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Um lug ar par a os espaços cultur ais : g est ão, terr itór ios , públicos e prog r amaç ão um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 1 29/07/2019 14:33:30 universidade feder al da bahia reitor João Carlos Salles Pires da Silva vice-reitor Paulo Cesar Miguez de Oliveira assessor do reitor Paulo Costa Lima editor a da universidade feder al da bahia diretor a Flávia Goulart Mota Garcia Rosa conselho editorial Alberto Brum Novaes Angelo Szaniecki Perret Serpa Caiuby Alves da Costa Charbel Ninõ El-Hani Cleise Furtado Mendes Evelina de Carvalho Sá Hoisel José Teixeira Cavalcante Filho Maria do Carmo Soares de Freitas Maria Vidal de Negreiros Camargo cult — centro de est udos multidisciplinares em cult ur a coordenação Leonardo Costa vice-coordenação Renata Rocha comissão editorial da coleção cult Alexandre Barbalho (Universidade Estadual do Ceará) Antonio Albino Canelas Rubim (UFBA) Gisele Nussbaumer (UFBA) José Roberto Severino (UFBA) Laura Bezerra (UFRB) Lia Calabre (Fundação Casa de Rui Barbosa – RJ) Linda Rubim (UFBA) Liv Sovik (Universidade Federal do Rio de Janeiro) Mariella Pitombo Vieira (UFRB) Marta Elena Bravo (Universidade Nacional da Colômbia – Medellín) Paulo Miguez (UFBA) Renata Rocha (UFBA) Renato Ortiz (UNICAMP) Rubens Bayardo (Universidade de Buenos Aires – Universidade San Martin) coordenador da comissão editorial Antonio Albino Canelas Rubim um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 2 29/07/2019 14:33:32 c o l e ç ã o c u l t G i u l i a n a K a u a r k , P l í n i o R a t t e s e N a t h a l i a L e a l ( o r g s . ) Um lug ar par a os espaços cultur ais : g est ão, terr itór ios , públicos e prog r amaç ão e d u f b a s a l v a d o r , 2 0 1 9 um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 3 29/07/2019 14:33:32 2019, autores. Direitos para esta edição cedidos à EDUFBA. Feito o depósito legal. Grafia atualizada conforme o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009. diagramação e arte final Zulmira Alves Correia e Edson Sales foto da capa: Yánnick Fonseca revisão: Elber Lima normalização: Equipe EDUFBA Sistema de Biblioteca – SIBI /UFBA edufba Rua Barão de Jeremoabo, s/n – Campus de Ondina, Salvador – Bahia cep 40170 115 tel/fax (71) 3283-6164 www.eduf ba.uf ba.br eduf ba@uf ba.br editora filiada à: Um lugar para os espaços culturais: gestão, territórios, públicos e programação/ Giuliana Kauark, Plínio Rattes e Nathalia Leal (orgs.). – Salvador: Eduf ba, 2019. 407 p. (Coleção Cult) ISBN: 978-85-232-1840-9 1. Política cultural - Brasil. 2.Espaços públicos. 3. Espaços públicos - Brasil. 4. Cultura. I. Kauark, Giuliana. II. Rattes, Plínio. III. Leal, Nathalia. CDD– 306. 4 Elaborada por Evandro Ramos dos Santos - CRB-5/1205 um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 4 29/07/2019 14:33:33 s u m á r i o 9 P r e f á c i o - R e f l e t ir s o b r e e s p a ç o s c ul t ur a i s : d a e x p e r i ê n c i a à c r ít i c a G i s e l e M a r c h i o r i N u s s b a u m e r 1 7 A p r e s e nt a ç ã o - D o p a r a d o x o a o d e s a f i o d e r e f l e t ir s o b r e e s p a ç o s c ul t ur a i s G i u l i a n a K a u a r k , P l í n i o R a t t e s e N a t h a l i a L e a l pa rt e i ge s tão 2 9 P r o c e dim e nt o s b á s i c o s d a g e s t ã o d e e s p a ç o s c ul t ur a i s G i u l i a n a K a u a r k , P l í n i o R a t t e s e N a t h a l i a L e a l 5 7 R e f l e x õ e s s o b r e a c o n s t it ui ç ã o d e um a p o l ít i c a p a r a e quip a m e nt o s c ul t ur a i s n o B r a s i l C a r l o s B e y r o d t P a i v a N e t o 7 9 D e s a f i o s d a g e s t ã o p úb li c a d e e s p a ç o s c ul t ur a i s : r e f l e x õ e s a p a r t ir d a e x p e r i ê n c i a n a D ir e t o r i a d e E s p a ç o s Cul t ur a i s G i u l i a n a K a u a r k , P l í n i o R a t t e s e N a t h a l i a L e a l 1 0 7 P a r c e r i a s e nt r e p o d e r p úb li c o e t e r c e ir o s e t o r p a r a a g e s t ã o d e e s p a ç o s c ul t ur a i s : av a n ç o s , d e s a f i o s e p e r s p e c t i v a s E l i z a b e t h P o n t e um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 5 29/07/2019 14:33:33 pa rt e ii t er r i t ó r io s 1 3 5 E s p a c i a l iz a ç ã o d a s di f e r e nt e s e x p r e s s õ e s c ul t ur a i s n a c i d a d e M a r i a n a L u s c h e r A l b i n a t i 157 A s c a s a s d o c e nt r o a nt i g o d e S a l v a d o r : um o lh a r s o b r e t r ê s e s p a ç o s c ul t ur a i s a l t e r n at i vo s G o r d o N e t o , V i t o r B a r r e t o , L u i z A n t ô n i o S e n a J r . , F e l i p e B e z e r r a e L u i z G u i m a r ã e s 181 G e s t ã o p a r t i c ip at i v a e m c o muni d a d e : a e x p e r i ê n c i a d o F ó r um d e A r t e e Cul t ur a d o S ub úr b i o n o C e nt r o Cul t ur a l P l at a f o r m a A n a V a n e s k a S a n t o s d e A l m e i d a 201 E quip a m e nt o s c ul t ur a i s , i d e nt i d a d e e t e r r it ó r i o : e l e m e nt o s p a r a um a g e s t ã o t e r r it o r i a l iz a d a F a b i a n a P i m e n t e l S a n t o s E d u a r d o P a e s B a r r e t o D a v e l part e iii públ ico s 231 O t e at r o , o s p úb li c o s e o m ar k e t ing : um e n s a i o s o b r e p úb li c o s e n qu a nt o e i x o d e s u s t e nt a b i l i d a d e p a r a a s o r g a niz a ç õ e s a r t í s t i c a s t e at r a i s B i a n c a A r a u j o um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 6 29/07/2019 14:33:33 2 4 9 E xperiência s em mediaç ão cultur al par a a inf ância no E spaço Xisto Bahia : a t ia do nosso Teatro I s a b e l a F e r n a n d a A z e v e d o S i l v e i r a 281 M e di a ç ã o c ul t ur a l e f o r m a ç ã o d e e s p e c t a d o r e s : a at u a ç ã o d o e di f íc i o t e at r a l c o m o e s p a ç o a r t í s t i c o - p e d a g ó g i c o P o l i a n a B i c a l h o 301 U m c a s o d e a c e s s o à c ul t ur a : o D o min g o n o T C A R o s e L i m a pa rt e i v pr o gr a maç ão 337 A p o é t i c a d a g e s t ã o e m e s p a ç o s c ul t ur a i s : a e x p e r i ê n c i a n o C in e Te at r o S o l a r B o a V i s t a C h i c c o A s s i s 361 E quip ament os cultur ais públicos e os g r up os ar t íst icos : uma r e f le x ão acer c a da e x p er iência do Finos Trapos no E sp aço X ist o B ahia P o l i a n a N u n e s S a n t o s d e C a r v a l h o 379 D o A m é li o a o B e c o : o lh a r e s s o b r e d o i s c a s o s d e e s p a ç o s c ul t ur a is e m F e ir a d e S a nt a n a A l o m a G a l e a n o e M a y l l a P i t a um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 7 29/07/2019 14:33:33 um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 8 29/07/2019 14:33:33 Pr ef ácio R ef letir sobr e espaços cultur ais : da e xperiência à cr ít ic a G i s e l e M a r c h i o r i N u s s b a u m e r * O livro Um lugar para os espaços culturais: gestão, territórios, públicos e programação, or- ganizado por Giuliana Kauark, Plínio Rattes e Nathalia Leal, docente e doutorandos do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia (UFBA), reúne textos não apenas de pesquisado- res, mas de artistas, produtores e gestores culturais atuantes na Bahia. É interessante notar que os autores que partici- pam da publicação possuem em comum a vivên- cia de um momento muito particular nas políti- cas públicas culturais baianas, que teve início com * Professora da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e do Programa Multidisciplinar da Pós-Graduaçãoem Cultura e Sociedade do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos da UFBA. Coordenadora do Coletivo Gestão Cultural do Observatório de Políticas e Gestão Cultural do Centro de Estudos multidisciplinares em Cultura (CULT). Email: gica.mn@gmail.com um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 9 29/07/2019 14:33:34 1 0 g i s e l e m a r c h i o r i n u s s b a u m e r a mudança do governo em 2007, com a eleição de Jaques Wagner como governador e a criação de uma Secretaria de Cultura (SecultBA) autô- noma no estado, separada do turismo, tendo o diretor teatral Márcio Meirelles à frente da pasta. A partir daí, as políticas culturais estaduais passam a se alinhar com as desenvolvidas em âmbito nacional, a par- tir da atuação do Ministério da Cultura (MinC), na gestão inaugural de Gilberto Gil, no Governo Lula. A criação da SecultBA e o fortalecimento das instituições a ela vin- culadas, a exemplo da Fundação Cultural do Estado da Bahia (Funceb), foram importantes não apenas pelas políticas implementadas, sobre- tudo entre 2007 e 2014, mas pelo investimento feito na formação e mobilização de gestores e outros agentes culturais, que passaram a cola- borar na construção e na crítica a essas políticas culturais e que hoje, em grande medida, despontam como resistência frente ao desmonte que assistimos. No que se refere aos espaços culturais, em 2007 foi criada na Funceb uma Diretoria de Espaços Culturais (DEC), iniciativa que, além de sinalizar a importância desses espaços para a política cultural vigente, possibilitou que um número significativo de profissionais, alguns de- les recém-formados pelo curso de graduação em Produção Cultural da UFBA, pudessem ter experiência não apenas na gestão pública, mas na gestão de espaços culturais públicos. O trabalho desenvolvido por essa Diretoria exigiu dos seus gestores, na época, uma reflexão sobre os seus próprios perfis, modos de pensar a cultura, as políticas públicas e os es- paços culturais em sua diversidade, considerando seu papel e impor- tância nos territórios onde se inserem. Não é à toa, que, dos 15 textos reunidos nesta publicação, quase a me- tade relata a experiência de seus autores na gestão de espaços culturais públicos do Estado e os demais se alinhem com um pensamento e um ideal de democracia cultural que temos defendido enquanto estudio- sos da área. Espaços como o Centro Cultural Plataforma, localizado no Subúrbio Ferroviário de Salvador, o Cine Teatro Solar Boa Vista, no um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 10 29/07/2019 14:33:34 r e f l e t i r s o b r e e s p a ç o s c u l t u r a i s 1 1 bairro Engenho Velho de Brotas, e o Xisto Bahia, nos Barris, chegaram, em dado momento, a ser considerados como referências em termos de gestão. O primeiro pelo processo de gestão participativa e o diálogo estabelecido com a comunidade do entorno; o segundo pela “poética” de sua gestão e a abertura para uma nova cena cultural, que incluía os ainda incipientes festivais de música independente; o terceiro, por ter investido em um público fundamental, normalmente ignorado tanto por gestores como pelas políticas públicas de cultura: o público infantil. Nos três casos a figura dos gestores desses espaços, que relatam nes- te livro as suas experiências, teve um papel central para a dinamização dos mesmos, seja pelo vínculo com as comunidades em questão e/ou com a cena artística local, seja pelo reconhecimento da necessidade de incluir em suas prioridades novos públicos e questões que mobilizam a sociedade. Em um texto sobre formação na área de gestão e o papel dos gestores culturais, José Márcio Barros sugere que devemos aprender metafo- ricamente com a rubrica da competência na hidrografia, isso porque a “competência de um rio é sua capacidade de f luidez e deslocamento. Um rio é tão mais competente para quem dele vive quanto mais ele con- duz na f luidez dos seus movimentos e não na velocidade e na força das suas águas”. (BARROS, 2008, p. 108) No caso da gestão dos espaços cul- turais citados e de outros relatados neste livro, esta metáfora cai muito bem, pois os esforços empreendidos foram, sem dúvida, “na dimen- são das competências para a consolidação da cultura como um ponto central de projetos de desenvolvimento humano”. (BARROS, 2008, p. 108) Além dos espaços mencionados, também há o maior equipamento cultural público da Bahia, o Teatro Castro Alves (TCA), que é objeto de análise nesta coletânea a partir de um de seus principais projetos: o “Domingo no TCA”. Ao possibilitar o acesso a espetáculos de quali- dade a preços populares, uma vez por mês aos domingos pela manhã, esse projeto ressignificou a relação do equipamento, historicamente um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 11 29/07/2019 14:33:34 1 2 g i s e l e m a r c h i o r i n u s s b a u m e r considerado como elitista, com a população da cidade. Trata-se de um dos poucos projetos do Governo de Estado que tem conseguido se manter desde o seu início, em 2007, e que se tornou uma referência jus- tamente pelo seu caráter democrático. O Teatro Castro Alves também acolheu e geriu, nos seus primeiros anos, o Núcleo de Orquestras Juvenis da Bahia (NEOJIBA), programa prioritário da SecultBA que se configurou na primeira experiência de publicização na área da cultura em Salvador e deu visibilidade a todo um debate sobre a parceria público-privado na gestão de equipamentos culturais. Esse é outro tema contemplado neste livro. A publicização tem sido crescentemente adotada como modelo de gestão em espaços culturais públicos de várias cidades brasileiras, com destaque para São Paulo. O objetivo é não apenas driblar as dificuldades de operacionali- zação na administração pública direta, mas garantir um orçamento mí- nimo por parte do próprio governo e maior facilidade para a captação de recursos. Essa expansão da parceria entre poder público e terceiro setor reflete uma importante mudança no modo de pensar o papel do Estado e novas leis vêm surgindo com o propósito de qualificar essa parceria, como é o caso do Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (MROSC). Trata-se de um modelo de gestão que ainda carece de acompanhamento e análises, sobretudo naqueles aspectos em que a parceria pode distanciar os espaços culturais do seu caráter público e aproximá-los de uma lógica liberal. Os espaços culturais fazem parte de um circuito que depende, além das políticas culturais vigentes, do envolvimento dos atores do campo e das relações de poder que esses travam e que, em última instância, determinam os seus modos de funcionamento e subsistência. O que assistimos, via de regra, é uma ausência de políticas específicas para o setor. É preciso uma política de fomento para os espaços culturais, que os considere em sua diversidade e contribua para minimizar as deficiências do modelo de financiamento público predominante no Brasil, que pri- vilegia aqueles espaços culturais mais tradicionais, direcionados a um um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 12 29/07/2019 14:33:34 r e f l e t i r s o b r e e s p a ç o s c u l t u r a i s 1 3 determinado público e uma determinada arte, em detrimento daque- les espaços alternativos, independentes ou insurgentes, que trabalham a partir de uma perspectiva diferente daqueles vinculados ao Estado ou ao mercado e a sua lógica dominante. O financiamento a esses espaços culturais de interesse público é, sem dúvida, um avanço democrático que precisa ser priorizado. Um exemplo de iniciativa bem sucedida nes- se sentido, destacada em um dos textos deste livro, é o “Edital de Apoio a Ações Continuadas de Instituições Culturais” da SecultBA, que tem como objetivo garantir a estabilidade das ações desenvolvidas em im- portantes espaços culturais do estado por três anos consecutivos e que, atualmente, apoia 17 organizações por meio do Fundo de Cultura do Estado da Bahia (FCBA).Quando falamos em espaços culturais, obviamente não estamos nos referindo somente àqueles mais convencionais – centros de cultura, teatros, museus, entre outros –, mas também àqueles que são apropria- dos para tal fim. Ou seja, espaços de acolhimento, criação e divulgação de bens e produtos culturais; espaços geridos não apenas por órgãos governamentais e pela iniciativa privada, mas por grupos ou coletivos culturais; espaços fundamentais nos territórios onde se inserem. Os espaços não convencionais, que se multiplicam nas cidades bra- sileiras, respondem, muitas vezes, a necessidades e desejos de grupos sociais ou culturais que não têm acesso ou interesse nos espaços cul- turais tradicionais, seja por barreiras geográficas, simbólicas ou mes- mo por uma falta de identificação com suas normas e certa tendência a priorizar uma “cultura no singular”. Em Salvador, inúmeros espa- ços vêm surgindo em diferentes bairros, sobretudo no centro antigo, e conquistando o seu lugar como espaços de criação e resistência. Tais espaços oferecem aos artistas e públicos a possibilidade de um (re)en- contro na e pelas artes a partir de novas experiências e de uma proxi- midade que os espaços culturais convencionais não oferecem. São nor- malmente geridos por grupos de artistas, produtores e gestores, alguns deles, inclusive, com experiência na gestão pública da cultura – caso de um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 13 29/07/2019 14:33:34 1 4 g i s e l e m a r c h i o r i n u s s b a u m e r parte dos autores dos textos que tratam do tema neste livro e que des- tacam importantes espaços culturais a exemplo da Casa Preta, da Casa d´A Outra e do Centro de Artes Aboca em Salvador e do Beco da Energia em Feira de Santana. Sobre a importância desse tipo de espaço, é pertinente a ponderação de Ana Luisa Lima quando diz que, nos últimos tempos, temos aprendi- do mais a dar desculpas do que a intervir sobre as circunstâncias, sendo o movimento de construção dos espaços autônomos uma possibilidade de transformação nos modos de ser e estar no mundo, uma alternati- va aos modos “fantasmagóricos” do capital. Para a autora, “o princípio de existência dos espaços autônomos já é em si mesmo um completo contraste ao sistema que desconcerta toda a graça de sermos humanos e nos transporta para o lugar de apenas meros ‘fazedores’ em busca de cumprir alguma função”. (LIMA, 2014, p. 154-155) Essa pode ser a prin- cipal lição dos espaços não convencionais aos gestores da área: que, no atual momento político do país, o fator humano não é só estratégico, mas fundamental para uma gestão cultural comprometida. Como ressalta Victor Vich, no livro Desculturizar la cultura: La ges- tión cultural como forma de acción política (2014), não podemos mais entender os gestores culturais como simples administradores, mas como agentes culturais integrados com as problemáticas locais, capazes de desconstruir de imaginários hegemônicos e buscar produzir novas representações. Os espaços culturais, apesar de abrangerem uma diversidade de públicos, com diferentes demandas e formas de se relacionar com a cultura, vivenciam uma crise na relação com seus públicos. Vale refle- tir, nesse contexto, até que ponto são válidas algumas iniciativas – ou fórmulas – de formação, diversificação ou fidelização de públicos que são realizadas desconsiderando esse contexto de crise e a necessidade de ações contínuas nessa direção. Como pensar o acesso a espaços cul- turais sem conhecer aqueles a quem esses espaços se destinam? Como pensar uma programação desconsiderando os seus públicos? Como um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 14 29/07/2019 14:33:34 r e f l e t i r s o b r e e s p a ç o s c u l t u r a i s 1 5 justificar o contexto atual de plateias vazias nos teatros? Como os artistas e gestores percebem os seus públicos e que relações estabelecem com eles? Qual o lugar e o papel dos públicos da cultura? Esses e outros questionamentos sinalizam tanto a necessidade de políticas que equa- cionem a oferta e o acesso a espaços culturais por parte dos criadores e públicos, incluindo pessoas com deficiências e tantas outras, quanto a necessidade de um investimento contínuo na atividade de mediação cultural entendida em seu sentido mais amplo. Outro tema recorrente quando se discute o papel dos espaços cul- turais é a necessidade de uma maior abertura para artistas e grupos lo- cais, uma demanda comum, sobretudo, por parte daqueles grupos que não possuem um espaço próprio. Essa abertura pode se dar a partir de editais de cessão de pautas, ocupação ou residências de grupos artísti- cos, tema também abordado neste livro. As residências têm se tornado uma alternativa para muitos equipamentos culturais que buscam não apenas ocupar e dinamizar seus espaços, mas promover atividades de formação e intercâmbios. Apesar da importância que têm os espaços culturais, observa-se na maior parte das cidades uma distribuição espacial desigual desses espa- ços. Em São Paulo, conforme demonstra estudo de referência realizado por Isaura Botelho (2003), são notórios o desequilíbrio e a baixa corres- pondência existentes entre o crescimento urbano e a distribuição dos espaços culturais. São as áreas mais centrais e bem servidas em trans- porte público que concentram a maioria dos espaços. No Rio de Janeiro , igualmente, se constata uma concentração de espaços culturais em uma área central e uma enorme carência nos bairros populares, subúrbios e periferias. Em relação a Salvador, os espaços culturais também se con- centram em lugares centrais da cidade, seguindo a tendência verifica- da na maioria das capitais do país. Em um mapeamento dos teatros da cidade que realizamos em 2006, constatamos que a maioria desses espaços estava localizada em uma área que vai do Centro Histórico ao bairro da Pituba, sendo que a maior parte da população soteropolitana um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 15 29/07/2019 14:33:34 1 6 g i s e l e m a r c h i o r i n u s s b a u m e r não possuía um único teatro próximo de sua residência, constatação que é válida ainda hoje, passada mais de uma década. Há uma ausência de políticas e de gestores com formação específica para atuar na gestão de espaços culturais, aliada a uma ausência tam- bém de estudos mais abrangentes sobre o tema, quadro que tem se alterado nos últimos a anos partir da realização de debates, seminários e dissertações. Faz-se necessário, assim, o estímulo a estudos e pesqui- sas que reflitam sobre as políticas, a gestão, a programação e os públicos dos espaços culturais, entre outros aspectos. Estudos como os que estão reunidos nesta coletânea, elaborados por artistas, gestores e pesquisa- dores que têm se interessado no tema. É preciso dimensionar as influên- cias das diferentes formas de gestão e das políticas culturais vigentes na condução desses espaços, assim como considerar o que pensam os diferentes atores envolvidos na cena cultural das cidades, constituídas muito em torno de seus espaços culturais. R e f e r ê n c i a s BARROS, José Marcio. Mercado de trabalho em mutação: gestão cultural e formação profissional. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE GESTÃO CULTURAL . 1., 2008, Belo Horizonte. Anais [...]. Belo Horizonte: Duo Informação e Cultura, 2008. BOTELHO, Isaura. Os equipamentos culturais na cidade de São Paulo: um desafio para a gestão pública. Revista Espaço e Debates. São Paulo: Núcleo de Estudos Regionais e Urbanos. v.23. n.43-44. jan/dez, 2003. LIMA, Ana Luisa. Política como liberdade. In: TOLEDO, Daniel (org). Indie.gestão: práticas para artistas/gestores ou como assobiar e chupar cana ao mesmo tempo. Belo Horizonte: JACA, 2014. NUSSBAUMER, Gisele. Um mapa dos teatros de Salvador. In: II ENCONTRO DE ESTUDOS MULTIDISCIPLINARES EM CULTURA. 2. 2006, Salvador. Anais [...]. Salvador: Cult/UFBA, 2006. VICH, Víctor Desculturizar la cultura: La gestión cultural como forma de acciónpolítica. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2014. um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 16 29/07/2019 14:33:34 Apr esent aç ão D o par adoxo ao des af io de r ef letir sobr e espaços cultur ais G i u l i a n a K a u a r k * , P l í n i o R a t t e s * * e N a t h a l i a L e a l * * * Um grande oximoro paira sobre os espaços cultu- rais – apesar de ocuparem posição estratégica para a garantia dos direitos culturais, para a promoção da cidadania cultural, para a experimentação artística e para a necessária dinâmica da economia da cultu- ra – embora os espaços culturais sejam considerados locais imprescindíveis para consecução de todos os elos da chamada cadeia produtiva da cultura, desde a formação, criação, produção, difusão e consumo da cultura; conquanto sua assimétrica distribuição * Professora do Centro de Cultura, Linguagens e Tecnologias Aplicadas da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos (Ihac) da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Membro do Observatório da Diversidade Cultural e coordenadora do Coletivo de Gestão Cultural do Observatório de Políticas e Gestão Cultural do Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura. E-mail: giulianakauark@gmail. com. ** Pesquisador e gestor cultural, mestre e doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia. Membro do Observatório da Diversidade Cultural e do Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura (CULT). Atua na coordenação de cultura do Serviço Social do Comércio da Bahia. E-mail: pliniorattes@gmail.com. *** Pesquisadora e gestora cultural, graduada em produção em comunicação e cultura (UFBA) e em administração (FVC). Mestra e doutoranda pelo Programa Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia. Membro do Coletivo de Gestão Cultural do Observatório de Políticas e Gestão Cultural do Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura. E-mail: leal.nathalia@gmail.com. um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 17 29/07/2019 14:33:34 1 8 g i u l i a n a k a u a r k , p l í n i o r a t t e s e n a t h a l i a l e a l geográfica ou sua ausência em inúmeros municípios brasileiros ou ou- tros territórios que congregam comunidades das mais diversas – ter- ras indígenas, quilombos, bairros periféricos, etc. – seja anunciada e denunciada em pesquisas promovidas por reconhecidos institutos; a despeito de constarem de maneira recorrente em demandas de mo- vimentos sociais, grupos artísticos, pautas de conferências de cultura ou outras ocasiões de ausculta e diálogo entre Estado e sociedade civil; mesmo com tudo isso, os espaços culturais não ocupam lugar de des- taque nas políticas culturais formuladas em nosso país, tampouco nos estudos sobre cultura. Por óbvio, faz-se necessário delimitar de quais objetos estamos tra- tando. Museus e bibliotecas, por exemplo, são equipamentos culturais que possuem consolidada institucionalização em termos de políticas públicas, bem como constituição em campos acadêmicos específicos. Todavia, espaços de caráter cênico ou ainda de característica multiuso não ocupam a mesma posição privilegiada. Ademais, quando optamos tratar de “espaços” e não de “equipamentos” culturais, claramente não nos restringimos àqueles edifícios pensados e construídos para serem utilizados em atividades de natureza cultural, mas incorporamos aque- les locais que, pelos usos dados por seus frequentadores, transformam- -se e reivindicam o devido reconhecimento como espaços de cultura. Dito isso, chegamos à presente coletânea. Ela parte da constatação, ou melhor, da provocação de que os espaços culturais não podem mais constar no debate público de maneira acessória, de que precisamos re- conhecer de modo estratégico um lugar para os espaços culturais. Esse, portanto, foi o desafio compartilhado pelas organizadoras e organizador e pelas autoras e autores convidados a participar desta obra. Destarte, de- finimos que diferentes dimensões deveriam ser abordadas nas variadas reflexões que reuniríamos e que, finalmente, auxiliaria na organização dos textos. Neste sentido, os 15 artigos que compõem o livro estão dividi- dos em quatro partes apresentadas a seguir, aos que se somam o prefácio assinado por Gisele Marchiori Nussbaumer, professora e pesquisadora da um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 18 29/07/2019 14:33:34 d o p a r a d o x o a o d e s a f i o d e r e f l e t i r s o b r e e s p a ç o s c u l t u r a i s 1 9 Universidade Federal da Bahia que, em 2005, inaugurou a pesquisa sobre equipamentos culturais nesta instituição. O primeiro bloco temático versa sobre Gestão. Inaugura a obra o texto “Procedimentos básicos da gestão de espaços culturais”, assina- do pelos organizadores Giuliana Kauark, Plínio Rattes e Nathalia Leal, respectivamente doutora e doutorandos em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), gestores culturais em cujas tra- jetórias encontram-se a passagem por espaços culturais ou por órgão responsável pela sua gestão. Neste artigo, ao constatarmos o quão rare- feita é a bibliografia voltada às especificidades da gestão de equipamen- tos culturais, realizamos o exercício de identificar alguns procedimen- tos cruciais que conformam a atividade, ressaltando ainda a necessidade de gestores serem capazes de refletir constantemente sobre as relações com os artistas e com os públicos dos espaços culturais. Em “Reflexões sobre a constituição de uma política para equipa- mentos culturais no Brasil”, o gestor e especialista em gestão gover- namental e políticas públicas Carlos Beyrodt Paiva Neto, aproveitando a sua experiência como gestor público nos governos estadual e federal, defende que uma efetiva política de fomento para equipamentos cultu- rais poderia contribuir para sanar deficiências do modelo de financia- mento público predominante no Brasil e destaca o programa de apoio a instituições e equipamentos culturais implementado na Bahia. O autor distingue quatro tipos de equipamentos culturais e destaca que o fortalecimento dos espaços culturais independentes, em particular, tem sido deixado de lado pelos gestores públicos, constituindo-se em uma séria omissão das políticas culturais brasileiras. Levando em consideração o ainda incipiente desenvolvimento de políticas culturais específicas para este segmento, é interessante tra- tar dos “Desafios da gestão pública de espaços culturais: reflexões a partir da experiência na Diretoria de Espaços Culturais”. Escrito tam- bém em coautoria por Giuliana Kauark, Plínio Rattes e Nathalia Leal, o texto avalia o caráter inovador da criação dessa Diretoria, o processo um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 19 29/07/2019 14:33:34 2 0 g i u l i a n a k a u a r k , p l í n i o r a t t e s e n a t h a l i a l e a l de institucionalização da gestão dos equipamentos culturais públicos do Estado, sua atuação no decorrer dos anos, bem como os principais desa- fios que foram e são vivenciados na gestão pública de espaços culturais. Na esteira dessas discussões, encerra o primeiro bloco o artigo “Parcerias entre poder público e terceiro setor para a gestão de espaços culturais: avanços, desafios e perspectivas”, da gestora e mestra em Cultura e Sociedade pela UFBA, Elizabeth Ponte. Ao identificar que em diversos estados brasileiros são adotados modelos mistos para a gestão de equipamentos culturais públicos, inclusive por meio de parcerias com Organizações Sociais (OS) e Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscips), previstas há décadas no quadro legal brasi- leiro, e que, mais recentemente, novas formas de parceria têm emergi- do através do Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (MROSC) e dos Serviços Sociais Autônomos,o artigo apresenta bre- ve panorama dos principais formatos de parceria entre poder público e terceiro setor na gestão de espaços culturais, abordando o histórico, potencialidades e fragilidades de cada modelo. O segundo bloco temático da coletânea reúne contribuições acerca da interrelação entre espaços culturais e Territórios. Começamos com o texto “Espacialização das diferentes expressões culturais na cidade”, da produtora cultural e doutora em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Mariana Luscher Albinati. Conforme a autora, a ideia de espaço cultural que vem sendo predominantemente construída parte da produção espacial realizada pelo Estado e/ou pelo mercado, focada em edifícios, tais como, salas de cinema, teatros, museus, bibliotecas, etc. Não obstante, o texto procura discutir esta ideia refletindo sobre as diferentes formas de espaciali- zação da expressão cultural, inclusive aquelas que produzem espaços “outros”, de caráter insurgente, e que reconfiguram a relação entre cultura e território. Destarte, a partir dos conceitos de “cultura no plu- ral” e “cultura no singular”, de Michel de Certeau, o texto propõe a cria- ção de três categorias, quais sejam, espaços culturais empreendedores, um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 20 29/07/2019 14:33:35 d o p a r a d o x o a o d e s a f i o d e r e f l e t i r s o b r e e s p a ç o s c u l t u r a i s 2 1 espaços de acesso à cultura e espaços culturais insurgentes, que, enfim, servem para provocar a reflexão sobre as práticas e públicos de diferen- tes espaços. Em várias cidades brasileiras, os espaços culturais insurgen- tes, também chamados de “independentes” ou “alternativos”, vêm se multiplicando e buscando o seu lugar como espaços de resistência. Na sequência, o artigo “As casas do centro antigo de Salvador: um olhar sobre três espaços culturais alternativos”, assinado coletivamente pe- los artistas, produtores culturais e cogestores de espaços alternativos de Salvador, Gordo Neto, Vitor Barreto, Luiz Antônio Sena Jr., Felipe Bezerra e Luiz Guimarães, destaca-se como esses espaços alternativos têm identidades muito particulares, sendo normalmente geridos por grupos de artistas ou profissionais ligados à produção e à gestão cultu- ral. Tais espaços, de acordo com os autores, parecem oferecer guarida aos artistas e públicos que buscam (re)descobrir a comunhão perdida entre aquele que produz e aquele que consome arte e cultura, poden- do muitas vezes se confundirem, misturarem, trocarem de posição. Dentre tantos espaços alternativos da cidade de Salvador, os autores se debruçam sobre três: a Casa Preta, a Casa d'A Outra e o Centro de Artes Aboca. Eles descrevem suas características, histórico, modos de gestão e produção, significado para os artistas que os frequentam e/ou admi- nistram, a comunidade onde estão inseridos e seus públicos. É interes- sante a premissa de que, se por um lado esses espaços possuem muitas limitações, por outro, seu principal diferencial está, justamente, nas possibilidades que oferecem diante das limitações impostas pelos equi- pamentos tradicionais. Outra experiência que complexifica e contribui para a reflexão acerca dos espaços culturais e seus territórios é descrita e analisada pela profes- sora, pesquisadora e gestora cultural Ana Vaneska Santos de Almeida no texto “Gestão participativa em comunidade: a experiência do Fórum de Arte e Cultura do Subúrbio no Centro Cultural Plataforma”. Tendo como foco a análise teórico-empírica da participação do Fórum de Arte um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 21 29/07/2019 14:33:35 2 2 g i u l i a n a k a u a r k , p l í n i o r a t t e s e n a t h a l i a l e a l e Cultura do Subúrbio na construção da experiência de gestão parti- cipativa do Centro Cultural Plataforma, equipamento da Secretaria de Cultura do Estado da Bahia localizado no Subúrbio Ferroviário de Salvador, pretende-se demonstrar o papel protagonista dos atores locais na gestão deste espaço cultural, bem como apreender os impac- tos promovidos no seu cotidiano. Desta maneira, evidencia-se também o processo de gestão cultural, assentada num território periférico e en- tendida em seu papel político. Concluímos esta parte com o artigo “Equipamentos culturais, iden- tidade e território: Elementos para uma gestão territorializada”, dos autores Fabiana Pimentel Santos, gestora cultural e doutoranda em Administração pela UFBA, e Eduardo Paes Barreto Davel, professor da Escola de Administração da UFBA e Ph.D. em Administração pela École des Hautes Études Commerciales de Montreal (Canadá). Seu con- teúdo é fruto de uma pesquisa qualitativa de caráter exploratório, rea- lizada junto a um grupo de gestores de 11 equipamentos culturais de Salvador, com aportes colhidos também em organizações culturais colombianas. A partir de uma abordagem teórica que articula gestão de equipamentos culturais e identidade territorial, busca-se oferecer um compêndio de práticas e procedimentos de gestão capazes de promo- ver maior sinergia entre os espaços culturais e os potenciais identitários dos territórios com os quais se relacionam. A autora faz ainda impor- tantes provocações: “E se o foco de atenção fosse deslocado do espaço intramuros para as relações que estabelece dos muros para fora?”. Essa mudança de perspectiva é o que ela denomina de gestão territorializada. O terceiro bloco temático que compõe este livro foca, precipuamen- te, a questão dos Públicos. Inicialmente, a gestora cultural, mestra em Artes Cênicas e doutoranda em Administração também pela UFBA, Bianca Araújo, traz sua contribuição com “O teatro, os públicos e o marketing: um ensaio sobre públicos enquanto eixo de sustentabilidade para as organizações artísticas teatrais”. A partir de uma reflexão sobre a relação entre públicos e teatro, datada desde a antiguidade, discute-se um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 22 29/07/2019 14:33:35 d o p a r a d o x o a o d e s a f i o d e r e f l e t i r s o b r e e s p a ç o s c u l t u r a i s 2 3 sobre os conceitos de públicos e seu lugar enquanto protagonistas da cadeia produtiva das artes cênicas e, portanto, como atores vitais para a sustentabilidade econômica dos artistas e a manutenção de atividades e organizações artísticas. Apesar disso, ressalta a autora, os públicos são colocados à margem por muitos artistas e gestores, embora os mesmos se queixem de sua ausência. Colabora com a ausência de público nos tea- tros a lógica do “sem patrocínio, sem espetáculo”, que reflete o atual paradigma do artista. Tratando especificamente da criança enquanto público, normalmen- te ignorado tanto por gestores como pelas políticas públicas de cultura, a atriz, produtora, gestora, mestra em Teatro e doutoranda em Cultura e Sociedade também pela UFBA, Isabela Fernanda Azevedo Silveira, nos conduz a novos aportes conceituais sobre o tema entrelaçados com um relato de experiência das ações de mediação no texto “Experiências em mediação cultural para infância no Espaço Xisto Bahia: a tia do nos- so Teatro”. Conforme indica a autora, apesar dos avanços percebidos nas últimas décadas no sentido de reconhecer as crianças como sujeitos complexos, o que se vê na prática é uma sociedade que ainda não assume a criança como um cidadão pleno de direitos, alijado das decisões cole- tivas que incidem diretamente sobre suas vidas. O mesmo ocorre no universo da arte e da cultura, no qual se identifica uma abordagem adul- tocêntrica que orienta as ações de gestão cultural, inclusive dos espaços e projetos voltados para infância. Assumindo a infância como categoria social única, são relatadas as ações empreendidas em quatro edições do Festival Xistinho – arte, brincadeira e traquinagem que tentaram fazer frente aos desafios de engajamento e participação das crianças em seus próprios processos de fruição e formação de hábitos culturais.Ainda na perspectiva da mediação, a produtora cultural e mestra em Artes Cênicas pela UFBA, Poliana Bicalho, adverte em seu texto que plateias vazias não devem ser encaradas como lugar comum, mas como reflexo da relação dos espaços culturais com a sociedade. Em “Mediação cultural e formação de espectadores: a atuação do edifício teatral como um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 23 29/07/2019 14:33:35 2 4 g i u l i a n a k a u a r k , p l í n i o r a t t e s e n a t h a l i a l e a l espaço artístico-pedagógico” ela apresenta pressupostos teóricos do campo da mediação cultural, algumas considerações sobre a gestão de equipamentos culturais na perspectiva artístico-pedagógica, além de depoimentos de educadores que atuam nessas áreas. A autora afirma que é preciso ir além da “política de oferta” e desenvolver de ações para que os públicos dos espaços culturais possam ser inseridos em um processo contínuo e formativo de vivência e reconhecimento do fazer teatral, mi- nimizar as barreiras geográficas, físicas e, sobretudo, simbólicas. Encerrando o presente bloco e, ao mesmo tempo, trazendo elementos correspondentes ao tema seguinte, a mestra em Cultura e Sociedade pela UFBA, arquiteta e diretora artística do Teatro Castro Alves, Rose Lima, apresenta o artigo “Um caso de acesso à cultura: o domingo no TCA”. Formulado com objetivo de ampliar o acesso da população ao mais tradi- cional equipamento cultural do estado, o projeto Domingo no TCA – um dos poucos projetos do Governo de Estado da Bahia que tem se mantido sem interrupções desde o seu surgimento e que se tornou uma referência pelo seu caráter democrático – é detalhado tanto em dados quantitati- vos sobre público e programação, como em informações qualitativas dos principais atores envolvidos em seu funcionamento. Finalmente, o quarto e último bloco almeja adentrar no modo como a Programação também contribui e altera o olhar a respeito dos espaços culturais. Partimos do texto “A poética da gestão em espaços culturais: a experiência do Cine Teatro Solar Boa Vista”, no qual o gestor cultural e mestre em Cultura e Sociedade pela UFBA, Chicco Assis, se propõe a definir a poética da gestão contida nas disposições estéticas e metodo- lógicas da programação e da administração de espaços culturais a partir de sua experiência na gestão do Cine Teatro Solar Boa Vista, entre 2007 e 2014. O autor lembra que é notória a centralidade da figura do gestor nas delimitações dessa poética, seja pelo viés dos interesses estéticos em jogo ou pelo modo de operacionalização dos espaços. Para ele, cada gestor, cada contexto, estabelece uma determinada poética da gestão, um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 24 29/07/2019 14:33:35 d o p a r a d o x o a o d e s a f i o d e r e f l e t i r s o b r e e s p a ç o s c u l t u r a i s 2 5 que pode contribuir ou não para “fortalecer a cultura no combate à bar- bárie, na ampliação da esfera do ser, no reencantamento do mundo”. Passando da visão do gestor para a do artista, a atriz, professora, produtora cultural e mestra em Artes Cênicas pela UFBA, Poliana Nunes Santos de Carvalho procura abordar, no artigo intitulado “Equipamentos culturais públicos e os grupos artísticos: uma reflexão acerca da experiência do Finos Trapos no Espaço Xisto Bahia”, a cha- mada residência artística de grupos em espaços culturais a partir de sua própria vivência. A autora parte da premissa de que toda a criação artística necessita de um espaço físico, seja para reuniões, ensaios ou apresentações. Trata-se de uma discussão que está sempre em pauta e uma demanda muito comum de grupos que não possuem um espaço próprio. Assim, somos convidados a perceber que a disponibilização de equipamentos culturais públicos para residências é fundamental para os grupos culturais locais. De um lado, os artistas encontram um apoio importante para o seu fortalecimento, de outro, os gestores encontram formas de potencializar a programação dos equipamentos. Enfim, com a intenção de refletir de que modo a programação de um espaço cultural interfere na forma como os cidadãos percebem e ocupam este lugar, Aloma Galeano e Maylla Pita, ambas gestoras culturais, mestras em Cultura e Sociedade pela UFBA e residentes na cidade de Feira de Santana, no interior da Bahia, apresentam o artigo “Do Amélio ao Beco: olhares sobre dois casos de espaços culturais em Feira de Santana”. As autoras trazem dois casos de espaços diametral- mente distintos de sua cidade, a saber, o Centro de Cultura Amélio Amorim e o Beco da Energia. Enquanto o primeiro enquadra-se como equipamento cultural de caráter tradicional, já institucionalizado e em funcionamento há mais de 20 anos; o segundo constitui-se de uma rua amplamente reconhecida pela concentração de prostíbulos e que, recentemente, vem se transformando em um espaço cultural pelos ci- dadãos. As autoras destacam como a história, a estrutura física e a forma como esses dois espaços se situam no território feirense pode interferir um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 25 29/07/2019 14:33:35 2 6 g i u l i a n a k a u a r k , p l í n i o r a t t e s e n a t h a l i a l e a l nas suas possibilidades de uso, na sua programação e na relação dos ci- dadãos com esses locais. A diversidade de temas, abordagens e experiências trazidas nesta obra têm a simples intenção de refletir a complexa e dinâmica realida- de dos espaços culturais. Ademais, é exultante perceber a riqueza de casos reunidos na Bahia e analisados, em sua totalidade, por autores com formação e/ou atuação em nosso estado. Reconhecemos, contudo, que muitas outras questões ainda ficaram de fora e que muitas outras experiências em espaços culturais de outras cidades e estados merecem ser analisadas e ocuparem um lugar substantivo nos estudos sobre cultura. Por isso, desejamos que esta primeira coletânea sirva de estímulo a novas investigações atentas a este segmento cultural. Como demons- tram os artigos, os caminhos para encontrar um lugar para os espaços culturais são diversos e variáveis de acordo com os atores envolvidos, contextos político-econômicos e socioculturais, as políticas culturais vigentes, etc. Posto o desafio, convidamos a todos a iniciarmos esta empreitada. um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 26 29/07/2019 14:33:46 Gestão Parte I um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 27 29/07/2019 14:33:51 um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 28 29/07/2019 14:33:51 Procedimentos bá sicos da g est ão de espaços cultur ais1 G i u l i a n a K a u a r k , * P l í n i o R a t t e s * * e N a t h a l i a L e a l * * * I n t r o d u ç ã o O Brasil possui grande número de locais que se des- tinam à criação, produção e difusão artística e cul- tural, diversos em termos de tamanho e estrutura; acervos e atividades que realizam; públicos que atingem; vínculo institucional (se privado, públi- co ou público não estatal) e distribuição territorial, acentuadamente assimétrica. A existência, qualida- de e funcionamento desses espaços são pressupos- tos imprescindíveis para um pleno exercício dos * Professora do Centro de Cultura, Linguagens e Tecnologias Aplicadas da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Membro do Observatório da Diversidade Cultural e coordenadora do Coletivo de Gestão Cultural do Observatório de Políticas e Gestão Cultural do Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura. E-mail: giulianakauark@gmail. com. ** Pesquisador e gestor cultural, mestre e doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia. Membro do Observatório da Diversidade Cultural e do Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura(CULT). Atua na coordenação de cultura do Serviço Social do Comércio da Bahia. E-mail: pliniorattes@gmail.com. *** Pesquisadora e gestora cultural, graduada em produção em comunicação e cultura (UFBA) e em administração (FVC). Mestra e doutoranda pelo Programa Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia. Membro do Coletivo de Gestão Cultural do Observatório de Políticas e Gestão Cultural do Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura. E-mail: leal.nathalia@gmail.com. um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 29 29/07/2019 14:33:51 3 0 g i u l i a n a k a u a r k , p l í n i o r a t t e s e n a t h a l i a l e a l p r o c e d i m e n t o s b á s i c o s d a g e s t ã o d e e s p a ç o s c u l t u r a i s 3 1 direitos culturais, ou seja, para uma efetiva garantia do direito de toda pessoa de participar livremente da vida cultural de sua comunidade, tal como preveem cartas internacionais e constitucionais de direitos hu- manos e fundamentais. A despeito da reconhecida importância dos espaços culturais, ainda é rarefeita uma bibliografia que os tomam como objeto de estu- do. As lacunas em termos de pesquisa são muitas e vão desde questões relacionadas à própria nomenclatura desses espaços até a abordagem de problemas comuns, desafios prementes ou ainda dos modos de gestão empreendidos. Soma-se a isto, uma enorme carência na oferta de cur- sos de qualificação profissional para gestores que atuam nesses locais e, quando existem, são pontuais e/ou concentrados nas principais capi- tais brasileiras. A gestão de equipamentos culturais exige de seus profissionais sensibilidade com questões relacionadas aos direitos culturais, cida- dania, diversidade e entre outros, bem como domínio de uma série de conhecimentos específicos comuns à administração, porém, adequados ao campo cultural. No presente artigo introduziremos a temática dos equipamentos culturais e, na sequência, focaremos nos aspectos relacionados à gestão, apresentando um panorama de alguns procedi- mentos básicos. C o n f o r m a ç ã o d o s e q u i p a m e n t o s c u l t u r a i s Ao longo do século XX, a cultura passou por intensas mudanças acom- panhando o avanço e desenvolvimento das tecnologias e das novas formas de produção e consumo. Com efeito, neste período emergem novos gêneros e linguagens estéticas, a exemplo da cultura de massa, multiplicam-se e segmentam-se os públicos consumidores, bem como modificam-se os modos de se relacionar com a cultura. À guisa dos acontecimentos, também os equipamentos culturais se transformam. um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 30 29/07/2019 14:33:52 p r o c e d i m e n t o s b á s i c o s d a g e s t ã o d e e s p a ç o s c u l t u r a i s 3 1 No lugar de espaços consagrados a determinadas produções artísticas – teatro, galeria, cinema, Os centros culturais surgiram como um modelo de organismos mais flexíveis, plurais e democráticos, convertendo-se na instituição que melhor encarnou e representou as características e necessidades da dinâmica social das últimas décadas. Ademais, gerou uma fissura na concepção monolítica de espaços dedicados a um só tipo de atividade cultural. Este processo levou a uma profunda redefinição do espaço, das in- fraestruturas e equipamentos culturais e das atividades que ali se desenvolvem, in- cluindo os modelos de produção de seus conteúdos.2 (ALCARAZ, 2017) No Brasil, como em outros países, vimos surgir muitos desses cen- tros culturais, ou complexos culturais, sem necessariamente minguar a criação de teatros, cinemas ou bibliotecas. Contudo, mesmo estes equipamentos projetados para atender especialmente determinada expressão artística, são geridos na contemporaneidade de modo a oferecer atividades polivalentes ou ainda a configurar-se como locais de sociabilidade, visando a manutenção de público ou mesmo a susten- tabilidade financeira. Neste artigo compreendemos os equipamentos culturais como edi- fícios construídos com o objetivo de produzir e disseminar práticas cul- turais e bens simbólicos. Ou seja, espaços concebidos para acolher uma ou mais expressões culturais e atividades correlatas, a exemplo de exi- bição de filmes, apresentação de espetáculos de diversas linguagens – teatro, dança, circo, música –, exposições e mostras, realização de ações formativas relacionadas ao campo cultural, etc. Diferem-se, portanto, da ideia de espaço cultural, locais que, a princípio, não foram construí- dos com a função de abrigar atividades culturais, mas, dependendo de seus usos e apropriações, podem também ser destinados a elas – é o caso das praças, largos, parques, escolas, entre muitos outros. Por óbvio, os contínuos avanços tecnológicos que vivenciamos na atualidade, em especial no campo da comunicação, exigem também que um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 31 29/07/2019 14:33:52 3 2 g i u l i a n a k a u a r k , p l í n i o r a t t e s e n a t h a l i a l e a l p r o c e d i m e n t o s b á s i c o s d a g e s t ã o d e e s p a ç o s c u l t u r a i s 3 3 os equipamentos culturais se readaptem às novas dinâmicas. Latente, por exemplo, encontra-se ainda o desafio por que passam os locais con- sagrados às artes performáticas e que exigem a presença física do públi- co em relação àqueles setores da indústria cultural – como audiovisual, editorial ou fonográfica – que mais facilmente se adaptaram à chama- da era digital. Além dessas questões tecnológicas e das mudanças por elas provocadas, é preciso destacar que, hoje em dia, tampouco é pos- sível tratar dos equipamentos culturais deslocados de um debate sobre sua inserção no território, na cidade. Isso porque considera-se a cidade como local próprio da cultura, onde ocorrem as “relações de troca, de convivência, do encontro do diferente, do coletivo e da possibilidade de solidariedade e de conflitualidade no espaço urbano”. (FERNANDES, 2010, p. 27) E, portanto, quando idealizados e planejados para poten- cializar a sociabilidade própria das cidades, os equipamentos culturais podem se tornar locais de convívio e troca de experiências, bem como de articulação de diferentes conteúdos e ideias. Nesses termos, Enrique Núñez (2014) pontua que um equipamen- to cultural, qualquer que seja, sempre estará localizado em um deter- minado território que possui características próprias – demográficas, socioeducativas, tradições e expressões culturais, etc – e que, portan- to, precisam ser consideradas pela sua gestão. Destarte, o autor indica três atores essenciais da gestão de equipamentos culturais, quais sejam: a) Os cidadãos, também denominados públicos, espectadores; b) Os criadores, artistas e especialistas, pensados tanto individual como coletivamente e; c) Os técnicos que administram o equipamen- to, ou seja, os profissionais da gestão cultural, responsáveis pela otimi- zação de recursos, manutenção, desenvolvimento de ferramentas para melhoria dos serviços oferecidos pelos equipamentos. Estes últimos são nosso foco de atenção. O crescimento do mercado cultural nas últimas décadas e a insti- tucionalização e organização da cultura nos âmbitos nacional e inter- nacional passaram a exigir um número cada vez maior de profissionais um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 32 29/07/2019 14:33:52 p r o c e d i m e n t o s b á s i c o s d a g e s t ã o d e e s p a ç o s c u l t u r a i s 3 3 capacitados e especializados a trabalhar com a gestão cultural. No Brasil, a criação do Ministério da Cultura na década de 1980 é um divi- sor de águas, marcando o início de um processo de consolidação da ges- tão cultural enquanto campo profissional. Neste sentido, destaca-se a implementação da primeira lei federal de incentivo fiscal para a cultura que reconheceu não só a importância do setor, mas a complexidade de sua cadeia produtiva e a especificidade de seus profissionais. Embora hoje bastante questionadas em sua aplicaçãoe efetividade, as leis de incentivo à cultura assimilaram a participação de outros atores no cenário cultural até então restrito ao poder público ou à elite. Esse reordenamento do funcionamento do setor e a consequente ampliação da cadeia da produção cultural passaram a exigir profissionais cada vez mais especializados, inclusive na área da gestão. Neste contexto, emer- ge a necessidade de formação e/ou de qualificação de profissionais para atenderem à crescente demanda do setor, aptos a operar com as diversas dimensões da cultura. Evidente que hoje, com as dimensões do campo cultural, passou-se a exigir muito mais profissionais qualificados, para dar conta desse desafio. Quem gere um equi- pamento, certamente, não é a melhor pessoa para gerir um projeto, por exemplo. São coisas distintas. Isso é um desafio, formar gente para estas áreas é um desafio. De 2003 para cá, ampliou a necessidade do Estado de contar com profissionais para gerir políticas que começaram a ser implementadas. [...] Os próximos anos, numa perspectiva de curto prazo, apontam para um crescimento grande da área, e em médio prazo, certamente, um mercado estável. A sociedade vai contar com profissionais em maior número e mais qualificados. (MIGUEZ, 2013) Destarte, a formação de gestores culturais urge em ser a mais am- pla possível, incorporando tanto o aprendizado de ferramentas geren- ciais, como também prevendo a constituição de profissionais-cidadãos atentos com o desenvolvimento da cultura e com a promoção de sua diversidade. (BARROS; OLIVEIRA, 2011) Noutros termos, os gestores um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 33 29/07/2019 14:33:52 3 4 g i u l i a n a k a u a r k , p l í n i o r a t t e s e n a t h a l i a l e a l p r o c e d i m e n t o s b á s i c o s d a g e s t ã o d e e s p a ç o s c u l t u r a i s 3 5 culturais, sobretudo de equipamentos, precisam conhecer a realida- de com a qual estão lidando e ser capazes de dialogar com ela, afinal, como indica Isaura Botelho (2016), estes profissionais atuam mediando diversas realidades, a do criador, a da obra, a do cidadão e as demais que se interligam a esta tríade. O cenário mais comum, não obstante, é de gestores culturais des- preparados para qualificar os processos de gestão e para lidar com a rea- lidade do seu entorno. Vejamos o relato abaixo. Se a classe de produtores ainda enfrenta restrições em função de seu próprio despreparo, o problema se estende também aos gestores de boa parte dos espaços culturais públicos do país. Mesmo grandes instituições, muitas vezes, são adminis- tradas de maneira amadora, por pessoas que possuem apenas o gosto pela arte, ou nem mesmo isso. É comum encontrar diretores de centros culturais e até secretá- rios de cultura sem nenhuma vivência no setor e sem conhecimentos de adminis- tração. Isso talvez explique boa parte dos fracassos dessas instituições, tanto para a captação e a gestão de recursos quanto para o próprio desempenho de suas ativi- dades. (AVELAR, 2013, p. 67) Por um lado, precisamos estar cientes de que ainda estamos lidando com uma profissão relativamente nova, cujas competências, saberes, habilidades e, até, campo de atuação estão em processo de conformação. Por outro, se ansiamos verdadeiramente atuar no campo da cultura, em especial, na gestão da cultura ou de seus equipamentos, precisamos aperfeiçoar nosso conhecimento a respeito. G e s t ã o d e e q u i p a m e n t o s c u l t u r a i s Conforme o sociólogo Danilo Santos de Miranda (2008), há mais de 30 anos à frente do Serviço Social do Comércio (Sesc) São Paulo, en- tre as habilidades que um gestor cultural deve reunir para administrar um equipamento cultural estão: planejamento coerente com a política; um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 34 29/07/2019 14:33:52 p r o c e d i m e n t o s b á s i c o s d a g e s t ã o d e e s p a ç o s c u l t u r a i s 3 5 gerenciamento de recursos humanos e tomadas de decisão conjuntas; implementação de rotinas padrões e dinâmicas diferenciadas de intera- ção com as comunidades; domínio sobre os conteúdos. Por outro lado, como defende Liliana Silva (2008), a intangibi- lidade própria do campo das artes e da cultura pode ver-se esmagada pela materialidade burocrática das normas, procedimentos e critérios de eficiência da gestão. Portanto, no lugar de uma visão eficientista e tecnocrática, uma gestão de equipamentos culturais deve desvelar o simbólico, a criatividade, a diversidade cultural presentes no entorno. Na esteira das diferentes interpretações sobre gestão de equipamen- tos culturais, compreendemos que o binômio aparentemente antitético da administração vis-à-vis da liberdade criadora, em realidade, é com- plementar e sintetiza um dos grandes desafios de gestores, qual seja, o de conjugar procedimentos administrativos, operacionais, criativos e inovadores para a gerência de processos no campo da cultura. Destarte, não há modelo universal para organizar nosso campo. Ao contrário, assim como é próprio da cultura, os modos de gestão também podem e devem ser diversos, dinâmicos e, sobremaneira, atentos aos mais dis- tintos públicos e expressões culturais com que interagem. No caso específico da gestão de espaços culturais, os desafios estão presentes no dia-a-dia do trabalho. Além da necessidade de conhecimentos administrativo-fi- nanceiros e organizacionais de qualquer instituição formal, é preciso conhecer o equipamento, identificar as suas especificidades com o intuito de explorar as suas potencialidades, tornando-os espaços dinâmicos e humanizados, com o foco prin- cipal voltado para o reconhecimento e o acolhimento de seus diversos públicos. (CUNHA, 2013, p. 19) Inferimos, assim, que é preciso que gestores de equipamentos cul- turais reflitam constantemente suas relações com criadores e públicos, com a própria produção cultural contemporânea, e que sejam, ao mesmo tempo, capazes de lidar com procedimentos tais como, planejamento, um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 35 29/07/2019 14:33:52 3 6 g i u l i a n a k a u a r k , p l í n i o r a t t e s e n a t h a l i a l e a l p r o c e d i m e n t o s b á s i c o s d a g e s t ã o d e e s p a ç o s c u l t u r a i s 3 7 gerenciamento e rotinas administrativas, obviamente adequados às es- pecificidades do setor cultural. Alguns deles serão observados a seguir. P a n o r a m a d e p r o c e d i m e n t o s b á s i c o s d a g e s t ã o d e e q u i p a m e n t o s c u l t u r a i s Existem diferentes tipos de equipamentos culturais com variadas ca- racterísticas, objetivos, públicos-alvo e conteúdos e também de distin- tas tipologias – público, privado e sem fins lucrativos. Esses e outros fatores contribuem para determinar o modelo de gestão a ser adotado por cada espaço, ou seja, aquele conjunto de normas e princípios que orientam os gestores no cumprimento eficaz da missão da instituição. Leonor Mendinhos (2012) exemplifica alguns modelos de gestão que podem ser úteis na gestão de equipamentos culturais, vejamos quais sejam. O Modelo 7S é aquele que inter-relaciona sete elementos cru- ciais na gestão organizacional, a saber, Estratégia, Estrutura, Sistemas, Capacidades, Recursos Humanos, Estilo e Missão. Já o Modelo de Gestão de Processos propõe o monitoramento dos procedimentos de rotina e considera que as práticas instaladas, ao nível dos processos, precisam geralmente ser alvo de reflexão com vista a eventuais altera- ções. O Modelo de Relações Humanas, por sua vez, baseia-se no fato de as organizações culturais assentarem no trabalho das pessoas e no seu desempenho. Por seu turno, o Modelo de Sistema Aberto leva em conta os inputs do público, dos patrocinadores e dos trabalhadores en- volvidos, bem como do ambiente externo – econômico, político, legal, social, educacional – para produzir uma organização que constante- mente muda e se ajusta ao mundo à sua volta.Cada um desses modelos pode ser explorado minuciosamente e servir para análise da gestão de um equipamento cultural. Não obstante, vale ponderar que, no caso de espaços geridos pelo poder público, uma série de questões próprias do ciclo político e também do desenvolvimento de políticas culturais, via de regra, dificulta o estabelecimento de modelos gerenciais. um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 36 29/07/2019 14:33:52 p r o c e d i m e n t o s b á s i c o s d a g e s t ã o d e e s p a ç o s c u l t u r a i s 3 7 Independente do vínculo institucional, os equipamentos culturais, na atualidade, devem possuir qualidades como flexibilidade, agilidade e capacidade de adaptação, assim como compromisso de realizar consultas e análises do ambiente em que estão inseridos e dos desafios que enfren- tam, com atenção às dinâmicas sociais, tecnológicas, econômicas e polí- ticas. Igualmente, seus gestores devem ser flexíveis e adaptáveis às reali- dades que os cercam, sabendo também otimizar os recursos disponíveis, humanos, materiais e financeiros e utilizá-los de forma estratégica, com vistas a absorver todo o potencial possível que podem oferecer. A diversidade da gestão cultural revela-se no fato de que cada equi- pamento tem um perfil, cada espaço traz em si uma singularidade dis- tinta, um tipo de missão, um rol de projetos e de públicos preferenciais, bem como guarda uma série de diferenciações em relação a outros espa- ços. Todavia, como anteriormente mencionado, identificam-se certos procedimentos indispensáveis e necessários na gestão de equipamen- tos culturais. Passemos a eles. Pl a n e j a m e n t o Para uma gestão saudável dos processos internos existentes em qualquer tipo de equipamento cultural, independente do porte e dos conteúdos, é estratégica a definição de um planejamento. O primeiro passo neste sentido é a criação de um organograma, uma representa- ção gráfica das relações entre as unidades existentes no equipamento. Este processo exige organizar e distribuir as funções de cada setor ou profissional, tornando evidente para todos as atividades que devem ser desempenhadas por cada um. Em seguida, passa-se à elaboração do planejamento. Preferencial- mente, ele deve ser formulado com ampla participação da equipe, estabelecendo as metas que vislumbra alcançar. Como não há um mo- delo único de planejamento estratégico, cada espaço, a partir de suas especificidades internas e externas, deverá encontrar a metodologia mais adequada à sua realidade. Independente das particularidades, um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 37 29/07/2019 14:33:52 3 8 g i u l i a n a k a u a r k , p l í n i o r a t t e s e n a t h a l i a l e a l p r o c e d i m e n t o s b á s i c o s d a g e s t ã o d e e s p a ç o s c u l t u r a i s 3 9 algumas etapas básicas e cruciais do planejamento envolvem: a ela- boração de diagnóstico do ambiente interno e externo; a definição da missão do equipamento; a formulação dos objetivos e resultados a serem alcançados; os prazos de execução e as estratégias de execução, monitoramento e avaliação. Por óbvio, o planejamento deve estar ali- nhado com a capacidade de execução do equipamento, considerando a equipe disponível, a real perspectiva de financiamento das atividades, os riscos previstos e, se possível, planos de contingência. O processo de elaboração do planejamento é rico no sentido de pro- vocar tanto o gestor como a equipe do equipamento a entender o que justifica e mobiliza o trabalho de todos, quais as funções e os impactos que seu espaço tem ou pretende ter e o que deve ser feito para atingir os resultados que todos almejam. O planejamento precisa ser um ins- trumento vivo, que orienta as ações desenvolvidas por cada membro da equipe, devendo ser acionado e revisado – se necessário for – ao longo de sua execução. G e s t ã o d e p e s s o a s Sobre gestão de pessoas há uma rica e variada bibliografia, própria ao campo da administração e que, portanto, não nos cabe aqui reproduzir. Neste quesito, nos interessa apontar especificidades da gestão de pes- soal no âmbito dos equipamentos culturais. Inicialmente é preciso destacar as diferentes equipes que compõem um espaço de cultura. Em geral, identificam-se equipes administrativa – coordenação, assessoria de comunicação, diretoria artística, captação de recursos, bilheteria, indicador, camareira etc –, responsável pelo funcionamento, realização de projetos/eventos e atendimento aos públicos/usuários; técnica – chefe de palco, técnico de som, técnico de luz, projetista, montador, maquinista, cenotécnico, etc –, responsável pelo funcionamento das estruturas cênicas que atendem aos espetácu- los; manutenção – técnico em edificações, eletricista, artífice, encana- dor, etc. –, se dedica aos aspectos da manutenção predial, identificando um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 38 29/07/2019 14:33:52 p r o c e d i m e n t o s b á s i c o s d a g e s t ã o d e e s p a ç o s c u l t u r a i s 3 9 as demandas e corrigindo problemas de baixa complexidade; limpeza e conservação – agente de limpeza, jardineiro – e, por fim; segurança – vigilância e portaria. Dos funcionários das equipes administrativa e técnica é exigida formação técnica, artística e/ou universitária, o que, em determinados lugares, pode revelar-se um problema diante da es- cassez de pessoas formadas no campo artístico ou cultural. A definição das equipes ou de setores dependerá da complexidade e do tamanho do equipamento cultural, alguns demandando, por exemplo, uma asses- soria jurídica, um setor de contratos, de contabilidade ou arrecadação, e até mesmo uma gerência técnica para os assuntos relacionados às es- pecificidades técnicas dos espetáculos. O regime de trabalho e o tipo de contratação são bastante peculiares. Na maioria dos casos, os equipamentos culturais funcionam em dias e horários diferenciados, ou seja, durante fins de semana e à noite. Não obstante, é fundamental que estejam abertos também nos chamados dias e horários administrativos. Sendo assim, é comum que as equipes trabalhem em regime de escala de revezamento3 e com utilização de banco de horas. 4 As férias, a depender da quantidade de funcionários por equipe, podem ser escalonadas diante da sazonalidade de funcio- namento do equipamento. Todas essas particularidades precisam ser levadas em consideração no momento da contratação. É aconselhável que as contratações se- jam acompanhadas por uma assessoria jurídica, garantindo que nem a instituição, tampouco o contratado, sejam prejudicados nesta relação. Por exemplo, no caso de equipamentos públicos, as equipes de manu- tenção, limpeza e vigilância são geralmente contratadas por meio da terceirização, cujos processos licitatórios têm um modelo padrão para todos os órgãos e acabam por não incorporar a dinâmica própria do fa- zer cultural. Ademais, muitos equipamentos apresentam contratações de tipo informal da equipe técnica, precarizando o trabalho desta cate- goria e gerando uma alta rotatividade de técnicos no espaço, o que pode impactar em um atendimento menos qualificado aos espetáculos e até um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 39 29/07/2019 14:33:52 4 0 g i u l i a n a k a u a r k , p l í n i o r a t t e s e n a t h a l i a l e a l p r o c e d i m e n t o s b á s i c o s d a g e s t ã o d e e s p a ç o s c u l t u r a i s 4 1 mesmo ao público. A ausência de planos de carreira é uma constante e os pisos salariais inexistem ou são defasados. Na realidade, há pouca regulação para os trabalhadores de equipamentos culturais, denotan- do, por um lado, a falta de representatividade, por meio de sindicados e entidades fiscalizadoras, e, por outro, de uma política pública es- pecífica para o setor. A remuneração varia de acordo com o espaço, contudo, majoritariamente é pouco atrativa. Resta evidente, portanto, que a motivação desses trabalhadoresé a cultura. Para além dos aspectos processuais, contratuais e de remuneração é importante estar atento ao clima organizacional e ao desenvolvimento de uma política ou a execução de práticas de capacitação e valorização do funcionário, de modo que se estabeleça um ambiente colaborativo e de pertencimento na relação do funcionário com o ambiente de traba- lho, resultando numa prestação de serviço qualificada para os públicos (artistas, produtores e espectadores) atendidos pelo equipamento. G e s t ã o d e re c u r s o s A respeito da gestão de recursos – seja material ou financeiro – so- mam-se muitos trabalhos, metodologias e ferramentas especialmente desenvolvidas para tal. No entanto, alguns equipamentos culturais pe- cam em não os incorporar em sua rotina. Aqui verificamos que muitas das atividades se assemelham às de outras instituições que não são do campo cultural. No que se refere à gestão de recursos materiais, destacam-se a gestão de estoque, o planejamento de compras, o estímulo ao consumo cons- ciente e a manutenção, tanto do imóvel, como de seus equipamentos de uso geral e administrativo – computadores, impressoras, ventiladores, televisores, etc – e ainda equipamentos de uso cênico/técnico – refleto- res, projetores, mesas de som, mesas de luz, etc. Vale indicar que alguns desses materiais são de uso comum do público, dos artistas e/ou dos funcionários da casa. No caso de equipamentos cênicos – sonorização, iluminação, projeção –, a depender das regras do espaço, eles podem um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 40 29/07/2019 14:33:52 p r o c e d i m e n t o s b á s i c o s d a g e s t ã o d e e s p a ç o s c u l t u r a i s 4 1 ser acessados por artistas e pelos operadores de som e luz do espetáculo, destarte, é fundamental estabelecer uma periodicidade na manutenção desses equipamentos, que pode ser desempenhada pelos próprios técni- cos ou por prestador de serviço especializado. Tal rotina contribui para melhor aproveitamento e até mesmo prolongamento da vida útil dos equipamentos, bem como para a constante atualização das informações técnicas, uma vez que é fundamental ter o rider5 do espaço sempre atuali- zado, o que demanda atenção constante por parte da equipe técnica. Em relação à gestão de recursos financeiros, o tipo do equipamen- to – se público ou privado – faz muita diferença. Os espaços culturais de caráter público têm o próprio estado como entidade mantenedora. Isso, por um lado, pode ser positivo, pois minimiza os problemas de sustentabilidade do equipamento, por outro, pode acarretar em admi- nistrações pouco atentas à gestão de recursos financeiros. Já os espaços culturais de caráter privado necessariamente precisam captar recursos, além de buscar formas de, por um lado, reduzir custos – sejam eles fixos ou variáveis – e, por outro, ampliar receitas – pauta, ingressos, produ- tos, etc. Para um bom planejamento – como visto inicialmente – faz- -se mister conhecer a composição do orçamento do espaço – pessoal, manutenção, material de consumo, custos fixos e variáveis, despesas, projetos, entre outros. M a n u t e n ç ã o p re d i a l e p re v e n ç ã o a i n c ê n d i o A manutenção predial e a prevenção a incêndio, embora sejam ativi- dades típicas da engenharia ou da arquitetura, estão também no rol das responsabilidades atribuídas à gestão de um equipamento cultural. Em relação à manutenção predial, consideramos ser composta por serviços de caráter preventivo e/ou corretivo, realizados nas instalações gerais e estruturas do prédio, ou seja, na elétrica, hidráulica, estrutura civil, sistema de climatização, rede lógica, dentre outros. Também está inse- rida neste conjunto uma série de serviços que garantem a salubridade e a higiene do prédio, a exemplo de desintetização, descupinização, um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 41 29/07/2019 14:33:52 4 2 g i u l i a n a k a u a r k , p l í n i o r a t t e s e n a t h a l i a l e a l p r o c e d i m e n t o s b á s i c o s d a g e s t ã o d e e s p a ç o s c u l t u r a i s 4 3 poda de árvores, capinagem, limpeza de tanques e pintura geral, que devem ser realizados com alguma periodicidade e programados de modo a não interferir na dinâmica do equipamento cultural. Ademais, é comum acontecerem vistorias de órgãos fiscalizadores, como Vigilância Sanitária, que se dedicam a verificar o cumprimento desses e de outros quesitos nos estabelecimentos. Em geral, as manutenções de caráter preventivo são negligenciadas ou colocadas em segundo plano nas ges- tões dos equipamentos culturais, seja pela escassez de recursos, por desconhecimento da importância de tais serviços ou pela ausência de planejamento. Outro ponto importante relaciona-se com as instalações de preven- ção e combate a incêndio do equipamento cultural. Aqui se faz neces- sário uma atenção especial na manutenção e atualização dos equipa- mentos que compõem o sistema de combate a incêndio – extintores, mangueiras, hidrantes, sistema de alarmes, portas de emergência, si- nalização, planos de evacuação, dentre outros – e que devem estar em conformidade com as normas vigentes. Além do aparato técnico, é importante ter uma brigada de incêndio no equipamento acompa- nhando os espetáculos, não havendo possibilidade de dispor de uma brigada, uma alternativa é realizar o curso de brigadista com a equipe do espaço cultural, para que minimamente os técnicos saibam mani- pular os utensílios básicos do sistema de segurança e combate a incên- dio. Obviamente que tais definições – quantidade de brigadista, espe- cificações, análise de projetos de segurança, etc. – são estabelecidas a partir das orientações e autorizações do Corpo de Bombeiros da região, responsáveis pela normatização, fiscalização e, em alguns estados, tam- bém pela interdição dos prédios que não estiverem em conformidade.6 São recorrentes os casos em que equipamentos culturais são interdita- dos por conta das irregularidades concernentes a este item. Além das estruturas/projetos compatíveis com a legislação de prevenção e combate a incêndio e a realização de manutenção predial um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 42 29/07/2019 14:33:52 p r o c e d i m e n t o s b á s i c o s d a g e s t ã o d e e s p a ç o s c u l t u r a i s 4 3 periódica, faz-se necessário também a atenção do gestor para a conser- vação geral do equipamento cultural, evitando o acúmulo de materiais, equipamentos e utensílios em desuso, bem como, a utilização e arma- zenamento indevido de substâncias inflamáveis, colocando em risco a segurança das pessoas que frequentam e trabalham no equipamento cultural. Por fim, é importante comunicar ao público sobre as estrutu- ras de segurança disponíveis no equipamento cultural, informação esta que é disseminada através de vídeo ou áudio de segurança, veiculado antes do início dos espetáculos. P ro c e s s o s e ro t i n a s A gestão de processos ou a identificação de rotinas é uma aborda- gem que visa a perceber o conjunto de atividades desenvolvidas por um equipamento cultural de modo sequenciado, correlacionado, sistêmi- co e, de certo modo, padronizado. Deste modo é possível ter clareza sobre o fluxo de informações, bem como promover aprimoramentos contínuos das atividades exercidas no espaço, requisitos para uma boa governança. O primeiro passo para a gestão de processos é identificar quais são eles e como se estruturam. Diferentes metodologias podem ser aplica- das, mas o fundamental é conseguir desenhar um fluxo das atividades diante, inclusive, das contingências. Além disso, é interessante tam- bém perceber quais equipes ou profissionais são envolvidos e em quais momentos do processo e também quais instrumentos ou documentos precisam ser utilizados ou ainda tornados públicos. Basicamente podemos indicar que os equipamentos culturais de- vem compreender como são seus processos de marcação de pauta, montagem e desmontagem,bilheteria e produção de eventos. No caso da pauta, por exemplo, é preciso estabelecer critérios para definição da cessão e/ou locação, criar tabelas de preço, formulários de solicitação de pauta, modelos de contratos, definir os documentos exigidos ao produ- tor/artista – release, projeto, mapa de palco, etc. –, estabelecer as formas um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 43 29/07/2019 14:33:52 4 4 g i u l i a n a k a u a r k , p l í n i o r a t t e s e n a t h a l i a l e a l p r o c e d i m e n t o s b á s i c o s d a g e s t ã o d e e s p a ç o s c u l t u r a i s 4 5 de pagamento e os canais formais para solicitação de pauta. Ademais, é preciso estabelecer quais os procedimentos tomados se a pauta é aca- tada ou se é indeferida. A padronização deste fluxo e a criação desses documentos visam a garantir uma isonomia do equipamento cultural frente aos mais diversos usuários. Uma atenção especial deve ser dada aos procedimentos de bilheteria, pois dizem respeito à receita gerada, impactando na gestão financeira do equipamento. O bilheteiro preci- sa estar munido das informações pertinentes às formas de pagamen- to de pauta e aos impostos e retenções que serão recolhidos da receita proveniente das vendas de ingressos, a exemplo do imposto municipal sobre serviços (ISS) e do percentual referente ao direito autoral, como, no caso de música, há o recolhimento do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (ECAD).7 Outro elemento que também exige cuidado, diz respeito às regras de aplicação da meia entrada8 e/ou outros bene- fícios concedidos ao público pagante que geram descontos no valor do ingresso. A aplicação inadequada da legislação da meia entrada pode gerar multas e notificações por parte do Ministério Público. Todas as informações mencionadas e pertinentes aos valores de pauta, vendas de ingressos, recolhimentos e descontos são registrados no borderô.9 Importante também a normatização e organização de documentos como plano de trabalho, check-list, correspondência interna e externa, carta de agradecimento, planilha orçamentária, entre outros. Deve-se considerar a participação de toda a equipe na construção dos procedi- mentos, desenhos de fluxos, elaboração dos formulários, dentre outros, a fim de que os processos registrados sejam condizentes efetivamen- te com a prática e a rotina das pessoas que garantem o funcionamen- to do espaço cultural. É comum, sobretudo, em estruturas muito hie- rarquizadas que os procedimentos sejam definidos de modo vertical, não refletindo as práticas executadas e gerando manuais bem inten- cionados, mas que não contribuem para organização do equipamento cultural. Padronizar e sistematizar não significa tornar os processos e rotinas rígidos e engessados, ao contrário, f lexibilidade e criatividade um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 44 29/07/2019 14:33:52 p r o c e d i m e n t o s b á s i c o s d a g e s t ã o d e e s p a ç o s c u l t u r a i s 4 5 são ingredientes indispensáveis no desenvolvimento de trabalhos no âmbito dos equipamentos culturais. C o m u n i c a ç ã o A comunicação é elemento imprescindível para dar vida ao equipa- mento cultural. Não obstante, é preciso pensá-la de maneira multidi- mensional, ou seja, não se restringindo à comunicação da programação, mas ter também uma boa comunicação interna e institucional. No que se refere à comunicação interna, é necessário um estudo sobre os canais mais adequados para atingir os colaboradores em sua totalidade e também de forma setorizada. Esses canais, que podem ser desde jornal mural, informativos on-line ou rádio-comunicadores, pre- cisam dar conta das especificidades de cada situação e do volume e agili- dade do fluxo de informações tão comum aos equipamentos culturais, em especial, aqueles com grande circulação de produções e público. A linguagem utilizada deve ser clara e objetiva, evitando ruídos e a dis- seminação de informações equivocadas. Uma boa alternativa é a criação de uma intranet do equipamento, que concentrará as informações sobre a organização, facilitando o compartilhamento de comunicações inter- nas, procedimentos, formulários e f luxos, dentre outros pertinentes à comunicação interna do equipamento cultural. Sobre a comunicação externa, vale destacar a importância de o equi- pamento cultural possuir uma identidade visual e textual que possibi- lite aos seus mais diversos públicos identificá-lo de imediato. Os pro- fissionais dessa área precisam ser criativos e sensíveis às subjetividades e simbolismos inerentes aos produtos artísticos e culturais. A definição dos meios de divulgação que serão utilizados para atin- gir o público externo precisa ser analisada e estudada, considerando o perfil daqueles a quem se quer alcançar, as características do equipa- mento cultural e do produto a ser divulgado, os recursos financeiros disponíveis, entre outros. Tem-se destacado nos últimos anos a uti- lização de meios menos custosos como ferramentas de divulgação, um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 45 29/07/2019 14:33:52 4 6 g i u l i a n a k a u a r k , p l í n i o r a t t e s e n a t h a l i a l e a l p r o c e d i m e n t o s b á s i c o s d a g e s t ã o d e e s p a ç o s c u l t u r a i s 4 7 a exemplo de e-mails, redes sociais e ainda mensagens via celular. O que não dispensa, contudo, a necessidade de equipe capacitada para plane- jamento e operacionalização destas ações. Por ser de praxe a negligência com que muitos equipamentos tratam a comunicação, é válido frisar a importância deste setor no organograma e, por conseguinte, da presença de profissionais especializados e preparados a realizar plane- jamentos adequados à realidade do espaço e à previsão orçamentária. Por fim, vale reiterar que a comunicação deve ir além da mera di- vulgação das atrações realizadas no equipamento, deve dedicar-se, sobretudo, a promover os conceitos e valores do equipamento cultural, buscando formas de interagir e integrar afetivamente seus públicos. P ro g ra m a ç ã o e c u ra d o r i a Neste quesito adentramos finalmente no universo da gestão cultu- ral. Apesar de outras instituições e equipamentos poderem desenvolver em seus espaços também uma programação artística, esta é realmente a alma de um equipamento cultural. Primeiramente é importante salientar que tanto a linha curatorial como o perfil da programação do equipamento cultural devem dialogar diretamente com os conceitos e objetivos estabelecidos para o mesmo. Todavia, é preciso estar atento para o fato de que uma série de demandas e características – territoriais, arquitetônicas, históricas, etc – precisam ser consideradas no processo de definição dos conceitos e objetivos do equipamento cultural. Ou seja, aquilo que o equipamento é (conceito) e aquilo que ele oferece (programação) estão imbricados um ao outro. Nesse contexto, reproduzimos a seguir três perguntas básicas que o gestor de equipamento cultural deve se fazer, segundo propõe Marta Porto (2015): 1. Como esse equipamento se expressa e dialoga com a so- ciedade? 2. Quais os pilares centrais dos projetos e ações desenvolvidos? 3. Quais as singularidades desse equipamento? Esses questionamentos podem contribuir para o delineamento da programação e curadoria do equipamento cultural. um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 46 29/07/2019 14:33:52 p r o c e d i m e n t o s b á s i c o s d a g e s t ã o d e e s p a ç o s c u l t u r a i s 4 7 Nesse sentido, a autora indica algumas iniciativas que devem ser perseguidas pelos gestores no que se refere a programação e curadoria, independente das características e funções do equipamento, seja ele um museu, um teatro, uma biblioteca ou um centro cultural, quais sejam: 1. Libertar a arte: ter como conceito curatorial a liberdade artística, sem prévia censura; 2. Libertar as pessoas: no sentido pragmático, possibilitar que aspessoas, a partir da interação com o equipamento e seus conteúdos, possam alargar nos aspectos da sua própria subjetividade, potencia- lizando seu repertório artístico, estético e ético; 3. Entender a comunidade em que se está inserido: traçar iniciativas para atrair novos públicos, sem se acomodar com o público regu- lar; isso implicaria elaborar de forma estratégica a programação e a comunicação do equipamento, mas também abrir canais de diálogo e participação com a comunidade e os públicos potenciais. Identificam-se equipamentos culturais que têm a montagem de sua programação inteiramente pautada a partir das demandas externas apresentadas por criadores e/ou produtores, são aqueles espaços cos- tumeiramente chamados de pauteiros. Por sua vez, há equipamentos que mesclam a programação com pautas oriundas de solicitações de terceiros e projetos idealizados e promovidos pela própria equipe do equipamento. Em ambos os tipos verifica-se que a montagem de sua programação exige dos profissionais responsáveis habilidades e com- petências específicas, dentre as quais se destacam: o conhecimento da cena artística da cidade, como também dos movimentos culturais nas esferas regional, nacional e até mesmo internacional; compreensão das particularidades das linguagens artísticas e expressões culturais com as quais o equipamento trabalha e/ou dialoga; conhecimento sobre lo- gística – montagem e desmontagem, transportes, armazenamento de cenário, etc – e; ampla agenda de parceiros e fornecedores atualizada. um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 47 29/07/2019 14:33:52 4 8 g i u l i a n a k a u a r k , p l í n i o r a t t e s e n a t h a l i a l e a l p r o c e d i m e n t o s b á s i c o s d a g e s t ã o d e e s p a ç o s c u l t u r a i s 4 9 Cabe ainda a este profissional e/ou setor responsável pelo perfil da programação, além da gestão da pauta e dos projetos permanentes, a organização de outras ações, tais como, atividades formativas, gestão de grupos residentes e/ou corpos estáveis. P ú b l i c o s Como a arte não existe sem o público, precisamos considerar esses atores quando nos dedicamos à gestão de um equipamento cultural. É crucial que gestores identifiquem os seus públicos, os almejados e os potenciais e conheçam seus perfis, seus hábitos culturais e suas deman- das de programação e utilização do espaço. Todo este conjunto de infor- mações contribui para a elaboração de estratégias de aproximação mais efetiva e afetiva entre públicos e o equipamento. Sabemos, no entanto, que pesquisas de mercado são invariavelmen- te custosas e muitas vezes fora da realidade financeira de muitos equi- pamentos. Contudo, estratégias simples e baratas podem ser aplicadas como, por exemplo, a disponibilização ao público de um breve questio- nário, seja físico ou por meio digital, com perguntas que possam orien- tar a gestão do equipamento; ou ainda, o gestor pode organizar grupos de discussão com cerca de dez pessoas, de forma periódica, para levan- tar informações qualitativas em profundidade sobre o equipamento e sua gestão. Algumas pesquisas nacionais e internacionais sobre consumo cultu- ral10 apontam para o fato de o público ser formado e transformado per- manentemente pela ação da família, dos amigos, da escola, dos meios de comunicação e outros agentes, cada qual com diferentes capacidades e recursos. Os espaços culturais também têm o seu peso na formação dos públicos e esse é um desafio para os seus gestores. Nesse sentido, a mediação cultural para fins de formação, ampliação e fidelização de pú- blicos no âmbito dos espaços culturais tem sido utilizada com mais fre- quência. Compreendida como uma ferramenta que pode potencializar um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 48 29/07/2019 14:33:52 p r o c e d i m e n t o s b á s i c o s d a g e s t ã o d e e s p a ç o s c u l t u r a i s 4 9 a experiência estética no encontro entre determinada obra e o público, a mediação cultural exige profissionais especializados para sua execução. A mediação cultural é uma formação do público para vivência livre, para autonomia criativa, para a inclusão e diversificação de acessos à cultura. O público necessita de propostas diferentes e específicas de formação, pois ele é diverso em seus interes- ses e suas múltiplas realidades sociais. A ação de formação de público precisa ser plural. A palavra “ação” é usada para afirmar a dinâmica e o movimento do público mobilizado a agir. Ele sai do seu lugar estático e é estimulado a viver ações criativas e participativas propostas pela mediação. Essas ações se referem também ao apren- dizado de ser público que se inicia na experiência cultural e que cada vez mais deseja encontrar algo novo para aprender. (WENDEL, 2013, p. 7) Por fim, os gestores de equipamentos culturais precisam estar aten- tos para as transformações contemporâneas do papel do público com o advento da democratização e popularização das novas tecnologias da comunicação, o que tem tornado cada vez mais tênue a separação entre produtores e consumidores de cultura. Desse contexto surge e se con- solida cada vez mais um consumidor diferente, que dificilmente pode ser concebido apenas como público, mas também como produtor de cultura. Cabem aos gestores e sua equipe ponderar como se processam essas e outras questões nas localidades onde atuam e, sobretudo, avaliar como podem estabelecer uma relação com seus públicos considerando tais dinâmicas. A c e s s i b i l i d a d e c u l t u ra l Para encerrar este panorama abordaremos uma questão poucas ve- zes indicada como básica à produção e gestão da cultura, mas que urge ser foco de nossa atenção, a acessibilidade cultural. Segundo dados da Pesquisa Nacional de Saúde do IBGE (2015), cer- ca de 6% da população brasileira tem alguma das quatro deficiências – auditiva, visual, física ou intelectual –, perfazendo um número de mais um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 49 29/07/2019 14:33:53 5 0 g i u l i a n a k a u a r k , p l í n i o r a t t e s e n a t h a l i a l e a l p r o c e d i m e n t o s b á s i c o s d a g e s t ã o d e e s p a ç o s c u l t u r a i s 5 1 de 12 milhões de indivíduos. A maioria destas pessoas não tem acesso a produtos e atividades culturais, sendo privada do direito à participação na vida cultural devido, entre outras, a barreiras físicas, comunicacio- nais e atitudinais. A adaptação dos espaços físicos revela-se bastante custosa, todavia, é prevista tanto em nossa Constituição Federal como em leis e decre- tos que regulam este direito. Destarte, reformas e intervenções físi- cas realizadas em imóveis de uso público, como são os equipamentos culturais, devem incluir, ainda pari passu, a criação de condições de uso, com segurança e autonomia, de pessoas com deficiência. Simples modificações na plateia, banheiros, portas, rampas de acesso, instala- ção de piso tátil e sinalização em braile, já podem melhorar considera- velmente a mobilidade de pessoas com deficiência pelo espaço cultural, tornando-o mais atrativo a este público. Não obstante, mudanças de atitude e atenção ao público com defi- ciência são, a curto prazo, pouco onerosas e, a longo prazo, têm custo zero. A acessibilidade atitudinal é basicamente um exercício de empa- tia, de colocar-se no lugar do outro e com isso ter uma atitude mais res- peitosa e humana. Cabe aos gestores de equipamentos culturais buscar formações e vivências a respeito da acessibilidade para sua equipe, de modo a melhor recepcionar o público com deficiência e apoiá-lo na su- peração das barreiras físicas e comunicacionais do espaço. Ademais, é preciso transformar a acessibilidade num serviço básico de todo equipamento cultural e isso refere-se, sobremaneira, às ques- tões comunicacionais. A disponibilização de um material de divulga- ção acessível – em braille, com teasers com tradução em libras e legen- dados, etc – e a acessibilidade de seusconteúdos – espetáculos, obras e filmes, por exemplo – são o mínimo para que uma pessoa com de- ficiência visual ou auditiva possa frequentar o equipamento cultural. Inovações tecnológicas têm contribuído para ultrapassar esses limites, com softwares que facilitam a audiodescrição dos conteúdos, totens que se comunicam em libras com usuários, entre outros. um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 50 29/07/2019 14:33:53 p r o c e d i m e n t o s b á s i c o s d a g e s t ã o d e e s p a ç o s c u l t u r a i s 5 1 Os benefícios da acessibilidade cultural são diversos. Para a pessoa com deficiência, a garantia de um direito. Para o equipamento cultural, o cumprimento de uma responsabilidade social. Para as artes, a atração de novos públicos. C o n s i d e r a ç õ e s f i n a i s Segundo Alfons Martinell (2014), o campo da cultura não tem mode- los próprios de gestão que os diferenciem de outras atividades da vida social. Outros setores, como as áreas de saúde e educação, por exemplo, mantêm modelos reconhecidos, consolidados e regulados, que permi- tem uma avaliação de seu funcionamento. Por conta da importância econômica e social, essas áreas são mais pesquisadas. Porém, não ter tantas fórmulas na área da cultura pode ser algo po- sitivo, pois os modos de gerir devem acompanhar a dinamicidade e a diversidade da cultura. Por esse motivo, não nos interessou apontar modelos de gestão mais ou menos eficientes para serem implementados de forma seriada em cada equipamento cultural, mas sim, tratar de seus desafios, idiossincrasias, atividades e, também, procedimentos básicos. Temos clareza que aqui não há qualquer paradoxo, pois a atenção que defendemos que os gestores de equipamentos culturais devam ter com aqueles procedimentos anteriormente observados não significa, em ab- soluto, uma reprodução mimética do como atuar, do que deve ser feito. Reiteramos, assim, que sendo a cultura dinâmica e diversa, os pro- fissionais que atuam na área devem estar atentos ao mundo à sua vol- ta. A realidade deve ser principal fonte de consulta e inspiração para a definição dos melhores caminhos e estratégias a serem adotados para uma gestão coerente com a estrutura – física, humana e financeira – do equipamento e com as necessidades de artistas, públicos e demais fre- quentadores. Por fim, acreditamos que os gestores de equipamentos cul- turais devem, principalmente, indagar-se de que modo os locais em que atuam de fato acolhem, libertam, provocam, promovem e modificam um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 51 29/07/2019 14:33:53 5 2 g i u l i a n a k a u a r k , p l í n i o r a t t e s e n a t h a l i a l e a l p r o c e d i m e n t o s b á s i c o s d a g e s t ã o d e e s p a ç o s c u l t u r a i s 5 3 o cenário artístico, estético, cultural, ético, político, econômico e social do seu entorno, e como o fazem. As respostas a este tipo de questiona- mento, com certeza, revelarão o quão eficaz é a gestão de equipamentos culturais. N o t a s 1 Versão revisada e ampliada com colaboração de Nathália Leal do artigo “Gestão de Equipamentos Culturais: Panorama acerca de seus procedimentos básicos”, de autoria de Giuliana Kauark e Plínio Rattes, publicado originalmente na coletânea Gestão cultural e diversidade: do pensar ao agir, organizada por José Márcio Barros e Jocastra Holanda Bezerra (2018). 2 “surgieron los centros culturales como modelo de organismos más flexibles, plurales y demo- cráticos, convirtiéndose en la institución que mejor encarnó y representó las características y necesidades de la dinámica social de las últimas décadas. Además, generó una fisura en la con- cepción monolítica de espacios para un solo tipo de actividad cultural. Este proceso llevó a una profunda redefinición del espacio, las infraestructuras y equipamientos culturales y las activi- dades que allí se desarrollan, incluyendo los modelos de producción de sus contenidos.” 3 Aplicada a organizações que funcionam aos domingos e feriados e que se organizam a partir da demanda de seus clientes ou usuários. A escala é um instrumento utilizado como ferra- menta de organização dos horários dos funcionários, que registra e assegura ao empregado um descanso semanal de 24 horas (Art. 67 da CLT). Disponível em: http://www.guiatraba- lhista.com.br/guia/escala.htm. Acesso em: 15 out. 2017. 4 O banco de horas é uma ferramenta de controle de carga horária e compensação de horas extras de modo mais flexível, contribui para adequar a jornada de trabalho da equipe à de- manda da instituição. É admissível na lei trabalhista, sendo aplicado a qualquer modalidade de contratação, mediante acordo coletivo. Disponível em: http://www.guiatrabalhista.com. br/legislacao/l9601.htm. Acesso em: 15 out. 2017. 5 Rider técnico do espaço é um documento em que são listados todos os equipamentos dispo- níveis para realização das atividades. Nele estão especificados tipos, marcas, tamanhos e quantidades de cada equipamento, como também informações sobre capacidade de público, equipe disponível, materiais de consumo necessários para montagem – a exemplo de pilhas, fita de linóleo, etc – e outras informações sobre a sala de espetáculos. 6 Após a tragédia da Boate Kiss, em janeiro de 2013, na cidade de Santa Maria (RS), as regras e fiscalizações de casas de espetáculos, incluindo teatros e outros equipamentos culturais, passaram a ser mais rigorosas. Em muitos estados, o Corpo de Bombeiros passou a ter o po- der de interditar os estabelecimentos, função antes atribuída aos Ministérios Públicos ou ór- gãos municipais – responsáveis pela emissão de alvarás e autorizações. 7 Respaldados pela Lei Federal nº 9.610/98, somente os autores podem utilizar, usufruir e re- produzir suas obras, bem como autorizar seu uso por terceiros. Nesse sentido, a utilização de um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 52 29/07/2019 14:33:53 p r o c e d i m e n t o s b á s i c o s d a g e s t ã o d e e s p a ç o s c u l t u r a i s 5 3 obras em shows, apresentações públicas, comércios, dentre outros, devem pagar pela utiliza- ção. Os recolhimentos são realizados por instituições autorizadas pelo poder público. No caso da música é o ECAD, e a Sociedade Brasileira de Autores de Teatro (SBAT), dedica-se ao recolhimento de textos de autores de teatro. Disponível em: http://www.ecad.org.br/pt/o- -ecad/quem-somos/Paginas/O-trabalho-do-Ecad.aspx e http://www.casadoautorbrasilei- ro.com.br/sbat. Acesso em: 15 out. 2017. 8 Mais informações sobre a Lei Federal 12933/2013 (lei de meia entrada para estudantes, de- ficientes, idosos) disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/ 2013/lei/l12933.htm. 9 O borderô é um relatório de vendas em que são demonstradas as vendas de ingressos na bi- lheteria da sessão da pauta. Nele podem constar o valor da pauta a ser debitado, a quantidade de ingressos colocados à venda, ingressos vendidos, discriminando meia e inteira ou outros tipos de descontos e as deduções de impostos e recolhimentos aplicados. Em geral é um do- cumento manipulado pelo bilheteiro e utilizado para prestar contas ao produtor que está pautando no espaço cultural. 10 ALLUCCI, Renata R.; JORDÃO, Gisele. Panorama setorial da cultura brasileira - 2013/2014. São Paulo: Allucci & Associados Comunicações, 2014. BOURDIEU, P. O mercado de bens simbólicos. In: MICELI, Sergio (org.), A economia das tro- cas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1974. BOURDIEU, Pierre. As regras da arte. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. BOURDIEU, Pierre. e DARBEL, Alain. L’amour de l’art. Les musées d’art européens et leur pu- blic. Paris: Minuit, 1969. GARCÍA CANCLINI, Néstor. Consumidores e Cidadãos. Rio de Janeiro: EdUFRJ, 2010. R e f e r ê n c i a s ALCARAZ, María Victoria. Latinoamérica: reflexiones sobre las infraestructuras y equipamientos culturales. In: ROMERO, Salvador Catalán; RUEDA, Antonio Javier González. (ed.). Manual. Atalaya. Apoyoa la gestión cultural, 2014. Disponível em: goo.gl/Mh63Yo. Acesso em: 20 jul. 2017. AVELAR, Romulo. O avesso da cena. Notas sobre Produção e Gestão Cultural. Belo Horizonte: Ed. do Autor, 2013. CUNHA, Maria Helena. Gestão cultural. Salvador: Secretaria de Cultura do Estado da Bahia, 2013. (Coleção Política e Gestão Culturais) um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 53 29/07/2019 14:33:53 5 4 g i u l i a n a k a u a r k , p l í n i o r a t t e s e n a t h a l i a l e a l p r o c e d i m e n t o s b á s i c o s d a g e s t ã o d e e s p a ç o s c u l t u r a i s 5 5 BARROS, José Márcio; OLIVEIRA, José Junior. (org.). Pensar e agir com cultura: desafios da gestão cultural. Belo Horizonte: Observatório da Diversidade Cultural, 2011. BOTELHO, Isaura. Entrevista com Isaura Botelho: consultora do Centro de Pesquisa e Formação do Sesc em São Paulo. [Entrevista concedida a Daniel Douek]. Notícias, São Paulo, [2017]. Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo. Disponível em: goo.gl/zUHKPv. Acesso em: 20 jul. 2017. FERNANDES, Ana. Cidade Contemporânea e Cultura: Termos de um impasse? In: ROCHA, R.; RUBIM, A. (org.). Políticas culturais para as cidades. Salvador: EDUFBA, 2010. (Coleção Cult). IBGE. Pesquisa Nacional de Saúde - Ciclos de Vida. 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Ex-Secretário de Fomento e Incentivo à Cultura do Ministério da Cultura e ex-Superintendente de Promoção Cultural da Bahia. E-mail: cpaiva.cultura@gmail.com um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 57 29/07/2019 14:33:53 5 8 c a r l o s b e y r o d t p a i v a n e t o r e f l e x õ e s s o b r e a c o n s t i t u i ç ã o d e u m a p o l í t i c a p a r a e q u i p a m e n t o s . . . 5 9 culturais (PAIVA NETO, 2014) e sobre fomento à cultura de maneira geral. (ALMEIDA; PAIVA NETO, 2017; PAIVA NETO, 2017; PAIVA NETO; RUBIM, 2017) O texto comenta brevemente o espaço que o tema ocupa nos debates públicos e elenca as atuais opções de financiamento para equipamen- tos culturais independentes, conforme definição apresentada. Como ilustração de um modelo alternativo de financiamento para estes equi- pamentos no Brasil, analisa o caso do programa implementado pelo governo do estado da Bahia em 2009. Conclui destacando como uma política de fomento para equipamentos culturais pode contribuir para sanar algumas das deficiências do modelo de fomento à cultura atual- mente predominante no Brasil. Teixeira Coelho (1997, p. 167), define “Equipamentos Culturais” em seu Dicionário de Política Cultural nos seguintes termos: Sob o aspecto da macrodinâmica cultural, por equipamento cultural entende-se tanto edificações destinadas a práticas culturais (teatros, cinemas, bibliotecas, cen- tros de cultura, filmotecas, museus) quanto grupos de produtores culturais abriga- dos ou não, fisicamente, numa edificação ou instituição (orquestras sinfônicas, corais, corpos de baile, companhias estáveis, etc.). Este conceito ampliado, que inclui desde espaços culturais espe- cíficos, como bibliotecas e museus, até os mais diversificados, como centros culturais multiuso, é o adotado ao longo deste texto. E q u i p a m e n t o s c u l t u r a i s e o d e b a t e p ú b l i c o A presença de uma rede de museus, teatros e centros culturais é fun- damental para uma série de desafios tratados pelas políticas culturais. Equipamentos culturais são eixos importantes para a atividade cul- tural. A função mais óbvia é de difusão da produção artística, mas mui- tos centros são também importantes espaços de criação – em especial um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 58 29/07/2019 14:33:54 r e f l e x õ e s s o b r e a c o n s t i t u i ç ã o d e u m a p o l í t i c a p a r a e q u i p a m e n t o s . . . 5 9 os que possuem grupos residentes –, formação, reflexão e memória – para os que possuem acervo. Sem eles é quase impossível estabelecer um setor cultural profissionalizado. Do ponto de vista social, os equipamentos culturais detêm gran- de potencial de dinamizar os territórios nos quais atuam. (SANTOS; DAVEL, 2017) Quando possuem projeto arquitetônico de grande sin- gularidade, podem se tornar referências icônicas da cidade, tal como o Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP) em São Paulo, o Teatro Castro Alves em Salvador ou a Opera House, em Sydney. A presença de equipamentos culturais, em especial se possuem uma dimensão icônica, pode contribuir para a autoestima e aguçar os senti- mentos de pertencimento da comunidade em que está inserido (RIZA; DORATLI; FASLI, 2012), além de produzir capital cultural e econômi- co. Por estes motivos, costumam estar presente nos debates sobre o pa- pel da cultura em políticas urbanas e, mais recentemente, nos debates em torno do conceito de cidades criativas. (THROSBY, 2016) Quase a totalidade das práticas culturais não domiciliares depen- dem de equipamentos culturais. Sem eles a economia da cultura das artes performáticas – dança, teatro, circo e música – não seriapossível. Entender sua relação com o público é essencial nos estudos de demo- cratização da cultura e democracia cultural, mesmo que os hábitos cul- turais – como consumidores ou praticantes – não se restrinjam a eles. (BOTELHO, 2008; BOTELHO, 2004) Este aspecto transversal faz com que o tema seja pautado de forma recorrente, mas predominantemente vinculado a debates setoriais – como no caso de museus ou bibliotecas –, a tema correlato, como, por exemplo, nos debates de democratização e democracia cultural, ou a iniciativas específicas, como são os casos dos Centros de Arte e Esportes Unificados (CEUS) ou do Serviço Social do Comércio (SESC), e raramente através de uma reflexão mais geral e autônoma. Estas, quando ocorrem, tendem a focar em aspectos de gestão, sendo um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 59 29/07/2019 14:33:54 6 0 c a r l o s b e y r o d t p a i v a n e t o r e f l e x õ e s s o b r e a c o n s t i t u i ç ã o d e u m a p o l í t i c a p a r a e q u i p a m e n t o s . . . 6 1 mais raras as reflexões sobre políticas de fomento para equipamentos culturais. Porém, diante da importância dos equipamentos para a cultura bra- sileira, e sendo o financiamento uma dimensão central para o desen- volvimento de suas atividades, espanta que este tema não ganhe maior relevância nos debates sobre políticas culturais. É nesta lacuna que este texto se debruça. M o d e l o s d e f i n a n c i a m e n t o Para entender a importância do financiamento para equipamentos culturais, cabe fazer uma distinção entre quatro tipos de equipamen- tos: os “equipamentos culturais públicos”, os “equipamentos privados vinculados a mantenedores”, “equipamentos culturais comerciais” e “equipamentos culturais independentes”. O “equipamento cultural público” possui fonte de financiamento mais evidente: o orçamento do ente governamental que o construiu ou incorporou. Para tanto, é preciso consignar, anualmente, recursos mínimos para as despesas de custeio e para as despesas de programação. Há uma fonte alternativa de receita: nos estados em que o financiamen- to à cultura se dá majoritariamente através do incentivo fiscal, como em São Paulo e no Rio de Janeiro, muitos equipamentos públicos obtêm parte de suas receitas através de patrocínios privados viabilizados por meio da renúncia fiscal. Esta captação costuma se dar de forma direta, através de associação de amigos ou através da entidade gestora, no caso de equipamentos públicos cuja gestão tenha sido publicizada. Este tipo de equipamento cultural possui diversos desafios para seu financiamento, como podem testemunhar os gestores públicos Brasil afora. Porém, as dificuldades enfrentadas são de ordem geral do financiamento das políticas culturais, como os pequenos orçamentos destinados às pastas de cultura ou a instabilidade no repasse financei- ro para os compromissos assumidos. Uma alternativa de solução para um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 60 29/07/2019 14:33:54 r e f l e x õ e s s o b r e a c o n s t i t u i ç ã o d e u m a p o l í t i c a p a r a e q u i p a m e n t o s . . . 6 1 estas questões tem sido a publicização da gestão destes equipamentos que, além de dinamizar a gestão, abre novas perspectivas de captação de recursos e evita alguns problemas típicos da execução orçamentária no Brasil, como contingenciamento, planejamento de longo prazo e a im- possibilidade de uma gestão plena dos recursos que permita o saldo de um ano sejam utilizados no ano seguinte. (PONTE, 2012) Apesar deste ser um debate importante ao se pensar equipamentos culturais em ge- ral, não será objeto de análise deste texto. No caso de “equipamentos culturais privados vinculados a mante- nedor”, a empresa mantenedora costuma se responsabilizar por todas as despesas de suas atividades. Exemplos de espaços desta natureza são o Itaú Cultural, o Santander Cultural, o Espaço Oi Futuro, mas tam- bém os vinculados a empresas públicas ou de economia mista, como os Centros Culturais do Banco do Brasil e Caixa Cultural. Na maioria dos casos, o custeio destes equipamentos é feito com renúncia fiscal, em especial através da Lei nº 8.313/91, conhecida como Lei Rouanet.1 Em muitos casos, além do investimento por meio da renúncia fiscal, os mantenedores aportam recursos próprios complementares.2 De acordo com o Ministério da Cultura, entre os dez projetos de maior captação de todos os tempos, todos referem-se a equipamentos culturais – sendo metade deles referente a planos anuais –, e todos se localizam nos es- tados do Rio de Janeiro ou de São Paulo, o que demonstra a importân- cia do mecanismo para a construção, reforma e manutenção de espaços culturais nestas regiões.3 Os equipamentos culturais mantidos pelo Sistema S têm natureza mista já que são mantidos com recursos de contribuições parafiscais de recolhimento obrigatório, mas geridos como entes privados, apesar de estarem sob a fiscalização do Tribunal de Contas da União, que realiza o controle finalístico da aplicação dos recursos recebidos. 4 um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 61 29/07/2019 14:33:54 6 2 c a r l o s b e y r o d t p a i v a n e t o r e f l e x õ e s s o b r e a c o n s t i t u i ç ã o d e u m a p o l í t i c a p a r a e q u i p a m e n t o s . . . 6 3 Estes grupos também não serão objeto de análise deste texto, já que, a princípio, tem fonte de recursos garantidas para o financiamento de suas atividades. Como “equipamentos culturais comerciais” entende-se aqueles es- paços de natureza exclusivamente mercantil, sem um delineamento conceitual de direção artística. Assemelham-se aos espaços indepen- dentes, por não serem vinculados a poder público ou empresa mante- nedora. Já os “equipamentos culturais independentes” são aqueles que não possuem um mantenedor natural para suas atividades. Temos vários exemplos destes no Brasil, desde pequenos espaços culturais até insti- tuições de referência para a cultura brasileira, como o Teatro Oficina; o Teatro Vila Velha; o Theatro São Pedro; e o Museu de Arte de São Paulo em Assis Chateaubriand – MASP, entre muitos outros. Apesar do rol exemplar de equipamentos culturais independen- tes, todos com grande protagonismo na história da cultura brasileira, o assunto de como fomentar a manutenção e o fortalecimento destes equipamentos independentes não tem sido suficientemente tematiza- do por gestores públicos. Portanto, na falta de uma política específica de financiamento para estes equipamentos culturais independentes, recorre-se aos mecanismos gerais de fomento. No plano federal, utiliza-se principalmente o incentivo fiscal da Lei Rouanet. A vantagem desta opção é a permissão de financiamento das despesas de custeio. A partir de 2004, o programa Cultura Viva pas- sou a ser uma alternativa de apoio de fortalecimento das atividades de equipamentos culturais, mas, até 2015, não permitia o financiamento do custeio dos equipamentos, a base sem a qual as demais atividades não podem acontecer. No plano estadual, os equipamentos culturais independentes po- dem recorrer aos incentivos fiscais à cultura, presente em 13 estados, ou a fundos de cultura, presentes em 17 estados (PAIVA NETO; RUBIM, 2017), apesar destes últimos serem geralmente direcionados para apoio um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 62 29/07/2019 14:33:54 r e f l e x õ e s s o b r e a c o n s t i t u i ç ã o d e u m a p o l í t i c a p a r a e q u i p a m e n t o s . . . 6 3 a projetos e atividades finalísticas. Há estados que apoiam espaços e instituições culturais tradicionais através de convênios. No plano municipal a realidade é similar ao que ocorre nos estados. Não obstante, estas opções apresentam diversos problemas para os responsáveis pela gestão dos equipamentos culturais independentes. As duas únicas iniciativas específicas destinadas ao financiamento a equipamentos culturais são o programado estado da Bahia, criado em 2009 para esta finalidade, e que será abordado com mais detalhes adiante nesse texto, e editais do Distrito Federal, lançados em 2016 e 2017, de apoio a manutenção de espaços e cujo apoio é plurianual. Exceto pelo programa Cultura Viva, pelo programa baiano e pelos editais do Distrito Federal, os demais mecanismos têm como tempo máximo de possibilidade de apoio o período de um ano. Isso resulta em um grande retrabalho, tanto para as instituições solicitantes do apoio, quanto para os órgãos públicos que processam estes pedidos. Em geral, as regras são as mesmas de um ano para o outro e a estrutura de itens de gastos e atividades de equipamentos culturais também é muito parecida, não havendo, a priori, nenhum motivo para esta limitação temporal. O modelo ainda predominante estabelece um curto horizonte de planejamento e gera instabilidade pelo grau de imprevisibilidade na re- novação dos apoios. Há sempre a dúvida se o financiamento será reno- vado. Em caso positivo, permanece a insegurança se a renovação será imediata, após o término do acordo vigente, e se haverá acréscimo ou decréscimo no valor. O resultado é um modelo que instaura uma dinâ- mica mais voltada à subsistência ano a ano do que uma que possa esti- mular um crescimento sustentável em médio e longo prazo. Até recentemente, exceto pelo incentivo fiscal da Lei Rouanet, a maioria dos apoios não permitia o financiamento de despesas da área administrativa, considerados custos indiretos às atividades finalísti- cas. Assim, todas as estruturas administrativas dos equipamentos cul- turais ficavam excluídas dos eventuais financiamentos conquistados, fragilizando os modelos existentes. Esta situação começa a mudar com um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 63 29/07/2019 14:33:54 6 4 c a r l o s b e y r o d t p a i v a n e t o r e f l e x õ e s s o b r e a c o n s t i t u i ç ã o d e u m a p o l í t i c a p a r a e q u i p a m e n t o s . . . 6 5 a Lei nº 13.019, de 31 de julho de 2014, que estabelece o regime jurídico das parcerias entre a administração pública e as organizações da socie- dade civil. Atendendo a uma demanda antiga das organizações da socie- dade civil para além do campo da cultura, o novo Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (MROSC) autoriza expressamente o pa- gamento a custos indiretos necessários à execução do objeto da parceria. A Instrução Normativa nº 8/2016, que regulamenta a Lei Cultura Viva, também cita a possibilidade de custeio de despesas administrativas. Em 2009, ao ter que lidar com questionamentos feitos pelo Tribunal de Contas e pela Procuradoria Geral do Estado sobre o apoio a insti- tuições culturais relevantes no estado, o governo da Bahia criou um programa específico para equipamentos e instituições culturais. As soluções encontradas trouxeram uma série de inovações e apresenta- ram um modelo que poderia servir de referência para outros estados e municípios ou mesmo para uma política nacional de apoio a espaços desta natureza. P r o g r a m a d e a p o i o a e q u i p a m e n t o s e i n s t i t u i ç õ e s c u l t u r a i s : o c a s o d a B a h i a O governo do estado da Bahia historicamente subsidiou algumas ins- tituições culturais, havendo inclusive leis específicas autorizando a previsão de dotação orçamentária anual no orçamento geral do estado direcionadas para apoio a quatro instituições, quais sejam: a Fundação Casa de Jorge Amado (Lei Estadual Ordinária n° 6.574, de 30 de março de 1994); o Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (Lei n° 6.575, de 30 de março de 1994), a Academia de Letras da Bahia (Lei n° 6.576, de 30 de março de 1994) e o Museu Carlos Costa Pinto (Lei n° 6.672, de 5 setembro de 1994). Na mudança de governo em 2007, apontamentos do Tribunal de Contas do Estado referentes aos anos anteriores e a análise dos convênios pela Procuradoria Geral do Estado indicaram diversas irregularidades um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 64 29/07/2019 14:33:54 r e f l e x õ e s s o b r e a c o n s t i t u i ç ã o d e u m a p o l í t i c a p a r a e q u i p a m e n t o s . . . 6 5 a serem sanadas, dentre elas: a criação de instituições privadas apenas para gerir equipamentos do próprio estado; a presença de despesas ad- ministrativas nos planos de trabalhos dos convênios; metas que não es- pecificavam produtos ou resultados de natureza finalística, mas ativi- dades-meio (“pagamento de pessoal”, por exemplo); ausência de aporte de recursos privados no custeio dessas instituições, o que negaria a fun- ção suplementar que deveria ser obrigatória para o apoio do Estado sob pena da equiparação ilegal de entidades privadas a públicas. Ao longo de dois anos desenhou-se um novo modelo de apoio que respondesse aos questionamentos e que também criasse uma política de valorização e fortalecimento destes equipamentos, reconhecendo sua importância para o estado. Assim, o novo modelo de “apoio continuado” criado5 tinha como objetivos: garantir segurança jurídica; reconhecer a importância da atuação destas instituições; criar condições de apoio que pudessem dar estabilidade e estimulasse planejamento de médio e longo prazo; estimular a diversificação das atividades e a ampliação do público; e es- timular ações de empreendedorismo e de sustentabilidade pelas enti- dades apoiadas. (PAIVA NETO, 2014) Naquele momento, o programa criado era a única iniciativa do gêne- ro no Brasil desenvolvida para apoio a despesas estruturais de equipa- mentos e instituições culturais independentes. Neste sentido, o novo instrumento trouxe diversas inovações no que se refere a modelos de fomento. O apoio deixou de ser anual e passou a ser plurianual: por três anos, com possibilidade de renovação por mais dois.6 Esta mudança criou um ambiente institucional de maior estabilidade e, com isso, melhores possibilidades de planejamento e desenvolvimento e aperfeiçoamento da gestão. Apesar da instituição do programa ter conferido maior esta- bilidade, a sua fixação por portaria é ainda uma fragilidade a ser supera- da. Ajustes na Lei do Fundo de Cultura da Bahia e a fixação do programa um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 65 29/07/2019 14:33:54 6 6 c a r l o s b e y r o d t p a i v a n e t o r e f l e x õ e s s o b r e a c o n s t i t u i ç ã o d e u m a p o l í t i c a p a r a e q u i p a m e n t o s . . . 6 7 por decreto do chefe do poder executivo seriam medidas necessárias para que o aspecto da segurança jurídica fosse mais completo. As entidades passaram a ser selecionadas a partir de chamamento público, ao invés de decisão discricionária do secretário. O edital solici- tava perfil institucional, atual diagnóstico e o planejamento da entida- de para os próximos anos. Desta forma, o processo seletivo estimulava uma reflexão sobre a situação presente da entidade e as perspectivas para o futuro em médio prazo. O programa também permitiu expressamente o custeio de despesas estruturais, como segurança, água, luz, pessoal, despesas estas comuns a todas as atividades. Esta foi uma importante conquista, pois a propo- sição ainda era controversa, porém, sem esta autorização, o programa se inviabilizaria, já que ele foi voltado especificamente para o apoio estru- tural aos equipamentos culturais. A programação e demais atividades finalísticas deveriam procurar financiamento por outros meios (bilhe- teria, editais, patrocínios, etc). O valor do apoio passou a estar parcialmente vinculado ao cumpri- mento do plano de trabalho proposto por cada instituição. Assim, além de um repasse inicial a cada período,7 um valor residual era repassado na proporção do cumprimento das ações planejadas. Esta mudança es- timulou as instituições a manter uma programação diversificada e com promoção ativa na busca do público frequentador, já que parte do valor recebido dependia deste desempenho. Esta característica ressaltaque o apoio, através desta linha de fomento busca, em última análise, be- neficiar os frequentadores dos equipamentos culturais, os artistas que se apresentavam e os demais usuários dos equipamentos culturais, não o equipamento como um fim em si mesmo. A maior parte das instituições tinha como principal fonte de recur- sos o apoio do estado, complementada com receita de bilheteria e taxas de uso em atividades realizadas por terceiros. Quase nenhuma possuía outros apoios institucionais. De forma a estimular a diversificação de fontes de financiamento pelas entidades, o programa oferecia um valor um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 66 29/07/2019 14:33:54 r e f l e x õ e s s o b r e a c o n s t i t u i ç ã o d e u m a p o l í t i c a p a r a e q u i p a m e n t o s . . . 6 7 complementar de até 10% do valor original, ou seja, para cada real extra captado, o estado dobraria o valor, seguindo o mesmo modelo dos cha- mados matching grants.8 Outro aspecto inovador é a destinação que deveria ser dada a estes recursos complementares por parte do Estado. Como um dos prin- cipais objetivos do programa é o de fortalecimento das instituições, e como o financiamento principal é destinado à manutenção das ati- vidades cotidianas, este recurso complementar deveria ser investido apenas na melhoria do equipamento cultural: reformas, ampliação dos espaços, aquisição de acervo, sendo vetado seu uso com despesas cor- rentes. Com isto, além de estimular a captação complementar, o meca- nismo incentiva o crescimento e o fortalecimento das instituições, um dos objetivos do programa. Adicionalmente, entre as opções de uso deste valor complementar estava o aporte a fundos patrimoniais, de forma a estimular a consti- tuição de endowments9 por parte das instituições gestoras dos equipa- mentos. Vale frisar que tal previsão ocorreu no ano em que o programa foi instituído, 2009, dez anos antes da Lei nº 13.800, de 4 de janeiro de 2019 que dispõe sobre a constituição de fundos patrimoniais. Os critérios para a seleção eram organizados em três grandes grupos. O “Perfil da instituição cultural” considerava elementos fixos de cada equipamento, como: o tempo de funcionamento do equipamento cul- tural; a trajetória da instituição – de forma a equilibrar instituições mais novas, mas com relevante atuação –; o tamanho da área administrada e os equipamentos e/ou acervos à disposição das ações culturais, já que a quantidade de espaço e equipamentos e a qualidade e o tipo de acer- vos que possuem impactam consideravelmente no apoio necessário. O “Plano de atividades” apreciava as atividades previstas para o período, valorizando tanto aquelas realizadas pelo próprio equipamento, quanto as resultantes de intercâmbio com artistas ou outras instituições. Neste grupo também eram avaliadas a experiência dos principais profissio- nais envolvidos na gestão do equipamento e a razoabilidade dos itens um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 67 29/07/2019 14:33:54 6 8 c a r l o s b e y r o d t p a i v a n e t o r e f l e x õ e s s o b r e a c o n s t i t u i ç ã o d e u m a p o l í t i c a p a r a e q u i p a m e n t o s . . . 6 9 de despesas e os custos correspondentes. Por fim, “Abrangência da ação” avaliava as estratégias do equipamento de se relacionar com o público, ou seja: quais seriam os meios de promoção do acesso; a quantidade e o perfil do público esperado e; como se daria a otimização da ocupação do espaço para as ações propostas. (PAIVA NETO, 2014) Enquanto o primeiro grupo de critérios é baseado em dados obje- tivos, como tamanho físico e tempo de funcionamento, nos dois ou- tros grupos de critérios as instituições poderiam inovar com planos de trabalhos criativos e diversificados. O resultado destes critérios é que, equipamentos do mesmo porte e com programação com nível de ativi- dade similar passaram a ser enquadrados na mesma faixa para recebi- mento de apoio. O programa criado em 2009 continuava vigente em 2019. Sua últi- ma edição, em 2017, previu apoio às instituições até 2020. Integrantes da comissão de seleção que participaram no processo seletivo em 2012 e em 2017 confirmam o caráter inovador da iniciativa no contexto bra- sileiro. (CULTURADIGITAL.BR, 2017) C o n t r i b u i ç õ e s p a r a o d e b a t e s o b r e f o m e n t o à c u l t u r a n o B r a s i l Conforme destaco em texto sobre fomento federal, “a lógica do apoio a projetos é quase hegemônica nas ações de fomento, porém este modelo não induz a dinâmicas mais estruturantes e é inadequado para o apoio a atividades permanentes, como as de um equipamento cultural ou de um grupo artístico-cultural”. (PAIVA NETO, 2017, p. 46) Nesses termos, o desafio de se pensar políticas de financiamen- to direcionadas a equipamentos culturais poderia levar à abertura de programas de fomento para atividades que se beneficiariam da lógica de apoio plurianual, como grupos artísticos ou eventos calendarizados. um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 68 29/07/2019 14:33:54 r e f l e x õ e s s o b r e a c o n s t i t u i ç ã o d e u m a p o l í t i c a p a r a e q u i p a m e n t o s . . . 6 9 Ressalte-se que há diversos exemplos no exterior. Em Portugal, o “apoio sustentado”10 destina recursos a entidades com ação continuada em programação de quatro anos e no Reino Unido, o National Portfolio Organisations11 concede apoio por três anos, avisando com um ano de antecedência se o apoio será renovado e se haverá acréscimo ou decrés- cimo do apoio, permitindo à entidade preparar-se para as possíveis mu- danças. No Brasil, o programa Cultura Viva abriu um importante precedente ao conceder apoios plurianuais, mas que ainda não foi totalmente apro- priado nem pelo próprio governo federal, nem pelos demais entes da federação. O caso do estado da Bahia estava servindo de referência para elaboração de um programa federal elencado dentre as ações propostas da Política Nacional das Artes (FUNARTE, 2016) que estava sendo delinea- da pela Fundação Nacional das Artes (Funarte) durante a segunda gestão do ministro Juca Ferreira, interrompida em 2016. O programa seria coor- denado pela Funarte e pelo Ministério da Cultura através da descentrali- zação de recursos para os estados, sendo possível, também, a participação de empresas patrocinadoras na estrutura do programa, aumentando os recursos destinados a esta ação. Porém, com o controverso impeachment de 2016, as iniciativas em curso foram interrompidas. O Distrito Federal lançou em 2016 um edital de apoio a projetos de manutenção de espaços culturais e manutenção de grupos artísticos. A primeira edição concedia apoio pelo período de três anos e permitia que até 50% das despesas fossem de natureza administrativa. O segundo edital, lançado em 2017, foi da mesma natureza com o apoio de dois anos. Devido a dúvidas sobre a legalidade de se lançar edital com despesas que seriam incorridas em governo posterior, a administração optou por não lançar edital naquele ano. Resta acompanhar os próximos anos para saber se a iniciativa terá continuidade. (ROCHA LEANDRO, 2019) Outra contribuição do debate sobre equipamentos culturais para o fomento à cultura em geral é o estímulo à constituição de fundos um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 69 29/07/2019 14:33:54 7 0 c a r l o s b e y r o d t p a i v a n e t o r e f l e x õ e s s o b r e a c o n s t i t u i ç ã o d e u m a p o l í t i c a p a r a e q u i p a m e n t o s . . . 7 1 patrimoniais, diversificando as opções de financiamento. Novamente, o exemplo internacional pode inspirar a política cultural brasileira. A presença destes fundos patrimoniais é um dos alicerces de boa ges- tão em equipamentos culturais norte-americanos e europeus, porém o Brasil não tem esta tradição, apesar da antiguidade de muitas de nossas instituições culturais. Nove dias após o incêndio do Museu Nacionalem 2018, o governo federal instituiu, via a medida provisória nº 851/2018, legislação que regula a constituição e gestão de fundos patrimoniais, que após tramitação no Congresso resultou na Lei nº 13.800/2019. O tema já vinha sendo discutido através de dois projetos de lei,12 além de algumas iniciativas independentes com apoio do Ministério da Cultura e do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).13 O tema também está presente no Procultura, projeto de lei que propõem a reforma do sistema federal de fomento à cultura, que tramita no Congresso desde 2010.14 Um programa de apoio a equipamentos e instituições culturais con- tribui também no redirecionamento do foco das políticas de fomento da oferta para a demanda, trazendo a importância de se alcançar a popu- lação geral. Apesar de ainda ser uma política focada na oferta, a depen- der da forma como o financiamento é estruturado, pode buscar alinhar os interesses das instituições com seus públicos. O assunto é comple- xo, mas, sem dúvida, políticas de financiamento para equipamentos e instituições culturais que tenham como uma das variáveis de apoio o acesso da população às atividades realizadas pode contribuir enorme- mente para a formação de público e acesso aos meios de criação cultural. Por fim, programas de apoio a equipamentos culturais indepen- dentes podem criar dinâmicas de fomento ativas. Sobre este aspecto, Armando Almeida e Carlos Paiva Neto (2017, p. 12) destacam que […] todos estes modelos ainda se posicionam de forma passiva. Ou seja, cabe ao ar- tista (ou ao seu produtor) tomar a iniciativa de buscar financiamento. Há, porém, artistas que sentem dificuldade com qualquer um destes sistemas, por mais simples um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 70 29/07/2019 14:33:54 r e f l e x õ e s s o b r e a c o n s t i t u i ç ã o d e u m a p o l í t i c a p a r a e q u i p a m e n t o s . . . 7 1 que sejam; ou mesmo, não se dispõem a fazer uso destas engrenagens. Por isso, um sistema de fomento que se pretenda abrangente deve contemplar também formas de financiar ações de curadoria, sejam elas de iniciativa do executivo, ou estimuladas por agentes privados de notória atuação. O fomento à curadoria pode se dar por meio de políticas de forta- lecimento às linhas de apoio plurianuais a equipamentos e institui- ções culturais independentes, já que as atividades destes equipamen- tos incluem ações nas áreas de criação, formação e difusão que exigem o trabalho ativo de uma direção artística ou de uma curadoria. Estas ações permitem uma prospecção e podem envolver artistas mais tra- dicionais, com relevantes trabalhos, mas que não se relacionam com os modelos de fomento tradicionais ou dar espaço a iniciativas novas e instigantes que, muitas vezes, ficam à margem dos mecanismos tradi- cionais de financiamento à cultura. C o n c l u s ã o A ausência de uma política para equipamentos culturais independentes é uma séria omissão das políticas culturais brasileiras. A importância deles em nível local e nos grandes movimentos culturais do país de- veria gerar mais atenção para políticas que, de fato, permitissem o seu fortalecimento. Há exemplos no exterior e no Brasil que poderiam ser aproveitados. O exemplo do Cultura Viva, o programa criado pelo es- tado da Bahia, os editais do Distrito Federal e a Lei nº 13.019/2014, no âmbito do Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil são importantes precedentes que podem inspirar outras iniciativas em ní- vel local ou mesmo uma política nacional. A criação de políticas voltadas para equipamentos culturais inde- pendentes colabora também para o desenvolvimento de políticas de fi- nanciamento mais plurais, uma das principais deficiências do fomento à cultura brasileiro. um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 71 29/07/2019 14:33:54 7 2 c a r l o s b e y r o d t p a i v a n e t o r e f l e x õ e s s o b r e a c o n s t i t u i ç ã o d e u m a p o l í t i c a p a r a e q u i p a m e n t o s . . . 7 3 A existência de uma política de fomento a equipamentos culturais não só poderia explorar melhor o potencial do setor no Brasil como po- deria evitar tragédias como a do Museu Nacional, com perdas irrepará- veis. A comoção nacional e internacional causada pelo incêndio de 2018 é apenas a faceta mais saliente de um uma tragédia de natureza estrutu- ral, sem a visibilidade causada pelo incêndio, mas nem por isso menos importante. Com a Emenda Constitucional nº 95, que limita o aumento dos gastos públicos até 2036, o Ministério da Cultura terá seu orçamento discricionário reduzido drasticamente e dificilmente terá condições de avançar com propostas para esta área. As redes como o “Fórum Nacional dos Secretários e Dirigentes de Cultura dos Estados”, o “Fórum dos Secretários e Gestores de Cultura das Capitais e Municípios Associados” e a “Rede de Gestores de Fomento e Incentivo à Cultura” têm debatido alternativas de fomento à cultura, inclusive voltadas a equipamentos culturais. Dessa forma, é mais provável que propostas de fomento a equipamentos culturais independentes sejam implementadas em nível local. Caso isso se confirme, uma grave lacuna nas políticas será preenchida, beneficiando a todos os que buscam polí- ticas culturais mais efetivas. N o t a s 1 Este é um dos casos excepcionais de possível vínculo entre patrocinador e proponente previsto na Lei nº 8.313/91: “Art. 27: A doação ou o patrocínio não poderá ser efetuada a pessoa ou instituição vinculada ao agente. [...] § 2° Não se consideram vinculadas as instituições culturais sem fins lucrativos, criadas pelo doador ou patrocinador, desde que devidamente constituídas e em funcionamento, na forma da legislação em vigor”. 2 O Itaú Cultural, por exemplo, declarou a intenção de não usar mais recursos do incentivo fis- cal federal para manutenção do instituto. (GAZETA DO POVO, 2017) 3 Informações do Sistema de Apoio às Leis de Incentivo à Cultura (Salic). Disponível em: <http://sistemas.cultura.gov.br/comparar/control_Maiores_Projetos_IncentivoFiscal/ control_Maiores_Projetos_IncentivoFiscal.php>. Acesso em: 23 out. 2017 4 O entendimento apresentado foi deliberado por unanimidade pelo Superior Tribunal Federal em 17 de setembro de 2014. um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 72 29/07/2019 14:33:54 r e f l e x õ e s s o b r e a c o n s t i t u i ç ã o d e u m a p o l í t i c a p a r a e q u i p a m e n t o s . . . 7 3 5 Através da Portaria nº 148, de 22 de setembro de 2009. 6 Inicialmente, em 2009, eram previstos apenas dois anos. Em 2012 o apoio passou a ser trie- nal. 7 Em sua primeira versão, os repasses eram trimestrais, passando a ser quadrimestrais a partir de 2012. 8 Matching grants são mecanismos disponíveis para atrair doações ou patrocínios, de forma que cada valor captado será recompensado com um valor adicional na proporção previamen- te estabelecida (um real para cada um real captado ou, para mecanismos mais generosos, dois reais para cada real captado, por exemplo). 9 De acordo com o Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social (IDIS), os “Fundos patrimoniais (FPs) são estruturas criadas para dar sustentabilidade financeira a uma organiza- ção sem fins lucrativos. Em sua maioria, os FPs nascem com a obrigação de preservar perpetua- mente o valor doado (chamado de principal), utilizando apenas para sua manutenção e ativida- des os rendimentos resultantes do investimento desse fundo, de acordo com regras pré-estabelecidas, que podem estar descritas no estatuto da instituição.” Disponível em: http://idis.org.br/fundos-patrimoniais-e-a-perenizacao-da-acao-filantropica/. Acesso em: 23 out. 2017. A Lei nº 13.800/2019 define, em seu artigo 2º, inciso VI, fundo patrimonial como “conjunto de ativos de natureza privada instituído, gerido e administrado pela organização ges- tora de fundo patrimonial com o intuito de constituir fonte de recursosde longo prazo, a partir da preservação do principal e da aplicação de seus rendimentos” (BRASIL, 2009) 10 Informações disponíveis em: https://www.dgartes.gov.pt/pt/node/761. Acesso em: 23 out. 2017. 11 Informações disponíveis em: http://www.artscouncil.org.uk/our-investment-2015-18/na- tional-portfolio-organisations. Acesso em: 23 out. 2017. 12 PL 4.643/2012 e PLS 00016/2015. 13 Informações disponíveis em: https://www.bndes.gov.br/wps/portal/site/home/onde-a- tuamos/cultura-e-economia-criativa/patrimonio-cultural-brasileiro/Endowments. Acesso em: 23 out. 2017. 14 PLC 93/2014 que institui o Programa Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura- PROCULTURA. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/ materia/118946. Acesso em: 23 out. 2017. R e f e r ê n c i a s ALMEIDA, Armando; PAIVA NETO, Carlos. Fomento à cultura no Brasil – desafios e oportunidades. Políticas Culturais em Revista , Salvador, v. 10, n. 2, p. 35- 38, 2017. Disponível em: https://portalseer.uf ba.br/ index.php/pculturais/article/view/24390. Acesso em: 10 abr. 2019. um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 73 29/07/2019 14:33:54 7 4 c a r l o s b e y r o d t p a i v a n e t o r e f l e x õ e s s o b r e a c o n s t i t u i ç ã o d e u m a p o l í t i c a p a r a e q u i p a m e n t o s . . . 7 5 BOTELHO, Isaura O papel das pesquisas sobre práticas culturais para as políticas públicas. In: Lia Calabre. (org.). Políticas Culturais: um campo de estudo. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2008. p. 103-116. v. 7. BOTELHO, Isaura. Os equipamentos culturais na cidade de São Paulo: um desafiopara a gestão pública. Revista de Estudos regionais e urbanos. São Paulo, n. 43-44, 2004. COELHO, Teixeira. Dicionário crítico de política cultural: cultura e imaginário. São Paulo: FAPESP: Iluminuras, 1997. CULTURADIGITAL.BR. Secult divulga resultado do Edital de Ações Continuadas. Disponível em: http://culturadigital.br/ mincnordeste/2017/09/12/bahia-secult-divulga-resultado-do-edital- de-acoes-continuadas. 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PAIVA NETO, Carlos Beyrodt; RUBIM, Antonio Albino Canelas. Panorama do financiamento e fomento à cultura: estados e Distrito Federal. In: RUBIM, Antonio Albino Canelas; VASCONCELOS, um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 74 29/07/2019 14:33:55 r e f l e x õ e s s o b r e a c o n s t i t u i ç ã o d e u m a p o l í t i c a p a r a e q u i p a m e n t o s . . . 7 5 Fernanda Pimenta (org.). Financiamento e fomento à cultura no Brasil: estados e Distrito Federal. Salvador: EDUFBA, 2017. PONTE, Elizabeth. Por uma cultura pública: organizações sociais, Oscips e a gestão pública não estatal na área da cultura. São Paulo: Itaú Cultural: Iluminuras, 2012. RIZA, Müge; DORATLI, Naciye; FASLI, Mukaddes. City branding and identity. Procedia-Social and Behavioral Sciences, New York, v. 35, p. 293-300, 2012. SANTOS, Fabiana Pimentel; DAVEL, Eduardo. Gestão de Equipamentos Culturais e Identidade Territorial: potencialidades e desafios. 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Disponível em: http://www. cultura.ba.gov.br/arquivos/Image/SITEANTIGO/2012/07/P-208- Nova-Portaria-Programa-Acoes-Continuadas.pdf. Acesso em: 1 abr. 2019. um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 75 29/07/2019 14:33:55 7 6 c a r l o s b e y r o d t p a i v a n e t o r e f l e x õ e s s o b r e a c o n s t i t u i ç ã o d e u m a p o l í t i c a p a r a e q u i p a m e n t o s . . . 7 7 BAHIA. Secretaria da Cultura. Portaria nº 54 de 30 de março de 2017. Dispõe sobre o Programa de Apoio a Ações Continuadas de Instituições Culturais. Salvador, 2017. Disponível em: https://siic.cultura.ba.gov.br/ pdfs/Portaria_n_54_Programa_Acoes_Continuadas. pdf. Acesso em: 17 jan. 2019. BAHIA. Edital nº 02/2017. Edital de seleção de propostas para concessão de apoio cultural a atividades regularmente desenvolvidas por instituições culturais privadas sem fins lucrativos, no Estado da Bahia, que observem as diretrizes da política estadual de cultura e contribuam para o alcance dos seus fins. 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Edital nº 05/2016 - Seleção de projetos de manutenção de espaços culturais e manutenção de grupos artísticos para firmartermo de ajuste de apoio financeiro com o fundo de apoio à cultura. Brasília, DF, set. 2016. Disponível em http://www.fac.df.gov.br/wp-content/uploads/Edital-05-2016- Sele%C3%A7%C3%A3o-de-Projetos-Manuten%C3%A7%C3%A3o- de-Espa%C3%A7os-e-Manuten%C3%A7%C3%A3o-de-Grupos- Art%C3%ADsticos1.pdf. Acesso em: 17 jan. 2019. DISTRITO FEDERAL (Brasil). Edital nº 6/2017 – FAC Manutenção de Grupos e Espaços. Brasília, DF, 24. ago. 2017. Disponível em: http:// www.fac.df.gov.br/?page_id=11435. Acesso em: 17 jan. 2019. um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 77 29/07/2019 14:33:55 um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 78 29/07/2019 14:33:55 D es af ios da g est ão públic a de espaços cultur ais : r ef le xõ es a par tir da e xperiência na Dir etoria de E spaços Cultur ais G i u l i a n a K a u a r k * , P l í n i o R a t t e s * * e N a t h a l i a L e a l * * * Em 2007, após eleição histórica de Jaques Wagner, do Partido dos Trabalhadores (PT), para o Governo do Estado da Bahia, interrompendo um ciclo de gestões do extinto Partido da Frente Liberal (PFL), mudanças conceituais e ideológicas começaram a se configurar na política cultural do estado, cujo desta- que foi a recriação da Secretaria de Cultura da Bahia (SecultBA).1 Estiveram à frente do órgão, durante as duas gestões de Wagner, o diretor teatral Márcio * Professora do Centro de Cultura, Linguagens e Tecnologias Aplicadas da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Membro do Observatório da Diversidade Cultural e coordenadora do Coletivo de Gestão Cultural do Observatório de Políticas e Gestão Cultural do Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura. E-mail: giulianakauark@gmail. com. ** Pesquisador e gestor cultural, mestre e doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia. Membro do Observatório da Diversidade Cultural e do Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura (CULT). Atua na coordenação de cultura do Serviço Social do Comércio da Bahia. E-mail: pliniorattes@gmail.com. *** Pesquisadora e gestora cultural, graduada em produção em comunicação e cultura (UFBA) e em administração (FVC). Mestra e doutoranda pelo Programa Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia. Membro do Coletivo de Gestão Cultural do Observatório de Políticas e Gestão Cultural do Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura. E-mail: leal.nathalia@gmail.com. um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 79 29/07/2019 14:33:55 8 0 g i u l i a n a k a u a r k , p l í n i o r a t t e s e n a t h a l i a l e a l d e s a f i o s d a g e s t ã o p ú b l i c a d e e s p a ç o s c u l t u r a i s 8 1 Meirelles (2007-2010) e o professor e pesquisador Albino Rubim (2011- 2014) e, desde 2015, com o início do governo Rui Costa (PT), assumi- ram a pasta os professores Jorge Portugal (2015-2017) e Arany Santana – a partir de 2017. Na estrutura da administração direta foram herdadas as duas superintendências da antiga Secretaria de Cultura e Turismo, porém, com significativas alterações quanto a sua finalidade e atua- ção. Às Superintendências de Promoção Cultural (Suprocult) e de Desenvolvimento Territorial da Cultura (Sudecult) coube, respecti- vamente, a gestão de programas de financiamento e fomento à cultura e o desenvolvimento de políticas de descentralização e integração regio- nal atentas às especificidades dos chamados Territórios de Identidade. Na administração indireta, a nova Secretaria de Cultura incorporou quatro órgãos autárquicos instituídos em décadas anteriores,2 quais sejam: o Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural (Ipac), destina- do a formular políticas de patrimônio cultural material e imaterial; o Instituto de Radiodifusão do Estado da Bahia (Irdeb), responsável pelos serviços de TV e rádio públicas e pelas políticas do audiovisual;3 a Fundação Cultural do Estado da Bahia (Funceb), responsável pelas políticas voltadas às linguagens artísticas e; a Fundação Pedro Calmon (FPC), dedicada às áreas de livro, leitura e memória. Pertencem também à estrutura da secretaria mais de 50 equipamen- tos culturais em todo o estado, apesar da notória concentração na cidade de Salvador e na região do Recôncavo. 4 A gestão desses espaços é dividi- da entre os diversos órgãos que compõem a SecultBA e desenvolvida de maneira não alinhada, participando: o Ipac, responsável pelos museus e parque histórico; a FPC que administra as bibliotecas e arquivo públi- co; o Centro de Culturas Populares e Identitárias (CCPI) responde pelas praças e largos do Pelourinho e a Funceb pelas salas de vídeo e cinema, teatros e centros de cultura, estes últimos até 2011. Deste conjunto de espaços pertencentes ao Estado, um terço é gerido pela Diretoria de Espaços Culturais (DEC). um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 80 29/07/2019 14:33:55 d e s a f i o s d a g e s t ã o p ú b l i c a d e e s p a ç o s c u l t u r a i s 8 1 A criação da Diretoria de Espaços Culturais, no âmbito da Fundação Cultural do Estado, foi uma inovação da política cultural delineada a partir de 2007, contudo, muito pouco estudada. Recuperando sucin- tamente o processo de institucionalização da gestão de equipamentos culturais públicos no Estado da Bahia e, em especial, abordando a con- formação, as ações e os resultados da supracitada diretoria, buscamos refletir acerca dos desafios da gestão pública de espaços culturais. I n s t i t u c i o n a l i z a ç ã o d a g e s t ã o d e e q u i p a m e n t o s c u l t u r a i s p ú b l i c o s : a D i r e t o r i a d e E s p a ç o s C u l t u r a i s A Fundação Cultural do Estado da Bahia (Funceb) inicia suas ativida- des em 1974, em plena ditadura militar, no governo de Antônio Carlos Magalhães (1971-1982). À época, sua missão já previa o desenvolvimen- to de ações voltadas à promoção das linguagens artísticas, bem como a gestão dos equipamentos culturais utilizados para sua difusão. Por esta razão, à sua estrutura foram incorporados os já existentes Museus de Arte da Bahia e de Arte Moderna, bem como o Teatro Castro Alves. A política cultural do governo subsequente, tendo à frente João Durval Carneiro (1983-1986), ganha destaque com a construção de oito centros de cultura em cidades de médio porte ou de apelo turístico, com o objetivo de promover a circulação da cultura na Bahia. Destarte, a par- tir de um mesmo projeto arquitetônico de autoria de Silvio Robatto, foram construídos, na capital e no interior: o Cine-Teatro Solar Boa Vista em Salvador; Centro de Cultura de Alagoinhas; Centro de Cultura Adonias Filho em Itabuna; Centro de Cultura Olívia Barradas em Valença; Centro de Cultura João Gilberto em Juazeiro; Centro de Cultura Camillo de Jesus Lima em Vitória da Conquista; Centro de Cultura de Porto Seguro e Centro de Cultura Amélio Amorim, em Feira de Santana. Entre o final dos anos 1980 e início dos 2000, período em que, majoritariamente, representantes carlistas se sucederam no governo um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 81 29/07/2019 14:33:55 8 2 g i u l i a n a k a u a r k , p l í n i o r a t t e s e n a t h a l i a l e a l d e s a f i o s d a g e s t ã o p ú b l i c a d e e s p a ç o s c u l t u r a i s 8 3 do estado,5 mais dez espaços culturais foram inaugurados e/ou incorpo- rados à estrutura da Funceb. Na capital, o Espaço Xis – que depois pas- saria a ser chamado de Espaço Xisto Bahia –, a Casa da Música – antigo Museu da Imagem e Som do Abaeté –, o Espaço Cultural Alagados, o qual foi construído ao lado do Cine Teatro Alagados, equipamento cultural abandonado pelo Estado anteriormente, o Teatro do ICEIA e o Centro Cultural Plataforma– datado de 1940, reformado e reaberto em 2006. Na região metropolitana de Salvador, foi construído o Cine Teatro de Lauro de Freitas e no interior o Centro de Cultura Antônio Carlos Magalhães em Jequié, Teatro Dona Canô na região de Santo Amaro e o Centro Cultural de Guanambi, aos que se soma a Casa de Cultura de Mutuípe, doada ao Governo do Estado também neste período. Este conjunto, que totaliza 18 equipamentos culturais sob a gestão da Funceb, era administrado por duas coordenações, sendo uma res- ponsável pelos espaços do interior e outra pelos espaços da capital e região metropolitana. Vale indicar que o TCA possuía gestão autônoma e nunca esteve sob a tutela desta coordenação. Se, por um lado, tivemos uma ação inédita do governo do estado ao construir ou incorporar esses equipamentos culturais, por outro, não houve uma medida igualmente efetiva na gestão deles ao longo de qua- se 20 anos. Neste sentido, relatórios de gestão da Fundação Cultural de- monstram que havia uma estagnação de investimentos e falta de manu- tenção nos equipamentos técnicos – luz, som e projeção – nos centros de cultura, principalmente daqueles localizados no interior, além da falta de recursos humanos especializados, como bilheteiros, técnicos de iluminação, sonorização e projeção, entre outros. (KAUARK, 2006) Problemas de gestão também eram identificados em relação à pro- gramação. Por exemplo, uma parcela significativa das pautas em dias considerados nobres – sexta-feira a domingo – era ocupada por eventos não artísticos. Noutros termos, nos espaços culturais eram promovi- dos, majoritariamente, eventos de caráter partidário, religioso, pessoal ou celebrativo – como formaturas –, consequentemente, contribuindo um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 82 29/07/2019 14:33:55 d e s a f i o s d a g e s t ã o p ú b l i c a d e e s p a ç o s c u l t u r a i s 8 3 de forma limitada para a promoção da cultura e para a formação de pú- blicos para a cultura, funções primordiais de um equipamento desta natureza. (RATTES, 2017) O baixo investimento na manutenção física dos espaços aliado à falta de pessoal especializado e à ausência de programação artístico- cultural sistemática conformavam, portanto, o cenário da gestão dos equipamentos culturais públicos pela Funceb. Cabe registrar que, di- ferentemente do grau de institucionalização de museus e bibliotecas, cujas políticas estão presentes desde o primeiro registro de intervenção do Estado no campo cultural e cujos parâmetros de atuação são con- tínua e densamente estudados e avaliados em seus campos científicos específicos – museologia e biblioteconomia –, os espaços culturais de caráter cênico ou ainda multiuso – como os centros ou complexos cul- turais – passam por processos de institucionalização dispersa e pouco investigada. A DEC, criada em 2007 na Funceb, em substituição às duas coorde- nações existentes – da capital e interior –, tinha o objetivo de promover a manutenção e modernização dos espaços culturais pertencentes a esta instituição, bem como a dinamização de sua programação. Ganhando maturidade, a DEC, a partir de 2010, passa a pautar a necessidade de se formular políticas culturais específicas para este segmento, inexisten- tes no estado, sobretudo por meio do diálogo, mapeamento e de inicia- tivas de fomento. Em dez anos, a Diretoria teve sete gestores,6 todos com experiên- cia e formação nas áreas de gestão/produção cultural e/ou artísti- ca, tendo quatro deles vivência na gestão de equipamentos culturais. Inicialmente foi constituída por duas coordenações, uma de programa- ção e outra administrativa, além de um núcleo de comunicação, criado com objetivo de desenvolver uma comunicação específica para os espa- ços culturais. À coordenação de programação cabia auxiliar os gestores dos equipamentos culturais na articulação e na execução de projetos culturais realizados em suas dependências, bem como, deliberar sobre um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 83 29/07/2019 14:33:55 8 4 g i u l i a n a k a u a r k , p l í n i o r a t t e s e n a t h a l i a l e a l d e s a f i o s d a g e s t ã o p ú b l i c a d e e s p a ç o s c u l t u r a i s 8 5 as solicitações de pautas. À coordenação administrativa competia rea- lizar ações ligadas ao funcionamento e à operacionalização dos espaços culturais, tais como gestão de pessoas, manutenções e compras, sem- pre em conjunto com setores da chamada área meio. A partir de 2013, é criada na DEC a coordenação de gestão com a função de sistematizar a gestão dos equipamentos e desenvolver ações vinculadas a uma política cultural para o segmento. Dentre as alterações internas que a Diretoria passou, a mais sig- nificativa foi em relação ao órgão com o qual estava vinculada. Entre 2007 e 2011, a DEC fazia parte da estrutura da Fundação Cultural, con- tudo, após a reforma administrativa instituída através da Lei Estadual nº 12.212, de 04 de maio de 2011, foi transferida para a Secretaria de Cultura, passando a compor a Superintendência de Desenvolvimento Territorial da Cultura. À época, a estratégia da secretaria visava tornar os espaços cultu- rais ponto de criação, difusão e fruição artístico-cultural não apenas do município onde estão inseridos, mas dos Territórios de Identidade aos quais pertencem. Os centros culturais seriam pontos de irradiação das ações da secretaria, inclusive, e principalmente, aquelas que previam o estímulo ao encontro e debates dos atores sociais interessados nos rumos da política cultural. Não obstante, a transferência de um setor eminentemente executivo de uma instituição autárquica para uma sede de governo levou a uma série de entraves administrativos, estando na contramão da modernização executiva da máquina pública. Antes, po- rém, de avaliar esta e outras particularidades, recuperaremos algumas ações empreendidas pela DEC de modo a contribuir no delineamento do que seja gestão pública de equipamentos culturais. um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 84 29/07/2019 14:33:55 d e s a f i o s d a g e s t ã o p ú b l i c a d e e s p a ç o s c u l t u r a i s 8 5 G e s t ã o p ú b l i c a d e e s p a ç o s c u l t u r a i s : a a t u a ç ã o d a D E C Em 2010, após os encontros de coordenadores de espaços culturais promovidos pela Diretoria – momentos estratégicos de alinhamento, planejamento e aprimoramento de seu sistema interno de governan- ça –, foram estabelecidas dez metas7 que passaram a balizar a sua atua- ção e, por meio das quais, é possível identificar e analisar suas ações e resultados. Diante da impossibilidade de abarcarmos todas as medi- das empreendidas por este setor ao longo de dez anos, focaremos em quatro itens, a saber: 1) Gestão e política; 2) Programação e públicos; 3) Requalificação, modernização e acessibilidade; 4) Gestão de pessoas. G e s t ã o e p o l í t i c a Dentre as metas da diretoria de Espaços Culturais três chamam a atenção pelo seu caráter estratégico: o aprimoramento da gestão dos espaços culturais; a articulação com outros espaços culturais do estado, públicos ou privados e; o desenvolvimento de uma política setorial para espaços. Desde a criação da diretoria que os procedimentos e instrumentos de gestão dos espaços culturais são revisitados e reformulados. Neste sen- tido, passo significativo foi dado com a publicação no Diário Oficial do Estado, em janeiro de 2013, da Instrução Normativa 001/2013 e seus ane- xos, que, finalmente, normatizou o funcionamento dos espaços cultu- rais, estabelecendo critérios e procedimentos de utilização. Resultante do Grupo de Trabalho composto por representantes da Procuradoria Geral do Estado e da Secretaria de Cultura, em especial, da diretoria de Espaços Culturais, a Instrução Normativa (BAHIA, 2013) é composta pelo “Regulamento do uso e funcionamento dos espaços culturais sob a gestão da diretoria de espaços culturais da SecultBA”,que detalha as normas e especifica os regramentos a respeito das diretrizes gerais apli- cáveis aos espaços, os horários de funcionamento, procedimentos para um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 85 29/07/2019 14:33:55 8 6 g i u l i a n a k a u a r k , p l í n i o r a t t e s e n a t h a l i a l e a l d e s a f i o s d a g e s t ã o p ú b l i c a d e e s p a ç o s c u l t u r a i s 8 7 solicitação de pauta, cancelamentos de solicitações, funcionamento da bilheteria, acesso e circulação nas áreas operacionais dos equipamen- tos, montagem e desmontagem de eventos, entre outros; bem como pelo Modelo de formulário de pedido de pauta; pela minuta do Termo de compromisso e responsabilidade pelo uso do espaço cultural e seu aditivo e pela Tabela de preço de pauta que estabelece a remuneração pelo uso dos espaços. Nesta linha enquadramos ainda o Programa de gratuidade de pautas dos espaços culturais da SecultBA, incentivo à di- namização dos espaços culturais através da cessão de pautas gratuitas para grupos e artistas de menor poder aquisitivo e produções de me- nor apelo comercial que foi implementado entre 2007 e 2014. Em geral, o programa regulamentava que as pautas em dias de terça e quarta-feira seriam gratuitas, bem como aquelas que possuíam aderência ao calen- dário de meses temáticos definidos pelo programa. Através da divulga- ção desses documentos, proponentes e a sociedade em geral têm acesso ao modo de funcionamento desses espaços e a diretoria é capaz de ava- liar os coordenadores dos espaços por meio da atenção às diretrizes e normas estabelecidas. Outra medida que impactou no modelo de gestão dos espaços culturais geridos pela DEC foi a criação dos Colegiados de Gestão Participativa. Esta proposta inspira-se em decisões tomadas pela Diretoria no que tange à aproximação e interação dos centros com as comunidades, grupos artístico-culturais, produtores e agentes de cul- tura dos municípios e/ou bairros onde estão localizados, tais como: a seleção de coordenadores dos espaços envolvendo consultas e deli- berações de instituições culturais ou movimentos sociais atuantes em seus respectivos territórios, bem como o estímulo à residência artística. Todavia, os resultados dessas iniciativas impactavam, notadamente, os equipamentos localizados na capital. A instância colegiada de gestão participativa para os espaços cul- turais foi instituída por meio da Portaria nº 338/2014, de caráter opi- nativo e consultivo, tendo como objetivo apoiar e avaliar a gestão do um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 86 29/07/2019 14:33:55 d e s a f i o s d a g e s t ã o p ú b l i c a d e e s p a ç o s c u l t u r a i s 8 7 espaço, propor estratégias para a dinamização do mesmo e contribuir para tornar o equipamento uma referência na produção e difusão cul- tural do seu território. A intenção é provocar os frequentadores, pro- dutores, artistas e a comunidade das localidades onde os espaços culturais estão inseridos a participarem mais das decisões e do coti- diano dos espaços culturais, tornando-os mais democráticos e partici- pativos. Atualmente, os 11 espaços do interior do estado contam com colegiados, a saber: o Centro de Cultura de Porto Seguro; o Centro de Cultura Olívia Barradas, em Valença; Centro de Cultura Adonias Filho, em Itabuna; Centro de Cultura Alagoinhas; Centro de Cultura Amélio Amorim, em Feira de Santana; Centro de Cultura ACM, em Jequié; Centro de Cultura João Gilberto, em Juazeiro; Teatro Dona Canô, em Santo Amaro, Centro de Cultura Camillo de Jesus Lima, em Vitória da Conquista; Centro Cultural de Guanambi e Casa de Cultura de Mutuípe. Para além do trabalho direcionado à administração dos equipamen- tos culturais, a DEC, ainda que isolada e timidamente, vem provocando a necessidade de formulação de políticas culturais específicas para este segmento. Neste sentido, cabe destacar duas medidas, a saber: a reali- zação da primeira Conferência Setorial de Espaços Culturais e a criação do edital de Dinamização de Espaços Culturais. A articulação dos seto- res da cultura constitui um dos pressupostos fundamentais para o bom funcionamento do Sistema Nacional de Cultura. Nesta perspectiva, a realização da 1ª Conferência Setorial de Espaços Culturais, em 2013, como uma das etapas previstas da Conferência Estadual de Cultura da- quele ano, representou a oportunidade de reiterar a pauta dos espaços culturais na agenda das políticas públicas de cultura da Bahia e do Brasil. O edital de Dinamização de Espaços Culturais, lançado pela primei- ra vez em 2012, com recursos oriundos do Fundo de Cultura da Bahia, tem como objetivo apoiar propostas de dinamização de espaços cultu- rais, públicos ou privados, no Estado da Bahia, através de uma progra- mação regular durante um período mínimo de três meses e máximo de seis meses, envolvendo atividades artístico-culturais para todos um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 87 29/07/2019 14:33:55 8 8 g i u l i a n a k a u a r k , p l í n i o r a t t e s e n a t h a l i a l e a l d e s a f i o s d a g e s t ã o p ú b l i c a d e e s p a ç o s c u l t u r a i s 8 9 os públicos, incluindo ações de mobilização e/ou de mediação. Na edi- ção em 2016, o valor total do edital foi de R$ 1.500.000,00, sendo limi- tado o valor de R$ 150.000,00 por proposta. Ao prever a manutenção de uma programação continuada em equipamentos culturais públicos e privados, o edital movimenta a cena cultural e amplia as opções de atividades culturais nas comunidades e localidades em que estão inse- ridos. Ademais, nesta linha a DEC consegue ampliar sua atuação para espaços situados de municípios e territórios que não possuem equipa- mentos culturais mantidos pelo governo do estado. P ro g ra m a ç ã o e p ú b l i c o s A DEC, desde sua criação, dedica-se ao planejamento, realização, articulação e acompanhamento de atividades voltados à dinamização dos espaços culturais. Tendo em vista o cenário precedente de ocupação dos espaços com atividades majoritariamente não culturais, era pre- ponderante estabelecer como meta a reversão deste quadro, o que, por sua vez, aconteceu em poucos anos. Se, em 2007, apenas 41% das pautas eram para atividades culturais, em dois anos a ocupação da pauta com este tipo de atividade cresce vertiginosamente atingindo o percentual de 90%. (BAHIA, 2013) Nos primeiros anos de gestão as ações de pro- gramação eram viabilizadas, sobretudo, pelas parcerias realizadas entre os equipamentos culturais e grupos, coletivos e artistas locais, e pelas ações articuladas na própria estrutura interna da Funceb. Importante registrar que em 2008, a DEC iniciou o projeto Circuito Popular de Cinema e Vídeo de circulação de produtos audiovisuais con- siderado inédito, uma vez que não identificamos ações permanentes de circulação desta linguagem, assim como, são raros os espaços dedicados à exibição de produtos audiovisuais que não estão no circuito comer- cial. Inicialmente, o projeto tinha como principal conteúdo os filmes da Programadora Brasil (MinC), incorporando, em seguida, conteúdos resultantes de parcerias com produtores independentes e festivais de um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 88 29/07/2019 14:33:55 d e s a f i o s d a g e s t ã o p ú b l i c a d e e s p a ç o s c u l t u r a i s 8 9 cinema. As exibições aconteciam em todos os espaços, com acesso gra- tuito ao público. Ao longo de seus dez anos de atuação, a DEC contribuiu para a rea- lização dos projetos e ações promovidas pelos seus espaços culturais através de apoio logístico e de suporte na comunicação. Somente a par- tir de 2011 são disponibilizados especificamente recursos financeiros para programação, tornando a realização de projetos próprios uma ação sistemática e contemplada no planejamento anual da Diretoria. Neste sentido, cabe registrar um aumento do investimento em programação de R$ 100 mil para R$ 1,3 milhão, entre2011 e 2014. (BAHIA, 2014) Os projetos desenvolvidos no âmbito da diretoria foram organi- zados em três linhas de ação, quais sejam: Dinamização; Formação; e Territorialização. Na linha Dinamização foram reunidos projetos com foco na formação de públicos e difusão e circulação de bens e produ- tos artístico-culturais, desenvolvidos principalmente em parceria com as coordenações de linguagens da Funceb. São exemplos dessas ações Quarta que Dança, Salões de Artes Regionais da Bahia, Verão Cênico e o Circuito Popular de Cinema e Vídeo. Em relação à Formação, con- centravam-se os projetos de iniciação e de qualificação nas linguagens artísticas e outros conteúdos culturais, como o curso de Qualificação em Artes, realizado em parceria com o Centro de Formação em Artes da Funceb. No que se refere à Territorialização, tanto a ocupação dos espaços quanto os projetos executados tinham como prioridade aten- der aos grupos e agentes culturais dos territórios em que os equipa- mentos estavam inseridos. Assim, os próprios projetos desenvolvidos pelos equipamentos tinham esse perfil, dentre os quais, destacamos, no interior, “Semana Literária de Porto Seguro”, “Mostra de Arte e Cultura de Mutuípe”, “Festival de Arte e Cultura do Baixo Sul” em Valença, “Festival de Arte e Cultura do Território do São Francisco” em Juazeiro, “Semana de Arte e Cultura do Litoral Norte e Agreste Baiano” em Alagoinhas e, na capital, “Saraus de Itapuã” da Casa da Música, “Festival de Arte Caldeirão Cultural” em Plataforma, “Julho + Solar” um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 89 29/07/2019 14:33:55 9 0 g i u l i a n a k a u a r k , p l í n i o r a t t e s e n a t h a l i a l e a l d e s a f i o s d a g e s t ã o p ú b l i c a d e e s p a ç o s c u l t u r a i s 9 1 no Solar Boa Vista, localizado no bairro Engenho Velho de Brotas e “Alagados em Cena” no bairro do Uruguai, Salvador. A programação dos festivais era definida pelas coordenações dos espaços culturais e, no sentido de tornar esse processo mais aces- sível ao maior número de artistas locais, a DEC lançou, em 2014, o “Credenciamento de artistas, grupos e bandas dos Espaços Culturais da SecultBa”, nos mesmos moldes do credenciamento praticado nas praças do Pelourinho. O mecanismo, que torna mais simples e isonô- micas as contratações artísticas pelo poder público, teve apenas uma edição, tendo credenciado 259 artistas, em 22 modalidades artísticas nos segmentos de teatro, dança, circo, música, manifestações popula- res, espetáculos infantis, dentre os quais, 50 foram contratados naquele ano, com um aporte de R$ 286.662,00. (BAHIA, 2014) No que diz respeito aos públicos, a diretoria estimulava uma apro- ximação dos equipamentos com os públicos de seu entorno, mas não existiam ações sistemáticas e efetivas para a formação de públicos. Algumas investidas foram realizadas no sentido de conhecer os públi- cos que frequentavam os espaços culturais, por meio de formulários de pesquisa, contudo, a ausência de equipe para tabular e analisar os dados dificultava sua aplicação e, por conseguinte, comprometia a efetividade da pesquisa. Cabe analisar, no entanto, que o investimento no aprimo- ramento da gestão, bem como na programação cultural dos espaços por si só já gerava impactos no público consumidor de cultura que, entre 2007 e 2012, totalizou mais de um milhão de espectadores, enquanto o público de atividades não culturais, no mesmo período, foi cerca de 300 mil. (BAHIA, 2013) R e q u a l i f i c a ç ã o, m o d e r n i z a ç ã o e a c e s s i b i l i d a d e Requalificar e modernizar os equipamentos culturais era uma meta permanente nos planejamentos anuais da diretoria, desde sua consti- tuição. Em 2007, a situação dos equipamentos culturais era bastante precária. Do conjunto dos equipamentos, apenas o Espaço Xisto Bahia um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 90 29/07/2019 14:33:55 d e s a f i o s d a g e s t ã o p ú b l i c a d e e s p a ç o s c u l t u r a i s 9 1 e o Centro Cultural Plataforma, localizados na capital, possuíam con- dições efetivamente adequadas de funcionamento e de atendimento às demandas dos espetáculos. Os problemas eram de ordem predial (projetos de prevenção e com- bate a incêndio e acessibilidade para deficientes enexistente ou desa- tualizados e fora das normas vigentes; portas de emergência instaladas em locais inapropriados etc.), de manutenção (sistema de climatiza- ção, forros e telhados danificados; maquinário de palco, vestimentas e pisos desgastados; equipamentos de iluminação, sonorização e projeção defasados e/ou quebrados; banheiros, foyer, salas de ensaio e camarins descuidados), e técnica (ausência e/ou defasagem de computadores, im- pressoras, bebedouros, ferramentas, refletores cênicos, equipamentos de sonorização, projetores, material de consumo, lâmpadas, dentre outros). Até 2007, não havia registros de realização de manutenções ou reformas significativas que contribuíssem para uma melhor condi- ção dos prédios e equipamentos, salvo a reforma do Centro Cultural Plataforma, concluída em 2006. Eram descontínuos também os con- tratos de manutenção preventiva e corretiva. Completava o quadro de- solador a falta de corpo técnico qualificado e o número insuficiente de profissionais para planejar e executar as ações de acompanhamento e manutenção que os espaços culturais necessitavam. Nesse sentido, es- tavam impostos três desafios: requalificar e reformar os equipamentos culturais; tornar todos os espaços acessíveis e modernizar e qualificar o aparato técnico de todos os equipamentos culturais. A DEC contava com o apoio da Assessoria Técnica, responsável por planejar, executar e fiscalizar as ações de manutenção e reforma nos espaços. Importante destacar que a equipe de eletricista, encanador, pedreiro e pintor, era restrita à capital, os equipamentos culturais do interior tinham uma equipe própria, apesar de reduzida8. Por sua vez, as obras, reformas e manutenções de maior porte eram realizadas pela Superintendência de Construções Administrativas da Bahia (Sucab),9 ligada à Secretaria de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 91 29/07/2019 14:33:55 9 2 g i u l i a n a k a u a r k , p l í n i o r a t t e s e n a t h a l i a l e a l d e s a f i o s d a g e s t ã o p ú b l i c a d e e s p a ç o s c u l t u r a i s 9 3 (Sedur) que concentrava todas as demandas das unidades do Estado. Não era incomum que as necessidades da cultura ficassem em segundo plano, em detrimento de outras prioridades. Ainda assim, foi possível realizar ações dessa natureza em todos os espaços, num volume de investimento de R$ 6.001.919,49 (BAHIA, 2015), com destaque para as reformas no Cine Teatro Lauro de Freitas (2010), Espaço Cultural Alagados (2010/2011), Centro de Cultura Amélio Amorim (2012/2013) e a primeira etapa da obra do Centro de Cultura Camillo de Jesus Lima (2014), que contemplaram importantes alterações arquitetônicas alinhadas com as normas de acessibilidade. Podemos afirmar que, em diferentes níveis, todos os equipamentos culturais da DEC estavam adaptados para atender o público com de- ficiência e, alguns deles, também os artistas e produtores deficientes físicos. No entanto, os investimentos nesta seara ainda são incipientes diante da complexidade de tornar um prédio plenamente acessível. Por fim, vale destacar que, em paralelo às reformas e manutenções, medidas voltadas à modernização e qualificação do aparato técnico dos espaços também foram empreendidas, com aquisição de equipamen- tos de iluminação, sonorização, projeção, computadores, impressoras, linóleo, dentre outros, cujo investimento somava mais quatro milhões de reais. G e s t ã o d e p e s s o a s Questões relacionadas a recursos humanos sempre estiveram entre os principais gargalos da diretoria. Com um efetivo reduzido, em ge- ral, os espaços trabalhavam nolimite mínimo de pessoal. A ausência de concursos públicos no Estado, assim como de profissionais qualifi- cados, em especial nas cidades do interior, além das constantes inter- venções político-partidária nas indicações, sobretudo para o cargo de coordenação, são elementos que se impunham como desafios na gestão pública dos equipamentos culturais da DEC. um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 92 29/07/2019 14:33:55 d e s a f i o s d a g e s t ã o p ú b l i c a d e e s p a ç o s c u l t u r a i s 9 3 A forma de contratação dos funcionários é variada, podendo ser através de cargo comissionado, contratos terceirizados, servidores es- tatutários e temporários – por meio de concurso de Regime Especial de Direito Administrativo (Reda). Os cargos em comissão restringiam-se aos coordenadores e seus assistentes; os contratos terceirizados davam conta das equipes de limpeza, vigilância e de suporte operacional, que incluíam técnicos de iluminação, sonorização, auxiliares de montagem, dentre outros; os funcionários públicos efetivos, além de comporem um contingente muito reduzido, ocupavam funções das mais diversas, dependendo de sua formação e expertise, tendo desde auxiliares de ser- viços gerais a administrativos. Por fim e visando suprir vagas em aber- to, adequar os cargos às funções correspondentes e também reduzir os desvios de função que aconteciam, sobretudo, na área técnica, foram realizados processos seletivos, através de contratos em caráter tempo- rário, o Reda. Em 2010, na primeira contratação nesta modalidade, foram con- templadas as funções de técnicos de som e luz, bilheteiros e auxiliares administrativos para todos os equipamentos culturais, com exceção do Espaço Cultural Alagados e do Centro de Cultura ACM. Ao todo, 42 profissionais foram contratados, dos quais 29 ficaram lotados no inte- rior e 13 na Região Metropolitana de Salvador. Foram realizadas mais duas seleções via Reda, em 2012, sendo disponibilizadas 16 vagas, e 2014, com 24 vagas, esta última a mais expressiva em número de ins- critos – 1.200 candidatos. A avaliação incluía provas de conhecimentos gerais e específicos e análise curricular. Importante destacar que todas as etapas deste processo – elaboração de prova, correção, logística, orga- nização do concurso – eram executadas pela equipe da DEC. Devido às limitações relativas à quantidade de cargos comissionados e de vagas disponíveis para realização de concursos Reda, o mecanismo de contratação de maior volume de postos de serviços era a terceiriza- ção. Até a transferência para a SecultBA, os equipamentos culturais totalizavam um quantitativo de 141 terceirizados, tendo uma ampliação um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 93 29/07/2019 14:33:55 9 4 g i u l i a n a k a u a r k , p l í n i o r a t t e s e n a t h a l i a l e a l d e s a f i o s d a g e s t ã o p ú b l i c a d e e s p a ç o s c u l t u r a i s 9 5 de 28% dos postos contratados entre 2011 e 2012. Todavia, a partir de 2013, quando inicia-se um contexto de vários contingenciamentos no orçamento do governo do estado, houve uma redução de 5% dos contra- tos e, nos anos seguintes, de até 15%, limitando a capacidade da atuação dos equipamentos. Outro fator que começou a ser recorrente na relação entre empresas terceirizadas e o Estado foram os atrasos nos pagamentos de salários e benefícios aos funcionários. Por um lado, as empresas argumenta- vam que o Estado não pagava as faturas em dia e por isso, não tinham como arcar com os salários dos funcionários, por outro, a Secretaria argumentava que só poderia pagar as faturas se os salários estivessem em dia. Este quadro gerava um ambiente de instabilidade, insatisfação e muitas interrupções de serviços, e até mesmo suspensões intempes- tivas de contratos, prejudicando, mais uma vez, o funcionamento dos espaços culturais. Mesmo em um contexto de dificuldades nas contratações dos qua- dros de pessoal dos equipamentos culturais, a DEC se empenhava em realizar algumas ações de capacitação dos coordenadores e das equi- pes dos espaços culturais. Além de qualificar as equipes, também ha- via a intenção de estabelecer um ambiente de unidade entre a sede e as coordenações dos espaços. Neste sentido, a diretoria tanto realizava encontros trimestrais com coordenadores e assistentes, tendo como objetivos alinhar questões de gestão e promover a capacitação e atua- lização de conhecimentos desse corpo técnico, como também promo- via outras formações através de parcerias como, por exemplo: Curso de Tecnologias de Artes Dramáticas do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia; Curso da Rede Motiva de Técnicas de Iluminação (básico e avançado), Técnicas de Sonorização (básico e avançado) e Técnicas de Estúdio (básico); Curso de Acessibilidade do Projeto Perspectivas em Movimento; Curso de Mediação Cultural, com Ney Wendell; e o Maquinarias Cênicas do Sindicato dos Artistas e Técnicos da Bahia financiado pelo MinC. um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 94 29/07/2019 14:33:55 d e s a f i o s d a g e s t ã o p ú b l i c a d e e s p a ç o s c u l t u r a i s 9 5 D e s a f i o s d a g e s t ã o p ú b l i c a d e e s p a ç o s c u l t u r a i s Apesar dos avanços alcançados com a criação da Diretoria de Espaços Culturais, a experiência com gestão pública de equipamentos cultu- rais evidencia muitos desafios que independem, afinal, da capacidade executiva e de formulação do setor dedicado a esta atividade. A seguir, abordaremos alguns desses desafios, cientes de que muitos outros ain- da poderiam ser identificados. F u n c i o n a m e n t o d a m á q u i n a p ú b l i c a v e r s u s D i n â m i c a d o s e s p a ç o s c u l t u ra i s A despeito de todo o investimento e empenho político-institucio- nal visto nas últimas décadas, nota-se que muito do que é almejado e planejado no serviço público esbarra no dia a dia da difícil engrena- gem da máquina pública, reconhecidamente morosa, muitas vezes ineficiente e constantemente alvo de atos de corrupção. “O Estado é percebido como lento, caro e preservador de uma ordem de coisas so- cialmente injusta”. (COSTIN, 2005, p. 111) Pode-se dizer que a administração pública no Brasil já passou por duas fases, a fase patrimonialista e a burocrática e, conforme pontua José Maurício Conti (2012), vem passando por um processo de mo- dernização que conformam a fase mais recente e de caráter gerencial. Entretanto, mesmo com todas as mudanças e avanços, nota-se que há uma falta de sintonia entre a administração pública (direta e indireta) e a área cultural, em virtude de a primeira não atender e/ou contemplar a contento as especificidades que são próprias da segunda. Isso porque, embora as “amarras burocráticas dos órgãos da administração direta” sejam, em parte, “necessárias para coibir o clientelismo, são, no entan- to, um problema grave quando se lida com atividades que requerem criatividade, f lexibilidade e agilidade próprias de atividades artísticas”. (COSTIN, 2005, p. 114) Neste sentido, Elizabeth Ponte de Freitas (2009) comenta que a imposição de normas e leis que regem, por exemplo, a contratação de um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 95 29/07/2019 14:33:56 9 6 g i u l i a n a k a u a r k , p l í n i o r a t t e s e n a t h a l i a l e a l d e s a f i o s d a g e s t ã o p ú b l i c a d e e s p a ç o s c u l t u r a i s 9 7 serviços e compra de materiais em áreas administrativas do Estado, são também utilizadas na pasta da cultura sem, no entanto, considerar suas dinâmicas próprias. Assim ocorre na gestão de equipamentos culturais, na qual uma série de situações específicas é desconsiderada pelas nor- matizações que regem o setor público. O espaço cultural é, em geral, local de grande circulação de pessoas e que exige constante manutenção e reparos para o seu bom funciona- mento e adequada recepção aos seus públicos. O simplesrompimen- to de uma tubulação ou quebra de uma descarga de banheiro pode se transformar em um transtorno ao levar meses a tramitação de um pro- cesso de conserto. Situações emergenciais como estas não são raras e a dificuldade que a máquina pública ainda tem para lidar com isso torna esta questão um desafio constante para os gestores de equipamentos culturais públicos. Observa-se ainda outros descompassos como o en- gessamento dos contratos de trabalho com os profissionais que atuam nos espaços que, em geral, desconsideram especificidades relativas às jornadas noturnas e aos finais de semana, além de folgas técnicas e ho- ras extras. Impasses e problemas relacionados à legislação, contratação e com- pras têm sido utilizados como justificativa para a implantação de parcerias com Organizações Sociais (OS) e Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip), a chamada publicização, no âmbito da administração pública na área de cultura (FREITAS, 2009) e, mais recentemente, em estudos que avaliam a utilização do novo Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (MROSC) para o mesmo fim. I n s t a b i l i d a d e d a s p o l í t i c a s c u l t u ra i s v e r s u s Pe r m a n ê n c i a d o s e s p a ç o s c u l t u ra i s A instabilidade das políticas públicas de cultura é tão marcante em nosso país que, segundo Albino Rubim (2007), configura-se como uma triste tradição – ao lado do autoritarismo e da ausência. E, considerando um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 96 29/07/2019 14:33:56 d e s a f i o s d a g e s t ã o p ú b l i c a d e e s p a ç o s c u l t u r a i s 9 7 que a gestão de equipamentos culturais públicos está diretamente vin- culada às políticas culturais vigentes, ela é fortemente impactada por esta instabilidade. Ou seja, apesar da permanência dos espaços cultu- rais, que, diferente de programas e projetos, não são facilmente descar- tados a cada nova gestão, a qualidade dos serviços prestados, bem como o modo como são geridos sofrem com a descontinuidade das políticas públicas de cultura. Evidencia-se, a partir da experiência relatada, como não há um pla- nejamento, tampouco uma continuidade das medidas governamentais relativas aos equipamentos culturais no estado da Bahia. A construção e incorporação de uma gama de espaços à administração pública não en- sejou, contraditoriamente, um planejamento a médio e longo prazo em termos de recursos financeiros, pessoal, manutenção e papel estratégi- co para as políticas culturais desses empreendimentos. Inclusive, se pensarmos o planejamento como uma ferramenta da administração na qual se destaca o monitoramento do desempenho das estratégias de ação como ponto essencial do seu processo, no âmbito dos equipamentos culturais, observa-se gestores desenvolvendo tra- balhos sem qualquer tipo de diagnóstico ou análise, projeção de onde quer chegar ou como operacionalizar o que se deseja, tampouco com estabelecimento de prazos e indicadores. Neste sentido, apesar dos avanços com a criação de plataformas on-line para coleta de informa- ções e a inclusão de pesquisas sobre o campo cultural nos levanta- mentos censitários realizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e estudos desenvolvidos pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), em geral, os gestores de espaços culturais têm dado pouca importância à organização dessas informações e/ou desconhecem como utilizá-las. A cada nova gestão decidia-se sobre o modo como gerir esses equi- pamentos e as prioridades que seriam dadas em termos políticos e orçamentários. Tendo em vista que o investimento em ações de ma- nutenção são quase invisíveis e, portanto, pouco úteis em termos um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 97 29/07/2019 14:33:56 9 8 g i u l i a n a k a u a r k , p l í n i o r a t t e s e n a t h a l i a l e a l d e s a f i o s d a g e s t ã o p ú b l i c a d e e s p a ç o s c u l t u r a i s 9 9 eleitorais e, considerando ainda os vários conchavos políticos próprios à práxis eleitoral brasileira que leva à concessão de cargos e usos inapro- priados de equipamentos e serviços públicos, a gestão de espaços cultu- rais é duplamente penalizada, tanto pela carência de recursos essenciais para seu funcionamento, como pela interferência política na nomeação de pessoas sem expertise em funções estratégicas dos espaços e na uti- lização de pautas para realização de eventos que não se adequam a um equipamento de cultura. A possível deturpação de seus usos ou a pre- carização de seus serviços configuram-se, portanto, como desafios da dicotomia instabilidade-permanência. Por esta razão, chamamos tanto a atenção para a importância da Instrução Normativa e Regulamento de funcionamento capitaneados pela DEC, pois estes instrumentos con- seguem ir além das gestões e, sendo bem apropriado pelos atores en- volvidos com os espaços culturais públicos – artistas, produtores, con- selheiros, etc –, ele é capaz de fazer frente aos impactos nefastos aqui indicados. E s c a s s a p ro f i s s i o n a l i z a ç ã o v e r s u s E s p e c i a l i z a ç ã o d a s f u n ç õ e s d o s e s p a ç o s c u l t u ra i s Uma questão que acompanha a gestão cultural no setor público é a escassa profissionalização de gestores. São ainda poucos os profissio- nais especializados para atuar na gestão pública da cultura e, embora existam cursos de extensão, graduação e pós-graduação voltados para questões específicas do campo – políticas, gestão, produção, mediação etc. –, são raros ou inexistentes formações que se dedicam ao funcio- namento da máquina pública e da gestão de equipamentos culturais. A falta de formação também se aplica aos demais profissionais que compõem o corpo técnico dos espaços, tais como: técnicos de som, de iluminação, bilheteiros, indicadores, dentre outros. Este contexto con- tribui para um quadro de profissionais formados a partir de experiências e para a disseminação de práticas de gestão constituídas apenas de for- ma intuitiva. um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 98 29/07/2019 14:33:56 d e s a f i o s d a g e s t ã o p ú b l i c a d e e s p a ç o s c u l t u r a i s 9 9 Além das dificuldades de formação e capacitação neste segmento, outro agravante que atinge a gestão pública da cultura, e consequen- temente a gestão de seus equipamentos, é a inexistência ou defasagem de planos de cargos e carreira nessa área. A maioria do corpo técnico é contratada ou através de cargos comissionados, de livre indicação e que, infelizmente, estão à mercê dos acordos políticos e das mudanças de gestão, ou por meio de contratos temporários (Reda) que, em geral, têm a duração de quatro anos. Neste sentido, a possibilidade de cons- tituição de um corpo funcional qualificado e com condições de desen- volver políticas e práticas de gestão permanentes e consistentes vê-se reduzida, uma vez que se perde parte da memória e dos investimentos a cada renovação de pessoal. Outra questão que contribui para a defasagem e pouca qualificação dos quadros de pessoal são os baixos salários praticados nos órgãos pú- blicos da cultura. Em 2013, por exemplo, um coordenador de equipa- mento cultural do estado ganhava pouco mais que um cargo de Reda de nível médio, o que, em termos absolutos, não era superior a R$ 1.600,00 brutos. Este dado, por si só, demonstra uma total falta de alinhamento entre a função e a responsabilidade atribuídas ao coordenador vis-à-vis sua remuneração. Ademais, se comparado com salários de coordenado- res de outros espaços, constata-se que este valor está completamente aquém do que é praticado no mercado, demonstrando a disparidade en- tre as remunerações praticadas por instituições com a mesma natureza e indicando como faz-se urgente a regulação e a fiscalização dos sindi- catos de artistas e técnicos neste quesito. E x i g u i d a d e d o re c u r s o p ú b l i c o v e r s u s D e s p es a s c o r re n t e s e i n v e s t i m e n t o e m e s p a ç o s c u l t u ra i s Predomina em todas as esferas da federação a constatação de que os recursos destinados à cultura estão sempre aquém das demandas apontadas pelo setor. Do mesmo modo, a experiência da Diretoria de Espaços Culturais aponta como uma constante o baixo e insuficiente um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 99 29/07/2019 14:33:56 1 0 0 g i u l i a n a k a u a r k , p l í n i o r a t t e s e n a t h a l i a l e a l d e s a f i o s d a g e s t ã o p ú b l i c a d e e s p a ç o s c u l t u r a i s 1 0 1 orçamento, ainda mais quando aplicado a um conjunto considerável de equipamentos, inseridos em contextos diversos e com suas próprias es- pecificidades. O orçamento da DEC é composto por ações de duas naturezas: a de despesas correntes ou de custeio, utilizadas para despesas como con- tratos, materiais de consumo, diárias, passagens, contas de consumo; e a de investimento, destinada às aplicações em obras, reformas, aqui- sições de equipamentos, programação, dentre outros. Arriscamos afirmar que um não faz sentido sem o outro, já que um equipamento cultural reformado e bem equipado, não cumprirá sua função se não houver recursos ou meios de viabilizar seu funcionamento. É recorren- te, no entanto, na trajetória das políticas culturais, casos de construção de equipamentos culturais sem previsão orçamentária correspondente ao custeio e manutenção, incorrendo no fechamento e sucateamento de espaços culturais. Ao longo da trajetória da Diretoria, podemos perceber o quanto seu orçamento geral está distante do mínimo para garantir o funcionamen- to básico e adequado de seus equipamentos. Analisando, por exemplo, o volume de recursos destinados aos 17 espaços culturais, no período de 2007 e 2014, para as ações consideradas de custeio,10 registra-se em média um o valor de R$ 568.000,0011 anuais, do qual cerca de um terço correspondia a um contrato de manutenção de sistema de climatização que atendia a apenas cinco espaços culturais. Não bastasse ser reduzido, é importante não perder de vista que a utilização do recurso público perpassa por uma série de procedimen- tos e controles burocráticos, tornando-a um ato complexo e às vezes inadequado à atividade cultural. Ou seja, se, por um lado, a capacida- de de atuação dos setores está diretamente ligada às possibilidades de ampliação de recursos, por outro, não adianta ampliar o orçamento se a estrutura não estiver preparada para executá-lo. A baixa execução or- çamentária num determinado ano pode, inclusive, implicar em redu- ção dos recursos no planejamento seguinte. um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 100 29/07/2019 14:33:56 d e s a f i o s d a g e s t ã o p ú b l i c a d e e s p a ç o s c u l t u r a i s 1 0 1 Paralelo ao orçamento de custeio, os investimentos também são fundamentais para atualização e modernização do patrimônio e dos bens duráveis, bem como para a promoção de programações para os espaços. Neste caso, diante da exiguidade do erário, é salutar a diversi- ficação de fontes de investimento por meio de convênios diretos ou de emendas parlamentares e, até mesmo, provenientes de arrecadação de pautas, embora, estas últimas estejam muito distantes de cobrir os cus- tos dos espaços culturais. Se tomarmos como exemplo a experiência da DEC, entre 2007 e 2014, seu investimento público direto programado foi aproximadamente seis milhões de reais.12 Uma única captação feita junto ao Fundo Nacional de Cultura, em 2012, obteve um montante cer- ca de três milhões de reais, incluindo os rendimentos de aplicação. Este contexto demonstra a necessidade de gestores e corpo técnico compe- tentes para operacionalizar o erário de forma rápida, eficiente e com o mínimo de desperdício possível, bem como lidar com os mecanismos próprios da captação de recursos. Pl e i t o p e l a c o n s t r u ç ã o d e e s p a ç o s c u l t u ra i s v e r s u s a u s ê n c i a d e p o l í t i c a s e s p e c í f i c a s Nas últimas três décadas houve um crescimento do número de equipamentos culturais no país, públicos e privados, decorrentes, in- clusive, de incentivos fiscais. Segundo o Ministério da Cultura, em 2015, o país bateu parte da Meta 31 do Plano Nacional de Cultura (PNC), que estipulava aumentar o número de cidades brasileiras com algum tipo de instituição ou equipamento cultural, entre museu, teatro ou sala de espetáculo, arquivo público ou centro de documentação, ci- nema e centro cultural. Este aumento, contudo, ainda não conseguiu superar o estigma da assimétrica concentração de espaços culturais em grandes cidades e em locais com bons índices sociais e urbanos. Esta realidade não é diferente na Bahia, sendo recorrente a demanda por construção de equipamentos culturais nas últimas Conferências de Cultura do Estado (realizadas em 2007, 2009 e 2013). um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 101 29/07/2019 14:33:56 1 0 2 g i u l i a n a k a u a r k , p l í n i o r a t t e s e n a t h a l i a l e a l d e s a f i o s d a g e s t ã o p ú b l i c a d e e s p a ç o s c u l t u r a i s 1 0 3 Embora observemos um crescimento em relação ao número de equi- pamentos culturais nas cidades brasileiras, ainda que com distribuição irregular, é preciso registrar que este aumento não significou neces- sariamente a formulação e implementação de um conjunto de políti- cas que dessem conta da funcionalidade adequada desses espaços após inaugurados. Verifica-se ainda que não há uma divisão clara das obrigações de cada um dos entes federados no âmbito dos equipamentos culturais, haven- do, em geral, sobreposição de políticas e ações em determinadas áreas, enquanto outras permanecem pouco ou quase nada atendidas. Tal situação atesta que ainda há uma cultura de pensamento não sistemá- tico das políticas culturais, apesar dos esforços envidados nos últimos anos na consolidação do Sistema Nacional de Cultura (SNC). Por fim, como anteriormente destacado, as iniciativas governamen- tais no âmbito dos espaços culturais ainda carecem de maior institucio- nalização, representatividade política e planejamento que seja coerente com as realidades e dinâmicas locais e que, principalmente, consiga ul- trapassar o ciclo quadrienal das gestões. C o n s i d e r a ç õ e s f i n a i s Partimos neste artigo da constituição da Diretoria de Espaços Culturais e da sua atuação ao longo de dez anos, destacando seus resultados em termos de: gestão e política; programação e públicos; requalifica- ção, modernização e acessibilidade; gestão de pessoas. Verificamos esforços e avanços envidados pela DEC, muito embora, dian- te do contexto ainda precário dos espaços culturais públicos do estado, eles ainda pareçam insuficientes. Na última parte, ao abordarmos os desafios da gestão pública de equipamentos culturais, percebemos que estes são, sobremaneira, de ordem estrutural, decorrentes das defasadas engrenagens da má- quina pública, da instabilidade tradicional das políticas culturais um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 102 29/07/2019 14:33:56 d e s a f i o s d a g e s t ã o p ú b l i c a d e e s p a ç o s c u l t u r a i s 1 0 3 brasileiras, da precariedade do quadro de pessoal, da exiguidade dos re- cursos para a área da cultura e da ausência de uma formulação específica de políticas públicas para este setor. Compreendemos que a política cultural e suas diretrizes são deter- minantes para moldar os conceitos e o perfil da gestão de um equipa- mento cultural, assim como consideramos importante a presença de gestores competentes, preparados e, sobretudo, dispostos a apresentar soluções para uma cada vez melhor e mais eficiente gestão da cultura dentro da administração pública. A intermitência própria da gestão pública, aliada à falta de planeja- mento a longo prazo comum à pasta da cultura, compromete para uma maturidadeda Diretoria e, por conseguinte, da sua contribuição para a constituição de uma política para espaços culturais. Uma atuação per- cebida, muitas vezes, como isolada ou mesmo aguerrida da DEC, é in- capaz de superar os desafios elencados. Não acreditamos que a gestão pública de equipamentos culturais seja uma tarefa impossível, embora saibamos o quanto ela é árdua. Temos, sim, consciência de que ela não pode ser executada sem vontade políti- ca, sem atenção dos gestores máximos dos órgãos de cultura e sem um pensamento estratégico compartilhado pelos vários atores envolvidos. N o t a s 1 A primeira Secretaria de Cultura do Estado da Bahia foi criada em 1987, durante o governo de Waldir Pires, sendo extinta e incorporada à pasta da Educação em 1991, primeiro ano do go- verno ACM. Em 1995, já na gestão de Paulo Souto, a pasta da cultura é desmembrada da Secretaria da Educação e vinculada ao turismo com a instituição da Secretaria de Cultura e Turismo que perdurou por 12 anos. 2 O Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural é criado em 1967; o Instituto de Radiodifusão da Bahia em 1969; a Fundação Cultural do Estado da Bahia em 1972 e a Fundação Pedro Calmon, em 1987. 3 Após reforma administrativa de 2011, a gestão do Irdeb foi transferida para a Secretaria de Comunicação e, em seguida, para a Secretaria de Educação, ficando a cargo exclusivo da Funceb, as políticas para o audiovisual, através da Diretoria de Audiovisual (Dimas). um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 103 29/07/2019 14:33:56 1 0 4 g i u l i a n a k a u a r k , p l í n i o r a t t e s e n a t h a l i a l e a l d e s a f i o s d a g e s t ã o p ú b l i c a d e e s p a ç o s c u l t u r a i s 1 0 5 4 A relação dos equipamentos culturais da SecultBa encontra-se no site institucional do órgão. Disponível em: goo.gl/YtKS6i. Acesso em: 17 out. 2017. 5 Foram governadores da Bahia, os peemedebistas Waldir Pires (1987-1989) e Nilo Coelho (1989-1991) e os calistas, Antonio Carlos Magalhães (ACM) (1991-1994), Antônio Imbassahy (1994-1995), Paulo Souto (1995-1999), César Borges (1999-2002), Otto Alencar (2002-2003) e Paulo Souto (2003-2007). 6 Foram diretores: Luciana Vasconcelos (2007), Kátia Najara (2007-2010), Giuliana Kauark (2010-2014), Nathalia Leal (2014), Chicco Assis (2014-2015), Romualdo Lisboa (2015- 2016) e Maria Marighella, a partir de 2016. 7 Disponivel em: https://espacosculturais.wordpress.com/about/acoes/. Acesso em: 26 out. 2017. 8 Em cada equipamento cultural do interior existia um eletricista de alta e um auxiliar de servi- ços gerais, com exceção da Casa de Cultura de Mutuípe, espaço menor em relação aos de- mais, onde apenas era mantido um artífice. Esses funcionários eram terceirizados, sendo contratados a partir de 2011. 9 Após reforma administrativa em 2015, a Superintendência foi extinta e inserida na estrutura da Secretaria de Administração (Saeb), na Superintendência de Patrimônio (Supat). 10 Não estão contempladas neste item as despesas com contas de consumo (água, luz, telefone, internet), de folha de pagamento e de contratos de terceirização de mão de obra. 11 Média encontrada a partir dos documentos de composição do orçamento público, período de 2007 a 2014. Disponível em: http://bit.ly/2yYpGEp. Acesso em: 25 out. 2017. 12 Composição do orçamento público no período de 2007 a 2015 da Secretaria de Planejamento do Estado. Disponível em: http://bit.ly/2yYpGEp. Acesso em: 25 out. 2017. R e f e r ê n c i a s BAHIA, Secretaria de Cultura. Diretoria de Espaços Culturais. Relatório. Salvador, 2013. BAHIA, Secretaria de Cultura. Diretoria de Espaços Culturais. Relatório de gestão. Salvador, 2014. BAHIA, Secretaria de Cultura. Diretoria de Espaços Culturais. Nota técnica sobre as reformas nos espaços culturais da SECULT entre 2007 e 2015. Salvador, 2015. um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 104 29/07/2019 14:33:56 d e s a f i o s d a g e s t ã o p ú b l i c a d e e s p a ç o s c u l t u r a i s 1 0 5 CONTI, José Maurício. Contas à vista – Não falta dinheiro à administração pública, falta gestão. Conjur, 31 de julho de 2012. Disponível em: <http://bit.ly/2zgJsxM>. Acesso em: 30 out. 2017. COSTIN, Claudia. Organizações Sociais como modelo para Gestão de Museus, Orquestras e outras iniciativas culturais. Revista Administração em Diálogo, São Paulo, n. 7, p. 107-117, 2005. FREITAS, Elizabeth Ponte de. A gestão pública não estatal na cultura: uma questão de gestão ou de política cultural? In: ENECULT, 5. 2009, Salvador. Anais [...]. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2009. Disponível em: http://bit.ly/2loId9E. Acesso em: 30 out. 2017. KAUARK, Giuliana. Política cultural no estado da Bahia Gestões de César Borges (1998-2002) e Paulo Souto (2002-2006). Salvador, 2006. Disponível em: http://www.cult.uf ba.br/arquivos/Politicas_Culturais_ da_Bahia_Cesar_Borges_e_Paulo_Souto_Gi….pdf .Acesso em: 30 out. 2017. RATTES, Plínio. Políticas e gestão de equipamentos culturais da cidade de Salvador-BA: a perspectiva dos gestores. 184f. Dissertação (Mestrado em Cultura e Sociedade) – Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2017. RUBIM, Antonio Albino. Políticas culturais no Brasil: tristes tradições, enormes desafios. In: BARBALHO, Alexandre; RUBIM, Antonio Albino. (org.). Políticas culturais no Brasil. Salvador: EDUFBA, 2007. (Coleção CULT). um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 105 29/07/2019 14:33:56 um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 106 29/07/2019 14:33:56 P arceria s entr e poder público e terceiro setor par a a g est ão de espaços cultur ais : av anços , des af ios e per spec tiv a s E l i z a b e t h P o n t e * I n t r o d u ç ã o Em 2018, completaram-se 20 anos de criação da Lei nº 9.637, de 15 de maio de 1998, que instituiu o Programa Nacional de Publicização e criou a figura jurídica das Organizações Sociais (OS). No ano se- guinte, foi promulgada a Lei nº 9.790, de 23 de mar- ço de 1999, que criou a figura das Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscips). Ambas as legislações foram os marcos legais fundamentais * Mestra em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal da Bahia. German Chancellor Fellow pela Fundação Alexander Von Humboldt (2018/2019). De 2010 a 2018 foi Diretora Institucional do Programa Núcleos Estaduais de Orquestras Juvenis e Infantis da Bahia (Neojiba) e desde 2013 é Conselheira de Administração da Associação Brasileira de Organizações Sociais da Cultura (ABRAOSC). E-mail: pontebeth@gmail.com um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 107 29/07/2019 14:33:56 1 0 8 e l i z a b e t h p o n t e p a r c e r i a s e n t r e p o d e r p ú b l i c o e t e r c e i r o s e t o r . . . 1 0 9 para a “publicização”: um novo modelo para gestão de entidades públi- cas em áreas não exclusivas do Estado, como saúde, ciência e tecnologia, assistência social, educação e cultura, dentre outras. Desde 1998, com a criação do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, no Ceará, o modelo vem sendo utilizado para a gestão de diversos espaços e programas cul- turais em um número crescente de estados brasileiros. Este modelo de gestão, também denominado como “contratua- lização”, “parceirização” ou “gestão pública não estatal”, consiste basicamente na prestação de serviços e atividades públicas através de parcerias entre o Estado e o Terceiro Setor, mediante mecanismos de planejamento e controle. O modelo tomou força no Brasil a partir da Reforma do Estado, em 1995, e hoje está largamente presente em quase todos os estados brasileiros,1 aplicado em diversos setores, com desta- que para as áreas de saúde e da cultura. Ambas as nomenclaturas OS e Oscip referem-se a titulações que po- dem ser conferidas a pessoas jurídicas sem fins lucrativos, a partir de certos pré-requisitos, que as permite firmarem parceriascom o Estado.2 Sendo assim qualificada, a entidade está habilitada a receber recursos públicos e administrar bens e equipamentos do Estado, que continua sendo responsável pelo planejamento, financiamento e controle da ati- vidade, diferentemente das estratégias de privatização. O controle des- ta administração é feito através da celebração de um contrato de gestão, no caso das OSs, ou termo de parceria, no caso das Oscips, nos quais são explicitadas metas e atividades a serem realizadas de acordo com as fun- ções de cada organização e com o serviço gerido. A consecução destas metas oferece a possibilidade de prorrogação do contrato e o não cum- primento das metas, ou irregularidades na gestão, ocasionam a troca e até a desqualificação da entidade. Como veremos mais adiante neste artigo, o conceito de publicização ou parceirização está se ampliando com a criação de novos marcos legais que normatizam parcerias entre Estado e terceiro setor para a gestão de políticas públicas culturais, abarcando outras figuras jurídicas que não um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 108 29/07/2019 14:33:56 p a r c e r i a s e n t r e p o d e r p ú b l i c o e t e r c e i r o s e t o r . . . 1 0 9 exclusivamente Organizações Sociais e Oscips. Assim, ao utilizarmos o termo “publicização” não estaremos nos referindo exclusivamente às parcerias com OSs, embora esta vertente seja a mais documentada e re- gistrada devido à sua abrangência, mas a todas as formas de parceria de gestão com o terceiro setor. P u b l i c i z a ç ã o , p r i v a t i z a ç ã o e p a r t i c i p a ç ã o s o c i a l Desde sua criação, o modelo de gestão através de parcerias com orga- nizações sociais esteve envolto em controvérsias, resultando inclusive na abertura da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 1.923, em 1997, pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT), questionando a transferência de atividades públicas independente de processo licitatório. A decisão favorável do Supremo Tribunal Federal (STF), em votação finalizada em abril de 20153 que decidiu pela validade do publicização, não foi suficiente para dissipar a espessa névoa de desinformação que circunda o modelo, não raro definido pelos críticos e pela imprensa 4 como uma mera estratégia de “privatização” de serviços públicos. No entanto, a publicização difere radicalmente da privatização de serviços e bens públicos.5 Por este motivo, antes de entrarmos nas especificidades da aplicação deste modelo de gestão na área cultural, consideramos importante lo- calizar corretamente o marco legal da publicização em relação a outras formas mais frequentes e também legalmente regulamentadas de rela- cionamento do Estado com entes privados, a saber: a “privatização”, a “concessão” e a “terceirização”. Cada uma dessas formas de relaciona- mento é disciplinada pela legislação brasileira e corresponde a formas distintas de interlocução entre Governo e entes privados, com ou sem fins lucrativos. um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 109 29/07/2019 14:33:56 1 1 0 e l i z a b e t h p o n t e p a r c e r i a s e n t r e p o d e r p ú b l i c o e t e r c e i r o s e t o r . . . 1 1 1 Quadro 1 – Principais formas de relacionamento entre o Estado e a iniciativa privada, marcos le- gais e características principais TIPO DE RELACIONAMENTO DEFINIÇÃO/EXEMPLIFICAÇÃO MARCOS LEGAIS PRIVATIZAÇÃO Transferência a acionistas privados da propriedade das participações majoritárias detidas pelo Estado no capital de uma empresa. Desnacionalização, desestatização. Ex.: venda da Companhia Vale do Rio Doce (CRVD), em 1997. Lei n° 9.491 de 09/09/1997 CONCESSÃO Delegação, através de contrato administrativo, da execução de um serviço público a uma empresa privada para que o execute, em seu próprio nome, por sua conta e risco, mediante tarifa paga pelo usuário ou outra forma de remuneração decorrente da exploração do serviço. Ex.: Concessão de transporte público municipal; de serviços de limpeza urbana; de iluminação pública. Leis n° 8.987 de 13/12/1995 e n° 9.074 de 07/07/1995 TERCEIRIZAÇÃO Contratação de empresas privadas visando a prestação de serviços ou fornecimento de mão de obra para atividades – normalmente atividades-meio – do poder público. Ex.: Terceirização de serviços de segurança; limpeza; manutenção de prédios públicos. Lei n° 6.019, de 3 de janeiro de 1974, alterada pela Lei nº 13.429, de 31 de março de 2017. PUBLICIZAÇÃO Parceria entre o poder público e uma organização não governamental sem fins lucrativos qualificada pelo poder público, sob certas condições, para prestar atividade de interesse público mediante variadas formas de fomento pelo Estado. Ex.: Parcerias entre Governos e Organizações Sociais para gestão de espaços culturais; hospitais; etc. Lei n° 9.637, de 15/05/98 (Organizações Sociais); Lei nº 9.790, de 23/03/99 (Oscips) Fonte: elaboração da autora baseado em Di Pietro (2008) Para além de diferentes marcos legais, as características intrínsecas ao modelo de publicização o afastam da noção de privatização, visto que: 1) as políticas e programas continuam sendo públicos, passando apenas a ter sua gestão compartilhada com a sociedade civil organizada através de instituições sem fins lucrativos; 2) o Estado continua sendo o principal responsável pelo planejamento e financiamento das políti- cas públicas e, por fim; 3) o modelo conta com diversos mecanismos de controle social e transparência dos resultados e dados da utilização do recurso público. um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 110 29/07/2019 14:33:57 p a r c e r i a s e n t r e p o d e r p ú b l i c o e t e r c e i r o s e t o r . . . 1 1 1 Apesar de ter sua origem relacionada ao movimento de Reforma do Estado, com fortes conotações neoliberais e com foco na redução da máquina estatal, o surgimento da publicização como alternativa à ges- tão pública direta em áreas de interesse público, como a cultura, está diretamente relacionado com o incentivo à participação social, pre- visto na Constituição Federal de 1988, promulgada dez anos antes do marco legal do modelo. Conforme ressalta Thiago Donnini (2016), a Constituição de 1988, conhecida como a “constituição cidadã”, serviu como base fundamental para a instituição de diversas formas de parti- cipação social: conselhos de participação, conselhos consultivos, con- selhos gestores de políticas públicas, audiências e consultas públicas, conferências temáticas, ouvidorias, entre outros mecanismos de inter- locução e intervenção direta nas decisões sobre políticas públicas. A legislação que institui os modelos de Organização Social (OS) e Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), do final da década de 90, pode ser compreendida dentro do marco jurídico da participação social na gestão pública. Editadas em um momento de redefinições do papel do estado no domínio econô- mico e social, essas leis traçaram um novo perfil para as entidades privadas de inte- resse público, orientado por exigências de profissionalismo e sofisticação das suas estruturas de governança e controle. (DONNINI, 2016, p. 9) Assim, para muito além de uma forma de otimização da gestão de políticas públicas, a publicização é uma importante forma de possibili- tar a participação direta da sociedade civil organizada no planejamento e execução de políticas públicas, com destaque para a área cultural. um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 111 29/07/2019 14:33:57 1 1 2 e l i z a b e t h p o n t e p a r c e r i a s e n t r e p o d e r p ú b l i c o e t e r c e i r o s e t o r . . . 1 1 3 P u b l i c i z a ç ã o n a á r e a c u l t u r a l n o B r a s i l A publicização encontrou um campo de fértil aplicação na área cultu- ral devido às especificidades do setor e às consequentes dificuldades de operacionalização de atividades culturaisencontradas na adminis- tração pública direta.6 O Estado do Ceará foi o primeiro a adotar o mo- delo para a gestão de um equipamento cultural público, com a criação, em 1998, do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, o maior centro cultural público da região Nordeste, localizado na cidade de Fortaleza e gerido, desde então, pelo Instituto Dragrão do Mar, antes Instituto de Arte e Cultura do Ceará (IACC), entidade qualificada como OS pelo Governo do Estado. Ao adotar a gestão de espaços culturais através da publicização, o Ceará serviu de exemplo a diversos outros estados e municípios. Atualmente, além do Ceará, que expandiu o modelo para gestão de outros espaços culturais, os Estados do Pará, Bahia, Pernambuco, São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná, Goiás e Mato Grosso também já utili- zam o modelo para gestão de diversos equipamentos e programas cul- turais, assim como as cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba e Fortaleza.7 O Estado de Minas Gerais promulgou em 2003 sua própria Lei Estadual de Oscips (Lei n° 14.870, 16/12/2003) e a utilizou para a gestão de programas culturais, a exemplo da Orquestra Filarmônica de Minas Gerais.8 O Estado de São Paulo se destaca na implantação do modelo na área cultural, através de parcerias com OS, desde 2004. Dados de 2004 a 2016, confirmam a centralidade do modelo no Estado: 67 equipamen- tos e programas culturais, geridos por 18 Organizações Sociais,9 recebe- ram investimentos de R$ 3,9 bilhões e geraram mais de 4600 empregos diretos, atingindo mais de 77 milhões de pessoas.10,11 A publicização na área cultural tem sido aplicada à gestão de dife- rentes tipos de equipamentos e programas culturais. As atividades . um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 112 29/07/2019 14:33:57 p a r c e r i a s e n t r e p o d e r p ú b l i c o e t e r c e i r o s e t o r . . . 1 1 3 culturais publicizadas podem ser classificadas em três tipos principais, listados a seguir com alguns exemplos: 1) Espaços culturais: Pinacoteca do Estado e Museu da Língua Portuguesa, São Paulo; Estação das Docas, Mangal das Garças e Hangar (Centro de Convenções), Pará; Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura e Centro Cultural Bom Jardim, Ceará, Museu Oscar Niemeyer, Mato Grosso, Museu de Arte do Rio (MAR) e Museu do Amanhã, Rio de Janeiro; Teatro São Pedro, Theatro Municipal de São Paulo e Bibliotecas, São Paulo. 2) Corpos Estáveis: Orquestra Sinfônica de São Paulo (OSESP); Orquestra Sinfônica da Bahia; São Paulo Companhia de Dança (SPCD); Orquestra Sinfônica de Mato Grosso; Orquestra Filarmônica de Minas Gerais. 3) Projetos e programas: De formação: Projeto Guri e Oficinas Culturais, São Paulo; Liceu de Artes e Ofícios, Ceará; Neojiba, Bahia; Fábricas de Cultura São Paulo. De difusão: Festival de Música na Ibiapaba, Ceará; Festival Internacional de Inverno de Campos de Jordão, São Paulo. O fato de que relevantes equipamentos culturais em diversos esta- dos estão sendo geridos através de parcerias com o terceiro setor mostra a importância do tema para a compreensão da atual gestão de espaços culturais no Brasil. Não se trata apenas de uma inovação administrati- va, mas de uma mudança conceitual relacionada ao papel do Estado e da sociedade civil, bem como à própria função social dos espaços culturais dentro das políticas públicas brasileiras. Felizmente, os últimos anos têm registrado um aumento no número de pesquisas e publicações no campo da cultura sobre os impactos desse modelo de gestão, seja em um ponto de vista geral (ALCOFORADO, 2010; BITTENCOURT, 2014; FERRAZ, 2008; MARTINS, 2016; PADOVANI, 2015; PONTE, 2012; ROMERO, 2012; VIANA, 2010)12 um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 113 29/07/2019 14:33:57 1 1 4 e l i z a b e t h p o n t e p a r c e r i a s e n t r e p o d e r p ú b l i c o e t e r c e i r o s e t o r . . . 1 1 5 ou específico, com foco nos resultados de determinado espaço ou programa cultural. (BARBOSA, 2009; CRUZ, 2008; LARA, 2010; INSTITUTO ODEON, 2017; PAULA, 2016) A expansão do modelo no Brasil na área cultural, acompanhada pelo crescente interesse de estu- dos e pesquisas, tornam mais claras quais as vantagens e fragilidades desse modelo para a gestão pública da cultura. V a n t a g e n s e p o t e n c i a l i d a d e s : u m p a n o r a m a r e s u m i d o Não raro, associa-se a agilidade administrativa como a principal vanta- gem e motivação para a adoção do modelo de publicização na área cul- tural. No entanto, as vantagens do modelo vão muito além da simples eficiência e rapidez na execução de recursos, perpassando campos di- versos como transparência e controle social, gestão de recursos huma- nos e orçamento para a área da cultura. Apresentaremos a seguir, em estrutura de tópicos, um breve panorama das principais potencialida- des do modelo. 1) Regularização da contratação de profissionais As organizações sociais contratam seus funcionários através do re- gime Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), contribuindo, como no caso do Estado e do Município de São Paulo, para a regularização de contratos do próprio poder público com profissionais da área cultural que atuavam nos equipamentos e programas culturais.13 2) Políticas públicas mais transparentes A celebração de contratos de gestão, com metas claramente pac- tuadas, torna as políticas públicas de cultura mais transparentes para a população, permitindo identificar o que o poder público planeja e compreende como função de determinado equipamento cultural. As atividades realizadas e resultados alcançados também são mais aces- síveis, através da publicação obrigatória de relatórios. Muitas destas um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 114 29/07/2019 14:33:57 p a r c e r i a s e n t r e p o d e r p ú b l i c o e t e r c e i r o s e t o r . . . 1 1 5 informações sobre os mesmos equipamentos nunca foram acessíveis à população antes da publicização dos equipamentos. 3) Maior orçamento para a cultura: A Organização Social tem autonomia e capacidade legal para empreender diversas formas de arrecadação de recursos em prol do equi- pamento ou programa cultural, de receitas operacionais com bilheteria, locação de espaço, venda de produtos à captação de doações e patrocí- nios privados de variadas espécies.14 Em um momento nacional em que o investimento público na área cultural está cada vez mais ameaçado, a possibilidade de captação de recursos é estratégica para evitar a redu- ção ainda maior ou até mesmo a descontinuidade de serviços culturais.15 4) Planejamento e profissionalização na área cultural A consolidação do modelo e do próprio funcionamento das organi- zações sociais, com a formação e especialização de um corpo profissio- nal autônomo, contribui para a profissionalização e especialização de ocupações na área cultural, e para criação know-how de gestão em suas diversas áreas: museologia, formação cultural, gestão de orquestras sinfônicas e grupos de dança profissionais, gestão de teatros e centros culturais etc. O funcionamento das organizações sociais é um compo- nente importante da institucionalização do meio cultural, contempla- do em suas especificidades e peculiaridades. 5) Memória e sistematização dos programas As organizações sociais devem se utilizar de mecanismos de ges- tão que favoreçam uma maior sistematização das atividades de deter- minada política pública, a exemplo de ferramentas de planejamento estratégico, indicadores de resultado e accountability, realização de estudos de impacto, pesquisas de satisfação, etc. Tudo isso compe- te para uma maior quantidade de dados acerca das políticas públicas e mais segurança em sua memória, visto que, mesmo em casos de um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 115 29/07/2019 14:33:57 1 1 6 e l i z a b e t h p o n t e p a r c e r i a s e n t r e p o d e r p ú b l i c o e t e r c e i r o s e t o r . . . 1 1 7 descontinuidade decontrato com uma OS, a transição do serviço é obrigatória para a futura entidade gestora. 6) Agilidade e eficiência na execução dos programas As organizações sociais são entidades sem fins lucrativos de di- reito privado e adotam seus regulamentos próprios de contratações e serviços, aprovados pelo poder público e seguindo os princípios da administração pública. A aquisição de bens, serviços e manutenção de espaços pode ser realizada com mais agilidade e economicidade em comparação com os mecanismos da administração pública direta. R i s c o s e f r a g i l i d a d e s : u m p a n o r a m a r e s u m i d o As experiências de publicização em diversos estados e municípios bra- sileiros são bastante diversas. Apesar de apresentarem um amadure- cimento de modo geral, ainda existem muitos pontos essenciais para o sucesso das parcerias que carecem de atenção e de providências que, normalmente, competem tanto ao Governo quanto à sociedade civil. Assim como realizado em relação às potencialidades, apresentaremos a seguir, em estrutura de tópicos, um breve panorama dos principais riscos e fragilidades ainda persistentes no modelo. 1)Critérios de qualificação e forma de seleção das entidades Após a criação do modelo, um dos pontos mais controversos e po- lêmicos da relação entre Estado e OSs e Oscips residia nas formas de escolha das entidades que celebrariam contratos de gestão ou termos de parceria com o Estado, sendo este um dos motivos que ensejou a abertura da ADI mencionada anteriormente. Nos estados de São Paulo e Minas Gerais a seleção das entidades não era realizada através de cha- mamentos públicos ou editais, como sempre foi o caso na Bahia, por exemplo. No entanto, mesmo antes da votação da ADI, estes mesmos estados, por força dos órgãos de controle externo, passaram a adotar um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 116 29/07/2019 14:33:57 p a r c e r i a s e n t r e p o d e r p ú b l i c o e t e r c e i r o s e t o r . . . 1 1 7 mecanismos de seleção pública para as entidades candidatas a assumi- rem a gestão de espaços e programas culturais. Um risco que ainda per- siste está relacionado à expertise e capacidade de gestão das entidades selecionadas. É preciso que os chamamentos contenham critérios espe- cíficos para avaliação da capacidade de gestão das entidades, que devem conhecer bem o negócio a ser gerido e possuir estruturas de governança e controle internos consolidados. 2) Atuação dos Conselhos de Administração das entidades Em relação ao tema de governança, é essencial avaliar e acompanhar a atuação dos Conselhos de administração das entidades, visto serem, juntamente com a direção executiva, a representação da sociedade no diálogo com o Estado e por assumirem grande responsabilidade para o sucesso de qualquer experiência de transferência de gestão. Também dentro deste tema, um ponto de atenção é a obrigatoriedade vigente, na lei federal e algumas leis estaduais, da participação de membros do Governo em até 40% dos assentos dos Conselhos de Administração, o que fere a autonomia das entidades e enfraquece o espírito de parceria entre Estado e Sociedade Civil. 3) Falta de clareza sobre papéis dos entes envolvidos e no planeja- mento das políticas públicas Uma parceria só acontece com a participação efetiva dos entes en- volvidos e com a compreensão clara de seus papéis e responsabilidades. Para o sucesso de qualquer experiência de publicização é necessário que o Estado se concentre nas atividades de planejamento e acompa- nhamento das políticas públicas e que a Organização Social se fortale- ça internamente e compreenda seu papel como corresponsável de uma política pública. A adoção da parceirização por resultados junto a uma OS obriga o estado a olhar para si e se reinventar. Compele-o a implantar novos instrumentos de gestão e re- um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 117 29/07/2019 14:33:57 1 1 8 e l i z a b e t h p o n t e p a r c e r i a s e n t r e p o d e r p ú b l i c o e t e r c e i r o s e t o r . . . 1 1 9 discutir a possibilidade de todos os agentes envolvidos, incluindo os órgãos de con- trole interno e externo. Assim, ele pode concentrar suas energias não mais na exe- cução propriamente dita daquela política pública, mas no acompanhamento e na avaliação dos contratos de gestão e dos indicadores pactuados, o que certamente traz maior profissionalismo, eficiência, controle e transparência na gestão da coisa pública. Tudo isso provoca, no mínimo uma reanálise de todo o sistema, além de uma profunda reflexão acerca dos vários papéis do Estado. (NEUMAYR; LARA, 2017, p. 24) Embora muitos estados, como o caso de São Paulo, tenham feito re- levantes avanços na elaboração de suas minutas de planos de trabalhos e investido no aperfeiçoamento de indicadores, esta ainda não é a regra em todas as experiências de publicização. A falta de atenção e coerên- cia na elaboração das metas pactuadas entre as entidades e Estado não são os únicos fatores que põem em risco a exequibilidade da parceria. O fracasso pode residir também na unilateralidade deste processo e na consequente inexistência de uma parceria efetiva entre Estado e Terceiro Setor. Este risco pode ser mitigado caso se enxergue o processo de elaboração do contrato de gestão ou do termo de parceria não como uma mera formalidade burocrática, mas como o que ele efetivamente representa: um instrumento de implementação de políticas públicas que deve, desde sempre, atender à demanda real e ao interesse público. 4) Controle social, transparência e acesso às informações O acesso a informações e dados sobre as políticas públicas publiciza- das teve um importante avanço nos últimos anos, resultante não ape- nas da Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011) e de iniciativas dos próprios estados, a exemplo a criação do Portal Transparência Cultura, da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, e das próprias Organizações Sociais, obrigadas a disponibilizar infor- mações em seus websites e relatórios anuais. No entanto, acesso à infor- mação é algo diferente de controle social, na medida em que um é uma um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 118 29/07/2019 14:33:57 p a r c e r i a s e n t r e p o d e r p ú b l i c o e t e r c e i r o s e t o r . . . 1 1 9 ferramenta e o outro é uma ação e pressupõe motivação e capacidade de análise e interpretação dos dados disponibilizados. Assim, para que possamos falar em um controle social efetivo sobre o modelo, é preciso investir, como realizado pelo Estado de São Paulo, na disponibilização de informações acessíveis e em sua difusão para a população. O controle social pode ser um dos principais aliados do modelo, ajudando na iden- tificação de distorções e até mesmo de casos de improbidade e desvio de recursos públicos. 5) Enrijecimento do modelo/controle de processos x controle de resultados Apesar de terem se passado duas décadas de criação do modelo de gestão compartilhada, ainda há uma incompreensão dos diferentes ór- gãos de controle e até mesmo das secretarias de cultura sobre o funcio- namento do modelo e sobre suas especificidades. Isso resulta em uma multiplicidade de instâncias de controle e, em casos mais graves, em um enrijecimento e em uma burocratização do funcionamento das entidades parceiras. O controle sempre será necessário e todo aper- feiçoamento é benéfico, mas é preciso ter cautela para os mecanismos que servem para controlar não acabem por prejudicar ou dificultar a execução das atividades finalísticas da entidade. Conforme ressaltam Neumayr e Lara (2017, p. 34): Um ponto sensível dessa atuação dos órgãos de controle é quanto ao entendimento da finalidade de aplicação do recurso público. Corre-se o risco de o exercício do controle desses órgãos ir além da verificação do resultado e observância aos princí- pios da administração pública, confundindo-se com o próprio poderde tomada de decisão que a OS, como gestora e responsável direta pela execução do contrato de gestão, deveria exercer. um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 119 29/07/2019 14:33:57 1 2 0 e l i z a b e t h p o n t e p a r c e r i a s e n t r e p o d e r p ú b l i c o e t e r c e i r o s e t o r . . . 1 2 1 M o d e l o s e m e r g e n t e s d e p a r c e r i a p a r a a g e s t ã o d e e s p a ç o s c u l t u r a i s A partir de 2016, temos presenciado ainda o surgimento de modelos emergentes de parceria para a gestão de espaços culturais em diferentes estados brasileiros. Estes novos modelos utilizam-se de diferentes mar- cos legais para a mesma finalidade da Lei das Organizações Sociais, ou seja, possibilitar que entidades da sociedade civil organizada assumam a gestão de equipamentos e programas culturais públicos. No entanto, trata-se de leis e mecanismos recentes, criados para outras finalidades, como é o caso do Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (MROSC) e, ou que ainda são relativamente carentes de regula- mentação própria ou de consenso jurídico em relação à sua aplicabilida- de, como é o caso dos Serviços Sociais Autônomos, no Paraná. 1) Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (MROSC) Para muito além de uma lei, o MROSC é resultado de um amplo mo- vimento de avaliação sobre os ambientes jurídico, tributário e financei- ro relacionados às Organizações da Sociedade Civil (OSCs) – estima- das em mais de 300 mil entidades em todo o país – e sobre a forma de relação entre Estado e OSCs. O Marco compreende uma série de ações relacionadas a três eixos: 1) contratualização, referente aos instrumen- tos pelos quais o poder público formaliza as suas relações de parceria e de contrato com as OSCs. 2) sustentabilidade, referente a tributos, tipos societários, ampliação das fontes de recursos, etc. – temas que alcançam todas as organizações, independentemente de sua relação com o poder público e 3) certificação, referente a títulos, certificações e acreditações concedidas às OSCs. Os resultados mais visíveis deste movimento são a Lei Federal nº 13.019/14 e o Decreto Federal nº 8.726/16 que dispõem sobre regras e procedimentos do regime jurídico das parcerias celebra- das entre a administração pública federal e organizações da sociedade um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 120 29/07/2019 14:33:57 p a r c e r i a s e n t r e p o d e r p ú b l i c o e t e r c e i r o s e t o r . . . 1 2 1 civil e que, em um caso de metonímia, é definida como sendo o próprio “Marco Regulatório para as Organizações da Sociedade Civil”.16 Dessa forma, o MROSC foi criado para dar mais segurança, trans- parência e controle às relações de cooperação e fomento entre Estado e Sociedade Civil, substituindo os convênios existentes até então. Uma finalidade claramente diferente da Lei das Organizações Sociais. No entanto, este marco regulatório está sendo crescentemente utilizado por municípios e estados para a gestão de equipamentos públicos. São exemplos o município de São Paulo (Theatro Municipal de São Paulo e Centro de Referência da Dança), o Distrito Federal (Centro de Dança) e o Governo do Mato Grosso (Cine Teatro Cuiabá, Museu de Arte Sacra, Museu de Artes de Mato Grosso e Galeria Lava-Pés, Museu Histórico e Residência dos Governadores). Existiu inclusive interesse do Governo Federal, através do Instituto Brasileiro de Museus, de utilizar-se do mo- delo para aprimorar a gestão de museus federais.17 O MROSC é uma lei recente e não completamente regulamentada no Brasil. A Lei passou a valer para os municípios apenas a partir de ja- neiro de 2017. Até outubro de 2018, 18 estados e o Distrito Federal (DF) editaram decretos de regulamentação, não sendo acompanhados pelos Estados do Acre, Roraima, Amazonas, Rio Grande do Norte, Paraíba, Goiás, Espírito Santo e Rio de Janeiro.18 Embora o MROSC se espelhe em muitas das ferramentas de plane- jamento e controle da própria Lei das OS – a exemplo do chamamento público, plano de trabalho com metas, criação de comissão de avaliação e acompanhamento das parcerias, etc. –, por ter sido criado para outra finalidade, existem menos exigências em relação ao grau de experiên- cia e governança interna das entidades do terceiro setor – a existência de conselhos deliberativos, por exemplo, não é obrigatória, assim como a necessidade de experiência mínima em determinada área de atuação. Em primeira análise, ao contrário do proposto então pela própria criação do MROSC, sua utilização para uma finalidade já existente na Lei de Organizações Sociais só colabora para aumentar a confusão um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 121 29/07/2019 14:33:57 1 2 2 e l i z a b e t h p o n t e p a r c e r i a s e n t r e p o d e r p ú b l i c o e t e r c e i r o s e t o r . . . 1 2 3 conceitual e de interpretações jurídicas sobre as parcerias entre Estado e Terceiro Setor para a cultura.19 Vale destacar, no entanto, iniciativas para esclarecimento das pos- sibilidades de utilização do MROSC para a área cultural, como o caso da Secretaria de Cultura do Distrito Federal, que em 2018 editou a Portaria N. 67, de 09 de marco de 2018, que disciplina a aplicação prá- tica do MROSC na gestão pública cultural.20 Isto mostra que a relação entre MROSC e gestão de espaços culturais públicos é um movimento crescente e que merece atenção por parte de pesquisadores e analistas de políticas culturais. 2) Serviços Sociais Autônomos (SSA) Segundo Hely Lopes Meirelles (1996), os Serviços Sociais Autô- nomos são definidos como: aqueles instituídos por lei, com personalidade de Direito Privado, para ministrar as- sistência ou ensino a certas categorias sociais ou grupos profissionais, sem fins lu- crativos, sendo mantidos por doações orçamentárias ou por contribuições parafis- cais. São entes paraestatais, de cooperação com o Poder Público, com administração e patrimônio próprio, revestindo a forma de instituições particulares convencionais (fundações, sociedades civis e associações) ou peculiares ao desempenho de suas incumbências estatuárias. (MEIRELLES, 1996, p. 338) Essas entidades compõem o chamado sistema S, abrangendo Serviço Social da Indústria (Sesi), Serviço Social do Comércio (Sesc), Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac), Serviço Social do Transporte (Sest), Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar) e Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), embora reconhecidas pelo estado, não integram a administração direta nem a indireta, mas trabalham ao lado do Estado, sendo também chamadas de “paraestatais”. um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 122 29/07/2019 14:33:57 p a r c e r i a s e n t r e p o d e r p ú b l i c o e t e r c e i r o s e t o r . . . 1 2 3 O Estado do Paraná criou durante os anos 1995-2002 diversos no- vos serviços sociais autônomos buscando mais agilidade e eficiência na prestação de serviços públicos. (ALCÂNTARA, 2006) São exemplos o Paranaeducação, Paranacidade e o já extinto Paranatecnologia. E, mais recentemente, o Estado está adotando este mesmo modelo para a gestão de alguns de seus principais equipamentos culturais. O Governo do Paraná utilizou a figura dos Serviços Sociais Autônomos para a criação do Palcoparaná, pessoa jurídica de direito pri- vado, sem fins lucrativos, de interesse público, através da Lei Estadual n° 18.381/2015. O Palcoparaná tem um vínculo de cooperação com o Centro Cultural Teatro Guaíra (CCTG), a quem cabe o controle de suas atividades fins, bem como a supervisão do contrato de gestão. De acor- do com esta Lei, o governo do Estado é responsável pela nomeação dos diretores e do conselho da entidade, que, no entanto, possui autonomia para contratação de recursos humanos através de CLT e para compras e contratações sem a utilização da leide licitações e contratos. Esta foi uma medida tomada visando à resolução de um antigo impasse em rela- ção à contratação de bailarinos e músicos do Balé e Orquestra Sinfônica do Teatro Guaíra. (BALÉ DO TEATRO..., 2017) Mais grave do que a utilização do MROSC, a utilização de novos ser- viços sociais autônomos para a gestão de espaços culturais está ainda mais em uma “zona cinzenta” em relação ao público e o não estatal. (DI PIETRO, 2008, p. 267) Justen Filho (2004) critica os serviços sociais autônomos vinculados a entes estatais, pois, para ele: foram criados com o intuito básico de escapar ao regramento jurídico da adminis- tração pública. A instituição somente é efetivamente autônoma, e assim designada, se não houver intervenção estatal na sua administração. Se o Estado indica os admi- nistradores, determina a orientação e o financiamento das atividades estratégicas, a organização deve ser controlada como componente da administração pública, aplicando o regime de licitação e de contratação administrativas. (ALCÂNTARA, 2006, p. 93) um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 123 29/07/2019 14:33:57 1 2 4 e l i z a b e t h p o n t e p a r c e r i a s e n t r e p o d e r p ú b l i c o e t e r c e i r o s e t o r . . . 1 2 5 Este é um modelo ainda mais recente e pouco estudado,21 mas que deve ser analisado em relação a seus resultados e impactos na gestão de espaços culturais públicos. C o n c l u s ã o : a m p l o s d e s a f i o s p a r a o m o d e l o e p a r a a á r e a c u l t u r a l Casos recentes desde 2016, relacionados a fechamento de equipamen- tos culturais, cortes orçamentários e desvio de recursos públicos infe- lizmente fizeram com que a gestão de espaços e programas culturais públicos através de parcerias com o Terceiro Setor fosse alvo de muita atenção por parte da mídia e da comunidade cultural. São casos, em sua maioria, de grande repercussão e que envolveram espaços geridos por Organizações Sociais, mas cujas causas não estão relacionadas ao modelo em si, mas a problemas na execução específica da parceria e também a problemas relacionados ao contexto econômico ou político e que ameaçam o setor cultural como um todo neste mo- mento da história do Brasil. O escândalo de desvio de recursos do Theatro Municipal de São Paulo, descoberto em 2016 e que envolveu também a direção da Fundação Theatro Municipal – fundação pública responsável pelo acompanhamento do contrato de gestão com o Instituto Brasileiro de Gestão Cultural –, exemplifica, com consequências drásticas, os resultados da adoção do modelo de publicização sem a construção de mecanismos robustos de controle interno e externo. O resultado da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) instaurada pela Câmara de Vereadores apontou para um rombo de R$ 21,8 milhões. A realização de um novo processo de parceria, envolto em novas controvérsias, através do MROSC demonstra que em diferentes esferas do poder público ain- da existem fragilidades e incoerências na adoção de modelos de gestão compartilhada para a cultura. um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 124 29/07/2019 14:33:57 p a r c e r i a s e n t r e p o d e r p ú b l i c o e t e r c e i r o s e t o r . . . 1 2 5 Os casos da extinção da Banda Sinfônica do Estado de São Paulo e da Orquestra Sinfônica de São José dos Campos – ligada à administração municipal –, em 2017, ambas geridas por OSs, relevaram, por sua vez, os efeitos nefastos dos cortes orçamentários e sem critérios objetivos na área cultural. O prefeito de São José dos Campos, Felício Ramuth, anunciou em janeiro de 2017 o fim do investimento à orquestra, orçado em R$ 2,5 milhões, sob a justificativa de que deveria “investir naquilo que é prioridade”. (AFFONSO; MACEDO, 2017) As quatro Bibliotecas Parque do Estado do Rio de Janeiro, audacioso investimento de mais de R$ 70 milhões e geridas pela OS Instituto de Desenvolvimento e Gestão (IDG), estão fechadas para o público desde dezembro de 2016, devido ao cancelamento do contrato de gestão e à crise financeira do Estado. Na Bahia e em Minas Gerais ocorreram casos de “reestatização” de equipamentos culturais geridos por OS. No caso da Bahia, a Cidade do Saber, ligada à prefeitura de Camaçari e gerida até fevereiro de 2017 pelo Instituto Raimundo Pinheiro ou por Oscips, no caso de Minas Gerais, o PlugMinas, ligado ao Governo do Estado e gerido até 2015 pelo Instituto Sergio Magnani e o Circuito Cultural Praça da Liberdade, ge- rido pela mesma Oscip. De acordo com nota da Prefeitura de Camaçari publicada em jornal de grande circulação na Bahia, em 28 de setembro de 2017, “a decisão de afastar a ONG ocorreu em função das irregulari- dades apontadas pelo Tribunal de Contas dos Municípios, na gestão de recursos repassados ao programa nos governos passados”. (CIDADE..., 2017) No caso da Camaçari, o espantoso é saber que as contas do con- trato de gestão não haviam sido analisadas até então pelo tribunal de contas do município desde a criação da entidade, em 2007, e que, caso sejam comprovadas as irregularidades, que as mesmas não tenham sido identificadas anteriormente pelas instâncias de controle interno da Secretaria responsável e da prefeitura de Camaçari, mostrando, assim como no caso do Theatro Municipal de São Paulo, um flagrante de des- cumprimento ao previsto no modelo de parceria de gestão com OS. um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 125 29/07/2019 14:33:57 1 2 6 e l i z a b e t h p o n t e p a r c e r i a s e n t r e p o d e r p ú b l i c o e t e r c e i r o s e t o r . . . 1 2 7 No caso de Minas Gerais, os cancelamentos dos termos de parce- ria não foram ocasionados por problemas administrativos ou finan- ceiros da entidade. A mudança pode ser justificada pela resistência do Governo do PT à adoção do modelo de parcerias de gestão, criado e desenvolvimento durante os governos do PSDB no estado. Em ambos os casos de reestatização, que são raros em relação ao panorama geral da publicização do Brasil, será preciso analisar quais os impactos dessa mudança nos resultados dos espaços e programas culturais e que risco estes exemplos apresentam para o modelo como um todo que, sem dú- vida, é permeado por mais exemplos de êxito do que de fracasso. Como exemplificam Campos, Cacique e Pereira (2017, p. 184): A maior preocupação é com o modelo de gestão em um âmbito maior, e com o equipamento gerido no caso específico. Por exemplo, no caso da prefeitura do Rio, descontinuar um contrato de OS é ruim, mas se os demais continuarem, é algo con- tornável na ótica da perenidade do modelo de gestão por OS. Contudo, na ótica de um equipamento específico que seja descontinuado, estamos falando de um risco grande de retrocesso, maiores custos de transação para gerir fornecedores, manu- tenção inconstante, ambiente infértil para gestão por resultados, menor flexibilida- de e modelos incompatíveis com a realidade (demanda de carreiras públicas espe- cíficas, concursos, etc.). Estes exemplos citados, ao mesmo tempo em que revelam a contínua necessidade de aperfeiçoamento do modelo de gestão de equipamentos culturais em parceria com o Terceiro Setor, nos mostram que a ameaça à própria continuidade e existência de programas e políticas públicas cul- turais vai além da questão sobre qual o modelo de gestão ou marco legal mais adequados, mas está relacionada à própria importância da cultura enquanto setor e sua legitimidade perante os políticos e a sociedade. Em governos nos quais o investimento em uma orquestra, um museu ou um teatro é considerado um gasto desnecessário, e não um investimen- to, não haverá importância histórica ou transparência de resultados que um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 126 29/07/2019 14:33:57 p a r c e r i a s e n t r e p o d e r p ú b l i c o e t e r c e i r o s e t o r . . . 1 2 7 impeça a extinção desses equipamentos. E, se o objetivo é garantirque os espaços culturais continuem existindo e prestando seus serviços à comunidade, é também sobre esta frente que pesquisadores, gestores e artistas devem se debruçar, paralelamente aos esforços de melhoria dos modelos de gestão já existentes. N o t a s 1 Vinte três estados brasileiros já possuem legislações próprias de OS e outros 15 estados pos- suem legislações de Oscip. Apenas o estado de Roraima não possui nenhuma legislação es- pecífica para essas organizações, embora tenha previsto no Art. 38 de sua Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2018 (Lei N° 1.198, de 24 de julho de 2017) a possibilidade de celebração de termos de parceria com Oscips qualificadas em qualquer estado brasileiro. 2 Dentre estes pré-requisitos estão: finalidade não lucrativa; impedimento de distribuição de os excedentes financeiros entre membros; a existência de um Conselho Deliberativo ou de Administração na entidade; publicação de relatórios financeiros, dentre outros. 3 Em sessão plenária do dia 16 de abril de 2015, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu pela validade da prestação de serviços públicos não exclusivos por organizações sociais em parce- ria com o poder público. Contudo, a celebração de convênio com tais entidades deve ser con- duzido de forma pública, objetiva e impessoal, com observância dos princípios constitucio- nais que regem a Administração Pública (caput do artigo 37). Por votação majoritária, a Corte julgou parcialmente procedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 1923, dando interpretação conforme a Constituição às normas que dispensam licitação em celebração de contratos de gestão firmados entre o Poder Público e as organizações sociais para a prestação de serviços públicos de ensino, pesquisa científica, desenvolvimento tecnológico, proteção e preservação ao meio ambiente, cultura e saúde. Na ação, o Partido dos Trabalhadores (PT) e o Partido Democrático Trabalhista (PDT) questionavam a Lei nº 9.637/1998, e o inciso XXIV do artigo 24 da Lei nº 8.666/1993 (Lei das Licitações). Convênio do poder público com or- ganizações sociais deve seguir critérios objetivos. Disponível em: https://goo.gl/FPYM5n. Acesso em: 6 out. 2017. 4 Trazemos como exemplo algumas manchetes recentes de notícias publicadas em portais de grande acesso, que exemplificam este tipo de confusão conceitual: “Doria quer privatizar gestão de 52 bibliotecas e Centro Cultural” (Catraca Livre, 12/01/2017); “Privatize o Museu do Ipiranga, Alckmin” (Veja, 09/02/2017); “Artistas formam comissão para discutir com MinC privatização do TBC” (Estadão, 21/09/2017). 5 Conforme exposto por Di Pietro (2008, p. 7), o conceito de privatização pode ser compreen- dido de forma ampla ou restrita. Em sua interpretação ampla, refere-se a toda forma de rela- cionamento e transferência de funções, provisória ou definitivamente, do Estado ao setor privado. Em seu sentido amplo, a privatização pode assumir “diferentes formas, todas amol- dando-se ao objetivo de reduzir o tamanho do Estado e fortalecer a iniciativa privada e os modos privados de gestão dos serviços públicos. [...] No entanto, ao lado do conceito amplo um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 127 29/07/2019 14:33:57 1 2 8 e l i z a b e t h p o n t e p a r c e r i a s e n t r e p o d e r p ú b l i c o e t e r c e i r o s e t o r . . . 1 2 9 de privatização, existe outro bem mais restrito, que abrange apenas a transferência de ativos ou de ações de empresas estatais para o setor privado.” O que podemos observar pelo discur- so do senso comum e pela cobertura da mídia, é a compreensão do termo “privatização” ape- nas em seu senso estrito, o que torna sua associação às políticas de publicização completa- mente equivocada. 6 Para mais informações recomendamos a leitura dos capítulos I e II do livro Por uma cultura pública: OS, Oscips e a gestão pública não estatal na área da cultura (Ed. Iluminuras, 2012), da autora. 7 Para mais informações, recomendamos a leitura da “Pesquisa sobre a publicização da cultura no Distrito Federal, nos estados do Brasil e suas capitais”, realizada pela Associação Brasileira de Organizações Sociais da Cultura (ABRAOSC). São Paulo, 2016. Disponível em: http:// abraosc.org.br/abraosc-realiza-1o-forum-brasileiro-das-organizacoes-sociais-de-cultura/ 8 Em 2018, o Estado de Minas Gerais promulgou a Lei n° 23.081/2018 (Programa de Descentralização da Execução de Serviços para Entidades do Terceiro Setor). Com isso todo o marco regulatório envolvendo Governo de Minas e entidades do Terceito Setor foi modifi- cado e as parcerias passaram a ser realizadas com organizações Sociais no lugar de Oscips. 9 Número de Organizações com contratos de gestão vigentes em 2016. Esta quantidade va- riou entre 2004 e 2016, de acordo com criações de novos programas, fusões e separações de políticas públicas ou qualificações e desqualificações de entidades. 10 Informações obtidas a partir de dados compilados pela Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo de 2004 a 2016. Fonte: www.transparenciacultura.sp.gov.br. 11 Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo. Cultura em números. Disponível em: https:// goo.gl/vt7t1V. Acesso em: 8 out. 2017. 12 Ainda predomina bibliografia referente à experiência de publicização no Estado de São Paulo, embora seja possível encontrar relatos da experiência de Minas Gerais (ROMERO, 2012), Ceará (VIANA, 2010) e Espírito Santo. (ALCOFORADO, 2010) 13 Citamos dois casos exemplares: no Estado de São Paulo, os cerca de três mil “credenciados” (profissionais em contrato temporário) que atuavam em quase todos os equipamentos da Secretaria de Cultura a partir da extinção do Baneser, o que motivou o Ministério do Trabalho a encaminhar ao Estado um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) para a regularização da situa- ção dos servidores até dezembro de 2005 e na cidade de São Paulo, a situação dos artistas dos corpos estáveis do Theatro Municipal de São Paulo, contratados de forma temporária por mais de 20 anos. (PONTE, 2012) 14 A título de exemplo, as Organizações Sociais de Cultura do Estado de São Paulo acresceram ao orçamento da área de cultura do estado um total de R$ 94 milhões de reais em 2015, através de diversas estratégias de captação de recursos. 15 Neumayr e Lara (2017) ao mencionarem a possibilidade de captação de recursos extracon- trato, fazem uma importante observação sobre o desafio de construir estratégias de susten- tabilidade a longo prazo, em virtude do horizonte limitado de duração dos contratos de ges- tão. 16 Para mais informações sobre o MROSC: www.participa.br/osc. um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 128 29/07/2019 14:33:57 p a r c e r i a s e n t r e p o d e r p ú b l i c o e t e r c e i r o s e t o r . . . 1 2 9 17 Disponível em: http://www.museus.gov.br/palestra-no-ibram-debate-gestao-por-oscs/. Acesso em: 8 dez. 2018. 18 Para informações atualizadas, sugerimos a consulta à página do Projeto Sustentabilidade Econômica da Sociedade Civil, capitaneado pelo Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (Gife) e outros parceiros, para acompanhar a implementação da Lei n. 13.019/14. Disponível em: https://gife.org.br/osc/mrosc/ 19 É exemplar o caso do Theatro Municipal da São Paulo, que em 2017 passou a ser gerido pela Organização Social Instituto Odeon, após Chamamento Público através do MROSC. Após uma sequência de acusações entre o Instituto e a Secretaria de Cultura do Município de São Paulo, amplamente documentadas pela imprensa, o Termo de Colaboração foi suspenso de forma unilateral pelo poder público em janeiro de 2019, após decisão do então Secretário de Cultura André Sturm. A suspensão foi revogada pelo novo Secretário de Cultura do Município, Alê Youssef, que declarou que o Theatro Municipal continuaria sendo gerido pelo Instituto Odeon por tempo indeterminado. Para mais informações, recomendamos a leitura do artigo ”Os bastidores do Theatro Municipal” publicado por Rubens Naves e MarianaChiesa Nascimento no Jornal O Estado de Sao Paulo, em 10 de janeiro de 2019: https://politica.esta- dao.com.br/blogs/fausto-macedo/os-bastidores-do-municipal/. 20 Disponível em: http://www.cultura.df.gov.br/portaria-mrosc-cultura-detalha-regras-para- -parcerias-com-a-sociedade-civil/. 21 PALCOPARANÁ. Legislações. Disponível em: http://www.palcoparana.org. Acesso em: 8 out. 2017. R e f e r ê n c i a s AFFONSO, J.; MACEDO, F. Prefeito tucano extingue sinfônica de São José dos Campos. Estadão. 10 jan. 2017 Disponível em: https://goo.gl/ DAp7aS. Acesso em: 6 out. 2017. ALCÂNTARA, C. M. O Modelo gerencial organizações públicas não- estatais e o princípio da eficiência. 2006. 225 f. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2006. ALCOFORADO, F. C. G. 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Acesso em: 15 abr. 2019. um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 132 29/07/2019 14:34:06 Territórios Parte II um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 133 29/07/2019 14:34:11 um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 134 29/07/2019 14:34:11 E spacializ aç ão da s dif er entes e xpr es sõ es cultur ais na cidade M a r i a n a L u s c h e r A l b i n a t i * I n t r o d u ç ã o Os espaços culturais na cidade contemporânea são inúmeros e igualmente numerosos são os desejos, interesses e necessidades que expressam. A ideia de espaço cultural, seja nos campos acadêmicos e cul- tural ou no senso comum informado pela grande mídia, vem sendo construída predominantemente a partir da produção espacial realizada pelo Estado e/ou pelo mercado, enfocando aqueles edifícios – salas de cinema, teatros, museus, bibliotecas, etc. – * Produtora cultural, doutora em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ), pesquisadora do Observatório das Metrópoles. E-mail: marianalbinati@yahoo. com.br. um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 135 29/07/2019 14:34:11 1 3 6 m a r i a n a l u s c h e r a l b i n a t i e s p a c i a l i z a ç ã o d a s d i f e r e n t e s e x p r e s s õ e s c u l t u r a i s n a c i d a d e 1 3 7 que merecem consideração pelos governos e pelo segmento empresa- rial nas políticas culturais que estabelecem.Neste texto procuramos discutir a ideia de espaço cultural pensa- da além da forma convencional, dos equipamentos culturais, refle- tindo sobre diferentes formas de espacialização da expressão cultural. Essa noção ampliada de espaço cultural parte do entendimento de que a cultura, mesmo tendo nas artes uma expressão extraordinária, se ex- pressa e espacializa também no cotidiano, na vida ordinária dos grupos sociais. A atribuição de sentidos ao mundo vivido está em constante disputa pelas diferentes culturas, embora em cada espaço e tempo uma cultura dominante imponha sua leitura, naturalizando a invisibilidade e o caráter exótico que confere a leituras outras. Para além dos equipamentos culturais dedicados às formas consa- gradas da arte, é importante buscarmos conhecer e pensar em outros espaços culturais que se multiplicam nas cidades através da apropriação cultural de diferentes espaços, existindo como contraface dos espaços produzidos pelo Estado/mercado ou dentro de sua lógica dominante. Essas experiências de apropriação reconfiguram, em alguma medida, a relação entre cultura e território nos lugares onde acontecem, revelan- do certa inadequação entre os sujeitos da cultura e a produção espacial hegemônica. Como espaços culturais, entendemos tanto os imóveis construí- dos ou adaptados para a realização de práticas artísticas ou sociocultu- rais – os chamados equipamentos culturais – como espaços outros que são apropriados pelos agentes em sua produção e expressão cultural. Assim, também são considerados os espaços do encontro cultural, es- paços provisórios – ocupados pela ausência de outros mais adequados – e espaços temporários – que se realizam em alguns momentos, mas não permanentemente, criando uma sobreposição de territórios. Este olhar mais amplo sobre os espaços em que a vida cultural se materializa também pode ser útil aos gestores que, diante da responsa- bilidade de atuar para que um equipamento cultural seja efetivamente um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 136 29/07/2019 14:34:11 e s p a c i a l i z a ç ã o d a s d i f e r e n t e s e x p r e s s õ e s c u l t u r a i s n a c i d a d e 1 3 7 apropriado – não no sentido de propriedade, mas sim de pertencimento – pelos seus públicos, podem recorrer aos modos de fazer que concreti- zam, nas esquinas, praças, ruas ou onde quer que seja, os espaços “favo- ráveis à felicidade” de que nos fala Henri Lefebvre (2001, p. 110, grifo do autor) no célebre livro O direito à cidade: Quais são, quais serão os locais que socialmente terão sucesso? Como detectá-los? Segundo que critérios? Quais tempos, quais ritmos de vida cotidiana se inscrevem, se escrevem, se prescrevem nesses espaços ‘bem sucedidos’, isto é, nesses espaços favoráveis à felicidade? A fim de contribuir para a reflexão sobre os espaços culturais ou as formas de espacialização da expressão cultural dos diferentes grupos na cidade, este texto elabora e apresenta três categorias ou espécies de espaços que articulam de diferentes maneiras questões mais propria- mente culturais ou de expressão simbólica, racionalidades econômicas e posicionamentos políticos: “Espaços Culturais Empreendedores”, “Espaços de Acesso à Cultura” e “Espaços Culturais Insurgentes”. A contribuição de Michel de Certeau é central na formulação des- sas categorias ou espécies de espaços, em especial com os conceitos de Cultura no Singular e Cultura no Plural. (CERTEAU, 1995) Este au- tor afirma que há duas maneiras diferentes de se considerar a cultura: uma delas, a que o autor denomina Cultura no Singular, trata de um conjunto delimitado de práticas, determinado por um poder. Em cada conjuntura essa delimitação varia, mudam-se as regras que definem o que está dentro ou fora da cultura. Mas o mais importante na apreensão do conceito é notar que quem define esses limites não são necessaria- mente os praticantes, agentes produtores de cultura, mas sim os grupos sociais detentores do poder de definir. Já a noção de Cultura no Plural que Certeau elabora, compreen- de o trabalho de significação das múltiplas práticas sociais, ou seja, a apropriação dessas práticas de modo que façam sentido para seus um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 137 29/07/2019 14:34:11 1 3 8 m a r i a n a l u s c h e r a l b i n a t i e s p a c i a l i z a ç ã o d a s d i f e r e n t e s e x p r e s s õ e s c u l t u r a i s n a c i d a d e 1 3 9 praticantes, ao serem realizadas conforme suas crenças e aspirações. O autor conceitua a Cultura no Plural como uma luta contra a não signi- ficação do cotidiano, que também pode ser entendida como luta a favor de que os diferentes desejos, necessidades, modos de vida e perspecti- vas sobre o mundo encontrem espaços para a sua expressão. Diante da provocação de Certeau, que entende a produção cultural como aquilo que emprenha de significação as práticas cotidianas – não apenas as ex- traordinárias –, como se pode pensar especificamente o papel dos espa- ços culturais tradicionais? Antes de passar às categorias formuladas, é importante atentarmos para as formas como a cultura e suas espacializações podem ser encara- das do ponto de vista das relações de produção econômica e reprodução social. Nesse sentido, as categorias diferenciam os espaços onde a cul- tura é tomada como valor de uso, servindo diretamente como meio de existência às pessoas que a praticam (HARVEY, 1980), daqueles onde é entendida primordialmente como valor de troca. A cultura pode comparecer como valor de troca de duas formas: di- retamente, no mercado de bens culturais no qual se troca produtos ou experiências de caráter artístico-cultural por dinheiro – na compra de quadros, fotos, livros, discos, ingressos, etc. –, ou indiretamente, quan- do é utilizada como recurso na produção das mais diversas mercado- rias. No primeiro caso, o produto cultural é a mercadoria, o objeto ou experiência a ser consumido mediante um valor de troca. No segundo caso, aspectos culturais contribuem para a fetichização da mercadoria, aumentando seu valor de troca, mesmo que nada se altere no valor de uso, como se observa nos produtos, carregados de conteúdos estético- -expressivos, da chamada economia criativa. Diante do exposto, entende-se que os espaços culturais são produ- zidos sob lógicas distintas que podem ser assim discriminadas para fins analíticos: a) a lógica mercantil, fundada na cultura como valor de troca, quer pelo comércio direto de produtos culturais, quer pelo inte- resse em atrair outros capitais a partir da implantação desses espaços; um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 138 29/07/2019 14:34:11 e s p a c i a l i z a ç ã o d a s d i f e r e n t e s e x p r e s s õ e s c u l t u r a i s n a c i d a d e 1 3 9 b) a lógica republicana/distributiva, em que, tomando a cultura como valor de uso, Estado ou iniciativa privada – geralmente com incentivos públicos – procuram democratizar o acesso a produtos culturais e à sua produção, a partir de uma determinada visão de cultura – uma Cultura no Singular; e c) a lógica insurgente, em que entendendo a cultura como valor de uso e/ou como valor de troca, os grupos produzem espaços insurgentes frente ao planejamento cultural do Estado e à lógica do mercado de bens culturais, problematizando o acesso e a distribuição de bens e espaços culturais na cidade, afirmando sua própria visão de cultura e construindo uma Cultura no Plural. O texto propõe as categorias “Espaços Culturais Empreendedores”, “Espaços de Acesso à Cultura” e “Espaços Culturais Insurgentes” como sínteses dessas diferentes lógicas. Essas sínteses ou categorias, no en- tanto, não constituem “caixinhas” onde se pode acomodar os diferen- tes espaços culturais para categorizá-los, mas sim conjuntos de elemen- tos e questões com as quais se pode relacionar a prática efetiva desses espaços a fim de analisar e repensar as políticas culturais subjacentes. As duas primeiras espéciesde espaços ou categorias caracteri- zam, nas palavras de Henri Lefebvre (2001, p. 103), “os equipamentos comerciais e culturais que são mais ou menos parcimoniosamente le- vados em consideração pelos urbanistas”. São eles: a) Espaços Culturais Empreendedores, fundados em uma lógica mercantil em consonância com o ideário econômico-cultural do capitalismo flexível; e b) Espaços de Acesso à Cultura, fundados em uma lógica republicano/distributiva que se aproxima do ideário da democratização cultural. Uma terceira espécie de espaço, no entanto, merece ser formula- da diante da necessidade de ampliação da ideia de espaço cultural que a noção de Cultura no Plural coloca. A tríade se completa, então, com a categoria c) Espaços Culturais Insurgentes, que, fundados em lógicas outras, colocam em xeque a ideia de Cultura no Singular. um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 139 29/07/2019 14:34:11 1 4 0 m a r i a n a l u s c h e r a l b i n a t i e s p a c i a l i z a ç ã o d a s d i f e r e n t e s e x p r e s s õ e s c u l t u r a i s n a c i d a d e 1 4 1 E s p a ç o s d a C u l t u r a n o S i n g u l a r Duas das espécies de espaços que compõem o esquema proposto po- dem ser entendidas como produto da Cultura no Singular, formulada por Certeau (1995, p. 142) como uma cultura monolítica que “impe- de que as atividades criadoras tornem-se significativas”. Esta ideia de cultura orienta a prática dos espaços culturais empreendedores, quer quando optam por segmentos da produção cultural que são mais lucra- tivos ou têm maior apelo de público, quer quando corroboram com a afirmação de uma imagem – da empresa ou mesmo da cidade idealizada pelo chamado empreendedorismo urbano – dentro de uma estratégia comercial. Orienta também a formulação, implantação e gestão dos es- paços de acesso à cultura, quando seu papel se aproxima ao ideário da democratização cultural, ou seja, quando assumem o objetivo de pro- porcionar o acesso ou distribuir “a cultura”, segmento das práticas so- ciais delimitado por um poder que confere o status “cultural” somente a determinadas práticas e agentes. E s p a ç o s c u l t u ra i s e m p re e n d e d o re s Podem ser assim considerados aqueles espaços regidos por uma ló- gica de mercado, nomeados como empreendedores para seguir o jargão neoliberal que vigora não apenas no que diz respeito à produção de mer- cadorias, mas também no ideário hegemônico que coloca o chamado desenvolvimento econômico como meta primeira de toda sociedade, disseminando o empreendedorismo como valor a ser adotado em di- versas esferas da vida social. Nos Espaços Culturais Empreendedores, a cultura comparece como valor de troca no sentido mais direto – troca de bens ou experiências culturais por dinheiro – ou de forma indireta, quando é pensada como um recurso de marketing, especialmente nos espaços culturais finan- ciados por grandes empresas – que não têm nos bens culturais seu ne- gócio principal – ou mesmo pelo Estado – como nos projetos orientados pelo city marketing.1 O papel desses espaços na sociedade vem sendo um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 140 29/07/2019 14:34:11 e s p a c i a l i z a ç ã o d a s d i f e r e n t e s e x p r e s s õ e s c u l t u r a i s n a c i d a d e 1 4 1 redefinido nos últimos anos, a partir da imbricação entre cultura e eco- nomia que caracteriza a atual reestruturação produtiva do capitalismo, tendo no ideário da economia criativa uma ferramenta central. Os espaços culturais figuram de duas maneiras diferentes nesse universo criativo e empreendedor: como espaços de consumo cultu- ral e como instrumentos de marketing, seja apoiando a construção de imagem de grandes empresas ou como âncoras de processos de renova- ção urbana. A primeira forma trata de espaços onde se pode consumir não apenas os bens ou experiências culturais, mas também uma série de mercadorias que incorporam certos aspectos estético-expressivos e passam a fazer parte da experiência total de consumo. Como, por exemplo, em uma livraria, onde além de livros se pode comprar um café especial, uma sobremesa gourmet, objetos de arte e design, CDs e DVDs, equipamentos eletrônicos mais sofisticados para uma aprecia- ção estética “superior”, entre outras mercadorias que fazem parte do empreendimento “livraria” ou do empreendimento “cinema”. A categoria Espaços Culturais Empreendedores compreende os lu- gares de comércio de bens e serviços culturais, como galerias de arte, livrarias, cinemas, teatros e casas de shows, onde a participação do pú- blico se dá mediante compra de bens ou pagamento de ingressos, sendo os valores estipulados conforme regras de mercado. Esses espaços po- dem ser voltados para a distribuição de produtos da indústria cultural, como fazem, em geral, as redes de cinemas de shoppings ou casas de sho- ws com grande capacidade de público, mas também podem distribuir produtos de consumo mais restrito, inclusive de nicho, como é caracte- rístico das galerias de arte e dos teatros onde se apresentam os artistas representantes do “bom teatro” ou da “boa música”, em geral a preços altos, que reproduzem a articulação qualidade/raridade, possibilitando apenas o acesso de um pequeno grupo a essa produção cultural. O tipo empreendedor compreende ainda espaços comerciais cha- mados de alternativos, devido ao caráter de sua programação, como os cinemas onde se exibem filmes que fogem ao esquema de produção/ um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 141 29/07/2019 14:34:12 1 4 2 m a r i a n a l u s c h e r a l b i n a t i e s p a c i a l i z a ç ã o d a s d i f e r e n t e s e x p r e s s õ e s c u l t u r a i s n a c i d a d e 1 4 3 distribuição blockbuster, feiras de artesanato, bares que oferecem shows de pequenos formatos, entre outros. Por optarem pela distribuição de bens culturais mais raros e consumidos por um grupo seleto de pessoas (capital cultural + capital econômico), esses espaços angariam grande prestígio nos meios formadores de opinião e são frequentemente noti- ciados como em risco de fechamento devido à sua baixa lucratividade. Porém, é importante notar que o que viabiliza esses espaços, em última instância, é seu caráter de empresa, mesmo que os critérios de progra- mação não sejam os mais lucrativos. Esta espécie de espaço, onde a característica central é o caráter em- preendedor – ou seja, finalidade econômica afinada com o ideário neoliberal –, serve também para pensar em espaços diversos que par- ticipam – ou tentam participar – da acumulação capitalista, adotando estratégias as mais diversas para que os produtos ou experiências que oferecem sejam consumidos por um público. Nesses casos, a Cultura no Singular, ou seja, os aspectos que se definirão como sendo culturais, são determinados pelo mercado, seja ele de massas ou de nichos. De uma forma diferente, não necessariamente vinculada à venda de mercadorias, os espaços culturais figuram como elementos impor- tantes nas estratégias de mercado informadas pela ideia de urbanismo empreendedor. Nesses casos, os espaços são pensados como recurso de marketing, seja em benefício da imagem de grandes empresas, seja na construção da imagem corporativa de cidades que, a partir do ideário de revitalização urbana, passam a contar com grandes equipamentos culturais construídos em função da requalificação de determinados trechos do território urbano. Nessa nova lógica de consumo cultural urbano, as grandes vedetes são tanto os novos equipamentos culturais, as franquias de museus com suas arquiteturas mo- numentais de ‘griffe’ de arquitetos do “star system” internacional – cada vez mais espetaculares e visados pela mídia e pela indústria do turismo –, que passam assim a ser âncoras de megaprojetos urbanos inseridos nos novos planos estratégicos, um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 142 29/07/2019 14:34:12 e s p a c i a l i z a ç ã o d a s d i f e r e n t e s e x pr e s s õ e s c u l t u r a i s n a c i d a d e 1 4 3 quanto os antigos centros históricos, que passam a ser requalificados para se trans- formarem em algo parecido com ‘parques temáticos’ ou ‘shoppings culturais’ para turistas, em um claro fenômeno de ‘disneylandização’ urbana generalizada.. (VAZ; JACQUES, 2003, p. 34, grifos do autor) O Museu do Amanhã, ícone do projeto Porto Maravilha na cida- de do Rio de Janeiro e da reforma urbana que preparou a cidade para os megaeventos dos últimos anos, é um bom exemplo para pensar a categoria dos espaços culturais empreendedores e seus tensionamentos. O Museu desenvolve uma série de ações gratuitas, programas de vi- sitação escolar, atividades voltadas para o público de moradores da região, entre outras que o aproximam à lógica de um Espaço de Acesso à Cultura. No entanto, desde sua concepção, este espaço cultural pode ser melhor caracterizado como um espaço empreendedor, já que figura como um dos elementos centrais do projeto de urbanismo empreen- dedor da cidade do Rio de Janeiro. Desta forma, destaca-se mais o seu papel na promoção da cidade, em especial do projeto Porto Maravilha, do que a sua atuação na difusão de determinadas formas culturais. No mesmo sentido, pode-se considerar também redes de espaços culturais como os Centros Culturais da Caixa Econômica Federal ou do Banco do Brasil, que oferecem exposições para visitação gratuita, mostras de cinema, espetáculos de teatro e música com ingressos ven- didos a preços populares – ou seja, menores que o valor de mercado praticado por outros equipamentos culturais da mesma região –, entre outras atrações. Esses Centros Culturais corroboram uma estratégia que vem sendo aplicada por várias instituições bancárias, dentre outras empresas de grande porte, onde o investimento na criação de espaços culturais é subsidiado através das leis de incentivo à cultura, basea- das na renúncia fiscal por parte dos governos. Nesses espaços, que em geral levam o nome da empresa em sua marca – Centro Cultural dos Correios, Itaú Cultural, Centro Cultural Oi Futuro, entre outros –, a cultura comparece como recurso na produção de um discurso-imagem um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 143 29/07/2019 14:34:12 1 4 4 m a r i a n a l u s c h e r a l b i n a t i e s p a c i a l i z a ç ã o d a s d i f e r e n t e s e x p r e s s õ e s c u l t u r a i s n a c i d a d e 1 4 5 da empresa junto ao seu público consumidor. Assim, os espaços cultu- rais patrocinados por grandes empresas, quando se aproximam da lógi- ca dos Espaços de Acesso à Cultura, não estão empregando capital em uma nova forma de negócio – a venda de serviços e produtos culturais –, mas sim investindo em marketing para fortalecimento do seu negócio de base. A proximidade à ideia de Cultura no Singular nesses casos é fruto desse direcionamento de marketing, importando mais a adequa- ção da programação a um tipo de produção cultural com cujos valores a imagem da empresa deve se assemelhar – nuances entre vanguarda e tradição, popular e erudito, etc. – do que as demandas candentes na sociedade em relação à expressão cultural dos seus diferentes grupos. E s p a ç o s d e a c e s s o à C u l t u ra (c o m C m a i ú s c u lo) A ideia de uma cultura única, cuidadosamente delimitada para ser “A” cultura em detrimento de outras expressões simbólicas, também está na base desta espécie de espaço, que, no entanto, prescinde do cará- ter mercadológico da espécie anterior. Nos Espaços de Acesso à Cultura, a produção cultural não é tomada como valor de troca, mas sim valor de uso. Dois aspectos a observar neste sentido: em primeiro lugar, que o entendimento da cultura como valor de uso não implica em que o es- paço tenha sempre ingressos gratuitos. Muitos equipamentos culturais públicos, por exemplo, costumam cobrar ingressos, porém a função dessa remuneração não é de geração de mais-valia e reprodução do ca- pital, mas somente de manutenção do funcionamento do espaço e de sua programação. Não se trata, portanto, na acepção marxista, de valor de troca, mas sim valor de uso. Outro aspecto a observar é que mesmo as trocas não monetizadas não implicam necessariamente a plena aces- sibilidade. Outros fatores, inclusive de ordem simbólica, condicionam a efetividade do acesso que esses espaços devem propiciar. Em se tratando de uma espécie de espaço cultural que tem como princípio o acesso, vale observar que este aspecto não se resume à ofer- ta ou à acessibilidade física a um conjunto de produtos culturais. Para um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 144 29/07/2019 14:34:12 e s p a c i a l i z a ç ã o d a s d i f e r e n t e s e x p r e s s õ e s c u l t u r a i s n a c i d a d e 1 4 5 que o acesso a esses produtos se realize, os agentes ou públicos devem dominar os códigos que possibilitam sua fruição ou ter a liberdade para subvertê-los, apropriando-se deles de acordo com os códigos que domi- nam. Caso contrário, a experiência do contato cultural será uma expe- riência de não significação. Se mesmo com programação gratuita ou a preços populares con- sideramos os espaços culturais financiados por empresas como espa- ços orientados pelo marketing, mais próximos, portanto, à lógica dos Espaços Culturais Empreendedores, os Espaços de Acesso à Cultura são, de modo geral, espaços produzidos pelo Estado. Ângelo Serpa, no livro O Espaço Público na Cidade Contemporânea (2007), discute os usos de espaços públicos que são produzidos pelo Estado em função do modo de vida de grupos da classe média, inclusive, em grande medida, visando a valorização imobiliária dos bairros onde esses grupos resi- dem e têm suas propriedades. O autor alerta para a multiplicação de espaços onde o sentido público vem sendo substituído pela apropriação excludente, ou seja, a apropria- ção por uma classe que determina com seus códigos culturais a inaces- sibilidade de outros grupos, fazendo dos espaços públicos uma justa- posição de espaços privatizados, onde os diferentes não compartilham o espaço, no máximo dividem entre si as suas porções. No espaço público da cidade contemporânea, o 'capital escolar' e os modos de consu- mo são os elementos determinantes das identidades sociais. Aqui, diferença e desi- gualdade articulam-se no processo de apropriação espacial, definindo uma acessibili- dade que é, sobretudo, simbólica. [...] Visto assim, acessibilidade e alteridade têm uma dimensão de classe evidente, que atua na territorialização (e, na maior parte dos ca- sos, na privatização) dos espaços públicos urbanos. (SERPA, 2007, p. 20) Os usos do espaço público na cidade contemporânea, como colocado por Serpa, contrariam a ideia lefebvriana de apropriação (LEFEBVRE, 2008), que pressupõe a liberdade de significação. Nos espaços um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 145 29/07/2019 14:34:12 1 4 6 m a r i a n a l u s c h e r a l b i n a t i e s p a c i a l i z a ç ã o d a s d i f e r e n t e s e x p r e s s õ e s c u l t u r a i s n a c i d a d e 1 4 7 supostamente acessíveis a todos, usos permitidos e socialmente acei- tos são definidos pela classe que, de dentro do Estado, produz a cidade à sua imagem e semelhança. Assim, “são as classes médias cultivadas os 'clientes' privilegiados dos equipamentos socioculturais, concebidos por elas e para elas, que são, ao mesmo tempo, os criadores, os gesto- res e os usuários dos espaços públicos urbanos”. (SERPA, 2007, p. 115) Nesse contexto, as políticas urbano-culturais que se empenham em pulverizar as cidades com equipamentos culturais, buscando superar a desigualdade de distribuição desses espaços, em geral concentrados nas áreas mais nobres e centrais,2 constroem frequentemente equipamen- tos públicos que não são apropriados pelos agentes culturais do lugar onde se instalam. Outra característica desta espécie de espaço é a consideração da Cultura no Singular, ou seja, a definição prévia, feita deforma centra- lizada, dos conteúdos simbólicos e formas de expressão a que o espaço cultural deve “dar espaço”. A categoria Espaços de Acesso à Cultura ser- ve para tratar daqueles espaços que se disseminam pelos territórios sem estabelecer relações de territorialidade, pois não partem dos desejos e práticas dos agentes culturais, mas sim de uma concepção próxima à ideia de democratização da cultura, segundo a qual se projetam espa- ços culturais como lugares de onde “a” cultura, ou seja, um conjunto de práticas delimitado por um poder, é oferecida à população, entendida então como um grupo que carece de cultura. Em relação à democratização cultural, que se tornou paradigmática na formulação de políticas culturais, retornando sempre nos discursos de autoridades políticas e intelectuais, assim como nos planos e progra- mas de governo, é importante notar que trata-se de um modelo funda- do na Cultura no Singular e na distinção elite/massa, com a intenção pedagógica de informar as massas através do acesso aos produtos cul- turais de uma elite. Os Espaços de Acesso à Cultura são os aparelhos através dos quais o Estado pode concretizar esse projeto pedagógico, daí a necessidade de sua boa distribuição, como resposta à tradicional um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 146 29/07/2019 14:34:12 e s p a c i a l i z a ç ã o d a s d i f e r e n t e s e x p r e s s õ e s c u l t u r a i s n a c i d a d e 1 4 7 concentração dos equipamentos culturais nos bairros nobres e centrais onde vive a população com maior capital cultural e escolar, público cos- tumeiro deste tipo de espaço. A distribuição dos equipamentos culturais pelas diferentes regiões e bairros das cidades, neste tipo de política, visa à distribuição para um público indistinto (a massa) de produtos elaborados por um seleto grupo de agentes culturais. Não corresponde, portanto, à percepção da multiplicidade de culturas e das diferentes demandas que apresentam para sua melhor expressão, ignorando as lutas pela significação da vida a que Certeau chamou Cultura no Plural. O mesmo se pode dizer quan- do os agentes produtores de espaços culturais (especialmente o Estado) procuram considerar o território, definindo, de cima e de fora, a sua vocação cultural – o conjunto de expressões e formas culturais típicos daquela população – e oferecendo espaços cuja forma e/ou gestão im- pedem sua apropriação pelos agentes culturais que poderiam elaborar outros esquemas de significação e expressão. Trata-se, de toda maneira, de espaços onde a cultura é entendida no singular, como um conjunto fechado, determinado por um poder situado fora (espacialmente) e aci- ma (politicamente) dos territórios. As pesquisas de Isaura Botelho, a partir dos equipamentos cultu- rais da cidade de São Paulo e das práticas culturais da sua população (BOTELHO, 2003; BOTELHO; FIORE, 2005), revelam a inocuida- de do modelo de democratização cultural e dos espaços culturais que produz como estratégia para a redução das desigualdades de acesso à cultura. Segundo a autora: Por algum tempo, acreditou-se que o essencial era construir centros de cultura ou incentivar a frequência a museus ou teatros, desenvolver políticas de facilitação de acesso à cultura que trariam, quase que automaticamente, uma resposta positiva da população antes excluída deste terreno. A experiência mostrou que isto não basta- va, e que uma mudança fundamental de paradigma era necessária: não se trata mais de se falar em democratização cultural, que foi o objetivo central da maioria das um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 147 29/07/2019 14:34:12 1 4 8 m a r i a n a l u s c h e r a l b i n a t i e s p a c i a l i z a ç ã o d a s d i f e r e n t e s e x p r e s s õ e s c u l t u r a i s n a c i d a d e 1 4 9 políticas culturais pelo mundo afora. Trata-se sim, de aceitar a diversidade de pa- drões de cultura e, considerado o conjunto do que é produzido e colocado à dispo- sição, observar de forma mais efetiva a existência de vários públicos. (BOTELHO, 2003, p. 2-3) Os Pontos de Cultura, principal ação do programa Cultura Viva, do Ministério da Cultura, representam uma mudança de paradigma im- portante em relação às políticas de democratização cultural. O plano inicial do Ministério, no início de gestão de Gilberto Gil, previa, ao in- vés do apoio às ações “na ponta”, a construção de grandes equipamentos culturais, as Bases de Apoio à Cultura (BAC), com um projeto arquite- tônico padrão, espalhados pelas regiões mais desprivilegiadas do país. A mudança gerou grande repercussão no campo da cultura, reorgani- zando em alguma medida as posições ocupadas pelos agentes do campo em função da entrada, nesse espaço legitimador, de novos agentes que até então não vinham sendo reconhecidos como produtores de cultura. Os Espaços de Acesso à Cultura voltaram à pauta, em 2009, com novas investidas na construção de redes de equipamentos culturais multifun- cionais, com gestão compartilhada com os Municípios.3 Outros exemplos permitem refletir sobre a problemática das polí- ticas formuladas de cima e de fora, que encontram dificuldades na lida com as diferentes territorialidades a que deveriam atender. As Arenas Cariocas, 4 da Prefeitura do Rio de Janeiro, inauguradas a partir de 2012, são quatro equipamentos culturais de grande porte, preparados tecni- camente para atividades de teatro, música, cinema, entre outras práti- cas artísticas. Em algumas fontes oficiais, o discurso sobre os espaços corresponde precisamente ao ideário da democratização cultural, colo- cando a cultura como algo externo àqueles a quem se quer possibilitar acessá-la. No entanto, a programação revela que os usos das arenas fo- gem frequentemente a um recorte mais elitista da produção cultural, o que sugere que, em alguma medida, os agentes produtores de cultura podem estar lutando pela apropriação daqueles espaços. um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 148 29/07/2019 14:34:12 e s p a c i a l i z a ç ã o d a s d i f e r e n t e s e x p r e s s õ e s c u l t u r a i s n a c i d a d e 1 4 9 C u l t u r a n o P l u r a l e a p r o d u ç ã o d e e s p a ç o s c u l t u r a i s Se, como vimos, a Cultura no Singular é a matéria dos espaços que en- xergam os agentes produtores de cultura e as relações de territorialida- de de cima e de fora, a Cultura no Plural é a matéria de outras ações que espacializam as múltiplas expressões culturais e territorialidades que envolvem os diferentes agentes sociais. Enquanto o Estado e o mercado elaboram suas políticas culturais, outros agentes produtores de cultura, aqueles que não fazem parte do prestigioso campo da cultura, mas que também buscam significar o mundo conforme seu universo simbólico, atuam buscando resolver ne- cessidades que os poderes hegemônicos não veem nem procuram aten- der, produzindo espaços apropriados, ou seja, inscrevendo no espaço as suas práticas culturais. Para pensar a cidade a partir desses espaços, produzidos fora ou em meio às regulações dos agentes hegemônicos, Lefebvre apresenta a no- ção de “utopia experimental” (LEFEBVRE, 1991), um instrumento in- telectual de investigação do cotidiano que consistiria em verificar na prática as implicações e consequências das experiências movidas por utopias. Em que medida, na experiência concreta dos sujeitos na cida- de, utopia e necessidade se articulam na espacialização das diferentes expressões culturais? Quais são e como funcionam os espaços que con- tribuem para a construção de uma Cultura no Plural? E s p a ç o s C u l t u ra i s I n s u rg e n t e s De início, é importante definir que a categoria Espaços Culturais Insurgentes trata de espaços “outros”, ou seja, aqueles que se diferen- ciam mais por estarem fora das formas e práticas a que se convencionou chamar “espaços culturais” do que por um conjunto próprio de carac- terísticas. Esta espécie de espaço serve para pensar na multiplicidadede espacializações da expressão cultural, qualquer que seja a sua for- ma. Portanto, Espaços Culturais Insurgentes podem surgir em meio a outros tipos de espaços, através, por exemplo, da apropriação de um um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 149 29/07/2019 14:34:12 1 5 0 m a r i a n a l u s c h e r a l b i n a t i e s p a c i a l i z a ç ã o d a s d i f e r e n t e s e x p r e s s õ e s c u l t u r a i s n a c i d a d e 1 5 1 Espaço de Acesso à Cultura por grupos insurgentes ou da criação de um espaço de encontro e de manifestação cultural em um parque, rua, meio de transporte público ou shopping center. Este tipo de espaço se concretiza quando os agentes produtores de cultura inventam espaços próprios, não no sentido da propriedade, mas no da apropriação, por não conseguirem ou mesmo por não desejarem se apropriar dos espaços culturais que o Estado e o mercado lhes ofere- cem. As insurgências, portanto, dizem sobre as necessidades e desejos dos grupos sociais, mas também apontam, em alguma medida, defi- ciências no atendimento pelos espaços culturais geridos pelo Estado ou pelo mercado, que podem ser identificadas pelos gestores a fim de tor- nar os espaços em que atuam passíveis de apropriação por esses grupos. A invenção desses espaços culturais, aqui caracterizados como in- surgentes, se realiza fundamentalmente de duas formas diferentes. Em primeiro lugar, através das táticas desviantes, de que nos fala Michel de Certeau, que são jogadas astuciosas dos “fracos” para se apropriar do mundo vivido aproveitando as brechas deixadas pelas estratégias do- minantes. (CERTEAU, 1994) Em segundo lugar, através das lutas pelo reconhecimento, ação dos grupos culturalmente subordinados que dis- putam o poder simbólico com os grupos dominantes, tendo como meta sua participação paritária na sociedade. (FRASER, 2007) A tática e a luta são, portanto, duas formas de insurgência possíveis àqueles que, de uma forma ou de outra, buscam praticar sua cultura, contribuindo para a construção de uma Cultura no Plural. A espacialização da expressão cultural dos diferentes grupos será bastante diferente conforme o tipo de ação priorizada, desde aquelas efêmeras e quase invisíveis, passando por persistências que aos poucos inscrevem no espaço urbano novas características, até as ações que vi- sam a legitimação de determinadas práticas culturais e de seus agentes, batalhando nas esferas política e midiática. Pensando de forma rela- cional, é importante destacar ainda o caráter impuro dessas formas de um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 150 29/07/2019 14:34:12 e s p a c i a l i z a ç ã o d a s d i f e r e n t e s e x p r e s s õ e s c u l t u r a i s n a c i d a d e 1 5 1 ação, que são frequentemente misturadas e relativizadas conforme as necessidades e desejos dos agentes. As táticas desviantes, conforme a formulação de Certeau (1995), são o contrário das estratégias, como o autor denomina a forma de ação dos fortes, que se pode considerar como sendo os agentes hegemônicos. Enquanto aqueles que detêm o poder em determinada circunstância produzem suas estratégias, visando a manutenção desse poder, aque- les que na mesma circunstância se encontram destituídos de poder, os “fracos”, como Certeau denomina, produzem suas táticas através da astúcia cotidiana. As táticas representam, para o fraco, a possibilidade de produzir experiências significativas em uma vida condicionada, em grande medida, pelas estratégias dos fortes. Essa ação “na brecha” é também uma forma de luta, porém não manifesta. As táticas desviantes não produzem um discurso, não pro- curam dar visibilidade às suas questões, nem têm como objetivo decla- rado o empoderamento dos seus sujeitos. No entanto, à sua maneira discreta, os fracos incomodam e subvertem as estratégias dominantes, transformando os espaços, como fazem os pedestres quando traçam seus caminhos na grama com a insistência das caminhadas, ignorando os caminhos de concreto que deveriam determinar seu trajeto. São as táticas do happy hour com churrasco e som mecânico que reú- ne dezenas de trabalhadores e estudantes às sextas-feiras para trocas que revelam a existência de outras identificações para além do trabalho ou estudo; dos sambas que periodicamente se instalam em determina- dos espaços da rua sem autorização, mas com público cativo e um es- quema de divulgação subterrâneo preciso; dos territórios juvenis que se realizam através da apropriação temporária de espaços públicos, onde adolescentes reunidos após o horário escolar expressam seus gostos, desejos e crenças. As lutas por reconhecimento, por outro lado, se baseiam no discur- so, na definição dos sujeitos, buscando revelar e colocar na pauta da sociedade a sua subordinação, visando superar essa condição através um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 151 29/07/2019 14:34:12 1 5 2 m a r i a n a l u s c h e r a l b i n a t i e s p a c i a l i z a ç ã o d a s d i f e r e n t e s e x p r e s s õ e s c u l t u r a i s n a c i d a d e 1 5 3 de ações não apenas distributivas, mas também afirmativas. Uma for- te violência simbólica mantém as diferentes posições dos agentes no espaço social, determinando suas possibilidades de produção do espaço físico e definindo aqueles espaços de que podem ou não se apropriar a depender dos capitais – econômico, cultural, social – que acumulam. Enquanto isso, as lutas por reconhecimento buscam transformar as estruturas que mantém os privilégios das elites e negam os direitos culturais dos grupos subordinados. As ações afirmativas, como a luta pela implementação de cotas para negros e indígenas nas universidades públicas brasileiras, exemplificam o tipo de ação formulada a partir de lutas por reconhecimento. Assim como a demanda pela inclusão paritá- ria de mulheres em diferentes instâncias representativas e deliberativas das políticas públicas. Essas lutas se espacializam, por exemplo, nos bares, casas de shows e outros espaços que acolhem os grupos da diversidade sexual e de gê- nero, onde esses agentes podem se expressar culturalmente sem sofrer os mesmos constrangimentos por que passam nos espaços não seg- mentados, nos quais são segregados. Nos bailes funk onde a juventude estigmatizada por sua condição de favelada, negra e pobre se expressa culturalmente produzindo um gênero musical singular, por vezes im- pregnado de discurso identitário, revelando artistas cuja absorção pelo mercado representa por si só uma fissura importante no status quo. Ou nos momentos em que um espaço de outro tipo – mais próximo à ló- gica republicana/distributiva ou à lógica de mercado – é tomado pela expressão de um grupo subordinado – um debate sobre racismo no ci- nema dentro de um grande festival, uma performance sobre violência contra a mulher em uma vernissage – estimulando a sua apropriação pe- los agentes desse grupo, mesmo que momentânea. James Holston, no livro Cidadania Insurgente (2013), afirma que o termo “insurgente” não possui um sentido normativo, não carre- ga em si um valor moral ou político inerente. A insurgência carac- teriza “uma contrapolítica, que desestabiliza o presente e o torna um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 152 29/07/2019 14:34:12 e s p a c i a l i z a ç ã o d a s d i f e r e n t e s e x p r e s s õ e s c u l t u r a i s n a c i d a d e 1 5 3 frágil, desfamiliarizando a coerência com que geralmente se apresen- ta”. (HOLSTON, 2013, p. 62) Pode-se chamar de insurgente qualquer processo ou ação que constrange a norma social, quebrando os acordos tácitos que vigoram no status quo e que naturalizam determinadas pos- turas e comportamentos sociais. A categoria Espaços Culturais Insurgentes trata, então, de ações que constroem uma “contrapolítica” cultural, questionando os espaços cul- turais produzidos pelo Estado e pelo mercado e constrangendo as políti- cas de Cultura no Singular com demandas e questões que nãopodem ser respondidas ou mesmo compreendidas corretamente de cima e de fora. E s p a ç o s “ f o r a d a c a i x i n h a ” Nessas considerações finais é válido ressaltar a impossibilidade de identificação total dos espaços culturais efetivamente realizados com quaisquer das espécies de espaços descritas acima. A tentativa de clas- sificar, de colocar nas “caixinhas” Espaço Cultural Empreendedor, Espaços de Acesso à Cultura e Espaços Culturais Insurgentes os espaços que conhecemos ou de que nos apropriamos em nossa vida co- tidiana pode mesmo ser irritante e certamente não é o que o texto re- comenda. Entre uma e outra categoria, existem centros culturais que procuram compartilhar a gestão com a comunidade do entorno, a fim de incorporar seus interesses e desejos; salas de cinema comerciais cuja programação assume também um caráter de formação, sem priorizar o retorno financeiro; salas multiuso cujo formato se presta às mais di- versas formas de expressão cultural; ocupação de espaços públicos em festas promovidas por marcas de cerveja, entre outros tantos exemplos que demonstram a impossibilidade de fazer corresponder, de maneira precisa, um espaço cultural efetivo com qualquer categoria analítica. As categorias formuladas para pensar nas diferentes formas de es- pacialização da expressão cultural servem como instrumento analítico dentro de uma perspectiva necessariamente dialética. Nesse sentido, um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 153 29/07/2019 14:34:12 1 5 4 m a r i a n a l u s c h e r a l b i n a t i e s p a c i a l i z a ç ã o d a s d i f e r e n t e s e x p r e s s õ e s c u l t u r a i s n a c i d a d e 1 5 5 os espaços culturais efetivamente realizados não podem ser enquadra- dos em um ou outro tipo, mas as práticas que os constituem podem ser tensionadas a partir dos modelos, em um esforço de reflexão sobre as possibilidades de espacialização das diversas expressões culturais que as cidades reúnem. A literatura sobre espaços culturais, assim como as políticas cultu- rais institucionais relacionadas a espaços desse tipo, tratam geralmente daqueles edifícios exclusivamente destinados a práticas artístico-cul- turais, mais identificados com a lógica de mercado ou com a lógica re- publicana/distributiva. Com a incorporação dos espaços culturais às estratégias de marketing de grandes empresas ou mesmo de algumas gestões governamentais, esses passam a ser afirmados e incorporados como modelos de bom atendimento pelos gestores culturais. No entan- to, o questionamento e a reflexão sobre esses espaços-modelo são um esforço cada vez mais necessário, diante das transformações da cultura na contemporaneidade, que desestabilizam antigas verdades do campo, revelando os privilégios e exclusões que operavam. Pensar políticas culturais a partir da diversidade cultural, compreen- dendo que as diferenças – de raça, gênero, classe, orientação sexual, re- ligião, etc. – estão na base da histórica desigualdade de distribuição de recursos e oportunidades na nossa sociedade, é um esforço urgente e as ações de política cultural – públicas, privadas, comunitárias... – que não o encaram correm o risco de se tornarem inócuas diante do fortaleci- mento dos grupos culturalmente subordinados nas disputas políticas e culturais. N o t a s 1 Recurso de comunicação adotado por gestões urbanas que, informadas pelo modelo de pla- nejamento estratégico, elaboram um discurso sobre as características que configurariam a “marca” de uma determinada cidade, visando a sua melhor inserção na competição global entre destinos turísticos e de investimentos capitalistas. um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 154 29/07/2019 14:34:12 e s p a c i a l i z a ç ã o d a s d i f e r e n t e s e x p r e s s õ e s c u l t u r a i s n a c i d a d e 1 5 5 2 A concentração dos espaços culturais urbanos nos bairros mais nobres e centrais das grandes cidades é observada por um bom número de pesquisas, a exemplo de; Alkimin, (2007); Botelho (2003); Barbosa da Silva (2007) Melo; Peres (2005); Nussbaumer; Rattes (2005) e Schvasberg (1989). 3 Inicialmente, em 2009, na gestão do ministro Juca Ferreira, teve início a implantação dos Espaços Mais Cultura, como parte do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que em 2010 passou a incluir a construção das Praças de Esporte e Cultura; em 2012, na gestão da ministra Marta Suplicy, o escopo da ação foi alterado, passando à construção dos Centros de Artes e Esportes Unificados (Ceus). 4 Arena Jovelina Pérola Negra, no bairro da Pavuna; Arena Dicró, na Penha; Arena Fernando Torres, em Madureira e Arena Chacrinha, em Guaratiba. Mais informações no site da Prefeitura do Rio de Janeiro: http://www.rio.rj.gov.br/web/smc/arenas. R e f e r ê n c i a s BOTELHO, Isaura. Os equipamentos culturais na cidade de São Paulo: um desafio para a gestão pública. Revista Espaço e Debates, São Paulo, v. 23. n.43-44. jan./dez. 2003. BOTELHO, Isaura; FIORE, Maurício. O uso do tempo livre e as práticas culturais na Região Metropolitana de São Paulo: relatório da primeira etapa da pesquisa. São Paulo: CEBRAP, 2005. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1994. (Artes de Fazer, 1) CERTEAU, Michel de. A cultura no plural. Campinas: Papirus, 1995. FRASER, Nancy. Reconhecimento sem ética? In: SOUZA, Jessé; MATTOS, Patrícia (org.). Teoria crítica no século XXI. São Paulo: Annablume, 2007. HARVEY, David. A justiça social e a cidade. São Paulo: Hucitec, 1980. HOLSTON, James. Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. LEFEBVRE, Henry. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2001. um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 155 29/07/2019 14:34:12 1 5 6 m a r i a n a l u s c h e r a l b i n a t i LEFEBVRE, Henry. A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. SERPA, Ângelo. O espaço público na cidade contemporânea. São Paulo: Contexto, 2007. VAZ, L. F.; JACQUES, P. B. A cultura na revitalização urbana - espetáculo ou participação?. Revista Espaço e Debates. São Paulo, v. 23. n. 43-44, jan./dez. 2003. um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 156 29/07/2019 14:34:12 A s c a s a s do centro antig o de S alv ador : um olhar sobr e tr ês espaços cultur ais a lternativos G o r d o N e t o * , V i t o r B a r r e t o * * , L u i z A n t ô n i o S e n a J r * * * , F e l i p e B e z e r r a * * * * , e L u i z G u i m a r ã e s * * * * * I n t r o d u ç ã o O centro antigo da cidade de Salvador, capital do es- tado da Bahia, tem, de maneira evidente na produ- ção cultural, uma das forças motrizes de sua energia vital. Seja pelas suas manifestações na vida cotidia- na, por meio dos carrinhos de café que constituem uma efetiva forma de difusão da produção musical * Ator, diretor e autor teatral, integrante do grupo Vilavox, cogestor da Casa Preta Espaço de Cultura. E-mail: gordoneto@gmail.com. ** Produtor e gestor cultural, integrante do grupo Vilavox, cogestor da Casa Preta Espaço de Cultura. E-mail: vitor.barreto.cultura@ gmail.com. *** Ator, diretor e produtor cultural, integrante d Á Outra Companhia de Teatro, cogestor da Casa d Á Outra. E-mail: luizantoniosenajr@ gmail.com. **** Artista visual, integrante do PAVIMENTO, cogestor da Casa Preta Espaço de Cultura. E-mail: filipebz1@gmail.com. ***** Ator, diretor e iluminador, integrante do Aldeia Coletivo Cênico, cogestor da Casa Preta Espaço de Cultura. E-mail: luizinhodemolay@ gmail.com. um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 157 29/07/2019 14:34:12 1 5 8 g o r d o n e t o , v i t o r b a r r e t o , l u i z a n t ô n i o s e n a j r . , f e l i p e b e z e r r a , l u i z g u i m a r ã e s a s c a s a s d o c e n t r o a n t i g o d e s a l v a d o r 1 5 9 local; seja pela vasta diversidade manifestada na conformação arqui-tetônica e urbanística nos diferentes bairros; ou mesmo pelo impacto do setor cultural na economia, a exemplo do carnaval e do ciclo de fes- tas de rua existentes na região, mais notadamente na Avenida Sete de Setembro e no bairro do Pelourinho. É patente afirmar também que a região central concentra um grande número de equipamentos culturais de tradição consolidada, a exemplo do Teatro Castro Alves, Teatro Vila Velha, Museu de Arte Moderna, Caixa Cultural, Casa de Jorge Amado, Instituto Cultural Brasil-Alemanha, dentre vários outros. Correndo por fora, nos últimos anos, tem ganhado força e destaque na cena cultural do centro antigo uma nova modalidade de equipamento cultural, os chamados “espaços alternativos”. Estes espaços, com traços similares, mas também com identidades muito particulares, são, majoritariamente, geridos por gru- pos de artistas e/ou profissionais ligados à produção e à gestão cultural. Tais lugares parecem oferecer guarida àqueles – públicos e artistas – que veem, na relação mais íntima, uma forma de (re)descobrir a co- munhão perdida entre estes dois lados: o que produz e o que consome. E mais: eles – artistas e públicos – muitas vezes se confundem, se mis- turam, trocam de posição. Consolidados ou não, formalizados ou não, perenes ou sazonais, os espaços alternativos resistem, normalmente buscando vínculos com seu entorno para provar que ali é possível criar, difundir, inovar e promover atividades ligadas às artes e à cultura em geral. Teatro, dança, música, artes visuais, audiovisual, fotografia, artes integradas, performances, festas, atividades formativas, debates, expe- rimentos, incubadoras de projetos, pouso para artistas em intercâmbio, interlocuções e parcerias com festivais, mostras, eventos, gastronomia: tudo cabe. Muitas vezes são os espaços alternativos da cidade que proporcionam aos artistas mais jovens a possibilidade de mostrar seu trabalho. Muitas vezes é nos espaços alternativos que surge aquela banda, que um even- to realizado toda sexta-feira “pega”, que se torna possível apresentar um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 158 29/07/2019 14:34:12 a s c a s a s d o c e n t r o a n t i g o d e s a l v a d o r 1 5 9 aquela peça que não cabe em nenhum outro lugar senão numa pequena sala intimista, onde palco e plateia se misturam. Dentre tantos, escolhemos três deles, localizados na região central de Salvador - a Casa Preta, no bairro Dois de Julho, a Casa d´A Outra, no Politeama e o Centro de Artes Aboca, no bairro Santo Antônio Além do Carmo – para lançarmos um olhar revelador e questionador sobre suas características, seu histórico, seus modos de gestão e produção e sobre aqueles que fazem estes espaços (sobre)viverem ao longo do tempo. Por conseguinte, tal reflexão busca também compreender o papel des- tes espaços para os artistas que os frequentam e que os administram, a comunidade onde estão inseridos e os seus públicos. A C a s a P r e t a A Casa Preta está situada no bairro Dois de Julho e fica próxima ao Colégio Ipiranga e ao Museu de Arte Sacra. Trata-se de um sobrado ori- ginalmente residencial, de três andares, construído por volta dos anos 1930, conhecida e batizada assim pelos moradores da rua por causa de sua fachada escura, sendo gasta pela ação do tempo. Desde 2009, pas- sou a ser usada por grupos artísticos para realizarem ensaios e apre- sentações e também como escritório. Passaram por lá inúmeros cole- tivos, seja por longos períodos, seja para a realização de projetos mais pontuais. O Núcleo Vagapara, o Groove Studio Teatral, o Teatro Base e a Companhia. Teatro da Casa – criada lá, em 2012 – são alguns exemplos. Dos que se instalaram permanentemente e estão ocupando o espaço, até o momento em que elaboramos este artigo, temos o Vilavox, desde 2010, no piso térreo; o Aldeia Coletivo Cênico, desde 2014, no subsolo/ jardim; o Atelier Cenográfico Mauricio Pedrosa, desde 2011, também no subsolo/jardim e o Pavimento, há dois anos, no andar superior da casa. Essa diversidade na ocupação é que resulta numa programação cultural múltipla, com atividades artísticas de diversos formatos. um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 159 29/07/2019 14:34:13 1 6 0 g o r d o n e t o , v i t o r b a r r e t o , l u i z a n t ô n i o s e n a j r . , f e l i p e b e z e r r a , l u i z g u i m a r ã e s a s c a s a s d o c e n t r o a n t i g o d e s a l v a d o r 1 6 1 Antes da conformação atual, com os três grupos artísticos e o atelier de cenografia, muitos formatos de gestão, programação e ocupação fo- ram experimentados. Apenas como forma de situar cronologicamente e ajudar a organizar a memória do espaço desde 2009, pontuamos al- guns momentos ou movimentos dessa história. Não são ciclos estan- ques. Um se confunde com o outro, há espaços de interseção entre eles, concomitâncias. O s c iclos d e o c up a ç ão, p rog ra m a ç ão e g e s t ão d a C a sa P re t a g e s ta ç ã o , n a s c i m e n t o e e s t r e i a (2 0 0 9/ 2 0 1 0) Após mais de quatro anos fechada, sem uso, a Casa Preta é “achada” por quatro amigos idealistas: Felipe Barroco, Daniel Gallo, Ciro Sales e Isaac Barbosa. Eles queriam montar um “bar cultural” e viram na Casa Preta esse potencial. O imóvel pertencia ao arquiteto Sergio Ekerman e com a chegada dos quatro amigos que passaram a ser os gestores da casa, indepen- dentemente de eles próprios tocarem o projeto de fazer dali um espaço cultural, logo foram chegando artistas que procuravam salas de ensaio, espaço para reunião ou para guardar material. O Núcleo Vagapara foi o primeiro grupo que usou a casa para en- saiar. Estavam à procura de espaço para criar seus sete solos indepen- dentes que, reunidos, resultariam em Fragmentos de um só, com estreia prevista para dali há alguns meses. Concomitante aos ensaios, em 17 de outubro de 2009 realizam o Open House Casa Preta, com vídeo-dança, exposições e música experimental. À medida que os ensaios avançaram, o Núcleo Vagapara percebeu que seu Fragmentos de um só havia achado o espaço certo para reali- zar temporada: a mesma Casa Preta, onde já ensaiavam. Em 12 de março de 2010 estreiam, ao mesmo tempo, o espetáculo do Vagapara e a Casa Preta - de forma mais “oficial”. Sobre este trabalho, um dia antes da es- treia, lê-se no jornal A Tarde: um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 160 29/07/2019 14:34:13 a s c a s a s d o c e n t r o a n t i g o d e s a l v a d o r 1 6 1 Para mostrar algo profundo como a alma, talvez fosse mesmo necessário ir além dos palcos dos teatros como fez o Núcleo. As apresentações acontecerão nos cô- modos da Casa Preta, no Dois de Julho, que abrigou o espetáculo. No passado, a casa era o lar de uma família e, ultimamente, é administrada por quatro jovens ávi- dos por transformá-la num espaço cultural. (PAIVA, 2017, s/p) Neste primeiro ciclo, em que estavam envolvidos os gestores da casa e o Vagapara, a concomitância entre a estruturação física do imóvel no pavimento superior e no subsolo - sobretudo o quintal – e o lançamento do espaço, abrindo para o público, marca a vocação da Casa Preta, já em sua origem, de ser um espaço em constante mutação, onde as obras – tanto as de arte e quanto as de reforma (elétrica, hidráulica ou a jardina- gem) se equivalem em importância. Tudo é criação. Em algum dia enso- larado lê-se, também em um e-mail trocado entre os gestores da Casa, a seguinte mensagem de Daniel Gallo (2009): “Molhei a grama hoje de manhã e vi que o marceneiro adiantou o serviço um pouco mais: agora temos menos uma janela caindo!”. u m s o b r a d o d e t r ê s a n d a r e s (2 0 1 0/ 2 0 1 2) O segundo ciclo vem com a chegada de dois grupos de teatro na Casa, o Vilavox e o Base, ambos entraram em 2010, em abril e julho, respecti- vamente. Em seguida, já em setembro de 2011, o subsolo é ocupado por Maurício Pedrosa, que monta ali seu Atelier Cenográfico: a ocupação da casaé total. Quando o Vilavox chegou à Casa Preta as portas e janelas do térreo, pavimento que viriam a alugar, estavam muito deterioradas ou não existiam. Ainda não havia luz elétrica neste piso. Os primeiros meses foram utilizados muito mais para cuidar do espaço: limpeza, pintura, reparos. O grupo, já com intenção de ficar ali de forma mais duradoura, propôs uma ocupação perene e assumiu o pavimento inteiro – o que não era, à época, a proposta de ocupação vigente, que funcionava com grupos e artistas fazendo ensaios esporádicos ou com projetos de dura- ção determinada. Egresso do Teatro Vila Velha, o Vilavox intuía que era um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 161 29/07/2019 14:34:13 1 6 2 g o r d o n e t o , v i t o r b a r r e t o , l u i z a n t ô n i o s e n a j r . , f e l i p e b e z e r r a , l u i z g u i m a r ã e s a s c a s a s d o c e n t r o a n t i g o d e s a l v a d o r 1 6 3 preciso apostar numa relação mais radical com o espaço, pois carregava consigo um volume enorme de cenários, figurinos e equipamentos de suas antigas peças, além de um acúmulo simbólico que precisava en- contrar eco em um espaço “inexplorado”, onde o grupo pudesse se re- inventar depois de quase dez anos residente do Vila. Em 2 de outubro de 2010, o grupo “inaugura” a sua nova sede oferecendo uma feijoada e, em 25 de fevereiro de 2011, faz seu Carnavilavox, um pré-carna- val que fez a casa tremer, literalmente. Somente em 2012 é que estreia O Segredo da Arca de Trancoso, primeiro espetáculo teatral montado pelo grupo após sua chegada em sua nova morada. O Teatro Base estreou e fez várias temporadas de Arbítrio (primeiro experimento) em dezembro de 2010, peça que rendeu premiação como Grupo Revelação pelo Prêmio Braskem de Teatro.1 Em sua passagem pela Casa Preta, o grupo, junto com outros coletivos, promoveu, em outubro de 2012 o Empuxo - Zona de Encontro de Artes Cênicas, que, segundo release, era [...] uma celebração da cena artística emergente da cidade de Salvador. O encontro acontece no bairro Dois de Julho, entre 19 e 27 de Outubro, onde diversos artistas realizarão apresentações, exposições, performances, entre outras formas de ex- pressão artística. Serão ocupados centros de cultura, casas, colégios, bares, ruas e praças do bairro já conhecido pela sua efervescência cultural. (EMPUXO, 2012) O Atelier Cenográfico Mauricio Pedrosa é o espaço onde o artista e professor da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia (UFBA) cria, produz e guarda seus cenários e adereços, inclusive para atividades desenvolvidas na própria casa, como peças dos grupos residentes e am- bientações para festas e eventos. Lá também são oferecidas oficinas de bonecos e máscaras, apoio para montagem de espetáculos e eventos e outras atividades culturais, sejam elas integradas aos demais coletivos ou de forma independente. um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 162 29/07/2019 14:34:13 a s c a s a s d o c e n t r o a n t i g o d e s a l v a d o r 1 6 3 A casa ganha contornos mais definidos: grupos se estabelecem lá e a frequência de atividades aumenta. Neste período, as primeiras expe- riências de coprodução entre os artistas residentes e os gestores come- çam a aparecer, aumentando a potência das atividades e diversificando seu público. Na divulgação de um desses eventos, lemos: A Casa Preta, juntamente com seus grupos residentes - Vilavox, Teatro Base, Atelier Cenográfico - e em parceria com artistas independentes e o Coletivo Nomedacousa, realizaram no dia 21 de abril de 2012 o primeiro Saraufarofa, movimentando de forma concomitante todos os 03 pavimentos da Casa Preta, mediante a reunião de artistas com diversas formas de expressão e linguagem, em uma festa de experi- mentação artística e independência criativa. (BARROCO, 2009) p o r ta q u e a p o n ta p a r a d e n t r o e p a r a f o r a (2 0 1 2 / 2 0 1 4) O ano de 2012 foi farto: é criada a Companhia Teatro da Casa, du- rante a montagem de Dissidente, peça ensaiada e apresentada numa pequena sala do térreo, que levou as premiações de “Melhor Direção” e “Melhor Atriz” pelo Prêmio Braskem; o Vilavox estreia seu O Segredo da Arca de Trancoso, também premiado como “Melhor Espetáculo Infantojuvenil”, e o Teatro Base dá à Casa Preta, por meio do blog Ratoeira Cênica, o título de “Melhor Espaço não Convencional do Ano”. Este reconhecimento inicial vindo da classe artística se soma ao fato de, por meio de O Segredo da arca de Trancoso, o Vilavox ganhar as ruas do bairro, num cortejo que começa em frente à casa, passeia pelas vielas do entorno e alcança o terreno de esquina, fazendo com que os morado- res do bairro passassem a integrar, ainda que de maneira tímida, um dos públicos potenciais e efetivos daquele equipamento. O Segredo foi um marco na relação dos artistas da Casa Preta com seus vizinhos. As crian- ças assistiam seguidamente ensaios e apresentações do espetáculo, os adultos passaram a reconhecê-los como “o pessoal do teatro”, a curiosi- dade chegou: “quem são eles?”, “o que querem fazer aqui?”, “compraram um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 163 29/07/2019 14:34:13 1 6 4 g o r d o n e t o , v i t o r b a r r e t o , l u i z a n t ô n i o s e n a j r . , f e l i p e b e z e r r a , l u i z g u i m a r ã e s a s c a s a s d o c e n t r o a n t i g o d e s a l v a d o r 1 6 5 a velha casa preta?”. Assim, da curiosidade veio a aproximação, conhecer a casa, discutir sobre problemas como lixo, violência etc. Jarbas Bittencourt, músico, cofundador do Vilavox e diretor musical de todos os seus espetáculos flagra, com muita sensibilidade, numa de suas canções de O Segredo da Arca de Trancoso, o momento de mudança do grupo: Se a Casa guarda a alma do caminho/E a mala leva o seu dono pela mão/Se a porta aponta para dentro e para fora/E o peito leva o seu dono coração/Se o rosto é que é a chave do espelho/Quem é que abre o cofre que revela?/Quem é aquele que é o dono do Segredo?/Todo mundo ou qualquer um.2 ( BITTENCOURT, 2012) Com a casa “arrumada”, a gestão do espaço, que antes tinha uma participação mais modesta dos grupos, passa a ser mais compartilha- da e, em janeiro de 2014, o Vilavox, o Atelier Cenográfico e os gestores da casa, juntos, iniciam o projeto Dinamização da Casa Preta,3 que re- sultou em oito meses ininterruptos de atividades artísticas, de sexta a domingo. Esse foi um grande impulso para inscrever, definitivamente, a casa no roteiro cultural da cidade. Soma-se a esse projeto de dinamização outros que também colabo- raram para a consolidação da Casa Preta. Entre eles, destacam-se três editais4 em que o Vilavox garantiu a manutenção de suas atividades, muitas delas realizadas na sede. Parte dessas atividades, tais como apre- sentações, oficinas, lançamento de revista, aulas e ensaios ocupavam boa parte do tempo e do espaço da Casa Preta e fizeram com que mui- ta gente, artistas e público, frequentasse a casa, ajudando, portanto, na dinamização de sua programação. Um dos itens orçamentários des- ses projetos era justamente o aluguel de sede e, portanto, o grupo pôde pagar pelo espaço ao longo de três anos consecutivos, de 2014 a 2016. Neste período, o grupo já falava da possibilidade de comprar a casa e conversas com o proprietário foram iniciadas. Somente em junho de 2017 é que um dos integrantes do Vilavox consegue um acordo e assina um contrato de compra e venda. um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 164 29/07/2019 14:34:13 a s c a s a s d o c e n t r o a n t i g o d e s a l v a d o r 1 6 5 Figura 1 – O Segredo da Arca de Trancoso Créditos: Liria Morays. Figura 2 – Tropical selvagem Crédito: Tiago Lima. um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 165 29/07/2019 14:34:15 1 6 6 g o r d o n e t o , v i t o r b a r r e t o , l u i z a n t ô n i o s e n a j r . , f e l i p e b e z er r a , l u i z g u i m a r ã e s a s c a s a s d o c e n t r o a n t i g o d e s a l v a d o r 1 6 7 n o s s o b a i r r o é d o i s d e j u l h o (2 0 1 4 / 2 0 1 7) O quarto ciclo, o mais recente, inicia-se com dois acontecimen- tos de grande relevo: a chegada do Aldeia Coletivo Cênico, em 2014, para dividir o subsolo com o Atelier Cenográfico e, no ano seguinte, o Pavimento, formado por quatro artistas, instalado no piso superior, lo- cal antes ocupado pelo Teatro Base e pela Companhia de Teatro da Casa. Estes, junto com o Vilavox completam a conformação atual da casa. O Aldeia Coletivo Cênico se dedica à promoção de iniciativas de formação e criação artísticas que fortaleçam o combate ao racismo, à intolerância religiosa, sexismo, feminicídio, homofobia, lesbofobia, transfobia e degradação ambiental. Tendo mantido uma programa- ção continuada e intensa nos últimos três anos, cruzando as mais di- versas linguagens, o grupo mantém em funcionamento a Biblioteca Comunitária Itajuípe, promove anualmente o “Fórum de Técnicos e Iluminadores da Bahia” e, em 2017 recebeu o “Selo Caymmi de Música” pela sua contribuição à música independente soteropolitana. O Aldeia emplacou, seguidamente, dois projetos de dinamização de programa- ção, conquistados por meio de editais públicos da Secretaria de Cultura do Estado da Bahia.5 O grupo mais recente na Casa, o Pavimento – formado por Filipe Bezerra, Filipe Cartaxo, Lucas Mucarzel e Ícaro Matos – trouxe uma nova movimentação e novas perspectivas para o espaço, aproximando- -o do campo das artes visuais e do audiovisual. O coletivo opera dife- rentes linguagens como base artística potencial para prática da criativi- dade. Conceitualmente, é também um atelier aberto às possibilidades de intervenção de outros artistas. um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 166 29/07/2019 14:34:15 a s c a s a s d o c e n t r o a n t i g o d e s a l v a d o r 1 6 7 Figura 3 – Aldeia Coletivo Cênico Crédito: Ana Luiza Abreu. O Pavimento reside no local há dois anos, com trabalhos que vão desde a elaboração de pinturas até a produção de vídeo e fotografia. Mucarzel, por exemplo, desenvolve trabalhos no campo das artes plás- ticas, intercalando a pintura, a escultura e a fotografia. Icaro Matos, também artista plástico, tem pesquisado a aplicação de materiais varia- dos, dentre outros, o ouro e a madeira - uma cartografia de texturas. Para Ícaro, a diferença entre um espaço cultural alternativo e os espaços culturais convencionais, “é a transversalidade de linguagens e liberda- de de produção. Isto movimenta, fomenta, deforma e reforma a maneira de se produzir arte no contexto da cidade, e, sobretudo a relações com o público que são estabelecidas neste movimento”.6 Entre cenários, fotografias, objetos e pinturas, Bezerra e Cartaxo já conduziram no espaço a produção de três videoclipes do grupo BaianaSystem (“Playsom”,7 “Invisível”8 e “Capim Guiné”)9. A pro- dução de Invisível utilizou a Rua Areal de Cima como locação, e todo o material foi rodado nos espaços internos da Casa. Com exceção de . um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 167 29/07/2019 14:34:16 1 6 8 g o r d o n e t o , v i t o r b a r r e t o , l u i z a n t ô n i o s e n a j r . , f e l i p e b e z e r r a , l u i z g u i m a r ã e s a s c a s a s d o c e n t r o a n t i g o d e s a l v a d o r 1 6 9 BNegão, todo o elenco foi formado por moradores do bairro - crianças entre 7 e 12 anos. Mucarzel acredita que a grande diferença entre um es- paço como a Casa Preta e os chamados “espaços convencionais”, “é exa- tamente a inter-relação com o bairro. Ainda que não seja uma ação co- tidiana, mas em eventos pontuais, a postura de ser aberta ao bairro, em oposição ao comportamento dos espaços convencionais, “fechados”, é o que a torna especial”.10 Em “Capim Guiné” a integração deu-se também entre os grupos da Casa. O elenco contou com a participação do Aldeia e, na produção dos cenários, em especial com a luz, contamos com o trabalho de Fred Alvin, que ali representava o Vilavox. Essa experiência reforçou mais uma vez como pode ser rica a produção que resulta da união dos grupos artísticos residentes no local. Difícil contabilizar a quantidade de coletivos, artistas e outros tra- balhadores da área da cultura que passaram pela Casa Preta. Difícil enu- merar tantos eventos, intercâmbios e parcerias realizadas. A informali- dade do espaço colabora para que este levantamento seja precário, algo que os projetos patrocinados, quando acontecem, ajudam a melhorar, haja vista a necessidade de coletar dados como quantitativo de público, apresentações, de fotografar e filmar os eventos para efeito de prestação de contas ou apresentação de relatórios. Vale ressaltar, mais uma vez, o caráter múltiplo da casa. Já funcionou como espaço para hospedar artistas - abrigou, por exemplo, o nume- roso grupo Antagon, da Alemanha, durante semanas num projeto de intercâmbio com o Vilavox; foi locação para vários filmes, entre eles, o longa metragem Depois da Chuva, quando ficou “fechada” por quase um mês; já recebeu os vizinhos para uma reza de Santo Antônio; já re- cebeu oficinas como a de Palhaçaria, com Alexandre Casali e apresen- tações de espetáculos da Bahia e de outros estados, como Dizer e Não Pedir Segredo (Teatro Kunyn, São Paulo); foi palco de shows de Jarbas Bittencourt, Sandra Simões, Pedro Morais, Gazumba, Pirombeira, Paquito; realizou lançamento de livros, debates, encontros e festas. um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 168 29/07/2019 14:34:16 a s c a s a s d o c e n t r o a n t i g o d e s a l v a d o r 1 6 9 A casa, portanto, está em todos os elos da cadeia produtiva das artes: criação, fruição, difusão, circulação e consumo. Nos últimos anos, a interação entre os grupos e deles com a comu- nidade se radicalizou. A ação conjunta mais potente realizada pelos artistas da Casa, com o apoio da comunidade, foi o “Arraiá da Areal”. Bandeirolas nas ruas, música ao vivo, comes e bebes, brincadeiras para as crianças e pintura das fachadas culminaram com uma “festa de lar- go” típica. A rua lotou! Figura 4 – Arraiá na Areal Crédito: Nuno Nascimento. De maneira mais contundente vimos que a Casa Preta saiu pela sua própria porta para uma comunhão mais efetiva com o bairro. Agora não apenas mostrávamos nossos espetáculos para eles (os vizinhos), fazía- mos com eles. Estavam ali os moradores vendendo comidinhas, orga- nizando as brincadeiras para as crianças, ajudando na ornamentação. Ouvimos a noite toda: “quando vai ter outra festa?”. um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 169 29/07/2019 14:34:18 1 7 0 g o r d o n e t o , v i t o r b a r r e t o , l u i z a n t ô n i o s e n a j r . , f e l i p e b e z e r r a , l u i z g u i m a r ã e s a s c a s a s d o c e n t r o a n t i g o d e s a l v a d o r 1 7 1 Este círculo cultural do centro da cidade, no qual o Dois de Julho está inserido, tem equipamentos importantíssimos como a Caixa Cultural, o Teatro Gregório de Matos, o Centro Cultural da Barroquinha, o Cine Glauber Rocha, além de instituições mais próximas como o Bahia Street e a Associação de Capoeira Angola Navio Negreiro (Acanne), situados na Rua do Sodré, a mesma do suntuoso Museu de Arte Sacra, já mais próximo à Ladeira da Preguiça. Nos enxergamos fazendo parte de um movimento maior, que é este, onde pequenas iniciativas podem fazer grandes revoluções. A Casa Preta se coloca enquanto um espaço alterna- tivo porque se apresenta como opção aos artistas e público, para além do circuito comercial tradicional de entretenimento cultural. Além disso, ainda em 2019 (seria o início de um novo ciclo?), o Aprendizes da Cena – um programa de formação em artes cênicas em parceria com o Mercado IAÔ, na Ribeira – deve ser iniciado na Casa Preta, que passará por uma reforma, possibilitando que 100 jovens tenham800 horas/aula e parti- cipem de mostras e espetáculos ao longo do curso. A C a s a d ’ A O u t r a A ocupação d’A Outra Companhia de Teatro, no Centro Comercial Politeama, começa em meados de 2013, quando o grupo sai do Teatro Vila Velha e monta sua sede própria. Desde então, muitas são as ações desenvolvidas no espaço, como a realização de shows musicais, perfor- mances e espetáculos cênicos, seja no calçadão em frente ao Instituto Feminino da Bahia ou pelas ruas do bairro – construindo espaços de convivência e apreciação artística. Nestes quatro anos de ocupação, destacam-se, entre as atividades realizadas pela companhia, o show performático Música de Quinta, os espetáculos O que de você ficou em mim, Ruína de Anjos, que se realiza de maneira itinerante pelas ruas do bairro, além da ação formativa Laboratório de Atores. um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 170 29/07/2019 14:34:18 a s c a s a s d o c e n t r o a n t i g o d e s a l v a d o r 1 7 1 Figura 5 – A Outra Companhia de Teatro Crédito: Andréa Magnoni. Assim que A Outra Companhia de Teatro chegou à sua sede, um primeiro movimento foi justamente o de aproximação com os morado- res e comerciantes do entorno, convidando-os a conhecer o espaço por meio de cartas entregues nas lojas e apartamentos, a fim de comparti- lhar a programação do espaço, expor processos criativos realizados na rua, alicerçar afetos e parcerias. Ainda que não se possa contabilizar em números, acreditamos que essa forma de nos aproximar daquele terri- tório gerou, à época, uma boa impressão da nossa recente presença. Pouco a pouco foram realizadas ações dentro do espaço, no calçadão e nas ruas. Conforme as necessidades de cada ação, novas cartas eram enviadas e buscava-se diálogo com os pares do bairro. Vez ou outra apa- rece um morador para conhecer o espaço, já com os comerciantes a re- lação é mais direta e franca. A companhia tem o apoio, por exemplo, da Academia Aquarius, Disk-Água Brunu’s e Nilson do Acarajé, além um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 171 29/07/2019 14:34:21 1 7 2 g o r d o n e t o , v i t o r b a r r e t o , l u i z a n t ô n i o s e n a j r . , f e l i p e b e z e r r a , l u i z g u i m a r ã e s a s c a s a s d o c e n t r o a n t i g o d e s a l v a d o r 1 7 3 dos mercados, que apoiam, às vezes, com camarim e das costureiras, que reduzem o valor dos serviços. O Música de Quinta, evento realizado desde 2014, que mistura mú- sica e performance cênica, com muita irreverência, sempre às quintas- -feiras, foi a ação que fez com que o bairro abraçasse de fato o grupo. Mas, nem tudo são flores! Depois de um tempo realizando os shows ao ar livre, atraindo tantas pessoas do bairro e de outros lugares da ci- dade, os vizinhos começaram a demonstrar incômodo, especialmente por conta do barulho – mesmo terminando tudo antes das 22 horas. Foi quando o número de shows foi reduzido e optou-se por realizá-los mais dentro da sede, em vez de no calçadão. Se, por um lado, observa-se que as pessoas que moram ou trabalham próximo ao espaço passam a ter uma alternativa para acessar produtos culturais, por outro, nota-se que é preciso conquistá-las e isso, na maio- ria das vezes, é uma batalha. Ainda que não se tenha realizado pesquisas de público para confirmar a tese, é perceptível, pelas falas e conversas, que muitos dos vizinhos da Casa d Á Outra os conhecem pelo Música de Quinta e por verem passar o Ruína de Anjos, mas poucos são os que efeti- vamente assistiram a uma obra do grupo ao longo desses quatro anos de ocupação. Todo o tempo é preciso pensar em como atrair esses públicos. Os artistas locais têm, cada vez mais, reconhecido a Casa d´A Outra como local de apresentação de atividades artísticas, mas a procura ainda é pequena, talvez pelo tamanho físico do espaço, o que acaba propician- do muito mais a realização de ensaios do que exibições, visto que são poucos os que têm se debruçado numa pesquisa artística para espaços não convencionais. Programação e curadoria, portanto, são duas pa- lavras-conceitos que ainda não permeiam muito o universo de gestão da casa. Não que não se pense nisso, mas não há muita demanda para avaliar, escolher. O que ocorre é que a maior parte da programação é protagonizada por atividades do próprio grupo – espetáculos, shows, intervenções, oficinas. O que acontece “de fora” vem justamente da- queles que são pares no desenvolvimento de ações do grupo, tanto para ensaios quanto para apresentações. Ou seja, são artistas com os quais um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 172 29/07/2019 14:34:22 a s c a s a s d o c e n t r o a n t i g o d e s a l v a d o r 1 7 3 A Outra dialoga e acredita no trabalho de modo potencial, que já che- gam afinados com o pensamento de validação da sede como espaço para o desenvolvimento de atividades artísticas, seja de que tipo for. A meta é manter o espaço aberto, com atividades que atravessem o bairro, mo- vimentem o prédio e que se afinem com a ação artística, social, política, cultural da companhia. A Casa d`A Outra proporcionou também uma nova relação da Companhia com o espaço cênico. Os atores estavam ali e o que tinham era uma sala de um centro comercial, corredores e a rua… Desde a mu- dança para o Politeama, o processo criativo foi potencializado, uma vez que foi possível montar a cena de modo integral, com “cenografia”, luz, som, além de marcas físicas, jogos de interpretação e apoios vo- cais. Quando a peça estreia já foram testados, antes, todos os recursos criativos - coisa que nos espaços convencionais se dá nas vésperas da apresentação e desdobra-se, ao longo da temporada, o amadurecimento e apropriação do espaço da cena. Nem toda obra concebida na e para a sede é possível de ser adapta- da para ser apresentada em um espaço convencional. O espetáculo O que de você ficou em mim, que teve origem na sede, também é realizado em escolas e mesmo em teatros convencionais tranquilamente. O mes- mo não é possível com o Ruína de Anjos - porque colocá-lo num espaço convencional destrói sua pesquisa e conceito criativo - é preciso a rua, a cidade, os transeuntes para a obra acontecer. A b o c a : o a l t e r n a t i v o d o s a l t e r n a t i v o s Criado por um fotógrafo publicitário e morador do bairro Santo Antônio, o centro de artes Associação Baiana e Observatório de Cultura e Arte (Aboca) pode ser definido como um lugar que preza pela f luidez, tanto do ponto de vista do espaço quanto de quem o produz e consome. Existente desde 2011, esse espaço ocupa um casarão antes ficava abando- nado na Rua dos Marchantes, nº 12. Foi o quinto local a ser ocupado, pois um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 173 29/07/2019 14:34:22 1 7 4 g o r d o n e t o , v i t o r b a r r e t o , l u i z a n t ô n i o s e n a j r . , f e l i p e b e z e r r a , l u i z g u i m a r ã e s a s c a s a s d o c e n t r o a n t i g o d e s a l v a d o r 1 7 5 as “invasões” anteriores tiveram que ser devolvidas após intervenção dos donos oficiais. Desde o momento da ocupação, o espaço vem sendo reconstruído quase que totalmente através de material reciclado. Segundo as palavras de Vinicius Lima, idealizador do local, apenas cimento e fio foram comprados, os demais materiais que compõem a “cenografia” fo- ram adquiridos através de doações e pequenas trocas. A utilização de ma- terial reciclado não prejudica um pensamento sobre a necessidade de que o lugar seja dotado de algumas condições técnicas essenciais para o seu funcionamento enquanto espaço cultural. Há muita utilização de espu- ma e madeira na área dos shows, o que contribui significativamente para a diminuição do impacto sonoro das atividades realizadas. A mão de obra para efetivar a transformação que o espaço necessitou também é contra- tada a partir de uma relação de trocas. “Nunca um pedreiro entrou aqui, é um trabalho exaustivo realizado porparte das pessoas que acreditam nessa ideia”.11 E foram chegando outras pessoas. Para além do espaço físico, que já promove uma experiência senso- rial extremamente vasta, o local foi agregando ao longo dos anos, nomes importantes da música baiana, a exemplo de J. Veloso, Portela Açúcar, Mariene de Castro, Armandinho, Paulinho Boca de Cantor, Matheus Aleluia, Mario Ulloa, além de famosos anônimos do centro da cidade, que seguramente, movimentam o cotidiano do local que abre todos os dias da semana. O som desliga às 22h, impreterivelmente. As atividades artísticas são realizadas por temporadas. Determinados shows ficam na agenda durante várias semanas. Nas palavras de Liza Araújo, produto- ra do local, na última contagem que fizeram, há mais de um ano, mais de 840 artistas já tinham passado pelo palco do Aboca. A programação ressalta a f luidez anteriormente destacada. Exposições se misturam a shows musicais, intervenções poéticas e performances, tudo ao mesmo tempo, mas com muita ordem. um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 174 29/07/2019 14:34:22 a s c a s a s d o c e n t r o a n t i g o d e s a l v a d o r 1 7 5 Figura 6 – Mosaico Antes e Depois Crédito: Vinícus Lima. Do ponto de vista formal, não se trata de um espaço institucional. Não há um CNPJ ou uma administração contábil efetiva. E, pelo con- ceito do local, é pouco provável que isso esteja no horizonte. Nunca houve apoio de instituições públicas ou privadas. Evidencia-se, assim, que essa proposta despretensiosa característica de sua arquitetura e de sua programação também é um ponto observado na forma como o local um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 175 29/07/2019 14:34:24 1 7 6 g o r d o n e t o , v i t o r b a r r e t o , l u i z a n t ô n i o s e n a j r . , f e l i p e b e z e r r a , l u i z g u i m a r ã e s a s c a s a s d o c e n t r o a n t i g o d e s a l v a d o r 1 7 7 é gerido. Parece claro que o espaço busca se legitimar perante a socieda- de através da relação que estabelece com a comunidade artística do seu entorno e com os moradores da área, mantendo uma distância relativa das instituições tradicionais que fomentam e apoiam o desenvolvimen- to cultural. Na dinâmica do local, as redes de relações pessoais daqueles que estão mais próximos da gestão, seguramente, também fortalecem a “marca” de Aboca. Não à toa, Vinicius conta que J. Veloso foi o respon- sável por articular uma curadoria de programação nos primeiros anos, contribuindo na conceituação artística da proposta. Os trabalhos de Vinicius como fotógrafo e videomaker na indústria da publicidade tam- bém contribuem para aproximar Aboca de artistas de diversas partes do mundo, fortalecendo o espaço como um local de referência na produção e difusão das artes de Salvador. Se, tanto do ponto de vista da arquitetura do espaço, quanto da programação realizada ali, e ainda da maneira como o idealizador gere a casa, a f luidez é uma variável importante e sempre observada, Liza Araújo termina concluindo que “a casa é a grande obra, e o artista é ele”12, referindo-se a Vinícius. O c e n t r o d a s C a s a s Os espaços alternativos aqui descritos não oferecem estacionamento, suas bilheterias só funcionam minutos antes e/ou durante a realiza- ção de um evento. Suas capacidades de público, nos três casos, são mais limitadas do que na maioria dos espaços convencionais – cerca de 100 pessoas por apresentação. Ou seja, há uma série de “contras” que, no fim das contas, sugerem outra forma de apreciação da obra artística, de modo mais artesanal, caseiro. Todo espaço tem limitações. Se, por um lado, o espaço alternativo pode parecer limitador, sua principal característica se constitui justa- mente a partir das possibilidades frente às limitações impostas pelos um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 176 29/07/2019 14:34:24 a s c a s a s d o c e n t r o a n t i g o d e s a l v a d o r 1 7 7 aparelhos artísticos tradicionais. A possibilidade de proporcionar uma experiência mais radical do público e dos artistas com os seus sentidos talvez seja a característica mais subjetiva e marcante de um espaço al- ternativo. Provocam os frequentadores a acessar à memória impressa nas paredes, nas janelas, nos cômodos, nas instalações, em sua maio- ria, aconchegantes e intimistas. Os espaços alternativos contam uma história e, independentemente do que venha a ser exibido ali enquanto produto cultural, eles não são insípidos, nem inodoros, muito menos incolores: proporcionam em escala ascendente o sentir, estar e viver dentro deste outro espaço/tempo, resultante de um diálogo direto, desafiador e, por vezes, arriscado. Essas experiências fortemente pro- porcionadas pelos espaços alternativos é que acabam gerando símbolos e conceitos, afim de sintetizar uma energia ou vibração que estabeleçam um fio condutor unificador de diversas linguagens que se misturam e se fortalecem. Enquanto os espaços convencionais oferecem uma estrutura técnica por vezes mais robusta para realização de espetáculos, com mais con- forto e comodidade, os “alternas” procuram, nessa relação direta com artistas e público, um mergulho naquilo que não é comum, que é novo. Desse modo, a relação casa-artista-público se apresenta mais próxima e afetiva. O tipo de espetáculo ou evento realizado, pelo menos nos três casos avaliados, tende a ser mais colaborativo, tecendo relações com os agentes do entorno – vizinhos, comerciantes, artistas, etc –, ratificando o lugar social e político da arte. De outro modo, essas características que privilegiam uma lógica mais ligada aos sentidos e afetos, sugerindo certo aconchego e intimida- de, também resvalam em alguma inviabilidade econômica. A arrecada- ção com venda de ingressos pode ajudar, mas não custeia, nem de longe, as despesas do espaço e dos grupos ali sediados. É preciso avançar em atividades paralelas, como oficinas de formação, aluguel do espaço para terceiros e realização de festas. Proporcionalmente, são os grupos que mantêm suas sedes e não o contrário. O papel de um espaço alternativo um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 177 29/07/2019 14:34:24 1 7 8 g o r d o n e t o , v i t o r b a r r e t o , l u i z a n t ô n i o s e n a j r . , f e l i p e b e z e r r a , l u i z g u i m a r ã e s a s c a s a s d o c e n t r o a n t i g o d e s a l v a d o r 1 7 9 aponta para um funcionamento de caráter público: ingressos baratos, muitas parcerias com projetos, incentivo aos artistas iniciantes e es- tudantes, formação e inclusão. Por isso mesmo é que o financiamento público de seus projetos – de pesquisa, circulação, formação, memória, produção, intercâmbio, etc – devem ser recorrentes e são eles que efeti- vamente têm bancado a sobrevida desses espaços. N o t a s 1 Premiação que destaca anualmente as melhores produções do teatro baiano em oito catego- rias: espetáculo adulto, espetáculo infanto-juvenil, direção, ator, atriz, texto, revelação e cate- goria especial. 2 Canção da trilha sonora do espetáculo O Segredo da Arca de Trancoso 3 Edital de Dinamização de Espaços Culturais da Secretaria de Cultura do Estado da Bahia 2012 4 Edital Setorial de Teatro 2013 e Edital de Apoio a Grupos e Coletivos Culturais 2014, ambos pela Secretaria de Cultura do Estado da Bahia e Prêmio Funarte de Teatro Myriam Muniz. 5 Agitação Cultural - Edital de Dinamização de Espaços Culturais da Bahia 2015 e Edital Setorial de Dinamização de Espaços Culturais da Bahia 2016 6 Entrevista realizada em 16 de agosto de 2017 pelos autores. 7 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ne7E5geBMWE. 8 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=2PrQwMFGMUc. 9 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=P8hOiJOlSQo. 10 Entrevista realizada em 16 de agosto de 2017 pelos autores. 11 Entrevista realizada em 16 de agosto de 2017 pelos autores. 12 Entrevista realizada em 16 de agosto de 2017 pelosautores. R e f e r ê n c i a s BARROCO, Felipe. Saraufarofa [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por <contato.casapreta@gmail.com> em 14 abr. 2009. BARROCO, Felipe. Convite [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por <contato.casapreta@gmail.com> em 3 dez. 2009. um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 178 29/07/2019 14:34:24 a s c a s a s d o c e n t r o a n t i g o d e s a l v a d o r 1 7 9 BITTENCOURT, Jarbas. Chave do segredo. Salvador. Canção da trilha sonora do espetáculo O Segredo da Arca de Trancoso, 2012. EMPUXO - ZONA DE ENCONTRO DE ARTES CÊNICAS. 29 out. 2012. Disponível em: https://goo.gl/pWBhVy. Acesso em: 20 ago. 2017. GALLO, D. Molhei a grama hoje de manhã [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por <contato.casapreta@gmail.com> em 11 nov. 2009. EMPUXO. Disponível em<https://empuxo.wordpress. com/2012/10/14/artistas-e-coletivos-de-artes-cenicas-ocupam-o-dois- de-julho/>. Acesso em: 14 dez. 2017. um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 179 29/07/2019 14:34:24 um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 180 29/07/2019 14:34:24 Gest ão par ticipativ a em comunidade: a e xperiência do F ór um de Ar te e Cultur a do Subúr bio F erroviár io de S alv ador no Centro Cultur al P lat af orma A n a V a n e s k a S a n t o s d e A l m e i d a * I n t r o d u ç ã o O nosso desejo sempre foi o de transformar a gestão do Centro Cultural Plataforma numa experiência de participação que promovesse um diálogo efetivo entre o Estado e a sociedade civil, cujo resultado fos- se a construção de um espaço cultural com a comu- nidade e para a comunidade. Conseguimos! * Mestra pelo Programa Multidisciplinar de Pós- Graduação em Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia. Ex-coordenadora do Centro Cultural Plataforma. Conselheira Estadual de Cultura. E-mail: anavaneska@gmail.com um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 181 29/07/2019 14:34:24 1 8 2 a n a v a n e s k a s a n t o s d e a l m e i d a g e s t ã o p a r t i c i p a t i v a e m c o m u n i d a d e 1 8 3 Não é simples descrever a experiência sobre a qual trataremos. Verso esse texto a partir de três lugares: o de membro do Fórum de Arte e Cultura do Subúrbio Ferroviário de Salvador; o de gestora eleita para coordenar o equipamento em questão, tendo o administrado em parce- ria com o fórum e sob as diretrizes da Secretaria de Cultura do Estado da Bahia (SecultBA), de 2007 a 2014; e o de pesquisadora, que é aquele que tento localizar na redação desse artigo.1 Falarei a partir da primeira pessoa do singular porque também pretendo resvalar a linha tênue que separa a ativista – artista, educadora e moradora de Plataforma –, da ges- tora e pesquisadora. Quero trazer subjetividade e quebrar o paradigma de que a gestão pública necessita ser feita com imparcialidade. Discordo! Defendo a ideia de que um gestor público, ao tratar da administração de recursos públicos e de interesses coletivos de pessoas, deve envolvê-las. O papel de um gestor não é apenas administrativo, é eminentemente político. Ele faz escolhas que incidem na vida das pessoas. Existe um histórico de lutas desenvolvidas por muitos grupos do ter- ritório do Subúrbio Ferroviário de Salvador para a reforma e reabertura do espaço cultural que outrora se chamou Cine Plataforma. Chamavam-no assim entre as décadas de 1940 e 1950, quando era dirigido pelo Círculo Operário da Bahia e funcionava como espaço de reuniões e como cine- ma, que depois foi desativado. Entre o final da década de 1970 e início da década de 1980, o espaço sediou uma antiga escola comunitária do bairro chamada Maria Imaculada.2 Somente após a reforma, realizada durante o Governo de Waldir Pires, quando o poeta José Carlos Capinan assumiu a pasta da cultura na Bahia, é construída a estrutura de caixa cênica e palco italiano do espaço3 que, a partir de então, passa a ser chamado de Cine- Teatro Plataforma. Em função da sua atual finalidade – a de ser um local de convergência da comunidade cultural com o fim de formação, criação, difusão, fomento e divulgação da cultura – o espaço passa a ser denomi- nado Centro Cultural Plataforma (CCP). 4 Além das denominações referentes à cronologia do espaço, ele também é mencionado por meio de outras nomenclaturas que um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 182 29/07/2019 14:34:24 g e s t ã o p a r t i c i p a t i v a e m c o m u n i d a d e 1 8 3 estão relacionadas à intimidade dos atores sociais envolvidos na gestão. O Centro Cultural Plataforma é também citado por meio da sigla “CCP”, que é o modo como os grupos e a coordenação do espaço o intitulam. Outro modo é “Plataforma”, forma comumente utilizada pela Diretoria de Espaços Culturais da SecultBA para distingui-lo dos demais espaços culturais da pasta, fazendo menção à sua localização geográfica, sendo também uma forma adotada por outros entes da gestão pública. E, por fim, “Casa” ou “Casa CCP”, modo como chamam os membros do fó- rum e da administração do espaço. Esse apelido foi dado em função do sentimento de pertença dos grupos, de ter no espaço um local de mora- da, de residência – sendo, mesmo, anterior aos editais de Ocupação de Espaços Culturais que trazia a proposta de grupos residentes. Estamos tratando de um espaço cuja característica de ser ponto de encontro da comunidade sempre foi preponderante, tendo sido, por anos, a única alternativa de acesso a atividades artístico-culturais no bairro de Plataforma. A luta por este equipamento conta décadas, com maior intensidade entre os anos 1980 e 2000, segundo dados coleta- dos por meio de entrevistas. Dentre os vários atores envolvidos nas lu- tas em torno da criação e do funcionamento deste espaço, destaca-se o Movimento de Cultura Popular do Subúrbio (MCPS) que, em 2007, protagonizou a organização do Fórum de Arte e Cultura do Subúrbio junto com os grupos culturais Herdeiros de Angola, E2 e a Caravana Cultural de Alagados. Segundo Raimilton Carvalho5, o movimento tra- balha em duas frentes: a da mobilização interna no território e a pressão ao Estado para que ouça e responda às reivindicações da comunidade. Vale o registro da diferença entre os elementos motivadores da luta de outrora, nas décadas de 1980 e 1990, e a que resultou na Gestão Participativa, já nos anos 2000. O movimento anterior à reabertura do CCP foi em grande medida protagonizado pela Associação de Moradores de Plataforma (Ampla), contando com a participação da Igreja Católica, da Federação de Associações de Bairros de Salvador (Fabs) e do Centro um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 183 29/07/2019 14:34:24 1 8 4 a n a v a n e s k a s a n t o s d e a l m e i d a g e s t ã o p a r t i c i p a t i v a e m c o m u n i d a d e 1 8 5 da Mulher Suburbana.6 Esta luta, pelo então “Cine-Teatro”, estava inse- rida no bojo da grande luta pelos direitos sociais, como educação e mo- radia, entendendo, portanto, a cultura como parte da luta por direitos básicos. Percebe-se, desde então, que os movimentos sociais atuantes na região do Subúrbio tinham a cultura como prioridade e eixo. O Subúrbio foi palco de diversas lutas feitas pelo movimento social organizado na busca da apropriação da cidade. Nele, a negra Zeferina organizou o Quilombo do Orubu, onde foram travadas as batalhas do Dois de Julho pela Independência da Bahia. Remontando décadas de enfrentamentos na região, podemos localizar também as comunidades eclesiais de base, o Movimento em Defesa dos Favelados, além da Fabs e do Círculo Operário da Bahia, anteriormente citados. Compreendemos, a cultura como espaço de disputa de poder que envolve não apenas a di- mensão simbólica, mas que se relaciona com outras dimensões, inclusi- ve as de classe. (BARBALHO, 2012) Percebemos, portanto, que naquela região, em especial no bairro de Plataforma, são constantes os momen- tos de lutas que se converteram em elemento de coesãoque uniu a po- pulação em bandeiras comuns décadas após décadas. Embora o Cine-Teatro Plataforma tenha sido reinaugurado em 26 de dezembro de 2006, ele foi só efetivamente reaberto e teve a sua progra- mação reanimada em junho de 2007 – quando então passa a se chamar Centro Cultural Plataforma. Em fevereiro daquele ano, artistas e grupos da região se organizaram para pressionar o Estado em torno do desejo da reabertura do espaço, mas também, com o objetivo de refletir sobre seu modelo de gestão, tarefa assumida pelos artistas locais como prio- ritária. Na ocasião, foram realizadas reuniões com a Diretora Geral da Funceb, Gisele Nussbaumer, e com a Coordenadora de Equipamentos Culturais, Luciana Vasconcelos. Ao passo em que se debatia sobre sua gestão, outros pontos surgiram como a formação da equipe do espaço e, em especial a ocupação do cargo de coordenação. A composição da equipe já significaria o resultado da compreensão das partes acerca do um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 184 29/07/2019 14:34:24 g e s t ã o p a r t i c i p a t i v a e m c o m u n i d a d e 1 8 5 modelo de gestão, que presumiria a contratação de agentes culturais da localidade. As reuniões daquele conjunto de pessoas da classe artística local começaram a ser realizadas em regime de itinerância em vários bairros do Subúrbio Ferroviário – São Bartolomeu (Cabrito), Santa Luzia do Lobato, Periperi, Plataforma –, ampliando o número de grupos envol- vidos nos debates sobre a reabertura, ocupação, programação e política de gestão. Com o avanço da realização das reuniões, e seu consequente fortalecimento e consolidação como espaço de elaboração – ganhando constante adesão de novos agentes –, o que antes era um espaço abstrato de reflexões torna-se um coletivo organizado e passa a ter papel cen- tral no processo de construção da gestão participativa. A esse espaço de debate com finalidade de discutir e deliberar sobre as perspectivas da classe em relação ao espaço cultural deu-se o nome de Fórum de Arte e Cultura do Subúrbio Ferroviário de Salvador. Antes de iniciar a pesquisa, acreditava-se que o processo de mobi- lização social que se conformava por meio do fórum era uma memó- ria da experiência construída pelo Círculo Operário da Bahia, todavia, a partir de entrevistas feitas, descobri que a experiência de gestão ali realizada é única na história daquele lugar,7 sendo construída a partir de 2007. A administração do Cine Plataforma entre as décadas de 1940 e 1950, quando funcionava para abarcar atividades do Círculo Operário da Bahia (COB), era responsabilidade direta dos projetos ligados ao tra- balho assistencial desenvolvido por Irmã Dulce.8 Finalmente, no presente artigo pretendemos localizar a atuação do principal protagonista neste processo, o Fórum de Arte e Cultura do Subúrbio Ferroviário de Salvador. Compreendemos a importância da administração local – a equipe do espaço – e dos órgãos estaduais mante- nedores e responsáveis pelo espaço, a Secretaria de Cultura e Fundação Cultural do Estado da Bahia,9 no entanto não nos debruçaremos sobre seus papéis. É preciso, contudo, registrar que partir das observações e análises feitas, concluí que as três partes envolvidas convergiam para um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 185 29/07/2019 14:34:25 1 8 6 a n a v a n e s k a s a n t o s d e a l m e i d a g e s t ã o p a r t i c i p a t i v a e m c o m u n i d a d e 1 8 7 defesa de que a experiência do Centro Cultural Plataforma fosse orgâ- nica àquela comunidade, partindo do cerne de sua própria realidade. Extrair da história aqui contada o ponto de vista e a contribuição de cada agente envolvido será matéria para a extensão do estudo. Por ora deseja- mos focar, prioritariamente, no papel da sociedade civil. F ó r u m d e A r t e e C u l t u r a d o S u b ú r b i o F e r r o v i á r i o d e S a l v a d o r A experiência do Centro Cultural Plataforma promoveu um espaço de participação dos atores sociais de forma direta, pois não existiu entre a administração do bem público e a comunidade um intermediário. Os indivíduos, através de grupos ou associações representativas, inter- feriram nas decisões administrativas e políticas. No caso em questão, essa intervenção, essa participação, aconteceu por meio de um fórum, que dentre as suas finalidades tinha a de acompanhar a gestão do espa- ço. Tal organismo elaborou regras, definiu princípios para a adminis- tração, construiu um processo eleitoral para a definição do(a) gestor(a), montou e a fez parte da programação por meio de seus projetos e de ou- tros criados para o centro cultural, a “casa” dos que ali estavam circu- lando e produzindo. O Fórum de Arte e Cultura do Subúrbio Ferroviário de Salvador atua como um conselho gestor do Centro Cultural Plataforma e dele partici- pam artistas, grupos e outras organizações do Subúrbio Ferroviário que atuam diretamente ou no entorno do CCP. É um espaço democrático cujas reflexões e ações inicialmente estiveram voltadas para a constru- ção do processo de reabertura e dinamização do espaço – no que diz res- peito à programação e a sua gestão, em especial –, mas que, atualmente, ampliou a sua intervenção também na perspectiva de construção de re- flexões e de propostas de políticas públicas de cultura para o território do subúrbio. Afirmamos, inclusive, que o fórum faz a gestão do CCP em parceria com a Diretoria de Espaços Culturais da Secretaria de Cultura. um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 186 29/07/2019 14:34:25 g e s t ã o p a r t i c i p a t i v a e m c o m u n i d a d e 1 8 7 Portanto, não seria possível tratar o centro como um espaço cultural de mobilização cultural sem a participação do Fórum de Arte e Cultura do Subúrbio neste processo, pois foi ele quem deu este caráter ao espaço e sem ele não seria possível falar em gestão participativa. Um dos papéis do fórum tem sido o de construir um conceito de mo- bilização cultural para o Centro Cultural Plataforma. A sua função de coautoria nos processos de construção da gestão não apenas o enquadra como atuante, mas como agente de formulação da política ali executada. Trata-se de um coletivo do qual qualquer artista, grupo cultural ou agen- te ligado direta ou indiretamente à cultura do Subúrbio pode participar. O único requisito apresentado pelos membros é o interesse em participar da construção. Além de agentes culturais da região e membros do cor- po funcional do CCP, também eram motivados a participar do fórum, os grupos residentes que ocupavam o espaço. Percebe-se, então, o que an- tes era espontâneo assume função condicionante para garantir situação de residência artística, servindo como experiência formativa da relação consciente com o bem público. Apesar de regra, no entanto, essa prerro- gativa ainda vem sendo conquistada, na medida em que se constatou que alguns grupos residentes no espaço ainda não participavam do fórum, pelas mais diversas razões. É razoável dizer que a maioria que não partici- pava agia deste modo porque não tinha o hábito de participar de espaços de discussão e deliberação e tampouco acreditava neles. O fórum passou por mudanças que significaram deslocamento de foco de sua intervenção. Transitar do objetivo de pressionar para a rea- bertura para garantir a composição de seu quadro técnico e administra- tivo, exigiu uma importante reflexão sobre o perfil da equipe do centro cultural. Pretendia-se que o CCP fosse composto de funcionários cujo perfil estivesse compatível com o que se pretendia para aquele espaço: um equipamento centrado na cultura local e voltado, consequentemen- te, para o seu fortalecimento. As pessoas contratadas deveriam ser do Subúrbio, deveriam ter vivência cultural e artística e também deveriam ter disposição para construir uma gestão que respondesse aos anseios um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 187 29/07/2019 14:34:25 1 8 8 a n a v a n e s ka s a n t o s d e a l m e i d a g e s t ã o p a r t i c i p a t i v a e m c o m u n i d a d e 1 8 9 da classe cultural e artística da região. O fórum apresentou indicações e a escolha dos membros foi feita através de seleção de currículo e entre- vista promovidos pela Funceb. Contratada parte da equipe – técnica, apoio, vigilância, auxílio à coordenação –, apenas o cargo de coordenação e de assistência de coor- denação ficaram a ser preenchidos. Na ocasião, a proposta do fórum foi que o instrumento para a escolha da coordenação se desse a partir de uma eleição, pois havia sugestão de nomes diversos e se pretendia garantir um recurso democrático para essa definição. Esse processo foi construído pelo fórum, em consenso com a Funceb, que foi convidada a participar e que também apresentou a sua condição. Estiveram presentes na eleição, no dia 21 de abril de 2007, os mem- bros do fórum, outros grupos culturais da região que não tinham parti- cipação direta no fórum, a Diretoria da Funceb, com a Coordenação de Teatro e assessorias, além do Secretário de Cultura Márcio Meirelles. A eleição foi realizada dentro de um seminário cujo objetivo era dis- cutir a proposta de gestão do espaço. Definida a equipe, o fórum assu- me junto a Funceb a organização da programação de reabertura, o que culmina na construção e realização do “I Festival das Artes Caldeirão Cultural” do Subúrbio Ferroviário de Salvador, cujos objetivos eram dar visibilidade ao espaço e a produção cultural local, bem como come- morar aquele momento. O Fórum, após a reabertura do espaço, assumiu um formato de atua- ção em comissões. Foram apresentadas propostas de nove comissões: Arte-Educação; Projetos; Programação; Comunicação; Infraestrutura; Teatro, Dança e Música. A comissão de infraestrutura, por exemplo, deveria cumprir um papel fiscalizador, apresentando relatório men- sal à Funceb a respeito das condições físicas do espaço, já a de proje- tos deveria apresentar propostas de programação e, assim por diante, foram estabelecidas as tarefas. Porém, nenhuma das comissões chegou a funcionar plenamente e compreendeu-se que a tônica de atuação desse coletivo passava por construir projetos que respondessem diretamente um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 188 29/07/2019 14:34:25 g e s t ã o p a r t i c i p a t i v a e m c o m u n i d a d e 1 8 9 à necessidade de intervenção artística dos grupos no espaço. Esse, pois, era o desejo pulsante que os havia levado a lutarem pela reforma e rea- bertura do centro, já que não havia na região outro espaço cênico com características similares para responder à classe. Além disso, a dificuldade de combinar as agendas individuais que dessem conta da densa agenda de reuniões, que o funcionamento de nove comissões exigiria, terminou por levar o fórum a declinar da ideia e, em seu lugar, dar materialidade a projetos estruturantes para o espa- ço, a exemplo do projeto Residência e do “Festival das Artes Caldeirão Cultural do Subúrbio Ferroviário de Salvador”. A sua atuação em con- junto com o espaço resultou em parceria de cocriação, coprodução e cocoordenação de projetos. Além do Caldeirão, dois outros projetos foram reflexos da capacidade de materializar ideias da relação CCP/ Fórum: o Lá no Fundo do Quintal e o Plataforma de Talentos. Em todos os projetos o fórum atuou como tutor junto com a coordenação da casa, na condição de ente gestor daquele espaço. O fórum tem um caráter consultivo e deliberativo. A participação é aberta e não há limite de membros na sua formação. Declara-se autônomo em relação a partidos políticos e governos. Funciona como um conselho gestor, mas não possui regulamentação em lei, diferente dos conselhos de participação popular do Estado, que são regulados pelo Poder Público, e diferente dos Colegiados de Gestão Participativa dos Espaços Culturais, que foram instituídos através da Portaria 338/2014, publicada no Diário Oficial do Estado da Bahia em 05 de novembro de 2014, em consonância com a Lei nº 12.365/2011 – Lei Orgânica da Cultura da Bahia. No entanto, apesar de não ser um Colegiado de Gestão Participativa instituído pela Secult, foi a atuação do fórum no Centro Cultural Plataforma uma das referências para a criação do objeto em questão.10 Além disso, vale registrar que as relações de uso que são estabelecidas pelos membros do fórum com o espaço se dão de forma organizada a partir do conjunto de medidas apresentadas na Instrução Normativa um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 189 29/07/2019 14:34:25 1 9 0 a n a v a n e s k a s a n t o s d e a l m e i d a g e s t ã o p a r t i c i p a t i v a e m c o m u n i d a d e 1 9 1 001/2013 que trata do Regulamento de Uso e Funcionamento dos Espaços Culturais, que rege também o uso dos outros 16 espaços cultu- rais da Secretaria de Cultura. No período da elaboração de tais normas, a administração do CCP punha o fórum ciente do teor dos documentos e debates acerca dos modos de funcionamento que foram realizados. P r o d u ç ã o c u l t u r a l e l a ç o s d e s o l i d a r i e d a d e Uma prática predatória de fazer produção cultural pode minar as rela- ções dentro de uma determinada comunidade. A conquista e a realiza- ção de atividades produtivas rentáveis (ou não) poderão contribuir para o seu desenvolvimento, permitir a descoberta de profissionais e apti- dões latentes, potencializar uma rede de serviços, construir estratégias para a proteção de saberes e de fazeres, mas também poderão fazer com que decline o seu alicerce que são os laços de solidariedade, só possíveis através da capacidade do diálogo, da construção do consenso, da dispo- sição de construção de um produto cujo acúmulo seja coletivo. Há um modelo de produção que é autofágico, que não considera o dia posterior na manutenção das relações, que foca apenas o dinheiro e o lucro aqui e agora, mesmo que isso signifique ferir o grau de confiabili- dade entre pares dentro de uma determinada rede. A esse modo chama- mos de predatório, ou seja, uma prática que gera resultados antagôni- cos à solidariedade e ao diálogo. O que temos assistido com este padrão é que comunidades que começam a fazer produção nesta perspectiva têm tido os seus laços comunitários fragilizados, visto que o recurso é pouco e no final das contas vence a máxima “farinha pouco, meu pi- rão primeiro”; alguém fere ou é ferido. Numa comunidade é importante que se preserve a rede de relações, e quando ela é colocada em segundo lugar, a tendência é o refluxo da força comunitária. Há projetos apoiados com recurso do Estado que chegam às comu- nidades sob a justificativa do interesse social, e na perspectiva de qua- lificarem o jovem da comunidade em produção cultural, investem em um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 190 29/07/2019 14:34:25 g e s t ã o p a r t i c i p a t i v a e m c o m u n i d a d e 1 9 1 oficinas de um conjunto de habilidades e conhecimentos a serem ensi- nados, e desconsideram que aquilo que o jovem já faz em seu cotidiano para garantir a manutenção do fazer artístico ou a salvaguarda de bens que consideram seus patrimônios também é produção cultural. É também produção cultural quando um jovem aciona o seu círculo de amizades com o objetivo de gerar um número musical, a exemplo; e começa a ensaiar uma música qualquer na sala da casa de algum dos membros de um elenco que iniciou ali a sua formação; e esse grupo de jovens pega as roupas de suas mães, pais e outros parentes; e um deles pede emprestada a peruca da tia; o outro solicita apoio ao dono do bar, que doa refrigerantes; a outra, trata com o dono do mercado, que doa biscoitos; e esse grupo inicia uma rede de parceiros e consegue dentro dessa dinâmica comunitária garantir a execução do produto que se dis- puseram a construir. E de repente um desses jovens se interessa em me- xer um pouco na mesa de iluminação cênica, e passa a garantir a luz do espetáculo. Ou uma meninaque está ali orientando o elenco descobre que está dirigindo. Aqui ocorre a construção de fortalezas em conjunto, da capacidade do fazer e fortalecimento do sentimento de saber. Não pretendemos aqui discorrer sobre produção cultural. Não é o objeto central desse texto. No entanto, queremos localizar o lugar da solidariedade dentro de uma experiência de participação em gestão e para tanto precisamos ilustrar como ela acontece e pôr sobre ela um foco de luz, porque ela é o manancial de onde nasce o sentido da ges- tão participativa. É desse modo comunitário de construir, de produzir e executar uma tarefa comum que surgiu a condição de intervenção dos artistas e grupos na gestão do Centro Cultural Plataforma. Precisamos tratar dessa experiência como uma experiência de so- brevivência que fornece lastro para o desenvolvimento de aptidões. A essas podemos também chamar de fazeres e saberes que nascem da persistência da própria comunidade, que diante das dificuldades, com suas diferenças, investe no improviso. um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 191 29/07/2019 14:34:26 1 9 2 a n a v a n e s k a s a n t o s d e a l m e i d a g e s t ã o p a r t i c i p a t i v a e m c o m u n i d a d e 1 9 3 Consideramos que a aptidão mais preponderante refletida pelo grupo atuante na gestão participativa do CCP foi transformar neces- sidade em solidariedade, conhecimento orgânico àquela realidade. Percebemos que o que esteve em jogo nas relações foi a sua manutenção; manter-se unidos através de uma necessidade comum, sendo o projeto um recurso para tanto e para transformar esse desejo em mobilização. Esse é o modus operandi de muitas comunidades de baixa renda. Não se trata apenas da importância do projeto, trata-se da permanência, da garantia dos laços através de um projeto que pulsa a identidade do gru- po. Esse é o elemento inovador. Essa é a matriz. Incluir o produto ar- tístico local na cena da cidade e dar-lhe visibilidade para dentro e para fora não foram os grandes desafios. O grande desafio era estabelecer um modelo de gestão capaz de conduzir aquele espaço como um espaço de inclusão, como indica Raimilton Carvalho, em entrevista anteriormen- te citada. Mas, tal tarefa somente seria possível através do esforço cole- tivo de agregar pessoas. E foi o que foi feito. D e s e n v o l v i m e n t o d a g e s t ã o p a r t i c i p a t i v a No Centro Cultural Plataforma, a participação dos grupos na constru- ção da gestão foi determinada pela oposição à lógica hegemônica na capital baiana da cidade como mercadoria – ou como espetáculo. Foi organizada a partir das práticas culturais dos artistas e grupos atuan- tes na comunidade, buscando o reconhecimento do produto interno, fortalecendo os vínculos de solidariedade, atuando numa perspectiva de educação a partir da vida e para a vida. Na lógica de construção da dinâmica de funcionamento da gestão do CCP destaca-se, como viga mestra, a participação consultiva e de- liberativa dos atores sociais do bairro envolvidos, filosofia esta que os estimula a agirem para contribuir com a democratização do acesso da população a todas as etapas do sistema cultural – formação, cria- ção, circulação, fruição. A participação pretende superar as políticas um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 192 29/07/2019 14:34:26 g e s t ã o p a r t i c i p a t i v a e m c o m u n i d a d e 1 9 3 culturais elaboradas a partir dos experts e da lógica administrativa e que visam, prioritariamente, o indivíduo consumidor, em prol de po- líticas que atendam às demandas dos cidadãos e de seus movimentos. (BARBALHO, 2012) A narrativa subjacente a esta ideia é a da cidade como construtora da cidadania. (STARLING, 2012) Reafirmar o papel político, coletivo, social e conflitivo da participa- ção democrática nos coloca um significativo desafio de construir con- ceitos e práticas sociais que sejam centradas na justiça social, capazes de intervir, através dos sujeitos políticos coletivos, nos processos eco- nômicos, políticos, sociais e culturais da sociedade brasileira. (DIAS, 2001) É necessário que sejam criadas experiências capazes de nos inspi- rar e nos contrapor aos cenários de desigualdade social, miséria mate- rial e simbólica existentes. A gestão participativa do CCP se desenrola como um exemplo dessa possibilidade. Essas formulações e reivindicações trazem à cena um modelo dife- renciado de gestão pública que privilegia os espaços de interação en- tre atores sociais e agentes públicos na formulação e implementação de diretrizes para a própria gestão, influenciando o processo político. A experiência em questão opõe-se à lógica dos empreendimentos ca- racterísticos da sociedade do espetáculo, fechados à possibilidade de par- ticipação e intervenção dos públicos que neles circulam. (STARLING, 2012) Tornar o lugar das práticas culturais um lugar-comum, relacionan- do-as ao território onde estão localizadas, é elemento fundamental quando considerarmos a criação de espaços culturais. É a partir deste reconhecimento que se poderá transformar o modelo de política cul- tural que trabalha pela implantação de equipamentos em série, sem qualquer identificação com a população que deveria se apropriar de sua estrutura, por espaços organicamente inseridos em suas comunidades. (ALBINATI, 2008) Uma nova cultura política (CHAUÍ, 2009), cuja viga mestra é a participação, começou a ser percebida na Bahia. Ao constatarmos a importância do fórum e o referendarmos como elemento basilar na um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 193 29/07/2019 14:34:26 1 9 4 a n a v a n e s k a s a n t o s d e a l m e i d a g e s t ã o p a r t i c i p a t i v a e m c o m u n i d a d e 1 9 5 construção da identidade e na execução do projeto de gestão participa- tiva do Centro Cultural Plataforma, compreendemos que estávamos desvelando muito mais que uma matriz da produção cultural da região, localizamos ali um novo modo de fazer política, uma nova cultura polí- tica através da participação comunitária. Se avaliarmos o mérito do processo vivido no CCP apenas a partir da característica que ali se firmou de ser um local de difusão dos sa- beres e fazeres da região, de inclusão do produto artístico local, esta- ríamos apenas tratando da questão numa dimensão micro, restrita ao território de um município. Mas, quando localizamos tal experiência no contexto da guinada da cultura no Brasil, e da institucionalização da cultura na Bahia, compreendemos que tratar da gestão participativa do Centro Cultural Plataforma é também tratar do Sistema Estadual de Cultura e de suas recomendações na perspectiva do controle social co- munitário, sendo Plataforma um território de forte identidade cultural em Salvador. A experiência de gestão cultural do CCP tem resultado da união das práticas administrativas do Estado, que assumiu na pasta da cultura da Bahia a liturgia de consulta à população e de construção de espaços para a sua participação, com a prática de organização dos grupos culturais locais e seus conhecimentos a respeito dos comportamentos do setor cultural naquela localidade. Havia, desde antes da gente ter qualquer iniciativa, uma demanda, e uma demanda que tinha que ser acolhida, porque ela vinha diretamente ao encontro daquilo que a gente queria! Que cada espaço cultural, que cada centro de cultura fosse, de certa forma, incorporado pela comuni- dade e essa demanda em Plataforma, vinha da comunidade, vinha de grupos e movimentos organizados. Tinha líderes, tinha vozes qualifi- cadas com quem a gente dialogava e que tinha um pensamento bastante alinhado com aquele que a gente tentava colocar na cena naquele mo- mento, mais democrático e mais acolhedor. Então, Plataforma surgiu quase como um teste drive, como afirma Gisele Nussbaumer, em en- trevista supracitada. um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 194 29/07/2019 14:34:26 g e s t ã o p a r t i c i p a t i v a e m c o m u ni d a d e 1 9 5 Fazer reflexões sobre essa experiência de gestão passou também por reconhecer a composição da identidade daquela comunidade artística que, representada pela diversidade do conjunto chamado Fórum de Arte e Cultura, foi – e é – pedra basilar na sua construção. As pergun- tas-chave que guiaram a organização e a estratégia desse grupo foram: Quem somos? O que queremos? O que sonhamos? Para onde vamos? e Como chegaremos lá? Essas perguntas orientadoras também auxilia- ram o grupo a delinear a concepção de gestão que foi construída pelos membros da comunidade quando assumiram postos de trabalho na- quele lugar, a exemplo do cargo de coordenação, que foi ocupado sob o alicerce de uma discussão em torno de perfil: ser da comunidade; ser do universo das artes e da cultura; ter capacidade de diálogo dentro da comunidade; e capacidade de formulação e elaboração de projetos. Esperava-se, tanto por parte da sociedade civil quanto por parte do Estado, que a construção fosse conjunta e que fosse possível escrever uma narrativa de participação efetiva da comunidade através do modo como seria gerido aquele centro cultural. O receio de que aquele es- paço se tornasse mais um equipamento, cuja direção fosse negociada pelas coalizões políticas que constituíram a eleição de Jaques Wagner foi um elemento presente e preponderante tanto nas reflexões dos gru- pos culturais quanto da Fundação Cultural. O depoimento de Gisele Nusbaummer é bastante elucidativo a esse respeito e representa o quão possível é a construção de processos de democratização da cultura quando a política do estado emerge do diálogo estabelecido com a so- ciedade civil: Pra gente era importante que a gente tivesse uma equipe parceira, que todas as mu- danças pudessem ser discutidas, que essas mudanças pudessem ser feitas conjunta- mente. Conjuntamente que eu digo, entre o Estado e as comunidades e os gestores de cada equipamento. E nesse sentido o Centro Cultural Plataforma se mostrou como quase um modelo, um primeiro equipamento que a gente deveria estar atento. Isso, um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 195 29/07/2019 14:34:26 1 9 6 a n a v a n e s k a s a n t o s d e a l m e i d a g e s t ã o p a r t i c i p a t i v a e m c o m u n i d a d e 1 9 7 pelo fato de ele ter passado por uma reforma, mas também porque havia uma mobili- zação da comunidade lá. [...] Havia uma cultura de indicação dos coordenadores que era outra, que era muito por indicação mesmo. Por indicação de políticos de partidos, e lá em Plataforma foi onde a gente teve esse primeiro tipo de embate, de você tentar instaurar um processo demo- crático de escolha de um coordenador de centro de cultura, que atendesse as demandas do Estado enquanto pessoa com capacidade de gestão, e de diálogo, e de posiciona- mento político, e que também tivesse uma inserção e representatividade junto à comu- nidade e que pudesse aproximar essa comunidade do centro (cultural). A gestão do Centro Cultural Plataforma, desde sempre, esteve imer- sa numa atmosfera de lutas reivindicatórias, e, a despeito de qualquer fisiologismo, sua gestão foi nutrida a partir das experiências de seu pró- prio cotidiano, centrada na prática, em interações e reflexões e não num conteúdo pronto. Não houve método apreendido antecipadamente ou técnica aplicada segundo diretriz apresentada por algum agente exter- no ou matriz teórica. E, por isso, é também importante reconhecer que essa experiência além de gerar conhecimento, produziu afirmação den- tro da própria comunidade. A experiência de construção do modelo de gestão do CCP reflete a capacidade da comunidade de promover uma técnica, fruto da cultura local e fundamentada em valores sociais e hu- manos. Houve inquietações e reflexões que impulsionaram uma formação, interação e intercâmbio interdisciplinar de ideias, provenientes de múl- tiplas linguagens e que serviram como elemento propulsor dentro do contexto de uma política cultural local. Não acreditamos que seja pos- sível generalizar uma gestão em cooperação ou apontá-la como modelo a ser seguido, pois também cremos que cada experiência se configura do modo como é porque pertence a uma determinada realidade e conta com um determinado e singular grupo de pessoas. Essa experiência, é um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 196 29/07/2019 14:34:26 g e s t ã o p a r t i c i p a t i v a e m c o m u n i d a d e 1 9 7 possível dizer, é influenciada em seu cerne pelos processos sociais da- quela comunidade. Segundo Sandro Magalhães, o grande desafio da manutenção dos espaços, sejam eles culturais ou não, é sua relação com a comunidade e a imagem que ela tem deles. Para ele, o grande desafio seria aprender como fazer para que a comunidade se aproprie do espaço, compreen- dendo que, ao se apropriar, ela está se reconhecendo como Estado. Em minha avaliação, essa foi a maior conquista da gestão participativa do CCP: a comunidade se apropriou do espaço cultural e também se reco- nheceu como membro gestor do processo. Quando a comunidade associada à administração da casa coordena um conjunto de projetos mantenedores de uma programação fixa do espaço, projetos que são de sua coautoria, assumindo-os para si e lan- çando-os em corresponsabilidade, esta comunidade está agindo tam- bém como Estado, como parte do conjunto de instituições que dele fazem parte. Mas seria possível aplicar a mesma lógica de compreen- são num sentido inverso? Considerando que os projetos são de coau- toria, cogestão e coprodução do Estado, representado pela adminis- tração da casa, com a sociedade civil, representada pelo Fórum de Arte e Cultura do Subúrbio, podemos dizer que o Estado cumpriu o seu papel de responder ao interesse demandado pela sociedade civil? E o que quer a sociedade civil? Em nossa avaliação, a sociedade civil quer poder. O Estado respondeu ao seu anseio? No caso da gestão em questão, creio que sim. Houve sinergia e convergência de interesses. Houve compreensão mútua de que o objetivo maior da gestão do CCP era ser animada pela força comunitária. Essa tríade sobre a qual se configurou a gestão cultural participativa reverberou sobre o terri- tório e lhe deu nova imagem, novas perspectivas. O Subúrbio, enfim, entrava na cena da cidade no papel de protagonista, de produtor de di- versidade de saberes e fazeres, produtor de beleza, produtor de novos personagens políticos, novas expectativas, de acolhimento de sonhos e não de ceifador de vidas, em contraposição a imagem de uma região um-lugar-para-os-espaços-culturais-miolo.indd 197 29/07/2019 14:34:26 1 9 8 a n a v a n e s k a s a n t o s d e a l m e i d a g e s t ã o p a r t i c i p a t i v a e m c o m u n i d a d e 1 9 9 feia, violenta e com alto índice de homicídios resultantes da guerra do tráfico e das execuções sumárias promovidas pelo próprio Estado. Compreender a gestão cultural em seu papel político não se trata apenas de construir uma programação cujo conteúdo verse sobre uma cultura cidadã para um público assíduo, cativo. O Centro Cultural Plataforma é um lugar de poder, ou melhor, um lugar de projeção da descentralização do poder do Estado e da sua capacidade de promover, autorizar e projetar lugar na sociedade. O Estado tem muito poder, e um espaço cuja gestão tem a característica de participação como sendo determinante precisa garantir que esse poder chegue até o interlocutor que está ali na comunidade, que faz esse diálogo entre o que a comuni- dade produz e o que Estado pode acolher. A força do Estado precisa ser transferida para a sociedade civil para uma gestão participativa acontecer, f lorescer. Os espaços de cultura comunitários do entorno precisam ser fortalecidos através da política dessa gestão. É sentindo sua força crescer a partir da relação com o CCP que as organizações passaram a dar-lhe ainda maior crédito. Trata-se de fortalecer, através do espaço cultural, a rede dos debaixo,