humanos são sem sentido. A vontade de Deus é inevitável. Quer eu me
esforce, quer não, tudo acontecerá como Deus decretou. Os cristãos estão
corretos em ficar insatisfeitos com o estoico ou o muçulmano que não faz
qualquer esforço e simplesmente diz “o que será, será” ou “como Alá
quiser”. Muitos filósofos cristãos concluíram que a abordagem calvinista à
liberdade humana leva à mesma espécie de fatalismo quietista.
Uma resposta calvinista a esse desafio precisa começar com a admissão
de que os calvinistas nem sempre resistiram à tentação de cair no
hipercalvinismo. Os hipercalvinistas usam o decreto eterno abrangente de
Deus como uma desculpa para ignorar o apelo da Bíblia à ação diligente.
Respostas preguiçosas ou desesperadas ao decreto soberano de Deus são, no
mínimo, um tipo de fatalismo prático, e os calvinistas precisam lutar contra
essa tentação atentando cuidadosamente à Escritura. O compatibilismo
calvinista difere do fatalismo estoico em pelo menos dois modos
importantes, e esses dois modos dependem do caráter pessoal do decreto de
Deus. O quietismo estoico flui da crença de que o Logos que determina
todos os acontecimentos é impessoal, imparcial e desinteressado. O Deus da
Bíblia é pessoal, comprometido e amoroso. Mais do que isso, o Deus da
Bíblia é sábio e deseja tanto os fins quanto os meios. Deus não faz as coisas
a despeito ou à parte do livre-arbítrio humano. Em vez disso, Deus faz as
coisas por meio do livre-arbítrio humano. Ele ordenou que Farel
espontaneamente exigisse que Calvino permanecesse em Genebra, criando
assim a exigência de Farel por meio da decisão de Farel de fazer a
exigência. Um entendimento calvinista do livre-arbítrio leva a uma
atividade zelosa (conforme desejada por Deus), não à inatividade.
Neste ponto, a resposta mais comum dos filósofos evangélicos é que a
posição calvinista transforma os seres humanos em meras marionetes e
Deus num cruel mestre de marionetes.69 Para ver a força dessa resposta,
suponha que eu construí uma máquina e prendi um gato nela. Suponha
também que eu usei a máquina para forçar o gato a rasgar o caro tapete de
um amigo. Nesse caso, o gato não seria moralmente responsável pelo dano.
Se, depois, eu infligisse ao gato um doloroso castigo pelo seu “crime”,
minhas ações seriam terrivelmente cruéis. Para os filósofos com
expectativas libertárias sobre a liberdade, seria no mínimo tão injusto e
cruel se o decreto de Deus determinasse acontecimentos e, depois, ele
punisse as pessoas por cometerem os crimes que Deus decretou.
A resposta calvinista deve concentrar-se no pressuposto libertário
imperfeito de que não temos evidências sobre o modo como Deus pensa
sobre o relacionamento entre a sua vontade e os nossos atos. Se a Palavra de
Deus ficou em silêncio sobre essa questão, nós teríamos de depender das
nossas intuições sobre marionetes e mestres de marionetes. Porém, a
Palavra de Deus não é silente. Em Romanos 9 (e Jr 18.1-4, que Paulo ecoa),
os seres humanos são comparados a barro nas mãos de um oleiro. Nessa
analogia, os seres humanos não têm mais independência do que uma
marionete. A despeito disso, Deus destina alguns vasos à destruição para
sua glória. Essa é uma palavra dura, mas um quadro semelhante aparece em
outro lugar da Escritura (ver Is 29.16; 46.10; 1Rs 22.13-40; Jó 42.2; At
2.23;4.28). Em vez de usar os nossos sentimentos sobre a nossa liberdade
para corrigir a nossa leitura da Escritura, devemos usar a Escritura para
corrigir as conclusões a que chegamos com base nos nossos sentimentos.
Afinal, o que haveria de tão ruim em ser uma marionete a serviço da
glória de Deus? Seria terrivelmente humilhante ser uma marionete
totalmente controlada por outra criatura, mas Deus não é apenas outra
criatura. Deus é Deus. O legado de Calvino nas contínuas discussões
filosóficas sobre o livre-arbítrio exerce a sua influência, acima de tudo,
nesses pontos. A glória, o conhecimento e a independência de Deus são
mais importantes do que a autonomia e a dignidade humanas. E as nossas
intuições precisam submeter-se à Palavra de Deus, não o contrário. Os
filósofos calvinistas precisam trabalhar para explorar as implicações dessas
exigências bíblicas, até mesmo quando as conclusões são impopulares.
Embora seja improvável que o compatibilismo teológico atrairá um grande
número de seguidores entre os filósofos não cristãos, o futuro da metafísica
calvinista precisa se apegar à supremacia do senhorio de Deus e da suprema
autoridade da Palavra de Deus.
Conclusão: O futuro da filosofia calvinista
Quinhentos anos depois do seu nascimento, a obra de Calvino continua a
desempenhar um papel importante no desenvolvimento da filosofia
ocidental. Embora os seus pontos de vista sejam, às vezes,
descaracterizados ou mal compreendidos, sua insistência na glória de Deus
e na dependência dos seres humanos caídos da graça de Deus ainda é
amplamente influente. Nenhum desses temas (a glória de Deus e a
depravação humana) será jamais bem-vindo entre os filósofos seculares.
Porém, precisamente pelo fato de a doutrina paulina do sensus divinitatus
de Calvino estar correta quanto ao conhecimento universal da existência e
do poder de Deus, a filosofia calvinista será sempre atraente, mesmo
quando impopular. O desafio para os futuros filósofos calvinistas é
envolver-se com o mundo filosófico com cada vez mais confiança. O
declínio do modernismo diminuiu o estigma há tanto tempo associado à
sincera dependência da Palavra de Deus e ao reconhecimento da visão
espiritual como fonte de conhecimento. O mundo filosófico está
questionando pressupostos seculares antigos e estreitos. Calvinistas e outros
filósofos cristãos que levam a sério a má notícia sobre o pecado e a boa
notícia do evangelho não podem esperar ser populares. Porém, podemos e
devemos esperar seguir o exemplo de Calvino e levar a Palavra de Deus a
influenciar problemas e pressupostos filosóficos. Calvino poderia não ter
desejado ter um movimento filosófico que levasse o seu nome, mas se
agradaria de ver o seu compromisso com a glória de Deus e a Palavra de
Deus continuando a fazer diferença na disciplina da filosofia.70
1 John Piper, Desiring God (Colorado Springs: Multnomah Books, 2003); Nicholas Wolterstorff,
Art in action: Toward a Christian aesthetic (Grand Rapids: Eerdmans, 1980); Hans Rookmaaker,
Modern art and the death of a culture (Wheaton, IL: Crossway Books, 1994); Roy Clouser, The myth
of religious neutrality: An essay on the hidden role of religious belief in theories (Notre Dame, IN:
University of Notre Dame Press, 2005), esp. 269-302; James Skillen, In pursuit of justice: Christian-
democratic explorations (Nova York: Rowman & Littlefield, 2004). O legado de Calvino na
arquitetura também é surpreendentemente extenso. Minha percepção desse legado é um resultado da
obra do meu aluno Luke Irwin. Seu ensaio sobre esse legado está em
www.covenant.edu/docs/academics/philosophy/studentwork/Irwin_on_Calvin_and_Architecture.pdf.
Fui alertado para a importância do lugar de John Piper no legado de Calvino pelo meu aluno Nathan
Newman. Seu ensaio sobre Calvino e Piper está em
www.covenant.edu/docs/academics/philosophy/studentwork/Newman_on_Calvin_and_Piper.pdf.
2 Institutas, 1.11.1; “John Calvin to the reader”, 4; e “Prefatory address to King Francis”, 12-13.
3 Para uma explicação útil de Calvino sobre a filosofia, ver Charles Partee, Calvin and classical
philosophy, Interpretation Bible studies (Louisville: Westminster John Knox Press, 2005).
4 Herman Dooyeweerd, In the twilight of Western thought (Nutley, NJ: Craig Press, 1980), 1-60,
inicia com uma seção intitulada “The pretended autonomy of philosophical thought”. A
“Introduction” de R. J. Rushdooney à sua edição da obra de Dooyeweerd enfatiza o problema do
raciocínio autônomo.
5 Calvino sustentavaque a submissão ao Espírito Santo e à Palavra de Deus é necessária à filosofia
cristã, mas não suficiente. Institutas, 3.7.1-3 também faz um chamado à abnegação.
6 Herman Bavinck, The philosophy of revelation (Whitefish, MT: Kessinger Publishing, 2008), faz
suas Stone lectures de 1908-9, nas quais desenvolve a ênfase de Calvino na revelação na
epistemologia. Para uma extensão recente desse tema às ciências naturais, ver Tim Morris e Don
Petcher, Science and grace (Wheaton, IL: Crossway Books, 2006), 207-42.
7 Institutas, 1.1.3.
8 Ibid., 1.1.1.
9 Ibid., 1.1.10.
10 Um exemplo é Thomas Reid, An inquiry into the human mind on the principles of common
sense, org. D. Brookes (University Park, PA: Pennsylvania State University Press, 2003); também
George Turnbull, The principles of moral philosophy, ed. de 1740 (Hildesheim, Alemanha: Georg
Olms Verlag, 1976).
11 David Hume, A treatise of human nature, org. L. A. Selby-Bigge, 2ª ed. (Oxford: Clarendon
Press, 1978), publicada pela primeira vez em 1739-40; também Antoine-Nicholas de Condorcet, The
progress of the human mind (Chicago: G. Lander, 2009), publicada pela primeira vez em 1795.
12 Institutas, 1.7.2.
13 Para simplificar, vou usar “Escritura”, “Bíblia” e “Palavra de Deus” como sinônimos. Embora os
termos não sejam coextensivos, as diferenças não afetam as minhas afirmações contidas neste
capítulo.
14 Institutas, 1.7.5, onde Calvino se refere a Is 43.10 e 54.13 como apoio. Sobre a autoridade da
Escritura em Calvino, ver B. B. Warfield, Calvin and Augustine (Filadélfia: Presbyterian and
Reformed, 1956), 70-79.
15 Institutas, 1.7.4.
16 Rene Descartes, Discourse on method and meditations on first philosophy (Miami: BN
Publishing, 2008), especialmente a segunda meditação. Para explicações concisas sobre a
epistemologia de Descartes, ver Frederick Copleston, History of philosophy (Nova York: Doubleday,
1994), 4.90-115, bem como Gordon Clark, Thales to Dewey (Unicoi, TN: Trinity Foundation, 1989).
17 The Westminster confession of faith (Glasgow: Free Presbyterian Publications, 1973), 1.6.22.
18 Lesslie Newbigin, Proper confidence (Grand Rapids: Eerdmans, 1995), 29-44, fornece um
resumo conciso.
19 Jonathan Edwards, A treatise concerning religious affections, em John E. Smith, Harry S. Stout
e Kenneth P. Minkema, A Jonathan Edwards reader (New Haven: Yale University Press, 1995), 137-
71.
20 Thomas Reid, Essays on the intellectual powers of man, org. D. Brookes (University Park, PA:
Pennsylvania State University Press, 2002); ver tambémWilliam C. Davis, Thomas Reid’s moral
epistemology on legal foundations (Londres: Thoemmes Continuum, 2006).
21 Cornelius Van Til, A Christian theory of knowledge (Nutley, NJ: Presbyterian and Reformed,
1969); John Frame, The doctrine of the knowledge of God (Phillipsburg, NJ: Presbyterian and
Reformed, 1987).
22 Cornelius Van Til, Christian theistic evidences (Phillipsburg, NJ: Presbyterian and Reformed,
1969), 69.
23 Gordon Clark, A Christian view of men and things (Grand Rapids: Baker, 1981), 318-22.
24 Alvin Plantinga, Warranted Christian belief (Oxford: Oxford University Press, 2000), 241-89.
25 Institutas, 3.2.41.
26 Plantinga, Warranted Christian belief, 259-66, fornece uma discussão ampliada de Calvino
sobre a autoautenticação da Escritura.
27 Para mais sobre Plantinga a respeito de livre-arbítrio e criação, ver sua obra The nature of
necessity (Oxford: Oxford University Press, 1974), esp. 169-83.
28 Sou grato à minha aluna Lauren Fritz pelo apoio à pesquisa desta seção. O ensaio de Lauren,
“John Calvin’s sensus divinitatus and the apologetic task”, está em
www.covenant.edu/docs/academics/philosophy/studentwork/Fritz_on_
Calvin’s_Senus_Divinitatus.pdf.
29 João Calvino, The Genevan catechism (1536), disponível em inglês em
www.ondoctrine.com/2cal0504.htm.
30 Institutas, 1.1.3.
30 Rene Descartes, Meditations on first philosophy, Terceira meditação.
32 John Locke, An essay concerning human understanding (Nova York: Oxford University Press,
USA, 1977), 4.3.18.
33 Para um relato sobre o papel da Filosofia escocesa do senso comum no século 19, ver James
McCosh, The Scottish philosophy (Hildesheim, Alemanha: Georg Olms Verlagsbuchhandlung, 1966).
34 Um resumo e defesa claros dessa posição são dados em R. C. Sproul, John Gerstner e Arthur
Lindsley, Classical apologetics (Grand Rapids: Zondervan, 1984).
35 Herman Bavinck, Our reasonable faith (Grand Rapids: Baker, 1956), 26.
36 Ibid., 31.
37 Van Til, A Christian theory of knowledge; Greg Bahnsen, Pushing the antithesis (Powder
Springs, GA: American vision, 2007); John Frame, The doctrine of the knowledge of God; e K. Scott
Oliphint, Reasons (for faith): Philosophy in the service of theology (Phillipsburg, NJ: P&R
Publishing, 2006).
38 Paul Helm, Faith and reason (Nova York: Oxford University Press, USA, 1999); Esther
Lightcap Meek, Longing to know (Ada, MI: Brazos Press, 2003).
39 Alvin Plantinga, Warrant: The current debate (Oxford: Oxford University Press, 1993); Alvin
Plantinga, Warrant and proper function (Oxford: Oxford University Press, 1993); Plantinga,
Warranted Christian belief; Alvin Plantinga e Nicholas Wolterstorff (orgs.), Faith & rationality:
Reason & belief in God (Notre Dame, IN: University of Notre Dame Press, 1983). A “epistemologia
reformada” é “reformada” no sentido de originalmente (no artigo de Plantinga de 1980, “The
reformed opbjection to natural theology”, lido para a American catholic philosophical association)
voltado a elaborar sobre as visões calvinistas sobre epistemologia. Na sua “Introdução” a Faith &
rationality, Wolterstorff admite que o sistema é denominado “epistemologia calvinista” ou
“epistemologia reformada”, “não muito apropriadamente”, 7.
40 Essa teoria “funcionalista correta” do conhecimento é desenvolvida em detalhe em Warrant and
proper function, de Plantinga. Os críticos de Plantinga incluem tanto cristãos quanto não cristãos. Ver
Paul Helm, John Calvin’s ideas (Nova York: Oxford University Press, 2006), 209-45; Richard
Swinburne, “Plantinga and warrant”, Religious studies 37, 2 (jun/2001): 203-14. Steve Wykstra,
“’Not done in a corner’: How to be a sensible evidentialist about Jesus”, Philosophical books 43, 2
(Oxford: Blackwell, 2002), 92-116.
41 Michael L. Czapkay Sudduth, “The prospects for ‘mediate’ natural theology in John Calvin”,
Religious studies 31, 1 (mar/1995): 53-68; e Michael L. Czapkay Sudduth, “Plantinga’s revision of
the reformed tradition: Rethinking our natural knowledge of God,” Philosophical books vol. 43, 2
(Oxford: Blackwell, 2002), 81-91.
42 Plantinga, Warranted Christian belief, 246-52, 290-94.
43 Institutas, 3.2.7; Plantinga, Warranted Christian belief, 251-52.
44 Plantinga, Warranted Christian belief, 294-323.
45 Institutas, 1.15.3-4.
46 Calvino, Commentary on Genesis, v. 1 (Forgotten books, 2007), referente a Gênesis 1.26.
47 John Milton, Paradise lost (Nova York: Penguin classic, 2003), oferece a soberba de Satanás
como uma explicação para a queda, ultrapassando em muito os dados bíblicos.
48 Institutas, 2.1.4-11.
49 Abraham Kuyper, Lectures on Calvinism (Grand Rapids: Eerdmans, 1931); Dooyeweerd, In the
twilight of Western thought; e Clouser, The myth of religious neutrality.
50 Stephen Moroney, The noetic effects of sin: An historical and contemporary exploration of how
sin affects our thinking (Lanham, MD: Lexington books, 1999).
51 Merold Westphal, “Taking St. Paul seriously: Sin as an epistemological category”, em T. P. Flint
(org.), Christian philosophy (Notre Dame: University of Notre Dame Press, 1990), 216.
52 Sou grato ao meu aluno Colby Wilkins por um importante apoio na pesquisa e pelas observações
úteis. O ensaio de Colby sobre o legado de Calvino em debates sobre o livre-arbítrio está em
www.covenant.edu/docs/academics/philosophy/studentwork/Wilkins_on
_Calvin_and_Compatibilism.pdf.
53 Uma seção inteira poderia ser dedicada ao impacto de Calvino sobre a pesquisa filosófica do
relacionamento entre corpo e alma, e os problemas da identidade pessoal eda imortalidade humana.
Calvino é incorretamente acusado de comunicar um ódio acriticamente platônico pelo corpo físico.
Um bom lugar para começar no entendimento dessa questão e justificar a visão de Calvino seria John
Cooper, Body, soul, and life everlasting: Biblical anthropology and the monism-dualism debate
(Grand Rapids: Eerdmans, 2000); Paul Helm, John Calvin’s ideas, 129-56; e Margaret R. Miles,
“Theology, anthropology, and the human body in Calvin’s Institutas of the Christian religion”,
Harvard theological review 74, 3 (1981): 311.
54 Agostinho, On free choice of the will (Indianapolis: Hackett publishing, 1993), 3.4.11. Para uma
afirmação contemporânea dessa posição de “simples presciência”, ver David P. Hunt, “Divine
providence and simple foreknowledge”, Faith and philosophy 10, 3 (1993): 394-414.
55 O compatibilismo de Calvino é claro nas suas Institutas (1.17.3-5, 2.3.13-14, 2.4.8, 2.5.1-19) e
na sua obra The bondage and liberation of the will: A defense of the orthodox doctrine of human
choice against Pighius (Grand Rapids: Baker, 1996).
56 Um “compatibilista” sustenta simplesmente que a verdadeira liberdade humana e algum tipo de
determinismo são compatíveis. Leibniz, por exemplo, era compatibilista, tanto quanto os escolásticos
católicos romanos. Os filósofos que rejeitam o compatibilismo costumam sustentar uma posição
“libertária”, segundo a qual a verdadeira liberdade só é possível se o determinismo for falso. No
tocante à análise de Thomas, Molina e Banez por Leibniz, ver Jack D. Davidson, “Untying the knot:
Leibniz on God’s knowledge of future free contingents”, History of philosophy quarterly 13, 1
(jan/1996): 89-116.
57 Jonathan Edwards, A careful and strict inquiry into the modern prevailing notions of freedom of
the will, which is supposed to be essential to moral agency, virtue and vice, reward and punishment,
praise and blame (originalmente publicado em 1754), em John E. Smith, Harry S. Stout e Kenneth P.
Minkema, A Jonathan Edwards reader (New Haven: Yale University Press, 1995). Sobre ser
calvinista, Edwards escreve: “Nestes dias, entre a maioria, o termo ‘calvinista’ é um termo mais
reprovado do que o termo ‘arminiano’; contudo, não devo considerar totalmente fora de propósito ser
chamado calvinista, para fins de distinção: embora negue totalmente uma dependência de Calvino, ou
crer nas doutrinas que sustento, porque ele creu nelas e as ensinou; e não posso ser justamente
acusado de crer em tudo exatamente como ele ensinou”, 193.
58 Institutas, 2.4 e 2.5, bem como The bondage and liberation of the will. Ver também Paul Helm,
“Calvino and Bernard on freedom and necessity: A reply to Brummer”, Religious studies 30, 4
(Cambridge: Cambridge University Press, 1994), 457-65.
59 Uma das afirmações mais claras da conexão entre a liberdade libertária e a responsabilidade
moral é dada por Peter van Inwagen em An essay on free will (Oxford: The Clarendon Press, 1983).
60 Edwards, Freedom of the will, 206-8.
61 Roderick Chisholm, “Human freedom and the self,” reimpresso em R. C. Hoy e L. N.
Oaklander, Metaphysics (Belmont: Wadsworth Publishing, 1991), 364: “Se somos responsáveis e se
o que tenho tentado dizer é verdade [que liberdade significa o poder de fazer diferente], temos uma
prerrogativa que alguns atribuiriam somente a Deus: cada um de nós, ao agir, é uma força motriz não
movida”.
62 Thomas Flint, “Two accounts of providence”, em Divine and human action: Essays in the
metaphysics of theism, org. Thomas V. Morris (Ithaca, NY: Cornell University Press, 1988), 175-76.
63 John Sanders, “Why simple foreknowledge offers no more providential control than the
openness of God”, Faith and philosophy 14, 1 (1997): 26.
64 Søren Kierkegaard, Concluding unscientific postscript (Princeton, NJ: Princeton University
Press, 1974), 232. A sua afirmação mais explícita pode ser encontrada no seu Journals and papers,
org. e trad. Howard V. Hong e Edna H. Hong (Bloomington, IN: Indiana University Press, 1970),
citação número 1251: “Apenas a onipotência pode retirar-se ao mesmo tempo em que se doa. […]
Aquele a quem devo tudo de fato fez-me independente”. Kierkegaard não lidou com a objeção de que
“Deus tem o poder para fazer um ser absolutamente independente” é incoerente do mesmo modo que
“Deus tem o poder de fazer uma pedra que ele é incapaz de levantar” é incoerente.
65 Molinismo é a posição desenvolvida por Luis de Molina no século 16. Ver seu Liberi arbitri cum
gratiae donis, divina praescientia, providentia, praedestinatione et reprobatione concordia (The
harmony of free will with divine grace, divine foreknowledge, providence, predestination, and
reprobation), 1588. Uma tradução para o inglês da crucial Parte IV foi feita por Alfred J. Freddoso
em Luis de Molina, On divine foreknowledge (Ithaca, NY and Londres: Cornell University Press,
1988). Uma explicação incomumente clara da doutrina do conhecimento do meio de Molina e suas
implicações para a providência e a predestinação pode ser encontrada em Thomas Flint, “Two
accounts of providence”, em Morris, Divine and human action, 147-81. Afirmações claras da posição
teísta aberta podem ser encontradas em Clark Pinnock, Richard Rice, John Sanders, William Hasker
e David Basinger, The openness of God (Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 1994) e em John
Sanders, The God who Risks: A theology of divine providence (Downers Grove, IL: InterVarsity
Press, 1998).
66 Para mais sobre a inadequação bíblica das visões molinista e teísta aberta sobre a presciência de
Deus, ver Paul Helm, The providence of God (Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 1994), 55-61;
John Frame, The doctrine of God (Phillipsburg, NJ: P&R Publishing, 2002), 160-89; e meu breve
artigo “Does God know the future?” em Modern reformation (set-out/1999).
67 Harry G. Frankfurt, “Alternate possibilities and moral responsibility”, The journal of philosophy
66, 23 (4/dez/1969): 829-39. O contraexemplo crucial começa na página 836.
68 Para uma extensa discussão das implicações dessas passagens para um compatibilismo
calvinista, ver John Calvin Wingard, “Morally significant freedom, moral responsibility, and causal
determinism: A compatibilist view”, Testamentum imperium 2 (2009): seleção nº 12
(www.preciousheart.net/ti/2009/index.htm).
69 Charles K. Cannon, “’As in a theater’: Hamlet in the light of Calvin’s doctrine of
predestination”, Studies in English literature, 1500-1900 11, 2, Elizabethan and Jacobean drama
(primavera de 1971): 211, menciona essa objeção comum. As referências ao problema na Internet são
menos sutis: www.bcbsr.com/topics/calvinism_heresy.html.
70 Sou grato ao meu colega do Departamento de Filosofia da Covenant College, John Calvin
Wingard, pela ajuda no desenvolvimento deste capítulo. Os alunos do meu seminário sobre Calvino
no Covenant na primavera de 2009 forneceram horas de discussão e também pesquisas úteis. Além
daqueles mencionados nas notas acima, esse seminário incluiu Sam Belz, Anna Cameron, Nathan
Davis, Peter Garriott, Ross Meyer, Anna Phillips, Justin Richards, Graham Svendsen e Bryce
Wilkins.
7
Calvino, política e ciência política
Paul Marshall
Há uma abordagem calvinista à política?
As discordâncias sobre quase todos os teóricos importantes são, é claro,
permanentes. Porém, como no seu próprio tempo, Calvino ainda parece
provocar não apenas visões diferentes sobre sua obra e vida, mas, com
frequência, pontos de vista radicalmente opostos. O teórico político Michael
Walzer observou corretamente que “praticamente todo o mundo moderno
foi encontrado no calvinismo: política liberal e associação voluntária;
capitalismo e a disciplina social na qual ele se apoia; burocracia com seus
procedimentos sistemáticos e seus funcionários supostamente diligentes e
dedicados; e, finalmente, todas as formas rotineiras de repressão, falta de
alegria e aspiração tensa”.1 Há ainda permanentes interpretações
contestadoras da natureza, da situação, do lugar e da influência da visão da
política de Calvino.2 Em particular, embora a própria expressão“ciência
política” tenha, provavelmente, sido cunhada pelo calvinista Althusius,
vários teóricos políticos contemporâneos argumentam que Calvino nada
teve de original a dizer sobre política. Por ser generalizada, essa visão
precisa ser abordada – especialmente porque essa tentativa de
marginalização de Calvino é baseada numa rejeição secular a priori
paroquial e dogmática da sua, ou, de fato, de qualquer teoria cristã robusta
da política.
Talvez o mais notável expoente da visão de não originalidade de
Calvino seja Quentin Skinner, cuja obra The foundations of modern politial
thought [As bases do pensamento político moderno] é, provavelmente, o
mais influente levantamento recente na língua inglesa sobre a teoria política
dos séculos 16 e 17. Skinner afirma que uma “teoria calvinista da
revolução”, que tem sido frequentemente considerada o mais interessante
dos ensinamentos de Calvino sobre a política, não existiu realmente.3
Precisamos ser cuidadosos quanto ao que Skinner quer dizer com isso. Com
certeza, ele “não tem dúvida de que os revolucionários do início da Europa
moderna eram, em geral, calvinistas professos” ou de que houve uma
“teoria da revolução popular desenvolvida pelos calvinistas radicais na
década de 1550” que moldou “a principal corrente do moderno pensamento
constitucionalista”. Ele até mesmo se refere à obra Two treatises of
governmente [Dois tratados sobre o governo], de Locke, como “o texto
clássico da política calvinista radical”. Seu argumento não é que os
calvinistas eram ignorantes ou não tinham teorias interessantes e
complexas, e sim que “praticamente não há na teoria elementos
especificamente calvinistas”. As teorias defendidas pelos calvinistas podem,
realmente, ter sido – e, de fato, foram – muito importantes, mas as crenças
calvinistas não acrescentaram elementos importantes às suas opiniões. Os
calvinistas podem ter tido visões interessantes e influentes, mas elas não
eram especificamente visões calvinistas. Em vez disso, suas teorias
“estavam quase inteiramente contidas na linguagem legal e moral dos seus
adversários católicos” ou poderiam até mesmo ser, “em grande parte, uma
repetição da teoria constitucional luterana”.4
Para Skinner, certamente os calvinistas foram influentes. Contudo, essa
influência limitou-se a transmitir ideias emprestadas de outros. Assim,
embora tenham influenciado Locke, os calvinistas fizeram isso apenas de
um modo derivado. A linha de influência importante foi que “os conceitos
em termos dos quais Locke e seus sucessores desenvolveram seus pontos de
vista sobre soberania popular e direitos de revolução já haviam sido, em
grande parte, articulados e aperfeiçoados mais de um século antes nos
escritos legais de juristas tão radicais quanto Salamonio, nos tratados
teológicos de ocamistas como Almain e Mair”. De fato, Skinner nem
mesmo está dizendo que os calvinistas eram meros condutores de teorias
alheias, porque lhes dá crédito por “contribuições distintas” em abordar a
questão da relação entre o cargo e a pessoa de um magistrado e na sua
permissividade referente a quem pode resistir legitimamente a um tirano.
Não obstante, ele insiste que tais contribuições e inovações não eram
particularmente calvinistas, mas adaptações dentro de uma estrutura
conceitual emprestada dos católicos. Para Skinner, os calvinistas foram
certamente inovadores, mas não de uma maneira calvinista.5 Ele argumenta
que, “numa extensão quase paradoxal […] os calvinistas radicais contaram
com um esquema de conceitos derivados do estudo do direito romano e da
filosofia moral escolástica”.6 Em suma, Skinner diz nada haver de original
ou singular na teoria política calvinista; portanto, num sentido preciso, não
há uma teoria política calvinista.
A razão para Skinner se ater a essa visão influente não é devida a uma
compreensão superior do pensamento de Calvino, mas porque ele
simplesmente define o pensamento político de um modo que exclui
qualquer contribuição calvinista por definição. Skinner quer oferecer um
exame do pensamento político, mas também quer “indicar algo do processo
pelo qual o conceito moderno do Estado veio a ser formado”, para mostrar
como “os principais elementos de um conceito reconhecidamente moderno
do Estado foram gradualmente adquiridos”.7 Esse outro objetivo dá origem
ao título da sua obra principal, The foundations of modern political thought
[As bases do pensamento político moderno], o que significa que ela é,
dentre outras coisas, uma tentativa de explorar o que fundamenta o Estado
moderno.
Dados esses objetivos, é importante saber o que Skinner quer dizer com
“moderno”. Para Skinner, um “Estado […] conceitualizado em termos
distintamente modernos” seria “o único objeto apropriado da lealdade dos
seus cidadãos” e não teria “rival dentro dos seus próprios territórios como
poder legislativo e objeto de lealdade”. Disso decorre o “conceito moderno
do Estado” de Skinner implicar, dentre outras coisas, a exclusão de qualquer
crença religiosa do cerne da teoria política. Assim, para Skinner, a teoria
política moderna exige não apenas a separação entre igreja e Estado, mas
um Estado que não tenha “rival como um objeto de lealdade”. Isso exige
um modo de teorizar sobre o governo que seja secular no sentido de que
exclui qualquer raciocínio religioso.8
Porém, claramente, muitos dos principais textos de teoria política do
século 16 não moldaram de modo importante categorias e concepções
modernas (a menos que, semelhantemente aos liberais, simplesmente
definamos “textos principais” como aqueles que influenciaram a era
moderna). Tais obras, importantes em seu próprio tempo, mas
incompatíveis com pessoas que se consideram “modernas”, seriam, em
princípio, incluídas no primeiro objetivo de Skinner de “um relato esboço
dos principais textos do período”, mas não no seu segundo objetivo de
demonstrar “o processo pelo qual o Estado moderno” surgiu. Assim, dois
dos objetivos da sua principal obra estão em tensão. Iluminar o “processo”
requer ignorar ou subestimar textos, por mais originais que sejam, que
estejam distantes das concepções modernas, enquanto “delinear os
principais textos” requer destacá-los e expô-los. No caso do calvinismo,
Skinner confundiu esses dois objetivos minimizando o que não é
compatível com mentes “modernas”, que significam “seculares”, ao mesmo
tempo implicando que isso realmente não existe.
Dada essa definição de teoria política, Calvino precisa ser excluído
simplesmente por definição, uma vez que ele não aborda o estudo da
política do modo moderno aprovado. Certamente, ele não tem uma
concepção “teocrática” da imposição da lei bíblica, algo que de modo firme
e explícito condena:
A lei de Deus dada por Moisés (não) é desonrada quando é revogada e novas leis são
preferidas a ela […] porque o Senhor […] não deu essa lei para ser proclamada a todas as
nações e para vigorar em todos os lugares. Em vez disso, precisamos fazer as nossas leis no
tocante à condição de tempos, lugar e nação. […] Quão malicioso e odioso para com o bem-
estar público seria um homem que é ofendido por tal diversidade.9
Em vez de postular um Estado que “não tem rival, dentro dos seus
próprios territórios como poder legislativo e objeto de lealdade”, ele declara
que a igreja, embora não normativamente rival, certamente é outro “objeto
de lealdade”. Ele enraíza uma compreensão criativa da política diretamente
dentro de uma cosmovisão cristã. Nisso, ele reflete muito sobre a Reforma e
o próprio protestantismo.
De fato, as contribuições fundamentais de Calvino ao estudo da política
não vêm das particularidades detalhadas da teoria legal, mas da maneira
como ele incorporou a política a uma cosmovisão ou cosmologia cristã
particularmente protestante. As contribuições mais importantes de Calvino
vieram no que agora poderíamos denominar uma sociologia política que
reformula a natureza da ação política.
Protestantismo e sociedade
O pensamento de Calvino, embora tenha elementos distintivos, está
enraizado nos temas gerais do protestantismo. Não obstanteos
reformadores tenham se concentrado na teologia, na doutrina, na vida
pessoal e na igreja, ao tentar reafirmar a primazia da fé e a primazia da
Escritura eles também produziram mudanças, muitas vezes
inadvertidadamente e, por vezes, não as que eles queriam, no entendimento
do “eu”, na estrutura da família, na educação, na ciência, na literatura, na
ética, na economia e na política.
Por exemplo, a ênfase em que cada pessoa poderia estar diretamente
relacionada a Deus por meio do mediador Jesus Cristo teve uma variedade
de efeitos, dos quais mencionarei apenas dois, ambos relacionados, em
primeiro lugar, à própria igreja. Um deles foi que, conquanto tivesse sido
elevada, a igreja foi também, em certo sentido, destronada, pelo menos
como organização. Ela já não era mais, em princípio, considerada como a
cabeça, o corpo mais elevado, a líder da sociedade. Daí ter surgido a
questão do relacionamento entre diferentes instituições da sociedade. Outro
efeito, especialmente pronunciado na tradição da igreja livre, foi enfatizar a
dimensão da igreja como um corpo de cristãos. Isso incentivou o que
poderíamos chamar, vagamente, de estruturas mais democráticas. Muitos
comentaristas encontraram as raízes da democracia e do constitucionalismo
modernos nessa mudança eclesiástica, especialmente como transmitida por
meio do calvinismo e do puritanismo.
Talvez esse destronamento possa ser mais bem descrito como o
destronamento do sacerdócio e das ordens monásticas. No catolicismo do
final do período medieval, o padre, o monge e a freira tendiam a ser vistos
como aqueles que eram, pelo menos potencialmente, verdadeiramente
santos. Eles eram uma elite que podia dedicar suas vidas a coisas
espirituais. As outras pessoas e os outros estilos de vida eram bons, vitais e
necessários, mas eram considerados como pertencentes a uma ordem
espiritual inferior. Quase sem exceção, os protestantes, incluindo Calvino,
criticaram essa divisão de uma vida inferior e uma vida superior e
afirmaram a potencial igualdade de todos os estilos de vida. Embora os
cristãos medievais usassem habitualmente o termo “vocação” para referir-se
somente ao sacerdócio e às ordens religiosas, os protestantes enfatizavam
que todas as tarefas e estilos de vida eram “vocações”, “chamados”,
“profissões”.10
Essa reafirmação de todos os tipos de trabalho e todos os estilos de vida
como meios equivalentes de serviço cristão orientavam os cristãos para uma
vocação divina no mundo. Uma das acusações de heresia contra William
Tyndale, por exemplo, foi que ele havia afirmado: “Não há um trabalho
melhor do que outro para agradar a Deus: derramar água, lavar pratos, ser
sapateiro ou apóstolo, tudo é uma coisa só; lavar pratos e pregar são
equivalentes no tocante a agradar a Deus”. Essa acusação pareceu ser
dirigida à própria afirmação de Tyndale, mais tarde citada por William
Perkins, de que “se compararmos atos e atos, há uma diferença entre lavar
pratos e pregar a palavra de Deus; mas, no tocante a agradar a Deus,
nenhuma: pois nem isso nem aquilo agrada, mas tanto um quanto o outro
Deus escolheu, pôs seu espírito nele e purificou seu coração pela fé e
confiança em Cristo”.11
Temas semelhantes foram consistentemente defendidos por Lutero, que
escreveu:
Se você é um trabalhador braçal, descobre que a Bíblia foi posta na sua oficina, na sua mão,
no seu coração. Ela ensina e prega como você deve tratar o seu próximo […] basta olhar
para as suas ferramentas […] sua agulha e dedal, seu barril de cerveja, seus bens, suas
réguas, bitolas ou compassos. […] e você lerá essa declaração inscrita neles […] Você tem
tantos pregadores quanto tem transações, produtos, ferramentas e outros equipamentos na
sua casa e lar.12
Cosmovisão e sociedade de Calvino
Quando abordamos Calvino para entender como os seus pontos de vista se
encaixam numa cosmovisão cristã, surge uma abordagem distinta à
sociedade. A visão de Calvino da soberania de Deus define a tendência
geral do seu pensamento, incluindo seu pensamento social e político.
Refletindo as concepções protestantes que acabamos de descrever, ela
produz três temas básicos inter-relacionados. Um deles é que Deus é
soberano sobre tudo que há no mundo. O segundo é que, pelo fato de a
soberania residir somente em Deus, nenhuma instituição terrena pode
reivindicar a soberania final para si mesma. O terceiro é que a soberania de
Deus requer uma resposta humana ativa e voluntária em cada área da vida.
No tocante à soberania de Deus, um dos temas centrais de Calvino é que
o mundo, e tudo que há nele, é criado por Deus, ordenado por Deus, aponta
para Deus e pode ser usado para dar honra a Deus e socorro ao homem: “A
infinita sabedoria de Deus é revelada na admirável estrutura do céu e da
terra”. O “fim para o qual todas as coisas foram criadas” era que “nenhuma
das conveniências e coisas necessárias da vida deve faltar aos homens. Na
própria ordem da criação é evidente a paternal solicitude de Deus para com
o homem”.13
Esse foco na ordem de toda a criação tende a derrubar qualquer rejeição
ascética do mundo. Ele também tende a derrubar qualquer esquema da
natureza e da graça no qual certas partes do mundo, ou certos tipos de
atividade, como a piedade ou a contemplação, são tratados como
necessariamente mais santos do que outros. Às vezes, Calvino ainda
mantém um esquema de natureza/graça e trata as atividades eclesiásticas
como um reino mais elevado do que os outros. Não obstante, um grande
impulso da sua obra é dedicado a enfatizar a soberania integral de Deus
sobre todas as dimensões da vida. Por isso, ele diz que “a autoridade civil é
um chamado não só santo e legítimo perante Deus, mas também o mais
sagrado e, de longe, o mais honrado de todos os chamados de toda a vida
dos homens mortais”.14
Para Calvino, o mundo é concebido como um todo ordenado, no qual o
homem é colocado como senhor em sujeição voluntária à vontade de Deus.
Bohatec até mesmo refere-se à sua “Pathos der Ordnung”, sua paixão pela
ordem.15 Como diz Wolin, “o conceito geral de ordem foi uma premissa
comum à sociedade religiosa e à sociedade política”. O método global
empregado por Calvino para levar as duas sociedades a algum tipo de
congruência foi tratar as duas como sujeitas ao princípio geral da ordem –
ou, como diz André Biéler, “Tanto a vida religiosa quanto a vida material
do cristão estão sujeitas à mesma ordem de Deus”.16
Dentro desse mundo ordenado, Calvino salienta que todas as atividades
humanas devem ser “chamados” e, como tais, aos olhos de Deus elas são
equivalentes. Como para Lutero, Tyndale e outros protestantes, essa
igualdade refere-se às atividades humanas em si, mas também estende-se às
organizações e instituições originadas de chamados humanos, nas quais eles
são expressos e manisfestos. Cada parte da vida deve ser vivida com
responsabilidade para com Deus e, portanto, nenhuma atividade ou
instituição pode reivindicar ser o mediador pleno entre Deus e a
humanidade. Essa diferenciação aplica-se à sociedade de maneira geral,
porque “o Criador do mundo concedeu […] [à raça humana], por assim
dizer, um edifício regularmente formado, dividido em vários
compartimentos”.17 “A comunidade em geral está dividida, por assim dizer,
em muitos jugos, dos quais surge uma obrigação mútua.”18
Ao inter-relacionar esses chamados, Calvino imagina a sociedade como
sendo composta por grupos funcionalmente diversos, mas que se apoiam
mutuamente, definidos pela vocação. Ele resume o dever de uma pessoa
para com outra como o dever de “submissão mútua” – deve haver entre
todos uma “ligação universal de sujeição”. “Deus nos ligou tão fortemente
uns aos outros que nenhum homem deve se empenhar em evitar a sujeição;
e onde quer que reine o amor, serviços mútuos serão prestados.” “Não
excetuo sequer reis e governadores, que detêm a sua autoridade para o
serviço à comunidade […] todos, por sua vez, devem ser exortados a se
sujeitarem uns aos outros.”19
Essa sujeição mútua, e a igualdade de estilos de vida e atividades, levam
a uma ênfase em que nenhumainstituição deve ter primazia de autoridade
sobre as outras. Como observa Carney:
Pareceria haver um caráter comum a todas as associações presentes na literatura política
calvinista. Esse caráter comum não é nem individualista nem absolutista. Ele não começa
com os direitos óbvios das pessoas, nem com a autoridade a priori dos governantes. Em vez
disso, pergunta qual é a vocação (ou o propósito) de qualquer associação, e como essa
associação pode ser organizada de modo a cumprir a sua finalidade essencial. A autoridade
(ou regra) torna-se uma função da vocação; e um grande cuidado precisa ser tomado para
fornecer estruturas constitucionais, tanto ideológicas quanto institucionais, para que a
autoridade não se torne indevidamente fraca ou corrupta.20
Combinada com esse destaque sobre a soberania de Deus e a sujeição
mútua está a ênfase de Calvino sobre a utilidade. Claramente, ele não é um
utilitarista, mas enfatiza que precisamos utilizar os diversos dons que Deus
nos deu. “Não é da vontade do Senhor que sejamos como blocos de madeira
[…] mas isso deve se aplicar a usar todos os talentos e vantagens que ele
conferiu a nós.” Essa ênfase significa que Calvino tinha uma visão
funcional, em vez de hierárquica, da vida econômica. O que é verdadeiro a
respeito da economia aplica-se igualmente às instituições da sociedade em
geral. Elas não devem ser dispostas numa ordem hierárquica que chegue até
Deus, mas são dispostas lado a lado apoiando uma à outra em serviço
mútuo a Deus em suas vocações específicas. Todo trabalho, toda vocação,
todas as instituições, todos são igualmente Coram Deo. Isso produz aquilo a
que Beyerhaus se refere como o efeito de “perfeito nivelamento” da ênfase
de Calvino na soberania de Deus.21 Um resultado dessa concepção
calvinista da ordem soberana foi “que uma sociedade poderia ser, ao mesmo
tempo, bem organizada, disciplinada e coesa, contudo não ter um chefe”.22
A sociedade de Calvino não precisava de um chefe supremo; isso estava
reservado para Deus.
As linhas reais que Calvino busca traçar entre atividades e instituições,
especialmente aquelas entre igreja e Estado, podem parecer totalmente
confusas, especialmente para a mente “moderna”. Porém, ele sempre
enfatizou que há uma “grande diferença entre o poder civil e o poder
eclesiástico”, de modo que seria “imprudente misturar esses dois, que têm
natureza totalmente diferente”.23 Assim, como Little ressalta, “mesmo nas
condições ideais de Genebra, Calvino nunca permitiu que a igreja se
tornasse organizacionalmente coincidente ou idêntica à magistratura. Em
grau desconhecido na Zurique de Zuínglio, a Alemanha de Lutero ou a
Inglaterra de Hooker, Calvino mantinha a independência da igreja diante da
sociedade civil”.24
Resposta humana
A ênfase de Calvino na igualdade é necessariamente compatível com a sua
ênfase na voluntariedade e responsabilidade humanas. Ele ressaltou que a
obediência de um cristão não deve, em primeiro lugar, ser prestada por
medo das penas da lei, nem de má vontade para conquistar a salvação, nem
nervosamente para provar a salvação. Em vez disso, a obediência deve ser
prestada com gratidão em resposta ao dom da graça de Deus em Jesus
Cristo:
parte da liberdade cristã é que as consciências não observam a lei como se estivessem sob
qualquer obrigação legal, mas que, estando libertas do jugo da lei, aceitam uma obediência
voluntária à vontade de Deus. […] Elas nunca se envolverão com entusiasmo e presteza no
serviço de Deus se não tiverem recebido anteriormente essa liberdade.25
Essa obediência livre é tanto maior porque não somos, em primeiro
lugar, súditos de Deus nem servos de Deus: em vez disso, somos filhos de
Deus:
Veja como todas as nossas obras estão sob a maldição da lei se medidas pelo padrão da lei!
Mas, então, como as almas infelizes se preparariam avidamente para uma obra pela qual
poderiam esperar receber apenas maldição? Porém, se, libertas dessa exigência severa da
lei, ou melhor, de todo o rigor da lei, elas ouvirem ser chamadas com bondade paterna por
Deus, com alegria e grande avidez responderão e seguirão o seu líder. Em suma: As pessoas
presas pelo jugo da lei são como servos a quem são atribuídas certas tarefas a cada dia pelos
seus senhores. Esses servos pensam não ter realizado nada e não se atrevem a comparecer
perante seus senhores se não tiverem cumprido a medida exata das suas tarefas. Porém, os
filhos, que são tratados pelos seus pais de maneira mais generosa e franca, não hesitam em
apresentar-lhes obras incompletas, feitas pela metade e até mesmo defeituosas, confiando
em que sua obediência e prontidão de espírito será aceita pelos seus pais, mesmo não tendo
realizado totalmente o que os seus pais pretendiam. Devemos ser esses filhos, confiando
firmemente que os nossos serviços serão aprovados pelo nosso Pai extremamente
misericordioso, por mais triviais, rudes e imperfeitos que possam ser.26
Embora possa parecer paradoxal para a mente moderna, precisamente
devido à afirmação de Calvino sobre o cativeiro da vontade humana ao
pecado, ele também conclama repetidamente por uma resposta livre e
voluntária a Deus.27 Para Calvino, uma vez que a humanidade vive num
estado de pecado, ainda deve, é claro, haver uma ordem de coerção.
Todavia, concomitante a isso e além disso, como diz Little,
o reino da consciência livre – como uma chave para toda a questão da ordem – é definitivo
e fornece as diretrizes para o entendimento do plano de Deus e da sua obra no mundo. […]
Nada é mais certo de que o Reino de Deus, para o qual todas as coisas convergem, inclui a
superação dos mecanismos de coerção em favor da obediência voluntária.28
Essa ênfase sobre uma resposta livre e voluntária afeta toda a visão de
Calvino sobre a sociedade. Ele resume o dever de uma pessoa para outra
como o dever de “submissão mútua” – deve haver entre todos uma “ligação
universal de sujeição”. “Deus nos ligou tão estreitamente uns aos outros que
nenhum homem deve se esforçar para evitar a sujeição; e, onde quer que o
amor reine, serviços mútuos serão prestados.”29
A visão de Calvino da atividade econômica ilustra esse padrão de
sujeição mútua. Embora, devido à queda, o trabalho seja frequentemente
difícil e doloroso, no início ele foi dado por Deus à humanidade,
explicitamente como um presente e uma responsabilidade. O trabalho deve
ser assumido de maneira voluntária e mútua como serviço a Deus e aos
nossos semelhantes. O próprio comércio é uma maneira natural de as
pessoas se comunicarem umas com as outras:
não é suficiente alguém poder dizer: ‘Oh, eu trabalho, tenho meu comércio, defino o ritmo’.
Isso não é suficiente, porque é preciso pensar sobre se isso é bom e proveitoso para a
comunidade e se pode servir aos nossos próximos. […] E é por isso que somos comparados
a membros de um corpo”.30 “A vida dos piedosos é justamente comparada ao comércio,
porque eles devem, naturalmente, trocar e permutar mutuamente para manter o
relacionamento.31
Na sua obra clássica sobre as visões de Calvino da sociedade e da
economia, André Bieler o resume assim:
“Deus criou o homem”, diz Calvino, “para que ele possa ser uma criatura de comunhão.”
[…] A comunhão é completada no trabalho e no inter-relacionamento das trocas
econômicas. A comunhão humana é realizada nos relacionamentos decorrentes da divisão
do trabalho, na qual cada pessoa foi chamada por Deus para um trabalho específico e
parcial que complementa o trabalho dos outros. O intercâmbio de bens e serviços é o sinal
concreto da profunda solidariedade que une a humanidade.32
Esse princípio livre e voluntário é ilustrado de modo notável no
casamento. Calvino tem o que John Witte denomina o “primeiro modelo
abrangente de aliança do casamento”.33 Sua obra Ordonnances sur les
Mariages [Ordenanças para o casamento] afirma “que nenhum pai pode
forçar seus filhos a qualquer casamento que possa parecer bom a ele, sem o
beneplácito e consentimento deles, mas que o filho ou a filha que pode não
querer aceitar o partido que o pai pode desejar dar-lhe, deve desculpar-se[…] e a recusa não implicará qualquer punição por parte do pai”.34 Mesmo
se os filhos se casarem sem o consentimento dos pais, se forem maiores de
idade e a falta de consentimento for devida a “negligência ou excesso de
rigor dos seus pais”, um dote e acordo financeiro deve ser feito “como se
houvessem consentido”.
O mesmo tema ocorre até mesmo no tocante ao divórcio:
Embora desde a Antiguidade o direito da mulher não tenha sido igual ao do seu marido em
caso de divórcio, uma vez que, segundo o testemunho do apóstolo, a obrigação sobre o leito
conjugal é mútua e recíproca [la cohabitation du lit], e por causa disso, a esposa não ser
mais sujeita ao seu marido do que o marido à esposa; se um homem for condenado por
adultério e a esposa exigir ser separada dele, isso lhe deve ser igualmente concedido.35
Ação política
Até este ponto, não abordamos a visão de Calvino da política per se, mas
sim a sua visão da sociedade como uma na qual cada parte é chamada a
refletir a ordem e glória de Deus, sendo diferenciada segundo a vocação,
entendendo que nenhuma é o centro do governo de Deus na terra, e que
cada uma deve ser levada a cabo pela resposta livre, compromissada e
voluntária do povo de Deus. Conquanto isso não seja política per se, tem
implicações importantes, pois transforma o modo como a entendemos.
Um efeito político foi produzido pela ênfase de Calvino sobre a
atividade compromissada de todo o povo de Deus. Como observa Walzer, o
que o calvinismo produziu “tendia a ser prático e social, programático e
organizacional. Manifestos, exortações, polêmicas – essas foram as formas
de sua expressão literária; alianças, assembleias, congregações e
comunidades sagradas – esses foram os resultados da sua iniciativa
organizacional”. O que era novo no calvinismo era a ideia de que “grupos
organizados de homens poderiam desempenhar um papel criativo no mundo
político […] reconstruindo a sociedade em conformidade com a palavra de
Deus ou os planos dos seus companheiros”. Essa era uma visão distinta; ela
absolutamente não havia entrado, no “pensamento de Maquiavel, Lutero ou
Bodin. Ao estabelecer o Estado, esses três escritores basearam-se
exclusivamente no príncipe, quer o imaginassem como um aventureiro, um
magistrado cristão ou um burocrata hereditário. Todos os outros homens
permaneciam sujeitos, condenados à passividade política”.36
Wolin faz um argumento semelhante, embora redigido em linguagem
bastante revolucionária – que os reformadores eram líderes de movimentos
de massa e
dentre os primeiros a tentarem catalisar as massas para o propósito da ação social. […]
considere, também, as implicações políticas da Reforma como um amplo movimento de
revolta contra uma ordem estabelecida, revolta cujo sucesso dependia de radicalizar as
massas ao descontentamento com as autoridades e instituições existentes […] quase
nenhum traço dessas noções pode ser encontrados em Maquiavel ou Hobbes.37
Liberdade e democracia
A visão de Calvino ia além de transformar a ação política engajada popular,
por mais inovadora e importante que ela seja. Embora evitando estritamente
uma linguagem sediciosa, ele expressava continuamente um ceticismo
quanto à realeza. Devido aos perigos de um monarca tornar-se orgulhoso ou
arrogante, Calvino escreve que o “vício ou inadequação dos homens torna,
assim, mais seguro e mais tolerável que muitos exerçam o domínio, para
que possam ser mutuamente ajudantes uns dos outros, ensinem e
admoestem uns aos outros e, se alguém se afirmar injustamente, os muitos
possam ser censores e mestres, reprimindo a sua obstinação”.38 Eleições são
muito úteis para manter essa admoestação mútua; portanto:
a condição mais desejável das pessoas é aquela em que elas criam os seus pastores por
votação geral. Porque, quando alguém usurpa pela força o poder supremo, isso é tirania. E
onde os homens nascem para a realeza, isso não parece estar em conformidade com a
liberdade. Por isso, o profeta diz: levantaremos príncipes para nós mesmos; ou seja, o
Senhor não só dará à igreja liberdade para respirar, mas também instituirá um governo
definido e bem ordenado, e estabelecerá isso nos sufrágios comuns de todos.39
Por sua vez, a própria liberdade da qual brota esse sufrágio é um bem
enorme e fundamental. Calvino o descreve como “mais de metade da
vida”.40 Por isso,
se temos a liberdade de escolher juízes e magistrados, dado que esse é um excelente dom,
que ele seja preservado e usemo-lo em sã consciência. […] Que aqueles a quem Deus deu
permissão e liberdade usem-na […] como um benefício singular e um tesouro impossível de
ser suficientemente valorizado.41 Esse é o tipo mais desejável de liberdade: que não
devemos ser obrigados a obedecer a toda pessoa que possa ser tiranicamente colocada sobre
as nossas cabeças, mas que permite a eleição, de modo que ninguém deva governar se não
for aprovado por nós.42
Essa liberdade se estende até mesmo à elaboração de leis. Como
observamos anteriormente, Calvino sustenta que Deus não pretendia que a
lei mosaica fosse “proclamada entre todas as nações e vigorar em todos os
lugares”. Cabe a nós, guiados pela nossa fé, “fazer as nossas leis no tocante
à condição de tempos, lugar e nação”.43
O sistema de governo defendido por Calvino não era uma democracia.
Ele foi descrito como uma “democracia conservadora” – ou, nos seus
próprios termos, “aristocracia, ou aristocracia equilibrada por democracia”.
Em termos modernos, devemos simplesmente descrevê-lo como uma
república. O sistema dos Estados Unidos é, por exemplo, uma mistura de
elementos: monárquico (a presidência), aristocrático (o Senado) e
democrático (a Câmara). Talvez estranhamente, dada a sua ênfase na
responsabilidade e ação humanas, Calvino não exorta os seus leitores a
implementarem um sistema desse tipo; ele meramente lhes diz que é um
bom sistema e que, se eles vivem num bom sistema, devem considerar-se
abençoados e dar graças a Deus.
Ele também enfatiza a sujeição ao governante. Seja qual for o sistema
político em que vivemos, é nosso dever honrar e obedecer ao governante
como um ministro de Deus. A humanidade é pecadora e, por isso, Deus
forneceu providencialmente uma ordem política para punir os malfeitores e
conter a disseminação do pecado. Estamos sujeitos a essa ordem e à coerção
que ela necessariamente envolve. É possível resistir a um governante
injusto, talvez até mesmo derrubá-lo, mas isso não deve ser feito pela
população em geral, mas somente por aqueles que ocupam posição de
autoridade subordinada – os “magistrados inferiores”.44
Esse elogio à liberdade e ênfase sobre a obediência são temas constantes
no pensamento de Calvino e no pensamento calvinista: “Embora o
pensamento de Calvino invariavelmente ‘escorregue’ para um lado ou para
outro, as duas direções sempre estão presentes, e cada uma atua como
qualificação e condição para a outra”. Isso significa que sempre deve haver
coerção e controle políticos, mas que essa coerção está em constante tensão
com a nova ordem trazida à existência como uma resposta voluntária à
Palavra de Deus, que é “uma comunidade voluntária harmoniosa na qual a
eleição recai sobre os eleitos”. Idealmente, Calvino queria uma
administração consensual na igreja e no Estado, mas esse ideal é sempre
contido pela realidade do pecado. A exigência resultante é de
um governo que restrinja a sedição, por um lado, mas garanta a ‘máxima participação
viável’, por outro. Esse tipo de arranjo, a aplicação tanto à igreja quanto ao Estado, é uma
combinação de democracia e aristocracia. Primitivamente, essa forma de governo
pressupunha, com certeza, um sistema de limites e equilíbrios cuja importância não foi
perdida, mais tarde, nos pensadores políticos calvinistas e não calvinistas.45
Segundo Marci Hamilton, “A teologia calvinista ensinou aos
constituintes […] que os elementos paradoxais de desconfiança e esperança
poderiam ser reunidos para a obtenção de bons resultados”.46 O apoio à
nova constituição pela maioria dos pregadores calvinistas coloniais foi,
portanto, mais do que oportunismoou assimilação cultural: ele refletia
características de uma visão calvinista da ordem política.
Althusius
As mudanças introduzidas por Calvino no entendimento da política são bem
ilustradas por Althusius, que desenvolveu uma noção distinta de ciência
política, podendo até mesmo ter cunhado o termo.47 O calvinismo de
Althusius não é meramente um aspecto incidental de sua biografia ou
teologia. Os temas calvinistas da soberania de Deus sobre todas as
associações e todas as ciências, da diferenciação entre as associações e as
ciências segundo a vocação, e do apoio mútuo de todas as associações e
ciências subjazem e moldam a sua obra. Althusius seguiu Calvino em
enfatizar que uma visão funcional das instituições sociais é distinta de uma
visão hierárquica, e argumentou que essa diferenciação exige uma
correspondente diferenciação das ciências que estudam essas instituições.
Para Althusius, “Devemos nos certificar de que damos a cada ciência o que
lhe é devido”.48 Embora as igrejas necessitem de teologia, a política
necessita da sua própria ciência política, uma disciplina enraizada numa
compreensão cristã do mundo e especificamente dedicada ao seu próprio
tema singular. Essa diferenciação entre teologia, ciência política e outras
disciplinas não se destina a separar as outras disciplinas da Bíblia e da fé
cristã, uma vez que Althusius ressalta que os compromissos religiosos
moldam não somente a teologia, mas também a ciência política, a
jurisprudência, a ética e assim por diante. Althusius entretece as ciências
cuidadosamente:
Portanto, na medida em que a essência da soberania ou do Decálogo é teológica, ética ou
jurídica e está em conformidade com o propósito e a forma dessas artes, até agora essas
artes reivindicam como adequadas a si mesmas o que tomam, para sua utilização, do
Decálogo e dos direitos de soberania. […] Eu afirmo o Decálogo como adequado à ciência
política na medida em que injeta um espírito vital na vida simbiótica, dá forma a ela e a
mantém, em cujo sentido ele é essencial e homogêneo à ciência política e heterogêneo a
outras artes. Então, concluí que, onde o cientista político termina, o jurista começa, assim
como onde o moralista termina o teólogo começa, e onde o físico termina, o médico
começa. Ninguém nega, porém, que todas as artes são unidas na prática.49
Como observa Hueglin, nessa concepção “a ciência política tem o
direito distinto de interpretar a palavra de Deus, porque as duas tábuas do
Decálogo dizem respeito à piedade e à justiça”. De fato, como observa
Skillen, “A […] contribuição de Althusius não vem de afastar a política da
autoridade e revelação divinas, mas de sua insistência em que a igreja não é
aquela autoridade divina e não detém monopólio sobre as Escrituras”.50
O resultado é algo que até mesmo Skinner descreve como “uma
concepção reconhecivelmente ‘moderna’ da ‘política’ como uma esfera de
investigação com o seu próprio tema característico”.51
Althusius também moldou o federalismo.52 Daniel Elazar argumenta que
sua obra Politcs
foi o primeiro livro a apresentar uma teoria abrangente do republicanismo federal enraizada
[a teoria] numa visão pactual da sociedade humana derivada [a visão], mas não dependente,
de um sistema teológico. Ele apresentou uma teoria de construção eclesiológica baseada na
ordem eclesiológica como uma associação política composta, estabelecida pelos seus
cidadãos por meio das suas associações primárias com base no consentimento, em vez de
um Estado apresentado como realidade, imposto por um governador ou uma elite.
Além disso, “Althusius serve como uma ponte entre os fundamentos
bíblicos da civilização ocidental e as modernas ideias e instituições
políticas. [ …] Althusius confronta os mesmos problemas da política
moderna sem alijar ou negar os fundamentos bíblicos”.53
A noção atualmente muito discutida da “subsidiariedade”, vagamente
entendida como o princípio de que as questões devem ser tratadas pela
autoridade competente menos centralizada, foi geralmente atribuída ao
pensamento social católico. No entanto, nada menos do que uma equipe de
pesquisa da União Europeia (EU), liderada pelo então presidente da UE
Jacques Delors, concluiu que as suas origens estão no calvinismo,
especialmente em Althusius.54
Althusius conseguiu desenvolver uma teoria social original que
incorporava a teoria política original, bem como pode ter sido o primeiro a
usar a expressão “ciência política”. Ele fez isso não apenas como calvinista
dedicado, mas também como aquele cujo pensamento foi profundamente
moldado por princípios calvinistas.
Conclusões
Para Calvino, toda a criação está igualmente sob a vontade soberana de
Deus, as instituições da sociedade não são organizadas hierarquicamente,
mas diferenciadas segundo a vocação e, por isso, devem ser dispostas lado a
lado em apoio mútuo, e a obra de Deus é realizada pela livre e voluntária
obediência do povo de Deus.55 O pensamento político e religioso formava
uma esfera contínua de discurso no qual o principal elemento unificador era
um conceito geral de ordem. Dentro desse esquema geral, “a sociedade
política devia ser resgatada do limbo sendo restaurada a uma estrutura
ordenada mais ampla. Ela devia tornar-se parte da cosmologia cristã”.56 O
governo soberano de Deus está sobre todas as instituições e associações.
Uma vez que cada uma dessas instituições é diferenciada segundo a sua
vocação, e Deus não ser mediado exclusivamente por intermédio de uma
delas, segue-se que nenhuma pode reivindicar soberania sobre as outras.57
Isso levou a uma ênfase sobre transferir a política de simplesmente uma
ocupação de elite para uma ocupação participativa. Também levou a uma
visão de aliança da política, que criou o federalismo moderno. Também
levou à criação da ciência política como uma disciplina. Calvino
reformulou a política e o estudo da política, não nos detalhes da soberania e
da rebelião, mas situando a política e a ação política como uma resposta dos
seres humanos que se submetem voluntariamente a Deus e, assim, buscam
transformar a ordem social, econômica e política de modo que ela possa
refletir a ordem de Deus.
1 Michael Walzer, Revolution of the saints: A study in the origins of radical politics (Cambridge:
Harvard University Press, 1982), 300.
2 Ver John Witte, The reformation of rights: Law, religion, and human rights in early modern
Calvinism (Cambridge: Cambridge University Press, 2007), 39-42.
3 Quentin Skinner, The foundations of modern political thought (Cambridge: Cambridge
University Press, 1978), 1.15. Ver também sua obra “The origins of the Calvinist theory of
revolution”, em B. C. Malament (org.), After the Reformation: Essays in honor of J. H. Hexter
(Filadélfia: University of Pennsylvania Press, 1980), 309-30. Para uma visão geral de Skinner sobre
Calvin, ver meu artigo “Quentin Skinner and the secularisation of political thought”, em Studies in
political thought 2, 1 (outono de 1993): 85-104.
4 Skinner, The foundations of modern political thought, 1.15.239, 2.210.323. Do mesmo modo,
Plamenatz sustentava que “A teoria política de Calvino […] é lúcida, coerente, sistemática e
totalmente de segunda mão”. John Plamenatz, Man and society (Londres: Longman, 1963), 1.57. Ver
os comentários de Oliver O’Donovan na sua obra Desire of the nations (Cambridge: Cambridge
University Press, 1996), 210-11.
5 Skinner, The foundations of modern political thought, 1.225.230, 2.51.347-48.
6 Ibid., 15; ver também 2.74.
7 Ibid., 9.
8 Ibid., 1.9n1, 1.10, 2.211, 240, 351-52. Ele também sugere que a autoridade “puramente civil ou
política” é “repudiada” por uma relação mais estreita entre fidelidade na igreja e no Estado. Quentin
Skinner, “The state”, em T. Ball, J. Farr e R. L. Hanson (orgs.), Political innovation and conceptual
change (Cambridge, Cambridge University Press, 1987), 90-131, esp. 122. Sobre o entendimento de
Skinner do pensamento político, ver J. Tully, org., Meaning and context: Quentin Skinner and his
critics (Princeton, NJ: Princeton University Press, 1988). Hancock sustenta