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Algumas reflexões sobre o sistema de garantia de direitos. 17.12.2021 – Aula Fechada via zoom para alunos do @canaldoassistente social direto com a professora RECESSO DE FINAL DE ANO. www.youtube.com/poteresocialvideos ACOMPANHE TODO ESSE CONTEÚDO EM: https://is.gd/videoaulaservicosocialgratis 12h. 2ª EDIÇÃO – ESPECIAL TJ/SÃO PAULO Calendário: JANEIRO 07.01.2022– Aula Aberta ARTIGO RAICHELIS, Raquel. Atribuições e competências profissionais revisitadas: a nova morfologia do trabalho no Serviço Social; 14.01.2022– Aula Aberta ARTIGO BORGIANNI, Elisabete. Para entender o Serviço Social na área sociojurídica. 21.01.2022– Aula Fechada via zoom para alunos do @canaldoassistente social direto com a professora. 28.01.2022– Aula Aberta ARTIGO: FÁVERO, Eunice Teresinha. O Serviço Social no Judiciário: construções e desafios com base na realidade paulista. FEVEREIRO 04.02.2022– Aula Aberta ARTIGO: KOGA, Dirce. 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Serviço Social e avaliações de negligência: debates no campo da ética profissional. 133 07_ CARLOTO, Cássia Maria; DAMIÃO, Nayara A. Direitos reprodutivos, aborto e Serviço Social. 153 08_ FONSECA, Claudia. (Re)descobrindo a adoção no Brasil trinta anos depois do Estatuto da Criança e do Adolescente. 187 09_ GOES, Alberta E. D. Criança não é brinquedo! A devolução de crianças e adolescentes em processos adotivos. 196 10_ MIOTO, Regina C. T. Para que tudo não termine como um “caso de família”: aportes para o debate sobre a violência doméstica. 204 11_ PARIZOTTO, Natália Regina. Violência doméstica de gênero e mediação de conflitos: e a reatualização do conservadorismo TEXTOS DA REVISTA SERVIÇO SOCIAL E SOCIEDADE N. 115 223 12_BORGIANNI, Elisabete. Para entender o Serviço Social na área sociojurídica (ASSISTA A VIDEOAULA ESTUDE SESO COMIGO) 259 13_FÁVERO, Eunice Teresinha. O Serviço Social no Judiciário: construções e desafios com base na realidade paulista (ASSISTA A VIDEOAULA ESTUDE SESO COMIGO) CLIQUE AQUI https://is.gd/videoaulaservicosocialgratis https://is.gd/videoaulaservicosocialgratis https://is.gd/videoaulaservicosocialgratis https://is.gd/videoaulaservicosocialgratis https://is.gd/videoaulaservicosocialgratis https://is.gd/videoaulaservicosocialgratis https://api.whatsapp.com/send?phone=5585999522704 https://canaldoassistentesocial.com.br/ 278 14_FUZIWARA, Aurea Satomi. Lutas Sociais e Direitos Humanos da criança e do adolescente: uma necessária articulação 295 15_TELLES, Vera. Jogos de poder nas dobras do legal e do ilegal: anotações de um percurso de pesquisa 314 16_TEJADAS, Silvia da Silva. Serviço Social e Ministério Público: aproximações mediadas pela defesa e garantia de direitos humanos 339 17_AZAMBUJA, Maria Regina Fay de. A interdisciplinaridade na violência sexual 360 18_VALDEVENITO, Martha. Condicioneslaborales de trabajadores sociales en el Poder Judicial de Neuquén 377 19_ROCHA, Andréa Pires. Proibicionismo e a criminalização de adolescentes pobres por tráfico de drogas 397 20_SEGALIN, Andreia. Serviço Social e viabilização de direitos: a licença/salário-maternidade nos casos de adoção TEXTOS DO LIVRO SERVIÇO SOCIAL E TEMAS SOCIOJURIDICOS 411 21_ KOGA, Dirce. Diagnósticos socioterritoriais: conhecimento de dinâmicas e sentidos dos lugares de intervenção (ASSISTA A VIDEOAULA ESTUDE SESO COMIGO) 424 22_ BAPTISTA, Myriam V.; OLIVEIRA, Rita C. S. A reinserção familiar de crianças e adolescentes: perspectiva histórica da implantação dos Planos Individuais de Atendimento e das Audiências Concentradas 439 23_ FÁVERO, Eunice T. Barbárie social e exercício profissional: apontamentos com base na realidade de mães e pais destituídos do Poder Familiar. 457 24_ FRANCO, Abigail A. P. O acolhimento familiar e as ações voltadas à proteção e promoção dos direitos de crianças e adolescentes 475 25_ GOIS, Dalva A. Famílias, desenraizamento social e privação de direitos 491 26_ SOUSA, Charles T. Práticas punitivas e Serviço Social: reflexões sobre o cotidiano profissional no campo sociojurídico. CLIQUE AQUI https://is.gd/videoaulaservicosocialgratis https://api.whatsapp.com/send?phone=5585999522704 https://canaldoassistentesocial.com.br/ VEJA TAMBÉM Fizemos um Drive com ainda mais materiais do seu edital! Acesse agora – Clique aqui: http://www.poteresocial.com.br/noticias/ Lista Material do Drive @poteresocial e @canaldoassistentesocial I_EBOOK POTERE_LEGISLAÇÃO SOCIAL TJSP II_EBOOK POTERE_SERVIÇO SOCIAL TJSP III_CFESS. Seminário Nacional de Serviço Social e Diversidade Trans: exercício profissional, orientação sexual e identidade de gênero em debate. IV_ FÁVERO, Eunice T. (Org.). Famílias na cena contemporânea: (des) proteção social, desigualdades e judicialização. 1ª edição eletrônica. V_GOES, Alberta E. D. E agora José e Maria? O encontro com a maioridade após uma vida em acolhimento institucional. VI_ GUIA OPERACIONAL DE ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES. ALANA e MPSP VII_ Revista Serviço social e Sociedade, nº 133 VIII_CFESS. Atuação de assistentes sociais no sociojurídico: subsídios para reflexão IX_ CFESS. Sistematização e análise de registros da opinião técnica e emitida pela/o assistente social em relatórios, laudos e pareceres, objetos de denúncia éticas presentes em recursos disciplinares julgados pelo Conselho Federal de Serviço Social CLIQUE AQUI https://www.instagram.com/poteresocial/?hl=pt https://www.instagram.com/canaldoassistentesocial/?hl=pt https://api.whatsapp.com/send?phone=5585999522704 https://canaldoassistentesocial.com.br/ I FAMÍLIA CONTEMPORÂNEA E PROTEÇÃO SOCIAL: NOTAS SOBRE O CONTEXTO BRASILEIRO* Regina Célia Tamaso Mioto1 Introdução Entabular uma discussão acerca da família contemporânea e proteção social no contexto brasileiro requer considerar a sua complexidade, tendo em conta que a história da família se confunde com a própria história da humanida- de. Esta convivência constante e milenar faz com que o sentimento de intimi- dade que lhe caracteriza pareça universal e que os vínculos de afeto radicados na infância tenham aparência de naturais. Porém, não são poucas as pesquisas que demonstram tanto as suas transformações ao longo do tempo como a pre- sença de inúmeras formas de ser e conviver em família no quadrante do mesmo tempo histórico e do mesmo espaço social. Philippe Ariès (1978) através de seu livro a “História Social da Criança e da Família” evidenciou o quão recente na história da humanidade é o sentimento em relação a infância. O historiador in- glês Peter Laslett foi um dos pioneiros a demonstrar que a convivência de vá- rios modelos familiares sempre existiu e, portanto, a diversidade de famílias não é uma questão contemporânea. Através de pesquisas empíricas sobre a família europeia ocidental o historiador afirma a existência, já no século XV, de famí- lias conjugais nucleares que vieram representar o modelo de família típico e ide- al da modernidade (LASLETT, 1972). No Brasil, a antropóloga Mariza Corrêa em seu artigo intitulado - Repensando a família patriarcal brasileira - pergunta se a “família patriarcal” brasileira seria o modo de viver cotidiano da organiza- ção familiar no Brasil colônia. Através de uma leitura atenta e cuidadosa da his- toriografia a autora afirma que “a “família patriarcal” pode ter existido e seu pa- pel ter sido extremamente importante: apenas não existiu sozinha, nem coman- *DOI – 10.29388/978-65-86678-28-4-0-f.23-44 1 Professora do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da UFSC. Bolsista Produtividade em Pesquisa/CNPq. Membro do NISFAPS - Núcleo de Pesquisa Interdisciplinar Sociedade, Família e Política Social. 23 www.canaldoassistentesocial.com.br 1 dou, do alto da varanda da casa grande o processo total de formação da socie- dade brasileira” (CORRÊA, 1981, p. 10). Assim, parecem incontestáveis tanto o caráter histórico da família como a sua diversidade nas formas de ser e conviver. Tais formas vão se trans- formando ao longo do tempo em sincronia com as transformações que ocor- rem no conjunto da sociedade e que desde o século XVIII se organiza sob o modo de produção capitalista. Assim, a família contemporânea emerge na se- gunda metade do século XX em meio às transformações das tecnológias, do mundo do trabalho, da economia e da cultura. Uma família que tende, segundo Roudinesco (2003), a se configurar pela união de dois indivíduos em busca de relações íntimas ou de realização sexual. Nela se acentuam as tensões entre indi- vidualização e pertencimento, ancorada na quebra da divisão sexual do trabalho e do poder. Portanto, diferente da família moderna, configurada entre o século XVIII e meados do século XX, fundada no amor romântico e no casamento as- sentado na reciprocidade de sentimentos e na complementariedade de papéis, através da divisão sexual do trabalho entre os cônjuges. A família contemporâ- nea caracteriza-se pela presença cada vez mais reconhecida de suas diferentes composições que se relacionam a alteração do vínculo do casamento, ao reco- nhecimento das uniões estáveis e mais recentemente das uniões de pessoas do mesmo sexo. As transformações da família nos últimos 50 anos do século XX de- monstram a sua relação intrínseca e dialética com as transformações societárias e torna possível reconhecê-la no cruzamento de contínuos deslocamentos dos limites entre esfera privada e esfera pública. De acordo com Pescarolo (2001) é justamente neste cenário que se tornam visíveis mudanças importantes como: as fronteiras e as linhas de estrutura do parentesco, as relações entre os sujeitos que compõem a família, o raio e a natureza das relações fora da família, além da interação dos diversos sujeitos nos processos sociais e institucionais. Ainda para a autora, mudam os sentimentos familiares e são renegociadas as obrigações re- cíprocas. Passa-se de um modelo normativo forte, para um leque mais amplo de oportunidades individuais em que se torna possível modular com flexibilidade modos e tempos de vida. Portanto, as mudanças que caracterizam as famílias contemporâneas vêm sendo consideradas dentro de uma tendência não só dos padrões demo- gráficos, mas também de modos de vida. No arco das inúmeras possibilidades de famílias encontramos as famílias homoafetivas, as “famílias DINC” (GE- 24 www.canaldoassistentesocial.com.br 2 LINSKI, DAL PRÁ, no prelo), as “famílias poliamorosas” (GRANDE, 2018)2, as famílias de casais com filhos, as famílias unipessoais, as famílias monoparen- tais e outras. Porém, como afirma Bilac (1995) não existem apenas formas di- versas de ser e conviver em família, mas elas estabelecem relações diferentes com as outras esferas da sociedade, como o Estado, o Trabalho e o Consumo. Essa assertiva é fundamental para se analisar a famíliano contexto da sociedade brasileira considerando as desigualdades estruturais de classe, gênero e raça/et- nia que conformam essas relações no Brasil. Além disso não pode ser esquecido o caráter contraditório e as relações desiguais que persistem no interior dos gru- pos familiares. Esse conjunto de relações intrinsicamente interdependentes os tornam tanto um lugar de relações amorosas e solidárias como de violências e violações. Dentro desse quadro e a partir da indicação das concepções de família presentes no debate contemporâneo, esse texto pretende discutir a família no contexto da proteção social brasileira. Nessa discussão inclui-se seus aspectos históricos e faz-se algumas pontuações sobre o período pós Constituição de 1988. Família e Proteção Social: relações e concepções Assim como a história da família e da humanidade se confundem, tam- bém se confundem as relações entre família e proteção social. A solidariedade familiar e comunitária sempre esteve presente nas formas de organização do amparo dos membros de diferentes sociedades e em tempos diversos, diante das necessidades impostas para a continuidade da própria existência. Assim, ao longo da história sempre recaíram sobre a famílias expectativas de proteção so- cial e de acordo com cada momento tais expectativas tenderam a aumentar ou a diminuir. A institucionalização de sistemas de proteção social é um aconteci- mento recente na história humana, fruto da modernidade e das relações sociais contraditórias típicas do modo de produção capitalista. Nas sociedades contem- porâneas ocidentais com as transformações ocorridas na sociedade e na família, a instauração de um sistema público de proteção social – particularmente do welfare europeu no pós-guerra – significou um avanço civilizatório importante 2 As famílias DINCS são aquelas formadas por casais sem filhos, com dupla renda e muitas delas com animais de estimação. (DINC= duplo ingresso, nenhuma criança). As famílias poliamorosas são aquelas formadas por vínculos de amor, duradouros e estáveis, entre mais de duas pessoas adultas, não importando se sejam homo, hetero ou bissexuais. 25 www.canaldoassistentesocial.com.br 3 no desenvolvimento da sociedade. O século XX será emblemático nas diferen- tes articulações entre o Estado, a família/sociedade civil e o mercado para a provisão de bem-estar social. (DI GIOVANNI, 1998; ESPING-ANDERSEN, 2000). Sobre a importância da presença do Estado na proteção social Sarace- no (1996) salienta que ele, através de suas políticas sociais, é um recurso funda- mental para promover a autonomia da família em referência à parentela e à co- munidade, e à autonomia dos indivíduos em relação à autoridade da família. Por isso, o Estado é o único agente que, através da garantia de direitos intransferí- veis a todos os cidadãos, pode postular algum tipo de igualdade na sociedade. Para reforçar essa tese Peixoto (2007), referindo-se a análise de François Singly sobre a família contemporânea, assinala que a existência do indivíduo contem- porâneo depende crucialmente de seus próximos e ao mesmo tempo de sua in- dependência em relação a eles. Para o autor a individualidade e a convivência respeitosa só pode acontecer quando, através de mediações institucionais – leia- se proteção pública - se pode sustentar tanto a individualidade quanto a inde- pendência. Dessa forma, afirma-se que das diferentes articulações produzidas entre Mercado-Estado-Família/Sociedade Civil para provisão de bem-estar, mediadas obviamente pelo Estado, resultam diferentes regimes de bem-estar social (ES- PING-ANDERSEN, 2000). Estes se transformam e suas transformações estão vinculadas às concepções de justiça e igualdade/equidades reinantes, em dado momento histórico, nos diferentes países. Acoplado a essa concepção de justiça encontram-se as expectativas de proteção social depositadas na família. Estas são decorrentes das diferentes concepções de família que permeiam as socieda- des e que se alinham a projetos societários diferentes e, obviamente, expressam interpretações teórico-metodológicas diversas sobre a realidade social. Atualmente as concepções de família em evidência no campo da pro- teção social estão situadas no arco do estrutural funcionalismo e da teoria social crítica. A concepção derivada do estrutural funcionalismo é ancorada nas pro- posições de Emile Durkheim e tem Talcott Parsons como sua grande referên- cia. Em linhas muito gerais, pauta a família a partir do casamento e da comple- mentariedade de papéis, além de definir a socialização primária e o apoio e pro- teção de seus membros como sua função precípua. Dessa forma, a família atra- vés do adequado cumprimento de suas funções estaria, junto com outras insti - tuições, sustentando a harmonia e a coesão social. Nesse espectro consolida-se a centralidade de um modelo ideal de família constituída por homem/pai – mu- lher/mãe e filhos. Os processos familiares são compreendidos e tratados no 26 www.canaldoassistentesocial.com.br 4 âmbito da própria família, desvinculando-a das bases materiais de produção da sociedade capitalista. Esta concepção alicerça inúmeros estudos produzidos no século XX, particularmente sobre os processos de intervenção nas famílias. No escopo dessa abordagem a família é tratada como instância essencialmente pri- vada, sob o prisma da ordem, da integração, da estabilidade/harmonia e alheia ao processo histórico. Ainda sob a lógica do estrutural-funcionalismo os confli- tos e as instabilidades que têm lugar na família são interpretados como desvios ou disfunções e o foco de suas análises recaem sobre as relações internas da fa - mília. Esta é uma interpretação que tem favorecido a abordagem da família des- vinculada de suas relações estruturais com outras esferas da sociedade. Saraceno (2013) aponta que essa concepção é responsável pelo pensamento hegemônico que perdura na sociedade de pensar as relações da família com o trabalho e a economia apenas através do consumo ou da privação de recursos nas famílias pobres. Por esse prisma a privação de recursos e de energia das famílias pobres são interpretadas apenas como empecilho para o pleno desenvolvimento de sua dimensão relacional e socializadora. Em termos históricos, a concepção estrutural-funcionalista é herdeira do pensamento conservador, que se desenvolveu em oposição ao pensamento postulado pela revolução francesa de 1789 e tinha como lema a igualdade, a li- berdade e a fraternidade. O pensamento conservador moderno apoia-se na ideia que as desigualdades sociais têm uma base natural e que os esforços da es- fera pública para compensar as desigualdades por meio de leis, só fazem preju- dicar as liberdades, especialmente dos mais fortes e dos mais brilhantes. Dessa forma, a ampliação do poder público é uma tentativa equivocada de constran- ger por meio de leis sociais as desigualdades naturais e/ou a espontaneidade histórica. Nessa perspectiva defende as estruturas intermediárias de poder da sociedade, constituídas como entidades orgânicas e articuladas (GAHYVA, 2017; IAMAMOTO, 1997). A família, enquanto uma estrutura intermediária, assume papel relevante no pensamento conservador. Não por acaso tornou-se notável o amplo desenvolvimento do estrutural funcionalismo nos estudos so- bre família. A concepção de família, construída no marco da teoria social crítica, as- senta-se no entendimento que a família é parte intrínseca do conjunto das rela- ções sociais e é transpassada pelas contradições que caracterizam tais relações e, portanto, lócus privilegiado das expressões da questão social. Suas relações são movidas pelo conflito, advindos também da diversidade de interesses, necessi- dades e antagonismos entre seus membros. Dessa forma, assenta-se ainda na afirmação do caráter histórico da família e, por isso, entende a família nuclear 27 www.canaldoassistentesocial.com.br 5 como uma formação típica do capitalismo e nesse contexto constitui-se uma instituição privilegiada dos processosde reprodução social. Ela não é tomada apenas como o lugar de afetos e socialização, mas é reconhecida como unidade econômica e de serviços nos termos de Saraceno (2013). A autora, como apon- tou Mioto (2015), afirma que a família é uma unidade econômica para a qual se conflui rendimentos de diferentes fontes para uma “bolsa comum” e que os ga- nhos embora sejam individuais (salários), o direito de administrá-los e de gastá- lo é da família. Assim, o assalariamento aprofunda desigualdades dentro da fa- mília e gera tensões entre os seus membros, especialmente entre aqueles que ga- nham o dinheiro/salário e aqueles que o ganham indiretamente, através do va- lor adjunto do trabalho doméstico e de cuidado desenvolvido no interior da fa- mília. Dessa forma, a família é considerada uma instância pública-privada e, portanto, nas sociedades com profundas desigualdades estruturais de classe, gê- nero e etnia, como a brasileira, as transformações do mundo do trabalho, asso- ciadas às mudanças demográficas, tem impactos profundos e diferentes nas fa- mílias. As diferentes perspectivas relacionadas às diferentes matrizes teórico- metodológicas possuem divergências significativas nas formas de conceber fa- mília, particularmente em relação as expectativas que se tem sobre as formas de ser e conviver em família e em relação ao seu papel na provisão de bem-estar, ou seja, na proteção de seus membros. Em relação às formas de ser e conviver em família, a tendência do estrutural funcionalismo é a afirmação e defesa do modelo ideal de família, embora o discurso da multiplicidade de formas já seja incorporado nessa concepção. Porém, apesar admissão da possiblidade das di- ferentes formas, não se quebram as expectativas em relação papéis familiares - homem/pai e mulher/mãe – e persevera a ideia da família como a primeira e principal responsável pela provisão de bem-estar a seus membros. Nesse senti- do fortalece a visão naturalizada que o senso comum tem acerca das obrigações familiares. Para a perspectiva crítico dialética, tendo em conta suas categorias ba- silares historicidade, totalidade e contradição, a multiplicidade de formas famili- ares é vista como decorrente dos processos de transformação da sociedade. En- tende-se os modos de vida das famílias e as questões que têm lugar no seu inte- rior como expressões das inúmeras relações que se entrecruzam na família. Ou seja, das relações que as famílias estabelecem com as diferentes esferas da socie- dade, Estado, Mercado/Trabalho, entre os seus membros e com o conjunto das redes sociais primárias e secundárias de seus membros. Dessa forma, considera- se que os conflitos que tem lugar no seu interior não são gerados apenas a par- 28 www.canaldoassistentesocial.com.br 6 tir das relações entre os seus membros, mas tendem a exprimir os conflitos constitutivos da própria sociedade. Além disso, o pensamento crítico-dialético pondera que as famílias, dadas as condições objetivas de vida no quadro de de- sigualdades típicas do modo de produção capitalista e da transição demográfica contemporânea, não podem assumir a maior parte dos custos pela provisão de bem-estar de seus membros. Tais concepções de família sustentam diferentes projetos de proteção social. Ou seja, sociedades que partilham de uma concepção de família que re- conhece as transformações da sociedade e da família, e que buscam níveis mais elevados de justiça e igualdade tendem a colocar no Estado maior responsabili- dade pela provisão de bem-estar, através da lógica do direito e da cidadania. So- ciedades que partilham de uma concepção de que a família - independente das transformações da sociedade e da família - é a principal responsável pela provi- são de bem-estar de seus membros, tendem dar primazia a ela e obviamente ao mercado, na organização da proteção social. Família e Proteção Social no Brasil: aspectos históricos A família no Brasil sempre desempenhou papel central na construção das relações sociais ao longo dos séculos. No seu livro “Raízes do Brasil” (2017), Sergio Buarque de Holanda (2017) afirma enfaticamente que a família – como entidade privada – precede a pública, à medida que a sombra do quadro familiar persegue os indivíduos mesmo fora do espaço doméstico. Para o autor a “improvisada” burguesia urbana no Brasil nasceu impregnada pela marca da família, trazendo na sua formação a incompatibilidade entre o patriarcalismo e personalismo fixados pela tradição e as formas de vida que se tentava construir à semelhança dos países mais avançados. No Brasil colônia a família junto com a Igreja assumiam toda a responsabilidade na provisão da saúde, educação e as- sistência social. Essa conformação teve influência decisiva tanto na legislação brasileira em relação a família, como na configuração da proteção social ao lon- go dos anos republicanos no Brasil. Em termos de legislação, a Igreja foi decisiva na definição de família que passou a fazer parte das Constituições brasileiras. Ou seja, a família consti- tuída por um homem e uma mulher e sua prole, tendo o homem como cabeça do casal e o casamento indissolúvel até 1977. Em termos de proteção social a família continuou sendo referência central no desenho da política pública brasi- leira e a Igreja continuou como grande influenciadora da repartição de respon- 29 www.canaldoassistentesocial.com.br 7 sabilidade na provisão de bem-estar social, especialmente através da força de um de seus princípios chaves que é o princípio da subsidiariedade. Esse princí- pio consta da Encíclica Quadragésimo Ano de Pio XI, publicada no ano 1931 e versa sobre a teoria social católica da solidariedade social. Ele se refere ao esca- lonamento das atribuições em função da complexidade do atendimento dos in- teresses da sociedade. Por isso estabelece que as instâncias superiores prevale- cem sobre as instâncias menores apenas quando estas falham na satisfação de atribuições que lhes competem (MIOTO, 2015; 2016). O sistema de proteção social no Brasil configurado no início do século XX teve como pilares o trabalho e a família, caracterizando-se como um siste - ma de caráter familista ou constituídos por políticas “de família” ou “referidas à família” nos termos de Goldani (2005). Para a autora, as “políticas referidas à família” têm na sua composição elementos que visam fortalecer as funções so- ciais da família, seja a partir de sua estrutura, de suas características ou de de- mandas de seus membros. Tais elementos estão presentes tanto nas políticas de caráter universal, como nas focalizadas de combate à pobreza, à violência do- méstica, dentre outras. As “políticas de família” visam intervir na modelação das famílias, buscando conformar as estruturas familiares a partir de um modelo ideal. Este modelo ancora-se tanto em valores culturais dominantes, como em uma concepção de desenvolvimento econômico relacionada ao papel que se es- pera da população a partir desse modelo. Ao longo do desenvolvimento histórico brasileiro as “políticas de famí- lia” tiveram lugar especialmente no primeiro quadrante da república. Isso ocor- reu, segundo Fonseca (2001), quando a família desenvolveu papel estratégico na conformação da ideia de nação e tornou-se imprescindível para atender as de- mandas de reprodução da força de trabalho no contexto da emergência do capi- talismo. Muito se investiu na consolidação do modelo de família nuclear bur- guês (pai-mãe e filhos) tendo como parâmetros o eugenismo e o higienismo3. Nesta perspectiva, foi emblemático o Estatuto da Família de 1941 - decreto-lei n. 3.200 de 19 de abril de 1941- que normatizava, dentre outras coisas, o casa- mento, a filiação e a concessão de auxílios através das caixas de pensões aos tra- 3 A grosso modo, o higienismo refere-se a doutrina que nasce na primeira metade do século XIX na Europa, quando os governantes começam a vincular a saúde da população aos hábitos de higiene e a comportamentos pessoais/familiares e criam-se políticas pautadas na defesa de comportamentossaudáveis. Eugenismo refere-se ao conjunto de ideias e práticas relativas ao aprimoramento da raça. Nessa base se desenvolvem políticas para sanar a sociedade de pessoas com determinadas enfermidades ou características consideradas indesejáveis (doenças, impulsos criminosos). 30 www.canaldoassistentesocial.com.br 8 balhadores. No seu capítulo VIII, chancelava a subvenção “as instituições de assistência, já organizadas ou que se organizarem para dar proteção às famílias em situação de miséria” (BRASIL, 1941). Nesse decreto, toma corpo a ideia da proteção à família vinculada ao trabalho, ou seja, a proteção social vinculada a figura do trabalhador. À filantropia, majoritariamente, caberia o atendimento às famílias que não conseguissem atender as necessidades de seus membros por seus próprios meios, dentre esses, o trabalho remunerado formalizado. Esta configuração de proteção social assentada basicamente sobre o trabalho e a família perdurou até a Constituição de 1988. Tal configuração foi amplamente debatida no contexto da discussão sobre a cidadania no Brasil. De acordo com Teixeira (1985) a cidadania, que tem como princípio a igualdade/ equidade, se torna realidade de fato à medida em que os direitos e deveres dos indivíduos são transformados em mecanismos de proteção social às necessida- des sociais. Foi no contexto do debate da cidadania, e da movimentação da so- ciedade brasileira em torno dela, que se erigiu a Constituição de 1988. No deba- te, ganharam projeção os conceitos de “cidadania regulada” e de “cidadania in- vertida” que expressaram a crítica ao sistema de proteção social brasileiro vigen- te. O conceito de “cidadania regulada”, forjado por Wanderley Guilherme dos Santos (1979), refere-se ao padrão institucional de reconhecimento do cida- dão pelo Estado. Trata-se de um conceito que vincula os direitos aos indivíduos inseridos no processo de produção. Dessa inserção depende a proteção dos membros de sua família. Isso caracteriza um modelo universalista de inclusão seletiva em projetos de bem-estar, através da associação entre o lugar que o tra- balhador detém em uma ocupação definida e reconhecida por lei e o seu status de cidadão. Nesse molde, a cidadania está atrelada a um sistema social estratifi- cado que tem como função mediar o conflito na esfera da produção, entre a ân- sia da acumulação do capital e a equidade social desejada. Portanto, distante de uma lógica de universalidade em que é reconhecido como cidadão, de forma efetiva, todo e qualquer membro de uma sociedade. Nesse sentido o padrão de cidadania no Brasil se caracteriza essencialmente pela dissonância entre cidada- nia formal (jurídica) e cidadania efetiva. Um exemplo notório dessa condição é o fato que até a Constituição de 1988 os direitos previdenciários e o direito à saúde eram diretamente associados à condição de trabalhador no mercado for- mal. Aqueles que não dispunham de trabalho formal, que era a maioria da po- pulação brasileira, dependia dos recursos familiares. Caso esses não existissem ficavam a mercê da filantropia. 31 www.canaldoassistentesocial.com.br 9 O conceito de “cidadania invertida” esteve amplamente presente no âmbito do debate sobre a assistência social brasileira4 e, de acordo com Teixeira (1985 p. 401), conforma a situação em que [...] o indivíduo entra em relação com o Estado no momento em que se reconhece como não-cidadão. Tem como atributos jurídicos e institucio- nais, respectivamente, a ausência de relação formalizada de direito ao be- nefício, o que se reflete na instabilidade das políticas assistenciais, além de uma base que reproduz um modelo de voluntariado das organizações de caridade, mesmo quando exercidas em instituições estatais. Ou seja, o acesso a algum tipo de benefício ou “direito de cidadania” implica na comprovação da inexistência de condições de cidadania. Um dos exemplos clássicos é a exigência do atestado de pobreza das famílias para a con- cessão de algum benefício ou acesso aos serviços. Ou, na versão mais atual, as famílias devem comprovar que são desprovidas de condições de vida cidadã para receberem o bolsa família. Em meio a efervescência do debate em torno da proteção social brasi- leira associada a cidadania acoplado à luta dos movimentos populares por direi- tos nos anos de 1970 e 1980 e pelas transformações das famílias, chegou-se à Constituição de 1988. Esta trouxe inovações importantes tanto no campo da família como no campo da proteção social. No campo da família rompe com toda a tradição das outras constituições ao postular a igualdade entre homens e mulheres; o reconhecimento da união estável, das famílias monoparentais e dos direitos iguais para os filhos (fim da distinção entre filhos “legítimos” e “ilegíti- mos”). Com base nela, em 2011, o Supremo Tribunal de Justiça (STF) em 2011 reconheceu a união estável para casais do mesmo sexo e, em 2013, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), através de resolução, proibiu cartórios de todo o Brasil de se recusarem a celebrar casamentos civis de casais do mesmo sexo. A proteção social, através da instituição da seguridade social, tornou-se um direito de cidadania a ser garantido pelo Estado. Dessa forma, desvincula o acesso aos benefícios e serviços da contribuição individual. Todos passam a ter o mesmo direito ao acesso, de acordo com sua necessidade. Isto significa a ado- ção de um mecanismo de solidariedade e redistribuição entre aquelas pessoas que podem contribuir e aquelas que terão os custos cobertos por toda a socie- dade, através de impostos e contribuições. Passa-se a operar dentro de um prin- 4 Merece destaque nessa discussão o livro Classes subalternas e assistência social de Maria Carmelita Yasbek publicado em 1993. 32 www.canaldoassistentesocial.com.br 10 cípio de justiça por meio do qual associa-se “um certo bem-estar como parte de um padrão civilizatório que define os direitos humanos” (FLEURY, 2007, p. 76). A Família na Proteção Social Brasileira pós Constituição de 1988: avanços e retrocessos A promulgação da Constituição em 1988 não significou o compartilha- mento de suas proposições, particularmente em relação aos direitos sociais, pela totalidade da sociedade brasileira. De acordo com Fagnani (2011), o fantasma da ingovernabilidade, sob o argumento dos custos da Seguridade Social para o Estado, esteve presente desde a Assembleia Nacional Constituinte, através do pensamento de representantes da elite econômica brasileira. Esta, já alinhada aos preceitos do neoliberalismo que alçava com força no contexto internacio- nal. A partir desse contexto vieram as pressões nos anos seguintes dos organis- mos internacionais, tais como Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional dentre outros, alavancando a ideia de que a política social deve ser, por excelên- cia, voltada para os pobres e por definição deve ser focalizada. No escopo dessa perspectiva, ressurgiu a família como referência central para a política social e imprescindível para a efetivação dos processos de focalização e seletividade. Portanto, desde a própria Constituinte se inicia a tensão entre diferentes proje- tos de proteção social para a sociedade brasileira. Uma tensão que por ora se acirra numa conjuntura em que, a despeito das experiências e análises que de- monstram o fracasso do pensamento neoliberal5, ele revive no Brasil atual. No decorrer dos anos entre 1988 e 2019, as tensões entre as diferentes proposições relativas à seguridade social foram aumentando e a família tornou- se um componente importante nesse debate. A grosso modo nesse período, no que se refere à família no escopo da proteção social brasileira, é possível identi- ficar diferentes conjunturas quando se observa a incorporação da família nas proposições sociais, econômicas e políticas, especialmente no campo da prote- ção social. Apesar da Constituição ter postulado o dever do Estado pela prote- ção social, ao longo de todo esse período, a família continuou tendo centralida- de no campo daprovisão de bem-estar. A política pública brasileira continuou 5 De acordo com o relatório da CEPAL (2014), as políticas adotadas na América Latina de redução dos gastos públicos e sobretudo dos gastos sociais, ou seja, o ajuste fiscal, foi a variável que teve um impacto altamente negativo nas condições de vida da população, provocando a deterioração dos níveis bem-estar social na região. 33 www.canaldoassistentesocial.com.br 11 sendo altamente referida à família, não conseguindo se desprender do caráter familista da sociedade brasileira, que se expressa na naturalização das funções familiares de cuidado e proteção; no curto-circuito estabelecido entre expecta- tivas de cuidado e proteção depositadas nas famílias e as condições objetivas para sua realização vinculadas às desigualdades de classe, gênero e etnia e no distanciamento da concepção de direitos como dever do Estado e na afirmação da solidariedade familiar (MIOTO; CAMPOS; CARLOTO, 2015). Porém, a incorporação da família não aconteceu de forma homogênea e linear durante todo o período. Ao contrário, é possível observar diferenças substantivas pelo menos entre dois períodos, o de 1989 a 2016 e o iniciado em 2016. O período compreendido entre 1989 e 2016 foi marcado por fortes ten- sões e embates na afirmação da seguridade social como direito social. Como emblemático do início desse período temos a presença massiva dos movimen- tos sociais, a produção das leis infraconstitucionais como a lei orgânica da saúde em 1990, a lei orgânica da assistência social (1993), a formulação do Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) entre outros, encaminhando as expectativas em direção a maior responsabilidade do Estado na proteção social. No entanto, na conjuntura do governo de Fernando Henrique Cardoso, a família já passa a fazer parte explicitamente dos Programas governamentais, como o Comunida- de Solidária e também do discurso governamental consoante às agências multi- laterais. Nessa perspectiva, é expressiva a declaração de Wanda Engel - secretá- ria de Assistência Social do Ministério da Previdência e Assistência Social - no ano 2000, ao rebater as críticas referentes ao Programa de Erradicação do Tra- balho Infantil. Segundo a secretária “a década de 90 foi a década dos direitos. Agora é a década da responsabilidade. A família tem de fazer força para sair da situação de indigência”6. Nesse período, o movimento contraditório entre a institucionalização da Seguridade Social com características de bem-estar e a sua não institucionali- zação (FAGNANI, 2007) foi pautando a vida política brasileira e, assim, che- gou-se à conjuntura dos governos do Partido dos Trabalhadores. Neles foram depositadas as melhores expectativas para o avanço da proposta constitucional de seguridade social. No entanto, apesar de avanços significativos como a Po- lítica Nacional de Assistência Social, além das políticas relacionadas às mulhe- res, negros, indígenas, quilombolas e o grande investimento no Programa de Transferência de Renda – Bolsa Família, dentre outros, assistiu-se também a in- corporação oficial da família na política social. A PNAS postulou dentre as suas 6 Esta declaração consta do jornal Folha de São Paulo de 30 de abril de 2000. 34 www.canaldoassistentesocial.com.br 12 diretrizes a matricialidade familiar e a política de saúde nesse período instalou a política de humanização na qual a família ganha significativo protagonismo (MIOTO; DAL PRÁ, 2015). Além disso, no contexto da política de assistência social, recuperou-se o trabalho social com famílias. Este, mesmo que postulado em novas bases e em defesa da diversidade das famílias, não conseguiu se des- vencilhar totalmente de suas amarras históricas e da concepção de família vin- culada a ideia de principal responsável pela proteção social. Nessas discussões forjou-se o jargão da “responsabilização da família” e jogou-se luz sobre as rela- ções família e Estado. Em meio a tal conjuntura, que tanto se reconheceu a fa- mília na sua diversidade e avançou-se muito na defesa dos direitos das minorias, assistiu-se também o retorno da concepção conservadora de família no plano legislativo. Em 2013, foi apresentado o projeto de lei que institui o Estatuto da Família (BRASIL, 2013) que deve dispor sobre “os direitos da família e sobre as diretrizes das políticas públicas voltadas para a valorização e apoiamento à enti- dade familiar”. Define entidade familiar “como o núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união es- tável, ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descen- dentes” (BRASIL, 2013). Este projeto ainda se encontra em tramitação e está na contramão da decisão do STJ já referida, além de contraria a própria realida- de. Decididamente o período de 1989 a 2002 abrigou conjunturas bastante contraditórias, caracterizadas por tensões e pressões para o avanço da proposta constitucional e marcadas pela visibilidade que deu à família como instância de provisão de bem-estar social, até então invisível no contexto do debate da po- lítica social brasileira. Porém com todas as contradições que marcaram tais con- junturas e com todas as ambiguidades e paradoxos contidos no binômio família e cidadania, não se negou em nenhum momento a postulação da Constituição Federal de 1988. Manteve-se o dever do Estado em relação à proteção social. O período referido navegou sob o paradigma da cidadania e grandes embates fo- ram travados na arena democrática da política brasileira. Mesmo em 1995, quando se aprovou a contrarreforma do Estado, estava posto o reconhecimen- to do Estado não apenas nas “suas tarefas clássicas de garantia da Propriedade e dos contratos, mas também seu papel de garantidor dos direitos sociais e de promotor da competitividade do seu respectivo país” (BRASIL, 1995, p. 7, gri- fo nosso). O golpe parlamentar de 2016 instaura a quebra do paradigma da cida- dania e demarca um novo período para a proteção social brasileira, sob a égide das políticas de austeridade. O projeto de proteção social contido na Constitui- 35 www.canaldoassistentesocial.com.br 13 ção Federal, que foi sofrendo duros golpes ao longo do tempo, passa a ter uma reorientação clara no escopo do paradigma neoliberal. Este paradigma pauta-se na ideia de “superioridade do livre mercado como mecanismo de alocação efici- ente de recursos”. A privatização é seu carro-chefe e o individualismo e a liber- dade - em detrimento da igualdade - são seus valores centrais (UGÁ; MAR- QUES, 2005, p. 196). Com a instauração desse paradigma a família ganha ainda mais protagonismo pois a política de austeridade, de acordo com Vieira et al (2018), consiste numa política de ajuste fundada na redução dos gastos públicos e do papel do Estado nas suas funções de indutor do crescimento econômico e promotor do bem-estar social. Inicia-se um período em que a família compulsoriamente deverá assu- mir os custos da provisão de bem-estar social, pois será de seu orçamento que sairão os recursos necessários para o pagamento de planos de saúde, da escola, da previdência privada e de tantos outros bens e serviços. A tendência nesse contexto é de aprofundamento da desigualdade considerando que as famílias não são homogêneas nem em recursos, nem em fases dos ciclos de vida, nem em modelos culturais e organizativos. São influenciadas e interagem com o con- junto da legislação e dos serviços sociais de formas diferenciadas e, portanto, as desigualdades de classe, gênero e raça/etnia tendem a ganhar visibilidade maior (SARACENO, 1996). Nesse paradigma, há o recrudescimento do acesso a be- nefícios e serviços, aprofundando-se a lógica dos programas focalizados com aumento expressivo da seletividade. No âmbito da prestação dos serviços públi- cos a família é tomada como o vetor para o que Britos (2006) denomina de “processos de externalização”. Esses processos consistem no encaminhamento dos usuários dos serviços públicos para outras instituições,dada a ausência ou sobrecarga de serviços ou recursos públicos. Os encaminhamentos são realiza- dos para as organizações comerciais quando a família possui recursos, para as organizações não governamentais (filantropia) quando não possui recursos, ou ainda, requerem as próprias unidades domésticas, especialmente para a presta- ção de cuidados. Além disso, aumenta exponencialmente a incorporação das fa- mílias nos serviços sociais, sob a forma de práticas administrativas ou de partici- pação devido aos processos de precarização e intensificação do trabalho que ocorre nas instituições públicas. Ou seja, a família é o fator de referência princi- pal para esses processos que sempre incluem também uma sobrecarga nas atri- buições das famílias. Por fim, sob o paradigma neoliberal, tende a haver o incre- mento dos processos de judicialização à medida que as famílias não conseguem atender as expectativas que se tem delas no provimento de bem-estar. A pres- são que se exerce sobre elas tende a aumentar e com isso aumenta-se o nível de 36 www.canaldoassistentesocial.com.br 14 estresse e de conflitos no interior das famílias, que são expressos através de inú- meras formas de violências. A tendência de agravamento da situação em que vivem as famílias é no- tória a partir de 2019 sob uma conjuntura na qual o neoliberalismo, assumido na sua plena perversidade, é associado à uma pauta reacionária nos costumes. Como diz Boron (1999), é notável a capacidade do pensamento neoliberal de criar, recriar e incrementar um “senso comum” neoliberal enraizado nas crenças populares. Nesse contexto a família torna-se o epicentro do processo social e político brasileiro e ocupa posição central no universo discursivo oficial. Ao mesmo tempo em que se discursa em nome da proteção da família, solapa-se as suas bases de sustentação, especialmente das famílias pobres, ao realizar o des- monte da seguridade social, da educação e de outras políticas setoriais7. Os da- dos apresentados pelo IBGE8, largamente divulgados pela imprensa, ajudam a sustentar a tese sobre a impossibilidade de haver proteção das famílias nas suas características contemporâneas, com as condições de vida da população e o desmantelamento da proteção social em curso no país. Novamente reafirma-se o padrão familista na proteção social brasileira que implica dois níveis, macrossocial e microssocial. No nível macrossocial consiste na definição da família como instituição provedora central de bem- estar. No nível micro - social apela-se para uma rede de mulheres (mães, avós, vizinhas) para a realização do trabalho familiar, particularmente do cuidado (MIOTO, 2012; BATTHYANI, 2009). No processo de desmonte da política social brasileira no atual período, ressalta-se a criação do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, composto em grande parte por pessoas de igrejas neopentecostais alinhadas a concepção extemporânea9 de família, ou seja, de base estrutural funcionalista. Através da proposição de inúmeros programas que se arvoram atuar em “defe- sa” da família, das crianças e adolescentes solapam as bases das políticas públi- cas sob os parâmetros da Constituição de 1988. No ministério está alocada a Secretaria da Família que, segundo a sua secretária, 7 Consultar: JANNUZZI, P. de M. Pobreza, Desigualdade e Mobilidade Social no Brasil: dos avanços civilizatórios pós Constituição de 1988 aos prenúncios da barbárie liberal pós Golpe de 2016. 8 Consultar Síntese dos indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira. Rio de Janeiro: IBGE, 2019 9 Extemporâneo significa aquilo que se manifesta numa época inapropriada; que acontece além do tempo determinado; fora do momento oportuno; impróprio para o tempo ou circunstância em que ocorre. (Dicionário online em português https://www.dicio.com.br/extemporaneo/ - Acesso em 2 dez. 2019) 37 www.canaldoassistentesocial.com.br 15 https://www.dicio.com.br/extemporaneo/ [...] constitui, de fato, uma estrutura inédita no Brasil, projetada a investir no essencial, já que muitos problemas sociais podem ser evitados com o devido protagonismo da família, desde o preconceito à violência, passan- do pelos desequilíbrios afetivos, que, em muitos casos, fundamentam o recurso a drogas e outros subterfúgios. (MARTINS, 2019,). Além do referido ministério, muitas outras ações e programas estão tendo lugar em outros ministérios que sustentam a concepção extemporânea de família, tanto em relação a sua forma, como na sua responsabilidade em relação a provisão de bem-estar. A manutenção dessa concepção de família é funda- mental para sustentar as mudanças em curso e a superfocalização na família po- bre em acordo com as orientações do Banco Mundial10. Dessa forma, chega-se a 2020 com a articulação de um sistema de pro- teção social avesso a Constituição de 1988, onde a regressão dos direitos de ci - dadania é evidente e longe da proposição de “políticas para as famílias” (GOL- DANI, 2005, p.13). Para a autora as “políticas para as famílias” partem do reco- nhecimento das “famílias reinventadas”11 e, portanto, vincula a necessidade de novas articulações entre o trabalho para o mercado, o trabalho para a família e a provisão de bem-estar por parte do Estado. Nessa perspectiva, a desfamilização de muitos dos encargos delegados às famílias é entendida como basilar para a preservação da convivência e do bem-estar das famílias. Considerações Finais Diante do exposto, e considerando o contexto sociopolítico em que a sociedade brasileira está imersa, duas considerações são importantes. A primeira é a desconstrução do discurso de proteção da família que caminha na contra- mão de medidas de fato efetivas de proteção da família. Sobre isso, é importan- te lembrar que apesar da ideia bem arquitetada do liberalismo/neoliberalismo de apologia da eficiência do mercado, a realidade, historicamente, tem demons- trado a sua incapacidade de dar conta dos problemas que ele mesmo gera, parti- 10 Um exemplo disso é a proposta Como Investir na Primeira Infância: Um Guia para a Discussão de Políticas e a Preparação de Projetos de Desenvolvimento da Primeira Infância. Disponível em: http://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/crianca_feliz/ Como_Investir_na_Primeira_Infancia.pdf 11 Entende-se por “famílias reinventadas” as diferentes formas de ser e conviver que caracterizam as famílias contemporâneas. 38 www.canaldoassistentesocial.com.br 16 http://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/crianca_feliz/Como_Investir_na_Primeira_Infancia.pdf http://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/crianca_feliz/Como_Investir_na_Primeira_Infancia.pdf cularmente no campo da reprodução humana. Dessa forma, reafirma-se a im- portância e a necessidade de o Estado assumir a maior cota de responsabilidade na provisão de bem-estar. Isto torna-se fundamental para não responsabilizar as famílias pelas suas contingências, para não tornar o bem-estar das famílias de- pendente da lógica mercantil, para não aprisionar as famílias na dependência de suas redes de solidariedade e também para preservar a autonomia de cada um em relação à autoridade da família (TEIXEIRA, 1985; SARACENO, 1996). A segunda é a impropriedade de se creditar às famílias a maior cota de responsabilidade pela provisão de bem-estar. Considerando os indicadores de- mográficos, sociais e econômicos que, desde a década dos 1980, demonstram que as transformações ocorridas na família, entre elas, a sua composição com muito menos membros, as mudanças no caráter de suas relações e de seus vín- culos, se associam ao empobrecimento acelerado e à retração dos investimen- tos públicos. Esses fatores colocam as famílias da classe trabalhadora brasileira numa posição extremamente difícil, sem condições de responder as expectati- vas que têm sido colocadas sobre elas. Além disso, como aponta Pereira (2004), o caráter contraditório da família, as transformações na sua organiza- ção, gestão e estrutura,bem como a dificuldade de definir as fronteiras e res- ponsabilidades entre os diferentes atores do setor informal, contra - indicam as possibilidades de a família assumir um papel preponderante no campo da pro- teção social. Portanto, é urgente a desconstrução do paradoxo entre a lógica dis- cursiva de proteção da família do governo atual e a lógica mercadológica im- pressa na divisão de responsabilidades dos atores em relação à proteção social. A persistência desse paradoxo sustenta a seguinte equação: quanto mais merca- do/família, mais desigualdade e menos cidadania. Referências ARIÈS, P. História social da infância e da família. Rio de Janeiro: LCT, 1978. 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Soc., São Paulo, n. 109, p. 179-199, jan./mar. 2012 Algumas reflexões sobre o sistema de garantia de direitos* Some reflection on the system of guarantee of rights Myrian Veras Baptista** Um.direito,.ao.contrário.de.carências.e.privilégios,.não.é. particular.e.específico,.mas.geral.e.universal,.seja.porque. é.o.mesmo.é.válido.para.todos.os.indivíduos,.grupos.e. classes.sociais,.seja.porque.embora.diferenciado.é.reco‑ nhecido.por.todos.(como.é.caso.dos.chamados.direitos. das.minorias)..Marilena.Chaui.(2006) Resumo:.Para.realizar.uma.reflexão.sobre.o.sistema.de.garantia.de. direitos,. este. artigo. toma.por. ponto. de. partida. pontuar. o. processo. secular.de.universalização.dos.direitos.humanos.e.como.essa.questão. foi.se.colocando.historicamente.à.sociedade.brasileira..Trata.em.se‑ guida.da.especificidade.de.um.sistema.de.garantia.de.direitos,.de.sua. articulação.em.rede.e.de.sua.estruturação.por.eixos,.que.devem.inte‑ grar,. transversal.e. intersetorialmente,.as.organizações.responsáveis. por.sua.instituição,.defesa,.promoção,.controle.e.disseminação. Palavras‑chave:.Direitos.humanos..Sistema.de.garantia.de.direitos.. Articulação.em.rede. Abstract:.To.reflect.over.the.system.of.guarantee.of.rights,.this.article.takes.as.its.starting.point.the. characterization.of.the.century‑long.process.of.universalization.of.the.human.rights.and.the.way.such. issue.was.presented.to.the.Brazilian.society.historically..Then.it.addresses.the.specificity.of.a.system. *.Este.artigo.foi.base.para.a.aula.inicial.do.curso.A.política.nacional.da.assistência.social:.seu.contexto. e.seus.fundamentos,.realizado.na Veras.Editora.e.Centro.de.Estudos,.em.2011. **.Doutora.em.Serviço.Social.pela.PUC‑SP.—.São.Paulo,.Brasil;.professora.titular.do.Programa.de. Estudos.Pós‑Graduados.em.Serviço.Social.da.PUC‑SP;.coordenadora.do.núcleo.de.Estudos.e.Pesquisas. sobre.a.Criança.e.Adolescente.do.Programa.de.Estudos.Pós‑Graduados.em.Serviço.Social.da.PUC‑SP;.dire‑ tora.da.Veras.Editora.e.Centro.de.Estudos..E‑mail:.myrianveras@gmail.com. www.canaldoassistentesocial.com.br 22 180 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 109, p. 179-199, jan./mar. 2012 of.guarantee.of.rights,.its.articulation.through.the.net.and.its.axis.structure,.all.of.them.must.integrate. the.organizations.responsible.for.its.institution,.protection,.promotion,.control.and.dissemination.in.a. transverse.and.cross‑sector.way. Keywords:.Human.rights..System.of.guarantee.of.rights..Articulation.through.the.net. Introdução Os.direitos.das.pessoas,.em.suas.relações.com.a.sociedade,.tal.como.os.estudamos.hoje,.resultam.de.uma.construção.social,.de.conteúdo.ético,.resultante.de.um.processo.histórico.e.dinâmico.de.conquistas.e.de.consolidação.de.espaços.emancipatórios.da.dignidade.humana. Nesses.espaços,.antes.de.seu.reconhecimento.como.direitos,.as.necessi‑ dades,.os.carecimetos.e.as.aspirações.já.eram.objeto.de.articulações,.resistên‑ cias,. reivindicações.e.pressões..Em.relação.a.essa.processualidade,.Bobbio. (1992,.p..45).nos.alerta.que.o.problema.da.realização.dos.direitos.do.homem, não.é.nem.filosófico.nem.moral..Mas.tampouco.é.um.problema.jurídico..É.um.pro‑ blema.cuja.solução.depende.de.um.certo.desenvolvimento.da.sociedade.e,.como.tal,. desafia.até.mesmo.a.Constituição.mais.evoluída.e.põe.em.crise.até.mesmo.o.mais. perfeito.mecanismo.de.garantia.jurídica. Esse.processo.secular.de.consolidação.de.direitos.tem.como.marcos.situa‑ ções.de.profunda.transformação.social.e.política,.sendo.que.esses.avanços.estão. ligados,.também,.a.pautas.definidas.nacionalmente.ou.por.acordos.internacionais,. caudatários.do.campo.judiciário.e.da.sua.institucionalização. São.algumas.dessas.situações:.na.Inglaterra,.a.Magna.Carta.de.1215,.que. limitou.o.poder. real;. a.Revolução. Inglesa.de.1640;. a. instituição.do.habeas corpus. em.1679;. a.Declaração.de.Direitos. de. 1689;. nos.Estados.Unidos,. a. Declaração.de.Direitos.de.Virgínia,.em.1776.e,.no.mesmo.ano,.a.Declaração.da. Independência.norte‑americana;.na.França,.a.Declaração.dos.Direitos.do.Ho‑ mem,.no.contexto.da.Revolução.Francesa.de.1789;.a.Revolução.Russa,.em. 1917;.na.Organização.das.Nações.Unidas.—.ONU,.a.Declaração.Universal.dos. Direitos.Humanos,. em.1948,. após.a.Segunda.Guerra.Mundial.—.marco.do. início.da.adoção.internacional.de.instrumentos.de.proteção.de.direitos;.a.Revo‑ lução.Cubana.de.1950;.e.o.Concílio.Vaticano.Segundo. www.canaldoassistentesocial.com.br 23181Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 109, p. 179-199, jan./mar. 2012 Na.concepção.moderna.desses.direitos,.cada.vez.mais.se.evidencia.seu. reconhecimento.não.apenas.como.efetivação.de.direitos.naturais,.mas.também. como.efetivação.do.direito.instituído.pelos.próprios.homens.—.o.direito.civil. A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 A.Declaração.Universal. dos.Direitos.Humanos. de. 1948. introduziu. no. debate.mundial.uma.concepção.de.direitos.humanos.pautada.em.sua.universa‑ lidade.e.em.sua.indivisibilidade..Essa.universalidade.relaciona‑se.à.sua.abran‑ gência,.tendo.como.fundamento.a.ideia.de.que.é.a.condição.de.pessoa.o.único. requisito.para.a.titularidade.desses.direitos,.na.perspectiva.de.que.o.ser.humano. é.essencialmente.moral,.dotado.de.unicidade.existencial.e.de.dignidade..A.in‑ divisibilidade.relaciona‑se.ao.fato.de.que,.pela.primeira.vez,.os.direitos.civis.e. os.direitos.políticos.compõem.uma.unidade.interdependente.com.os.direitos. econômicos,.sociais.e.culturais.(Piovesan,.2005). A.universalização.dos.direitos.humanos,.decorrente.desse.processo,.refle‑ te.o.nível.de.consciência.ética.compartilhada.pelos.Estados‑membros,.naquele. período.o.que.irá.possibilitar.a.formação.de.um.sistema.internacional.de.prote‑ ção,.fixando.parâmetros.protetivos.mínimos. Compõem.a.Declaração.Universal.dos.Direitos.Humanos:.direitos.civis.e. políticos.—.como.a.liberdade.de.expressão,.o.direito.de.ir.e.vir.e.o.direito.à.vida. —.e.direitos.econômicos.e.sociais,.os.quais.geralmente.exigem.ações.do.Esta‑ do.—.a.educação,.a.cultura,.a.habitação,.a.saúde. Os direitos humanos no Brasil Para.compreender.como.a.questão.dos.direitos.humanos.foi.se.colocando. à.sociedade.brasileira.é.importante.ter.presente.que.o.Brasil.viveu.diferentes. períodos.históricos..Essa.diversidade.foi.determinando.características.próprias. na.perspectiva.e.na.ação.da.sociedade.em.relação.aos.direitos. Até.os.anos.1930,.o.Estado.brasileiro.voltava‑se.estritamente.para.o.aten‑ dimento.dos.interesses.das.oligarquias.primário‑exportadoras.e.considerava.as. questões.sociais.que.se.punham.à.sociedade,.em.relação.aos.problemas.decor‑ www.canaldoassistentesocial.com.br 24 182 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 109, p. 179-199, jan./mar. 2012 rentes.do.não.acesso.da.maior.parte.da.população.aos.bens.e.serviços.por.ela. produzidos,.simplesmente.como.“um.caso.de.polícia”,.período.esse.em.que. —.lançando.mão.de.uma.análise.realizada.por.Chaui.(2006).—.“as.diferenças. e.assimetrias.sociais.e.pessoais.[eram].imediatamente.transformadas.em.desi‑ gualdades,.e.estas,.em.relação.de.hierarquia,.mando.e.obediência”. Com.a.crise.de.1929,.ocasionada,.por.um.lado,.por.problemas.financeiros. mundiais.—.que.culminaram.com.a.quebra.da.Bolsa.de.Valores.de.Nova.York. —.e,.por.outro.lado,.pela.queda.dos.preços.do.café.no.mercado.internacional. —.decorrente.do.aumento.da.oferta.internacional.do.produto.—.e,.ainda,.pelo. grande.endividamento.externo.do.Estado.brasileiro,.os.“barões.do.café”.tiveram. seu.poder.político.esvaziado.e.um.novo.tipo.de.Estado.pôde.ser.gestado. Nesse.sentido,.no.decorrer.da.década.de.1930,.grandes. transformações. ocorreram.no.país,.que.de.fundamentalmente.agrícola.e.rural.passou.a.ampliar. seu.espaço.industrial.e.urbano,.focando.um.possível.desenvolvimento.econô‑ mico.a.partir.do.incremento.de.sua.produção.por.meio.da.ampliação.e.da.diver‑ sificação.de.seu.parque.industrial. Esse.processo.foi.acelerado.quando,.por.ocasião.da.Segunda.Guerra.Mun‑ dial,.o.então.presidente.da.República,.Getúlio.Vargas,. foi.pressionado.pelos. Estados.Unidos.a.assumir.uma.posição.diante.da.guerra..Essa.pressão.deveu‑se. ao.fato.de.que,.além.de.o.país.representar.um.ponto.estratégico.para.a.defesa. das.Américas.—.com.condições.para.se.tornar.uma.importante.base.militar.—,. os.“aliados”.tinham.necessidade.de.matérias‑primas.e.de.bens.manufaturados,. vitais.para.os.esforços.bélicos,.os.quais.o.Brasil.estava.apto.a.fornecer. A.entrada.do.Brasil.na.guerra.possibilitou.uma.mudança.de.qualidade.ao. seu.processo.de.desenvolvimento.industrial..A.partir.da.declaração.oficial.de. guerra.contra.o.“eixo”,.o.país.recebeu.dos.Estados.Unidos.recursos.para.a.im‑ plementação.da.Companhia.Siderúrgica.Nacional,.de.Volta.Redonda.—.a.pri‑ meira.produtora.de.aço.do.país.—,.fundada.em.1941,.e.para.a.criação.da.Com‑ panhia.Vale.do.Rio.Doce,.em.Itabira,.em.1942.—.que.garantiria.o.suprimento. de.ferro.para.a.nascente.Companhia.Siderúrgica.Nacional..A.implantação.des‑ sas.duas.empresas.possibilitou.o.autossuprimento.de.matérias‑primas.para.o. desenvolvimento.das.indústrias.de.base.do.país. Emergiu,.então,.um.Estado.nacional.com.condições.efetivas.para.ampliar. seu.parque.industrial..Esse.Estado.nacional.assumiu.também,.como.respon‑ sabilidade.sua,.os.direitos.sociais.relacionados.ao.trabalho.urbano.—.o.que. www.canaldoassistentesocial.com.br 25 183Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 109, p. 179-199, jan./mar. 2012 não.significou.que.o.tema.dos.direitos.humanos.fosse.incluído,.como.tal,.na. agenda.dos.discursos.e.dos.debates..Por.essa.época,.o.conceito.de direitos. estava.relacionado.aos.direitos.individuais.e.circunscrevia‑se.à.sua.dimensão. judicante. Nesse.período,.conforme.análise.de.Emir.Sader.(in.Silveira,.2007),.a.his‑ tória.brasileira.passou.pelo.mais.extenso.processo.de.promoção.de.direitos,.no. qual.o. reconhecimento,.pelo.Estado,.dos. indivíduos.como.cidadãos.passava. pelo.direito.de.sindicalização.—.meio.de.acesso.também.aos.direitos.sociais. Esse.novo.tipo.de.relação,.que.contemplava.os.interesses.das.classes.mé‑ dias.e.dos.trabalhadores.sindicalizados,.constituiu.a.base.de.uma.grande.alian‑ ça.social.que.deu.sustentação.aos.governos.a.partir.da.década.de.1930.e.persis‑ tiu.até.1964. A.luta.pelos.direitos.humanos.ganhou.força.social.e.política.no.enfrenta‑ mento.à.ditadura.militar,.que.teve.seu.início.em.1964.e.se.aprofundou.em.1969,. com.o.Ato.Institucional.n..5..O.golpe.militar.de.1964.abriu,.na.história.brasi‑ leira,.um.período.com.características.marcadamente.diferentes:.rompeu,.brusca. e. violentamente,. as. alianças. de. classe. e. os. consensos. ideológicos. vigentes;. cortou,.de.forma.drástica,.os.fundamentos.do.processo.de.mobilização.social. ascendente;.rompeu.as.alianças.com.os.trabalhadores,.tratando‑os.como.inimi‑ gos,.considerando.que.suas.reivindicações.atentavam.contra.o.modelo.econô‑ mico.assumido. Nesse.novo.contexto.histórico.assistiu‑se,.de.forma.intensa,.à.violação.dos. direitos:.os.direitos.políticos.da.população.foram.reprimidos.sistematicamente. e.os.direitos.econômicos.e.sociais,.expropriados..Foram.reprimidos.os.sindica‑ tos.e.presos.os.líderes.sindicais..Os.direitos.de.organização,.de.expressão.e.de. privacidade.foram.avassalados,.ao.mesmo.tempo.que.outros.direitos.passaram. a.ser.sistematicamente.violados. Foi.a.partir.desse.momento.que.a.discussão.sobre.direitos.passou.a.ganhar. a.conotação.que.tem.hoje:.de.direitos.humanos.e.sociais,.incorporados.ao.dis‑ curso.democrático.e, conforme.foi.se.aprofundando.a.degradação.das.condições. de.convivência.nas.grandes.metrópoles.—.especialmente.nas.suas.periferias.—,. passou,.cada.vez.mais,.a.funcionar.como.marco.de.denúncia.da.falta.de.condi‑ ções.de.segurança.individual.(Sader,.op..cit.). Essa.discussão.ganhou.espaço.de.destaque.em.comissões.compostas.por. juristas,.por.pessoas.ligadas.às.universidades.e.aos.movimentos.sociais.e,.pos‑ www.canaldoassistentesocial.com.br 26 184 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 109, p. 179-199, jan./mar. 2012 teriormente,.incorporou‑se.ao.discurso.democrático,.obtendo.espaço,.inclusive,. na.imprensa.conservadora..Nesse.movimento,.alguns.setores.foram.significati‑ vos,.como.a.Comissão.Pastoral.da.Terra,.os.Centros.de.Defesa.dos.Direitos. Humanos.(CNBB),.as.Comissões.de.Justiça.e.Paz,.a.Ordem.dos.Advogados.do. Brasil.—.OAB,.a.Associação.Brasileira.de.Imprensa.—.ABI,.as.novas.lideran‑ ças.sindicais.e.entidades.estudantis. Em.relação.a.esse.período,.Viola.(2006).aponta.a.importância.do.movi‑ mento.social,.o.qual.empenhou‑se.na.formação.de.grupos.e.de.indivíduos.no.sentido.de.—.a.partir.de.uma.análise.do.universo.político,.apoiada.em.uma. profunda.dimensão.ética.—.torná‑los.capazes.de.orientar.sua.ação.cidadã.para. a.recusa.intransigente.de.qualquer.forma.de.arbítrio..Essa.formação.estava.re‑ lacionada.ao.direito.a.ter.direitos.e.ao.direito.do.exercício.de.uma.cidadania. participativa. Quando,.na.virada.dos.anos.1970.para.os.anos.1980,.o.ciclo.expansivo.da. economia.perdeu.força.e.o.regime.militar.desgastou‑se,.o.país.entrou.em.um. período.que.se.caracterizou.pela.transição.democrática..O.marco.mais.signifi‑ cativo.dessa.transição.foi.a.instalação.de.uma.Assembleia.Nacional.Constituin‑ te,.que.propiciou.grande.mobilização.popular:.a.sociedade.brasileira.ansiava. por.uma.Constituição.que.levasse.à.superação.das.leis.do.regime.de.arbítrio.e. direcionasse.o.país.para.a.democracia.e.para.o.estado.de.direito. À.Assembleia.Nacional.Constituinte. coube. a. definição.da. natureza. da. Constituição.que.responderia.àquele.momento.que.vivia.a.sociedade:.se.uma. Constituição.que.fosse.instrumento formal de governo,1.que.garantisse.o.status quo,.que.definisse.competências.e.que.regulasse.procedimentos,.sem.se.dedicar. aos. conteúdos. sociais. ou. econômicos;. ou. uma.Constituição dirigente,2. que. 1..Subjacente.à. tese.da.Constituição.como.mero.“instrumento.de.governo”.está.o.liberalismo.e.sua. concepção.de.separação.absoluta.entre.o.Estado.e.a.sociedade,.com.a.defesa.do.Estado.mínimo,.competente. apenas.para.organizar.o.procedimento.de.tomada.de.decisões.políticas. 2..Subjacente.à.tese.da.Constituição.dirigente.está.o.princípio.de.que.a.Carta.Magna.não.é.só.uma.ga‑ rantia.do.existente,.mas.também.um.programa.para.o.futuro.(Bercovici,.1999,.p..36)..Regula.uma.ordem. histórica.concreta,.e.sua.definição.só.pode.ser.obtida.a.partir.de.sua.inserção.e.função.na.realidade.histórica.. Para.Bercovici.(op..cit.,.p..36).“A.base.do.Estado.Social.é.a.igualdade.na.liberdade.e.a.garantia.do.exercício. dessa.liberdade..Nessa.perspectiva,.o.Estado.não.se.limita.mais.a.promover.a.igualdade.formal,.a.igualdade. jurídica..A.igualdade.procurada.é.a.igualdade.material,.não.mais.perante.a.lei,.mas.por.meio.da.lei..A.igual‑ dade.não.limita.a.liberdade..O.que.o.Estado.garante.é.a.igualdade.de.oportunidades,.o.que.implica.a.liberda‑ de,.justificando.a.intervenção.estatal”. www.canaldoassistentesocial.com.br 27 185Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 109, p. 179-199, jan./mar. 2012 estabelecesse.valores.e.princípios,.definisse.fins.para.o.Estado.e.para.a.socie‑ dade.e.que.servisse.de.parâmetro.para.as.políticas.públicas.governamentais. A Constituição brasileira de 1988 A.Constituição.brasileira.de.1988.—.a.“Constituição.Cidadã”.no.dizer.de. Ulisses.Guimarães.—.é.uma.Constituição dirigente. Define,.por.meio.de.normas. constitucionais.programáticas,.fins.e.programas.de.ação.futura.para.a.melhoria. das.condições.sociais.e.econômicas.da.população..A.intensa.participação.po‑ pular.no.decorrer.de.sua.construção.criou.condições.para.que.o.Brasil.tivesse. uma.Constituição.democrática.e.comprometida.com.a.supremacia.do.direito.e. a.promoção.da.justiça..A.partir.dela,.o.Estado.brasileiro.passou.a.ter.o.dever. jurídico‑constitucional.de.realizar.a. justiça.social..Nas.palavras.de.Marilena. Chaui.(2006).este.avanço.é.fruto.da.“atividade.democrática.social.[que].realiza‑se. como.um.contrapoder.social.que.determina,.dirige,.controla.e.modifica.a.ação. estatal.e.o.poder.dos.governantes….com.a.criação.de.direitos.reais,.a.ampliação. de.direitos.existentes.e.a.criação.de.novos.direitos”. Os.constituintes.de.1988.consignaram.no.texto.da.Constituição.os.direitos. fundamentais.da.pessoa.humana.e.previram.os.meios.para.garanti‑los,.fixando. responsabilidades..Definiram,.no.seu.art..1º,.os.fundamentos.que.constituem.o. seu.eixo.em.relação.aos.direitos.individuais.e.coletivos,.entre.os.quais.a.cida‑ dania,.a.dignidade.da.pessoa.humana,.os.valores.sociais.do.trabalho.e.da.livre‑. ‑iniciativa.e.o.pluralismo.político..E,.em.seu.art..3º,.definiram.como.objetivos. fundamentais.do.Estado:.a.construção.de.uma.sociedade.livre,.justa.e.solidária;. a.garantia.do.desenvolvimento.nacional;.a.erradicação.da.pobreza.e.da.margi‑ nalização;.a.redução.das.desigualdades.sociais.e.regionais;.a.promoção.do.bem. de.todos,.sem.preconceitos.de.origem,.raça,.sexo,.cor,.idade.e.quaisquer.outras. formas.de.discriminação. No.art..6º.os.constituintes.expressaram.o.que.deve.ser.entendido.como. direitos.sociais:.a.educação,.a.saúde,.o.trabalho,.o.lazer,.a.segurança,.a.previ‑ dência.social,.a.proteção.à.maternidade.e.à.infância,.a.assistência.aos.desam‑ parados..Desses.direitos,.a.saúde,.a.previdência.e.a.assistência.social.compõem,. por.força.do.art..194,.um.conjunto.integrado.de.ações.de.iniciativa.dos.poderes. públicos.e.da.sociedade,.denominado.seguridade.social..Nesse.artigo,.em.Pa‑ rágrafo.Único,.está.prevista.sua.organização,.de.forma.a.garantir.a.universali‑ www.canaldoassistentesocial.com.br 28 186 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 109, p. 179-199, jan./mar. 2012 dade.da.cobertura.e.do.atendimento,.no.sentido.de.assegurá‑los.—.como.direi‑ to.de.todos.e.dever.do.Estado.àqueles.relativos.à.educação,.à.saúde.—.e.—.a. quem.deles.necessitar,.independente.de.contribuição.à.previdência.social,.àque‑ les.relativos.à.Assistência.Social. O.reconhecimento.constitucional.desses.direitos.legitima.que.aqueles.que. se.sintam.impossibilitados.de.acesso.reivindiquem.a.sua.garantia.—.esse.as‑ pecto.é.especialmente.importante.em.nosso.país,.porque.grande.parte.de.nossa. população.está.abaixo.da.linha.da.pobreza,.não.dispondo.de.recursos.para.pagar. pelos.cuidados.de.saúde.e.de.educação..Este.reconhecimento.cria.também.a. possibilidade de.intervenção.da.Justiça.no.sentido.de.obrigar.a.implementação. das. ações. definidas. constitucionalmente. e. de. responsabilizar. o. agente. ou. a. autoridade.pública.a.quem.essa.omissão.lesiva.é.atribuída. O.maior.problema.da.Constituição.de.1988.tem.sido.a.sua.concretização,. embora. não. lhe. faltem.meios. jurídicos..A. sociedade.não. reclama.por.mais. direitos,.mas.por.garantias.de.sua.implementação:.a.prática.política.e.o.con‑ texto.social.têm.favorecido.uma.concretização.restrita.e.excludente.dos.seus. dispositivos. No.que.diz.respeito.à.prática.política,.por.vezes.a.eficácia.do.projeto.cons‑ titucional.tem.tido.sua.consolidação.limitada,.por.um.lado,.por.sua.dependência. da.vontade.dos.detentores.do.poder.político.e,.por.outro,.pelo.comprometimen‑ to.de.sua.efetividade.quando.a.busca.de.seu.alcance.sobrecarrega.o.Estado.e,. assim,.impede‑o.de.cumprir.certos.propósitos. No.que.diz.respeito.ao.contexto.social,.não.podemos.esquecer.que.a.Cons‑ tituição.de.1988.foi.definida.em.um.período.em.que.o.mundo.vivia.(como.vive. até.hoje).a.hegemonia.neoliberal,.cuja.ideologia.é.expropriadora.dos.direitos. sociais.e. joga.na.competição.selvagem.do.mercado.o.destino.de.milhões.de. pessoas..As.reformas.econômicas,.postas.em.prática.em.função.desse.projeto. internacional.de.desenvolvimento.econômico,.ampliaram.ainda.mais.as.dife‑ renças,.colocaram.em.risco.o.padrão.mínimo.de.proteção.e.de.garantias.de.di‑ reitos.sociais.em.todo.o.mundo. Nos.anos.seguintes.à.promulgação.da.Constituição.convivemos.com.pres‑ sões,.nacionais.e.internacionais,.para.implementação.no.país.das.ideias.neoli‑ berais..Propugnava‑se.pelo.afastamento.do.Estado.das.questões.sociais,.disse‑ minando. ideias. relacionadas. à. tese. do.Estado.mínimo,. que. pressupõe. um. deslocamento.das.atribuições.do.Estado.perante.a.economia.e.a.sociedade:.o. www.canaldoassistentesocial.com.br 29 187Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 109, p. 179-199, jan./mar. 2012 Estado.desresponsabiliza‑se.da.reprodução.da.força.de.trabalho,.via.políticas. sociais,.mas não.deixa.de.intervir.na.economia,.apenas muda.o.seu.enfoque,.anteriormente.centrado.nas.funções.fim.(crescimento.e.distribui‑ ção.da.renda,.prioridades.do.modelo.nacional.desenvolvimentista).para.as.funções. meio.(estabilização.fiscal.e.monetária,.prioridades.da.economia.globalizada)..[...].No. Brasil,. a. aplicação.deste.receituário. teve. início. no.governo.Collor. (1990‑1992). e. consolidou‑se.no.governo.Cardoso.(1995‑1998),.dominando.toda.a.década.de.1990.. (Braga,.2003,.p..345) Nesse.contexto,.historicamente,.verificaram‑se.impasses.que.interferiram. na.processualidade.e.nas.inter‑relações.entre.as.instituições.que.desenvolvem. ações.que.têm.por.objetivo.a.garantia.dos.direitos,.tornando.importante.que.se. pensasse.em.estruturar.algo.que.configurasse.um.sistema.de.garantia.de.direitos. A especificidade de um sistema de garantia do direitos e de sua articulação em rede A.garantia.de.direitos,.no.âmbito.de.nossa.sociedade,.é.de.responsabilida‑ de.de.diferentes.instituições.que.atuam.de.acordo.com.suas.competências:.as. instituições. legislativas.nos.diferentes.níveis.governamentais;.as. instituições. ligadas.ao.sistema.de.justiça.—.a.promotoria,.o.Judiciário,.a.defensoria.pública,. o.conselho.tutelar.—.aquelas.responsáveis.pelas.políticas.e.pelo.conjunto.de. serviços.e.programas.de.atendimento.direto.(organizações.governamentais.e. não.governamentais).nas.áreas.de.educação,.saúde,. trabalho,.esportes,. lazer,. cultura,.assistência.social;.aquelas.que,.representando.a.sociedade,.são.respon‑ sáveis.pela.formulação.de.políticas.e.pelo.controle.das.ações.do.poder.público;. e,.ainda,.aquelas.que.têm.a.possibilidade.de.disseminar.direitos.fazendo.chegar. a.diferentes.espaços.da.sociedade.o.conhecimento.e.a.discussão.sobre.os.mes‑ mos:.a.mídia.(escrita,.falada.e.televisiva),.o.cinema.e.os.diversificados.espaços. de.apreensão.e.de.discussão.de.saberes,.como.as.unidades.de.ensino.(infantil,. fundamental,.médio,.superior,.pós‑graduado).e.de.conhecimento.e.crítica.(se‑ minários,.congressos,.encontros,.grupos.de.trabalho). No.entanto,.essas.ações.têm.sido.historicamente.localizadas.e.fragmenta‑ das,.não.compondo.um.projeto.comum.que.permita.a.efetividade.de.sua.abran‑ gência.e.maior.eficácia.no.alcance.dos.principais.objetivos.por.elas.buscados. www.canaldoassistentesocial.com.br 30 188 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 109, p. 179-199, jan./mar. 2012 Uma.superação.mais.efetiva.das.questões.postas.acima,.tem.sido.pensada. tomando.por.base.a.construção.de.um.projeto.político.amplo.que.possibilitaria. a.estruturação.de.um.sistema.de.garantias,.cujo.objetivo.seria.viabilizar.o.de‑ senvolvimento.de.ações.integradas. O.argumento.é.que.a.ação.objetivando.a.garantia.de.direitos.—.dada.a. incompletude.do.âmbito.das.instituições.para.enfrentamento.da.complexidade. das.questões.a.serem.enfrentadas.—.demanda.uma.intervenção.concorrente.de. diferentes.setores,.nas.diversas.instâncias.da.sociedade.e.do.poder.estatal..A. efetividade.e.a.eficácia.dessa.intervenção.dependem.de.sua.dinâmica,.que,.por. mais.complexa.que.seja.sua.arquitetura,.não.pode.deixar.de.realizar.uma.ar‑ ticulação. lógica. intersetorial,. interinstitucional,. intersecretarial. e,. por. vezes,. intermunicipal..Essa.articulação.deve.levar.à.composição.de.um.todo.organi‑ zado.e.relativamente.estável,.norteado.por.suas.finalidades..Esse.tipo.de.orga‑ nização.configura.um.sistema,.que.se.expande.em.subsistemas,.os.quais,.por. sua.vez,.ampliam‑se.em.outros.subsistemas.de.menor.dimensão,.cada.qual.com. suas.especificidades. Um.princípio.norteador.da.construção.de.um.sistema.de.garantia.de.direi‑ tos.é.a.sua.transversalidade..Seus.diferentes.aspectos.são.mutuamente.relacio‑ nados,.e.as.reflexões,.os.debates.e.as.propostas.de.ações.no.sentido.de.garanti‑los. apenas.alcançarão.a.eficácia.pretendida.se.forem.abordados.integradamente.de. forma.a.fortalecer.as.iniciativas.das.suas.diferentes.dimensões. A.organização.e.as.conexões.desse.sistema.complexo.supõem,.portanto,. articulações.intersetoriais,.interinstâncias.estatais,.interinstitucionais.e.inter‑re‑ gionais..Supõem.também.ausência.de.acumulação.de.funções.—.o.que.exige. uma.definição.clara.dos.papéis.dos.diversos.atores.sociais,.situando‑os.em.eixos. estratégicos.e.inter‑relacionados;.integralidade.da.ação,.conjugando.transversal. e.intersetorialmente.as.normativas.legais,.as.políticas.e.as.práticas,.sem.confor‑ mar.políticas.ou.práticas.setoriais.independentes. Em.síntese,.na.perspectiva.de.sistema,.a.organização.das.ações.governa‑ mentais.e.da.sociedade,.face.a.determinada.questão‑foco,.precisa.ser.concebida. e.articulada.como.uma.totalidade.complexa,.composta.por.uma.trama.sociopo‑ lítico.operativa:.um.sistema.que.agrega.conjuntos.de.sistemas.espacial.e.seto‑ rialmente.diferenciados. É.importante.assinalar.que,.sendo.o.sistema.um.constructo.de.natureza. institucional. com.estrutura. e. processos. formalizados,. no. nível. das. relações. www.canaldoassistentesocial.com.br 31 189Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 109, p. 179-199, jan./mar. 2012 necessárias.para.a.integração.das.ações.diretas,.existe.a.necessidade.da.tecitura. de.uma.rede.relacional.intencionalmente.articulada.entre.os.sujeitos.que.operam. as.ações.nas.diferentes.instâncias.e.instituições.desse.sistema. A.articulação.dessa.rede.relacional.apoia‑se.na.clareza.dos.profissionais. nela. participantes,. de. que.nenhuma.de. suas. instituições. pode. alcançar. seus. objetivos.sem.a.contribuição.e.o.alcance.de.propósitos.das.outras. Nessa.perspectiva,.essa.rede.deve.ser.tecida.na.própria.dinâmica.das.rela‑ ções.entre.as.organizações.cujos.atos,.face.à.garantia.dos.direitos,.passam.a.ser. interdependentes,.tendo.em.vista.a.potencialização.dos.recursos.para.alcance. desse.objetivo. Existem.modalidades.diversas.de.rede..Temos.a.rede.construída.para.in‑ tegração. de. serviços. de. diferentes. instituições. objetivando. a. realização. de. atendimentos.de.situações.específicas,.as.redes.familiares.e.as.redes.de.vizi‑ nhança.que,.na.maioria.das.vezes,.responsabilizam‑se.por.cuidados.e.dão.su‑ porte.aos.sujeitos.para.o.enfrentamento.das.vicissitudes.cotidianas..Na.operação. em.rede,.o.que.define.a.qualidade.das.relações.vai.além.da.organização.e.do. intercâmbio.de.serviços:.tem.que.contar.com.a.disposição.dos.participantes.de. atuarem.integradamente.tendo.em.vista.o.objetivo.comum. Nessa.ação.integrada.é.preciso.ter.clareza.de.que.existe.uma.assimetria. dinâmica,. em. razão. da. especificidade. das. responsabilidades. das. diferentes. instituições.participantes..É.essa.assimetria.que.determina.a.hegemonia.no.di‑ recionamento.das.ações.a.serem.realizadas:.é.a.questão.considerada.eixo.de. cada.um.dos.diferentes.momentos.da.atuação.que.irá.definir.a.instituição.(ou.o. profissional).que.deverá.ser.responsável.pela.unidade.desse.direcionamento. Para.que.essa.dinâmica.ocorra.sem.conflitos,.há.que.se.criar.espaços.de. debate.sobre.sua.importância.no.processo,.no.sentido.de.construir.um.acordo. programático.compartilhado.por.todos,.definido.em.termos.de.tempo,.de.espa‑ ço.e.de.procedimentos. A estruturação de um sistema de garantia de direitos A.ideia.de.estruturação.de.um.sistema.de.garantia.de.direitos,.na.área.da. crianças.e.do.adolescente,.foi.evocada.pela.primeira.vez.por.Wanderlino.No‑ www.canaldoassistentesocial.com.br 32 190 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 109, p. 179-199, jan./mar. 2012 gueira3.no.lll.Encontro.Nacional.da.Rede.de.Centros.de.Defesa,.realizado.em. Recife.em.outubro.de.1992. Para.Nogueira,.a.estruturação.desse.sistema.objetivava.acentuar.a.especi‑ ficidade.da.política.de.garantia.de.direitos.de.crianças.e.adolescentes.dentro.do. campo.geral.das.políticas.de.Estado,.reforçando.seu.papel.no.conjunto.de.ações. estratégicas.de.“advocacia.de.interesses.de.grupos.vulnerabilizados”. Essa.estruturação.não.contemplaria.uma.política.setorial.apartada,.mas.iria. ressaltar.a.perspectiva.de.integralidade.da.ação,.que.deveria.cortar.transversal.e. intersetorialmente.todas.as.políticas.públicas,.incluindo.nesse.sistema.o.campo. da.“administração.da.justiça”,.ao.lado.do.campo.das.“políticas.de.atendimento”. Para.a.implementação.do.sistema.evidenciava‑se.a.necessidade.de.repensar. as.ações.e.as.inter‑relações.institucionais.relacionadas.às.diversas.situações.em. que.crianças.e.adolescentes.necessitam.de.proteção,.de.forma.a.garantir.direitos,. definindo.mais.claramente.os.papéis.dos.diversos.atores.sociais.responsáveispela.operacionalização.do.Estatuto.da.Criança.e.do.Adolescente.e.da.Convenção. das.Nações.Unidas.sobre.os.Direitos.da.Criança,.situando‑os.em.eixos.estraté‑ gicos.e.inter‑relacionados..Evidenciava‑se.também.a.necessidade.de.fortalecer. o.controle.externo.e.difuso.da.sociedade.civil.sobre.todo.esse.sistema. No.ano.1995,.para.apoiar.a.formação.de.operadores.do.sistema,.em.Re‑ cife,.o.Centro.Dom.Helder.Câmara.—.CEDHC.iniciou.um.programa.de.capa‑ citação.e.treinamento.de.pessoal.na.área.dos.direitos..Em.1999,.publicou.um. livro,.intitulado.Sistema de garantia de direitos:.um.caminho.para.a.proteção. integral. Nessa.mesma.perspectiva,.a.Secretaria.Especial.dos.Direitos.Humanos.e o. Conselho.Nacional.dos.Direitos.da.Criança.e.do.Adolescente.—.Conanda,.em. deliberação.conjunta,.assinaram,.em.abril.de.2006,.a.Resolução.de.n..113,.que. dispõe.sobre.parâmetros.para.a.institucionalização.e.o.fortalecimento.do.Sistema. de.Garantia.dos.Direitos.da.Criança.e.do.Adolescente,.com.a.competência.de promover,.defender.e.controlar.a.efetivação.dos.direitos.civis,.políticos,.econômicos,. sociais,. culturais,. coletivos. e. difusos,. em. sua. integralidade,. em. favor. de. todas. as. crianças.e.adolescentes,.de.modo.que.sejam.reconhecidos.e.respeitados.como.sujeitos. de.direitos.e.pessoas.em.condição.peculiar.de.desenvolvimento;.colocando‑os.a.salvo. 3..Informações.encontradas.na.dissertação.de.mestrado.de.Enza.B..C..Mattar.(2003). www.canaldoassistentesocial.com.br 33 191Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 109, p. 179-199, jan./mar. 2012 de.ameaças.e.violações.a.quaisquer.de.seus.direitos,.e.garantindo.a.apuração.e.repa‑ ração.dessas.ameaças.e.violações. Para.efetivar.sua.competência,.o.sistema.assumiria.por.tarefa.enfrentar.os. níveis.de.desigualdades.e.iniquidades,.que.se.manifestam.nas.discriminações,. explorações.e.violências,.baseadas.em.razões.de.classe.social,.gênero,.raça/etnia,. orientação.sexual,.deficiência.e.localidade.geográfica.—.que.dificultam.significati‑ vamente.a.realização.plena.dos.direitos.humanos..Teria.por.mecanismos.estratégi‑ cos:.I.—.judiciais.e.extrajudiciais.de.exigibilidade.de.direitos;.II.—.financiamento. público.de.atividades.de.órgãos.públicos.e.entidades.sociais.de.atendimento.de. direitos;.III.—.formação.de.operadores.do.sistema;.IV.—.gerenciamento.de.dados. e.informações;.V.—.monitoramento.e.avaliação.das.ações.públicas.de.garantia. de.direitos;.e.VI.— mobilização.social.em.favor.dessa.garantia. Nesta.Resolução,.a.configuração.do.Sistema.de.Garantia.de.Direitos.da. Criança.e.do.Adolescente.se.estrutura.a.partir.da articulação.e.integração.em. rede.das.instâncias.públicas.governamentais.e.da.sociedade.civil,.a.partir.de.três. eixos.estratégicos.de.ação.na.área.dos.direitos.humanos:.I.—.da.defesa;.II.—.da. promoção;.e.III.—.do.controle.de.sua.efetivação. A.partir.de.uma.reflexão.sobre.a.dimensão.da.dinâmica.histórica.do.Sis‑ tema.de.Garantia.de.Direitos,.tendo.por.referência.os.processos.permanentes. de.mudança.que.incidem.sobre.as.relações.de.sociedade,.pode‑se.perceber.que. são.muitos.os.espaços.que.precisam.ser.engajados.para.a.garantia.de.direitos.. Nesse.sentido,.percebe‑se.também.que.os.eixos.a.ser.articulados.devem.ir.além. daqueles.propostos;.há.necessidade.de.contemplar.também.os.eixos.específicos. de.instituição.do.direito.e.de.sua.disseminação..Desta.forma,.o.sistema.de.ga‑ rantia.de.direitos teria.que.contemplar,.na.sua.configuração,.cinco.eixos:.I.—.da. instituição.do.direito;.II.—.da.sua.defesa;.III.—.da.sua.promoção;.IV.—.do. controle.de.sua.efetivação;.e.V.—.de.sua.disseminação.(que.seria.responsável. pela.última.estratégia.referida.na.deliberação: a mobilização.social.em.favor.da. garantia.de.direitos). I — O eixo da instituição do direito Este.eixo.diz.respeito.à.instância.na.qual.o.“direito.legal”.é.instituído.e. onde.é.estabelecido.o.sistema.normativo,.configurado.pelas.leis.e.regras.que. www.canaldoassistentesocial.com.br 34 192 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 109, p. 179-199, jan./mar. 2012 norteiam.as.relações.da.sociedade.—.sejam.elas.constitucionais,.complemen‑ tares.e.ordinárias,.sejam.resoluções.em.decretos.legislativos.—,.cuja.função.é. de.responsabilidade do.Poder.Legislativo. Na.medida.em.que.a.instituição.dessas.leis.e.regras.é.determinada.pelos. processos.permanentes.de.mudança.que.incidem.sobre.as.relações.de.socieda‑ de.(portanto,.têm.uma.dinâmica.permanente),.as.etapas.a.ser.percorridas.para. garantir.direitos básicos.devem.ir.além.da.garantia.do.instituído:.há.necessida‑ de. de. contemplar. também.o.momento. específico. da. instituição do direito,. quando.o.mesmo.é.“atualizado”,.o.que.pode.ocorrer.tanto.no.sentido.do.avanço,. quanto.do.retrocesso. No.Estado.representativo.moderno,.no.qual.se.inclui.o.brasileiro,.a.parti‑ cipação. da. sociedade. na. instituição. do. “direito. legal”.—.na. elaboração. da. Constituição.e.das.leis.—.se.realiza.através.de.seus.representantes,.indicados. pelo.voto.por.meio.de.eleição.direta. No.Brasil,.a.função.legislativa.é.de.competência.do.Estado.em.suas.dife‑ rentes.instâncias..No.nível.da.União,.ela.é.exercida.pelo.Congresso.Nacional. (composto.pela.Câmara.dos.Deputados.e.pelo.Senado.Federal),.ao.qual.cabe. legislar.sobre.todas.as.questões.de.interesse.e.competência.nacional..É.à.Câ‑ mara.dos.Deputados.que. cabem.os.primeiros.passos.da. ação. legislativa..É. perante. ela. que. o. presidente. da.República,. o.Supremo.Tribunal. Federal,. o. Superior.Tribunal.de. Justiça. e.os. cidadãos.promovem.a. iniciativa.das. leis,. conforme.os.artigos.61,.§.2º,4.e.64.5.Em.nível.estadual,.os.órgãos.legislativos. são.as.Assembleias.Legislativas,.compostas.pelos.deputados.estaduais..Nos. municípios,.o.Poder.Legislativo.é.exercido.pelas.Câmaras.Municipais,.com‑ postas.pelos.vereadores. Em.cada.uma.dessas.Câmaras. funcionam comissões. parlamentares,. as. quais.são.geralmente.constituídas.de.números.restritos.de.membros,.que.são. encarregados.de.estudar.e.examinar.as.proposições. legislativas.e.apresentar. 4..Conforme.artigo.61,.§.2º,.da.Constituição.Federal,.“a.iniciativa.popular.pode.ser.exercida.pela.apre‑ sentação.à.Câmara.dos.Deputados.de.projeto.de.lei.subscrito.por,.no.mínimo,.um.por.cento.do.eleitorado. nacional,.distribuído.pelo.menos.por.cinco.Estados,.com.não.menos.de.três.décimos.por.cento.dos.eleitores. de.cada.um.deles”. 5..Conforme.artigo.64.da.Constituição.Federal,.“a.discussão.e.votação.dos.projetos.de.lei.de.iniciativa. do.Presidente.da.República,.do.Supremo.Tribunal.Federal.e.dos.Tribunais.Superiores.terão.início.na.Câma‑ ra.dos.Deputados”. www.canaldoassistentesocial.com.br 35 193Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 109, p. 179-199, jan./mar. 2012 pareceres..Essas.comissões.poderão,.ainda,.discutir.e.votar.projetos.de.lei.que,. de.acordo.com.o.regimento,.dispensam.essa.competência.do.Plenário,.salvo.se. houver.recurso.de.um.décimo.dos.membros.da.casa. Nesse.sentido,.sendo.o.espaço.dos.órgãos.legislativos.o.principal.fórum. para.deliberar,. debater. e. aprovar. leis. em.uma.democracia. representativa,. a. inclusão.dessa.instância.no.Sistema.de.Garantia.de.Direitos.teria.por.objetivo. a.harmonização.das.propostas.legislativas.com.os.propósitos.dos.demais.par‑ ceiros.do.sistema.e.com.as.expectativas.da.sociedade.em.relação.aos.direitos. humanos. Para.essa.harmonização,.esses.representantes.da.vontade.popular.precisa‑ rão.conhecer.muito.bem.as.questões.em.debate.e.as.expectativas.da.sociedade. e.de.seus.parceiros.sobre.elas,.o.que.pode.ser.alcançado.pela.efetivação.de.uma. interlocução.dinâmica. e. integrada. com.os. demais. componentes. do. sistema,. objetivando.interesses.comuns. II — O eixo da defesa do direito Este.eixo.caracteriza‑se.por.ser.a.via.do.acesso.à.justiça,.ou.seja,.de.aces‑ so.às.instâncias.públicas.e.aos.mecanismos.jurídicos.de.proteção.legal.dos.di‑ reitos.humanos.instituídos.—.gerais.e.especiais.—,.tendo.por.responsabilidade. assegurar,.em.concreto,.a.sua.impositividade.e.exigibilidade.6.Nele,.são.reali‑ zadas.atividades.jurisdicionais.—.organizacionais,.processuais.e.procedimentais.—.no.sentido.de.assegurar.a.efetividade.e.a.eficácia.da.garantia.de.direitos. Situam‑se.nesse.eixo.as.ações.judiciais.realizadas.nas.Varas.da.Infância.e. da.Juventude;.nas.Varas.Criminais.especializadas;.nos.Tribunais.do.Júri;.nas. Comissões.Judiciais.de.Adoção;.nos.Tribunais.de.Justiça;.nas.Corregedorias. Gerais.de.Justiça,.das.Coordenadorias.da.Infância.e.da.Juventude.dos.Tribunais. de.Justiça..Nele.situam‑se.também.as.ações.público‑ministeriais,.de.responsa‑ bilidade.das.Promotorias.de.Justiça,.dos.Centros.de.Apoio.Operacional,.das. 6..O.Estatuto.da.Criança.e.do.Adolescente.assegura.o.acesso.à.justiça.a.todas.as.crianças.e.adolescentes. quando.ameaçados.ou.quando.têm.violados.seus.direitos..Assegura.o.acesso.à.Defensoria.Pública,.ao.Minis‑ tério.Público.e.ao.Poder.Judiciário.(art.141);.o.acesso.à.Polícia.Judiciária.e.Técnica.e.aos.demais.órgãos. públicos.e.entidades.sociais.de.defesa.de.direitos.(p..ex.:.Ordem.dos.Advogados.do.Brasil,.órgãos.de.assis‑ tência.judiciária,.Centros.de.Defesa).e.aos.Conselhos.Tutelares. www.canaldoassistentesocial.com.br 36 194 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 109, p. 179-199, jan./mar. 2012 Procuradorias.de.Justiça,.das.Procuradorias.Gerais.de.Justiça,.das.Corregedorias. Gerais.do.Ministério.Público. Compõem.ainda.esse.eixo.as.ações das.defenso‑ rias.públicas,.dos.serviços.de.assessoramento.jurídico.e.de.assistência.judiciá‑ ria, da.Advocacia.Geral.da.União,.das.Procuradorias.Gerais.dos.Estados..Fazem. parte.também.desse.eixo,.as.Ouvidorias.e.a Polícia.Civil.Judiciária.—.inclusi‑ ve.a.Polícia.Técnica.e.a.Polícia.Militar..No.âmbito.da.sociedade.civil,.participam. do.eixo.da.defesa.de.direitos.os.conselhos. tutelares,.as.entidades.sociais.de. defesa.de.direitos.humanos.incumbidas.de.prestar.proteção.jurídico‑social. Nogueira7.aponta.como.peculiaridade.dessa.proteção.jurídico‑social sua. possibilidade.de.recurso.a.mecanismos.jurídicos,.administrativos.e.jurisdicionais,. que.lhe.permitam.responsabilizar.os.autores.de.lesão.ao.direito.e.de.desrespei‑ to.às.liberdades.e.restaurar.aos.lesados.o.gozo.pleno.de.seus.direitos.e.de.suas. liberdades..Aponta.também seu.compromisso.com.o.reordenamento.institucio‑ nal.do.Estado,.para.conformar.suas.“unidades.organizatórias”.de.forma.a.ade‑ quá‑las.ao.novo.paradigma.do.direito..Considera.que.não.adianta.um.direito. bem.enunciado.se.a.sua.organização.política.e.seus.procedimentos/processos. não.forem.institucionalizados.de.forma.democrática. III — O eixo da promoção do direito Esse.eixo.se.situa.no.campo.da.formulação.e.operação.das.políticas.sociais,. onde.são.criadas.as.condições.materiais.para.que.a.liberdade,.a.integridade.e.a. dignidade.sejam.respeitadas.e.as.necessidades.básicas.atendidas. Nesse.eixo.são.operadas.ações.que.têm.como.base.diagnósticos.situacionais. e.institucionais.e.diretrizes.gerais.que.se.efetivam,.principalmente,.com.a.cria‑ ção,. implementação. e. qualificação/fortalecimento. de. serviços/atividades;. de. programas/projetos,. específicos. e. próprios;. e. de. políticas. sociais. em.geral.. Essas.ações.são.operadas.por.entidades.de.atendimento,.governamentais.e.não. governamentais. A.consolidação.desse.eixo.se.dá.por.meio.do.desenvolvimento.de.uma. política.de.atendimento,.que.integra.o.âmbito.maior.da.política.de.promoção. e.de.proteção.dos.direitos.humanos..É.uma.política.especializada,.a.qual.de‑ 7..De.acordo.com.Mattar,.op..cit. www.canaldoassistentesocial.com.br 37 195Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 109, p. 179-199, jan./mar. 2012 verá.desenvolver‑se,.estrategicamente,.de.maneira.transversal.e.intersetorial,. articulando.todas.as.políticas.sociais.(infraestruturantes,.institucionais,.econô‑ micas.e.sociais).e.integrando.suas.ações.em.favor.da.garantia.daqueles.direitos. Nessa.descentralização.política.e.administrativa.das.ações,.a.coordenação. nacional.e.a.edição.das.normas.gerais.coube.à.esfera.federal,.e.a.coordenação.e. a.operação.de.seus.respectivos.programas,.às.esferas.estaduais,.distrital.e.muni‑ cipais,.bem.como.às.entidades.sociais..Foram.também.abertos.espaços.para.que. a.população.participe.na.formulação.das.políticas.e.no.controle.das.ações.em. todos.os.níveis,.por.meio.de.organizações.representativas. IV — O eixo do controle do direito O.controle.social.do.direito.é.campo.preferencial.e.peculiar.das.organiza‑ ções.representativas.da.população,.isto.é,.da.sociedade.civil.organizada.para.o. exercício.desse.controle,.principalmente.por.meio.de.instâncias.não.institucio‑ nais.de.articulação. (fóruns,. frentes,.pactos.etc.).e.de.construção.de.alianças. entre.organizações.sociais. Além.das.organizações.da.sociedade.civil,.esse.eixo.opera.também.a.par‑ tir.de.instâncias.públicas.colegiadas.próprias,.em.que,.na.maior.parte.das.vezes,. é.assegurada.a.paridade.da.participação.de.órgãos.governamentais.e.de.entida‑ des.sociais,.tais.como.os conselhos.de.direitos, os conselhos.setoriais.de.for‑ mulação.e.controle.de.políticas.públicas,.os.órgãos.e.poderes.de.controle.inter‑ no.e.externo.de.fiscalização.contábil,.financeira.e.orçamentária.8 É.nesse.eixo.que.as.organizações.da.sociedade.podem.exercitar.sua.função. seminal,.que.as.capacita.e.legitima.para.a.sua.inserção.institucional.nos.outros. eixos.estratégicos.e.as.tornam.imprescindíveis.para.a.construção.de.uma.demo‑ cracia.social..A.qualificação.dessas.organizações,.elemento.primordial.para.o. exercício.do.controle.social,.relaciona‑se.diretamente.com.o.crescimento.do. nível.de.competência.científica,.técnica.e.política.daqueles.que.a.compõem. Wanderlino.Nogueira9.afirma.que.a.inserção.da.sociedade.civil.no.eixo.do. controle. externo. e. difuso,. por.meio.de. suas. organizações. representativas,. é. 8..Definidos.nos.artigos.70,.71,.72,.73,.74.e.75.da.Constituição.Federal. 9..De.acordo.com.a.obra.já.citada,.de.autoria.de.Enza.B..C..Mattar. www.canaldoassistentesocial.com.br 38 196 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 109, p. 179-199, jan./mar. 2012 absolutamente.necessária.para.garantir.a.organicidade.e.a.legitimidade.do.sis‑ tema,.bem.como.para.o.exercício.de.qualquer.atividade.de.defesa.de.direitos. V — O eixo da disseminação do direito No.contexto.do.Sistema.de.Garantia.de.Direitos,.o.eixo.da.disseminação. do.direito.—.que.objetiva.preparar.a.sociedade.como.um.todo.para.vivenciar.a. cidadania.e,.especificamente,.discutir,.contextualizar,.em.uma.perspectiva.crí‑ tica,.a.garantia.desses.direitos.—.está.ensaiando.ainda.seus.primeiros.passos. No.entanto,.esse.eixo.é.de.importância.fundamental.por.deter.as.condições. necessárias.para.operar.atividades.de.formação.continuada. tendo.em.vista.a. construção.de.uma.cultura.de.cidadania,.na.qual.a.exigibilidade.e.o.respeito.aos. direitos.humanos.sejam.princípios.fundamentais. A.inclusão.de.mais.esse.eixo.poderá.constituir‑se.em.uma.estratégia.pri‑ mordial,.por.um.lado,.para.difundir.uma.cultura.de.promoção,.defesa.e.garantia. de. direitos. e,. por. outro,. para.mobilizar. a. sociedade. em. favor. da. efetivação. desses.direitos.em.parceria.com.os.demais.eixos.do.sistema,.de.modo.articula‑ do,.integral.e.integrado..Poderá.viabilizar.também.um.enfrentamento.positivo. de.muitas.das.dificuldades.que.se.colocam.para.a materialização.de.propostas. inovadoras,.já.experimentadas.em.outros.espaços.nacionais.(ou.mesmo.inter‑ nacionais),.fornecendo.condições.para.a.construção.de.argumentos.favoráveis. à.superação.de.conservadorismos.na.subjetividade.da.sociedade.brasileira. Devem.participar.desse. eixo.os.diferentes.meios.de. comunicação.e.de. formação:.as.instituições.educativas.em.seus.níveis,.primário,.secundário,.téc‑ nico,.universitário.(graduação.e.pós‑graduação,.estrito.e.lato sensu);.os.órgãos. de.divulgação.—.imprensa,.rádio,.televisão;.o.cinema.e.demais.meios.de.co‑ municação.(internet,.espaços.de.encontro.e.discussão.e.outros). Essas.instituições.detêm.as.ferramentas.mais.eficazes.para.a.(re)construção. do.olhar.sobre.os.direitos.no.contexto.da.sociedade,.de.modo.que.os.mesmos. sejam.reconhecidos.e.respeitados. Os.profissionais.que.atuam.nas.instituições.que.disseminam.ideias.e.sabe‑res.devem,.portanto,.ser.considerados.atores.estratégicos.que.ocupam.espaços. onde.a.circulação.e.a.estruturação.de.significados.constituem.um.terreno.sólido. para.forjar.representações.e.práticas.garantidoras.de.direitos.humanos. www.canaldoassistentesocial.com.br 39 197Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 109, p. 179-199, jan./mar. 2012 Todo.processo.de.disseminação.de.saberes.é.um.ato.político:.há.sempre. uma.posição.a.partir.da.qual.aquele.saber.é.disseminado,.uma.vez.que.busca. modificar.modos.de.pensar,.sentir.e.atuar..A.proposta.é.que.a.disseminação.do. saber.orientado.para.a.garantia.de.direitos.seja.realizado.por.instituições.e.pes‑ soas.que.conheçam.bem.as.questões.a.ela.relacionadas,.bem.como.a.cultura.e. a.linguagem.que.impregnam.seu.enfrentamento,.de.forma.a.assegurar.a.quali‑ dade.dos.instrumentos,.das.mensagens.e.da.metodologia.de.atuação. O.alcance.máximo.da.disseminação.de.um.saber.se.dá.quando.ele.se.con‑ verte. em.cultura,. o. que. significa.que. se. torna. um.modo.de.pensar,. sentir. e. atuar.no.cotidiano..Isto.tem.possibilidade.de.ocorrer.quando.as.instituições.têm. clareza.teórica.e.ética.em.relação.à.informação.que.disseminam. São.as instituições educativas.que.configuram.os.espaços.preferenciais. para.a.formação.de.sujeitos‑cidadãos.que.conheçam.direitos.e.deveres.—.seus. e.dos.demais.—.e.que.saibam.respeitá‑los.e.reivindicá‑los..Tendo.como.princí‑ pio.básico.a.construção.coletiva.de.uma.educação.voltada.para.a.cidadania,.os. educadores.podem.trazer.para.as.escolas.a.discussão.crítica.e.contextualizada. das.questões.da.criança,.da.adolescência,.das.relações.sociais,.na.escola,.na. sociedade,.em.sua.região,.em.seu.município,.em.seu.bairro. A.Convenção.das.Nações.Unidas.sobre.os.Direitos.da.Criança,.em.1989,. já.apresentava.como.uma.de.suas.metas.o.reconhecimento,.pelos.Estados‑mem‑ bros,.de.que.a.educação.deveria.ser.dirigida.no.sentido.“de.imbuir.na.criança.o. respeito.aos.direitos.humanos.e.às.liberdades.fundamentais”.(art..29,.1b). Outro.espaço.importante.para.a.disseminação.de.direitos.são.os.meios.de. comunicação.—.imprensa,. rádio,. televisão,.cinema,. internet.e.outros.—,.os. quais.são.responsáveis.por.boa.parte.das.internalizações.de.comportamentos. Sua. influência.varia.de.acordo.com.as.suas.próprias.características.em. relação.ao.público.a.que.se.destina:.em.uma.sociedade.como.a.brasileira,.com. pouca.tradição.de.leitura,.a.palavra.impressa.(jornais,.revistas).tem.menor.in‑ fluência.do.que.a.palavra.e.a.imagem.que.chegam.às.pessoas.pelo.rádio.e.pela. televisão..Deve‑se.ainda.assinalar.a.importância.adquirida.hoje.pela.internet,. por.sua.penetração.em.todas.as.camadas.sociais,.o.que.vem.provocando.a.ex‑ pansão.dos.espaços.de.formação.de.opinião. Esses.meios. de. comunicação. exercem. forte. influência. (que. pode. ser. positiva.ou.negativa).sobre.os.sentimentos,.os.conceitos,.os.costumes.e.as. práticas.dos.cidadãos..Há.necessidade.de.a.sociedade.promover.uma.reflexão. www.canaldoassistentesocial.com.br 40 198 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 109, p. 179-199, jan./mar. 2012 mais.profunda.sobre.sua.força.na.definição.dos.valores.da.sociedade,.no.sen‑ tido.de.exigir.a.garantia.de.seu.maior.engajamento.em.um.projeto.ético.e. político.de.construção.social,.valorizador.dos.direitos.humanos. Terminamos.este. texto,.assim.como.começamos,.com.Marilena.Chaui. (op..cit.),.que.nos.alerta.que.“o.maior.problema.da.democracia.numa.socieda‑ de.de.classes.é.o.da.manutenção.de.seus.princípios.—.igualdade.e.liberdade. —.sob.os.efeitos.da.desigualdade.real”..O.enfrentamento.dessas.dificuldades. se.fará.com.a.conciliação.desses.princípios.com.o.princípio.da.legitimidade. do.conflito.e.com.a.introdução.da.ideia.de.que,.graças.aos.direitos,.“os.desiguais. conquistam.a.igualdade,.entrando.no.espaço.político.para.reivindicar.a.parti‑ cipação.nos.direitos.existentes.e.sobretudo.para.criar.novos.direitos..Estes.são. novos.não.simplesmente.porque.não.existiam.anteriormente,.mas.porque.são. diferentes.daqueles.que.existem,.uma.vez.que.fazem.surgir,.como.cidadãos,. novos.sujeitos.políticos.que.os.afirmaram.e.os.fizeram.ser.reconhecidos.por. toda.a.sociedade”. Recebido em 1º/8/2011 ■ Aprovado em 28/11/2011 Referências bibliográficas BERCOVICI,.Gilberto..A.problemática.da.constituição.dirigente:.algumas.considerações. sobre.o.caso.brasileiro..Revista de Informação Legislativa,.Brasília,.v..36,.n..142,.p..35‑51.. abr./jun..1999. BOBBIO,.Norberto..A era dos direitos..Rio.de.Janeiro:.Campus,.1992. BRAGA,.Roberto..Globalização.e.transformações.territoriais.no.Brasil:.comentários.sobre. a.ação.do.estado.e.a.distribuição.da.renda.na.década.de.1990..Geografia,.Rio.Claro,.v..28,. n..3,.p..345‑362..set./dez..2003. CENTRO.DOM.ELDER.CÂMARA.DE.ESTUDOS.E.AÇÃO.SOCIAL..CENDHEC..Siste‑ ma de Garantia de Direitos:.um.caminho.para.a.proteção.integral..Recife:.CENDHEC,.1999. CHAUI,.Marilena..Direitos.humanos.e.educação..In:.Congresso.sobre.Direitos.Humanos. —.Brasília,.8/2006..Disponível.em:.<http://www.pdfebooksdownloads.com/marilena‑chaui. html>..Acesso.em:.20.abr..2011. 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SILVEIRA,.Rosa.Maria.Godoy.et.al..Educação em direitos humanos:.fundamentos.teóri‑ co‑metodológico..João.Pessoa:.Editora.Universitária/UFPB,.2007..Disponível.em:.<http:// www.dhnet.org.br/dados/livros/edh/br/fundamentos/index.htm>..Acesso.em:.22.abr..2011. SYMONIDES,.Janusz..Direitos humanos:.novas.dimensões.e.desafios..Brasília:.Unesco. Brasil,.Secretaria.Especial.dos.Direitos.Humanos,.2003. VIOLA,.Solon.Eduardo.Annes..Direitos.humanos.no.Brasil:.abrindo.portas.sob.neblina..In:. SILVEIRA,.Rosa.Maria.Godoy.et.al..Educação em direitos humanos:.fundamentos.teóri‑ co‑metodológico..João.Pessoa:.Editora.Universitária/UFPB,.2006..Disponível.em:.<http:// www.dhnet.org.br/dados/livros/edh/br/fundamentos/index.htm>..Acesso.em:.22.abr..2011. www.canaldoassistentesocial.com.br 42 11 ATRIBUIÇÕES E COMPETÊNCIAS PROFISSIONAIS REVISITADAS: A NOVA MORFOLOGIA DO TRABALHO NO SERVIÇO SOCIAL raquel raichelis6 Retomar o debate sobre atribuições e competências profissionais no tempo presente é tarefa das mais desafiadoras, não apenas porque o tema em si é re- vestido de grande complexidade, mas principalmente porque exige apreender a reconfiguração dos espaços ocupacionais à luz da nova morfologia do trabalho, no contexto de crise do capital e do profundo ataque contra o trabalho e os di- reitos da classe trabalhadora. contribuição decisiva para essa análise foi realizada por iamamoto em 2001, no 30º encontro nacional cFess-cress, na palestra que resultou em texto pu- blicado em 2002 pelo cFess7, respondendo a uma demanda do conjunto para repensar as balizas da fiscalização do exercício profissional, com base nos artigos 4º e 5º da Lei de Regulamentação Profissional (1993), que tratam das atribuições privativas e das competências profissionais dos/as assistentes sociais. Passadas quase duas décadas da densa reflexão realizada pela autora, o de- safio se recoloca diante de nova demanda do Conjunto CFESS/CRESS, por meio da Cofi8, de revisitar o debate sobre o trabalho profissional à luz das atribuições e competências das/os assistentes sociais, na conjuntura complexa e desafiado- ra de espoliação do trabalhoe dos direitos do conjunto da classe trabalhadora, do qual fazem parte as/os assistente sociais. As ATrIBUIçÕEs E COMPETÊNCIAs PrOFIssIONAIs À LUZ dA “NOVA” MOrFOLOGIA dO TrABALHO PA rT E 01 6. Autora: Raquel Raichelis, assistente social. Doutora em Serviço Social pela PUC-SP. Pós-Doutora pela Universidade Autônoma de Barcelona. Professora e pesquisadora do Programa de Estudos Pós-Graduados em Serviço Social da PUC-SP. Coordenadora do Núcleo de Estudos e PesquisaTrabalho e Profissão da PUC-SP e líder do mesmo grupo ca- dastrado no CNPQ. 7. E republicado na integra na brochura Atribuições privativas do/a assistente social em questão (CFESS, 2012). 8. Quero expressar meus sinceros agradecimentos ao Conjunto CFESS-CRESS, à direção do CFESS e às conselheiras que integram a Cofi (Comissão de Orientação e Fiscalização Profissional) da atual gestão É de batalhas que se vive a vida - 2017/2020, pelo convite para a realização de uma consultoria, que oportunizou um rico debate e acesso a informações relevantes que contribuíram para a elaboração deste texto. www.canaldoassistentesocial.com.br 43 12 Conselho federal de serviço soCial - Cfess Atribuições e competências profissionais remetem à forma de ser das pro- fissões na divisão sociotécnica do trabalho na sociedade capitalista, de acordo com as prerrogativas legais, no caso das profissões regulamentadas como é o caso do serviço social. “Discutir atribuições privativas e competências profis- sionais de assistentes sociais é discutir a profissão”, como afirma Matos (2015, p. 680) , tendo como norte a concepção de profissão que fundamenta o projeto ético-político profissional do Serviço Social, de ruptura com o conservadorismo, balizado pelo código de Ética do/a Assistente social (1993), pela lei de regula- mentação (8.662/1993) e pelas diretrizes curriculares da Abepss (1996). Foi nesse contexto que o serviço social, em suas mais de oito décadas, cons- truiu um projeto hegemônico nas dimensões teórico-metodológica, ético-polí- tica e técnico-operativa, em meio à heterogeneidade que caracteriza a catego- ria profissional e às disputas sempre presentes no confronto entre projetos e significados atribuídos à profissão, sob a condução unificada de entidades re- presentativas que condensam a direção social do serviço social brasileiro. Contudo, embora relevantes, as definições legal e normativa das atribui- ções e competências profissionais não são suficientes para garantir legitimida- de social frente aos/às empregadores/as e, principalmente, na relação com os/ as usuários/as dos serviços sociais. Mais importante do que a disputa pelo mo- nopólio das atividades privativas em si mesmas são as respostas profissionais às demandas e requisições do cotidiano institucional, os conteúdos e a direção das atividades realizadas no âmbito do trabalho coletivo que assistentes so- ciais, juntamente com outras/os profissionais, realizam no enfrentamento das expressões da “questão social”, pela mediação das políticas sociais, em que exer- cem funções de operacionalização, planejamento e gestão. e aqui cabe uma pontuação, pois, se as atribuições privativas são aquelas designadas exclusivas do serviço social, as competências são compartilhadas com outras profissões, o que abre um leque de possibilidades de inserção em várias outras dimensões de trabalho, desde que nos qualifiquemos para isso, ao contrário do que muitas vezes se interpreta no debate profissional como re- dução de oportunidades de atuação para assistentes sociais. Atividades que se desenvolvem no terreno invariavelmente contraditório e polarizado pelos pro- jetos das classes sociais, cuja direção em disputa permanente medeia o trabalho profissional nos diferentes espaços ocupacionais em que assistentes sociais se inserem como trabalhadoras/es assalariadas/os. Questões que se tornam mais complexas quando consideramos a própria formulação da Lei de Regulamentação Profissional e as possíveis imperfei- ções dos artigos 4º e 5º, que já foram objeto de inúmeros debates e análises (cf. www.canaldoassistentesocial.com.br 44 13 Atribuições privAtivAs do/A Assistente sociAl EM QUEStão | Volume 2 cFess, 2012) e da interpretação em vigor sobre as competências e atribuições privativas balizada pelo parecer Jurídico nº 27/98, de terra (cFess, 1998). o desafio atual se renova, pois envolve a compreensão de que, embora garanti- das em lei, as atribuições e competências e sua interpretação não são estáticas e não podem ser congeladas frente às transformações do trabalho e às novas configurações da “questão social” no atual estágio do capitalismo mundializa- do e financeirizado do século 21, considerando a particularidade da inserção periférica e dependente do brasil, no contexto do desenvolvimento capitalista desigual e combinado. portanto, com base nessas premissas, organizamos este texto em quatro itens: no primeiro, buscamos analisar a natureza das profissões na divisão so- cial e técnica do trabalho na ordem monopólica, a relação indissociável entre trabalho e profissão, bem como os constrangimentos do trabalho assalariado à autonomia relativa. no segundo item, problematizamos as transformações do “mundo, do trabalho” e as estratégias do estado e do capital para fazer frente à crise estrutural e reverter a tendência de queda das taxas de lucro. no ter- ceiro item, nos dedicamos à análise mais circunstanciada da chamada “nova morfologia do trabalho no serviço social” e seus rebatimentos nas atribuições e competências profissionais, com destaque para as diferentes modalidades de terceirização e flexibilização do trabalho no espaço estatal das políticas sociais. Para finalizar, no último item, apontamos possíveis respostas do coletivo pro- fissional, em aliança com demais forças políticas, para enfrentar e resistir aos processos de precarização e intensificação do trabalho, com base em agenda de lutas que reafirme a direção social estratégica do projeto profissional do Ser- viço social e a defesa dos direitos da classe trabalhadora, da qual participam também assistentes sociais. 1. PROFISSÃO, TRABALHO ASSALARIADO E AUTONOMIA RELATIVA DO/A ASSISTENTE SOCIAL no presente texto, analisamos o serviço social como expressão do traba- lho coletivo no âmbito das políticas sociais, mediação privilegiada, embora não exclusiva, do trabalho profissional frente às configurações da “questão social”9. As profissões, ao serem recrutadas pelas demandas sociais que as tornam his- 9. A “questão social”, tal como a entendemos, é a expressão das desigualdades sociais produzidas e reproduzidas na dinâmica contraditória das classes sociais e, na particularidade atual, a partir das configurações assumidas pelo trabalho e pelo Estado burguês no atual estágio mundializado e financeirizado do capitalismo contemporâneo. Expli- citada nossa concepção de questão social, doravante dispensaremos o uso das aspas. www.canaldoassistentesocial.com.br 45 14 Conselho federal de serviço soCial - Cfess toricamente necessárias, passam a ocupar lugares específicos na divisão socio- técnica, sexual e étnico-racial do trabalho10, respondendo a requisições ditadas pela dinâmica da luta de classes e dessas com o estado, no movimento progres- sivo de regulação e formulação de respostas institucionais às demandas postas pelas contradições da questão social. Trata-se, assim, de uma profissão que participa, juntamente com outras, da viabilização de serviços sociais e direitos em resposta a necessidades sociais de indivíduos, grupos e classes sociais em seu processo de (re) produção social. (iA- MAMoto, 1982, 2007). Embora o Serviço Social tenha sido regulamentado como profissão liberal no brasil, a/o assistente social exerce seu trabalho majoritariamente como as- salariada/o de instituições públicas ou privadas, que operacionalizam políticas e programas sociais. Mas como profissão que realiza sua atividade no âmbito da prestação de serviços sociais, o serviço social incorporaalgumas características das profissões liberais11, entre as quais: singularidade na relação com usuários e usuárias; caráter não rotineiro de seu trabalho; competência para formular pro- postas de intervenção fundamentadas em conhecimentos teóricos e técnicos; presença de uma deontologia e de um código de Ética; formação universitária avalizada por credenciais acadêmicas (diplomas, títulos); regulamentação legal que dispõe sobre o exercício profissional, atribuições privativas e fóruns para dis- ciplinar e defender o exercício da profissão, por meio de entidades de representa- ção e fiscalização profissional (VERDÈS LEROUX, 1986; YAZBEK, 2009). Tal configuração confere aos/às profissionais uma relativa autonomia na condução do seu trabalho, “que permite aos sujeitos profissionais romperem com visões deterministas e/ou voluntaristas para se apropriarem da dinâmica 10. Formulação que tem nesta análise o caráter de uma hipótese de trabalho a ser aprofundada. Nos limites deste texto incoporo a perspectiva da divisão sexual do trabalho para trazer ao debate as relações sociais de sexo presen- tes na nova morfologia do trabalho, dimensão irrecusável em uma categoria profissional composta majoritariamente por mulheres. E adoto a formulação divisão étnico-racial do trabalho considerando as raízes da questão social no Brasil e a presença do escravo negro e do índio na gênese da classe trabalhadora e do capitalismo brasileiro, depen- dente e periférico. Esse é um grande desafio a ser enfrentado pela categoria profissional, a rigor desde 1993, quando o Código de Ética incluiu como um dos seus valores fundamentais o combate a todas as formas de discriminação e preconceito, o que desde então nos convoca a enfrentar o debate sobre o racismo estrutural e institucional, a socie- dade patriarcal e as desigualdades de gênero, na esfera pública e privada, sobretudo no mercado de trabalho, como parte da sociabilidade capitalista no Brasil. 11. Embora não seja o caso de tematizar essa questão, vale destacar que paira certa imprecisão conceitual no uso da noção “profissional liberal”, pois é comum a confusão com o estatuto de trabalhador autônomo, no sentido daquele/a que não tem vínculo empregatício e trabalha por conta própria. Convém esclarecer que profissionais liberais podem ser autônomos/as, empregados/as ou mesmo empregadores/as, desde que exerçam uma atividade profissional fis- calizada por órgãos reconhecidos pelo Estado. Contudo, essa questão fica mais complexa a partir das formas jurídi- cas criadas pelo capitalismo neoliberal, que encobrem relações de assalariamento por meio das figuras de trabalho “autônomo” e/ou trabalho “informal”. www.canaldoassistentesocial.com.br 46 15 Atribuições privAtivAs do/A Assistente sociAl EM QUEStão | Volume 2 contraditória dos espaços institucionais e poderem formular estratégias indivi- duais e coletivas que escapem da reprodução acrítica das requisições do poder institucional” (rAicHelis, 2018, p. 35-36). Autonomia relativa aqui referida também à própria natureza do estado ca- pitalista, “como condensação material de uma relação resultante das contradi- ções de classe inscritas na estrutura mesma do estado capitalista” (poulAnt- ZAS, 1977, p. 25). É preciso refletir sobre a autonomia relativa do Estado no seu papel de re- presentante do interesse geral da burguesia, sob hegemonia de uma de suas frações, atualmente o capital monopolista financeiro. Não sendo um bloco mo- nolítico sem fissuras, o Estado e suas políticas estatais aparecem como resul- tado dessas contradições, das quais participam tanto as classes dominadas, na luta pelo reconhecimento de suas reivindicações e direitos, quanto “o pessoal do estado”, ou seja, trabalhadores e trabalhadoras do estado, na elaboração e no acionamento da política do estado em suas lutas no interior dos aparelhos estatais, pelo exercício de sua autonomia relativa (idem, p. 29). no debate sobre autonomia relativa, a contribuição de Gramsci enriquece a análise sobre as relações entre economia e politica, estrutura e superestrutu- ra, sociedade politica e sociedade civil12. para o autor a relativa autonomia da sociedade civil, como esfera própria, funciona como mediação necessária entre a estrutura econômica e o estado-coerção. essa autonomia, segundo coutinho (1981), não é apenas material, mas também funcional; abre-se assim, a possibili- dade de luta pela hegemonia e pelo consenso no interior da sociedade civil, isto é, no estado em seu sentido amplo. Assim, embora o estado capitalista sirva amplamente aos interesses gerais da burguesia e de suas frações hegemônicas, a dominação exercida peo estado é atravessada pelas contradições expressas pela luta de classes. como analisa Kowarick (1985, p. 7), a dominação é contraditória também e fundamentalmen- te porque, se o estado exclui as chamadas classes dominadas tem, em certa me- dida, que incluir alguns de seus interesses”. como adverte netto (1982, p. 22), “no capitalismo monopolista a preser- vação e o controle contínuos da força de trabalho, ocupada e excedente, é uma função estatal de primeira ordem”. e para isso, o estado capturado pela ordem 12. Para Gramsci (1978), o Estado comporta duas esferas: a sociedade politica, ou Estado no sentido estrito de coerção, e a sociedade civil, constituída pelo conjunto de organizações responsáveis pela elaboração e/ou difusão das ideologias, como os sindicatos, os partidos, as igrejas, o sistema escolar, a organização material da cultura (im- prensa, meios de comunicação de massa) e as organizações profissionais. São essas duas esferas que formam em conjunto o Estado no sentido amplo ou, nos termos de Gramsci, sociedade politica mais sociedade civil, vale dizer, hegemonia revestida de coerção. www.canaldoassistentesocial.com.br 47 16 Conselho federal de serviço soCial - Cfess monopólica ao bucar legitimação politica dentro do jogo democrático, “é per- meável a demandas das classes subalternas, que podem fazer incidir nele seus interesses e suas reivindicações imediatos”. (idem, p. 25) É nesse contexto que as sequelas da questão social transformam-se em objeto de uma intervenção continua e sistemática do estado, por meio das poli- ticas sociais, situação que possibilita a emergência do serviço social como pro- fissão e a constituição de seus agentes como trabalhadores/as assalariados/as. Portanto, reafirma-se o caminho da profissionalização do Serviço Social como o processo pelo qual seus agentes se inserem em atividades laborais cuja dinâmica, organização, recursos e objetivos são determinados para além do seu controle, isto é, pelos empregadores dessa força de trabalho (iAMAMoto, 1982; netto, 1992). Como profissionais assalariados/as, em grande parte pelas instituições do aparelho de estado nas três esferas de poder, notadamente em âmbito muni- cipal, mas também por organizações não governamentais e empresariais, a força de trabalho de assistentes sociais transformada em mercadoria só pode entrar em ação através dos meios e instrumentos de trabalho que, não sendo propriedade desses/as trabalhadores/as, devem ser colocados à disposição pe- los empregadores institucionais públicos ou privados: infraestrutura humana, material e financeira para o desenvolvimento de programas, projetos, serviços, benefícios e um conjunto de outros requisitos necessários à execução direta de serviços sociais para amplos segmentos da classe trabalhadora ou para o de- senvolvimento de funções em nível de gestão e gerenciamento institucional. Esse processo subordina o exercício profissional às requisições institucionais nos diferentes espaços sócio-ocupacionais que demandam essa capacidade de trabalho especializada. Ao mesmo tempo, o/a assistente social, enquanto profissional qualifica- do/a, dispõe de relativa autonomia, em seu campo de trabalho, para realizar um trabalho social complexo, saturado de conteúdos políticos e intelectuais e das competências teóricas e técnicasrequeridas para formular propostas e nego- ciar com os contratantes institucionais, privados ou estatais, suas atribuições e prerrogativas profissionais, os objetos sobre os quais recai sua atividade profis- sional e seus próprios direitos como trabalhador/a assalariado/a. Portanto, sendo a profissão de Serviço Social o resultado de relações sociais contraditórias engendradas pelo capitalismo dos monopólios, ela é, ao mesmo tempo, um produto vivo de seus/suas agentes, do protagonismo individual e coletivo de profissionais organizados a partir de um projeto ético-político que solda projeções e hegemoniza a direção social. tal não ocorre sem tensões, as www.canaldoassistentesocial.com.br 48 17 Atribuições privAtivAs do/A Assistente sociAl EM QUEStão | Volume 2 quais, em determinadas circunstâncias, aparecem na autorrepresentação dos/ as assistentes sociais como expressão de crise profissional. uma das manifestações recorrentes tem se apresentado quando assisten- tes sociais não são reconhecidos/as pelos poderes institucionais no exercício do monopólio legitimo de atribuições privativas previstas pela regulamentação da profissão, ou sentem-se ameaçados/as quando outras profissões reivindi- cam essa competência, situação muitas vezes percebida por assistentes sociais como perda do seu lugar institucional. um exemplo emblemático refere-se ao estudo ou seleção socioeconômica no âmbito de diferentes políticas sociais, ati- vidade historicamente objeto de controvérsias na categoria profissional, mas que, num cenário de disputa no mercado de trabalho, passa a ser requisitada pelo serviço social como atribuição privativa em si mesma, sem que estejam em questão a finalidade e o conteúdo dessa atividade, o que seria imprescindível para que profissionais não se enredem na armadilha que alimenta a competição entre trabalhadores/as. com base no conjunto dessas considerações, importa destacar a indissocia- bilidade entre trabalho e profissão na elucidação da natureza do serviço social13, e tampouco deixar de reconhecer a atividade de assistentes sociais como traba- lho e o sujeito vivo dessas relações como trabalhador/a assalariado/a, no com- plexo processo de determinações e possibilidades contidas nas relações sociais das quais é participe. reiteramos assim a compreensão de que as profissões, ao serem recru- tadas pela estruturação de um mercado de trabalho que as requisita, passam a ocupar lugares específicos na divisão social, técnica e sexual do trabalho (dimensão a ser considerada em uma categoria profissional composta ma- joritariamente por mulheres), respondendo a requisições ditadas pela dinâ- mica da luta de classes e dessas com o estado, no movimento progressivo de regulação e produção de respostas institucionais às demandas postas pelas contradições da questão social. Portanto, o desafio é considerar a totalidade do processo de produção e reprodução social, para apreender a historicidade que o trabalho profissional assume na sociedade burguesa, como trabalho abstrato subsumido a proces- sos de mercantilização e alienação próprias do assalariamento, pela mediação 13. Importante trazer aqui a contribuição de Mota (2016) em relação ao estatuto teórico e profissional do Servi- ço Social na divisão social e técnica do trabalho, quando considera o seu protagonismo intelectual e político para consolidar-se como área de produção de conhecimento, na contracorrente do estatuto de disciplina interventiva que historicamente lhe foi imputado nos marcos do capitalismo monopolista. Mais ainda, quando afirma a natureza “insurgente” dessa produção intelectual filiada à tradição marxiana, impulsionada pela direção estratégica do projeto ético-político profissional do Serviço Social brasileiro e pela organização política da categoria profissional. www.canaldoassistentesocial.com.br 49 18 Conselho federal de serviço soCial - Cfess das políticas sociais e do aparato institucional criado para o enfrentamento da questão social, a partir da ação do estado, das instituições da sociedade civil ou das empresas privadas. Ao mesmo tempo, as profissões são constituídas por sujeitos sociais do- tados de teleologia e intencionalidade, que, a partir do trabalho coletivo, são capazes de imprimir direção ético-política afinada com o projeto profissional às atividades que desempenham nas políticas sociais e demais espaços ocupa- cionais em que se inserem como trabalhadores/as assalariados/as. É isso que permite que esses trabalhadores e trabalhadoras resistam à subsunção real do seu trabalho às imposições do poder do capital e/ou dos/as seus/suas represen- tantes nas esferas estatais. A partir dessa perspectiva, depreende-se que a legitimidade social do servi- ço social é extraída da relação intrínseca com o campo da prestação de serviços sociais, públicos e privados, assentado na tríade que associa trabalho, profissão e área de produção de conhecimento (Mota, 2013; raichelis, 2018), como dimen- sões que se alimentam e se implicam reciprocamente, à luz da historicidade que caracteriza a totalidade social contraditória na qual se insere. Além disso, as transformações no “mundo do trabalho” repercutem no mercado de trabalho do Serviço Social e no exercício profissional de assisten- tes sociais, mais ainda em uma contextualização de degradação do trabalho e precarização das condições em que ele é exercido, impactando não apenas as condições materiais dos sujeitos que vivem do trabalho, mas também as suas formas de sociabilidade individual e coletiva. considerando ainda a erosão dos sistemas públicos de seguridade social na perspectiva de universalização, com a adoção de programas e serviços cada vez mais seletivos e focalizados nos mais pobres, na ótica da gestão dos riscos e da refilantropização das políticas sociais (YAZBEK, 2018). como essas transformações do trabalho em tempos de crise estrutural do capitalismo redesenham o trabalho de assistentes sociais nos diferentes espa- ços ocupacionais públicos e privados nos quais atuam? como se expressa a nova morfologia do trabalho profissional em toda a sua heterogeneidade? Quais são os novos formatos e conteúdos do trabalho desenvolvido por assistentes so- ciais nas diferentes políticas sociais, a partir da agenda comandada pela hege- monia do capital financeiro? Quais são as novas estratégias de controle e ge- renciamento da força de trabalho dos quadros profissionais em suas distintas inserções ocupacionais? essas são algumas das questões que buscamos particularizar na análise das relações e condições do trabalho do/a assistente social, considerando os www.canaldoassistentesocial.com.br 50 19 Atribuições privAtivAs do/A Assistente sociAl EM QUEStão | Volume 2 constrangimentos do trabalho assalariado de assistentes sociais submetidas/ os a processos de precarização do trabalho, com incidências em sua autono- mia relativa e nas possibilidades de materialização do projeto ético-político do serviço social. 2. TRANSFORMAÇÕES DO TRABALHO EM TEMPO DE CRISE DO CAPITAL A crise do capitalismo que teve início nos anos 1970 e se estende até a atu- alidade indica que estamos diante de um processo mais abrangente, que invade todas as dimensões da vida social, mergulhando a questão social em um com- plexo de novas determinações, que rebatem no trabalho de assistentes sociais e, portanto, nas atribuições e competências profissionais. o aprofundamento da crise mundial e seus desdobramentos, especial- mente a partir de 2007-2008, com impactos deletérios na vida de milhões de trabalhadores/as, evidenciam que as crises no capitalismo não são fenômenos eventuais, mas constitutivos do movimento do capital, que se manifesta ciclica- mente em decorrência da queda tendencial da taxa de lucros, provocada pela concorrência intercapitalista, aumento da produtividade do trabalho e super- produção de mercadorias, que não conseguem ser consumidas em função dos baixos salários e do desemprego crescente,ou nos termos de Mandel, da ausên- cia de uma demanda social solvável. Como muitos/as autores/as vêm afirmando, a reestruturação produtiva do capital e do trabalho, que nos países da periferia capitalista, como o brasil, se faz mais presente a partir de 1990, transformou-se de fato em um processo per- manente de erosão do trabalho de base tayloriano-fordista, contratado, regu- lamentado e protegido, dominante no século 20, substituído pelas mais diver- sas formas de desregulamentação, flexibilização, terceirização e intensificação do trabalho, nas quais os sofrimentos, os adoecimentos e os assédios parecem tornar-se mais a regra do que a exceção (Antunes, 2018, rAicHelis, 2011, 2013, 2018). essas transformações expressam a nova face da internacionalização dos imperativos capitalistas (Wood, 2014, p. 93), contexto que aprofunda a supe- rexploração do trabalho vivo e amplia a população sobrante para as necessida- des médias de valorização do capital, principalmente nas nações subordinadas e dependentes como o brasil, que não chegaram a universalizar o trabalho assa- lariado e os direitos a ele correspondentes. www.canaldoassistentesocial.com.br 51 20 Conselho federal de serviço soCial - Cfess Ao mesmo tempo, observa-se a explosão do desemprego estrutural em es- cala global, que atinge grande parte dos trabalhadores e trabalhadoras, e a de- terioração da qualidade do trabalho, dos salários e das condições em que ele é exercido, que se agrava ainda mais considerando recortes de gênero, geração, raça e etnia, quando se constata que mulheres ganham menos do que homens exercendo a mesma atividade e, se forem negras, são submetidas a trabalhos mais precários e ainda a mais baixos salários. Acentua-se também a tendência do capital de diminuir o número de traba- lhadores/as contratados/as, tendo em vista a redução dos custos do trabalho, potencializada pela incorporação, em larga escala, de tecnologias microele- trônicas poupadoras de força de trabalho. presenciam-se mudanças no uso e gestão da força de trabalho e dos processos produtivos, com estímulo à flexibi- lização dos contratos, polivalência, multifuncionalidade e “colaboração” entre trabalhadores/as e capitalistas, por meio da assim denominada “gerência parti- cipativa”, típica das relações sociais de trabalho em curso. A reorganização dos processos produtivos e as novas formas de proces- samento e organização do trabalho apoiam-se cada vez mais nas tecnologias de informação e comunicação (tics) e desencadeiam processos continuados de flexibilização dos contratos de trabalho, por meio das diferentes formas de trabalho terceirizado, temporário, em domicílio (home office), em tempo parcial ou por tarefa/projeto, para citar apenas algumas das suas diferentes manifes- tações a que estão submetidos/as os/as trabalhadores/as no “novo (e precário) mundo do trabalho” (Alves, 2000). essas metamorfoses atingem duramente o trabalho assalariado, sua realização concreta e as formas de (des)subjetivação na consciência dos/as trabalhadores/as, com impactos nas dinâmicas associati- vas, organizativas e na afirmação de identidades coletivas. esse conjunto de transformações conduz ao enfraquecimento do movimen- to sindical e associativo, fragilização da organização política autônoma dos/as trabalhadores/as e, simultaneamente, à perda de direitos decorrentes do traba- lho, acarretando profundas metamorfoses na “classe-que-vive-do-trabalho”14 (Antunes, 1999). 14. Incorporamos a noção elaborada por ANTUNES (1999, p. 101/102) para quem, no capitalismo contemporâneo, a “classe-que-vive-do-trabalho” inclui a totalidade daqueles que vendem sua força de trabalho; portanto, “não se res- tringe ao trabalho manual direto, mas incorpora a totalidade do trabalho social, a totalidade do trabalho coletivo assa- lariado, sendo que o trabalho que produz diretamente mais valia e participa diretamente do processo de valorização do capital detém por isso um papel de centralidade no interior da classe trabalhadora, encontrando no proletariado industrial o seu núcleo principal” (grifos do autor). www.canaldoassistentesocial.com.br 52 21 Atribuições privAtivAs do/A Assistente sociAl EM QUEStão | Volume 2 no caso do brasil, antes mesmo de ingressar na onda (neo)liberalizante das medidas de ajustes estruturais, as diferentes formas de precarização do traba- lho, os altos índices de subemprego e a ausência e fragilidade do sistema de pro- teção social para o conjunto da classe trabalhadora já se apresentavam como traços marcantes do capitalismo brasileiro, na transição do trabalho escravo para o trabalho “livre” assalariado. os prenúncios do “brasil Moderno” na constituição do capitalismo brasi- leiro, polarizados pela ideia de “modernização conservadora”, esbarravam em pesadas heranças de escravismo, autoritarismo, coronelismo, clientelismo. (iAnni, p. 33), sendo a coexistência entre o arcaico e o moderno constitutiva da formação social brasileira e do capitalismo dependente. “o brasil Moderno parece um caleidoscópio de muitas épocas, formas de vida e trabalho, modos de ser e pensar. Mas é possível perceber as heranças do escravismo predomi- nando sobre todas as heranças” (iAnni, 2004, p. 61), responsável pela presen- ça escancarada, insidiosa ou velada do racismo estrutural no assim chamado “pais cordial”, que permeia o conjunto de relações e dimensões da vida na so- ciedade brasileira. no âmbito dos processos produtivos, o fordismo à brasileira (brAGA, 2012) guarda importantes singularidades em relação ao fordismo clássico, caracteri- zando-se por um regime de trabalho com fraca proteção social e elevados índi- ces de rotatividade da força de trabalho, derivados da informalidade e precarie- dade estruturais do mercado de trabalho no brasil. Mais precisamente em nosso país, constituiu-se o que brAGA (2012: 21) identificou como fordismo periférico, um sistema social estruturado pela combi- nação de economias e nações capitalistas desenvolvidas e subdesenvolvidas, dominado pela mundialização das trocas mercantis, constituindo-se em uma das principais mediações históricas entre os países capitalistas avançados e os países capitalistas subdesenvolvidos ou dependentes. se consideramos que é próprio do capitalismo, mesmo nos países hegemô- nicos, criar uma população excedente em relação às necessidades de reprodu- ção do modo de produção, gerando desemprego e trabalho precário, no fordis- mo periférico essa sempre foi a regra. Ao contrário do que aconteceu historicamente com o capitalismo nos paí- ses centrais, o estado brasileiro não criou condições para a reprodução social da totalidade da força de trabalho, nem estendeu direitos de cidadania ao conjun- to da classe trabalhadora, excluindo imensas parcelas de trabalhadores/as do acesso ao trabalho protegido e às condições de reprodução social. www.canaldoassistentesocial.com.br 53 22 Conselho federal de serviço soCial - Cfess portanto, no caso do brasil, onde a precarização do trabalho não é um fe- nômeno novo, as diferentes formas de precarização do trabalho e do emprego assumem, na atualidade, novas proporções e manifestações, que vêm sendo amplamente analisadas pela vasta produção sobre o tema em diferentes áreas e atividades econômicas. no tempo presente, alguns autores referem-se a mudanças mais profundas, que reconfiguram o fenômeno da precarização histórica e estrutural do traba- lho no brasil, que atinge a todos/as indiscriminadamente em uma condição não mais provisória, mas permanente, disseminando a ideia de inevitabilidade e fa- talidade econômica (DRUCK, 2011) a processos que são historicamente deter- minados. e essa dinâmica de precarização das condições e vínculos de trabalho atinge também o trabalho social de diferentes categorias profissionais, entre elas assistentes sociais, que têm no estado (nas três esferas de poder) seu prin- cipal empregador. Para fazerfrente à magnitude dessa crise, ao contrário do que afirma o dis- curso neoliberal de retirada ou enfraquecimento do estado, é indispensável a intervenção ativa e continuada do Estado e do fundo público, financiando a acu- mulação desenfreada e as altas taxas de lucratividade do capital em detrimento do trabalho. “o poder econômico do capital não pode existir sem o apoio da for- ça extraeconômica; e a força extraeconômica é hoje, tal como antes, oferecida primariamente pelo estado” (Wood, 2014, p. 18). Na mesma direção, para HARVEY (2011:16), “o poder do Estado deve pro- teger as instituições financeiras a qualquer custo, princípio que bateu de frente com o não intervencionismo que a teoria neoliberal prescreveu”. para o autor, as políticas anticrise de corte neoliberal são parte de um projeto de classe destinado a restaurar e consolidar o poder do capital, privatizando lucros e socializando custos, salvando bancos e colocando os sacrifícios nas pessoas. nenhuma outra instituição ou agência transnacional substituiu o estado- nação “como garantidor administrativo e coercitivo da ordem social, relações de propriedade, estabilidade ou previsibilidade contratual, nem como qualquer outras as condições básicas exigidas pelo capital em sua vida diária” (Wood, 2014, p. 106). como bem analisou netto (2005, p.26), o estado, no capitalismo monopolis- ta, atua como um instrumento de organização da economia, operando como um administrador dos ciclos de crise, “o mais confiável fiador das condições neces- sárias para acumulação” (idem, p. 29), o que certamente não ocorre sem contra- dições e sem lutas entre as classes e seus projetos em confronto. www.canaldoassistentesocial.com.br 54 23 Atribuições privAtivAs do/A Assistente sociAl EM QUEStão | Volume 2 partindo desse posicionamento em relação ao estado capitalista, cumpre refletir, ao mesmo tempo, sobre a dimensão contraditória do Estado, materia- lizada pelas suas instituições e pela presença heterogênea dos agentes media- dores das políticas públicas, entre os quais os/as assistentes sociais. se o estado capitalista serve amplamente aos interesses da acumulação capitalista, sua do- minação é atravessada tanto pelas contradições internas às classes dominantes em relação aos interesses imediatos de suas distintas frações, quanto pela pres- são das lutas das classes dominadas pelas condições de sobrevivência e repro- dução social. Além disso, considerando as políticas sociais como respostas do estado capitalista à questão social, destaca-se a indissociabilidade das funções eco- nômicas e políticas, “de forma a atender às demandas da ordem monopólica, conformando, pela adesão que recebe de categorias e setores cujas demandas incorpora, sistemas de consensos variáveis” (netto, 2005, p. 30). como analisa o autor, um componente de legitimação do estado no capitalismo monopolista não é apenas plenamente suportável, como necessário, para que ele possa con- tinuar sendo funcional às necessidades econômicas, variando de acordo com as diferentes conjunturas históricas. e na medida em que busca essa legitimação política, “uma dinâmica contraditória emerge no interior do sistema estatal” (idem, p. 28), provocando tensionamentos nas instituições, que podem ser potenciali- zadas por possíveis alianças no interior da estrutura estatal a favor de projetos alternativos e referenciados aos interesses da classe trabalhadora. no âmbito do trabalho em serviços15, espaço em que se move a intervenção profissional, é preciso lembrar que, apesar do intenso processo de incorpora- ção de tecnologias digitais, trata-se de um tipo de atividade que se apoia no uso intensivo de força de trabalho, o que supõe atividade interativa, de natureza so- ciorrelacional, dependente portanto da competência crítica do/a trabalhador/a que presta o serviço, dos seus conhecimentos e informações, da direção ética e política que busca imprimir ao seu trabalho, da relação democrática ou não que estabelece com os sujeitos da ação profissional. contudo, é preciso analisar em que circunstâncias sociais assistentes so- ciais exercem seu trabalho, e de que forma estes/estas estão submetidos/as às tendências contemporâneas da precarização do trabalho e das suas formas de estranhamento e alienação. 15. Sobre o tema dos Serviços conferir ANTUNES (2018); especificamente no trabalho de assistentes sociais, con- sultar RAICHELIS, 2018. www.canaldoassistentesocial.com.br 55 24 Conselho federal de serviço soCial - Cfess 3. TERCEIRIZAÇÃO E FLEXIBILIZAÇÃO EM QUESTÃO: ATRIBUIÇÕES E COMPETÊNCIAS NO CONTEXTO DA NOVA MORFOLOGIA DO TRABALHO DE ASSISTENTES SOCIAIS A chamada nova morfologia do trabalho (Antunes 1999, 2005, 2018) não é algo restrito às empresas e ao mundo produtivo privado, nem algo exclusivo dos trabalhadores e trabalhadoras que exercem um trabalho predominantemente manual ou que realizam atividades menos qualificadas e mais desvalorizadas. Ao contrário, trata-se de um processo abrangente e de grande complexi- dade, que atinge a totalidade da força de trabalho, as relações de trabalho no espaço estatal das políticas sociais e, portanto, o trabalho de assistentes sociais e demais profissionais, ainda que com diferenciações. o nosso pressuposto é de que assistentes sociais, imersos/as nas transfor- mações que desafiam o trabalho e seu modo de ser na sociedade capitalista con- temporânea, na condição de trabalhadoras/es assalariadas/os, são submetidas/ os aos mesmos processos de degradação e violação de direitos do conjunto da classe trabalhadora, no interior da heterogeneidade que hoje a caracteriza. para MArcelino, (2015, p. 113), no brasil, a terceirização, ou seja, a inter- posição de uma outra empresa na contratação de trabalhadores/as, se trans- formou no mais importante recurso estratégico para a redução dos custos do trabalho e, portanto, poderosa alavanca de recomposição das taxas de lucro. Ao mesmo tempo, pela externalização dos conflitos trabalhistas, a terceirização atua também como poderoso instrumento de desarticulação política dos/as tra- balhadores/as. A aprovação da terceirização total (lei 13.429/2017) chancela e legaliza a precarização do trabalho no brasil, por meio do leque de alternativas abertos por essa modalidade, que aprofunda ainda mais a exploração da força de trabalho. “na realidade brasileira, a terceirização é inseparável da ampliação da ex- ploração do trabalho, da precarização das condições de vida da classe trabalha- dora e do esforço contínuo das empresas para enfraquecer as organizações dos trabalhadores”. (MArcelino, p. 114) e o fato de a terceirização ocorrer na empresa privada, na empresa estatal, em fundações de direito privado ou nos serviços prestados pelo estado não mo- difica o essencial dessa relação, pois, mesmo que não ocorra um lucro imediato, há uma economia de gastos com a força de trabalho, que é drenada para outros fins que não a ampliação do fundo público para melhoria da qualidade da pres- tação de serviços públicos à população. www.canaldoassistentesocial.com.br 56 25 Atribuições privAtivAs do/A Assistente sociAl EM QUEStão | Volume 2 nesse âmbito, o significado do trabalho profissional muda radicalmente, pois a compra e venda de serviços sociais no atendimento a necessidades so- ciais de educação, saúde, assistência social, habitação etc. passam a pertencer ao domínio do mercado e não à razão pública do estado, quando tensionado pelas lutas sociais da classe trabalhadora pela garantia de direitos sociais (IAMAMOTO, 2018, p. 80). Nesses termos, a mercantilização e a financeiri- zação dos serviços públicos, a transformação das políticas sociais em nichos de rentabilidade para o capital modificam a forma e o conteúdo do trabalho de assistentes sociais. como vários/as autores/as têm analisado, não sendo a terceirização um processo unívoco, suas diferentes formas disseminam-se velozmente nas rela- ções de trabalho deassistentes sociais, reproduzindo tendências gerais do mer- cado de trabalho terceirizado, para distintas áreas de atuação profissional, nas instituições privadas e públicas. entre elas, as cooperativas de trabalhadores/ as, o trabalho temporário, as empresas de prestação de serviços internos ou ex- ternos, e principalmente os chamados pJs (personalidades jurídicas), uma forma de terceirização que vem se expandindo aceleradamente no cenário brasileiro. o pJ ou a “pejotização” das relações de trabalho, no jargão da área, carac- teriza-se como aqueles empreendimentos sem empregados/as, “empresas do eu sozinho”, que passam a realizar atividades que eram desenvolvidas por tra- balhadores/as assalariados/as. do lado da instituição empregadora, a exigência da constituição de pessoa jurídica para contratação e pagamento por meio de recibo de prestação de serviço (rpA) funciona, em geral, para descaracterizar a relação de emprego e, assim, burlar a aplicação da legislação trabalhista, o que faz diminuir os custos com a força de trabalho e a carga tributária sobre os contratantes. e aos/às trabalhadores/as, são sonegados os mais elementares direitos do trabalho, configurando-se o autoemprego ou, de modo mais amplo, a “uberização” das relações de trabalho16. no âmbito do mercado de trabalho para assistentes sociais, as diferentes formas de terceirização vêm sendo observadas: ampliam-se os processos de terceirização de assistentes sociais, para prestação de serviços individuais a 16. “A uberização, tal como será tratada aqui, refere-se a um novo estágio da exploração do trabalho, que traz mu- danças qualitativas ao estatuto do trabalhador, à configuração das empresas, assim como às formas de controle, gerenciamento e expropriação do trabalho. Trata-se de um novo passo nas terceirizações, que, entretanto, ao mesmo tempo que se complementa também pode concorrer com o modelo anterior das redes de subcontratações compos- tas pelos mais diversos tipos de empresas. A uberização consolida a passagem do estatuto de trabalhador para o de um nanoempresário-de-si permanentemente disponível ao trabalho; retira-lhe garantias mínimas ao mesmo tempo que mantém sua subordinação; ainda, se apropria, de modo administrado e produtivo, de uma perda de formas publi- camente estabelecidas e reguladas do trabalho” (ABÍLIO, 2017). www.canaldoassistentesocial.com.br 57 26 Conselho federal de serviço soCial - Cfess organizações não governamentais, empresas de serviços ou de assessoria, cooperativas de trabalhadores/as na prestação de serviços a governos, espe- cialmente em âmbito local, configurando-se o exercício profissional autônomo, temporário, por projeto, por tarefa. o tripé terceirização, flexibilização e precarização é a expressão emblemática que tipifica a nova morfologia do trabalho em tempos de profunda degradação nas suas formas de realização, que está presente nos diferentes espaços ocupa- cionais onde se inserem assistentes sociais e demais profissionais, nas políticas de saúde, assistência social, habitação, entre outros. A terceirização é uma das principais formas de flexibilização do trabalho, que descaracteriza e oculta o vínculo entre empregador/a e empregado/a que regula o direito trabalhista. Além disso, uma característica da terceirização, como poderoso instrumento de redução de custos com a força de trabalho, é o fato de os contratos deixarem de ter natureza trabalhista e passarem a ser civis ou mercantis (MArcelino, 2015, p. 121). exemplos são os contratos de prestação de serviços e as parcerias, além dos pJs, cuja relação de trabalho é pautada por um contrato de natureza mercantil ou comercial. com isso, ampliaram-se as modalidades de terceirização na esfera pública estatal, como: concessão, permissão, parcerias, cooperativas, onGs, organiza- ções sociais (os), organizações da sociedade civil de interesse público (oscip), Fundação Privada de interesse público, etc. Assistentes sociais terceirizados/as experimentam, assim, como trabalha- dores/as eventuais e intermitentes, a angústia de relações de trabalho não pro- tegidas pelo contrato, a insegurança laboral, o sofrimento e o adoecimento, o assédio moral, a baixa e incerta remuneração, a desproteção social e trabalhis- ta, a denegação de direitos, ou seja, a precarização do trabalho e da vida. na política de saúde, as fundações e as organizações sociais vêm se genera- lizando como modelo de gestão do trabalho e de prestação dos serviços, apesar do forte movimento de resistência dos/as trabalhadores/as e das organizações da área. os serviços de saúde, mesmo no âmbito do sistema Único de saúde (SUS), incorporaram a flexibilização de sua gestão, por meio da adoção da ter- ceirização. pesquisas setoriais e regionais têm demonstrado que, em hospitais públicos e privados, cresce fortemente a terceirização dos diferentes setores e laboratórios, por meio de cooperativas, empresas médicas (pJs) e empresas de intermediação de contratos. na política de assistência social, nos marcos do sistema Único de Assistên- cia social (suas), e no âmbito dos centros de referência de Assistência social (cras), centros de referência especializada de Assistência social (creas) e cen- www.canaldoassistentesocial.com.br 58 27 Atribuições privAtivAs do/A Assistente sociAl EM QUEStão | Volume 2 tros pop, estados e municípios se utilizam de variadas modalidades de tercei- rização, pela mediação de entidades assistenciais privadas, onGs ou “coopera- tivas” de trabalhadores/as, para a contratação de profissionais na prestação de serviços socioassistenciais, sob o discurso de falta de recursos para a criação de cargos e realização de concursos, mesmo que seja possível o uso de recursos fe- derais repassados fundo a fundo para a contratação de trabalhadores/as, desde que efetivados via concurso público. na política de habitação de interesse social, a terceirização vem se consolidan- do como modelo de produção e gestão, em que o próprio trabalho social e os/as trabalhadores/as sociais, entre os/as quais assistentes sociais, são contratados/ as por processos licitatórios, dos quais participam empresas intermediadoras, sem que, de modo geral, a administração pública consiga regular e manter o controle estratégico deste processo. na área sociojurídica e nas instituições que integram o sistema de Justiça, a constituição de banco de peritos/as, como é o caso dos tJs, além de um típi- co processo de terceirização que combina trabalho temporário e “pejotização”, instala uma situação inusitada, em que um/a assistente social externo/a à insti- tuição é contratado/a para constestar o laudo (contralaudo) produzido interna- mente por um/a colega, cujas implicações ético-políticas precisam ser objeto de aprofundamento do debate coletivo. também é possível constatar a ocorrência de outras situações nas quais assistentes sociais terceirizados/as como presta- dores/as de serviços (pJ) são contratados/as para realizar estudos e/ou produzir relatórios ou laudos. Estes/as profissionais subcontratam outros/as assistentes sociais para a realização de atividades especificas, como visitas domiciliares, levantamentos, estudos, etc., configurando-se, portanto, a quarteirização ou “terceirização em cascata” (MArcelino 2015). As consultorias empresariais vêm se expandindo e se caracterizam pela ven- da de um serviço ou pacotes de serviços (dentre eles o serviço social) a outras empresas, não só pequenas, mas também grandes empesas multinacionais, em geral substituindo o trabalho que antes era realizado internamente por profis- sionais contratados/as diretamente pela própria empresa. essas consultorias adotam diferentes formas de contratação, que denomi- nam “consultores internos e externos”, para, por meio do trabalho à distância, teleatendimento, atendimento on line, teletrabalho, etc., assumir atribuições e competências profissionais, por meio da terceirização e até da quarteirização dos vínculosde trabalho de assistentes sociais e outros profissionais, como psi- cólogos/as, advogados/as, sociólogos/as, etc. www.canaldoassistentesocial.com.br 59 28 Conselho federal de serviço soCial - Cfess Nesses termos, profissionais assumem a condição aparente de trabalhado- res/as autônomos/as, mas são de fato temporários/as; em geral, realizam tare- fas pontuais à distância a partir do seu próprio computador e internet, com vín- culos contratuais flexíveis e muitos sem nenhum contrato de trabalho. Enviam os relatórios de atendimento por e-mail ou inserem informações em planilhas informatizadas, processos que, em geral, comprometem o sigilo profissional. trata-se, via de regra, de subcontratação com base em cargos genéricos (analista de benefícios, analista de rH, consultor de benefícios), com externali- zação do local de trabalho, custos/despesas por conta dos/as próprios/as profis- sionais, baixa remuneração, ausência de direitos e benefícios, precárias condi- ções de trabalho e insegurança no trabalho. Modalidades de teletrabalho, atendimento remoto ou home office estão em curso em diferentes instituições, como os tribunais de Justiça, defensorias públicas e Ministério público, no âmbito do poder Judiciário, que aprovou re- solução regulamentando o teletrabalho, sob o argumento de que essa prática melhora a qualidade de vida dos/as trabalhadores/as, proporciona economia de recursos naturais (papel, energia elétrica, água, etc.), além de colaborar com a mobilidade urbana, devido ao esvaziamento das vias públicas e do transporte coletivo17. o instituto nacional do seguro social (inss) também instituiu recentemente o programa de Gestão na modalidade de teletrabalho18, que, além de visar à redu- ção de despesas de custeio (água, energia, transporte, material de consumo, etc.), “trará uma satisfação maior do servidor e isso faz com que aumente a produtivi- dade, evitando retrabalhos e erros” (inss, resolução nº 681, 2019, p. 8-9). “Além disso, não pode ser desconsiderado que a desterritorialização traz, por si só, um benefício associado: considerando o afastamento físico do segu- rado interessado na concessão do benefício dos servidores responsáveis pela sua análise, haverá significativa redução da possibilidade de constrangimento pessoal do requerente aos servidores do inss e, em hipótese extrema, até de situações de conluio e corrupção” (inss, resolução nº 681, 2019, p. 8-9). 17. Cf. Resolução 227, de 15 de junho de 2016. Disponível em http://cnj.jus.br/images/atos_normativos/resolucao/ resolucao_227_15062016_17062016161058.pdf. Acesso em 18 de março de 2019. Cf. também Portal do CNJ http:// cnj.jus.br/noticias/cnj/82591-aprovada-resolucao-que-regulamenta-o-teletrabalho-no-poder-judiciario. Acesso em 18 de março de 2019. 18. Cf. Resolução Nº 681/Pres/INSS, de 24 de maio de 2019, que institui, a título de experiência-piloto, as Centrais Especializadas de Alta Performance no âmbito do Instituto Nacional do Seguro Social, como Programa de Gestão na modalidade de teletrabalho. Disponível em file:///C:/Users/raich/Downloads/Portaria%20681%20teletrabalho.pdf. Acesso em 29 de maio de 2019. Cf também o Plano Geral de Trabalho: Centrais Especializadas de Alta Performance, Experiência-Piloto (Anexo à Resolução nº 681/PRES/INSS, de 24 de maio de 2019) Disponível em file:///C:/Users/ raich/Downloads/Portaria%20681%20teletrabalho%20anexo%20(1).pdf. Acesso em 29 de maio de 2019 www.canaldoassistentesocial.com.br 60 29 Atribuições privAtivAs do/A Assistente sociAl EM QUEStão | Volume 2 na aprovação da regulamentação geral do teletrabalho no poder Judiciário, o relator da matéria no CNJ afirmou que: “a proposta consolida a meta de de- sempenho como método de mensuração do trabalho, superando o tradicional e antiquado modelo de controle em razão do tempo disponibilizado pelo servidor ao tribunal. no Judiciário do terceiro milênio, guiado pela cultura de resultados e pelo uso inteligente da tecnologia, pouco interessa saber quanto tempo o ser- vidor permaneceu dentro do tribunal, mas o quanto ele efetivamente produziu” (cf. portal cnJ, 14/6/2016). cabe destacar, como faz dAl rosso (2017, p. 272-273), “que a organização flexível das horas laborais promoveu uma ampliação gigantesca dos tempos de trabalho, por invasão dos tempos de não trabalho e sua conversão em horários la- borais. As fronteiras entre uns e outros mudaram de lugar. [...] Alterando as fron- teiras e as barreiras que separam o tempo de trabalho do tempo livre, a distribui- ção flexível das horas laborais praticamente anulou a separação conceitual que é de relevância fundamental para trabalhadores e trabalhadoras porque identifica os tempos de autonomia em que eles descansam, participam da cultura e fazem amor”. Mais ainda no caso das trabalhadoras, que são maioria no trabalho em ser- viços e no serviço social, e que na divisão sexual do trabalho permanecem com a responsabilidade dos cuidados no âmbito da reprodução social e na esfera priva- da, situação reforçada pelas diferentes formas de trabalho flexível, o que torna as mulheres trabalhadoras mais suscetíveis ao “ardil da flexibilidade” (idem). Também novas formas de recrutamento de profissionais, como os pregões eletrônicos, que até aqui eram utilizados para contratação de bens e serviços, agora têm sido adotados para contratação de trabalhadores/as pelo menor pre- ço, e tem se generalizado na administração pública direta, nos três níveis da fe- deração, com o objetivo de rebaixar os custos da força de trabalho e acirrar a concorrência entre trabalhadores/as. em meio a tantos outros exemplos que poderiam ser acrescidos, o que é im- portante demarcar, no contexto das transformações do “mundo do trabalho”, é que o que era residual tende a se generalizar para os demais campos de traba- lho, não apenas no âmbito empresarial, mas também nas organizações público -estatais. trata-se de um conjunto de novas situações de trabalho, em relação às quais temos pouco conhecimento empírico acumulado, carecendo de pesquisas que possam capturar o processamento dessas novas formas de organização do trabalho e seus rebatimentos nos conteúdos, significados e organização do tra- balho, que, nesses casos, passam a suprimir aquilo que é parte da natureza do trabalho de assistentes sociais, ou seja, a relação direta, dialógica e político-pe- dagógica com os sujeitos para os quais presta serviços profissionais. www.canaldoassistentesocial.com.br 61 30 Conselho federal de serviço soCial - Cfess Tal cenário exige, portanto, a identificação não apenas do cumprimento das prerrogativas profissionais e atribuições privativas em termos da ativida- de ou do instrumento utilizado, mas principalmente envolve a análise crítica e fundamentada dos conteúdos ou matérias envolvidas e as implicações éticas, em termos de repostas profissionais a necessidades e direitos dos indivíduos e famílias atendidos, questões relevantes para o trabalho das Cofis na orientação e fiscalização profissional. Caberiam muitas indagações nessa análise: o que significa um/a assistente social fazer um atendimento à distância ou mesmo uma visita domiciliar para acompanhar uma situação pontual de um funcionário ou família, propor algum tipo de encaminhamento e mandar por e-mail um relatório para a empresa que o/a contratou? Quais são as implicações profissionais do teletrabalho no atendi- mento junto a demandantes de benefícios previdenciários, cuja análise da soli- citação será realizada à distância pelo/a profissional, na qual deverá apresentar um incremento de produtividade e de desempenho no mínimo 30% (trinta por cento) superior ao previsto para o/a servidor/a em regime de trabalho presen- cial, e que se beneficiará da ausência de relação com o/a solicitante, “ficando menos sujeito a pressão ou a casos de corrupção”, como consta da regulamenta- ção do teletrabalho no inss? essas novas formas de contratação e de organização do trabalho são a ex-pressão mais emblemática da nova morfologia do trabalho no Serviço Social, com a disseminação de um tipo de “uberização” do trabalho, que, além de transferir custos do trabalho aos/à próprios/as trabalhadores/as (internet, manutenção do computador, energia elétrica, etc.), invisibilizam as relações entre trabalha- dores/as e seus/suas empregadores/as, cuja atividade passa a ser mediada pelos sistemas e plataformas digitais, nos quais é suprimida a relação presencial que envolve o contato humano de assistentes sociais e usuários/as, transformando a própria episteme de um trabalho de natureza sociorrelacional. são processos típicos das novas configurações do trabalho em serviços, que alguns/algumas autores/as vêm denominando de “capitalismo de plataforma”, em função da in- tensa utilização de tecnologias digitais nos processos de trabalho. na esfera estatal, ainda que as relações de trabalho não se estabeleçam entre proprietários/as e não proprietários/as dos meios de produção, estão presentes relações de exploração, subordinação e dominação próprias da condição de assa- lariamento, que envolvem disputas em relação às condições de trabalho, definição da jornada e do valor dos salários (de que é exemplo a conquista pela categoria www.canaldoassistentesocial.com.br 62 31 Atribuições privAtivAs do/A Assistente sociAl EM QUEStão | Volume 2 profissional de assistentes sociais das 30hs de jornada de trabalho sem redução do salário), além da luta pelos meios e instrumentos de trabalho disponibilizados pelo/a empregador/a, para a realização do trabalho profissional. do ponto de vista das relações de trabalho, constitui-se um quadro em que grande parte dos serviços públicos não é mais realizada predominantemente pelo/a trabalhador/a do Estado, profissional concursado/a com contrato por tempo indeterminado e relações de trabalho reguladas por regime jurídico pró- prio, com plano de cargos e salários e critérios definidos de progressão na car- reira19. trabalham na mesma equipe e desempenham as mesmas atividades assis- tentes sociais (e demais profissionais) com diferentes vínculos contratuais, sa- lários e direitos, o que acaba configurando a presença de trabalhadores/as de primeira e segunda categoria (Druck, 2013), com grandes desafios para a constru- ção de solidariedades, identidades e lutas coletivas. na realidade, os serviços públicos, no âmbito das políticas sociais, são pres- tados pelos mais diferentes tipos de trabalhadores/as, em geral empregados/as de forma precária, com contratos temporários, terceirizados, com salários mais baixos e expostos a maiores riscos e inseguranças, constituindo novas hierar- quias entre os/as próprios/as trabalhadores/as (DRUCK, 2013). Associada à flexibilização dos vínculos contratuais e à privatização dos serviços públicos, a terceirização promove alta rotatividade de profissionais, interfere negativamente na qualidade dos serviços prestados, prejudica a vida e a saúde desses/as trabalhadores/as, dificultando a organização coletiva e a definição de pautas comuns, considerando a heterogeneidade desse coletivo. As consequências da terceirização e dos contratos temporários no trabalho profissional são profundas, pois subordinam as ações à lógica financeira dos contratos, geram descontinuidades, rompimento de vínculos com usuários/as, descrédito da população para com as ações públicas. nesse cenário, a exemplo do que ocorre no mundo das empresas e das or- ganizações privadas mercantis, presencia-se um processo de “reestruturação neoliberal do estado”, disseminando-se a ideologia gerencialista, que esvazia 19. O que tem criado dificuldades hoje para o CFESS responder a demandas sobre definição do quadro de pesso- al de uma instituição, por exemplo, para fins de cumprimento da regulamentação da supervisão direta de estágio (Resolução CFESS, Nº 533, de 29 de setembro de 2008), como uma atribuição privativa de assistentes sociais da instituição. Cabe indagar: um/a assistente social terceirizado/a, com contrato precário renovado há anos, com sólida experiencia na área, pode ser supervisor/a de campo de estágios de alunos/as da graduação em Serviço Social sem ferir a regulamentação em vigor? www.canaldoassistentesocial.com.br 63 32 Conselho federal de serviço soCial - Cfess conteúdos reflexivos e criativos do trabalho, enquadra processos e dinâmicas às metas de qualidade e de produtividade a serem alcançadas, reduz as margens de autonomia profissional e enfraquece a organização política e sindical dos/as trabalhadores/as do estado. enquanto ideologia de gestão em tempo de crise do capital, o gerencialismo ganha espaço como estruturador das relações de trabalho entre empregado- res/as e trabalhadores/as, reproduzindo-se nas políticas estatais as tendências de empresariamento do trabalho, fazendo prevalecer a razão instrumental em detrimento da razão crítica. As políticas neoliberais hegemônicas no aparelho estatal não significam a mera restauração de um liberalismo tradicional, como destacam os pesquisado- res franceses dArdot e lAvAl (2016, p. 190), pois elas alteram radicalmen- te o exercício do poder governamental. Antes de ser apenas uma ideologia ou um receituário de medidas econômicas, o neoliberalismo é principalmente uma nova racionalidade, que produz um sistema de normas inscritas nas práticas go- vernamentais, nas políticas institucionais, nos estilos gerenciais. o estado neoliberal assume a forma de um “governo empresarial” e impõe a mercadorização da instituição pública, que funciona de acordo com regras empresariais da governança público-privada, fazendo com que assalariados/as trabalhem mais, por meio de um sistema de incentivos e metas que individualiza o trabalho e estimula a concorrência entre trabalhadores/as, com impactos na sociabilidade e na organização coletiva20. Ao mesmo tempo, essa lógica privatista do estado neoliberal afetou tam- bém a imagem do/a trabalhador/a do estado junto à população e à opinião pú- blica, instalando-se um clima desfavorável à recomposição e expansão da força de trabalho na administração pública. tal dinâmica instalou-se e desenvolve-se velozmente na administração pública brasileira, no cotidiano de trabalho institucional em âmbito federal, es- tadual e principalmente municipal, em que se materializam os serviços sociais púbicos à população. Mesmo assalariados/as com empregos “estáveis”, estatutários/as concur- sados/as, com contratos por tempo indeterminado, são afetados/as pelo “sen- timento de precariedade quando são confrontados com exigências cada vez 20. Na mesma perspectiva, Chauí (2014, p. 50) refere-se à ideologia da competência afirmando que “o neoliberalis- mo fragmentou o mundo do trabalho e a sociedade, deu ao mercado a chave da suposta racionalidade do mundo, fez da competição individual a condição da existência bem-sucedida, fortaleceu a ideologia da competência ou a divisão social entre os que supostamente sabem e devem mandar e os que não sabem e por isso devem obedecer, introduziu o desemprego estrutural e a divisão, em todos os países, entre a opulência jamais vista e a miséria jamais vista”. www.canaldoassistentesocial.com.br 64 33 Atribuições privAtivAs do/A Assistente sociAl EM QUEStão | Volume 2 maiores no trabalho e estão permanentemente preocupados com a ideia de nem sempre estar em condições de responder a elas” (linhart, 2014, p. 45). Ao mesmo tempo, dados sobre o trabalho em diferentes políticas sociais (assistência social, saúde, habitação e outras) apontam para uma redução cres- cente no número de servidores/as estatutários/as e aumento sistemático de trabalhadores/as identificados/as como “outros vínculos”, o que abrange ter- ceirizados/as, comissionados/as, cedidos/as, consultores/as, estagiários/as, sem contar os/as voluntários/as. o trabalho de assistentes sociais integra, pois, essa dinâmica racionalizado- ra, com rebatimentos nas atribuições e competênciasprofissionais, cujas ten- dências se expressam, entre outras, por: crescente rotinização de atividades e padronização dos processos de trabalhos; alto nível de prescrição das tarefas e atividades com produção intensa de manuais, cartilhas, orientações, monito- ramento, definição de metas, quantificação de atividades (nº de visitas, entre- vistas, cadastros); e fortalecimento de mecanismos de controle dos serviços e benefícios, que se transformam em controle dos/as beneficiários/as. tem sido reiterativo o discurso de assistentes sociais sobre o envolvimento excessivo com o preenchimento de formulários e planilhas padronizadas numa tela de computador, a multiplicação das visitas domiciliares, a realização de ca- dastramentos da população, de seleção socioeconômica para fins de acesso a benefícios e provisões sociais, reeditando práticas de “controle dos pobres e polícia das famílias”. nesse contexto, assistentes sociais são levados a produ- zir, registrar e alimentar bases de dados sem que sejam por eles/as apropriados com objetivo de aprofundar o conhecimento sobre as necessidades sociais e formulação de novas propostas para essa classe trabalhadora, que hoje é muito mais heterogênea e fragmentada, carecendo de estudos sobre suas necessida- des e demandas. portanto, assumidas dessa forma, essas atividades burocratizam o traba- lho, consomem tempo e energia criativa, não agregam conhecimento e reflexão crítica sobre a realidade, rebaixam a qualidade do trabalho técnico e impedem que profissionais especializados/as possam realizar o trabalho intelectual para o qual estão (ou deveriam estar) capacitados/as a produzir. essas características do processamento do trabalho e suas formas de ges- tão e controle se disseminam com grande velocidade, também em função da incorporação das tecnologias de informação e comunicação (tics), que, se por um lado podem representar potencializadores dos instrumentos de traba- lho já utilizados pelo serviço social, como registros e sistematização de dados, pesquisa e organização de informações, produção de relatórios, etc.; por ou- www.canaldoassistentesocial.com.br 65 34 Conselho federal de serviço soCial - Cfess tro, seu uso cada vez mais intensivo não pode ser desvinculado dos objetivos de reduzir custos do trabalho vivo e enquadrar processos e ritmos institucio- nais às metas de produtividade, ampliando-se controles sobre tempos, ritmos e resultados do trabalho. também é possível constatar o crescimento de um tipo de demanda dirigi- da aos/às assistentes sociais em diferentes áreas, que burocratiza e rotiniza as ações institucionais, afasta o profissional do trabalho político-pedagógico com a população, que envolve acompanhamento próximo e sistemático, exige que assistentes sociais saiam de trás de suas escrivaninhas e deixem a tela do com- putador, para se inserir nos territórios onde vive a população. não se trata de questionar as necessidades de normas e de monitoramen- to e avaliação do trabalho, mas sim o excesso de normatização, padronização e centralização do trabalho social e da própria política social, sem que muitas vezes trabalhadores/as se contraponham e negociem propostas alternativas. Também tem sido comum que profissionais restrinjam suas leituras a esses manuais, documentos técnicos, legislação específica, produzidos nos marcos de cada política social, certamente necessários para o desempenho institucional, mas insuficientes como fonte exclusiva de conhecimento sobre as políticas so- ciais, o que vem contribuindo para uma reprodução acrítica dos textos oficiais, uma diluição do serviço social na política social e frágil apropriação dos fun- damentos teórico-metodológicos do trabalho profissional. E, ainda, tem condu- zido profissionais à subordinação aos objetivos institucionais, distanciando-se da direção social estratégica que deve orientar as propostas profissionais, de acordo com as prerrogativas, atribuições e competências profissionais, à luz dos valores e princípios que orientam o projeto coletivo da profissão. Nessa ambiência institucional, vai se processando a intensificação do tra- balho, incorporada de forma sutil e gradativa, nem sempre perceptível para os sujeitos, por meio de um modelo de gestão do desempenho que adota ferra- mentas do setor privado, como já apontado, com indicadores de resultados e sistemas de incentivos orientados por avaliações sistemáticas e subordinados à demanda de “cidadãos-clientes”. (dArdot e lAvAl, 2016). contexto propício ao crescimento do assédio moral (silva e raichelis, 2015), sofrimento e adoecimento provocados pelas novas formas de organização e gestão do trabalho (Vicente, 2015), situações que têm sido identificadas em pesquisas e começam a ser discutidas mais amplamente pela categoria profissional. embora haja muitos estudos na literatura do serviço social sobre o campo da saúde do/a trabalhador/a que analisam relações de trabalho e processos de saúde-doença de diversas categorias profissionais, ainda são poucos os estudos www.canaldoassistentesocial.com.br 66 35 Atribuições privAtivAs do/A Assistente sociAl EM QUEStão | Volume 2 empíricos sobre adoecimento e sofrimento de assistentes sociais decorrentes dos processos de trabalhos nos quais estão inseridos/as. A pesquisa de silva (2014) sobre assédio de assistentes sociais em dife- rentes áreas profissionais revelou que a violência moral nas relações de traba- lho apresenta-se como estratégia de dominação sobre o conjunto de trabalha- dores/as, desorganizando-o e despolitizando-o enquanto classe trabalhadora, esvaziando seu potencial reivindicatório, na medida em que ocorre a individu- alização da violência assimilada como culpa pelo/a trabalhador/a e não como violação dos seus direitos humanos. nesse sentido, a solidariedade de classe desaparece para dar lugar à culpabilização individual em relação a questões que afetam o coletivo. pesquisa realizada por vicente (2015), sobre desgaste mental no trabalho de assistentes sociais que atuam na politica municipal de habitação em são pau- lo, constatou maior sofrimento e adoecimento em assistentes sociais contrata- das pelas empresas gerenciadoras terceirizadas, que prestam serviços a prefei- turas, submetidas a trabalhos rotineiros, condições mais precárias e insalubres nos canteiros de obra, inadequação dos locais de atendimento da população, violação de direitos básicos, como falta de local apropiado para refeições, falta de água e sujeira dos banheiros, entre outros constrangimentos e humilhações. essa dinâmica cria tensões e contradições para a materialização do proje- to ético-político profissional, desencadeia sofrimentos e violações não apenas dos direitos dos sujeitos com os quais os/as assistentes sociais trabalham, mas também de seus próprios direitos, à semelhança do conjunto da “classe-que-vi- ve-do-trabalho”. 4. LUTAS, RESISTÊNCIAS E CONTRAPONTOS À “DESCOLETIVIZAÇÃO” DO TRABALHO como vimos, na sociedade do capital, o trabalho do/a assistente social é in- dissociável do emaranhado de contradições e da correlação de forças que se estabelecem em uma dinâmica societária na qual o trabalho é realizado coleti- vamente, enquanto seus frutos são apropriados privadamente para fins de acu- mulação e exercício do poder de classe. se a matéria do trabalho de assistentes sociais são as expressões da ques- tão social, as atribuições e competências profissionais se materializam nessa relação. Assistentes sociais são convocados/as a intervir nas mais agudas e dra- www.canaldoassistentesocial.com.br 67 36 Conselho federal de serviço soCial - Cfess máticas manifestações da questão social, que se renovam e se atualizam nas diferentes conjunturas sociopolíticas. trata-se de novas e antigas questões de- correntes da desigualdade social em suas múltiplas faces e dimensões, com as quais assistentes sociais convivem no cotidiano institucional. No contexto atual de desregulamentação do trabalhoe das profissões, no- vas exigências se apresentam e requisitam cada vez mais flexibilização, intensi- ficação e polivalência, levando a um quadro de desespecialização e desprofis- sionalização, que produz efeitos profundos no conjunto das profissões, entre elas o serviço social. A tendência de rotatividade e polivalência produzem a eliminação dos con- teúdos das formações disciplinares, como parte de um modelo em que se busca diluir as particulares inserções profissionais em um conjunto de atividades co- muns e cada vez mais simplificadas, requisições às quais todos/as os/as profis- sões devem responder. o serviço social não está alheio a esse processo, tanto no sentido da compe- tição e disputa por espaços profissionais nas políticas sociais, pela sua tendên- cia cada vez mais multiprofissional e interdisciplinar, quanto na subordinação dos objetivos, princípios e valores da profissão aos da instituição, do programa, do projeto ou da política social nos quais o/a assistente social se insere. esse é um contexto que favorece a retomada de requisições históricas di- rigidas ao serviço social, de enquadramento, disciplinarização e controle das classes e grupos subalternos, que reforçam a perspectiva do/a assistente social como profissional da coerção e do consenso, como analisou iamamoto em 1982. embora estas requisições não sejam novas, ao contrário, estão presentes desde a gênese do serviço social, elas aparecem hoje refuncionalizadas e atua- lizadas, recebem novos influxos com a incorporação, pela esfera estatal, de mo- delos de gestão e organização do trabalho típicas da empresa capitalista. contudo, essa nova morfologia do trabalho precisa ser considerada no mo- vimento contraditório e multifacetado, em que assistentes sociais e demais tra- balhadores/as participam política e ideologicamente das resistências e disputas em seus locais de trabalho e em outros espaços extrainstitucionais, nos quais se organizam enquanto sujeitos coletivos, a partir das próprias contradições cria- das pelo trabalho explorado e alienado. A despeito dos ataques que sofre o trabalho no capitalismo contemporâ- neo, nas situações concretas, ele é também uma oportunidade para a criação de laços entre os/as trabalhadores/as e, principalmente no âmbito do trabalho em serviços, de múltiplas relações entre trabalhadores/as e usuários/as, mesmo com a presença cada vez mais ampliada das tecnologias digitais. daí a impor- www.canaldoassistentesocial.com.br 68 37 Atribuições privAtivAs do/A Assistente sociAl EM QUEStão | Volume 2 tância de estratégias que enfrentem a fragmentação dos coletivos de trabalha- dores/as e rompam com a lógica da concorrência e da “dinâmica da descoletivi- zação” (cAntor, 2019, p. 51) imposta pelo capitalismo de nossa época. isso porque, na organização do trabalho, com a utilização em larga escala dos instrumentos microeletrônicos e digitais, “se generaliza a individualização das tarefas, a ponto de o coletivo dos trabalhadores poder ser diluído, como ocorre no chamado trabalho em rede, no qual alguns indivíduos se conectam durante algum tempo para realizar um determinado projeto, em seguida se des- conectam e voltam a conectar-se no momento em que têm um novo projeto” (idem, p. 50-51). contudo, no caso do trabalho complexo realizado pelas/os assistentes so- ciais, orientado estrategicamente por projeto ético-politico construído cole- tivamente, apresenta-se a possibilidade de os/as trabalhadores/as não serem totalmente capturados/as pelos dilemas da alienação do trabalho assalariado (SCHÜTZ; MIOTO, 2012). nas palavras de dArdot e lAvAl (2017, p. 512): “o trabalhador não deixa do lado de fora do local de trabalho todos os seus valores morais, seu senso de justiça, sua relação com o coletivo e seus mais diversos pertencimentos sociais”. Antunes (2018, p. 25-26, grifos do autor) também se refere a esse mun- do contraditório e vital presente no ato de trabalhar, que emancipa, humani- za e sujeita, libera e escraviza, e envolve a forma de ser do trabalho: “mesmo quando o trabalho é marcado de modo predominante por traços de alienação e estranhamento, ele expressa também, em alguma medida, coágulos de so- ciabilidade que são perceptíveis particularmente quando comparamos a vida de homens e mulheres que trabalham com a daqueles que se encontram de- sempregados”. como não há trabalho isolado e os indivíduos não trabalham sozinhos (Marx, 1968; 2004), o trabalho supõe um coletivo de trabalhadores/as para se materializar, que não se resume a um agrupamento de trabalhadores/as no mes- mo espaço físico nem obedece a nenhum determinismo natural ou orgânico. como atividade ontológica vital, o trabalho mediatiza a satisfação de ne- cessidades humanas, levando os sujeitos a se inserirem num conjunto maior de trabalhadores/as, conferindo a essa atividade coletiva a marca de social. por- tanto, destaca-se a importância de compreender o trabalho como atividade so- cial e coletiva e, nesse âmbito, reconhecer que a dimensão político-pedagógica do trabalho do/a assistente social o inscreve no âmbito dos processos de hege- monia” (AlMeidA; AlencAr, 2011, p. 125) e de disputa da direção social com base no projeto ético- político da profissão. www.canaldoassistentesocial.com.br 69 38 Conselho federal de serviço soCial - Cfess os serviços sociais públicos são expressão dessa dupla natureza contraditó- ria: se, de um lado, o trabalho profissional participa da dinâmica de mercantiliza- ção dos serviços públicos, no mesmo processo, ele atende a necessidades concre- tas da classe trabalhadora (iAMAMoto, 1982), que, em tempos de desemprego e de baixos salários, amplia suas demandas de políticas e bens públicos. sabemos que assistentes sociais convivem com a violência, a pobreza, o adoecimento, as múltiplas expropriações dos meios materiais e simbólicos para reprodução social da classe trabalhadora. Mas, ao mesmo tempo, o tipo de in- serção institucional que possuem implica na proximidade com diferentes seg- mentos da classe trabalhadora, especialmente os grupos mais subalternizados, o que cria condições para o (re) conhecimento de suas necessidades, de seus modos de vida, de trabalho e de luta pela sobrevivência, suas fragilidades e for- talezas lapidadas pelo duro cotidiano. esse conhecimento é condição necessária para elaborar propostas profissionais consistentes teórica e tecnicamente, que respondam às necessidades sociais, fortaleçam os/as usuários/as como sujeitos de direitos e possibilitem aprofundar alianças estratégicas entre usuários/as e trabalhadores/as. A socialização de informações, não apenas sobre recursos e condições de en- quadramento às regras institucionais, mas como reconhecimento de direitos legí- timos, é um instrumento potente a ser mobilizado no cotidiano institucional. Assim como o é a denúncia sobre violação de direitos a que a classe trabalhadora que vive na periferia das cidades é exposta cotidianamente, e que assistentes sociais e de- mais trabalhadores/as recolhem em seu trabalho. (iAMAMoto, 2007, p. 427) O trabalho profissional de assistentes sociais deve orientar-se para a su- peração da cultura histórica do pragmatismo e das ações improvisadas, de controle e disciplinarização de condutas, da reprodução de posturas conser- vadoras, moralizadoras e preconceituosas frente aos diferentes grupos com os quais trabalham: mulheres, comunidades lGbti, jovens negros e negras moradores/as das periferias das cidades, rompendo com visões que natura- lizam ou criminalizam a pobreza e com as variadas formas de discriminação, violência e violação de direitos da classe trabalhadora, sobretudo de seus gru- pos mais subalternizados. para isso, é preciso que assistentes sociais e demais trabalhadores/as do serviço púbico possam insurgir-se coletivamente contra as estratégias de in- tensificação do trabalho e resistir ao mero produtivismo institucional, medido pelo número de reuniões, de visitas domiciliares, de atendimentos,de laudos, de pareceres, de cadastros preenchidos, que contribuem para a alienação do/a trabalhador/a. www.canaldoassistentesocial.com.br 70 39 Atribuições privAtivAs do/A Assistente sociAl EM QUEStão | Volume 2 o enfrentamento dessas situações supõe muito mais do que apenas a re- alização de rotinas institucionais, cumprimento de tarefas burocráticas ou a simples reiteração do instituído. envolve o/a assistente social como intelectu- al capaz de desvendar criticamente a realidade e os processos de trabalho nos quais se insere, no contexto dos interesses em jogo e da correlação das forças políticas que os tensionam. E supõe ainda um processo contínuo de reflexão e de prática coletivas em cada um dos espaços ocupacionais nos marcos da dire- ção política do projeto profissional, que aponta para outra sociabilidade para além do capital. O cotidiano profissional é marcado por tensões e desafios, mas é nesse mesmo cotidiano que se apresentam as possibilidades de superação e enfren- tamento das requisições impostas, às quais os/as assistentes sociais não estão obrigados/as a se submeter. A lei de regulamentação profissional, o código de ética de assistentes sociais, as resoluções do conjunto cFess-cress, as notas técnicas e orientações são importantes instrumentos que podem e devem ser acionados sempre que os/as trabalhadores/as sejam constrangidos/as a realizar tarefas contrárias ao projeto ético-político profissional. É importante que assis- tentes sociais enfrentem esse desafio profissional e defendam com convicção a direção social estratégica do projeto ético-político. Os avanços do Serviço Social brasileiro e a direção ético-política da profis- são recusam a adoção de abordagens conservadoras, autoritárias ou discipli- nadoras, que individualizam, moralizam ou criminalizam a questão social, cul- pabilizando as famílias e indivíduos pela sua condição de pobreza. Assistentes sociais estão sendo desafiados/as a inovar e ousar na construção de estratégias profissionais que priorizem as abordagens coletivas e a participação dos/as usu- ários/as, numa contextualização societária de radicalização do conservadoris- mo e de barbarização da vida social. A precarização e a flexibilização do trabalho e dos direitos tendem a se aprofundar no contexto das contrarreformas trabalhista e previdenciária, e da vigência da emenda constitucional 95, que impôs um draconiano regime fiscal que congela recursos públicos por 20 anos, com impactos diretos no fi- nanciamento público das políticas sociais. Ao mesmo tempo, a criminalização dos movimentos sociais e da pobreza, ainda mais quando ela tem rosto negro de mulher e de jovens periféricos, aguça o braço penal do estado e provoca um verdadeiro genocídio da classe trabalhadora empobrecida e desempregada. É preciso resgatar o trabalho de base com os/as usuários/as dos serviços, nos territórios e nos bairros da periferia das cidades, em uma ação política e pe- dagógica que possa debater com os indivíduos e famílias as causas da crise, das www.canaldoassistentesocial.com.br 71 40 Conselho federal de serviço soCial - Cfess múltiplas destituições e da insuficiência de respostas do Estado e das políticas públicas às necessidades e direitos da classe trabalhadora. Ampliar e multiplicar os fóruns, grupos de estudo, seminários, como mecanismos estratégicos nessa construção coletiva. Ainda mais com a desconstrução dos espaços de participa- ção e deliberação coletiva, como conselhos e conferências de políticas públicas, pela ação deletéria de um governo retrógrado e despreparado para assumir a gestão pública. nos momentos de crise, é fundamental resgatar o sentido de pertencimen- to de classe e as alianças com forças coletivas de resistência. opor-se à “dinâmi- ca da descoletivização”. resgatar o sentido “do comum” para enfrentar a tragé- dia do “não comum” (dArdot e lAvAl, 2017). os fóruns coletivos de defesa da seguridade social e das políticas públicas são ferramentas políticas potentes e assumem uma função estratégica na unificação das lutas e resistências, em sua diversidade e pluralidade, o que abre possibilidades de construção de contra- tendências à ordem hegemônica do capital e de seus representantes estatais. REFERÊNCIAS ABePss. Diretrizes Gerais para os Cursos de Serviço Social. Rio de Janeiro: ABePss, 1996. 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Soc., São Paulo, n. 132, p. 268-286, maio/ago. 2018 http://dx.doi.org/10.1590/0101-6628.141 Pensar o gênero: diálogos com o Serviço Social Thinking gender: dialogues with Social Work Andrea Moraes Alves Doutora em antropologia, professora associada da Escola de Serviço Social da UFRJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. andreamoraesalves@gmail.com Resumo: O artigo apresenta as três abordagens sobre gênero mais comuns nas pesquisas no campo do Serviço Social brasileiro. São elas: o marxismo, as relações sociais de sexo e a interseccionalidade. Enquanto as duas primeiras são mais recorrentes, a última começa a adentrar as produções da área. O texto discute cada uma, mostra suas potencia- lidades e limites e estabelece algumas conexões entre elas. Por fim, aponta para lacunas presentes nas investigações sobre gênero no Serviço Social. Palavras-chave: Gênero. Marxismo. Relações Sociais de Sexo. Interseccionalidade. Abstract: The article presents the three most common approaches to gender in research in the field of Brazilian social service. They are: Marxism, social relations of sex and intersectionality. While the first two are more recurring, the latter begins to enter the productions of the area. The text discusses each of them, shows their potentialities and limits and establishes some connections between them. Lastly, it points to gaps in the investigation of gender in social work. Keywords: Gender. Marxism. Social Relations of Sex. Intersectionality O Serviço Social brasileiro produziu em sua história recente uma im-portante contribuição aos estudos no campo das relações de gênero. A discussão em torno da categoria gênero está presente nas pesquisas da área, e a intervenção profissional lida diretamente com as dimensões que envolvem o gênero, com especial destaque para os trabalhos sobre violência e direitos reprodutivos. Nos cursos de graduação, gênero está incluído seja em disciplinas obrigatórias, seja em eletivas. No Enade 2016, por exemplo, uma das questões abordava a Lei Maria da Penha. Nesse sentido, há um acúmulo consolidado de conhecimento sobre gênero no Serviço Social, movimento que www.canaldoassistentesocial.com.br 75 269Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 132, p. 268-286, maio/ago. 2018 acompanha a relevância que as relações de gênero têm para a compreensão da vida social. Os sentidos dados a gênero no campo do Serviço Social são variáveis (e isso não é uma exclusividade da área). Gênero é um conceito em perma- nente disputa, para citarmos Joan Scott (2012). Seu significado nunca se estabiliza. Há no Serviço Social uma compreensão geral de que gênero trata das relações de poder na vida social, relações essas que atribuem posições assimétricas ao masculino e ao feminino. Desse modo, as desigualdades de gênero constituem-se como um dos focos do trabalho do assistente social e de suas preocupações de pesquisa. No entanto, o acordo parece parar nesse ponto. A partir desse caldo comum, emergem perspectivas distintas. Este artigo apresenta essas perspectivas. Três advertências são necessárias aqui: em primeiro lugar, não há a pretensão de se esgotar todas as perspectivas presentes no campo; minha seleção é parcial. Essa parcialidade advém de minha experiência prática como docente de curso de graduação em Serviço Social. Em segundo lu- gar, sublinho que todas as perspectivas aqui apresentadas são igualmente relevantes, embora as duas primeiras (marxismo e as relações sociais de sexo) sejam as mais utilizadas e a última (interseccionalidade) esteja co- meçando a adentrar nas produções acadêmicas em Serviço Social. Não há uma ordem de importância entre elas. A sistematização das perspectivas serve para começar um diálogo e não é, de maneira alguma, a palavra final sobre o tema. A terceira advertência é que podemos observar um trânsito entre perspectivas. Elas não se comportam necessariamente como estanques, mas dialogam entre si. 1. Gênero e marxismo Para fins deste artigo, vou começarpor me apoiar na leitura de Nancy Holmstrom em “Como Karl Marx pode contribuir para a compreensão do www.canaldoassistentesocial.com.br 76 270 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 132, p. 268-286, maio/ago. 2018 gênero?”, publicado em português na coletânea Gênero nas Ciências Sociais” (2014). A autora defende que a abordagem de Marx oferece um caminho apropriado para a compreensão das relações de gênero como relações so- ciais. Para Marx, os seres humanos são intrinsecamente interdependentes, e a produção e reprodução da vida humana são, ao mesmo tempo, biológicas e sociais. As posições relacionais de homens e de mulheres são componentes da produção e da reprodução. Portanto, divisões que se apresentam como naturais são, não obstante, socialmente construídas. Esse é um ponto fun- damental para qualquer teorização acerca das relações entre gêneros. Nesse sentido, Holmstrom está correta em ressaltar a contribuição inicial de Marx para pensar o tema. No entanto, acrescentaria que, para Marx, a divisão sexual do trabalho é entendida como interdependência entre os sexos, e não pensada em termos de subordinação de um sexo a outro. A problematização da divi- são do trabalho em Marx começa com a separação entre trabalho manual e trabalho intelectual, e não com a divisão sexual. O fato de que mulheres na ordem capitalista irão compor a força de trabalho é tratado por Marx menos como uma questão que afeta as mulheres e mais como um processo que diz respeito à lógica da acumulação capitalista. Coube ao trabalho de F. Engels, A origem da família, da propriedade privada e do Estado (2014), publicado originalmente em 1884, o desenvolvi- mento de uma teoria que ligou as relações de dominação das mulheres pelos homens à formação da família monogâmica e ao advento da propriedade privada. Entre as diversas críticas que Engels sofreu, a fundamental incide sobre o fato de que sua explicação sobre a origem da subordinação das mu- lheres apresenta uma série de lacunas e imprecisões, deixando de fora que “a dominação masculina, às vezes violenta, existe também nas sociedades pré-classistas que não conhecem a propriedade privada” (Trat, 2014, p. 362). As críticas formuladas à obra de Engels serviram como ponto de partida para uma renovação da abordagem marxista no que tange ao lugar das mulheres. Nos anos 1970, esse debate frutificou no interior do feminismo dessa década. Não vamos recuperá-lo aqui, pois seria tema para outro artigo, mas apontamos a contribuição fundamental de uma autora brasileira que é referência até os www.canaldoassistentesocial.com.br 77 271Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 132, p. 268-286, maio/ago. 2018 dias de hoje dentro e fora do Serviço Social: Heleieth Saffioti. Ela será uma das pioneiras na revisão do tratamento dado à subordinação feminina nas sociedades de classes. Duas questões paralelas atravessam a renovação da abordagem marxista sobre gênero. A primeira delas é desenvolver a reflexão sobre o que responde à alocação das mulheres no mundo da reprodução, visto como trabalho não pago, e dos homens ao lugar da produção, ou do trabalho assalariado. Em segundo lugar, responder à pergunta sobre qual é a participação do trabalho não pago das mulheres na reprodução da força de trabalho, elemento essen- cial à ordem capitalista. E mais: qual seria o impacto da incorporação das mulheres no mundo do trabalho assalariado? É necessário sublinhar que é prioritariamente a discussão sobre o lugar subordinado dado às mulheres na vida social que guia o olhar dos debates marxistas. Saffioti escreveu uma tese de doutorado no ano de 1969 intitulada A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. É um trabalho de fôlego no qual a autora lida com uma questão: a tese de que a incorporação das mulheres à força de trabalho no capitalismo varia conforme o grau de de- senvolvimento das forças produtivas. O pleno desenvolvimento do sistema capitalista de produção expele o trabalho feminino em um processo de marginalização das mulheres, levando-as ao trabalho parcial ou à posição exclusiva de “dona de casa”. A figura da “dona de casa” de família de classe trabalhadora seria o produto mais acabado desse processo, pois, afastada do mundo produtivo ou parcialmente integrada a ele, a mulher ficaria relegada às tarefas da reprodução, aquelas que produzem e reproduzem as gerações atuais e futuras de trabalhadores assalariados. Nesse aspecto, as mudanças no lugar da mulher na família seriam essenciais para entender a sociedade capitalista. A autora conclui seu trabalho apresentando uma instigante dis- cussão sobre a alienação da dona de casa. Esse processo de marginalização da mulher é permeado pelo que Saffioti qualifica de “mística feminina”,1 ou seja, a legitimação ideológica 1. Uma referência ao livro de Betty Friedan, A mística feminina, lançado em 1963. www.canaldoassistentesocial.com.br 78 272 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 132, p. 268-286, maio/ago. 2018 do lugar subalternizado da mulher na sociedade. Saffioti divide a tese em dois grandes momentos: um em que apresenta a ideia central de margina- lização das mulheres na sociedade de classes e outro em que se dedica a acompanhar como se efetiva essa marginalização em uma sociedade perifé- rica como a brasileira. A tese é um marco na produção intelectual de nosso país e nos apresenta a conexão entre sexo e classe social. Para ela, o sexo é uma característica da estratificação social. A estratificação é um princípio de classificação social que estabelece distâncias diferenciais e assimétricas entre posições. A estratificação distribui prestígio, status e autoridade na ordem social. Nessa qualidade é que se pode estabelecer um vínculo entre sexo e classe. A produção na sociedade de classes depende da formação de uma força de trabalho que inclui alguns elementos e segrega outros. Essa seleção, por sua vez, depende fundamentalmente das atribuições de status baseadas em sexo, idade e raça,2, na medida em que são esses os fatores que determinam quem ocupará lugares na produção e quem ficará subalternizado ou excluído nesse processo. Segundo a autora, a estratificação social é um catalisador das tensões sociais na ordem capitalista. Nesse sentido, as lutas feministas em torno do acesso das mulheres ao trabalho remunerado carregam um potencial revelador das contradições da própria formação capitalista. Esse potencial pode ser realizado na medida em que os limites da incorporação das mulheres ao mundo do trabalho assalariado e a natureza da relação entre reprodução (as tarefas domésticas) e o mundo da produção — a divisão sexual do trabalho — sejam efetivamente compreendidos. O desafio do feminismo 2. A raça perde força na análise de Saffioti, pois ela compartilha de uma leitura que vê a sociedade brasileira como um espaço de miscigenação, onde a cor poderia ser suavizada como atributo, sendo a figura do mulato um emblema dessa operação. Já o sexo não teria a mesma capacidade. Sendo assim, sexo ocuparia um lugar essencial como forma de estratificação social. Nas palavras da própria autora: “As características raciais visíveis do grupo minoritário, muitas vezes selecionadas socialmente como marcas negativas, a fim de tornar desigual a competição para os dois grupos raciais em presença, podem, portanto, perder-se através da miscigenação. No caso da mulher, o atributo isolado socialmente para operar como regulador da competição — o sexo — não pode nem ser atenuado nem desaparecer. Disto isto não se pode concluir que a estratifica- ção a partir do sexo jamais desaparecerá da sociedade. A digressão tem o objetivo somente de diferenciar a situação da mulher da situação das minorias raciais e mostrar que o sexo, enquanto fator natural que é, estará sempre presente, podendo ser usado como critério de atribuição de status com consequências negativas para a mulher, como empiricamente se tem verificado” (Saffioti, 2013, p. 425). www.canaldoassistentesocial.com.br 79 273Serv. Soc. Soc.,São Paulo, n. 132, p. 268-286, maio/ago. 2018 para Saffioti seria realizar essa compreensão e nessa tarefa incluir também os homens. “Sendo homens e mulheres seres complementares na produção e na reprodução da vida, fatos básicos da convivência social, nenhum fenômeno há que afete a um deixando de atingir o outro sexo” (Saffioti, 2013, p. 34). A tese central de Saffioti, qual seja: a marginalização da força de trabalho das mulheres no capitalismo, foi revista por teóricas ligadas ao campo da sociologia do trabalho. Essa revisão foi de grande relevância para a consolidação desse campo de estudos no Brasil (Souza-Lobo, 2011). Atentou-se, sobretudo, para a investigação das relações de trabalho propria- mente ditas e para a crescente heterogeneidade dos processos de trabalho no capitalismo. A expansão e a diversificação do emprego feminino em alguns setores produtivos na América Latina dos anos 1970 trouxeram a necessidade de reformulação da hipótese da marginalização ao mesmo tempo em que desafiaram as pesquisas a pensar o porquê de essa incorpo- ração da força de trabalho das mulheres conviver com a permanência da subordinação social das mesmas, expressa nos baixos salários e na segre- gação ocupacional. As mulheres ampliaram sua participação na indústria e na agricultura, mas também cresceram o trabalho doméstico remunerado e o setor de serviços. A modernização tecnológica não afastou necessaria- mente as mulheres do trabalho assalariado, embora os salários delas sejam mais baixos em relação ao dos homens no mesmo tipo de função. Para além de pensar o sexo como mecanismo de estratificação social constitu- tivo da exploração capitalista, a sociologia do trabalho aprofundou-se na investigação da forma da divisão sexual do trabalho em sua variabilidade histórica e conjuntural. A chamada “sexualização das ocupações” passou a ocupar lugar de destaque na produção desse campo de estudos ao longo da década de 1980 e início da de 1990. A pergunta sobre a construção das tradições que fixam o sexo do trabalho, das ocupações e das tarefas, remete, especialmente nas realidades heterogêneas da América Latina, à reconstituição tanto da história das trajetórias femininas e das tradições e representações simbólicas, como do comportamento do mercado de trabalho e da dinâmica das relações capitalistas. (Souza-Lobo, 2011, p. 172) www.canaldoassistentesocial.com.br 80 274 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 132, p. 268-286, maio/ago. 2018 Essas trajetórias, tradições e representações simbólicas têm um lugar distinto daquele atribuído por Saffioti à “mística feminina”.3 Não são legiti- mações ideológicas, mas práticas sociais, ou seja, como homens e mulheres vivem as relações de trabalho, como experimentam situações determinadas no mercado de trabalho, como produzem resistências. Dá-se um lugar mais estruturante às relações de gênero no mundo do trabalho, tão relevante quan- to a dinâmica do capital. Passa-se a prestar mais atenção à diversidade e à complexidade dos processos de trabalho e das relações no interior do mer- cado de trabalho, abrindo espaço para pesquisas que mapeiam as trajetórias laborais de homens e de mulheres, suas distintas relações com o sindicato, aproximando as investigações de preocupações com o tema das mobilidades no mundo do trabalho e das estratificações sexuais e ocupacionais.4 2. As relações sociais de sexo A noção de que as relações de trabalho são sexuadas e portadoras de hierarquias de gênero é o ponto inicial para a compreensão da abordagem das “relações sociais de sexo”. O termo relações sociais refere-se justamente a essa perspectiva estrutural das relações entre os sexos. A divisão entre homens 3. É importante lembrar que Saffioti escreveu outros trabalhos além da tese e que se dedicou pos- teriormente a refletir sobre o conceito de patriarcado e sua relação com a violência contra as mulheres, complexificando bastante sua análise anterior sobre a questão da ideologia, assim como das relações entre gênero, raça e classe. Em seus escritos posteriores, a autora aproxima-se da ideia de que gênero, raça e classe estão imbricados e são estruturantes da vida social. Nas palavras da autora: “O importante é analisar estas contradições na condição de fundidas ou enoveladas ou enlaçadas em um nó. Não se trata da figura do nó górdio ou apertado, mas do nó frouxo, deixando mobilidade para cada uma de seus componentes. Não que cada uma destas contradições atue livre e isoladamente. No nó, elas passam a apresentar uma dinâmica especial, própria do nó. Ou seja, a dinâmica de cada uma condiciona-se à nova realidade, presidida por uma lógica contraditória. De acordo com as circunstâncias históricas, cada uma das contradições integrantes do nó adquire relevos distintos. E esta motilidade é importante reter, a fim de não tomar nada como fixo, aí inclusa a organização destas subestruturas na estrutura global” (Saffioti, 2004, p. 125). Esta é uma posição diversa daquela apresentada em sua tese de 1969. 4. O que desliza o conceito de classe para uma interpretação de cunho mais weberiano. www.canaldoassistentesocial.com.br 81 275Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 132, p. 268-286, maio/ago. 2018 e mulheres e as atribuições de poder que repartem esses elementos de forma contraditória são constitutivas da vida social em geral. Que as relações de trabalho (contraditórias no capitalismo) sejam inerentemente sexuadas (e contraditórias) traduz justamente a percepção de que toda vida social o é. A noção de que sexo e classe (relações que se estabelecem na produção da vida material) são consubstanciais tem a ver justamente com essa compreensão de que são ambas constitutivas uma da outra, antagônicas e estruturantes da vida social. Vale ressaltar o caráter de antagonismo que essas relações têm. Segundo Kergoat (2016, p. 20): “Para que se possa falar em relação social, é necessário que esta domine, oprima e explore”. Nesse sentido, o trabalho das mulheres é trabalho explorado e expropriado, na medida em que elas são força de trabalho disponível para o capital e que as tarefas destinadas à reprodução da própria força de trabalho como cozinhar, lavar, cuidar de crianças, são classificadas socialmente como femininas. A expropriação e a exploração das mulheres na divisão do trabalho sob o capitalismo deixam claro que a figura clássica do trabalhador livre não pode ser definida estritamente pelo masculino. Parafraseando o título do livro de Elisabeth Souza-Lobo (2011): “A classe operária tem dois sexos”. As políticas voltadas para a conciliação entre trabalho doméstico (trabalho reprodutivo) e trabalho assalariado (trabalho produtivo) incidem sobre as formas de inclusão da força de trabalho das mulheres no mundo produtivo e afetam as relações entre homens e mulheres no espaço doméstico (Hirata e Kergoat, 2007). Segundo Fraser (2009), uma das críticas centrais do feminismo liberal dos anos 1970 ao Estado de bem-estar baseou-se na denúncia do modelo do homem provedor como paradigma da família. Esse modelo contribuiu para o confinamento das mulheres ao mundo privado. Na perspectiva das relações sociais de sexo, o conceito de trabalho passa a ser dilatado. O trabalho na sua acepção marxista clássica, entendido como produção de valor, é modificado e passa a referir-se ao que Kergoat (2016) chama de “produção do viver em sociedade” ou o conjunto das atividades necessárias para a produção material e reprodução da vida. Foi preciso pensar o trabalho a partir do mundo das mulheres para que a compreensão www.canaldoassistentesocial.com.br 82 276 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 132, p. 268-286, maio/ago. 2018 das relações sociais no capitalismo transbordasse a perspectiva clássica do trabalho como produção de valor, incluindo a reprodução dos seres humanos e sua socialização (a família) como esfera também produtiva — embora não produtora de mais-valia —, e não somente unidade de consumo. Nesse sentido, a perspectiva das relações sociaisde sexo estabelece um diálogo com o marxismo, mantém sua perspectiva materialista, mas promove uma reinterpretação de conceitos-chave da tradição marxista, como trabalho, a relação entre produção e reprodução e classe social. Compreender esse salto interpretativo é fundamental para acompanharmos o debate como um todo. O trabalho foi redefinido e mudou de estatuto: de uma simples produção de objetos, de bens, ele se transformou no que alguns chamam de produção do viver em sociedade [...] trabalhar é transformar a sociedade e a natureza e, no mesmo movimento, transformar-se a si mesmo. O trabalho torna-se assim uma atividade política. Nessa perspectiva feminista materialista, é a própria definição de trabalho que implode. (Kergoat, 2016, p. 18) Autoras contemporâneas no campo marxista têm refletido sobre essa ressignificação do conceito de trabalho que implica uma rearticulação da relação entre produção e reprodução. Em vez dessas esferas serem pensa- das como separadas e relacionais, passa-se a vê-las como acopladas uma à outra, como uma unidade. Se a reprodução era entendida como reposição da força de trabalho e assim necessária ao capital, nessa nova interpretação a reprodução social é tida como a esfera de “manutenção e reprodução da vida em nível diário e geracional, (consiste) no trabalho físico, emocional e mental necessário para a produção da população de forma socialmente organizada” (Arruzza, 2015, p. 55, grifos meus). É uma atividade que extrapola o mundo doméstico e que no capitalismo contemporâneo inclui práticas sociais que se dividem entre a família, o mercado e o Estado. O que se reproduz é a população, a vida e os sujeitos. Pensa-se para além da teoria geral da mobilização do exército industrial de reserva, como vimos em Saffioti, por exemplo. Nesse sentido, esforços teóricos de renovação do marxismo apontam para a direção de pensar uma teoria unitária e não dualista www.canaldoassistentesocial.com.br 83 277Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 132, p. 268-286, maio/ago. 2018 das relações entre produção e reprodução. A própria noção de classe social aparece renovada no sentido de que se incorpora a noção de que a classe se faz na conjunção entre produção e reprodução.5 Ainda segundo Kergoat (2016), são as tarefas do cuidado que melhor traduzem essa acepção reformulada do trabalho. A categoria “cuidado” ou “care” carece de uma definição exata. De acordo com Helena Hirata (2010, p. 48): Se quiséssemos definir de maneira muito rigorosa o que é o care, seria: é o tipo de relação social que se dá tendo como objeto outra pessoa. Descascar batatas é care, mas de uma forma muito indireta: é care porque preserva a saúde, o outro ser. Fazer com que outro ser continue com saúde implica cozi- nhar, alimentá-lo, pois precisa desse cuidado material, físico. Então, pode-se dizer que tudo faz parte do care, mas aí não teríamos mais uma definição rigorosa de care. Em que pese essa caracterização pouco precisa, alguns aspectos são considerados no entendimento do care: primeiro, é um trabalho que envolve afeto e intimidade, proximidade física e emocional, mediados pelo dinheiro; é um trabalho que relaciona pessoas dependentes, receptoras do cuidado, e pessoas que ofertam esse serviço e que estão em posições heterogêneas no mercado de trabalho, embora seja, em geral, uma atividade desvalorizada, feita por pessoas em situação precária de vida, sobretudo mulheres, pobres e migrantes. É um serviço em expansão, especialmente em uma sociedade em que as necessidades concretas de atividades de cuidado se ampliam devido ao crescente envelhecimento populacional. Por fim, é um trabalho que envolve algum tipo de agência,6 não podendo ser retratado como um 5. No interior do campo marxista, essa perspectiva não é incomum. Basta pensar nas contribuições de E. P. Thompson. 6. Agência é um conceito caro ao debate sociológico contemporâneo, pois nos permite pensar para além da dicotomia indivíduo X sociedade, marca do pensamento sociológico clássico. Agência diz respeito às formas de ação social que constituem a vida em sociedade. Toda ação social é ao mesmo tempo limitada e criadora, por isso a noção de que a dominação se constitui, mas não oblitera certas margens de manobra dos www.canaldoassistentesocial.com.br 84 278 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 132, p. 268-286, maio/ago. 2018 trabalho dominado per se; embora as condições de exploração desse tra- balho sejam consideradas, observando-se as formas heterogêneas e pouco reguladas desse tipo de serviço. Resgatando o compromisso da abordagem das relações sociais de sexo com a lógica da contradição, as pesquisas costu- mam observar os antagonismos de raça, etnia, classe e gênero, conformando os trabalhadores e o trabalho do cuidado. Na produção contemporânea da sociologia do trabalho, o tema do cuidado ou care tornou-se central para pensar o estatuto do trabalho no capitalismo contemporâneo. As principais áreas de investigação abordaram recentes movimentos migratórios que des- pejam possíveis trabalhadores do cuidado (em sua maioria mulheres) entre fronteiras nacionais e dentro dessas fronteiras, inaugurando novos formatos de circulação da mão de obra feminina, mão de obra essa conformada por classe, raça e etnia (Guimarães, Hirata e Sugita, 2011). 3. Interseccionalidade Até agora demos pouco destaque às relações étnico-raciais. Embora elas estejam incluídas nas reflexões das teóricas das relações sociais de sexo, é na perspectiva da interseccionalidade que a raça adquire evidência. Não podemos falar de interseccionalidade sem situarmos o feminismo negro (Jabardo, 2012). Uma das contribuições centrais do feminismo negro foi questionar a universalidade do patriarcado como sistema de dominação. A reflexão sobre os limites da explicação patriarcal como forma universal de dominação das mulheres acompanhou os desdobramentos do feminismo dos anos 1970, e entre as feministas negras essa reflexão crítica atingiu uma considerável expressão teórica e política. A ideia de que o sistema patriarcal é uma forma de dominação dos corpos e da sexualidade das mu- lheres pelos homens e para proveito deles recebeu das feministas negras um agentes, tornando a vida social, portanto, sempre mais complexa, nuançada e dinâmica. Compreender a ação dos agentes sociais nos permite entender como “habitamos as normas” (Mahmood, 2005). www.canaldoassistentesocial.com.br 85 279Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 132, p. 268-286, maio/ago. 2018 reparo fundamental: à pureza sexual imposta à mulher branca contrapõe-se a hipersexualização dos corpos das mulheres negras. À maternidade vigiada das mulheres brancas contrapõe-se a negação da maternidade das mulheres negras. O paradigma patriarcal projetou uma sombra sobre as experiências corporais e sexuais das mulheres negras, marginalizando-as como mulheres e reduzindo-as à sua raça. Esse ajuste de perspectiva para além da ótica patriarcal mudou o percurso do feminismo e ainda faz surtir seus efeitos no campo feminista atual. É a partir dele que a chamada interseccionalidade será construída. Não irei me aprofundar sobre o feminismo negro nesse artigo. Mas é importante sinalizar que o feminismo negro é o berço da in- terseccionalidade e que essa origem faz toda a diferença na forma como a interseccionalidade opera com raça. A abordagem interseccional coloca a raça e a sexualidade no centro da problematização das relações de gênero. Mara Viveros (2009), no artigo “La sexualización de laraza y laracialización de lasexualidadenel contexto latino-americano actual”, apresenta sucintamente autoras que trabalharam a articulação entre gênero, raça e sexualidade. Baseando-se nas discussões da feminista negra norte-americana Kimberle Crenshaw (2005, apud Viveros, 2009), primeira a usar o termo interseccionalidade, Mara Viveros aponta para a operação política de transformação do sexo, da sexualidade e da raça em natureza e que essa transformação justificou e justificadesigualdades, dificultando formas de resistência. Esse processo de transformação é histórico e está na base das estruturas de dominação que constituem a chamada mo- dernidade colonial. Os sujeitos coloniais são marcados por sua cor e por seu gênero, esses se tornam a sua “essência” e os designam à posição de objeto da empresa moderna colonial. A empresa colonial, por sua vez, baseou-se amplamente no controle da sexualidade dos corpos colonizados, regulando os encontros sexuais legítimos e marginalizando os considerados ilegítimos. A historicidade desse processo é tratada em trabalhos destacados por Mara Viveros em seu artigo, como os estudos pioneiros de Verena Stolcke sobre casamento, classe e raça na Cuba do século XIX (1974, apud Viveros, 2009) e de Sueann Caulfield sobre honra, raça e moral sexual na construção da ideia de nação no Brasil republicano (1998, apud Viveros, 2009). A esses estudos www.canaldoassistentesocial.com.br 86 280 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 132, p. 268-286, maio/ago. 2018 acrescento o trabalho de Angela Davis (1981/2016), expoente do feminis- mo negro norte-americano. Em Mulheres, raça e classe, a autora percorre a situação dos negros e das negras no período pós-abolição da escravatura nos EUA, mostrando como se estabelecem desigualdades raciais profundas, clivadas por classe e gênero. No trabalho de Davis, alguns capítulos se de- dicam a sexualidade e reprodução. No Brasil, Lélia Gonzalez (1984) é uma referência no assunto ao tratar da articulação entre racismo e sexismo. O que essas autoras nos apresentam é uma visão bastante inovadora a respeito da reformulação do debate de gênero a partir da ótica étnico-racial. Refletindo a partir de (e nos) contextos de países colonizados, e am- parando suas pesquisas em conjunturas históricas concretas, essas investi- gações trouxeram à tona a importância de se levar a sério o cruzamento de raça e gênero para a explicação das formas de subordinação e de resistência produzidas em sociedade. O corpo marcado por gênero, sexualidade e raça aparece como um distintivo fundamental para a constituição das situações de opressão. Obedecendo a um enfoque que preza pela situacionalidade do conhecimento, a perspectiva interseccional nos ajuda a compreender os sen- tidos da opressão em contextos delimitados, reservando um lugar essencial à raça e etnia por serem marcadores fundamentais na construção da chamada modernidade colonial. Nesse sentido, o corpo, seus significados e práticas têm um lugar central nas pesquisas de corte interseccional. Na abordagem interseccional, a raça funciona como experiência de constituição do eu e como criação de uma comunidade de sentidos e de destino interpelada pela cor. Essa concepção articula-se a sexualidade e gênero de uma forma constitutiva e inextrincável.7 Para compreendê-la, é absolutamente neces- sário trabalhar com a perspectiva dos sujeitos que vivem essas relações. Por isso, as situações de opressão, de marginalização, de fronteiras sociais são o terreno propício das investigações interseccionais.8 Não é à toa que 7. É possível inserir classe nesse contexto, desde que entendida como experiência de classe, no sentido thompsoniano (1987) ou como entendida por Pierre Bourdieu (1996). 8. Autoras ligadas à abordagem das relações sociais de sexo tendem a classificar a abordagem inter- seccional como descritiva, e não explicativa, pois esta não levaria em conta nem as dimensões materiais da www.canaldoassistentesocial.com.br 87 281Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 132, p. 268-286, maio/ago. 2018 a antropologia, entre as áreas das ciências sociais, é aquela mais próxima da perspectiva interseccional com seus estudos etnográficos que cruzam diferentes marcadores sociais (Moutinho, 2014). Cabe apontar ainda que o que se denomina de modernidade colonial ou colonialidade é um processo moderno e permanente de desumanização que não se esgota em um passado colonial distante e superado. A colonialidade permite, incentiva e necessita da produção constante de classificações so- ciais que reduzem os seres humanos a objetos quantificáveis e controláveis. Categorizar, criar dicotomias e hierarquizar são atividades características da colonialidade. Para Lugones (2008 e 2014), a dicotomia central da mo- dernidade colonial é a hierarquia dicotômica entre humano e não humano. O colonizado foi convertido em não humano no projeto colonial moderno. Nessa polarização entre humano e não humano, as gentes colonizadas opõem- -se ao europeu branco e são inferiorizadas, racializadas e engendradas. A hipersexualização da fêmea heterossexual negra/indígena colonizada é um ícone desse processo. Ao engendrar, racializar e sexualizar, a colonialidade produz a diferença colonial como medida absoluta de todas as formas de vida, obscurecendo outras práticas e maneiras de existência. No entanto, faz parte dos processos de resistência à colonialidade a construção de subjeti- vidades que escapam à desumanização. É necessário confrontar a diferença colonial a partir do pensamento do colonizado como ser que habita um lócus fraturado que está em constante tensão e conflito. Nesse sentido, a aborda- gem interseccional compromete-se em investigar as relações de opressão considerando fundamentalmente o ponto de vista daquele que se encontra marcado por essas relações. O poema “Gritaram-me negra”, de Victoria Santa Cruz, expressa com maestria essa noção de situação de opressão e as resistências que se tecem a partir dela. dominação nem a história (Hirata, 2014). No entanto, essa crítica carece de uma compreensão mais fina sobre o entendimento da noção de “situação de opressão”. A questão tem a ver com metodologia de pesquisa e de construção do objeto de investigação. O recorte analítico da abordagem interseccional é a delimitação da situação e os distintos atores sociais em interação nessa situação. Há história, mas não no sentido dado pelo materialismo. Não se considera a expropriação e a exploração de classe como pensadas pela abordagem marxista clássica. Mas se considera classe a partir de outras visões, como indica a nota citada. www.canaldoassistentesocial.com.br 88 282 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 132, p. 268-286, maio/ago. 2018 [...] E odiei meus cabelos e meus lábios grossos E mirei apenada minha carne tostada E retrocedi Negra! [...] Até que um dia que retrocedia, retrocedia e ia cair Negra! Negra! Negra! Negra! [...] E daí? E daí? Negra! Negra! Sim! Negra! SOU! A riqueza da abordagem interseccional, coerente com suas raízes no feminismo negro, pode ser traduzida pelas palavras de Patricia Hill Collins (2016, p. 101): Sociólogos podem se beneficiar ao considerarem seriamente a emergência da literatura multidisciplinar que denomino pensamento feminista negro, precisamente porque para muitas mulheres intelectuais afro-americanas a marginalidade tem sido um estímulo à criatividade. Como outsiders within, estudiosas feministas negras podem pertencer a um dos vários distintos grupos de intelectuais marginais cujos pontos de vista prometem enriquecer o discurso sociológico contemporâneo. Trazer esse grupo para o centro das análises [...] pode revelar aspectos da realidade obscurecidos por abordagens mais ortodoxas. Considerações finais Percorremos um caminho que aponta para três distintas abordagens teóricas e metodológicas sobre gênero. Essas abordagens estão presentes www.canaldoassistentesocial.com.br 89 283Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 132, p. 268-286, maio/ago. 2018 na produção acadêmica do Serviço Social; algumas com mais forte pre- sença, como as duas primeiras. O objetivo deste artigo foi sistematizar essas concepções e apontar alguns aspectos que considero importantes: 1) É preciso discernir cada uma das abordagens para que o diálogo entre elas seja de fato profícuo. É fundamental saber para onde cada uma nos leva teoricamente para que não façamos um uso inadequado delas; 2) As críticas aos limites e potencialidades de cada abordagem podem edevem ser feitas, desde que se guarde a devida atenção ao que cada uma de fato afirma e que se conheça de onde vieram e para onde apontam; 3) Abordagens teóricas e metodológicas não são receitas, mas inspiração para fazer pesquisa. Sempre que elas nos inspiram, são suficientes; se nos limitam à repetição do que já sabemos, não nos servem. Nesse breve inventário produzido até aqui persistem algumas lacunas para o Serviço Social: gênero tem sido usualmente pensado como sinônimo de mulheres. Em geral, é a situação das mulheres que aparece com mais niti- dez nas abordagens sobre gênero empregadas na área. Os homens aparecem menos e quando o fazem é por derivação. Os homens se fazem conhecer a partir da investigação sobre mulheres. As pesquisas acabam enfocando a questão da mulher ou das mulheres e menos as relações de gênero propria- mente ditas. Não é por acaso que inúmeras vezes o interesse pelo conceito de patriarcado é o que desponta nos estudos do Serviço Social, fazendo com que se perca o foco na discussão de gênero. A atenção ao gênero para além das formas binárias é menos evidente nas pesquisas do Serviço Social. Embora alguns estudos já tratem dos temas das sexualidades e corpos dissidentes, a discussão ainda é restrita. A contribuição da teoria queer ao debate de gênero encontra pouca acolhida nas produções acadêmicas do Serviço Social. O cruzamento entre raça e gênero, tal qual formulado pela abordagem interseccional, ainda é periférico na produção do Serviço Social. A tendência à incorporação da questão étnico-racial tem sido feita pela via da relação com o debate marxista clássico, em que raça tende a aparecer como forma de estratificação social — o mesmo se passa com gênero —, e assim coadjutora www.canaldoassistentesocial.com.br 90 284 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 132, p. 268-286, maio/ago. 2018 das relações de exploração de classe, ou através da abordagem das relações sociais de sexo, incluindo raça como consubstancial à classe e gênero e, portanto, estruturante da vida social. No entanto, essa incorporação, seja num caso como no outro, precisa ser tratada com mais atenção, pois há o risco de raça ser lida como sinônimo de cor (negro), e não como sinônimo de relações raciais, relações entre negros e brancos, num processo similar ao que já ocorre com o debate de gênero. O compromisso em pensar as relações de sexo, de classe e de raça como inerentemente antagônicas, em- bora seja frutífero, também pode levar à excessiva redução dessas relações a esquemas dicotômicos, deixando de fora aspectos mais complexos dessas mesmas relações, sobretudo as de gênero e de raça. Além disso, pensar raça como categoria sociológica também necessita de maior explicitação. Essa explicitação, por sua vez, precisa de um aprofundamento sobre a história das relações raciais no Brasil recente. Recebido em 5/1/18 ■ Aprovado em 26/2/18 Referências bibliográficas ARRUZZA, C. Considerações sobre gênero: reabrindo o debate sobre patriarcado e/ou capitalismo. 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Este é um artigo de acesso aberto distribuído nos termos de licença Creative Commons. www.canaldoassistentesocial.com.br 93 II RELAÇÕES DE GÊNERO, MORALIDADES E VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR* Graziela Acquaviva1 No exercício profissional de assistente social no atendimento de sujei- tos enredados (vítimas e autores) nas armadilhas das relações violentas ou na sala de aula, como docente no processo de ensino-aprendizagem, referências te- óricas fazem-se fundamentais para avançarmos nas leituras, interpretações, no conhecimento e reconhecimento das diferentes expressões de violência. A re- corrência a Ianni (2004, p. 168-169) é imperiosa, porque nos orienta nos estu- dos e análises, incluindo aí as expressões da violência de gênero praticada con- tra as mulheres, produto criado social, política e historicamente em raízes tradi- cionais e conservadoras, que, uma vez incorporado pela cultura, foi e ainda é naturalizado e vai passando a ser introjetado até na constituição da subjetivida- de das mulheres (SAFFIOTI, 2009). O mestre nos alerta: [...] a violência é um acontecimento excepcional que transborda através de várias ciências sociais; revela dimensões insuspeitadas da realidade so- cial, ou da história, em suas implicações político-econômicas, sócio-cul- turais, objetivas e subjetivas. [...] Em geral, a fúria da violência tem algo a ver como a destruição do “outro”, “diferente”, “estranho”, como o que buscaa purificação da sociedade, o exorcismo de dilemas difíceis, a subli- mação do absurdo embutido nas formas de sociabilidade e nos jogos das forças sociais [...] é um evento heurístico de excepcional significação. Re- vela o visível e o invisível, o objetivo e o subjetivo, no que se refere ao econômico, político e cultural, compreendendo o individual e o coletivo, a biografia e a história. Desdobra-se pervasivamente pelos poros da soci- edade e do indivíduo. É um evento heurístico de excepcional significa- ção, porque modifica as suas formas e técnicas, razões e convicções de *DOI – 10.29388/978-65-86678-28-4-0-f.45-66 1 Assistente social, mestrado e doutorado em Serviço Social da PUC-SP. Exercício profissional entre o trabalho com mulheres em situação de violência, na Casa Eliane de Grammont/CEM/ PMSP e a docência na graduação em Serviço Social na PUC-SP. Na academia, coordena o Núcleo de Violência e Justiça, e ministra disciplinas relativas ao “fazer profissional” e aquelas dos processos metodológicos de pesquisa em Serviço Social, Investigação em Serviço Social, Seminários e Orientação de TCC. 45 www.canaldoassistentesocial.com.br 94 conformidade com as configurações e os movimentos da sociedade, em escala nacional e mundial. Explicita nexos insondáveis da subjetividade de agentes e vítimas, em suas ilusões e obsessões, ao mesmo tempo que explicita modalidades inimagináveis e verdadeiros paroxismos de proces- sos e estruturas de dominação e subordinação. Revela a alucinação es- condida na alienação de indivíduos e coletividades. Nasce como técnica de poder, exercita-se também como modo de preservar, ampliar ou con- quistar a propriedade, adquire desdobramentos psicológicos surpreen- dentes no que se refere aos agentes e vítimas. (IANNI, 2004, p. 168-169) Seguindo na perspectiva do referido sociólogo, ousaríamos inferir so- bre a plasticidade e a capilaridade da capacidade invasiva da violência de pene- trar nos poros da sociedade, das instituições (Educação, Justiça, Casamento, fa- mília...) e dos sujeitos. Toma formas e contornos para ser reinventada e manter- se articulada de acordo com as relações de poder das forças dominantes. Para as expressões da violência de gênero praticada contra as mulheres no interior das relações familiares e domésticas, objeto prioritário das análises desse texto, to- mamos de empréstimo a lente de Ianni, ampliando o zoom e procurando demar- car as especificidades dessa violência em face de sua secularidade, historicidade e transversalidade nas formações socioeconômicas, principalmente com cristali- zação da dominação masculina sobre os corpos, o exercício da sexualidade e a vida reprodutiva das mulheres. Fortes (2018, p. 443) traz para o Serviço Social um resgate teórico dos estudos de Marx, Engels e Lukács sobre a gênese social da inferiorização das mulheres como um processo formativo construído historicamente. Os pensa- dores germânicos desenvolveram a tese dessa inferiorização das mulheres no enraizamento das mudanças das concepções sobre família. Através dos estudos de etnólogos que os antecederam, a transição da família sindiásmica (casamento entre homens e mulheres, sem coabitação, com prevalência da linhagem da mu- lher para herança, onde tudo ficava para os irmãos/irmãs e sobrinhos da faleci- da; os filhos do atual varão nada recebiam do que havia sido produzido dentro dessa união) para a família monogâmica (casamento com coabitação exclusiva entre um homem e uma mulher, constituindo-se num sistema independente de consanguinidade, herança de pais para filhos) seria o grande demarcador políti - co da submissão das mulheres aos homens. Esta família seria consequência da propriedade individual, elemento central da estrutura social e, aí, o exercício da sexualidade das mulheres foi reduzido a sua natureza reprodutiva, agora de her- deiros desse proprietário. A vida delas foi sendo encaminhada para a reclusão e 46 www.canaldoassistentesocial.com.br 95 o confinamento dos papéis e funções de esposas devido ao controle da sua vida sexual através da monogamia, reclusão e confinamento só e tão somente para o segmento social feminino. Transformações estruturais dos pontos de vista econômico e político profundamente articuladas com a reprodução da vida social e individual das fa- mílias e de cada um de seus integrantes afetaram a todos. Historicamente, o peso das desigualdades de gênero vai sendo institucionalizado, legitimado e na- turalizado com maior carga para as mulheres, e materializado em todas as esfe- ras da vida. Patriarcado instituído, demarca seus contornos, limites e império. Nessa trama sofisticada entre gênero, inferiorização das mulheres e pa- triarcado, Saffioti (2009, p. 33) sinaliza o fato de o gênero ser constitutivo das relações sociais desde sempre; haveria diferenças e não necessariamente sub- missão das mulheres aos homens; e em termos de temporalidade essa condição histórica teria durado em torno de 250 000 anos. O patriarcado, por sua vez, se- ria um sistema criado, implantado e preservado pelos homens sobre as mulhe- res há pelo menos 6 ou 7 milênios. A mestre ficou sintonizada com a denomi- nação de ordem patriarcal de gênero, visto que incorpora o gênero, realizando um processo de transformação de diferenças em desigualdades. Mesmo ocor- rendo possíveis alterações conforme a fase histórica, econômica-política e cul- tural e os determinantes sociais exigidos pelas forças produtivas, a natureza des- se sistema permanece e com selo de validade ainda por vencer. Num salto histórico (olímpico) com o processo de criação do modo de produção capitalista, a união perfeita entre essa economia e o patriarcado foi sendo cristalizada, e a divisão sexual do trabalho foi sendo acirrada, indicando ocupações de menor valorização econômica e social para as mulheres, com maior jornada diária e baixa remuneração. Em paralelo à entrada no mercado de trabalho remunerado, manteve-se o trabalho doméstico, o cuidado com os familiares e a reprodução da prole, preservando-se a força de trabalho futura e/ou herdeiros. No Brasil, vale demarcar que, no seu atraso à modernidade entre seus 520 anos de existência, durante a colonização (1500-1822) de Portugal e até quase o final do Império (1822-1888), a força de trabalho escrava dos negros e negras foi a mola motriz, sem nenhum direito a não ser a condição de mercado- ria. A economia era centrada na produção agrícola de exportação e os submeti - dos à escravidão realizavam todo o trabalho no engenho, desde o plantio da cana até produção do açúcar, exercendo a maior parte do trabalho também na agromanufatura e nos trabalhos exigidos no período da mineração. Parte das negras eram postas no trabalho doméstico e, mesmo de amas de leite, submeti- 47 www.canaldoassistentesocial.com.br 96 das às esposas brancas dos patriarcas e a eles próprios. Negras escravizadas ain- da podiam sofrer violência sexual de homens brancos. Patriarcado e racismo eram reproduzidos numa simbiose histórica, das colônias africanas de Portugal, desde 1444, para o Brasil, avançando também sobre os povos originários da América, os indígenas. O tráfico humano de negros africanos se constituiu num negócio alta- mente lucrativo para europeus colonizadores da América e, no Brasil, teve mai- or intensidade no século XVIII, mesmo quando na Europa se têm os primór- dios da industrialização (1750/Inglaterra) com a mecanização da produção, e as lutas políticas revolucionárias (1789/França). Esse conjunto de transformações perpassa o próximo século acentuan- do o processo de produção via industrialização, exigindo trabalhadores nas ci- dades para ocuparem os empregos gerados. As máquinas aceleravam a produ- ção, a distribuição e a comercialização de mercadorias, acentuando a possibili- dade de concentração de lucros via exploração dos trabalhadores, e a dinâmica da economia diferenciava-se com a institucionalização do modo de produção capitalista. Em relação à governabilidade, a extinção dos reinados e impérios,a formação dos Estados e a institucionalização da representação política via par- lamento estavam sendo instaladas. Representação e poder antes dos aristocra- tas, agora era dos homens comerciantes, empresários, fazendeiros, banqueiros, proprietários e brancos. Constituía-se a burguesia, a elite dominante com direito à cidadania e ao voto. Mulheres, crianças, idosos, negros, indígenas, pessoas com deficiência, todos diferentes dos brancos, machos e proprietários dos mei- os de produção, do capital, da distribuição das mercadorias, permaneciam com direitos restringidos por essa elite patriarcal, capitalista e racista. A condição de trabalhado remunerado para as mulheres, mesmo que precariamente, desde então proporcionou maiores possibilidades de reconheci- mento político da extenuante dupla jornada de trabalho a que estavam expostas. A submissão aos homens no mundo do trabalho era semelhante à da vida con- jugal e familiar, sendo que a exigência do trabalho de lavar e passar roupas; faxi- nar; comprar alimentos e outros produtos da vida em domicílio; organizar, pre- parar os alimentos para a família inteira; ser amante e esposa do marido; criar e educar os filhos, além da possibilidade de ser cuidadora responsável por familia- res ou parentes adoecidos, permanecia inalterada. A monogamia e a reprodução da força de trabalho estavam intactas nessa economia, garantia de dominação e exploração das mulheres incontáveis vezes, fosse no mundo do trabalho, fosse nas relações interpessoais. 48 www.canaldoassistentesocial.com.br 97 As articulações entre a historicidade sedimentada do patriarcado, as dis- criminações raciais e étnicas, acentuadas contra o “outro” ou o “diferente”, o estabelecimento das disparidades entre as classes em formação (empresários e trabalhadores), como pilastra sustentadora desse modo de produção, ou seja, a tríade patriarcado, capitalismo e racismo vai sendo instituída com prevalência sobre qualquer outra forma de economia e política. Esse rápido esboço histórico contribui para ilustrarmos a permanência de fios condutores da violência de gênero praticada contra as mulheres nas dife- rentes esferas da vida, mesmo havendo transformações políticas e econômicas. Essas demarcações em si constituem em violência, pois a capacidade de auto- nomia, de liberdade e de ser sujeito na sua integralidade estão violadas com as restrições patriarcais instituídas compulsoriamente sobre o corpo e a vida sexual e reprodutiva das mulheres, como o casamento e a família monogâmica. Esses elementos são demarcadores políticos da predominância feminina inferiorizada, e mesmo que as mulheres como categoria social tenham sido incorporadas no trabalho de produção, mesmo que os planos democráticos fossem instituídos, sua participação social e política girava em torno das relações interpessoais, principalmente as da intimidade e familiares. Quase no final do século XIX, em 1888, o Brasil independente, único país a manter a escravidão, libera os escravizados dessa condição de vida, sem que com isso fosse delineado um projeto econômico que os incorporasse na vida em sociedade, fosse nas cidades ou no campo. Todos tinham desenvolvido aprendizagens diferenciadas e diversas em todos os processos de produção agrí- cola, pastagem de animais, carpintaria, consertos de maquinários e de veículos de transporte, preparação, armazenamento e cozimento de alimentos. Habilida- des para o trabalho existiam, o que não existia era a decisão e a vontade política de reconhecer essa força de trabalho com direito a remuneração e igualdade de direitos aos brancos. O racismo estrutural, institucional, combinado com o pa- triarcado e o modo de pensar capitalista, prevaleceu. Um século depois, em 1988, mulheres brasileiras, negras e brancas, de- pois de muitas lutas sociais e organização política, conquistaram igualdade de direitos políticos e civis em relação aos homens na nova Constituição Federal, promulgada após um período de mais de duas décadas de ditadura e uma re- cém-nascida diante dos possíveis sete milênios de ordem patriarcal de gênero. Direitos conquistados são definitivamente importantes, mas sua materi- alização depende de uma maturidade histórica e ética em que as relações de po- der entre os gêneros possam ser redimensionadas, também no interior das clas- ses e na relação contraditória entre estas, assim como as discriminações raciais e 49 www.canaldoassistentesocial.com.br 98 étnicas possam ser reconhecidas nas suas dimensões estruturais, institucionais e interpessoais. Os promotores das subversões de gênero, raça e etnia, ao reivindica- rem sua inserção e reconhecimento político como sujeitos sociais, provocam sustos, pequeníssimas fissuras nas relações de poder dominante, em que a mera ameaça de perda provoca resistências de natureza conservadora, por exemplo, a recusa das conquistas de igualdade de direitos. Para combater essa reação, deve haver o reconhecimento das desigualdades de gênero e raciais na pauta das agendas públicas, e a exigência de o Estado responder com ações afirmativas para compensar esses prejuízos históricos, como as cotas para negros nas uni- versidades, o combate e a tolerância zero ao racismo institucional; o exercício li- vre da sexualidade e o reconhecimento da diversidade sexual, a descriminaliza- ção do aborto, a prevenção e o combate a todas as formas de violência pratica- da contra as mulheres e contra os segmentos LGTTQI+; visibilidade política do abuso de autoridade e da arbitrariedade do sistema de justiça e segurança pú- blica, ou dos políticos, governantes... Aqueles que detêm o poder político nas relações sociais estão sempre em alerta e ativam processos de resistência constantemente, porque diminuir o distanciamento entre o direito conquistado, sua escrita na letra da lei e a vida de fato exige reconstituir patamares de negociação de acesso, conquista e redistri - buição do poder. Somente os que vivem a dominação e exploração têm interes- se em alterar essas desigualdades de poder, no entanto, é preciso romper com a alienação enquanto requisito fundamental para alcançar esse objetivo. Deve ha- ver conhecimento e reconhecimento intelectual e político dessa condição obje- tiva de vida e a busca de estratégias com força social de enfrentamento, luta e resistência pela garantia de direitos, pela revisão dos valores culturais conserva- dores que impedem a efetiva participação social e política, buscando-se um di- recionamento a outro projeto de sociedade, mais igualitária, ou melhor, equitati- va. Violência e suas expressões são constitutivos dessa trama de disputa pelo poder, na medida em que a dominação e a exploração de homens sobre as mulheres, no que se refere ao gênero, atua como determinante político de raiz. E, quando intrinsecamente articuladas à ostensividade desse domínio, via explo- ração de uma classe sobre a outra, de brancos sobre negros, sobre os indígenas, contra qualquer nação, Estado, sujeitos diferentes do pensamento masculino, machista, branco e dominante, estamos em territórios violentos, concretos ou simbólicos. 50 www.canaldoassistentesocial.com.br 99 Violência doméstica e familiar praticada contra as mulheres Quando se trata de violência doméstica e familiar, a tendência à sua pri- vatização oferece resistências históricas, vez que sua inclusão no plano das rela- ções e desigualdades de gênero a denunciam como expressão de violência estru- turante das relações sociais. Scott (1990), Saffioti (1994; 1999) e Almeida (1998; 2007a) foram asser- tivas sobre o imperativo das relações de poder desiguais entre os gêneros, entre as gerações, entre brancos e negros e indígenas, entre as classes sociais como estruturantes das relações sociais, sejam na esfera pública ou na esfera privada. Mesmo havendo particularidades na vida em domicílio, seja entre familiares ou sujeitos que vivem no mesmo espaço, tais relações integram os sujeitos e são a eles transversais, tecendo uma trama complexa de malha fina, na qual discrimi-nações, preconceitos e violência são de difíceis identificação, reconhecimento e visibilidade política no contorno do cotidiano. Nessa esteira, visibilidade e invisibilidade atuam como características intrínsecas da violência doméstica e familiar, fato instigador de um investimento maior para buscarmos diferenças e semelhanças, contradições e ambiguidades entre essas conceituações e suas implicações para serem reconhecidas como uma questão política e social. Ambas referem relações violentas, sendo que o espaço do domicílio e mesmo fora deste denota o locus de materialização dessas violências; mais do que isso, é um demarcador de um território físico e um ter- ritório simbólico (SAFFIOTI, 1997) onde a violência ocorre, mesmo não ha- vendo mais coabitação entre autores e vítimas de violência. Relações entre familiares ou moradores dos domicílios são, contradito- riamente, de proteção e de desproteção. Têm raízes e trajetórias históricas entre sujeitos conhecidos, seja pela parentalidade, seja na pareceria da intimidade, seja pela convivência no mesmo espaço por amizade, por divisão de investimentos e gastos diante da sobrevivência diária. Para Saffioti, Esse tipo de violência é possível graças ao estabelecimento de um territó- rio físico e de um território simbólico, nos quais o homem detém prati- camente domínio total. Seu território geográfico é constituído pelo espa- ço do domicílio. Todas as pessoas que vivem sob o mesmo teto, vincula- dos ou não por laços de parentesco ao chefe local, devem-lhe obediência. (SAFFIOTI, 1997, p. 46) 51 www.canaldoassistentesocial.com.br 100 Nessa linha de raciocínio, historicamente, relembremos que mulheres no emprego doméstico, principalmente as negras, poderiam ser alvo de discri- minações e abuso sexual, desde a condição de escravizadas até a contempora- neidade. Violência hoje que é mais evidenciada, denunciada, combatida e crimi- nalizada, mesmo havendo resquícios da cultura patriarcal. O feminismo negro radical tem ocupado os espaços públicos, os da mídia e das redes sociais para manter vivo o combate ao racismo. A referida mestra demarca o fato de essa violência extrapolar o domicí- lio, na medida em que autores de violência, principalmente parceiros íntimos, controlam suas parceiras na ida ou na volta do trabalho, seja pela insistência de sua companhia física, controle dos horários de ida e retorno do trabalho, telefo- nemas às chefias causando-lhes constrangimento social. Com o advento da alta tecnologia, esse controle passou para o celular, com o vasculhar mensagens e contatos, o monitorar o conteúdo e a frequência nas redes sociais. Até mesmo a revelação pública, em tempos de self e publicização da intimidade, de contatos íntimos e fotos eróticas é utilizada para expor as mulheres, como uma demons- tração de abuso de poder e para criar uma situação de humilhação pública. Quando se trata de filhas/enteadas abusadas sexualmente, pais/padrastos po- dem criar obstáculos à sua independência, seja pelo não consentimento de na- moro, pelo controle dos horários da agenda diária de adolescentes e das amiza- des. O território simbólico criado pelos sujeitos quando designam significa- dos aos fatos, às coisas e às relações sociais têm num dos fertilizantes deste solo, o abuso das relações de poder através da hierarquização via as bases his- tóricas da ordem patriarcal de gênero e sua incorporação ao modo de produção vigente. Na última década do século XX, ocorreram as Conferências Mundiais promovidas pela ONU sobre questões transversais aos países-membros. Tomo para destaque a de 1993, em Viena, que entre inúmeras decisões ficou marcada pela regência da complementariedade solidária e pela irrevogabilidade. Reforço as características dos direitos humanos de serem universais, inalienáveis (in- transferíveis, inegociáveis), indivisíveis (violou um direito, todos estão violados) e inter-relacionados e interdependentes2. Em AZAMBUJA e NOGUEIRA 2 Em março de 1993 foi divulgado o novo Código de Ética do Assistente Social (resolução CFESS n. 273) numa sintonia fina com as lutas internacionais de direitos humanos que fomentaram, em junho, a 3ª Conferência Mundial de Direitos Humanos, em Viena. Pressupostos e princípios pautados no respeito à liberdade, à garantia de direitos de todos sem discriminação de etnia, inserção de classe social, religião, 52 www.canaldoassistentesocial.com.br 101 (2008) há um deferimento especial sobre a mudança radical da ONU através da Declaração sobre a Eliminação da Violência contra as Mulheres, proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas na sua resolução 48/104, de 20 de dezembro de 1993 impondo aos governos a obrigação de zelar pela garantia dos direitos das mulheres de viverem livres de violência. Estas autoras repor- tam-se às pesquisadoras portugueses Vicente (2000), Lopes(2005) e Monteiro(2005), suas conterrâneas, resgatando historicamente o caminho per- corrido para o definitivo reconhecimento de toda e qualquer violência de gêne- ro praticada contra as mulheres ser uma violação de direitos humanos. Toma- mos a liberdade e a ousadia de sintetizar as demarcações realizadas pelas estudi- osas no interior do artigo consultado: Violência contra as mulheres significa qualquer ato de violência de gêne- ro do qual resulte, ou possa resultar, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico para as mulheres, incluindo as ameaças de tais atos, a coação ou a privação arbitrária de liberdade, que ocorra, quer na vida pública, quer na vida privada. Caracteriza-se pelo uso e abuso de poder e controle nas esferas públicas e privadas e está intrinsecamente ligada com os este- reótipos de gênero que estão subjacentes e perpetuam tal violência. A vi- olência contra as mulheres constitui uma expressão da relação de desi- gualdade entre homens e mulheres. É uma violência baseada na afirma- ção da superioridade de um sexo sobre o outro, nomeadamente, dos ho- mens sobre as mulheres. Trata-se de um fenômeno que afeta toda a soci- edade, devendo ser considerado o contexto social em que estes atos de violência ocorrem. Na cidade do Cairo, em 1994, na Conferência Internacional sobre Po- pulação e Desenvolvimento, ficaram estabelecidos os direitos sexuais e direitos reprodutivos como direitos primordiais das mulheres sobre seus corpos, exercí- cio da sexualidade e vida reprodutiva. Nesse mesmo ano houve a Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher – Convenção de Belém do Pará. Foi adotada em Belém do Pará, Brasil, em 9 de junho de 1994, onde se definiu violência contra a mulher e, posteriormente, foi referência para a elaboração da Lei Maria da Penha, lei 11.340 de 7 agosto de 2006 (Brasil, 2006). Entre as definições temos [...] entender-se-á por violência contra a mulher qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou nacionalidade, orientação sexual, identidade de gênero, idade e condição física. 53 www.canaldoassistentesocial.com.br 102 psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada. (Lei 13 140, 7/08/2006, artigo I) Entende-se que a violência contra a mulher abrange a violência física, sexual e psicológica: a. ocorrida no âmbito da família ou unidade doméstica ou em qual- quer relação interpessoal, quer o agressor compartilhe, tenha comparti- lhado ou não a sua residência, incluindo-se, entre outras formas, o estu- pro, maus-tratos e abuso sexual; b. ocorrida na comunidade e cometida por qualquer pessoa, incluin- do, entre outras formas, o estupro, abuso sexual, tortura, tráfico de mu- lheres, prostituição forçada, seqüestro e assédio sexual no local de traba- lho, bem como em instituições educacionais, serviços de saúde ou qual- quer outro local; e c. perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer que ocorra. (BRASIL, 2006, artigo 2) Em 1995, em Pequim, na Conferência Mundial de Mulheres, foram as- similadas as decisõesdas anteriores, fez-se o reconhecimento da feminização da pobreza pelo fato de 70% dos pobres serem mulheres, tornando-se definitiva a garantia de direitos das mulheres contra qualquer forma de violência de gênero. O Brasil participou de todas essas conferências, assinou e ratificou as declara- ções e os acordos que fortalecessem, protegessem e defendessem os direitos das mulheres à vida enquanto sujeitos de direitos na sua integralidade física, mental, psíquica, ética, moral e política. Todas essas conferências foram reavali- adas duas décadas depois, com a denominação de Cairo +20, Pequim +20 etc. Em 1999, Saffioti, sintonizada com análises decorrentes dessas refle- xões mundiais, publica suas reflexões sobre a historicidade, a gravidade, a natu- ralização e a invisibilidade política e, principalmente, as particularidades da vio- lência entre parceiros íntimos. Parece ter sido uma contestação da permanência deste país desarticulado com esses tratados internacionais dos quais era signatá- rio e, de forma irônica, fez uso da máxima popular afirmando que já se mete a colher em briga de marido e mulher. Estabeleceu diferenças conceituais entre as expressões de violência doméstica e familiar, no terreno da violência de gênero e intrínseca às questões estruturais das relações sociais. 54 www.canaldoassistentesocial.com.br 103 Historicamente, vale resgatar parte das características dessa modalidade de violência, na medida em que o Estado brasileiro, entre 1995 e 2006, enqua- drou-a na Lei n. 9099, a dos crimes de pequeno potencial ofensivo, julgados em Juiza- dos Especiais Criminais, os de Conciliação, menorizando a complexidade e o impacto perverso do fato de essa violência ser rotineira, repetitiva na vida das mulheres e os demais familiares. Naquela década, existiam serviços pontuais, em diferentes municípios, para o atendimento de mulheres em situação de violência e iniciativas de femi- nistas que adentravam os governos municipais, principalmente, os denomina- dos de administração democrática e popular, como o foi de Luiza Erundina na capital de São Paulo, entre 1989 e 1992. Nesse período, criou-se a Coordenado- ria Especial da Mulher e, dentro desta, a Casa Eliane de Grammont 3, em 1990. O trabalho foi pioneiro, era de natureza sociorreflexiva, com vistas à assistência o mais integral possível, ao respeito e ao reconhecimento da fala das mulheres, criando uma sintonia com seu pedido de justiça. Estavam previstos a reeduca- ção de gênero e o fomento de atividades preventivas e que dessem visibilidade política a essa violência praticada contra as mulheres enquanto uma violação de direitos humanos. Essa perspectiva de atendimento multiprofissional foi motivada por avaliações sobre as delegacias especiais de atendimento às mulheres em situação de violência, desde 1985, cuja importância era confirmada, mas ainda se mostra- va insuficiente. Havia uma dinâmica das mulheres, com busca de ajuda através do registro da denúncia, seguida de desistências e retornos num movimento contínuo, conceitualmente definido anos adiante de “ciclo da violência domésti- ca”, numa espiral de crescimento e de gravidade e de maior proximidade da iminência do risco de morte. Nenhuma modificação na legislação penal havia ocorrido diante das es- pecificidades dessa violência, e as mudanças culturais eram mínimas. A ausência de uma política pública alinhavada pelo gênero e com serviços que respondes- sem de forma integral para essas mulheres as empurrava para o campo do medo – aquele que as tornava impotentes –, para o isolamento social e sem o reconhecimento ético e político da violação de direitos a que estavam sendo submetidas por pessoas de sua confiança e intimidade. Reconhecia-se só para enfrentar e encontrar soluções e superar essa violência. 3 Em 1997, analisei a criação desta Casa, enquanto uma semente de política pública, dados seu pioneirismo e sua inovação, na minha dissertação de mestrado pela PUC-SP. 55 www.canaldoassistentesocial.com.br 104 A violência doméstica e familiar era registrada num Termo Circunstan- ciado, restrito ao fato ocorrido e que havia motivado a busca de ajuda das mu- lheres à delegacia especializada. Não haveria criminalização, e a violência enrai- zada nas desigualdades de gênero seria “resolvida” numa mesa de conciliação entre o autor e a vítima de violência, como se ambos estivessem em pé de igual- dade nas relações de poder da vida de fato, cotidiana, em que estavam imersos social e politicamente. Se, por um lado, essa lei era reconhecida por sua celeridade sem fazer uso da burocracia do processo criminal e de forma pioneira valorizava a fala da vítima no direito penal do país, de outro, os resultados efetivos se restringiam a advertências, e possíveis multas pagas pelo autor eram transformadas em doa- ções a creches. O arquivamento dos autos era o destino comum em todas as si- tuações denunciadas. Novos fatos, novos relatos, novas audiências de concilia- ção – assim, a historicidade da violência era omitida pelo Judiciário. Ante o cri- me de ameaça de morte, de difícil comprovação objetiva, aquele que retira a se- gurança do ir e vir de qualquer sujeito, muito mais para mulheres que foram ameaçadas por seu parceiro de vida, de intimidade, entrava-se em conciliação. Agressor e vítima retornavam à mesma moradia. A violência era devolvida para a individualidade das mulheres, com a anuência estatal, via Judiciário. Em contraponto a essa baixa ofensividade com que o Estado brasileiro reconhecia a violência doméstica e familiar praticada contra as mulheres, com ênfase nas parcerias íntimas, Saffioti (1999) fez demarcações importantes, como a sua compreensão de que essa violência ocorre em relações afetivas e para isso a ruptura necessitaria de intervenção externa. Mulheres nesse cotidiano têm di- ficuldade de se desembaraçar do marido/autor da violência, principalmente se considerássemos a não resposta estatal, a educação ou a domesticação de gêne- ro por uma identidade mais afinada com a subalternidade, e a dependência afe- tiva e econômica das mulheres na companhia de um parceiro homem. Mulheres lidariam mais com micropoderes, presentes nas relações coti- dianas, decorrente do “desconhecimento e da ignorância sobre sua história como mulher e das lutas e conquistas feministas”; elas não teriam livre acesso aos macropoderes. Diante desses limites, socialmente, a estudiosa propôs alter- nativas de superação, como: saber tecer a malha social entre os processos da grande e macropolítica e a micropolítica – um desafio eterno, mas torná-las conscientes disso aumentaria sua participação na política institucional. Segundo a autora, quando mulheres conseguem transitar nessas esferas do poder, elas o fazem com sucesso, e foi possível observar essas conquistas através da constituição das cotas nos partidos políticos; do incentivo às lideran- 56 www.canaldoassistentesocial.com.br 105 ças das mulheres nos movimentos sociais, das lutas contra o Estado diante das mortes violentas (Mães de Maio/SP); de denúncias, mobilizações, ações, con- quistas das mulheres negras e indígenas; das lutas contra a violência sexual, do reconhecimento do assédio sexual. Mais recentemente, os depoimentos públi- cos de celebridades artísticas internacionais, nacionais e blogueiras sobre os abusos sexuais praticados por seus superiores, professores; a deflagração do movimento Me too; além da nova legislação sobre esse abuso nos espaços públi- cos, como a da importunação pública. O Estado brasileiro foi sendo obrigado a realizar seu dever de casa, em relação a sua Carta Magna e aos acordos internacionais, comprometendo-se, em termos de responsabilidade, em coibir, prevenir a violência doméstica e familiar, segundo a violência de gênero, via Lei n. 11.340, em agosto de 2006 (BRASIL, 2006), que, mais do que criminalizar, tem em seu bojo criar um freio social ao abuso de poder dos homens sobre as mulheres, estabelecer um direcionamento ético e político de divisãode responsabilidades e ações para cada um poderes públicos diante dessa violência, assim como o reconhecimento, em 2015, do fe- minicídio. Mesmo que em termos de direitos legais tenha havido esse reconheci- mento, teoricamente é importante avançarmos na compreensão dessa violência em função de todo o enraizamento histórico demonstrado. Na continuidade dessas reflexões no terreno da violência de gênero, Saffioti aponta que ela, nas “modalidades familiar e doméstica, não ocorre alea- toriamente, mas deriva de uma organização social de gênero que privilegia o masculino” (SAFFIOTI, 1999, p. 86), em que a distribuição do espaço e do tempo para homens e mulheres é desigual e com prejuízo para elas, já que os espaços e tempos delas no domicílio efetivam-se, ainda e prioritariamente, no trabalho doméstico e nos cuidados com a prole, em detrimento dos espaços e do tempo possíveis para a privacidade e o ócio. SAFFIOTI segue em sua análise afirmando não haver [...] duas esferas: uma das relações interpessoais [...] e outra das relações estruturais [...]. Não existe a classe social como entidade abstrata. Uma classe social negocia com outra através de seus representantes, que tam- pouco são entidades abstratas, mas pessoas. Todas as relações humanas são interpessoais, na medida em que são agenciadas por pessoas, cada qual com sua história singular de contactos sociais. Por mais que desejem desvincular-se desta história para representarem sua classe, seu passado e sua singularidade pesam tanto que se chamam alguns de bons negociado- 57 www.canaldoassistentesocial.com.br 106 res e outros de maus negociadores. [...] Afirmar que as relações de gêne- ro são relações interpessoais significa singularizar os casais, perdendo de vista a estrutura social e tornando cada homem inimigo das mulheres. [...] Em outros termos, nunca é demais realçar, o gênero é também estru- turante da sociedade, do mesmo modo que a classe e a raça/etnia. [...] O privilegiamento da classe social obscurece as demais clivagens existentes na sociedade. (SAFFIOTI, 1999, p. 86) Outro elemento importante é a patologização dos agressores. “Interna- cionalmente falando, apenas 2% dos agressores sexuais, por exemplo, são doen- tes mentais, havendo outro tanto com passagem pela psiquiatria” (SAFFIOTI,1999). Transtornos mentais, dependência química de álcool e dro- gas poderiam ser considerados detonadores, mas sua absolutização nos levaria a eliminar as desigualdades de gênero e sua hierarquização construídas socialmen- te e incorporadas nas relações interpessoais, como as domésticas e familiares. Com relação ao poder, SAFFIOTI, a mestra faz o destaque sobre suas duas faces, a da potência e a da impotência (SAFFIOTI, 1999; ALMEIDA; SAFFIOTI, 1995). Mulheres seriam educadas para a impotência. Homens seri- am socializados a reconhecerem a potência no exercício de acessar, conquistar e abusar do poder associado à força. Por essa razão, não saberiam conviver com as situações de impotência, como o desemprego, que no contexto da violência doméstica, poderia se relacionar a um fracasso, à impotência em cumprir seu papel de provedor, marcador político e social de seu poder e virilidade nesse es- paço da vida, sobrando o uso da força. Frequentemente, no atendimento de mulheres em situação de violência, ouve-se o relato sobre episódios e cenas de violência na esteira do fato de essas mulheres buscarem alternativas de sobrevivência para o cotidiano, procurando suprir as necessidades do dia a dia com vendas de produtos cosméticos na vizi - nhança e no local de trabalho e a assunção de outras atividades extras e remu- neradas diante das dificuldades financeiras e, até mesmo, do uso abusivo de ál- cool de seus parceiros frente ao desemprego. Estes, por sua vez, desenvolviam sentimentos de desconfiança sobre as capacidades e iniciativas das companhei- ras, sempre as menosprezando. Não tendo objetividade nas críticas, as ofensas machistas partiam para o campo da moral com desconfianças, suspeitas sobre a quebra da fidelidade conjugal, mesmo que os homens já a tivessem rompido em outras situações. Saffioti e Almeida foram e são autoras referenciais sobre as conceitua- ções gênero, violência de gênero, violência doméstica, violência familiar e a pra- 58 www.canaldoassistentesocial.com.br 107 ticada contra as mulheres; por vezes, esses conceitos eram e são utilizados como sinônimos, mas não o são. Lembramos que tais reflexões desta pesquisa- dora pioneira nos estudos feministas no país se deram no final do século passa- do e ainda no calor das conquistas de direitos para as mulheres, no plano inter - nacional. As concepções da mestre carioca, publicadas em 2007, quase uma déca- da depois da sua produção, ocorreram num período em que a Lei Maria da Pe- nha, escrita por juristas feministas com ampla consulta nacional e referenciada na violência de gênero, foi aprovada e começou a ser implantada, em substitui- ção a qualquer forma de classificação dessa violência como de pequena ofensi- vidade às mulheres. A Lei criminalizou essa violência, e causou e causa polêmi- cas, porque diferenciou as mulheres, no universo da igualdade formal de direi- tos entre homens e mulheres, quando na condição de vítima de violência do- méstica e familiar. Responsabilizou e regulamentou a presença do Estado no es- paço privado, tornando-o público do ponto de vista da defesa dos direitos das mulheres. Por sua vez, o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), em implan- tação desde 2004, materializava a política nacional de assistência social, mas não explicitava a incorporação das concepções de gênero, raça/etnia na sua estrutu- ração, nem concepções, normas, indicações metodológicas de intervenção... A prioridade definida na LOAS, lei 8742 de 7 de dezembro de 1993 (Brasil, 1993)4 considera os critérios geracionais: crianças, adolescentes e idosos; as pessoas com deficiência; a população em situação de rua; e todas as vítimas de violência doméstica e familiar. As mulheres, enquanto vítimas de violência doméstica e familiar, foram incorporadas, como tinha sido definido no artigo 226 da CF de 1988, no con- junto dessas vítimas. Essa incorporação destoava das demarcações teóricas, his- tóricas e políticas sobre as particularidades das desigualdades e da violência de gênero praticada contra as mulheres, que fomentaram e foram referendadas em todas as declarações e em todos os tratados internacionais de defesa dos direi- tos das mulheres. Almeida (2007), em suas análises, defendia a incorporação da violência de gênero na agenda das políticas públicas, na medida em que conquistas, meto- dologias sob a perspectiva do gênero, em andamento nos serviços especializa- 4 Relembrando ser o mesmo ano da primeira Declaração Internacional de Direitos Humanos que reconhecem a violência de gênero e impõe aos governos a busca de superações dessa condição de subalternidade política, econômica, social, histórica e cultural das mulheres no planeta. 59 www.canaldoassistentesocial.com.br 108 dos, e as iniciativas da recém-criada Secretaria Nacional de Políticas para as Mu- lheres, em 2003, poderiam ser esvaziadas com a capilaridade do SUAS e o pos- sível risco de domínio dessa perspectiva assistencial sem a inclusão das referên- cias teóricas de gênero, enquanto perspectiva de maior alcance para a garantia universal de direitos com respeito às diferenças e desigualdades. Enquanto no esteio teórico de Saffioti o poder patriarcal é encarnado na vida em família ou doméstica e a lógica da obediência hierárquica, combina- da com as desigualdades de gênero – ordem patriarcal de gênero –, prevaleceria sobre tudo e todos, Almeida (2007), no mesmo terreno materialista, histórico e dialético que sua orientadora de doutorado e parceira de publicação, apresenta algumas nuances. Uma destas é sua pontuação do espaço doméstico como um locus de execução da violência: [...] é uma noção especializada, que designa o que é próprio à esfera pri - vada – dimensãoda vida social que vem sendo historicamente contra- posta ao público, ao político. Enfatiza, portanto, uma esfera da vida, in- dependentemente do sujeito, do objeto ou do vetor da ação. (ALMEI- DA, 2007, p. 23) Em relação à violência familiar, mesmo não se diferenciando sobrema- neira de Saffioti, a professora da UERJ se valeu da conceituação do Ministério da Saúde (BRASIL, 2001, p. 15-16): A violência intrafamiliar é toda ação ou omissão que prejudique o bem- estar, a integridade física, psicológica ou a liberdade e o direito ao pleno desenvolvimento de outro membro da família. Pode ser cometida dentro ou fora de casa por algum membro da família, incluindo pessoas que passam a assumir função parental, ainda que sem laços de consanguini- dade, e em relação de poder à outra. [...] não se refere apenas ao espaço físico onde a violência ocorre, mas também às relações em que se cons- trói e efetua. E nesta modalidade acentua que a produção e a reprodução endógenas da violência “se processam por dentro da família [...] marcando que [...] o sujei- to e o objeto da ação não são determinados na estrutura do poder familiar o ve- tor da ação é diluído” (ALMEIDA, 2007, p. 24). No percorrer dessa análise, apesar de não considerar suficiente essa conceituação, destaca-se o fato de que a “[...] família é a estrutura sexuada, por excelência, no seio do qual a subordinação das mulheres e das crianças foi – e 60 www.canaldoassistentesocial.com.br 109 se mantém – jurídica e politicamente instituída” (LOUIS, 2000, p. 11 apud Al- meida, 2017) “[...] vincular a violência a essa instituição possibilita pensar nos seus mecanismos de perpetuação de processos de subordinação das referidas categorias.” (ALMEIDA, 2007, p. 25) A autora reconhece que as definições de violência doméstica e familiar desmistificam o caráter santificado da família e a noção de imutabilidade do es- paço privado: “família pode ser uma instituição violenta, a despeito dos laços de afeto [...]” (ALMEIDA, 2007p. 25). E enfatiza, assim como Saffioti (1999, 2009), que “não há cisão entre as esferas pública e privada, o que pode ser valo- rado positivamente na perspectiva de se assegurarem direitos” (Almeida, 2007). Em relação à violência contra as mulheres, Almeida (2007), acentua que essa concepção define o alvo; não teria sujeitos, só o objeto da ação, acentua o lugar da vítima, e da mulher, como preferenciais e, principalmente, demarca a unilateralidade em detrimento do caráter relacional da violência. Propõe para a superação dos limites dessas conceituações a violência de gênero, destacando que esta teria maior neutralidade e se distanciaria da do- minação patriarcal; seria a única com maior capacidade explicativa, teórica e his- tórica, desarticulada das noções descritivas das anteriores. Sustenta-se em sua perspectiva considerando o gênero em sua dupla dimensão do ponto de vista de categoria: a analítica e a histórica: [...] é uma categoria que potencializa a apreensão da complexidade das relações sociais, em nível mais abstrato. [...] é uma categoria analítica. [...] relações de gênero apresentam-se como um dos fundamentos da organi- zação da vida social – ao longo da história, vêm sendo estruturados luga- res sociais sexuados, a partir das dicotomias público-privado, produção x reprodução, político x pessoal [...] desigualdades sociais – são também uma categoria histórica (ALMEIDA, 2007, p. 26) Avança nas análises reforçando: A violência de gênero só se sustenta em um quadro de desigualdades de gênero. [...] integram o conjunto das desigualdades sociais estruturais [...] no marco do processo de produção e de reprodução das relações fundamentais – as de classe, étnico-raciais e de gênero. [...] podem-se agregar as geracio- nais, visto que não correspondem tão somente à localização dos indiví- duos em determinados grupos etários, mas também à localização do su- jeito na história, na ambiência cultural de um dado período, na partilha ou na recusa dos seus valores dominantes, nas suas práticas de sociabili- 61 www.canaldoassistentesocial.com.br 110 dade. O conjunto complexo e contraditório dessas relações, que se po- tencializam mutuamente, coloca limites e abre possibilidades às práticas sociais dos sujeitos individuais e coletivos. (grifo do autor / ALMEIDA, 2007, p. 27) Além disso, afirma que as desigualdades de gênero são fundadas e fe- cundam-se a partir da matriz hegemônica de gênero, a binária, a das concepções dominantes de masculinidade e feminilidade que se movimentam e se alteram nas disputas simbólicas e materiais elaboradas por dentro das instituições que no processo de reprodução social são incontestáveis, como a família, a escola, a igreja e os meios de comunicação, e ainda são materializadas nas relações de tra- balho, nas sindicais, na divisão sexual do trabalho em diferentes esferas da vida e nas organizações da sociedade (ALMEIDA, 2007). Nessa dinâmica, vai demarcando o caráter relacional e ainda hierarqui- zado da violência de gênero entre homens e mulheres, haja vista sua inserção desigual nas estruturas sociais e familiares. Enfatiza também o fato de a violência física não se sustentar sem a vio- lência simbólica, na medida em que esta é acionada para legitimar as ações ou relações de força. Nas parcerias íntimas, a violência de gênero teria a dimensão simbólica potencializada porque se realiza nesse espaço fechado e ambíguo, mais denso em valores e moral, onde as categorias de conhecimento e de reco- nhecimento do mundo seriam mais afinadas, teriam mais peso com as emoções do que com a racionalidade. Articulam-se o medo, o sentimento de vergonha, a culpa, a dor, a indignação, emoções que, uma vez juntas, podem dificultar a lei- tura, as análises e avaliações para enfrentar a violência e planejar possíveis saídas (ALMEIDA, 2007). Os prejuízos de viver em relações violentas, em processos de subordi- nação e dependência de forma sistemática, podem desenvolver o desamparo apreendido, enquanto impacto da violência na produção da passividade, expres- sa via depressão e ansiedade, em função da incorporação, por parte das mulhe- res, da culpabilização que lhes foi imposta e por elas absorvida (ALMEIDA, 2007). Esses são alguns dos marcadores de cronificação da violência de gênero nos relacionamentos íntimos, e seus impactos na saúde das mulheres, provocan- do ainda solidão/isolamento; desgaste emocional, confusão mental... 62 www.canaldoassistentesocial.com.br 111 Considerações finais Nós, mulheres, entramos neste século com muitas conquistas de direi- tos civis, legais e políticos, nos planos internacional e nacional. Os apontamen- tos feitos neste texto são centrados em duas autoras: uma, socióloga, advogada, pesquisadora primeira destas terras sobre a violência de gênero praticada contra as mulheres, principalmente a doméstica e familiar, sob a perspectiva das desi- gualdades de gênero, professora Saffioti. A outra, a professora Almeida, assistente social e doutora em Ciências Sociais, articulada entre pesquisa, ensino e extensão, pela UFRJ, sobre essa mes- ma violência e as desigualdades de gênero, ampliando o espectro de suas análi- ses para as mulheres em todas as esferas da vida, seja no espaço das relações fa- miliares e domésticas, no pioneirismo das reflexões sobre feminicídio (1996) e no espaço público via pesquisa sobre a organização das mães cariocas quando se posicionaram e lutaram publicamente contra as forças autoritárias do Estado brasileiro quando agentes estatais executaram jovens, adultos, moradores das comunidades em homicídios coletivos, chacinas, na década de 1990, no Rio de Janeiro. Registrou e analisou a força do gênero feminino subalternizado e a ca- pacidade das mulheres de se constituírem em sujeitos políticos, protagonistas das denúncias e do acompanhamento detalhado do andamento dos processos criminais em que havia o registro das execuções de seus familiares. A produção destas referências teóricas e políticas é fundamental e sub- sidia a elaboraçãode diretrizes, políticas, serviços, projetos e ações de profissio- nais de natureza interdisciplinar que visam a socialização desse conhecimento através do incentivo aos processos reflexivos de reeducação de gênero, numa perspectiva social, coletiva e individual com o propósito de criar fissuras e rup- turas com as formas conservadoras e tradicionais de naturalização das desigual- dades e da violência de gênero. As desarticulações entre as políticas sociais e o sistema de segurança e justiça, identificadas, assim como os movimentos ambíguos e contraditórios no interior de cada uma das políticas de segurança pública, da defensoria e do mi- nistério público, mais o Judiciário, atuam como fertilizantes das resistências so- ciais, das burocracias e dos aprisionamentos nas formalidades e superficialida- des das respostas estatais diante da realidade perversa da violência doméstica e familiar, anunciada diariamente. Valores culturais e morais centralizados na ordem patriarcal do gênero permanecem nos subterrâneos das relações sociais/interpessoais, nas institui- 63 www.canaldoassistentesocial.com.br 112 ções e nas organizações e podem ser acionados no cotidiano, orientando e defi- nindo no poder a capilaridade das intervenções e o esvaziamento ou a potência das desigualdades e da violência de gênero no exercício cotidiano da vida. Adentrar nesse campo de mediações, na esfera das políticas públicas, no seu percurso de materialização e no fazer diário profissional, pode ser uma alternativa importante para se conhecer de forma mais aprofundada mecanis- mos de produção e de reprodução da violência, e para criar, em acordo com os princípios éticos, os canais de ruptura desse processo de violação de direitos. Referências ALMEIDA, S. S. de. Femicídio: algemas (in)visíveis do público privado. Rio de Janeiro: Revinter, 1998 _______. Essa violência mal-dita. In: ALMEIDA, S. A. (org.) Violência de gê- nero e políticas públicas. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2007. AZAMBUJA, M. P. R. de; NOGUEIRA, C. Introdução à violência contra as mulheres como um problema de direitos humanos e de saúde pública. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 17, n. 3, p. 101-112, set. 2008. Disponível em: <http://www.scielo.br>. Acesso em: 5 jan. 2020. BRASIL. Lei nº 8742, de 7 de dezembro de 1993. 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Soc. Soc., São Paulo, n. 121, p. 48-65, jan./mar. 2015 Serviço Social e avaliações de negligência: debates no campo da ética profissional Social Work and evaluations of negligence: discussions in the field of professional ethics Thais Peinado Berberian* Resumo: As avaliações realizadas pelos assistentes sociais sobre situações de suspeita de negligência contra criança e adolescente compõem o cerne desta reflexão. A investigação sobre o uso, o próprio conceito utilizado e as implicações quando há a afirmativa de uma situação de negligência são debatidas neste artigo sob a luz da ética profissional. Palavras-chave: Negligência. Serviço Social. Criança e adolescente. Ética profissional. Abstract: Assessments carried out by social workers on cases of suspected neglect against children and adolescents reviews comprise the core of this reflection. Research on the use, the concept used and the implications when there is affirmativea situation of neglect are discussed in this article in the light of professional ethics. Keywords: Neglect. Social Work. Children and adolescents. Professional ethics service. * Mestre em Serviço Social na PUC-SP, Brasil. E-mail: thaisberberian@yahoo.com.br. http://dx.doi.org/10.1590/0101-6628.013 www.canaldoassistentesocial.com.br 115 49Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 121, p. 48-65, jan./mar. 2015 1. Serviço Social e o campo da infância e juventude O presente texto apresenta como objetivo central trazer para o deba‑te algumas reflexões sobre o uso do conceito negligência pelo Serviço Social, especialmente nas intervenções com crianças e adolescentes. A investigação sobre o provável uso recorrente e viciado deste termo pela categoria profissional, com cunho moralista, para designar diversas situações de desproteção contra crianças e adolescentes se revelou como tema de estudo emergente e relevante, visto a incipiente produção do Serviço Social nesta temática.1 O Serviço Social apresenta significativa inserção de profissionais na área da infância e juventude. Constitui-se como uma das profissões de referência nesse setor e legitima-se historicamente para desenvolver suas atividades nessa temática na luta pela garantia de direitos. O compromisso social com a defesa dos direitos da criança e do adoles‑ cente, que teoricamente deve ser compartilhado pela família, comunidade, so‑ ciedade em geral e pelo poder público, conforme prevê o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), revela a concepção da infância como uma fase de fragilidade e, portanto, de necessário suporte e proteção ofertados pelos adultos. A infância, tida como um dos segmentos sociais que ocupa a centralidade no debate contemporâneo em vista da luta pela garantia de direitos legalmente assegurados, é compreendida nesta reflexão como uma forma de ser socialmen‑ te construída, a partir das transformações societárias e das novas demandas surgidas do movimento da história. A partir da observação empírica do cotidiano de trabalho do assistente social na esfera da infância e juventude, no que tange à demanda profissional para avaliação de suspeita de negligência contra criança e adolescente, observamos 1. Os apontamentos e reflexões aqui apresentados são frutos de dissertação de mestrado Serviço Social e avaliações de “negligência” contra criança e adolescente: debates no campo da ética profissional, defen‑ dida em outubro de 2013 no Programa de Estudos Pós-Graduados em Serviço Social da PUC-SP, sob orien‑ tação da profa. dra. Maria Lúcia Silva Barroco. Seu ponto de partida foi dado pelas inquietações oriundas da prática profissional, com a possibilidade de serem acolhidas e remetidas ao plano da reflexão crítica, por meio de um processo investigativo e sistemático, sob a luz do método marxiano. www.canaldoassistentesocial.com.br 116 50 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 121, p. 48-65, jan./mar. 2015 que um mesmo evento é capaz de mobilizar pareceres diferentes entre os mem‑ bros da equipe, não permitindo deixar claro quais são os recursos e métodos utilizados pelos profissionais para a definição, em um atendimento, da negli‑ gência. Essa situação se revelou em nossa prática na medida em que apreende‑ mos uma diversidade de condutas entre os profissionais acerca de ocorrências semelhantes envolvendo suspeitas de negligência. Percebemos no trabalho profissional a repetição de uma prática que define diferentes eventos envolvendo os sujeitos a partir do conceito negligência, sem a radical problematização e reflexão do conteúdo desse conceito e da forma de seu uso. Essa observação do cotidiano profissional também possibilitou a iden‑ tificação de que, por vezes, situações são entendidas como negligência sem qualquer recorrência à totalidade desses sujeitos, desconsiderando sua concre‑ ta inserção em uma sociedade que é real e se configura de maneira objetiva, com rebatimentos objetivos. Famílias que vivem e convivem em condições-limite de vida e sobrevi‑ vência, muitas vezes perpassadas pelo uso/abuso de drogas, desemprego/su‑ bemprego, exposição às diversas manifestações de violência, fragilidade dos vínculos familiares, entre outros desdobramentos da questão social, frequente‑ mente são questionadas pelos profissionais acerca da capacidade protetiva em relação a suas crianças e adolescentes, ocupando então um lugar de completa responsabilização pela oferta de cuidados e serviços a esses sujeitos, sem trazer para o debate a fundamental presença do Estado como provedor de um sistema de garantia de direitos. Nesse contexto, passamos a observar um direcionamento profissional que tende a desvalorizar as condições reais existentes que interferem na capacidade dessas famílias de proteger suas crianças e, com isso, uma tendência a qualificar essas situações como situações de negligência, conforme problematizado por Fávero (2007, p. 161): O poder saber profissional pode ter direcionamentos distintos, a depender da visão de mundo do profissional e de seu (des) compromisso ético. [...] A culpa‑ bilização pode traduzir-se, em alguns casos, em interpretações como negligên‑ cia, abandono, violação de direitos, deixando submerso o conhecimento das determinações estruturais ou conjunturais, de cunho político e econômico, que www.canaldoassistentesocial.com.br 117 51Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 121, p. 48-65, jan./mar. 2015 condicionam a vivência na pobreza por parte de alguns sujeitos envolvidos com esses supostos atos. Esse apontamento, aliado à nossa constatação, resultante da prática pro‑ fissional, traz uma questão central para esta reflexão: na medida em que fatores tão concretos não estão sendo considerados no momento da intervenção profis‑ sional em avaliações de suspeita de negligência, quais outros elementos se fazem presentes para a fundamentação de determinada conduta profissional? Diversas indagações também compõem o cenário de problematização dessa temática, sendo algumas delas: Quais são os critérios para definir que alguém é negligente? Eles são objetivos ou decorrem apenas de uma avaliação moral? Sendo uma atribuição negativa, contém um julgamento de valor; logo, não há como dizer que a moral não esteja presente. Além da moral, existem outros critérios objetivos? Quais são? A avaliação moral está pautada nos princípios do Código de Ética Profissional? Diante de tantas indagações, uma observação relevante que norteou nossas aproximações ao tema é que, antes de tudo, trata-se de uma ação profissional que deve ser debatida no âmbito da ética profissional e do preconceito moral que pode estar inscrito no exercício da profissão. O termo preconceito aqui é conceituado como uma forma de reprodução do conformismo que impede os indivíduos sociais de assumirem uma atitude crítica diante dos conflitos, assim como uma forma de discriminação, tendo em vista a não aceitação do que não se adequa aos padrões de comportamento estereotipados como “corretos” (Barroco, 2005, p. 47). Vale ressaltar que a cotidianidade, entendida como o campo privilegiado de reprodução da alienação, dada as suas principais características como a hete- rogeneidade, repetição acrítica dos valores e a assimilação rígida dos preceitos e modos de comportamento, também abre espaço para o moralismo, movido por preconceitos: Nos preconceitos morais, a moral é objeto de modo direto... Assim, por exemplo, a acusação de “imoralidade” costuma juntar-se aos preconceitos artísticos, www.canaldoassistentesocial.com.br 118 52 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 121, p. 48-65, jan./mar. 2015 científicos, nacionais etc. Nesses casos, a suspeita moral é o elo que mediatiza a racionalização do sentimento preconceituoso. (Heller, 2000, p. 56). A partir dessas considerações iniciais, percebemos que as avaliações de negligência apresentam evidente relevância enquanto problema a ser investi‑ gado, reforçado pelo fato de se apresentarem no interior de uma incipiente discussão crítica e teórica na produção doServiço Social, apesar de os assis‑ tentes sociais estarem diretamente relacionados a essas situações e inseridos nos espaços sócio-ocupacionais, onde são demandados a se posicionar diante de denúncias de negligência. 1.1 Aproximações ao conceito negligência Para Guerra (1997, p. 45), a atenção voltada para a discussão da negligên‑ cia ainda é menor quando comparada a outros tipos de violência, pois: Os estudos a ela [negligência] relativos são de cunho mais recente porque enfren‑ taram dificuldades básicas de conceituação, uma vez que é preciso observar até que ponto um comportamento é negligente ou está profundamente associado à pobreza das condições de vida. Numa sociedade capitalista, onde a opressão econômica impera, as dificuldades de se abordar um fenômeno, que pode trazer à tona esta mesma opressão, estão presentes entre os pesquisadores. Em investigação dos trabalhos publicados sobre o tema, a percepção de que o fenômeno da negligência não é recente e que se configura como uma das prin‑ cipais modalidades de violência contra crianças e adolescente foi recorrente. O entendimento de que se trata de um fenômeno complexo assim como a indicação de que a negligência não pode ser entendida apenas no contexto restrito das práticas internas das famílias, pois estas sofrem o impacto de fatores sociais, políticos, econômicos e jurídicos que criam dificuldades para prover os cuidados necessários aos filhos também se apresentou nos estudos investigados. Outro apontamento relevante feito em trabalho publicado por Martins (2006) indica que em muitas situações o conceito negligência vem sendo usado www.canaldoassistentesocial.com.br 119 53Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 121, p. 48-65, jan./mar. 2015 como sinônimo para pobreza. Além dessas indicações, consideramos importan‑ te ressaltar que, por meio do processo investigativo, percebemos que o uso do conceito negligência também é partilhado por outras profissões, não sendo exclusivo do Serviço Social. No campo do Direito, encontramos referência à negligência no Código Penal (1940), quando realizada a diferenciação entre os crimes doloso e culposo, sendo este último resultado da ação de um agente por imprudência, negligência ou imperícia. Segundo a ótica do Direito, compreende-se que existe negligência quando há desatenção ou falta de cuidado ao exercer certo ato, consistindo na ausência da necessária diligência. Diferentemente do dolo, que presume a ciência do dano (como objetivo ou possibilidade, em virtude do risco), a negligência, nessa perspectiva inicial, é a inobservância de normas que ordenam agir com atenção, capacidade e discernimento. Ainda na esfera do Direito, localizamos debate a respeito da intencionalidade da negligência compreendida como não apenas uma inobservância da lei, mas como uma ação incorporada por parcela de consciência e voluntarismo, em que a intenção é reconhecida e consciente (Código Civil, 2002). Nos campos da Psicologia, Medicina e Enfermagem também encontramos referências à negligência, em maior escala localizadas nos códigos de ética profissionais. Ainda no campo da Psicologia e Enfermagem, podemos reforçar a identificação de produção científica no sentido de compreender e discutir a multidimensionalidade do fenômeno da negligência, especialmente em estudos que debatem situações envolvendo crianças e adolescentes. Além dessas formas de abordagem do fenômeno negligência, em apenas alguns trabalhos foi localizada a preocupação com o uso do conceito negligên‑ cia pelos profissionais da rede de serviços. Conforme aponta Mello (2008), constata-se na literatura uma falta de parâmetros homogêneos que identifiquem esse fenômeno, havendo a necessidade de se reconhecer os fatores que o cons‑ tituem, em uma perspectiva multidimensional. Em pertinente apontamento realizado por Fuziwara (2004), a autora indi‑ ca preocupação diante dos múltiplos olhares técnicos que coexistem e subsidiam muitas decisões no campo sociojurídico (ressaltamos que essa preocupação não é exclusividade desse campo), sem que partilhem de uma explicitação norma‑ www.canaldoassistentesocial.com.br 120 54 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 121, p. 48-65, jan./mar. 2015 tizadora dos conceitos empregados pelos profissionais, sendo um desses o conceito de negligência. Desta forma, o que podemos apreender a partir desse levantamento bi‑ bliográfico sobre o tema é a incipiente discussão sobre uma prática profissional recorrente na categoria profissional. Acreditamos que os rebatimentos dessa escassa apropriação são de ordens diversas, que, no entanto, trazem prejuízos especialmente aos sujeitos atendidos pelo Serviço Social, que invariavelmen‑ te podem ser atingidos por práticas alicerçadas em condutas preconceituosas e moralistas. 1.2 O que estamos chamando de negligência? A palavra negligência, originada do latim negligentia (desprezar, descon‑ siderar), segundo definição do dicionário Michaelis, significa falta de diligência; descuido, desleixo; incúria, preguiça; desatenção, menosprezo. Utilizada em diversas áreas da divisão sociotécnica do trabalho, como Direito, Medicina, Psicologia e no Serviço Social (dentre outras), seu conceito carrega determinada definição e sentido social, mostrando-se funcional para embasar condutas ético-morais, justificar intervenções práticas e compor o re‑ pertório legal. Ao se revelar com circulação vasta por diversas áreas do conhe‑ cimento, sendo utilizado de forma corriqueira por diferentes profissões, o conceito negligência demonstra sua multiplicidade de sentidos e a necessária apropriação de seus significados em cada contexto. Visto que em outras profissões o conceito negligência é em geral empre‑ gado para denominar situações em que o indivíduo está sendo avaliado negati‑ vamente em relação ao (não)cumprimento de alguma de suas responsabilidades, nos questionamos sobre os juízos negativos de valor já imbricados no uso desse conceito. O que nos parece é ser a negligência um termo viciado de conteúdo moral, pois, ao mesmo tempo em que pode representar desatenção, também se mostra como sinônimo de desleixo e preguiça, por exemplo, trazendo inevitavelmente consigo conteúdos valorativos negativos, reforçando um perfil estereotipado e preconceituoso sobre o outro. www.canaldoassistentesocial.com.br 121 55Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 121, p. 48-65, jan./mar. 2015 Refletindo sobre o Serviço Social, entendemos que quando somos aciona‑ dos para avaliar determinada situação em que há suspeita de negligência, pre‑ cisamos avaliar o grau de desproteção em que se encontram as crianças e os adolescentes que vivem em determinado contexto. A desproteção em seu sen‑ tido objetivo, ou seja, como falta de proteção, que pode ser decorrência de uma situação intencional, ou não, dos responsáveis legais. Reforçamos aqui a consideração da intencionalidade com o intuito de nos alinharmos ao entendimento de que pode haver situações de desproteção de crianças e adolescentes mesmo sem o consentimento ou a intenção dos respon‑ sáveis legais, conforme já ressaltado quando mencionamos as diversas situações de privação e violações de direitos vividas por muitas famílias que não detêm os recursos mínimos para suprir suas necessidades mais elementares. A Constituição federal de 1988, assim como a Lei n. 8.080/1990, ao com‑ preenderem o conceito saúde em sua forma mais ampliada, passam a reconhe‑ cer que as expressões da questão social são elementos significativos na compo‑ sição do “status de saúde”. Desta forma, o reconhecimento dos determinantes sociais, econômicos e culturais que interferem no processo saúde-doença reve‑ la-se essencial para a real apropriação das condições de saúde experimentadas pelos sujeitos atendidos pelos serviços. Conforme afirmativa da lei, a saúde encontra como determinantes e con‑ dicionantes, entre outros, “a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, a atividade física, o transporte,o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais” (artigo 3º, Lei n. 8.080/1990). A própria CID-10 (Classificação Internacional de Doenças) classifica entre os códigos Z55 a Z65 pessoas com riscos potenciais à saúde relacionados com circunstâncias socioeconômicas e psicossociais, apontando, entre outros fatores, os problemas relacionados com a educação e com a alfabetização (Z55), com o emprego e com o desemprego (Z56), com a habitação e com as condições econômicas (Z59), e ainda com o meio social (Z60). Nessa perspectiva, conhecendo a realidade da maioria dos usuários dos serviços públicos de saúde, fazemos o seguinte questionamento: de que manei‑ ra o Serviço Social está realizando as avaliações de suspeita de negligência contra crianças e adolescentes diante de uma realidade tão fragilizada, em que www.canaldoassistentesocial.com.br 122 56 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 121, p. 48-65, jan./mar. 2015 as condições objetivas de vida interferem diretamente na qualidade da oferta de proteção e inclusive no grau de saúde das crianças e adolescentes? 2. A pesquisa Diante dessas indagações e reflexões, foi realizada pesquisa qualitativa,2 com entrevistas individuais semiestruturadas com seis assistentes sociais esco‑ lhidos aleatoriamente, inscritos em diferentes espaços sócio-ocupacionais (Saú‑ de, Assistência Social e Sociojurídico), que oferecem atendimento às famílias e que, entre outras demandas, atendem situações caracterizadas por negligência. A partir de dezessete perguntas abertas feitas aos sujeitos, foi possível estabelecer com os mesmos a criação de um espaço de reflexão sobre esta de‑ manda, que foi considerada recorrente no cotidiano de trabalho por todos os entrevistados. Sobre o uso e o conceito negligência Do universo dos entrevistados, percebemos que apesar de a maioria dos sujeitos indicar alguma referência teórica que subsidie a definição de negligência, os mesmos sujeitos demonstraram usar este termo para designar diversas outras situações de violência e até mesmo de pobreza. Notamos incipiente apropriação teórico-crítica por parte dos sujeitos entrevistados sobre esse conceito, que apa‑ rece de forma mecanicamente incorporada no discurso profissional. Sobre o Serviço Social e o atendimento às situações de negligência Identificamos que o lugar ocupado pelo Serviço Social, quando inserido em uma equipe multiprofissional, é de referência para o atendimento e estabe‑ lecimento de condutas em situações de negligência. Segundo a fala dos sujeitos, 2. Pesquisa aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa PUC-SP. www.canaldoassistentesocial.com.br 123 57Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 121, p. 48-65, jan./mar. 2015 nota-se da equipe ainda uma expectativa de um profissional da coerção e do consenso, iluminada por problematização feita por Iamamoto (1992, p. 42; grifos da autora): Na tentativa de explicar o que unifica a demanda do assistente social em progra‑ mas multifacetados, pode-se levantar a seguinte hipótese, que direciona as refle‑ xões que se seguem: o assistente social é solicitado não tanto pelo caráter propria‑ mente “técnico-especializado” de suas ações, mas antes e basicamente pelas funções de cunho “educativo”, “moralizador” e “disciplinador”, que, mediante um suporte administrativo-burocrático, exerce sobre as classes trabalhadoras, ou, mais precisamente, sobre os segmentos destas que formam a “clientela” das ins‑ tituições que desenvolvem “programas socioassistenciais”. Radicalizando uma característica de todas as demais profissões, o assistente social aparece como o profissional da coerção e do consenso, cuja ação recai no campo político. Sobre os critérios de identificação da negligência, poucos profissionais verbalizaram, em seus discursos, critérios claramente reconhecidos em sua prática profissional para a identificação da negligência. Em relação aos encaminhamentos ao sistema de garantia de direitos, a fala dos profissionais evidenciou a fragilidade de muitos equipamentos públicos em oferecer os serviços esperados. Vale ressaltar que na fala de um profissional, a política pública da assistência social foi compreendida como ajuda, despoliti‑ zando o debate e reforçando o imaginário do assistente social como um profis‑ sional que oferece favores e apoio. No entanto, cabe ressaltar que a maioria dos sujeitos se posicionou de forma crítica sobre o fazer profissional, identificando os limites e as contradições impostas pela própria realidade, com rebatimentos diretos na ação profissional. Sobre a interface com a ética profissional e valores Por compreendermos de maneira ontológica a inscrição dos valores nas ações práticas dos assistentes sociais, a discussão no campo da ética profissional ganhou espaço relevante nessa pesquisa, na medida em que buscamos identificar www.canaldoassistentesocial.com.br 124 58 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 121, p. 48-65, jan./mar. 2015 a inscrição de valores negativos nas avaliações de suspeita de negligência contra crianças e adolescentes. A família recebeu evidência nessa análise, por continuar sendo, de manei‑ ra histórica, o objeto central de intervenção do assistente social, com apoio cada vez maior das diretrizes de políticas públicas no âmbito da seguridade social. Conforme aponta Mioto (2012, p. 125), é necessário atentarmos para os “discursos e práticas de responsabilização das famílias altamente naturalizadas no processo de execução das diferentes políticas sociais, e nos quais os assis‑ tentes sociais estão profundamente envolvidos”, em que, segundo nossa per‑ cepção, é possível localizar a transferência de responsabilidades do Estado para a figura da família, assim como sua culpabilização pelo não desempenho das funções a ela atribuídas. Durante as entrevistas com os sujeitos, foi possível apreender que os ele‑ mentos da cotidianidade marcam de maneira significativa a prática e o discurso profissional, e quando não realizado o movimento de suspenção da realidade, a possibilidade de práticas preconceituosas e acríticas mostram-se evidentes. Segundo Barroco (2010, p. 72): Em função de sua repetição acrítica dos valores, de sua assimilação dos preceitos e modos de comportamento, de seu pensamento, repetitivo e ultrageneralizador, a vida cotidiana se presta à alienação. A alienação moral também se expressa através do moralismo, modo de ser movido por preconceitos. Devido ao seu peculiar pragmatismo e sua ultrageneralização, o pensamento cotidiano é facilmente tenta‑ do a se fundamentar em juízos provisórios, ou seja, em juízos pautados em este‑ reótipos, na opinião, na unidade imediata entre o pensamento e a ação. A partir dos discursos dos sujeitos, esses estereótipos apareceram em nossas entrevistas como referência às famílias atendidas, sendo alguns deles: suja, maltrapilha, destratado, ignorante, despreparado, ruim, incapaz, sem noção de nada, respondona. Todas essas referências estavam relacionadas aos juízos de valor atribuídos por alguns de nossos sujeitos, assistentes sociais, às famílias atendidas, e reve‑ lam, na medida de sua utilização, um importante direcionamento profissional www.canaldoassistentesocial.com.br 125 59Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 121, p. 48-65, jan./mar. 2015 calcado em desvalor. Além de uma atribuição valorativa negativa, há um mo‑ ralismo, já que tais atribuições são movidas por preconceito, aqui compreendi‑ do como uma forma de alienação moral. É interessante problematizar essa prática profissional, pois na medida em que as situações de negligência são avaliadas a partir de critérios morais, em que há quesitos preestabelecidos sobre o “bom”, “adequado”, “capaz”, “normal”, elas passam, com grande chance, a ser discriminadas e (des)valorizadas moral‑ mente. Desta forma, a questão é que, para essas avaliações, se faz necessária a utilização de outros instrumentos avaliativos que não pertençam à esfera da moralidade, já que o objeto dessa avaliação não deveria ser avaliado do ponto de vista moral. Aindaassim, é importante reforçar que não estamos aqui negando a apro‑ priação, fruto de uma elaboração histórica e coletiva, do que socialmente é compreendido pelo conjunto de cuidados necessários para o desenvolvimento saudável e integral de crianças e adolescentes, e que deve, de alguma forma, nortear as avaliações de situações de negligência. Queremos ressaltar que esse “padrão de cuidados”, também imbuído de valores, deve ser questionado e con‑ siderado a partir da apreensão de todas as mediações contidas nessas situações, para que as avaliações, que precisam ser técnicas, não recaiam no moralismo. Toda avaliação que atribua ao outro determinados juízos implicará conse‑ quências e rebatimentos àqueles que estão sendo avaliados, sendo, portanto, uma atitude inscrita na esfera da ética, já que exige do profissional o reconhe‑ cimento de que suas ações terão implicações para o outro. Por mais que tais avaliações exijam do profissional determinado grau de consciência, nem sempre esta se materializa no cotidiano profissional, fazendo com que muitas intervenções, motivadas pela imediaticidade e espontaneidade, ocorram sem acessar o nível da consciência. Não acessar a consciência não significa eximir a responsabilidade profissional, pois independentemente do grau de incorporação crítica do profissional, suas ações, inevitavelmente, terão rebatimentos nos sujeitos. Conforme aponta Barroco (2012, p. 32), as ações cotidianas dos assistentes sociais produzem um resultado concreto que afeta a vida dos usuários e interfere potencialmente na sociedade e que nessas www.canaldoassistentesocial.com.br 126 60 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 121, p. 48-65, jan./mar. 2015 ações se inscrevem valores e finalidades de caráter ético. É verdade que essa in‑ terferência ocorre independente da consciência individual dos profissionais. Assim, apreende-se que, independentemente do grau de apropriação crí‑ tica do profissional, os rebatimentos de suas condutas ocorrerão de maneira objetiva, na vida daqueles que estão sendo atendidos pelo assistente social. Portanto, temos um importante elemento para a discussão: o compromisso ético-profissional. Responsabilizar-se por suas ações, mensurar as suas conse‑ quências, eleger valores norteadores de acordo com o projeto ético-político da profissão e procurar efetivá-los nas ações profissionais são comportamentos esperados de uma ação ética, os quais, para ocorrer, precisam estar incorporados de forma consciente pelos profissionais. Esta incorporação consciente mostrou-se ausente por parte de alguns su‑ jeitos, especialmente quando questionados sobre a inscrição de valores em suas práticas profissionais. Para a metade dos sujeitos entrevistados, a prática pro‑ fissional é neutra, parcial, sem qualquer interferência de valores. Para esses sujeitos, há uma compreensão de neutralidade e parcialidade do exercício profissional, em que é possível concretizar ações sem a presença de valores. Resgatando o pressuposto da neutralidade, que como é sabido teve forte influência na trajetória profissional, especialmente nos Códigos de Ética ante‑ riores ao de 1986, com expressiva interferência do Positivismo, percebe-se que a compreensão e a idealização de uma prática “neutra” ainda persistem no imaginário profissional. Esses exemplos trazidos pelos profissionais reforçam nossa afirmação inicial sobre a inscrição de valores nas práticas profissionais, assim como apontam para a existência de condutas profissionais ainda atreladas àqueles valores relacionados ao preconceito e à discriminação. Observa-se que para aqueles profissionais que apontaram valores inscritos nas ações profissionais, tanto o exercício profissional em sua totalidade quanto o atendimento específico às situações de negligência apareceram de forma mais problematizada, mediada e crítica, se comparada aos sujeitos que apontaram para uma suposta neutralidade das ações. Apontamos que foi possível identificar maior coerência no discurso pro‑ fissional daqueles sujeitos que conseguiram apreender a presença de julgamen‑ tos de valor, e até mesmo de certo moralismo na prática profissional, bem como www.canaldoassistentesocial.com.br 127 61Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 121, p. 48-65, jan./mar. 2015 nas avaliações de suspeita de negligência. Afirmamos isso, pois para a maioria daqueles sujeitos que refutaram a presença de valores na prática profissional, percebemos justamente o contrário, uma prática muito influenciada por valores ainda conservadores, de cunho até mesmo autoritário, no que se refere à relação com o sujeito atendido. Ou seja, para aqueles sujeitos que compreenderam haver a inscrição de valores no exercício profissional, e, além disso, que apontaram para a existência de juízos de valor (positivos ou negativos), a postura profissional é diferencia‑ da em relação aos sujeitos que não reconheceram essa situação. Diferenciada no sentido de se atrelar a uma postura mais questionadora acerca do papel protetivo do Estado, das funções e atribuições assumidas pela própria profissão, nessas avaliações, assim como um discurso mais crítico e incomodado com a realidade vivida pelos sujeitos atendidos. O fato de a ética não ter sido alvo direto do discurso da maioria dos sujeitos, quando questionados sobre a possível presença de juízo de valor no atendimento profissional das situações de negligência, nos faz refletir sobre qual espaço, na atualidade, a esfera da ética ocupa e dialoga no cotidiano profissional. Tendemos a acreditar que a esfera da ética ainda está intimamen‑ te relacionada a acontecimentos nitidamente caracterizados como antiéticos. Ou seja, em situações do cotidiano em que os profissionais não estabeleceram as mediações necessárias para compreender a implicação ontológica da ética, essa esfera parece passar despercebida, com menos relevância, apartada cons‑ cientemente das ações profissionais. Assim, trazer para o debate a atitude ética não apenas para a concretização das avaliações de situações de negligência, mas para o espaço cotidiano do assistente social, parece-nos importante imperativo, a fim de contribuir para a desmistificação desse campo, que é insuprimível da prática profissional. 3. Algumas considerações Da perspectiva da utilização do conceito negligência pelos assistentes sociais entrevistados, ficou evidente a incipiente apropriação crítica do uso do conceito negligência. Apesar de conceitualmente definirem de maneira ainda www.canaldoassistentesocial.com.br 128 62 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 121, p. 48-65, jan./mar. 2015 introdutória o que compreendem por negligência, os sujeitos demonstraram, na prática profissional, que esse conceito é utilizado de forma ampla para caracte‑ rizar diversas outras situações. Entendemos que a escassa produção acadêmica sobre o tema no campo do Serviço Social, a tendência observada em relação à errônea correlação imedia‑ ta entre as situações de pobreza vividas pelas famílias e a caracterização da negligência, assim como a incorporação acrítica e imediata desse conceito por grande parcela dos profissionais sejam alguns dos indicadores que auxiliem a compreensão de uma forma precipitada de utilização do conceito negligência na prática profissional. As características que moldam o cotidiano também se revelaram como importantes componentes que interferem de forma imediata no modo com que os assistentes sociais estabelecem suas relações com os demais profissionais, com os sujeitos atendidos, bem como estabelecem a sua rotina de trabalho. A repetição, a fragmentação, o imediatismo e o pragmatismo, elementos da vida cotidiana, se desvelaram como indicadores de relevância na compreensão do uso do conceito negligência pelos assistentes sociais, uma vez que a vida coti‑ diana se mostra como o espaço da reprodução do trabalho do assistente social. Diante dessas considerações, ratificamos a sugestão de utilização, por parte do Serviço Social, do termo desproteção em substituição a negligência,uma vez apontados os inúmeros comprometimentos do emprego desse último conceito. Percebemos, ao longo dos estudos, que o conceito negligência por si já tem em seu conteúdo um teor valorativo negativo, e que, de antemão, ao ser utilizado largamente sem a perspectiva crítica, indica de alguma maneira um juízo de valor preconcebido que tende a discriminar o sujeito. Entendendo que para as demandas de “situações de negligência” a inter‑ venção do assistente social deva ser direcionada para a identificação de possíveis violações de direitos, avaliamos que o termo desproteção atinja seu intento de forma satisfatória. Isto porque esse termo não se baseia em nenhum pré-julga‑ mento em relação ao agente, ou seja, não discute o seu perfil moral, e sim as condições reais que interferiram para determinada situação. Todas as manifestações capturadas ao longo das entrevistas que permiti‑ ram identificar expressões de preconceito relacionadas às famílias atendidas e www.canaldoassistentesocial.com.br 129 63Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 121, p. 48-65, jan./mar. 2015 definidas como negligentes serviram de elementos para a reflexão sobre o modo com que muitas avaliações profissionais têm se dado no exercício profissional. Um modo norteado por juízos de valor não alinhados aos valores defendidos pelo Código de Ética Profissional do Assistente Social, que conforme visto, muito embora hegemônico, não se concretiza de forma absoluta no dia a dia do assistente social, dado o movimento contraditório e dialético da realidade. O fato de metade dos participantes da amostra compreenderem que não há a interferência de juízos de valor, quando requisitados a se posicionar diante de uma suspeita de situação de negligência, é suficiente para ratificar a pungente necessi‑ dade de trazer ao debate profissional a permanente discussão sobre valor, ética e moral. A não identificação do emprego de julgamentos morais nas avaliações de negligência, conforme já explicitado anteriormente, não significa a sua inexistên‑ cia. Em outras palavras, o não reconhecimento dessa ação não anula a sua realiza‑ ção, assim como não impede nenhum rebatimento e consequência aos envolvidos. Da mesma forma, o fato da outra metade dos participantes da amostra conseguirem apreender a existência de valores implicados nas avaliações de negligência e problematizar aquelas situações entendidas por ela como emble‑ máticas no que se refere ao conflito de valores, estando esses situados em campos mais conservadores ou mais emancipatórios, também revelou perspecti‑ va importante a ser destacada: a de cunho crítico. Validamos como consideração a existência de um campo de embate e disputa, mesmo que inconsciente, de práticas profissionais com maior ou menor possibilidade de concretizar valores de ordem emancipatória. Se as nossas in‑ quietações iniciais se situavam sobre quais eram os critérios para compreender que alguém é negligente; se eram objetivos ou decorriam apenas de uma ava‑ liação moral; e ainda se a avaliação moral estava pautada nos princípios do Código de Ética, tivemos muitas das respostas trazidas pelos depoimentos dos sujeitos, discutidos na análise. E a partir dessa análise, tendo reconhecida a prática profissional com ob‑ jetivação de valores negativos, o que consideramos importante apresentar como desafio é a necessária aproximação, por parte dos profissionais, dos debates que tratem sobre a ética no sentido de ampliar o grau de consciência, possibilitando ações cada vez mais conscientes e dirigidas para o projeto profissional e socie‑ www.canaldoassistentesocial.com.br 130 64 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 121, p. 48-65, jan./mar. 2015 tário construído hegemonicamente pelo coletivo da profissão, conforme afirma a história do atual Código de Ética. Afirmamos essa necessidade tendo em vista ainda o parcial entendimento que parte da categoria tem sobre a dimensão ética, tratando-a como algo abstrato, apartado do cotidiano profissional. Outro desafio que localizamos especialmente relacionado às situações de negligência, mas que se inscreve na totalidade da prática profissional, é a neces‑ sidade de superação de práticas que estejam situadas no senso comum. Os exem‑ plos aqui oferecidos foram ricos no sentido de traduzir as inúmeras possibilidades profissionais existentes frente às avaliações de suspeita de negligência, exigindo do profissional capacidades múltiplas para a apreensão das mediações postas. Sendo assim, a formação continuada, o compromisso ético-político para a realização de atendimentos comprometidos com a população, a construção permanente de espaços institucionais que possam contribuir para o diálogo e o crescimento intelectual dos profissionais, assim como a defesa de relações de trabalho horizontais nas equipes multiprofissionais, a fim de não hierarquizar o saber, se mostram como imperativos para uma prática profissional coerente com suas finalidades, dispostas em nosso Código de Ética. Recebido em 9/5/2014 ■ Aprovado em 24/11/2014 Referências bibliográficas BARROCO, Maria Lúcia Silva. Ética e Serviço Social: fundamentos ontológicos. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2005. ______. Ética: fundamentos sócio-históricos. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2010. (Coleção Biblioteca Básica para o Serviço Social, v. 4.) ______;TERRA, Sílvia Helena. Código de Ética do/a assistente social comentado. São Paulo: Cortez, 2012. BERBERIAN, T. P. 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Nayara André Damião Assistente social, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Política Social da Universidade Estadual de Londrina, PR, Brasil. nayara.damiao@gmail.com RESUMO: Os direitos reprodutivos foram de- marcados, pelo movimento feminista, como parte dos direitos humanos das mulheres. O aborto é um dos direitos contemplados pela concepção de di- reitos reprodutivos, tendo como argumento central a autonomia das mulheres sobre o próprio corpo. O Serviço Social, que é uma profissão atrelada à garantia de direitos, tem se manifestado nesse debate, por meio do CFESS e enfrentando a reação de setores conservadores que buscam retroceder em direitos já conquistados. É sobre direitos re- produtivos, o aborto no Brasil e o Serviço Social que tratará este artigo. Palavras-chave: Direitos reprodutivos. Aborto. Serviço Social. Feminismo. ABSTRACT: Reproductive rights were established by feminism, as part of human rights. Abortion is one of the rights assumed by the notion of reproductive rights, having as central argument women autonomy with their own bodies. Social work, a profesion related to rights guarantee, has manifested, through its Council, against conservative reactions which aims regressions in rights. Reproductive rights, abortion in Brazil and Social Work are the subjects discussed in this article. Keywords: Reproductive Rights. Abortion. Social Work. Feminism. Introdução Não foi coincidência o fato de que a consciência das mulheres sobre seus direitos reprodutivos tenha nascido no interior do movimento organizado em defesa da igualdade política das mulheres. Na verdade, se elas permaneces- sem para sempre sobrecarregadas por incessantes partos e frequentes abortos www.canaldoassistentesocial.com.br 133 307Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 132, p. 306-325, maio/ago. 2018 espontâneos, dificilmente conseguiriam exercitar os direitos políticos que poderiam vir a conquistar. (Angela Davis, 2016) A negação do direito das mulheres à autonomia sobre o próprio corpo reflete uma estrutura patriarcal, apropriada pelo capitalismo, sobre a qual as relações sociais se constroem. O patriarcado, segundo Saffioti (2004), organiza um sistema de dominação e exploração que oprime as mulheres, explorando seu trabalho e corpo para assegurar a produção e reprodução da vida. A sexualidade e reprodução da mulher são pontos-chave para a dominação e a exploração das mulheres. Como afirma Saffioti (2004), patriarcado, racismo e capitalismo formam um só sistema, que estrutura as relações sociais de maneira consubstancial.1 Por isso, as condições em que as mulheres podem fazer escolhas sobre sua autonomia reprodutiva e garan- tia e exercício de direitos reprodutivos são dadas por essas três dimensões. O aborto é parte desse debate. O Serviço Social é uma profissão que lida com a garantia de direitos. Nesse sentido, se analisarmos o aborto como um direito — conforme os dispositivos internacionais têm tratado —, enxergamos no Serviço Social uma área para essas reflexões e atuação acerca dos direitos reprodutivos das mulheres. Nesse contexto, o Conselho Federal de Serviço Social (CFESS) já se manifestou a favor da luta pela legalização do aborto. Diversas co- municações oficiais tratando do tema foram publicadas, e o debate sobre o aborto vem sendo aquecido pelo órgão federal e por suas regionais com os profissionais da área. No entanto, ainda prevalece uma lacuna no enfrentamento desse assunto na produção acadêmica e na formação dos e das assistentes sociais que no cotidiano de trabalho se deparam com mulheres, nossa principal popula- ção atendida. 1. Segundo Kergoat (2010, p. 94), as relações sociais são consubstanciais, “formam um nó que não pode ser desatado no nível das práticas sociais, mas apenas na perspectiva da análise sociológica” e coextensivas; “ao se desenvolverem, as relações sociais de classe, gênero e ‘raça’ se reproduzem e se coproduzem mutuamente”. www.canaldoassistentesocial.com.br 134 308 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 132, p. 306-325, maio/ago. 2018 1. Direitos reprodutivos e aborto O conceito de direitos reprodutivos se originou dentro do movimento feminista na luta pelo reconhecimento dos direitos da mulher quanto à se- xualidade e reprodução, e, posteriormente, também a partir das elaborações dos movimentos de lésbicas e gays. Entretanto, a disputa de sentidos que existe atualmente sobre a temática demarca o envolvimento de outros atores sociais além daqueles anteriores (Ávila, 2003, p. 466). A perspectiva feminista, adotada aqui, afirma que os direitos repro- dutivos dizem respeito à igualdade e à liberdade na esfera da vida reprodutiva. Os direitos sexuais dizem respeito à igualdade e à liberdade no exercício da sexualidade. O que significa tratar sexualidade e reprodução como dimensões da cidadania e consequentemente da vida democrática. (Ávila, 2003, p. 466) Ávila destaca a necessidade de tratar o campo da sexualidade e da re- produção separadamente, para “assegurar a autonomia dessas duas esferas da vida, o que permite relacioná-las entre si e com várias outras dimensões da vida social” (2003, p. 466). A separação entre sexualidade e reprodução possibilita contestar a heterossexualidade compulsória, segundo a qual ape- nas as relações entre homem e mulher são naturais, relegando à sexualidade feminina a função estritamente reprodutiva. Os direitos reprodutivos dizem respeito à saúde sexual e reprodutiva; à sobrevivência e à vida; à liberdade e segurança; à não discriminação e respeito às escolhas; à informação e educação para possibilitar decisões; à autodeterminação e livre escolha da maternidade e paternidade; à proteção social à maternidade, paternidade e família (Ventura, 2009, p.19). Os direitos reprodutivos e sexuais da mulher também foram reconhe- cidos enquanto parte dos direitos humanos pela Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (ICPD) do Cairo em 1994, e pela www.canaldoassistentesocial.com.br 135 309Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 132, p. 306-325, maio/ago. 2018 4ª Conferência Internacional sobre a Mulher (FWCW) de Beijing, em 1995. A primeira estabeleceu que Direitos reprodutivos incluem certos direitos humanos que já foram reconheci- dos nas leis nacionais, em documentos internacionais sobre direitos humanos e outros documentos de consenso. Esses direitos baseiam-se no reconheci- mento dos direitos básicos de todos os casais e indivíduos decidirem livre e responsavelmente o número, espaçamento e momento de terem seus filhos e ter informação e meios para isso, bem como alcançarem o mais alto padrão de saúde sexual e reprodutiva. (Nações Unidas, 1995, parágrafo 7.3) Em Beijing, o acordo foi o seguinte: Os direitos humanos das mulheres incluem seus direitos a ter controle e a decidir livre e responsavelmente sobre questões relacionadas à sua sexuali- dade, incluindo saúde sexual e reprodutiva, livres de coerção, discriminação e violência. Relacionamentos igualitários entre mulheres e homens quanto às relações sexuais e reprodutivas, incluindo total respeito à integridade das pessoas, requerem o respeito mútuo, consentimento e compartilhar respon- sabilidade quanto ao comportamento sexual e suas consequências. (Nações Unidas, 1996, parágrafo 96) Ressaltamos que o Brasil foi signatário de ambos os dispositivos. Ainda que esses documentos não tenham força de lei, afirmam compromissos com o avanço dos direitos reprodutivos e sexuais. Apesar disso, percebemos que no Brasil a situação relativa aos direitos reprodutivos e sexuais ainda não avançou o suficiente, principalmente quando observamos a permanência da criminalização e a quantidade de mortes de mulheres que recorremao aborto. Há inclusive a intenção de retrocesso nos direitos já conquistados. As leis restritivas acerca do aborto se amparam muitas vezes na reli- gião, um dispositivo de controle das mulheres na ordem patriarcal e que influencia na moralidade do debate relativo ao aborto, contribuindo para a criminalização das mulheres que recorrem a ele. www.canaldoassistentesocial.com.br 136 310 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 132, p. 306-325, maio/ago. 2018 Atualmente, apesar da posição contrária da Igreja Católica em relação ao aborto ser hegemônica, ainda há divergências dentro da própria Igreja sobre a questão. Destacamos a posição do Grupo Católicas pelo Direito de Decidir, atuante no Brasil. Com base em argumentos teológicos e pastorais, o grupo busca dar visibilidade a um posicionamento alternativo dentro da Igreja sobre o tema, colocando-se como defensoras do direito de escolha das mulheres. O aborto é considerado um procedimento de baixa complexidade téc- nica. O que torna um aborto inseguro é a clandestinidade, “ao favorecer a quebra de alguns daqueles preceitos básicos de segurança” (Mesquita, 2000, p. 37). Esta é a dimensão política da questão. Outra dimensão, a econômica, tem a ver com a seguinte sentença: nem todo aborto clandestino é inseguro, desde que se possa pagar. Há maneiras de realizar o procedimento seguro, mesmo que clandestino. Isso destina às mulheres pobres os maiores níveis de insegurança no que se refere ao aborto. A Pesquisa Nacional do Aborto (PNA) de 2016, aponta que aproxi- madamente uma em cada cinco mulheres alfabetizadas da área urbana aos quarenta anos já fez pelo menos um aborto: É possível observar que o aborto no Brasil é comum e ocorreu com frequên- cia entre mulheres comuns, isto é, foi realizado por mulheres: a) de todas as idades (ou seja, permanece como um evento frequente na vida reprodutiva de mulheres há muitas décadas); b) casadas ou não; c) que são mães hoje; d) de todas as religiões, inclusive as sem religião; e) de todos os níveis educa- cionais; f) trabalhadoras ou não; g) de todas as classes sociais; h) de todos os grupos raciais; i) em todas as regiões do país; j) em todos os tipos e tamanhos de município. (Diniz, Medeiros e Madeiro, 2017, p. 656). Como afirmam Correa e Petchesky (1996, p. 159), para que as decisões reprodutivas possam ser exercidas efetivamente, assim como a autonomia das mulheres para fazerem escolhas nesse campo, há que existir condições concretas. Isso remete às condições de trabalho e renda, moradia, educação, www.canaldoassistentesocial.com.br 137 311Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 132, p. 306-325, maio/ago. 2018 transporte, educação infantil, escolas em período integral, serviços de saúde humanizados e bem equipados, entre outros. Também é essencial a cons- trução de relações afetivas compartilhadas sem violência de qualquer tipo. Para isso, requer-se a responsabilidade de Estados e instituições mediadoras, pressupondo uma ação pública para garantir que os direitos sejam exercidos por todos e todas. Cabe aqui um destaque ao debate sobre direitos. Para Telles (1998) é necessário colocar os direitos sob a ótica daqueles sujeitos que os pronun- ciam. Isso significa considerar os direitos não apenas como meras conces- sões de Estado capitalista para as classes subalternas, mas como espaço de disputa e de construção também por aqueles que os demandam. O debate sobre direitos, apesar de não proporcionar automaticamente a emancipação humana e não romper com a ordem vigente, abre possibilidades para os grupos oprimidos. É nesse aspecto que a luta pelos direitos é importante: apesar de, via direitos, não ser possível alcançar o fim das desigualdades, ou aquilo que Marx (2010) define como emancipação humana, ela permite que a ordem social seja questionada, que sujeitos desprovidos de poder quebrem o silêncio e a naturalização da sua condição subalterna e busquem outras possibilidades. A partir do questionamento e do movimento dos grupos oprimidos, a busca por novas vozes, novas perspectivas, outros pontos de vista, de resistência, a busca pelo compartilhamento do poder pode se tornar uma possibilidade. É nesse sentido que a luta das mulheres pelos seus direitos se enquadra. Quando as feministas lutam pela legalização do aborto, não estão apenas colocando o aborto em questão, mas um sistema que domina e explora mu- lheres, que instrumentaliza a sua capacidade biológica e as reduz ao único destino da maternidade como sua função social. O processo de construção dos direitos reprodutivos e sexuais, segun- do Ávila (2003), está integrado ao processo mais amplo de construção da democracia, uma vez que o controle do corpo e da sexualidade são centrais para a dominação patriarcal. www.canaldoassistentesocial.com.br 138 312 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 132, p. 306-325, maio/ago. 2018 2. A questão do aborto no Brasil No final da década de 1970 o discurso era pelos direitos humanos das mulheres e estava alinhado à premissa “nosso corpo nos pertence”. Conforme o relato de Eleonora M. Oliveira, As feministas brasileiras, nosotras, ex-exiladas, ex-presas políticas, viajantes, trouxeram, no final da década de 1970 e no início da década de 1980, essa questão dos direitos humanos das mulheres com muita força e com muita ra- dicalidade para as mobilizações. Radicalidade que está associada à luta pelo direito ao aborto, na medida em que essa questão se relaciona à noção mais forte, mais reacionária, mais conservadora da maternidade compulsória, que é base da moral judaico-cristã. (Oliveira, 2005, p. 132) A autora relata que a luta pelo direito ao aborto “foi uma luta muito solitária das mulheres feministas” (2005, p. 133). Isso porque as mulheres estavam sós tanto enquanto construíam uma rede de solidariedade entre as que fizeram aborto, como também estavam sós em seus próprios abortos. Os homens, quando muito, apenas e simplesmente “davam o dinheiro”. Além disso, Oliveira (2005) comenta sobre a solidão política sofrida pe- las feministas que lutavam pelo direito ao aborto nos diferentes espaços que ocupavam. Com a reabertura política no Brasil, as pautas do movimento feminista ganharam força novamente e, dentre elas, a questão dos direitos reprodutivos das mulheres. Nesse contexto, na década de 1980 uma grande quantidade de mulheres saiu às ruas pela legalização e descriminalização do aborto, bem como pelo direito de escolha. Nesse sentido, Valdívia (1998) e Faria e Lopes (2016) informam que a luta das mulheres e organizações/instituições feministas foi essencial no contexto da constituinte. Na época, a participação popular na construção da Constituição brasileira era possibilitada por meio de emendas populares. Mo- vimentos de mulheres feministas trabalharam intensamente para a inserção www.canaldoassistentesocial.com.br 139 313Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 132, p. 306-325, maio/ago. 2018 de suas demandas por meio dessas emendas. Uma dessas demandas era a descriminalização do aborto. As feministas lutavam para que a Constituição Federal defendesse o direito à vida “desde o nascimento”, a fim de buscar avanços na legislação sobre aborto. Porém, o forte lobby da Igreja Católica e a massiva presença de deputados evangélicos tentavam impor a defesa da vida “desde a con- cepção” — o que impossibilitaria inclusive os permissivos de aborto nos casos citados pelo Código Penal de 1940. A recusa do termo “desde a con- cepção” para se referir à vida foi uma conquista do movimento de mulheres feministas. Como resultado desse embate, a Constituição brasileira afirma o direito à vida, sem determinar quando esta começa — dando brecha para os dois lados. Todavia, na data em que escrevemos este texto, há novamente a tentativa de incluir esse conceito na Constituição Federal. Dentre vários projetos que preveem retrocessos nos direitos das mulheres, a Proposta de Emenda Cons- titucional (PEC) n. 181 é uma das mais agressivas e sorrateiras. Conhecida como PEC Cavalode Troia, a proposta inicialmente tinha como objetivo prolongar a licença-maternidade de mães de bebês prematuros. Após diversas modificações, consta no texto a alteração da Constituição para a garantia da “inviolabilidade do direito à vida desde a concepção”,2 novamente com o nítido intuito de impossibilitar o direito ao aborto. Na legislação brasileira, a partir do Código Penal de 1940, o aborto é crime tipificado segundo o título I, dos crimes contra a pessoa, e do capítulo I, dos crimes contra a vida. Podemos perceber no documento a diferença entre aborto e infanticídio: é considerado infanticídio “matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após” (art. 123 do Código Penal). É considerado aborto quando a situação consiste em “provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho 2. O texto completo com as alterações da relatoria da PEC pode ser observado em: <http://www.camara. gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=54A20260D836F4E17061509229493620.proposi- coesWebExterno1?codteor=1586817&filename=Parecer-PEC18115-16-08-2017>. www.canaldoassistentesocial.com.br 140 http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=54A20260D836F4E17061509229493620.proposicoesWebExterno1?codteor=1586817&filename=Parecer-PEC18115-16-08-2017 http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=54A20260D836F4E17061509229493620.proposicoesWebExterno1?codteor=1586817&filename=Parecer-PEC18115-16-08-2017 http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=54A20260D836F4E17061509229493620.proposicoesWebExterno1?codteor=1586817&filename=Parecer-PEC18115-16-08-2017 314 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 132, p. 306-325, maio/ago. 2018 provoque” (art. 124 do Código Penal). O Código atenua a pena àqueles que realizam o procedimento com o consentimento da mulher, e, por ou- tro lado, aumenta a pena caso a gestante sofra lesões corporais graves ou chegue a óbito. O abortamento no Brasil, segundo os incisos I e II do artigo 128 do Código Penal, é permitido em casos de gravidez decorrente de estupro (abor- tamento sentimental), em casos de risco de vida para a gestante (abortamento necessário). A Justiça também pode conceder autorizações específicas quando as gestações possuem anomalias fetais incompatíveis com a vida extrauterina, como no caso da anencefalia. Em 1999, o governo federal lança a primeira Norma Técnica para Pre- venção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual Contra Mulheres e Adolescentes com intuito de estabelecer normas gerais para o atendimento dessas demandas. A norma técnica de 1999 é resultado da pressão de diversas organizações feministas e previa: Apoio laboratorial para diagnóstico de doenças sexualmente transmissíveis (DSTs) e Aids; prevenção profilática de DST; garantia de atendimento psico- lógico; coleta e guarda de material para futura identificação do agressor por exame de DNA; administração de anticoncepção de emergência (até 72 horas da agressão); interrupção da gravidez até vinte semanas de idade gestacional; acompanhamento pré-natal, quando a mulher decidir pela não interrupção. (Talib, 2005, p. 21) Em 2005, o governo federal lança, em resposta à pressão de diversas organizações feministas, uma nova versão da Norma Técnica para Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual Contra Mulheres e Adolescentes e também lança a inédita Norma Técnica de Atenção Hu- manizada ao Abortamento. A primeira trata do atendimento às vítimas de violência sexual e inclui questões como apoio psicossocial, contracepção de emergência, doenças e infecções sexualmente transmissíveis e também o atendimento nos casos de gravidez resultante de estupro. O documento www.canaldoassistentesocial.com.br 141 315Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 132, p. 306-325, maio/ago. 2018 discorre ainda sobre a organização do serviço, desde a estrutura física e equipamentos até a capacitação e sensibilização dos recursos humanos, além do registro de dados. As referidas normas técnicas reforçam conteúdos já presentes no Código Penal para normatizar os atendimentos tanto no caso das vítimas de violência sexual quanto nas situações de abortamento em geral. Um ponto trazido nas normas faz referência à dispensa de Boletim de Ocorrência para a realização do abortamento em casos de gravidez resultante de estupro. Segundo o Có- digo Penal brasileiro, e conforme reforçado na norma técnica, a única coisa a ser requisitada nesses casos é uma autorização por escrito da mulher ou da(o) responsável para a realização dos procedimentos. Da mesma forma, a presunção da veracidade no relato das mulheres sobre a violência sexual sofrida é enfatizada pelo documento. A Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento, lançada em 2005 e atualizada em 2008, traz importantes avanços no que se refere ao acolhimento e atendimento de mulheres em situação de abortamento. O documento discorre sobre o dever dos profissionais da saúde no atendimento às mulheres tanto em caso de abortamento espontâneo quanto autoprovo- cado. A norma também discorre sobre a importância do respeito ao sigilo profissional sobre as situações de abortamento, bem como o tratamento humanizado que deve ser conferido às mulheres independentemente da situação que decorreu no aborto. As normas apontam que é dever do Estado garantir a presença nos serviços de atendimento de médicos e outros profissionais que não tenham objeção de consciência3 para realização do procedimento. Da mesma forma, afirma que “caso a mulher venha sofrer prejuízo de ordem moral, física ou psíquica, em decorrência da omissão, poderá recorrer à responsabilização pessoal e/ou institucional” (Brasil, 2005, p. 44). 3. A legislação brasileira assegura que profissionais contrários ao aborto possam recusar-se à realização do procedimento, caso não seja uma urgência e haja outros profissionais capacitados para a realização deste. Ao atendimento às mulheres com complicações decorrentes de abortamento não cabe objeção de consciência dos profissionais, sendo seu dever atender a esses casos. www.canaldoassistentesocial.com.br 142 316 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 132, p. 306-325, maio/ago. 2018 Os documentos citados deixam evidente a necessidade de uma equipe multidisciplinar para isso e afirma que todos os profissionais da saúde têm responsabilidade no atendimento. É desejável que a equipe de saúde seja composta por médicos(as), psicólo- gos(as), enfermeiros(as) e assistentes sociais. Entretanto, a falta de um ou mais profissionais na equipe — com exceção do médico(a) — não inviabiliza o atendimento. Ainda que cada um desses profissionais cumpra papel específico no atendimento à mulher, todos devem estar sensibilizados para as questões de violência contra a mulher e violência de gênero, e capacitados para acolher e oferecer suporte às suas principais demandas. (Brasil, 2005, p. 11) Conforme vimos anteriormente, apesar de constituir direito das mulheres desde o Código Penal de 1940, apenas em 1990 um hospital público ofereceu, pela primeira vez, o serviço de abortamento legal. Trata-se do Hospital do Jabaquara, em São Paulo. Segundo Villela e Lago: Em 1996, ocorreu a recomposição da Comissão Intersetorial da Saúde da Mulher (Cismu), instância assessora do Conselho Nacional da Saúde que ao ser rearticulada passa a contar com uma forte presença de feministas e com a representação da Febrasgo [Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos e Sexuais e a Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrí- cia]. Por meio de uma negociação interna entre a Cismu e representantes do Ministério da Saúde, foi proposta a elaboração de uma norma técnica para a implementação de serviços de atendimento à violência sexual que incluísse o aborto. Após discussão no Conselho Nacional de Saúde, a proposta foi aprova- da e encaminhada à Área Técnica de Saúde da Mulher, para ser implementada. (Villelae Lago, 2007, p. 473) Não obstante a legislação e as normas, relatos colhidos por nós junto a assistentes sociais que atuam nesses serviços mostram várias dificulda- des no atendimento ao abortamento previsto pela lei. Segundo os relatos, mesmo quando a equipe do Serviço Social é constituída por profissionais www.canaldoassistentesocial.com.br 143 317Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 132, p. 306-325, maio/ago. 2018 voltados para a perspectiva de reconhecimento do direito, o setor não atende sozinho, contando com outros profissionais para esse atendimento. Assim, o enfrentamento da equipe de Serviço Social é essencial para confrontar práticas profissionais preconceituosas, culpabilizadoras e a negação dos direitos das mulheres. Um dos exemplos disso é a garantia do acesso ao abortamento pre- visto pela lei sem a realização do boletim de ocorrência. Segundo uma das entrevistadas, o único médico da instituição que aceitava realizar o aborto, requisitava o boletim de ocorrência para dar sequência ao procedimento. O embate das assistentes sociais possibilitou a garantia do direito ao aborta- mento, conforme dispõe as normas técnicas de 2005 e 2008. Terminamos este tópico lembrando que foi uma assistente social do Hospital do Jabaquara em São Paulo que liderou a luta para implantação de um dos primeiros serviços de abortamento legal no Brasil, o que nos aponta para a importância do Serviço Social nesse contexto. 3. Serviço Social, direitos reprodutivos e aborto A partir do desenvolvimento de uma concepção crítica do Serviço So- cial, cunhou-se um novo projeto profissional, que, segundo Netto (2001), tem em seu núcleo o reconhecimento da liberdade como valor central — a liberdade historicamente concebida, que permite a escolha entre alternativas reais, concretas. Esse projeto profissional está alinhado a um projeto socie- tário livre de opressões de classe, raça/etnia e gênero. O Código de Ética do Serviço Social (Brasil, 2012), de 1993, revisado e atualizado em 2011, traz como um dos princípios fundamentais o reconhe- cimento da liberdade como valor central, bem como das demandas políticas relativas a ela, como a autonomia, a emancipação e a plena expansão dos indivíduos sociais. A discussão feminista sobre o aborto tem como eixo norteador a autonomia das mulheres, o que nos aponta novamente para aproximação entre essa questão e o Serviço Social. www.canaldoassistentesocial.com.br 144 318 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 132, p. 306-325, maio/ago. 2018 A defesa intransigente dos direitos humanos e a recusa do arbítrio e do autoritarismo aparecem no segundo item dos princípios fundamentais do Código, seguidos da ampliação da cidadania e defesa do aprofundamento da democracia na socialização da participação política e da riqueza socialmente produzida. O item n. 5 afirma o posicionamento em favor da equidade e da justiça social, assegurando acesso universal a bens e políticas sociais, além da sua gestão democrática. O empenho na eliminação de todas as formas de preconceito aparece no item 6. O referido código também traz a escolha por um projeto profissional em busca de uma sociedade sem dominação, seja ela de classe, etnia ou gênero (Brasil, 2012). O Conselho Nacional de Serviço Social, CFESS, tem se posicionado frente aos direitos reprodutivos. Em 2009, o CFESS Manifesta de 28 de se- tembro4 traz um panorama sobre a questão do aborto, colocando-a como uma questão de saúde pública e direito das mulheres. O referido documento relata que no 38º Encontro Nacional CFESS-Cress, os assistentes sociais presentes Reafirmaram seus valo res e princípios, comprometidos com a emancipação humana e a construção de uma nova ordem societária, livre de toda forma de exploração e opressão, e delibe raram o posicionamento e o engajamento nas lutas pela descriminalização do aborto, e a realização de debates em todo o Brasil sobre a legalização do aborto como mecanismo de ampliar e democra- tizar as discussões no âmbito da categoria, para retirada de posicionamento do Conjunto CFESS/Cress em setembro/2010. (CFESS, 2009) No mesmo documento, é endossado o compromisso ético-político com a defesa dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e o apoio ao movi- mento feminista nessa luta, uma vez que “o aborto inseguro é uma gravíssima questão de saúde pública e que as mulheres constituem seres éticos ca pazes de fazer escolhas de forma consciente e respon sável” (CFESS, 2009). 4. O dia 28 de setembro foi escolhido, pelos movimentos feministas presentes no V Encontro Feminista Latino-Americano e do Caribe, como o Dia Latino-Americano e Caribenho de Luta pela Descriminalização e Legalização do Aborto. www.canaldoassistentesocial.com.br 145 319Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 132, p. 306-325, maio/ago. 2018 Assim, conforme proposto em 2009, no ano seguinte, em setembro de 2010, por ocasião do 39º Encontro Nacional CFESS-Cress, colocou-se o assunto em pauta novamente. Dessa vez, os assistentes sociais representantes de todas as regiões do país deliberaram coletivamente pelo apoio à legalização do aborto. O debate foi feito no eixo Ética e Direitos Humanos do evento, no qual decidiu-se coletivamente pelo posicionamento. Antes, o tema já havia sido debatido em reuniões e assembleias nas regionais do Conselho.5 Em 2011, também no dia 28 de setembro, um CFESS Manifesta foi lançado em apoio à legalização do aborto. As exigências e compromissos de 2009 foram novamente endossados, argumentando a defesa da legalização do aborto como questão de saúde pública, uma vez que é a terceira causa de morte materna e penaliza ainda mais as mulheres pobres e negras que não têm condições de acesso aos abortos clandestinos minimamente seguros. Além disso, também relata as ações deliberadas no 40º Encontro Nacional CFESS-Cress para a luta pela legalização do aborto. É importante ressaltar que o CFESS também se manifestou, em 2015, em repúdio ao Projeto de Lei n. 5069/2013, de autoria de Eduardo Cunha. Na nota de repúdio, o Conselho informa que o projeto “prevê a criminali- zação do anúncio de métodos abortivos e da prestação de auxílio ao aborto, principalmente por parte de profissionais de saúde”, e informa também o parecer do relator (Evandro Gussi, PV/SP) um “atentado ao aparato legal já existente sobre o tema, um retrocesso às lutas históricas de movimentos feministas e, principalmente, um ataque à saúde de milhares de mulheres no Brasil” (Idem). A nota de repúdio finaliza endossando o posicionamento contrário ao referido projeto de lei e afirmando a luta histórica da categoria pela legalização do aborto. Outro CFESS Manifesta foi lançado em 28 de setembro de 2016 em apoio ao Dia Latino-Americano e Caribenho de Luta pela Descriminalização Legalização do Aborto. Trazendo considerações sobre o aborto e o trabalho 5. Conforme informações do site do Conselho Federal de Serviço Social, disponível em: <http://www. cfess.org.br/visualizar/noticia/cod/471>. Acesso em: 15 mar. 2018. www.canaldoassistentesocial.com.br 146 http://www.cfess.org.br/visualizar/noticia/cod/471 http://www.cfess.org.br/visualizar/noticia/cod/471 320 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 132, p. 306-325, maio/ago. 2018 dos assistentes sociais, o documento de 2016 traz novamente a questão da saúde pública, mas também argumenta, norteado pela autonomia das mulhe- res. O slogan feminista “nosso corpo nos pertence” é trazido para o debate. O CFESS Manifesta de 28 de setembro de 2016 vai questionar os valores conservadores e expressar a necessidade de combatê-los na prática profissional, bem como de pensar o assunto de maneira crítica, conforme podemos observar abaixo: No campo da atuação profissional, apesar do avanço do debate que se expres- sa em deliberações e ações do conjunto CFESS-Cress e do posicionamento político da categoria nos instrumentos normativos que compõem o projeto ético-político profissional, podemos identificar ações profissionais que negam os direitos das mulheres, nosentido de ampliação de acesso a informações e de posicionamentos conservadores e questionadores frente à situação de decisão das mulheres sobre o aborto. (CFESS, 2016) Para fazer essa defesa, os princípios éticos e políticos do Serviço Social são ressaltados: a defesa intransigente dos direitos, a busca por uma nova ordem societária sem opressão de classe, gênero e raça/etnia, o enfrentamen- to das desigualdades. Categorias como emancipação humana e autonomia também são utilizadas no documento para fundamentar o debate, além dos posicionamentos dos movimentos feministas sobre esse tema. Embora o debate esteja presente nos órgãos de defesa da categoria, não está necessariamente presente no conjunto da categoria. Em dados coletados dados junto a assistentes sociais em 20176 por meio de questionários, pu- demos verificar que das cem entrevistadas, 46% afirmaram que a discussão sobre aborto não esteve presente na sua formação acadêmica/profissional; 28% afirmaram que essa discussão esteve parcialmente presente na forma- ção acadêmica/profissional, 10% não se recordam e 1% não sabe do que se trata. Apenas 15% das assistentes sociais responderam que a discussão sobre 6. 4 Dados coletados para pesquisa em andamento sobre aborto e Serviço Social, no programa de Pós- -Graduação Política Social e Serviço Social da Universidade Estadual de Londrina. www.canaldoassistentesocial.com.br 147 321Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 132, p. 306-325, maio/ago. 2018 direitos reprodutivos esteve presente na formação acadêmica/profissional. Em entrevistas presenciais, algumas assistentes sociais pontuaram que ti- veram contato com o debate sobre aborto e/ou direitos reprodutivos devido ao surgimento dessas demandas no cotidiano profissional. Segundo as entrevistadas, o debate sobre aborto é levado na categoria profissional apenas por grupos pequenos que têm uma perspectiva feminista e/ou já estão inseridos na luta pela legalização do aborto. Os relatos apontam para a ausência desse debate de forma coletiva entre as assistentes sociais. O posicionamento do CFESS pela legalização do aborto é conhecido por quase todas as assistentes sociais entrevistadas. Entretanto, a maior parte delas declara não ter lido nenhum documento que detalhe e justifique esse posicionamento. Como nos traz Bonfim, “escolhas éticas só são possíveis a partir da relação dialética entre necessidade e liberdade” (2015, p. 202), o que reforça a necessidade de reconhecer as condições objetivas e subjetivas de trabalho desses profissionais, bem como do contexto em que estão inseridos. Considerações finais A luta das mulheres pela liberdade sexual e reprodutiva, bem como pela legalização do aborto, conforme percebemos, sempre foi pauta do movimento feminista. Afirmando que “o pessoal é político”, o movimento feminista pôde colocar em debate várias questões que antes eram deixadas de lado, pois “não eram de interesse público”. Conforme nos traz Ávila, essa discussão se torna essencial, uma vez que “as interdições legais sobre a vida amorosa, sexual e reprodutiva se transformaram, de fato, em mecanismos insuportáveis na vida cotidiana, pois são instrumentos de dominação, de repressão e de violência” (2005, p. 18). A questão do aborto no Brasil exige não apenas a mudança na lei, mas também a adaptação das políticas sociais e as mudanças nos padrões esta- belecidos culturalmente e que respaldam as práticas sociais. Seguindo esse www.canaldoassistentesocial.com.br 148 322 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 132, p. 306-325, maio/ago. 2018 caminho, a questão do reconhecimento do direito ao aborto não deve ser encarada apenas com o estabelecimento do direito em lei, já que as práticas sociais que atravessam essa situação também impossibilitam ou precarizam o acesso a esse direito, assim como as políticas sociais não são suficientes ou devidamente preparadas para o atendimento dessas demandas. Prevalece ainda a imagem da mulher que abortou como criminosa e assassina; a mulher que vivencia a sexualidade como desfrutável ou sem valor; a maternidade como missão e dever da mulher. No que tange ao Serviço Social, mesmo com as diversas manifestações do CFESS e do posicionamento oficial em relação ao aborto, não é possível afirmar que, no cotidiano de trabalho, as assistentes sociais traduzam essa direção em sua prática profissional. Assim como não é possível afirmar que conheçam ou concordem com o posicionamento do CFESS. Ainda é forte a presença de valores religiosos conservadores na prática profissional, mesmo depois do movimento de reconceituação e da construção do Projeto Ético-Político do Serviço Social, o que nos mostra um tensio- namento entre a moral conservadora à brasileira e o Projeto Ético-Político do Serviço Social quando o assunto é aborto. Essa moral não está presente apenas na formação dessa profissão, mas em toda a sociedade brasileira (Bonfim, 2015). Conforme pudemos ver, o enfrentamento político dos assistentes sociais é essencial para a garantia dos direitos já conquistados, inclusive no que se refere ao aborto. Se visto enquanto um direito humano das mulheres, a negação dos seus direitos reprodutivos é considerada uma violação séria, e, portanto, de interesse do assistente social. O contato do assistente social com situações de vulnerabilidade e ne- gação de direitos traz, ao mesmo tempo, responsabilidade e possibilidades. Uma vez munido dessas informações, como colocado por Iamamoto (2015), o assistente social pode agir no atendimento e na socialização das informa- ções, a fim de denunciar essa realidade, sendo de profunda importância para a garantia e conquista de direitos. Tomam também contato diariamente com o sofrimento de mulheres pobres, de maioria negra, com pouca perspectiva www.canaldoassistentesocial.com.br 149 323Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 132, p. 306-325, maio/ago. 2018 de autonomia, que sofrem violências de todos os tipos, inclusive a violação de direitos reprodutivos. Recebido em 7/1/18 ■ Aprovado em 26/2/18 Referências bibliográficas ÁVILA, M. B. 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Este é um artigo de acesso aberto distribuído nos termos de licença Creative Commons. www.canaldoassistentesocial.com.br 152 (Re)descobrindo a adoção no Brasil trinta anos depois do Estatuto da Criança e do Adolescente Redescubriendo la adopción en Brasil treinta años despues del Estatuto da Criança e do Adolescente (Re)discovering child adoption in Brazil thirty years after the Children’s Code Claudia Fonseca claudialwfonseca@gmail.com Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brazil (Re)descobrindo a adoção no Brasil trinta anos depois do Estatuto da Criança e do Adolescente Runa, vol. 40, núm. 2, pp. 17-38, 2019 Instituto de Ciencias Antropológicas, Facultad de Filosofía y Letras, Universidad de Buenos Aires DOI: https://doi.org/10.34096/runa.v40i2.7110 Resumo:A base de fontes documentais e entrevistas informais com profissionais com atuação na área, propomos nesse artigo descrever algumas mudanças no campo de adoção de crianças e adolescentes no Brasil ao longo dos últimos trinta anos. Iniciamos por uma observação metodológica: a falta de dados sistemáticos sobre adoção doméstica. Passamos à consideração de uma ênfase crescente nos últimos anos na adoção pelo Cadastro Nacional de Adoção (em particular de crianças mais velhas) como solução para o número grande de jovens em acolhimento institucional. Sugerimos que avança uma visão pragmática calcada nos direitos individualizados da criança como princípio norteador das políticas de proteção, ao mesmo tempo que recuam os discursos sobre “justiça social” e “reintegração familiar” associados aos primeiros anos do Estatuto da Criança e do Adolescente. Trazemos então os debates em torno de “adoções diretas”, desenvolvendo a hipótese de que, apesar de sua pouca legitimidade e zero visibilidade nos discursos oficiais, elas exercem uma grande influência sobre as práticas de adoção no Brasil. Terminamos por sublinhar certos silêncios no campo de adoção que dificultam tanto a avaliação de políticas atuais quanto o planejamento de políticas eficazes no futuro. www.canaldoassistentesocial.com.br 153 https://doi.org/10.34096/runa.v40i2.7110 Palavras-chave:Adoção, Acolhimento institucional, Políticas públicas, Proteção da infância, Antropologia da criança e adolescente. Resumen:Sobre la base de fuentes documentales y entrevistas informales a profesionales que actúan en el área de la adopción de niños, en este artículo proponemos describir algunas transformaciones en el campo de la adopción de niños y adolescentes en Brasil a lo largo de los últimos treinta años. Iniciamos con una observación metodológica: la falta de datos sistemáticos sobre adopción doméstica. Consideramos luego el énfasis creciente que en los últimos años ha tenido la adopción por parte del Registro Nacional de Adopción (en particular de niños y niñas mayores) como solución para el gran número de jóvenes en acogimiento institucional. Sugerimos así el avance de una visión pragmática calcada en los derechos individualizados del niño/a como principio guía de las políticas de protección, al mismo tiempo que retroceden los discursos sobre “justicia social” y “reintegración familiar” asociados a los primeros años de vigencia del Estatuto da Criança e do Adolescente. Volvemos así a los debates em torno de las “adopciones directas” y desarrollamos la hipótesis de que, a pesar de su poca legitmidad y cero visibilidad en los discursos oficiales, ellas ejercen una gran influencia em las prácticas de adopción en Brasil. Finalmente señalamos ciertos silencios en el campo de la adopción que dificultan tanto la evaluación de las políticas actuales como la planificación de políticas eficaces en el futuro. Palabras clave:Adopción, Acogimiento institucional, Políticas públicas, Protección de la infancia, Antropología de la niñez y de la adolescencia. Abstract:Based on documental sources and informal interviews with professionals involved in this theme, we propose in this article to describe changes in the field of child adoption in Brazil over the past thirty years. We begin with a methodological observation on the lack of systematic statistics on domestic adoption. We proceed to consider a growing emphasis in recent years on adoption through the National Adoption Registry (in particular of older children) as a solution for the large number of youngsters in institutional care. We suggest that a pragmatic view based on the individualized child’s rights has gained ground, at the same time that discourses on “social justice” and “family reintegration”, associated with the beginning years of the Children’s Code, have been toned down. We then turn to the debates around “direct adoptions”, raising the hypothesis that, although suffering from doubtful legitimacy and zero visibility in official discourse, they exert a great influence on adoption practice in Brazil. We finish by underlining silences in the field of child adoption that hinder the evaluation of present policies as well as the planning of effective policies in the future. Key words:Adoption,