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ESTUDOS POLÍTICOS E ECONÔMICOS AULA 2 Profa Regina Paulista Fernandes Reinert 2 CONVERSA INICIAL Olá! O objetivo desta aula é compreender as transformações dos processos econômicos e políticos a partir do conceito de modo de produção. Esse conceito pode ser aplicado a qualquer contexto histórico, e o nosso objetivo é demonstrar que desde a pré-história – quando predominou o comunismo primitivo de produção e distribuição igualitária e cooperada – até as formas mais complexas de solidariedade individual na produção foram, em última instância, determinados pelos modos de produção. CONTEXTUALIZANDO O conceito de modo de produção nos permite entender as sociedades de cada época no conjunto de suas relações em suas demandas econômicas, sociais, políticas e ideológicas, precisamente porque são os modos de produção que entrelaçam essas forças sociais que se encontram na economia, na religião e na política. Por meio do conceito de modo de produção podemos analisar as circunstâncias pelas quais a sociedade produz seus bens e serviços, como os utiliza e os distribui, além de nos possibilitar entender como se coordenam todos os aspectos da sociedade a partir da economia. O modo de produção de uma sociedade é formado por suas forças produtivas, que podem ser humanos ou máquinas, e pelas relações de produção, isto é, a forma como as pessoas interagem na produção da vida. O modo como os seres humanos produzem e garantem sua sobrevivência muda a cada época, mas são eles que determinam todas as outras características da sociedade. TEMA 1 – A ECONOMIA NA PRÉ-HISTÓRIA 1.1 Do comunismo primitivo à divisão da sociedade em classes A etnologia1 classifica as sociedades primitivas de acordo com as matérias- primas que empregam para fabricar suas ferramentas de trabalho. O etnólogo, 1 É o estudo das culturas – povo ou grupo social – e da investigação dos problemas teóricos que surgem da análise dos costumes. A etnologia é segundo estágio da pesquisa, vindo depois da etnografia (Assis, 2011, p. 19). 3 ao estudar os dados levantados pela etnografia2, na esfera da antropologia cultural e social, compara-os com outros dados e documentos a fim de dar um lugar na história para a civilização que estuda. De acordo com alguns economicistas e antropólogos, o primeiro sistema econômico da história da humanidade foi o comunismo primitivo, e foi também o que teve maior duração. Durante vários milênios essa fase existiu na vida de todos os povos. Naquela época, também chamada de selvageria, não tínhamos uma economia no sentido de ser algo racionalizado, pensado em relação ao futuro. Não fazíamos nem estoques de alimentos. Vivíamos em uma economia natural, coletando tudo o que pudesse servir de alimento. Não intervínhamos na natureza, a não ser para dela retirarmos nosso sustento. A atividade econômica visava apenas aos bens de uso imediatos e era desempenhada e dividida por todos, sem distinção. A força produtiva dessa época era, portanto, muito rudimentar. Éramos em um número bastante reduzido, dada a escassez de alimentos, e nossas relações sociais eram igualitárias, isto é, desconhecíamos a propriedade privada dos meios de produção (Engels, p. 21-25). A técnica mais importante da pré-história foi a descoberta e a preservação do fogo. Com essa descoberta houve uma inovação fenomenal na forma de elaborar os alimentos. Uma invenção estimula novas outras e, assim, foram desenvolvidos os primeiros instrumentos – machados, lanças, arco e flecha –, todos com vista à obtenção da sobrevivência. Esse momento marca também a passagem de uma dieta vegetariana para o consumo de carne, com isso contribuindo para uma evolução física extraordinária, principalmente do cérebro, que teve seu tamanho aumentado devido à proteína animal. Mas onde mais se manifestou a influência da dieta com carne foi no cérebro que recebeu, assim, em quantidade muito maior do que antes as substâncias necessárias à sua alimentação e desenvolvimento, com o que se foi tornando maior e mais rápido o seu aperfeiçoamento de geração em geração. (Engels, 1999, p.17) Figura 1 – Pintura rupestre 2 Etnografia é o trabalho de campo, o primeiro estágio da pesquisa antropológica. Consiste na observação, descrição e análise de grupos humanos considerados em suas particularidades. Antes da atividade etnológica o antropólogo se utiliza da etnografia (Assis, 2011, p. 19). https://pt.wikipedia.org/wiki/Etnografia https://pt.wikipedia.org/wiki/Antropologia_cultural https://pt.wikipedia.org/wiki/Antropologia_cultural https://pt.wikipedia.org/wiki/Antropologia_social 4 Fonte: <http://www.aluzdaluz.com.br/existe_inicio_cronologico.htm>. Essa pintura rupestre de cerca de 18.000 anos mostra cena de animal sendo caçado, sinalizando a introdução da carne na dieta humana. Embora nessa época já desempenhássemos atividades artísticas e religiosas, não existia a política no sentido de se pensar em espaços de decisão, mas já havia o poder de um líder, originado na sabedoria dos ancestrais, na coragem, firmeza e capacidade de solucionar os infortúnios e dificuldades que a comunidade demandava. Esses acontecimentos se desenrolaram no Paleolítico, período que se estendeu por cerca de dois milhões de anos até o início do Neolítico, por volta de 12 mil anos a.C. Só mais tarde, quando começam a produzir um excedente, é que os seres humanos se proliferaram, formando tribos compostas por clãs – as primeiras linhas de parentesco – e, a partir desses clãs, a família, mais ou menos da forma como a conhecemos hoje (Engels, 1978, p. 28-31). Engels, utilizando-se das pesquisas de Morgan, relata que o comunismo primitivo foi fundamental na luta pela sobrevivência da espécie humana naquela fase de desenvolvimento. Sozinhos não teríamos conseguido aperfeiçoar continuamente os instrumentos de produção como o fizemos na vida coletiva. Não exploravam uns aos outros; ajudavam-se mutuamente. Quando acontecia o enfrentamento com outros povos, os prisioneiros eram mortos e comidos. Essas atitudes não eram frutos de um planejamento prévio, consciente: ocorriam naturalmente. Para Engels, o comunismo primitivo é a fase inicial do 5 desenvolvimento de todos os povos da humanidade, o que não pode ser posto em dúvida (Engels, 1978, p. 32-36). Por força da própria evolução e para driblar a escassez de bens materiais de sobrevivência, a consciência individual começa a se constituir diferenciando- se da consciência coletiva (Durkheim citado por Quintaneiro, 1995, p. 28-30). O comunismo primitivo começa a desaparecer aos poucos, dando início à sociedade de classes. A gradual substituição da caça pela criação e domesticação de animais é um dos fatores de aumento na produção de comida, além da obtenção de peles e lã. O rebanho assinala a primeira divisão do trabalho social e o sistema de trocas com outras tribos. As forças produtivas experimentam outro extraordinário avanço com o desenvolvimento da agricultura, sendo que o cultivo de cereais criou um permanente manancial de alimentos. É também o momento em que aprendemos a confeccionar tecidos e roupas devido à produção de lã e a fundir metais como o cobre, o zinco e o estanho. O ferro e o bronze vieram mais tarde na fabricação de armas (Nunes, 1997, p. 30-34). 1.2 Da divisão da sociedade em classes Dessa etapa em diante, a produção entrou numa escala mais acelerada, marcando também o início do domínio sobre a natureza e a possibilidade de um futuro mais seguro pelo armazenamento de comida. A força do trabalho se tornou mais complexa e impulsionou o desenvolvimento de todas as áreas da produção – rebanho, agricultura, artesanato e serviços –, inovando cada vez maisos produtos, inclusive mais do que o necessário à sobrevivência. A possibilidade de um excedente social vai gerar uma mudança na nossa mentalidade, um sentimento que muitos acham necessário para se chegar à acumulação de bens: a ambição. Pela ambição conquistaríamos bens e chegaríamos à felicidade, e felicidade é a segurança com relação ao futuro, ou seja, não ter temor do futuro, da falta, do sofrimento, da privação. Se antes não havia sentido falar da propriedade dos meios de produção por não haver diferenças sociais nem divisão em classe, agora, fixados à terra pela própria propriedade do rebanho e da agricultura, sedentarizamo-nos. As condições para a produção além do que precisávamos fizeram-nos aumentar as reservas, reduzindo o risco de um eventual período de fome. As forças 6 produtivas aumentam e, com elas, a especialização. O aumento da população é uma sequência natural dessa circunstância. As diferenciações se deram a partir da divisão do trabalho entre as tribos que se dedicaram ao rebanho e as que se dedicaram à agricultura. Com o aumento de excedente há um fortalecimento do trabalho artesanal. Começa a circulação de mercadorias e, com isso, a exploração do homem pelo homem. Nas guerras, passa a ser mais vantajoso não o extermínio do inimigo, mas a transformação deste em escravo. As primeiras relações de trabalho da nossa história são de senhor e escravo, condição social que atravessará milênios, marcando o fim da comunidade primitiva e iniciando uma outra organização social – a sociedade de classes (Nunes, 1997, p. 35-36). Essa nova sociedade favorece, por outro lado, o surgimento dos primeiros filósofos. A mão de obra escrava garante o tempo ocioso de que necessitam para as reflexões que se fizeram fundamentais para o conhecimento e o autoconhecimento humano. A mais primitiva sensação de felicidade é a de posse – não a posse pelo coletivo, mas pelo indivíduo. Essa necessidade só vai nascer quando as divisões sociais, provindas dos interesses privados, prevalecerem. A consciência individual, salienta Durkheim, sempre ferirá os interesses do grupo, o bem comum fortemente protegido pela consciência coletiva até que se firme como um novo costume. A ambição – individual – desencadeou a busca de novas forças de trabalho e estimulou a competição, o que resultou em inovações técnicas e novas formas de produção. As grandes invenções e as manifestações artísticas, possíveis apenas a partir das consciências individuais, redundaram, sem dúvida, em extraordinários feitos humanos (Durkheim citado por Quintaneiro, 1995, p. 21). A diferença entre ricos e pobres surge paralelamente à diferença entre pessoas livres e escravas. A desproporção de riquezas entre os chefes de famílias terminou por destruir em todos os lugares o trabalho em grupo, a solidariedade coletiva. Os lotes de terra próprios para o cultivo foram tornando- se propriedade privada, a princípio em caráter temporário e, mais tarde, de forma irrevogável. Devido às grandes desigualdades sociais e ao crescimento do trabalho escravo, os proprietários, sempre temendo uma rebelião por parte dos dominados, engendram uma forma de dominação aparentemente impessoal, isso é, um lugar que legitimasse e salvaguardasse as leis sobre a propriedade, 7 os direitos sobre os escravos, bem como a administração pública da cidade. Essa forma de poder chamado Estado não era mais que um mecanismo de manutenção dos poderes privados sobre os pobres e explorados. 1.3 Do matriarcado ao patriarcado Segundo Engels (1978), nas sociedades primitivas a mulher é a figura central, pois dela provém a prole. A maternidade é a única relação de parentesco, visto que não existe a figura paterna e não existem relações permanentes do tipo familiar. Todos os homens são pais e maridos, excluindo, assim, a possibilidade de determinar a paternidade. Isso, segundo Bachofen (citado por Engels, 1978), ocorreu em todas as sociedades primitivas. Em decorrência disso, as mulheres desfrutavam de grande prestígio e ocupavam lugar de destaque na hierarquia do grupo, não no sentido de ter poder, mas como referência por serem as donas da prole. Ao mesmo tempo, a monogamia era considerada transgressão. É a partir do Neolítico, segundo Engels (1978), que essa relação vai se inverter. O nascimento da propriedade privada gera a herança, cujo legado deve ser deixado aos filhos legítimos (gerados de uma mulher monogâmica). É o desmoronamento do direito materno. Doravante, a mulher submeter-se-á ao direito paterno, à economia da casa, à administração do espaço privado, sem qualquer autonomia ou poder político, sem nenhuma liberdade cívica (Engels; Bachofen, citado por Queiroz, p. 64,65). Criam-se padrões de gênero que fazem do homem o mais forte, o mais inteligente, apto e capaz, destinado às funções ditas “superiores” e legitimadas pelo espaço público, do qual também é senhor. À mulher, cabem as funções “inferiores” do espaço privado. A naturalização do papel do homem como ente de poder e o da mulher como ente submisso foi uma herança da sociedade patriarcal, em que ao homem é destinada a ocupação de todos os lugares de mando. A passagem do direito materno para o direito paterno só foi possível, pois, a partir da propriedade privada e da privatização da mulher (Santos, 2009, p. 2). A Escola Histórica Materialista afirma que existência do comunismo primitivo, enquanto fase inicial do desenvolvimento de todos os povos da humanidade, não pode ser posta em dúvida. É a tese mais comumente aceita. Por outro lado, a historiografia econômica e política apresenta outros teóricos a partir da Escola Clássica, como Adam Smith, e contemporâneos, como Ludwig 8 Von Mises – que vamos estudar mais à frente –, que afirmam que o comunismo primitivo nunca existiu e que a propriedade privada e a divisão da sociedade em classe existe desde os primórdios da humanidade, sendo inerente à natureza humana. Saiba mais Neste link, a professora Ana Maria Bianchi, da Universidade de São Paulo (USP), discorre sobre o importante debate metodológico que se deu no final do século XIX entre os que apoiavam a Escola Clássica de Economia e os da Escola Histórica Alemã. Acesse: <http://univesptv.cmais.com.br/metodologia-da- economia/o-debate-de-metodos-escola-historica-versus-escola-classica>. TEMA 2 – ECONOMIA E POLÍTICA NA IDADE MÉDIA 2.1 O modo de produção feudal No mundo medieval vamos encontrar um outro modo de produção, que é bem característico desse período. O feudalismo teve início com as invasões germânicas que puseram fim ao Império Romano do Ocidente em 476. A sociedade que então se iniciava tinha a sua economia assentada numa estrutura feudal, isto é, agrária e centrada numa economia de subsistência. É caracterizada, também, pela pouca especialização e pela utilização do trabalho dos servos. A economia medieval, na verdade, regrediu para uma economia de subsistência autossuficiente, de produção fechada – isto é, nada circula em função de consumirem tudo o que produzem. A produção feita para o comércio, um pequeno excedente de produção era vendido para uns poucos mercados e comércios com pouca movimentação de pessoas. A doutrina católica era contra o lucro e usura e, mais tarde, vai se tornar um ponto de conflito entre a Igreja e a nova classe que vai surgir: a burguesia comercial. A condenação do lucro e o fato de a produção não ser voltada para o comércio era o grande entrave para o desenvolvimento dos interesses burgueses (Le Goff, 2013, p. 58). As pessoas na Idade Média viviam com muita penúria pela baixa produtividade e pela estagnação de técnicas, sempre muito rudimentares. Inovações nas técnicas de produção definitivamente estavam banidas nessa época. A sociedade reflete essa estrutura econômica, quase sem classes 9 intermediárias. Os senhores feudais,os nobres guerreiros e a Igreja Católica são os grandes proprietários de terra; o baixo clero (monge e párocos), a baixa nobreza (com pequenas extensões de terras), alguns artesãos e a maioria camponesa, presa à terra em regime de servidão, constituem a parte inferior nesse sistema de estamento. As relações de suserania – aristocracia – e vassalagem formam uma hierarquia, em cujo topo está o rei. O poder não está concentrado nas mãos do monarca, visto que cada senhor tem o domínio exclusivo em suas terras. Não havia a menor possibilidade de mobilidade social: a pessoa está presa a seu status, a sua condição social determinada pelo nascimento. O filho do senhor será um senhor, e o filho do camponês será um camponês. Nessa sociedade estamental, as camadas não se misturam. Alguns até poderiam receber títulos ou ter melhoras econômicas, mas apenas dentro do próprio estamento, não de um estamento para o outro (Le Goff, 2013, p.137; p. 441). O feudalismo é um sistema político-jurídico baseado em obrigações de serviços, de obediência e de dependência. O vassalo faz parte da classe dos guerreiros, cujo dever é proteger o suserano (senhor feudal), que, por sua vez, mantém o vassalo. Nesse período, a religião e a política começam a se mesclar, de modo que os líderes católicos começam a espalhar seu poder para além da esfera da Igreja. Antes, segundo Johnson (2001, p. 153), a Igreja se firma como poder espiritual, mas não ainda temporal, “pois o processo de integração entre Igreja e Estado, iniciado com Constantino, ainda se prolongaria, até que ambos se tornassem inseparáveis”. A Igreja só assumiria o poder temporal quando da criação, em 756, do Estado Pontifício, em Roma. É nesse período que surge a Cristandade, em que o mundo europeu gravitava apenas ao redor dos princípios cristãos impostos pela Igreja (Johnson, 2001, p. 155). A hegemonia católica só foi conseguida no pontificado de Inocêncio III, no século XIII, quando a Igreja conseguiu imenso prestígio, e quando de fato o Papa e a nobreza feudal foram colaboradores entre si. Esse é o período áureo em que a Igreja funda não só importantes universidades – como a de Bolonha (século XII), Oxford (século XII), Sorbonne (século XIII) e La Sapienza (século XIV) – como também as grandes catedrais de arte românica e gótica (Johnson, 2001, p. 276). Assim, além de doutrinar os cristãos, a Igreja cuida da transmissão do conhecimento nas escolas contíguas aos mosteiros. A palavra catedral significa 10 “assentar-se sobre algo” e mostra a sua evolução partindo das reuniões religiosas e políticas para as cátedras de ensino. Com a ascensão da burguesia, novas escolas surgem, agora administradas por intermédio da classe religiosa, inovando o ensino com a introdução de novas disciplinas, além do conhecimento religioso. A Igreja Católica foi o grande e fundamental alicerce na formação e conservação do feudalismo. Graças à sua hegemonia, a sociedade feudal manteve-se estática e hierarquizada. Dado o poder que detinha, nada acontecia em termos políticos sem a sua prévia aprovação. Assim, conseguia, via dominação ideológica, proibir qualquer liberdade de pensamento que soasse destoante do ponto de vista teocêntrico. Mantinha-se, economicamente, como a maior detentora de terra e, embora arrecadasse o dízimo, era, ainda assim, uma instituição isenta de impostos. Sua influência totalitária sobre o modo de pensar e sobre os comportamentos durou séculos. A nobreza feudal (senhores feudais, cavaleiros, condes, duques, viscondes) era sustentada pelo trabalho dos servos e também arrecadava impostos destes. Os servos, por sua vez, constituíam a base econômica da sociedade feudal. Trabalhavam a terra do senhor primeiramente, para só depois cultivarem as terras destinadas a prover suas necessidades. Esse sistema, denominado corveia, refere-se à utilização do trabalho não pago e obrigatório, além da cobrança de tributos em forma de serviços caso os servos utilizassem o moinho e o forno (Nunes, 1997, p. 39- 40). A ideologia pré-determinista difundida pela Igreja, na qual as coisas do mundo estavam dispostas tal qual a vontade de Deus, havia criado um firme ponto de referência para a estabilidade política. Somente o trabalho na terra era valorizado; os trabalhos no comércio eram fortemente rejeitados, visto que a força que os movia era a ganância, considerada um pecado capital (Johnson, 2001, p. 97). Transformações só vão surgir na Baixa Idade Média, com a retomada das rotas comerciais em virtude das Cruzadas e o aparecimento de técnicas e instrumentos mais elaborados que vão incrementar a produção. 2.2 O fim do feudalismo O feudalismo entra em processo de desagregação com o advento do comércio. A economia artesanal começa a se desenvolver nas cidades estimulando, da mesma forma, o crescimento destas. Esse período, conhecido 11 como pré-capitalismo, nasce, portanto, ainda no período feudal com pequenas rotas comerciais, o que virá a ser a formação histórica do modo de produção capitalista. Desde a época das Cruzadas a Europa vai rompendo com o isolamento dos tempos medievais e restabelecendo contato com as regiões do Oriente. O comércio ganha força no Mar Mediterrâneo. As cidades italianas são as primeiras a lucrar com esse comércio de especiarias e produtos de luxo com o Oriente. É nesse contexto do renascimento comercial e urbano que vai emergir uma nova classe social, a burguesia. A burguesia vai ter um papel fundamental no processo de transformação da sociedade feudal e na construção do mundo moderno. Essa classe, essencialmente progressista e revolucionária, vai questionar os privilégios de algumas pessoas e dignificar o trabalho como fonte de riqueza. A burguesia surge como grande defensora da liberdade de escolha, de iniciativa, de expressão e de pensamento. Vai produzir uma gradativa dissolução das características de domínio dos senhores feudais, da influência da Igreja e das relações que caracterizavam o modo de produzir. As relações sociais de produção vão ser substituídas pelas relações baseadas em ganhar dinheiro. Nos campos, a onda de revolta faz os senhores temerem pelo seu futuro. As fugas em massa para as cidades assinalam que o fim do sistema feudal servil é uma questão de tempo. Nas cidades, a produção artesanal vai se especializando num processo contínuo. Com as primeiras manufaturas e fábricas, vai surgindo o trabalho assalariado. As relações de trabalho não serão mais entre servos e senhores de terra, mas entre operários e capitalistas. Esse é o estágio inicial da nova ordem econômica que vai se instalar na Idade Moderna a partir do Renascimento: a ordem capitalista. Esse breve relato não dá conta, evidentemente, de uma época que teve quase mil anos de duração, mas os elementos narrados são essenciais para entendermos o tempo presente que se levantou após sua ruína. Saiba mais Assista ao filme O nome da rosa (de 1986, dirigido por Jean-Jacques Annaud), ambientado no interior da Itália, num mosteiro medieval do século XIV, que traz uma crítica à tendência religiosa de tudo mistificar, tornar suspeita qualquer conduta racional e impedir o acesso aos livros da filosofia clássica. Há também um questionamento sobre a necessidade de se distribuir a riqueza da Igreja. 12 TEMA 3 – O MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA 3.1 Os teóricos O filósofo e economista escocês Adam Smith é considerado o pai da teoria econômica do sistema capitalista. Seu pensamento foi fundamental para o desenvolvimento do capitalismo. Ele escreveu que “a riqueza de uma nação se mede pela riqueza do povo e não pela riqueza dos príncipes” para atacar tanto o sistema de privilégios dos senhores feudais quanto a política econômica de intervenção promovida pelos reis absolutos. Sua teoria prega o liberalismo econômico, em que os indivíduos devem ter liberdadeeconômica, isto é, a livre iniciativa e a liberdade para concorrer no mercado sem a intervenção do Estado. A acumulação de capital advinda do trabalho e da livre concorrência econômica é a fonte para o desenvolvimento econômico. Em seu livro A riqueza das nações, escrito em 1776, ele diz que a livre concorrência entre os empresários regularia o mercado e que a demanda provocaria a queda de preços, bem como que as constantes inovações tecnológicas são indispensáveis para a saúde do mercado, para o aprimoramento da qualidade dos produtos e aumento do ritmo de produção. Smith afirma que o desenvolvimento e o bem-estar de uma nação estão adstritos ao crescimento econômico e à divisão do trabalho (Comparato, 2006, p. 281). No século XIX surge nos Estados Unidos e na Europa a expressão laissez faire, laissez passer, para assinalar que o mercado deve funcionar sem qualquer intervenção do Estado, a não ser em suas diminutas atribuições, a saber, realizar serviços públicos como segurança, urbanização e saneamento, e tutelar os direitos de propriedade. Os economistas da Escola Clássica sustentam que o indivíduo possui o direito natural de liberdade, e que todo o resultado do seu trabalho a ele lhe pertence. Assim, é a ordem natural para um sistema de mercado se manter harmonioso e autorregulado. Hunt (2005, p. 294) coloca que sob a perspectiva da propriedade privada as benesses da “mão invisível do mercado” justificavam-se pela crença de que eram leis naturais e que sua distribuição era justa e correta. Clark acreditava no comportamento instintivo à propriedade privada: “O instinto de posse da terra é o motivo mais eficaz para atrair os trabalhadores para a classe possuidora de riqueza”. 13 David Ricardo foi outro autor de grande influência, tanto para os economistas da Escola Clássica quanto para os economistas da Escola Histórica/Crítica e Marxista. Ele aborda temas monetários, como o valor do trabalho e a distribuição dos valores gerados pelo trabalho, no caso as relações entre o lucro e os salários, e o comércio internacional. Para Ricardo (citado por Hunt, 2005, p. 93), “possuindo utilidade, as mercadorias recebem seu valor de troca de duas fontes: de sua escassez e da quantidade de trabalho necessária para a sua obtenção”. A riqueza de uma nação, para Ricardo e Smith, está na produção abundante de mercadorias que possam proporcionar o bem-estar da população, porque as pessoas estão sempre em busca daquilo que as faz felizes. Ambos Smith e Ricardo acreditam que a felicidade de um povo está na prosperidade econômica. Também na defesa da liberdade econômica está John Locke, com a sua filosofia política fundamentada na noção de que os governos devem ser consentidos pelos governados e devem ter como premissa que o trabalho é o fundamento originário da propriedade. Foram as ideias de Locke que ajudaram a derrubar o Absolutismo na Inglaterra, favorecendo as revoltas liberais da Revolução Inglesa, da Revolução Americana e da Revolução Francesa. No cerne da Escola Clássica está a crença de que as pessoas vivem livres e em paz no estado de natureza, ou seja, o direito à vida, à liberdade e à propriedade são direitos naturais que devem ser respeitados e garantidos pelos governos, caso contrário o povo tem o direito de se revoltar contra eles. Assim, deve se criar um contrato social a fim de impedir que haja invasão às propriedades. O contrato social promoveria a transição dos seres humanos de um estado de natureza para uma sociedade política. Nessa sociedade, as pessoas podem contestar um governo injusto, porque não são forçadas a aceitar seus arbítrios. Qualquer governo que transgrida ou deixe de proteger o direito natural, visando apenas a seus interesses e não ao bem público, é tirano e, como tal, deve ser derrubado pelo povo (Comparato, 2006, p. 205-209). É de Locke a ideia de dividir os poderes na organização do Estado, sendo o Legislativo, escolhido pelo povo, em primeiro lugar, sobrepondo-se ao Executivo e ao Federativo. Isso limitaria o poder do rei, que passaria a executar as leis deliberadas pelo Parlamento, a Casa Legislativa. O povo transferiria o 14 poder para o Parlamento, que, em troca, criaria um conjunto de instituições para garantir os direitos e punir quem violasse a obediência às instituições. Locke se distingue, portanto, do pensamento de Hobbes, para quem o homem é mau por natureza, justificando um Estado Leviatã. Enquanto para Hobbes é a violência de todos contra todos a fonte de organização do Estado, para Locke é a defesa da propriedade como principal fonte de formação do Estado, pois para ele a propriedade já existia anteriormente à formação do Estado. O liberalismo econômico de Locke prenuncia a democracia liberal da liberdade da tolerância religiosa. Decisão religiosa nenhuma deveria influenciar as questões públicas do Estado, posto que é da escolha individual a forma como cada indivíduo exercerá sua crença. A coerção do Estado por uma única forma de religião traria mais distúrbios sociais do que a permissão da diversidade. O indivíduo deve ter não apenas a liberdade econômica de política, mas a religiosa também. 3.2 A burguesia e o modo de produção capitalista O sistema capitalista surge, inicialmente, pelas atividades comerciais da classe burguesa. A história econômica identifica nesta classe os ideais que, ao mesmo tempo que desintegram o feudalismo, compõem a estrutura do capitalismo: a busca incessante pelo lucro, a concentração de riquezas, a propriedade dos meios de produção, a inovação tecnológica contínua e a ampliação dos negócios a níveis globais. A expansão do comércio se deve em parte às Cruzadas e às relações mercantis com árabes e com vikings do norte, que restabeleceram as relações entre Ocidente e Oriente. Como conceito histórico, a burguesia está associada ao termo cidadania, cujas origens estão na Antiguidade clássica. Tanto a Grécia como Roma organizaram seus espaços urbanos de maneira a formar um corpo de "cidadãos" que viviam em um espaço físico definido, integrando-os a um sistema de direitos políticos regidos por leis específicas que não eram concedidas às demais classes. Com o crescimento das cidades no fim da Idade Média, houve uma retomada da formulação clássica de cidadania. Os que não faziam parte do conjunto dos cidadãos, os pertencentes às classes inferiores, trabalhadores ou servos, passaram a ser definidos como vilãos, isto é, os habitantes da vila. 15 Na Idade Moderna, essa classe, já fortalecida pelos resultados econômicos, vai formando para si uma cultura econômica e estética muito particular, em que o trabalho, visando à busca do bem-estar e da felicidade, vai ser moralmente valorizado, em detrimento da ideia que se tinha antes, quando era concebido como castigo. Há uma valorização também da individualidade e da racionalidade humana. Por deter os meios de produção de riqueza, essa classe consegue acumular o capital que vai lhe garantir o poder político, ideológico e cultural, assim, vê na riqueza um bem a ser conquistado. Com isso, legitima o domínio sobre a classe copartícipe do sistema que criara: a classe dos trabalhadores. Na Idade Contemporânea, a burguesia ganha outros significados, originados de contextos diferentes e com ideologias políticas muito diversas. Iniciada no século XIX, vai se constituir como ideologia política e econômica burguesa, e vai transformar o capitalismo em sistema hegemônico, fortalecido pelo sistema bancário, pelas poderosas corporações financeiras e pela globalização dos mercados. Graças à economia de mercado e aos mercados globalizados, as grandes corporações se espalharam pelo planeta, visando sempre à redução dos custos de produção e de mão de obra, bem como a colocação de seus produtos no maior número possível de países. A burguesia comercial nasceu acompanhandoo crescimento de grandes centros urbanos, como Veneza, Florença e Gênova, tendo o mercador como personagem central. Como integrantes do cenário urbano, a burguesia dispunha de certa liberdade, uma vez que não pertencia ao sistema de obrigações vigentes na estrutura feudal, como os vassalos e os servos, nem se sentia presa à sua origem social. O comércio se amplia rapidamente à medida que a demanda aumenta e isso leva “a um crescente controle do processo produtivo pelo capitalista comerciante” (Hunt, 2005, p. 11). A figura multifuncional do comerciante do fim da Idade Média está na base da construção do mundo moderno burguês, bem como do Novo Mundo. O protagonismo da burguesia a partir da prática mercantil vai construir um mundo profundamente diferente, calcado em valores individuais e materiais. Aos poucos, a burguesia vai afastando os nobres das suas atividades e tomando o seu lugar em todas as funções públicas, constituindo-se numa nova classe de mando político, econômico, administrativo e cultural. 16 A história da burguesa não está dissociada da figura do artesão. As corporações de ofício (sapateiros, alfaiates, pintores, chapeleiros, marceneiros etc.) e associações independentes estão ligadas ao processo do desenvolvimento mercantil nas cidades. Comerciantes e artesãos se articulam, de forma a garantir seus interesses e privilégios. No topo da hierarquia das corporações estava o artesão-mestre, conhecedor de todos os segredos do seu ofício. Era proprietário da oficina e das matérias-primas, e tinha total domínio de todas as etapas da produção, desde a escolha dos materiais até a venda. Na outra ponta está o comerciante. Com o alargamento das zonas de comércio, aumenta a dificuldade do artesão em chegar até a sua clientela. O comerciante se incumbe cada vez mais da tarefa de levar o produto até os mais distantes mercados. Com o aumento da demanda, o comerciante se ocupa, agora, de fornecer a matéria-prima, obrigando o artesão e ocupar-se apenas da produção. A exigência cada vez maior de se produzir mais rapidamente desencadeará um dos fenômenos centrais da Idade Moderna: a Revolução Industrial e o surgimento da burguesia industrial. A Revolução Industrial ocorreu entre 1760 até meados do século XIX. É considerado o fenômeno mais importante desde a Revolução Neolítica. A transição da produção artesanal para a produção por máquinas transformou a perspectiva que se tinha da vida até então. A qualidade de vida começa a atingir patamares sustentáveis nunca vistos, proporcionados pelo crescimento econômico das economias de mercado. Contudo, a Revolução Industrial mudou drasticamente a economia artesã. Com o advento da indústria, o artesão perde inexoravelmente sua força econômica, dada a impossibilidade de competir com a máquina. Passam a ser, então, trabalhadores assalariados sob o controle de um patrão. Perdem o controle do processo produtivo, uma vez que a produção passa a ser fragmentada e especializada, e perdem também a posse das ferramentas e da matéria-prima, passando, doravante, a operar as máquinas pertencentes ao proprietário dos meios de produção e do lucro (Nunes, 1997, p. 89-97). Países que romperam com o Vaticano, aderindo à Reforma Protestante, tiveram papel de protagonismo neste processo. A Revolução Industrial foi a pá de cal no processo de desintegração da sociedade feudal. A mão de obra cada vez mais solicitada pela fábrica esvaziava irreversivelmente o campo. Foi também a grande força desarticuladora das 17 corporações de ofícios. A Inglaterra foi o país hegemônico nesse período, estabelecendo relações internacionais com vários países via tratados econômicos muito vantajosos para o seu mercado interno. A política econômica liberal implementada pela Inglaterra permitiu a entrada de novos competidores no mercado, e a indústria entrou num processo de inovação tecnológica sem precedentes (Nunes, 1997, p. 47-52). Neste primeiro momento do funcionamento da economia de mercado, o pensamento liberal de Smith se comprova. O lucro do capitalista só virá com produtos bons e baratos – logo, competitivos –, o que, no fim, acabaria contribuindo com a coletividade. Para isso, junto com a Revolução Industrial, começam a vigorar conceitos tais como liberdades individuais, liberdade religiosa e civil e o direito de livre iniciativa. No caso francês, a estratégia ideológica nasce com a razão iluminista de liberdade, igualdade e fraternidade, princípios postos na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, contra a política de privilégios da nobreza. O capitalismo foi, assim, afirmando-se como um sistema econômico que se diferenciou dos anteriores por concentrar a propriedade privada dos meios de produção, por toda e qualquer atividade econômica visar exclusivamente o lucro e por introduzir o trabalho assalariado. O capitalismo é baseado em uma economia de mercado em que a tomada de decisão e o investimento são determinados pelos proprietários empresários, enquanto os preços e a distribuição de bens são determinados pela livre concorrência no mercado. No entanto, para a sua consolidação como sistema econômico dominante, houve, desde o início, a necessidade da criação e manutenção de um quadro jurídico e instituições políticas e econômicas que propiciassem o seu desenvolvimento. A Revolução Inglesa e a Revolução Francesa, bem como outras revoluções liberais, foram bem-sucedidas ao desestruturar o sistema feudal, religioso e absolutista. Graças a isso trouxeram relativos progressos para o campo econômico, político e dos Direitos Humanos. O modo de produção capitalista conferiu poder econômico e político para a burguesia graças a um sistema jurídico estatal criado à sua imagem e semelhança. O crescimento econômico se deu pela concentração nas mãos de uma classe, a burguesa, o que acabou provocando a sua antítese, a outra face da riqueza apropriada: a classe proletária, explorada e miserável, e a organização dos trabalhadores em sindicatos, unidos em tornos das doutrinas socialista. https://pt.wikipedia.org/wiki/Economia_de_mercado https://pt.wikipedia.org/wiki/Concorr%C3%AAncia_(economia) 18 Saiba mais Neste link, o prof. Julio Pires explica as teorias econômicas do valor e do valor de trabalho em Adam Smith e Karl Marx: <https://www.youtube.com/watch?v=M4WcIHvtWPY>. TEMA 4 – O MODO DE PRODUÇÃO SOCIALISTA 4.1 As doutrinas socialistas De acordo com os historiadores e teóricos do socialismo, as doutrinas socialistas surgiram porque, mesmo com o vertiginoso crescimento da economia capitalista, não houve uma justa distribuição de renda, isto é, o trabalho era extremamente explorado e muito mal remunerado. O acúmulo do capital não tinha limites, e a tendência inexorável do capital de se acumular e de se concentrar nas mãos de uma parcela cada vez mais restrita da população faz, em nossos dias, confirmar a sombria profecia de Karl Marx (Piketti, 2013, p. 17). O grande questionamento era muito simples: De que serve o desenvolvimento industrial, de que servem todas essas inovações tecnológicas, todo esse esforço, todos esses deslocamentos populacionais se ao cabo de meio século de crescimento da indústria, a situação das massas continua tão miserável quanto antes? (Piketti, 2013, p. 16) Estava clara a incapacidade do sistema econômico e político capitalista de dar conta de equilibrar a desigualdade econômica e social. Pelo menos para a classe dos trabalhadores, no século XIX, essas questões estão muito evidentes, dado o seu estado de penúria. Comparato (2006, p. 343) observa que Marx anteviu que a apropriação do saber tecnológico pelo empresário capitalista é o grande fator de concentração de poder em suas mãos, poder que, ao criar um mercado mundial, transforma o conjunto das relações e instituições sociais nos quatro cantos da Terra. A tecnologia crioua era da incerteza e da instabilidade universal, com a rápida dissipação de tudo o que é estável e permanente. Esse é o momento em que o capitalista toma consciência da dimensão econômica da ciência aplicada em benefício das vantagens competitivas. O saber tecnológico alheio é incorporado ao capital da mesma forma que o trabalho alheio. A opinião pública não se levantará contra essa condição desigual e opressora por ser, ela mesma, manipulada pela tecnologia da comunicação de massa, esta também controlada pelo empresário capitalista. Ou seja, o https://www.youtube.com/watch?v=M4WcIHvtWPY 19 capitalismo, ao se concentrar, “desumaniza o homem, na sua dupla condição de animal racional, pela exploração do trabalho físico e intelectual” (Comparato, 2006, p. 343-344). Ao contrário dos teóricos do capitalismo, do liberalismo econômico e do Estado mínimo, os autores socialistas não defendem a propriedade privada dos meios de produção como coisa sagrada, na qual só as pessoas virtuosas e com capacidade de iniciativa acumulariam capital, e os esbanjadores irracionais nada teriam no curso de suas vidas. Tampouco defendem que a desigualdade econômica é da natureza, em que só os mais aptos chegariam ao topo da pirâmide social. Também não reconhecem o mérito como justificativa para ser bem-sucedido financeiramente. Antes, colocavam questões sociais para a divisão entre capital e trabalho, e defendiam que o desenvolvimento da indústria moderna enfraquece e desumaniza a classe que trabalha, apropriando-se do lucro produzido pelos trabalhadores. Ao pregar a satisfação completa das necessidades materiais e culturais da sociedade – emprego, habitação, educação, saúde –, o socialismo se apresenta como humanista. Para que isso seja possível, deve-se implantar a propriedade social dos meios de produção, isto é, os meios de produção deverão ser públicos ou coletivos, não existindo empresas privadas – não havendo, portanto, separação entre proprietário do capital (patrão) e proprietários da força do trabalho (empregados). Isso não significa a erradicação das diferenças sociais entre as pessoas. Salários diferenciados sempre existirão, em função de o trabalho ser manual ou intelectual. Para Rousseau, o grande mal da modernidade era a civilização burguesa, com sua moral do lucro, da acumulação de bens, dos hábitos luxuosos e da invenção de necessidades artificiais. No Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, ele critica as instituições burguesas e ataca o privilégio de uns poucos em detrimento da maioria pobre, como se o fato de serem ricos os fizesse mais honrados, mais poderosos que os outros. Rousseau foi o primeiro pensador moderno a denunciar a riqueza como privilégio e não como algo inerente à natureza humana. A propriedade privada era, nesse sentido, a raiz de todos os problemas sociais: O primeiro que, havendo cercado um terreno, teve a ideia de dizer isto me pertence, e encontrou gente bastante simples para acreditar nele, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras, homicídios; quantas misérias e quantos horrores não teria poupado ao 20 Gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou aterrando os valados, tivesse gritado aos seus semelhantes: não ouçam esse impostor; vocês estarão perdidos, se se esqueceram de que os frutos pertencem a todos e de que a Terra não pertence a ninguém. (Rousseau, 1997, p. 87) Esse pensamento foi considerado pela academia de Dijon excessivo e insuportável, totalmente ao contrário da obra política de John Locke, que afirmava ser a propriedade privada um direito natural do indivíduo e um dos fundamentos da sociedade civil. Rousseau concordava com Locke, desde que a propriedade privada fosse considerada um direito humano e não um direito natural. Como um direito humano, a propriedade privada era sagrada, como direito natural, ela era um fator de opressão. N’O contrato social, no capítulo sobre a democracia, Rousseau escreve que “nada há de mais perigoso do que as influências dos interesses privados nos negócios públicos; e o abuso das leis pelo Governo é um mal menor do que a corrupção do Legislador, consequência da preponderância dos interesses particulares” (Rousseau, 1983, p. 48). Uma crítica à concentração de renda nas mãos da burguesia à custa da exploração do trabalho operário foi escrita por John Stuart Mill, no século XIX (citado por Hunt, 2005, p. 185): Os ordenamentos sociais da Europa moderna começaram com uma distribuição da propriedade não só pela iniciativa privada, mas também da conquista e da violência; não obstante o que a capacidade pessoal tem feito para modificar a ação pela força, o sistema ainda retém muitos traços significativos de sua origem. As leis da propriedade ainda não estão de acordo com os princípios em que se assenta a justificativa da propriedade privada. Mill, segundo Hunt (2005, p. 186), condenava moralmente os efeitos da concentração da propriedade dos meios de produção nas mãos de uma pequena classe capitalista. Observou que isso criava uma classe aproveitadora, que vivia luxuosamente e cuja renda não tinha qualquer ligação necessária com a atividade produtiva. Assim, a estrutura de classe não era assentada sobre relações sociais justas, uma vez que a concentração de riqueza nas mãos de uma diminuta classe se dava pela privação da maioria. Assim, para Mill o socialismo era moralmente preferível ao capitalismo, mas apenas quando o caráter das pessoas tivesse melhorado, pois uma sociedade socialista só é possível quando a civilização tiver alcançado seu ponto máximo de humanidade. O que Mill queria dizer é que enquanto a luta competitiva por riqueza ocupasse as cabeças de ricos e pobres, o socialismo não poderia ser 21 implantado. Com os interesses capitalistas ocupando o Estado mínimo, a economia se livra de qualquer limitação ao lucro. Na relação capital/trabalho está a extração da mais-valia que, segundo Marx, é a brutal diferença entre o salário pago e o valor do trabalho produzido. Para que esse sistema se viabilizasse, os burgueses não hesitaram em controlar territórios, colonizar regiões e provocar grandes guerras. Como dona dos meios de produção, a burguesia está em menor número, contudo, possui muito mais poder sobre um proletariado muito mais numeroso, que vende a única coisa que possui – a sua força de trabalho – ao patrão, e resta sem poder algum. A burguesia revolucionou o modo de produção. A partir daí, o proletariado, como classe consciente de seu papel histórico, quer fazer a sua revolução também. A burguesia conquistou a soberania política exclusiva no Estado representativo moderno, pedra fundamental para as monarquias virarem Estado Nacional. A burguesia lança o tema da meritocracia, e isso é revolucionário para a época, pois ultrapassa a velha concepção de que nascer pobre significa morrer pobre. A pauta burguesa de ascensão social pelo esforço, pela liberdade de escolha e livre iniciativa é a nova crença. Para isso, era necessário um movimento tendente à uniformização universal de costumes, valores e expressões culturais. À vertiginosa transformação das técnicas de produção e distribuição o capitalismo acrescentou uma profunda alteração na vida ética dos povos e, nesse sentido, a burguesia exerceu uma função iminentemente revolucionária (Comparato, 2006, p. 416). A burguesia, que passou séculos combatendo o Estado e a política, chega, contudo, a um determinado momento em que ela se apropria de ambos para fazer valer seus interesses. A consciência dos problemas de sua classe une os trabalhadores em defesa dos seus direitos. A luta de classe é política. Nasce a luta por salários dignos, por jornadas humanizantes, por condições de vida socialmente justas. É pelas mãos do socialismo que se verificam os primeiros registros de conquista emprol da justiça social, da política como ação de inclusão social de populações inteiras. As lutas sociais denunciam bairros operários, lúgubres e infectos. Denunciam a massa de trabalhadores que a indústria não pode absorver e que formam agora um grupo perigoso, cuja violência é movida pela fome. Nunes (1973, p. 133-134) transcreve uma dessas denúncias que constam nos inquéritos escritos pelo médico sanitarista Villermé: 22 Em Mulhouse – escreve Villermé – as oficinas abriam às cinco horas, com uma hora e meia para o almoço [...]. Em Ruão, a jornada normal é de 15 horas e meia, mas os operários da tecelagem de algodão chegam a trabalhar 17 horas. Na fiação de algodão, cerca de 30% dos operários eram crianças, metade das quais com idades compreendidas entre 6 e 10 anos. Nem por isso a sua situação era mais favorecida: permanecem 16 a 17 horas em pé por dia, quase sem mudança de lugar ou de posição. Esta tortura é infligida a crianças de 6 a 8 anos, mal alimentadas, malvestidas, obrigadas a percorrer, desde as cinco horas da manhã, a distância enorme que as separa das oficinas. Junto à multidão de mulheres pálidas, magras, caminhando descalças no meio da lama, há um número maior de crianças sujas, cobertas de andrajos engordurados pelo óleo que das máquinas cai sobre eles enquanto trabalham. Trazem nas mãos sob a roupa, como podem, o pedaço de pão que os alimenta até à hora do regresso a casa. Algumas famílias preferem albergar-se de qualquer modo nas cidades, em bairros sombrios e superlotados, insalubre e em condições de promiscuidade. A degradação moral, o alcoolismo e a prostituição começam a fazer parte da nova classe que a indústria criou, a classe operária. A miséria, o desemprego, as altas taxas de mortalidade e as doenças profissionais crescem à margem do desenvolvimento capitalista. Cresce também a consciência de que a acumulação de riquezas provoca a acumulação das aflições e das misérias. A dilapidação do capital humano com o trabalho infantil escancarava uma sociedade ameaçada por uma população desamparada e sem princípios. Esses fatos incitaram o Estado a abandonar sua política de não intervenção e anunciar algumas leis sociais, dentre elas a que regulamentava o trabalho infantil nas fábricas: 8 anos para admissão e a proibição do trabalho noturno ou perigoso. Mas a partir dos 12 anos as crianças poderiam trabalhar 72 horas por semana. Todavia, tais leis nunca foram aplicadas, por estarem em desacordo com a ordem do liberalismo econômico (Nunes, 1997, p. 135). Revoltas espontâneas começaram a explodir como resposta ao desespero dos proletários na década de 1840. Isolados do Estado, sozinhos em suas necessidades, “começam a agitar-se para sair desta solidão desesperada e, como os bárbaros, aos quais já foram comparados, meditam, talvez, uma invasão” (Nunes, 1997, p. 137). Um Ministério do Trabalho que proteja legalmente as conquistas da classe operária – jornada, salário e sufrágio universal – é o objeto da luta. Jornais operários se multiplicam como estratégia de fortalecer o movimento, na crença de que apenas no socialismo haveria uma meritocracia autêntica, segundo a capacidade de cada um. A burguesia sempre reagiu violentamente no sentido de identificar e perseguir os ideais socialistas no meio operário, abolindo por completo qualquer esperança de justiça social. O Partido da Ordem, burguês, conclamava 23 diariamente pela imprensa burguesa que o povo tomasse o seu partido, dominando ideologicamente e mascarando a violência da luta de classe. Como um conjunto de relações sociais, o socialismo é definido pelo grau em que a atividade econômica na sociedade é planejada pelos produtores associados, de modo que o produto excedente produzido por ativos socializados é controlado por uma maioria da população por meio de processos democráticos. A venda da força de trabalho deixa de existir para que todos participem dos processos de decisão sua cooperativa como membros. Ninguém exercerá o poder na divisão social horizontal do trabalho. A responsabilidade pela produção seria de cada operário, e o incentivo pela autonomia o faria cada vez mais criativo e com espírito de grupo, uma vez que é parte interessada na sua instituição. Saiba mais Confira os vídeos a seguir. <https://www.youtube.com/watch?v=m93ihi0DIgE> <https://www.diariodocentrodomundo.com.br/video-quem-e-socialista-pode-ter- iphone/> TROCANDO IDEIAS A ideia de enriquecimento humano por meio do progresso é algo muito recente na história da humanidade, própria do progresso tecnológico, industrial e político. A vontade humana de se livrar do opressor é sempre justa e legítima. Foi assim com a burguesia. A liberdade, a vida digna, a felicidade devem ser um ideal de todos, porque se só alguns conseguem, significa apenas que a opressão mudou de mãos. A reflexão que fica desta aula é que o progresso não deve vir a qualquer preço, favorecendo classes e não a sociedade de forma geral, sob o risco de nunca nos livrarmos do grande mal da atualidade: a pobreza. Assim, o progresso deve vir acompanhado de políticas públicas e humanistas, em que o crescimento econômico não exacerbe os egoísmos individuais e em que as relações de classe sejam marcadas pela solidariedade moral como fonte de integração social. Quando o crescimento econômico não vem acompanhado de justiça social, a sociedade começa a apresentar indicadores de um mal-estar. A divisão do trabalho dentro de um sistema econômico não deve significar desigualdade entre as partes, mas solidariedade e sentimento de 24 interdependência. Se os conflitos entre capital e trabalho não buscarem o equilíbrio, o resultado será a crise econômica, social e moral, em que uma das partes lutará para superar a outra. NA PRÁTICA Adam Smith e Karl Marx partem da premissa de que o trabalho é o verdadeiro gerador de riquezas. No entanto, os dois autores divergem quanto ao posicionamento que o Estado deve ter quanto às relações de trabalho. Compare as afirmações dos dois pensadores à luz da Escola da Economia Clássica e da Escola Histórica, assistindo à aula da professora Ana Bianchi, no link a seguir: <http://univesptv.cmais.com.br/metodologia-da-economia/o-debate-de- metodos-escola-historica-versus-escola-classica>. FINALIZANDO Esta aula teve por objetivo mostrar os principais fatos que nos auxiliam na compreensão da história econômica e política ocidental. Esperamos que você, aluno, tenha desenvolvido um olhar crítico para o entendimento da nossa sociedade, para além de suas aparências e superficialidades. Aprender a pensar sobre nós mesmos, enquanto sujeitos sociais, constitui a verdadeira chave da mudança. 25 REFERÊNCIA COMPARATO, F. Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. ENGELS, F. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1978. ______. O papel do trabalho na transformação do macaco em homem. [S.l.]: e.BooksBrasil.com, 1999. Disponível em: <http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/macaco.pdf>. Acesso em: 15 jun. 2018. EXISTE um início cronológico? A luz da luz. Disponível em: <http://www.aluzdaluz.com.br/existe_inicio_cronologico.htm>. Acesso em: 15 jun. 2018. HUNT, E. K. História do pensamento econômico: uma perspectiva crítica. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005. MARX, K. O manifesto do partido comunista. Petrópolis: Vozes, 1988. NUNES, A. J.A. Os sistemas econômicos. Coimbra: Editora Universidade de Coimbra, 1997. PIKETTY, T. O capital no século XXI. São Paulo: Círculo de Leitores, 2013. QUINTANEIRO, T. Um toque de clássicos. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1995. ROUSSEAU, J. J. Ensaio acerca do entendimento humano. In: Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1997. SANTOS, S. C. M. dos. A herança patriarcal de dominação masculina. In: CONGRESO DE LA ASOCIACIÓN LATINOAMERICANADE SOCIOLOGÍA, 27.; VIII JORNADAS DE SOCIOLOGÍA DE LA UNIVERSIDAD DE BUENOS AIRES, 8., 2009, Buenos Aires. 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