Prévia do material em texto
, A AUTORIDADE, SUAS RELAÇÕES COM A FORÇA, O PODER E A UDERANÇA M. Girão Barroso* Giovanni Sartori e Hannah Arendt se esforçam por explicar a origem da palavra "autoridade". Segundo os léxicos, vem do latim auctoritas, por sua vez do verbo augere, aumentar. Nesses dois autores a explicação etimológica soma-se a históri ca, dando a entender que a autoridade vem a ser um plus ou, melhor ainda, um munus acrescentado aos que a exercem. 1 Hoje essa significação se traduz nos di cionários mais comuns pela definição de autoridade como uma soma de poder exercida por alguém ou alguma instituição, sentido amplo que se especifica quan do levamos o termo ao campo da ciência política, onde essa capacidade de mando, bem ou mal, é sancionada pelo Estado. Trata-se, todavia, de uma conceituação ainda imprecisa, que nos conduz a ou tras indagações relacionadas com a origem, a justificação, a extensão e até mesmo a importância da autoridade no conjunto das expressões políticas. Para começar, é necessário estabelecer a distinção entre força, poder e autoridade a partir da idéia, geralmente aceita, de que o exercício da autoridade requer poder e este, por sua vez, não existiria sem o recurso à força. Atentemos no problema dessa alegada interdependência, para verificar até que ponto a autoridade pressupõe o poder, es tando este subordinado, ou não, a um coeficiente de força. O que chamamos força é uma forma de energia, natural ou provocada, que se opõe à inércia e tenrle a vencê-la, com algum útil ou presumidamente útil objetivo, na medida em 'que e:.xercitada. No campo da atividade social e política, que mais nos importa, a força se exprime sob a forma de ação humana, individual ou gru pai, nela reunidos elementos físicos (ou orgânicos) e elementos morais concernen tes à disposição humana de fazer ou não fazer alguma coisa. Costumamos falar em força física como algo diferente ou independente da força moral. Objetivamente, porém, no mundo das ações, toda força moral implica uma força física e vice-ver sa. Podemos falar, portanto, da força num sentido dúplice, de força físico-moral. Tendo por implícita essa significação, e passando ao âmbito sócio-político em que nos colocamos, vemos que neste a força se institucionaliza, ora como força estatal, isto é, organizada a serviço do Estado e do respectivo Governo, ora me ramente como força social, esta se distinguindo em força social organizada (or ganizações sociais) e força social inorganizada ou mais ou menos organizada (movimentos multitudinários, lobbies, associações livres, etc.) a serviço da coleti vidade. Não devemos confundir a força estatal com a força social organizada, pois o Estado, por sua vez, não se identifica senão como um dos instrumentos, por certo o principal, da coesão social. Uma outra distinção se pode fazer entre força aparelhada, geralmente a estatal, dotada de instrumentalidade material (Exércitos e Polícias), e força desaparelhada ou só indiretamente aparelhada (pelo Estado), sendo este o caso das forças sociais em geral. * Doutor em ciências jurídicas e sociais; professor universitário e advogado. 1 Sartori, G. Teoria democrática. Fundo de Cultura, 1965. p. 153; Arendt, H. Entre o passado e ofuturo. São Paulo, Perspectiva, 1972. p. 163 e seBS. R. C. poI., Rio de Janeiro, 31(3):3-16, julJset 1988 Tem-se afirmado que a força está na origem do poder, como na gênese do pró prio Estado. Ao se estruturar o poder e com ele a organização estatal, houve e ha veria sempre que apelar para os instrumentos da força, a princípio em seus ~spec tos brutais e, depois, em sua forma cada vez mais institucionalizada. A tese é dis cutível para aqueles que acham dever-se a elaboração das formas potestativas da sociedade antes ao consenso e ao contrato, ou, mais genericamente, ao fenômeno da sociabilidade, inerente à natureza dos grupos humanos, em sua progressiva constituição. A força não participaria ou, pelo menos, não seria condição intrínse ca à formação do poder e do Estado. Essas duas teorias, no entanto, não se con trapõem, mas se combinam, na medida em que existe no cerne da formação do po der e do Estado o impulso natural da sociabilidade, sem embargo do qual, todavia, nas fases críticas de formação ou conservação do poder e do Estado, a força inor ganizada ou já organizada tenha que atuar inelutavelmente. Não seria portanto a força um elemento estrutural e substancial, senão apenas acidental ou conjuntural da vida política. De qualquer modo, porém, fator originário ou só eventual, sobre tudo potencial depois que o poder se estrutura, a presença constante da força tem sido inegável na lógica e na história sócio-política da humanidade, e escusado se ria lastimar o fenômeno se determinadas teorias não identificassem a causa com o efeito, isto é, a força, mera instrumentação ou potencialização do poder, com o próprio poder, assim dando lugar à ominosa concepção despótica, autoritária ou totalitária do Estado. O essencial a estabelecer é que a força, aparelhada ou não, mais caracteristica mente moral ou material, de maneira potencial ou efetiva, subsume-se na fenome nologia do poder e este passa a surgir, na atividade política, como uma realidade e uma categoria autônoma, em que se apóia a existência do Estado. Daí a importân cia que a Ciência Política atribui ao estudo do poder, analisando-o em seus varia dos aspectos. O poder é um fenômeno de ordem social, antes de ser de ordem jurídica e de ordem estatal. Importa a capacidade de mando (donde vem, automaticamente, o domínio) e, portanto, a capacidade de fazer-se obedecer e de obrigar em relação aos homens e às coisas. A aquisição do poder, corno vimos em parte, tem uma ex plicação complexa tanto do ponto de vista histórico quanto de sua exegese à luz da Psicologia e da Sociologia. Sem dúvida um impulso natural do ser humano, projeta-se no meio em que ele vive, favorecido circunstancialmente por predicados pessoais, pelo uso da força ou através dos costumes, sejam estes religiosos, morais ou políticos, contemplando indivíduos ou grupos e dando lugar à submissão de uns por outros, na conquista e divisão dos bens. Temos aí uma noção genérica que se exprime por definições, tais como a de Gerhard Leibholz, ao considerá-lo "a capacidade de impor uma vontade, direta ou indiretamente, aos seres humanos";2 ou de Max Weber, em cuja opinião o poder é a "probabilidade de impor a própria vontade, dentro de uma relação social, mesmo contra toda resistência e qualquer que seja o fundamento dessa probabilidade"." . À parte as reservas que fazemos a essas definições, nosso maior interesse é conceituar o poder do ponto de vista político. Nesse particular as opiniões diver gem, entendendo uns que o conceito político do poder extrapola do Estado e achando outros que esse conceito não somente se reduz ao Estado, como neste 2 Leibholz, Gerhard. In: Meynaud, Jean. Introducción a la dencia poütica. Technos, p. 74. 3 Weber, Max. Economía y sociedad. México, Fond" de Cultura Económica, 1964, v. I, p. 43. 4 R.CP. 3/88 ainda mais se restringe à categoria do Governo e até mesmo da simples Autorida de. Jean Meynaud, em sua obra já citada, contempla-nos com uma página meticulo sa, visando a "determinar a parte que corresponde à Ciência Política na análise dos fenômenos do poder" e a "identificar os critérios que permitam iso ar o poder político dos demais poderes sociais".' Sabemos que a organização política não se confunde com a mais ampla organi zação social e, mesmo assim, ela não se identifica também com a menos ampla or ganização estatal. Fica num meio termo, compreendendo as instituições sociais em que o poder político, em sua acepção genérica, se manifesta. Contudo, sendo a or ganização estatal o foco por excelência da organização política, todo o poder polí tico acaba por ser a ela deferido, razão esta de sua principal característica, isto é, da supremacia e do monopólio de que goza sobre os demais poderes,que aliás lhe devem o reconhecimento. Aderimos assim à conceituação do poder político como "o poder social que se focaliza no Estado" (Franz Neumann) ou, mais precisa mente, como "a potencialidade efetiva dos homens que integram o Estado" (Sully Alves de Souza, associan'do definições de G.E. Catlin e Recasens Siches).5 Esse enfoque, no entanto, requer, como diz Bonavides, alguns traços que con ferem ao poder "a fisionomia costumeira", tais como, principalmente, a capacida de de auto-organização, a unidade e indivisibilidade do poder, o princípio de lega lidade e de legitimidade e, finalmente, a soberania. 6 Não nos estenderemos nesses aspectos, já que nosso objetivo se limita a estuda~ o poder como o elo que leva da força à autoridade, e precisamente por se aplica rem a esta, por extensão, os seus mesmos requisitos. Em todo caso, lembremos que, além da capacidade coativa global de que goza, à qual se curvam as demais expressões potestativas a seu redor, o poder político que não queira ser despótico, o poder puro ou nu, como o chama Bertrand Russell, há que recobrir-se das con dições de legitimidade e legalidade. Importa a primeira no reconhecimento social do poder, em função dos valores que representa. Significa que o poder político não se impõe por si mesmo, mas em virtude de uma situação de bilateral idade con sentida de relações entre governantes e governados, nas quais o assentimento des ses últimos, fundado sobretudo na persuasão moral, assegura o vínculo governati vo. Já a segunda condição, de legalidade, provém do fato de que a ordem estatal é subjacentemente uma ordem jurídica, desta recebendo o poder, através da lei, a sua chancela. Evidentemente o equilíbrio do exercício do poder político depende do maior ou menor grau de complementaridade dessas duas condições, arriman do-se uma na outra para que o Estado e seu Governo rerdurem. A legalidade for nece a situação objetiva, dentro da qual o poder político se torna efetivo, enquanto a legitimidade corresponde a uma situação intersubjetiva, na qual os participantes, sujeitos ativos e passivos do poder, se propõem a observância da ordem institu cionalmente estabelecida. Vimos até aqui como na organização política a energia social, em alguns casos chamada força, leva ao poder. Mas, de que modo essa energia leva à autoridade, tida esta como uma questão tanto ou mais substancial da Ciência Política? 4 ~Ieynaud, Jean. op. cit. p. 73 e segs. 5 In: Pode,r social e poder político. Revista de Ciência Política, 3( 1):64-81. 6 Bonavides, Paulo. Ciência política. 2. ed. p. 108. Autoridade 5 Em última análise, aquela forma de energia é um fenômeno inorganizado da vi da social, que se projeta e organiza no chamado poder. Quando, todavia, falamos em poder, vemos que se trata de uma abstração destinada a representar algo que se faz concreto através de seu exercício. Trata-se, evidentemente, da autoridade, so bretudo ao adquirir personificação naqueles que a exercem. Rigorosamente, p0- deríamos dispensar o conceito de poder e minimizar o de força, esta considerada um mero instrumento potencial ou efetivo da autoridade, em cujo conceito acaba riam por resumir-se, portanto, as nossas preocupações. É o que vem ocorrendo, tanto que alguns cientistas políticos passaram a julgar incerto o conceito de poder e outros chegam a substituí-lo pelo mais autêntico e real de autoridade, fulcro, a seu entender, da Teoria do Estado. Segundo Jean Meynaud, "vários autores, especialmente em França, preferem utilizar o termo 'autoridade' para abarcar as relações nascidas do funcionamento do poder político. Raymond Aron adota uma concepção ampla da disciplina e lhe atribui como matéria 'o que se relaciona com o governo das sociedades, isto é, com as relações de autoridade entre os indivíduos e os grupos'. Escreve ele: 'A Ciência Política obtém sua autonomia C .. ) na medida em que considera como fato fundamental a estrutura da autoridade.' CharIes Celier, partidário de uma con cepção mais limitada, define os fenômenos políticos como 'as relações de autori dade no âmbito do Estado.' Albert Bruno sustenta idêntico ponto de vista, já que considera como objeto da Ciência Política 'o estudo dos fenômenos de autoridade no âmbito do Estado.' Meynaud ainda se refere à doutrina de David Easton, em sua obra The political system, repetindo-lhe a definição de que 'a Ciência Política é o estudo da distribuição autoritária (ou, se se prefere, da distribuição imperativa) dos valores no seio da sociedade,' onde se deve alertar para a nenhuma conotação com o autoritarismo, concluindo por afirmar, embora com alguma reserva:' ( ... ) parece-nos que a estrutura da autoridade, recolhendo a expressão de Raymond Aron, em sua aplicação à gestão dos negócios públicos, constitui um instrumento útil e o mais apto, provavelmente, entre os propostos até hoje'.''' Fixada essa diretriz, que recupera o princípio de autoridade da sombra em que o havia colocado a maior atenção dada à teoria do poder, podemos retomar o pro blema a que nos havíamos proposto, de sua emergência na esfera da realidade es tatal e a respeito de sua caracterização ante os pressupostos da força e do mesmo poder. A deixa para isso acha-se inquestionavelmente na transformação, a que se refere Djacir Menezes, da vis compulsiva (força) em vis coactiva (poder) e desta em vis directiva. 6 De fato, é no momento dessa última metamorfose que surge e se configura a autoridade, com a sua inerente capacidade decisória. O Estado se converte em Governo, este se personifica naqueles que são incumbidos da direção da coisa pública e, como governantes, assumem a responsabilidade dos compro missos com os governados. A autoridade (identificada na linguagem webwriana como "domínio") e então, no conceito de Max Weber, "a manifestação concreta e empírica do poder".9 R.M. Mac Iver, em sua obra O Estado, observa "que não podemos examinar concretamente o problema da autoridade política sem partir do fato evidente de que a vontade do Estado não é uma unidade mística, mas, na melhor das hipóte- 7 Meynaud, Jean. op. cit. p. 77 e 80. B Menezes, Djacir. Poder. autoridade e vis normativa. Revisto de C;rllcill Política. 9 Weber,l\lax. In: Freund, Julien. Sociologia de Max Weber. Rio de Janeiro, Forense, 1966. p. 167. 6 R.C.P. 3/88 ses, e para quase todos os efeitos, uma hannonia muito imperfeita (sic) e limitada de vontades individuais". Acrescentando: "A vontade do Estado não pode ser ou trà coisa senão uma organização de vontades de tal modo relaciohadas, de tal m0- do limitadas, que uma única decisão prevaleça e seja aceita por todos." "Fazer es ta organização da vontade reagir o mais facilmente possível a toda hannonia de vontades, a todo consenso, é parte do ideal da democracia." 1 o Assim encarnada numa vontade coletiva (somatório das vontades individuais constitutivas do Governo, enquanto este, por sua vez, representativo do Estado), a autoridacie afinal se define, de maneira ampla, como a expressão tangível e atuante do poder do Estado, e, de modo mais estrito, segundo trabalho conjunto de Afon so Arinos e Raimundo Faoro, como "a competência atribuída a certos indivíduos, os governantes, para agirem, dentro de detenninado alcance, em nome e com o poder do Estado" 11 A análise da autoridade, a partir principalmente das excogitações de Max We Der, em seu famoso livro Economía y sociedad. tem-se. enriquecido à luz da Psico logia Social e da Sociologia, influindo sobre a Ciência Política e Administrativa, de modo a favorecer, com suas lições, a práxis política. Aqui vamos recolher al guns desses ensinamentos, com vistas ao nosso particular objetivo. A co:neçar pe la conceituação da autoridade, que não se completa sem a demonstração dos re quisitos que a qualificam. Tais requisitos são, prima facie. como já VImos, os do poder a ela subjacente. Contudo, é preciso acentuar que pelo menos dois deles se diferenciam, além da maior especificidadedos demais, quando a ela referidos. Os requisitos diferenciados são: a) o fato de que a autoridade se configura quando o poder é transposto do Estado para o Governo; b) a circunstância de que o exercício operativo da autoridade resulta do processo governamental de personi ficação do poder estatal e, conseqüentemente, do Governo. Os demais requisitos, originariamente do poder, são: c) a legitimidade; d) a legalidade e, por fim, e) a capacidade coativa global. Duas palavras sobre os requisitos iniciais, a e b. A transposição a que nos refe rimos condiciona-se ao regime político seguido. Uma vez estruturado o Estado, o poder que nele se deposita transfere-se ao Governo, ou melhor, sob a fonna de Governo, em confonnidade com a ordem institucional e jurídica prevalecente. A História registra múltiplos sistemas dessa transferência. Evolutivamente, à parte os diversificados exemplos de puro despotismo, tivemos os sistemas hereditários ab solutos (transmissão por herança), comiciais (indicação pelos comícios do povo), nobiliárquicos (por efeito de títulos de nobreza), consulares (incumbência even tual do poder a cônsules nomeados), diretoriais (acesso ao poder de corpos cole giados), hereditários constitucionais (monarquias constitucionais) e sistemas de mocráticos, institucionalizados confonne o liberalismo ou o socialismo, no primei ro caso considerada a democracia política e, no segundo, a democracia econômica, aspirando-se ainda a uma democracia global, em que à liberdade eletiva do poder se conjugue a igualdade efetiva de sua fruição. Cientificamente, os sistemas po dem ser divididos de maneira simplificada em monocracias. oligocracias e poli cracias. As monocracias. governos de um só, dividem-se em governos despóticos ou ditatoriais e governos monárquicos absolutos; as oligocracias. governos de al guns, compreendem os simplesmente oligárquicos e os aristocráticos; as policra- 10 Maclver,R.M.OEstorlo.SãoPauJo,Martins, 1946.p.146.7. 11 Enciclopédia MirCldor, verbete. Autoridade 7 cias, governos de muitos, incluem os governos total ou parcialmente democráti cos, inclusas as democracias mistas. A personificação da autoridade, através de toda essa tipologia, obedece a uma variada metodologia, sempre porém condicio nada aos tipos ideais qualificados. . Passemos aos outros requisitos. Do ponto de vista da legitimidade, supõe-se à primeira vista que a autoridade se impõe moto-próprio, ao imperativo de sua pró pria existência. No entanto, nunca foi, nem é assim, mesmo quando acobertada pe la força, pelo dogma ou pela lei. É necessário esclarecer: a autoridade se legitima tanto do lado dos que a exercem como daqueles sobre os quais é exercida, assim se condicionando à bilateralidade e à interdependência dessa relação. Ao recor rermos nesse ponto a Max Weber, cumpre reconhecer por antecipação a sinonímia das expressões domínio e autoridade. Em sua já citada obra Economía y sociedad (§ 16 do capo I da primeira parte), diz ele que "por domínio deve entender-se a probabilidade de encontrar obediência a um mandato de determinado conteúdo, entre pessoas dadas". Já no capo 111, em que trata dos tipos de domínio, explicita: "Deve entender-se por domínio, de acordo com a definição já dada (cap. I, § 16), a probabilidade de encontrar obediência dentro de um grupo determinado, para mandatos específicos (ou para toda classe de mandatos)." Não é, portanto. toda espécie de probabilidade de exercer "poder" ou "influxo" sobre outros homens. No caso concreto, este domínio (autoridade) no sentido indicado pode descansar nos mais diversos motivos de submissão, etc. Mais esclarecedor ainda é o capo IX, sobre sociologia do domínio: "No sentido geral de poder e, portanto, de possibili dade de impor a própria vontade sobre a conduta alheia, o domínio pode apresen tar-se nas formas mais diversas." "Tomado de modo tão anlplo, o conceito de domínio não seria, porém, uma categoria cientificamente utilizável. Em tão amplo sentido resultaria impossível uma completa casuística de todas as formas, con dições e conteúdos de 'dominar' Por isso, ao lado de outras numerosas formas possíveis, representamos dois tipos radicalmente opostos de domínio. De uma par te, o domínio mediante uma constelação de interesses (especialmente mediante si tuações de monopólio); de outra parte, mediante a autoridade (poder de mando e dever de obediência)" (grifo nosso).'2 De acordo com essa interpretação do pró prio autor, sempre que nos referirmos às suas concepções estaremos autorizados a empregar a expressão no sentido de "autoridade" ou, se empregarmos o termo "domínio", também não será em sentido diferente. Segundo Max Weber, existem três tipos puros de autoridade legítima. Ou, de outro ângulo, o fundamento primário de sua legitimidade pode ser de caráter ra cional (ou legal), de caráter tradicional e de caráter carismático. Vamos inverter essa enumeração, tratando inicialmente dos dois últimos tipos, deixando para o fim o primeiro, também relacionado ao requisito da legalidade. O tipo tradicional "repousa na crença cotidiana das tradições que prevaleceram por longo tempo e na legitimidade dos indigitados por essa tradição para exerce rem a autoridade". O tipo carismático "descansa na entrega à santidade, ao he roísmo ou exemplaridade de uma pessoa e às ordenações por ela criadas ou reve ladas". A ambos os tipos Weber chama, nominalmente, "autoridade tradicional" e "autoridade carismática". 1 3 Para maior explicitação, utilizemos a síntese de Julien Freund. Diz ele que o "domínio tradicional tem por base a crença na santidade das tradições em vigor e 12 Weber, ~Iax. Econon'Úa y sociedad. op. cit. v. 1. p. 43 e 170~ v. 2, p. 696. 13 Id.ibid.v.l,p. 172-3. 8 R.C.P. 3/88 na legitimidade dos que são chamados ao poder em virtude do costume". E o "domínio carismático repousa no abandono dos membros da sociedade ao valor pessoal de um homem que se distingue por sua santidade, seu heroísmo e seus exemplos". Explica: "Desde o início, Weber deixa claro que se trata de ideal-ti pos, por conseguinte, de formas que nunca se encontram, ou só muito raramente, em estado puro na realidade histórica."" I Continuando a versão desse autor: "No caso do domínio tradicional, a autori dade não pertence a um superior escolhido pelos habitantes do país, mas sim a um homem que é chamado ao poder em virtude de um costume (primogenitura, o mais antigo de uma família, etc.). Ele reina, pois, a título pessoal, de sorte que a obe diência se dirige à sua pessoa e se torna um ato de piedade. Os governados não são cidadãos, mas, sim, pares (no caso da gerontocracia) ou súditos, que não obe decem a uma norma impessoal, mas sim a uma tradição, ou a ordens legitimadas em virtude do privilégio tradicional do soberano. Segundo o humor deste, pode-se obter seus favores ou cair em desgraça. Em geral o chefe tradicional se orienta se gundo as regras habituais da eqüidade e da justiça ética, ou então segundo a opor tunidade, não segundo princípios fixos e formais. Todavia, a tradição não é assi milável ao puro arbítrio, pois, se o soberano a viola, arrisca-se ao provocar uma resistência que, certamente, não visa ao sistema, mas sim à sua pessoa e a seus fa voritos. Não se trata, evidentemente, de criar nessas condições um direito novo: em caso de dificuldade, confia-se na sabedoria, por interpretação dos precedentes ou dos preconceitos". Conforme Freund, "existem, pois, diversos tipos de domí nio tradicional. Os mais primitivos são a gerontocracia, em que o poder cabe por costume ao mais velho, e o patriarcalismo, em que o poder é objeto de herança no seio de uma família determinada". Outros tipos, adianta, são o "patrimonialismo" e o "sultanismo". Neste, "os governados são súditos; o soberano dispõe de uma guarda pessoal e não governa senão por intermédio de favoritos". Por sua vez o patrimonialismo, no qual Weber distingue o tipo mais corrente do domínio tradi cional, sendo,aliás. o mais conhecido, dada a sua vigência na maioria das antigas monarquias européias, "consiste em um sistema cujas oportunidades residem, em geral, de alto a baixo da escala, na apropriação privada da maioria das funções". 15 I Esta conceituação obtém de Weber alguns esclarecimentos. A partir da organi- zação patriarcal, deu-se "uma descentra ização da comunidade doméstica", a qual "conduz inevitavelmente a uma interna debilitação do poder doméstico". As re lações internas e externas entre o senhor e os que dele dependem, fundadas na piedade e na fidelidade, passam a exigir, então, nas novas condições, relações de reciprocidade da parte dos submetidos e nas quais "o senhor depende em grande monta da boa vontade dos mesmos e da conservação de sua capacidade de prestar serviços". O senhor passa a dever algo aos submetidos, não juridicamente, mas de acordo com os usos. "Deve-lhes proteção contra os perigos externos e ajuda em caso de necessidade, assim como um tratamento humano, especialmente uma limi tação do aproveitamento de sua capacidade de trabalho." Também os submetidos "devem ao senhor, de acordo com os costumes, ajuda com todos os meios de que disponham". "A este caso especial da estrutura patriarcal de domínio, ao poder doméstico descentralizado mediante a partilha de terras e às vezes de pecúlio aos .. Freund, Julien. Sociologia de Max Weber. op. cito p. 173. 15 Id. ibid. p. 174, 175, 181. Autoridade 9 filhos e a outras pessoas dependentes do círculo familiar, damos aqui o nome de domínio patrimonial." 16. Weber estuda a evolução desse sistema, o seu processo de extensão e propa gação social, para caracterizá-lo afinal como "uma organização estatal-patrimo nial, quando o soberano organiza de forma análoga a seu poder domésticó o poder político e, portanto, o domínio sobre os homens e territórios extrapatrin'loniais, is to é, sobre os súditos políticos". "A maioria de todos os grandes impérios conti nentais, até os umbrais da Época Moderna, inclusive dentro dessa mesma época, acusou manifestações do domínio patrimonial bastante expressivas." Dentre estas, cumpre destacar o Feudalismo, porém, conforme Weber, este foi um "caso limite" do regime patrimonialista, por ter incorporado o seu aspecto estamental e uma es trutura mais estável que as demais. 11 Referindo-nos agora ao tipo da autoridade ou domínio carismático, mais uma vez nos valemos da síntese de Julien Freund. Diz ele que o mesmo "constitui o ti po excepcional do poder político, não pelo fato de se encontrar raramente, mas porque ele deturpa os usos da vida política ordinária". Weber chama carisma (de um termo tomado a Rudolf Sohm) a qualidade insólita de uma pessoa que parece dar provas de um poder sobrenatural, sobre-humano ou pelo menos desusado, de sorte que ela aparece como um ser providencial, exemplar ou fora do comum, e por essa razão agrupa em tomo de si discípulos ou partidários. O comportamento carismático não é peculiar apenas à atividade política, pois pode ser igualmente observado nos outros campos, os da religião, da arte, da moral e mesmo da eco nomia, conquanto, segundo Weber, um dos traços do carisma consista em perma necer estranho ou hostil ao jogo econômico normal. Em política este domínio toma diversas formas: a do demagogo, do ditador social, do herói militar ou do revolu cionário. "Todo domínio carismático implica a entrega dos homens à pessoa do chefe, que se acredita predestinado a uma missão. Seu fundamento é, pois, emo cional, e não racional, já que toda a força de uma tal atividade repousa na con fiança, na maioria das vezes cega ou fanática, e na fé, à falta de todo controle e de toda crítica. O carisma é uma ruptura da continuidade, seja legal ou tradicional; ele quebra as instituições, põe em dúvida a ordem estabelecida e a compulsão ha bitual, para recorrer a uma nova maneira de conceber as relações entre os homens. É, ao mesmo tempo, destruição e construção. Os limites e as normas são os que o chefe fixa por sua própria autoridade, em virtude das exigências do que ele acredi ta ser sua vocação; tira, pois, sua legitimidade de si mesmo, independentemente de todo critério exterior, pronto a renegar e a eliminar os partidários que se recusem a segui-lo no caminho em que ele, e apenas ele, fixa o rumo." "Toda política ca rismática é, pois, uma aventura, não somente por se arriscar ao fracasso, mas por que ela é incessantemente obrigada a reencontrar um novo élan, a fornecer outros motivos de entusiasmo, para confirmar o seu poderio. Compreende-se pois, facil mente, que um tal poder se opõe radicalmente ao domínio legal, tanto quanto ao domínio tradicional, pois encerram ambos uma limitação, tendo em vista a neces sidade de respeitar a lei ou o çostume, ou ainda a obrigação de levar em conta os órgãos instituídos de controle, ou então os privilégios das ordens e das diversas camadas sociais." 1 B 16 Weber, Max. Economia ysociedad. op. cito v. 2, p. 757-8. 17 Id. ibíd. v. 2, p", 759, 810. 18 Freund, Julien. op. cito p. 175, 176. 10 R.C.P. 3/88 Finalmente, chegamos ao tipo de domínio (ou autoridade) a que Max Weber dá o nome de racional ou legal, assim por ele definido: a "que repousa na crença na legalidade de ordenações estatuídas e dos direitos de mando dos chamados por es sas ordenações a exercer a autoridade". Fundamenta-se 11 sua validade nos seguin tes pressupostos, inter-relacionados: "I) que todo direito pactuado ou outorgado pode ser estatuído de modo racional - com relação a fins, a valores ou a ambas as coisas - mediante a pretensão de ser respeitado, ao menos, pelos membros da res pectiva associação; e também, regularmente, por aquelas pessoas que no âmbito do poder da associação realizem ações sociais ou entrem em relações sociais im portantes para a associação; 2) que todo direito, segundo sua essência, é um cos mos de idéias abstratas, em geral estatuídas intencionalmente; que a judicatura im plica a aplicação dessas regras ao caso concreto; e que a administração supõe o cuidado racional pelos interesses previstos nas ordenações da associação, nos li mites das normas jurídicas e segundo princípios assimiláveis que têm a aprovação ou, pelo menos, carecem da desaprovação dos ordenamentos da associação; 3) que o soberano legal típico, a pessoa posta à cabeça da associação, do mesmo passo que ordena e manda, por sua parte obedece à ordem impessoal por que orienta as suas disposições; 4) que, tal como se expressa habitualmente, todo aquele que obedece s6 o faz enquanto membro da associação e s6 obedece ao direito; 5) que os membros da associação, enquanto obedecem ao soberano, não o fazem por atenção à sua pessoa, senão à ordem impessoal, e s6 estão obrigados à obediência dentro da competência limitada, racional e objetiva, outorgada por dita ordem". "As categorias fundamentais do domínio (ou da autoridade) são, pois: 1) um exercício contínuo de funções, sujeito à lei; 2) dentro de uma competência, que significa: a) um âmbito de deveres e serviços objetivamente limitado em virtude de uma distribuição de funções, b) com a atribuição dos poderes necessários à sua realização, e c) com a fixação estrita dos meios coativos eventualmente admissí veis e o pressuposto prévio de sua aplicação; a tudo o que cabe acrescentar; 3) o princípio da hierarquia administrativa, ou seja, a ordenação de autoridades fixas com faculdades de regulação e inspeção e com o direito de queixa ou apelação an te as autoridades superiores pelas inferiores; e, por fim, 4) as regras segundo as quais se há de proceder são: a) técnicas e b) normativas." Para Weber, esse tipo de domínio (ou autoridade) "pode adotar formas muito distintas". A ele corres ponde sempre uma estrutura administrati va, precisamente a burocracia ou o qua dro administrativo burocrático. ,. Estamos, por conseguinte, diante do princípio da legalidade, a que nos referi mos anteriormente. Essa legalidade, segundo acentua Bonavides,"exprime basi camente nos sistemas políticos a observância das leis, isto é, o procedimento da autoridade em consonância estrita como o direito estabelecido. Ou, em outras pa lavras, traduz a noção de que todo poder estatal deverá atuar sempre de conformi dade com as regras jurídicas vigentes. Em suma, a acomodação do poder que se exerce ao direito que o regula. 20 As formas tradicional, carismática e legal da autoridade, extremadas da forma brutal da força, são chamadas "puras" por Weber. São tipos ideais, que a realida de s6 aproximativamente reproduz. Daí não raro existirem combinadas, reforçadas ou deformadas umas pelas outras, tornando a tradição, o carisma e a legalidade de 19 Weber,Max,op.cit.v.l,p.127-75. 20 Bonavides, Paulo. op. cit. p. 113. Autoridade 11 fatores interdependentes no alcance e no exercício do poder e da autoridade. Em bora as suas definições, mormente as das autoridades tradicionais e carismáticas, tenham caráter mais histórico, ainda hoje, mutatis mutandis e apesar das transfor mações, encontram aplicação nos atuais sistemas de autoridade. Dentro da redoma da legalidade, por um imperativo da natureza humana e dos costumes, os chefes de Estado e os governantes em geral continuam agindo também por tradicionalis mo e por carisma ... Por último, vem a questão da capacidade coativa global de que se investe a au toridade. Afirma-se num determinado sentido que essa capacidade coativa, na am pla dimensão do Estado, goza de um monopólio pelo menos interno, que, aliás, extrapola externamente como soberania, sendo absoluta e incondicionada nos limi tes estatais. Isso, salvante os governos despóticos, quer apenas dizer que a autori dade, enquanto globalizada num sistema político, prevalece sobre todas as formas adjetivas de coação, direta ou indiretamente deferidas à sua substantividade. Para que isso ocorra, todavia, sendo a autoridade um produto das relações bila terais entre governantes e governados, é imprescindível o seu reconhecimento so cial. Nesse particular, como salienta Hermann Heller, "o poder do Estado não é nem a soma, nem a mera multiplicação das forças nele inclusas, senão a resultante de todas as ações e reações politicamente relevantes, internas ou externas", com preendendo "três grupos que, naturalmente, não se hão de conceber como magni tudes estáticas, senão como dinamicamente cambiantes, a saber: o núcleo que rea liza positivamente o poder do Estado, os que o apóiam e os partícipes negativos que a ele se opõem"'" Como expressão concreta do poder e da autoridade, nessas condições, podemos distinguir em sua capacidade coativa determinantes objetivas e subjetivas ou, até mesmo, intersubjetivas .. as primeiras representadas pelo fator efetivo da tradição, do carisma ou da lei, as segundas pelas condições de subjetividade daqueles sobre que recaem a autoridade e a respectiva coação, e, finalmente, as últimas, pelas re lações de intersubjetividade que se estabelecem entre governantes e governados. A propósito cabe aí a valiosa contribuição de Stephane Bernard, professor na Universidade Livre de Bruxelas, sobre as propensões coletivas de comportamento em face da autoridade. Segundo sua concepção, três pelo menos são essas pro pensões: as espontâneas dos que recebem ordens, incluindo as propensões para a obediência e as propensões para a desobediência; as espontâneas dos que dão or dens, dando ou não determinada ordem e fortalecendo ou não a repressividade; e as propensões à obediência mais ou menos dos que recebem ordens. As duas primeiras hipóteses configuram situações mais definidas que a última, em que há uma variação tanto para o consenso quanto para o dissenso daqueles sobre que re cai a coação. As hipóteses estabelecidas prefiguram uma multiplicidade de si tuações que se pode realizar na vida real, mas de difícil qualificação, inclusive no campo da lógica matemática, como se pretende. 22 Contudo, a possível previsão dessas situações favoreceria o equacionamento da autoridade, na dosagem de seu poder coativo frente à receptividade coletiva. Aparentemente sob a mesma ótica analista de Max Weber, o professor norte americano lohn Kenneth Galbraith traz novas achegas- a nossa temática com o seu 2' Heller, Hermann. Teoría dei Estado. México, Fondo de Cultura Econ6mica, 1942. p. 267. 22 Bernard, Stephane. Possibilidades de evolução da teoria dos extremos políticos democráticos. Revista de Ciência Poü!ica, 7(2):3, jun. 1973. 12 R.C.P. 3/88 livro Anatomia do poder, publicado em 1983 e, no Brasil, em 1984. Embora tenha ele declaradamen~e tratado do poder, não é por certo despiciendo transferir as suas originais especulações para o campo da autoridade, sem dúvida, como já demons tramos, a expressão mais autêntica da ação potestativa do Estado. Em busca de suas conclusões, Galbraith distingue "os instrumentos pelos quais o poder é exercido" e "as fontes do direito para esse exercício", fixando-lhes as respectivas relações. O primeiro desses instrumentos é o que el~ chama poder condigno, definido como aquele que "obtém submissão pela capacidade de impor às preferências do indivíduo ou do grupo uma alternativa suficientemente desa gradável ou dolorosa para levá-lo a abandonar essas suas preferências". 23 Em idioma inglês, o autor ficou indeciso entre preferir o qualificativo "condigno" ou o termo "coercivo" para essa forma de poder, passando por indecisão, igualmente, em nosso idioma, o tradutor, ambos decidindo afinal manter o primeiro. Porém, não se conseguiria um perfeito entendimento sem a explicação de que se trata de um poder como punição física e, mais amplamente, como aquele exercido "por qualquer forma ou ameaça de ação adversa, inclusive multas, expropriações, re preensão verbal e condenação ostensiva por outros indivíduos ou pela comunida de"," sendo afinal, a inferir do significado da palavra "condigno", um poder adequado à necessidade individual ou social de obediência. Da mesma insuficiên cia terminológica participam as designações dos dois outros poderes, o compen satório e o condicionado, a exigirem igualmente explicações. Em contraste com o poder condigno, que "obtém submissão infligindo ou ameaçando conseqüências adequadamente adversas", o poder compensatório "conquista a submissão ofere cendo uma recompensa positiva, proporcionando algo de valor ao indivíduo, que assim se submete". Este "algo de valor" pode ser qualquer tipo de recompensa, notadamente a de ordem pecuniária. Quanto ao poder condicionado, é o "exerci do mediante a mudança de uma convicção, de uma crença. A persuasão, a edu cação ou o compromisso social com o que parece natural, apropriado ou correto leva o indivíduo a se submeter à vontade alheia". 25 No que se refere às fontes, "atributos ou instituições que distinguem os que detêm o poder daqueles que se submetem a ele", são também em número de três - a personalidade, a propriedade e a organização". A personalidade - liderança, na linguagem comum - é a qualidade do físico, da mente, da oratória, da firmeza moral ou de qualquer outra característica pessoal que dá acesso a um ou mais ins trumentos do poder". Por sua vez a propriedade, compreendendo em sentido am plo o poder econômico ou a riqueza, "confere um aspecto de autoridade, uma fir meza de propósito, e isso pode induzir à submissão". Finalmente a organização, "fonte de poder mais importante nas variedades modernas", é, de modo geral, "um número de pessoas ou grupos unidos por algum propósito ou trabalho" /" de finição esta, sem dúvida, por demais simplista. Comparando as proposições de Galbraith com as de Max Weber e outras, ve mos que os chamados instrumentos confundem-se com as diferentes modalidades pelas quais o poder ou autoridade se exerce, legitima e jurifica, tais como a lei (poder condigno), a troca de interesses (poder compensatório) e o reconhecimento 23 Galbraith, lohn Kenneth. A alUllOmla do poder. São Paulo, Pioneira, 1984. p. 4. 24 Id. ibid.p. 16. 25 Id. ibid .. p. 5, 6. 26 Id. ibid. o. 6, 7, 58. A.utoridade 13 social (poder condicionado), enquanto no referente às fontes a personalidade en volve os elementos do poder carismático e do poder tradicional, envolvendo por sua vez a propriedade e a organização, aliás pouco distintas, o chamado poder le gal. À semelhança de Weber e de quantos se preocupam com a perquirição das di ferentes formas de manifestação do poder e da autoridade, Galbraith procura esta J:>elecer não só uma "associação primária" entre os instrumentos e suas mais liga das fontes de poder, como associações mais complexas, em que os instrumentos e as fontes se intercomunicam através da multifacetada morfologia social, para daf inferir-se, na multiplicidade de situações dadas, toda uma variegada tipologia. É o que poderíamos chamar a macrossociologia do poder ou da autoridade. Uma das contribuições mais importantes de Galbraith consiste na denominada "dialética do poder" e na "simetria" ou "ássimetria" com que se realiza. Como vimos atrás, o processo potestativo é de natureza bilateral, exigindo mando. mas também obediência. Há até quem sustente o caráter igualmente mandatório da conduta dos sujeitos passivos da autoridade, isto é, daqueles sobre os quais ela se exerce. Os que detêm o poder e a autoridade não raro são compelidos a tomar de cisões que deixariam de assumir se obrigados não estivessem pela pressão dos comandados. Nessa ordem de idéias é que Galbraith coloca o problema da re sistência ao poder. "Essa resistência - diz ele - é uma parte tão integrante do fenômeno do poder quanto o seu próprio exercício. Se fosse de outra forma, o po der poderia ser ampliado indefinidamente: todos se submeteriam à vontade daque les melhor capacitados a usá-lo". 27 Vê-se pela exposição de Galbraith não se tratar do chamado "direito de re sistência", próximo do "direito de revolução", preconizado por tratadistas antigos e modernos. Esta seria uma forma excepcional de resistência à tirania, ao passo que, na espécie, não teríamos mais que um fenômeno latente de insubmissão de quem pode menos em relação a quem pode mais, justificando formas mais ou me nos ativas de oposição, tendentes a impedir ou limitar o exercício do poder ou a constituir um antipoder, um poder contrário. "Da eficácia relativa dessas forças oponentes dependerão - adianta ele - a amplitude e a eficácia do exercício do po der original." No seu entender, "podemos também reconhecer uma simetria subs tancial entre a maneira pela qual o poder se amplia e aquela pela qual é enfrenta do. Esta simetria se estende tanto às fontes do poder como aos instrumentos de sua imposição" "O poder que se origina na personalidade é normalmente enfrentado por uma personalidade forte; o que se origina da propriedade é contestado pela propriedade; o que tem suas origens na organização é normalmente combatido pe la organização. E o mesmo se passa com os instrumentos de imposição. A punição condigna faz face à punição condigna; a retribuição compensatória, à retribuição compensatória. Se o instrumento de imposição for o condicionamento social, ex plícito ou implícito, este será também o principal esquema de resistência." Mas, embora seja a simetria a regra geral, "ela não é inevitável. Há na história exem plos marcantes de poder contestatório ou de contraposição cuja eficácia tem de pendido de sua assimetria", isto é, da não correspondência entre os instrumentos e as fontes que dos dois lados do poder e do antipoder se defrontam. De qualquer modo, a conclusão dele é que "há na sociedade moderna um razoável equilíbrio entre os que exercem o poder e os que a ele se opõem. Chegamos agora à natureza 27 Id. ibid. p. 77. 14 R.C.P. 3/88 desse equilíbrio - à maneira como o poder gera a sua própria resistência e age no sentido de limitar sua própria eficácia"!8 O mais importante aqui, no entanto, é examinannos o reflexo dessa teoria no relativo ao poder e à autoridade do ponto de vista político, ou seja, do Estado. O assunto é tratado na obra em exame nos capítulos IX, sobre a "regulamentação do poder", XIV, sobre a "era da organização", e XV, sobre a "organização e o Es tado". Resumindo, tem certamente razão Galbraith: "O Estado moderno reúne dentro de sua estrutura as três fontes do poder - a personalidade política, a pro priedade sob a forma dos recursos que comanda e despende, e a organização. Tem acesso evidentemente aos três instrumentos de imposição: permanece, como já su gerido, quase o único detentor do poder condigno; dispõe de um vasto poder com pensatório; e utiliza maciça e crescentemente o poder condicionado."29 Todavia, com a evolução histórica, no tocante às fontes, a organização sobrepõe-se às de mais, e, quanto aos instrumentos, prevalece o poder condigno, assim se consti tuindo predominantemente o atual sistema político da autoridade. Não esgotaríamos o assunto deste estudo ~em uma referência à vocação do Es tado moderno para a associação do conceito de autoridade ao de liderança. Esta palavra tem significado particulannente a exaltação do indivíduo, do grupo ou da instituição em função dos atributos que os exornam e os tornam superiores na ca pacidade de serem seguidos e obedecidos. Tais atributos são praticamente os mesmos da autoridade, segundo a discriminação de Weber e Galbraith, já mencio nada. Caracteres intrínsecos, como o carisma e a personalidade, e extrínsecos, como a tradição, a legalidade e a organização, também substancializam a líderan ça. Surge portanto o problema da correlação (e diferenciação) dos dois conceitos, do ponto de vista político. A conclusão não pode ser outra: a liderança tem por si a diferença de, agregada ou não à autoridade, constituir sempre uma conduta ati va, uma ação dirigida para o domínio ou a dominação. Leslie Lipson, em sua obra A civilização democrática, acentua o caráter ambi valente da liderança. "A liderança - diz ele - implica adeptos, e a dinâmica de suas relações recíprocas funciona em ambas as direções." Noutras palavras, mor mente nas democracias, em que a vontade coletiva deve ser sempre consultada, o exercício da liderança não se efetua sem a colaboração explícita ou implícita dos liderados. Mesmo nos governos despóticos, embora de maneira menos aparente, isto é verdade. Aí está, portanto, mais uma identificação com a autoridade, onde o mando e a obediência devem constituir uma relação bilateral, segundo já vimos. Além disso, porém, é preciso ressaltar a importância da liderança para o exercí cio da autoridade, enquanto a ela associada ou não. Inexiste dúvida de que a -ca pacidade de liderança, isto é, de saber dirigir o governo e influenciar aqueles de que depende o seu êxito, reforça o princípio de autoridade. Leslie Lipson especula sobre essa questão na esfera dos governos democráticos. "Como é que os porta vozes do povo mantêm-se como seus campeões e não redundam em seus pa trões?", pergunta, para responder que tudo está a depender dos seguintes fé;ltores: a composição social do povo, seus ideais predominantes, a tradição histórica e as estruturas institucionais, a que acrescentaríamos, por conta própria, as qualidades, evidentemente, dos líderes. O argumento principal é de que o poder, a autoridade, a capacidade de ação de liderança tendem por natureza à perpetuação e ao despo- 28 Id. ibid. p. 77-85. L~ Id. ibid. p. 148. Autoridade 15 tismo, situações que só podem ser contornadas em vista dos fatores mencionados. E para demonstrá-lo, Lipson aponta três tipos de lideranças em que a democracia é preservada: a dos suíos, onde só se permite um mínimo de liderança individual, através do governo colegiado; a dos norte-americanos, em que é depositado ó má ximo de confiança na capacidade do chefe de Estado; e a dos ingleses, um meio termo das duas anteriores, em que o governo de ~abinete é controlado pelo parla mento. 30 Os fatores indicados, na sua relação com cada um dos povos onde esses governos seestabeleceram, não somente contribuíram para as características de que se revestiam tais governos, como asseguram o seu destino democrático. O exercício da liderança, adminículo da autoridade, a igual desta não é um fenômeno isolado ou autônomo, senão um corolário das condições sócio-políticas das coleti vidades. Ao concluirmos, resta uma avaliação das tendências do princípio de autoridade no mundo de amanhã. Ainda vemos por trás dele os fantasmas da força em sua formação e garantia, da injustiça em sua aplicação, dos privilégios em sua personi ficação, até mesmo nas democracias, da incapacidade de sua institucionalização política, mas por certo um dia chegará em que esse princípio, inerente à própria ordem da liberdade, será verdadeiramente o produto das virtudes humanas e cole tivas, sob o império da razão e da lei. 30 Sobre as citaçõe, de Leslie Lipson. ver A ci>'ilização democrática. Rio de Jaaeiro, Zahar. 1966. v. 2, p. 604 e segs. 16 Nas livrarias da FGV: Rio - Praia de Botafogo. 188 Av. Presidente Wilson. 228-A São Paulo - Av. Nove de Julho. 2029 Brasília - CLS 104. Bloco A. loja 37 Ou pelo Reembolso Postal À FGV Editora - Divisão de Vendas Caixa Postal. 9052 20.()()() - Rio de Janeiro - RJ R.CP. 3/88