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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA DEPARTAMENTO DE LITERATURA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA DOUTORADO EM LITERATURA A COLUNA SOCIAL COMO GÊNERO DE FOFOCA Paula Francineti da Silva SETEMBRO/2010 8 UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA DEPARTAMENTO DE LITERATURA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA DOUTORADO EM LITERATURA A COLUNA SOCIAL COMO GÊNERO DE FOFOCA Paula Francineti da Silva TESE APRESENTADA À UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA COMO REQUISITO PARCIAL PARA A OBTENÇÃO DO GRAU DE DOUTORA EM LITERATURA, EM CUMPRIMENTO ÀS NORMAS DA PÓS-GRADUAÇÃO DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA, SOB A ORIENTAÇÃO DA PROFESSORA DOUTORA CINTIA CARLA MOREIRA SCHWANTES SETEMBRO/2010 9 DEFESA DE TESE SILVA, Paula F. A coluna social como gênero de fofoca. Universidade de Brasília, Departamento de Literatura. Programa de Pós-graduação em Literatura/2010 BANCA EXAMINADORA Professora Doutora Cíntia Carla Moreira Schwantes Orientadora Professora Maria Isabel Edom Membro Professor Rildo Cosson Membro Professor Dione Oliveira Moura Membro Professor João Vianney Cavalcante Nuto Membro Professora Regina Dalcastagné Suplente Defendida em 15/10/2010 Conceito: Aprovada 10 AGRADECIMENTOS No percurso de nossa existência várias pessoas passam pela nossa vida. Muitos deixam sua contribuição e se vão. Para estas pessoas, alguns mesmo ausentes fisicamente, deixaram sua lembrança e me fazem acreditar no ser humano, é especialmente para eles que vão os meus agradecimentos. À Parentela À amiga Giana pela leitura perscrutante e valiosas sugestões. Ao Ragna e sua contribuição para elucidar o meu parco inglês. À Bethe Cancelli por ter despertado a minha curiosidade sobre o tema. Às amigas Luceli e Márcia Grassi pelo apoio e carinho. Ao casal Nivalda e Alexandre, amigos de sempre. À professora Cíntia que mais do que orientadora foi uma grande amiga. À Zirsa por disponibilizar os seus ouvidos nos longos desabafos. À Ione por ter assumido as tarefas da casa e me liberar para o exercício do pensar. Aos amigos da Secretaria de Educação (CEAD/CESAS) pelo incentivo e coragem. À Banca Qualificadora representada pela professora Isabel Edom e pelo professor Ricardo pelas preciosas sugestões. Enfim, para todos, e são muitos, os que não estão nomeados, mas que me incentivaram e me ajudaram na conclusão do trabalho. 11 OFERECIMENTO Às minhas filhas, meu baluarte. 12 RESUMO O presente estudo parte da compreensão da coluna social como gênero de mexerico e por isso, como expressividade do diálogo cotidiano, como intersecção de vozes que, mais do que uma relação com a matéria narrativa, constitui-se como uma relação com o mundo. O corpus é constituído pelas colunas sociais editadas pelo jornal O Globo entre os anos de 1987 e 1989. A análise foi feita a partir de uma amostra composta pelos jornais publicados de janeiro de 1987 a outubro de 1988, totalizando 1654 notas. A delimitação cronológica justifica-se por ser este um período em que o país estava dando os primeiros passos para a retomada do poder político pelos civis, o que em parte determinou a existência de duas colunas sociais no mesmo jornal. O resultado da análise nos levou ao primeiro capítulo: “A coluna social como gênero de fofoca”, em que será enfocado o conceito de fofoca e sua relação com o texto da coluna social. No segundo capítulo, “A coluna social como repertório de memória”, procurou-se analisar as práticas discursivas como um processo dialógico, entre uma multiplicidade de vozes presentes ou presentificadas no texto e por isso, atualizadora da memória individual e coletiva. No terceiro capítulo, “O riso na Assembléia Nacional Constituinte (1987-1988)”, a partir das notas da coluna sobre o transcorrer do trabalho legislativo, foi possível apreender o riso, revelador das contradições e ambivalências do período. Como conclusão, o texto da coluna se apresenta como uma prática discursiva repleta de memória, que nos faz rir de nós mesmos. PALAVRAS-CHAVE Coluna social – Gêneros discursivos – memória – riso – Assembléia Nacional Constituinte de 1987 -1988. 13 ABSTRACT This study departs from the understanding of the fait divers as a gossip genre and thus as an expression of daily life conversations, with an intersection of voices that, more than a relationship with its narrative maters, constitutes itself as a relationship with its surroundings. The corpus is formed by the fait divers published by O Globo newspaper between 1987 and 1988. The analysis took a sample on the newspapers published from January, 1987, to October, 1988, summing up to 1654 notes in the fait divers. The chorological cut is justified by the fact that, in that moment, the country was trying its first steps to end the military dictatorship, with civilians taking back the control of the political life, which partly determined the existence of two fait divers columns in the same newspaper. The results of these analyses lead us to the first chapter, “A coluna social como gênero de fofoca”, in which we focus in the concept of gossip and its relation with the journalistic text. In the second chapter, “A coluna social como repertório de memória”, we aimed to analyze the discursive practices as a dialogical process, among a muliplicity of voices, either present or presented in the text and thus, actualizing the colective as well as personal memory. In the third chapter, “O riso na Assembléia Nacional Constituinte (1987-1988)”, departing from the notes in the column during the legislating works at the National Congress, it was possible to perceive the laugh as revealing the contradictions and ambivalences proper of that period. Ultimately, we identified the discourse produced in the fait divers as a repertoire of memory that, in a hilarious form, made us laugh of ourselves. KEY WORDS: Fait divers – Discursive genres – memory – laugh – Assembléia Nacional Constituinte de 1987 -1988. 14 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 15 I A COLUNA SOCIAL COMO GÊNERO DE FOFOCA .............................................. 22 1.1 Origem da coluna social ................................................................................................ 32 1.2 Os gêneros na coluna social ............................................................................. 36 1.3 As colunas do jornal o globo ............................................................................ 43 1.3.1 A coluna de Sued ................................................................................................ 46 1.3.2 A coluna de Swann ............................................................................................. 54 1.3.3 O estilo nas colunas ............................................................................................ 76 II A COLUNA SOCIAL COMO REPERTÓRIO DE MEMÓRIA ................................ 82 III O RISO NA ASSEMBLÉIA NACIONAL CONSTITUINTE (1987-1988) ............. 114 3.1 O humor caricatural na coluna social ............................................................. 141 CONCLUSÃO ..................................................................................................................... 151 FONTES E REFERÊNCIAS ............................................................................................. 156 ANEXOS .............................................................................................................................. 163 ANEXO 1: Total de notas entreos anos de 1987 e 1988 ........................................ 163 ANEXO 2: Distribuição temática das notas das colunas do jornal O Globo ............ 164 ANEXO 3. Paralelo entre a coluna de Sued e a coluna de Swann no ano de 1987 .. 165 ANEXO 4: Paralelo entre a coluna de Sued e a coluna de Swann no ano de 1988 .. 165 ANEXO 5: Cobertura feita pelas duas colunas sobre as temáticas: social e política166 ANEXO 6: Os temas sociais e políticos na coluna de Sued .................................... 166 15 INTRODUÇÃO Conta Heidegger (1998) que certa vez, estranhos chegaram à casa de Heráclito para saber o que fazia um grande pensador. Ao entrarem, viram-no aquecendo-se junto ao forno. Ali permaneceram de pé, impressionados por ser um lugar tipicamente cotidiano e irrelevante. Neste lugar cotidiano Heráclito mostra, além do mais, toda a sua indigência. Com o olhar decepcionado, os curiosos perderam a vontade de se aproximar um pouco mais. O que estavam fazendo ali? Qualquer um pode, a qualquer momento, encontrar na sua casa essa necessidade cotidiana e sem graça de aconchegar-se ao forno quando se sente frio. Para que então visitar um pensador? Heráclito lê nas suas fisionomias a curiosidade decepcionada. Por isso os encoraja, convidando-os a entrar com as palavras: “mesmo aqui, os deuses também estão presentes”. A lembrança acima é elucidativa uma vez que a coluna social no jornal é, geralmente, vinculada à frivolidade e superficialidade. Esta visão corriqueira da coluna social resiste às tentativas de análise científica. Assim, optamos por um estudo da coluna social como um gênero de fofoca. A temática surgiu da constatação de que, apesar de a coluna social ser considerada um segmento não expressivo do jornal impresso diário, torna-se evidente que, em nenhum lugar do planeta, surgiu um jornalismo tão vigoroso e voltado para a alta sociedade quanto no Brasil. Ademais, geralmente ela é inserida na parte que os jornais destinam aos eventos culturais. Porém, a opção de analisar a coluna social como gênero de fofoca provocou um outro emaranhado: como tratar um tema que é uma parte de nossa experiência imediata sem perder o caráter científico exigido pela academia? Restavam dois caminhos. O primeiro era tentar evitar a perda da cientificidade diante da obviedade do corpus, e o segundo, procurar não comprometer a compreensão ao não atingir o núcleo central e levar a uma espécie de fatalismo interpretativo. A principio optamos pelo mapeamento do estudo sobre a fofoca, constatando que ela não é desconhecida da literatura científica. Ela aparece nas sociologias urbana, das comunidades, da família, das profissões, de grupos e das organizações; ela também aparece no direito, na antropologia, na psicologia social, sociopatologia e é também objeto de estudo da linguagem, dentre outras áreas. Apesar de existir uma literatura em que a fofoca é utilizada como um meio de retratar o cotidiano de grupos sociais, vilarejos ou vizinhança urbana, o 16 fenômeno da fofoca é visto sempre de forma superficial e marginal, um tema entre muitos outros. A possibilidade de tratar uma questão empírica, como a fofoca, se tornou viável com o método de pesquisa de campo, conhecido como etnografia ou observação participante. O caráter essencial deste método é a participação de longo prazo na vida social do grupo, instituição ou ambiente de pesquisa. Método inaugurado por Malinowski (1976) e sua pesquisa sobre as ilhas Trobriand, a sua vivência com os habitantes da ilha lhe assegurou a compreensão da mentalidade e do comportamento dos nativos. Esta inserção levou Malinowski a preencher com “carne e sangue o esqueleto vazio das construções abstratas” (Malinowski,1976, p. 17). Neste trabalho procuramos efetivar uma espécie de etnografia histórica, ou seja, não será a nossa própria observação que servirá de base para a descrição, mas sim a coluna social, entendida como um documento escrito que retrata a vida cotidiana e fofoca da elite social 1 . Então vamos à nossa fonte de pesquisa. Num primeiro momento, o foco da investigação centrou-se na compreensão do texto da coluna, confrontando-o com os estudos sobre os gêneros jornalísticos. Nessa confrontação, foi possível identificar, na coluna, uma aglutinação de diferentes gêneros jornalísticos. A identificação dos diversos gêneros conduziu à reflexão de Geertz (2008) acerca da indistinção dos gêneros no pensamento social, que tem levado à desordem dos vários tipos de discurso, ao ponto de diluir as fronteiras entre as categorias de textos, resultando em trabalhos com objetivos os mais variados e elaborados de formas as mais diferentes. Isso com o propósito de mostrar que o cientista social, não necessariamente, deva moldar o seu trabalho de acordo com um método, mas sim de “acordo com as necessidades que estes apresentem e não para satisfazer percepções externas sobre aquilo que devem ou não fazer” (Geertz, 2008, p. 28). Ciente dessa dispersão dos estilos e gêneros passamos a buscar a origem da coluna social, encontrando-a no século XVII, juntamente com a criação das primeiras oficinas de impressão e a publicação dos primeiros pasquins, período de surgimento das indústrias da mídia com o desenvolvimento das técnicas de impressão. 1 Para o conceito de elite social apropriou-se de Pareto (1984), segundo o qual elite é toda e qualquer classe restrita (numerus clausus) de indivíduos que possuem bens de valor, em virtude de sua raridade e escassez. Estes bens podem ser de natureza econômica ou cultural. 17 Entretanto, a sua consolidação como gênero jornalístico vai ocorrer no século XIX e coincidir com o crescimento das indústrias da mídia e a expansão do mercado jornalístico. Tema enfocado por Thompson (2008), que destaca três razões para esse crescimento: a transformação das instituições da mídia em interesses comerciais de grande escala; a globalização da comunicação e o desenvolvimento das formas de comunicação mediadas, que vão transformar a vida social e política e alterar a concepção do que é público e do que é privado. Em consequência, são diluídas as fronteiras entre o que é público e o que é privado, ocorrendo, geralmente, uma invasão do privado no público, já que público passa a ser tudo o que pode ser enfocado pela mídia, inclusive questões que eram de cunho privado. Desse prisma, não se pode desconsiderar o impacto dos meios de comunicação – não apenas no intuito de transmitir informações, mas no que se refere à criação de novas formas de ação e de interação no mundo social, a novos tipos de relações sociais e a novas maneiras de relacionamento do indivíduo com os outros e consigo mesmo. Neste sentido, a realidade é compreendida além de uma superfície lisa, e o acontecimento, em especial, não existe de per si. O jornalista não é aquele sujeito exterior e distante, armado de uma independência, de uma neutralidade sem falhas, e o jornal não é uma mera estrutura tecnológica particular. Isso quer dizer que, com características que o identificam e lhe conferem propriedades específicas, o discurso jornalístico é, ele mesmo, lugar de influências que se dão tanto em sua própria discursividade, pela absorção de falas do cotidiano, quanto lugar de influência de falas e discursos outros. O poder de síntese do discurso jornalístico é, muitas das vezes, bem mais um modo de ocultação e silenciamento de significados e significações do que de esclarecimentos ou de difusão de informações produzidas pela sociedade. Nele, discursos e sentidos podem estar ocultos ou mesmo silenciados, mediante um processo de escolha, seleção e edição que vai nortear os leitores. Na busca da principalidade do evento jornalístico, perde-se, usualmente, o fundamental: ou se o esconde, ou se o escamoteia, ou seo dilui. A partir deste entendimento observamos que as micronarrativas da coluna social eram permeadas por diversos assuntos que versavam sobre notícias de cunho social, político, econômico, cultural, internacional, local, e ainda contemplavam saúde e religião. Ou seja, assuntos daquelas conversas travadas entre amigos. Se a hipótese fosse verdadeira, então a coluna social seria uma prática discursiva que promove a reconstrução contínua do sentido na forma de redes comunicacionais, bem como um gênero popular de mexerico apropriado pela elite. 18 Nessa perspectiva, as referências em língua portuguesa eram insuficientes para embasar o que se pretendia, por isso a recorrência a uma bibliografia em língua inglesa sobre o tema, que possibilitou a reflexão e a descrição da coluna social como um gênero de fofoca. Diante da observação de que a coluna social possuía a mesma estrutura da fofoca, cabia agora encontrar uma concepção em que a linguagem fosse compreendida como ação social e horizonte em que os indivíduos exprimem a realidade. Contribui para essa fase acerca do estudo da linguagem a linhagem de estudos críticos formada pelo Círculo Linguístico de Praga, notadamente a noção de gênero de M. Bakthin. Para Bakhtin (1981-1988-1992-1999-2000), o conceito de gênero não é uma forma hierárquica de classificação de espécies, mas uma possibilidade combinatória, um instrumento organizador que levará em conta a relatividade estável de enunciados, isto é, existe uma ligação entre gênero como texto e possíveis fornecedores de modelos do mundo e a cultura, como matriz de um modelo de mundo. Na abordagem bakhtiniana, a língua é semelhante a uma mônada, na qual se encontram codificados os níveis socioculturais, e as palavras são as portadoras de marcas ideológicas. A palavra é um ato de duas faces, em que estão quem a emite e quem a recebe, sendo essa relação a condição do sentido do discurso, tornando-o um fenômeno de comunicação social porque é dependente da situação social que o engendrou. Assim sendo, a materialização do gênero é desvelada sob a forma de enunciados que trazem imbricadas em sua formação todas as esferas da atividade humana, e o textual, o intertextual e o contextual se entrelaçam para manifestar a linguagem. Chegamos, por conseguinte, à elaboração do primeiro capítulo, intitulado “A coluna social como gênero de fofoca”. Considerada a coluna social um gênero de fofoca, torna-se possível entendê-la como uma interação. Nessa interação, várias fontes de informações são ativadas paralelamente e integradas aos vários micro e macroacontecimentos, o que tornava possível a produção de macro e microinformações que, por sua vez, produzia uma polissemia da realidade pela multiplicidade de significados, incluídos no contexto social. Pensando assim, o discurso da coluna social poderia ser entendido como um discurso que atualiza a memória social. Para embasar esse pensamento, recorreu-se aos historiadores sociais e seus estudos sobre as interfaces entre a língua falada e a língua escrita na construção e representação da realidade. Por não conceber a linguagem como uma prisão que estabelece regras estritas de funcionamento, mas sim a linguagem com um papel ativo na criação da realidade e compreensão das relações entre os usos e os contextos da comunicação, ela se torna capaz de incorporar representações coletivas e as divisões da organização social. 19 Essencial ainda para essa fase do trabalho foi o contato com outra clivagem que atravessa a linguagem encontrada na obra de Halbwachs (2006); ao procurar compreender os quadros sociais que compõem a memória, o autor afirma que a memória particular remete a um grupo, isso representa dizer que o indivíduo carrega em si a lembrança, mas está sempre interagindo com a sociedade, seus grupos e instituições. Nessas inter-relações, são construídas as lembranças, assim, a rememoração individual se faz na tessitura das memórias dos diferentes grupos com os quais nos relacionamos. Essa memória coletiva tem, por conseguinte, a função de contribuir para o sentimento de pertinência a um grupo de passado comum que compartilha memórias. O tempo vivido é conotado pela cultura e pelo indivíduo. Tal como o tempo social engole o individual, a percepção coletiva abrange a pessoal. Outra contribuição é a obra de Nora (1993) sobre a memória e o esquecimento, que discorre sobre a distinção entre memória e história. Para o autor, a aceleração histórica, com seus desdobramentos e as transformações incessantes, leva ao esquecimento; em consequência, destaca que não mais existe a memória, ela só existe como forma de obsessão pelo registro, ou seja, pela necessidade de história. Contribuiu também para o embasamento teórico as idéias de Bergson (2006) e sua concepção de que a memória não é uma propriedade do cérebro – porque este pertence ao mundo da matéria –, mas uma propriedade do espírito. Bergson esclarece que apesar da memória ser uma propriedade do espírito, ela tem uma limitação física, por isso o autor fala de uma memória pura: o registro de todas as percepções que um indivíduo realiza. Quando ela é atualizada, vira uma lembrança. Aquelas que nunca são atualizadas e permanecem obscuras vão compor os sonhos. Na esteira desses teóricos, foi possível elaborar o segundo capítulo, intitulado “A coluna social como repertório de memória”. Nele, foi possível concluir que o discurso da coluna é fruto de uma cultura compartilhada por uma sociedade e um universo comum de sociabilidade. Pode, portanto, ser um repertório de memória e representações sobre o social. Tal idéia foi cotejada com algumas interpretações sobre o Brasil nas obras de alguns pensadores, como Oliveira Viana, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda. Consequentemente, buscou-se identificar no discurso da coluna a atualização de discursos de longa duração. O presente texto se ocupa, finalmente, de uma das características da fofoca: o riso. Para tanto, foram selecionadas as notas da coluna social que enfocavam o trabalho da Assembléia Nacional Constituinte de 1987/88. Cabe assinalar que essa perspectiva surgiu das sugestões da banca, que nos motivou a entrar em contato com a obra de Henri Bergson (2007) 20 quanto ao riso. Conforme o autor, o riso é algo vivo em movimento e ocorre na sociedade por meio de relações e pontos de contato entre o risível e o ridente. A concepção de Bergson sobre o riso, juntamente com as idéias de Bakhtin a respeito da carnavalização, provocou a identificação do humor da coluna social como algo ambíguo e polissêmico, que pode ser comprovado na teoria bergsoniana de correção, como de transformação, na visão bakhtiniana. A reação vai depender da recepção. Nessa mesma perspectiva, registrou-se o texto imagético da coluna social. O resultado foi o terceiro capítulo, denominado “O riso na Assembléia Nacional Constituinte”. O texto da coluna social foi analisado como uma combinatória de elementos diferenciados: o código alfabético, os símbolos e as imagens que, relacionados, podem exprimir os códigos da cultura. O resultado é a compreensão do discurso da coluna social como expressividade do diálogo cotidiano, como intersecção de vozes que, mais do que uma relação com a matéria narrativa, constitui uma relação com o mundo. O corpus é formado pelas colunas sociais editadas pelo jornal O Globo entre os anos de 1987 e 1988. O critério de seleção do periódico levou em conta, em especial, a circulação nacional, a representatividade junto à imprensa escrita brasileira e a existência de duas colunas sociais simultaneamente. A delimitação cronológica justifica-se por ser esse um período em que o país estava dando os primeiros passos em direção à retomada do poder político pelos civis. A análise foi feita com base numa amostra composta pelos jornais publicados de janeiro de 1987 a outubro de 1988,totalizando 1.654 colunas. Impunha-se, ainda, efetuar a distribuição temática das colunas. Entretanto, o corpus indicava que não só de eventos sociais sobrevivia a coluna. Observou-se o predomínio de notas de cunho social (7.050 em Sued e 3.111 em Swann), totalizando 10.161 notas, o que evidenciava ainda a prevalência, na coluna, de assuntos relacionados à sociedade. O segundo maior índice das notas da coluna eram as dedicadas aos assuntos políticos e mostrava-se como indício de que as colunas nos anos de 1987/88 não se restringiam apenas aos noticiários sobre as pessoas das altas rodas sociais, o higth society, mas contemplava outros aspectos. Vale ressaltar que a divisão temática foi meramente metodológica e não representa uma delimitação de fronteiras entre eles, visto que eram entretecidos nos campos do social, da política, da economia e da cultura. Desse universo temático, foram selecionadas, para análise, as notas que abordavam os temas políticos e o desenrolar das atividades na Assembléia Nacional Constituinte. Num total de 1.924 notas da coluna de Sued e 3.308 da coluna de Swann, elas perfazem 5.232 notas. 21 No tocante ao período de cobertura das notícias políticas publicadas nas colunas, foram consideradas duas divisões temporais. A primeira vai de 1º de janeiro a 31 de dezembro de 1987, correspondente ao período de instalação da Assembléia Constituinte. A segunda compreende o espaço de tempo entre janeiro e outubro de 1988, fase dos trabalhos finais da Constituinte. Levamos em conta a suposição de que a imprensa veicularia, de modo mais sistemático, notícias referentes ao universo pesquisado. Assim, vamos ao primeiro capítulo que enfoca a coluna social como gênero de fofoca. 22 I - A COLUNA SOCIAL COMO GÊNERO DE FOFOCA Segundo o Dicionário Houaiss, a fofoca é uma palavra de procedência banta, radicado no quimbundo fuka, significa revolver, remexer. Esta origem é confirmada pelos estudos de Yeda A. Pessoa de Castro da Faculdade de Letras de Lubumbashi, no Zaire. O sentido é semelhante ao do Brasil, quase sempre um dito maldoso, divulgação de detalhe da vida alheia que o outro gostaria que fosse ignorado. Com o mesmo significado, na língua inglesa encontra-se a palavra gossip, derivada de godshibb, que no inglês antigo representa o padrinho da criança no batismo, ou seja, alguém que tivesse contraído uma ligação espiritual com outra pessoa pelo fato de se ter responsabilizado por ela no batismo; a palavra passou a se aplicar a amigos próximos e conhecidos, notadamente aos amigos de uma mulher que fossem convidados a estarem presentes ao nascimento de uma criança. Pelo fim do século XVI, a palavra foi usada de maneira mais geral para se referir a uma pessoa (em geral uma mulher) que participasse de uma conversa leve e, no século XX, passou a significar uma conversa com um grau de familiaridade ou intimidade entre os interlocutores. A fofoca é considerada um dos meios de comunicação mais antigos do mundo. É um fenômeno social inserido no cotidiano das pessoas. Ela implica contar histórias de cunho moral, que realçam os erros dos outros e reafirmam os comportamentos morais cotidianos que os outros não seguiram. Exerce, também, a função integradora, de entretenimento, diversão e de interação grupal. Durante muito tempo, predominou o sentido de futilidade, ociosidade, desperdício de tempo e de informações; atualmente, a fofoca tem sido estudada como um fenômeno que consome parte considerável do tempo e atenção de várias pessoas, tanto nos encontros presenciais quanto nas conversas por telefone e na leitura de colunas e revistas especializadas em fofoca. Os pioneiros no estudo da fofoca são os norte-americanos, instigados pelos seus efeitos sobre o moral das tropas e da população durante a Segunda Guerra. Allport e Postman (1947, apud Kapferer, 1993), os primeiros a se interessar pelo assunto são unânimes ao afirmar que a fofoca é uma informação que traz elementos novos a respeito de uma pessoa ou um acontecimento ligado à atualidade. Os estudos recentes apontam para a fofoca como um modo de ação que subjuga, seduz e excita, além de ser um fator de interação social, capaz de provocar ações que reposicionam relações pessoais. A fofoca também é analisada como um fenômeno social que, tematizado 23 conceitos acerca das pessoas e das coisas do mundo – um poder invisível que permeia as relações pessoais. A fofoca também é analisada como um fenômeno social que, tematizado como evento social, passa informações que são recontadas, recriadas e reconstruídas, como uma maneira oficiosa de checar as informações oficiais, ou seja, ela ajuda a organizar nossas percepções para se autovalidar. Quanto mais opaco o fato, tanto maior o surgimento da fofoca como uma tentativa de impor ordem ao que não é totalmente compreensível. Por seu cunho estritamente oral, a ênfase da fofoca está no uso da linguagem, como prática social e dialógica, presente antes mesmo da escrita, era a fofoca que veiculava as informações. Assim, ela estará presente em vários contextos sociais, adquirindo diferentes significados; Schein (1994, apud Bem-ze´ev, 1994) e Wylen (1993, apud Bem-ze´ev, 1994), por exemplo, ao estudarem o fenômeno na Idade Média, afirmam que a delação e a fofoca eram os principais meios para identificar os heréticos e denunciá-los ao Tribunal da Santa Inquisição. Neste contexto, ela disseminava os valores morais, os bons costumes e a religião do período. O cenário medieval, conforme bem observa Schein (1994, apud Bem-ze´ev, 1994), dava à fofoca um grande poder, o qual estava relacionado às características da sociedade: credibilidade da informação oral, código de comportamento para as classes sociais, imobilidade social e pequenos agrupamentos humanos. Atualmente, os estudos de Bem-ze´ev (1994), Souza (1994) e Begmann (1993) identificam na fofoca um fator de coesão de grupos, uma forma de sustentar normas grupais e transmitir informações importantes; além de disponibilizar soluções para os conflitos vivenciados pelo grupo. Existem várias definições, conceitos e natureza do fenômeno fofoca. Rosnow e Fine (1976), Elias (1985), Levin e Srluke (1987), Bergmann (1993) Taylor (1994), Thomas (1994), Ayim (1994), Goodman e Bem-ze´ev (1994), apesar de apresentarem diferentes conceitos, convergem nas condições necessárias para a sua proliferação: geralmente é uma conversa informal, o assunto é pessoal (relativo à intimidade), é conduzida dentro de um grupo pequeno de participantes que se conhecem bem uns aos outros, têm confiança mútua e as pessoas alvo estão ausentes. Segundo John Morreal (in Bem-ze´ev, 1994), a fofoca é um tipo de conversação- comunicação interativa e pessoal. Nessa interação, está presente o prazer de falar com o outro, a promoção da solidariedade, o recebimento de informação nova. É a partir da fofoca que o indivíduo ouve as opinião e avaliação de uns sobre os outros, sobre as coisas e eventos e onde pode expressar sua própria opinião e avaliação sobre o mundo. 24 Apesar dos termos fofoca, rumor e boato aparecerem como sinônimos, de acordo com Rosnow e Fine (1976) existem diferenças entre eles. O rumor e o boato distinguem-se da fofoca porque nem sempre se referem às pessoas. Kapferer (1993) afirma que a diferença está na cadeia de comunicação: no rumor há mensagens não autorizadas de interesse universal, enquanto a fofoca é disseminada de forma seletiva, dentro de um grupo específico. A sua característica básica da fofoca é ser focalizada nos indivíduos, nos detalhes da vida das pessoas, como as relações sexuais, as virtudes e os vícios. Os pormenores na fofoca são privados e se desenvolvem nos bastidores. Em relação à sua duração, Morreal (in Bem-ze´ev, 1994) afirma que a fofoca tem vida curta; estárelacionada a aspectos da vida de pessoas que podem ser moralmente avaliadas. Além disso, a avaliação em fofoca é negativa e pode ser capciosa; e há, ainda, a tendência de muitos avaliarem as outras pessoas negativamente em forma de inveja, ciúme e indignação, provenientes da comparação ou da experiência negativa vivenciada. Quanto ao conteúdo, Morreal (in Bem-ze´ev, 1994) sublinha que a fofoca é uma conversa fútil e superficial, que não examina profundamente o assunto, mas enfatiza os aspectos que asseguram sua sustentação; apesar da frivolidade, desperta a curiosidade, não tem um padrão rigoroso de evidência, é aberta à associação com o rumor. A fofoca, como processo de disseminação e de formação de cadeia, conduz as informações, que vão aumentando, transformando-se descompassada e desencontradamente. Essa transitoriedade na fofoca revela que ela é reconstruída. Os eventos passados podem ser retidos na memória, nomeados, tipificados, tematizados e apresentados novamente em conversações com diferentes versões. É difícil identificar o que é verdade e o que é falso na fofoca. Constitui a verdade aquilo que o grupo acredita que o é, uma vez que os critérios da verdade são construídos levando em conta convenções pautadas por critérios de coerência, utilidade, inteligibilidade, moralidade, enfim, de adequação às finalidades que são designadas coletivamente como relevantes. Parece que o que caracteriza o conteúdo de uma fofoca não é o seu caráter verificável ou não, mas suas fontes não oficiais. Isso nos remete ao estudo de representação de Goffman (2008): o desempenho dos papéis sociais tem relação com o modo como cada indivíduo concebe a sua imagem e a pretende manter. Quando um indivíduo chega à presença de outros, estes geralmente, procuram obter informação a seu respeito ou trazem à baila a que já possuem. Estarão interessados na sua situação socioeconômica geral, no que pensa de si mesmo, na atitude a respeito deles, 25 capacidade, confiança que merece. Embora algumas destas informações pareçam ser procuradas quase como um fim em si mesmo, há comumente razões bem práticas para obtê- las. A informação a respeito do indivíduo serve para definir a situação, tornando os outros capazes de conhecer antecipadamente o que ele esperará deles e o que dele podem esperar. Assim, informados, saberão qual a melhor maneira de agir para dele obter uma resposta desejada. (Goffman, 2008, p. 11) Segundo Goffman (2008), essa é uma das razões pela qual o indivíduo controla a circulação de informação que pode desacreditá-lo, já que as correntes subterrâneas, transmitidas de maneira sub-reptícia, vão contradizer e desacreditar a definição da situação projetada pelos participantes e, na interação social, isso implica relações cautelosas e exigências insinuadas. Significa que a fofoca não usa o que é evidente, e onde a evidência termina, a fofoca começa. Dessa forma, a fofoca compartilha a fronteira da evidência, surgindo a partir de olhares desconfiados e falas às escondidas. Ainda segundo Morreal (in Bem-ze´ev, 1994) em relação ao teor da fofoca, ela pode ser maléfica ou benéfica, no entanto, constantemente, ela apresenta aspectos de crueldade e maldade visando a denegrir, ridicularizar e destruir a imagem do outro. Não existe um espaço propicio para a disseminação da fofoca, para Morreal (in Bem- ze´ev, 1994) ela ocorre em todo e qualquer lugar que possibilita contatos interpessoais e onde existam pessoas que favoreçam o estabelecimento de redes de interação e amizade. Muitas vezes, a fofoca prolifera em organizações como modo de amolecer ou subverter as tendências despersonalizantes e como forma de resistência passiva a muitas formas de poder. A fofoca também é apresentada como mecanismo de controle social, facultada pelas normas e valores do grupo ou cultura específica que norteiam a organização social. Segundo Thompson (2008), em virtude de ser uma atividade por meio da qual as relações sociais são continuamente renovadas e transformadas, a fofoca promove a integração do grupo, no qual o grau de confidencialidade é o termômetro do grau de proximidade. Com a fofoca é possível obter dados sobre a representação de desempenhos da idealização dos estratos superiores para aqueles que ocupam posições inferiores e aspiram ascender às mais elevadas. Na orientação da fofoca predomina o princípio da exclusão e da inclusão social, como bem demonstra Thompson (2008): coesão grupal, identidade social, normas sociais, pressões sociais são todos os fatores da dinâmica social que são mantidos e administrados pelas agências das regras de fofoca. Ela também proporciona às pessoas informações sobre o mundo social, revelando normas e a extensão de seu descumprimento. As leis, as normas de 26 procedimento social afetam as ações, pois codificam e prescrevem, e, portanto, têm a sua aplicação como mecanismo de controle social. O segredo é o motor da fofoca, isso porque ele propicia a união com aqueles da mesma classe; por outro lado, marca uma exclusão dos demais grupos. De acordo com Simmel (1971), o segredo oferece um segundo mundo além do revelado. Assim sendo, o tema central da fofoca reside nessa tensão entre o mundo revelado e o mundo oculto. De modo geral, os assuntos predominantes na fofoca estão relacionados à vida privada dos indivíduos. Essa invasão da privacidade desperta curiosidade, excitação e prazer, que podem estar relacionados a uma forma subversiva de poder, como ressalta Souza (in Bem- ze´ev, 1994): um ataque ao frágil, utilizando-se do poder do conhecimento ou experiência, ou uma forma velada de agressividade, uma forma de liberar o que está recalcado, podendo assumir, nesses casos, uma similaridade com o humor não inocente. Ao estudar a fofoca e o escândalo, Thompson (2002) frisa que, por ser uma conversa informal, a fofoca permanece no âmbito da comunicação privada entre amigos e conhecidos; por sua vez, o escândalo ultrapassa os limites da fofoca e ganha projeção pública. De acordo com o autor, a fofoca pode fomentar o escândalo e fornecer um meio para a difusão da informação, entretanto o escândalo vai ocorrer quando certas condições adicionais estiverem presentes. Concernente ao escândalo propriamente, Thompson (2002) destaca que as colunas de fofoca são as principais alimentadoras de segredos públicos e fomentadores do deslocamento de fronteiras entre o público e o privado. Em sua teoria social do escândalo, o autor distingue três tipos de escândalos políticos: político-sexual, político-financeiro e o escândalo de poder. Nessa classificação, os assuntos relativos aos escândalos têm semelhança com os assuntos veiculados pela fofoca. O gênero feminino foi considerado o principal veículo da fofoca. Possivelmente essa afirmação esteja relacionada ao fato de que as mulheres silenciadas pela História, criaram seus espaços de interação, o que justifica, segundo Perrot (1988), a reação feminina quando as lavanderias públicas de Paris do século XIX foram fechadas pelo pode público, retirando da mulher um espaço de direito e de voz. Diferentemente da idéia generalizada de atribuição da fofoca a categorias profissionais e gêneros, pesquisas realizadas por Spacks (1985), Levin e Arluke (1985/1987) indicam que a fofoca é um fenômeno que independe do gênero, tanto os homens como as mulheres, despendem uma quantia semelhante de tempo para fofoca. A diferença está nos tópicos de discussão. As mulheres tendem a falar mais sobre outras pessoas, e os homens enfatizam jogos esportivos, política e negócios. 27 Segundo Thompson (2002), a fofoca é uma atividade por meio da qual as relações sociais são continuamente renovadas e transformadas; é uma forma de inserção, ao definir quem é suficientemente próximo ou integrado ao grupo. Elias (2000), ao investigar as relações de prestígio e poder em um bairro da cidade deLeicester, constata as interdependências que se estabelecem no interior da comunidade na qual a fofoca é um integrante privilegiado desse processo. Para o autor, a fofoca não é um fenômeno independente. O que é digno dele depende das normas e crenças coletivas e das relações comunitárias. Goffman (2008), por sua vez, afirma que a sociedade está organizada tendo por base o principio de que o individuo projeta a definição da situação e com isso pretende, implícita ou explicitamente, ser uma pessoa de determinado tipo, automaticamente exerce uma exigência moral sobre os outros, obrigando-os a valorizá-lo e a tratá-lo de acordo com o que as pessoas de seus tipo têm o direito de esperar. Aqui entra a importância da fofoca, Bergman (1993) aponta duas principais razões para a fofoca. A primeira é psicológica: a posse de uma informação é socialmente valiosa para o reconhecimento social, prestigio e notoriedade, e isso dá ao individuo um sentimento de superioridade ou de privilégio, por dispor de um conhecimento em primeira mão. Outra razão apontada por Bergman (1993) é de ordem sociológica, ou seja, a tendência universal para criticar, depreciar, culpar e implicar uma pessoa na sua ausência. De acordo com o autor, se a pessoa detentora da informação confidencial repetir a confidência, ela comete um ato de indiscrição. Se recusar disseminar a informação, essa pessoa se comporta de forma discreta. Dessa forma, a fofoca é a forma social de “indiscrição discreta”: pode violar o preceito da discrição e, ao mesmo tempo, respeitá-lo. Assim, a fofoca se inscreve como fenômeno de elementos contraditórios e adquire uma estrutura paradoxal básica, dinâmica e de natureza dúbia. Bergman (1993) desenvolve também a idéia da fofoca como um bálsamo da alma, visto que a fofoca exerce fascínio, mexe com a imaginação e dá abertura à malícia e à maledicência. Na concepção de Gluckman (in Bem-ze´ev, 1994) a fofoca é uma forma de interação social que fortalece a identidade e a coesão de um grupo social e, por outro lado, cumpre sua função dentro do grupo com membros integrados pelo sentimento de pertencimento. Rosnow e Fine (1973) veem a fofoca como fonte de entretenimento, prazer e diversão. Além disso, a fofoca pode promover relaxamento. Goffman (2008) ao observar os funcionários de um hotel, relata o tratamento respeitoso dos fregueses na presença e na ausência, quase sempre ridicularizados, comentados 28 maliciosamente, caricaturados, amaldiçoados e criticados jocosamente, o que possivelmente constitui momentos de relaxamento. Bem-ze´ev (1994) observa que a fofoca e a diversão são atividades intrinsecamente valiosas, pois são essencialmente sociais e fortalecem os laços interpessoais. Bergman (1993) acrescenta que essa ocorrência pode se localizar no domínio da sociabilidade: tanto nos encontros de pequenos grupos, onde as conversas são imbuídas de sensibilidade local, quanto no domínio periférico: na presença de outras pessoas a partir de sussurros ou manobras semelhantes. Morreal (in Bem-ze´ev, 1994), ao relacionar a fofoca e as piadas, mostra que as duas atividades envolvem, muitas vezes, insultos disfarçados. Entretanto, a fofoca, devido a seu caráter mais realístico, cumpre funções mais complexas do que divertir. Difonzo (2009) afirma que a fofoca é um instinto natural do ser humano para tentar entender o mundo. Segundo o autor, a compreensão é um desejo humano e as pessoas não gostam quando as coisas não estão claras e não fazem sentido. As pessoas gostam da ordem e das explicações para diferentes situações. Outros motivos apontados para a propagação da fofoca são a curiosidade e a fantasia em relação às atividades privadas das pessoas. Pela fofoca, torna-se possível a expressão de opinião com um grau de franqueza que seria difícil manter em uma situação pública. Thompson (2002) salienta, ainda, um outro tipo de fofoca: a veiculada pelas revistas e jornais acerca de personalidades da mídia, chamada pelo autor de “intimidade não-recíproca à distância”, que representa uma intimidade unilateral, já que os leitores sabem sobre as personalidades, mas esse conhecimento não é recíproco, mútuo. Consoante Schutz (1976) o interesse pela vida das celebridades é movido pela necessidade de comparação social. O leitor pode se servir desse modelo para identificação ou desenvolvimento do seu ego e da autoestima. Já Medini e Rosenberg (1976) afirmam que o que aguça a curiosidade em relação à vida dos famosos é a suposição de que ela contenha fofoca e, por conseguinte, declarações sobre assuntos da condição humana, assuntos secretos, voyeurismo e intimidade. Nesse sentido, justifica-se o interesse e a proliferação de revistas especializadas em fofocas. Thompson (2002) considera que a experiência da fama traduz um esforço de individuação em uma sociedade de cultura urbana massificada. Isso quer dizer que, embora a vida privada de um indivíduo seja exibida nas páginas das revistas, aquela personalidade encarna arquetipicamente valores e desejos coletivos. Segundo o autor, neste mundo multifacetado, em que o indivíduo tem acesso a diversos códigos, diversas alternativas de vida, emerge uma consciência exacerbada da própria singularidade. A fofoca não somente 29 ressignifica os padrões de beleza e sucesso como pode potencializar as trocas culturais, inclusive entre classes. A mesma postura é compartilhada por Bergmann (1993), quando entende que a fofoca pode ampliar a nossa compreensão da vida, fornecendo informações que os outros modos de investigação não proporcionam. Consoante Dunban (1993), a troca de informação é o motor da evolução do intelecto humano. A partir da linguagem, os indivíduos adquirem informações sobre o comportamento um do outro, favorecendo aos indivíduos conhecer as características comportamentais de membros de outros grupos. A fofoca como uma forma alternativa de conhecimento e informação nem sempre se reporta aos detalhes da intimidade, ela pode versar sobre outros assuntos que envolvem a arena política. As suspeitas de corrupção e os bastidores das articulações constituem matérias de fofoca. Avim (in Bem-ze´ev, 1994) vai além, ao identificar nos dados informais obtidos em conversações a matéria-prima para as decisões tomadas pelas sindicâncias e inquéritos administrativos. É o que a autora denomina de “fofoca investigativa”. Pode-se afirmar que a fofoca tem o poder ambíguo de demarcar e policiar as fronteiras culturais, os valores interclasses, ao mesmo tempo em que flexibiliza essas mesmas fronteiras. Assim, a fofoca é uma maneira de produzir sentido e se posicionar nas relações que se estabelecem no cotidiano. Neste aspecto, o sentido é uma construção social, uma ação coletiva e interativa por meio da qual as pessoas constroem os termos a partir dos quais compreendem e lidam com as situações e fenômenos das coisas do mundo. Conforme já havia demonstrado Durkheim (1984), o social é algo que está ligado a uma forma de consciência específica, e a consciência é uma modalidade de ser não automática e sobredeterminada. Para o autor, os processos coletivos possuem uma primazia sobre os indivíduos que, por sua vez, orbitam, desde o nascimento, em torno de algo imposto como natural que regula e molda as vontades individuais, permite a convivência do homem em sociedade. Essa estruturação do indivíduo segundo os padrões preestabelecidos e exteriores ao próprio indivíduo, perpassa pelo psicológico, pelo moral, pelos hábitos e costumes, pelo comportamento, enfim, pela cultura: (...) o devoto, ao nascer, encontra prontas as crenças e as práticas da vida religiosa; existindo antes dele, é porque existem fora dele. O sistema de sinais de que me sirvo para exprimir pensamentos, o sistema de moedas que emprego para pagar dívidas, os 30 instrumentos de crédito que utilizo nas relações comerciais, (...),etc, funcionam independentemente do uso que faço delas. (...). Estamos, pois, diante de maneiras de agir, de pensar e de sentir que apresentam a propriedade marcante de existir fora das consciências individuais. (Durkheim, 1984: 94). Na perspectiva durkhemiana, o indivíduo ingressa na sociedade no momento em que nasce. A partir desse momento, ele começa a ser moldado pelas instituições que compõem a sociedade. São essas instituições as responsáveis pela assimilação dos indivíduos dos hábitos, moral, costumes e toda forma de lei não escrita que rege a convivência de seu grupo. Dessa forma, o indivíduo procura agregar as regras do grupo ao seu sistema individual de valores, procurando agir em conformidade com o grupo. Nessa visão, o fato social está intrinsecamente relacionado aos processos culturais, hábitos e costumes coletivos de um determinado grupo ou indivíduos, ou sociedade. Tais elementos conferem unidade e identidade ao grupo social, serve de controle e parâmetros às atividades individuais. O fato social, por conseguinte, é a aceitabilidade por parte da maioria do coletivo dentro da sociedade. A aceitação é o produto de uma maneira peculiar e circunstancial de pensar, sentir e agir de um grupo, em um dado contexto social e histórico. Durkheim (1984) parte do pressuposto de que a realidade é socialmente construída e que a Sociologia deve analisar a maneira pela qual o meio social, mediante aparelhos de coerção e da instituição educativa, contribui para regular, controlar e moldar permanentemente o comportamento individual, tornando os processos coletivos aparentemente harmônicos e estáveis. A crítica a essa visão de Durkheim é que existe uma dicotomia entre o indivíduo e sociedade. Por essa concepção, indivíduo e sociedade são essências puras e indissociáveis, entes em oposição. Desse modo, afirma-se o primado de um ou de outro: a sociedade como uma generalidade intransponível e impossível de ser decomposta e, por outro lado, o indivíduo como algo atomizado, não suscetível de ser universalmente considerado. A proposta para romper os limites teóricos da distinção entre sociedade e indivíduo é pensar as sociedades humanas como configurações sociais, que são transformadas a todo o tempo pelos homens. Tal teoria se concretiza nos pressupostos teóricos de Norbert Elias. Elias (1994), em vez de tomar indivíduo e sociedade como substâncias isoladas, considera as suas relações e funções, o que implica tomá-los de modo relacional e dinâmico, fundido-se e refundindo-se, integrando-se e distinguindo-se, em contínua interação. Nessa perspectiva, a sociedade é formada por indivíduos e estes são constituintes da sociedade, 31 ambos imbricados, não sendo possível considerar os dois separadamente, visto que não há sociedade sem indivíduos e não há indivíduos sem sociedade. Para o autor, os indivíduos, conforme seus habitus 2 ,são integrados como constituintes da sociedade, modelando-a e modelando-se ao relacionarem-se uns com os outros. Essa relação tensa, dinâmica e mútua entre os indivíduos e a sociedade faz com que a sociedade produza o indivíduo e que o indivíduo molde-se em contínua ação com outros indivíduos, e assim influencia a própria forma dinâmica da sociedade. Assim, Elias pensa a sociedade em mudança estrutural, como um equilíbrio tenso entre suas partes. Segundo o autor, a noção de configuração é que permite pensar as ligações entre mudanças na organização estrutural da sociedade e mudanças na estrutura de comportamento e na constituição psíquica do indivíduo. A construção teórica de Elias sobre a relação entre indivíduo e sociedade explora as relações dinâmicas entre os dois e sua caracterização em distintas sociedades e tempos históricos. Coerente com essas concepções, a produção de sentidos na sociedade não é uma atividade cognitiva intraindividual, nem pura e simples reprodução de modelos predeterminados. Ela é uma prática social, dialógica, que implica a linguagem em uso. Nesse sentido, ela é um fenômeno sociolingüístico, uma vez que é o uso da linguagem que sustenta as práticas sociais geradoras de sentido. Considerando essa constatação, pode-se afirmar que a produção do sentido é dada pelo discurso. O discurso é entendido como o uso institucionalizado da linguagem e de sistemas simbólicos semelhantes. Para Davies e Haré (1990), a institucionalização pode ocorrer tanto nos níveis dos sistemas políticos e disciplinares, como no âmbito de grupos sociais. Esta institucionalização é dada pelo discurso e que possibilita uma tendência à permanência, mesmo com a mudança do contexto histórico, os discursos são atualizados. Essa atualização ocorre na prática discursiva, já que o discurso se constrói em função dos demais discursos com que dialoga: o uso que fazemos da língua é o resultado da relação entre o eu e o outro, o discurso é o resultado da relação que ele mantém com outros discursos. Neste sentido, o discurso é uma intercessão de subjetividades e de objetividades. O discurso estará sempre nessas intercessões, nessas passagens de objetividades e subjetividades. Nessa concepção, os discursos aproximam-se da noção de gêneros de fala de Bakhtin (1929/1995), o qual destaca serem as formas mais ou menos estáveis de enunciados que 2 Habitus é uma noção filosófica originária no pensamento de Aristóteles e na Escolástica medieval. Foi recuperada e retrabalhada a partir dos anos 1960 pelo sociólogo Pierre Bourdieu para explicar a teoria da capacidade inventiva dos agentes, na tentativa de fugir das abordagens subjetivistas da conduta social. 32 buscam coerência com o contexto, o tempo e os interlocutores. Isso significa que existem regras linguísticas que orientam as práticas cotidianas das pessoas e tendem a manter e reproduzir discursos. Entretanto, Bakhtin considera que nesses discursos pode ocorrer a diversidade das práticas discursivas. Nas relações, portanto, que são estabelecidas no cotidiano, a conversa é uma das maneiras por meio da qual as pessoas produzem sentidos e por sua informalidade representam modalidades privilegiadas para o estudo da produção de sentido. Bakhtin situa a riqueza da conversação na comunicação na vida cotidiana, enfatizando a sua importância como prática social. Na concepção de gêneros discursivos de Bakhtin, tudo o que comunicamos só se faz possível através dos gêneros. O advento da tecnologia e dos novos meios de comunicação faz emergir novos gêneros, entretanto, para o autor, novos gêneros possuem velhas bases, isso quer dizer que o surgimento de novos gêneros acontece a partir de gêneros já existentes, orais ou escritos. Para Marcushi (Apud Dionísio, 2001), a relação entre fala e escrita fundamenta-se em um contínuo e não em uma polarização: fala e escrita constituem diferentes modalidades de uso da língua. As diferenças existentes entre elas vão ocorrer no continuo tipológico das práticas sociais e produção textual. É este continuo que permite o entrecruzamento de gêneros da oralidade e da escrita. Assim, podemos pensar que o advento da escrita provocou o aparecimento de novos gêneros. Aqui identificamos a permanência do gênero conversacional da fofoca migrando para o texto escrito da coluna social. Não é de estranhar a migração desse gênero eminentemente oral para as revistas especializadas, colunas dos jornais, tablóides e recentemente para a internet, que introduz uma nova modalidade de fofoca – a fofoca visual, na forma de fotografias, filmes e programas de televisão ao vivo. Nessa perspectiva, a fofoca é um gênero em cuja base se desenvolve a coluna social do jornal. 1.1. ORIGEM DA COLUNA SOCIAL Thompson (2008) identifica, na segunda metade do século XV, a proliferação de técnicas de impressão pelos centros urbanos da Europa. O sucesso e a sobrevivência destes impressos dependeramda capacidade de mercantilizar formas simbólicas. Assim, manuais práticos e livros de conduta ofereciam orientações para uma vasta gama de atividades, desde boas maneiras, comportamento moral e oratória, a métodos de práticas comerciais. Como 33 exemplo, o autor cita o De Civilitate Morum Puerillium, de Erasmo, que fixava um código de boas maneiras e orientações para a instrução das crianças, o qual teve enorme sucesso editorial. Ao revirar as páginas da obra de Chartier (2007), encontra-se, na Inglaterra do século XVII, a descrição de um office ou staple, local onde são reunidas, copiadas e vendidas as notícias da corte, da cidade e do mundo, e vendidas ao Mestre Cymbal – um mercador de notícias e responsável em fazer ecoar boatos públicos. De acordo com a descrição, o escritório dos jornalistas é composto por quatro correspondentes ou emissários que coletam as notícias em quatro lugares estratégicos da capital do reino. Os locais escolhidos são: a Corte, a Catedral de São Paulo, onde os cortesãos e as pessoas do comércio se encontram antes e depois do almoço, o Royal Exchange – a Bolsa de Mercadorias, em que os mercadores trocam informações comerciais e letras de câmbio, e no Westminster Hall, endereço dos tribunais e das livrarias. Além dos correspondentes trabalham no local, mais quatro empregados: o examinador (Examiner), o registrador (Register) e dois secretários que fazem a triagem, classificam e publicam as notícias. As práticas do jornalismo resumiam-se nos seguintes processos: cada notícia que chegava ao escritório era examinada, registrada, distribuída e classificada. Em seguida, as notícias eram organizadas por ordem alfabética em temas. Quanto ao teor das notícias, Chartier (2007) afirma que as “notícias coletadas e classificadas no escritório dos jornalistas são anedóticas e fúteis”. O traço essencial desse novo jornalismo é a ausência de credibilidade. O que menos importava era a autenticidade da notícia, muitas vezes, inventadas. Entretanto, a novidade da impressão imprimia um ar de verdade aos impressos. Thompson (2008) lembra que muitas dessas primeiras formas de jornal se preocupavam com notícias do estrangeiro, com eventos que estavam acontecendo em outros lugares. A circulação dos jornais, segundo o autor, ajudou a criar a percepção de um mundo de acontecimentos distantes do ambiente imediato dos indivíduos, mas que tinha alguma relevância potencial para suas vidas. Chartier (2007) também ressalta o surgimento dos pasquins, distribuídos pelos ambulantes urbanos. No pasquim, o texto é acompanhado de gravuras. Uma mesma narração, com pequena diferença de nomes e datas, pode ser retomada a alguns anos de distância. Os temas tratam do desregramento moral, a desordem dos elementos e o sobrenatural, o miraculoso ou diabólico – assuntos que rompem com o ordinário do cotidiano. 34 Pode-se inferir que tais exemplos sejam reminiscência da coluna social, no século XVII, quando começam a circular as primeiras gazetas impressas, bem como os primórdios da autenticidade (registro escrito e atestado com assinatura) – da fofoca. No entanto, ela vai se consolidar como colunismo social no jornal impresso, na segunda metade do século XIX, época em que surgiram os grandes órgãos de comunicação de massa, destinados a diferentes públicos e com a proeminência da penny press (factual) em detrimento da party press (partidária), predominante anteriormente, em que os jornais eram pouco mais que instrumento de debate político e religioso, ou suportes de idéias aprofundadas em pequenos grupos. A industrialização e a queda dos custos de produção do preço do papel, bem como a melhoria das redes de transporte, alargamento do espaço público, expansão da alfabetização, ou seja, o desenvolvimento do capitalismo provocou o aparecimento de um jornal que cultuava a objetividade e o privilégio dos fatos e não das opiniões; os jornalistas passaram a reproduzir as notícias mantendo anônimas as suas fontes. Entretanto, o público requeria matérias personalizadas, além do anonimato redacional. Advieram seções assinadas por profissionais renomados, “superando a frieza e a impessoalidade do corpo do jornal e originando espaços dotados de valor informativo e de vigor pessoal” (Frazer, 1978, p. 54). Ramos (1994) afirma que, à medida que a massificação jornalística crescia e se consolidava, a celebridade tornou-se o centro das atenções da coluna social. Essa é a origem do que a linguagem jornalística define como coluna social, texto que é redigido cobrindo-se um espaço da cabeça ao pé da página, na horizontal ou verticalmente. Diferencia-se das demais partes do jornal pela autoria, pois nela a objetividade do fazer jornalístico quebra-se na proximidade do autor/leitor e dissipa-se a autoridade formal do escrito nos relatos e comentários das atividades da vida mundana, da política, da economia e dos eventos. No Brasil a sua introdução ocorreu nos primórdios do século XX, com a crônica social, uma simbiose entre o jornalismo e a literatura. João do Rio é considerado o introdutor da crônica social na imprensa brasileira. Em sua coluna, A Tribuna, o cronista abordou as questões de seu tempo, os estilos, as maneiras de ser e de viver. Registrava as pessoas que eram respeitadas e admiradas por sua classe social, por suas realizações e influências. João do Rio é o responsável pela observação direta das ruas, valendo-se da entrevista e do inquérito, e se tornou um dos mais populares jornalistas da cidade. Segundo Almeida (in Girardi, 2000): 35 O cronista por excelência de 1900 brasileiro seria Paulo Barreto. E uma das principais inovações que trouxe para nossa imprensa foi a de transformar a crônica em reportagem - reportagem por vezes lírica e com vislumbres poéticos. (...) Foi essa experiência nova que João do Rio trouxe para a crônica, a de repórter, do homem que, freqüentando salões, varejava também as baiúcas e as tavernas, os antros do crime e do vício. Subia o morro de Santo Antônio pela madrugada com um bando de seresteiros e ia aos presídios entrevistar sentenciados (Almeida, in Girardi, 2000, p. 198). Na coluna a comunicação é sintética e a temática explorava fatos variados. Geralmente aparece um título em negrito para notícia. Ver, por exemplo, no dia 24 de julho de 1987, na página 2 do Segundo Caderno, na coluna de Swann o seguinte comunicado: Fiscalização rigorosa – as empresas que boicotarem o Novo Plano Cruzado vão ser rigorosamente punidas. A garantia é do palaciano Fernando César Mesquita, adiantando que o Governo está de olho em alguns tubarões da área comercial. A principal punição a ser aplicada aos que remarcarem preços, ainda segundo o Ouvidor, é corte aos créditos bancários. Mesquita disse que o Presidente não quer falhas na vigilância sobre os preços tabelados. No exemplo do dia 26 de abril de 1988, página 2 do Segundo Caderno, na coluna de Sued, encontramos outro comunicado típico da coluna. O trecho é o seguinte: Nos próximos 40 anos os botânicos prevêem que vão desaparecer em todo o mundo cerca de 60 mil espécies de plantas, o que totaliza cerca de 15% dos vegetais conhecidos. A única maneira de prevenir a catástrofe seria a implantação de bancos de mudas e sementes em cada município e em todos os países. No dia 27 de abril de 1988, ainda na página 2 do Segundo Caderno, o colunista, Ibrahim Sued, faz o seguinte relato: Com 250 participantes aconteceu um Simpósio na Academia Nacional de Medicina os aspectos atuais do tratamento da Doença de Parkinson, organizado pelos acadêmicos Hélcio Alvarenga e Sérgio Novis. Coma presença dos professores da Escola Paulista de Medicina e do professor José Obeso, da Universidade de Navarra na Espanha. 36 Pelos exemplos acima, pode ser percebido que a coluna social funciona como uma síntese de todas as notícias veiculadasno jornal. Este entrelaçamento de gêneros dá à coluna um aspecto paródico relativo ao próprio jornal. 1.2. OS GÊNEROS NA COLUNA SOCIAL A classificação do texto jornalístico obedece à divisão clássica dos gêneros do discurso proposta desde a antiguidade. Pela classificação, os estudos de gênero limitavam-se aos gêneros literários, gêneros retóricos e gêneros do discurso cotidiano. Entretanto, como bem observa Seixas (2009), os estudos sobre os gêneros jornalísticos pararam na década de 80, quando Marques de Melo publicou “A opinião no jornalismo brasileiro”(1985). Nesta obra Marques de Melo propõe uma classificação, constantemente citada e criticada pela maioria dos pesquisadores do jornalismo. Seixas sugeriu nesta obra um conjunto de critérios de definição de gênero jornalístico, obedecendo à pressuposição de que os gêneros se institucionalizam na prática social e se reafirmam no dia-a-dia. Nas classificações propostas pelos estudos de gênero, a coluna social aparece como jornalismo informativo e opinativo. Beltrão (1996), por exemplo, identifica a proximidade com os leitores e a atualidade dos fatos como uma informação social em que se registram e comentam atividades que os indivíduos desenvolvem em clubes, restaurantes, excursões e campanhas filantrópicas. Por outro lado, Melo (1995) entende a coluna como opinativa, um mosaico de unidades soltas de informação e de opinião. Para o autor, o colunismo se nutre do fenômeno social que Edgar Morin chama de “olimpismo moderno”, universo de novos deuses criados pela indústria cultural, convertidos ao estrelato, cujos modos de agir serão sugeridos à imitação da sociedade. Ela seria, assim, traço da cultura de massa que dá sentido a um tipo de jornalismo em que a futilidade e a frivolidade se entrelaçam. Dessa maneira, podemos considerar a coluna social como um gênero de fofoca. Coutinho (1986) apresenta uma terceira visão sobre a coluna social: uma mistura dos gêneros jornalísticos e literários. Inserida geralmente na parte que os jornais destinam aos eventos culturais, a coluna social habita este espaço sob o signo da ambigüidade. É um gênero literário como a crônica, e é noticiário, vive da dispersão frívola dos acontecimentos. Evidentemente, é um gênero literário. Tem sua economia textual, suas inovações formais. (...). Provavelmente é um gênero menor que a crônica; mesmo que trate de eventos, se alimenta da redundância literária, seja manipulando poesia, conto ou memória. A crônica e a crítica têm um 37 superego cultural, a coluna social (...) a prática de tornar tudo mundano. (Coutinho, 1986, p.47) Tal visão é compartilhada por Cosson (2007), o qual, em seu estudo comparativo, reconhece a dificuldade de delimitação das fronteiras discursivas do jornalismo e da literatura. Outra versão sobre o colunismo social encontra-se em Gilberto Freyre, que a vê como o cultivo de traços de vaidade e frivolidades. Quem não sofre da vaidade, ainda burguesa, de ter noticiado, no Brasil de hoje, em jornal, o batizado de um filho ou um noivado de uma filha ou um jantar oferecido a um amigo? São fatos que constituem um burguesíssimo ramerrame, isto é certo. Mas esse ramerrame parte da história da vida, do convívio de uma comunidade do feitio da brasileira dos nossos dias, tanto quanto dos dias de nossos pais e de nossos avós. (apud, MELO: 1995, p. 126.) Nessa visão, a coluna torna-se um espaço de confirmação que enaltece a vaidade das pessoas notáveis em arte e espetáculo, esporte, política e oferece simultaneamente modelos de comportamento. Estimula modismos, incrementa o consumo e dá esperança aos que pretendem ingressar no paraíso burguês. Na verdade, a coluna social no jornal é uma tessitura de gêneros e funcionava como uma síntese dos vários gêneros jornalísticos, em seu espaço gráfico era publicada notícias sobre o interior e o exterior com comentários do colunista. Melo (1995) entende que a permanência da coluna no jornalismo brasileiro se dá porque ela atende à satisfação substitutiva dos leitores, dado que a maioria está excluída do poder e do estrelato colunável. Assim, dá-se-lhe a sensação de participar desse nicho, embora de modo artificial e abstrato: “participar sem fazer parte; acompanhar à distância”. Para ampliar a visão dos gêneros do discurso na coluna social é necessária outra concepção de gêneros, que pode ser gestada a partir das idéias de Bakhtin (2003), quando atesta que não há como falar em uso da língua sem relacioná-la com os inúmeros campos da atividade humana, com as diversas esferas sociais, já que cada esfera social possui um inesgotável repertório de gêneros, com diferentes estilos, conteúdos temáticos, composição, funções discursivo-ideológicas e concepções do emissor e do destinatário. Para Seixas (2009) A definição de tipos relativamente estáveis de enunciados põe, pela primeira vez, o foco na situação social de interação, ou seja, em condições extralingüísticas como 38 finalidade discursiva, “autor” e destinatário. Estas condições, constitutivas do enunciado, seriam reveladas através dos vestígios deixados na própria unidade real da comunicação discursiva (enunciado) (Seixas, 2009, p. 44). Isto porque, segundo Bakhtin (2003), o desenvolvimento das atividades humanas faz emergir novos gêneros que se fundam em antigas bases, à proporção que um determinado campo da atividade humana se desenvolve e se torna mais complexo, crescem e se diversificam os gêneros nesse mesmo campo. Justifica-se, em consequência, a proliferação dos mais variados gêneros do discurso nos diferentes campos da atividade humana. Ainda para Bakhtin, todo gênero é próprio de determinadas esferas sociais e nelas ele se constrói, sob diferentes condições sócio-históricas. Nesse sentido, ocorre uma relação intrínseca entre as esferas da atividade humana e os gêneros do discurso, e entre língua e sociedade, já que o uso da língua se concretiza através de enunciados, que surgem nas infinitas relações sociais entre os falantes dos diversos campos da atividade humana. Com base em tais pressupostos teóricos, torna-se impossível definir quantitativamente os gêneros que se diferenciam e se ampliam, por conseguinte, o gênero como fenômeno social só existe em determinada situação comunicativa e sócio-histórica. Um gênero do discurso é parte de um repertório de formas disponíveis no movimento de linguagem e comunicação de uma sociedade. Ele só existe relacionado à sociedade que o utiliza. Pela diversidade dos gêneros do discurso, resultado das relações sociais da vida humana, Bakhtin os dividiu em dois tipos: gênero primário e gênero secundário. Os gêneros primários são aqueles que emanam das situações de comunicação verbal espontâneas, caracterizados pela informalidade e espontaneidade, por exemplo, uma comunicação imediata entre dois interlocutores. Os gêneros secundários são os mais complexos e geralmente são configurados pela escrita, que funciona como um instrumento, uma forma de uso mais elaborada da linguagem para construir uma ação verbal. Esses gêneros absorvem e modificam os gêneros primários. Esse fenômeno de transmutação dos gêneros primários pelos secundários ocorre quando um fragmento de conversação do cotidiano é inserido em um romance e se desvincula da realidade comunicativa imediata. Entretanto, ele conserva seu significado no romance. Isso quer dizer que o gênero primário transmuta para um discurso mais elaborado. O que os diferencia é o grau de complexidade e elaboração em que se apresentam. Os elementos principais para verificar o gênero a que pertence um determinado enunciado se fundamentam em: conteúdo temático, plano composicional e estilo. 39 O conteúdo temático refere-se ao assunto de que vai tratar o enunciado em questão. O plano composicional é a estrutura formal, e o estilo considera a seleção do repertóriovocabular disponível. Os três elementos não têm sentido se não for levado em conta o contexto, visto que os enunciados pertencem a determinada esfera da atividade humana, localizados em um tempo e espaço e dependem dos participantes e de suas intenções. Em relação ao texto da coluna social, reconhece-se de antemão que se está diante de um texto jornalístico, por isso ele passa por todo o processo de elaboração: seleção de conteúdos, consecução do texto, editoração, diagramação e revisão. O processo em si já é indicativo de um gênero secundário, cuja linguagem é mediata e o gênero um meio para a realização da situação comunicativa. Quanto ao seu conteúdo, o leitor, ao folhear as páginas do jornal O Globo, nos anos de 1987 e 1988, vai-se se deparar necessariamente com duas colunas sociais, a do colunista Ibrahim Sued e a de Carlos Swann. Elas são constituídas por notícias instantâneas, breves, descontínuas e móveis. Os títulos são grafados em negrito e possuem um caráter jocoso que aludem ao conteúdo informacional – circunscritas a um espaço por um traço negro, que as limita do restante do jornal. Destinadas à cobertura de acontecimentos de rotina da sociedade, as duas colunas apresentam uma diversidade de pontos de vista, que lhes imprime uma característica popular de mexerico. O conteúdo temático versa sobre assuntos do momento, notícias das mais variadas áreas de interesse: política, economia, televisão, turismo, moda, etiqueta, esporte, saúde, etc. O leitor sabe que na coluna ele espera receber as informações de forma superficial e irreverente. O enfoque ora em um personagem, ora em outro não altera a totalidade da história. Os dados que aparecem isolados e difusos são transformados em uma unidade homogênea. Na coluna, os personagens são evidenciados no instante em que se operam certas transformações de suas relações. Em seguida, eles saem de cena para que outros possam entrar. Continuamente, entrada e saída de personagens. Nesse ínterim repousa silenciosamente um espaço discursivo, um discurso que parece pertencer a um lugar comum, pouco perceptível porque está disseminado no campo social e se envolve em um fluxo imaterial que está em perpétua modificação. Nesse espaço discursivo, não existe um sujeito individual, mas um sujeito social, unidade que se constitui na multiplicidade e se manifesta como produto da interação social. “Quem fala seleciona palavras e as combina em frases, de acordo com o sistema sintático da 40 língua que utiliza; as frases, por sua vez, são combinadas em enunciados. Quem fala é apenas um usuário, não um criador de palavras” (Jakobson, 1971:37,38). Em se tratando da sua estrutura composicional, a coluna apresenta dois tipos de linguagem: a verbal e a imagética. A linguagem visual se apresenta sob a forma de fotografia ou desenhos caricaturais que se combina com o verbal, propiciando uma maior informalidade à notícia, cujo tema é ironizado e satirizado, quebrando a distância com o leitor. O certo é que, por ser limitado a um pequeno espaço, o colunista apresenta a informação de forma mais concisa que uma reportagem, que dispõe de um maior número de linhas. A brevidade da notícia dos fatos e o texto curto acentua a sua natureza falada. A fluidez da conversa dissipa a natureza de autoridade que o texto escrito legou à imprensa. Assim, na coluna, os textos são concisos, o que implica diretamente economia e simplicidade no uso de conectivos. Não há estruturas longas, nem períodos com muitas orações, o conteúdo informacional é passado de forma rápida, visto que estruturas elaboradas prejudicariam o efeito imediatista desejado. Nessa perspectiva, a coluna social se apresenta como o mais subjetivo dos gêneros jornalísticos. O colunista expõe o seu pensamento, faz interpretações, emite opiniões, sentimentos e atitudes. Diferentemente das demais partes do jornal, a coluna parece especialmente endereçada para o leitor. Por isso se identifica nela um estilo alimentado pela fala, pelo diálogo, pela conversa, onde aquele que lê é muito mais que um leitor: é um ouvinte. Curioso notar que a coluna se utiliza de um gênero rebaixado para falar da elite social e política. Graças ao estilo mais livre de redação que o noticiário comum e uma maior liberdade de invenção temática por parte do colunista, tal texto ser um dos mais pessoais dos gêneros jornalísticos. Essa liberdade do colunista que, segundo Buendia (1996), permite a opção pelos problemas sociopolíticos contemporâneos, o gosto pelas cenas de escândalo, pelas condutas excêntricas e pelos discursos inoportunos, ou seja, o que se denomina fofoca/boato. Num primeiro momento observa-se no texto da coluna social um cuidado em conciliar os interesses de uma comunicação eficiente com a aceitabilidade social. Assim há uma preocupação do uso de registro coloquial comprometido com a eficiência da comunicação, desde que palavras, expressões e combinações características deste registro sejam, pelo menos, aceitáveis num padrão mais acentuado de formalidade. Ou seja, em seu texto ocorre a incorporação de elementos coloquiais, mas, esta incorporação do coloquialismo está relacionada à sua especificidade, em que muitos dos 41 assuntos de que trata e a maneira breve como eles aparecem se ajustam sem dificuldades às expressões própria de um registro menos tenso. A tensão é diluída visto que o texto da coluna possibilita maior articulação entre quem escreve, quem lê e o que se escreve, sem deixar de atender aos requisitos: comunicação eficiente e aceitação social. Para isso, o colunista se apropria de palavras, expressões; construções do registro coloquial sem sair do registro formal. Um dos recursos utilizados pelo colunista é o uso do estrangeirismo, que imprime às colunas uma identificação com outras culturas, que são tomadas como modelos para comportamento social, vestuário e culinária (francês) e de status econômico (inglês). O uso de termos estrangeiros é sempre recorrente na coluna, mesmo havendo equivalentes em português. Este estatuto de universalidade encontra-se também no rosto estampado nas colunas: os mesmos rostos do Rio ou São Paulo podem ser vistos em Londres ou Paris. Outra característica de apelo ao leitor: uso de superlativos com a abundância do sufixo “érrimo” e “issimo”. Ex. chiquérrimos, queridíssima. Também se observa o uso de figuras de linguagem com pouco grau de inovação. A pontuação é um recurso bastante utilizado: as reticências são usadas entre as notas, recurso ambíguo porque de acordo com a interpretação que o leitor faça pode indicar elementos referenciais ou sugestão de idéias. O travessão separa expressões e orações intercaladas, responsáveis pelos comentários e sugestões do colunista sobre o que informa. Interjeição que valem por toda uma frase, são comentários que tem um papel metalingüístico, pois versam sobre o próprio texto. Como características das colunas sociais, temos: o detalhamento, as minúcias nas descrições, que são elementos ligados aos elementos referenciais. O trabalho gráfico na escrita das colunas procura representar a oralidade, seja por repetição de grafemas e uso de maiúscula (caixa alta) para a indicação de intensidade, seja pela pontuação excessiva. A repetição de grafemas marca a intensidade do sentido e a longa duração da pronúncia, o próprio sentido de extensão. Os hífens marcam os passos e a entonação da oralidade. Os pontos de exclamação e interjeição repetidos reforçam a expressão das falas. A reprodução do discurso direto possibilita um tom de conversa aos comentários que são feitos. Emergindo interlocutores a quem é dada voz, a coluna faz brotar diferentes discursos. A metalinguagem aparece com a discussão do valor aspectual no emprego do tempo verbal (presente do indicativo) é indício de permanência. Cabe assinalar o lado humorístico do texto: na coluna, há largo usode ironia, deboche e jogos semânticos. A pontuação é muito explorada em benefício do tom de deboche: as orações terminam por pontos de exclamação 42 ou interrogação e os termos utilizados buscam resgatar expressividade, ironizando e satirizando, como quem se admira e debocha daquilo que estar relatando. O espaço ocupado pela coluna exige um trabalho de diagramação. As colunas ocupam posições bem destacadas, de uma e meia página no caderno do jornal. Ganha destaque o nome do colunista que a assina e lhe dá nome. Cabe assinalar que também colaboradores assinam as colunas, muitas vezes mais de um por coluna, esse fato parece ser comum nos jornais em que vários profissionais atuam sob a supervisão de um editor chefe. A neologia é ponto de destaque, notadamente na coluna do Sued, quer pela sintaxe com composição e derivação de novos vocábulos, quer pela semântica. É comum, na coluna, a utilização de abreviações, abundâncias de onomatopéias, presença de gírias, recorrente uso de perguntas retóricas e outros recursos que visam estabelecer interlocução com o leitor. A dialogicidade presente no texto da coluna social permite entendê-la como uma transmutação do gênero oral da fofoca, que, ao migrar para o texto escrito do jornal, mantém as suas características. Kapferer (1993) ressalta que, mesmo com o aparecimento da imprensa, em seguida o rádio e finalmente a explosão audiovisual, a fofoca não desapareceu, pois o público continua a buscar informações valendo-se do ouvi-dizer. A emergência das mídias, longe de suprimir a fofoca, contribuiu para torná-la mais especializada. Seguindo as orientações de G.M. Young, ao sugerir que os textos deveriam ser lidos até que se pudesse “ouvir as pessoas conversando” (apud, Obelkevich, 1997, p. 43), a intenção foi ouvir a voz por trás do texto da coluna. Recomendação enfatizada por W. Ong (1998), ao situar o texto escrito como continuidade da oralidade; mesmo que a imprensa tenha, inicialmente, tentado eliminar os filtros, ainda permanecem ruídos que parasitam a comunicação. Assim, passamos a entender o texto da coluna como originalmente oral, um gênero de fofoca e boato que, ao migrar para o texto escrito do jornalismo, mantém as suas características. Segundo Kapferer (1993), o ouvi-dizer (bouche-à-oreille) desde os tempos pré- históricos é um meio de comunicação nas sociedades. O boato veiculava as informações, fazia e desfazia as reputações, precipitava os motins ou as guerras. Sob este aspecto, a fofoca pode ser entendida como uma manifestação cultural que marca um determinado espaço e tempo da vida social. Na fofoca, pois, surgem e se processam as expressões culturais, situações e relações cotidianas que vão projetando e instituindo o mundo cultural, como também evidencia-se um espaço onde ocorre a luta pelo poder. Com 43 suas informações ambíguas, ela legitima a vida cotidiana em suas relações informais e espontâneas. 1.3 - AS COLUNAS DO JORNAL O GLOBO O jornal O Globo, fundado em 1925 por Irineu Marinho, atualmente faz parte das Organizações Globo, que incluem a Rede Globo de Televisão, considerada uma das maiores redes de televisão do país. Ideologicamente, tal jornal é tido como conservador, tendo apoiado em 1964 o golpe militar que derrubou o regime constitucional. No entanto foi em 1970 que se pôde verificar o boom, resultante do modelo de desenvolvimento adotado pelos militares, que vai ajudar a definir os grandes oligopólios da comunicação, alavancados com os recursos do governo, principal anunciante dos meios de comunicação. Bahia (1990) vê esse período como fundamental para a modernização dos jornais. Será esse o caso do O Globo, que adotou novas técnicas a partir de favorecimentos governamentais. No período, alguns jornais eram beneficiados e outros eram submetidos e asfixiados pela censura prévia, como é o caso do semanário Opinião. Este estava entre as tantas publicações brasileiras atingidas pela censura prévia, imposta inicialmente no seu oitavo número impresso em 1972 e cuja intensidade aumentou, com prisões, ameaças, apreensões de edições, processos judiciais, pressões econômicas e lançamento de uma bomba na redação, até levar a direção do jornal, em 1977, a suspender a sua circulação. Caminho diferente de O Globo, que começou a modernizar a sua produção no ano de 1972, tornando-a melhor e mais econômica. Para isso, trocou a impressão letterpress, feita em chapas de chumbo e em baixo relevo, pela impressão offset, que funcionava com um carimbo, formado por uma chapa fina. A modernização vai situar o jornal como o mais lido no Rio de Janeiro, superando o seu maior concorrente, o Jornal do Brasil, e igualmente como o segundo mais lido do Brasil, sendo superado apenas pela Folha de S. Paulo. Neste período já havia se consolidado a profissionalização da atividade jornalística e a transformação dos jornais em empresas comerciais, processo iniciado na década de 60. Segundo Abreu (1996), foi na década de 60, que os jornais passaram a deter um considerável poder econômico, sendo possível a introdução de inovações técnicas, gráficas e editoriais. 44 Pesquisas de opinião realizadas trimestralmente pela Marplan 3 indicam que ocorre pouca variação na vendagem desse jornal, que chega a perfazer uma média de um exemplar para cada três pessoas. A pesquisa informa, também, que os leitores de O Globo, em sua maioria, pertencem às classes A e B, definidas como aquelas formadas por famílias com renda a partir de R$ 1.278,00 ou mais. Quanto ao sexo, a pesquisa indica que o público leitor é constituído em sua maioria por mulheres, sendo a faixa etária entre os 20 e 29 anos, e no tocante à escolaridade, a maioria dos leitores tem nível superior. O Globo ainda hoje é considerado um dos jornais brasileiros mais relevantes por se aproximar de uma idéia de veículo nacional, em virtude de seu alto índice de penetração. Fazem parte dessa classificação, de acordo com Werthein (1979), também os jornais O Estado de S Paulo, Folha de S.Paulo e o Jornal do Brasil. A publicação das colunas sociais de Ibrahim Sued e de Carlos Swann, nos anos de 1987 e parte de 1988 – período de instalação e funcionamento da Assembléia Nacional Constituinte – é significativa, haja vista a existência simultânea de duas colunas no mesmo jornal, utilizando a mesma língua, os mesmos temas, a mesma estrutura composicional e, estando submetidas aos mesmos padrões jornalísticos, marcam os seus textos com poucas diferenças. Entretanto, em sua especificidade, pouco visível, mas hegemônica, apresentam um diálogo contextual com uma totalidade de sentido. Nos fios discursivos desse diálogo, um conjunto de formas simbólicas expressam a distinção de uma elite, bem como o conflito que existe entre seus membros. No texto da coluna, essa elite justifica sua existência e administra suas ações em termos de um conjunto de estórias, cerimônias, insígnias, formalidades e pertences. É o que Geertz (1983) considera como antropomorfização do poder, que torna o caráter simbólico da dominação, impossível de ser ignorado. Nesse diálogo, segundo Bakhtin, são executadas pelo menos três vozes: “a do autor enquanto imagem, a do seu destinatário e aquelas que ressoam no discurso e que se representa independentemente de seu autor e que não é possível projetar nele ou no seu interior” (Bakhtin: 1981, p.82). 3 Fundada no Brasil em 1958, a Marplan é reconhecida como uma das mais respeitadas empresa de pesquisa do país, integrou-se à Ipsos em 2001, passando a constituir a área especializada em estudos de hábitos de mídia e consumo. 45 Observando essa tríade, o colunista é aquele que dá visibilidade a essa elite, e a coluna, o espaço demarcado com os sinais rituais da dominação, ou seja, “o mundo que o mundo deve imitar” (Geertz: 1983, p.201). O destinatárioé a recepção de assimilação dessas virtudes. Cabe lembrar Goffman (2008) e seu estudo sobre o comportamento humano em sociedade; ele observa que, quando um indivíduo desempenha um papel social, solicita de seus observadores que levem a sério a impressão sustentada perante eles. Pede-lhes que acreditem que o personagem que veem no momento possui os atributos que aparenta possuir, que o papel que representa terá as consequências implicitamente pretendidas por ele e que, de modo geral, as coisas são o que parecem ser. Goffman (2008) afirma que, quando um indivíduo se apresenta diante dos outros, seu desempenho tenderá a incorporar e exemplificar os valores oficialmente reconhecidos pela sociedade, muito mais do que o comportamento individual. Tal representação reafirma os valores morais da comunidade: Existe uma idealização dos estratos superiores e uma certa aspiração, por parte dos que ocupam posições inferiores, de ascender às mais elevadas, isto implica na representação de desempenhos adequados e que os esforços para subir e para evitar descer exprimem-se em sacrifícios feitos para a manutenção da fachada. Uma vez obtido o equipamento conveniente de sinais e adquirida a familiaridade na sua manipulação, este equipamento pode ser usado para embelezar e iluminar com estilo social favorável as representações diárias do indivíduo. (Goffman: 2008, p..41) A constatação de duas colunas no mesmo jornal e no mesmo contexto pode levar a um entendimento de que uma objetiva a representação de uma elite socialmente mais enraizada, exemplo da coluna de Ibrahim Sued; a outra, a coluna do Swan, com tons sutilmente variáveis, autoriza recepções inéditas, o que permite uma pluralidade de apropriações, portanto cria novos públicos e novos usos. Os dois exemplos levam a considerar as diferenciações culturais, não como a tradução de divisões estáticas e imóveis, mas como efeito de processos dinâmicos. Nos anos analisados (1987-1988) constatamos a variedade temática e a maior frequência dos assuntos de cunho: político, econômico, cultural, notícias internacionais, constituinte, social, cidade, esporte, religião e saúde. Ao comparar os temas que aproximavam e distanciavam as duas colunas, foi possível perceber que, no ano de 1987, predominava um maior índice de notas de cunho social. Elas se 46 aproximam quando versam sobre economia, notícias internacionais, constituinte, esporte e religião. Entretanto elas se distanciam no que tange o aspecto político, ou cultural, ou trata da cidade e da saúde. Apesar de as colunas privilegiarem o enfoque social, é visível uma maior quantidade de notas sobre a temática social na coluna de Sued, comparativamente à de Swann. Verifica- se um distanciamento entre as duas quando o tema é a cidade. Isto pode ser explicado pelo fato de que Sued dá destaque ao Rio de Janeiro, para ele, sede da elite. No ano de 1988, algumas modificações vão ser perceptíveis, como o fato de que a notícia política, ou seja, aquele acontecimento noticiável (escândalo, conflito, incerteza e proeminência de algum político) decresce na coluna de Sued, sendo sobrepujado pelas notícias sociais. Por outro lado, nessa coluna ocorre um aumento naquelas notícias decorrentes das atividades realizadas pelos congressistas no interior das comissões e subcomissões. Entrementes, na coluna de Swann, aumenta o índice de notas referentes ao aspecto político e diminui o enfoque social. Quanto aos temas que abordam cidade, esporte, religião e saúde, as duas colunas se aproximam. A insistência da mesma temática nas duas colunas evidencia o caráter ideológico do discurso, entendido como lugar de elaboração e de difusão de ideologia. Essa lição, aprendida com Bakhtin (1992), sublinha que a sobrevivência das duas colunas no mesmo contexto histórico atesta aproximação e distanciamento. A aproximação se revela pelo espaço de expressão de padrões ideais; por outro lado, também evidencia uma luta oculta entre uma elite tradicional e uma outra nascente. Nesse entendimento, a coluna do Sued poderia ser enquadrada no denominado colunismo clássico, aquele que dava ênfase aos expoentes do high society; a de Swann representava um tipo de colunismo surgindo, segundo Ramos (1994), durante a censura prévia da imprensa, que fez migrarem as notícias políticas para o espaço menos vigiado da coluna social. Cabe agora observar os elementos que compõem o enunciado em cada uma das colunas. 1.3.1. A COLUNA DE SUED Ibrahim Sued foi um dos principais colunistas da época. Filho de imigrantes árabes, ele começou sua carreira em 1946, como repórter fotográfico. Ficou famoso ao cobrir a visita ao Brasil do general Dwight Eisenhower, comandante das tropas aliadas, vencedoras da Segunda Guerra Mundial, e futuro presidente dos Estados Unidos. Sued fotografou o cumprimento de Otávio Mangabeira, que parecia beijar a mão do general. Essa fotografia 47 gerou muita polêmica, porque, de certa forma, retratava a submissão do país à política capitalista americana. Em sua primeira coluna, “Zum-Zum”, nascida nos anos 50 e publicada no jornal A Vanguarda, ele retratava a vida social do Rio de Janeiro, os hábitos, comportamentos e modas da elite brasileira, principalmente a carioca. Em 1954, a coluna passou a ocupar as páginas do jornal O Globo, onde ficou até o seu falecimento, em 1995. Tornou-se um dos mais conhecidos colunistas sociais. Considerado “pai do colunismo no Brasil”, Ibrahim Sued criou uma escola de jornalismo e influenciou vários jornalistas. Para Travancas (2001), Sued foi o fundador de um tipo novo de colunismo, informativo e opinativo, uma vez que ele não se detinha apenas na cobertura de festas e eventos da alta sociedade, mas privilegiava a informação e a opinião sobre os fatos políticos e sociais. A coluna de Sued no jornal O Globo mantinha uma estrutura e periodicidade fixas. Os temas mais frequentes tratavam de política e políticos, empresários e socialites, notícias internacionais e locais, boates, restaurantes, desfiles, moda, comportamento, viagens, festas, cultura, astros, economia, saúde, esporte, etiqueta social. O texto escrito era ancorado por fotos, charges e caricaturas. O espaço ocupado pelo colunista Ibrahim Sued era denominado Jornal do Ibrahim Sued, e ocupava meia página do Segundo Caderno. A coluna apresentava seis notas e uma minicoluna com notícias diversas; o texto imagético era formado de uma a quatro fotos, como podemos ver no fac-símile a seguir: 48 Fac-simile da coluna de Ibrahim Sued com a sua variedade temática 49 O colunismo de Sued possuía um estilo próprio, mais voltado para o relato dos políticos em eventos sociais e era, inclusive, produtor de gírias, como ademã que eu vou em frente, que ganhavam as ruas depois de serem destiladas e acrescidas de novas acepções; o de Swann era mais infringente, com seu tom zombeteiro. As duas se aproximando na evidência dos valores e dos antagonismos do contexto. Era comum encontrar na sua coluna normas de comportamento em sociedade, que iam desde as indicações de como organizar uma recepção até receber os convidados. Este tipo de informação era dirigido exclusivamente para a mulher e o discurso está ancorado em temas como felicidade, saúde e beleza. A fama de sua coluna relacionava-se ao uso da informação e da criatividade: lançou personagens, modismos, mesclou notas mundanas com informação sobre política e economia, encabeçou campanhas beneficentes, inventou bailes e festas, elegeu as dez mais belas mulheres, as dez mais elegantes anfitriãs da sociedade carioca, popularizou expressões e termos como “ademã”, “de leve”, “eu chego lá”, “os cães ladram e a caravana passa”, “olho vivo porque cavalo não desce escada” e tantas outras. Além das notícias locais e nacionais, a coluna do Ibrahim destacava assuntos concernentes aos astros e estrelas internacionais.A preocupação com a cortesia, predominante na coluna de Sued, não é contemporânea, ela aparece desde a Idade Média e se define como gênero na cultura ocidental, com a Renascença, como bem observa Burke (1997), ao analisar O Cortesão, de Castiglione. Nessa obra, ocorre uma discussão sobre o cortesão perfeito, e explicita-se o modo de adquirir a perfeição com o domínio do corpo, aparência, posturas e gestos. Tal tema também foi estudado por Elias (1994;1995). No Processo Civilizador, Elias associa o processo de civilização ao avanço da interdependência condicionada pelo grau de divisão de trabalho na sociedade, já que isto contribuiu para o surgimento de novos agrupamentos sociais que passaram a concorrer com um grupo já estabelecido anteriormente. Em A Sociedade de Corte, Elias analisa a formação da corte absolutista, oriunda da transformação dos guerreiros em cortesãos, ou seja, de uma nobreza belicosa a uma nobreza domada, com emoções abrandadas, uma nobreza de corte, em que quanto maior a dependência ao rei, mas alto o seu prestígio social. Também Burke (1991), no estudo sobre a formação das elites em Veneza e Amsterdam no século XVII, recompõe o universo de uma elite com hábitos de vida aliados ao comércio, ou seja, na origem do capitalismo. Nessa obra, Burke apresenta elementos que auxiliam a pensar a respeito das noções básicas de elite, poder e riqueza. 50 Como colunista de renome, Sued tinha autonomia para vasculhar a vida alheia e obter dados de relevância política ou relacionados com a economia do país. Sua coluna era respeitada pelo fato de ser uma espécie de criptograma, onde grandes lances eram antecipados e somente entendidos por seus destinatários. Ele atuava como jornalista, opinando sobre os principais fatos políticos do país e do mundo. Essa exposição de idéias e juízos de valor acerca dos acontecimentos ganhava aspectos de espontaneidade e dissipava a objetividade do texto jornalístico. Com seus textos curtos, que tinham uma finalidade informativa de entretenimento, trabalhava sobre idéias e deduzia quais seriam as consequências ideológicas e culturais dos acontecimentos. Sued tinha consciência da capacidade de penetração da própria coluna em diferentes meios sociais. O perfil de Sued enquadra-se naquele jornalista identificado por Patrick Champagne (apud, Rebelo: 2002) como o profissional que procura a notícia e as informações “quentes” e completas com uma maior rapidez. Sued participava os fatos ocorridos na privacidade dos políticos e nas salas palacianas. A narrativa era alimentada em seu convívio direto com os acontecimentos do país e do mundo. Tudo isso não apenas lhe proporcionou ser o porta-voz dessa elite, como o tornou testemunha das circunstâncias históricas. Por essa razão, a coluna de Sued parece cristalizar conceitos particulares de um determinado tempo e segmento social. As constantes abordagens de eventos, reuniões sociais e festas que giravam principalmente em torno de uma elite e o detalhamento excessivo dos eventos, acrescido de valorações, desvelavam a representação de uma elite nacional. Mas não apenas o estilo de vida dessas pessoas podia ser evidenciado; as citações que estruturam o texto das notas de sua coluna guardam a memória de tal grupo social. Os relatos dos banquetes que aliavam quantidade e refinamento era mérito de alguns poucos bem-nascidos, sempre sujeitos com nomes e sobrenomes precedidos de títulos expressivos de sua distinção social. Geralmente, o enfoque era na elite nacional e internacional, mas nem sempre esse grupo era constituído pelas mesmas personagens, já que existia uma dinâmica. A mobilidade era um fator essencial nessa dinâmica; as intrigas, rixas e negociações funcionavam como instrumento de busca de contato, e a forma dessa elite permanecer unida. Eles se confrontavam e se assimilavam, e nesse processo de continuidade e deslocamento, iam-se configurando como um grupo no qual os membros estão ligados uns aos outros, em múltiplas relações e estratégias de competição e cooperação para obtenção e manutenção do poder. Eram tais estratégias de competição e/ou cooperação que definiam o 51 pertencimento do grupo. O consentimento da publicidade de sua privacidade, pela coluna social, fazia parte da visibilidade e da legitimidade sociais. Os eventos narrados pela coluna social do Sued eram um resquício das notícias publicadas pelo jornal El País, do Segundo Reinado, que mantinha em suas páginas uma seção intitulada “notícias sociais”, dedicada aos acontecimentos da corte. Tanto que os relatos da coluna de Sued apareciam como um ritual cerimonioso que ia desde a descrição da estética da mesa, os vinhos apropriados para determinado prato, o comportamento à mesa ou em sociedade, até o modo de vestir do anfitrião e dos convidados. Contemplava-se mesmo a disposição dos copos e dos talheres que, seguindo a orientação francesa, devem ser virados para a toalha, de modo a apresentar o brasão ou as iniciais dos hosts. O comportamento à mesa exigia do convidado uma postura corporal e um ritual de escolha do talher correto, incluindo a distinção do alimento que devia ser comido com as mãos. Essa percepção da coluna social como porta-voz da elite, nos moldes da nobreza do antigo regime, é confirmada por José Mauro ao lembrar que, até o início do século XX, o jornal era escrito em português, mas a crônica social em francês (apud, Erbolato, 1981, p.39). Na nota da sua coluna, Sued comenta: “a aparência deve privilegiar o bom gosto e a elegância, sem esquecer a maquiagem apropriada e o emocionar-se evitando tensões”. Isso é indicativo do cuidado com a conduta. Sued alerta para a omissão do nosso caráter mundano: a não permissão de paixões que possam lembrar os hábitos animais de um grupo socialmente projetado para ser superior. Nietzsche (1998) ao buscar a origem da idéia e juízos sobre o “bom”, afirma que “foram os “bons”, isto é os nobres poderosos, superiores em posição e pensamento que sentiram e estabeleceram a si e a seus atos como bons, em oposição a tudo que era baixo, de pensamento baixo e vulgar, isto é plebeu”. Para Nietzsche, desse pathos da distância é que eles tomaram para si o direito de criar valores, e de cunhar nomes para os valores que lhes importavam por sua utilidade. Este pathos da nobreza e da distância é a origem de um sentimento global de uma elevada estirpe senhorial, em sua relação com uma estirpe baixa, com um “sob”. É aqui, segundo Nietzsche, que se localiza a oposição entre “bom” e “ruim”. No cardápio desta elite: boeuf a l`Etuvée à la Chinoise, boeuf à la Bourguignonne, canard aux olives, canard à l`Orange, ragoût de lapin au vin. Eis algumas denominações, dentro do arsenal vocabular da coluna, que indicavam o predomínio da culinária francesa; com raras exceções, apareciam pratos da cozinha tradicional brasileira. Possivelmente, o domínio dos sinais de distinção pelo colunista seja a razão para o sucesso de sua coluna; essa elite via em seus conselhos os sinais de uma representação confiável. 52 Algumas notas do colunista pareciam dirigir-se em especial às mulheres. Nelas, ele enfatizava normas de comportamento em sociedade: como ser um bom aluno, de que forma uma mulher deveria se comportar nos restaurantes, nas compras, no cinema, e como escolher um bom vinho, fazer um assado e falar ao telefone. Os sinais do texto da coluna podem registrar a maneira pela qual os indivíduos produzem o mundo social, por meio de suas alianças e seus confrontos, das dependências que os ligam ou dos conflitos que os opõem. Nesse sentido, a linguagem passa a ser investida de significações plurais e móveis, construídas na negociação entre uma proposição e uma recepção, no encontro entre as formas e motivos que lhes dão sua estrutura e as competências ou expectativas dos públicos que delas se apoderam. E por mais que se queira fixaro sentido e enunciar a interpretação correta do interlocutor, ele inventa, distorce e produz em uma esfera específica, em um campo que tem suas regras, suas convenções, suas hierarquias; as palavras se evadem e ganham sentido, peregrinando na longa duração, através do mundo social. Aqui está a importância da fofoca com a função de fazer comparação entre a pessoa de quem se fala e algum ponto de referência social, tais como as normas sociais ou a perspectiva e o comportamento dos falantes. Aqui cabe uma referência à teoria da comparação social desenvolvida por Festinger (1954), que acreditava que as pessoas têm um desejo fundamental de avaliar suas opiniões e habilidades e que elas preferem avaliar-se conforme o que ele chama de “testes da realidade objetiva, ou critérios sólidos”. Entretanto, o autor observa que quando os testes de realidade não estão à mão, os indivíduos precisam recorrer uns aos outros para obter informações. Para o autor, a comparação social é motivada não apenas pela necessidade de aperfeiçoamento pessoal, mas também para reclamar uma identidade social. Sarah e Salovery (2008), em sua análise de uma descrição social comparada da fofoca, consideram seis tipos de comparações: com os semelhantes, com os menos afortunados, com os mais afortunados, com os membros do grupo, com pessoas de fora do grupo, com entidades imaginárias e na comparação emocional. Vale a pena tratar de cada uma delas. Segundo Sarah e Salovery (2008), a comparação com os semelhantes ocorre, principalmente, com os amigos íntimos, com quem, possivelmente, compartilhamos os mesmos valores e atitudes. O objetivo dessa comparação é obter informações para validar opiniões ou medir habilidades. A fofoca é o meio para avaliar se o comportamento corresponde à expectativa social. Segundos os autores, as instâncias de transgressão moral que são discutidas na fofoca servem de moduladores de princípios morais, ou seja, eles 53 servem como auto-avaliação porque dão sustentação exterior a nossos próprios pontos de vista. Já a comparação social para baixo, conforme os autores, é aquela realizada com o intuito de autopromoção. A fofoca, nesse caso, é o meio ideal para promover a si mesmo. Sarah e Salovery (2008) observam o fluir de emoções, como o orgulho, para quem se promove, e o desprezo, para o que é comparado. Essa modalidade envolve não apenas a comparação consigo mesmo mas também com o conceito que o falante tem de regras sociais. A comparação social para cima também é abordada pelos autores: ela ocorre quando as pessoas estão interessadas em melhorar a si mesmas – envolver pessoas consideradas superiores é fundamental para adquirir informações na comparação feita consigo mesmas. Isso quer dizer que a comparação social para cima está mais comumente ligada a esforços de melhoria pessoal e da própria posição social. Em contrapartida, a comparação interna e externa ao grupo, de acordo com os autores, é feita para estabelecer uma identidade social. Segundo a teoria da identidade social de Hogg (2000, apud Sarah e Salovery: 2008), o sentimento de pertença a um grupo leva os indivíduos a se sentirem melhor sobre si mesmos e menos incertos sobre o mundo. A filiação em determinados grupos é que estabelece a identidade social e a construção da alteridade, ou seja, o eu que pertence a um grupo e o outro que é o diferente. Por conseguinte, a fofoca é fundamental para identificar quem pertence e quem não pertence ao grupo. Há ainda a modalidade denominada “social construída”, aquela estabelecida com pessoas imaginárias ou entidades sociais. Ela representa uma projeção de qualidades ou conjuntos de tendências as quais se deseja imaginar pertencentes a outras pessoas. Aqui, a fofoca tem a função de comparar aquele que é seu alvo com o comportamento perfeito da encarnação imaginária das normas. Esta é uma maneira pelas quais as normas sociais podem ser transmitidas e mantidas. O resultado da comparação social feita com entidades imaginadas ou socialmente construídas é que os comparadores têm um panorama menos acurado do mundo, mas sentem suas opiniões e habilidades validadas (Goethals, 1986, apud, Sarah e Salovery, 2008). Finalmente, Sarah e Salovery tratam da última comparação, a emocional. Esse tipo de comparação ocorre quando a pessoa se sente ameaçada e procura outras pessoas em situação semelhante. Segundo Schacter (1959: apud Sarah e Salovery,2008), esse comportamento afiliador pode ser uma necessidade de comparação emocional para entender melhor os próprios sentimentos ou uma situação. Destarte, a fofoca é um ponto de apoio como fonte de informação de comparação emocional durante tempos incertos ou ansiosos. 54 Em suas conclusões Sarah e Salovery (2008) afirmam que a fofoca se origina da comparação social. É ela que provê os indivíduos de informações úteis e necessárias para se autoavaliar e reclamar uma identidade social. Assim, para os autores, as pessoas fofocam para se sentirem socialmente conectadas, para não se sentirem isoladas, sem aliados e sem um grupo ao qual pertencer. Nessa perspectiva, a coluna social é um espaço institucionalizado de fofoca necessário para o funcionamento do corpo social, e a fofoca, um fenômeno que se apresenta promissor para estudos de processos inter e extragrupais. Tal visão pode ser referendada por Bird e Dardenne (apud, Traquina, 1993), que, ao procurarem entender a relação do jornalista com a notícia, identificam uma base mítica da organização da realidade a partir da experiência sensível, composta de diversas experiências, narrativas e relatos, que vão se reunindo, até compor um mito geral. Para eles, essas mesmas características são identificadas também na notícia. Da mesma forma que uma das funções do mito é delinear as fronteiras do comportamento aceitável, só tendo significado ao contar os temas e os valores culturais – que só existem se forem comunicados – isso também transcende a função tradicional da notícia de informar e explicar, contribuindo igualmente para um sistema simbólico que recria o sentido de segurança da sociedade. Com base nesses autores, a notícia pode ser entendida como um discurso que se apresenta semioticamente constituído por uma variedade de sistemas de significações que, em sua maior parte, remete de forma direta à realidade, ou como um dos múltiplos textos culturais nos quais se realiza a cultura. Reforça essa visão Carey (apud, Manoff, 1986), ao identificar uma matriz mitológica que caracteriza a produção jornalística como manutenção e criação mítica. O jornalista, ao narrar os acontecimentos, está na verdade utilizando valores culturalmente embutidos, retirando-os da cultura e reapresentando-os a ela. Também Darnton (apud, Traquinas, 1993), observa que, nas comunidades tribais, o mito oferecia a abolição do tempo transcorrido pelo reencontro com a origem, pelo retorno do atual ao antes do tempo. O mesmo acontece com a notícia de jornal, onde os acontecimentos ocorridos em uma sociedade particular são recontados por meio da mesma história. Robert Darnton chegou a tal conclusão ao descobrir que a notícia que escrevia sobre o roubo de uma bicicleta já tinha sido contada antes em outro contexto. 1.3.2 - A COLUNA DE SWANN 55 A coluna de Swann, nos anos de 1987/88, era formada por meia página, com 22,5 cm, localizada no Segundo Caderno, denominado Grande Rio, ocupando invariavelmente as páginas 6, 7, 8, 9, 10, 11 ou 12; com cerca de dezesseis colunas por dia. As notas eram bem menores que as de Sued e havia um espaço denominado Zona Franca, com mininotícias; apresentava também fotos e caricaturas. A coluna apresentava cerca de seis fotos e uma ilustração de segunda a sábado, e três fotos e uma ilustração, aos domingos, como podemos ver no fac-símile à página 58. Um dos seus principais titulares foi Ricardo Boechat. Contam que ele inicioucomo repórter aos dezessete anos de idade, no antigo Diário de Notícias, em 1970, mesmo sem ter concluído o correspondente ao atual ensino médio. Em 1971 passou a trabalhar com Ibrahim Sued, interrompendo essa relação em 1983, quando assumiu a Coluna do Swann, no jornal O Globo. Dela foi titular por 18 anos e em 1997 passou a dar o seu próprio nome à coluna. No período mencionado, Boechat havia assumido a Secretaria de Comunicação Social do governador Moreira Franco (1987/89), passando a assinar a coluna de Swann diversos jornalistas, sendo o mais frequente Fred Suter, considerado o braço direito do Zózimo 4 . Após um rompimento entre eles, Suter passou a assinar uma coluna no Jornal do Brasil e, em seguida, a coluna do Swann em O Globo. Por essa coluna passaram vários colunistas. Entre seus titulares figuram Ancelmo Góis, Dora Kramer, Elio Gaspari, Marcelo Pontes, Marcos Sá Corrêa, Maurício Dias, Paulo Fona, Walter Fontoura, Zózimo, Ricardo Boechat e Fred Suter. Esses colunistas deram o tom da coluna social de Carlos Swann, do jornal O Globo, caracterizada por um estilo que exigia do leitor “os olhos entreabertos da sutileza”, nas palavras de Elio Gaspari. O tom geral da coluna era pautado na ironia. A seguinte frase da coluna ilustra bem o que se propunha: “O problema de Brasília é o tráfico de influência, enquanto o do Rio é a influência do tráfico” (FILHO, 2000). Nos anos de 1987/88, a distribuição temática apresentava-se da seguinte forma: 4409 notas políticas, 1415 sobre economia, 3855 sociais, 409 relacionadas à cidade, 2201 a respeito de eventos culturais, 963 notícias internacionais, 233 sobre esporte, 61 notas sobre religião, 4 Jornalista brasileiro, (...) considerado um dos modernizadores do colunismo social brasileiro, um estilo carioca, bem-humorado e mordaz de dar notícias. Entrou para a profissão no Jornal do Brasil (1963) e, depois, assumiu a coluna Carlos Swann (1965). Aos poucos construiu um novo estilo, que além de trazer os acontecimentos sociais, passou a inserir também notícias exclusivas, particularmente de política e economia. Durante o Regime Militar foi preso duas vezes por curtos períodos por causa de notas envolvendo militares. No Jornal do Brasil, onde trabalhou cerca de 25 anos, foi também coordenador de colunas e editor do Caderno B. Passou para O Globo (1993), no qual passou a assinar a coluna Zózimo.(...). Esse colunista carioca fez escola no jornalismo brasileiro, com suas notas diárias cheias de humor sutil e elegância. (disponível em http://www.netsaber.com.br/biografias/ver_biografia_c_1611.html, acesso, 24/10/2010) http://www.netsaber.com.br/biografias/ver_biografia_c_1611.html 56 162 sobre saúde e as notas especificamente sobre a Assembléia Nacional Constituinte totalizam 237 nos dois anos. Observa-se que nela havia uma ênfase nos temas relacionados à política (706), no ano de 1987 e (709) no ano de 1988. Esses dados, somados às notas da Constituinte (122 no ano de 1987 e 115 no ano de 1988), ultrapassam a temática social (1485 no ano de 1987 e 2370 no ano de 1988). Das 13.945 notas analisadas, nos anos de 1987 e 1988, a maior parte focalizam o cotidiano dos homens políticos; seguido por aquelas que abordavam o homem em sua convivência com o outro; em terceiro lugar, a temática eram os assuntos culturais que versavam sobre exposição e apresentação de artistas; em quarto lugar, os assuntos econômicos; depois notícias internacionais, uma pequena proporção de notas sobre a cidade, sobre esporte, constituinte e saúde. Nota-se que a presença de pessoas identificadas com as altas rodas da high society é menos representativa, atingindo o percentual de 55% das notas, enquanto os temas sobre a política e os políticos somam 61% das notas publicadas. Isso quer dizer que a cobertura do mundo político é expressiva na coluna de Carlos Swann. Na cobertura dos trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte havia uma hierarquia para a publicação de notas, privilegiavam-se os parlamentares que ocupavam cargos dentro do Congresso Nacional (presidência do Senado ou da Câmara); os líderes de governo ou partidários; os que eram citados pelos seus pares; os que estavam envolvidos em algum escândalo ou àquele candidato a algum cargo eletivo. Isto indicava que havia uma ênfase nas ações individuais dos congressistas e que as críticas nominais apareciam veladas em notas que tinham um tom pejorativo, envolvendo os políticos e os fatos relacionados aos bastidores da Assembléia Constituinte. Também indicava que, apesar dessa coluna dar uma maior ênfase ao político, ainda era um espaço de fofoca e intriga, e de invasão da privacidade dos políticos. Exemplo disso é a nota da coluna do dia 25 de junho de 1987: Mesas separadas Não convidem mais para a mesma mesa o Deputado Helio Costa e o Ouvidor-Geral da República, Fernando César Mesquita. As deferências especiais com que o Presidente Sarney tem cumulado ultimamente o Deputado do PMDB despertaram ciúmes do futuro Governador de Fernando de Noronha. Depois de trocarem farpas, um não quer mais ouvir o nome do outro. Entretanto, ainda eram a fofoca e a intriga que constituíam os elementos básicos da coluna social. Thompson (2008, p. 129) chama os furos de bastidores de fenômeno do 57 vazamento, conceituado pelo autor como uma falha no esforço de administrar a relação entre a região frontal e o comportamento de fundo, ou seja, uma revelação intencional de informação por alguém de dentro que decide tornar público algo que sabe reservado para a região de fundo. Na coluna, o acesso aos bastidores confere credibilidade e a legitima como uma forma de poder, capaz de produzir efeitos reais, sem gasto aparente de energia (Bourdieu, 1977). A ênfase dada pelo colunista ao que acontece nos bastidores da política chega a cobrir melhor a notícia do que todo o resto da imprensa. O Legislativo, palco de decisões vitais para o dia a dia dos brasileiros, só recebe a cobertura em determinados momentos de interesse direto dos meios de comunicação. O que caracteriza a coluna é o fato de ela ter abastecido o resto da mídia com revelações importantes, fato já observado por Ramos (1994). Por isso o colunista depende, acima de tudo, de contatos, como comprova Joyce Pascowitch, ao afirmar que para fazer uma boa coluna não é preciso circular tanto e sim estar atento aos movimentos do mundo, da cidade, das pessoas. De 90% a 95% das informações que eu dou, são garimpadas por telefone. É muito raro alguém me entregar de bandeja. Só uma única vez um furo caiu no meu colo. O resto foi batalha. (in Gonçalves, 1999). São freqüentes, na coluna, os furos: notícias exclusivas que o colunista publica resumidamente para que, no dia seguinte, pelo menos alguns jornais desenvolvam o assunto em reportagens detalhadas, como, por exemplo, a nota da coluna do dia 25 de janeiro de 1987, que antecipou a nomeação do Ministro Raphael de Almeida Magalhães para a Chefia do Gabinete Civil. Essa possibilidade de constantes furos jornalísticos explica-se pela fofoca; muitas vezes, o colunista divulga a informação sem verificar a sua veracidade. Para Ramos (1994), isso possibilita uma “proliferação descontrolada dos balões de ensaio, das maldades e das intrigas, formando uma malha jornalística tão frouxamente trançada, que por ela escapam com excessiva facilidade a ética e a aproximação da verdade”. Assim, evidencia-se o limite pouco nítido entre um boato, fofoca ou intriga, da informação verídica no noticiário das colunas. Mas isso é possível porque o colunista não está submetido à regra elementar da produção da notícia: o respeito ao fato e a identificação da fonte. Como a coluna é pessoalmente assinada, muitas vezes o discurso do colunista é excessivamente adjetivado e o 58 personalismo é exacerbado, refletindo interesses, gostosou compromissos pessoais. Esses elementos contaminam o texto da coluna e lhe dá uma coloração de fofoca. Assim, é possível perceber, tanto na coluna de Sued como na de Swann, respeitando as suas nuances, a semente de histórias chamativas de ligações secretas envolvendo proeminentes políticos. A especificidade de cada coluna pode ser atribuída ao enfoque temático, enquanto na coluna de Sued a ênfase é para as notícias sobre a high society: casamentos de nobres linhagens, enlaces de fortunas notórias ou personalidades do mundo político oficial; em Swann o foco são os políticos e as atividades dos parlamentares. 59 Fac-simile da página de O Globo, na qual era publicada a coluna de Swann 60 O tom valorativo presente nas duas colunas pode permitir entendê-las como parte da teia cultural que, expressa em seu texto, imprime na palavra um sentido vivencial. Isso nos leva a pensá-las como um espelho do cotidiano e como construtoras de sentidos, já que elas não só refletiam o sistema cultural, como também lhes davam corpo. A idéia do jornalismo como fruto do sistema cultural foi enfocado por Colombo (1998), ao reconhecer a existência de um jornalismo nacional que se distingue pela tradição, pela cultura, pelas técnicas, pelos métodos de trabalho, e não apenas pela língua. As pequenas nuances entre as duas não residem apenas no conteúdo das notícias, mas na forma de representação e nas convenções da narrativa empregada, deixando transparecer as formas divergentes de representação da vida nacional. Nesse sentido, é possível afirmar que a coluna do Sued vinculava-se ao universo dos políticos e da alta sociedade formada durante o regime militar, e a de Swann apontava para um novo cenário que estava sendo montando a partir da elaboração de uma nova constituição. Possivelmente, essa seja uma prática do jornal visando “agradar gregos e bárbaros”. Nessa perspectiva, cada colunista converte o discurso do outro, em seu próprio discurso: ambos constituem um discurso social. A apreensão do discurso social torna-se mais visível na coluna social porque no período analisado, o interesse dos jornais pela Assembléia Constituinte privilegiava os fatos relacionados à votação no plenário, uma vez que os trabalhos das subcomissões tinham o caráter provisório, exigindo votação futura. Já a coluna social dava maior ênfase ao que ocorria nos bastidores do Congresso e ao que acontecia nas comissões e subcomissões. As amostras das duas colunas quanto à abordagem política ilustram o fato já observado de que ambas não se encontram exclusivamente voltadas para a futilidade fidalga da elite. Ao contrário, evidencia-se nelas, também, a importância do momento histórico por que passava o país. De acordo com pesquisa realizada pelo Departamento de Sociologia e Política da PUC/RJ (Jorge, 2000), o período de elaboração da Constituinte foi o ponto áureo de atenção da imprensa, visto que foi um momento em que o Congresso Nacional se fortalecia politicamente, primeiro porque recuperou atribuições que o regime militar havia retirado, e depois porque também ganhou outras atribuições que jamais havia tido. Assim, a coluna social torna-se um espaço discursivo complexo e permeado de historicidades construídas e disputadas, lugar de deslocamentos, interferência e interação, em que interagem e se digladiam dois grupos sociais: um grupo representativo de uma elite de longa data e outro representado por aqueles que ascenderam ao poder com as mudanças ocorridas no Brasil na década de 80. O primeiro grupo ironizava e procurava estigmatizar o 61 novo grupo como pessoas de menor valor humano. Considerava-se que lhe faltava a virtude humana superior, virtude que o grupo anterior atribuía a si mesmo. No Brasil, o período compreendido entre 1985 e 1990, conhecido como Nova República, é caracterizado por transições: democrática, política, econômica e social. Nas colunas sociais do jornal O Globo, pode-se observar o movimento de migração do grupo que ascende ao poder, formado por alguns políticos até então excluídos e novos ricos que procuram assimilar as virtudes do grupo anterior, que os levariam a pensar a si mesmos como humanamente superiores. Isto não quer dizer que a nossa análise esteja pautada numa oposição binária (elite e não elite), mas no entendimento do discurso da coluna social como um processo permanente de construção e reconstrução do lugar, do passado, da cultura, cujo papel ativo é desempenhado pelos atores sociais. Nesse sentido, a coluna social é capaz de revelar o processo de mudanças que obriga a reler o passado e o presente e a readaptar significados. Esses processos são em si mesmos elementos culturais dinâmicos, cujos protagonistas não poderão ser considerados sujeitos passivos do sistema cultural do qual fazem parte. Para entender melhor, cabe aqui a recorrência a Elias e à idéia de configuração social. Se quatro pessoas se sentarem à volta de uma mesa e jogarem cartas, formam uma configuração. As suas ações são interdependentes. Neste caso, ainda é possível curvarmo- nos perante a tradição e falarmos do jogo como se este tivesse uma existência própria. É possível dizer “o jogo hoje à noite está muito lento”. Porém, apesar de todas as expressões que tendem a objetivá-lo, neste caso o decurso tomado pelo jogo será obviamente o resultado das ações de um grupo e indivíduos interdependentes. Mostramos que o decurso do jogo é relativamente autônomo de cada um dos jogadores individuais, dado que todos os jogadores têm aproximadamente a mesma força. Mas este decurso não tem substância, não tem ser, não tem uma existência independente dos jogadores, como poderia ser sugerido pelo termo “jogo”. Nem o jogo é uma idéia ou um “tipo ideal”, construído por um observador sociológico através da consideração do comportamento individual de cada um dos jogadores, da abstração das características particulares que os vários jogadores têm em comum e da dedução que destas se faz de um padrão regular de comportamento individual. (Elias, 1987, p.18) A idéia do jogo como um sistema de interdependência complexo, metáfora utilizada por Elias para pensar relacionalmente os grupos humanos, indica que entram no processo de configuração e reconfiguração social as experiências, as adaptações, as reconstruções e a 62 imaginação dos grupos que interagem e conflitam. Nesse processo, alguns elementos são incorporados e outros rechaçados. Sob este prisma, o que parece ser uma ruptura entre o que é considerado tradicional e o que é atual não pode ser encarado como conceitos estáticos, mas na perspectiva de que um existe por força da existência do outro. Tal fato é perceptível pelo constante retorno ao anterior como manifestação do atual. As suas fronteiras não são demarcadas e não supõe totalidades culturais independentes, mas sim sistemas que vão se constituindo e passam a integrar novas relações a partir de deslocamentos de um e de outro. No Brasil, o processo de reconfiguração social é visível na década de 80 com a transição democrática, o impacto da morte do Presidente Tancredo Neves, a crise econômica da década e a instalação da Assembléia Nacional Constituinte. Para os dois grupos que disputavam o poder de elite o momento é de insegurança, o mesmo clima que era vivenciado em todo o país com a crise econômica, a recessão, o desemprego, a inflação e o desgaste dos salários, bem como a sucessão de planos econômicos e ministros. Isto afetava a auto-imagem desta elite social que se via como pessoas melhores e dotadas de virtudes. Apesar dos conflitos entre os dois grupos, eles compartilhavam a crença em virtudes comuns e ausentes nos demais. Pode-se notar, na coluna de Sued, o seu saudosismo e preferência pelo Rio de Janeiro como espaço da corte, que é evidenciadopela sua repulsa, ainda nos anos 60, pela mudança da capital para Brasília. Os habitantes da nova capital eram apresentados como homens feitos para o trabalho braçal e sem vocação para a vida social. Como afirmava Ibrahim: “o Rio será sempre o Rio. Mesmo porque Brasília não tem a menor condição de funcionar como sede da capital da República. A verdade é que, por enquanto, só oficialmente Brasília será a capital. Mas oficiosamente (não há alternativa) será o nosso querido Rio”. (Sued, coluna do dia 21 de abril e 1960.) Aqui sobressai a visão do novo como alteridade não reconhecida. Nessa oposição entre o eu e o outro, o outro é o estranho, ou seja: aquele que trabalha. O eu considera o labor vulgar e assume os ares aristocráticos da desenvoltura e do capricho A predeterminada superioridade do grupo ancorava a crença de que nem mesmo valesse a pena dar visibilidade a algo invisível. A imagem negativa dos trabalhadores de Brasília era o inverso da imagem positiva que esse grupo mantinha de si mesmo. Isto quer dizer que os comentários depreciativos emitidos por esse grupo de elite se tornam, ao mesmo tempo, elogios que costumam restringir-se ao próprio indivíduo ou aos grupos com que ele se identifica. As notícias sobre as pessoas publicamente conhecidas 63 traziam fama para o próprio indivíduo e seu grupo. De um lado, o discurso torna visíveis os valores daqueles que detinham o poder e que agiam como guardiões da imagem do grupo e das atitudes aprovadas, num processo dialético de exclusão e inclusão. Por outro lado, para o grupo que ascendia socialmente, o discurso da coluna era a bússola que orientava a identificação de pertencimento a essa elite social, retirando-o da marginalidade, entendida com a mesma noção de homem marginal, desenvolvida por Everett Stonequist da Escola de Chicago 5 . Para ele, a marginalidade não deve ser definida apenas em termos étnicos ou raciais. A personalidade marginal é encontrada quando um indivíduo se vê involuntariamente iniciado em duas ou várias tradições históricas, lingüísticas, políticas ou religiosas, ou em vários códigos morais. Para esse grupo em ascensão as suas atitudes correspondiam ainda ao antigo tipo de organização social a que estava habituado, quando sua nova posição social já não correspondia a essa organização social. Os seus membros deixam de ter marcos que os possam guiar e normas sociais em que possam confiar. A coluna social funcionava como um difusor de normas e crenças. Possivelmente era para esse grupo que Ibrahim Sued se dirigia ao afirmar em entrevista a um semanário carioca, no dia 26 de junho de 1969, que a maior contribuição da coluna social para o Brasil foi elevar a educação do povo (vestir e comer bem). Em suas palavras, “alimentar a sofisticação e o supérfluo, sem os quais a vida não vale nada”. Os banquetes, através da estrutura e do ritual, narrados pela coluna social, remetem à memória o fato de que o ato de comer não é um ato solitário ou autônomo do ser humano. Neles estão a origem da socialização. Apesar da prática de comer junto, partilhando a comida, ser comum entre os homens e os animais, a diferença é que a comensabilidade humana atribui sentidos aos atos da partilha e eles se alteram com o tempo. É possível observar que ao longo das épocas e regiões, diferentes culturas humanas encaram a alimentação como um ato revestido de conteúdos simbólicos. Cabe lembrar que os significados desses conteúdos não são interpretados pelas culturas que o praticam, mas sim cumprido como um preceito inquestionável. 5 Por Escola de Chicago costuma-se designar um conjunto de trabalhos de pesquisa sociológica realizados, entre 1915 e 1940, por professores e estudantes da Universidade de Chicago. A característica principal dessa escola é ter iniciado um processo que aborda os estudos em antropologia urbana, em que o “outro” torna-se o “próximo”. Tendo no meio urbano seu foco de análise principal, a Escola desencadeia os estudos relacionados ao surgimento de favelas, a proliferação do crime e da violência, e ao aumento populacional das grandes cidades. 64 Elias (1998), ao acompanhar as mudanças dos processos sociais no ocidente, elege o ritual à mesa como indicador de que a partir do século XVI o conceito medieval de boas maneiras – “cortesia”, praticado pelos nobres na corte, começa a ser designado “civilidade”, expressão que abrange todo um novo sistema de propriedade corporal, aplicado não apenas à elite, mas a todos os cidadãos. Segundo Elias, a mudança social decorre do fato de que as cadeias de interdependência modificaram-se, visto que as antigas formações sociais são solapadas por uma nova e as diferentes formações sociais dão origem a uma nova estrutura de mentalidade. Para confirmar sua tese Elias (1998) analisa a Corte de Versalhes, no século XVII, quando a nobreza, que até então dependera da força, da fanfarronice e do vigor e violência pessoal para deixar sua marca, teve que se adaptar a uma outra maneira de agir pautada na cautela, observação, astúcia e no disfarce dos objetivos e das paixões. Estas novas maneiras, tanto as regras formais de protocolo e precedência como as regras não faladas, eram o termômetro para indicar quem era superior a quem. À medida que a burguesia galgava o poder, sentia necessidade de se apropriar destes códigos. Não é de se estranhar a proliferação de manuais que instruíam sobre a maneira de se comportar nos melhores círculos. São vários os manuais, dos quais podem ser destacados: O Cortesão, de Baldassare Castiglione, publicado na Itália em 1528, O Galateo Espanhol, de Lucas Gracián Dantisco, publicado na Espanha em 1585, O discreto e Oráculo Manual e Arte da Prudência, ambos do jesuíta Baltazar Gracián, publicados na Espanha em 1646 e 1647, respectivamente. O Cortesão, de Castiglione, é uma obra em forma de diálogo que se passa no Palácio de Urbino, no ano de 1507. A obra é constituída de quatro partes, as quais, em conjunto, pretendem definir quais características, em relação a comportamentos, discursos e aparência, deveria possuir o homem ideal. Burke (1997), ao analisar a obra, observa que o livro alcançou grande repercussão dentro e fora da Itália e transformou-se em uma espécie de centro do universo moral. Entretanto, estas regras não são estáticas, elas vão se modificando quando surgem novos conceitos que mais se adaptem ao momento. Assim, O Cortesão de Castiglione é substituído pelo O Galateo Espanhol, um tratado destinado a um público amplo e genérico, extrapolando o universo da corte de Castiglione. Em analise da obra, Hansen (In Novaes, 1996), observa que ele encampa uma concepção maior do ser humano, considerando não apenas as questões levantadas por Castiglione, como o vestuário, gestos, assuntos, adequação, equilíbrio e mediania, mas também aquelas relativas às virtudes e vícios de caráter. Gracián 65 Dantisco condena as atitudes de soberba, vaidade e prolixidade, considerando o homem interior não apenas como o reflexo daquilo que mostra seu exterior. Seguindo as mudanças da época, O Galateo Espanhol vai caracterizar um período em que a graça passa a ser substituída pela prudência como atributo fundamental para o convívio social. Na mesma tendência também estão os livros de Baltazar Gracián, dentre eles O Discreto, de 1646 e Oráculo Manual e Arte da Prudência, de 1647. Neste momento, a exigência era de um homem astuto, prudente e agudo. Estes elementos, somados às práticas corporais exteriores, fazem com que o indivíduo possa transitar com menos dificuldades e ingenuidade no ambiente que o cerca. Segundo Hansen (In Adauto, 1996), Gracián retoma os restritivos modelos de discrição propostos pelos manuais do século XVI e amplia suas proposições. Assim, ao decoro, espontaneidade estudada, urbanidade, disciplina, tranqüilidadede animo e controle de si mesmo, ele agrega qualidades como a inteligência, astúcia, engenhosidade, prudência, agudeza e capacidade de dissimular honestamente. Paralelamente às mudanças no comportamento, Visser (1998) observa que ocorriam também mudanças no que diz respeito aos talheres, pratos e a distribuição dos assentos. Mesmo aquelas atitudes antigas, como comer com os dedos e partilhar o vaso de beber, também envolviam boas maneiras. Elas só vão se tornar obsoletas com a introdução de novos utensílios, como o garfo, que vai exigir novos estilos de comportamento. Tais regras, contemporaneamente veiculadas pelas colunas sociais, quanto aos gostos, à maneira de falar e comportar-se, são aspectos de uma formação elitista de distanciamento e isolamento do restante da sociedade. Sua assimilação dava a sensação de pertencimento a um grupo social, onde as vias de acesso iam sendo bloqueadas, tornando-se cada vez mais difícil, para quem não nasceu ou nela viveu, desenvolver o estilo físico e mental pelo qual seus membros se distinguiam daqueles que a ela não tinham acesso e através do qual se reconheciam, pelos costumes, hábitos, formas de falar, vestir e movimentar. A prodigalidade festiva simboliza poder, a festa tem que ser dada com regularidade, como marca de poder e prestígio. Os banquetes, através da estrutura e do ritual, usam deliberadamente as poderosas conotações da comida, para traçar uma barreira em volta de si mesmos contra a intrusão dos impertinentes e vulgares, como nos lembra Visser (1998). É comum o aparecimento de um gênero risível com exemplos do comportamento mais grosseiro em torno da gula e da falta de cortesia. Visser (1998, p. 64) nos dá alguns destes exemplos de comportamento invertido: “deve-se gritar pela comida, abrir caminho à força até os pratos, agarrar os melhores pedaços, lamber a gordura dos dedos, arrotar, brigar aos socos com os demais convidados – e, se o nariz estiver escorrendo limpar o ranho com o cotovelo”. 66 Os mexericos depreciativos globalizantes tinham a função vivificadora do sentimento de valor próprio à custa do valor do outro. Ver nota do dia 22 de abril de 1987: “Passou-se anteontem no Florentino, duas conhecidas socialites foram tomadas de irreprimível desejo de furtar. O objeto da cobiça era simplesmente um modestíssimo saleiro de mesa” (Ibrahim Sued, O Globo, 22 de abril de 1987). A notícia sobre o desrespeito às normas aceitas, cometido por pessoas anônimas, reforçava a comunhão dos virtuosos, assim a censura grupal imposta aos que infringiam as regras tinha uma vigorosa função integradora, porque reforçava os vínculos grupais já existentes. A repressão a determinadas condutas servia para sublinhar a superioridade exclusiva da conduta, dos valores e do estilo de vida dessa elite social, bem como a inferioridade do outro. A coluna de Sued torna-se um espaço de difusão de boas maneiras, de bem viver em sociedade. Para ele, “a vida é composta de uma série de cerimônias, para as quais existem normas sociais determinadas pela comunidade (...), pretendo transmitir uma filosofia de vida moderna que permita uma atuação apropriada a quem está interessado em aprimorar seu relacionamento social” (Sued, 1997). Para esse grupo em ascensão, a sensação é de inferiorização, aliada à necessidade urgente de se apropriar dos códigos da ideologia triunfante. Neste sentido, as gafes são provocadas pela tentativa de assimilação das normas sociais do grupo com o qual se deseja identificação. A passagem de tais códigos para os emergentes vai ocorrer na conjunção das duas culturas, elas vão se polinizar reciprocamente e vão ser revitalizadas; movem-se e ocultam-se. Ibrahim parece ser o arauto das mensagens da aristocracia, fornecendo uma imagem da mesma, que é a de quem não tem dúvida sobre o próprio papel de participante dessa aristocracia. Suas palavras demonstram a certeza de que suas orientações serão compartilhadas por alguém que necessita do outro para completar a visão de si mesmo e para assegurar a sua realidade. Assim, o discurso da coluna social se apresenta como constituindo um território de interlocução, em que se confrontam diferentes vozes. Tais vozes digladiam-se e cooperam uma com a outra em busca de poder, visibilidade, legitimidade social e reconhecimento. Já a coluna de Swann deu maior cobertura à política e aos trabalhos do Congresso Nacional (46%) do que a coluna do Sued (16%). Tais dados reforçam a tese de Ramos (1994) de que a coluna social passava por uma transformação, deixando de ser um espaço apenas destinado à cobertura da vida mundana da elite social, do qual Ibrahim Sued era o 67 representante por excelência. Indicava também que a coluna social no jornal era um espaço de fofoca, fonte de notícias e de opiniões, de rumores, de fatos que correm paralelamente aos centros delegados do poder e proporciona a emergência de “estórias” (termo utilizado pelos jornalistas norte-americanos para referir-se simultaneamente a acontecimento e notícia) sobre a política nacional. A coluna do Sued do dia 14 de abril de 1987 reflete bem a maneira como o mesmo fato era abordado pelos dois colunistas: Aipim no coquetel No coquetel oferecido em Brasília pelo Presidente do Congresso do Peru, Armando Villanueva, causou surpresa um dos canapés oferecidos abundantemente na festa. Tratava- se de aipim frito, servido no melhor estilo dos camarões que costumam circular nestas ocasiões: com uma vasilha de molho ao lado, onde o mesmo era mergulhado. Aos surpresos brasileiros, os anfitriões explicavam que isso é comum no Peru, ou seja, o aipim rola solto nas grandes recepções. No papo político Villanueva disse que o Peru levou 11 meses para preparar sua nova Constituição, considerando um desafio o prazo estabelecido pelos brasileiros (até 15 de novembro). Nessa nota a descrição do coquetel com a elevação de um item do cardápio considerado trivial na alimentação dos brasileiros elimina a gravidade do discurso sério em que o colunista oferece-se como testemunha dos acontecimentos que descreve. Ele dá a palavra ao Presidente do Congresso do Peru, ou seja, uma autoridade devidamente credenciada, que passa a ser o seu porta-voz para dirigir-se ao leitor e opinar sobre o prazo estabelecido para o término da Constituinte. O uso da fala do Presidente do Congresso de um outro país escamoteia a postura do colunista, de descrença nos trabalhos da Constituinte, e consequentemente a desqualificação discursiva. Tal estratégia enunciativa funciona como instância de legitimação. A transferência da responsabilidade do que é dito para o outro não exime a responsabilidade do colunista, os dois discursos estão imbricados porque o discurso do outro conserva, na sua integralidade, o discurso de quem o produziu. Na verdade, o que é expresso no discurso de Sued é o seu ponto de vista sobre a dificuldade do cumprimento dos prazos na elaboração da Constituição. O seu discurso é invertido e suprime a distância entre o texto sério elaborado pela Constituinte e a insignificância do aipim no coquetel. Com isso, é instaurado no texto um estado contraditório no discurso. Cremos que essa passagem está dentro da divisão que faz Dunbar (1996) sobre os rumores em técnicos e não técnicos. Nesse caso, seria o rumor não técnico definido como 68 aquele que surge espontaneamente e reflete os temores, podendo atuar com um alerta social, um freio para descomprimir situações de crises ou conflitos. No dia 15 de junho de 1987, a coluna de Swann publica texto tratando, também, do prazo de término do trabalho dos constituintes: Cálculos preliminares realizados pela mesa diretora do Congresso arriscam o palpite de que os parlamentares levarão de sete a oito dias para votar em plenário o texto da nova Constituição. Isso se ela tiver 500 artigos, como está prevendo o relator da Comissão deSistematização, Deputado Bernardo Cabral. E, principalmente, se o sistema de votação eletrônica estiver funcionando a contento. O mesmo discurso na coluna de Swann é relativizado, a dificuldade do cumprimento do prazo é qualificada com o excesso de trabalho e a falta de uma infra-estrutura a contento. Nas duas notas, os colunistas recorrem, para consumar a notícia, à estrutura da pirâmide invertida – modalidade jornalística para designar a narrativa que começa por reunir o máximo de informações e de significados até se chegar à conclusão. A diferença entre os dois discursos está no tom determinado pela atitude do colunista. Encontramos aqui a entonação, expressão utilizada por Bakhtin para compreender como nos aproximamos das palavras. Para exemplificar, Bakhtin (1995: p.133) nos remete ao exemplo retirado do Diário de um Escritor, de Dostoievski, quando seis operários emitem o mesmo palavrão com diferentes tonalidades e se fazem compreender mutuamente, visto que, para o autor, a significação não está nem na palavra nem na alma do falante ou do interlocutor. Ela é o efeito da interação do locutor e do receptor produzido no espaço social, num processo de compreensão ativa e responsiva. Em duas passagens do texto de Bakhtin, fica melhor explicitada a questão: Toda palavra usada na fala real possui não apenas tema e significação no sentido objetivo, de conteúdo, desses termos, mas também um acento de valor ou apreciativo, isto é, quando um conteúdo objetivo é expresso (dito ou escrito) pela fala viva, ele é sempre acompanhado por um acento apreciativo determinado. Sem o acento apreciativo, não há palavra. (Bakhtin, 1995, p. 132) (...) As seis falas dos operários são todas diferentes, apesar do fato de todas consistirem de uma mesma e única palavra. Essa palavra, de fato, só constitui um suporte da entonação. A conversa é conduzida por meio de entoações que exprimem as apreciações dos interlocutores. Essas apreciações, assim como as entoações correspondentes, são 69 inteiramente determinadas pela situação social imediata em cujo quadro se desenvolve a conversa. (Bakhtin, 1995, p. 134) Dessa forma, os dois discursos dos colunistas sobre o mesmo tema carregam uma orientação valorativa que vai determinar a seleção das palavras. Elas vêm marcadas pelos significados que historicamente vão absorvendo e que nelas vão-se impregnando. Ambos recorrem, para consumar a notícia, à autoridade política ou científica, que dá ao discurso um encadeamento lógico, mas permeado de sentimento, preconceitos e estereótipos. As agitações ocorridas nas ruas do Rio de Janeiro no início de julho de 1987 igualmente repercutiram na coluna de Sued do dia 5 de julho de 1987. Cenário de confusão Do alto de sua vivência, o senador Roberto Campos, primeiro-ministro do Planejamento dos governos da Revolução, analisa com cautela e apreensão o ocorrido no Rio. “Estamos numa situação perigosamente próxima à vivida pelo Brasil em 1963”. Segundo o parlamentar, para piorar as coisas, a Constituinte, que poderia funcionar como uma válvula de escape, para aliviar o cenário, não vem cumprindo o seu papel. “Pelo contrário, em muitos casos aumenta a frustração”. Fazendo uma alusão ao filme de Polanski, “Bebê de Rosemary”, onde uma donzela é engravidada pelo diabo, Campos arremata: “Constituinte, com a inseminação da esquerda, não gerou um pequeno satã, mas um monstrengo mongolóide”. No texto, constata-se uma polarização entre esquerda e direita, em que a esquerda está vinculada ao comunista, mostrado como uma aberração humana, e a direita, associada à ordem. O colunista, nesse caso, assume um discurso panfletário, como conceituado por Rebelo (2002): O panfletário reage perante o que se lhe afigura como sendo um escândalo, como uma impostura. Anima-o o sentimento de defender uma evidência que, por razões para si incompreensíveis, não pode partilhar. Anima-o o sentimento de, embora na posse da verdade, da verdade única, insofismável, estar reduzido ao silêncio por causa de um incrível e de um generalizado absurdo. Lança um olhar simultaneamente incrédulo e indignado sobre o mundo que o rodeia (Rebelo, 2002, p.149). O mesmo acontecimento é abordado pela coluna de Swann no dia 02 de julho de 1987, da seguinte forma: “De um telespectador atônito, assistindo às cenas de saque a uma livraria do Centro, anteontem, pela TV: - Isso é o que se pode chamar de fome de cultura”. 70 No caso de Swann, o discurso assume um ar satírico, que exemplifica o que Rebelo (2002, p.149) considera “um olhar divertido, displicente, sobre uma realidade na qual, ostensivamente, o satírico não se reconhece”. O tom irônico utilizando pelo colunista a partir da assimilação do discurso do outro, descaracteriza a seriedade do evento, favorecendo a ironia e deslocando o discurso enobrecido da cultura que vira fome. A diferença entre os dois colunistas é que, na polêmica, o confronto entre posições diversas permite o convencimento, enquanto, na sátira, a desqualificação não exige a argumentação para convencer, pois basta a exposição pelo ridículo. Neste caso, a alusão irônica é direta e pelo filtro da visão irônica é que a notícia é apresentada juntamente com o comentário. Esse caráter ideológico identificado nos discursos das colunas em que se confrontam pólos opostos que criam em seu interior choques e contradições, ilustram uma lição aprendida com Bakhtin (1995) sobre as relações entre linguagem e sociedade, e a idéia de que, nas palavras, defrontam-se valores sociais. Com esse entendimento, as duas colunas não transmitem apenas informações, mas um conceito particular de política encarnada na vida dessa sociedade, e os conflitos entre grupos sociais e políticos no país: de um lado os dirigentes oficiais das instituições administrativas, e do outro, o processo de debate político sobre a redemocratização do país e os personagens que dele participam. Isso não significa que o jornal como um todo não faça parte desse diálogo de vozes dissonantes. Ao cotejar as notas da coluna social com as demais notícias do jornal, observa-se que, nele, elas são mais coerentemente organizadas, pois a apresentação é temática e unificada, as notícias possuem um espaço para cada tema (política nacional e internacional, esporte, cultura, saúde etc.). Esses acontecimentos, publicados pelo jornal, são averiguados, as fontes identificadas e as razões conhecidas, ou seja, são contempladas questões que estão no âmago do discurso jornalístico da objetividade. Diferentemente, as notícias na coluna social são mais soltas, são notícias que tendem mais para a subjetividade, imbricadas numa complexa rede entre o fato e a interpretação; muitas vezes, são pautadas em falsas evidências e em aparentes testemunhas. Na verdade isto funciona como uma “faca de dois gumes”, pois pode ser uma via de acesso para um “furo”, ou seja, uma notícia não revelada, como também pode levar ao descrédito do colunista. Cabe lembrar o episódio ocorrido com Ricardo Boechat, quando afirma no dia 02 de março de 1999 que, desde dezembro do ano anterior, o INSS ainda não havia concluído um só pedido de aposentadoria. Sendo obrigado a se retratar, o colunista publica, no dia 03/3/99, a concessão 71 de 341 mil aposentadorias e benefícios concedidos pelo INSS, declarando que “os velhinhos que denunciaram a lentidão do órgão, neste caso, pisaram na bola”. Reafirma-se a idéia de que os dois colunistas, na condição de sujeitos inseridos na memória e na história, organizam o seu discurso no meio social que os envolve como indivíduos; por isso, em seus discursos, é possível apreender o contexto, bem como a memória social. Citem-se dois exemplos, um da coluna do Sued e outro da de Swann. Na coluna do Sued do dia 06 de fevereiro de 1987 a notícia aparece assim: “Já foram detectados os primeiros movimentos em Brasíliade lideranças do PT, da CUT, do PC do B e da “CNBB do B” visando exercer pressões em Brasília, a partir de março, contra uma Constituição conservadora. Vem muita marola por aí”. A coluna de Sued identifica o debate como manifestação dos grupos de esquerda, que se escondem por trás dos partidos políticos PT e PC do B e de organizações como a CUT e a CNBB, designada pejorativamente pelo colunista como “CNBB do B”, nítida alusão ao papel desempenhado pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil na organização da pastoral dos direitos humanos, no apoio ao Movimento contra o Custo de Vida e, em algumas dioceses, na formação das Comunidades Eclesiais de Base, na solidariedade prestada às famílias dos presos políticos e na denúncia da violação dos direitos humanos que se sucediam no DOI-CODI. A introdução do comentário realça a tonalidade oral e indica que o discurso foi expresso diretamente pelo colunista, mas o fato de ser focalizado nas palavras dele não significa dizer que é individual. Ele conduz outros discursos, frutos de uma única história e como parte de uma ordem moral. Por outro lado, lemos na Coluna do Swann, intitulada Plantão, dia 17 de julho de 1987: “O deputado Luiz Inácio Lula da Silva deverá ser o primeiro a discursar sobre o anteprojeto da Constituição, abrindo assim o período de 30 dias de discussão da matéria em plenário. Lula amanheceu na fila de inscrição para garantir o privilégio”. Nessa coluna, o fato é apresentado como uma inevitabilidade do processo para os destinos do país. A utilização individual do político para indicar que fazer parte dele é um privilégio indica que o homem que está falando é a imagem de sua própria linguagem. Diferentemente da nota de Sued, não existe nenhuma ameaça implícita no fato, ele é apresentado como especialmente importante para o debate dos novos rumos da nação. Os dois textos são construídos utilizando a estratégia da citação, que implica uma remissão do leitor noutra direção: um dado ou uma autoridade que procuram realçar diversas interpretações para o mesmo fato. Bakhtin chama a atenção sobre esse tipo de discurso e afirma que: “O discurso citado é o discurso no discurso, mas é ao mesmo tempo um discurso 72 sobre o discurso, uma enunciação sobre a enunciação. Aquilo de que nós falamos é apenas o conteúdo do discurso, o tema das nossas palavras” (Bakhtin, 1981, p.161). Para o autor, o discurso direto tem uma dupla direção: ele é orientado para o seu objeto, como para o discurso do outro. Por mais pessoal que seja o discurso do colunista, ele está falando em nome de uma visão de mundo ou de um sistema de idéias que são absorvidos e transformados em outro discurso. Acerca do debate do sistema de governo que deveria ser adotado pelo Brasil e a possibilidade de implantação de uma monarquia, registre-se a coluna de Sued do dia 17 de agosto de 1987, com o título de Cristina com o rei: Cristina de Bourbon de Orléans e Bragança retornou este fim de semana, com suas filhas Ana e Paolo, de uma temporada de um mês e meio nas praias da Espanha. Cristina esteve no Palácio de Majorca hóspede de seu primo, o Rei Juan Carlos, na mesma época em que estiveram por lá Lady Di, o Príncipe Charles e filhos. Na nota, o colunista informa da temporada na Europa da família real brasileira como hóspede dos seus parentes da família real espanhola. O círculo de convivência dessa realeza é a família real inglesa. Com essas palavras, o colunista assume o discurso de seus personagens e deixa-os falar no seu próprio discurso, estabelecendo uma relação de identidade e interatividade com um tipo de elite da nação. Na coluna de Swann do dia 14 de setembro de 1987, sobre a mesma elite, a notícia aparece assim: D. Luiz de Orleans e Bragança, que se autoproclama Chefe da Casa Imperial do Brasil, está lançando sua candidatura a titular do Poder Moderador, ou seja, a Imperador do Brasil assim que vier a ser restaurada a Monarquia Parlamentar que está, segundo ele, sendo considerada pelos Constituintes em Brasília. Está distribuindo planfletos conclamando o povo a exigir um sistema de Governo que faça retornar a responsabilidade, a decência, o respeito ao cidadão e à sua família. Quer porque quer recolocar o Brasil nos eixos através de um sistema monárquico, parlamentar, democrático e federativo. Na coluna de Swann, a referência aos atos de D. Luiz de Orleans e Bragança se dá nos seguintes termos: Se autoproclama... Está lançando a sua candidatura... 73 Titular a... Conclamando o povo... Quer recolocar o Brasil... A estratégia utilizada, ao aludir à ação e à fala da autoridade, faz com que o colunista controle a interpretação da notícia. Ao apagar o discurso de D. Luiz de Orleans e Bragança, Swann funde as duas falas e suas afirmações são incorporadas num único discurso. Nele encontramos aspectos invertidos na conduta do representante da família real: usar as mesmas táticas políticas (panfletagem) daqueles menos do que nobres operários grevistas do ABC paulista. No jornalismo, essa estratégia é chamada de apagamento, que ocorre quando o jornalista se utiliza não só da visão sobre a realidade fornecida pelas fontes, mas também das próprias expressões utilizadas por elas. Nesse processo, em determinados momentos, o colunista assume a perspectiva de enunciação, em outros assume como sua a enunciação. Os dois colunistas utilizam os mesmos recursos, que conferem legitimidade incontestável ao seu discurso, com a montagem do texto com citações de autoridades insuspeitas. O enfoque no mesmo fato confere ao seu texto uma característica de cópia um do outro, uma espécie de plágio, de repetição. Assemelha-se, também, nas duas colunas, a recorrência à iconografia. O uso das imagens na coluna de Sued acontece para referendar o texto escrito. Elas aparecem perto da nota, acompanhadas de um lead que as torna a própria notícia, e cada coluna vem ilustrada por duas a quatro imagens. Na coluna de Swann, as imagens que acompanham o texto escrito podem referendar o texto ou constituir um outro texto. O uso da charge e da caricatura pelas duas colunas compõe uma articulação entre a linguagem verbal e a visual. Elas são tão intensas quanto o texto escrito e a sua utilização configura uma estratégia para atrair a atenção do leitor e transmitir um posicionamento crítico sobre personagens e fatos políticos. As imagens hipertrofiadas e caricaturais da coluna, ao parodiar o texto escrito, instauram a comicidade. Rabacas & Barbosa (1978) definem caricatura como uma forma de arte que se expressa por meio do desenho, da pintura, da escultura, e cuja finalidade é o humor. De acordo com esses autores, são subdivisões da caricatura: a charge, o cartum, o desenho de humor e a própria caricatura. Na caricatura, conforme os autores, existe o que se costuma chamar de portraite-charge, ou seja, caricatura de pessoas; a charge é basicamente política; o cartum, com ou sem palavras, sempre transmite uma piada, e o desenho de humor concentra o 74 humor no próprio traço. A charge, do francês charger (carregar, exagerar) é um tipo de cartum cujo objetivo é a crítica humorística de um fato ou acontecimento específico, em geral de natureza política. A charge é entendida por Discini (2003) como um corpo debochado, construído no enunciado e que remete ao modo de ser do ator da enunciação e igualmente à totalidade do discurso, cuja narratividade constitui um simulacro da realidade. A charge, a caricatura, o cartum ou o desenho de humor formam um discurso construído por dois textos que se apresentam na forma de um disjunção, de tal modo que um deles surge como a inversão jocosa, paródica, do outro. O resultado é uma alteração, ridícula ou risível, da visão de mundo habitual. Na coluna do Sued do dia 17 de julho de 1987, a caricatura de Casio, um dos cartunistas da coluna, apresenta Moreira Franco,Orestes Quércia, Newton Cardoso e o presidente José Sarney. O primeiro recurso é o gráfico, o detalhe fica por conta do texto escrito que afirma que os três políticos fecharam com Sarney. A linguagem cotidiana marcada (“fecharam com Sarney”) remete o leitor ao texto que se encontra acima da caricatura: 5 anos. Essas informações condensam a comunicação, convidando o leitor a entrar no universo discursivo. O contexto enseja o entendimento de que a caricatura comunica que Moreira Franco, Orestes Quércia e Newton Cardoso vão apoiar os cinco anos de mandato do presidente Sarney. O discurso do colunista imbrica-se com o discurso do caricaturista, desdobrando-se em outros discursos: o do Presidente, para a defesa de sua permanência no poder; os dos políticos, para justificar o apoio; o discurso dos que vão respaldar as negociações políticas para o fato; os dos outros políticos que não concordam com a prorrogação do mandato; o da oposição popular e outros que de forma incessante e permanente vão se dissolvendo e se recompondo. No exemplo a ser ressaltado, o discurso se constrói a partir do diálogo entre os dois textos do mesmo discurso ─ de um lado a seriedade e, de outro, a jocosidade. O riso fica por conta do deslocamento do discurso oficial político para o nível cômico da caricatura. Na coluna do Swann do dia 18 de julho de 1987, numa caricatura de Jimmy Scott, aparece a imagem do chanceler Abreu Sodré com um olhar assustado de quem falou demais: a mão na boca e uma taça de vinho na outra mão. Ao lado da imagem, o texto escrito, intitulado “Falando demais”. A imagem e o título são indícios de que o chanceler, após libação alcoólica, havia falado demais no discurso da posse do novo secretário de Administração do Itamaraty, Marcos César Naslausky, e a despedida de seu antecessor, o embaixador Marcos Azambuja. Nesse texto, o discurso está invertido, porque a atitude do chanceler Abreu Sodré é 75 a mesma de uma pessoa comum. Tal inversão provoca o destronamento do sério e a intrusão do cômico, reunindo dois aspectos que parecem distintos. Essa duplicidade ocorre mesmo que a linguagem utilizada pelos colunistas procure cingir-se à versão do jornal e do público a que principalmente se dirige, e que o seu trabalho esteja inserido nas novas orientações introduzidas na prática do jornalismo no decorrer dos séculos XIX e XX. Apesar disso, fica no seu texto a marca da fofoca, do boato, de entretenimento com base em imagens caricaturais e jargões que incidem sobre o texto e apagam as fronteiras entre o sério e o cômico. Exemplo disso são as expressões criadas por Sued: “fica o registro, de leve, bola branca, linda de machucar, estas são as de hoje”. Jargões que carregavam a coluna de significação pessoal e eram repetidos nas ruas pelas pessoas. Cabe lembrar Bergmann (1993) ao explicitar a expressão “hora do cafezinho”, entendida como o momento explícito de fofocar, remontando à origem, no século XVIII, quando editores e autores se reuniam nas cafeterias, destinadas somente aos homens, para conversar e discutir “negócios”. Nesse espaço, a fofoca era irrestrita, não precisava ser mascarada, nem os fofoqueiros precisavam se preocupar com julgamento. A fofoca significava a verdadeira razão do encontro. Nesse aspecto, uma das prerrogativas da fofoca é estabelecer distinções entre os membros do grupo e os de fora; essa distinção repousa nas referências aos protótipos de membros e não membros. Assim, a fofoca intergrupal e a intragrupal podem estabelecer o prototípico do que é externo ao grupo, bem como do que é interno. Não obstante, o foco da coluna nas ações da elite (embora eventualmente se constitua como fofoca intergrupal) cria uma impressão de repetição eterna da sociedade como ordem social composta de movimento, mas não de inovação. Essa idéia é referendada por Ruge (apud. Traquina, 1993): As ações da elite são, pelo menos geralmente e na perspectiva a curto prazo, mais importantes do que as actividades dos outros: isto aplica-se tanto às nações de elite como às pessoas de elite. Além disso, como amplamente demonstrado pelas revistas populares existentes na maioria dos países, a elite pode ser utilizada, em certo sentido, para falar de toda a gente. (...). As pessoas de elite estão disponíveis não só para servir de objetos da identificação geral, mas também por causa da sua importância intrínseca. Assim, num sistema de comunicação noticioso centrado na elite, não se dá a hipótese às pessoas vulgares de se representarem a si próprias. Mutatis mutandis (Ruge, in Traquina, 1993, p. 67). 76 1.3.3 – O ESTILO NAS COLUNAS Pode parecer estranho ao leitor ler a mesma notícia nas duas colunas do mesmo jornal, até porque, sendo a coluna no jornal um dos espaços mais subjetivos, não significa dizer que ela não seguia as normas da escritura jornalística. Ambos seguem as mesmas normas, aceitas ao longo da história do jornalismo como adequadas ao fazer jornalístico. Entretanto, o que vai diferenciar o espaço da coluna dos demais espaços do jornal é que seus textos eram permeados de gírias, neologismos e palavras com significados metaforizados. Esses elementos serviam para dissimular a objetividade e torná-la mais subjetiva. Também possibilita ao colunista movimentar-se entre dois ou mais enunciadores, assim ele pode se posicionar ora de um ponto de vista, ora de outro. A objetividade aparece com freqüência nos textos do colunista como uma estratégia para proteger o jornalista dos riscos da profissão, que consistem nos possíveis erros da informação e nos constantes ataques críticos de outras pessoas. Tuchman (apud, Traquina, 1993, p.74) observa que a objetividade não é privilégio da profissão dos jornalistas: é utilizada com outras conotações pelos cientistas sociais, médicos e advogados. No entanto, no jornalismo ela é um procedimento cotidiano para neutralizar potenciais críticos. Para o autor, a objetividade no jornalismo é uma “tática ofensiva destinada a prevenir o ataque ou a deflectir, do ponto de vista defensivo, as críticas”. Por ser a coluna social constituída de notas que implicam juízos de valor, as estratégias como citações de outras pessoas, apresentação de hipóteses alternativas e apresentação de opiniões contraditórias, usadas pelo colunista, servem para dissipar as pressões e assédios enfrentados pelos colunistas. Ao mesmo tempo, configuram a emersão de vozes díspares que soam no texto da coluna. Nesse sentido, “a citação consiste na articulação de dois discursos que põem, face a face, universos de discursos diferentes, articulados no interior de uma enunciação única, aquela do locutor que reproduz o enunciado de um outro locutor” (Mouillaud, 2002, p.122). Essa estratégia da citação funciona como um lembrete do status dos locutores investidos da autoridade do poder de dizer. Fazendo das fontes que cita referências, o jornal reproduz seu status. Assim, as vozes que o colunista reporta, são o seu ponto de vista e o álibi de sua própria voz. Para resguardar-se, o colunista apaga a noção de que seu discurso nada mais é do que a escolha de determinadas estratégia de expressão. No jornalismo, esse é o processo de denegação, em que se escolhe uma forma em detrimento de outra: algo é dito, recusando um não dito. Esse esquecimento é parte constitutiva da ação discursiva do colunista e confirma a 77 noção de que todo discurso é o encontro de muitas vozes, não apenas de quem fala, mas também das que não falam. Esse ínterim é fundamental na formação dos sentidos. Em relação aos personagens a quem era dada visibilidade, na coluna do Swann, destacavam-se as personagens políticas, como o deputado Ulysses Guimarães e demais políticos vinculados ou que gravitavam em torno da Assembléia Nacional Constituinte. Na de Sued era o presidente Sarney e a elite política instituída (ministros, políticos locais, embaixadores,militares, governadores, etc.). Mesmo com a ênfase neste ou naquele político vinculado a uma determinada facção, era possível identificar a duplicidade do discurso, a exemplo do que acontece em uma nota de Sued denominada Crítica, do dia 24 de março de 1987: O deputado Delfim Neto se mostrava um pouco mais tranqüilo esta semana em Brasília. Felizmente, na sua opinião, está sendo possível formar um bloco parlamentar centro-liberal dentro do Congresso. O deputado acha que isto é fundamental para se obter garantias para a livre iniciativa dentro da Nova Constituinte. Sobre a área de sua especialização, o ex- Ministro admite que a economia brasileira está sendo completamente desorganizada. E lamenta muito por isso. A articulação do discurso do colunista está assegurada por meio da fala reportada do deputado Delfim Neto. Nesse caso, o discurso do colunista, ao entrelaçar-se com o discurso de Delfim Neto, conserva a pretensão que o colunista possuía em dizer a sua própria verdade. A ênfase no que é citado omite o que é dito pelo colunista, entretanto os dois discursos estão no mesmo nível. O que está sendo dito é que a política econômica em vigor na Nova República é diferente da do período anterior, o qual teve o economista Delfim Neto como principal articulador. Um outro discurso também se apresentava independentemente do colunista e do ministro, conforme a interpretação dada pelo leitor sobre a atuação do economista como ministro. Notícia com o mesmo título, mas com enunciado diferente, encontra-se na coluna de Swann, Críticas, do dia 1º de junho de 1988: Na palestra marcada para o próximo dia 6, na Escola Superior de Guerra, o Ministro Antônio Carlos Magalhães fará críticas veementes a alguns pontos aprovados na Constituinte no que se refere ao setor de telecomunicações. O Ministro promete deter-se, principalmente, na questão da manutenção da reserva de mercado para a informática, que, no seu entender, prejudicará o futuro das telecomunicações no País. 78 Aqui, da mesma forma que a anterior, o colunista, por fazer das fontes que cita referências, mantém-se a distância e produz um efeito de legitimidade e autoridade do que é dito. A referência lembra o status do ministro, investido da autoridade de poder-dizer. Essa estratégia, segundo Mouillaud (2002, p.130), “submete os discursos efetivamente produzidos ao organograma da instituição social”. Nas notas, a defesa dos dois discursos ressalta a quebra da reserva de mercado, apontando para o que mais tarde se chamaria de política neoliberal adotado no país, pelo governo de Fernando Henrique Cardoso. Nelas, os dois colunistas procuram impor a sua verdade. As estratégias utilizadas pelos colunistas para produzir o efeito de real e a afirmação da verdade têm a mesma finalidade: produzir o real e produzir a verdade. Contudo, a verdade não é sentenciosa, ela é espalhada no texto e recai sobre a identidade dos leitores que o lêem. Logicamente que essas posições não são tomadas de forma consciente, mas são projetadas sobre a linguagem que revela a vida de que participam o colunista e diversas vozes que ressoam nesse drama. Elas podem ser identificadas a partir das marcas espalhadas pelo texto, e se materializam na própria formatação e posição da coluna no jornal, na legenda, na foto, na tipologia da letra, no número de vezes que a notícia é publicada, na palavra usada para designar o fato e na posição que tudo isso assume no texto. E principalmente no interior do próprio discurso do colunista, que divulga o que deseja afirmar como real. Em vista disso, o colunista, ao veicular os diversos discursos que constituem os acontecimentos, explicita um determinado contexto histórico produzido por sujeitos, por isso ser a coluna um texto que capta, transforma, produz e faz circular acontecimentos, interpretando e nomeando situação e sentimentos do presente. O colunista como sujeito social se manifesta inclusive na opção por este ou aquele fato. Quando Motta (2002, p.305) se propõe a investigar, diante de uma infinidade de eventos que ocorrem todos os dias, o que faz um evento se transformar em notícia, ele aponta dois critérios de noticiarismo como fundamentais: os atributos do fato em si e as circunstâncias e exigências do trabalho jornalístico. Porém, nas notícias de interesse humano, esses atributos são aplicados apenas de maneira relativa. Para Motta, notícias de interesse humano ou fait divers seriam mais subjetivas, em oposição às hard news, que tenderiam ao registro e à objetividade. No caso das notícias de interesse humano, o jornalista teria uma maior autonomia interpretativa e mesmo inventiva, porque, como essas notícias visam propositadamente entreter o leitor, a subjetividade é muito 79 mais tolerada, e o jornalista, ao relatar tais fatos, cria, intervém no evento, destaca certos aspectos, detalha e omite intencionalmente outros. Na literatura acadêmica sobre o jornalismo, essa é a teoria da ação pessoal ou a teoria do gatekeeper. Nela, o processo de produção da informação é concebido como uma série de escolhas, onde o fluxo de notícias tem de passar por diversos gates ou portões, que são as áreas de decisão em relação às quais o jornalista tem de decidir se vai escolher esta ou aquela notícia. Para essa teoria, o processo de seleção da notícia é subjetivo e arbitrário. A decisão passa pela subjetividade e depende de juízos de valor do jornalista. Desse prisma, o poder dos jornalistas é a última palavra sobre a construção do acontecimento como notícia. De modo diferente, a teoria interacionista defende que os jornalistas não são simples observadores passivos, mas participantes ativos na construção da realidade. Sendo assim, o acontecimento no jornal produz um discurso que se constitui com base em outros discursos, ocorrendo um profundo imbricamento entre a palavra social e a palavra do colunista. Esse modelo se aproxima da perspectiva bakhtiniana, na qual um discurso é produzido a partir de outros discursos, sobre outros discursos, numa trama infindável, como bem observa Rebelo (2002) acerca da presença do discurso do outro: Para além de um movimento para trás, o locutor descreve um outro, para a frente. Em direção do seu interlocutor. O seu discurso é, então, função de um complexo jogo de imagens, desde a imagem que tem de si, à que ele gostaria de ter de si, à que ele tem do auditor, à que ele pensa que o auditor tem de si, à que ele gostaria que o auditor tivesse de si... (Rebelo, 2002, p. 63) Entretanto, as duas teorias não são totalmente opostas, porque é pouco provável que alguém compreenda o que o outro quer dizer, fora de uma situação de interação, na qual o contexto é compartilhado. Como o jornalista é um sujeito de seu tempo, o diálogo coloca num terreno comum o colunista e o leitor. A comunicação ocorre a partir de um encadeamento de mensagens construído na relação entre eles, num processo de repetição e de renovação, em que se juntam o passado e o presente. O que pode parecer contraditório – o discurso jornalístico que supõe a informação da vida imediata e sua relação com os fatos configurados pela memória e incorporados ao cotidiano social – é justificado pelo próprio fazer jornalístico, visto que o fenômeno jornalístico não pode ser compreendido sem a percepção de sua coexistência com a história 80 dos sentidos que constituem o seu discurso e que se manifesta nos sentidos em movimento que vão sendo entrelaçados às malhas sociais. Assim, o texto da coluna não pode ser caracterizado como individual, porque todo discurso, construído nas diferentes esferas da vida social e atravessado de histórias, deixa de ser um produto individual e deve ser pensado a partir da pluralidade de discursos sociais que nele estão imbricados. Portanto, o colunista, como indivíduo que partilha o mesmo contexto histórico com outros indivíduos,possui valores políticos e sociais que podem reverberar em suas preferências e análise do conteúdo noticioso. Da mesma forma, como membro da sociedade e de uma comunidade profissional, ele está submetido às diversas pressões; a exemplo dos demais jornalistas, ele se equilibra sobre a “corda bamba”. Adghirni (2002, p. 449), ao analisar as rotinas produtivas da notícia na área política e econômica dos jornais O Globo, Folha de S. Paulo e Correio Braziliense, assinala que os colunistas desses jornais costumam queixar-se do assédio de certas fontes ávidas de promoção, que chegam a telefonar pessoalmente para os jornais oferecendo notícias nem sempre relevantes. São vários os exemplos de assédio ao colunista. Um deles é fornecido por Alberto Dines (apud, Ramos, 1994, p. 12), colunista da Folha de S. Paulo na década de 1970, que, no estudo sobre as matérias publicadas por colunistas, identifica várias agências que cobravam dos clientes a inserção de notas na coluna. Tavares de Miranda (apud Erbolato, 1981, p. 39), também da Folha de S. Paulo, em entrevista à revista Status, em 13 de agosto de 1975, declara: “Sou convidado constantemente para as festas. Tanto que às vezes cedo meu lugar a auxiliares meus”. Ramos (1994) conta que, durante a elaboração da Constituição de 1988, costumava ir ao Congresso Nacional. Lá encontrava assessores de políticos importantes colados ao telefone com algum colunista, passando notas pitorescas, engraçadas e muitas vezes inventadas sobre os bastidores do Congresso Constituinte. Porro (2001) narra várias formas de assédio ao colunista por pessoas interessadas em manter relações privilegiadas. Elas variam desde a entrega de envelopes contendo dinheiro, recibos de depósito feito na conta do beneficiado, avisos de que basta passar em determinada loja e o destinatário encontrará a sua disposição este ou aquele objeto de certo valor, ou mesmo assédio sexual pelas aspirantes a socialite. Até o momento, averiguamos a relação entre as duas colunas do jornal O Globo, os pontos de coesão, similaridade e afastamento. Constatamos que o enquadramento das notícias e a utilização das palavras pelos colunistas, da mesma forma que um artefato cultural, traz implícitas representações acerca da ordem política e social do contexto vivenciado. As duas 81 colunas se aproximavam, se distanciavam e ganhavam autonomia. Observamos, também, que a coluna social como um texto está inserida numa história coletiva e, por essa razão, retém a memória histórica. Por não ser um produto exclusivamente do colunista mas fruto de experiências coletivas tecida nas cadeias da comunicação, ela se torna um elo que projeta o texto no tempo e na história e evidencia uma tensão de forças: a conservação e a mudança. Ao considerar o texto da coluna como memória histórica discursiva, constatamos que para ela migram diversas outras histórias vivenciadas em contextos anteriores, atualizadas no discurso do colunista. Consequentemente, constitui tarefa do próximo capítulo identificar a permanência de eventos que irrompem em outro contexto histórico e social, ou seja, a repetição inovada de eventos passados que vêm subjacentes aos eventos presentes. 82 II. A COLUNA SOCIAL COMO REPERTÓRIO DE MEMÓRIA A coluna social como um espaço de visibilidade das interações sociais é um indicativo de socialização, já que retém os fatos, transmitindo-os, reelaborando-os e criando-os. Nesse sentido, é um registro de cultura. Nesse caso, o conceito de cultura é aquele apropriado da Escola de Tartu 6 , cultura como um texto, que pressupõe sistemas de signos cuja organização reproduz comportamentos distintos daqueles considerados naturais que são, assim, culturalizados por algum tipo de codificação. Os códigos como sistemas modelizantes e modeladores têm a função de culturalizar o mundo, isto é, conferir-lhe uma estrutura de cultura. De acordo com Lotman (1981, p. 39) “o „trabalho‟ fundamental da cultura consiste em organizar estruturalmente o mundo que rodeia o homem. A cultura é um gerador de estruturalidade: cria à volta do homem uma sociosfera que, da mesma maneira que a biosfera torna possível a vida, não orgânica, é óbvio, mas de relação”. A Escola de Tartu afirma que toda atividade humana em desenvolvimento troca e armazena informação por meio de signos; esses signos migram e se apresentam em vários momentos históricos. Para tais teóricos, o elemento chave da cultura é a memória – a memória não hereditária que garante o mecanismo de transmissão e conservação. Nesse caso, a cultura compreende não só uma determinada combinação de sistemas de signos como também o conjunto das mensagens que são realizadas historicamente num texto (Machado, 2003, p. 39). Pode-se afirmar, com base no exposto, que a memória é transmitida e atualizada pelos gêneros discursivos, conforme pensa Bakhtin, e de que determinados modos culturais, ou partes deles, se separam dos contextos de origem e se recombinam com modos ou partes de outra origem, adicionando novas práticas ao processo histórico. Por meio do gênero discursivo, diferentes domínios da atividade humana, com suas condições e suas finalidades, encontram-se refletidos no enunciado. 6 A escola de Tartu é uma designação genérica para os estudos de pesquisadores atuantes em diversas esferas do conhecimento e preocupados com problemas semióticos. Destacam-se os trabalhos de Iuri Lotman. Desde 1957 a Escola de Tartu passa a sediar encontros anuais com o objetivo de desenvolver estudos de natureza semiótica sobre teoria da literatura, do texto, do mito e do folclore, do cinema, do teatro e dos sistemas culturais em geral, considerando suas regularidades e mecanismos sistemático-estruturais, tipológicos e histórico-dinâmicos. 83 Os gêneros discursivos definem-se, ainda segundo Bakhtin (2000), como tipos relativamente estáveis de enunciados que uma determinada comunidade utiliza no processo de interação verbal. Para o autor, não pensamos por palavras, mas por gêneros. É como se as palavras fossem tijolos isolados, e os gêneros, o campo gravitacional que, dentro de sua órbita, determina o que, naquele contexto, elas devem significar. Dessa forma, existe uma articulação dinâmica entre as relações sociais e as interações verbais, estas evoluem em consequência daquelas, e esse processo reflete-se na mudança das formas da língua. Nessa concepção, Bakhtin propõe que “uma análise fecunda das formas do conjunto de enunciados como unidades reais na cadeia verbal só é possível de uma perspectiva que encare a enunciado individual como um fenômeno puramente sociológico” (Bakhtin, 2000, p. 280). Todavia, Bakhtin (2000) reconhece que cada gênero é capaz de controlar apenas certos aspectos da realidade. Pode-se encontrar uma infinidade de gêneros do discurso, presentes desde os gêneros da vida cotidiana, passando pelas formas variadas de exposição científica, até todos os modos literários. Cada um possui princípios exatos de seleção e formas precisas para ver e conceituar a realidade; cada um com uma extensão e profundidade de penetração. Nessa heterogeneidade de gêneros, o pensador soviético divide a cultura humana em três domínios: a ciência, a arte e a vida. Os três domínios são unidos na pessoa individual e estão orientados para o processo. Nas palavras do autor, “a língua vive e evolui historicamente na comunicação verbal concreta, não no sistema lingüístico abstrato das formas da língua nem no psiquismo individual dos falantes” (Bakhtin, 2002, p. 24). Graças à inserção dos gêneros na dinâmica de uma cultura, as tendências que se manifestam neles estão em contínua transformação no mesmo instante em que buscam garantir uma estabilização, porque, segundo Bakhtin (1991), os gêneros discursivos têm umfuncionamento: “o gênero sempre é e não é o mesmo, sempre é novo e velho ao mesmo tempo. O gênero renasce e se renova em cada nova etapa do desenvolvimento da literatura e em cada obra individual de um dado gênero” (Bakhtin,1981, p. 91). Ao nascer, um novo gênero nunca suprime nem substitui quaisquer outros já existentes; qualquer gênero novo é assimilado e passa a completar os antigos e ampliar o círculo de gêneros já existentes. Cada gênero tem seu campo predominante de existência em relação ao qual é insubstituível; cada gênero que surge se torna essencial e importante, porque, uma vez surgido, influencia todo o círculo de gêneros preexistentes: o novo gênero torna os velhos mais claros e a influência dos novos gêneros sobre os velhos contribui para a renovação e o enriquecimento dos antigos. A teoria de Bakhtin permite entender a dimensão histórica dos gêneros e a permanência de seus começos, bem como favorece distinguir o que nesse processo foi fragmentado e recomposto. 84 O que a teoria de gêneros discursivos esclarece é o entendimento do texto como um concerto de vozes, discordantes por suas origens, seus conteúdos e seus locutores. São essas vozes que remontam ao passado e encadeiam sequências que se apóiam em pontos de referência datados e ligam o presente da informação à história. Essa idéia de cultura como processo, em que os elementos são produzidos nas fronteiras entre o antigo e o novo, encontra-se também em Bhabha (2007). Apesar de não citar o pensador soviético, Bhabha reconhece que a formação da cultura é produzida num processo de negociação pelo antagonismo ou afiliação, que emerge em momentos de transformação histórica. Na leitura de Bhabha, são esses “entre-lugares”, o terreno para a elaboração de estratégias que dão início a novos signos de identidade e postos inovadores de colaboração e contestação. O autor reconhece que esse processo afasta qualquer acesso imediato a uma identidade original ou a uma tradição recebida, pois o que se forma não é o domínio do Eu ou do Outro, mas uma negação, variação, repetição e deslocamentos que resultam em algo imprevisível. Nesse aspecto, há uma semelhança com o pensamento de Bakhtin, já que ambos afirmam que o imprevisível se torna uma subversão, já que transgride o projeto do discurso dominante e exige o reconhecimento da diferença. Por este prisma, o embate entre diferentes momentos históricos pode ser identificado nas formas discursivas que compõem a coluna social, ou seja, a descrição de um fato ou evento: uma nota, um título, texto, foto ou ilustração, ou uma combinação de quaisquer – ou mesmo todos – desses recursos editoriais. A memória, portanto, é a fronteira, o “entre-lugar”, o lugar de embate entre o velho e o novo, e onde se realiza o híbrido, ou seja, a atualização e renovação dos signos. Cabe agora uma excursão para identificar como a memória se estrutura, se transmite e se atualiza. Em seu ensaio sobre a relação do corpo com o espírito, Bergons (2006) identifica dois tipos de memória. A primeira é a memória automática ou corporal, aquela adquirida pelos hábitos corporais, pela repetição. A outra é a memória por imagens, a lembrança de tudo o que vivemos anteriormente e que permanece arquivado em nosso inconsciente. Tanto a lembrança quanto as condições corporais são modos de ser da memória e representam uma marca do passado no presente. Nesse ponto, Bergson (2006) leva em consideração a questão do tempo. Entretanto, o seu tempo não é espacial, mas único, possuidor de infinidades de fluxos ou durações 85 temporais, o tempo como o tecido do real, cujas propriedades fundamentais são a sucessão, a continuidade, a mudança, a memória e a criação. Todos esses elementos entrelaçados pelos acontecimentos psicológicos ou físicos, segundo o autor, definem o “tempo real”, identificado quando consideramos os acontecimentos psíquicos ou físicos. Dessas propriedades fundamentais, citadas por Bergson, a sucessão está relacionada com as vivências interiores da mesma forma que os acontecimentos do mundo físico são sucessivos, elas ocorrem uma após a outra e formam uma história. Nesse sentido, tanto as vivências interiores como os acontecimentos ocorrem em um tempo contínuo, não sendo possivel separar o presente do passado, uma vez que o instante presente já é passado. Por isso, a sucessão temporal é uma transição ininterrupta, um fluxo contínuo tanto na vida psíquica quanto no mundo físico. Para Bergson, a duração é uma continuação do que não é mais do que é, e a memória é o elemento fundamental para a compreensão da relação entre a sucessão contínua e a mudança heterogênea. Uma memória corporal adquirida pela repetição e a memória por imagens, a memória psicológica ou lembrança, ou seja, a consciência de tudo o que vivemos anteriormente. Nas palavras do autor: A duração interior é a vida contínua de uma memória que prolonga o passado no presente, seja porque o presente encerra distintamente a imagem incessantemente crescente do passado, seja, mais ainda, porque testemunha a carga sempre mais pesada que arrastamos atrás de nós à medida que envelhecemos. Sem essa sobrevivência do passado no presente, não haveria duração, mas somente instantaneidade. (Bergson, 2006, p.200.) Com base no entendimento de Bergson, o presente psicológico e físico de uma pessoa, grupo social, seres vivos e do próprio universo traz a marca dos acontecimentos que lhes precederam. Isso quer dizer que a história presente e pessoal de qualquer ser humano não se deve apenas aos eventos de sua história pessoal, mas também ao que a antecede, ou seja, a história da cultura em que está inserido, da evolução biológica e do próprio universo do qual é herdeiro. Assim sendo, o que Bergson denomina como “tempo real” é uma criação, segundo o modelo da duração psicológica. No entanto, não uma criação determinista, mas algo dinâmico e indeterminado. Essa dinamicidade e indeterminação é que propiciam a imprevisibilidade e a novidade; segundo o autor, o elã vital, ou seja, a dinâmica criadora que envolve a história do universo, no seu percurso de uma estrutura simples de matéria condensada ao número gigantesco de diferentes mundos com suas estruturas e modo de funcionamento complexo, 86 bem como a história evolutiva dos seres vivos com suas extraordinárias formas e competências cognitivas e comportamentais. A memória é o que permite estabelecer relações entre as vivências presentes e as passadas e religar dois instantes um ao outro. A memória, na visão bergsoniana, é uma reserva do espírito, um estado latente que emerge na consciência quando solicitada a deliberar. Halbwachs (2006), em seu estudo sociológico da vida cotidiana, procura estabelecer a relação entre a memória e a história e identifica uma memória social. Memória que, segundo o autor, não pode ser confundida com a história, já que a história começa onde a memória acaba, e a memória acaba quando não tem mais suporte no grupo. Nesse caso, a forma de salvar as lembranças é fixá-las na forma de história. Assim, a memória é história viva e permanece no tempo, renovando-se; a história viva é o lugar da permanência da memória e a possibilidade de recolocação das situações escondidas que habitam na sociedade. Ainda de acordo com Halbwachs (2006), a condição necessária para que exista memória é o sentimento de continuidade presente naquele que se lembra. A memória, pois, não faz corte ou ruptura entre passado e presente porque retém, do passado, somente aquilo que ainda está vivo ou capaz de viver na consciência do grupo que a mantém. Por definição, ela não ultrapassa os limites deste grupo. Quando um período deixa de interessar ao período seguinte, não é um mesmo grupo que esquece uma parte de seu passado: há, na realidade, dois grupos que se sucedem. A história divide a seqüência dos séculos em períodos,como se distribui o conteúdo de uma tragédia em vários atos. Porém, enquanto que numa peça, de um ato para outro, a mesma ação prossegue com os mesmos personagens, que permanecem até o desenlace de acordo com seus papéis, e cujos sentimentos e paixões progridem num movimento ininterrupto, na história se tem a impressão de que, de um período a outro, tudo é renovado, interesses em jogo, orientação dos espíritos, maneiras de ver os homens e os acontecimentos, tradições também e perspectivas para o futuro, e que se, aparentemente, reaparecem os mesmos grupos, é porque as divisões exteriores, que resultam dos lugares, dos nomes e também da natureza geral das sociedades, subsistem. Mas os conjuntos de homens que constituem um mesmo grupo em dois períodos sucessivos são como duas barras em contato por suas extremidades opostas, mas que não se juntam de outro modo, e não formam realmente um mesmo corpo. (Halbwachs, 2006, p. 81-82.) Nesse entendimento, a memória transforma-se numa inesgotável possibilidade de lembranças, já que as representações das vivências são tantas, quantos são os grupos 87 existentes. Então, não existe lembrança estática: a multiplicidade está conectada ao rearranjo permanente das vivências grupais ao longo da vida. Aqui Halbwaches (2006) chama a atenção para as longas durações ou o tempo da memória, visto que o lugar da reconstrução da lembrança não é o acontecimento único, mas o tempo de um determinado grupo. Nesse caso, para o autor, é o grupo e não o indivíduo que garante a permanência do passado no presente. Entre o que pode parecer como memórias dicotômicas (a memória como fonte do espírito de Bergson e a memória coletiva como pensa Halbwachs) existe um ponto de concordância, já que Bergson chama de memória verdadeira aquela que sobrevive no espírito e que não remonta somente as nossas experiências, mas a experiência humana, e desta forma não podemos apreendê-la completamente. Temos acesso às reminiscência dessa memória a partir de uma memória coletiva, como pensa Halbwachs. Entretanto, o debate sobre a relação entre a memória e a história continua e Pierre Nora (1993) vai contribuir ao identificar na contemporaneidade com o advento das tecnologia, uma alteração na questão do espaço e do tempo, o que permite maior rapidez da informação, afetando diretamente os fatos históricos, que passam a ter a mesma duração da notícia. Para Nora (1993), nesta sociedade dominada pelos meios de comunicação de massa, não há possibilidade de uma história-memória. Nesse contexto, o passado cede lugar ao eterno presente, cabendo à história ser uma narrativa que unifica o tempo e lhe proporciona sentido, contudo, distancia memória social do passado e condena a sociedade contemporânea a uma memória integrada, ditatorial e inconsciente: Aceleração: o que o fenômeno acaba de nos revelar bruscamente, é toda a distância entre a memória verdadeira, social, intocada, aquela cujas sociedades ditas primitivas, ou arcaicas, representaram o modelo e guardaram consigo o segredo - e a história que é o que nossas sociedades condenadas ao esquecimento fazem do passado, porque levadas pela mudança. Entre uma memória integrada, ditatorial e inconsciente de si mesma, organizadora e toda poderosa, espontaneamente atualizadora, uma memória sem passado que reconduz eternamente a herança, conduzindo o antigamente dos ancestrais ao tempo indiferenciado dos heróis, das origens e do mito – e a nossa, que só é história, vestígio trilha. Distância que só se aprofundou à medida em que os homens foram reconhecido como seu um poder e mesmo um dever de mudança, sobretudo a partir dos tempos modernos. Distância que chega, hoje, num ponto convulsivo. (Nora, 1993, p. 8) 88 Com essa constatação, Nora (1993) afirma não mais existir memória: esta só é revivida e ritualizada numa tentativa de identificação por parte dos indivíduos, uma forma de conferir lugares onde se possa pensar que não somos feitos de esquecimentos, mas de lembranças. O autor introduz, dessa forma, uma dicotomia entre memória e história. A memória sem passado, e a história, uma narrativa com a mesma função de fundamentar e organizar o que o mito assumia nas sociedades tradicionais. Para o autor, nos encontramos no ponto de mutação da memória em história: “o momento preciso onde desaparece um imenso capital que nós vivíamos na intimidade de uma memória, para só viver sob o olhar de uma história reconstituída” (Nora, 1993, p. 12) Decretado o fim da memória e da história, o autor identifica uma intensa necessidade de história e memória da nossa sociedade como uma forma para encontrar um significado mais inteligível de si mesma. Como resposta a essa necessidade de identificação de si mesmo, o autor apresenta como via os “lugares de memória”, subentendidos como espaço de conciliação entre história e memória. Nesses “lugares de memória”, contudo, o passado é radicalmente outro: um passado desligado para sempre. Na impossibilidade da existência de uma memória espontânea e verdadeira, a possibilidade que se apresenta é o acesso a uma memória reconstituída que nos forneça o sentido de identidade. Ainda conforme Nora (1993), só há um lugar de memória se a imaginação o investe de uma aura simbólica, se é nele que se pode ressuscitar a lembrança a partir da ritualização. Nesse sentido, a ritualização pressupõe a representação do modo tradicional de comportamento em que se refletem as crenças, idéias, atitudes e sentimentos implícitos e explícitos, ou seja, o ritual é entendido como um introdutor de diferenças no seio de operações que poderiam parecer idênticas, a partir das palavras proferidas, gestos cumpridos, objetos manipulados. O ritual tem a função de coesão e lugar no qual os indivíduos podem se reconhecer como sujeitos. Para Halbwachs e Nora, não existe memória individual, ela só existe enquanto inserida no social, nas idéias gerais e nos marcos referenciais sociais. Estas concepções não anulam as percepções da subjetividade da memória presente em Bergson. Elas se completam, o que nos leva a concluir que a memória é contraditória, é e não é conhecimento, é objetividade e subjetividade, é voluntária, mas pode ser involuntária. Tal como a existência humana, cheia de imprevistos e percalços. 89 A partir dessas análises acerca da memória dos três autores podemos pensar a cultura como memória, fundamental para as reconstituições de época e para as representações de grupos. Nesse aspecto, os textos que compõem a coluna social apresentam um repertório de memórias. Uma memória que não é mais construída no grupo, mas para o grupo, pela história, a fim de que este possa nela encontrar elementos que legitimem sua ação no presente. Nos textos da coluna ocorre o ato de criar e recriar inerente aos mecanismos de atuação da memória que liga o presente, de onde parte o apelo ao qual a lembrança responde e traz a marca do passado. Acredita-se que o texto da coluna social pode fazer aflorar a memória, uma memória não linear e descontinua que emerge do movimento entre o discurso e a história. Cabe evocar Certeau (1996), ao distinguir dois tipos de prática: uma é a que o autor identifica como “maneiras de fazer” das práticas menores, não fundadoras de discursividade em relação aos produtos culturais difundidos e impostos pelas práticas organizadoras das instituições normativas de uma sociedade. O que diferencia uma prática da outra são os procedimentos que empregam para, de um lado, produzir cultura e, de outro, consumi-la. As práticas culturais valem-se de procedimentos estratégicos pelos quais circunscrevem um “lugar” como próprio, a partir do qual se relacionam com a exterioridade. As práticas ordinárias, por sua vez, empregam procedimentos do tipo tático, caracterizados por uma ação determinada pela ausência de um lugar próprio e de poder.Assim, a coluna social pode ser enquadrada na categoria de sistema de produção cultural por seu poder de organizar, reorganizar e de pôr em situação de confronto os diversos discursos, bem como servir de suporte para que os antigos discursos sejam deslocados e ressignificados. Dessa forma, o texto pode ser o relato de um acontecimento, mas pode levar a uma reflexão sobre os aspectos definidores da memória coletiva. Na produção discursiva da coluna social nos anos de 1987 e 1988, os enunciados, em sua dispersão de acontecimentos e na instância de delimitação que é própria da coluna, articulam outros campos discursivos, num jogo de descontinuidade entre o acontecimento discursivo e a história que remaneja memórias e as atualiza. Nesse período o país iniciava um processo de mudança, vivendo a redemocratização pós-ditadura militar. Coerentemente com as transformações sociais e econômicas, duas vertentes marcarão o cenário político e ideológico brasileiro, principalmente nas discussões sobre os modelos político e econômico a serem adotados. De um lado, estavam os que defendiam que era entre os militares que o Estado encontra sua mais forte base de sustentação; do outro, aqueles que se opunham a essa posição e defendiam a reorganização da 90 sociedade no sentido de uma transição democrática. O debate social era pautado nas idéias e propostas mais direta e explicitamente, afinadas ou comprometidas com esta ou aquela vertente. Ele será veiculado pelas duas colunas sociais, a de Ibrahim Sued e a de Carlos Swann, do jornal O Globo. Tais enunciados traziam entretecidos outros enunciados que, via memória, faziam emergir – não somente pela recitação, mas também pela transformação, pelos deslocamentos e pela atualização – o sentido da identidade brasileira. Como esses discursos não partem de um único, mas de vários lugares enunciativos (o colunista, o político, a elite, etc.), a rede de formulações gerada pelo cruzamento dessas diferentes posições enunciativas põe em evidência a angústia do período para saber quem é o brasileiro e o que nos espera. Essa rede interdiscursiva instaura um confronto entre posições enunciativas, a partir do qual é possível entender, circunscrever e atualizar a memória da nossa história. Nessa prática, o colunista é o porta-voz de uma pluralidade de discursos; no processo de incorporação de outros discursos, há um trabalho de reescrita cujo funcionamento aciona determinados feixes de sentidos, traços discursivos que estabelecem a inter-relação entre os diversos discursos. Segundo Certeau (1982), é um trabalho de escrita histórica do presente, que envolve a representação do acontecimento em face dos vários discursos incorporados e à formação discursiva assumida. O seu funcionamento pode ser identificado nas diversas recorrências à fala do outro, geralmente personagens emergentes na atualidade, protagonistas ou testemunhas de um determinado assunto ou especialistas em matérias que sejam objeto de interesse. Com isso, o colunista põe, face a face, discursos diferentes, que são articulados pelo seu próprio discurso. Entramos aqui no que Bakhtin define como discurso citado: “é o discurso no discurso, a enunciação na enunciação, mas é, ao mesmo tempo, um discurso sobre o discurso, uma enunciação sobre a enunciação” (Volochinov/Bakhtin, 1995, p.144). O discurso citado procura compreender como estão articuladas as palavras do outro no texto, numa interação dinâmica dessas duas dimensões. Apesar das diferentes modalidades (discurso direto, indireto e indireto livre), eles só se formam e vivem através desta interrelação, e não de maneira isolada. A primeira dessas modalidades, o discurso direto, dirigido ao objeto de referência, leva consigo todo o peso da autoridade semântica de quem fala. Tal discurso visa a conservar o discurso de citação, sua integridade e sua autenticidade. 91 A segunda refere-se ao discurso que se orienta para o discurso do outro, uma orientação que pode estar oculta, de modo disfarçado. Ele se esforça para desfazer a estrutura compacta e fechada do discurso de citação, para reabsorvê-lo, para apagar suas fronteiras. O terceiro tipo exerce influência de fora; nele muitas formas de interrelação com o discurso do outro são possíveis. Aqui, a influencia dominante do discurso é transferida para o discurso de citação, que se torna, em função de tal fato, mais forte e mais ativo que o contexto narrativo que o enquadra, que se põe, de certa maneira, a reabsorver este último. Esses princípios baktinianos de citação na construção do texto são reconhecidos nos procedimentos jornalísticos utilizados pelo colunista, como alternar a própria escrita com citações textuais de personagens; as descrições e narrações, muitas vezes na terceira pessoa, intercaladas com citações de frases exatas do interlocutor do autor, indicando que o texto perde o seu caráter mais subjetivo e assume um sentido sociológico em que estão envolvidas relações complementares e contraditórias. Nesse mesmo caso, o uso do recurso da citação pelo colunista para colocar na boca de quem disse o que é efetivamente importante e o que só poderia ter sido dito por essa pessoa, pode ser entendido não apenas como uma transmissão de informação mas sim como forma de produzir sentidos interativos e sócio-historicamente. São esses discursos citados que conservam vestígios da exterioridade do discurso do colunista. Acrescenta-se, ainda, o uso das modalidades de citação em situações em que a fonte deve apoiar o ponto de vista do colunista, já afirmado em discurso indireto. Esses procedimentos usados pelo jornalista/colunista merecem uma referência a Michael Schudson (apud, Traquina, 1993, p. 279), quando ele afirma que “o poder dos médias está não apenas no seu poder de declarar as coisas como sendo verdadeiras mas no poder de fornecer as formas nas quais as declarações aparecem”. No fazer jornalístico, o uso de citações tem a função de resguardar o jornalista, é uma possibilidade de reduzir a sua responsabilidade quanto à significação literal do enunciado, relegando para o enunciatário a reconstrução da respectiva significação implícita. Tal jogo permite-lhe, de acordo com as circunstâncias do momento, negar ou ratificar a interpretação do enunciatário. Essa idéia será tratada aqui com vistas a indicar que o discurso na coluna do jornal conserva, na sua integralidade e na sua autenticidade, o discurso reportado, que fica protegido, no âmbito da narrativa produzida e delimitada por “limites claros e estáveis”. O discurso reportado é absorvido após decomposição da sua estrutura compacta e fechada. A citação obriga, pois, a que sejam mantidas certas marcas da enunciação original. O texto da coluna torna perceptíveis os conflitos da política, comum nos processos de transição, que consistia na busca de estratégias de construção de uma nova ordem 92 institucional. Por isso, surgem as desavenças, pela sobrevivência de arcaísmos políticos, como o clientelismo e o favoritismo, contrastando com a emergência de estruturas econômicas e sociais relativamente modernizantes, ou seja, uma sociedade mais urbana, mais diversificada socialmente e muito mais complexa. No discurso da coluna, é possível apreender a cena doméstica brasileira. Por um lado, a persistência da corrupção, das mordomias e do desperdício no governo, a insistência em políticas que ignoram a opinião nacional e contrariam frontalmente o interesse público, a incapacidade para encontrar soluções duradouras de controle da inflação e para enfrentar o atraso da economia em geral, e particularmente o atraso científico e tecnológico. A crise interna era agravada pela economia internacional instável, gerando os temores da elite política quanto a um possível impacto negativo dessa instabilidade na nossa frágil configuração política. Por outro lado, se percebe um movimento derejeição do período anterior e o consequente avanço da democratização, que teve o seu início na segunda metade dos anos 1980, com a ruptura do bipartidarismo e a emergência de movimentos sociais populares nas grandes cidades, bem como as pressões exercidas por grupos de elite no terreno da política formal, que obrigam o Estado a encetar diálogo com figuras de destaque da oposição organizada, como os líderes do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e com representantes da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). O processo de transição, subentendido como o lapso de tempo que decorreu entre o enfraquecimento do regime autoritário e a institucionalização de outro regime, é, por sua qualidade e por suas próprias características, povoado de incertezas. Por um lado, o regime anterior encontrava-se ameaçado em sua reprodução, porque sua legitimação, assentada exclusivamente em índices econômicos, já não podia ser mantida. Por outro, a transição, com seus traços conservadores, evocava permanentemente o retrocesso. Nesse momento, em que o velho regime político não pode mais reproduzir-se e o novo regime não tem formas desenhadas, começa a se delinear uma nova força hegemônica. Essa força necessitará de um sentimento de pertença e portanto irá se aproximar, através da imitação e de tentativas de integração, da classe dominante tradicional (militares e tecnoburocracia). Trata-se de um processo em que algumas personagens almejam uma simples modernização, enquanto outras se movimentam em direção à superação de velhos modelos políticos. Assim, as duas colunas funcionarão como porta-vozes dos dois grupos antagônicos. 93 A tensão provocada por essas duas vertentes afetou a existência histórica específica de indivíduos particulares. Nessa interação de forças, os novos contornos indicavam a superação dos setores mais atrasados do empresariado e da instituição militar. As Forças Armadas saem de cena, porém conservam largas fatias do poder; os empresários ingressam com força na cena política, a tecnoburocracia mantém seus privilégios; os velhos políticos, que souberam se desligar a tempo do antigo regime, são conservados na nova composição. No percurso desse processo, e em função das circunstâncias presentes, as interações cotidianas vão se modificando. Entretanto, isso não ocorre com linearidade. Alguns elementos primordiais são conservados e se mantêm adaptados às circunstâncias geradas no interior de sua existência histórica. Repulsão e assimilação vão comandar a dinâmica dessas interações, que passam a ser reorganizadas a partir do envolvimento do todo. O desenho da estrutura social contemporânea seria o resultado dessas interações, desse diálogo provocado no decurso e que vai determinar a fisionomia histórica individual, de classe e de época, ou seja, uma configuração que só pode ser entendida na diversidade de sua anterioridade. O grupo resultante dessa coalizão das novas circunstâncias políticas e ideológicas forma um contínuo, sobrevive, coexiste e reproduz-se. As festas e eventos sociais revelados pela coluna eram os momentos de integração de seus membros, que se conheciam pelo nome e pela reputação. Era muito mais que a visão de um colunista, na visão de Palmério Dória, em entrevista a revista Caros Amigos: “um mundo glamouroso e falso, fútil, onde a vaidade humana e o lobby puro e simples se encontram nos salões luxuosos, festas milionárias, orgias, negociatas, histórias cabeludas que desvendam as facetas mais sórdidas da elite dirigente brasileira”. (Caros Amigos, nº 27, p. 20) Nesse percurso, o que se manifesta é um fenômeno no qual as palavras vão se revestindo de sentidos, tons e valores, e assumem múltiplas tonalidades em diferentes campos, como o político, o moral e o religioso. Na expressão do real predomina o verbo, não dos fatos sob as palavras, mas das palavras sobre os fatos. Esse tom vai ricochetear nas análises do período, a exemplo de Nascimento (1987), que, ao examinar a situação econômica, constata: O país assistia a uma desaceleração do crescimento econômico, com um possível sucateamento gradativo de parte de seu parque industrial, dilapidação de porção considerável de sua força de trabalho especializado, fuga de capital, perda de competitividade no plano internacional do trabalho. Conseqüências que se conformarão gradativamente, variando índices positivos e negativos de crescimento, sem investimentos significativos, inclusive no nível infra-estrutural. Isso provocará estrangulamento cada vez 94 maior ao crescimento econômico, como um círculo vicioso que o capital internacional não estaria disposto a romper, nem existiriam forças internas competentes para fazê-lo. (Nascimento, 1987, p. 82) O mesmo discurso da crise econômica é apresentado no texto da coluna, não como falta de sugestão de soluções, já que os economistas ofereciam várias fórmulas, porém todas elas dependiam de liderança política para ser implementadas. O texto da coluna deixava implícito que era exatamente isso que faltava nos anos Sarney. É possível apreender, na intertextualidade, a superação da fase de euforia de um estado de promessa e a instalação do desencanto, já que o prometido se apresentava como uma esperança sem determinação. Esse obscurecimento possivelmente explique a queda de popularidade do governo e expresse a frustração diante das expectativas sociais ou econômicas não correspondidas. O discurso da crise econômica imbrica-se ao da crise política e social. A relação é construída entre eles no processo de interação, como observado na seguinte nota: Jornal do Ibrahim do dia 20 de março de 1987 O governador Newton Cardoso parece ter descoberto o ovo de Colombo, nas relações Executivo e Legislativo. Dias antes da convenção nacional do PMDB, mostrou como costuma pautar seu relacionamento em Minas Gerias: “Só atendo deputados que estão comigo. Os contra mim não têm atos de nomeação. O presidente Sarney deveria fazer a mesma coisa”. É a receita pública do clientelismo no estilo Antônio Carlos Magalhães. Como é possível observar, o colunista produz uma mediação entre si e o discurso citado. O outro é instituído como uma referência investida da autoridade de poder dizer, e nessa rede de relação tramada no texto, camuflada por uma linguagem de empréstimo formada num longínquo passado, o colunista atualiza outros discursos históricos e sociológicos para designar realidades diferentes. Isso porque a idéia de clientelismo liga-se ao coronelismo, fenômeno surgido no período imperial, para designar a direção política que correspondia ao mesmo tempo à liderança econômica e social. Era uma manifestação que partia do centro de poder, com os nomeados e não eleitos presidentes da província, em regra ativos apenas na fase eleitoral. Os denominados coronéis eram pessoas socialmente qualificadas e detentoras de riqueza, que, juntamente com a Guarda Nacional, detinham os instrumentos de manipulação para o domínio dos meios locais de compressão e fraude. A 95 passagem do regime imperial ao republicano irá acentuar a função eleitoral do coronel, e o conceito entrou na linguagem corrente para designar um sistema de lealdades que distribui prestígio e autoridade em troca de apoio político 7 . Os enunciados do período colocam em movimento uma memória que atualiza versões do mesmo fato e põem em cena o acontecimento histórico pela memória, assim como materializam o confronto entre as diversas memórias. Oliveira Viana (1982) procura explicar o predomínio desse miasma na política nacional pelo descompasso entre idéias e realidade no Brasil. Segundo ele, a raiz do problema estaria na condição de marginalidade das elites brasileiras, que vivem entre duas culturas: uma do seu povo, que lhes forma o subconsciente coletivo, e outraeuropéia ou norte- americana, que lhes dá as idéias, as diretrizes de pensamento, os paradigmas constitucionais e os critérios de julgamento político. Para Oliveira Viana, predominava no Brasil a ausência de consciência coletiva. Era possível distinguir pelo menos três históricas diferentes: a do norte, a do centro-sul, a do extremo-sul. Elas, por sua vez, teriam gerado três sociedades diferentes: a dos sertões, a das matas e a dos pampas, com seus três tipos específicos: o sertanejo, o matuto e o gaúcho. O seu estudo se deteve na população do centro-sul, por ter sido nesse espaço geográfico, de acordo com o autor, que se processou a independência, a sede do governo central. Os matutos do centro-sul (regiões montanhosas do estado do Rio, o grande maciço continental de Minas e os platôs agrícolas de São Paulo), teriam predomínio sobre os demais tipos regionais brasileiros, ainda conforme Oliveira Viana. Esse espaço recebeu os descendentes dos ramos mais ilustres da nobreza portuguesa, “comportando-se como um recanto de corte européia transplantada para o meio da selvageria americana” (Oliveira Viana, 1982, p.23). Consoante Oliveira Viana, os hábitos urbanos dessa aristocracia entrariam em choque com o ambiente. Um segundo grupo, de origem plebéia, acabaria por prevalecer. Ou seja: o meio americano absorveria o espírito europeu, consequentemente, a vida social dos colonizadores adquiria uma fisionomia própria, assim, em conformidade com o meio, ocorreria a ruralização da população colonial. Tal fato vai dar a tonalidade da sociedade colonial: o predomínio da grande propriedade rural no país. Assim, os grandes domínios, que tudo absorvem, seriam um mundo em miniatura, onde prevaleceria a vida doméstica, sob o 7 Sobre o coronelismo, ver o trabalho de MAIA, Nunes Leal. Coronelismo, enxada e voto. São Paulo: Alfa- ômega, 1975. 96 poder do pater famílias. O grande domínio, com a sua estrutura, exerceria uma função simplificadora sobre o restante da sociedade. A mesma palavra foi usada por Sérgio Buarque de Holanda, para caracterizar o clientelismo que persiste na relação sociopolítica brasileira. Nesse caso, o clientelismo é definido como um tipo de personalismo que está enraizado em nossa cultura e que, de certa forma, assegurou uma estabilidade política; isso se explica, segundo ele, porque “a idéia de uma espécie de entidade imaterial e impessoal, pairando sobre os indivíduos e presidindo os seus destinos, é inteligível para os povos da América Latina” (Holanda, 1995, p. 183). Já para Damatta (1987), o fato de termos constituído, até o final do século passado, uma sociedade de nobres, com uma ideologia aristocrática e anti-igualitária, dominada pela ética do familismo, da patronagem e das relações, tudo isso emoldurado por um sistema jurídico formalista e totalizante, que sempre privilegia o todo e não as partes, deu às nossas relações sociais um caráter especial. Conforme o autor, a lógica do sistema de relações sociais no Brasil é fortemente hierarquizada, ninguém é igual entre si ou perante a lei. Estes exemplos funcionam como amostras iluminadoras entre existência e linguagem, mundo e mente. Sublinhe-se que a palavra usada em diferentes discursos mantém a totalidade de sua energia; em seu desabrochar, ela capta o tempo e faz dele o objeto de um conhecimento. Ela ganha um sentido sociológico e subordina esses elementos, os quais carregam, ampliam e transformam. Portanto, nas palavras ocorre a gestão da memória social verbalizada na individuação, a qual não apenas projeta a sua identidade cultural, mas também a individualiza, tanto na percepção sensitiva quanto na compreensão do mundo. Do ponto de vista de nossa história, essa memória emerge e parece referendar a ascensão do autoritarismo político formulado na fase inicial da República, transplantada ao plano nacional por Getúlio Vargas e incorporado pelos militares em 1964. Esse ideário encontrou, também, em Oliveira Viana (1883/1951) um dos seus principais teóricos, que defendia a formação de uma elite política especial, que transformaria a cultura política brasileira. Isso era justificado pelo mito da apatia política da população. Nas palavras do autor: Em toda esta psicologia da vacuidade ou ausência de motivações da nossa vida pública, há um traço geral que só por si bastaria para explicar todos os outros aspectos, (...), a tenuidade ou fraqueza da nossa consciência do bem coletivo, do nosso sentimento da solidariedade social e do interesse público. Esta tenuidade ou esta pouca densidade do nosso sentimento do interesse coletivo é que nos dá a razão científica do fato de que o interesse pessoal ou de família tenha, em nosso povo – no comportamento político dos nossos homens públicos – 97 mais peso, mais força, mais importância determinante, em geral, do que as considerações do interesse coletivo ou nacional. (Oliveira Viana, 1982, p. 553.) Quando uma palavra migra de contexto, sua atualização implicará perda de ao menos uma parte do sentido original. Assim, evidencia-se uma proliferação do mesmo discurso pronunciado de forma diferente. Lenharo (1986) afirma ter a nossa concepção de cidadania tomada como parâmetro o estilo europeu, que vai desde o burguês vitoriano, passando pelo jacobino de 1789, o eleitor bem informado, até o militante organizado das barricadas. Essa memória discursiva é alimentada por discursos políticos de altas autoridades, atos administrativos e outras falas, e reverbera no texto da coluna de Sued: Jornal do Ibrahim 27 de março de 1987 A Juíza Martha Valle Meira de Vasconcelos, ao condenar vários bandidos traficantes de drogas da Favela da Rocinha, confirmou na sua sentença as denúncias que aqui fiz de que o ex-Governador Brizola protegia os traficantes, não permitindo que a Polícia subisse os morros. O governo do engenheiro “transformou as favelas em antros dos bandidos do tóxico”. É este o homem que quer ser presidente da República, o que protegia traficantes de drogas nos morros. Vai perder as eleições, embora conte com os votos dos traficantes que vendem droga à nossa juventude. O texto do colunista está relacionado à memória recente do país, que tem como marco o ano de 1964, e em Leonel Brizola, uma das personagens chaves do período. Na época, Brizola era deputado federal pelo Partido Trabalhista Brasileiro e um dos que se posicionou a favor da posse de João Goulart na Presidência da República e contra o golpe dos militares. Exilado político, retornou ao Brasil, beneficiado pela Lei 6.683/79, que concedia anistia a todos os envolvidos com crimes políticos ou conexos. Foi governador do Rio de Janeiro e candidato à eleição presidencial de 1989. Sued se opunha abertamente ao governador Brizola e à sua administração, bem como a todos os políticos que se opuseram ao regime militar. Essa posição “direitista”, assumida em várias notas de sua coluna, é que identificamos como conservadora e, portanto, coloca o colunista como partidário do militarismo. Em reportagem de Palmério Dória, a imagem de Sued aparece assim: “O Ibrahim foi nosso colunista mais famoso. Era um tipo servil com os poderosos e totalmente desagradável e feroz com os humildes. Uma figura repulsiva, execrável. Era competente, mas tinha um humor péssimo, raivoso. Veio de baixo, mas era fixado nos ricos e odiava os pobres”. (Caros Amigos, nº 27.) 98 Sued nunca negou que foi favorável ao golpe e que tinha na elite política do período o seu círculo de amizades. No contexto de seu tempo (1951-93), testemunhou a pretensão dos governantes militares de elevar o Brasil ao primeiro mundo e acreditou que o governo instalado em 1964 tiraria o país do provincianismo. Também nunca escondeu sua adesão ao ideário aristocrático e a sua intimidade com o poder. Como observa Zollo (1999), “Ibrahim defendia com unhase dentes o direito da elite ser um espetáculo em si mesma. E, sobretudo, tinham um enorme e variado poder”. A denúncia de Sued contra Brizola não se configurava um fato isolado. Ao contrário, a ocorrência de várias denúncias era representativa da inquietude que tendia a alimentar a desconfiança popular diante da democracia, agravando o descrédito de setores da população com relação aos políticos e às instituições de representação. Esse fenômeno gerou uma crise de representatividade que não afetou apenas o prestígio político dos líderes partidários e das suas personalidades, mas as próprias expectativas da população. Pesquisas realizadas em 1987 e 1988, pelo Datafolha, indicam que parte importante da população estava parcialmente decepcionada com os resultados dos trabalhos constituintes. 70,5%, dos entrevistados na região metropolitana de São Paulo, na primeira semana de novembro de 1987, não se sentiam representados na Constituinte; apenas 21,1% consideravam-se contemplados. Esses mesmos índices são confirmados em outras pesquisas, como a do Instituto Gallup, em 1987, e a do jornal Estado de S. Paulo, em janeiro de 1988, na qual 66% dos entrevistados consideravam incompetentes os políticos que elaboravam a nova Constituição. (Dados publicados por Veja, em 28/9/88; Folha de S. Paulo, em 5/10/88; Gallup, em 1987, e O Estado de S. Paulo, em 1988.) A desconfiança social quanto ao processo de redemocratização era difundido em vários textos e veiculado cotidianamente. A apreensão passa pela leitura dos espaços brancos do discurso implícito produzido pelo colunista. Esse procedimento jornalístico de ocultamento é explicado por Rebelo e ocorre quando o enunciador do discurso “assume plenamente o lugar de sujeito da enunciação e a responsabilidade plena do enunciado produzido, assim ele envereda por uma dupla estratégia: de dissimulação, através do emprego de sujeitos coletivos, de naturalização e do emprego de sujeitos indefinidos ou universais” (Rebelo, 2002, p. 152). Tal forma de reprodução do discurso torna o fato uma evidência social porque produz um efeito de reconhecimento daquilo que já é sabido, diga-se lido, estabelecendo uma relação de conivência entre o colunista e o leitor. Isso caracteriza que o discurso não é autônomo, nem falado por uma única voz, mas é o resultado de outros discursos que se entrecruzam no tempo 99 e no espaço. Ele passa a ser o produto da interação dos interlocutores em seu espaço social, como nos ensina Bakhtin (1991, 2000, 2001). Essa pluralidade de discursos era externada pelo colunista e se tornava comum, evidenciando o descrédito nas instituições representativas, principalmente naquelas que abrigam o poder Legislativo: Jornal do Ibrahim, 27 de abril de 1987 Na Constituinte há um movimento para acabar com o Supremo Tribunal Federal, após cem anos de serviços prestados à cultura jurídica do País. A idéia é levar para o novo Congresso de superpoderes a tarefa que cabe à instância máxima do Poder Judiciário. Deputados podem esperar uma dura resposta dos ministros. Vem aí chumbo grosso. Aliás, vocês já imaginaram um deputado analfabeto casca grossa, tipo índio do Congresso passado tendo que julgar com saber jurídico? No discurso, no qual há alusão ao deputado constituinte representante dos povos indígenas Mário Juruna, o colunista dá vida a um outro que não está apenas no outro, no diferente, mas sim no próprio sujeito da enunciação. A ironia no trecho que coloca em dúvida a capacidade de um índio, e analfabeto, de representar politicamente a nação, evidencia a discriminação étnica com subestimação do outro. Nessa estratégia discursiva, é possível a afirmação da superioridade de um sobre o outro. Para além do espaço e do tempo desse texto, desenvolve-se outro, que o incorpora e que por sua vez se liga a outros textos e outros espaços temporais, num movimento incessante feito de colisões, de interferências, de transformações, de trocas e rupturas. O tom é a ênfase na mestiçagem e o meio geográfico como justificativas para o atraso brasileiro, como pensava Paulo Prado, que, em 1928, escreveu em Retrato do Brasil: O Brasil não progredia, mas vivia e crescia como cresce e vive uma criança doente no lento desenvolvimento de um corpo mal-organizado. Isto porque era um país conformado por uma raça triste, vítima, desde o período colonial, da melancolia dos abusos venéreos e da melancolia dos que vivem na idéia fixa do enriquecimento – no absorto sem finalidades dessas paixões insaciáveis. (Prado, apud Fico, 1997, p. 31) Na verdade, esse discurso que ecoa na contemporaneidade foi constituído considerando o deslocamento da teoria científica das três raças, que por sua vez foi assimilada, principalmente, das obras de Darwin, Comte e Ratzel. Essa simbiose ressoa no texto da coluna como concepções personalizadas de vida e de mundo. Isto porque, seguindo a 100 lição de Bakhtin (1981, p. 77): “nenhum membro da comunidade verbal encontra, alguma vez, palavras neutras, isentas de aspirações e de avaliações feitas por outro, inabitadas pela voz de outro. Não, ele recebe sempre a palavra pela voz do outro e essa palavra está sempre preenchida pela voz do outro”. Não existe um autor autêntico, o texto é fruto de outros textos que geram a consciência coletiva, do mesmo modo que a linguagem cria a sociedade que a fala. Mesmo se tratando de um texto pessoalmente assinado, a coluna social é um fragmento discursivo que migrou no tempo e no espaço e aqui está sendo apreendida como uma atualização de discursos históricos. Tal fenômeno pode ser observado na nota da coluna a seguir: Jornal do Ibrahim 22 de julho de 1987 O deputado Ulysses Guimarães permanece até amanhã em São Paulo, mantendo sucessivas reuniões com as bancadas, federal e estadual do PMDB, e discutindo com o Governador eleito Orestes Quércia o secretariado paulista. Até o fim do mês o parlamentar pretende se licenciar do comando do PMDB. Bancadas de vários Estados unem voz para que a presidência do partido fique com o senador Affonso Camargo, da corrente moderada. Na redefinição de forças no PMDB, a segunda vice-presidência vai ser entregue ao Rio Grande do Sul. A terceira provavelmente a Pernambuco. Percebe-se, no texto da nota, um conjunto de relações complexas relacionado ao processo de fragmentação interna do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), um dos principais partidos políticos que, juntamente com o Partido da Frente Liberal (PFL), integrava a coligação que tornou possível a transição negociada do regime autoritário para o civil. O PMDB se organizou a partir da sigla anterior (MDB), partido que teve sua existência tolerada como oposição controlada, para justificar a fachada democrática que ornamentava o discurso do regime militar. Como oposição, o partido foi o ponto de fusão de diferentes correntes partidárias, e o hospedeiro de representantes de partidos na clandestinidade. O que parecia o eixo aglutinador da resistência ao autoritarismo, converteu- se em heterogeneidade, já que passou a absorver as primeiras dissidências do autoritarismo. Pesquisa realizada pela Universidade de Brasília, em março de 1987, sobre as origens partidárias de 298 membros da bancada do PMDB na Constituinte, revela que haviam pertencido à Aliança Renovadora Nacional (ARENA) em 1979, ou ao Partido Democrático Social (PDS) em 1983, 82 membros; integravam os quadros do MDB em 1979 ou do PMDB 101 em 1983, 137 membros; não tinham filiação partidária em 1982 (data de filiação ao PMDB) 75 membros. Isso quer dizer que 27% do universo considerado tinham pertencido aos partidos de sustentação do regime autoritário e menos da metade, 46%, eram peemedebistas históricos. (Fleischer, 1987) Marins (1989, p. 240) ressalta que, com a perspectiva de liquidação do regime autoritário e a iminente ascensão de TancredoNeves ao poder, o partido tornava-se mais atraente, tanto para os desertores do autoritarismo quanto para o uso conveniente dos setores mais conservadores. Essa intensa mobilidade era refratada ainda pelas disputas e incompatibilidades ditadas pelas lógicas políticas regionais. No esforço de ampliar a frente política que liderava e fortalecer suas condições de barganha nas negociações com os militares, Tancredo Neves tratou de aceitar e acomodar essas adesões mediante distribuição de postos e cargos no futuro governo. Segundo o autor, o que seria uma contingência de um momento de acumulação de forças contra o regime autoritário visando a sua liquidação, converteu-se numa característica permanente do maior partido político do país no curso da transição. Logo, o que unia a heterogeneidade vai se romper com as disputas que vão se desenhar na Constituinte. A mobilização dos mais variados interesses afetados acentuou a desarticulação do partido e provocou as divisões internas do PMDB. Esse processo de conciliação e ruptura nos remete à particularidade do processo de formação do Estado nacional brasileiro, iniciado após a independência, que foi ancorado na manutenção do trabalho escravo, não tendo o trabalho livre ganho espaço para seu implemento e consolidação. O resultado foi a ausência de um liberalismo que atendesse nova demanda da sociedade recém-emancipada politicamente, mas que não conseguia se firmar em toda a sua plenitude. No âmbito político, o surgimento de uma tradição de conciliação e contrarevolução vai caracterizar a história política brasileira. A Assembléia Constituinte instituída em 1987, pode ser analisada, portanto, como mais um processo da conciliação que vinha se processando no país. Nas palavras de Gramsci (2002), são as “restaurações progressivas” ou “revoluções-restaurações” e significa que, ao contrário de uma revolução popular, implica dois momentos: o da restauração, que trata de uma reação à possibilidade de uma transformação efetiva e radical “de baixo para cima”; e o da renovação, na medida em que muitas demandas populares são assimiladas e postas em prática pelas classes dominantes (Gramsci, 2002, p. 127). 102 Do relato cotidiano da coluna, determinam-se duas camadas discursivas. Uma se refere à publicação do fato noticioso e da qual podemos apreender os procedimentos jornalísticos que legitimam a autoridade do texto. A outra camada manifesta uma historicidade. Essa duplicidade não é excludente, ela estabelece as coordenadas sociais e históricas entre relações, significações e ações sociais. Os acontecimentos que, na sociedade, servem de referência ao jornal para as criações de suas representações do contexto, sofrem a influência e influenciam o contexto social, como jogo de forças do poder e da economia. Isso justifica a afirmação de Traquinas (2004, p. 203) de que as notícias acontecem na conjunção de acontecimentos e textos. Enquanto o acontecimento cria a notícia, a notícia cria o acontecimento. Mas, não é de outro modo que funciona o jornal como um todo, que em seus conjuntos discursivos desenvolve uma rede de comunicação constitutiva de um estado de cultura. Porém no texto da coluna o teor do jornal é pulverizado. Essa síntese funciona como um jogo de memória, no qual o colunista apresenta questões e sugere respostas: o uso da palavra comum e descontínua se torna reconhecível pela memória coletiva. Isso torna-se evidente na seguinte citação Jornal do Ibrahim, 26 de abril de 1987: O senador Fernando Henrique Cardoso reconhece que está se intensificando bastante o movimento pelas diretas em 1988. “Há um comichão neste sentido no Congresso”, enfatizou. Acha que a data mais provável para a reabilitação do pleito é novembro do próximo ano. “Isto se os que defendem este ponto de vista conseguirem vencer esta luta”, confidenciou. Eleição direta, segundo Fernando Henrique, poderá ajudar na condução política e econômica do Brasil, “pois hoje sentimos um quadro realmente meio confuso”. O discurso mantém, em seu núcleo, a estabilidade da memória política, reconhecível pela maioria dos brasileiros. O colunista faz recair toda a responsabilidade do discurso no senador Fernando Henrique Cardoso. No entanto, em seus meandros, o nome declina, e não é mais capaz de manter a autoridade do discurso, porque, na memória coletiva, ele está relacionado a outro discurso em aberto, ou seja, a campanha das Diretas-Já em 1984, cujas mobilizações populares, articuladas pelos partidos políticos e organizações profissionais e classistas, não foram suficientes para promover a ruptura democratizante do regime. Esse fato demonstrou que a correlação de forças estratificadas no Congresso expressava uma flagrante contradição com a correlação de forças existentes na sociedade. 103 Halbwachs (2006) recorre aos diferentes pontos de referência (monumentos, patrimônios arquitetônicos, datas e personagens históricos) que funcionam como indicadores empíricos da memória coletiva de uma determinada sociedade. Para o autor, o caráter quase institucional dessa memória coletiva encontra, na memória nacional, sua forma mais completa. Hierarquizada e classificatória, a memória define aquilo que é comum a um grupo e, ao mesmo tempo, diferencia-o de outros, fundamentando e reforçando os sentimentos de pertença e as fronteiras socioculturais. De acordo com Halbwachs (2006), a memória coletiva exerce a função de reforçar a coesão social não pela coerção, mas pela adesão afetiva do grupo. Para que isso aconteça, ocorre um processo de “negociação” no qual são conciliadas a memória coletiva e as memórias individuais, porquanto, a fim de que a memória de um indivíduo seja beneficiada pelas memórias de outros, é necessário que haja pontos de contato suficientes para que as lembranças de ambas as partes possam ser reconstruídas sobre uma base comum. Fica claro que a memória coletiva não é algo fixo, mas um processo em permanente mutação, fruto de uma negociação de sentidos e de interações culturais. Neste aspecto, o colunista faz emergir um outro discurso relacionado à campanha ocorrida em 1984, pela aprovação da emenda Dante de Oliveira, que propunha eleições diretas para Presidente da República, apresentando, como principal característica, a manifestação popular nas ruas das principais cidades brasileiras. Os comícios e manifestações de massa se constituíram momentos de conflito estabelecido. De um lado, a manutenção de uma transição negociada e, de outro, a ampliação de participação popular. Afirmação evidenciada na atitude de Tancredo Neves, que pretendia uma solução negociada com o governo militar, visto que procurava se mostrar em sintonia com a vontade popular e, ao mesmo tempo, não se indispor com os representantes do regime militar favoráveis a uma negociação na sucessão presidencial. É memorável o comício ocorrido em Belo Horizonte, que contou com a participação de 300 mil pessoas, reunidas na Praça Rio Branco. O próprio governador se encarregou de cuidar para que a população não sofresse nenhuma forma de repressão, mas, em contrapartida, também nenhuma expressão de radicalismo fosse percebida. Para cada discurso, podem-se pensar diversos e sucessivos encadeamentos de processos de significação, sem que isso possa representar uma visão simplista da história como repetição. Desse modo, pretende-se dizer que tais discursos não são independentes uns dos outros, mas são dimensões de um mesmo processo. No mesmo sentido, gravita nessa órbita o discurso de Guilhon Alburquerque: 104 A rejeição da Emenda Dante de Oliveira significou o fracasso de uma das estratégias em que se dividiu a Oposição democrática, desde a formulação da política de distensão do presidente Geisel. A estratégia derrotada consistia em granjear apoio popular para uma ampla frente de todas as correntes de oposição. Essa coalizãobuscaria alianças em todos os setores da sociedade civil, a neutralidade das Forças Armadas e a simpatia dos setores dissidentes liberais do regime autoritário. (Guilhon Alburquerque, 1987, p, 120) Nesse entrelaçamento de discursos, o do texto da coluna é o desfecho da rejeição da Emenda Dante de Oliveira e faz parte de um longo e complexo processo de transição política, que tem na Nova República a estratégia que possibilitou a substituição mais suave do regime autoritário por um governo democrático. Ele também está articulado a outro texto da coluna, o do dia 13 de junho de 1987, quando está em debate a questão da opção entre o parlamentarismo e o presidencialismo: O presidente José Sarney mandou um recado para seus colaboradores. Não quer ninguém falando, nem mesmo em tese, sobre a realização de eleições no próximo ano. Acha que a simples discussão do tema por membros do Governo somente serve para acalorar a já elevada temperatura política. Com cautela o presidente acha ser possível reverter a situação e conseguir dos políticos presidencialismo e mandato de cinco anos. Aliás, a notícia infundada de que seus filhos o aconselharam a aceitar quatro anos foi mais uma sinfonia orquestrada contra o Presidente... De leve. O discurso das Diretas-Já está entretecido ao debate travado na Assembléia Constituinte acerca da forma e o período de governo, como se um organizasse o outro, todavia, em vez de se apaziguarem, ordenam-se em outra cadência; algumas vezes se aproximando, outras vezes se contraindo. O estabelecimento dessa duplicidade é visível no texto. Um lado voltado para o debate da organização da nação após as eleições; o outro, impelindo a um fechamento, já que ainda não estava definido o processo eleitoral. Em longo prazo, tende a instaurar-se uma hegemonia que, por seu lado, abre-se para outras possibilidades. Em relação aos rumos que deveria tomar a organização da nação, o interesse em preservar o presidencialismo não se resumia ao presidente Sarney ou a governadores de Estado. Na verdade, um novo sistema de governo mudaria os horizontes de milhares de participantes da classe política, cujos objetivos político-eleitorais se organizavam numa matriz presidencialista. A aprovação do parlamentarismo frustraria as expectativas dos políticos e 105 subordinaria o Legislativo ao Executivo. Por isso, não se estranha a vitória do presidencialismo com mandato de cinco anos. O debate dessa duplicidade não é harmônico, mas é uma manifestação dinâmica e multíplice, no qual os sentidos mudam de direção, aproximam-se, derrubam-se e liberam-se mutuamente. A cada nova configuração, vão se atualizando, com ajustamentos imprevistos nas épocas anteriores. Em tal processo, ocorre o afrontamento de histórias diferentes geradas a partir de representações e interpretações individuais, que, por sua vez, encontram-se com outras similares e se constituem em representações e interpretações coletivas, que se materializam no texto. Fico (1997), em análise sobre o imaginário social do período Sarney, afirma que o então presidente é caracterizado por uma exacerbação dos sentimentos patrióticos, com atitudes individuais ou coletivas. Cita-se, por exemplo, o fato de que, em julho de 1985, numa atmosfera cívica posterior à campanha das Diretas, quando os espectadores que se preparavam para assistir à partida de futebol entre Brasil e Paraguai, começaram a cantar, espontaneamente, o Hino Nacional, embora isso não estivesse previsto pelos organizadores. O exemplo acima é demonstrador de que a subjetividade é plural, ela é um conjunto das condições que torna possível que instâncias individuais e coletivas estejam articuladas na mesma dinâmica social, ou seja, a subjetividade é produzida por instâncias individuais, coletivas e institucionais. Reencontramos aqui as idéias de Bakhtin (1998), o qual salienta que o modo como o discurso é ordenado em uma dada sociedade é o registro mais sensível e compreensivo de como são ordenadas todas as suas práticas ideológicas, inclusive religião, educação, organização do estado e política. “A língua não é o reflexo das hesitações subjetivo- psicológicas, mas das relações sociais estáveis dos falantes”. (Bakhtin, 1995, p. 147) Para o autor, quando há a apropriação do discurso do outro ocorre uma assimilação não apenas de uma estilística literária ou regras da gramática ou pontuação, mas também dos sentimentos e das ações. Seguindo esse raciocínio, é possível identificar os diversos discursos sobre a memória nacional, que passa por versões múltiplas e apropriações que se complementam e se afastam; remontam à memória para atualizar os acontecimentos do presente, num movimento de retorno ao passado, buscando os pontos de ligação entre o passado e o presente. Os sentimentos e comoções históricas dos quais trata Bakhtin são exemplificados no texto da coluna: 106 Jornal do Ibrahim, 15 de maio de 1987 O governo que se cuide. A CUT está articulando manobras com o objetivo de reforçar suas ações no campo. A partir do próximo mês pretende intensificar greves na zona rural por operações diversas, como o bloqueio de estradas. A CUT partiu para esta operação por considerar que não é oportuno fazer muitas greves na área urbana. As paralisações por aqui, na maioria, estão servindo para ajudar os patrões a aumentar o preço das mercadorias. Foi por isto que não estourou agora a greve dos metalúrgicos do ABC paulista. A CUT deve gostar de uma ditadurazinha militar. Fomenta bastante. Aliás, um dos seus chefes, o inteligente Lula, adora cultivar ditaduras tipo Fidel... De leve. A leitura do contexto indica que o período entre os anos 1987 e 1988 foi considerado de desmobilização política: a derrota da campanha pelas eleições diretas e o fracasso do Plano Cruzado haviam deixado marcas de decepção no otimismo da população. Além da crise econômica, sucederam-se seus corolários, como a recessão, o desemprego, a inflação e o desgaste dos salários, bem como uma sucessão de planos econômicos mal sucedidos e consequentemente de ministros, que não ajudaram a infundir confiança. A fragilidade do governo Sarney em responder com reformas às expectativas de mudanças tornava o ambiente propício para a intensificação os movimentos grevistas, que culminaram com a mobilização dos assalariados em março de 1988. Nesse clima, foram realizadas as eleições para prefeitos e vereadores em novembro de 1988. O resultado das eleições indicava que o Partido dos Trabalhadores (PT) foi o único que cresceu em termos eleitorais, saindo vencedor nas principais cidades do país: São Paulo, ABC, Campinas, Santos, Piracicaba, Porto Alegre e Vitória. A vitória do PT em outros centros urbanos demonstrava que o partido havia obtido um perfil mais nacional e menos paulistano. Entram em cena, nesse discurso, categorias de fato, de sujeito e de tempo históricos que rompem com a história tradicional, o que dá destaque à atuação de sujeitos, até então, marginalizados, como por exemplo, o advento da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e do deputado constituinte Luis Inácio da Silva Lula. O posicionamento ideológico do colunista no texto anterior não é, contudo, uma regra, porquanto, em muitos de seus discursos, ele se utiliza do recurso a abstrações, que propicia a ilusão de afastamento, pois ele se limita a transmitir uma opinião de outro. Com essa estratégia, funda-se um relato, um diz-que-diz, como pode ser comprovado na nota abaixo, relativa às constantes trocas de ministros no governo Sarney: 107 Jornal do Ibrahim, 23 de setembro de 1987 Confidencial: Amigos do ministro Bresser Pereira o têm aconselhado a largar o Ministério, com a justificativa que não controla o déficit público. Não está fácil controlar em 3,5% do PIB. A agulha do déficit não sai de 4,5% e ameaça chegar aos 5%. O Ministro não tem apoio do PMDB e nemo menor apoio dos demais ministros, que só querem implodir o déficit. Os inimigos proclamam que Bresser fraudou a moratória, imposta pelo antecessor Funaro, além do que colocou à frente da renegociação da dívida Fernão Bracher, que se afastara do Banco Central por discordar da moratória, do discurso e do palanque do Sr. Dilson Funaro. Quanto mais longa a duração, mais aparecem linhas de semelhanças que ligam um texto a outros e que ligam entre si as diversas esferas. O texto relaciona-se ao rumo do governo Sarney, apontando para a dificuldade de ultrapassar as limitações de uma política econômica nacional-desenvolvimentista. Em análise do período, Sallum Jr. (1996) indica que a gestão econômica do governo Sarney demonstrava a insuficiência de se tomar o Estado apenas como setor/agente econômico desajustado, fosse pelo desequilíbrio interno (desajuste fiscal, descontrole financeiro, administrativo), que perturbava o funcionamento do setor privado, fosse porque indevidamente intervinha no sistema econômico. Desse ângulo dominante no debate público, o Estado tem sido identificado como “setor público” e não como organização de dominação de alguns segmentos sociais sobre os demais. Para Sallum Jr., essa visão neutraliza sociologicamente o Estado/setor público, que, tratado como entidade sujeita à má administração, em geral atribuída à “interferências” políticas de partidos e interesses eleitorais, dificulta as distintas estratégias de enfrentamento da crise econômica. A capacidade de veto de cada um dos componentes da aliança nacional- desenvolvimentista demonstra que a crise de hegemonia do começo dos anos 80 não fora superada. Ainda segundo esse autor, cada tentativa heterodoxa/ortodoxa de ajuste econômico buscava recuperar a autoridade do Estado, estabilizar a moeda, e jogar o ônus do ajuste do setor público sobre um ou outro componente da velha aliança. Num momento, cortaram-se rendimentos de credores externos e internos do Estado. Noutro, restringiram-se os gastos com salários dos funcionários públicos e transferências do Tesouro para estatais; adiante, decidiu- se onerar o empresário privado com carga tributária, mas, em todas as situações, os segmentos eventualmente perdedores, dada a solução implementada, encontraram meios de vetar o ajuste pretendido. 108 A assimilação do contexto pelo texto da coluna revela que as divergências pós- Cruzado entre Funaro x Sayad x Bresser e técnicos vários resumem as oscilações da política econômica da Nova República antes e depois da nova moeda: 1ª fase: Dornelles/Sayad; 2ª fase: Bresser/Maílson. A contínua troca de ministros e planos econômicos mostra que nenhuma orientação econômica obteve consenso no leque de forças sociais e políticas que conduziram à transição política brasileira do período. Essa idéia fica mais clara no texto abaixo, quando a coluna faz referências às qualificações desfavoráveis ao Plano Bresser: Jornal do Ibrahim, 10 de novembro de 1987: O caixa alta Elmo Araújo Camões, presidente da Associação Brasileira de Bancos Comerciais, acha que entrou areia no Plano Bresser. Foi descaracterizado com os reajustes salariais ocorridos no Banco do Brasil e no Banco Central. Portanto não acredita nas previsões de inflação feitas pelo Governo e não acha que o Brasil vá receber US$ 1,5 bilhão em investimentos externos. “A grande chance de conversão da dívida externa já passou. Com a queda nas bolsas internacionais e incertezas na economia americana, a turma está com as barbas de molho”. Expressões como “entrou areia no Plano Bresser”, “a grande chance de conversão da dívida já passou” e “a turma está com as barbas de molho” expressam qualificações negativas/desfavoráveis. Essas vozes contextualizadas desvelam as derrotas do ministro contra corporações de funcionários da administração direta e indireta e grupos privados. O discurso de contestação presente no texto da coluna manifesta a perda do pequeno suporte empresarial do ministro, que culminaria com sua saída em dezembro de 1987. São inúmeras as analogias discursivas possíveis, inclusive o que distingue em contraste os estados passionais do Brasil. A sua história é marcada por “altos e baixos”, ou seja, por dois discursos opostos: o do otimismo e o do pessimismo. São discursos presentes no imaginário da sociedade brasileira desde a sua independência e cujos ecos ouvimos ainda no período analisado. Como discurso de otimismo, temos o entusiasmo pela vida nacional, de confiança no futuro do país. O outro, pessimista, aborda a crise moral e política como fatores que impediam o aproveitamento do potencial natural do país. As duas modalidades de textos podem ser identificadas, também, nos textos da coluna. Os dois discursos podem ser ativados além do tempo e do espaço; por exemplo, o discurso ideológico da crise moral é sempre impulsionado e pode servir a diversos fins, como afirma Fico (1997:43). Ele serviu para justificar o Golpe de 64, já que, ideologicamente, 109 março de 1964 veio para restaurar o primado dos valores éticos e morais do Ocidente cristão, haja vista a Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Ele também será intensificado nos anos 1980, conhecido como a década perdida para o Brasil, como dá a entender o texto da coluna de Sued. O seu oposto, o discurso otimista numa relação análoga, conquanto inversa, é associado aos momentos de euforia ou quando ocorre uma fragilidade do equilíbrio entre um e outro momento. O Globo, na reportagem de Fred Suter, do dia 18 de janeiro de 1988, comenta sobre um estudo de modelos de felicidade, realizado pela Listening Post, editado periodicamente pela Standard Ogilvy & Mather. O resultado da pesquisa aponta que 0% do povo brasileiro está completamente feliz; 5% estão muito felizes; 50% mais ou menos felizes; 32% pouco felizes; e 13% nada felizes. Ouvidos individualmente, 14% estão completamente felizes; 33% muito felizes; 47% mais ou menos; 8% pouco felizes e apenas 4% nada felizes. 93% dos entrevistados estão satisfeitos de terem nascidos no Brasil, porque, segundo a reportagem, “a população acredita escorada no ufanismo ser o país do futuro, uma nação que ambiciona repetir a experiência americana no século XXI”. Apesar de a conotação positiva ou negativa do discurso ser sincronicamente função do grupo social que o usa e, diacronicamente, dos contextos que se vão criando, observa-se que essas qualidades migram e se entrelaçam em vários outros discursos, como o discurso ideológico e o discurso intelectual. Exemplo desse nomadismo pode ser identificado na obra de Jurandir Costa, com suas explicações psicanalíticas para o estado do Brasil nos anos 80: “o homem comum, habituado a delegar à classe dirigente o poder e a iniciativa de decidir o que é bom para si para os outros, perde a confiança na justiça. É a crise moral que acompanha a crise política, econômica e social (Costa, 1988:166). Torna-se perceptível que os discursos, positivo ou negativo, estruturam um conjunto de formas cristalizadas de pensar, sentir e agir das elites hegemônicas e funciona em âmbito simbólico e imaginário, viabilizando a convivência grupal aparentemente harmônica. Assim, eles estão prontos para serem usados, sempre que preciso, para conciliar os interesses coletivos em detrimento dos interesses individuais. A prática discursiva do colunista opera com a diversidade de tempos sociais e com a diversidade de memórias coletivas; ocorre uma descontinuidade entre o discurso produzido pelo colunista e o presente construído pela coluna – com os recortes que realiza da memória e da realidade – e o conjunto de enunciações dispersas, heterogêneas e atemporais que formam o saber histórico de uma sociedade sobre aquilo que a constitui e a diferencia de outras. 110 Um recuo espaço-temporal faz aparecerem indícios de deslocamento e revela uma notável continuidade de discursosentre o texto apropriado para esse estudo e uma tradição organicista do social. Da mesma forma que a medicina estuda o corpo para diagnosticar e medicá-lo, os métodos políticos atuam como remédios para a preservação da ordem social. Tal metáfora já foi observada por Lefort (1983), em análise que faz do regime totalitário soviético. A metáfora do corpo é utilizada para designar um instrumento racionalmente justificador da subjugação das partes em relação ao todo: O mais perfeito typo de organização que temos para estudar e copiar é o homem. Toda organização racional se assemelha ao corpo humano ou as suas partes componentes. Ella deve possuir o orgão de “direcção”, como o cerebro, capaz de receber as sensações exteriores, definil-as, conjugal-as e resolvel-as, determinando a “reacção” adequada. Deve possuir igualmente apparelhos transmissores, não só das sensações, como das determinações do comando central, como os nossos nervos. Ella deve ser dotado de agentes executores que obedecem, (sem discutir) as ordens e determinações do centro director, tal qual os nossos músculos, Tem de ter também orgãos de rotina, que agem por si mesmos, de accordo com as circunstancias, sem interferencia do cerebro, como o fígado, glandulas, etc. Deve ainda possuir uma “estructura” que lhe dê uma forma estável e que resista às deformações, dotada, porém, de certa mobilidae, como o nosso esqueleto. Finamente, deve ser apparelhada com um systema de agentes de conservação, que cuidam de conservar, limpar o organismo, como nosso sangue e o nosso systema de secreções. Que é um systema de telephones senão uma copia grosseira do cerebro (centro) dos nervos (fios) e cellulas receptoras (apparelhos)? Que é um systema de transporte senão uma copia rudimentar do nosso perfeito systema circulatorio? (...) No corpo humano, não se dá o caso do estomago ou do fígado querer funccionar como cérebro, ou os pés querem substituir os olhos ou ouvidos... Se isto se désse, seria uma anarchia completa. Entretanto, no organismo social esse absurdo é tentado de várias formas e as chamadas lutas de classes não são mais do que uma luta de orgãos que pretendem dirigir o organismo, isto é, fígados e estômagos que pretendem ser cérebros, de vez em quando. (Lefort, 1983, p.120) O teor do discurso acima é uma reverberação do discurso positivista que entendia o universo e a sociedade submetidos a leis invariáveis e, por isso, possíveis de serem ordenados. Esse lema positivista atravessou fronteiras e, apesar de ser discutível o peso do positivismo para o estabelecimento da República brasileira, é inegável a sua influência nos pensadores do período, que o viam como modelo para o país. 111 Essa postura refere-se, implicitamente, à unidade orgânica do país. As crises são explicadas porque a cabeça dirigente não está fazendo a correspondência interna de todas as partes, o que provoca os conflitos desagregadores da ordem social. Nesse sentido, qualquer insubordinação ao poder corrompe uma ordem preestabelecida, além de levar à falsa noção de que o fato de existirem diferentes grupos sociais implicaria uma oposição insolúvel de interesses entre esses grupos. Qualquer proposta ou ação que dificulte ou impeça a aceitação da concepção de que os diferentes grupos sociais existentes são complementares e necessários uns aos outros e de que a harmonia entre eles é benéfica e indispensável à sociedade é vista como falsa e perigosa. Estilhaços desse discurso ecoam na reportagem da coluna do dia 18 de janeiro de 1988: Lugar de baderneiro é na cadeia Repetiu-se no Rio mais uma baderna profissional, organizada pela minoria de agitadores contumazes do PT, CUT e PDT. Numa cerimônia católica, simples, sem nenhuma ostentação, com pouco mais de cem convidados, os baderneiros, uma pequena minoria, friso, foi para a frente da igreja impedir que um dos padrinhos comparecesse à cerimônia. Acontece que o referido padrinho era o Presidente da República. Os Direitos Humanos devem ser para todos e, principalmente, para o Chefe da Nação. Se essa minoria de desordeiros profissionais afirma que o Presidente é persona non grata no Rio, a maioria dos cariocas proclama o contrário. Sarney é persona grata e foi graças a ele que banimos, nas eleições passadas, o nefasto e corrupto Brizola do Rio. Do texto da coluna é possível depreender a visão positivista que procura construir uma imagem de sociedade homogênea e harmônica. A violência da dominação exercida por uma classe torna-se natural e legítima, porque fornece aos membros de uma sociedade dividida e separada do poder a imagem da indivisão política e elabora, para a classe que detém o poder, a imagem de si como representante homogênea e eficaz da sociedade como um todo. As manifestações tornavam-se, portanto, crime contra a nação, pois essas posições apontavam para a destruição do organismo nacional. A metáfora do corpo político permanece, ainda hoje, como um discurso apropriado para reforçar a submissão a um poder miraculoso que emana dos líderes políticos esperados e que encarnam em suas pessoas a identidade possível da sociedade consigo mesma. Ele é um discurso que oscila entre a luz, ora visível, e a sombra, ora escamoteado, mas sempre utilizado como instrumento potente para o entrelaçamento governo/povo, aberto a várias modalidades 112 de discurso que se entrelaçam, se aproximam, se distanciam, deslocam-se e dialogam entre si, e neste diálogo sofrem os condicionamentos sociais e históricos que perpassam os sujeitos e as palavras. No entanto, o discurso do colunista também aponta para as grandes mobilizações ocorridas na sociedade brasileira no decorrer dos anos 80. Elas foram de suma importância para que houvesse uma correlação de forças favorável à instauração de instâncias decisórias democráticas, de modo a possibilitar a criação de mecanismos voltados para a ampliação da participação da população nas decisões, combinando democracia representativa com instrumentos de democracia participativa. Embora o período tenha reproduzido, em alguns momentos, a velha tradição brasileira dos “arranjos pelo alto”, ele também foi determinado pela pressão advinda “de baixo”, que tinha como estratégia abrir e conquistar espaços para as camadas excluídas do poder. Nessa articulação mútua, as palavras vão se materializando em discurso e impregnando as formas de pensamento e de sensibilidade. O texto da coluna participa desse universo comunicativo de informações acumuladas na memória da sociedade. A reconstrução da sua narrativa se expressa sob formas de encadeamentos sígnicos, ordenações e hierarquias, não necessariamente lineares. O texto resultante é uma interação desses elementos e da sua projeção temporal e espacial num infinito diálogo consigo mesmo e com outros signos, transportando-se para além das fronteiras da língua, para a própria cultura e se construindo nesse diálogo entre seus componentes subtextuais e na interação entre os signos e dos signos com o seu próprio percurso histórico. A tarefa que se impôs, ao longo deste texto, foi identificar que, no conjunto de enunciações dispersas, heterogêneas e atemporais da coluna social, forma-se o saber histórico de uma sociedade sobre aquilo que a constitui e a diferencia de outras. Ademais, situar a existência concreta do discurso e as circunstâncias em que foi produzido e, para além do espaço e do tempo, atestar o seu ressoar em outros tempos históricos. O texto analisado neste estudo específico foi a coluna social do Ibrahim Sued, no qual identificou-se o predomínio de uma tradição política que via, nos aparentes aspectos democráticos do processo de transição, aspectos situacionais que poderiam prejudicar a sua legitimidade. Na investigação de tal discurso, observa-se uma convergência com o discurso dos políticos ligados ao regime de exceção. Eles eram retratadoscomo protetores, mais do que repressores; já a nova avalancha de políticos que ascenderam ao poder pelo voto, como perturbadores e inimigos da democracia. Assim, de acordo com a percepção de Nora (1985) a respeito do princípio da 113 descontinuidade, podemos entrever um passado que é dado como radicalmente outro, porque revela um mundo no qual os indivíduos estariam desligados para sempre. O passado que retorna pelo esforço da lembrança é sempre outro passado, nunca o mesmo. Entretanto essas marcas possibilitam um deciframento do que somos à luz do que não somos mais. Destarte, a defesa do discurso da coluna social se deve ao fato de que ele se configura como uma fonte para a construção, no presente, de uma memória que fornece elementos para a construção da história. Todavia é necessário considerar os limites oferecidos pela memória histórica. Certamente que esses discursos possibilitam o retorno de temas do passado e a sua emergência na memória do presente. Nesse processo, a memória é acionada e tem o efeito de produzir sentidos construídos em um percurso inscrito em outros discursos e em outras épocas. 114 III - O RISO NA ASSEMBLÉIA NACIONAL CONSTITUINTE (1987-1988) Nos capitulos anteriores, procuramos demonstrar que a coluna social é um gênero de fofoca, entendida como um fenômeno social e tematizada como evento social, cuja informação passada para os participantes pode ser recontada, recriada e reconstruída, tendo por foco o uso da linguagem como prática social e dialógica. Por isso o seu caráter mnemônico. Observamos que uma das características da fofoca é trazer à luz aspectos relevantes do cotidiano de forma jocosa. O humor provocado pela fofoca está firmemente arraigado na realidade social e política e revela questões importantes da sociedade: desde os interesses dominantes, as atitudes e valores relativos à identidade até seus contrapontos, contradições e ambivalências. A proposta agora é analisar a coluna social pelo ângulo do humor instaurado pelo tom provocante, irônico e risível. Para compreender o riso em sua dimensão social, foram selecionadas as notas da coluna social de Swann relacionadas à cobertura dos fatos pitorescos e das diversas manifestações de ironia, ocorridas nos bastidores da Assembléia Constituinte. A primeira referência acerca do cômico que abordaremos encontra-se em Bakhtin (1999), no estudo das festas pagãs primitivas, no qual o autor identifica na comicidade uma ligação com as tradições vivenciadas na antiguidade por meio da carnavalização. Nesse sentido, a carnavalização é uma cosmovisão revitalizadora que tem como princípio o redimensionamento das relações do homem com o mundo. Na leitura de Bakhtin, o elo entre o sério e o cômico já existia na vida social, desde os primórdios da humanidade. Tal afirmação está assentada na observação de que os rituais sérios se coadunavam com os rituais que parodiavam os mitos, os acontecimentos e os heróis cultuados pela comunidade. A morte e a vida, o divino e o profano, o sério e o cômico, o oficial e o extra-oficial, o sublime e o escatológico conviviam harmonicamente na vida social da antiguidade. Se na antiguidade o sério e o cômico conviviam de forma harmônica, foi com o surgimento do Estado e da sociedade de classes que eles passaram a ser dicotômicos. O sério se tornou a cultura dominante, e o cômico foi proibido em alguns espaços e permitido em ocasiões restritas aos momentos festivos. Segundo Bakhtin, é nas festas populares que ocorre um afrouxamento da fronteira entre o sério e o cômico. Nelas, os lugares sociais são dessacralizados, ocorrendo a inversão de papéis sociais, e as verdades emergiam em forma de brincadeira e escárnio. Os indivíduos ganham voz para dizer o que pensam por meio de gestos e vocabulários obscenos. No 115 carnaval, por exemplo, ninguém assiste passivamente: todos vivem as situações que são colocadas em jogo. Na visão bakhtiniana, o riso é transgressor, já que pode ser interpretado como uma inversão, dada a dignidade da instituição atingida, lugar de ordem, de manipulações e imposturas. A sua estratégia básica consiste na desfamiliarização, ou destronamento, em que o senso comum é rompido, o inesperado é evocado, o que é familiar é exposto em contextos desconhecidos ou chocantes. Já para Bergson (2007), o riso é como um eco social, ele dá respostas a certas exigências da vida em comum e tem uma significação social. Além de ser um fenômeno social, é também psíquico: o sujeito ri de situações constrangedoras com as quais não se envolve emocionalmente. O cômico é provocado pela observação das falhas humanas em uma perspectiva corretiva, diante dos olhos do observador, ou seja, o riso tem um significado social com a função de aperfeiçoamento do indivíduo. O cômico estaria ligado à capacidade de explicitar e identificar o ridículo humano projetado no exagero caricaturado, na encenação do automatismo, nos gestos de transgressões e nos clices desgastados. Em seu estudo sobre o riso, Bergson (2007) salienta que o cômico é um fenômeno exclusivamente humano. Ele ocorre quando se dá uma “anestesia” momentânea das emoções. Afirmação que pode ser questionada pelas investigações contemporâneas sobre a natureza da racionalidade; exemplo disso encontra-se em Damásio (1996), que investiga a correlação existente entre emoção e razão 8 . Bergson, quando ressalta que a comicidade se dirige à inteligência pura, faz a separação entre razão e emoção, desconsiderando que a emoção e os sentimentos são indispensáveis para a racionalidade; e que todo conhecimento é precedido de algum julgamento, assim a própria identificação do que é risível passa pelo processo de conhecimento daquilo que não é. Entretanto, ao identificar no riso um princípio de relaxamento que anestesia o pensamento, sugere a noção de riso decorrente do distanciamento, sem o qual nenhuma forma de comicidade se viabiliza. As percepções de Bergson a respeito do riso ocorreram a partir da observação da dinâmica dos brinquedos infantis: o boneco de mola, o fantoche a cordões, a bola de neve; com base nessa investigação, ele elabora os processos fundamentais do riso: a repetição, a inversão, a interferência de séries e a transposição. Nesse processo, Bergson identifica algumas características do cômico: cômico de linguagem, o cômico de situação e o cômico de caráter. 8 Nesta obra, fruto de duas décadas de trabalho clínico e experimental, Antonio Damásio mostra que a ausência de emoção e sentimento pode destruir a racionalidade. 116 Essa identificação dos vários tipos de cômico é feita de acordo com uma perspectiva que faz residir na fusão entre o mecânico e o vivente, a essência da comicidade. Assim sendo, o cômico das formas resultaria da rigidez adquirida por uma fisionomia, e o cômico dos movimentos teria origem nas atitudes, gestos ou movimentos mecânicos com caráter repetitivo. O exemplo clássico desse tipo de cômico, para o autor, são os artifícios usuais da comédia, quando ocorre a repetição periódica duma palavra ou de uma cena, e a intervenção simétrica dos papéis. Nessa perspectiva, o cômico de situação resultaria da repetição de um determinado acontecimento ou da inversão dos papéis das personagens diante de uma dada situação; ou, ainda, da interferência das séries, quando uma situação pertence simultaneamente a duas séries de acontecimentos independentes, podendo interpretar-se alternadamente em dois sentidos completamente diferentes. O cômico de palavras teria origem na aplicação à linguagem dos processos de repetição, inversão e interferências. Entretanto, Bergson (2007) enfatiza que devemos distinguir entre o cômico que a linguagem exprime e aquele que a linguagem cria. O primeiro poderia sertraduzido de uma linguagem para outra. Isso é perceptível quando o sujeito passa para uma sociedade nova, diferente pelos seus costumes, pela sua literatura e, sobretudo, pelas suas associações de idéias. Assim, as atitudes perante o humor variam de acordo com o sistema de valores e as questões epistemológicas privilegiadas por uma cultura. O segundo é geralmente intraduzível. Deve o seu ser à estrutura da frase ou às palavras escolhidas. Nesse aspecto, estaria a transposição, da qual a paródia é um exemplo, ou seja, a transposição do solene para o familiar, ou o exagero resultante do processo de transposição da grandeza ou do valor dos objetos; bem como a ironia e o humor. Finalmente, Bergson identifica o cômico de caráter derivado da falta de integração da personagem na sociedade e de algo semelhante a uma distração da própria personagem. Assim, é cômica a personagem que segue automaticamente o seu caminho sem se preocupar em entrar em contato com os outros. O riso surge para corrigir a sua distração. Acredita-se que pensar o riso é transpor os limites do sério, um modo especial de compreensão da realidade. O riso, então, é como se fosse uma fissura deixada pela seriedade e uma reação imediata e conciliadora, mas também ele pode ser uma reflexão sobre a realidade, uma forma de interpretá-la, de ver-lhe o sentido ou a falta dele. Por isso, o riso esconde e revela. Na leitura de Bergson (2007), o riso é provocado pela rigidez mecânica, pelo automatismo. Isso porque a vida e a sociedade exigem do ser humano uma atenção e uma elasticidade do espírito e do corpo para se adaptar às constantes mudanças 117 de situação; o riso, por conseguinte, é uma espécie de gesto social que reprime as excentricidades e procura corrigir certa rigidez do corpo, do espírito e do caráter que a sociedade gostaria de eliminar de seus membros. Assim, o cômico em Bergson teria a função social de corrigir. Com base nesses referenciais, analisamos o contexto do Brasil durante a Assembléia Nacional Constituinte. Após a eleição dos deputados constituintes, as discussões predominantes giraram em torno dos poderes a eles atribuídos e da organização a ser adotada nos trabalhos seguintes. Ao final do processo, prevaleceu uma organização descentralizada, constituída por subcomissões e comissões temáticas, que realizariam os estudos iniciais, ouvindo a sociedade e votando os relatórios preliminares. Encerrada essa fase, uma Comissão de Sistematização de 97 membros se responsabilizou por preparar o projeto a ser votado pelo plenário. No princípio de 1988, após um ano e sete meses de trabalhos da Assembléia Constituinte, o projeto constitucional foi levado para uma primeira votação em plenário. Após intensos debates, uma segunda votação ocorreu, e a Constituição foi promulgada em 5 de outubro de 1988. Essa Assembléia Constituinte, eleita durante a presidência de Sarney, além do trabalho legislativo ordinário, tinha como tarefa a redação da Constituição. A convivência conflituosa do Poder Executivo e do Poder Constituinte, as negociações, disputas ou revelações das lideranças políticas e a intensa atividade dos lobistas marcaram todo o ano de 1987 e parte do ano de 1988. O exemplo mais evidente da atividade dos lobbies foi a votação que definiu o mandato presidencial de Sarney, para cinco anos. É também a origem do “centrão”, grupo de parlamentares dispostos a barrar as proposições mais progressistas em troca de favorecimentos políticos pessoais. Apesar da hegemonia do PMDB, grande vitorioso nas eleições de 1986, principalmente em razão de ter assumido a paternidade dos efeitos positivos do Plano Cruzado, a correlação de forças na Constituinte foi marcada por diversas concepções ideológicas e doutrinárias. Isso poderia indicar a falta de definição ideológica dos partidos políticos. Pesquisa divulgada na Folha de S. Paulo, no dia 19 de fevereiro de 1987, indicava o perfil ideológico dos 559 constituintes: 181 de centro (32,3%), 131 de centro-direita (23,4%), 126 de centro-esquerda (22,5%), 69 de direita (12,3%) e 52 de esquerda (9,3%). Curioso notar o fato de que a ação desses grupos suplantou a dos partidos e seus programas. Por conseguinte, os grupos conservadores se organizaram em torno do “centrão”. Uma das vitórias do “centrão” em plenário foi ter conseguido que o presidente da 118 Constituinte, o deputado Ulisses Guimarães, convocasse uma sessão ordinária para discutir e aprovar o projeto de modificação do regimento interno, elaborado pelos parlamentares. Outros grupos se formaram, entre eles o “centrinho”, que congregava liberais e progressistas, unidos contra o “centrão”. Também surgiu o “grupo dos 32”, reunindo constituintes moderados de diversas legendas partidárias. Outra tendência foi o “grupo de consenso”, também pluripartidário, formado por representantes de centro-esquerda, cujo objetivo principal era o de oferecer propostas para os pontos polêmicos da Constituição. A liderança desse grupo ficou com o senador Mário Covas, líder do PMDB. E finalmente o “centro-democrático”, surgido do seio da ala moderada do PMDB. São esses grupos que vão digladiar-se durante as atividades parlamentares, muitas vezes tensas e rígidas. Porém suas ações acabam dando oportunidade à manifestação do riso nas situações cômicas específicas aos políticos e provocadas por comentários inoportunos, chistes e jocosidades, trocadilhos e citações erradas, que destronam as manifestações elementares do sério e instauram o cômico. A raiz etimológica grega (kôrnikós), que chegou até nós pelo latim (cornicu) designa a conciliação de idéias ou de situações aparentemente irreconciliáveis. A conciliação é produzida por um raciocínio engenhoso com a intenção de produzir o riso. Isso pode ser verificado na aproximação entre o riso e o poder, em suas essências contraditórias. O que fazia rir na plenária da Assembléia Constituinte eram os comentários jocosos, o escárnio, a paródia e a ironia e outras formas de risos captados pela coluna social na forma do discurso direto ou o relato na primeira pessoa. Identificado o humor, interessa saber por que havia o riso naquele momento da história. Quais eram as circunstâncias e o contexto do riso durante as sessões parlamentares? O humor aqui será entendido na mesma acepção dada pela história cultural: “qualquer mensagem expressa por atos, palavras, escritos, imagens ou músicas, cuja intenção é a de provocar o riso ou um sorriso” (Bremmer e Roodenburg, 2000, p. 13). Sabe-se que o riso tem o poder de mobilizar a sociedade, criando um senso comum entre os indivíduos que vivem em comunidade, já que viver em sociedade significa reconhecer os mesmos interesses sociais e culturais. O que torna algo risível é justamente torna-se risível perante alguém que ri, ou seja, o riso nasce da percepção do outro. Os indivíduos de uma mesma comunidade riem daquilo que é senso comum nessa sociedade, e é este “estar sintonizado” em um mesmo ideal que determina a maneira de ver e compreender as mesmas idéias e o comportamento uns dos outros. Este “ver coletivo” é o elemento agregador que determina o sentimento de pertencimento a uma comunidade. 119 Assim, qual a percepção do riso que podemos apreender da coluna social durante os trabalhos legislativos? Logo no início dos trabalhos se comentava: “o Congresso Nacional já tem painel eletrônico e um detector de metais. Fica faltando agora um relógio de ponto”. No dia 30 de janeiro de 1987, ao apreciar a programação de posse dos deputados e senadores: No primeiro dia haverá a diplomação às 9 horas da manhã; a prestação de compromisso às 10 horas e, às 16 horas, a instalação oficial da Constituinte. No dia seguinte, o programa será mais ou menos puxado: às 9 horas haverá a eleição dos membros da mesa e, às 15 horas, a eleição do novo Presidente da Câmara. Vai ter gente pedindo licençano terceiro dia para descansar, ameaçados pelo stress. O cômico da nota é expressa naquilo que Bergson chama de transposição, ou seja, a presença de dois tons extremos: o solene e o familiar. Para o autor, “o risível nasceria quando uma coisa antes respeitada, aparece-nos como medíocre e vil” (Bergson, 2007, p.93), ou seja, ocorre a transposição do solene para o trivial, do melhor para o pior. A transposição ocorre com a insinuação de que os parlamentares trabalham em um ritmo muito lento e rememorava a atuação da política e dos políticos aos anos de ditadura: parte de seus integrantes se curvavam às pressões do executivo ou à política de favorecimento pessoal. Encontramos, em outra nota, a insinuação de que em algumas atividades, especialmente de interesse direto, o empenho parece ser bem maior, como no caso a seguir relatado. No dia 1º de fevereiro de 1987, os senadores Nélson Carneiro e Humberto Lucena, ambos candidatos à presidência do Senado, encontraram-se na hora do almoço, no restaurante do Senado. Entre a sobremesa e o cafezinho, Nélson Carneiro se levantou e foi até a mesa de Humberto Lucena, desculpando-se depois: “Eu não perco essa mania de pedir votos e fico tentado até mesmo quando vejo o adversário”. O texto também remete ao fato de que toda a sociedade tem suas normas e padrões determinados. Isso resulta em uma conduta uniforme, sem extravagâncias, sem desvios. Tais normas e padrões exigem de todos os indivíduos componentes dessa sociedade uma vigília constante, para que não haja o desvio, o escorregão, o que chamaria a atenção sobre o indivíduo infrator. Aqui, apontamos novamente a um exemplo do que Bergson chama de transposição de baixo para cima, como, por exemplo, exprimir honestamente uma idéia desonesta ou descrever um comportamento não muito adequado em termos de estrita 120 respeitabilidade. Nesse caso, o riso é um fator de ordem, sancionando as irregularidades de conduta, as violações do regulamento e os propósitos incongruentes. Pouco tempo após o início dos trabalhos, no dia 03 de fevereiro de 1987, já se ouviam comentários jocosos sobre o tipo de atuação de alguns parlamentares: “o Deputado Xuxa – aquele que antes das eleições brindava seus eleitores com “beijinhos, beijinhos”; agora, só os trata com „tchau, tchau‟”. O colunista alude ao chavão utilizado pela apresentadora de um programa infantil para criticar a ação de alguns deputados antes das eleições; ao mesmo tempo demonstra a banalização do fazer política, exemplificada na insistência dos políticos em cumprimentar os eleitores e recebê-los em seus gabinetes. Entretanto, após as eleições, eles se atêm aos próprios compromissos. Na leitura de Minois, isso ocorre quando a política assume, sem complexo, seu papel de comédia: como zombar com eficácia dos políticos que apresentam a si mesmos como palhaços sérios quando proclamam sua integridade, as mãos sobre o coração, em meio a processos, investimentos fictícios ou desvios de fundos, palhaços cômicos quando se misturam ao povo para apertar mãos, provar os pratos típicos do torrão natal (Minois, 2003, p.598). Alguns comentários sarcásticos indicavam que as disputas político-ideológicas se davam com palavras como essas do dia 03 de fevereiro de 1987, proferidas por um dos parlamentares, retrucando a notícia de que o PMDB pretendia fazer uma Constituição explosiva: “O PMDB foi a todas as festinhas na casa do regime anterior e agora quer casar na Igreja de véu e grinalda”. Esse caso corresponde ao que Bergson (2007, p. 83) vê como regra: “obtém-se uma frase cômica inserindo-se uma idéia absurda num molde frasal consagrado”. Fatos e ações pitorescas podem ser exemplificados com o acontecido à Deputada Jandira Feghalia, líder na Assembléia Legislativa do PC do B, partido que elegeu um único parlamentar. Ela dispunha de apenas uma sala, cujo espaço mal dava para abrigar dois armários, uma mesa e dois assessores. “A musa do PC do B está agora tentando driblar o Regimento Interno da Casa para conseguir uma sala só para a liderança do Partido, vale dizer, ela” (Coluna do Swann, 3 de novembro de 1987). A mesma Deputada foi notícia no dia 18 de março de 1988, quando decidiu fazer uma incursão no plenário da Constituinte. Como não portava nenhuma identificação, foi barrada na porta. O comentário irônico da coluna foi o seguinte: “de nada valendo sua condição de parlamentar e muito menos a clássica indagação: “sabe com que está falando?” Jandira pode ser popularíssima na Albânia. Em Brasília, não faz 121 o menor sucesso”. Ou seja, a representante de um partido pouco expressivo pode fazer sucesso no anacrônico país onde a ideologia que ela defende ainda vigora; no Brasil em processo de modernização, não. Leia-se modernização das forças capitalistas. Na nota, o efeito cômico sublinhado por Bergson (2007, p.85): “obteremos efeito cômico se fingirmos entender uma expressão no sentido próprio quando ela é empregada no sentido figurado”. A atenção, pois, é voltada para a sala ampla que deve abrigar a liderança do PC do B, só que a deputada é a única representante; nesse ponto é instaurada a comicidade. Ressalte-se também aquele episódio do dia 8 de fevereiro de 1987, quando a Deputada Cristina Tavares, do PMDB de Pernambuco, pediu a palavra para afirmar que iria criar um projeto de lei garantindo aos congressistas prioridades nas vagas de voos de carreira. Tal passagem referencia afirmação de Bergson de que “não saborearíamos o cômico se nos sentíssemos isolados”. O autor desloca a comicidade para a sociedade; na nota, a comicidade está no fato de a sociedade conhecer o mecanismo da repetição do nosso Congresso em criar leis com o intuito de resolver problemas pessoais. Na versão bakhtiniana, o riso rabelaisiano tem uma relação direta com a verdade; ele é a liberação dos sentimentos que mascaram o conhecimento. Ele permite que a verdade se mostre. Na sociedade brasileira fortemente hierarquizada, que articula os seus gestos de exclusão a partir do impedimento aos espaços públicos, o humor é associado ao lúdico: pelo riso, o brasileiro apropriava-se, por momentos, do espaço público que lhe era negado pelo poder. Alude-se, em conseqüência, ao processo de distanciamento do Congresso em relação aos seus eleitores, fato já observado por Nascimento (2004), que identifica como reflexo desse processo repercussões negativas para a imagem da instituição e para o processo democrático. No dia 24 de novembro de 1987, lia-se a seguinte nota: Dirce “Tutu” Quadros está numa luta sem tréguas. Quer inserir na futura Constituição a figura do curador psiquiátrico, de maneira a impedir que a família seja a única instância a decidir sobre a conveniência da internação de um paciente em clínica especializada. Semelhança entre o empenho e recentes atribulações por que passou a deputada não é mera coincidência. O colunista usa o discurso empenhado: o cômico está na desarmonia da situação, já que a deputada tinha sido hospitalizada numa clínica psiquiátrica, com o consentimento da família. Ao mesmo tempo, a ironia da nota é uma reação defensiva para questionar o voto cedido a alguém que não consegue ter domínio de sua própria vida. 122 Alguns tipos de conduta não intencional invocam o cômico, como o fato ocorrido no dia 15 de junho de 1987. Algumas participantes do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, na madrugada de sábado, distribuíram aos parlamentares que votavam emendas de seus interesses 800 sanduíches de atum e 400 caixas de achocolatado. Isso porque elas não queriam que os Constituintes fossem obrigados a interromper seus trabalhos. O comentário de Swann é: “como gesto, nota dez. Mas atum com chocolate é uma combinação de lascar”. Na nota, desfaz-se a imagem da mulher como detentora do espaço doméstico, a qual saberia de antemão, que a combinação de chocolate com atumproduz ventosidades. O discurso, ao sofrer um desmantelamento, aproxima o homem de sua fisiologia: tal associação de idéias é o rebote da comicidade. Por outro lado, o fato evidenciava que havia sido elevado o potencial organizativo da sociedade destinado a pressionar os membros do Congresso Nacional em torno de interesses comuns, e se estabelecia uma nova dinâmica no processo de ruptura com o período anterior. Nesse aspecto, o humor representa uma aposta na vida futura, e assim a dimensão cômica abria um espaço para o indivíduo afirmar-se, perante aquela espécie de vazio moral, característico dos processos históricos em que se cruzam a repetição e a transformação. No dia 05 de setembro de 1988, criticado pelos colegas pela venda de camisetas para campanhas políticas, o deputado Antenir Werner, do PDS-SC, defendeu-se: “ora, o meu negócio é muito normal. Todo mundo vende tudo no Congresso. Tem até quem venda boi!”. No exemplo, o riso está na incongruência apresentada num contexto do qual estão ausentes a moralidade ou a razão; ou seja: o indivíduo comete um deslize ou não consegue acompanhar a sincronia da sociedade; ele é, pois, imediatamente interpelado a justificar o seu desvio ante os demais. Também, é uma referência à repetitividade de que fala Bergson (2007), referindo-se aos políticos “honestamente” larápios. A premissa de que todo político é desonesto constitui- se um implícito cultural do brasileiro na medida em que se cristalizou a idéia de que todo político é corrupto. O estereótipo é uma característica do cômico. Notícias jocosas com ênfase na ação de alguns congressistas demonstram a ambiguidade do riso, que une e exclui; por um lado é um riso de coesão que reforça a solidariedade do grupo parlamentar; por outro, é um riso excludente que evidencia o uso do poder legislativo para exercício de políticas individuais e desqualifica o espaço público como esfera onde as decisões cruciais da sociedade devem ser tomadas, o que, de certa forma, reforçava o descrédito da sociedade quanto aos rumos da democratização do país. No dia 28 de abril de 1988, o deputado Olavo Pires, do PMDB de Rondônia, sugere (com o aplauso de todos), para driblar a falta de quorum nas sessões da Assembléia 123 Constituinte, a criação de uma pasta com todas as emendas, destaques e dispositivos, a ser entregue aos parlamentares, os quais deveriam devolver à Mesa, com os votos correspondentes. O deputado alega que, agindo assim, “a Constituição ficaria pronta em um mês”. À primeira vista, parece tratar-se de um comentário inocente, mas contribui para gerar uma sensação de distância quanto à sociedade, além de evidenciar que o congresso constituinte, aparentemente, se sentia superior à sociedade e por isso podia legislar em causa própria. O diz-que-diz confere visibilidade à fofoca. Essas fofocas trazem à tona exteriorizações do homem público e podem ser entendidas à luz do que Bakhtin (1989) afirma: “não há propriedade privada nos domínios da linguagem; e a palavra é parte da teia dialógica da vida”. Isso quer dizer que as palavras drenam o sentido da própria vida. Menciona-se, igualmente, o comentário que o Ministro Aureliano Chaves fez, ao ser perguntado sobre os rumos do Brasil: “não sei! Meu senhor. Tenho rezado muito para que não vá para o inferno” (Coluna do Swann, 4 de novembro de 1987). A resposta, apropriando-se de uma canção popular, demonstra que ele não era favorável aos rumos que tomava a política do país na época, evidenciando a dissociação dos representantes do núcleo governamental, que se fracionavam e polarizavam em torno de interesses e idéias distintos. Considerado o parlamentar mais proeminente à época, o deputado Ulysses Guimarães mereceu vários comentários. Em 33% das notas, o nome do político é citado, ora para elogiar, ora para criticar. A ocorrencia é devida ao fato do deputado ter acumulado vários cargos, como o de presidente da Câmara dos Deputados, da Assembléia Nacional Constituinte e do PMDB. A eleição dele para presidente da Constituinte ganhou a adesão de D. Marly, esposa do Presidente Sarney. Numa roda de amigos, no dia 06 de fevereiro de 1987, a primeira dama comenta: “entrei para valer na campanha. Cheguei mesmo a fazer corpo-a-corpo com muitos constituintes”. O comentário da primeira dama era uma referência ao PMDB como o grande centro político que sustentava precariamente o governo Sarney. A precariedade estava no fato de ser um partido de orientação pouco definida. Se a orientação já era indefinida, por motivos históricos, na transição essa indefinição tornou-se mais nítida porque acentuou as tendências tanto de uma minoria de esquerda quanto da outra facção do partido, que não rompera com o antigo regime. Vale ressaltar as observações de Sallum Jr. (1996), que vê na ausência de um projeto definitivo de reconstrução socioeconômica e institucional que orientasse o partido majoritário (no caso o PMDB), um fator que facilitou o andamento de um movimento de afirmação do poder próprio do Congresso desde o início da Constituinte. 124 Nesse processo, destaca-se a atuação do presidente do PMDB, Ulysses Guimarães, que, com muita habilidade política, conseguiu unificar as alas opostas do partido, ao acomodar a esquerda liberal à maioria da bancada peemedebista. Na verdade, a articulação do PMDB era para tentar fixar-se como centro do sistema político, tornando estrutural o poder que conquistara, conjunturalmente, a partir do governo Figueiredo. Em nota na coluna do dia 6 de fevereiro de 1988, esse deputado responde as críticas do presidente do PT, Luiz Inácio da Silva, que afirmava que ele não era mais presidente da Constituinte, mas imperador. Ulysses responde: “que eu seja, então, o D. Pedro II, que era liberal”. Com essa frase, Ulysses Guimarães parece indicar que, nos casos de mudança de sistemas de dominação, para que um dos sistemas sobreviva, será necessário desenvolver uma base qualquer de legitimidade. Remetendo-se a D. Pedro II, e qualificando-o como liberal, em oposição a D. Pedro I, que outorgou a primeira Constituição, Ulysses procura neutralizar as possíveis implicações de que sua atuação seja autoritária. O mesmo parlamentar foi alvo de críticas do deputado Álvaro Valle, que, ao fazer observações sobre a urgência que estava sendo imposta para a votação do texto final da Constituição, no dia 12 de fevereiro de 1988, comenta: “é preciso que distinga entre ter pressa e ser apressado”. Explica mais à frente: “o ritmo faz com que seja humanamente impossível votar cada item em pauta. A Constituição está correndo o risco de nascer já defeituosa”. Essa era uma crítica às pressões que Ulysses Guimarães imprimiu aos trabalhos, para cumprimento do prazo estabelecido. A respeito da Presidência de Ulysses Guimarães na Assembléia Constituinte, o ministro José Hugo de Abreu, em 15 de setembro de 1987, avalia: “O Doutor Ulysses é o maestro de uma grande orquestra em que cada músico toca por uma partitura diferente”. O comentário revela o pacto original entre as elites dominantes para a transição negociada e que fez do PMDB partido majoritário nas eleições de 1986, tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado Federal. Porém o crescimento do PMDB, em vez de unificá-lo, inibiu o seu poder de iniciativa. À medida que os trabalhos na Constituinte avançavam, exigindo a definição de questões, como, por exemplo, de definição do jogo sucessório e quanto à duração do mandato do presidente, apareceram os muitos interesses conflitantes que intervêm para desfazer o equilíbrio instável inicial. Por isso, o PMDB “tornou-se um partido-ônibus, com vários motoristas, cada qual se substituindo na condução para dirigi-lo em rumos diferentes, quando não antagônicos”. (Nascimento, 2004.) Conforme já mencionado, Ulysses Guimarães era um dos focos de atenção, mesmo quando não estava envolvido nos trabalhos legislativos,como no dia 16 de novembro de 125 1988, quando concedia autógrafo. Na ocasião, ele advertiu: “desse jeito, eu vou ser convidado para trabalhar na próxima novela das oito na TV Globo”. Interessante observar que a novela da Rede Globo que estrearia brevemente era “O Salvador da Pátria”. O comentário do colunista diz respeito ao enredo da novela, no qual quem assumiu a responsabilidade pelos rumos do país foi uma espécie de testa de ferro, que estava submetido às pressões de vários campos. O que, de alguma forma, lembra a posição assumida por Ulysses. Uma das formas de riso é a provocada pelo trocadilho com palavras retiradas do contexto, como na menção de que em 25 de abril de 1988, por recomendação médica, Ulysses Guimarães passou a andar quatro quilômetros por dia. Valeu o comentário de que “com isto, Ulysses passou também a ser Presidente em exercício”. Alusão ao fato de que o deputado acumulava vários cargos importantes, bem como a sua pretensão de concorrer ao mandado presidencial, o que de fato aconteceu. O riso nesse caso nem sempre significa deboche; ao contrário, pode ser inclusive uma lisonja, ou mesmo uma declaração velada de apoio. O riso permeava as sessões da Assembléia e ia além. O ponto mais frequente era o cafezinho da Câmara, conhecido como um tradicional ponto de intrigas, fofocas e gozações. Uma delas é dada a conhecer pela coluna de Swann do dia 25 de julho de 1988. Quando foi aventado o projeto do arquiteto Oscar Niemeyer para a construção de uma capela no Anexo IV do Congresso, um dos deputados propôs: “é hora de a gente lançar a candidatura do Dr. Ulysses a capelão-mor. Afinal, ele já é Presidente de tudo!” O comentário alude, novamente, ao acúmulo de cargos pelo Deputado/Presidente. É claro que esse acúmulo também colocava o deputado na mira dos jornalistas e de outros políticos, aliados ou nem tanto. Não é de estranhar, portanto, que tantas notas fossem dedicadas a ele, e sobretudo alfinetando a tendência do parlamentar de acumular cargos de poder. Essa estrutura de choque de contextos excludentes entre si está presente em todas as formas de cômico. O confronto inesperado entre o significado da palavra e o seu som é o que produz o riso. Nos momentos “do cafezinho” quase nada escapava do riso. Ele podia ser deflagrado também por citações erradas, muito comuns no mundo político. Registre-se, por exemplo, a explicação do assessor do ministro Maílson da Nóbrega, procurando desmentir o boato da saída do ministro: “não há nada de verdade nisso tudo. O Ministro continua indo de vento em proa” (Coluna do Swann, 5 de outubro de 1987). A expressão adequada para a situação seria “vento em popa”; o vento em proa se refere a um vento contrário, exatamente o que estava sendo negado. Cabe, nesse ponto, reconstruir o processo em que se insere o comentário, ou seja, a contínua crise da dívida externa estimulada pelo seu crescimento desde a década de 1970. O problema atinge, no 126 governo Sarney, o seu ponto máximo, uma vez que, para efetuar os pagamentos da dívida externa, o governo recorria à crescente dívida pública interna e à criação de dinheiro inflacionário, que por sua vez alimentava a inflação. Essa é a origem de um novo plano, o Plano Verão, instituído em janeiro de 1989 pelo ministro Maílson Ferreira da Nóbrega, o qual assumiu o lugar de Bresser Pereira na dança das cadeiras que perdurou durante o governo Sarney. O Plano Verão foi mais uma tentativa de evitar a hiperinflação e o descontrole da economia brasileira; decretado num cenário de profunda deterioração econômica, o plano virou repertório de anedotário e aumentou a impopularidade do governo Sarney. Na verdade, era uma continuidade da política econômica deflagrada com o Plano Cruzado que, nos primeiros momentos, parecia ser um sucesso: a inflação caiu, houve uma explosão de consumo e um superaquecimento da economia. A euforia durou até as eleições para deputados, senadores e governadores, realizadas em novembro de 1986. Já em dezembro, o plano começava a apresentar os primeiros sintomas de declínio, com o recrudescimento da inflação, o aumento dos preços dos serviços públicos, o aumento das importações em detrimento das exportações. Em fevereiro de 1987, a crise atinge o auge, com a moratória. Inicia-se um período de sucessivas trocas de ministros e de orientações econômicas, por meio de planos de estabilização, ora ortodoxos ora heterodoxos. Nenhuma orientação econômica, no entanto, conseguiu resolver a crise durante a Nova República. Todo esse contexto era apreendido nos boatos que circulavam nas notas da coluna. Nessa atmosfera econômica, vai preponderar a tradicional política de clientelismo, que tem por base os poderes locais. Fato que podemos observar no comentário da fala do ministro Roberto Cardoso Alves, em resposta a um amigo que perguntava se o seu lema de campanha seria “é dando que se recebe”. O ministro, com um trocadilho popular, responde que “seria amor com amor se paga”. O significado é o mesmo, mas, retirando da sua enunciação o possível sentido equívoco e colocando em troca o amor, o ministro enobrece seu lema (Coluna do Swann, 30 de setembro de 1987). Surge, igualmente, na Assembléia Constituinte, um dos pontos mais polêmicos do período, relacionado à opção entre a continuidade do sistema presidencialista ou a adoção do parlamentarismo. A defesa da implantação do parlamentarismo era uma reação ao que se percebia como incapacidade do governo Sarney em realizar as reformas sociais necessárias para implementar o rompimento com o regime anterior. Enquanto a discussão presidencialismo x parlamentarismo era ponto de pauta, um jornalista perguntou ao deputado Ulysses Guimarães o que achava da adoção do sistema parlamentarista, questão que o paulistano retrucou com o seu costumeiro mineirismo: 127 “- Depende. - Depende de quê, Deputado? - De tudo. E mais não disse, nem adiantava lhe perguntar”. (Coluna do Swann, 15 de novembro de 1988). Como esse era um assunto que despertava intensa polêmica, não seria de se esperar que o deputado fizesse uma exposição direta sobre ele. Afinal, fazer um comentário infeliz poderia afastar possíveis aliados. Muitas vezes, durante a Constituinte, expressões inconvenientes eram usadas para restabelecer a ordem. Por exemplo, o deputado pefelista Jesus Tajra, numa manobra de esvaziamento, solicitou ao deputado Ulysses Guimarães a suspensão da sessão, ao que Ulysses prontamente respondeu: “ora, meu filho, eu vou dormir pensando na Constituinte, sonho e tenho pesadelos com a Constituinte, acordo e tomo café com a Constituinte, almoço e janto com a Constituinte, e logo hoje você vem me pedir que suspenda a sessão? Nem pensar”. (20 de novembro de 1988). Nessa resposta as palavras ressoam como um eco deformado, visto que a seriedade pouco a pouco se dissipa e destrona a fala do outro. O deputado Ulysses Guimarães, ao fazer comentários sobre o ato de militantes do PT terem rasgado dinheiro nas galerias do Congresso em represália à vitória do “centrão”, disse: “ou o dinheiro não vale mais absolutamente nada ou o pessoal do PT está muito rico” (20 de novembro de 1987). A sua observação torna-se um humor dúbio. Pode ser uma crítica ao momento inflacionário, em que o dinheiro valia de fato muito pouco, e pode, ao mesmo tempo, rir furtivamente da atitude radical dos militantes do Partido dos Trabalhadores, implicando que eles na verdade não seriam trabalhadores. Muitas vezes, no auge do calor da Constituinte, surgia o humor que se opunha principalmente ao discurso, ao comportamento e às ações inoportunas. Poderia ser um aparte estranho, disparates não intencionais, expressões ilógicas, qualquer uma dessas excentricidades ditas por um dos parlamentares e perdidas em meio a um árduo debate. A exemplo do deputado Inocêncio de Oliveira, ao apresentar um projeto de lei estabelecendoque o fogo simbólico na pira do Panteão da Pátria, na Praça dos Três Poderes, só deveria ser aceso durante três dias por ano – 21 de abril, 7 de setembro e 15 de novembro. O deputado justifica: “patriótica e meritória a iniciativa que homenageia a memória dos nossos maiores, o Panteão da Pátria não precisa ter a tocha acesa todos os dias do ano como se pretendesse 128 empanar o brilho do sol que crestou as asas de Ícaro” (Coluna do Swann, 24 de novembro de 1987). O fato se torna engraçado pelo uso de termos empolados, mas vazios de sentido. Episódio semelhante ocorreu em 27 de fevereiro de 1988, quando, em brilhante e fulminante pronunciamento, o deputado Edmilson Valentim solicitou a transcrição nos anais da Casa do resultado dos desfiles das escolas de samba no carnaval do Rio. Como justificativa alegou: “Eu tive a honra de desfilar pela Vila Isabel e não quero me esquecer nunca disso”. A falta de compreensão do sentido da honra apresentada pelo deputado, isto é, a disposição de utilizar a documentação oficial para interesses pessoais, aponta para a privação de seu suposto sentido para os eventos, deslocando-os do lugar que lhes é assinalado na ordem estabelecida. Isso é o que provoca o riso. A ação de alguns personagens era o principal ingrediente para o riso. Isso porque, diante de centenas de projetos de lei que aguardavam análise e votação, causavam irritação e comicidade os vários pedidos de homenagem feitos por alguns parlamentares. Um deles solicitou, em 26 de abril de 1989, uma homenagem especial do Congresso brasileiro por ocasião da comemoração dos 200 anos da Constituição americana. Nesse caso, o riso faz nascer um sentimento de nacionalismo e camaradagem acrescido de uma ponta de agressividade contra aquele representante político brasileiro que deseja interromper os trabalhos da Constituinte para discutir uma possível homenagem a uma data significativa apenas para a população americana. Alguns dos parlamentares percebiam a importância do riso e procuravam adotar a expressão de Jean de Santeul, poeta do final do século XVII: ridendo castigat mores (corrige os costumes pelo riso). O deputado José Elias Murad, em 20 de maio de 1988, distribuía um folheto aos Constituintes, com dez conselhos para combater o estresse. Um deles é rir sempre que possível, “pois o riso é um ótimo método de relaxamento e ajuda o organismo a aliviar as tensões”. Interessante observar que o tema do riso era parodiado e alimentava o comentário crítico: “as más línguas de Brasília estão espalhando que, mesmo sem conhecer o folheto, o ex-ministro Bresser Pereira já segue esse conselho há muito tempo”. Essa era uma referência ao espiral inflacionário que atingia índices próximos à hiperinflação. Convocado para assumir o Ministério da Fazenda, Luís Carlos Bresser Pereira concebeu um novo plano econômico, lançado em 6 de janeiro de 1988, mas que não obteve sucesso. Então, do que ria Bresser? Apesar da saída do ministério motivada pelas severas críticas ao seu plano anti-inflação, Bresser presenciou a incapacidade de seus sucessores em resolver a crise econômica. O humor se manifestava na Assembléia em situações como esta, em que o deputado Augusto Carvalho (PMDB/DF) protocolou oficialmente um pedido ao presidente Sarney: 129 “para que a bandeira da URSS seja hasteada no Monumento aos Pracinhas, no Aterro, onde já tremulam, ao lado do pavilhão nacional, as bandeiras dos Estados Unidos, França e Inglaterra” (Coluna do Swann, 11 de dezembro de 1987). A fonte do cômico está no enraizamento de convicções, de valores definidos e sólidos. Aqui podemos rir tanto da burocracia comunista presente na fala do deputado, como quando da idiotia da comemoração da independência americana. Outro fato ocorreu com o deputado José Carlos Vasconcellos (PMDB/PE) que, com uma justificativa de 51 laudas, apresentou à Assembléia Constituinte uma proposta pedindo anistia póstuma a Frei Joaquim do Amor Divino Caneca – o Frei Caneca, do movimento republicano da Confederação do Equador. Na mesma exposição, o parlamentar pede a reincorporação da Comarca do Rio São Francisco ao Estado de Pernambuco. O tom humorístico está na confusão de áreas geográficas e contextos históricos. O comentário que se ouvia era: “neste pique, a Constituinte não vai longe. Corre o risco, aliás, de não chegar a lugar nenhum” (Coluna do Swann, 10 de março de 1988) A tentativa de fazer valer o código de conduta também se tornou motivo de escárnio. Em 10 de março de 1987, um grupo de deputados e senadores de primeiro mandato estava empenhado em conseguir a aprovação da reforma do Regimento do Congresso, no intuito de moralizar o comparecimento às sessões e aplicar punições graduais aos faltosos. Para tanto, sugeriram o seguinte: “quem não aparecesse por uma sessão, deixaria de receber o jeton; quem deixasse de estar presente a oito sessões, teria suspenso o mandato por outras três sessões; os que faltassem a dois terços das sessões do mês perderiam definitivamente o mandato”. Os parlamentares mais antigos de casa afirmavam: “é evidente que são parlamentares de primeira viagem”. O comentário aponta para a preocupação dos novos congressistas com a imagem do Congresso, ao mesmo tempo em que sublinha seu pouco conhecimento dos procedimentos sedimentados na Casa. O clima de tensão presente nos debates de assunto de maior relevância era quebrado com a abertura de discussões que afetavam diretamente as vidas cotidianas dos parlamentares. Um dos exemplos é o apresentado pelo deputado Fausto Rocha, que proibia fumar em locais fechados. Outro, do senador Humberto Lucena, que propunha a redução do recesso parlamentar de quatro para três meses. O controle e vigilância de uns congressistas sobre outros vigorou desde os primeiros momentos da instalação da Constituinte. O principal foco era a participação dos parlamentares, como é o caso dos deputados Felipe Cheidde (PMDB) e Alair Ferreira (PFL), segundo os comentários, “os campeões do pior desempenho na Câmara dos Deputados”. (15 130 de abril de 1988). Na lista dos doze mais faltosos, os dois deputados empataram no primeiro lugar, pois não compareceram a uma só sessão, nem formularam nenhuma proposta na Assembléia Nacional Constituinte. Essa fonte de pressão atuou durante os trabalhos da Constituinte e resultou numa inovação, porque, ao tornar público o desempenho dos políticos, possibilitou ao eleitor avaliar a atuação deles. A preocupação com os baixos índices de participação dos parlamentares nas sessões da Constituinte provocava as mais engraçadas atitudes. A coluna de Swann de 5 de maio de 1988 conta que, convidado a presidir a comissão que examinaria os atestados médicos dos congressistas faltosos, o Secretário da Mesa e médico Mário Maia recusou, alegando questões de ética; primeiro por contrariar o atestado de um colega médico, depois porque teria que denunciar um colega parlamentar. Entretanto, a recusa foi efetivada dois dias após o convite, porque o parlamentar não havia comparecido às sessões. As faltas dos congressistas às sessões não constituíam exatamente novidade, no entanto, com a visibilidade adquirida pela Assembléia Nacional Constituinte, esse comportamento ganhou notoriedade e reações contrárias, como mostra o comentário da coluna, que destaca sutilmente que a ética invocada pelo parlamentar talvez estivesse por trás de um telhado de vidro. À medida que os trabalhos iam sendo aprofundados, também se acirravam a vigilância e a exigência de punição de uns parlamentares sobre os outros. O deputado Nilson Sguarezi, do PMDB paranaense, entrou com requerimento solicitando a cassação do mandato do deputado Felipe Cheidde, do PMDB paulista. O pedido se justificava, visto que Cheidde, das 96 sessões até então realizadas, comparecera a apenas 11; das 727 votações, ele só participara de 39. O requerimento é reforçado pelaexistência de um processo por estelionato movido pela Justiça norte-americana em virtude da compra de fichas, com cheque sem fundos do parlamentar, num cassino de Porto Rico. Essas denúncias, veiculadas pela imprensa, eram a manifestação de um processo pelo qual a sociedade se tornava visível a si própria. Aqui o cômico marca a passagem de um estado de tensão para um estado de distensão. O clima tenso e a pressa na elaboração da Constituição necessita de um catalisador que favoreça a recomposição da racionalidade. O controle extrapolava o Congresso, pois era exercido também nos conchavos políticos que ocorriam fora daquele espaço. No dia 6 de agosto de 1987, comentava-se que o líder ruralista Ronaldo Caiado seria um dos presentes ao almoço no Copacabana Palace, em homenagem ao ministro José Hugo Castelo Branco. Ao comentário feito a um amigo espantado com a estranha adesão, Caiado responde: “vou homenagear o Ministro por suas posições em favor da livre empresa. Só isso”. 131 Ronaldo Caiado era líder da União Democrática Ruralista (UDR), movimento político organizado pelos donos de terras em 1987, com o objetivo de impedir qualquer tentativa de reforma agrária pelos constituintes. Esse movimento, surgido no campo, foi uma resposta às mobilizações populares que assumiram, em meados dos anos 80, um caráter violento, com ocupações de terra. A característica básica da UDR é a defesa do uso da violência para proteger o direito da propriedade. Na visão de Skidmore (1998), tal grupo fazia parte da direita que “consistia de um amplo corpo de políticos tradicionais, um pequeno quadro de fanáticos preparados para usar a violência e um bando de advogados ricos e homens de negócios que ansiavam por um mercado livre”. A atuação do movimento por ocasião da nova constituição resultou em um fracasso da proposta de reforma agrária e acentuou o corporativismo responsável pela fragmentação política na Constituinte. Nesse contexto, vale lembrar a crise iniciada em 1986, quando a elevação dos juros e o grande impacto inflacionário levaram os produtores de café a pressionar o governo para comprar os quatro milhões de sacas de café excedentes, com os recursos do Tesouro Nacional. Entretanto, o governo, representado na época pelo ministro da indústria e do comércio José Hugo Castelo Branco, atrasou o pagamento aos produtores, fato que motivou a oposição de Ronaldo Caiado, na época presidente nacional da UDR. A UDR, desde a sua criação, sempre se posicionou contrária à ingerência governamental nas atividades que deveriam estar a cargo da iniciativa privada. Na visão da UDR, o governo, por ser lento na tomada de decisões importantes, acaba sendo fonte de arbitrariedades cometidas contra o empresário, muitas vezes em função de aspectos puramente políticos. Retornando à Assembléia Constituinte, durante todo o tempo dos trabalhos, o mexerico, a fofoca, a acareação e a grosseria provocavam razões para apelar para o riso. O senador Roberto Campos, falando na Comissão de Tributação e Planejamento, desenvolveu o seguinte raciocínio: “pela Constituição o orçamento da União tem que ser obedecido, mas infelizmente, o governo está gastando mais do que pode e está emitindo moeda – o que resulta num aumento da inflação. Portanto a inflação é inconstitucional” (Coluna do Swann, 17 de agosto de 1988). Roberto Campos, um economista que apoiou o regime anterior, portador agora de um discurso democrático, vai fazer parte do coro daqueles que procuram provocar repercussões negativas para o processo de redemocratização e reforçar a instabilidade administrativa do governo Sarney. Mesmo nos momentos mais tensos, o riso estava presente, como na sessão de 3 de dezembro de 1987, quando o deputado Gastone Righi, do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), anunciou que ia fazer um discurso em solidariedade ao deputado Juarez Antunes, do 132 Partido Democático Trabalhista (PDT), agredido em plenário a socos pelo colega Gilson Machado. Acontece que Gastone Righi era adversário de Juarez Antunes. Começou seu discurso dizendo: “eu me solidarizo com o Deputado Juarez Júlio ou será Juarez Adolfo? Como é mesmo o seu sobrenome, Deputado?”. Motivo suficiente para reanimar o clima de agressão e riso. Isso quer dizer que nem sempre o riso na assembléia era fonte desopilante, surgido de uma piada inesperada capaz de desfazer um clima tenso. Algumas vezes, era um riso ameaçador, como pensam os etnólogos, ao asseverarem que o riso começa numa exibição agressiva dos dentes. Alguns conchavos políticos eram abordados de forma cômica, como no dia 9 de abril de 1987, quanto à opção do deputado Álvaro Valle, que abriu mão de ser o Relator da Subcomissão de Educação da Constituinte, como desejava, e em troca de sua pretensão recebeu dos líderes do PMDB e PFL a proposta de participação em três outras Comissões e na Mesa Diretora da Constituinte. O comentário era que “ele preferiu ter quatro pássaros na mão e um voando”. Ao parodiar o ditado popular, Swann desvela a precariedade de consenso e a instabilidade que levou os constituintes a negociações e mudanças frequentes na ocupação de cargos. Nos momentos em que as discussões transcorriam com certa calma, também era possível identificar o riso, como na afirmação da coluna de Swann do dia 15 de dezembro de 1987, de que havia mudado o tratamento dado e recebido pelos membros da Subcomissão dos Direitos Trabalhistas da Câmara. Eles não mais se referiam aos seus pares dentro da Subcomissão por “Excelência”. Por influência da forte presença sindical, todo mundo lá agora é “Companheiro”. Essa presença sindical era alvo do humor porque, implicitamente, a piada poderia indicar uma desaprovação, visto que, em consequência de suas convicções, os parlamentares estavam descumprindo o protocolo da Casa. Também os efeitos das decisões dos temas aprovados pela Constituinte ganhavam destaque nos debates, como aquele publicado na coluna de Swann, no dia 21 de outubro de 1987, com o seguinte comentário: “tão logo foi aprovado na Constituinte o dispositivo sobre a estabilidade, o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC demitiu 40 de seus 120 empregados. Isso é que é esprit de corps”. O comentário irônico do colunista reflete o que vai ocorrer no âmago do processo de construção democrática: a perda do papel de articulador dos interesses dos trabalhadores, desempenhado pelos sindicatos na década passada. Constata-se, nesse período, a fragmentação da representação sindical em CUT, CGT e Força Sindical, implicando a perda de capacidade de mobilização do movimento trabalhista tradicionalmente conhecido com os metalúrgicos da grande São Paulo. 133 O processo de ampliação da autonomia do Congresso Nacional em relação aos eleitores repercutia negativamente na imagem dos congressistas, que envidavam esforços para reabilitá-la. Um deles foi a instauração de uma Comissão Parlamentar de Inquérito que investigaria, inclusive, os políticos envolvidos em casos de corrupção. Durante os trabalhos da Constituinte, uma eventual convocação do ministro Antônio Carlos Magalhães para depor nessa Comissão redunda, ao contrário, no aprofundamento dessa negatividade. Nota-se, pelos comentários do ministro: “se eles me convocassem para depor, a CPI encerraria imediatamente seus trabalhos” (Coluna do Swann, 14 de abril de 1988). Tal comentário é reforçado por outro do dia 7 de maio de 1988, desencadeado pelo boato de que Antônio Carlos Magalhães seria convocado pelo senador Luís Vianna Filho: “levando em conta a idade avançada do senador Luís Vianna Filho, só vou falar sobre ele no Senado, quando for depor na CPI, inclusive respondendo a algumas de suas declarações. Se for convocado, vou falar para valer. O dossiê dele é grande”. A resposta exasperada do ministro, buscando defender-se, repete a noção maquiavélica de que os fins justificam os meios. E nisso está o riso.Aqui ele implica a dúvida como mecanismo de defesa e permite confessar o inconfessável sob uma forma socialmente aceita. Vale lembrar que o fato de não poupar esforços para levantar dossiês polpudos de seus colegas acabou por determinar o fim da carreira política de Antonio Carlos Magalhães. O esforço de comprovação de que ele utilizava-se de métodos não legais de investigação e das informações obtidas como arma de chantagem, afins das práticas de dominação dos coronéis, tinha o propósito de desmantelar o sistema de poder que o ex-ministro havia construído. Essa comissão também mereceu destaque pelos comentários picantes do ministro Paulo Brossard, que, ao opinar sobre a CPI da corrupção no dia 6 de maio de 1988, afirmou: “minha impressão é que ela está pescando em alto-mar, num oceano imenso, sem fronteiras e sem limites e, por isso, correndo o risco de não alcançar resultados satisfatórios”. O riso divulgado pela coluna expõe o comportamento, as práticas, os modelos, as normas que supostamente critica, e assim faz esquecer os debates de idéias. Possivelmente seja esta a razão do desprestígio da classe política. Pesquisa de opinião divulgada pela imprensa em 1988 indicava que o prestígio dos militares (53%) voltou a ser superior ao desfrutado pelos políticos (46%). A sociedade passa a reagir com cinismo, demonstrando um desencantamento, o que dificultaria a sua mobilização para resistir a uma eventual regressão autoritária. Sendo assim, a demanda por legitimidade pelos parlamentares apresentava-se como um movimento de avanços e recuos. 134 Por outro lado, nota-se a mobilização de grupos e instituições em lobbyes que fizeram pressões durante todo o trabalho da Constituição, assumindo feições até mesmo risíveis, como a do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, cujos membros, para entregar as emendas populares, compareceram em peso à Assembléia Nacional Constituinte, vestidas de rosa- shocking e com uma margarida amarela na orelha. Tal manifestação foi batizada de “o lobby do batom”. As mulheres se posicionaram a favor do aborto e exigiam a legalização de sua prática no Brasil. O grupo, formado principalmente de membros da classe média, exigia direitos de reprodução, visto que, pela legislação vigente, o aborto era ilegal, excetuando-se nos casos de perigo de vida da mãe. A exigência era pela livre e acessível contracepção, aborto gratuito e creches gratuitas nas comunidades. A população também podia participar por meio das emendas populares. Cabe assinalar que, segundo os dados citados por Penna (1999, p. 310), cerca de 12 milhões de brasileiros subscreveram as emendas populares, explicitando as propostas que desejavam verem asseguradas na Constituição. Para o autor, isso constituiu um exemplo afirmativo da cidadania, aliado ao fato de que o cidadão teve acesso aos debates por intermédio das audiências públicas, durante a fase das 24 subcomissões, que estavam integradas às oito comissões temáticas. Essas conquistas eram passíveis de ser acompanhadas por meio de comentários jocosos refletidos nas notas da coluna, da mesma forma que o leque partidário, a debilidade dos partidos políticos e as divergências entre os próprios parlamentares. Por exemplo, o deputado federal José Geraldo, do PMDB de Minas, analisando o texto que dispõe sobre o capítulo referente aos Direitos do Menor, aprovado na Constituinte, expressava sua discordância do texto da lei: “O texto diz que o Estado deve proteger o menor contra a violência e a agressão sexual. Quer dizer, o brasileiro só será protegido conta a agressão sexual se tiver menos de 18 anos. Quem for maior que se cuide” (Coluna do Swann, 23 de setembro de 1988). Brigas por prestígio também podiam render acontecimentos engraçados. A fofoca e o disse-que-disse tomavam conta dos corredores da agitada Assembléia Constituinte no dia 21 de março de 1988. O tititi parlamentar envolvia a deputada petista Benedita da Silva. Diziam que a deputada procurava se apropriar do prestígio, ao tomar para si a idealização da emenda sobre os direitos das empregadas domésticas, que era de autoria da “loura Rita Camata”. Essa inversão da lógica torna a nota risível, já que seria natural esperar que Benedita, negra e oriunda das classes populares, assinasse a autoria da emenda, todavia, o fato é destacado pela qualificação da verdadeira autora como loura – além de ser, como se sabe, 135 oriunda da classe média e, portanto, não teria motivos para, pessoalmente, ser engajada nessa questão. A visibilidade dos parlamentares ocorria, ainda, nos momentos de interrupção dos trabalhos, como este, ocorrido no restaurante do Congresso, quando um deles, acompanhado por uma repórter, foi alertado pelo gerente de que ela não poderia permanecer no local por estar trajando calça comprida. Ao que o parlamentar respondeu: “está aberta a primeira exceção. A senhora pode se sentar!” (Coluna do Swann, 27 de abril de 1988). A entrada de mulheres no Congresso, no período, só era permitida se ela estivesse trajando saia ou vestido. A discriminação sofreu mudança com o novo grupo de congressistas que ascendeu ao poder. Os assuntos mais polêmicos, como a decisão entre o presidencialismo ou parlamentarismo, eram sempre abordados de forma satírica. No dia 28 de agosto de 1987, o senador José Richa (PMDB-PR), fervoroso defensor do parlamentarismo na Constituição, discordando da alternativa de implantação de um sistema híbrido que misturava sistema de gabinete com o presidencialismo, sentenciou: “para mim a questão é como virgindade. Ou é ou não é virgem, sem meio termo”. Cabe assinalar que esse foi um dos assuntos que causou muita polêmica. Opinando acerca do assunto, Mário Henrique Simonsen, com deboche, comenta em 7 de maio de 1987: Se for aprovado o parlamentarismo, o Primeiro-Ministro será o deputado Ulysses Guimarães – por meia hora. Depois, virá o Mário Covas, que durará 15 minutos; em seguida, o José Richa, que ficará no cargo, se tanto, uns cinco minutos. Aí, então, virá o General Pires Gonçalves, que certamente não vai receber nenhuma moção de desconfiança do Congresso. A voz da autoridade do professor Simonsen constata que a aprovação do sistema parlamentarista quebraria a subordinação do Legislativo ao Executivo, uma das características centrais do Estado brasileiro, já que o poder do presidente da República e dos governadores de Estado tem sido o elo de distribuição privilegiada de recursos públicos. Por sua vez, o Congresso e as Assembléias Legislativas desempenhavam papel secundário de intermediação ou usufruto desses recursos, em troca de lealdade política. A ironia do final da frase indica que, caso esse elo fosse rompido, uma das possíveis consequências seria a tomada do poder por um general, que colocaria o Congresso em sua condição subordinada ao Poder Executivo. O discurso relaciona-se à tênue redemocratização do país, momento político suspeitável, 136 oscilante e incerto, e a palavra é dirigida a um interlocutor historicamente concreto, por um dos ministros da área econômica do antigo regime. Outro assunto polêmico trata do mandato do presidente. A respeito da opção pelo mandato de cinco anos, o deputado Rubem Medina, no dia 4 de fevereiro de 1988, enfatiza: “a situação nacional está tão difícil que a gente acaba optando pelos cinco naquela base do ruim com ele, pior sem ele”. O tom de fofoca dos bastidores é comprovado diante da declaração de que o governador Álvaro Dias “sabe o que está fazendo, ao apoiar ostensivamente a tese do mandato de cinco anos para o Presidente Sarney. O Governo Federal liberou ontem Cz$ 99 milhões para a execução de projetos do setor de irrigação no Estado do Paraná” (Coluna do Swann, 13 de março de 1988). As duas notas referem-se às alianças de sustentação políticas utilizadas no período para a manutenção da governabilidade, caracterizadas pelatroca de apoio político por benesses administrativas. A visibilidade dos congressistas ocorre mesmo nos períodos de paralisação dos trabalhos da Assembléia. O recesso parlamentar é comentado aqui com um tom de ironia e reflete o abuso do poder do Congresso em definir aumentos astronômicos de salários, num momento em que toda a população perdia o poder aquisitivo com os sucessivos planos econômicos: Nos próximos 15 dias nada de palpitante acontecerá na Constituinte. Cerca de 20% dos parlamentares estão empenhados em estafantes viagens ao exterior. Com a carteira recheada pelas diárias que o Governo paga, os parlamentares estão espalhados pelo Japão, Marrocos, Estados Unidos e Europa. Foram espairecer das muitas e cansativas sessões extras das Comissões e Subcomissões da nova Constituição (Coluna do Swann, 20 de outubro de 1988). À medida que os trabalhos da Constituinte chegavam ao fim, surgiam novos motivos para o riso. O senador José Richa, que defendia o adiamento temporário do prazo de conclusão dos trabalhos da Constituinte, comentava: “algumas lideranças estão com tanta pressa em concluir a nova Constituição que estão empenhados num verdadeiro campeonato mundial de velocidade” (Coluna do Swann, 15 de agosto de 1988). O recado era dirigido ao deputado Ulysses Guimarães – uma das principais lideranças políticas do processo de transição. Ulysses concentrava e personalizava o papel do PMDB e, na época, o seu papel foi o de administrar as relações do partido com o governo Sarney e os trabalhos da Constituinte. 137 Quando o último projeto de Constituição foi entregue pelo deputado Bernardo Cabral ao deputado Ulysses Guimarães, os boatos eram de que pelo menos 23 erros de português ilustravam as primeiras 46 páginas do projeto. O revisor antecipava que “tem muito mais coisa pela frente para arrepiar os cabelos dos puristas do idioma de Camões” (Coluna do Swann, 20 de outubro de 1988). Esse tipo de comentário implicitamente reforçava que, se a forma contém tantos equívocos, que dirá o conteúdo. O trabalho de impressão do texto final da Constituição também era alvo de choça: É de pânico, desde já, o clima reinante na gráfica do Congresso. Os passageiros do maior trem da alegria de que se tem notícia – 4 mil funcionários – vão ser convocados em novembro para mergulhar de cabeça nos trabalhos de composição e impressão de 3 milhões de exemplares da nova Constituição. Os responsáveis pela gráfica estão fazendo figa para não aparecer todo mundo junto (Coluna do Swann, de 24 de dezembro de 1988). Aqui ironicamente o colunista refere-se a uma das contratações de aliados políticos. Prática do fisiologismo, ou seja, concessões feitas pelos congressistas a si mesmos e promessas a seus aliados políticos de recompensas financeiras ou empregatícias à custa dos cofres públicos. Esta prática de contratação excessiva foi denominada de “trem da alegria”. Com tantos funcionários na gráfica, era incompreensível que os primeiros textos da Constituição saíssem com erros, como afirma nota publicada no sábado, 15 de outubro de 1988: A pressa tomou conta da gráfica do Senado Federal. No afã de entregar toneladas da Constituição aos ´brasileiros e brasileiras´, muitos exemplares estão saindo do forno incompletos – faltam preâmbulos, capítulos e artigos. Só não falta uma coisa: a introdução escrita pelo Deputado Ulysses Guimarães. Veladamente, a onipresença do “gelatinoso”, expressão da época para referir-se ao presidente do PMDB, Ulysses Guimarães, é apontada. Possivelmente para indicar a sua falta de definição política inequívoca. Para complementar o trabalho da Assembléia Constituinte, criou-se uma Comissão Especial na Câmara dos Deputados, responsável pela elaboração dos Anais da Constituinte. A função era acompanhar o trabalho de impressão dos 150 volumes de relato dos 19 meses de trabalhos constitucionais. O parecer sinalizava que a preocupação dos coordenadores era a pressa, porquanto havia pouco tempo acabava de ser impresso o último volume dos Anais da Constituinte de 1946. A nota aponta duas críticas; além da censura à morosidade do trabalho 138 da gráfica, há outra, embutida: a rapidez com que as constituições do país se tornam obsoletas. O riso, atestado no decorrer dos trabalhos da Assembléia Constituinte, tinha uma função dupla: ao mesmo tempo em que servia para restabelecer a ordem com uma função catártica de alívio de tensões, era um riso que fugia ao controle da ordem vigente, com seus ideais de dignidade e decoro, convocando o leitor a participar criticamente da realidade. Um riso cheio de contradições que ecoava e criava uma realidade própria, pois, ao mesmo tempo em que preservava, transgredia os limites e as regras. Esse riso, identificado nas notas da coluna social, era um riso ambíguo porque era formado pelas simultâneas recusa e aceitação da nova realidade pela precedente. Nesse processo de negação e afirmação, o humor é deflagrado pelo contexto excepcional de transição para uma nova ordem. Considerando-se retrospectivamente, quando a coalizão civil-militar tomou o poder em 1964, contava o país com um esquema geral para a institucionalização do Estado. A ideologia da segurança nacional servia de quadro de referência organizacional e de justificação para a necessidade de se constituírem mecanismos repressivos de controle da sociedade civil. Esse processo só se completaria no final dos anos 80. Tal década será caracterizada pela transição entre o regime ditatorial e o democrático. Para Nascimento (2004), a transição política brasileira conheceu distintas etapas em seu curso. A primeira etapa correspondeu ao momento da segunda metade dos anos 70, compreendendo o governo Geisel e a ascensão do General Figueiredo. Para o autor, essa natureza específica deve-se ao fato de se tratar de um processo de mudança no então vigente regime político a partir dos detentores do poder estatal. A finalidade foi a de modernizar o regime burocrático-militar, ameaçado em sua reprodução. Em seu interior, porém, alguns atores posicionaram-se por uma modernização simples, enquanto que outros se movimentaram em direção à sua superação. Ainda consoante Nascimento (2004), a segunda etapa é a da inflexão, a da passagem entre o momento da liberalização, denominado de abertura, e o momento da democratização, em que a condução do processo político a partir do interior do regime não mais se realiza. A inflexão, para o autor, ocorrida entre 1981 e 1984, é o momento de ruptura, no qual o velho regime político não tem mais meios de se reproduzir, e o novo regime ainda não encontrou as novas e necessárias formas de condução da vida política do país. Uma terceira etapa registrada pelo autor é a democratização, momento em que predomina a incerteza. O jogo é definido pelo resultado da relação de forças que se estabelece 139 entre os atores políticos. Essa etapa é a do governo Sarney, conhecida como Nova República (1985-1989). O quarto momento, considerado o último por Nascimento, ocorre entre a primeira e a segunda eleição presidencial. É a etapa na qual se inicia a consolidação democrática. Rigorosamente, não se pode falar mais de uma transição, mas simplesmente do complemento necessário ao novo regime gestado no processo transicional. O ponto chave para a compreensão do período enfocado neste trabalho é, especificamente, o terceiro momento (1984/1985) apontado por Nascimento (2004), que se inicia com a eleição pelo Colégio Eleitoral de Tancredo Neves, fato que anuncia perspectivas de mudança. A doença do então presidente eleito Tancredo Neves deixava uma interrogação quanto aos caminhos da Nova República. Ao longo de 41 dias o país acompanhou a luta pela vida do presidente eleito. Com a morte dele em 21 de abril, a Nova República sofre o primeiro impacto: a perda da sua credibilidade diante da opinião públicabrasileira. A esperança estava na convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte, capaz de instaurar legitimamente pelo menos uma nova perspectiva para a República. Vencida a etapa de abertura oficial, chegou a vez de se pôr em prática o projeto político de transição democrática. Assim, tornou-se tarefa política da Nova República a eliminação de todo o “entulho autoritário”, com vistas à efetiva democratização do país. Aboliu-se a censura oficial, embora ela já estivesse desativada há algum tempo, e criou-se uma enorme expectativa no tocante ao futuro da nação brasileira. O governo Sarney, encarregado de implantar a Nova República e promover a transição democrática, contava, pelo menos, com duas sérias dificuldades de ordem política: havia sido guindado a essa posição em circunstâncias trágicas e imprevisíveis, e a composição de forças que se reuniu para o êxito eleitoral contra o continuísmo oficial trazia consigo contradições bastante acentuadas. No primeiro caso, o presidente Sarney tratou de manter a equipe ministerial constituída por Tancredo. Para Penna (1999), essa situação impôs a Sarney limitações em visível desacordo com as exigências históricas de um momento tão decisivo para a nação como um todo. Isso porque, se a legitimidade do processo indireto era contestada, Tancredo possuía a credibilidade necessária para conduzir a transição; o mesmo, no entanto, não acontecia com o presidente Sarney. Para o autor, tal questão se agravou em virtude da segunda dificuldade, ou seja, da composição das forças que originaram a aliança democrática. 140 O ponto de convergência dessas diferentes tendências integrantes dessa aliança situava-se na perspectiva de uma ordem político-institucional, o que incluía a própria definição do caráter da Constituinte. Assim sendo, ela passou a ser o locus onde as divergências se manifestaram e em que a disputa por espaço de poder passou a ser uma constante no jogo de equilíbrio do governo de transição. Apesar das dificuldades em superar as crises que herdou do começo dos anos 1980, a Nova República foi muito significativa para a construção de uma democracia estável no Brasil, e isso sem quebra das regras básicas de convivência democrática, fato que levou alguns analistas a denominá-la transação política. Foi nesse momento que diversos segmentos sociais puderam lutar por seus interesses e idéias, com uma maior liberdade de organização. O florescimento político do período contribuiu para consolidar o processo de democratização da sociedade, dificultando, ao mesmo tempo, a viabilização de soluções autoritárias para as crises legadas pelo passado. Na visão de Sallum Jr: A Nova República começou como uma sobrevida deteriorada da velha aliança desenvolvimentista terminou por impedir que ela se reconstituísse por algum “pacto de adesão” de estabilidade precária. Constituiu, dessa forma, um arranjo político que garantiu um tempo de liberdade para a experimentação de novas alternativas de pactação sociopolítica, que deu tempo para os atores aprenderem a formular seus interesses mediantes novas idéias, mais ajustadas às circunstâncias, que deu uma espécie de sursis para que a sociedade pudesse começar a renovar o seu pacto de dominação, reformar o Estado e gerar um novo regime político. (Sallum Jr, 1996, p. 199) Durante todo o período de funcionamento da Assembléia Constituinte, a coluna social, com um tom de humor, pôde servir de guia para revelar as mudanças sociais e políticas do período de transição. Na coluna, o questionamento dos valores, a ascensão do medo, da inquietação e da angústia, o recuo das certezas são acompanhados por uma ambígua generalização do riso, visto que, à medida que os valores e as certezas naufragam, são substituídos pelo riso. É como se fosse exercida a ironia sobre o nosso passado, e o humor sobre o presente. É de conhecimento comum a ação dos censores após a ascensão dos militares ao poder em 1964. Com serviços de escuta, de recortes e análise, mantiveram a sociedade sob vigilância. O foco de atenção foi dirigido principalmente para a imprensa, asfixiando vários jornais e jornalistas, com a famosa censura prévia que se estendia aos livros, teatro, cinema e 141 televisão. No momento de redemocratização, uma das principais bandeiras foi a liberdade de expressão. Apesar de ocorrerem algumas reinvestidas da censura durante o governo Sarney, graças à liberdade de imprensa, foi possível acompanhar o desenrolar dos trabalhos da Constituinte. A coluna social participava ativamente desse momento político. A visibilidade da Constituinte na coluna era difusa e quase sempre ambígua. A comicidade estaria nessa impossibilidade de conciliação, revelando o contraste entre o parecer e o ser. Desse modo, da mesma forma que a coluna social é um espaço de fofoca, subentendida em sua multiplicidade de significados, o riso divulgado pela coluna é também polissêmico. O riso pode apresentar-se dentro de um modelo enobrecido, em oposição ao riso popular. Nesse sentido, a coluna social assume a mesma função que o bobo da corte, que nunca põe em risco o poder; mas também pode indicar que o poder provoca o riso, assim como o próprio riso tem poder. O riso, pois, que permeia as notas da coluna social é ambíguo: pode ser um meio de instruir ou refletir a sociedade, transformar ou conservá-la; entretanto, ele vai contribuir decisivamente para a instalação da nova ordem moral. A polissemia e a ambiguidade indicam que ele pode ser um riso debochado, jovial, moralizante, familiar, conservador, inquieto e perturbador, que denuncia, exclui e inclui, porque desenvolve o sentimento de comunidade e exclui pelo riso. Esse embate entre a suplantação do velho pelo novo não é nítido e nem fácil de isolar e fixar, ele se manifesta de forma contraditória, entretecida e sem explicação lógica. O riso que era provocado pelos comentários picantes do colunista representava um mundo que se desestruturava, decompunha-se. Seus elementos iam se fundindo, recompondo- se e abrindo para a possibilidade de uma outra configuração. Nesse movimento de fluxo e refluxo, a Constituição de 1988 foi gerada. Segundo Penna (1999, p. 313), pode ser considerada referência em relação aos textos constitucionais anteriores: uma Constituição que atende à face moderna e urbana do país, apesar de não propiciar a incorporação das grandes massas do campo e das periferias. Todavia, ao embutir o dispositivo revisionista que permite consultas populares quanto à sua própria vigência, o texto constitucional torna-se sensível à imponderabilidade do tempo. Para o autor, o texto suscita a participação e, nesse sentido, fortalece o exercício da cidadania e sinaliza um movimento de reincorporação de sujeitos históricos até então marginalizados. 142 3.1 - O HUMOR CARICATURAL NA COLUNA SOCIAL Mas não é apenas o texto escrito da coluna social que provoca riso, ele está presente também nos textos imagéticos. Como texto, as caricaturas presentes na coluna social, expressa a situação política e os fatos sociais de forma astuciosa e sagaz. O seu poder está em trazer à luz aspectos relevantes do cotidiano, condensando-os numa única configuração, caracterizada pela agressividade dos traços, presente na deformidade das linhas que o exagero imprime. O surgimento da caricatura como linguagem, segundo Minois (2003) vai desabrochar no século XVII e XVIII, quando o romano Píer-Leone Ghezzi faz uma exposição com caricaturas de aristocratas, mecenas, padres e artistas. A sua difusão é rápida, e na Inglaterra, a caricatura de cunho político, que satirizava a vida do rei e da nobreza, valeu a reação dos deputados, que criaram uma lei, Licensing Act, destinada a controlar a imprensa. Mas, ainda segundo Minois (2003), com a proclamação da liberdade de imprensa em 1789, a caricatura invade os grandes centros europeus.De forma carnavalesca e pedagógica, a caricatura elabora retratos ridículos, construindo, por meio deles, o negativo da nova sociedade sonhada pela Revolução Francesa. Para o autor, a função da caricatura era a dessacralização, o rebaixamento dos antigos valores e ídolos. Entretanto, o riso provocado pela caricatura não é aquele alegre e popular, tal como pensava Bakhtin; mas um riso cômico, violento, agressivo e odioso. Para Bergson, tudo que foge à normalidade tende a tornar-se cômico. O cômico está na forma estranha que uma silhueta se projeta diante dos nossos olhos, a forma que ela adquire. É o que ele denomina de comicidade das formas. Visto que a comicidade está no homem, o cômico se estende por todas as formas que ao homem é possível apresentar. O texto caricatural da coluna geralmente se apresenta na forma de charge. Comumente ele é híbrido (visual e verbal). O texto verbal vem embutido em outras partes do jornal. A localização da charge no mesmo espaço do jornal é que determina o estabelecimento de relações de redundância, complementaridade, ou mesmo de discrepância. A sua característica básica é acentuar defeitos dos sujeitos caricaturados e instaurar o riso, que pode ser provocado pelo tipo social representado pelo personagem, pela identificação de alguma falha por ele manifestada, ou pode nos fazer rir da maneira como o discurso é organizado e proferido. Neste aspecto, o humor perpassa a grande maioria das charges e atua como um agente corrosivo. A ridicularização de ações e de personagens incita o riso da situação cômica retratada. 143 Bakhtin (1981) declara que todo sistema de linguagem é objeto da cultura, portanto, é produto de processos culturais e consequentemente de práticas discursivas. A charge, ao refletir a realidade, compactua com o sistema. Ao assumir a força do discurso, a charge deixa escapar as fissuras da dominação. Ou seja, a caricatura aponta para outro discurso, para outra linguagem. É na deformação do original que existe o desvio revelador: ao refletir, quebrar a direção, a charge transforma, transfigura, refrata a realidade. Neste entendimento que se pretende entender o humor caricatural da coluna social. Ao fazer coro às críticas emanadas pelo Ministro da Fazendo Delfim Netto durante o governo Figueiredo, o professor Mário Henrique Simonsen, notável personagem política na época, assegura no texto verbal da coluna de Sued do dia 07 de janeiro de 1987: “Falta a bússola”. Já no texto imagético ele aparece segurando uma bússola, sugerindo que o fracasso do Plano Cruzado é fruto da inércia do governo em atacar o déficit público, cortando despesas e elevando a arrecadação. De acordo com Bergson, o riso é sempre grupal e determinado por um conjunto de atitudes que são discriminadas e expressadas como desvios perante a sociedade. A identificação de uma atitude cômica ou humorística aponta para o reconhecimento de gestos sociais que rompem com uma conduta ideal. Esse desvio é expresso no comportamento dos seres que são objetos de uma narrativa. Na maioria das vezes, a sua ridicularização decorre de uma parte do corpo enrijecida ou de um tropeço. Nesse caso, o cômico é provocado pela inadaptação dos sujeitos a determinadas regras sociais. Aqui, o riso estava na insistência do uso da antiga fórmula de Simonsen quando assumiu o Ministério da Fazenda, em 1974, 144 marcada pela racionalidade econômica e contenção de gastos, bem como no cálculo salarial baseado na média dos dois anos anteriores, o que reduziu o poder aquisitivo dos trabalhadores. Entretanto, a crise econômica que agora se vislumbrava era acumulativa do período em que Simonsen foi Ministro da Fazenda durante o governo de Ernesto Geisel, e Ministro do Planejamento no governo Figueiredo. A crítica à situação econômica do país é reforçada pela imagem do deputado Delfim Netto, na coluna de Swan, do dia 21 de fevereiro de 1987: A charge de Jimyy Scott é composta de traçados simples que reforçam as principais características visuais da personagem representada: o ex-ministro da Fazenda do governo Figueiredo, e então deputado Delfim Netto. A imagem ganha sentido aliada ao texto verbal, posicionada ao lado da charge e intitulado “Pontificando”. Em um jantar, num dos restaurantes de Brasília freqüentado pela elite política, o ex-ministro fazia severas críticas à política econômica do governo, enumerando alguns itens que faltavam para tirar o “o pé do Brasil da lama”. Na mão direita o deputado segura uma taça de bebida, na mão esquerda suspensa, uma espécie de coxinha de galinha. Estes dois elementos sugerem conflito e tensão. O riso é instaurado quando o texto verbal conclui: “Quem ouviu, custou a crer”, ou seja, é fácil propor o ataque ao déficit público com o corte de despesas e a elevação da arrecadação, numa situação confortável e instalado na alta esfera da sociedade. O escárnio provocado sobre a figura do deputado promove o riso de leitor, já que pela charge é desmitificada figura do “todo poderoso” Delfim Netto, colocando-o numa situação (comer e fofocar) semelhante a qualquer um dos mortais. 145 Na coluna, o texto imagético ironiza o texto verbal, cujo alvo costuma ser personagens da vida pública brasileira. Por exemplo, na charge que se segue, posicionada à esquerda da coluna de Sued, 2 de março de 1988, logo abaixo do texto escrito, intitulado “5 anos”: Da esquerda para a direita, apresentam-se Moreira Franco, Orestes Quércia, o presidente Sarney no centro e Newton Cardoso. A charge examina os cinco anos de mandado para o presidente. A imagem só se torna inteligível quando localizada num momento particular do confronto de certas forças sociais, ou seja, no momento em que a Assembléia Constituinte procurava definir o período de mandato do presidente da República e das negociações políticas para que fosse aprovado o mandado de cinco anos para Sarney. A configuração visual da charge traz intrínseca uma negociação. Alguns procedimentos da linguagem verbal se manifestam na imagem, como por exemplo, a hipérbole, ao acentuar o gesto político (mão no queixo) do presidente, a posição de Moreira Franco (definindo que ele foi o último a fechar com o presidente), o gesto explicativo e receptor de Newton Cardoso. Em seguida pode ser identificada a antítese que superpõe duas realidades e revela o desacerto entre elas. É da antítese que se estabelece o choque entre o que é e o que foi, entre charge e a negociação dos cinco anos. A metáfora se manifesta no gesto matreiro do presidente a indicar que, em política, todo jogo vale. Tais figuras de linguagem, aliadas na charge, acentuam a crítica e formam uma alegoria que instaura o riso ao metaforizar a arbitrariedade e autoritarismo do fazer político. 146 É perceptível na postura, no comportamento dos traços que vão compor a configuração fisionômica e a sua articulação no campo visual, identificar as fontes geradoras do riso. É no cômico de gestos e formas explorados pela imagem que evidencia o automatismo, o enrijecimento e deformações do corpo físico dos personagens. Nessa charge se encontram as diversas características do cômico enfocado por Bergson: o cômico de caráter, que demonstra o temperamento impositivo dos personagens; o cômico de situação, que reproduz cenas da vida política brasileira, e o cômico de palavras, organizadas em letras pretas, anunciando o tema enfocado pela imagem. A charge, em seu contexto histórico, revela as estratégias, as táticas e os movimentos dos atores políticos, definindo os potenciais aliados e inimigos. Na charge a seguir, de Cláudio, do dia 6 de dezembro de 1987, a imagem de Newton Cardoso aparece no centro com o seguinte texto verbal: “Doutor Newtão não vira para direita nem para esquerda, só´pro` centro”. A imagem é composta de elementos que a caracterizam em relação ao personagem. Nas entrelinhas ela expressa o panorama político, as forças políticas em constantes mudanças, bem como o comércio de voto e o abuso do poder econômico. O riso nasce da constatação das contradições arraigadas no contexto sociopolítico e vindo à tona com a charge. Ela é significativa também, por indicar atitudes de políticos brasileiros que procuram se posicionar no centro para um maior poder de mobilidade de negociações. Como por exemplo, o então 147 governador de Minas Gerais destacado na charge. Futuramente, Newton Cardoso foi motivo de vários escândalos envolvendo evasão de divisas e fortunas sediadas em paraísos fiscais. As charges ainda desvelam o processo de transição, na qual sujeitos históricos, até então alijados do processo, procuram alcançar seus fins no terreno da ação política. Registre- se a charge a seguir de Jimmy Scott, intitulada “Articulação”, da coluna de Swann do dia 7 de março de 1987. O texto verbal afirma que Mário Juruna, em contatos diários com Luís Inácio Lula da Silva, solicita transferência do PDT para o PT. O texto imagético confirma o texto verbal ao indicar o chute dado pelo personagem na letra D. A charge cria uma movimentação dinâmica dentro do texto, nivela, destrona e instala a marca do deboche, neste ínterim faz cintilar vozes dispares que se conflitam. O que de certa forma, revela que embora a transição tenha reproduzido a velha tradição política brasileira de “arranjos pelo alto”, também foi determinada pela pressão “de baixo”. Sobre a crise política e a constante mudança de ministros da área econômica, na charge da coluna de Sued, datada de 07 de março de 1987, aparece o Ministro do Planejamento, João Sayad, com o seguinte texto embaixo da imagem: “más notícias da equipe de Sayad”. 148 A charge está relacionada à política econômica adotada durante o governo Sarney, que tinha como principal idealizador o ministro do Planejamento João Sayad. Tal política procurava contornar a crise econômica aplicando medidas contrárias às do governo anterior. Tal equipe foi responsável pela criação do Plano Cruzado, com vistas ao controle dos salários e dos preços e o consequente freio à inflação. Num primeiro momento, a inflação atingiu valores negativos, o consumo aumentou e os fundos aplicados foram lançados na economia. Entretanto, alguns meses mais tarde, a euforia de consumo levou o plano à falência. A estabilização forçada dos preços retraiu os setores produtivos e acabou fazendo que os bens de consumo desaparecessem das prateleiras dos supermercados e das empresas. Muitos fornecedores passaram a cobrar ágio sobre determinados produtos. As reservas cambiais do país foram empregadas na obtenção das mercadorias essenciais que desapareceram da economia nacional. A fuga das reservas desencadeou um processo de crise econômica, marcado pela moratória. O resultado do Plano Cruzado foi uma inflação anual de 1764% e a proliferação de planos econômicos: Plano Cruzado I e II, Plano Bresser, Plano Verão e Cruzado Novo. Junto com os planos a dança das cadeiras dos ministros. Acompanhando o mesmo tema na coluna de Swann do dia 03/03/1987 temos a seguinte charge de Jimmy Scott: 149 Com o título “Novo destino”, o texto alude à demissão de João Sayad do Ministério do Planejamento, assegurando que, como prêmio de consolação, ele vai para os Estados Unidos trabalhar na Organização das Nações Unidas (ONU): pela presença da estátua da liberdade, o destino é Nova York. Na coluna de Swann do dia 10 de maio de 1987, reproduz-se a charge, também de Jimmy Scott, sobre a posse do novo Ministro da Fazenda Bresser Pereira: Bresser Pereira assumiu o Ministério da Fazenda em 29 de abril de 1987, deparando-se com sérios problemas inflacionários, e constatou que o governo gastava mais do que arrecadava. O porte decidido do ministro, na charge, indica que ele estava decidido a resolver o problema da inflação, que atingia os 23,26%. Em junho de 1987, foi decretado o Plano Bresser, com congelamento de preços, dos aluguéis e dos salários por 60 dias. Para diminuir o déficit público, houve aumento de tributos. O subsídio do trigo foi eliminado, retomaram-se as negociações com o Fundo Monetário Internacional (FMI) e a moratória foi suspensa. Todavia, o Plano se mostrou ineficaz contra a inflação, que chegou a 366% em dezembro de 1987. Bresser deixa o ministério em janeiro de 1988, reiniciando a dança das cadeiras de ministros e planos econômicos. Tais exemplos evidenciam que o poder da charge está em revelar as fissuras de um dado contexto no momento da ocorrência. A charge, quando descontextualizada, perde sua capacidade de ação, por isso a sua transitoriedade e instantaneidade. No contexto analisado, elas trazem as marcas da oposição entre o velho e o novo, a conservação e a superação. 150 Por este prisma, o riso é uma forma de interação social, a base a partir da qual surge a possibilidade de agir sobre o mundo, de transformação da realidade mediante imagens, o que dá a ele um lugar privilegiado na compreensão do mundo, já que a comicidade permite ir além do compreensível dentro dos limites da razão. Contudo, tal conhecimento é lúdico e permite tratar de assuntos delicados sem a aspereza da racionalidade, já que se cria um espaço para que cada um possa decidir por conta própria os termos das relações e possibilidades de ação e reação. 151 CONCLUSÃO A hipótese inicial de estudo da coluna social possuía uma vertente histórica e procurava entender como surgiu e como vivia a elite dominante do Brasil. O interesse surgiu da reflexão sobre os fundamentos da nossa sociedade e da percepção de que, ideologicamente, ele teve a sua estrutura formada no Antigo Regime e que sua hierarquia era sustentada de, forma piramidal, pela nobreza estritamente ligada ao poder religioso, que legitimava seus poderes no plano temporal. Esta base transplantada de Portugal durante o período colonial configura uma sociedade extremamente categorizada e com imensas distâncias sociais que diferencia quem é quem na pirâmide social pelos gestos, maneira de vestir, sobrenome e modos de comportamento. Entretanto, esse enfoque foi, eventualmente, substituído por outro, que enfatiza a questão dos gêneros discursivos. Por um lance de sorte, recolhi um grande numero de exemplares, num momento em que iam ser descartados. A presença de um corpus a ser minudentemente estudado possibilitou o estabelecimento de uma perspectiva teórica a ser adotada. Observamos que os gêneros jornalísticos, assim como os literários, resultaram de uma lenta elaboração histórica. Primeiramente foram agrupadas as semelhanças e afinidades literárias entre os diferentes textos, retirando-se daí o conceito de gênero. Depois, de outra observação, desta vez sobre a tessitura do ato humano e sua capacidade de criar textos, originou-se o conceito de estilo. Então, dentro do enfoque teórico escolhido, em princípio encontram-se os textos que, agrupados por traços literários, fornecem os conceitos dos gêneros, os quais, por sua vez, se observados pela ótica do ato humano de criar textos, produzem como resultado o conceito científico de estilos. Os gêneros são as abstrações teóricas e se manifestam como entidades ou modalidades históricas e os estilos como novas abstrações teóricas que refletem estruturas históricas e disposições coletivas. Assim, o que conhecemos como teoria dos gêneros literários é um princípio de ordem que classifica os gêneros por tipos de organização ou estruturas literárias específicas.Este é um esquema hierárquico consagrado pela clássica teoria aristotélica dos gêneros literários. O mesmo conceito de gêneros, na teoria literária, é extrapolado para o campo do jornalismo, como as modalidades históricas específicas e particulares de criação da 152 informação. Este conceito de gênero jornalístico foi inaugurado por Jacques Kayser, primeiro pesquisador com projeção internacional, que procurou classificar os textos dos jornais. A classificação dos gêneros jornalísticos está ligada ao processo de evolução do conceito de jornalismo. Num primeiro momento, os pesquisadores procuram entender os gêneros jornalísticos em função das características históricas. A primeira etapa, o jornalismo ideológico, iniciado no século XIX, indo até o fim da Primeira Guerra Mundial, era caracterizado por ser doutrinal e moralizador, geralmente a serviço das idéias políticas e religiosas, com poucas informações e muitos comentários. A segunda etapa, iniciada também no século XIX, coexistiu com o jornalismo ideológico, caracteriza-se pelo relato dos acontecimentos, uma narrativa dos fatos. O jornalismo informativo, como ficou conhecido, ganha vigor nos Estados Unidos e se impõe em todo o mundo ocidental como um novo estilo. Dele originam-se os gêneros jornalísticos informativos: a reportagem, a crônica e suas variantes. Ao contrapor o texto da coluna social com os estudos sobre os gêneros jornalísticos observamos que ela não poderia ser incorporada a um gênero especifico, posto que o que a caracterizava era uma grande mixagem de gêneros. Insistir na identificação de um gênero na coluna social, com uma abordagem tradicional não alcançaria resultados positivos em termos de significação. Essa percepção soma-se ao entendimento de que a realidade social não é uma superfície lisa. O acontecimento não existe de per si. O jornalista não é aquele sujeito exterior e distante, armado de uma independência, de uma neutralidade sem falhas, e o jornal não é uma mera estrutura tecnológica particular. Isto tem levado à desconstrução do discurso jornalístico e colocado em questão a problemática da leitura e da compreensão do real. Passamos a buscar referencias que pudessem abrir as portas do entendimento do texto da coluna não mais como uma forma hierárquica de classificação de espécies, mas sim, uma possibilidade combinatória, um instrumento organizador que leva em conta a relatividade estável de enunciados, ou seja, existe uma ligação entre gênero enquanto texto e possíveis fornecedores de modelos do mundo e a cultura, enquanto matriz de um modelo de mundo. Com estas informações, foi possível identificar no texto da coluna uma autoria que a tornava um dos mais pessoais dos gêneros jornalísticos. Isto justificava ser o texto da coluna voltado para os problemas sociopolíticos, as cenas de escândalo, condutas excêntricas e discursos inoportunos. Os mesmos temas da fofoca/boato. Impunha-se então determnar qual a diferença entre a fofoca e o boato. As referencias encontradas indicam que a fofoca acontece dentro de redes sociais de relações familiares, de 153 amigos e conhecidos, com a função de renovar e transformar as relações sociais e ao mesmo tempo reafirmar as normas e os valores dos grupos, sem formulá-las explicitamente. Enquanto a fofoca pode, ou não, ser verdadeiro, o boato é sempre uma notícia não autenticada, que ao ser confirmado perde o estatuto de boato. O contato com as referencias sobre a fofoca nos levou a compreender a sua capacidade de favorecer a interação social e o entretenimento, fato que tem se tornado objeto de estudos da antropologia, sociologia, psicologia e história. Tudo indicava que poderíamos enfocar a coluna social como um espaço de fofoca. Nesse intuito, nossa exposição orientou-se pela perspectiva de que a coluna social no jornal é o texto que mais se aproxima da oralidade, porque as suas notas são alimentadas pelo gênero da fofoca, assemelhando-se às conversas que são trocadas entre os vizinhos e nos espaços informais. Isto a caracteriza como um gênero popular, utilizado para divulgar os feitos e eventos de uma elite política e social, pessoas que apresentam os mesmos padrões de comportamento e decoro, que os unificam e ao mesmo tempo os diferenciam dos demais membros da sociedade. Isto exigiu ampliar a noção de texto para abranger outras coisas além das que são escritas, incorporar o contexto e as suas implicações de sentido. Na verdade, procuramos interpretar um texto através de outro texto. Construímos o texto a partir da percepção de que a interação dessa elite geralmente ocorre em espaços privados; em suas conversas informais, que versam sobre o cotidiano. Nessas interações, é comum a referência aos ausentes de forma maliciosa e crítica; e os defeitos, fraquezas e comportamentos são observados clinicamente. É o que podemos denominar como fofoca. A fofoca exerceria a função de comparação social, na formação e manutenção de grupos e pode se apresentar como intragrupal ou intergrupal. A sua ocorrência predomina em ambientes em que existe a necessidade de informação moral, ou há falta de poder, bem como em situações que fazem emergir percepções de injustiça ou sentimentos de inveja, ciúme e ressentimento. A periodização do estudo foi importante (1987-1988), em um momento em que a sociedade brasileira passava pela transição entre o regime ditatorial e o democrático. A instalação do Congresso Constituinte seria mais um passo no processo de ruptura da situação anterior; configurando um contexto de instabilidade política, formada por um conjunto de crises, tanto de caráter econômico como institucional ou político, que se interpenetram, 154 acrescentando novos problemas e novas dimensões: política, econômica, social, institucional e administrativa. No âmbito da sociedade as tendências de fluxo e refluxo se enfrentam. De um lado, aumento do corporativismo dos setores médios urbanos; maior capacidade de articulação dos interesses empresariais; surgimento ou ampliação de movimentos sociais conservadores; manifestações de protesto e contestação; ações repressivas e esparsas no tempo e no espaço; fragmentação das associações controladas pelas esquerdas. Do outro, movimentos sociais populares nas grandes cidades, cujos integrantes são excluídos do acesso a bens e serviços urbanos; surgimento de movimentos socioculturais, como o ecológico e o feminino; resistência de alguns setores do sindicalismo trabalhista, parte da Igreja Católica e de um segmento expressivo da intelectualidade. A análise do contexto facultou o entendimento de que os discursos flagrados nas colunas mantinham uma relação direta com a situação em que eles foram produzidos, o que levava à afirmação de que o centro organizador do discurso da coluna não estava na individualidade do colunista, mas no meio social no qual ele estava envolvido. Visto por esse prisma, quando o colunista se apropria da voz do outro, ela se entranha no seu discurso e se apresenta como vários discursos sociais. Assim, o texto da coluna foi entendido como um cruzamento de discursos oriundos de práticas de linguagem socialmente diversificadas, que falam e polemizam no texto e nele reproduzem outros textos. Em seu percurso, são confrontadas e impressas historicamente as contradições e choques do contexto. Assim, chegou-se a conclusão que o discurso da coluna é portador de uma memória coletiva, já que o colunista, ao produzir um enunciado, utiliza um sistema de linguagem, constituído de enunciados preexistentes. Assim, o seu discurso é um repertório de memória que se estende ao passado sem fronteiras e ao futuro infinito, ou seja, como processos de formação e ressignificação continuadas, os quais dão acesso aos múltiplos significados que foram historicamente construídos. Partimos de um texto midiático que passou a ser visto como um gêneroque incorpora outros gêneros, dentre eles o gênero de mexerico/fofoca. A partir desta constatação observamos que a fofoca é receptiva às transformações históricas, por isso termos considerado o texto da coluna como um repositório de memória, visto que os elementos constitutivos que orientam as pessoas na produção dos sentidos manifestam as tendências expressivas acumuladas ao longo de várias gerações de discursos e permanecem em contínua transformação. 155 Restava agora trata um dos componentes da fofoca: o riso. Observando o contexto histórico, a experiência cotidiana demonstrava haver um conflito entre o novo, que está entrando e o dominante, que tenta defender e expulsar a concorrência. Aqui, o riso pode ser corretivo, ao ridicularizar as faltas, os defeitos, os desvios. No entanto, ele também evidencia como o período foi caótico, e pode servir, por um lado, de alivio, e por outro de amargura, ou seja, um ácido que corrói, com a pergunta: como levar a sério aqueles que estão no poder? A conclusão é que o corpus estudado faz emergir discursos que ironizam as posturas políticas e os procedimentos arcaicos do Congresso Nacional. Faz-nos rir dos recém empossados congressistas, que ainda não dominavam as regras e procedimentos da casa, pois em suas tentativas de atuação, apresentam atitudes risíveis. Em seu texto as críticas zombeteiras do contexto provocam risos. Rimos de nós mesmos. Este riso não apenas evidencia uma perspectiva negativa, mas uma recreação que também servia para conscientizar. Ao final do trabalho sobre o texto da coluna social, podemos identificá-la como um espaço de fofoca, com os seus elementos constitutivos: a memória e o riso. A afirmação é pautada na observação de que com o desenvolvimento dos meios de comunicação, a interação face a face não desapareceu, mas foi suplementada por novas formas de ação e interação, com a utilização de meios técnicos que conservam a intenção da interação face a face, para tornar pública uma ação ou acontecimento para outros que não estão fisicamente presentes no tempo e no lugar de sua ocorrência. Dessa forma, podemos concluir que a coluna social é um gênero hibrido, nascido da intersecção entre o gênero fofoca e o gênero coluna, vindo do jornalismo ideológico, que se configurava como um espaço de pessoalidade e opinião. Visto que o colunista está em constante processo dialógico, entre uma multiplicidade de vozes presentes ou presentificadas e em permanente negociação entre sentidos possíveis, é possível ouvir esses textos e entendê-los como uma pluralidade, não apenas de temas e de tons, mas de tipos de discurso inscritos nas próprias condições de produção de sentidos e no movimento plural da memória e da história. A conclusão é que o discurso da coluna é um eco de nós mesmos, é o resultado de pertencermos a um grupo social, com o qual dividimos as opiniões, os valores, as atitudes e o riso. 156 IV. FONTES E REFERÊNCIAS 1 – Fontes Estado de S. Paulo – 2ª quinzena de janeiro de 1988 Folha de S. Paulo 5.08.88 Veja 28.09.88 O Globo 1.1.1987 a 20.12.1989 2 – Referências ALLPORT, G. y POSTMAN, L. (1953). Psicología del rumor. Editorial Psique, Buenos Aires, 1947. AMORIN, Marilia (2001). O pesquisador e seu outro: Bakhtin nas ciências humanas. São Paulo: Musa Editora BAHIA, J. 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ANEXOS ANEXO 1 - Total de notas entre os anos de 1987 e 1988 TOTAL DE NOTAS: 27820 Swann/1987 21% Sued/1987 20%Swann/1988 30% Sued/1988 29% 164 ANEXO 2 - Distribuição temática das notas das colunas do jornal O Globo 1987 1988 total Swann 1987 1988 total Sued Político 1579 2830 4409 849 763 1612 Econômico 706 709 1415 558 408 966 Cultural 902 1299 2201 659 160 819 Notícias internacionais 632 331 963 485 908 1393 Constituinte 122 115 237 190 122 312 Social 1485 2370 3855 2094 4956 7050 Cidade 122 287 409 290 213 503 Esporte 101 132 233 87 118 205 Religioso 21 40 61 24 14 38 Saúde 101 61 162 275 162 437 165 ANEXO 3 - Paralelo entre a coluna de Sued e a coluna de Swann no ano de 1987 Paralelo entre Swann X Sued ano de 1987 0 500 1000 1500 2000 2500 P ol íti co E co nô m ic o C ul tu ra l N ot íc ia s in te rn ac io na is C on st itu in te S oc ia l C id ad e E sp or te R el ig io so S aú de Swann/1987 Sued/1987 ANEXO 4 - Paralelo entre a coluna de Sued e a coluna de Swann no ano de 1988 Paralelo entre Swann X Sued ano de 1988 0 1000 2000 3000 4000 5000 6000 P ol íti co E co nô m ic o C ul tu ra l N ot íc ia s in te rn ac io na is C on st itu in te S oc ia l C id ad e E sp or te R el ig io so S aú de Swann/1988 Sued/1988 166 ANEXO 5 - Cobertura feita pelas duas colunas sobre as temáticas: social e política 0 1000 2000 3000 4000 5000 6000 7000 8000 Polí t ico Econômico Cultural Notícias internacionais Constituinte Social Cidade Esporte Religioso Saúde total sw ann total sued ANEXO 6 - Os temas sociais e políticos na coluna de Sued Coluna do Sued/1987 849 558 659 485 190 2094 290 87 24 275 0 1000 2000 3000 Pol ít i co Cul tur al Const i tui nte Ci dade Rel i gi oso 7 6 3 4 0 8 1 6 0 9 0 8 1 2 2 4 9 5 6 2 1 3 1 1 8 1 4 1 6 2 0 1000 2000 3000 4000 5000 C o lu n a d o S u e d / 1 9 8 8