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REVISTA SÍSIFO 
ANO 2017 
www.revistasisifo.com 
Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 
2 
 
 
Endereço para correspondência. Adress for correspondence: 
Revista Sísifo 
Site: www.revistasisifo.com / E-mail: sisiforevista@gmail.com 
Feira de Santana — Bahia — Brasil 
 
 
Revista Sísifo – Feira de Santana – n. 5, v. 1 (2014-) 
nº 5 maio/2017 
Filosofia – Periódicos I 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 
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FEIRA DE SANTANA-BA nº 5 p. 1 - 234 Ano 2017 
 
REVISTA SÍSIFO 
ANO 2017 
www.revistasisifo.com 
CORPO EDITORIAL 
Yves São Paulo (Editor) 
Marcelo Vinicius (Editor) 
CONSELHO EDITORIAL 
Andreia A. Marin 
Bruna Torlay 
Denise Kloeckner Sbardelotto 
Dinameire Oliveira Carneiro Rios 
Eduardo Pellejero 
Luciano Donizetti da Silva 
Marcos Roberto Nunes Costa 
Nildo Viana 
Priscila Vieira 
Rodrigo Ornelas 
Rodrigo Araújo 
Tiago Medeiros Araujo 
Valdenésio Aduci Mendes 
Wanderley C. Oliveira 
 
 
Os artigos e demais textos publicados nesta revista são de inteira responsabilidade 
de seus autores. A reprodução, parcial ou total, é permitida, desde que seja citada 
a fonte. 
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Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 
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sumário 
Editorial........................................................................................................6 
 
DOSSIÊ: POLÍTICA, COMUNICAÇÃO E CULTURA 
NOAM CHOMSKY: propaganda e medo na política internacional 
Jayme Benvenuto..........................................................................................8 
OPINIÃO PÚBLICA, HEGEMONIA E CULTURA NOS CADERNOS 
DO CÁRCERE DE A. GRAMSCI 
Luciana Aliaga, Andressa Lima da Silva....................................................24 
MÍDIA COMO DISPOSITIVO DE SABER/PODER 
José Orlando Carneiro Campello Rabelo....................................................35 
TODAS AS ERAS FORAM DA PÓS-VERDADE: um passeio pelo 
doublethink nosso de cada dia 
Arthur Aroha Kaminski da Silva.................................................................48 
A MULTIDÃO NO TWITTER: a criação de memes com apropriação de 
fotografias 
Gabriel Malinowski.....................................................................................67 
BELA, RECATADA E DO LAR: relações entre a prática discursiva sobre 
a mulher e a docilização dos corpos em Foucault 
Romário Duarte Sanches.............................................................................79 
VIDA SERIAL, ÊXTERO-CONDICIONAMENTO E IDEOLOGIA: uma 
análise do mass media pela ótica de Sartre 
Vinicius dos Santos.....................................................................................96 
 
ARTIGOS E ENSAIOS 
CRUZADA CONTRA A BOCA DO LIXO: saberes e discursos na 
imprensa 
Everton Behrmann Araújo.........................................................................114 
http://www.revistasisifo.com/2017/05/noam-chomsky-propaganda-e-medo-na.html
http://www.revistasisifo.com/2017/05/opiniao-publica-hegemonia-e-cultura-nos.html
http://www.revistasisifo.com/2017/05/opiniao-publica-hegemonia-e-cultura-nos.html
http://www.revistasisifo.com/2017/05/midia-como-dispositivo-de-saberpoder.html
http://www.revistasisifo.com/2017/05/todas-as-eras-foram-da-pos-verdade-um.html
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http://www.revistasisifo.com/2017/05/a-multidao-no-twitter-criacao-de-memes.html
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http://www.revistasisifo.com/2017/05/bela-recatada-e-do-lar-relacoes-entre.html
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http://www.revistasisifo.com/2017/05/vida-serial-extero-condicionamento-e.html
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http://www.revistasisifo.com/2017/05/cruzada-contra-boca-do-lixo-saberes-e.html
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O CORPO POÉTICO DA ATRIZ/AUTORA HELENA IGNEZ EM A 
MULHER DE TODOS 
Tatiana Trad..............................................................................................132 
PRÁTICAS DISCURSIVAS ECONÔMICAS E SOCIOCULTURAIS 
SÃO COMPATÍVEIS? 
Rogério Faé...............................................................................................141 
A ESCRITA COMO CUIDADO DE SI NA OBRA TARDIA DE 
MICHEL FOUCAULT 
Roberto Kennedy de Lemos Bastos..........................................................158 
FOUCAULT, A HISTÓRIA DO PENSAMENTO E A GENEALOGIA: 
sobre uma nova política da verdade e os limites da ideologia e da dialética 
Priscila Piazentini Vieira...........................................................................171 
UMA FILOSOFIA POLÍTICA PARA O BRASIL: Roberto Mangabeira 
Unger e o pensamento com sotaque 
Tiago Medeiros de Araújo.........................................................................192 
ALCANCES E LIMITES DO CONCEITO DE SOCIEDADE CIVIL EM 
ANTÔNIO GRAMSCI 
Valdenésio Aduci Mendes.........................................................................207 
REVISITANDO A UTOPIA: Sartre e o engajamento político-social da 
liberdade 
Luciano Donizetti da Silva........................................................................227 
 
ENTREVISTA 
CONVERSA COM CARLA DAMIÃO: sobre filosofia e filme 
Rodrigo Araújo, Leidiane Coimbra...........................................................247 
 
Regras para submissão de artigos..........................................................261 
 
http://www.revistasisifo.com/2017/05/o-corpo-poetico-da-atrizautora-helena.html
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http://www.revistasisifo.com/2017/05/praticas-discursivas-economicas-e.html
http://www.revistasisifo.com/2017/05/praticas-discursivas-economicas-e.html
http://www.revistasisifo.com/2017/05/a-escrita-como-cuidado-de-si-na-obra.html
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http://www.revistasisifo.com/2017/05/foucault-historia-do-pensamento-e.html
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http://www.revistasisifo.com/2017/05/uma-filosofia-politica-para-o-brasil.html
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http://www.revistasisifo.com/2017/05/alcances-e-limites-do-conceito-de.html
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http://www.revistasisifo.com/2017/05/revisitando-utopia-sartre-e-o.html
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http://www.revistasisifo.com/2017/05/conversa-com-carla-damiao-sobre.html
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EDITORIAL 
 
 
O ato de pensar é atravessado pelos modos de comunicação. Poder-se-ia até 
mesmo dizer que o ser humano já possui inerente a sua condição a possibilidade de se 
comunicar com os demais membros de sua espécie, mas também uma imensa
partidos estrito senso podem cumprir esta função, é preciso dizer neste momento que 
estas “instituições” não são suficientes para substituir o partido – principalmente para as 
classes subalternas –, ou seja, não cumprem plenamente a função de partido, sua ação é 
restrita. Esta restrição também diz respeito aos aspectos específicos ligados à militância 
no partido, ou seja, a ação política direta não é um acessório, ela é central para 
elaboração de novas intelectualidades integrais, neste sentido, somente os partidos são o 
“crisol da unificação, de teoria e prática, entendidos como processo histórico real” (Q. 
11, §12, p.1387). 
Dito de outra forma, a função de partido não substitui o partido, os termos não 
são intercambiáveis. Assim, o oposto também é verdadeiro, o partido, embora ligado à 
função cultural das revistas e jornais, não pode substituí-los e nem prescindir deles. 
Nenhum partido que tenha como projeto ser o divulgador de uma nova cultura pode 
dispensar a atividade jornalística, antes, ela devem ser parte constituinte da sua 
estrutura. 
 
CONSIDERAÇÕES FINAIS 
 
Os processos de hegemonia somente podem ser suficientemente apreendidos se 
os compreendermos por meio de suas formas diversas de exercício, a partir dos grupos 
em luta no interior das relações sociais de forças. Estas condições demonstram que as 
formas de exercício da hegemonia – e de lutas dos grupos subalternos pela sua 
conquista – exigem estratégias, organização política e discursos diversos. Compreendê-
las então, enquanto processos pedagógicos – seja por meio dos grandes meios de 
comunicação de massa e suas relações indiretas com os partidos burgueses, seja por 
meio dos aparelhos de opinião ligados aos partidos das classes subalternas – é 
fundamental para perceber que a dominação não se limita ao âmbito econômico, mas só 
se efetiva porque existe uma base ideológica e cultural que a sustenta. 
Destarte, para compreender suficientemente as conexões complexas entre 
hegemonia e cultura é fundamental considerar tanto os processos que criam 
conformismo na sociedade civil por meio da difusão de concepções de mundo ligadas 
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ao status quo, quanto é importante refletir sobre os processos que se referem à 
organização e à formação da consciência crítica, isto é, a criação e difusão na sociedade 
civil dos aparelhos de opinião pública autônomos, criados e dirigidos pelas classes 
subalternas em sua diversidade. 
 
 
AUTORAS 
* Luciana Aliaga é Professora do Depto. Ciências Sociais/ CCHLA-UFPB e do 
Programa de pós-graduação em Ciência Política e Relações Internacionais – PPGCPRI/ 
UFPB. Grupo de pesquisa Materialismo e modernidade/ CCHLA-CCSA-UFPB/UFCG. 
** Andressa Lima da Silva é Aluna do curso de Serviço Social/CCHLA-UFPB, bolsista 
PIBIC/ CNPq, integrante do grupo de pesquisa Materialismo e modernidade/CCHLA-
CCSA-UFPB/UFCG. 
 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 
GRAMSCI, A. Quaderni del carcere: edizione critica dell’Istituto Gramsci a cura di 
Valentino Gerratana, Torino: Einaudi, 2007. 
GRAMSCI, A. “I giornale e gli operai”, 22 de dezembro de 1916. In Cronache 
Torinesi1913-1917, Sergio Caprioglio (org.). Roma, Giulio Einaudi Editore, 1980. 
BUCI-GLUKMANN, Christinne. Gramsci e o Estado. Rio de Janeiro: paz e terra, 1980. 
BIANCHI, A; ALIAGA, L. “Força e consenso como fundamentos do Estado. Pareto e 
Gramsci”. Revista Brasileira de Ciência Política, nº5. Brasília, janeiro-julho de 2011, 
pp. 17 – 36. 
FRANCIONI, Gianni. L’Officina Gramsciana: Ipotesi sulla struttura dei “Quaderni 
delCarcere”. Nápoles: Bibliopolis, 1984. 
MORAES, Denis. “Comunicação, Hegemonia e Contra-hegemonia: A construção 
Teórica de Gramsci”. Revista Debates, Porto Alegre, v.4, n.1, p. 54-77, jan.-jun. 2010. 
ALMEIDA, Jorge. “Relação entre Mídia e Sociedade Civil em Gramsci”. Revista 
Compolítica, n. 1, vol. 1, ed. março-abril, ano 2011. 
FERNANDES, Vívian de Oliveira N. “Reflexões sobre a obra de Gramsci para o campo 
da comunicação alternativa”. Extraprensa (USP) – Ano VI – nº 11 dezembro/2012. 
 
NOTAS 
[1] Para datação consultar FRANCIONI, 1984, p. 141. 
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[2] Para simplificação da citação do texto de Gramsci nos Quaderni del 
Cárcereutilizaremos a letra “Q”, seguida do parágrafo e da página de referência. 
[3] Sobre isto consultar BIANCHI; ALIAGA, 2011. 
[4] Sobre este assunto consultar BUCI-GLUCKSMANN, 1980. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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Dossiê 
 
MÍDIA COMO DISPOSITIVO DE SABER/PODER 
José Orlando Carneiro Campello Rabelo* 
 
 
 
RESUMO: O presente artigo tem como objetivo discutir mídia (veículo da ‘cultura de 
massas’) como um dispositivo de saber/poder partindo da noção de genealogia. A 
centralidade do texto reside na teoria de Foucault destacando os processos de uma 
genealogia, a noção de modos de subjetivação, nuances do saber/poder e finalmente a 
noção de dispositivo convidando o leitor a refletir: não seriam os veículos de 
comunicação as maiores fontes de propagação e manutenção das ideologias em nosso 
meio? Foucault usa a “genealogia do saber-poder”, para discorrer sobre a possibilidade 
de construção dos saberes através de determinadas condições externas ao próprio saber, 
assim, congrega em sua análise, elementos relacionais, históricos e políticos a outros 
referendados no poder. O poder se exerce de forma difusa e descontínua criando vetores 
ou forças que se dissipam em direções das mais diversas, o saber seria um canalizador 
dessas forças ou relações de poder. Assim, o ‘saber cultural’ pode ser compreendido 
como qualquer ação social que tenha relevância para determinada significação e a mídia 
seria veículo de difusão desta cultura, uma parte crítica da ‘estrutura’ das sociedades 
modernas. O conhecimento é uma relação estratégica, generalizante, é a luta singular do 
homem com o objeto que ele quer dominar, saber, em suma é poder, resultado de lutas 
constantes e cortantes. Somos compelidos a produzir “verdades” pelo poder que a exige 
e que dela necessita para funcionar. As verdades são reguladas pela disciplina e por ela 
observamos as relações de poder operando sobre os corpos, tornando-os dóceis e úteis. 
O fato de não identificarmos diretamente a “fonte” destes discursos, pode significar que 
elas já tenham sido tão fortemente incorporadas ao senso comum que não causa mais 
estranhamento. Assim, para além da origem do discurso destacamos aqui sua 
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propagação, seu alcance ilimitado e seu potencial, proporcionados diretamente pelo 
aparelho midiático como mais um elemento de dominação. 
Palavras-chave: Genealogia; saber-poder; modos de subjetivação; Foucault; mídia. 
 
PARA INICIAR A CONVERSA 
 
A dita “cultura de massas” é tema recorrente em textos de diversas áreas 
constituindo, até certo ponto, um elemento central nos debates acerca da sociedade 
atual. Roland Barthes (2001), em seu clássico “Mitologias”, desvela a exaustão os 
processos que ancoram e escondem as ideologias que sustentam estas construções, 
garantindo-lhes validade e assegurando degredo a todo aquele que aponte sua 
falibilidade. Aquele que se presta a desvendar estes mitos sociais contidos nestas 
culturas é chamado por Barthes de mitólogo, e de acordo com o autor só lhe resta um 
posicionamento sarcástico e descrente em mudanças que estrategicamente o aloca à 
margem da sociedade. Na escrita deste texto me posicionarei como um destes seres, um 
mitólogo, embora não recorra ao pensamento deste autor não posso deixar de mencionar 
sua genialidade e contribuição. 
O texto pretende constituir-se como uma provocação ao leitor foucaultiano e 
aquele que por esta leitura se interessa ao questionar a possibilidade de compreender
a 
mídia (veículo da ‘cultura de massas’) como um dispositivo de saber/poder partindo da 
noção de genealogia. 
Complexa é a tarefa em tomar o arcabouço teórico de Michel Foucault como 
base. A dificuldade está para além das complexidades da leitura e aproximação de suas 
ideias da realidade brasileira demarcada por desordem e indisciplina. Igualmente 
transcende as discussões da ausência de um “método”, nos cânones clássicos de 
metodologia científica, o que consiste em um perigo teórico em apontar 
direcionamentos diferentes do original. Aparentemente o maior desafio nesta tarefa 
consiste em manejar termos consagrados por um modismo intelectual e universitário no 
mínimo medíocre sem fazer coro com esta massa de ‘pensadores’ que utilizam jargões 
deste teórico de forma aleatória, lhes garantindo um certo status ou ar de mistério. 
Parece que termos clássicos do dicionário Foucaultiano estão, no caso de alguma 
parte da produção brasileira, saturados de sentidos e contrassensos. Assim, é 
fundamental buscar um fio condutor que nos leve a uma possível cartografia que 
embora volátil e em constante processo de metamorfose (como toda cartografia deve 
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ser), do cenário brasileiro para que a aproximação destes conceitos não aponte verdades, 
mas condições de possibilidades. 
Assim, este trabalho se propõe didático, enxuto e despretensioso. O objeto social 
mídia não será foco da discussão, a centralidade é da teoria de Foucault destacando os 
processos de uma genealogia, a noção de modos de subjetivação, nuances do 
saber/poder e finalmente a noção de dispositivo convidando o leitor a refletir: não 
seriam os veículos de comunicação as maiores fontes de propagação e manutenção das 
ideologias em nosso meio? 
 
SOBRE A NOÇÃO DE GENEALOGIA 
 
Foucault apresenta em sua obra não um método no sentido clássico 
(estruturalista), mas uma analítica de flexibilidade e mobilidade que permite reconstruir 
a história de determinado saber em seus processos de desenvolvimento descontínuo. 
O pensamento Foucaultiano sofre um profundo corte epistemológico, o que 
melhor o teria caracterizado como pós-estruturalista. Sua proposta de método se inicia 
em um período denominado de “arqueológico” em que busca uma análise do sujeito 
enquanto fundado por um sistema autônomo, desvinculado de possíveis relações entre 
os saberes e as relações políticas e econômicas, neste momento ele objetivava pesquisar 
e “generalizar inter-relações conceituais capazes de situar os saberes constitutivos das 
ciências humanas, sem pretender articular as formações discursivas com as práticas 
sociais” (FOUCAULT, 1979, p. 09). 
A análise arqueológica teria como finalidade e fundamento inter-relacionar os 
saberes apontando o surgimento das ciências humanas, enquanto resultantes de uma 
rede conceitual “Digamos que a arqueologia, procurando estabelecer a constituição 
interna dos saberes privilegiando as inter-relações discursivas e sua articulação com as 
instituições, respondia a como os saberes apareciam e se transformavam” 
(FOUCAULT, 1979, p. 10). Seria uma história das ideias, uma escrita daquilo que já foi 
escrito, abandonando a investigação de uma origem e buscando descrever as regras que 
regem as práticas discursivas daquilo que chamamos de ciência. 
Em outro momento o teórico, lançando mão de uma forte influência niilista do 
pensamento de Nietzsche, discute a “genealogia do saber-poder”, em que discorre sobre 
a possibilidade de construção dos saberes através de determinadas condições externas 
ao próprio saber. Neste momento, congrega em sua análise elementos relacionais, 
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históricos e políticos a outros referendados no poder. Assim possibilita a compreensão 
da produção dos saberes sobre o homem, além da constituição dos sujeitos formados 
por relações do discurso, sendo necessário compreender o que seriam tais práticas 
discursivas e de poder (FOUCAULT, 1979). Para compreender o que é genealogia do 
poder nesta teoria, será imprescindível apreender o pensamento de Nietzsche com 
relação à genealogia. 
A genealogia de Nietzsche não busca a origem histórica, pois a procura de uma 
origem implica a vivência de uma “essência” ou de uma “verdade” que está esperando 
para ser descoberta, compõe-se como algo arrebatado que se deu em determinado 
momento. Esta genealogia se propõe a analisar as condições de possibilidades que 
orientam determinado conjunto de forças a produzir certo valor, e quais 
direcionamentos este “valor” imprime às vivências (BOUYER, 2009). 
A relação da história para a genealogia será construída de rupturas e 
descontinuidades. Na analítica de poder, Foucault preocupa-se em estudar o porquê (ou 
o como?) do domínio de um saber, quais condições externas proporcionam o domínio 
de um determinado saber. É por meio da análise das (des)construções dos saberes, que 
se pretende “explicar sua existência e suas transformações situando-o como peça de 
relações de poder ou incluindo-o em um dispositivo político, que em uma terminologia 
nietzschiana Foucault chamará genealogia” (SOUZA; MACHADO & BIANCO, 2008, 
p. 13). Será através da genealogia que Foucault, na apreciação dos “diagramas de força” 
irá se dedicar a ampliar seu próprio pensamento com relação ao poder e suas manobras. 
Neste sentido poder não é um objeto ou um sujeito, mas uma relação ou melhor 
uma rede de relações. Portanto, o poder em seu exercício vai muito mais longe, passa 
por canais muito mais sutis, é muito mais ambíguo, porque cada um de nós é, no fundo, 
partícipe de certas relações de poder e, por isso, carrega ou veicula o poder. 
Observamos que temos dois conceitos centrais que nortearão nossas discussões, 
são eles: as noções de saber-poder e o discurso. Estes elementos deverão compor uma 
cadeia de pensamentos que irá resultar em nosso guia, ou melhor, na analítica que ora 
propomos. 
 
NUANCES DO SABER-PODER: A MÍDIA COMO DISPOSITIVO 
 
Conforme apontamos anteriormente, Foucault faz uso da genealogia para 
investigar como surgem e se transformam os saberes. Para Foucault o poder é visto 
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como um exercício e o saber uma regra. O poder se exerce de forma difusa e 
descontínua criando vetores ou forças que se dissipam em direções das mais diversas, o 
saber seria um canalizador dessas forças ou relações de poder. O saber não detém 
nenhuma experiência “natural” ou inovadora, porque o enunciável, aquilo que se 
manifesta, está vinculado às relações de poder, que são por elas mesmas atualizadas 
gerando estratos (SOUZA; MACHADO & BIANCO, 2008, p. 13). 
O “saber”, em Foucault, rompe, de início, com a tradição grega, que associava o 
desejo de conhecer (saber) como natural, ou inato a um sujeito que seria seu detentor, 
em uma unidade perfeita, com argúcia de observar o movimento que leva da 
simplicidade à complexidade. O conhecimento se reconheceria nas coisas em uma 
relação Dialógica. Foucault discorda veementemente disso ao apontar que o 
conhecimento é fruto da astúcia, uma invenção que não teria uma “origem” natural. 
Aqui abrimos um parêntese para discutir a ascensão e em muitos casos 
prevalência do uso da cultura como espaço de atravessamento de tudo aquilo que é 
social, garantindo-lhe o espaço de centralidade em estudos de ciências humanas e 
sociais. Neste trabalho abordaremos cultura como um produto social desenvolvido e 
ancorado em um espaço de permanentes disputas de poder, portanto instável. 
Um recorte fundamental é de que aqui tratamos da produção cultural midiática, e 
de nenhuma outra. Hall (1997) serve-nos como principal fonte de referência ao passo 
em que conceitua como cultural qualquer ação social que tenha relevância para 
determinada significação e acrescenta que a mídia, veículo de difusão
desta cultura, 
seria uma parte crítica da ‘estrutura’ das sociedades modernas. Ao afirmar este 
posicionamento o autor define que a distinção marxista de uma base econômica e uma 
superestrutura ideológica seriam insustentáveis na atual conjuntura. 
Neste espaço de debate propomos: em que medida a mídia funciona como mero 
‘veículo’ de transmissão da cultura dita de massas? Em algum sentido é possível 
manipula-la para atender a interesses de grupos sociais específicos? 
Uma noção brutalmente dominante, passada e reforçada por veículos de 
comunicação em massa é de que a mídia seria um reflexo de anseios e manifestações 
populares. Não cabe assim, discutir o limitado acesso popular a um repertório ‘cultural’ 
diversificado, sendo bombardeada diuturnamente por produtos midiáticos esvaziados de 
sentido e profundamente alienantes? 
Ao apontar a incongruência em separar base e superestrutura social Hall (1997) 
não nega os conteúdos ideológicos ligados aos discursos da sociedade, longe disso, 
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chama atenção a dificuldade de percebê-los de tão imbricados encontram-se em 
diversos produtos desta mídia, com destaque ao alcance destas informações e saberes: 
“A revolução cultural que aqui estamos tentando delinear em suas formas substantivas é 
igualmente penetrante no nível do microcosmo. A vida cotidiana das pessoas comuns 
foi revolucionada — novamente, não de forma regular ou homogênea” (HALL, 1997, 
p.04). 
Esta conceituação indica que a frágil noção de supostas identidades depende da 
compreensão dos processos de identificação que permitem a apropriação dos discursos 
culturais pelas subjetividades (ou por modos de subjetivação). Desta forma podemos 
afirmar que a constituição dos sujeitos se dá através da cultura repassada pela mídia, 
nunca fora dela, a mídia ganha força como uma das principais condições 
(condicionantes?) de possibilidades. Os modos de subjetivação dependem, portanto, dos 
‘conhecimentos’ e saberes que a elas são acessíveis, sendo parcialmente produzidas de 
modo dialógico ‘no’ e pelo discurso. 
O conhecimento como toda invenção, demanda de um tempo e lugar próprios, e 
o que o engendra é seu motivo: uma maldade, originada da batalha entre os instintos. 
Ele tem como objetivo dominar as coisas: “é contra um mundo sem ordem, sem 
encadeamento, sem formas, sem beleza, sem sabedoria, sem harmonia, sem lei, que o 
conhecimento tem de lutar” (FOUCAULT, 2009, p. 18). 
Nada liga o conhecimento à natureza, portanto entre o conhecimento e as coisas 
não há continuidade, mas diferença. O conhecimento dobra as coisas em uma relação 
que busca destruí-las, ele quer dominá-las. O sujeito, demarcado pela guerra, é fruto da 
luta entre instintos, assim não há sujeito uno (a unidade não tem partes). Conhecer é 
uma relação estratégica, generalizante, é a luta singular do homem com o objeto que ele 
quer dominar. Saber, em suma é poder, resultado de lutas constantes e cortantes: “É que 
o saber não é feito para compreender, ele é feito para cortar” (FOUCAULT, 1979, p. 
28). Compreender esta noção de saber passa pela apreensão de dois conceitos 
essenciais: a ordem do discurso e o conceito de regime de verdade. 
Compreendendo o saber em si, partimos para suas condições de produção e 
circulação, sua economia, ou, conforme define Foucault (2005) em ‘ordem do discurso’: 
[...] suponho que em todas as sociedades a produção do discurso é ao 
mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por 
certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus 
poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua 
pesada e terrível materialidade (FOUCAULT, 2005, p. 9). 
 
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O Discurso é aquilo pelo que se luta, o poder do qual queremos nos apoderar. 
Devemos, portanto considerar que não existe discurso neutro, desinteressado, ele estaria 
intimamente ligado a desejo e poder. Cabendo a ressalva: diferente do que pontua a 
psicanálise, o discurso não é apenas o que manifesta ou esconde o desejo, ele é, em si, o 
próprio objeto de desejo e objeto de luta (lutamos para dominar o discurso) (BOUYER, 
2009). 
Neste cenário de lutas constantes cria-se um regime, ou ordem, que seleciona 
“quais discursos” são ou não válidos ou interessantes, há procedimentos de controle 
internos e externos nesta seleção. Os procedimentos internos são exercidos do discurso 
sobre si mesmo a título de ordenação, classificação. Visam o controle da aparição do 
discurso fixando regras de surgimento e significação (por meio da disciplina), e de sua 
circulação ou funcionamento, qualificando os sujeitos que falam e não permitindo sua 
permutabilidade, excluindo todo conteúdo inassimilável como heresia. Os 
procedimentos externos de controle do discurso, também falados como procedimentos 
de exclusão, orientam aquilo que entendemos como regime de verdade (VEIGA-NETO, 
2007). Então como se dá e como o discurso pode ser controlado? 
 
DISCURSOS E OUTROS DIZERES 
 
Foucault (1986), no estudo “Arqueologia do saber” define discurso como o 
conjunto de enunciados que provém de um mesmo sistema de formação; assim se 
poderia falar de discurso clínico, discurso econômico, discurso da história natural, 
discurso psiquiátrico (e por que não um discurso midiático). Daí decorre em Foucault a 
noção de dispositivo e, finalmente de prática que enlaça a análise do discursivo com o 
não discursivo, ele utiliza a noção de linguagem para definir o que entende por discurso, 
por práticas discursivas. 
Diferente de uma ação concreta e individual de pronunciar este ou aquele 
discurso, a prática discursiva constitui-se como todo conjunto de enunciados que 
formariam o fundamento mesmo das ações. Isso significa que nossas práticas 
discursivas formam, sistematicamente, o mundo de que falam, nossa maneira de 
compreendê-lo, de significá-lo (VEIGA-NETO, 2007) 
O discurso excede a menção a “coisas”, há mais além do que palavras ou frases, 
não se pode apreender um acontecimento de forma completamente neutra. Para 
Foucault (1986) analisar o discurso seria compreender as relações históricas, de práticas 
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visíveis que estão presentes nos discursos, será compreender as falas como práticas 
sociais inexoravelmente vinculadas às relações de poder. 
Foucault (2005) define que existiriam diversos mecanismos de controle externo 
do discurso. Entre eles estariam a restrição da enunciação ou interdição, que pode ser 
definida em linhas gerais como: “não se tem o direito de dizer tudo (...) que qualquer 
um, enfim, não pode falar de qualquer coisa” (FOUCAULT, p. 9, 2005). Este 
mecanismo estaria respaldado em três principais modalidades: o privilégio de quem 
fala, o tabu do objeto e o ritual da circunstância. Outro mecanismo seria a rejeição do 
discurso, na qual se utiliza um determinado aparato do saber para apontar a inadequação 
daquela fala (Foucault utiliza como exemplo a loucura). 
Finalmente a vontade da verdade, um procedimento de exclusão, arbitrário, 
ancorado institucionalmente e eminentemente histórico. Ela “administra” nossa vontade 
de saber apoiada em toda estrutura de livros, escolas, laboratórios, universidades, 
orientando formas de valorização, ou não, formas de distribuição e atribuição exercendo 
coerção sobre os demais discursos. 
Neste prisma, não se deve simplesmente aceitar mais este discurso, o de 
Foucault, sem questioná-lo. Oliveira (2011), ao analisar o uso acadêmico do “Vigiar e 
punir” de Foucault no Brasil, destaca a incongruência em utilizar este referencial 
indistintamente e amplamente diante da complexa realidade brasileira, segundo ele, a 
despeito do cenário Francês e Inglês (à época dos escritos), em que houveram a 
generalização dos dispositivos da escola, hospital,
fábrica e prisão, este fenômeno nunca 
foi observado em nosso meio. Para este autor a sociedade brasileira é antes de tudo 
indisciplinada, argumento defendido diante dos altíssimos índices de violência que 
presenciamos. Portanto, se estas instituições não atingem sua plenitude em nosso meio 
não seria possível pensarmos que a mídia ocupa grande parte deste lugar? 
Alguns discursos funcionariam regendo os demais, funcionando como verdade, 
com regras de enunciação, técnicas de obtenção, definição de um estatuto próprio de 
quem gera e define a verdade. Portanto, poder e verdade (saber-poder) fundem-se em 
uma relação difusa e circular em que o poder produz e sustenta a verdade, que por sua 
vez produz os efeitos do poder. Assim a verdade pode ser conceituada discursivamente, 
nas palavras de Foucault: “Entendendo, por verdade, [...] o conjunto das regras segundo 
as quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribui aos verdadeiros efeitos 
específicos de poder” (FOUCAULT, 1979, p. 13). Ele diz também que há uma luta em 
torno do estatuto da verdade. 
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43 
 
A partir deste “regime da verdade-poder” seria possível compreender as 
maneiras de constituição da própria verdade incitada pela política e economia, difundida 
por um imenso conjunto de instituições e aparelhamentos (mídia como elemento central 
na atualidade), objeto de confrontos sociais, e eminentemente centralizada pelo discurso 
científico. Essa “verdade” estará presente na fundação do sujeito. 
Observam-se três dimensões autônomas, mas que se implicam constantemente 
na constituição do indivíduo: saber, poder e si. Saber é determinado pelo visível e o 
enunciável. O poder é determinado por meio das relações de forças. O si é determinado 
pelos processos de subjetivação. Assim, não existem sujeitos, mas processos de 
subjetivação. 
A subjetividade anuncia relações de poder-saber, que modelam, alteram, que em 
suma, dobram e desdobram o indivíduo, ao passo em que irrompem com a concepção 
intimista de subjetividade. Portanto, para Foucault, inexiste subjetividade, o que existem 
são processos de subjetivação que seriam expressões da história de nossa época 
demarcadas em nós mesmos, o que chamamos de personalidade. A própria noção de 
que somos únicos e nos diferenciamos de todo restante da população do mundo já seria 
em si um reflexo de nosso momento atual: 
Nós somos atravessados por toda uma complexa teia de aspectos 
desejantes, políticos, econômicos, científicos, tecnológicos, familiares, 
culturais, afetivos, televisivos... Entretanto, cada um de nós tem uma 
história de vida que é singular, mas que não é interior (SOUZA; 
MACHADO & BIANCO, 2008, p. 21). 
 
Mas como e de onde provêm estas verdades? Voltando o olhar para o cotidiano 
observamos um interessante aspecto do nosso cenário: não nos incluímos no rol dos 
países classicamente leitores de material impresso. Ao mesmo tempo somos 
destacadamente consumidores de mídia televisiva e virtual, um dos países que mais 
consome internet no mundo. Em outras palavras, a principal forma de se manter 
‘informado’ na atualidade provém da mídia, ela dita nossas verdades. 
Concluindo, é verificado que há três concepções fundamentais com relação ao 
poder em Foucault: a primeira é que o poder tem como característica ser negativo e 
positivo, desta maneira forma o indivíduo. A segunda é que o poder é um exercício e 
não deve ser possuído. A terceira, o poder transpõe a dicotomia dominante e dominado. 
Foucault irá instituir uma analítica de poder, e não uma teoria, pois não busca 
fixar definições a procura de verdades, mas acompanhar as metamorfoses das relações 
de poder. O poder não é ele que se exerce, portanto não há uma essência, nem 
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detentores do poder-saber, ele se manifesta de forma difusa em uma intricada relação de 
forças. Sendo assim, o poder cria relações de força, jogos, regras e dispositivos que se 
revelam nas práticas sociais. Em resumo, para Foucault “o poder não existe”, o que 
existe são relações e práticas sociais onde o poder é exercido e nos discursos se torna 
visível em seus jogos e manobras (SOUZA; MACHADO; BIANCO & SOUZA 2007). 
 
PODER E SEUS DISPOSITIVOS 
 
Para discutirmos os mecanismos que instituem o poder como verdade, ou seja 
seus dispositivos, devemos compreendê-lo em ação, seja nos discursos que o produzem, 
seja nos movimentos a que somos vitimados. Não se trata de descrever o poder em si, 
mas de buscar encontrá-lo na intensidade e constância de determinadas relações 
(FERREIRINHA & RAITZ, 2010). 
Somos compelidos a produzir “verdades” pelo poder que a exige e que dela 
necessita para funcionar. Estaríamos condicionados a dizer ou encontrar as “verdades” 
do poder, sendo este caracterizado como uma ação sobre ações (FOUCAULT, 1999). 
Estas verdades são, segundo Foucault, reguladas pela disciplina, compreendida aqui 
como uma maneira de punir, como um micro modelo de um tribunal. É por esta 
disciplina que observamos as relações de poder operando sobre os corpos, tornando-os 
dóceis e úteis, estejam produzindo uma tecnologia sobre a vida que agrupa os efeitos do 
convívio em coletividade (FOUCAULT, 1999). 
Objetivando compreender estas dinâmicas deveremos procurar possíveis 
homogeneidades produzidas no fundo de determinada episteme. 
Foucault usa a palavra episteme para designar - o conjunto básico de 
regras que governam a produção de discursos numa determinada 
época, em outras palavras, episteme designa um conjunto de 
condições de princípios, de enunciados e regras que regem sua 
distribuição, que funcionam como condições de possibilidade para que 
algo seja pensado numa determinada época. Uma episteme funciona 
informando as práticas (discursivas e não-discursivas) e dando sentido 
a elas; ao mesmo tempo, a episteme funciona também em decorrência 
de tais práticas. (VEIGA-NETO, 2007, p. 115/116). 
 
Estas condições de possibilidade orientam as manobras e jogos de poder, 
atuando na subjetivação, na constituição mesma dos sujeitos, assim compreende-las em 
sua multiplicidade de dimensões e representações é estruturante para a compreensão do 
sujeito e do contexto social. Estes corpos “conformados e docilizados”, forjados em 
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meio às ações do poder, são estabelecidos na e pela disciplinarização que bloqueia o 
poder em ação naquele sujeito. 
Para compreendermos os sujeitos devemos atentar que cada sociedade em cada 
tempo tem seu regime de verdade, seus discursos que se fazem funcionar como 
verdadeiros e norteiam as relações. As formas através das quais cada um é sancionado, 
as técnicas e jogos utilizados na aquisição das “verdades”, o status daquele que é 
autorizado a “dizer o que é verdadeiro” nos possibilita uma aproximação compreensiva 
dos funcionamentos destas relações (FERREIRINHA & RAITZ, 2010). 
Considerando que a linguagem se apresenta como fortemente ligada a sociedade, 
Foucault (1999), compreende que estes discursos já circulam há muito tempo, e 
analisando-os seria possível visualizar como as conexões estabelecidas entre as palavras 
e as coisas, são tênues, reflexos de regras inerentes às práticas discursivas. As práticas 
que induzem a internalização inquestionável destas verdades, chamadas de tecnologias 
do eu, são oriundas, portanto de tecnologias do poder que produzem as subjetividades. 
A analítica genealógica Foucaultiana possibilita compreender estas dinâmicas nos 
afastando de uma visão reducionista da sociedade. 
Buscando nos (re)aproximarmos da ideia de “genealogia” Foucaultiana, 
partimos da noção de dispositivo, e de como este é operacionalizado nas relações de 
dominação e subordinação da sociedade, especificamente naquelas ligadas a mídia na 
comunicação da cultura de massas. Centramo-nos em três
características fundamentais 
deste fenômeno: atender a elementos históricos; apresentar-se como uma conceituação 
multilinear e dinâmica; ter vinculação a outros dispositivos contemporâneos a ele, em 
especial aqueles ligados as diversas ideologias e a ‘necessidade’ de mantê-las. Não é 
precipitado afirmar que, mesmo a um olhar superficial, nosso objeto de discussão 
atende facilmente aos três requisitos postos. 
Em uma sociedade de suposto controle não caberia buscar na religião, política 
ou escola o germe destas orientações, o poder é difuso existindo múltiplos dispositivos 
de controle na sociedade em que vivemos. O fato de não identificarmos diretamente a 
“fonte” destes discursos, pode significar que elas já tenham sido tão fortemente 
incorporadas ao senso comum que não causa mais estranhamento. Assim, para além da 
origem do discurso destacamos aqui sua propagação, seu alcance ilimitado e seu 
potencial como mais um elemento de dominação. 
 
CONSIDERAÇÕES FINAIS 
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Não chegamos, e talvez nunca cheguemos, a conclusões definitivas (em assunto 
algum), entretanto, caso o texto desperte inquietação ao leitor certamente seu objetivo 
terá sido alcançado. 
A guisa de considerações cabe destacar que a teoria Foucaultiana vista até aqui 
nos orienta a pensarmos que as práticas discursivas ocorrem em um contexto social e, 
portanto, não estrito ou determinado a esta ou aquela relação, trata-se de uma complexa 
teia como esquemas e jogos de poder. Para se tornar sujeito a pessoa se ‘sujeita’, e esta 
sujeição se dá nos processos de subjetivação através de verdades ancoradas em saberes 
que respondem ao poder, que se ajustam para objetivos maiores de controlar corpos e 
vivências, criando o mais permanentemente possível disposições sociais. 
Reforçamos assim, a leitura de que pode haver a utilização da posição 
privilegiada do discurso midiático como um dispositivo. Esta possibilidade se apresenta 
quando atentamos a conceituação multilinear das posições defendidas amplamente pelos 
veículos de comunicação, em especial nos desdobramentos e alcance de toda uma 
imbricada trama ideológica, observamos sua inter-relação a elementos históricos e suas 
vinculações a outros dispositivos. Destacamos ainda que, especialmente no caso 
brasileiro, poucos ‘sujeitos’ detêm o controle da mídia (destaca-se também uma igreja 
no caso televisivo). 
O que temos como resultado é uma nova idade das desigualdades caracterizada 
por uma massa de ‘incluídos’ em um universo informacional abertamente manipulado. 
Práticas discriminatórias são produzidas e reproduzidas em velocidade inimaginável e 
reforçadas a exaustão. Uma fábrica de valores, de uma nova ordem moral, funciona a 
todo vapor reforçando, sob o véu obscuro do ‘politicamente correto’, a diminuição da 
ação social do Estado sob o pretexto de livrar a população da corrupção (ainda que não 
se esclareça como estes elementos estão associados). O discurso neoliberal se aproveita 
do clássico estado de mal-estar brasileiro solapando direitos adquiridos e fortalecendo 
as elites, que em nosso país ainda estão subordinadas a uma ‘coroa’ (um bom exemplo 
de pós-colonialismo invertido). 
Ao ‘mitólogo’ só resta a existência cínica diante de tais constatações. Creio, 
porém que o cinismo e mesmo o sarcasmo não precisam, nem devem, ser vividos em 
silêncio. Se não for possível romper as relações de subordinação, discriminação e 
subalternidade ao menos as apontemos e multipliquemos assim o número de inquietos, 
se não é uma solução ao menos sirva de lenitivo. 
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 
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poder saber psiquiátrico. Memorandum, 16, 64-76, 2009. Acesso em13 de Março de 
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2010. Acesso em13 de Março de 2017, disponível 
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FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. 
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de Abrilde 2017, disponível em: 
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SOUZA, E. M. DE, MACHADO, L. D. E BIANCO, M. DE F. O homem e o pós-
estruturalismo foucaultiano: implicações nos estudos organizacionais.Organizações & 
Sociedade. Salvador, v. 15, n. 47, 71-86,dez, 2008. Acesso em02 de Abrilde 2017, 
disponível em:http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1984-92 
VEIGA-NETO, A. Foucault e a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. 
 
 
AUTOR 
*José Orlando Carneiro Campello Rabelo é Docente do Centro Universitário Tabosa de 
Almeida – ASCES UNITA. Doutor em Psicologia Clínica – UNICAP; Mestre em 
Psicologia Social – UFPE; Militante dos Direitos Humanos, psicólogo, professor e 
pesquisador. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a16/bouyer01.pdf
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1984-92
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Dossiê 
 
TODAS ERAS FORAM DA PÓS-VERDADE: um 
passeio pelo doublethink nosso de cada dia 
Arthur Aroha Kaminski da Silva* 
 
 
Resumo: Este artigo visa se contrapor à algumas afirmações que surgiram no início dos 
anos 2000, mas que se proliferaram em meios midiáticos quando do anúncio do termo 
post-truth como palavra do ano de 2016 pelo grupo Oxford dictionaries. Tais 
afirmações dão conta de que viveríamos, hoje, no século XXI, a “era da pós-verdade”. 
A proposta de contraposição a estas alegações se dá, aqui, pelo enfileiramento de alguns 
exemplos contidos em narrativas ficcionais que demonstrarão que a prática das políticas 
da pós-verdade preexistem, em muito, o século XXI. A exposição se baseará no 
cruzamento de informações e conceitos contidos em obras como 1984 (de George 
Orwell), Matrix (das irmãs Wachowski), e Contos Amazônicos (de Inglês de Sousa), 
com as proposições teóricas sobre a relação entre verdade, ficção e política como 
elaboradas por autores como Pierre Bourdieu, Jacques Rancière, Juan José Saer, 
Umberto Eco, entre outros. 
Palavras-chave: Pós-verdade, doublethink, ficção, realidade. 
 
1 
INTRODUÇÃO: da ideia de pós-verdade 
 
Antes de mais nada é preciso que eu admita que o passeio a que invito você hoje, 
leitor, tem um objetivo. É uma proposta de contraposição à afirmações que se 
proliferaram em meios midiáticos na passagem do ano de 2016 para 2017, no sentido de 
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alegar que vivemos, hoje, a “era da pós verdade”.[1] Estes textos retomam a abordagem 
da questão como proposta por Ralph Keyes, em seu livro The post-truth era, publicado 
em 2004. E são impulsionados pela declaração do Oxford dictionary de que o 
termo post-truth foi eleito a palavra do ano de 2016.[2] E pelos contextos doBrexit, 
(como foi apelidada a saída do Reino Unido da União Europeia), e da eleição de Donald 
Trump para a presidência dos Estados Unidos da América. Eventos ocorridos no mesmo 
ano e que se mostraram ricas fontes de exemplos da política cultural que hoje
chamamos políticas da pós-verdade. 
A pós-verdade, como nos explica o dicionário Oxford é um adjetivo que “se 
relaciona ou denota circunstâncias em que fatos objetivos são menos influentes em 
moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais”.[3] Ele não se 
refere necessariamente à falsificação da verdade (embora possa também passar por 
isso), mas mais especificamente à situações em que a “verdade” ou o “fato” é tido como 
pouco relevante. Ou seja, algo a que todos estamos habituados, certo? Vemos (e 
fazemos) isso diariamente, tanto no plano político quanto no pessoal. É uma prática 
humana atemporal. Daí a minha contraposição à ideia de que vivemos na “era da pós 
verdade”, como propõe os textos que citei no primeiro parágrafo. 
Por contraposição, caro leitor, não pretendo dizer que discordo do fato de 
vivermos numa era de pós-verdade. Mas discordo, sim, de que este momento da história 
humana seja o ápice desta política cultural. Minha contraposição se baseará na defesa de 
que, em fato, esta é uma política cultural que existiu e se manteve em uso constante e 
corrente em toda a história humana. Que ela é parte da nossa própria capacidade de 
construir conhecimento. Em suma que, para bem ou para mal, todas as eras foram da 
pós-verdade. E que este “novo termo” - visto que data do final do século XX -,[4] é 
apenas uma nova roupagem para uma questão que sempre foi importante para a 
Filosofia, a História, a Literatura, e diversas outras áreas enquanto disciplinas. 
Para defender este posicionamento é que o convido a me acompanhar neste 
passeio. Que se trata de uma caminhada em forma reflexiva e textual por algumas 
narrativas ficcionais que tocam, de alguma maneira, na questão da política da pós-
verdade. Admito também que a seleção das narrativas ficcionais que aqui abordaremos 
se deu de maneira arbitrária – leia-se, elas estão aqui presentes porque eu quis assim -, e 
poderiam ter sido facilmente outras a servirem de exemplos para esta discussão. Desta 
forma, citarei aqui algumas obras literárias que me apetecem, levando você leitor a 
comigo margear os rios amazônicos e conviver com alguns dos medos da população 
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50 
 
ribeirinha paraense do fim do século XIX, através do conto Voluntário, de Inglês de 
Sousa. A se rebelar e sofrer junto com Winston ao descobrir a extensão e poder da 
prática do doublethink no romance distópico 1984, de George Orwell. E a refletir sobre 
a decisão de Cypher, que no filmeMatrix das irmãs Wachowski levanta a questão: é 
preferível encarar a dureza da realidade, ou viver confortavelmente nas ilusões da 
caverna do mito platônico, como o personagem conscientemente escolheu? Ademais, 
para nos acompanhar em nossas trajetórias ficcionais ao longo deste artigo, irei propor o 
cruzamento destas narrativas com questões teóricas sobre a relação entre realidade, 
ficção e política conforme propostas por autores como Pierre Bourdieu, Jacques 
Rancière, Juan José Saer, Umberto Eco, entre outros. Agora, feitos estes 
esclarecimentos e introdução, comecemos nossa caminhada. 
 
2 
DO MITO DAS IDENTIDADES NACIONAIS, E DAS UTILIDADES E EFEITOS 
DESTAS FICÇÕES 
 
O primeiro texto que eu gostaria de abordar é o conto Voluntário, texto presente 
no livro Contos Amazônicos, de Inglês de Sousa.[5] Este conto é ambientado na 
província do Grão-Pará, Amazônia brasileira, e ronda a questão do alistamento militar 
forçado praticado pelo Império Brasileiro à sua população durante o período dos 
conflitos da Questão Platina, mais especificamente na Guerra do Paraguai. O texto 
inicialmente foca na descrição da rotina de uma tapuia,[6] dona Rosa, uma viúva que 
vive com seu único filho vivo, Pedro, em uma casa muito simples na beira do rio 
Amazonas. Eles vivem como a grande maioria dos tapuios “colonizados”: em condição 
de pobreza, e sobrevivem à custa do trabalho do filho, que é pescador, e do próprio 
trabalho de Rosa como tecelã. Sendo estas as fontes de alimento e renda da família, que 
é descrita como feliz em sua vida bucólica e contemplativa. 
As primeiras menções ao Império vêm de maneira banal nesta parte: primeiro 
que o filho da tapuia é xará do Imperador. E depois conta-nos o narrador que dona Rosa 
dormia numa rede ornamentada com a coroa brasileira, obra de “ingênuo gosto” 
(SOUSA, 2005, p.24) da própria tapuia. É de um simbolismo muito forte a imagem da 
velha índia “dormindo ingenuamente nos braços do império”, visto o que (como 
veremos) se sucede no conto, e pela relação com a imagem produzida no fim, da índia 
cantarolando uma ode a D. Pedro II, anestesiada já após sua tragédia pessoal.[7] Pois 
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51 
 
após a pacata introdução nos é apresentado o contexto da guerra (SOUSA, 2005, p. 26-
27), e são descritos os efeitos iniciais da deflagração do conflito na sociedade 
amazonense: a empolgação das classes mais favorecidas, e o medo do “povo miúdo”. 
É-nos narrada brevemente, então, a campanha nacional operada pela monarquia 
brasileira em busca de voluntários para lutar na Guerra do Paraguai. E a ironia do uso 
do termo “voluntário” que intitula o conto, e que o Império dizia buscar, logo se faz 
muito visível. Já que, em fato, o que ocorria era um alistamento forçado, ou mesmo uma 
campanha de rapto de jovens de famílias pobres, que eram enviados para o Rio de 
Janeiro e posteriormente para o front paraguaio à força. Grande parte destes jovens 
morria ainda no caminho, pela má alimentação e doenças, e outros morriam no front, de 
forma que muito poucos acabavam por voltar. Daí se pode entender o terrível medo da 
população pobre amazonense em relação à imagem criada pela imprensa e pelo boca a 
boca da época para a figura de Solano López, governante paraguaio, que faziam com 
que os tapuios amazonenses, segundo o narrador do conto, imaginassem o presidente 
como um “monstro devorador de carne humana” (SOUSA, 2005, p. 26). 
Na sequência da narrativa, Pedro, filho de dona Rosa, acaba sendo 
“voluntariado” para a guerra. E é aí que o narrador do conto se apresenta ao leitor, se 
identificando como o advogado ao qual a tapuia Rosa implorou ajuda para libertar o 
filho da prisão a que fora submetido, enquanto aguardava o transporte dos ditos 
“voluntários” até o Rio de Janeiro (SOUSA, 2005, p.32). É pela voz dele que ouvimos 
a narrativa dos horrores do recrutamento e do que proponho como relacionável com a 
política da pós-verdade: segundo ele, a ignorância dos “rústicos patrícios” (elite 
dominante, de origem portuguesa) era agravada pelas “fábulas ridículas editadas pela 
imprensa oficiosa, dando ao nosso governo o papel de libertador do Paraguai (embora 
contra a vontade do libertando o libertasse a tiro)” (SOUSA, 2005, p. 26-27). E faziam 
com que esta elite extravasasse seus preconceitos e privilégio social e operasse o 
alistamento forçado à população tapuia de forma violenta. 
Estas “fábulas ridículas” a que o narrador do Voluntário se refere foram os 
discursos que o Império brasileiro utilizava para justificar sua política intervencionista. 
Como todo praticante de políticas imperialistas, o governo brasileiro justificava suas 
ações como necessárias para o bem não só da própria população, mas como uma ação 
necessária para o invadido. Creio que enquanto testemunhas de diversos conflitos 
militares ao longo dos séculos XX e XXI, todos sabemos como isso funciona.[8] No 
contexto específico da Questão Platina (do qual a guerra do Paraguai foi só um dos 
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conflitos), o que ocorreu foi um confronto entre três nações de ambições imperialistas 
(Brasil – Argentina – Paraguai) que, por serem vizinhas, viram seus projetos 
expansionistas se chocarem.[9] 
Agora pergunto a você, leitor: é possível imaginar os tipos de discursos oficiais
que foram produzidos no período, não? Quantas “fábulas” - como diz o narrador 
do Voluntário -, foram elaboradas para justificar os conflitos e para fortalecer (ou 
mesmo criar) um sentimento de identidade nacional nestas nações recém-fundadas. Não 
é à toa que em seu livro A identidade cultural na pós-modernidade, Stuart Hall tenha 
escolhido nomear um capítulo como As culturas nacionais como comunidades 
imaginadas. Nele, Hall explica que uma “(...) nação não é apenas uma entidade política 
mas algo que produz sentidos – um sistema de representação cultural”. Um sistema do 
qual as pessoas fazem parte não só como cidadãos, mas pela participação na ideia de 
nação. Concluindo que “uma nação é uma comunidade simbólica e é isso que explica 
seu poder para gerar um sentimento de identidade e lealdade” (HALL, 2011, p. 49) A 
ideia de nação, então, é um discurso que se constitui por uma narrativa que vincula a 
percepção de identidade do indivíduo às histórias, literatura e cultura popular. A própria 
ideia de nação, se vê, perpassa uma política cultural baseada no apelo à emoção, a 
crenças religiosas, e a preconceitos em detrimento da objetividade factual. Bem como a 
necessidade da guerra sempre perpassa esta prática. A política da pós verdade 
definitivamente não é um fenômeno característico do século XXI. 
No caso do conto Voluntário acho interessante atentar, entretanto, não à 
construção do discurso. Mas sim à “utilidade” que muitos encontram no discurso 
construído. Relata o narrador que, durante o período de recrutamento forçado, um 
fenômeno social ocorreu: 
Foi então que se mostrou em toda a sua hediondez a tirania dos 
mandões de aldeia. Os graúdos não perderam a ocasião de satisfazer 
ódios e caprichos, oprimindo os adversários políticos que não sabiam 
procurar, a serviço de abastados e poderosos fazendeiros, proteção e 
amparo contra o recrutamento, à custa do sacrifício da própria 
liberdade e da honra das mulheres, filhas e das irmãs (SOUSA, 2005, 
p.27). 
 
Ou seja, “comprar” o discurso nacionalista, a empolgação da guerra e da 
necessidade de intervenção, em fato servia aos “graúdos” (mas não só a eles) como a 
justificativa que necessitavam para pôr em prática ações que, comumente, não lhes 
seriam possíveis por questões legais: se você cometesse um assassinato, você seria, em 
teoria, preso. Mas se você, utilizando influência política ou monetária (como se as duas 
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coisas pudessem ser dissociadas), ou mesmo uma denúncia ou o que quer que seja, 
levasse um rival a ser recrutado (e muito provavelmente morto na guerra), não haveria 
crime. Situações como a da campanha de recrutamento citada no Voluntário permitiam 
uma limpeza étnica autorizada pelo Estado. Algo que se ilustra em outra fala do 
narrador: 
Corri à praia, onde era imensa a aglomeração de povo à espera do 
vapor que vinha entrando a boca do largo Tapajos, em busca dos 
futuros defensores da pátria. Eram vinte rapazes tapuios os que a 
autoridade obrigava representar a comédia do voluntariado (SOUSA, 
2005, p. 33). 
 
Claro, a longo prazo situações como esta levaram a levantes armados por parte 
das incontáveis populações e povos generalizados pelos portugueses sob o termo de 
“tapuios”.[10] Mas como explicita o narrador – e neste caso acho possível considerar, 
para além do caráter ficcional, o Voluntário como um relato fiável historicamente, já 
que o autor imprime em seus textos um período que vivenciou[11] –, entre os tapuios, 
inicialmente, o efeito foi a criação de um temor gigantesco em relação a um nome: 
Solano López, o bode expiatório das elites e do império para todas estas práticas 
opressoras e de exploração. E aqui creio que encontramos um bom ponto para erigir 
uma ponte entre as margens do Amazonas e o distópico mundo de 1984, de Orwell. 
 
3 
DO PODER SOBRE A VERDADE, E DA SATISFAÇÃO PELA OPRESSÃO 
 
1984, livro de George Orwell publicado em 1949, é ambientado numa sociedade 
distópica governada por um regime autoritário que faz uso de um complexo sistema de 
política da pós-verdade e controle midiático. A construção do ódio pelo outro é o atalho 
que sugiro tomarmos entre os dois textos: assim como em Voluntário o narrador cita 
Solano López como a entidade que o discurso imperial brasileiro e o imaginário popular 
construíram para expiar as mazelas de sua sociedade – e digo entidade porque o que 
esse imaginário construiu é obviamente outro ser que não o mesmo que o Solano López 
“real”. A distopia de Orwell também tinha seus bodes expiatórios, ilustrados por um 
perseguido político taxado de traidor (Emmanuel Goldstein), e também pelas nações 
vizinhas inimigas que seriam culpadas pela “necessidade da guerra”. E meu convite 
agora, leitor, é para que acompanhemos Winston, o protagonista desta obra de Orwell, 
em suas descobertas sobre uma das técnicas utilizadas pelo governo de sua nação para 
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manter o controle sobre sua população. Método que Orwell chamou doublethink. E que, 
como veremos, é menos uma imposição, e mais um incentivo à capacidade que nós 
enquanto humanos temos de defender/acreditar em duas coisas opostas ao mesmo 
tempo. E à possibilidade de conscientemente optarmos por aprofundar esta capacidade 
de modo tão intenso que a contradição se torna inconsciente. Algo que, creio, seja 
relacionável e ilustre bem a política cultural que discutimos neste artigo. 
O 1984 é protagonizado por Winston, um funcionário qualquer do Ministério da 
Verdade, cujo trabalho era editar dados e notícias passadas e presente em função do 
interesse do chamado Partido (grupo dominante). Winston, conforme vamos percebendo 
ao longo da leitura, parece ser um pouco mais consciente e/ou problematizador do que a 
maioria de seus colegas em relação à condição em que vivem. E ele faz algumas 
análises interessantes sobre como as pessoas lidam com a realidade em que se inserem, 
enquanto nos explica a conduta do doublethink. Prática que é por ele definida como: 
É saber e não saber, é ser consciente da completa verdade enquanto 
conta mentiras cuidadosamente construídas, é manter 
simultaneamente duas opiniões que se cancelam, sabendo-as 
contraditórias e efetivamente acreditando em ambas, é usar a lógica 
contra a lógica, é repudiar a moralidade ao mesmo tempo em que 
clama por ela, (...) é esquecer qualquer fato que tenha se tornado 
inconveniente e, quando for necessário, trazê-lo de volta à mente pelo 
tempo necessário, para em seguida esquecê-lo outra vez. É, acima de 
tudo, aplicar o mesmo processo ao próprio processo – esta é a 
suprema sutileza: conscientemente induzir a inconsciência e depois, 
mais uma vez, tornar-se inconsciente do ato de hipnose que você 
acabara de realizar (ORWELL, 1961, p. 35).[12] 
 
Claro, em princípio Orwell se referia a seu universo distópico. Mas agora 
pergunto a você leitor: já praticaste ou conhece alguém que pratica ou praticou algo 
similar ao doublethink? Você, como eu, vê similaridades entre o termo cunhado por 
Orwell e o termo eleito pelo Orxford dictionaries o mais popular de 2016? Entre 
o doublethink e a prática da política da pós-verdade? Sei que a pós-verdade não 
necessariamente se refere à falsificação direta de fatos históricos, algo que Winston 
ajudava a fazer, mas o próprio narrador de 1984 nos relata que Winston não era o único 
que tinha consciência do que ocorria. Se parte dos membros do partido “comprava” 
inconscientemente as verdades fabricadas, outra boa parcela tinha plena consciência da 
falsidade de determinadas notícias e discursos. Estes, porém, forçavam a própria 
inconsciência: se auto infligiam um processo de naturalização e aceitação destas 
verdades fabricadas. Conscientemente relegavam os fatos ao segundo plano, se 
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deixando moldar
pelo discurso baseado no apelo à emoção. Ou seja, se tornavam 
praticantes da política da pós-verdade. 
Um exemplo pontual é o personagem chamado Syme, empregado do mesmo 
ministério em que Winston trabalhava. Ele é descrito como um intelectual, mais 
especificamente um filólogo, parte de um grupo responsável pela reelaboração do 
idioma falado na nação distópica criada por Orwell. E segundo o narrador, era um 
exemplo complexo da potencialidade do doublethink: era visível que Syme era 
plenamente consciente de todas as atrocidades cometidas pelo regime que apoiava, mas, 
adepto e praticante do doublethink, naturalizava o processo do qual fazia parte. 
Convencia a si mesmo de que os fatos eram pouco relevantes frente ao potencial de 
coisas que aquele contexto permitia a ele: financiamento às suas pesquisas e 
perseguição aos proles (ORWELL, 1961, p. 48-63). 
Os Proles,[13] como também descobrimos através da convivência com Winston, 
consistiam em todos aqueles que não eram membros oficiais do Partido. Eram as classes 
sociais menos abastadas, que viviam em situação de extrema pobreza, e que eram vistas 
sob um filtro de preconceito pelos membros do Partido. Syme, por exemplo, chega a se 
referir aos proles como “não humanos” (ORWELL, 1961, p. 52). E aqui, leitor, 
proponho que ampliemos nossa ponte construindo no sentido inverso. Para voltarmos 
rapidamente ao conto Voluntário, e relembrarmos o quanto a política da pós-verdade é 
útil para grupos extravasarem seus preconceitos. Poderíamos falar novamente também 
da atualíssima eleição de Donald Trump, evento bastante real carregado de possíveis 
exemplos relacionáveis. Mas tais reflexões deixarei que faças sem minha companhia, 
visto que meu foco neste artigo se manterá em obras de cunho ficcional. Ainda que, 
como bem saibamos, por vezes a ficção e a realidade se entrelacem em nós que não se 
permitem desamarrar. Laço este que pode nos servir de convite, caro leitor, a 
passearmos também por um dos bosques ficcionais de Umberto Eco, em seu livro Seis 
passeios pelos bosques da ficção. 
 
4 
DA COMPREENSÃO E CONTROLE DA REALIDADE ATRAVÉS DA FICÇÃO 
 
Proponho esta incursão porque, no capítulo Protocolos ficcionais, Eco traz 
algumas reflexões interessantes sobre o quanto as fronteiras entre realidade/veracidade e 
ficcionalidade/mentira são liquefeitas. Propondo, por exemplo, o seguinte 
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questionamento: “se a atividade narrativa está tão intimamente ligada a nossa vida 
cotidiana, será que não interpretaremos a vida como ficção e, ao interpretar a realidade, 
não lhe acrescentamos elementos ficcionais?” (ECO, 1994, p. 137). Uma forte 
indagação que proponho encararmos sob a luz do termo que, conforme explica o fictício 
livro proibido de Goldstein (parte do imaginário universo de 1984), é “o sistema de 
pensamento que engloba todo o resto, e que é conhecido em 
Newspeak[14] como doublethink” (ORWELL, 1961, p. 212). Sistema este que “é 
aprendido pela maioria dos membros do Partido, e certamente por todos que são 
inteligentes, bem como ortodoxos. Em Oldspeak é chamado, francamente, ‘controle de 
realidade’” (ORWELL, 1961, p. 214). Voltamos, então, à prática do doublethink como 
proposta por Orwell, que a define (através do virtual livro de Goldstein) da seguinte 
maneira: 
Doublethink significa o poder de manter duas crenças contraditórias 
na mente simultaneamente, e aceitar ambas. O intelectual do Partido 
sabe em que direção suas memórias devem ser alteradas; Ele sabe, 
portanto, que está praticando truques com a realidade; Mas pelo 
exercício do doublethink ele também se convence de que a realidade 
não é violada. O processo tem que ser consciente, ou não seria 
realizado com suficiente precisão, mas também tem de ser 
inconsciente, ou traria consigo um sentimento de falsidade e, 
consequentemente, de culpa. (...) (Doublethink é) contar mentiras 
deliberadas enquanto genuinamente acredita-se nelas, é esquecer 
qualquer fato que tenha se tornado inconveniente, e então, quando for 
necessário novamente, trazê-lo de volta do esquecimento pelo tempo 
necessário. É negar a existência da realidade objetiva e, durante todo o 
tempo, levar em conta a realidade que se nega – tudo isto é 
indispensavelmente necessário. Mesmo o uso da 
palavra doublethinktorna necessário o exercício do doublethink. Pois, 
ao usar a palavra, o praticante admite que alguém está adulterando a 
realidade, mas, por um novo ato de doublethink, apaga esse 
conhecimento; E assim indefinidamente, com a mentira sempre um 
salto à frente da verdade (ORWELL, 1961, p. 214). 
 
O doublethink como imaginado por Orwell é, então, o controle em máxima 
instância de um indivíduo sobre sua própria cognição. Em oposição à ignorância ou 
falta de conhecimento, é a plena consciência da existência de todos os filtros 
interpretativos pelos quais encaramos o mundo ao nosso redor. É a seleção consciente 
de quais filtros aceitaremos e colocaremos entre nós e o mundo. E um posterior 
processo de indução do esquecimento de que tal escolha consciente foi feita. É uma 
naturalização do discurso escolhido conscientemente induzida, a ponto de que o próprio 
indivíduo se torne inconsciente de que, inicialmente, fora consciente desta escolha. E, 
talvez, cruzando a descrição deste sistema de pensamento com as palavras de Umberto 
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Eco, possamos utilizar o conceito do doublethink para compreender o comportamento 
humano no plano da realidade. Quiçá ele possa ser uma proposição útil para 
compreendermos a maneira pela qual interpretamos a realidade. O modo pelo qual, 
como sugere Eco, interpretamos a vida como ficção e, ao interpretar a realidade, a 
acrescemos de elementos ficcionais (ECO, 1994, p. 137). A fim de que a encaremos 
como nos convém e, por meio de uma auto indução, tornemo-nos inconscientes de 
nossa própria escolha. Talvez. Mas, antes que nossas mentes deslizem ainda mais fundo 
no mundo labiríntico dodoublethink, e para que não nos percamos nestes tortuosos 
corredores, deixemos que Eco nos puxe daqui para uma de suas histórias. 
No capítulo Protocolos ficcionais do já citado Seis passeios pelos bosques da 
ficção, Eco nos conta uma história que ele mesmo define como espantosa e que, mesmo 
sendo puramente ficcional, foi e é tida por muitos como factual. Neste capítulo, Eco 
relata parte de uma pesquisa temática que realizou e que posteriormente utilizou como 
base para a criação de um romance, o Cemitério de Praga (2010). Resumindo de 
maneira grosseira: Eco discorre sobre a origem do texto nomeadoProtocolos dos sábios 
do Sião, obra de origem puramente ficcional escrita e reescrita por diversos autores, que 
relata um projeto de dominação mundial encabeçado por lideranças religiosas judaicas. 
É um “documento” ficcional onde os judeus declaram abertamente ambições de 
dominação e de corrompimento e destruição das instituições e nações europeias. Ocorre 
que este texto (em incontáveis versões adulteradas por incontáveis punhos) foi utilizado 
e apresentado como relatório oficial sobre investigações de seitas religiosas a diversos 
governos europeus durante o fim do século XIX e ajudou, sugere Eco, a fomentar o 
antissemitismo na Europa (ECO, 1994, p.123-148).[15] 
A temática da falsificação de documentos e das relações entre realidade e ficção 
são temas recorrentes na obra de Eco, como bem sabemos. Mas considerei pertinente 
apontar este caso específico por considerá-lo um exemplo muito forte. Uma 
demonstração poderosa de como é uma constante histórica a política da pós-verdade: 
provavelmente na própria época muitos desses relatórios eram sabidos ficcionais. Mas a 
verdade pode ser pouco relevante quando um grupo ou sociedade procura justificar seus 
preconceitos, ou quando pretende um debate ou discurso moldado pelo apelo à emoção. 
Diz Eco que
“já que a ficção parece mais confortável que a vida, tentamos ler a vida 
como se fosse uma obra de ficção” (ECO, 1994, p.124). Ou seja, aplicamos 
um doublethinksobre as situações em que nosso senso de justiça vai de encontro a um 
preconceito, por exemplo. 
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58 
 
5 
DA ESCOLHA CONSCIENTE PELA INCONSCIÊNCIA 
 
Agora, para nos direcionarmos ao final de nosso passeio, leitor, – e peço 
desculpas se já o cansei com minhas divagações – gostaria de propor um flerte com 
outra narrativa de ficção, a fim de ruminarmos só um pouco mais esta questão da 
escolha consciente por nublar nossa própria visão da realidade com uma ficção mais 
confortável. No filme Matrix (1999), das irmãs Wachowski, há um personagem que 
toma uma decisão marcante: a de voltar para a caverna. Explico: esta franquia, segundo 
as próprias autoras, foi inspirada em obras de diversos filósofos,[16] dentre as quais a 
mais direta ligação que se pode fazer é com o Mito da caverna de Platão. No primeiro 
filme da trilogia acompanhamos Neo, o protagonista (interpretado por Keanu Reeves), 
passando pelo processo de saída da caverna. Pela descoberta da limitação da própria 
capacidade interpretativa frente à realidade. Por uma tomada de consciência de que 
vivia, como sugere Platão, num mundo de sombras (PLATÃO, 2006, p.307-344). De 
meias verdades ou de ficções. 
Mas não pretendo me estender detalhadamente sobre isso agora, leitor, pois já 
existem incontáveis produções que discorrem sobre o paralelo entre Matrix e o Mito da 
caverna, e este não é o objetivo aqui. O que me interessa é citar o personagem Cypher 
(interpretado por Joe Pantoliano), que após ter sido libertado da caverna e tido contato 
com a realidade, toma a decisão de que prefere viver na caverna. No filme, Cypher 
acaba assumindo o papel de vilão: é o traidor que quase causa a morte do protagonista. 
Mas creio ser importante olhar para o personagem sem vilanizá-lo, e refletir 
racionalmente sobre a escolha dele: é uma escolha pelo conforto, por encarar o mundo 
através de determinados filtros, por não sentir determinadas emoções tão intensamente. 
É uma escolha por saber e não saber. É ter o poder de relegar a verdade ao segundo 
plano e se tornar inconsciente do que nos cerca. É, também, a escolha por se auto 
induzir à uma inconsciência sobre a própria escolha. E a consciência desta escolha, 
assim como a escolha pela inconsciência, ficam muito claras no diálogo entre Cypher e 
o agente Smith (personagem de Hugo Weaving), durante jantar em que estão 
negociando sua volta à Matrix: 
Smith: – Temos um acordo, senhor Reagan? 
Cypher: – Sabe, eu sei que este bife não existe. Eu sei que quando o 
coloco na minha boca a Matrix está dizendo ao meu cérebro que ele é 
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suculento e delicioso. Depois de nove anos você sabe o que eu 
percebi? Ignorância é uma benção. 
Smith: – Então temos um acordo? 
Cypher: – Eu não quero lembrar de nada. Nada! Você entende? 
(...) 
Smith: – O que você quiser, senhor Reagan (MATRIX, 1999).[17] 
 
Assim, por ser exatamente neste ponto que procurei focalizar este artigo: no ato 
consciente de considerar a verdade irrelevante, de torná-la secundária frente aos nossos 
interesses ou valores pessoais. Principalmente como forma de nós, enquanto seres 
humanos, extravasarmos nossos preconceitos em relação ao outro, ou nos sentirmos 
confortáveis com nossa própria existência e decisões. E com os olhos ainda na resolução 
de Cypher, é que pergunto a você leitor: quantas vezes todos nós tomamos decisões 
similares a esta? Quantas incontáveis vezes optamos por uma ignorância seletiva, por 
um apagamento metódico do conhecimento de determinadas informações e 
conhecimentos, em nome de nosso maior conforto? Quantas vezes induzimos nossa 
própria inconsciência sobre nossas ações a fim de afastar, como sugeriu Orwell, o 
sentimento de culpa que podem gerar? Seríamos todos nós, seres humanos, utilizadores 
do sistema de pensamento a que Orwell chamou doublethink? 
 
6 
DA FANTASIA DO LUGAR DA VERDADE, OU DA INDISSOCIABILIDADE DA 
VERDADE E DA FICÇÃO 
 
A resposta para tais questões talvez esteja na maneira como lidamos com a 
relação entre verdade e ficção. E na reflexão sobre as políticas da pós-verdade que, 
reitero, definitivamente não são uma prática exclusiva do século XXI ou da 
popularização da internet. Mas sim um sistema de pensamento e comportamental 
existente há milênios. Para mim, a ideia de que o uso deste sistema se aprofundou na 
pós-modernidade se baseia numa premissa da qual discordo: a de que o jornalismo ou 
disciplinas como a História, um dia, já tiveram acesso a informações “reais”, à uma 
suposta real natureza das coisas. Numa concepção de dependência hierárquica entre 
verdade e ficção. 
Em seu texto Reflexões sobre a pesquisa histórica, a ficção e as artes (presente 
no livro História e Arte: encontros disciplinares), Rosane Kaminski nos explica, 
citando Hayden White e Michel de Certeau, que a separação entre ficção e verdade vem 
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de uma linha de pensamento construída no século XIX entre os próprios historiadores. 
Que passaram a “(...) identificar a verdade com o fato e considerar a ficção o oposto da 
verdade, portanto um obstáculo ao entendimento da realidade e não um meio de 
apreendê-la” (WHITE apud KAMINSKI, 2013, p. 68). Num processo de 
desenvolvimento, por parte da História enquanto disciplina, de práticas e convenções 
“(...) para que o discurso histórico fosse percebido como o lugar da verdade do 
passado” (CERTEAU apud KAMINSKI, 2013, p. 68). Algo similar, talvez, ao que 
fez/faz o jornalismo no sentido de produzir um discurso de lugar da verdade do 
presente. Estas são convenções que Kaminski questiona, propondo que “a ficção não é 
necessariamente incompatível com a ideia de verdade” (KAMINSKI, 2013, p.66). E 
tendo, leitor, a concordar com esta pesquisadora sobre tal questão. Bem como me 
inclino a consentir com algumas proposições que Juan José Saer faz em seu livro El 
concepto de ficción. Asserções que, se sob um primeiro olhar podem parecer fortes, 
creio que podem se somar positivamente às reflexões propostas em nosso passeio. Saer 
resume, por exemplo, o embate valorativo existente no seio das non-fictions (fidelidade 
à realidade versus ficcionalidade) da seguinte maneira: 
Podemos portanto afirmar que a verdade não é necessariamente o 
contrário da ficção, e que quando optamos pela prática da ficção não o 
fazemos com o propósito obscuro de perverter a verdade. E a 
dependência hierárquica entre verdade e ficção, segundo a qual a 
primeira possuiria uma positividade maior que a segunda, é 
certamente, no plano que nos interessa, uma mera fantasia moral 
(SAER, 2014, p.10-11).[18] 
 
Tal consideração de Saer se dá porque, embora enquanto produção literária “a 
ficção se mantenha à distância tanto dos profetas do verdadeiro como dos eufóricos do 
falso” (SAER, 2014, p.12). Ela é um tratamento específico do mundo, inseparável do 
que trata. Ficção e realidade são indissociáveis, pois uma se ancora na outra. As ficções, 
os “enunciados políticos e literários” – e aqui cito Rancière – são, afinal, construções 
intencionais que fazem parte de um “saber cultural”, são produtores de sentido que 
interferem em nossa percepção do mundo, que fazem efeito no real (RANCIÈRE, 2009, 
p. 59). Por isto Saer (falando em primeira instância do gênero biográfico, mas depois 
também de todos os gêneros que se autodenominam non-fiction),[19] também afirma 
que: 
(...) A veracidade, atributo supostamente científico, nada mais é que a 
retórica de um gênero literário, não menos convencional do que as três 
unidades da tragédia clássica, ou o desmascaramento do assassino nas 
últimas páginas do romance policial. A rejeição
escrupulosa de todo 
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elemento ficcional não é um critério de verdade. Posto que o próprio 
conceito de verdade é incerto e sua definição integra elementos 
díspares e até mesmo contraditórios, é a verdade como objetivo 
unívoco do texto e não apenas a presença de elementos ficcionais que 
merece (...) uma discussão minuciosa (SAER, 2014, p. 10). 
 
Assumindo assim um tom crítico ao que considera uma pretensão “científica” 
inalcançável por parte de obras que se propõe a contar a “verdade” sobre a vida de uma 
pessoa ou sobre eventos já ocorridos. E propondo que as non-fictions são, em fato, 
gêneros literários que não diferem necessariamente de uma obra de ficção. Uma teoria 
que se mostra interessante no contexto deste artigo, pois propõe retirar tais gêneros do 
pedestal regido por um discurso de detentor da verdade, de caráter documental, e 
aproximá-los de outros gêneros literários. Apontando que não é possível garantir a 
veracidade crua de qualquer informação, mesmo nestes gêneros tidos como “mais 
fiáveis”. De jornais a documentários, de relatos históricos e biográficos a textos 
acadêmicos, é impossível afirmar com segurança que qualquer texto é imune à 
ficcionalidade.[20] 
É importante esclarecer, entretanto, que este tom crítico de Saer se dá não em 
relação ao gênero da não ficção em si, mas sim ao discurso que propõe ele como oposto 
à ficção. O pensamento de Saer se alinha ao do já citado Jacques Rancière, que no 
livro A partilha do Sensível: estética e política aborda, entre outros tópicos, a relação 
entre a racionalidade ficcional ou “razão das ficções” – já que a ficção possui formas e 
regras de ordenamento e composição próprias –, e os modos existentes de explicação da 
realidade histórica e social, que ele nomeou “razão dos fatos”. Discussão presente 
principalmente no quarto capítulo, nomeado Se é preciso concluir que a história é 
ficção, em que Rancière cutuca uma das questões mais polêmicas da disciplina de 
História: a relação entre literatura e história, entre ficção e realidade. E procura 
questionar ou mesmo revogar a linha de divisão aristotélica entre a história do 
historiador e do poeta. Para Rancière, a “realidade” dos fatos é algo desordenado. É o 
discurso historiográfico que, fazendo uso de elementos convencionados pela 
racionalidade formal da ficção, confere uma aparência de ordem ao narrar fatos. 
Dito de outro modo – e isso é evidentemente algo que os historiadores 
não gostam muito de olhar de perto –, a nítida separação entre 
realidade e ficção representa também a impossibilidade de uma 
racionalidade da história e de sua ciência. A revolução estética 
redistribui o jogo tornando solidárias duas coisas: a indefinição das 
fronteiras entre a razão dos fatos e a razão das ficções e o novo modo 
de racionalidade da ciência histórica (RANCIÈRE, 2009, p.54). 
 
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62 
 
Ou seja, para Rancière a própria existência da História enquanto disciplina só é 
possível através da aceitação da não existência de uma separação clara do literário. Pois 
a própria escrita da história se faz pela linguagem. E sendo a linguagem uma convenção, 
ela está sempre sujeita a filtros de interpretação subjetiva e variável. Filtros estes que 
talvez escolhamos – ainda que “não recordemos” –, através de um sistema que Orwell 
escolheu nomear doublethink. Adaptando a fala de outro teórico: é bem provável que a 
definição de [verdade][21] seja dependente da maneira pela qual alguém resolve ler, e 
não da natureza daquilo que é lido (EAGLETON, 2003, p. 11). Afirmação que podemos 
utilizar para fazer uma última costura teórica, e assim encerrarmos nossos passeios 
pelos campos de construção da verdade. 
 
7 
CONSIDERAÇÕES FINAIS: sobre as pretensões à universalidade 
 
Se, como sugere a adaptação da afirmação de Eagleton, a concepção de verdade 
seja dependente da maneira pela qual o indivíduo lê ou olha para determinada 
informação, o que impele ou auxilia o indivíduo a definir de que maneira irá olhar? 
Pierre Bourdieu nos traz uma sugestão no livro O poder simbólico: “Se há uma verdade 
é que a verdade está em jogo nas lutas” por uma “(...) pretensão à universalidade, ao 
juízo absoluto, que é a própria negação da relatividade dos pontos de vista” 
(BOURDIEU, 2003, p. 293-294). Estas lutas, como nos explica o sociólogo francês, 
ocorrem dentro de todos os campos que estruturam o universo social, e também pelas 
relações entre os campos e os agentes atuantes neste universo. São embates pelo poder 
que advém do direito à enunciação de um discurso legitimado. Tido como crível, 
confiável ou “oficial” em função dos protocolos de hierarquia e legitimação que um 
determinado campo ou sociedade possuem, e pelos quais outorgam um enunciador com 
o poder simbólico de determinar o que é verdade. 
Este outorgamento de poder simbólico, entretanto, só se efetiva em autoridade 
através do reconhecimento que os agentes conferem a ele. Daí Bourdieu defender com 
tanto afinco que não se pode tratar o resultado das relações de forças do campo social 
como efeitos de uma dominação e vontade única central, pois assim: 
Ficamos impossibilitados de apreender a contribuição própria que os 
agentes (incluindo os dominados) dão, quer queiram quer não, quer 
saibam quer não, para o exercício da dominação por meio da relação 
que se estabelece entre as suas atitudes, ligadas às suas condições 
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sociais de produção, e as expectativas e interesses inscritos nas suas 
posições no seio desses campos de luta, designados de Estado, Igreja 
ou Partido. A submissão a certos fins, significações, ou interesses 
transcendentes, quer dizer, superiores e exteriores aos interesses 
individuais, raramente é efeito de uma imposição imperativa e de 
submissão consciente (BOURDIEU, 2003, p. 86). 
 
Ou seja, para Bourdieu os fins objetivos nunca são postos como tais, nem 
mesmo pelos agentes mais interessados em seus resultados. E a subordinação do 
conjunto de uma sociedade a uma mesma intenção objetiva, numa “espécie de 
orquestração sem maestro” (BOURDIEU, 2003, p. 86-87), só pode se instituir através 
de uma concordância instaurada entre os agentes daquele conjunto. Por uma assimilação 
destes de seu papel dentro daquele corpo social: o que sentem que são, o que a história 
fez deles e o que deles se espera. Em suma, pelo processo de incorporação que o 
indivíduo faz do habitus[22] a ele destinado. Apropriação esta que pode gerar, como 
sugere Bourdieu, inclusive bem estar, no sentido de pertencimento àquele lugar, de estar 
a fazer o que tem de fazer, de ser destinado àquilo, e até de o fazer com gosto 
(BOURDIEU, 2003, p. 87). 
Vê-se que a concordância do indivíduo-agente (agente porque é atuante: age no 
meio em que está inserido) com determinada atividade ou crença pode, então, muitas 
vezes partir de pressupostos que não os oficialmente declarados. Mas também por 
interesses particulares, credos e opiniões pessoais que não necessariamente estão 
diretamente ligados à atividade geral a que se submetem. Associar isto individualmente 
aos exemplos dados ao longo deste artigo – seja pelas atitudes de parte da população 
ribeirinha paraense contra outra parcela dela no Voluntário, seja pela prática de 
falsificação de documentos históricos como exposta por Umberto Eco em Seis passeios 
pelos bosques da ficção ou como trabalhada por Winston em 1984, seja pela relação de 
Syme com osproles no mesmo livro, ou seja ainda pela escolha de Cypher por um 
favorecimento de seu bem estar individual através de um Doublethink forçado 
em Matrix –, entretanto, nos faria alongar este passeio demasiadamente. Talvez um 
novo estudo e artigo se mostrasse necessário só para isto. De forma que proponho 
encararmos estas proposições de Bourdieu
dificuldade em realizá-la. Uma vez sendo um animal social, o humano requer vivência 
em comunidade e para isso reivindica comunicação e compreensão. 
Eis que esta necessidade básica de sobrevivência em grupo abandonou a esfera 
privada. Por meio da linguagem e seus muitos artifícios é possível criar uma peça de 
teatro, assim como expressar uma inquietação política objetivamente. 
A potência da comunicação não é ignorada pelos humanos. Especialmente por 
aqueles que detém poderes superiores na sociedade. E assim, ao longo de séculos, estes 
homens dotados de barganha material de controlar o pensamento o farão, ainda que seja 
adotando intelectuais e artistas para perto de si e financiando ou cerceando as suas 
obras. Mas a este ponto, os meios de comunicação ainda não tinham a capacidade de 
atingir grandes massas. 
Difere muito do mundo contemporâneo. A sofisticação dos meios de 
comunicação de massa, de maneira geral, popularizou a informação de tal forma que, 
em dado momento, a sensação era a de que com ela também viria a tão sonhada 
democratização da cultura. Tragédias naturais passaram a ganhar os noticiários em 
tempo recorde, assim como os grandes eventos do mundo desportivo, da moda e do 
mais prosaico cotidiano, bem como o acesso à vida política, e caminhamos para a 
imagem em “tempo real” de nossos dias. Passados os tempos, aqui e ali alterados os 
atores políticos, e ainda seguem tencionadas as relações entre comunicação, política e 
cultura, de modo que a expressão “democratização dos mass media” ainda soa como 
uma quimera em um Brasil cada vez mais dividido e desigual, assim como em diversos 
outros territórios mundo afora. 
Esta edição de Revista Sísifo trás para o leitor o dossiê Política, comunicação e 
cultura, em que se problematiza a participação dos meios de comunicação no processo 
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político e cultural das sociedades contemporâneas. Os artigos que seguem, mantém 
relação próxima com o tema, discutindo os meios de comunicação, processos políticos e 
seus impactos na cultura. 
Marcelo Vinicius 
Rodrigo Araújo 
Yves São Paulo 
(Organizadores) 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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Dossiê 
 
NOAM CHOMSKY: 
propaganda e medo na política internacional 
 
Jayme Benvenuto* 
 
 
 
RESUMO: Este artigo tem o objetivo de apresentar a compreensão de Avram Noam 
Chomsky a respeito das conexões entre a política, em especial a política internacional, a 
propaganda e o medo, como elementos da grandiosa estratégia imperial de dominação 
global, conduzida pelos Estados Unidos da América e seus sócios. Ao mesmo tempo em 
que procura demonstrar a força das ideias do autor norte-americano, o artigo expõe os 
pontos críticos na teoria chomskyana. 
Palavras-chave: 1. Chomsky. 2. Propaganda. 3. Medo. 4. Política internacional. 
 
INTRODUÇÃO 
 
 Avram Noam Chomsky é o intelectual vivo mais citado do mundo, com mais de 
quatro mil citações de sua obra relacionadas no Arts and Humanities Citation Index e o 
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oitavo numa lista que inclui autores como Marx e Freud, entre as personalidades mais 
citadas de todos os tempos. Além disso, entre os anos de 1974 e 1992, Chomsky foi 
citado 1.619 vezes de acordo com o Science Citation Index (Barsky, 2004, p. 15). Ao 
completar 88 anos, em dezembro de 2016, o intelectual continuava ativo na publicação 
de livros, artigos e participando de filmes independentes por meio dos quais expõe seu 
pensamento crítico. A visita a sua página pessoal demonstra sua ampla capacidade de 
produzir ideias em áreas que incluem a linguística, a filosofia, a história, a história das 
idéias, as ciências cognitivas, a psicologia, a política nacional norte-americana e a 
política internacional. 
 Apesar da vasta produção intelectual e do reconhecimento como um intelectual 
engajado, capaz de levar milhares de pessoas a auditórios ao redor do mundo1, 
Chomsky passa como mais um intelectual nos corredores do MIT, o Instituto 
Tecnológico de Massachusetts, onde trabalhou por mais de quatro décadas, pelo simples 
motivo de que 
 
nos Estados Unidos Chomsky é silenciado pelos grandes meios, 
inclusive pelos meios progressistas, e muitos dos universitários e 
intelectuais com quem cruza todos os dias provavelmente 
desconhecem o que ele diz (…), desenhando os Estados Unidos 
como um artefacto estranho que, por sua vez, é a maior democracia 
do mundo e é governado por uma elite autoritária que despreza a 
democracia. (Halperin, 2003, p. 8; tradução do autor) 
 
 Em entrevista concedida a Halperin, Chomsky situa o surgimento do incômodo 
do Estado norte-americano em relação a si nos anos 1960, em que ele foi preso e 
respondeu a processo por “conspiração” devido à participação em movimentos em 
defesa dos direitos civis e políticos, muito em particular pelo direito de recusa legítima 
de jovens à participação na guerra do Vietnã. A atuação política era interpretada como 
uma agressão à atividade militar nos Estados Unidos. O processo judicial contra 
Chomsky não prosperou, em sua visão, devido ao fato de que não foram encontradas 
conexões, como o governo supunha, com regimes tidos então como suspeitos, como a 
Coreia do Norte e a Hungria, assim como porque não seria sustentável juridicamente 
imputar-lhe o crime de “conspiração”, quando suas ações eram integralmente públicas. 
O que tentaram chamar de conspiração era realizado de forma “completamente aberta” 
(Halperin, 2003, p. 55). 
 
1 Em 2002, durante a segunda edição do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, Chomsky foi ouvido 
por uma plateia atenta constituída por 20 mil pessoas. 
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 A precaução quanto a ter uma agenda pública não impediu que Chomsky fosse 
sistematicamente monitorado pelo governo norte-americano em suas ações acadêmicas. 
“Provavelmente, esta conversa esteja sendo escutada pela Administração de Segurança 
Nacional” (Halperin, 2003, p. 11), disse ele ao entrevistador. 
 O sistema perverso descrito por Chomsky para dominar o mundo - e que tem os 
Estados Unidos, seu próprio país, como líder incontestável - é composto pelos poderes 
político, militar, empresarial, midiático e educativo. Em outra ocasião e veículo, resumi 
nos seguintes pontos a visão chomskyana sobre a política internacional dos nossos dias: 
 
1. Os Estados Unidos da América são autores e lideram uma 
“grandiosa estratégia imperial” que se vale da “guerra preventiva” e 
de ações repressivas e terroristas pretensamente sustentadas pelo 
Direito Internacional. O método de dominação do mundo está 
relacionado à violência com que atua e financia, entendida como “um 
poderoso instrumento de controle” 
2. Os Estados Unidos da América se atribuíram o direito de 
empreender ações militares e travar guerras químicas e biológicas 
pelos motivos que consigam justificar, mesmo que não sejam 
plausíveis. Como corolário dessa afirmação, a soberania dos demais 
países pode ser ignorada tendo como pretexto a defesa dos direitos 
humanos. 
3. Na política de intervenção humanitária desenvolvida atualmente 
em diversas partes do mundo, a qualificação de violação a direitos 
humanos depende de quem seja o acusado. Os amigos criminosos 
merecem proteção e não se pode cogitar de cometerem violações a 
direitos humanos, enquanto os que se tornam inimigos merecem a 
mais severa punição com base nos mais altos princípios de direitos 
humanos. 
4. Está em curso um modelo de globalização controlada da 
“comunidade internacional”, através de meios complexos, que 
envolvem os diversos países do mundo (independentemente de serem 
mais ou menos poderosos) em atendimento aos interesses da potência 
imperial e seus aliados. 
5. Ao
como uma possível conclusão à defesa do 
posicionamento que aqui propus: a política cultural da pós-verdade não está vivendo seu 
auge na atualidade, ela sempre existiu e atuou com intensidade. Pois esta prática cultural 
é parte de nossa própria prática de construção de conhecimento e organização social. De 
nossa capacidade de interpretar e nomear aquilo que nos rodeia. Que, para bem ou para 
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mal, todas as eras humanas foram da pós-verdade. E aqui proponho que encerremos 
nosso labiríntico passeio pelos longos corredores cognitivos da verdade, da pós-verdade 
e do doublethink. 
 
AUTOR: 
*Arthur Aroha é graduado em Escultura pela Escola de Música e Belas Artes da 
Universidade Estadual do Paraná – UNESPAR. Atualmente é mestrando do Programa 
de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Paraná – UFPR, na área de 
concentração de Estudos Literários sob orientação do Prof. Dr. Alexandre André 
Nodari. E-mail: aakds@hotmail.com 
 
 
REFERÊNCIAS: 
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz. 6ª ed. Rio de Janeiro: 
Bertrand Brasil, 2003. 
EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. Trad. Waltensir Dutra. 5ª 
edição. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 
ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das 
Letras, 1994. 
GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva. 
Rio de Janeiro: DP&A, 2011. 
KAMINSKI, Rosane. Reflexões sobre a pesquisa histórica, a ficção e as artes. In: 
FREITAS, Artur (org.); KAMINSKI, Rosane (org.). História e Arte: encontros 
disciplinares. São Paulo: Intermeios, 2013, p. 65-93. 
MATRIX. Roteiro e direção: Lilly e Lana Wachowski. Produção: Joel Silver. 
EUA/Australia: Warner Bros. Pictures/Roadshow Entertainment, 1999. 1 DVD (136 
min). 
ORWELL, George. 1984. New York: Signet Classics, 1961 (ano de reimpressão não 
informado). 
PLATÃO. Livro Sétimo. A República (ou da justiça). Trad. Edson Bini. Bauru - SP: 
EDIPRO, 2006, pp. 307-344. 
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. Trad. Mônica Costa 
Netto. 2ª ed. São Paulo: EXO experimental; Editora 34, 2009. 
SAER, Juan José. El concepto de ficción. 4ª ed. Buenos Aires: Seix Barral, 2014. 
SOUSA, Inglês de. Voluntário. In: SOUSA, Inglês de. Contos amazônicos. São Paulo: 
Editora Martin Claret, 2005, p. 23-36. 
. Acesso 
em Janeiro de 2017. 
. Acesso em Janeiro de 2017. 
 
 [1] Matérias e artigos jornalísticos que seguiram esta linha afirmativa surgiram aos montes neste período. 
Aponto aqui alguns exemplos em língua portuguesa e inglesa, a título ilustrativo: 
; 
; 
; 
; . Acessos em Janeiro de 2017. 
mailto:aakds@hotmail.com
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65 
 
[2] Anualmente o grupo Oxford dictionaries faz uma lista com os termos considerados os mais relevantes 
no período, e elege um como “palavra do ano”. O anúncio do post-truth como vencedor de 2016 pode ser 
encontrado em: . Acesso em 
Janeiro de 2017. 
[3] Tradução livre de definição apresentada em: . 
Acesso em Jan. 2017. 
[4] O termo post-truth foi pela primeira vez utilizado com o sentido a ele hoje designado em 1992 por 
Steve Tesich em artigo sobre a Guerra do Golfo pérsico. Informações disponíveis 
em: . Acesso em Janeiro de 
2017. 
[5] Inglês de Sousa, nascido na então província do Grão-Pará, foi um escritor, advogado e político do 
período imperial brasileiro. 
[6] Tapuio é um termo generalista que foi utilizado ao longo dos séculos no Brasil para designar 
quaisquer índios que não falam a língua tupi. 
[7] O trecho final do conto assim diz: “Ainda há bem pouco tempo vagava pela cidade de Santarém uma 
pobre tapuia doida. A maior parte do dia passava-o a percorrer a praia, com o olhar perdido no horizonte, 
cantando com a voz trêmula e desenxabida a quadrinha popular: 
Meu anel de diamantes 
Caiu na água e foi ao fundo; 
Os peixinhos me disseram: 
Viva D. Pedro Segundo!” (SOUSA, 2005, p.35-36). 
[8] Basta pensarmos em conflitos como as ocupações do Afeganistão, a guerra do Golfo, a invasão norte-
americana ao Iraque, a intervenção francesa na Líbia, e mais recentemente as intervenções diversas nos 
conflitos na Síria, por exemplo. 
[9] O período pós independências na América do Sul foi permeado ininterruptamente por conflitos assim. 
Praticamente todos os países entraram em guerra com seus vizinhos. Estas novas nações aplicaram as 
mesmas políticas expansionistas sob as quais elas, enquanto colônias, foram fundadas. Até porque 
seguiram sendo governadas pelas mesmas elites do período colonial. 
[10] Vide a revolta denominada Cabanagem (1835-1840). 
[11] Toco aqui no que diversos autores, de Ginzburg e sua “contiguidade entre ficção e história” 
(GINZBURG, 2007), a Rancière e suas propostas de valorização por parte do olhar do pesquisador para 
com os produtos ficcionais (RANCIÈRE, 2009), entre tantos outros, discutem com afinco: as relações 
entre a realidade, a pesquisa histórica, a ficção e as artes. 
[12] Todas as citações de 1984 são de tradução livre. 
[13] O termo prole não existe no livro à toa: Orwell se inspirou nos grandes regimes totalitários europeus 
do século XX para criar o 1984. Especialmente no regime stalinista, do qual Orwell era crítico por 
considerá-lo uma perversão do Socialismo democrático. O próprio conceito do doublethink foi inspirado 
num discurso proferido por Stalin em 1930. 
[14] Newspeak é o nome da nova língua que se desenvolvia na distopia de Orwell. 
[15] Eco vai às últimas consequências e propõe que, visto que o documento chegou às mãos do próprio 
Hitler, ele poderia ter influência no Holocausto (ECO, 1994, p. 143). 
[16] Outras influências foram Descartes, Kant, Foucault e Derrida. Como se pode ver em entrevista com 
Lana Wachowski disponível em: 
. Acesso em Janeiro de 2017. 
[17] Tradução livre. 
[18] Todas as citações de El concepto de ficción são de tradução livre. 
[19] Como se pode ver no trecho a seguir: “Lo mismo podemos decir del género, tan de moda en la 
actualidad, llamado, con certidumbre excesiva, non-fiction: su especificidad se basa en la exclusión de 
todo rastro ficticio, pero esa exclusión no es de por sí garantía de veracidad. Aun cuando la intención de 
veracidad sea sincera y los hechos narrados rigurosamente exactos ––lo que no siempre es así–– sigue 
existiendo el obstáculo de la autenticidad de las fuentes, de los criterios interpretativos y de las 
turbulencias de sentido propios a toda construcción verbal” (SAER, 2014, p. 10). 
[20] Afinal somos seres que contam parte de sua história através de narrativas como as Sagas, sejam as 
irlandesas, as nórdicas, ou, porque não aplicar este termo também às narrativas sumérias, maoris, 
malinesas, às de Cristóvão Colombo no Diários da Descoberta da América, entre tantas possibilidades, 
quem sabe até a relatos de eventos e/ou situações bem mais recentes? 
[21] O termo [verdade] foi aqui utilizado para substituir o termo original [literatura], como presente em: 
“A definição de literatura fica dependendo
da maneira pela qual alguém resolve ler, e não da natureza 
daquilo que é lido” (EAGLETON, 2003, p. 11). 
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[22] O conceito de habitus (as “vestes sociais” habitadas ou encarnadas pelos membros de uma 
sociedade) é trabalhado por Bourdieu no Capítulo III – A génese dos conceitos de habitus e campo – de O 
poder simbólico. (BORDIEU, 2003, p. 59-74). 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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Dossiê 
 
A MULTIDÃO NO TWITTER: 
a criação de memes com apropriação de fotografias 
Gabriel Malinowski* 
 
 
 
RESUMO: O artigo desenvolve alguns aspectos do conceito de multidão, elaborado por 
Antônio Negri e Michel Hardt, com ênfase nos aspectos da criação e da comunicação. 
Essa abordagem serve de base para analisar certa produção na rede social Twitter: os 
memes que são construídos com apropriação de fotografias e textos em até 140 
caracteres. Faz-se uma análise de algumas postagens de cunho político que foram 
realizadas ao longo de dezembro de 2016 no Brasil. Esse tipo de produção parece ir ao 
encontro do projeto político reivindicado por Negri e Hardt, a multidão. 
Palavras-chave: Multidão; Twitter; Meme; Negri; Hardt 
 
PREÂMBULO 
 
 Um olhar atento lê uma reportagem em um portal de notícias na Internet. Os 
dedos rolam a tela em busca de um parágrafo mais interessante. A fotografia que ilustra 
a reportagem é salva na memória do dispositivo. Encerra-se a leitura. Na seleção de 
aplicativos distribuídos na tela do aparelho, toca-se no ícone do Twitter. A sessão 
“início” contempla os posts de perfis que o usuário segue. Os dedos atravessam a tela, o 
olhar segue atento na leitura de textos e imagens. Com um toque no ícone de pena, que 
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faz referência à escrita, outra tela é aberta. Nesse espaço, a imagem salva há pouco é 
inserida juntamente a um texto. O botão “tweetar” é apertado, e a publicação entra em 
rede para outros tantos usuários. 
 O Twitter é uma ferramenta de mensagens curtas lançada em outubro de 2006, e 
que obteve um rápido crescimento no Brasil e no mundo. Nela, o usuário segue e é 
seguido por outros perfis. O Twitter convida os usuários a responder à pergunta “o que 
está acontecendo?” em até 140 caracteres. Dentre outras possibilidades do aplicativo, 
estão a conversação entre os atores e a apropriação relacionada ao acesso à informação. 
 Quem é esse usuário? Como caracterizar sua atividade? De saída, pode-se dizer 
que para existir esse “usuário” em rede, é indispensável a existência de tantos outros 
“usuários”. A rede que os conecta fornece uma estrutura que perpassa condutas, modos 
de ação e pensamento. Pode-se dizer também que Pode-se dizer também que nessa 
produção, troca e propagação existe um bem valioso: a informação. A produção 
imaterial de ideias, códigos, imagens, e até mesmo afetos parece ser um traço 
característico daquilo que é produzido e consumido entre eles. Essas características 
parecem estar no centro da questão daquilo que Antônio Negri e Michel Hardt chamam 
de multidão, principalmente, quanto ao uso daquilo que os autores chamam de a 
produção do comum por meio da linguagem. 
 Sendo assim, a proposta deste artigo é explorar a ideia de multidão no ambiente 
do Twitter. O enfoque se dá na relação entre a multidão e as criações com imagem e 
texto do aplicativo. Essa prática é uma forma linguística usual dentre outras utilizadas 
cotidianamente no Twitter. Os efeitos desse modelo de ressignificação de fotografias 
também podem ser diversos. Fez-se então um recorte de tweets do mês de dezembro de 
2016 que utilizam fotos e textos para a construção de uma crítica de cunho político. 
Tenta-se explorar o próprio conceito de multidão pelas práticas de criação desses 
memes. 
 De saída, reforça-se a noção de multidão. Em seguida, aproxima-se o Twitter 
desse conceito por meio de um de seus aspectos mais instigantes: sua monstruosidade. 
Esse percurso serve de base para a análise de alguns posts publicados recentemente por 
usuários. Acrescentando texto à fotografia, esses posts podem ser visto como memes 
que alimentam a rede e conformam a comunicação entre seus usuários. 
 
 
 
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NO CAMINHO DA MULTIDÃO 
 O conceito de multidão trabalhado por Antonio Negri e Michel Hardt permite 
leituras profícuas acerca de alguns predicados subjetivos, políticos e tecnológicos que se 
configuram nas sociedades mais fortemente tocadas pela lógica informacional do 
capital. A complexidade do conceito, entretanto, traz consigo uma dupla dificuldade, 
própria de grandes teorias: não ser reducionista, a ponto de desperdiçar as saborosas 
suspeições dos autores; tampouco prolixo, de modo a reescrever repetidamente aquilo 
que os autores já o fizeram de forma exemplar. No limite do interesse deste artigo, 
segue-se aqui então uma indicação feita pelo próprio Antônio Negri (2009), em um 
artigo conciso, intitulado Para uma definição ontológica da multidão. Nesse artigo, 
Negri elenca de forma didática três aspectos centrais na ideia de multidão. 
 O caráter imanente da multidão seria o primeiro aspecto. Esse primeiro ponto 
possibilita a inserção dos autores em um terreno filosófico e epistemológico específico. 
Trata-se de uma demarcação teórica importante, que aposta em um projeto político para 
além do terreno da representação. A multidão como imanência garante a validade 
política das relações entre múltiplas singularidades. No mesmo gesto, postula uma 
crítica ao pensamento político moderno dominante, que foi construído nas ideias de 
representatividade e unidade, tão caras a Hobbes, Rousseau e Hegel. Abole-se na 
multidão uma ideia de povo assentado na transcendência do soberano. Para Hobbes, por 
exemplo, a multidão não é apta a governar. O múltiplo não conseguiria decidir, sendo 
necessário assim a unidade. É a representação da multidão que conduz à necessária 
unidade. A unidade, portanto, é considerada um pressuposto para a existência da paz e 
do governo civil. Do contrário, subsistiria a guerra e a discórdia. A virtude política se 
encontra na construção de uma unidade política. Disso resulta a importância que 
Hobbes dá à noção de representação, tendo em vista que em torno dela se constitui e se 
garante a unidade. A multidão, na perspectiva de Negri e Hardt (2005), não deve ser 
domada mediante os mecanismos representativos. Ao contrário, trata-se do protagonista 
fundamental do cenário político, ao qual se subordinam os dispositivos de 
representação. Não é a representação que organiza e confere sentido à multidão, e sim a 
multidão que constitui o sentido do mundo, que determina a produção do direito no 
espaço político. 
 Negri (2009) destaca, como segundo aspecto, que a multidão é um conceito de 
classe. Trata-se de um novo ponto de vista da lógica produtiva, que agrega a perspectiva 
do trabalho cognitivo/imaterial como central nas sociedades capitalistas. A multidão é 
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vista como classe na medida em que é aquilo que produz o comum. Além disso, como 
essa produção se dá por comunicação e cooperação, constitui-se uma classe. 
Obviamente, não se trata de diminuir a dimensão do trabalho industrial, mas notar a 
força qualitativa de elementos imateriais presentes nos modos de produção 
contemporâneos. Dois momentos teriam sido centrais para essa mudança paradigmática. 
O primeiro é o momento em que o modo de produção se tornou completamente 
“biopolítico”, ou seja, o ato de captura das linguagens, dos códigos, das necessidades e 
dos desejos pelo capital. O segundo seria a financeirização, que mediria o valor desse 
elemento comum produzido
por cooperação e comunicação. 
 Ao longo da obra Multidão, os autores enfatizam as dimensões biopolíticas 
como centrais nos atuais processos de produção. Trata-se de uma relação de poder que 
está centrada na dimensão biológica, da vida. Na reconfiguração do capital e do 
Império, calcados nos processos de financeirização, o biopoder é centrado nas 
dimensões de comunicação e cooperação, ou seja, nas dimensões cognitivas e 
imateriais, retirando daí sua mais-valia. Nesse sentido, a força do capital não seria 
expropriada de um indivíduo, mas das singularidades da multidão, de suas formas de 
comunicação e cooperação. 
 A multidão é então um conceito de classe na medida em que se constrói pela 
exploração desse comum biopolítico. A multidão é, efetivamente, a classe que produz o 
comum. Isso permite dizer que a multidão não é apenas explorada em sua produção – 
como trata a definição de classe trabalhadora -, mas uma exploração da própria 
cooperação. Assim, entender a multidão como classe, é colocar as singularidades como 
centrais nos processos de produção. Nas palavras de Negri e Hardt (2005, p. 156): 
A informação, a comunicação e a cooperação tornam-se as normas da 
produção, transformando-se a rede em sua forma dominante de 
organização. Assim é que os sistemas técnicos de produção 
correspondem estreitamente a sua composição social: de um lado, as 
redes tecnológicas, e de outro a cooperação dos sujeitos sociais que 
trabalham. Essa correspondência define a nova topologia do trabalho e 
também caracteriza as novas práticas e estruturas de produção. 
 
 Da capacidade de comunicação e cooperação aparece também a terceira 
característica da multidão: sua potência. O mais importante nessa questão é notar que o 
comum que é apropriado pelo capital é também o que possibilita certa resistência, ou 
algo que escapa à lógica produtiva. Negri e Hardt (2005) argumentam que somente 
analisando a cooperação podemos, com efeito, descobrir que o todo de singularidades 
produz além da medida. Trata-se de uma fragilidade do comando capitalista, na medida 
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71 
 
em aposta na hegemonia “virtual” do trabalho coletivo, na cooperação produtiva. Esse 
terceiro ponto será mais explorado neste artigo. Nele, a Internet aparece como elemento 
de análise. Conforme argumenta Negri e Hardt (2005, p. 14): 
 
Uma rede distributiva como a Internet constitui uma boa imagem de 
base ou modelo para a multidão, pois, em primeiro lugar, os vários 
pontos nodais se mantêm diferentes mas estão todos conectados na 
rede, e além disso as fronteiras externas da rede são de tal forma 
abertas que novos pontos nodais e novas relações podem estar sendo 
constantemente acrescentados. 
 
 A Internet, em relação a esse terceiro ponto, fornece alguns exemplos de 
subversão e inventividade. Se as práticas e os processos que constituem a Internet estão 
na base de produção do capital, são neles que também aparecem formas de resistência e 
criação. 
 
A CRIAÇÃO MONSTRUOSA DA MULTIDÃO 
 De acordo com as características descritas acima, nota-se como a multidão é 
explorada em suas relações de cooperação entre singularidades. Trata-se, na visão de 
Negri e Hardt (2005), de uma exploração das redes que compõem o conjunto. De outro 
lado, os autores enxergam uma potência nesse modelo, na medida em que aquilo que é 
explorado ultrapassa as capacidades de controle do sistema. Se a comunicação é 
apropriada pelo capital, ela tem a potência de ser reapropriada na dinâmica 
comunicacional das redes. Cria-se aí um elemento inesperado, uma espécie de dobra. Os 
autores enxergam, nessa agonística própria desse modelo capitalista, a força para o 
surgimento da multidão como realidade histórica, da multidão como um corpo político. 
 Nos dias atuais, o que os autores conseguem perceber são apenas alguns 
sintomas desse projeto político que nomeiam como multidão. Por isso trabalham com a 
ideia de carne da multidão. Os autores constroem assim uma relação polissêmica 
interessante entre o corpo político global do capital e a carne da multidão. A carne 
parece operar, na teoria dos autores, como um estágio anterior, do corpo como 
virtualidade. Para evidenciar a existência dessa carne da multidão, os autores iniciam 
uma argumentação sobre a crise ou dissolução dos corpos sociais tradicionais. 
 Para muitos, essa carne é monstruosa, porque ela é fugidia, e não pode ser 
enfeixada nos órgãos hierárquicos de um corpo político tradicional. Para os autores, 
“essas multidões que não são povos nem nações ou sequer comunidades constituem um 
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exemplo da insegurança e do caos que resultaram no colapso da ordem social 
moderna.”(NEGRI e HARDT, 2005, p. 251). Os autores, assim, parecem apostar na 
potência do monstro: “precisamos encontrar os meios de realizar esse monstruoso poder 
da carne da multidão de formar uma nova sociedade”. (p. 253) 
 Um dado interessante da carne é que ela é comum, assim como o ar, o fogo, a 
terra e a água. O monstro não seria um acidente, mas a possibilidade sempre presente 
capaz de destruir a ordem natural da autoridade. Daí os autores sugerem uma relação 
ambivalente com os monstros, pois essa carne monstruosa deve atacar o mundo horrível 
e monstruoso do corpo político global do capital. Para eles, é preciso usar as expressões 
monstruosas da multidão para desafiar as mutações da vida artificial transformadas em 
mercadorias, pois é no novo mundo dos monstros que a humanidade tem de agarrar o 
seu futuro. Por meio então desse pensamento metafórico da carne do monstro, ou mais 
precisamente dessa condição latente de uma possível multidão, que os autores 
desenvolverão alguns cenários já em curso nos dias atuais. 
 As expressões monstruosas da multidão podem ser entendidas, na teoria dos 
autores, como elementos de criação próprios à multidão. Aqui, não se trata de uma 
criação hierarquicamente estabelecida, mas de um elogio às capacidades inventivas dos 
pobres. O conceito de pobre é amplo: pobre aqui são os países periféricos, como o 
Brasil; pobres são aqueles sem emprego fixo e garantido nessa era de flexibilidade no 
trabalho. Para Negri e Hardt (2005, p.182), “a criatividade e inventividade dos pobres, 
desempregados, parcialmente desempregados e migrantes são essenciais para a 
produção social”. Trata-se de um aspecto daquilo que não tem forma certa, nem pode 
ser apreendido com harmonia e unidade: a criação. Para os autores, “apesar de sua 
pobreza e de sua falta de recursos materiais, alimentos, habitação e assim por diante, os 
pobres efetivamente dispõem de uma enorme riqueza em seus conhecimentos e poderes 
de criação.” (NEGRI e HARDT, 2005, p.182) 
 As práticas sociais possibilitadas pelo uso de uma plataforma como o Twitter 
integram esse cenário monstruoso atual, na medida em que participam de revoltas, 
debates e, em certa medida, atuam efetivamente na condução de questões políticas 
importantes. As micronarrativas em disputa no Twitter também parecem contribuir para 
a dissolução da grande narrativa histórica. Obviamente, o Twitter não deve ser visto 
como uma plataforma revolucionária, mas elemento central do próprio capital, e com 
possibilidades que ultrapassam sua apropriação capitalística. No limite deste artigo, não 
se estuda nenhuma mobilização específica ou revolta que faz uso do Twitter, mas um 
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uso cotidiano, que parece trabalhar exatamente nessa agonística entre exploração da 
cooperação entre singularidades e potência comunicacional e criativa daquilo que se 
produz. 
 
CRIAÇÕES NO TWITTER: MEMES COM APROPRIAÇÃO DE 
FOTOGRAFIAS 
 A fim de evidenciar e tornar mais concreta esta abordagem, pretende-se analisar 
a reapropriação de imagens com a criação de textos realizada por alguns usuários
na 
rede social Twitter. Não se trata, contudo, de uma análise estritamente linguística, mas 
sim de uma aproximação às ideias e conceitos trabalhados pelos autores de Multidão. 
Um primeiro ponto a ser notado, por exemplo, é que os usuários que produzem esse 
conteúdo com reapropriação de imagens e produção textual, em sua maioria, não 
carregam a autoridade da representação, e podem ser vistos como singularidades que 
possuem uma força na realização do múltiplo. De acordo com Negri e Hardt (2005, p. 
283), “a mobilização do comum demonstra, finalmente, que os movimentos que fazem 
parte desse ciclo global de lutas não são apenas movimentos de protesto (embora seja a 
face que aparece mais claramente na mídia), mas também positivos e criativos”. 
 Além disso, o Twitter atesta, por meio da linguagem, duas características da 
produção do comum: o hábito e a performance. Para Negri e Hardt, outro modo de 
compreender a produção e a produtividade do comum seria exatamente o hábito, pois 
ele seria o comum na prática. Uma das vantagens em trabalhar com o termo é porque 
ele desloca a ideia da pura subjetividade (as profundezas do eu) ou do sujeito político 
tradicional (ideia transcendental). O hábito traz uma ideia de atravessamentos de 
subjetividades, de imanência, na medida em que estamos constantemente criando 
hábitos que servem para nossa vida prática. Essa construção surge de forma cotidiana, 
através de trocas comunicacionais, através do comum, e nunca de forma realmente 
individual ou pessoal. Mistura-se assim hábitos, conduta e subjetividade individual na 
constituição de nossa natureza social. Além disso, não estariam apenas vinculados a 
repetições mecânicas de atos passados, mas seriam meios ativos, maneiras enérgicas e 
dominadoras do agir. Ou seja, uma prática viva de criação e inovação, na qual os 
autores identificam a própria ideia de multidão. Nas palavras dos autores, “as 
singularidades interagem e se comunicam socialmente com base no comum, e sua 
comunicação social por sua vez produz o comum. A multidão é a subjetividade que 
surge dessa dinâmica de singularidade e partilha” (NEGRI e HARDT, 2005, p.258). O 
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que está em jogo nessa produção do comum é a participação mais ativa das 
singularidades, desejos, afetos dos indivíduos na construção de um corpo, o qual seria 
mitigado pela lógica capital que, num plano macro, ainda constrói uma sociedade à 
revelia dessas vontades, hábitos. A produção da linguagem cômica utilizada nas 
reapropriações de fotos no Twitter parece entrar nesse jogo subjetivo de produção de 
hábito. Os próprios assuntos do momento no Twitter surgem nessa dinâmica, com 
contaminações que encaminham determinadas ações. O uso de determinadas fotos “do 
momento” atesta esse movimento, como veremos adiante. 
 A ideia de performance é um outro elemento trazido pelos autores para ilustrar a 
produção e a produtividade do comum. A performatividade, a comunicação e a 
colaboração seriam a chave do paradigma imaterial da produção. Dentre essas 
performances está a performance linguística, pois se no trabalho fabril o trabalhador é 
mudo, agora ele tem necessidade de habilidades linguísticas, afetivas e de comunicação. 
E como a linguagem é sempre produzida em comum, ela pode ser um elemento de 
criação, ou seja, uma aliada da Multidão. Entretanto, como sabemos, é exatamente no 
controle do comum que o capital tem agido atualmente. O projeto de Multidão seria 
possível exatamente por ter seu motor no comum. Para os autores, “essa natureza 
comum da atividade social criativa é ainda mais destacada e aprofundada pelo fato de 
que hoje a produção depende cada vez mais de competências e comunidades 
linguísticas” (NEGRI e HARDT, 2005, p.179) 
 Os memes, em particular, podem ser vistos como uma produção performática 
que já se tornou habitual e se configurou como um gênero linguístico. Trata-se de uma 
forma de expressão que se estabelece por meio de novas tecnologias num determinado 
período histórico, juntamente a todas as transformações culturais que sua inserção 
acarreta. Para Lima e Castro (2016, p.39), “pode-se dizer, então, que novas formas de 
‘querer-dizer’ implicam novos comportamentos comunicativos, consequentemente, 
novos gêneros textuais”. Uma forma usual de meme no Twitter é a postagem de uma 
foto que ganha certa visibilidade, mas que, porém, é ressiginificada por um texto que o 
usuário produz, geralmente, com uso de ironia. 
 Como corpus de análise, buscou-se a página Melhores do Twitter, que faz uma 
seleção sistemática das postagens. Optou-se por analisar apenas as postagens do mês de 
dezembro que integravam memes com fotografia e texto e que faziam referência ao 
atual cenário político. O conteúdo das postagens analisadas fazem referência, em sua 
maior parte, à situação política no Brasil. Porém, nota-se alguns atravessamentos 
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próprios à globalização. Para Negri e Hardt (2005, p.179), “essa comunidade linguística 
vem antes do lucro e da construção de hierarquias locais e globais.” O post abaixo 
(Figura 01), por exemplo, diz: “Depois desse cartaz na Paulista acho que agora o Estado 
Islâmico vai dar uma trégua” (sic). A fotografia mostra um cartaz de fundo amarelo com 
a frase “Estado Islâmico / Pare!” escrita em azul e vermelho, respectivamente. Na 
disposição do cartaz, há ainda um ícone que lembra uma placa de trânsito, com uma 
mão. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 Figura 01 
 
 A legenda da foto, de forma irônica, critica a ineficácia e a ingenuidade da ação 
reivindicada pelo cartaz, colocado na Avenida Paulista, um dos principais locais de 
manifestação política da cidade de São Paulo. Interessante notar aqui como a linguagem 
do texto do autor do post se relaciona com o texto presente na fotografia. O resultado 
dessa intersemiose é o humor crítico, que parece ser, a propósito, elemento comum em 
todas as postagens analisadas. Trata-se de um comum linguístico que se tornou, no 
mesmo gesto, habitual e performático. 
 A foto (Figura 2), do atual presidente Michel Temer com a primeira-dama, 
algumas crianças e um Papai Noel, também rendeu inúmeros memes cômicos. No dia 
16 de dezembro, a página analisada publicou um desses posts, que trazia a seguinte 
legenda: “Michel Temer distribui talões do INSS a crianças. Confira!”. A crítica aqui se 
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refere ao projeto de reforma da previdência, que demandará mais anos de contribuição 
aos trabalhadores. Como na referida foto, as crianças que estão à frente do presidente e 
da primeira-dama estão sérias, o texto confere sentido a essas expressões faciais. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 Figura 2 
 
 O usuário que publicou esse post, como pode ser notado, é @avaaaifelipe. Uma 
breve investigação nesse perfil permite aprofundar a ideia de multidão como classe. 
Nota-se, no Twitter, que diferentes perfis, de adolescentes e idosos, jornalistas e 
estudantes, ou ainda perfis de viés feminista, ou esportivo, ou político, todos habitam as 
possibilidades de comunicação e cooperação oferecidas pela ferramenta, ainda que os 
poderes e influências de cada um deles dependam de outros fatores. O ponto em 
“comum” entre eles é o resultado de suas relações intelectuais e cognitivas com a 
máquina, que gera informação que alimenta o todo. O perfil @vaaaifelipe, que fez a 
referida publicação, conta em sua descrição apenas com a frase “não repara a bagunça”. 
Com efeito, a bagunça, a bricolagem e a gambiarra são traços da multidão que o perfil
exemplifica muito bem. Note-se que esse perfil possuía 8.868 seguidores à época da 
postagem. Trata-se do número de usuários que, idealmente e diretamente, entraram em 
contato com as produções feitas por ele. Entretanto, como redes como o Twitter 
funcionam com re-postagens, elemento que caracteriza bem a cooperação, esse número 
deve ser bem maior. 
 As questões políticas configuradas por toda a complexa crise brasileira que 
atravessou 2016 encontra sua expressão linguística do comum em praticamente todos os 
posts de viés político. As críticas às medidas tomadas pelo recém-empossado presidente 
são alvos de montagens humoradas. Ainda em relação ao projeto de reforma da 
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previdência, o post do perfil @chatolino integra a foto (Figura 3) de uma criança com 
uma roupa de gari (possivelmente de um carnaval) com o texto: “Trabalhador deverá 
contribuir por 49 anos para receber teto da aposentadoria pelo INSS”. A reapropriação 
da foto, a partir dessa legenda, coloca em questão a ideia de trabalho. É interessante 
notar que o projeto da reforma da previdência, após muitas críticas como essas aqui 
analisadas, foi estrategicamente postergado pelo governo. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 Figura 3 
 O uso das aspas no Twitter, reproduzindo um texto tal como ele foi divulgado na 
grande mídia ou como fala do senso comum, torna-se uma ferramenta expressiva e 
linguística própria da ferramenta. Geralmente, após o uso das aspas com tal texto, 
inicia-se um texto que o contraria, o ridiculariza, ou demonstra contradições. A foto do 
menino vestido de gari possui essa função de complemento, dando outro sentido ao 
texto com aspas. 
 Esses casos demonstrados são similares em sua linguagem comum, e 
exemplificam bem algumas produções que tratam de criticar e questionar, e certamente 
influenciar, as decisões políticas por meio de uma linguagem que integra apropriação de 
fotos com a produção de um texto de até 140 caracteres. Esse comum, segundo Negri e 
Hardt (2005), é uma produção e um processo. Os memes são amplamente difundidos na 
rede e atestam um potencial inventivo e de criação da multidão. A potência dessa 
multidão é um fato atestado por vários casos recentes. As hashtags mais comentadas 
tem a capacidade de induzir e modificar uma realidade. “Hoje, criamos como 
singularidades ativas, cooperando nas redes da multidão, vale dizer, no comum” (p. 
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182). Resta saber como utilizar esse potencial de criação na conformação de uma 
verdadeira democracia, onde as criações do comum assumam um papel central na 
condução das vontades políticas. 
 
AUTOR 
*Gabriel Malinowski é Doutorando em Comunicação pela UERJ-RJ. Mestre em 
Comunicação pela UFF-RJ (2010). Especialista em Comunicação e Imagem pela PUC-
RJ (2008). Graduado em Cinema pela UNESA-RJ (2006). Entre 2009 e 2016, foi 
docente em cursos de Cinema, Artes Visuais e Comunicação Social; coordenou o 
projeto de extensão Crescendo com Arte, que oferecia oficinas de cinema para alunos da 
rede pública do município de Barra Mansa; e foi integrante do projeto de extensão 
Cinema Encena, que trabalhava na relação vídeo-performance-dança. Atualmente é 
bolsista FAPERJ de Doutorado. Possui artigo publicado no livro anual da SOCINE, 
além de outras publicações em revistas acadêmicas. 
 
 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 
 
NEGRI, Antonio e HARDT, Michel. Multidão. Rio de Janeiro: Record, 2005. 
NEGRI, Antonio. “Para uma definição ontológica da multidão” In Lugar Comum, 
número 19-20, p.15-26, 2009. 
LIMA, Geralda de Oliveira Santos e CASTRO, Lorena Gomes Freitas de. “Meme 
digital: artefato da (ciber)cultura” In Revista (com) Textos Linguísticos. Volume 10. 
Número 16, 2016. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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Dossiê 
BELA, RECATADA E DO LAR: 
relações entre a prática discursiva sobre a mulher e a 
docilização dos corpos em Foucault 
Romário Duarte Sanches* 
 
RESUMO: Este artigo analisa a prática discursiva sobrea mulher “bela, recatada e do 
lar” com base na categoria foucaultiana de corpos dóceis. O aporte teórico focaliza-se, 
estritamente, na obra “Vigiar e Punir”, publicada por Michel Foucault em 1975.Para a 
discussão da categoria corpos dóceis, delimitou-se a terceira parte do livro (disciplina), 
na qual, Foucault (1987) procura pensar como se dá o processo de fabricação dos corpos 
dóceis, enfatizando a disciplina como uma nova técnica de poder. Foucault descreve 
quatro técnicas ou mecanismos disciplinares que envolvem o processo de formação dos 
corpos dóceis, a saber: 1) arte das distribuições; 2) controle das atividades; 3) 
organização das gêneses; e 4) composição das forças. Ao lado do acompanhamento dos 
dados da teoria foucaultiana, foram relacionados a reportagem da revista Veja, 
publicada em abril de 2016, e fragmentos do jornal do Jornal das Famílias, periódico 
brasileiro do século XIX. A materialização discursiva, tanto da reportagem, quanto do 
jornal, centra-se no sujeito mulher. A aproximação aponta que a mesma prática 
discursiva do poder disciplinar sobreo corpo feminino encontrado no Jornal das 
Famílias no século XIX, ainda está presente nos dias atuais, sendo propagada pelas 
mídias como forma de manter o poder de dominação sobre as mulheres. 
PALAVRAS-CHAVE: Corpos dóceis, disciplina, poder, mulher. 
 
 
INTRODUÇÃO 
 Influente no pensamento contemporâneo, Michel Foucault também foi ativista 
político, teórico social, crítico cultural, historiador criativo e professor. Para leitura de 
sua obra, recomenda-se que o leitor esteja disposto a indagar a ordem social 
preestabelecida, bem como, desfazer-se de premissas tidas como verdades absolutas. 
Autores como Oksala (2011), esquematizam a obra de Foucault em três fases 
distintas: a) a arqueologia; b) a genealogia; e c) a ética. Ressalta-se aqui a fase 
genealógica, termo escolhido por Foucault para analisar o poder. Pois, é na obra 
“Arqueologia do saber” que Foucault (2004) toma o discurso como uma prática social, 
historicamente determinada, onde são constituídos os sujeitos e os objetos. Para ele, as 
relações entre os dizeres e os fazeres, ou seja, as práticas discursivas são formas de 
materializar as ações dos sujeitos na história. Uma tentativa de compreender a maneira 
como as “verdades” são produzidas e enunciadas. Tal prática discursiva está explicitada 
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também na obra “Vigiar e Punir”. Nela se discorre sobre conceitos como o de disciplina, 
de docilização dos corpos, de panoptismo e outros. 
O trabalho visa às práticas discursivas sobre a mulher “bela, recatada e do lar” 
presentes no Jornal das Famílias, veiculado no século XIX, e na contemporaneidade, 
presente na reportagem da revista Veja, publicada em abril de 2016. O artigo encontra-
se dividido em três seções. Na primeira, discute-se o aporte teórico, conceituando a 
natureza do que Foucault assimila como corpos dóceis; seu processo de formação e suas 
respectivas técnicas disciplinares. Na segunda, traça-se um breve panorama sobre o 
papel desempenhado pela mulher na história do Brasil. Por fim, apresentam-se os 
possíveis vínculos de aproximação do processo de docilização do corpo feminino 
presenteno Jornal das Famílias e na reportagem da revista Veja. 
 
1 
APORTE TEÓRICO 
 
1.1 Docilização dos corpos 
 Antes de se adentrar no conceito de docilização dos corpos, parece prudente se 
fazer uma breve introdução a respeito da obra na qual se encontra a referida categoria de 
análise. “Vigiar e Punir”, publicada pela primeira vez em 1975. Nela, Foucault discorre 
sobre as práticas disciplinares que se consolidaram no final do século
XVII e início do 
século XVIII; bem como, atenta para a permanência destas práticas nos dias atuais, 
como veremos nas próximas seções. A obra está dividida em quatro partes, nominadas 
da seguinte forma: o suplício, punição, disciplina e prisão. 
 Para discussão acerca da docilização dos corpos, a presente leitura concentra-se 
na terceira parte do livro sobre a disciplina, da qual, Foucault (1987) procura pensar 
como se dá o processo de fabricação dos corpos dóceis. O autor enfatiza a disciplina 
como uma nova técnica de poder. A ideia remonta à história clássica, quando o corpo 
passa a ser visto como objeto do poder. Como bem descreve Foucault (1987), foi nesse 
período que houve um grande enfoque ao corpo, à época, entendido com um objeto fácil 
de ser manipulado: 
 
Houve, durante a época clássica, uma descoberta do corpo como 
objeto e alvo de poder. Encontraríamos facilmente sinais dessa grande 
atenção dedicada então ao corpo — ao corpo que se manipula, se 
modela, se treina, que obedece, responde, se torna hábil ou cujas 
forças se multiplicam (FOUCAULT, 1987, p. 163). 
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 Na intenção de mostrar como se procede ao poder disciplinar, Foucault (1987) 
cita as fábricas, as escolas, os quartéis e os hospitais como instituições nas quais a 
relação e a hierarquia de poder se apresentam da forma mais visível. 
 No caso dos quartéis, Foucault (1987) descreve a figura ideal de soldado no 
início do século XVII, podendo este ser reconhecido de longe. Já na segunda metade do 
século XVII, o soldado tornou-se uma espécie de corpo inútil ou inapto, que precisaria 
ser fabricado conforme as necessidades da instituição. 
 Em torno da discussão sobre uma teoria geral do adestramento, Foucault (1987) 
menciona o ensaio “O homem-máquina” do médico francês Julien Offray La 
Mettrie2,escrito simultaneamente em dois registros. No primeiro, denominado de 
anátomo-metafísico, as páginas iniciais são escritas por Descartes, em seguida, 
continuadas por médicos e filósofos. No segundo, considerado técnico-político, 
Foucault constitui o registro por um “conjunto de regulamentos militares, escolares, 
hospitalares e por processos empíricos, refletidos para controlar ou corrigir as operações 
do corpo” (FOUCAULT, 1987, p. 163). 
Para Foucault (1987), o ensaio de La Mettrie é, ao mesmo tempo, uma redução 
materialista da alma e uma teoria geral do adestramento, e no centro disto, destaca-se a 
noção de docilidade que une ao corpo analisável o corpo manipulável. O autor entende 
que um corpo só poderá ser dócil desde que seja submetido, utilizado, transformado e 
aperfeiçoado. 
O corpo dócil implica numa coerção contínua que procura explorar ao máximo o 
tempo, o espaço e os movimentos. Desse modo, o conhecimento dos métodos permite o 
controle minucioso das operações do corpo, realizando a sujeição constante de suas 
forças e impondo-o uma relação de docilidade-utilidade. A este processo dá-se o nome 
de disciplina. 
Foucault (1987), explica que vários processos disciplinares já existiam nos 
espaços dos conventos, dos exércitos, das fabricas, etc. Mas somente no decorrer dos 
séculos XVII e XVIII foi que as disciplinas se tornaram fórmulas gerais de dominação. 
 
O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma 
arte do corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas 
 
2La Mettrie desenvolveu em 1748 o conceito mecanicista do ser humano. 
 
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habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação 
de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais 
obediente quanto é mais útil, e inversamente. Forma-se então uma 
política das coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma 
manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus 
comportamentos. (FOUCAULT, 1987, p. 164). 
 
Como descreve Foucault (1987), o corpo humano entra numa maquinaria de 
poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Para o autor, o processo remete a 
uma espécie de “anatomia política” que se iguala a uma “mecânica do poder”. Nesta 
última etapa se define o domínio sobre o corpo do outro, não simplesmente para que 
faça o que se quer, mas para que opere do modo como se deseja, impondo com as 
técnicas da maquinaria de poder a rapidez e a eficácia que se determina. Logo, a 
disciplina fabrica corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis”. 
Para o autor, a função do poder disciplinar é de adestrar o corpo, e para este fim, 
o adestramento só poderá ser garantido com sucesso se os recursos forem bem 
aplicados. Assim, “o sucesso do poder disciplinar se deve sem dúvida ao uso de 
instrumentos simples: o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e sua combinação 
num procedimento que lhe é específico, o exame” (FOUCAULT, 1987, p. 195). Neste 
sentido, pode-se afirmar que a disciplina “fabrica” indivíduos, sendo uma técnica 
específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como 
instrumentos de seu exercício. 
 Sem dúvida, a manipulação e o adestramento do corpo não parece fruto da 
casualidade contemporânea. As relações de força e poder sempre agiram de forma 
velada sobre o corpo. No que tange a modernidade, o corpo continua a ser fabricado 
como produto, em trânsito nos diferentes espaços sociais de convivência da família, da 
escola, da igreja, da Universidade, e da inserção no mercado de trabalho. 
 
1.2 Técnicas disciplinares 
 Foucault (1987) descreve quatro técnicas ou mecanismos disciplinares que 
envolvem o processo de formação dos corpos dóceis: 1) arte das distribuições; 2) 
controle das atividades; 3) organização das gêneses; e por último 4) composição das 
forças. 
 
1) arte das distribuições 
Para Foucault (1987) a disciplina exige uma espécie de cerca, a especificação de 
um local heterogêneo a todos os outros e fechado em si mesmo. Trata-se de um local 
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protegido da monotonia disciplinar. A produção de um corpo dócil só é possível através 
de uma repartição do espaço. O espaço disciplinar tende a se dividir proporcionalmente 
pela quantidade de corpos ou elementos que há para se repartir. Cria-se um 
quadriculamento onde cada corpo ocupa um lugar em que se possa tirar o máximo dele. 
O autor cita as fábricas e as escolas, onde os corpos são distribuídos de maneira 
a regular seus movimentos e suas relações. As tarefas são delimitadas, pois cada aluno 
tem seu lugar, cada operário está devidamente posicionado na linha de montagem. A 
regulação do tempo e do espaço é o meio utilizado pela disciplina para impor uma 
ordem ao corpo, tornando-o eficiente. “A disciplina organiza um espaço analítico para 
poder vigiar o comportamento de cada um, apreciá-lo, sancioná-lo, medir as qualidades 
ou os méritos. Procedimento, portanto, para conhecer, dominar e utilizar” 
(FOUCAULT, 1987, p. 169). 
 
2) controle das atividades 
 Nesta técnica, a disciplina é constituída por meio do controle das atividades, o 
relógio, ou seja, um dispositivo capaz de conduzir o corpo sem que haja dispersão. 
Foucault (1987) cita as fábricas, quartéis e as escolas, no sentido que nessas instituições 
fabricaram uma grade de horários a ser cumpridos, como horário de entrada, saída e 
intervalo. No caso da escola, o autor mostra que no início do século XIX, foram 
propostos para a escola horários como: “8,45 entrada do monitor, 8,52 chamada do 
monitor, 8,56 entrada das crianças e oração, 9 horas entrada nos bancos, 9,04 primeira 
lousa, 9,08 fim do ditado, 9,12 segunda lousa, etc” (FOUCAULT, 1987, p. 176). 
 De forma semelhante, verifica-se esta prática nos quartéis, hospitais, prisões, etc. 
A ociosidade passa a representar a ideia de perigo. O tempo deve ser bem utilizado. De 
acordo com Foucault
(1987) é no bom emprego do corpo que o tempo será bem 
empregado, nada deve permanecer ocioso ou inútil, tudo deverá ajudar a formar o 
suporte do ato requerido. 
 
3) organização das gêneses 
Na organização das gêneses, ou seja, no arranjo das instituições em que o corpo 
disciplinado e dócil se instaura, o espaço e o tempo conduzem à acumulação de saberes, 
e também, à dominação e sujeição do corpo. O corpo a ser docilizado passa por várias 
etapas de formação, sendo o processo de docilização dividido em classes, medido por 
provas e aprimorado por exercícios. Uma série de estágios deve ser ultrapassada até que 
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a formação esteja concluída, desde os conteúdos mais simples até a estrutura mais 
complexa. 
O poder disciplinar concentra-se nos mínimos gestos (detalhes) e se acumula da 
repetição; só assim, o homem pode ser considerado útil. Não obstante, o mais 
importante na organização das gêneses é o exercício, pois, é na repetição que se cria o 
“bom estudante” e o “funcionário exemplar”, como afirma Foucault (1987, p. 187): “o 
exercício, transformado em elemento de uma tecnologia política do corpo e da 
duração, não culmina num mundo do além; mas tende para a uma sujeição que nunca 
terminou de se completar”. 
 
4) composição das forças 
Nesta última técnica de disciplina, constata-se que todo treinamento tende a se 
concentrar num ponto máximo para a eficiência. Uma massa diversificada de indivíduos 
se torna, na composição de forças, um único corpo maquinal, preparado para reproduzir 
esquematicamente conhecimentos e práticas. 
No caso da escola, Foucault (1987) afirma que os corpos já disciplinados como o 
diretor, supervisor, professor e outros sujeitos “superiores” devem fazer com que seus 
sinais sejam obedecidos pelos alunos. Neste caso, o que importa não é compreendera 
ordem, mas perceber o sinal, e logo reagir a ele, de acordo com um código mais ou 
menos estabelecido. Com isso, a máquina articulada não permite refletir, o corpo 
treinado apenas reproduz. 
Em síntese, entende-se que a disciplina produz a partir dos corpos docilizados 
quatro tipos de individualidade, ou uma individualidade dotada de quatro 
características: “a celular (pelo jogo da repartição espacial), a orgânica (pela codificação 
das atividades), a genética (pela acumulação do tempo), e a combinatória (pela 
composição das forças)” (FOUCAULT, 1987, p. 176). 
 
2 
O PAPEL DA MULHER NO BRASIL 
 
 É pouco provável se debruçar sobre o papel da mulher na história do Brasil sem 
relacioná-lo às funcionalidades sociais do âmbito familiar. O papel da mulher, 
historicamente, sempre esteve atrelado ao da família. Se retomarmos a história das 
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famílias brasileiras, percebemos a institucionalização da chamada família patriarcal, 
originária do modelo de sociedade fundamentado no patriarcalismo. 
 A família é uma microssociedade (PROST, 1992), com organização política, 
econômica, social e cultural, baseada nas macroestruturas sociais em que cada família se 
encontra. Cada membro familiar conduz um papel. No que diz respeito à função da 
mulher na família, percebe-se desde a antiguidade, com a dominação do poder da igreja 
sob as sociedades ocidentais, forte submissão da mulher à figura do “pai”: 
A todo-poderosa Igreja exercia forte pressão sobre o adestramento da 
sexualidade feminina. O fundamento escolhido para justificar a 
repressão da mulher era simples: o homem era superior, e portanto 
cabia a ele exercer a autoridade. São Paulo, na Epistola aos Efésios, 
não deixa dúvidas quanto a isso: “As mulheres estejam sujeitas aos 
seus maridos como ao Senhor, porque o homem é a cabeça da mulher, 
como Cristo é a cabeça da Igreja... Como a Igreja está sujeita a Cristo, 
estejam as mulheres em tudo sujeitas aos seus maridos” (ARAÚJO, 
2015, p. 45-46). 
 
Para Araújo (2015), nessa época, pretendia-se controlar a sexualidade feminina 
de várias formas e em diversos níveis. Qualquer comportamento “desviante” da mulher 
deveria ser corrigido com severas punições, como previa a legislação civil do Brasil 
colonial. 
Outros sujeitos que fomentaram a ideia de inferioridade da mulher perante o 
homem foram os médicos. Conforme Priore (2015), nos tempos da colonização, o 
médico era um criador de conceitos, e cada conceito elaborado tinha uma função no 
interior de um sistema que ultrapassava o domínio da medicina propriamente dito. O 
exemplo de incentivo à submissão feminina pode ser extraído da interpretação do 
médico mineiro Francisco de Melo Franco, em 1794: 
[...] se as mulheres tinham ossos “mais fraca do que o homem”. Suas 
carnes, “mais moles [...] contendo mais líquidos, seu tecido celular 
mais esponjoso e cheio de gordura”, em contraste com o aspecto 
musculoso que se exigia do corpo masculino, expressava igualmente 
a sua natureza amolengada e frágil, os seus sentimentos “mais 
suaves e ternos”. Para a maior parte dos médicos, a mulher não se 
diferenciava do homem apenas por um conjunto de órgãos 
específico, mas também por sua natureza e por suas características 
morais. (PRIORE, 2015, p.79). 
 
 
Durante o século XIX, a sociedade brasileira sofreu uma série de 
transformações. Presenciou-se o nascimento de uma nova mulher nas relações da 
chamada família burguesa, ali marcada pela valorização da intimidade e da 
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maternidade, do ambiente familiar acolhedor, dos filhos educados com base na 
religiosidade da esposa dedicada ao marido, às crianças e à igreja. 
D’incao (2015) mostra que as mulheres casadas ganhavam uma nova função, a 
de contribuir para o projeto familiar de mobilidade social, através de postura feminina 
nos salões, como anfitriãs, e na vida cotidiana, em geral, como esposas modelares e 
boas mães. Percebe-se o reforço da ideologia ideal de mulher: ser mãe, dedicada, 
recatada e atenciosa. 
Os cuidados e a supervisão da mãe passam a ser muito valorizados nessa época, 
ganha força a ideia de que seria importante que as próprias mães cuidassem da primeira 
educação dos filhos, não deixando suas crias aos cuidados das amas, negras ou 
“estranhos”, “moleque” de rua. (D’INCAO, 2015, p. 229). Tem-se aqui, o perfil da 
mulher do lar. 
Assim, o sucesso das famílias burguesas no século XIX, passa a depender o 
desempenho das mulheres no espaço doméstico. Não se pode esquecer que a 
emergência da família burguesa, ao reforçar no imaginário a importância do amor 
familiar e do cuidado com o marido e com os filhos, redefine o papel feminino e, ao 
mesmo tempo, reserva para as mulheres novas e absorventes atividades no interior do 
espaço doméstico. 
D’incao (2015) mostra que algumas instituições médicas, educativas e de 
impressa, da época, reforçaram esse papel com a propagação de uma série de propostas 
que visavam “educar” a mulher para o seu papel de guardiã do lar e da família; como 
exemplos que revelam esta natureza, tem-se o jornal das famílias, que será apresentado 
na seção 3.1, e a medicina, que também combatia severamente o ócio, sugerindo que as 
mulheres se ocupassem ao máximo dos afazeres domésticos. 
Não muito diferente das mulheres burguesas, Falci (2015) afirma que as 
mulheres de classe mais abastada não tinham muitas atividades fora do lar. Eram 
treinadas para desempenhar o papel de mãe e as chamadas “prendas domésticas”, ou 
seja, suas funções eram orientar os filhos, cozinhar, costurar e bordar. Outras, menos 
afortunadas, viúvas ou de uma elite empobrecida, faziam doces por encomenda, arranjos 
de flores, bordados a crivo, davam aulas de piano e solfejo, e assim puderam ajudar no 
sustento e na educação da numerosa prole. 
Como se vê, a mulher do século XIX, independente da classe social ou do grau 
de instrução, estava restrita à esfera do espaço privado, da casa,
do lar. A esfera pública 
do mundo econômico, político, social e cultural pertencia, exclusivamente, ao homem. 
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Daí afirmar que a mulher dificilmente seria considerada uma cidadã política, pensante, 
mas sim um corpo a ser domado, controlado, vigiado. 
 
3 
ANÁLISE DAS PRÁTICAS DISCURSIVAS SOBRE A MULHER “BELA, 
RECATADA E DO LAR” 
 Para compreensão de um determinado fato histórico é indispensável a análise da 
prática discursiva, como propõe Foucault (2004), pois é no dizer que se fabrica as 
noções, os conceitos e as verdades de um dado momento histórico. Gregolin (2007) 
aponta que a análise dessas práticas é uma forma de mostrar que a relação entre o dizer 
e a produção de uma “verdade” é um fato histórico. 
No que tange aos textos midiáticos, Gregolin (2007) afirma que a criação de 
uma “unidade” do sentido é um recurso discursivo que fica evidente nesses tipos de 
textos. 
Como o próprio nome parece indicar, as mídias desempenham o papel 
de mediação entre seus leitores e a realidade. O que os textos da mídia 
oferecem não é a realidade, mas uma construção que permite ao leitor 
produzir formas simbólicas de representação da sua relação com a 
realidade concreta. (GREGOLIN, 2007, p. 16) 
 
Para Gregolin (2007), a mídia é o principal dispositivo discursivo por meio do 
qual é construída uma “história do presente”, pois é ela que formata a historicidade que 
nos atravessa e nos constitui, modelando a identidade histórica que nos liga ao passado 
e ao presente. 
 Sabendo da forte influência da mídia na fabricação de sujeitos na sociedade 
moderna e contemporânea, a análise que será apresentada aqui consistirá, estritamente, 
no entrecruzamento da categoria de corpos dóceis, encontrado na obra de Michel 
Foucault, comas práticas discursivas sobre um modelo de mulher, isto é, “bela, recatada 
e do lar” que se observa em textos midiáticos de dois períodos distintos da história no 
Brasil. Um deles está no jornal impresso do século XIX e o outro se apresenta nos dias 
atuais, em reportagens veiculadas por revistas de impacto nacional e internacional. 
 
3. 1 Processo de docilização no Jornal das Famílias 
No que concerne ao século XIX, selecionamos o Jornal das famílias3 produzido 
durante os anos 1863 a 1878. Conforme Castro (2014) foi um jornal pensado e editado 
 
3 Atualmente quase todas as edições do jornal estão disponíveis na homepage da Biblioteca Nacional 
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pelo Francês Garnier para atender as necessidades das mulheres, exclusivamente, para o 
entretenimento. Mas para, além disso, é possível observar o conteúdo moralizante em 
todo o periódico. Como aponta Falci (2015, p. 241) “a elas certos comportamentos, 
posturas, atitudes e até pensamentos foram impostos. 
Na primeira edição do jornal constata-se que o periódico se consuma como a 
continuação da Revista Popular (de circulação mais geral), no entanto, voltado para as 
atividades domésticas: “O Jornal das Famílias, pois, é a mesma Revista Popular d’ora 
avante mais exclusivamente dedicada aos interesses domésticos das famílias 
brasileiras.” (Jornal das Famílias, 1863, p. 02). 
Conforme Castro (2014) é na leitura do editorial que se percebe como o espaço 
exclusivo da leitora era destinado a tarefas domésticas, como cozinhar, costurar, cuidar 
da casa, dos filhos, etc.: “as casadas dedicam-se ao cuidado com a administração do lar, 
enquanto que as solteiras aprendem a cozinhar, como se estivessem se preparando para 
o lar que ainda não possuíam”. (CASTRO, 2014, p. 20). 
O jornal das Famílias também trazia “dicas” de beleza, de como a mulher bela 
deveria cuidar de sua saúde, sua pele, traços que marcam a feminilidade: “o fundamento 
das formas belas é a saúde, e para isso não ha como o movimento e o exercício ao ar 
livre, alimentação substancial e regularidade de nos hábitos da vida, levantar cedo e não 
deitar tarde. [...] Que uma pele macia e brilhante seja um predicado da beleza, ninguém 
o contestará por certo, trata-se, porém, de saber como se conserva e mesmo como se 
obtém este dote”. (Jornal das Famílias, 1863, p. 03). 
Observam-se também, durante a leitura do jornal, receitas de produtos 
cosméticos caseiros para cuidar da pele, dos cabelos, receitas para cozinhar, instruções 
para bordar, fazer crochê ou indumentárias da época. Como exemplos, segue abaixo a 
figura 01 e 02 mostrando uma receita caseira para cuidar da pela e explicações sobre 
figurinos. 
 
 
 
 
 
 
 
Digital do Brasil (http://hemerotecadigital.bn.br/acervo-digital/jornal-familias/339776). 
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Figura 01 – Receita caseira para cuidar da pele 
Fonte: Extraído do Jornal das Famílias (1863). 
 
 A figura 02 mostra como se apresentavam as instruções para costurar bons trajes 
no século XIX. Inicialmente, apresentam-se os modelos de trajes elegantes da época e 
em seguida explicações sobre cada um. 
 
 
Figura 02 –Figurinos do século XIX 
Fonte: Extraído do Jornal das Famílias (1864). 
 
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Figura 03 – Descrição e explicação dos figurinos 
Fonte: Extraído do Jornal das Famílias (1864). 
 
Estes exemplos mostram como o poder disciplinar se materializa no discurso, e 
consequentemente, no corpo que o reproduz, o corpo feminino. Vê-sea existência do 
regimento disciplinar, do qual, a mulher oitocentista é obrigada a cumprir, isto é, cuidar 
dos afazeres domésticos e do papel de instrução para uma boa esposa, a fim de que não 
desfrutasse do ócio, tão condenado pelos médicos da época. Constatam-se inúmeras 
instruções de como ela deveria agir no âmbito familiar. De fato, a mulher passa por um 
processo de docilização que tende a esquadrinha-la no discurso da “mulher bela, 
recatada e do lar”. 
Em relação às quatro técnicas disciplinares, mencionadas na seção 1.2, para se 
chegar ao corpo dócil, percebe-se que a arte das distribuições corresponde ao espaço 
em que a mulher ocupa: a casa e o lar. É justamente neste espaço que se aproveita da 
mulher, no controle das atividades, pois, a ela, incumbe-se horário para cuidar dos 
afazeres domésticos e dos filhos, até mesmo, para se dormir. Segundo as “dicas” do 
Jornal das Famílias, as mulheres deveriam dormir cedo para preservarem sua beleza. 
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Por ser um jornal que tem extensa periodicidade, as instruções sobre as tarefas 
domésticas sempre se repetiam, culminando assim na organização das gêneses. 
A reprodução das instruções no controle das atividades e na organização das 
gêneses faria da mulher uma “boa esposa, excelente dona de casa e ótima mãe”. No que 
tange a composição das forças, é arquitetada a obediência das instruções trazidas pelo 
referido jornal, não só destinada às mulheres casadas, mas às solteiras, que almejavam 
ao matrimônio. As mulheres solteiras do século XIX deveriam aprender com as mais 
experientes, normalmente as mães. Uma tradição de aprendizagem de afazeres 
domésticos que era transmitida de mãe para filha. 
 
3.1 Processo de docilização na revista Veja 
 A revista Veja é um periódico semanal produzido pela Editora Abril. Na edição 
de número 2474, publicada no dia 18 de abril de 2016, o papel da mulher 
contemporânea tornou-se o assunto principal das ruas, das casas, dos ambientes de 
trabalho e das redes sociais. Com a reportagem intitulada: Bela, recatada e “do lar”, a 
matéria escrita pela jornalista Juliana Linhares parece pautada
no objetivo de descrever 
quem seria a “quase primeira-dama” Marcela Temer, hoje primeira-dama interina, tendo 
em vista o afastamento da presidenta Dilma Rousseff. 
 De antemão, vale ressaltar o contexto referencial desta publicação. A edição de 
número 2474 da revista foi publicada em meio ao cenário conturbado da politica 
brasileira (em curso do processo de tramitação do impeachment, imputado à presidenta 
Dilma Rousseff). A interinidade do presidente em exercício, Michel Temer, reverbera 
na caracterização de Marcela como “quase primeira-dama”. 
Em meio à polarização da cena política brasileira, dividida entre os que apoiam 
o impeachment, e os que consideraram o processo como golpe de Estado, a revista Veja 
emplacou a manchete “bela, recatada e do lar”. Em defesa dos interesses econômicos do 
grupo social que a financia, parte da mídia brasileira parece desinteressada da 
informação gratuita, e interessada na manipulação da vida política do país. A este 
critério, pensa-se a reportagem da revista Veja, em face do projeto de adestramento do 
sujeito analisado por Foucault, como se vê a seguir. 
 
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Figura 04 – Matéria da Revista Veja sobre Marcela Temer 
Fonte: Extraído da revista Veja (2016). 
 
A figura 04 mostra a “cabeça” da reportagem, trazendo ao leitor a imagem de 
Marcela Temer, ilustrada pela sinopse da legenda: “A quase primeira-dama Marcela 
Temer, 43 anos mais jovem que o marido, aparece pouco, gosta de vestidos na altura 
dos joelhos e sonha em ter mais filho com o vice”. 
Ao longo da reportagem, a jornalista Juliana Linhares apresenta a biografia de 
Marcela Temer, comentando sobre sua formação acadêmica e a rotina diária da quase 
primeira-dama. O texto inicia-se com o trecho: “Marcela Temer é uma mulher de sorte”. 
A jornalista conta ao público que Temer foi o primeiro namorado de Marcela, e que eles 
se casaram quando ela tinha 20 anos, e ele, 62. Ela é Bacharel em Direito, mas nunca 
exerceu a profissão de advogada. Gosta das tarefas domésticas e se dedica ao filho e ao 
marido. 
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A impressão do leitor ao ler a reportagem é a descrição de uma mulher burguesa 
do século XIX, como já citado na seção 2. O processo de docilização do corpo da 
mulher está explicito na pratica discursiva da jornalista, ao apresentar Marcela Temer. 
Considerando as quatro técnicas disciplinares, destaca-se na primeira delas, a arte das 
distribuições, a ideia que consiste em fixar o “lugar” que Marcela ocupa: o espaço 
doméstico. 
A dócil presença de Marcela na família Temer é corroborada pelo trecho: 
“Marcela é uma vice-primeira-dama do lar”. A segunda técnica, o controle das 
atividades, corresponde ao relógio que controla cada atividade de Marcela Temer. Neste 
cotidiano, cita-se as tarefas da mãe afetuosa, que busca o filho na escola; da mulher 
vaidosa, que vai ao salão de beleza para cuidar do cabelo e da pele, e da jovem esposa, 
mais inteirada do que o setuagenário marido com o gerenciamento das mídias digitais 
dele. Atrelado ao controle das atividades está a organização das gêneses, ou seja, a 
repetição das tarefas domésticas e o cuidado com a beleza, conforme se observa-se no 
fragmento da matéria: 
Seus dias consistem em levar e trazer Michelzinho da escola, cuidar 
da casa, em São Paulo, e um pouco dela mesma também (nas últimas 
três semanas, foi duas vezes à dermatologista tratar da pele). [...] 
“Marcela sempre chamou atenção pela beleza, mas sempre foi 
recatada”, diz sua irmã mais nova, Fernanda Tedeschi. “Ela gosta de 
vestidos até os joelhos e cores claras”, conta a estilista Martha 
Medeiros.[...] Marcela é o braço digital do vice. (Revista Veja, abr. 
2016) 
 
A última técnica de formação dos corpos dóceis é a composição das forças; 
trata-se do corpo treinado. A mulher é posicionada de forma docilizada, preparada para 
ocupar o lar e ser uma “boa esposa e mãe”. Caberá a ela, mulher, reproduzir o processo 
de docilização à outras mulheres, que por conseguinte, deverão obedecer aos seus 
sinais, caso queiram obter o sucesso de Marcela Temer, referida na matéria jornalística 
como “mulher de sorte”, que conseguiu se casar com um “homem de sorte”. 
 
CONSIDERAÇÕES FINAIS 
Os resultados da análise feita sobre as práticas discursivas no Jornal das 
Famílias e na reportagem da Veja sobre Marcela Temer, mostram que a história do 
poder disciplinar sobre o corpo feminino é descontínuo. Semelhante processo de 
docilização encontrado no Jornal das Famílias (século XIX) também reverbera na 
reportagem da Revista Veja (século XXI), em recortes temporais distintos. 
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 A luz da docilização do corpo, a mulher “ideal” é aquela que sabe cuidar da casa 
e dos filhos, é a mulher “prendada”, “bela, recatada e do lar”. Em ambas as práticas 
discursivas analisadas, tanto no jornal quanto na revista, o papel feminino impõe a total 
submissão ao homem, instaurando assim o poder disciplinar do corpo da mulher. No 
século XIX o único espaço da mulher era a esfera privada, a casa. Já no século XXI é 
possível encontrar o corpo feminino nos espaços públicos, conquista do movimento e da 
luta feminista. 
Na contramão das conquistas emancipatórias da mulher, a reportagem da revista 
Veja parece perpetuar o “ideal de mulher”, concedendo notoriedade a Marcela Temer, 
por observar na quase primeira-dama traços da docilidade. 
 Desde o surgimento da imprensa, a mídia confirmou-se como forte dispositivo 
capaz de disciplinar sujeitos e manter a ordem social preestabelecida. Ao lado da mídia, 
a família como microssociedade, irá reproduzir a ordem social (mulher disciplina e 
submissa), criando novas forças de poder, novos corpos dóceis. Ciente da maleabilidade 
do poder, sensível às novas construções e usos sociais, torna-se possível assimilar a 
força subjetiva que rompe com os processos de docilização. 
 Ainda é preciso se aprofundar e acrescentar categorias e reflexões foucaultianas 
para uma análise mais consistente e aprimorada. Todavia, este trabalho fornece novos 
resultados, completados pelas categorias da formação discursiva, da história 
descontínua, das regularidades, das ordens do discurso, e da ideia de dispositivo. Para 
além da análise do discurso, os resultados também servem ao propósito da análise 
sociológica, observando questões sociais como o machismo, o papel da mulher 
contemporânea, a manipulação midiática, a sociedade de controle e a sociedade 
disciplinada. 
 
AUTOR 
*Romário Duarte Sanches é Doutorando em Linguística pela Universidade Federal do 
Pará (UFPA). Mestre em Linguística pela mesma universidade (UFPA). Especialização 
em Estudos Linguísticos e Análise Literária pela Universidade do Estado do Pará 
(UEPA). Graduado em Letras/Inglês pelo Instituto de Ensino Superior do Amapá 
(IESAP). Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Amapá 
(UNIFAP). Atua nas áreas de Letras e Linguística. 
 
 
 
 
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de Julho de 2016. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
http://hemerotecadigital.bn.br/acervo-digital/jornal-familias/339776
http://veja.abril.com.br/brasil/marcela-temer-bela-recatada-e-do-lar/
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Dossiê 
 
VIDA SERIAL, ÊXTERO-CONDICIONAMENTO E 
IDEOLOGIA: uma análise dos ‘mass media’ pela ótica 
de Sartre 
 
Vinícius dos Santos* 
 
 
 
Resumo: o artigo pretende resgatar o modo como o conceito de série, ou de vida serial, 
presente na Crítica da razão dialética de Sartre, e seu desdobramento naquilo que este 
filósofo qualifica como êxtero-condicionamento, podem ser ferramentas conceituais 
úteis para se pensar o papel e o funcionamento dos meios de comunicação de massa na 
contemporaneidade. Particularmente, no que diz respeito à disseminação de discursos 
ideológicos, como, por exemplo, o colonialismo e o racismo. Para tanto, se tratará, 
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primeiramente, de recuperar as linhas de força do edifício teórico erigido na Crítica, 
sobretudo a relação entre alienação e prático-inerte, para, na sequência, esclarecer o 
vínculo entre aqueles conceitos. 
Palavras-chave: alienação, êxtero-condicionamento, ideologia, meios de comunicação, 
serialidade. 
 
 Em texto publicado há pouco mais de uma década, Frederic Jameson afirmava que 
o conceito sartriano de série, que aparece na Crítica da razão dialética, de 1960, seria 
“a única teoria satisfatória da opinião pública, a única verdadeira filosofia das mídias 
elaboradas até hoje” (JAMESON In: KOUVÉLAKIS & CHARBONNIER, 2005, p. 
27). 
Sem necessariamente corroborar com o caráter peremptório da afirmação do 
filósofo norte-americano, este artigo pretende resgatar o modo como a noção de vida 
serial, e seu desdobramento naquilo que Sartre qualifica como êxtero-condicionamento, 
podem ser ferramentas conceituais úteis para se pensar o papel e o funcionamento dos 
meios de comunicação de massa, mesmo que Sartre não tenha elaborado uma teoria 
completa sobre o tema. Particularmente, nossa atenção se volta ao modo de 
disseminação de discursos ideológicos, como, por exemplo, o colonialismo e o racismo, 
que a grande mídia pode viabilizar. Para tanto, será preciso, primeiramente, recuperar as 
linhas de força do edifício teórico erigido na Crítica, para, na sequência, esclarecer o 
agenciamento entre aqueles conceitos. 
 
I 
 
A Crítica da razão dialética representa o esforço definitivo de Sartre de fazer 
convergir seu existencialismo com uma interpretação não dogmática do marxismo. Sem 
entrar no mérito global da proposta, pode-se afirmar que a obra de 1960 visa esclarecer 
as condições transcendentais da história e, mais particularmente, da sociabilidade 
capitalista, por um viés materialista de assumida inspiração marxista. O ponto de partida 
da chamada “experiência crítica” encontra-se na relação entre a práxis individual[1] e o 
binômio necessidade/escassez, cujo esclarecimento é imperativo para posteriormente se 
compreender a noção de série. 
Pela práxis, isto é, pela ação no mundo inerte, o indivíduo busca satisfazer suas 
necessidades orgânicas. A necessidade faz surgir a primeira relação totalizante do ser 
humano enquanto organismo prático, ser material, com seu meio. Com efeito, ela 
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representa a primeira negação da matéria e sua primeira totalização. “A necessidade é 
negação de negações na medida em que ela se denuncia como uma falta no interior do 
organismo, e ela é positividade na medida em que, por ela, a totalidade orgânica tende a 
se conservar como tal” (SARTRE, 1985, p. 194). A necessidade destotaliza a totalidade 
plena subsistente no mundo inorgânico, e essa destotalização injeta a negatividade no 
mundo, acionando uma lógica dialética de totalizações mediante a destruição de cada 
momento parcial. 
Ao agir no mundo material, o homem cria um campo prático, em conjunto com 
outros indivíduos (também agentes em busca de satisfazer suas carências), imprimindo 
um significado propriamente humano à matéria trabalhada, e criando uma nova 
dinâmica de inter-relações. Assim, a matéria circundante, passiva e inerte, torna-se 
sujeita a uma série de unificações e totalizações de outras práxis que escampam a cada 
agente. Minha totalização, porque adentra o campo totalizador da práxis de outrem, é 
igualmente destotalizada por esses outros campos. Sartre ilustra essa relação através do 
seguinte exemplo: um jardineiro e um calceteiro, desconhecidos entre si, trabalham em 
lados opostos de um mesmo muro. Cada um é o centro de sua própria ação no mundo 
objetivo, centro de uma disposição diferente do universo, e que possui seu próprio 
campo totalizante. A princípio, inexiste relação direta entre eles. Contudo, a 
intermediação, ignorada por ambos, de um terceiro – um intelectual que os observa da 
janela – e promove a unificação dessa díade. 
O homem só existe para o homem em circunstâncias e em condições 
sociais dadas; portanto, toda relação humana é histórica. Mas as 
relações históricas são humanas na medida em que elas se dão a 
qualquer tempo como a consequência dialética imediata da práxis, isto 
é, da pluralidade de atividades no interior de um mesmo campo 
prático (SARTRE, 1985, p. 210). 
 
 No âmbito das relações práticas, há reciprocidade sempre possível, pois nela me 
torno veículo do projeto totalizante de outro na medida em que o outro se torna veículo 
de minha totalização. Em outras palavras, há um intercâmbio. Além disso, dois 
indivíduos também podem ser veículos de um projeto conjunto, transcendente. Neste 
caso, tais formas de reciprocidade se qualificam como positivas. Não obstante, ao haver 
recusa de uma relação recíproca tem-se o conflito. Doravante, afirma Sartre, cada um 
utilizará seu próprio campo material com o objetivo de conquistar objetivamente o 
outro, tendo como base a relação de carência. Trata-se de uma 
reciprocidade negativa (instrumentalização do outro, reificação, confronto). 
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 Mas, se o ponto de partida da experiência crítica é a práxis do ser humano que 
busca satisfazer suas necessidades, cumpre complementar este princípio com um dado 
alarmante e decisivo para se compreender a vida social e histórica pela ótica sartriana: a 
escassez,
desenvolver uma estratégia de dominação do mundo com base 
na idéia de criação do “inimigo supremo” e do armamentismo 
nacional, a política de Washington estaria estimulando a proliferação 
de armas de destruição em massa no plano internacional e, 
consequentemente, fazendo do mundo um lugar mais inseguro. 
6. O verdadeiro caráter da política do mais poderoso país do mundo 
revela-se não pelo poder da retórica de seus presidentes e diplomatas, 
mas por suas ações e contradições práticas, muitas vezes encontradas 
no confronto entre os documentos e discursos oficiais e a observação 
prática. 
7. Os alvos de intervenções humanitárias das potências ocidentais 
são descartáveis no day after, o que confirmaria o descompromisso 
com os altos valores de proteção dos direitos humanos em condição 
universal, conforme retoricamente anunciados. (BENVENUTO, Lua 
Nova, São Paulo, 73: 123-145, 2008) 
 
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 As convicções de Chomsky segundo as quais o sistema de controle por ele 
descrito manipula os cidadãos do seu país – e do mundo – na medida em que reúne “os 
grandes partidos, as corporações, uma fatia muito especial de advogados, o poder 
militar e também os grandes meios de comunicação” (Halperin, 2003, p. 8; tradução do 
autor) são sustentadas por um arsenal propagandístico que ao mesmo tempo em que 
gera, alimenta-se do medo. 
 Na condição de autor de orientação “anarco-sindicalista", Chomsky atribui a 
condição de sócios na tarefa de dominar o mundo a instituições – o Estado (em especial 
o poder militar), as grandes corporações econômicas, as universidades (e seus 
funcionários), a mídia – tão poderosa quanto difícil de ser confrontada, e ainda mais 
superada. 
 Este artigo tem o objetivo de enfocar na compreensão do autor em relação às 
conexões entre a política, em especial a política internacional, a propaganda e o medo, 
como elementos de uma grandiosa estratégia de dominação global. Ao mesmo tempo 
em que procurarei demonstrar a força das ideias do autor, pretendo apresentar alguns 
pontos que considero dignos de serem problematizados em sua teoria. 
 
A GRANDIOSA ESTRATÉGIA IMPERIAL 
 
 Chomsky demonstra crer na existência de uma conspiração transnacional pela 
manutenção do status quo internacional a qual descreve como grandiosa estratégia 
imperial dos Estados Unidos da América. Embora não deixando de relacionar sua 
análise com outros períodos históricos, o trabalho de Chomsky se concentra sobretudo 
nas estratégias utilizadas por seu país para manter o poder mundial, papel assumido ao 
longo do século XX, e principalmente com o término da II Guerra Mundial. O projeto 
de controle internacional teria sido baseado em 
estudos realizados já em 1941 (que) concluíam que o objetivo 
fundamental de longo prazo era que os Estados Unidos se 
transformassem na potência inquestionável do pós-guerra e agissem de 
forma tal que limitassem a soberania de qualquer Estado que pudesse 
interferir na política de adquirir supremacia militar e econômica […] 
(2004a, p. 16) 
 
 A grandiosa estratégia imperial seria baseada no direito auto-instituído de 
empreender “guerra preventiva” quando desejar, com respaldo no direito internacional 
contemporâneo e certamente no poderio militar inquestionável. (Chomsky, 2004b, p. 
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18) Entre outras, a categoria jurídica “crimes de guerra” é apresentada como maleável o 
suficiente para ser usada ou descartada quando se apresentar conveniente do ponto de 
vista político e militar. Não fora por outra razão que os EUA anunciaram que 
ignorariam o Conselho de Segurança da ONU com relação ao Iraque quando do ataque 
às torres gêmeas em 11 de setembro de 2001, ignorando as normas multilaterais e 
passando a adotar o uso da força unilateral. (Chomsky, 2004b, p. 19) 
 A conveniência da guerra preventiva seria a de que para se encaixar na categoria, 
o alvo "precisa ser totalmente indefeso”, “ter importância suficiente para compensar o 
esforço”; e “haver um meio de pintá-lo como a mais terrível e iminente ameaça à nossa 
sobrevivência.” (Chomsky, 2004b, p. 23) 
 Além de manter o poder político global no cenário mundial, o objetivo da 
grandiosa estratégia imperial conduzida pelos Estados Unidos da América seria manter 
o sistema econômico capitalista. Em cada situação geopolítica objeto de sua análise, 
Chomsky identifica as conexões com o poder econômico, como faz no que se refere às 
intenções estadunidenses relacionadas ao conflito no Iraque: 
Os programas econômicos que têm sido anunciados seguem o 
estandarizado modelo neoliberal, na tentativa de transferir o controle 
da economia iraquiana para corporações multinacionais e instituições 
financeiras, a maior parte baseadas nos Estados Unidos. (…) Uma 
base militar no Iraque será a primeira no coração da maior região de 
produção energética que é verdadeiramente confiável, sempre que ao 
Iraque não seja permitido ir além da independência formal. 
(Halperin, 2003, p. 17; tradução do autor). 
 
 O final da citação anterior demonstra a visão do autor de que o controle exercido 
pelos Estados Unidos da América sobre seus parceiros seria sobretudo político. Uma 
vez fosse demonstrada a intenção dos atores políticos de escaparem ao controle político, 
seria retirado o apoio econômico e político, passando a se constituir em objeto da luta 
por dominação. 
 O programa de controle global estaria em inteira compatibilidade com os gastos 
norte americanos em matéria militar: o mesmo que todo o resto do mundo reunido. Na 
contramão do que o mundo aprendeu a conhecer e louvar sobre os Estados Unidos da 
América, Chomsky considera seu próprio país um “estado totalitário”, não muito 
diferente de outros com pretensões imperiais, como a Rússia e a China. Colocar os 
Estados Unidos da América no spotlight de suas críticas tem o sentido consciente de dar 
correspondência à importância que o país tem no plano mundial como exemplo de 
democracia. 
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Num estado totalitário, não importa o que o povo pensa, já que o 
governo pode controlá-lo pela força usando um cacete. Mas quando 
você pode controlar o povo pela força, você tem que controlar o que o 
povo pensa, e o modo padrão para fazer isso é pela via da propaganda 
(criação de consenso, criação de ilusões necessárias), marginalizando 
o público em geral ou limitando-lhes à apatia de alguma moda. […] 
Numa sociedade totalitária, a guerra é um negócio sério e […] o 
ditador simplesmente diz ‘estamos indo à guerra’ e todos marcham 
(Manufacturing consent, 1992, tradução do autor). 
 
 A grandiosa estratégia imperial teria sido reforçada, sob Bill Clinton e Tony 
Blair, pela ideia de um “novo internacionalismo”, a qual seria justificada pela 
intolerância brutal aos grupos étnicos que incomodam o império e “seu sócio britânico”. 
Segundo ele, a nova ordem internacional tratou de atribuir-se legitimidade exclusiva 
para agir em nome da comunidade de nações, usando a força sempre que considerasse 
adequado e em obediência às “modernas noções de justiça”. 
 A doutrina da nova ordem internacional global, para Chomsky, resume-se à 
palavra de ordem: “os tiranos que se cuidem”. Sua análise é focada nos objetivos 
anunciados pelos Estados Unidos, e certamente seu “sócio britânico” e pela OTAN para 
a intervenção em diversas partes do mundo com os objetivos anunciados de “garantir a 
estabilidade”; “conter a limpeza étnica”; e “garantir a credibilidade da OTAN”. 
 Ao tratar das intervenções humanitárias, Chomsky não se restringe a enquadrar o 
termo na definição legal constante das convenções internacionais de Direito 
Humanitário. Considera intervenções humanitárias as ações, embora unilaterais, de 
potências militares no sentido de retórica e formalmente justificarem a manutenção da 
paz em regiões
fenômeno que impede a satisfação das necessidades de todos, imprimindo à 
intersubjetividade o sinal negativo da luta e da violência. 
 Com efeito, segundo o filósofo, a História humana não se inicia apenas com o 
movimento de busca de satisfação das carências orgânicas. Antes, seu indício originário 
é a impossibilidade de satisfazê-las plenamente, na medida em que haveria um 
descompasso entre os recursos naturais/materiais forçosamente finitos e as necessidades 
humanas tendencialmente infinitas. Embora não seja necessária, diz Sartre, a escassez 
seria, na prática, universal, demarcando, assim, o limite externo da ação prática dos 
indivíduos. 
À luz dessa situação, os seres humanos, organismos “primeiramente separados”, 
se unem para lutar contra a escassez. Criam objetos, ferramentas, máquinas etc. com o 
intuito de dominar a natureza e minimizar a penúria primitiva, relaxando a pressão por 
ela exercida. Criam, por conseguinte, as condições materiais de sua reprodução. Numa 
palavra, fazem história. A escassez, “determinação contingente de nossa relação 
unívoca à materialidade” (SARTRE, 1985, p. 237), é o índice que, para Sartre, inaugura 
a inteligibilidade da história humana. 
 Desse modo, a escassez fundamental promove uma unidade negativa de todos 
enquanto incompletude (ou como “totalidade-destotalizada”), efetiva “impossibilidade 
de viver”. O resultado é dramático: a própria coexistência, que a princípio serviria para 
minimizá-la ou superá-la, com o decorrer do tempo devém igualmente impraticável. 
Sob a égide da escassez, explica Sartre, cada um se torna um excesso para os outros, um 
consumidor em potencial de algo que não existe para todos, que não poderá ser 
consumido mais tarde etc. Cada um passa, assim, a ser Outro-que-não-eu, um ser 
inumano, alienígena; um perigo para mim na exata medida em que sou um perigo para o 
outro. Onde a reciprocidade é alterada pela escassez cria-se o anti-homem: o outro é 
visto como um excesso, redundante, de trop[2]. 
 Assim, em um quadro de escassez, o homem “é objetivamente constituído como 
inumano e essa inumanidade se traduz na práxis pela apreensão do mal como estrutura 
do Outro” (SARTRE, 1985, p. 244). 
 
II 
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 O que foi visto na seção precedente pode ser sintetizado no seguinte trânsito 
dialético: a natureza, intrinsecamente escassa, não possibilita ao ser humano a completa 
satisfação de suas necessidades (negação da própria possibilidade de existência do 
homem). Este, por sua vez, cria objetos e se une aos outros para superá-la (negação da 
negação). Mas, essa união cria uma reciprocidade alterada pela própria escassez, uma 
união negativamente estabelecida por um fator externo, uma tensão fundamental e 
inevitável em nome da sobrevivência. Segundo Sartre, toda sociedade se constitui como 
uma forma de luta contra a escassez. Por conseguinte, o binômio necessidade/escassez 
seria o verdadeiro “motor da História”. Ela seria o fundamento da escassez própria aos 
modos de produção históricos descritos pelo marxismo; consequentemente, a via de 
inteligibilidade da luta de classes. 
Sempre segundo Sartre, a escassez torna os indivíduos antagonistas entre si, não 
obstante forçá-los, ao mesmo tempo, a um mínimo de cooperação em nome de sua 
sobrevivência. Contudo, não é apenas a escassez que, externamente, interfere e altera a 
reciprocidade interindividual. De acordo com o filósofo, a própria forma com que os 
seres humanos se relacionam entre si pela intermediação do campo material os opõe uns 
aos outros, porquanto esta relação é, em si mesma e inexoravelmente, alienante. 
 Explica-se: diante da realidade da escassez, a ação de cada um é orientada em 
relação à ação dos outros. Ao criar um instrumento de trabalho ou um objeto de 
consumo, a pressão exercida pela escassez é afrouxada e as relações de alteridade no 
interior do grupo diminuem. Não obstante, esse fenômeno positivo logo se reverte. 
Justamente porque a negação originária não pode ser abolida, ela reaparece em um nível 
mais elevado: o da produção social. O produto da ação humana – sua objetivação, na 
linguagem hegeliano-marxista – torna-se, então, a fonte da alienação da liberdade. 
Isso significa que, se a história daquilo que Marx chamava de “indústria 
humana” se caracteriza por uma crescente dominação em relação à natureza, permitindo 
uma autonomia crescente, Sartre entende que este processo retornaria contra o homem 
desde seu bojo com o ressurgimento da negação originária tornada uma negação radical 
da sociedade. Esta negação, portanto, é que demarcaria “os fundamentos reais da 
alienação” (SARTRE, 1985, p. 262). 
Não se trataria, destarte, de um fenômeno acidental. Na leitura de Sartre, é a 
própria forma que assume a relação que os indivíduos estabelecem entre si mediados 
pela matéria. Como explica o filósofo, “a matéria aliena em si o ato que a trabalha, não 
tanto na medida em que ela é uma força, nem mesmo enquanto ela é inércia, mas na 
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medida em que sua inércia permite absorver e retornar contra cada um a força de 
trabalho dos outros” (SARTRE, 1985, p. 262). Assim, no momento do trabalho, “é o 
produto que designa os homens enquanto Outros, e que se constitui a si mesmo em 
outra Espécie, em contra-homem. É no produto que cada um produz sua própria 
objetividade, que retorna a ele como inimigo e o constitui como Outro” (SARTRE, 
1985, p. 262-3)[3]. 
Para corroborar sua posição, Sartre recupera o caso dos camponeses chineses, 
que durante séculos desmataram seus campos para aumentar a produtividade de 
alimentos. Essa prática social inicialmente positiva, com o decorrer dos anos terminaria 
por arrasar culturas inteiras, devido às inundações suscitadas por este mesmo 
desmatamento. Ao agir sobre a matéria, explica o autor, o homem vê sua práxis alterada 
pelo concurso da ação (passada ou presente) de outrem. O resultado de minha ação nem 
sempre condiz com minha intenção original (isto é, com meu “projeto”), e isso ocorre 
porque minha práxis foi alterada (desviada, modificada etc.) pela práxis alheia. Essa 
interferência inevitável, complementa Sartre, impede, ao final, que eu me reconheça nos 
produtos oriundos de minha atividade, ou seja, em minha objetivação. Logo, bloqueia a 
compreensão das causas que levaram minha ação a um resultado diverso daquele que eu 
esperava. Pois, como afirmado em Questão de método – preâmbulo metodológico 
da Crítica da razão dialética –, se a História me escapa, “isto não decorre do fato de 
que não a faço: decorre do fato de que outro também a faz” (SARTRE, 1985, p. 74). 
Assim, o homem faz a História: isto quer dizer que ele se objetiva nela 
e nela se aliena; neste sentido, a História, que é obra própria detoda a 
atividade de todos os homens, aparece-lhes como uma força estranha 
na medida exata em que eles não reconhecem o sentido de sua 
empresa (mesmo localmente eficaz) no resultado total e objetivo 
(SARTRE, 1985, p. 74). 
 
 Em resumo: se, por um lado, a matéria tem como função unificar todas as práxis 
individuais, singulares, parciais, por outro, essa síntese se dá de um modo específico. 
Quer dizer, “não é que a matéria absorva as ações humanas e as coisifique ou as 
reifique: primeiramente, ela as unifica, e ela as unifica da maneira pela qual a matéria 
pode unificar, isto é, desindividualizando-as, dessingularizando-as, portanto, 
massificando-as” (FISCHBACH. In: BAROT, 2011, p. 305). Logo, o processo de 
unificação da práxis só pode tornar esta práxis estranha a si mesma. A “objetivação é 
alienação” (SARTRE, 1985, p. 274), afirma Sartre, fazendo eco
a Hegel, justamente 
porque, através dela, cada um “retorna a si como Outro” (SARTRE, 1985, p. 336). 
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Sartre denomina o meio social surgido por esta realidade de ação e 
estranhamento[4] de prático-inerte. O prático-inerte é o campo de socialização de nossa 
vida diária, isto é, em que se define nossa “situação”. Nesse sentido, atesta Sartre, 
vivemos cotidianamente em uma esfera na qual a liberdade é dramaticamente 
convertida em necessidade: os fins humanos adquirem o caráter de contra-finalidades 
naturais e a atividade prática torna-se “atividade-passiva”, recorrência inercial, 
independente da vontade dos indivíduos. A sociedade se torna uma “síntese passiva da 
multidão” (cf. RIZK, 1996, p. 57 e ss.), isto é, unidade incompleta de uma 
“multiplicidade prática” de indivíduos a priori atomizados e massificados. 
O campo prático-inerte é o campo de nossa servidão, e isso não 
significa uma servidão ideal, mas a submissão real às forças 
“naturais”, às forças “mecânicas” e aos aparelhos “anti-sociais”. Isso 
quer dizer que todo homem luta contra uma ordem que o esmaga real 
e materialmente em seu corpo e que ele contribui a sustentar e a 
reforçar pela própria luta que, individualmente, ele trava contra ela 
(SARTRE, 1985, p. 437). 
 
Dentro do projeto sartriano, convém reforçar, o prático-inerte funcionaria como 
o “fundamento lógico” da alienação capitalista descrita por Marx, porquanto serviria de 
anteparo à alienação característica dos modos de produção – a “alienação a posteriori”, 
que “começa com a exploração” (SARTRE, 1985, p. 336). 
 Com efeito, neste governo da matéria, “equivalência da práxis alienada e da 
inércia trabalhada” (SARTRE, 1985, p. 181), a relação dos indivíduos entre si 
atravessados pela impotência, cria imperativamente uma força antissocial: na medida 
em que agem sobre a matéria em busca de garantir sua sobrevivência orgânica, a 
matéria trabalhada se contrapõe dialeticamente às práxis nos termos de uma férrea 
necessidade. Uma vez absorvida pela matéria, a práxis se transforma em exis, 
permanência, e a liberdade em inércia. O importante a se notar, observa Sartre, é que 
isso não se reduz à simples absorção da práxis pela matéria. Por exemplo: o 
desmatamento, ação humana sobre a natureza, não é igual à ausência de árvores, dado 
inerte da realidade material, mas uma relação de alienação promovida pelo concurso 
das práxis. 
 
III 
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O cenário alienante acima descrito, no qual o reconhecimento interindividual é 
bloqueado à medida que os produtos da práxis se alienam de seus agentes, gera o modo 
de socialização característico do prático-inerte, que Sartre denomina série. 
Quando dois indivíduos se incluem mutuamente no campo de totalizações do 
outro, se estabelece uma relação recíproca de interioridade, em contraste com a de 
exterioridade, em que a reciprocidade é encontrada em algo externo. Para apreender a 
formação das coletividades, dentro do processo espiral dialético, Sartre sugere se ater, 
primeiramente, à forma mais simples de reciprocidade, a saber, aquela em que há uma 
oposição entre a reciprocidade como relação de interioridade e a solidão dos organismos 
enquanto relação de exterioridade. O resultado é a relação simultaneamente interna-
externa típica da serialidade. 
No modo de existência serial, indivíduos isolados, antagônicos e intercambiáveis 
entre si, são unidos apenas pelo concurso da matéria exterior. Como mencionado, no 
domínio do prático-inerte, a práxis se transforma em exis, e a liberdade, alterada pelo 
concurso da ação de outras individualidades (sem necessária comunicação direta entre 
si), torna-se necessidade, fatalidade, destino. Numa palavra, a objetivação se converte 
em alienação. Esta, diz Sartre, é a realidade ao qual estamos subsumidos 
cotidianamente. 
Por exemplo, o filósofo sugere que consideremos um grupo de pessoas em fila 
aguardando o ônibus. Elas formam uma “pluralidade de solidões”. Os indivíduos 
permanecem lado a lado, junto ao ponto de ônibus, mas sem qualquer senso de 
comunidade. São apenas indivíduos justapostos, cuja coexistência é exclusivamente 
mediada pela matéria exterior (no caso, o ônibus que aguardam). 
Nesse nível, as solidões recíprocas como negação da reciprocidade 
significam a integração dos indivíduos à mesma sociedade e, nesse 
sentido, podem ser definidas como certa maneira (condicionada pela 
totalização em curso) de viver em interioridade e como reciprocidade, 
no seio do social, a negação exteriorizada de toda interioridade [...]. 
Finalmente, a solidão torna-se [...] o produto real e social das grandes 
cidades (SARTRE, 1985, p. 365). 
 
 A solidão, portanto, pode ser compreendida como a primeira característica da 
serialidade. Mas, para Sartre, ela não é apenas fruto da dinâmica da vida em sociedade, 
mas é também um projeto. Ou seja, ela é vivida, suportada. Quando leio um jornal 
aguardando o ônibus, utilizo de um coletivo nacional com o intuito de me isolar, por 
exemplo, das outras três pessoas que estão na fila comigo. Tal situação se generaliza: o 
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projeto de solidão de cada um faz com que a reciprocidade exista e seja negada ao 
mesmo tempo. 
 Todas as unidades de uma série possuem a mesma propriedade. Com efeito, na 
unificação em série, própria às formações coletivas do campo prático-inerte, cada 
indivíduo é idêntico, intercambiável, desnecessário, separado e solitário. A mudança de 
qualquer elemento e sua substituição por outro em nada alteram o quadro geral. 
Novamente, todos são excedentes, redundantes. “Cada um é o mesmo que os 
Outros na medida em que ele mesmo é outro” (SARTRE, 1985, p. 367-8). A série, 
assim, só pode ser inteligível através do conceito de alteridade. A alteridade, enquanto 
“unidade das identidades, encontra-se sempre necessariamente alhures” (SARTRE, 
1985, p. 374). Mas, alhures há apenas um Outro que é outro inclusive para-si. Desse 
modo, a consequência direta da alteridade (enquanto forma originária de alienação, de 
degradação da liberdade) é a transformação de cada um em Outro (para-si e para-
outrem). É, portanto, promover a separação dos indivíduos mediante uma unidade 
evanescente, externamente estabelecida, que conserva o antagonismo enquanto preserva 
cada qual encerrado em seu próprio projeto solitário. 
A vida serial, enfim, é o modo de ser do indivíduo, cuja unidade fugidia se 
encontra sempre em um ser-fora, em um objeto comum, que torna cada qual Outro para 
o outro e para si. Por conseguinte, viabiliza-se uma reciprocidade pela própria 
alteridade, isto é, uma reciprocidade externamente constituída que conserva um 
antagonismo interno. Sendo assim, há na vida serial um verdadeiro bloqueio ao 
reconhecimento do outro em sua individualidade. Mais precisamente, há reificação das 
relações humanas em um cenário de massificação. Com efeito, no campo prático-inerte, 
é a indiferença a tônica da (falta de) percepção cotidiana do outro, que só é notado 
quando interfere diretamente em nossa vida, nossos interesses etc. No dia a dia, presos 
ao modo de vida serial, praticamos efetivamente aquele “solipsismo de fato” pelo qual 
se definia ontologicamente a indiferença em O ser e o nada[5]. 
Ainda neste plano, a “multiplicidade prática” de indivíduos pode formar objetos 
reais que a sociologia denomina coletivos. A origem dos coletivos é a “recorrência 
social”. Tratam-se, portanto, de
estruturas nas quais a serialidade se mantém. Porque sua 
realidade advém da destotalização permanente da totalidade de indivíduos, o coletivo 
promove uma unidade das multiplicidades orgânicas baseada na síntese passiva que 
mantém os homens unidos por sua separação. 
 
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IV 
 
Uma vez estabelecido este quadro, torna-se finalmente possível dirigir a atenção 
para como os meios de comunicação podem operar na dialética da vida serial e do 
prático-inerte, assumindo um papel de disseminação de uma ideologia. 
Em uma transmissão televisiva, por exemplo, cada indivíduo é outro na medida 
em que é telespectador e se comunica, assim, com todos os outros nessa unidade 
hesitante proporcionada pelo objeto comum. Tal fenômeno não se restringe a esse meio 
de comunicação, mas, como bem nota Sartre, se verifica em todos os mass media. 
“Nesse caso, o objeto prático-inerte [...]não produz apenas a unidade fora de si na 
matéria inorgânica dos indivíduos: ele os determina na separação e assegura, enquanto 
estão separados, sua comunicação pela alteridade” (SARTRE, 1985, p. 378). 
Esta separação é fundamental para compreender como opera o discurso 
ideológico para Sartre, que atualmente encontra no funcionamento dos grandes meios de 
comunicação (cujos interesses e valores, enquanto empresas privadas, não se dissociam 
daqueles hegemônicos na classe economicamente dominante) seu veículo preferencial 
de disseminação. 
Definida como “reverso simbólico da prática material”, isto é, “anverso da 
alienação” (cf. BAROT. In: BAROT, 2011), a ideologia não se reduz, em Sartre, à visão 
do marxismo dogmático que, minimizando a riqueza da própria concepção marxiana[6], 
define-a como “falsa consciência”, “mistificação”, “ilusão” etc.[7]. Rejeitando o 
dualismo base-superestrutura que ampara aquela interpretação rasteira, Sartre 
compreende que a ideologia extrapola o plano meramente gnosiológico. Ela nasce das 
coisas, da matéria trabalhada. 
Nesse sentido, nota o filósofo, há modos seriais de comportamento, sentimentos 
seriais, pensamentos seriais, que estão diretamente vinculados à compreensão da 
ideologia. De fato, para Sartre, a ideologia, ideia serial, ou “ideia-exis” (como, por 
exemplo, o colonialismo e o racismo), é um objeto do prático-inerte, e não um momento 
consciente da ação. Sua evidência reside na dupla incapacidade em verificá-la ou de 
transformá-la nos outros membros do coletivo. 
Com efeito, diz o filósofo (cf. SARTRE, 1985, p. 406-9 – nota), aqui a ideia não 
é práxis, mas essencialmente processo. Ou seja, desenvolve-se por meio de uma força 
material externa que age sobre o pano de fundo da impotência provocada pelo 
isolamento serial. Ela se torna, assim, a “unidade da série como sua razão ou seu índice 
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de separação” (SARTRE, 1985, p. 406 – nota). Pela prática, a unidade passiva da 
materialidade do objeto prático-inerte transforma-se em significação. 
Por exemplo, a ideia-colonial é a unidade da série dos colonos (cada qual, 
apartado de todos os outros): tanto justificação de sua unidade exterior em um “interesse 
comum”, quanto modo de entronização deste interesse pelas atitudes que aquela ideia 
torna “legítima” [8] (a exploração e a desumanização dos colonizados, a seleção dos 
indivíduos por caracteres biológicos, o racismo[9] etc.). 
Nesse sentido, observa Sartre, expressões que sintetizam o pensamento 
colonialista, tais como “o indígena é preguiçoso”, “só trabalha se for obrigado”, “não 
sabe governar a si próprio” etc., 
jamais foram a tradução de um pensamento real e concreto, sequer 
foram alguma vez objeto de um pensamento. De resto, não têm por si 
só nenhuma significação, ao menos na medida em que pretendam 
enunciar um conhecimento sobre o colonizado. Elas aparecem com o 
estabelecimento do sistema colonial e sempre se limitaram a ser esse 
próprio sistema se produzindo como determinação da linguagem dos 
colonos no meio (milieu) da alteridade. E sob esse aspecto, é preciso 
vê-las como exigências materiais da linguagem (meio verbal de todos 
os aparelhos prático-inertes) que se dirigem aos colonos como 
membros de uma série e que os significa como colonos a seus olhos e 
aos olhos dos outros, na unidade de uma reunião. De nada serve dizer 
que elas circulam, que cada um as repete aos demais sob uma forma 
ou outra: a verdade é que elas não podem circular porque não podem 
ser objetos de troca. Elas têm a priori a estrutura de um coletivo, e 
quando dois colonos, em sua conversa, pretendem trocar essas ideias, 
o que na verdade fazem é reatualizá-las, uma após a outra, enquanto 
elas representam a razão serial sob um aspecto particular. Dito de 
outro modo, a frase pronunciada – como referência ao interesse 
comum – não se dá por determinação da linguagem pelo próprio 
indivíduo, mas por sua opinião outra. Ou seja, ele reclama receber dos 
Outros e dar aos Outros, enquanto sua unidade funda-se apenas sobre 
a alteridade (SARTRE, 1985, p. 407 – nota). 
 
Quer dizer, o racismo, por exemplo, anverso do colonialismo, “é o interesse 
colonial vivido como ligação de todos os colonos pela fuga serial da alteridade” 
(SARTRE, 1985, p. 406 – nota). Assim, 
as ideias racistas, enquanto estruturas da opinião coletiva dos 
colonos, [são] condutas petrificadas [...] que se manifestam como 
imperativos no quadro do Outro a se realizar por mim. Elas marcam, 
como exigências perpétuas de serem reafirmadas por atos verbais 
singulares, a impossibilidade de uma totalização real dessas 
afirmações, ou seja, a intensidade do imperativo é diretamente 
proporcional ao índice de separação (SARTRE, 1985, p. 409 – nota). 
 
A ideologia colonial, destarte, é coextensiva ao sistema colonial, é seu doublet, 
ambos sendo produtos de uma gênese conjunta no âmbito do prático-inerte. Por isso, ela 
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é um pensamento-coisa, pensamento reificado ou, mais simplesmente, não-pensamento. 
Daí a impossibilidade de sua troca, de sua circulação, apontada no trecho acima 
destacado. E, como explica Emmanuel Barot, “é por isso que ela dura com a força da 
coisa de uma parte, e que é inútil [...] se limitar à racionalidade argumentativa para lutar 
contra ela” (BAROT. In: BAROT, 2011, p. 262). 
Neste caso, lutar contra a ideia colonial ou contra o sistema colonial são uma só 
e a mesma coisa. Pois, essa Ideia “não é mais ‘práxis vivente’, ‘chave sempre 
contestável do mundo’ surgida da ação, mas reatividade fóssil reativada passivamente 
como unidade dos colonos que se põem eles mesmos em permanência como colonos 
graças a essa reativação” (BAROT. In: BAROT, 2011, p. 262).Por isso, explicará Sartre 
em Playdoyer pour les intellectuels: 
Não basta [...] combater o racismo (como ideologia do imperialismo) 
por argumentos universais, tirados de nossos conhecimentos 
antropológicos. Esses argumentos podem convencer ao nível da 
universalidade. Mas, o racismo é uma atitude concreta de todos os 
dias. Consequentemente, pode-se sustentar sinceramente
o discurso 
universal do antirracismo e, nas distantes profundezas que são ligadas 
à infância, permanecer racista e, ato contínuo, se comportar como 
racista, sem perceber, na vida cotidiana (SARTRE, 1972, p. 48). 
 
V 
 
Numa palavra, a ideologia é o próprio sistema prático-inerte apreendendo-se a si 
mesmo, se convertendo em Ideia e se impondo a seus membros – cada indivíduo como 
Outro para todos os outros – através de suas próprias ações e pensamentos sobre o 
fundo da impotência de sua separação serial. 
Diante do exposto, porém, fica claro que, para Sartre, o sucesso de disseminação 
de uma ideologia depende da sua capacidade de se fazer interiorizar por cada indivíduo, 
na medida em que este se encontra em relação serial para com os demais. 
Se o regime ideológico não é apenas um regime de falsidade ou de 
ilusão que um saber viria a destruir, é por se tratar de um regime de 
existência concreta. Todo meio (milieu), as estruturas sociais que ele 
traz, são sempre produzidas e reproduzidas de maneira “ampliada”, no 
próprio movimento que procura negá-las (BAROT. In: BAROT, 2011, 
p. 271). 
 
Não obstante, para que essa interiorização seja possível em uma sociedade complexa, 
institucionalizada, como a nossa, na qual as séries se multiplicam, o isolamento das 
grandes cidades se intensifica, a divisão do trabalho se aprofunda e a urgência de 
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sobreviver torna-se mais e mais dramática, a práxis soberana (governante, grupo, classe; 
no limite, o Estado) deve ser capaz de condicionar cada um a agir à distância sobre 
todos os outros, sem se apresentar enquanto tal. Ou seja, superar essas barreiras de tal 
modo a, sem derrubá-las (o intuito é, na verdade, precisamente o oposto), conseguir 
estabelecer entre os indivíduos a elas subjugados uma forma de sociabilidade. Sartre 
denomina esse procedimento de êxtero-condicionamento. 
Segundo Sartre, este novo estágio da práxis cria uma quase-unidade passiva que, 
para realizar-se, precisa “fascinar cada Outro por esse falso-semblante: a totalização das 
alteridades (ou seja, a totalização da série)” (SARTRE, 1985, p. 727). A armadilha do 
êxtero-condicionamento reside no projeto do soberano de “agir sobre a série de maneira 
a lhe arrancar, na própria alteridade, uma ação total” (SARTRE, 1985, p. 727). 
Contudo, prossegue, “essa totalidade prática, ele a produz como possibilidade para a 
série se totalizar conservando a unidade fugidia da alteridade, ao passo que a única 
possibilidade de totalização que permanece no agrupamento inerte é dissolver nele a 
serialidade” (SARTRE, 1985, p. 727). 
A práxis, todavia, se conserva como liberdade transcendente. Assim sendo, a 
natureza fundamental da institucionalização, sua impotência serial, separação e 
reificação, que constrói a massa soberana e serializada, revelam, afinal, através da 
desmistificação de sua inteligibilidade, mais uma forma de alienação da liberdade 
individual. Mais uma vez, o funcionamento dos meios de comunicação de massa é o 
melhor exemplo de como atualmente operariam esses dois caracteres elementares do 
êxtero-condicionamento, complementando aquilo que já foi assinalado anteriormente. 
De fato, na ação dos mass media, “a ação mediadora do grupo, que condiciona 
cada Outro por todos os Outros, [gera uma] fascinação prática pela ilusão da serialidade 
totalizada” (SARTRE, 1985, p. 728). Relembrando sua visita aos Estados Unidos, em 
1946, Sartre relata (cf. SARTRE, 1985, p. 728 e ss.) que, a cada sábado, as emissoras de 
rádio divulgavam a lista dos dez discos mais vendidos na semana que se encerrava. Na 
semana seguinte, as pesquisas indicavam que a venda daqueles discos aumentava em 
uma margem de 30 a 50%. Assim, o resultado da semana anterior era confirmado e 
prolongado. A escolha dos discos, observa Sartre, era feito por um grupo de 
especialistas (o “Grand Prix du Disque”) que agia sobre a massa serializada, em nome 
da “opinião pública” (na verdade, das gravadoras), de modo a persuadir cada ouvinte de 
que o Outro também iria comprar aqueles discos. Este Outro, consequentemente, 
exigiria de mim que eu também os tivesse comprado e escutado, a fim de que não 
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ficasse desinformado acerca daquilo que o “público” compra e escuta. Por minha vez, 
eu faria o mesmo em relação a outrem. Os exemplos poderiam ser multiplicados. 
Retomando o problema do racismo, HadiRizk nota que o êxtero-
condicionamento permite compreender melhor esse tipo de procedimento (em suas 
várias manifestações fenomênicas), porquanto ele 
só pode ser explicado por sua natureza serial, na qual cada um se faz 
Outro que o outro “unindo-se” a ele pelo sentimento e prática da 
exclusão. No fundo, tudo se passa como se cada indivíduo tentasse 
exorcizar, às custas do outro, a fuga de seu próprio ser, que ele projeta 
sobre um ser coletivo e unificante. Tal objeto torna-se a unidade dessa 
fuga serial, tanto quanto a causa do ser-outro de cada um (RIZK, 
1996, p. 186). 
 
Assim, as diversas manifestações de racismo (contra o negro ou contra o judeu, 
por exemplo), mais do que um fato seria, são práticas do grupo soberano que age sobre 
o racismo com o intuito de fazer dele um meio de junção-na-separação dos indivíduos. 
Não por acaso, as pesquisas de opinião visam captar “reflexivamente” esse racismo, por 
exemplo, com perguntas como: “há muitos imigrantes em nosso país”?; ou, em um 
arquétipo mais tipicamente brasileiro: “a política de cotas beneficia os negros?”[10]. 
Quando elas são formuladas, cortadas em amostras, e depois 
representadas na cerimonia do comentário aos diferentes grupos 
sociais, essas questões e estatísticas induzidas pelas “respostas” 
equivalem a uma lista-tipo que ofereceria aos indivíduos seriais o 
modelo de uma unificação à totalidade Outra da Nação. Dir-se-á assim 
que “a França pensa...”, por exemplo, na casa dos 30% de maneira 
racista. A comunicação – necessariamente serial, ou seja, atingindo na 
alteridade o senhor-qualquer-um – induz em cada um a incitação de 
ser 30% racista. Ou seja, ser ele mesmo um cidadão “normal” e 
“médio”, fazendo-se o mais Outro, isto é, conforme ao Outro como 
razão da série trabalhada e construída em certa totalidade pela práxis 
de um subgrupo do grupo soberano (RIZK, 1996, p. 186-7). 
 
 O êxtero-condicionamento é, em suma, a utilização, por parte de um grupo 
determinado, da ação recíproca que as séries realizam umas sobre as outras, sem que 
estas se percebam vítimas de manipulação. Através dessa prática, o grupo soberano se 
serve da divisão serial, ao invés de tomá-la como uma ameaça. Sua racionalidade 
consiste, portanto, na necessidade que sofre o grupo soberano – surgido no seio da 
instituição por conta de sua impotência em superar a serialidade – de manter uma 
unidade social apoiada nas próprias séries em suas determinações recíprocas. 
Em resumo, em uma sociedade na qual as séries se multiplicam, ou seja, onde a 
relação interindividual é perpassada por várias camadas de mediação, os mass media, 
por conta de sua própria constituição, tornam-se um mecanismo privilegiado para 
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minimizar a distância e o isolamento entre os indivíduos (no sentido de serem capazes 
de fazer seu discurso alcançar o maior número de pessoas possível), ao mesmo tempo 
em que exige que essa separação se conserve (isto é, que os indivíduos permaneçam 
reduzidos ao antagonismo alienante da impotência serial) para que o poder 
(político/econômico) ao qual estão atrelados se sustente. 
 
VI 
 
Diante do exposto, fica nítida a conexão que Sartre estabelece entre a vida serial 
e o êxtero-condicionamento
como modos de sociabilidade nos quais os mass 
media podem atuar como veículos privilegiados de propagação de discursos 
ideológicos, isto é, discursos que se alimentam da impotência alienante daquela tipo de 
relação social. Com efeito, em uma sociedade de consumo de massas, como a atual, não 
é difícil observar, a partir da hipótese de Sartre, como a publicidade se vale fartamente 
de formas de êxtero-condicionamento com o intuito de assediar consumidores em 
potencial e aumentar o volume de vendas de seus produtos; ou como essa forma de 
dominação tornou-se indispensável para transmitir valores e conceitos de “verdade” que 
assegurem a hegemonia de uma determinada visão de mundo. 
Por fim, caberia ainda indagar se há, em Sartre, algum vislumbre de superação 
dessa situação. A resposta se fez entrever na própria forma pela qual o filósofo apreende 
a noção de ideologia. Porque não se trata de um problema exclusivamente gnosiológico, 
mas de um modo de vida interiorizado por cada um, para Sartre, apenas o concurso 
das práxis é capaz de, mesmo nas malhas das artimanhas que a impulsionam a reforçar a 
dominação à qual estão subjugadas (isto é, o prático-inerte), criar formas diferentes de 
sociabilidade que possam se contrapor à manipulação do êxtero-condicionamento. 
Lutar contra uma ideologia, portanto, não se desprende da luta (necessária e 
possível) contra todo o conjunto de relações (econômicas, políticas, jurídicas etc.) que a 
sustenta. Pelo contrário, na medida em que todas essas esferas se dão como um todo, 
não há combate a uma sem combate a outra. Como sintetiza Sartre, neste ponto 
abertamente adotando a atitude de Marx em relação ao tema: “não são as ideias que 
mudam os homens, não basta conhecer uma paixão por sua causa para suprimi-la. É 
preciso vivê-la, opor a ela outras paixões, combatê-la com tenacidade. Em suma, se 
trabalhar” (SARTRE, 1985, p. 25). Inclusive, se poderia acrescentar, nisso que é 
particularmente sensível nos dias atuais, no sentido de inventar formas distintas de 
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bloquear a capacidade de persuasão dos meios de comunicação. Isto é, não apenas pela 
mera denúncia de seu modo de operação, mas também através da concepção de práticas 
distintas de vida e disseminação de valores e ideias contra hegemônicas. Práticas 
capazes de romper, ou ao menos minimizar, a alienação típica da vida serial, cuja 
fraqueza a que relega os indivíduos nutre o papel contemporâneo de manipulação 
ideológica da mídia e, consequentemente, reforçam aquela mesma alienação. 
 
AUTOR 
*Vinícius dos Santos é Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São 
Carlos e licenciado em Filosofia pelo Centro Universitário Claretiano. Mestre e Doutor 
em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos, com pesquisas desenvolvidas na 
filosofia de Sartre. Professor adjunto de Filosofia da Universidade Federal da Bahia. e-
mail:viniciusdossantos@ufba.br 
 
 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 
BAROT, Emmanuel. Aux racines de l’idéologie. In: BAROT, Emmanuel. (dir.). Sartre 
et le marxisme. Paris : La Dispute, 2011, p. 253-284. 
FANON, Frantz. Os condenados da terra. Trad. José Laurênio de Melo. Prefácio Jean-
Paul Sartre. Riode Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. 
FISCHBACH, Franck. L’aliénation comme réification. In : BAROT, Emmanuel. 
(dir.).Sartre et le marxisme. Paris : La Dispute, 2011, p. 285-312. 
GARO, Isabelle. L’idéologie ou la pensée embarquée. Paris : La Fabrique, 2009. 
JAMESON, Fredric. Entre structure et événement: le groupe. Trad. Eustache 
Kouvélakis. In: KOUVÉLAKIS, Eustache & CHARBONNIER, Vincent (dir.). Sartre, 
Lukács, Althusser : des marxistes en philosophie. Paris: PUF, 2005, p. 11-32. 
RIZK, Hadi. La constitution de l’être social– le statut ontologique du collectif dans La 
Critique de la raison dialectique. Paris: Éditions Kimé, 1996. 
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In : 
LANDER, Edgardo (org.). A colonialidade do saber. Eurocentrismo e ciências sociais. 
Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: Clacso, 2005. 
SARTRE, Jean-Paul. Critique de la raison dialectique (précédé de Questions de 
méthode) – tome I: théorie des ensembles pratiques. Paris: Gallimard, 1985. 
________________. L’Être et le Néant– essai d’ontologie phénoménologique.Édition 
corrigée avec index par Arlette Elkaïm-Sartre.Paris: Gallimard, 2007. 
________________. Plaidoyerpourlesintellectuels. Paris: Gallimard, 1972. 
 
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NOTAS 
[1] Na Crítica, a práxis aparece como a ação do homem no mundo material inerte, com vistas a 
transformá-lo para um determinado fim, indicado num “projeto totalizante”. Sua translucidez permite 
disparar a dialética que permitirá ao filósofo reconstruir as condições de possibilidade da inteligibilidade 
histórica. 
[2] Cumpre ressalvar que não se trata, para Sartre, de estabelecer uma essência humana ou de afirmar que 
o homem seja, naturalmente, “lobo do próprio homem”, como Hobbes. Na verdade, diz o filósofo, “é 
preciso compreender, ao mesmo tempo, que a inumanidade do homem não vem de sua natureza, que, 
longe de excluir sua humanidade, só pode ser compreendida por esta, mas que, enquanto o reino da 
escassez não tiver chegado ao termo, haverá, em cada homem e em todos, uma estrutura inerte de 
inumanidade, que, em suma, nada mais é do que a negação material enquanto ela é interiorizada” 
(SARTRE, 1985, p. 242). 
[3]Destarte, “o que é negativo na contra-finalidade não é o resultado da matéria enquanto tal, mas 
primeiramente o resultado da produtividade humana ou da práxis investida nela, e que retorna, sob uma 
forma não reconhecível, sobre os seres humanos que originalmente investiram nela seu trabalho” 
(JAMESON In: KOUVÉLAKIS & CHARBONNIER, 2005, p. 23). 
[4] Com efeito, a alienação, em Sartre, consiste “numa exteriorização do sujeito de tal modo que ela 
engendraria da objetividade um resultado que o sujeito não pode reinteriorizar, pois não se reconhece nele 
ou porque se reconhece em não se reconhecendo (sob a forma: ‘sim, fui eu quem fez isso, mas, ao mesmo 
tempo, jamais quis fazê-lo’)” (FISCHBACH. In: BAROT, 2011, p. 308). 
[5] Cf. SARTRE, 2007, p. 420. 
[6] Para a compreensão dessa riqueza, cuja apresentação seria inviável, ver GARO, 2009, indicado nas 
referências bibliográficas ao final. 
[7]Convém notar que, desde La légende de lavérité, texto de juventude datado do final dos anos 1920, 
Sartre já discutia, mesmo que sem maior profundidade, a noção de ideologia nestes termos. Já após sua 
aproximação com o marxismo, por exemplo, em uma conferência proferida na Sorbonne, 
no Amphithéatre Richelieu, em 16 de maio de 1956, Sartre trata especialmente do tema da “ideologia”, de 
uma perspectiva próxima àquela que seria desenvolvida no âmbito da Crítica: a ideia como fato material 
(ligado ao processo de produção), mas irredutível a este, porquanto significante. Na linguagem marxista, 
Sartre recusava a tese – típica do marxismo dogmático – de que a superestrutura pudesse se reduzir à 
infraestrutura. O manuscrito completo da conferência se encontra depositado junto ao acervo do “Fond 
Sartre” da Bibliothèque nationale de France, sob a rubrica NAF 28405. 
Para uma análise mais aprofundada do tema da ideologia em Sartre, ver o já citado BAROT. In: BAROT, 
2011, p. 253 e ss. 
[8] No prefácio à obra de Frantz Fanon, Os condenados da terra, Sartre assinala: “Nossos soldados no 
ultramar rechaçam o universalismo metropolitano, aplicam ao gênero humano o numerus clausus; uma 
vez que ninguém pode sem crime espoliar seu semelhante, escravizá-lo ou matá-lo, eles dão por assente 
que o colonizado não é o semelhante do homem. Nossa tropa de choque recebeu a missão de transformar 
essa certeza abstrata em realidade: a ordem é rebaixar os habitantes do território anexado ao nível do 
macaco superior para justificar que
o colono os trate como bestas de carga. A violência colonial não tem 
somente o objetivo de garantir o respeito desses homens subjugados; procura desumanizá-los” (SARTRE. 
In: FANON, 1968, P. 9). 
[9] Cumpre observar, aliás, que a hierarquização social a partir da criação da ideia de raça é inseparável 
do processo que de expansão do capital na aurora da modernidade, que se inicia com a descoberta da 
América, e que estabelece uma nova forma de controle e divisão do trabalho, este convertido em 
mercadoria. Como explica Aníbal Quijano: “A ideia de raça, em seu sentido moderno, não tem história 
conhecida antes da América. Talvez se tenha originado como referência às diferenças fenotípicas entre 
conquistadores e conquistados, mas o que importa é que desde muito cedo foi construída como referência 
a supostas estruturas biológicas diferenciais entre esses grupos. A formação de relações sociais fundadas 
nessa ideia, produziu na América identidades sociais historicamente novas: índios, negros e mestiços, e 
redefiniu outras. Assim, termos com espanhol e português, e mais tarde europeu, que até então indicavam 
apenas procedência geográfica ou país de origem, desde então adquiriram também, em relação às novas 
identidades, uma conotação racial. E na medida em que as relações sociais que se estavam configurando 
eram relações de dominação, tais identidades foram associadas às hierarquias, lugares e papéis sociais 
correspondentes, com constitutivas delas, e, consequentemente, ao padrão de dominação que se impunha. 
Em outras palavras, raça e identidade racial foram estabelecidas como instrumentos de classificação 
social básicada população.[...]. Na América, a ideia de raça foi uma maneira de outorgar legitimidade às 
relações de dominação impostas pela conquista. A posterior constituição da Europa como nova identidade 
depois da América e a expansão do colonialismo europeu ao resto do mundo conduziram à elaboração da 
perspectiva eurocêntrica do conhecimento e com ela à elaboração teórica da ideia de raça como 
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naturalização dessas relações coloniais de dominação entre europeus e não-europeus. Historicamente, isso 
significou uma nova maneira de legitimar as já antigas ideias e práticas de relações de 
superioridade/inferioridade entre dominantes e dominados. Desde então demonstrou ser o mais eficaz e 
durável instrumento de dominação social universal, pois dele passou a depender outro igualmente 
universal, no entanto mais antigo, o intersexual ou de gênero: os povos conquistados e dominados foram 
postos numa situação natural de inferioridade, e consequentemente também seus traços fenotípicos, bem 
como suas descobertas mentais e culturais. Desse modo, raça converteu-se no primeiro critério 
fundamental para a distribuição da população mundial nos níveis, lugares e papéis na estrutura de poder 
da nova sociedade. Em outras palavras, no modo básico de classificação social universal da população 
mundial. [...]. As novas identidades históricas produzidas sobre a ideia de raça foram associadas à 
natureza dos papéis e lugares na nova estrutura global de controle do trabalho. Assim, ambos os 
elementos, raça e divisão do trabalho, foram estruturalmente associados e reforçando-se mutuamente” 
(QUIJANO, In: LANDER, 2005, p. 117-8). 
[10] Trata-se, evidentemente, de um questionamento típico de uma forma de pensamento que tem o 
intuito de escamotear a relação artificial (isto é, não-natural, historicamente construída) entre raça e 
posição social, isto é, rejeitar a constatação de que “as ‘classes sociais’, na América Latina, têm ‘cor’” 
(QUIJANO. In: LANDLER, 2005, p. 138), o que, no Brasil em particular, é de uma evidência 
negligenciável apenas se pautada em um discurso completamente alheio à realidade. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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Artigos e ensaios 
 
CRUZADA CONTRA A BOCA DO 
LIXO: 
saberes e discursos na imprensa 
Everton Behrmann Araújo* 
 
 
 
RESUMO: Este trabalho busca analisar as construções discursivas na imprensa sobre 
relações de poder e sociabilidades desenvolvidas no espaço urbano da cidade de São 
Paulo entre 1950 – 1960, mais especificamente a Boca do Lixo, lugar que ficou 
conhecido a partir dos anos 1950 por abrigar uma variedade de marginalizados, onde 
foram estabelecidas formas de organização e códigos de conduta que insultavam a 
moral vigente. 
Palavras Chave: Discurso. Saber. Chavão. Faits Divers. Marginais. 
 
Em 1954, a cidade de São Paulo comemorava o seu IV centenário. Em torno dos 
festejos criou-se um ambiente simbólico tão forte que a historiadora Maria Izilda Matos 
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localiza nesse ano o que ela chamou “a invenção da paulistaneidade”. Ela destaca o 
termo “invenção” e o conceitua como um processo de construção variável ao longo do 
tempo, forjado em diferentes espaços, com diversos objetivos e no caso específico da 
capital paulista, diretamente atrelado aos conceitos de progresso, modernidade e 
trabalho. (MATOS, 2007, p.71) Devido a esse marco simbólico para a cidade, a década 
de 1950 foi marcada por uma intensificação do processo de transformações urbanas 
iniciadas no começo do século. Não por acaso, o lema escolhido para as comemorações 
do IV centenário foi: “São Paulo: a cidade que mais cresce no mundo”, que sintetiza a 
perseguição do ideal de progresso e o tom ufanista que se queria imprimir à data. São 
Paulo estava se abrindo à modernidade e seus moradores, mais do que nunca, estavam 
se entusiasmando com o progresso capitalista. Para Matos, essa construção do moderno 
está ligada, também, ao diagnóstico de um presente problemático e foi na projeção de 
um futuro exemplar que as autoridades da época procuraram justificar algumas ações de 
intervenção. 
Entre as ações de intervenção que necessitavam ser justificadas para que a 
população pudesse comemorar tranquilamente o IV Centenário da capital bandeirante 
livre do contato com práticas e sociabilidades consideradas nocivas e degradantes, uma, 
em especial, era questão de honra para o governo paulistano: a extinção da zona de 
meretrício do Bom Retiro. Criada na década de 1940, por decreto do então governador 
Adhemar de Barros, ficava confinada para além das linhas dos trens, nas ruas Itaibocas 
e Aimorés, no Bairro do Bom Retiro. O aparelho policial via na forma confinada
de 
meretrício uma série de vantagens, entre as quais a possibilidade de um melhor 
policiamento e higienização, além de expor menos as “boas famílias” forçadas a 
transitar pela parte boêmia da cidade. (FONSECA, 1982, p.108) 
No entanto, depois de alguns anos, setores da sociedade e da imprensa 
começaram a cobrar do governo uma atitude em relação àquele “antro” que se 
localizava no coração da metrópole. Essa demanda foi concretizada em dezembro de 
1953, quando o então governador Lucas Nogueira Garcez publicou um decreto 
colocando fim às atividades da Zona de Meretrício. As intenções do governador e da 
Secretaria de Segurança, entretanto, não eram somente acabar com a prostituição 
localizada no Bom Retiro, mas antes, por um fim definitivo à atividade da prostituição 
na cidade de São Paulo. 
Como já podemos supor, não foi bem-sucedida a intenção de extirpar 
definitivamente, do solo da capital paulista, a prostituição e outras práticas que se 
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desenvolvem em seu entorno. Com a proibição da Zona, as mulheres, sem ter de onde 
tirar o seu sustento, migraram para as imediações do Bom Retiro, passando a 
desenvolver suas atividades de forma ilegal nas ruas do bairro de Campos Elíseos, 
potencializando, assim, a prática do chamado trottoir, atraindo para essas imediações 
todas as atividades e sociabilidades que geralmente se desenvolvem em torno da 
prostituição. 
A historiadora Margareth Rago afirma que a atividade da prostituição 
desempenha certo papel positivo na economia dos afetos em uma sociedade, sendo 
praticamente impossível domar completamente a inclinação para o que chama de 
“forças dionisíacas,” que correspondem ao universo do prazer e do lúdico atuantes em 
seu interior. (RAGO, ano, p.12). Ao tentar reprimir essas forças, corre-se o risco de 
deixar emergir o lado violento e recalcado da sociedade. Sobre essa tentativa de frear o 
dionisíaco da alma humana, o lado noturno da vida, o historiador Tony Hara diz: 
Seja por sabedoria imitadora ou por estupidez desesperada, os homens 
tentaram construir também as suas muralhas e domesticar as forças do 
mal. Ergueram-se assim, os muros do Estado, da Pátria, da família, 
das escolas, dos conventos, dos hospitais psiquiátricos, das fábricas, 
da identidade. Os homens construíram todas essas máquinas para 
barrar as forças malditas que fazem parte do cotidiano de nossa 
existência. É evidente que todo esse trabalho de esquadrinhamento 
social não teve o resultado esperado, mas a consequência desses 
esforços de domesticação da noite, ainda podemos sentir no tempo 
atual, nesse exato instante que passa. (HARA, 2004, p.26). 
 
A Boca do Lixo surge como refluxo causado pela ação do aparelho repressivo, 
que na tentativa de extirpar as práticas “sujas” do seio da capital paulista, acabou por 
espalhar essas atividades pela região central. De outra forma, o local, também, surge 
como objeto forjado nas páginas dos jornais, através de um tipo de jornalismo 
sensacionalista veiculado nas seções da reportagem policial que cunhou o nome do local 
como “Boca do Lixo”. Pelo fato das atividades ilícitas terem se concentrado no entorno 
de ruas que formavam uma espécie de quadrado, a crônica policial também se referia à 
Boca como o “Quadrilátero do Pecado”. Esses termos eram usados para estigmatizar 
essa área enquanto lugar onde se concentravam os piores sujeitos da cidade, onde a 
legalidade e as convenções morais eram constantemente desafiadas: “seres comparáveis 
aos restos, à sujeira e aos dejetos produzidos cotidianamente na cidade.”, conforme 
observa a historiadora Angela Aparecida Teles.(TELES, 2012, p.50). 
 Faz parte da linguagem utilizada pela reportagem policial o uso exagerado de 
palavras chave, ou “chavão”, para se referir a objetos, sujeitos, espaços ou temas 
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tratados em suas páginas. O “chavão” e o “lugar-comum” ocupam uma função 
específica na escrita jornalística. Referem-se, em primeiro lugar, a um nível de 
comunicação bastante popular: são operações linguísticas perpassadas por um universo 
folclórico, expressões dessimbolizadas, triviais e usadas à exaustão nas reportagens 
policiais. O jornalista Claúdio Julio Tognolli pesquisou o uso dessas expressões em seu 
trabalho de mestrado A sociedade dos chavões: presença e função do lugar-comum na 
comunicação, pensando na função que eles exercem na escrita do texto do jornal diz: 
O chavão se reproduz em todos os grupos, níveis da fala, diferentes 
esferas sociais e categorias profissionais. Num jogo de linguagem, os 
chavões têm servido como autênticas peças, ao que alguns chamariam 
de a mais fina forma de reificação do pensamento, volta e meia sitiado 
por ofegantes tentativas de criatividade. Temos aqui, diga-se, um 
terminus ad quem: palavras-peças que dão respostas imediatas a cada 
jogo, a cada interação, sem que a palavra passe, necessariamente, pelo 
processo de pensamento, isto é, a simbolização. (TOGNOLLI, 2001, 
p.17). 
 
Portanto, neste artigo, analisaremos a cobertura jornalística em relação aos 
acontecimentos na Boca do Lixo entre 1953 e 1963, especificamente nas páginas dos 
jornais Diário da Noite e A Plateía e A Capital, no sentido de observar como as práticas 
e sociabilidades desenvolvidas nesse espaço eram estigmatizadas e estereotipadas com 
intenção de enquadrar e normatizar os praticantes que nele viviam. Durante o período 
que propomos estudar, a reportagem policial cobria diariamente a Boca do Lixo, a ponto 
de ser possível acompanhar nas leituras dessas reportagens os desdobramentos de cada 
caso, dia após dia; da prisão de um malandro à construção da peça de defesa dos 
advogados. Era uma cobertura tão detalhada – acontecimento por acontecimento – que 
podemos comparar ao enredo de uma novela ou romance. A leitura de um jornal e o 
acompanhamento de um assunto ou objeto específico nas suas páginas não é algo 
simples. Em um único jornal, sobre uma mesma notícia ou fato, podemos ter a opinião e 
a análise dos mais diversos sujeitos, que ocupam diferentes territórios de fala e emitem 
pontos de vista diametralmente opostos sobre um mesmo fato. O historiador José 
D’Assunção Barros nos alerta que ao fazer o uso do jornal enquanto fonte devemos 
levar em conta a multiplicidade de vozes e de lugares de fala que estão presentes nesse 
tipo de documentação. Assim, o aparecimento dessas outras vozes não deve ser 
percebido ou analisado apenas sob o ponto de vista de que é o autor quem está falando, 
mas deve-se levar em consideração, também, que esse autor pode estar representando 
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uma instituição, comunidade profissional ou uma disciplina e que vai muito além de sua 
própria fala. (BARROS, 2010, p.21). 
A forma como essa diversidade de vozes e sujeitos é organizada e distribuída no 
interior dos jornais lembra o que Michel Foucault chamou de “procedimentos internos” 
de interdição do discurso, que submete o acontecimento e o acaso do discurso a uma 
ordem, no caso do jornal, a sua “política editorial”, que tem relação direta com seus 
interesses no jogo de poder da sociedade. Diz ele: “são procedimentos que funcionam, 
sobretudo, a título de princípios de classificação, de ordenação, de distribuição [...].” 
Foucault elenca três categorias internas de interdição do discurso, as quais tentaremos 
resumir conceitualmente. A categoria do “comentário” é o procedimento que permite 
que seja dito algo além do texto, desde que o texto mesmo seja dito. Sobre isso temos 
no jornal a seção de “cartas” ou, no jargão jornalístico mais moderno, o “Painel do 
leitor”, espaço onde os leitores comentam sobre o texto. O segundo princípio, o de 
“autor”, não deve ser entendido apenas como o indivíduo que produz um texto ou 
pronuncia um discurso, mas um
também “princípio de agrupamento do discurso, como 
unidade e origem de suas significações, como foco de sua coerência.”, é o caso, por 
exemplo, dos sujeitos que escrevem um artigo no jornal representando determinadas 
instituições, para além de sua fala pessoal. E, por último, a “disciplina”, que seria, 
grosso modo: um conjunto de métodos, de domínios de objetos ou corpus de 
preposições consideradas verdadeiras. Não obstante, no jornal, quando se trata de falar 
sobre saúde, chama-se um médico; sobre criminalidade, um criminalista, advogado; 
sobre distribuição de renda, um sociólogo ou economista; e, em datas comemorativas, 
um historiador. Foucault propõe uma análise do discurso enquanto prática instituinte, ou 
seja, criadora de acontecimentos, imagens e comportamentos, levando-nos a perceber 
nosso objeto de estudo como um efeito de construções discursivas. (FOUCAULT, 1996, 
p. 26) 
 
2.1 Um faroeste sobre o Terceiro Mundo ou toda notícia que couber a gente 
publica4 
 
Decretado hoje estado de sítio no país, o dispositivo policial reforça 
todos seus órgãos [...] qualquer semelhança com fatos, reais, ou irreais, 
 
4O título dessa seção é uma alusão e colagem de trecho retirado do filme O Banido da Luz Vermelha de 
Rogério Sganzerla e do artigo Jornalismo: toda notícia que couber a gente publica de Robert 
Darnton; IN: O beijo de Lamourette. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 
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pessoas vivas, mortas ou imaginárias, é mera coincidência. Trata-se de 
um faroeste sobre o terceiro mundo. (SGANZERLA, 1968). 
 
O trecho citado faz parte da abertura do filme O bandido da luz vermelha do 
diretor Rogério Sganzerla, o qual é narrado em tom de um programa de rádio policial. 
As vozes de um homem e de uma mulher em tom apocalíptico e sensacionalista se 
alternam na narração. O filme é construído através de colagens que abusam dos clichês 
utilizados nesse tipo de programa. O recurso à linguagem do jornalismo policial 
utilizado no filme, em certo sentido, serve para criticar e debochar da iconografia 
conservadora e ufanista que predominava no imaginário cultural da São Paulo dos anos 
1950-1960, onde a cidade era representada como terra do progresso, locomotiva do país, 
cidade que não dorme etc. Como se a cidade fosse uma ilha de desenvolvimento e 
progresso, simbolizando o lado moderno de um país atrasado e miserável – uma ilha de 
“primeiro mundo” dentro do “terceiro”. 
Como forma de ironizar essa visão que a elite paulistana tinha construído sobre o 
progresso e a modernidade da cidade, no momento em que o trecho citado do filme é 
narrado, surge em um letreiro luminoso a seguinte mensagem: “Os personagens não 
pertencem ao mundo, mas ao terceiro mundo: Guerra total na Boca do Lixo.” 
(SGANZERLA, 1968) A trama é narrada através dessa mistura de vozes de um 
programa de rádio com a do personagem João Acácio, o bandido da luz vermelha, que 
ficou conhecido nos anos 60 através da crônica policial. Importante situar que a voz do 
personagem protagonista, o “Luz”, que no modelo convencional de cinema deveria 
ocupar o primeiro plano da narrativa, é colocada em over, dividindo com a voz dos 
apresentadores do programa sensacionalista o protagonismo na construção narrativa. 
Essa técnica faz com que a construção do personagem se dê em fragmentos 
contraditórios e disparatados, que são supervalorizados, para mostrar a angústia do 
personagem marginal, caçado pelo aparelho policial. O filme é na verdade uma paródia 
à mídia, por isso a mistura, o jogo de vozes entre os narradores do rádio e o 
personagem, juntando-se a isso, o recurso a uma quarta forma de narrativa, que são os 
constantes letreiros luminosos que aparecem no decorrer do filme. (TELES, 2015, 
p.231) Em certos momentos, o filme passa a sensação de que todo o seu argumento foi 
construído através de colagens feitas a partir da seção de fait divers de algum jornal, 
pois há constantes recursos ao uso dos chavões da reportagem policial e uma exibição 
excessiva do kitsh, numa clara crítica a essa forma de jornalismo: 
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O narrador explicita a mediocridade dos meios de comunicação de 
massa insistindo em escancarar o quanto há de informações precárias 
e contraditórias circulando pela mídia sensacionalista. O tom irônico 
do narrador provoca o riso demolidor, expondo a própria mídia em 
ação. (TELES, op.cit., p.231). 
 
No jornalismo brasileiro, o aparecimento dos fait divers — “fatos diversos”, 
numa tradução literal — data da virada do século XIX para o XX, com o crescimento de 
algumas cidades e o aumento de crimes e acontecimentos pitorescos no cotidiano das 
mesmas. Foi quando os maiores jornais em circulação nos estados do Rio de Janeiro e 
São Paulo começaram a dedicar uma seção para notícias sensacionalistas da cobertura 
policial, importado, como sempre, do modelo de jornais norte-americanos e europeus. 
Escritos numa linguagem dramática e às vezes com lampejos de comicidade, essas 
pequenas e violentas crônicas do cotidiano chegaram para ficar e até jornais tidos como 
sérios, a exemplo de O Estado de São Paulo, passaram a ter uma seção destinada a esse 
tipo de narrativa jornalística. (GUIMARÃES, 2007, p. 323-349) 
Em um comentário sobre a estruturação das notícias policiais, o historiador 
Robert Darnton diz que é um tipo de escrita fortemente perpassada por estereótipos e 
feita a partir de uma concepção prévia do resultado final da “matéria”. Esse tipo de 
reportagem faz circular, entre o jornal e os leitores, um repertório conceitual e uma 
forma de escrita e apuração, de modo que tentar fugir dessa amarra estrutural pode 
significar um baixo índice de leitores. Segundo Darnton, existe uma epistemologia dos 
fait divers, que ele descreve nessa passagem: 
Converter um boletim policial num artigo requer uma percepção 
treinada e um domínio do manejo de imagens padronizadas, clichês, 
“ângulos”, “pontos de vista” e enredos, que vão despertar uma reação 
convencional no espírito dos editores e leitores. Um redator perspicaz 
impõe uma velha forma sobre um assunto novo, de uma maneira que 
cria certa tensão – o sujeito vai se adequar ao predicado? -, e a seguir 
dá-lhe uma solução voltando ao familiar. (DARNTON, 1990, p.91) 
 
Essa tendência de abusar dos estereótipos, apontada por Darnton, faz com que os 
repórteres policiais optem por uma redução da linguagem utilizada, pelo fato de se 
propor escrever enquanto “jornalismo popular”, como se o seu público leitor fosse 
formado por crianças, “o povo essa grande criança”, ironiza o historiador. Segundo ele, 
é por causa dessa escolha estética que se forma o “caráter sentimental, moralista, com 
ares de superioridade, do jornalismo popular”. (DARTON, op.cit., p. 91) 
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 Embora pequenos fragmentos, escritos em tom romântico, com uso recorrente de 
recursos textuais oriundos da literatura de ficção, pode-se colocar em questão a 
veracidade das informações divulgadas nesse tipo de notícia, se lido com certa atenção e 
técnica, os fait divers podem fornecer pistas importantes sobre aspectos do cotidiano da 
época em que foram publicadas, bem como ajudar a perceber os valores que circulavam, 
as angústias e cobranças sociais e morais em relação a determinadas práticas, e até o 
modus operandi dos aparelhos de repressão. 
Embora aliada do aparelho policial no combate aos maus costumes, na 
manutenção da moral vigente e, às vezes, servindo como porta-voz de cobranças por 
segurança, moralidade, saúde pública, higienização; ao fazer circular através de suas 
páginas os discursos de setores conservadores, de órgãos do governo, os jornais e, em 
especial, a reportagem policial, desempenham um papel político importante
na produção 
da cidade. Quando o objeto em questão é a “marginália”, a “prostituição” e toda sorte de 
desajustados sociais, esse papel fica ainda mais evidente, pois, quando se trata do 
“submundo” o texto jornalístico recorre a disciplinas externas a seu saber, como, por 
exemplo, a criminologia, com o intuito de diagnosticar desvios sociais, atuando no 
sentido de esquadrinhar e delimitar a cidade, criando áreas “degradadas”, fazendo 
mapeamento moral dos espaços, escolhendo personagens – alvo para protagonizar 
diariamente, envolvendo-os em um enredo digno de novela. (BENATTE, 1996, p.230) 
Foi através dessa atitude de se reivindicar enquanto porta-voz de demandas 
moralistas de setores da sociedade paulistana, atuando no sentido de estereotipar 
determinadas práticas e delimitar espaços “marginais” dentro da cidade, que podemos 
perceber nas páginas do jornal Diário da Noite, a partir de 1951, uma série de 
reportagens, notas e artigos que cobravam das autoridades competentes uma atitude 
contra a zona do meretrício do Bom Retiro. Importante lembrar que a criação de um 
espaço confinado para o exercício do meretrício na cidade de São Paulo, começou a ser 
pensado e demandado no final da década de 1930, pois a elite cafeeira queria desfrutar 
dos avanços arquitetônicos pelos quais a cidade vinha passando e se sentia incomodada 
em dividir o espaço urbano com esses tipos “devassos”, tendo que presenciar práticas 
como a prostituição e as diversas sociabilidades que esta atraía, como por exemplo, o 
jogo e a malandragem. Portanto, surgia a necessidade de delimitar, de isolar essas 
práticas em um lugar que ficasse distante do olhar das famílias que tinham de transitar 
por São Paulo. (FONSECA, 1985, p.210) 
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Importante lembrar que no período pré-criação da zona do Bom Retiro, um setor 
da imprensa paulistana serviu como veículo para a emissão dos discursos a favor da 
criação de um espaço confinado para o exercício do meretrício. Nesse sentido, podemos 
observar o discurso do então Interventor Federal de São Paulo, Adhemar de Barros, 
publicado no jornal A Platéia, no qual ele profere os motivos e vantagens de se 
delimitar o espaço de atuação da “zona”: “não só para facilitar o policiamento como 
também, por oferecer um interessante campo para estudos sociais, defendendo, ao 
mesmo tempo, a ordem e a moralidade pública.” (A Platéia, 04-12-1940. p.6.) Assim, 
num clima de coesão política que envolvia políticos, empresários e setores da alta 
sociedade paulistana, Adhemar de Barros publica no final de 1940 um decreto que cria a 
zona de confinamento no bairro do Bom Retiro. 
O local escolhido foi as ruas Itaboca e Aimóres. Não demorou e essas ruas 
passaram a ser uma das mais movimentadas da capital paulista, principalmente aos 
finais de semana e vésperas de feriados, atraindo gente de outros bairros e cidades. Após 
essas datas, as ruas, que durante o dia funcionavam como ponto de comércio tradicional, 
ficavam muito sujas, por isso, muitos comerciantes e famílias do local começaram a 
reclamar, e a imprensa, claro, se prontificou a servir novamente como porta-voz dessas 
demandas. Dessa forma, A Platéia publica a seguinte nota: “o escândalo que se vem 
verificando, especialmente aos sábados, quando a extraordinária multidão que desfila 
por essas ruas da boemia na falta total de mictórios despeja as urinas pelas ruas. (A 
Platéia, 04-12-1940. p.6.) Não demorou muito para que setores da sociedade e da 
imprensa mudassem sua opinião a respeito da medida de confinar a prostituição na 
cidade. A partir disso, todos os dias vários jornais estampavam manchetes na capa 
narrando a “sujeira”, “violência” e a “pouca-vergonha” que diariamente tomavam conta 
de parte do Bom Retiro. Esse clima começa a se acirrar durante a década de 1950, já no 
Governo de Lucas Nogueira Garcez. Esse governo foi caracterizado, na época, como o 
governo da limpeza, da moralidade e dos bons costumes. Garcez era muito próximo de 
setores conservadores da Igreja Católica. 
Já em 1951, começa-se uma ação de repressão do aparelho policial na Zona do 
Meretrício. O Diário da Noite relata um desses momentos. “Pânico no Bas-fond”, era a 
chamada da matéria: 
A polícia cercou o bairro, deteve 500 pessoas e interrogou mais 
de três mil. – Mais de 500 prisões foram efetuadas na noite de 
sábado, por volta das 23:30 horas, na diligência levada a efeito 
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pela 2ª Delegacia de Polícia da Capital, sob a orientação do 
delegado Guilherme Pires de Albulquerque. A primeira medida 
foi mandar fechar todas as entradas que dão acesso à zona, 
compreendidas pelas ruas Aimorés, Carmo Cintra e Itaboca. 
Essas vias públicas fervilhavam de indivíduos de toda a espécie, 
alguns malandros já conhecidos da polícia, exploradores das 
infelizes que frequentam os lupanares. (Diário da Noite, 29-08-
1951. p.3) 
 
Nota-se, já de imediato, que o jornalista queria justificar estatisticamente a ação 
da polícia e já começa explorando a grande quantidade de detenções e interrogatórios 
que a ação policial gerou. Entre as várias formas de atuação do jornal no sistema de 
relações de poder em que ele se insere, uma delas é essa de querer passar a impressão de 
que é portador de demandas e cobranças da população, como um todo, para o governo e 
outras instituições, quando, na maior parte do tempo, é um prestador de contas e 
legitimador da ação dos mais diversos aparelhos do Estado e de valores de setores 
hegemônicos da sociedade. Logo em seguida, justificada a ação policial, o texto focaliza 
a estigmatização do espaço geográfico e os seus praticantes, daí o uso de termos como 
“espécie”, “malandros”, “exploradores” e “infelizes”. Na segunda parte da nota, o jornal 
nos informa quais os tipos sociais que foram detidos nessa diligência. Diz: “Ladrões, 
“caftens”, “batedores de carteiras”, homossexuais e outros indivíduos, em número 
superior a 50, que foram reconhecidos pelos policiais, foram detidos e encaminhados 
para o plantão do D.I.” (Diário da Noite, 29-08-1951. p.3). 
Esse clima de cobranças e disputas sobre o que fazer com a Zona do Meretrício 
só teve desfecho quando o governador Lucas Nogueira Garcez publicou, em 1953, o já 
citado decreto que colocava fim à Zona do Bom Retiro. Ironicamente, no mesmo dia foi 
publicado outro decreto que mudava o nome da rua que mais representava o local da 
prostituição do ponto de vista do imaginário cultural, a Rua Itaboca. O governo mudou 
seu nome para Rua Cesare Lombroso, coroando, com essa homenagem ao criminalista 
italiano, o seu trabalho para extinguir a zona tolerada de prostituição da cidade de São 
Paulo. 
No material que analisamos e, aqui, especialmente no jornal conservador A 
Capital, podemos observar a existência de uma insatisfação desse veículo — que na 
época representava os interesses de setores ligados ao mercado financeiro — com as 
notícias narradas pela reportagem policial, que para os editores romantizava os feitos de 
criminosos e retratava com glamour tanto a vida da prostituição quanto a do crime, que 
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segundo o jornal, acaba por incentivar a entrada de mais e mais pessoas na vida dos 
delitos e do pecado, ofendendo assim, a moral e os bons costumes da população 
paulistana. O impresso, que se apresentava como “jornal-magazine”, era publicado 
mensalmente. Podemos notar em três editoriais diferentes, a preocupação com a 
chamada “imprensa marrom”; nesses editoriais, o jornal se valia do auxílio de outros 
saberes, a medicina e a criminologia, por exemplo, para sustentar sua tese de que a 
reportagem policial era um mal a ser combatido e extirpado. Também, pode-se observar 
a tentativa de mobilizar diversas instituições da sociedade para sua causa, como se 
percebe
em constantes apelos ao clero, a polícia e aos políticos. Na edição de janeiro de 
1962, o jornal publicara editorial com o título “O noticiário criminoso e dissolvente”; o 
uso do adjetivo “dissolvente” já deixa claro a posição contrária do jornal à forma de 
narrativa veiculada nas seções dedicadas à reportagem policial dos outros jornais; e 
mais, afirmava que as mesmas atuavam no sentido de atacar determinados valores caros 
para a visão de mundo de A Capital, nesse sentido o editor prossegue: 
Afinal, “água mole em pedra dura…”, aqui está uma das 
manifestações mais merecedora de acatamento e gratidão: o presidente 
do Conselho Regional de Medicina do Estado de S. Paulo, prof. 
Flaminio Favero, apresentou-lhe a proposta que estudada em plenário 
em sua 205ª reunião, em 14 de março, foi POR UNANIMIDADE 
APROVADO, e deliberado transmitir a todos os jornais de São Paulo 
e autoridades competentes. 
Essa proposta refere-se ao noticiário policial, e, sendo esta folha a 
única que, na imprensa nacional tem movimentado uma persistente 
campanha contra tal sistema de noticiário sensacional é com a maior 
satisfação que transcrevemos o texto integral do protesto, hipotecando 
– lhe integral solidariedade (A Capital, janeiro de 1962. p.1). 
 
 O texto trata de uma proposta apresentada pelo presidente do Conselho Regional 
de Medicina, em reunião do citado órgão, no sentido de tentar frear a disseminação de 
notícias jocosas nas páginas de jornais paulistanos. O editor de A Capital faz o uso da 
metáfora “água mole em pedra dura...” para ilustrar a luta e protagonismo do seu jornal 
na batalha contra o sensacionalismo e ao mesmo tempo para salientar que, enfim, depois 
de tantas insistências e batalhas, algum órgão respeitável da sociedade resolvia se 
pronunciar. O texto prossegue com a publicação na integra da nota do Conselho de 
Medicina, eis o texto: 
 “De ordem do Conselheiro Presidente do Conselho Regional de 
Medicina do Estado de S. Paulo, conselheiro Flaminio Favero, 
cumpre-me apresentar a v.s, proposição estudada pelo plenário em sua 
250ª reunião, realizada em 14 último e por ele aprovada 
unanimemente, que se relaciona com publicações noticiosas de 
natureza policial insertas de frequente nos jornais desta capital. 
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“Assistimos no momento ocorrência social demasiado desagradável. 
Habitantes de vários bairros da cidade vivem sobressaltados pela ação 
criminosa do “bandido mascarado”. Toda a população se inquieta e se 
comove pela natureza dos crimes cometidos.” Ninguém ignora os 
objetivos do referido malfeitor. 
Para aumentar a intranquilidade e piorar o trauma emocional, a policia 
e a imprensa fazem questão de identificar as vítimas mesmo quando 
há dias o fato delituoso ocorreu com uma menor. Embora o nome não 
tivesse sido citado, cuidou a policia e a imprensa de anunciar a 
residência da vítima, identificando-a de maneira indireta, mas sem 
dúvida, realizando o sádico desejo de denunciar de modo claro quem 
era a vítima. 
Nos médicos, Sr. Presidente, compreendemos a necessidade de se 
guardar segredo a respeito de certas ocorrências, porque sabemos da 
possibilidade de tais revelações concorrer para agravar traumas 
psíquicos, tornando – os irreparáveis. Nestas condições, propomos que 
o Conselho de Medicina proteste, em defesa das vítimas e do sentido 
de humanidade que nunca deve abandonar o profissional de medicina, 
contra tal proceder da policia e da imprensa. (A Capital, janeiro de 
1962. p.1). 
 
Trata-se aqui, como podemos observar, do embate de uma entidade 
representativa de um saber, no caso o Conselho Regional de Medicina, que se utiliza do 
espaço discursivo de outro tipo de instituição, o jornal, para emitir uma opinião contra 
um tipo de linguagem, a reportagem policial veiculada em jornais concorrentes de A 
Capital. A nota é endereçada a outra instituição, a Presidência da República. No texto a 
entidade médica toma para si o direito de falar em nome de moradores inconformados 
com a forma que imprensa veicula notícias sobre os feitos do Bandido da Luz 
Vermelha, e reclama sobre a identificação das vítimas nas páginas dos fait divers; 
termina reafirmando a posição do Conselho contra a imprensa e a polícia, mas não sem 
antes recorrer ao saber psiquiátrico para justificar seu argumento. 
Ao que parece, o apelo às instituições laicas não foi suficiente para que a sua 
cruzada contra a reportagem policial obtivesse sucesso, em outubro de 1962 A Capital 
resolve buscar ajuda junto ao clero para continuar sua batalha conta o sensacionalismo. 
Dessa forma, estampa no título de seu editorial a frase “Contra a perversão e a 
degeneração”, o texto é endereçado ao Cardeal Dom Câmara, Archebispo de São Paulo. 
Na argumentação, como recurso para obter a imediata simpatia do Cardeal, o editor 
enfatiza a atuação do jornal no que chama de “causa santa” contra o comunismo e o 
jornalismo marrom que seriam responsáveis por dilacerar os costumes e a moral cristã 
da sociedade paulistana: 
 
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A coleção desta folha, em seus 45 ou 46 anos da atual 
orientação, (facilmente consultável no Arquivo do Estado) 
atestará aos seus leitores sua indefectível batalha contra a 
degeneração, perversão de costumes reclamando providencias 
enérgicas das respectivas autoridades, além de intervenção 
salutar de autoridades, inclusive da Eclesiástica... Acompanha 
esta alguns exemplares da “A CAPITAL”, órgão independente 
que mantém a santa batalha contra o comunismo e dissolução 
de costumes de forma enérgica e permanente.( A Capital, 
01/1962. p.1) 
 
Ainda nesse artigo continua-se a mobilização de poderes e instituições para 
extirpar os relatos degradantes e obscenos da imprensa policial, que expõem 
constantemente a formação moral da população da cidade. Dessa vez, o editor faz 
menção à carta enviada ao Presidente da República, reportando-se à época em que o 
mesmo foi designado pelo clero para compor um conselho econômico sobre assuntos de 
interesse do Brasil junto a Europa. Temos, portanto, o entrelaçamento e a mobilização 
de três instituições para atuarem no sentido de interditar o discurso emitido pelas seções 
dedicadas a reportagem policial na São Paulo da década de 1960, tais quais, da Igreja e 
do saber religioso, da Presidência da Republica, além de fazer referência a uma 
delegação que atuava no debate sobre economia e comércio, conforme podemos 
observar na seguinte parte do editorial: 
Num dos números encontrará V. Emin. os relatórios enviados ao Sr. 
Presidente da Republica, relativo aos trabalhos na qualidade de 
membro da Delegação Econômica Comercial do Brasil na Europa que 
me coube desempenhar por ordem de S. Exa.( A Capital, Outubro de 
1962, p.2). 
 
Após desenvolver toda sua argumentação com o intuito de mostrar ao 
representante da Igreja todo o esforço feito pelo jornal no sentido de combater a 
proliferação dos discursos sensacionalistas nos jornais em circulação, o editor conclui 
seu raciocínio afirmando que se não houvesse um enquadramento e uma normatização 
por parte do poder-saber jurídico, via a inclusão de um artigo específico na Lei de 
Imprensa, artigo esse que proíba a divulgação de notícias sobre crimes, bem como fotos 
consideradas obscenas, seria inútil todo o esforço feito ao longo do tempo, pelo jornal e 
pelas outras instituições envolvidas na cruzada contra o sensacionalismo. No final, ele 
ainda se vale de um recurso retórico, ao usar o termo “infância” como um dos setores 
que clamam por essas medidas: 
 
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Aproveito a oportunidade para relembrar que todos os esforços contra 
o sensacionalismo e dissolução de costumes, não serão profícuos se 
não tiverem que na Lei de Imprensa seja incluído o artigo proibindo 
tal divulgação do noticiário policial
conturbadas, tendo como base os princípios de respeito aos direitos 
humanos e humanitários mais relevantes. 
 Na perspectiva chomskyana, são as grandes potências ocidentais, mais do que 
tudo através da OTAN, que praticam crimes internacionais (genocídio, crimes contra a 
humanidade e crimes de guerra) nos dias atuais, sob o manto de construção da 
democracia e de respeito aos direitos humanos – o que constitui, por óbvio, uma 
inversão na perspectiva tradicionalmente aceita, sobretudo pelos realistas. A estas ações 
Chomsky contrapõe inúmeros exemplos em que as potências ocidentais toleram ou 
mesmo estimulam – na medida em que emprestam apoio político, militar e financeiro – 
as atrocidades cometidas pelos amigos, aqueles que, no exercício dos poderes locais, 
dão sustentação à política internacional que lhes interessa. É o caso dos amigos turcos, 
em 1997, sob Clinton: 
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Graças ao fornecimento constante de armamento pesado, treinamento 
militar e apoio diplomático, a Turquia conseguiu esmagar a resistência 
curda, deixando dezenas de milhares de mortos, de dois a três milhões 
de refugiados e 3.500 aldeias destruídas (sete vezes o Kosovo 
bombardeado pela Otan)” (2003b, p. 18). 
 
 O que outros autores vêem como contingência natural da política do mais forte 
sobre os mais fracos, política, financeira e militarmente, Chomsky vê como conivência 
interessada em legitimar políticas semelhantes em outras partes do planeta. 
Praticamente todos os governos fizeram o impossível para se aliar à 
coalizão liderada pelos Estados Unidos, sempre por seus próprios 
motivos. Assim, um dos primeiros países a se aliar, com grande 
entusiasmo, foi a Rússia. Por que a Rússia? Porque eles querem 
autorização para dar continuidade, mais ativamente, às suas próprias 
atrocidades na Chechênia. A China aliou-se de muito bom grado. Eles 
ficam encantados por contar com o apoio norte-americano para 
repressão no ocidente da China. A Argélia, um dos maiores países 
terroristas do mundo, foi recebida de braços abertos na ‘coalizão 
contra o terrorismo’. [...] Atualmente, há tropas turcas em Cabul, ou 
logo haverá, pagas pelos Estados Unidos para travar a Guerra contra o 
Terrorismo. Por que a Turquia está oferecendo soldados? Na verdade, 
eles foram o primeiro país a oferecer tropas aos Estados Unidos no 
Afeganistão [...]. Foi por gratidão – porque os Estados Unidos foram o 
único país que se dispôs a lhes dar apoio maciço em suas próprias 
enormes atrocidades terroristas no sudeste da Turquia, nos últimos 
anos. […] Clinton estava inundando o país de armas. A Turquia 
tornou-se o principal destinatário de armas do mundo, além de Israel e 
do Egito. (2005, pp. 21-22) 
 
 Por esse critério, os Estados violentos podem agir como quiserem, com a 
aprovação das classes instruídas e da mídia. Estados com ímpetos imperiais regionais, 
como a Rússia e a China, se sentiriam cômodos em seguir a doutrina norte-americana de 
segurança nacional. A China estaria respondendo exatamente como esperado, através do 
aumento de sua capacidade militar nuclear ofensiva, que obrigaria a Índia a responder 
da mesma maneira, o que, por sua vez, obrigaria o Paquistão a responder em igual 
proporção. Logo, essa cadeia atingiria o Oriente Médio e grande parte do resto do 
mundo. A administração norte-americana estaria, assim, dando exemplo ao resto do 
mundo ao desenvolver novas armas nucleares, o que certamente faria com que outros 
viessem a agir da mesma maneira, já que não seria razoável esperar o contrário. Como 
consequência, em sua visão, atualmente “o mundo é um lugar mais inseguro” (2004a, p. 
34). 
 Em conexão com tais desenvolvimentos, está a ideia de que os grandes estados 
do mundo são estados terroristas. Nesse aspecto, Chomsky vale-se dos ensinamentos de 
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Santo Agostinho para demonstrar que é tênue a diferença na caracterização de “piratas e 
imperadores”: 
Santo Agostinho conta a história de um pirata capturado por 
Alexandre, o Grande, que lhe perguntou: ‘Como você ousa molestar o 
mar?’. ‘E como você ousa desafiar o mundo inteiro?’, replicou o 
pirata. ‘Pois, por fazer isso apenas com um pequeno navio, sou 
chamado de ladrão; mas você, que o faz com uma marinha enorme, é 
chamado de imperador.’ A resposta do pirata [...] ilustra com certa 
exatidão as relações atuais entre os Estados Unidos e vários outros 
atores no plano do terrorismo internacional: a Líbia, facções da 
Organização para a Libertação da Palestina (OLP) e outros. 
(Chomsky, 2006, p. 259) 
 
 Em relação a um dos temas mais caros a Chomsky, o terrorismo, ele o vê como 
um dispositivo em que os sócios co-constroem, co-justificam e se responsabilizam pelas 
realidades criadas. No contexto da guerra fria, 
Não é (era) terrorismo (…) quando forças paramilitares, operando a 
partir de bases americanas e treinadas pela CIA, bombardeiam(avam) 
hotéis cubanos, afundam(avam) navios pesqueiros e atacam(avam) 
navios soviéticos em portos cubanos, envenenam(avam) plantações e 
animais de criação, tentam(avam) assassinar Fidel Castro e assim por 
diante, em missões que eram realizadas quase semanalmente no auge 
da campanha. (Chomsky, 2006, p. 10) 
 
 Para Chomsky o significado original de terrorismo considerado como terrorismo 
de Estado precisa ser resgatado. Originalmente, estes são atos de violência cometidos 
pelo Estado, no fim do século XVIII, com o intuito de garantir a submissão popular. 
Com o passar do tempo, atendendo a interesses dos imperadores de todos os tipos, o 
termo passara a ser empregado para designar, principalmente, terrorismo de pequena 
escala, praticado por pessoas ou grupos (2006, p. 259). Tal concepção abre caminho, a 
seu juízo, para a afirmação do princípio segundo o qual: 
quando alguém pratica o terrorismo contra nós ou contra nossos 
aliados, isso é terrorismo, mas, quando nós ou nossos aliados o 
praticamos contra outros, talvez um terrorismo muito pior, isso não é 
terrorismo, é antiterrorismo ou guerra justa” (2005, p. 78). 
 
 O mesmo padrão de comportamento se aplicaria à Colômbia, a cujo país 
Chomsky atribui o pior histórico de violação dos direitos humanos da década de 1990, 
ao mesmo tempo em que é o maior beneficiário da ajuda e do treinamento militar dos 
EUA para “eliminar” seus inimigos (deles e dos próprios EUA). Certamente, no caso da 
Colômbia, há a particularidade de que as atrocidades são atribuídas a paramilitares, 
estreitamente ligados às forças armadas que recebem ajuda e treinamento dos Estados 
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Unidos da América, “todos seriamente envolvidos com o narcotráfico”. A questão da 
plausibilidade das razões apresentadas para as intervenções unilaterais persiste: 
[...] o pretexto se baseia na notável pressuposição, praticamente não 
questionada, de que os EUA têm o direito de empreender ações 
militares e travar guerras químicas e biológicas em outros países para 
erradicar uma lavoura de que não gostam, apesar de, supostamente, as 
‘modernas noções de justiça’ não darem à Colômbia – ou à Tailândia, 
à China e a muitos outros – o direito de fazer o mesmo na Carolina do 
Norte para eliminar uma droga muito mais letal que foram obrigados 
a aceitar (e divulgar) sob a ameaça de sanções comerciais, a um custo 
de milhões de vidas (2003, p. 25). 
 
 A grandiosa estratégia imperial caracterizada por Chomsky só é possível graças 
à sustentação e à participação na própria estratégia de instituições globais poderosas. 
 
OS SÓCIOS DO IMPÉRIO 
 
 Se o império atual tem como nome Estados Unidos da América e seu sócio 
estatal principal é o Reino Unido, na descrição de Chomsky os objetivos não são 
alcançados sem que participem da grandiosa estratégia imperial os setores que lhe dão 
suporte: a mídia, o poder militar, a Intelligentsia abrigada
e fotografias obscenas. Nossa 
infância clama por essas medidas e só V. Emin poderá consegui-la. 
Com elevado respeito e acatamento de V. Emin devotissimo patrício J. 
C. (A Capital, outubro de 1962, p.2). 
 
A preocupação corrente era que os constantes relatos sobre os feitos criminosos 
dos malandros e da vida libidinosa das prostitutas, contadas através da linguagem 
romantizada e adornada por recursos como o chavão, utilizados pelos repórteres 
policias, influenciassem de maneira negativa os leitores, principalmente a juventude. 
Sobre isso, Ramão Gomes Portão5, repórter que atuou com frequência na Boca 
do Lixo, chama atenção para o que ele denomina de “influência” que os meios de 
comunicação de massa, especialmente a reportagem policial, exercem sobre a opinião 
pública. Ele diz que esse tipo de relato contribui na formação da chamada “opinião 
pública”, pois ele cria questões de interesse público, e que a ação do repórter ao cobrir 
determinados locais onde a população por diversos motivos não tem acesso, acaba por 
“formar” o conhecimento das pessoas sobre a “criminalidade”, influenciando também as 
atitudes a serem tomadas pelas “instituições de defesa social” em relação aos 
marginalizados. Como vimos, essas relações se estabelecem e podem ser percebidas 
diariamente na prática da leitura do jornal. (PORTÃO, 1980, p.13). 
Outra forma de atuação da reportagem policial, no sentido de pressionar as 
autoridades e aparelhos de Estados a se posicionarem em relação a determinadas 
sociabilidades consideradas “marginais”, é quando essa se comporta como uma espécie 
de “tribuna de debates” sobre o que se considera um problema social a ser enfrentado. 
Nesse caso, é recorrente encontrar nas páginas dos jornais no período pesquisado, 
entrevistas com agentes do governo intimados a prestar contas de suas ações para 
combater o crime e os maus costumes, como é o caso da entrevista encontrada no Jornal 
Diário da Noite, em agosto de 1963, com o então Secretário de Segurança Pública do 
Estado de São Paulo, na segunda gestão de Ademhar de Barros, o General Adelvio 
Barbosa de Lemos. Na ocasião, o então Secretário havia sido convocado pela 
Assembleia Legislativa para prestar alguns esclarecimentos sobre os acontecimentos 
“ultrajantes” da Boca do Lixo. O jornal se antecipa à sabatina da Assembleia e o 
convoca para uma entrevista onde o título já oferece ao leitor a opinião do entrevistado 
 
5Ramão Gomes Portão era formado em Direito, mas atuou como editor de polícia do famoso jornal 
Notícias Populares durante 20 anos e conhece bem os melindres da feitura desse tipo de reportagem. 
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sobre os principais assuntos pautados, diz: “Sou pela regulamentação do jogo e da 
prostituição”; porém, logo em seguida, o jornal procura desqualificar a opinião do 
secretário “Digressões filosóficas do velho General” (Diário da Noite, 09-08-1963, 
p.5). 
A entrevista segue com o secretário descrevendo como se comportaria perante os 
questionamentos que iria receber na casa legislativa: “Responderei com lealdade e 
franqueza a todas as perguntas que me forem dirigidas pelos ilustres deputados da nossa 
Assembleia Legislativa. Direi inclusive os motivos pelos quais sou pela regulamentação 
do jogo e do difícil problema do sexo. ” Logo em seguida, ciente do jogo de forças e de 
poder ao qual estava prestes a ser submetido, diante do desafio de entrar nessa “ordem 
arriscada do discurso” (FOUCAULT, op.cit. p.7), o secretário estabelece de imediato 
uma separação, uma distinção, entre sua opinião pessoal sobre as práticas do jogo e da 
prostituição na Boca do Lixo e seu dever enquanto agente do Estado, como podemos 
observar: 
Faço absoluta questão de frisar que, como secretário de Estado, coíbo 
a contravenção penal a qualquer preço. Todavia, como cidadão, 
homem particular, sou pela existência legal de ambos. Em todos os 
regimes, em todos os tempos, jogo e questão sexual foram duramente 
combatidos, no entanto, tidas como autentico calcanhar de Aquiles de 
todos os governos. ( Diário da Noite, 09-08-1963, p.5) 
 
Em seguida, o secretário se despe totalmente da postura de cidadão com opinião 
progressista em relação ao jogo e à prostituição para descrever em detalhes como se 
daria sua atuação na repressão aos praticantes da Boca do Lixo. Nessa descrição recorre 
a termos utilizados pelos repórteres policiais para se referir aos habitantes do local e ao 
seu cotidiano, como por exemplo, o uso das palavras “degradante”, “intolerável” e 
“desajustadas”, como podemos observar: 
Como auxiliar de um governo que me honrou com a direção desta 
importante pasta, cumpre-me combater a contravenção e o crime. Isso 
o farei de qualquer forma. Quando assumi a SSP tive a cautela de 
mandar filmar e fotografar o aspecto degradante da chamada “Boca do 
Lixo”. O espetáculo triste de filas de mulheres prostradas na via 
publica em atitude de deboche vai acabar. Até aqui, o delegado Milton 
Martins de Lara, titular da Delegacia de Costumes, autoridade das 
mais dignas, tem se portado como um herói na repressão aos delitos 
atinentes à sua Especializada, em fato dos parcos recursos do que ela 
dispõe. Todavia, tão logo aquela Delegacia receba os reforços que 
objetivo fornecer, espero que os lamentáveis espetáculos daquelas 
ruas desapareçam. O delegado Milton Martins de Lara continua a 
merecer a minha confiança. Estamos em plena batalha e, em tal fase, 
não se troca de comando. Acredito, também, que a Delegacia de 
Costumes, uma das mais importantes da nossa Polícia especializada, 
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elimine, quando estiver devidamente equipada, o intolerável e 
conhecido “trottoir” de mulheres desajustadas. (Diário da Noite, 09-
08-1963, p.5). 
 
Ele encerra a entrevista descrevendo a situação e a estrutura utilizada pela 
polícia para reprimir esse tipo de contravenção. Não sem antes, apoiar o seu enunciado 
na incorporação de estudos realizados e no planejamento das ações de repressão que 
seriam desenvolvidas. No final, faz questão de lembrar a responsabilidade e o papel da 
imprensa no sentido de fiscalizar e pressionar o Estado para que tome as providências 
cabíveis: 
Até aqui a nossa posição foi de estudos e de observação, agora, com 
tudo devidamente planejado, vamos avançar no sentido da trincheira 
do inimigo comum, isto é, a delinquência. Em cada posto chave da 
Polícia coloquei o homem adequado. Todos estão colaborando com 
dedicação. As delegacias especializadas, as distritais, as regionais do 
interior do Estado passaram a funcionar entrosadamente. Espero que a 
imprensa continue firme na sua função fiscalizadora. As portas da 
minha secretaria estão abertas aos jornais. Recebo a critica como 
subsidio ao meu trabalho, nunca como ofensa à minha administração. 
(Diário da Noite, 09-08-1963, p.5) 
 
Sobre essa confusão que é a leitura diária de um jornal, o antropólogo Bruno 
Latour faz uma descrição interessante, e a partir de uma notícia sobre o “aumento do 
buraco na camada de ozônio” ele descreve que no mesmo artigo encontrou várias falas, 
desde opiniões de químicos à de executivos de empresas produtoras de pesticidas, 
passando por chefes de Estados e ecologistas, além é claro, da visão do próprio jornal 
através do jornalista designado para produzir a matéria principal. Diz ele: “O mesmo 
artigo mistura, assim, reações químicas e reações políticas [...]. As proporções, as 
questões, as durações, os atores não são comparáveis e, no entanto, estão todos 
envolvidos na mesma história. ” Ele conclui seu raciocínio de forma cômica e irônica: 
“Se a leitura do jornal é a reza do homem moderno, quão estranho é o homem que hoje 
reza lendo estes assuntos confusos. Toda cultura e toda natureza são diariamente 
reviradas aí.”(LATOUR, 1994, p.7) 
O produto das reportagens
produzidas no jornal é nomeado por “informação”, o 
historiador Frank Ankersmit diz que causa estranhamento as metáforas utilizadas para 
se referir a este conceito, como se a informação fosse algo físico: “A informação ‘flui, ’ 
‘se move’, ‘se espalha, ’ é ‘trocada’, é ‘guardada’ ou é ‘organizada. ’ (ANKERSMIT, 
ano, p.120). Voltando ao debate sobre a linguagem do jornalismo policial, lembramos 
que os chavões e o lugar-comum são artefatos da escrita jornalística, orientados, em 
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muitos casos, pelos manuais de redação dos jornais; eles cumprem uma função de 
sobrepor a descrição dos fatos, o que dá aos títulos das reportagens uma materialidade 
própria, como diz Tognolli: 
No caso de um crime já disponho de todas as aberturas de matérias 
possíveis realizadas pelo jornalismo policial. No caso de economia 
tenho todo um componente técnico e reprodutível da linguagem a meu 
serviço; os candidatos que “não alçam voo”, os partidos que “não 
aquecem as turbinas” [...] para descrever a briga entre dois políticos, 
me basta adotar todo o referencial da linguagem bélica: os “flancos 
expostos”, os “pelotões de fuzilamento” e o “entrincheiramento” de 
políticos num determinado partido.”(TOGNOLLI, ano, p.161) 
 
Conforme apresentado no decorrer do artigo, a cobertura dos jornais analisados 
funcionou como suporte discursivo de aparelhos do Estado, instituições sociais e de 
saberes, que viam nas práticas “marginais” desenvolvidas no cotidiano da Boca do Lixo 
uma ameaça para os valores e costumes que queriam fazer circular no imaginário 
cultural da época. Para isso, se utilizaram das diversas seções dos jornais analisados, 
transportando para suas páginas os discursos de diferentes campos do saber, sempre na 
direção de esquadrinhar, separar, estereotipar e estigmatizar o cotidiano do local e seus 
praticantes. Frisando sempre a sujeira, a violência, a promiscuidade, utilizando sempre 
adjetivos negativos, como se o cotidiano dessas pessoas fosse o tempo inteiro 
perpassado por essa aura sombria, como se no local, não existisse outras formas de se 
relacionar que não as descritas nas páginas dos jornais. 
 
 
AUTOR 
Graduado em História pela UNEB - Universidade do Estado da Bahia (2010). Mestre 
em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (2015) e Doutorando em 
História pela mesma instituição. Atualmente dedica-se à pesquisa em História Cultural, 
nas seguintes áreas de interesse: história dos marginais, urbanidade, heterotopias, escrita 
de si e estética da existência. 
 
 
REFERÊNCIAS 
Filmes: 
SGANZERLA, Rogério; O Bandido da Luz Vermelha. Vídeo Interamericana, 1968. 
 
Jornais: 
A Platéia – 1940 
A Capital – 1962 
Diário da Noite – 1951/1963 
 
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Bibliografia: 
BARROS, José D’Assunção. Fontes Históricas – um caminho percorrido e perspectivas 
sobre os novos tempos. In: Revista Alburquerque. Vol.3, n.1, 2010. 
BENATTE, Antônio Paulo. O centro e as margens: boemia e prostituição na “capital 
mundial do café”(Londrina 1930-1970). Dissertação de mestrado apresentada ao 
Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Paraná, 1996. 
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Universitária, 1982. 
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apresentado ao Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências 
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precariedade no cinema paulista. São Paulo, EDUC: FAPESP, 2012. 
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Trad. Carlos Irineu da Costa.Rio de Janeiro: Ed.34, 1991. 
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Barbosa. Bauru: Edusc, 2007. 
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1980. 
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TOGNOLLI, Claudio Julio. Sociedade dos Chavões: presença e função do lugar- 
comum na comunicação. São Paulo: Escrituras Editora, 2001(Coleção Ensaios 
Transversais). 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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Artigos e ensaios 
 
O CORPO POÉTICO DA ATRIZ/AUTORA HELENA 
IGNEZ EM ‘A MULHER DE TODOS’ 
Tatiana Trad* 
 
 
 
RESUMO: Este artigo deriva da minha pesquisa de mestrado onde investiguei as 
estratégias de invenção da atriz Helena Ignez em alguns filmes do Cinema Marginal 
brasileiro. Lançar um olhar sobre o corpo poético da atriz no filme A mulher de 
todos(1969), onde interpreta Angela Carne e Osso, é tentar compreender os caminhos 
percorridos por Helena Ignez em sua elaboração de uma interpretação autoral. Da 
parceria da atriz com o diretor do filme e seu marido Rogério Sganzerla, surgiu Angela 
Carne e Osso, uma personagem transgressora, original e que se tornou um marco na 
interpretação do Cinema Brasileiro pelas rupturas e avanços que traz na representação 
da mulher. Este artigo reflete sobre o papel da performance nas inovações que a atriz 
apresenta. 
Palavras-chave: Helena Ignez, Cinema Marginal, interpretação. 
 
 
Trabalhar a poética colaborativa cinematográfica e investigar os momentos de 
criação do filme como integrantes e inerentes à composição de sua forma final e à sua 
recepção estética, pressupõe elevar o ator ao estatuto de co-autor de determinados 
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planos, sequências e até de um filme por inteiro. Partindo do lugar da atriz/autora 
Helena Ignez, faço uma breve análise da personagem Angela Carne e Osso do filme A 
Mulher de Todos(1969) dirigido por Rogério Sganzerla. Angela Carne e Osso é um 
marco na cinematografia nacional por romper com o modelo de mulher imposto pelo 
patriarcado e ampliar as possibilidades de identidades femininas no cinema brasileiro. A 
performance da atriz foi determinante para o filme alcançar o resultado obtido. 
Em A Mulher de Todos, a atuação de Helena Ignez é parte integrante da 
construção da narrativa fílmica; a performance, ela mesma, é a força do filme. O texto 
lido, ganha uma forma única na voz e no corpo da atriz. Rogério Sganzerla, 
influenciado por Bergman e Godard, acreditava na liberdade de criação do ator/atriz e 
tinha em Helena Ignez o corpo preparado para cada expressão requerida pela 
personagem. O aspecto visual da atriz se torna a única forma possível de existência para 
Angela Carne e Osso. Jovem, radicalmente loira em terra tupiniquim, corpo bonito, 
forte e sensual. Poderia ser apenas uma mulher sedutora, mas era muito mais, era “a 
mulher de todos”. 
O filme é uma comédia e mostra as aventuras de uma mulher vampiresca, 
adúltera, sedutora, dona de si, moderna, rebelde, casada com o empresário do ramo das 
comunicações, editor de história em quadrinhos Dr. Plirtz (Jô Soares). Angela Carne e 
Osso está em busca de amantes que queiram lhe acompanhar à Ilha dos Prazeres, um 
lugar onde tudo é permitido. O filme se vale da linguagem da história em quadrinhos, da 
pop art, da colagem e do humor das chanchadas para fazer uma crítica direta ao 
machismo, ao sistema e a cultura de massa. O texto falado
pela atriz ganha formas 
muito particulares através de sua voz e corpo, resultando em uma performance 
absolutamente original. 
No início do filme, um enquadramento em contra-plongé mostra Angela Carne e 
Osso chutando Flávio Asteca em uma escada rolante. Angela não para de chutá-lo e 
agredi-lo. Ao mesmo tempo em que o agride, o beija. É ela quem toma a iniciativa. 
Causa um estranhamento ao espectador, ver esta sequência onde Angela chuta, empurra, 
puxa, grita, xinga, abraça e beija Flávio Asteca ao mesmo tempo. São sentimentos 
extremamente opostos. Um corpo feminino que transita entre a histeria e a sedução, 
apresentando-nos uma mulher agressiva e de comportamento oscilante. 
O corpo poético da atriz desenha-se entre gestos contidos e explosões. A força 
da personagem também é reforçada por um corpo firme em suas ações e oscila entre a 
delicadeza feminina e a altivez tão característica do gênero masculino. A personagem se 
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mostra ao espectador como um corpo autônomo, a exemplo da cena em que Angela está 
na praia fumando um charuto (elemento fálico que irá lhe acompanhar ao longo de todo 
o filme) e ajusta a camisa molhada e transparente no corpo, com o intuito de valorizar e 
evidenciar os mamilos aparentes. Nesta cena Angela é dona do próprio corpo, está em 
busca de diversão e prazer. 
Não é possível separar a aparência física de Helena da composição física da 
personagem. Angela Carne e Osso é em certo sentido a própria Helena Ignez. A 
atriz/autora é conduzida por uma narrativa cômica que se utiliza dos exageros, dos 
excessos, do absurdo e do cafona como elementos de composição estética e cênica para 
dar corpo e voz a uma mulher única. A poética do corpo e da voz brota dos extremos. O 
corpo que agride, o corpo que sente e dá prazer, um corpo ambíguo e material. 
A personagem caracteriza diferentes mulheres para diferentes homens, porém 
sempre em posição de domínio. A atriz faz uso de diversos figurinos, o que contribui 
para essa demarcação de personalidades. O corpo de Angela Carne e Osso veste 
símbolos codificados como bota de cowboy, vestidos curtos, mas também se veste com 
roupas masculinas, vestindo camisa de manga comprida, gravata , chapéu e calça 
comprida, masculinizando a personagem nas cenas em que desempenha ações atribuídas 
somente aos homens na época, como dirigir um carro , dar carona para um homem na 
estrada, se relacionar com outra mulher ou pilotar uma moto. O diretor se apropria de 
elementos e símbolos de poder do universo masculino (como o charuto, por exemplo) 
para garantir a Angela Carne e Osso um patamar de igualdade com os homens. 
 
 
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Os trajes usados também influenciam em sua movimentação contribuindo para a 
composição gestual da personagem. Nas cenas de dança, a coreografia intuitiva e de 
improvisação, interage diretamente com o olhar do diretor, uma vez que a atriz brinca 
com a câmera, ora se posicionando mais a frente ora mais afastada. Não tendo o diretor 
total controle sobre a cena/performance. 
Outra característica que aponta uma rasura no padrão de performance da 
narrativa clássica hollywoodiana, é o fato de que Angela Carne e Osso é uma mulher 
vampira e sádica. Em uma das cenas , ao beijar o parceiro Armando, queima-o com o 
charuto e morde seu pescoço até sangrar. A cena dá um tom surreal à narrativa, 
principalmente porque não é um código que se repete. Angela Carne e Osso rompe com 
o convencional e ataca o parceiro com violência, deliciando-se com o sangue nos lábios. 
É uma cena de horror, diferente das cenas de amor convencionais. Uma mulher 
dominadora que se sente provocada e reage de forma agressiva. Essa cena é um dos 
extremos no filme. O espectador não espera que algo assim aconteça, pois não há 
nenhum código presente em cenas anteriores que indique essa possibilidade. 
A atriz/autora tem em seu corpo e voz os instrumentos que a permitem fazer essa 
transição entre a sedução e o horror. O berro é uma característica marcante do cinema 
marginal e Angela Carne e Osso berra, grita. Esse grito é um grito da violência, da dor 
de ser mulher, de ser jovem e artista durante o regime militar, mas este grito de 
Angela/Helena, também é o grito da mulher discriminada, da mãe que não pode criar a 
própria filha, são gritos provenientes também das angústias pessoais da atriz. 
A visceralidade da encenação de Angela Carne e Osso se vale do improviso 
como estratégia de combustão. O corpo, educado pelas técnicas é capaz de transcender 
as convenções de interpretação cênica, criando um espaço/tempo próprio onde a mulher 
e sua subjetividade é mais forte. De forma totalmente autônoma e independente, 
Angela é protagonista de sua própria história. É ela quem está no comando e quem 
decide de que forma dispõe seu corpo no tempo/espaço. 
Angela Carne e Osso é extremamente abusada, é agressiva, grita com os 
homens, mas também os ama, nunca sendo apenas uma presença sedutora. Ela é aquela 
que não é submissa aos homens, que reage a violência com violência, que é dona do 
próprio corpo. Helena Ignez fez da sinceridade do “olhar” de Angela Carne e Osso, a 
síntese de seu dinamismo incomum. 
Helena Ignez, a atriz e a autora encontram-se polarizadas em extremos corporais 
no que diz respeito a postura da atriz frente à câmera. Se de um lado, temos a 
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imobilidade total ou parcial quando aparecem as figuras da pose e da sedução; do outro, 
temos a mobilidade excessiva e frenética do satélite e da histeria. Neste caso, o satélite é 
uma das funções desempenhadas pela personagem, que às vezes parece orbitar em torno 
dos demais personagens, onde a movimentação de Angela Carne e Osso em algumas 
cenas sugere um estado de confusão ao espectador. A aproximação aliada ao 
distanciamento brecthiano sugere uma atuação bastante explosiva. 
A verborragia da personagem é uma característica já presente em “O Bandido da 
Luz Vermelha”, esse excesso de texto, que é a marca geral dos atores nos filmes 
marginais de Sganzerla, se apoia em diálogos e situações que escapam à transmissão de 
um sentido narrativo através das palavras. Os personagens repetem assim, 
exaustivamente ao longo dos filmes, frases previamente escritas pelo diretor, mas que 
variam de entonação, ritmo e intensidade segundo a escolha de quem interpreta. Mais 
do que formar diálogos, essas frases que muitas vezes soam como slogan publicitário, 
servem mais para extravasar a tensão de um personagem do que estabelecer a 
comunicação entre ela e seu parceiro de cena. Os diálogos de Angela Carne e Osso às 
vezes parecem monólogos; o texto escrito, a entonação, o gestual, muitas vezes não 
indicam claramente com quem ela fala; existe um distanciamento proposital dos outro 
personagens. 
Através do método de improviso, pulsão, atuação e construção operam em 
conjunto ao mesmo tempo. Neste processo marcado pela ausência de fronteiras, o livre 
trânsito da atriz possibilita uma performance onde o “corpo” é o grande acontecimento; 
Helena Ignez dispôs de seu corpo como um corpo político a serviço da anarquia. Angela 
Carne e Osso promove um rompimento radical com a norma e o realismo no que tange 
o universo da encenação/atuação no cinema brasileiro. 
A questão da pose, do “aparecer” sobre o “parecer”, é um elemento presente na 
narrativa do filme, principalmente nos filmes da produtora Belair, onde ao invés de 
buscar a verossimilhança, os atores simplesmente aparecem diante das câmeras (o 
“aparecer”, o “mostrar- se”, o “estar lá”), acentuando o deboche típico do Cinema 
Marginal. 
A forma de realização do filme torna-se fundamental para que ocorram rupturas
no modo de representar. Rogério Sganzerla cria um espaço de maior liberdade para a 
atriz, que permite que o acontecimento/performance se modifique, se altere, se construa 
e desconstrua no exato momento em que é registrado. É dentro deste espaço, que ocorre 
sempre no presente, que surge a possibilidade de alteração nos modos de representação, 
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onde se torna possível romper a reprodução de modelos hegemônicos a partir da 
interferência da atriz/autora.
Ao romper com a repetibilidade da forma de representar, 
nos deparamos com a força do “ato performativo”. Para compreender esta força é 
necessário adentrarmo-nos ao campo da linguagem. Segundo J.A. Austin (1998), a 
linguagem não se limita a proposições que simplesmente descrevem uma ação, uma 
situação ou um estado de coisas. Algumas proposições não são apenas descritivas mas 
fazem com que alguma coisa aconteça. Ao serem pronunciadas, essas proposições 
fazem com que algo se efetive, se realize. A estas proposições, Austin chama de 
“performativas”. São exemplos: “Declaro estado de guerra. Eu vos declaro marido e 
mulher”. (AUSTIN apud SILVA, 2007, p.93). 
Segundo Austin (1998), no universo da comunicação, muitas sentenças 
descritivas acabam funcionando como performativas, como: Maria tem dificuldade de 
raciocinar. Embora descritiva, em um sentido mais amplo, pode funcionar como 
performativa na medida em que sua repetição produz o fato, pois a receptora da 
informação internaliza a sentença, que pela repetição a leva a acreditar que realmente 
tem dificuldade de raciocinar. 
Em termos de produção de Identidade, é sobretudo da possibilidade de repetição 
que vem a força que um ato linguístico desse tipo tem no processo de produção de 
identidade. (AUSTIN apud SILVA, 2007, p.94) 
Analisando o conceito de “performatividade/performance”, numa perspectiva 
mais ampla, para a filósofa e estudiosa de gênero Judith Butler (1999), a mesma 
repetição que garante eficácia dos atos performativos e que reforçam as identidades 
existentes pode significar também a possibilidade da interrupção das identidades 
hegemônicas. A repetição pode ser interrompida, pode ser questionada e contestada. É 
nessa interrupção que residem as possibilidades de instauração de identidades que não 
representem simplesmente a reprodução das relações de poder existentes. (BUTLER 
apud SILVA, 2007, p.95) 
É a partir da performance que a atriz Helena Ignez rompe com a repetição de um 
padrão. A liberdade no processo de construção das personagens possibilitou a atriz 
explorar os extremos das potencialidades humanas, através do corpo e da voz, criou 
nuances variadas, imbuídas de força e particularidades. A sua forma de atuar choca, é a 
anti-heroína do cinema brasileiro. 
O papel da atriz/ autora como ativista feminista que criou uma nova concepção 
de atuação através da estética marginal, trouxe em cena uma mulher que quebra tabus 
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falando abertamente sobre o aborto, sexualidade, que é também protagonista da 
revolução, que questiona os valores do seu tempo, que propõe uma reflexão mais 
profunda nas questões relacionadas ao gênero feminino. Num período de ditadura e 
censura, Helena Ignez transgrediu as normas, incomodou os de direita e os da esquerda 
também. Ela era o retrato do avacalho feminino, uma clara insatisfação ao regime 
da ditadura civil e militar e suas consequências. Ela criou um novo estilo de atuar: 
debochado, extravagante, sedutor e original. A partir daí, Helena atuou em diversos 
filmes de Rogério Sganzerla. 
Teóricas feministas do cinema como Laura Mulvey ou Teresa de Lauretis 
acreditavam que o cinema independente poderia ser o espaço de subversão do papel 
feminino comumente representado. 
No ensaio “Visual pleasure and narrative cinema”, de 1975, Laura Mulvey 
convoca Lacan e Althusser para o projeto feminista ao afirmar o caráter genérico da 
narrativa e do ponto de vista do cinema hollywoodiano clássico. Para Mulvey. O cinema 
coreografa três tipos de “olhar”: o da câmera, o das personagens olhando-se umas às 
outras e do espectador induzindo a identificar-se voyeristicamente com um olhar 
masculino sobre a mulher. O homem é o condutor do veículo narrativo e a mulher o seu 
passageiro. O prazer visual no cinema reproduzia assim uma estrutura em que o 
masculino olhava e o feminino era para ser olhado, uma estrutura binária que espelhava 
as relações assimétricas de poder operantes no mundo social real. `As espectadoras 
femininas não era reservada outra escolha senão a de identificar-se com o protagonista 
masculino ativo, ou com a antagonista feminina passiva e vitimizada. 
 
No caso do filme A Mulher de Todos, temos, além dos olhares masculinos, dois 
olhares femininos: o da atriz para o marido/diretor/ público, e a possibilidade do olhar 
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do público feminino que pode se identificar de forma positiva com a protagonista. 
Existe aí a novidade do olhar feminino, defendido por Ann Kaplan, como sendo uma 
das maneiras de se alterar as narrativas fílmicas, e que pode possibilitar brechas contra o 
patriarcado e a construção de novos olhares. Ainda que o olhar feminino desta cena não 
altere de forma significativa a narrativa como um todo, existe aí uma abertura de espaço 
para que novos olhares se configurem, assim como a possibilidade de uma identificação 
feminina com a protagonista. 
A Mulher de Todos é um filme que merece destaque por sua originalidade e 
pelas inovações da interpretação proposta por Helena Ignez, inclusive no 
comportamento da personagem. O filme causou um grande impacto no meio intelectual 
e levou diversos cineastas a refletirem. Para Jean Claude Bernardet[1]:. 
A mulher de todos é um ato de liberdade quase total, como se o 
Sganzerla tivesse se libertado dessa questão de desconstrução, de 
paródia e se dirigir ai pra uma forma muito surpreendente de narrativa, 
de personagens, de interpretação, de maneira de dizer o texto, de 
montagem, de absolutamente tudo. No Bandido, e mais ainda na 
Mulher de Todos, Helena Ignez rompe absolutamente com essa forma 
de representação realista. Eu acho que ela foi realmente muito 
audaciosa. Uma das inovações da Mulher de Todos é a forma de 
trabalho da Helena Ignez como atriz que se apoia muito mais na 
pessoa dela, na competência dela, no potencial performático dela do 
que na composição da personagem. 
 
Como Bernadet aponta acima, um fator determinante que possibilitou rupturas 
na forma de representar é a própria capacidade de Helena Ignez e o seu potencial de 
encenação. Sua bagagem pessoal aliada a seu potencial criativo, sobrepõe-se a rigidez 
de uma composição prévia da personagem. 
Sob o ponto de vista do feminismo, Bernadet acrescenta que naquela época 
mulheres com caminhos muito diversos passam a fazer afirmações surpreendentes. Para 
ele, não se pode pensar em Helena Ignez sem pensar em Leila Diniz grávida, pois 
ambas são contemporâneas e não são fatos isolados. Surge a pílula, despontam colunas 
semanais com artigos sobre a libertação da mulher, comportamento e etc. Para 
Bernardet, dentro deste contexto de libertação e ruptura, Helena Ignez é a atriz de sua 
época que foi mais longe, pois ao reunir esses elementos de empoderamento feminino 
ao nível da interpretação diante da câmera, tornou possível o surgimento de Angela 
Carne e Osso, por exemplo. Jean Claude Bernardet considera “A Mulher de Todos” um 
filme inovador e a performance da atriz Helena Ignez única no cinema brasileiro. 
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A Mulher de Todos trouxe avanços para o cinema brasileiro em diversos 
aspectos.
Existe um consenso entre autores/críticos do cinema brasileiro quanto à 
importância fundamental do sujeito Helena Ignez na atuação e co-criação da 
personagem, a performance de Helena Ignez é o elemento de força da personagem. 
 
AUTORA 
* Tatiana Trad é Mestra em Cultura e Sociedade pela UFBA e integrante do grupo de 
pesquisa em Gênero, Cultura e Mídia “MIRADAS” / UFBA, coord. Pela Profa. Dra. 
Linda Rubim. 
 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 
KAPLAN, E. Ann. A mulher e o cinema: os dois lados da câmera. Rio de 
Janeiro: Artemídia; Rocco, 1995. 
LAURETIS, Tereza de. Alice doesn’t: feminism, semiotics, cinema: an introduction. 
London: themainillanpress, 1978 
LAURETIS, Tereza de. Technologies of Gender: Essays on Theory, Film, and Fiction. 
Bloomington: Indiana University Press, 1987 and London: Macmillan, 1989. 
MULVEY, Laura. Visual Pleasure and Narrative Cinema. Original Published – 
Screen, v.16, n. 3, p. 6-27, Autumn, 1975 
NETTO, Tatiana Trad. Helena Ignez: descolonizando olhares “estratégias de invenção 
na representação da mulher no cinema marginal brasileiro". Dissertação, UFBA, 
Salvador, 2016. 
SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos 
culturais. Tomaz Tadeu da Silva (org.). Stuart Hall, Kathryn Woodward. 7. ed.-
Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. 
 
NOTAS 
[1] BERNADET, Jean Claude. A Mulher de Todos-Ocupação Rogério Sganzerla. Itaú Cultural,2010. 
Disponível em Acesso em 17/04/2015 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
https://www.youtube.com/watch?v=Fd9u_bJ9XHY
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Artigos e ensaios 
 
PRÁTICAS DISCURSIVAS ECONÔMICAS E 
SOCIOCULTURAIS SÃO COMPATÍVEIS? 
Rogério Faé* 
 
 
RESUMO: Os discursos governamentais frequentemente justificam suas ações com 
base na capacidade financeira para execução. Ao longo das últimas décadas nos 
acostumamos a uma prática discursiva que atribui à eficiência e à competitividade no 
mercado o suporte econômico que, por consequência, cria as condições para que 
possamos melhorar a qualidade de vida, seja individual, seja da população em geral. 
Entretanto, ao atrevermo-nos a um olhar diferente encontramos práticas discursivas 
desvalorizadas ou negadas em uma batalha de saber-poder que busca manter a 
legitimidade das ideias que predominam. Razão pela qual, este texto busca fazer um 
resgate de algumas das condições que possibilitaram o predomínio, na atualidade da 
sociedade brasileira, da lógica econômica sobre os aspectos socioculturais. 
Palavras-Chave: Práticas Discursivas, Foucault, Crescimento Econômico. 
 
 
INTRODUÇÃO 
Vivemos em um contexto no qual está dado por certo que os aspectos 
econômicos são determinantes do contexto sociopolítico em que vivemos. Os discursos 
https://2.bp.blogspot.com/-4up9TmQrufw/WS6-piC9N1I/AAAAAAAACgg/bqRGYJlIAWsoKAGezB9ABYffpoUiPpr2wCLcB/s1600/16.jpg
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governamentais frequentemente justificam suas ações com base na capacidade 
financeira para execução. Ao longo das últimas décadas nos acostumamos a uma prática 
discursiva que atribui à eficiência e à competitividade no mercado o suporte econômico 
que, por consequência, cria as condições para que possamos melhorar a qualidade de 
vida, seja individual, seja da população em geral. 
Entretanto, ao atrevermo-nos a um olhar diferente encontramos práticas 
discursivas desvalorizadas ou negadas em uma batalha de saber-poder que busca manter 
a legitimidade das ideias que predominam. Razão pela qual, este texto busca fazer um 
resgate de algumas das condições que possibilitaram o predomínio, na atualidade da 
sociedade brasileira, da lógica econômica sobre os aspectos socioculturais em termos 
governamentais. 
Em um primeiro momento, será feita uma revisão de alguns elementos da 
teoria foucaultina que darão suporte à análise. Na parte seguinte, as ideias de Celso 
Furtado serão trabalhadas entendendo-as como reflexivas em relação ao contexto em 
que ele se encontra. O autor, em constante autocrítica, faz emergir práticas discursivas 
para no momento seguinte desconstruí-las e reconstruí-las parcialmente. Processo que 
dá margem a vários entendimentos e que cria as condições para a posterior produção 
discursiva de autores tanto de direita como de esquerda. A seguir será feita uma rápida 
aproximação das formações discursivas abordadas em relação ao momento atual e, por 
fim as considerações finais. 
 
FOUCAULT E AS PRÁTICAS DISCURSIVAS 
Foucault (2000, p. 55) argumentou que o discurso é um conjunto de enunciados 
que não somente designa as coisas, mas produzem-nas, e deve ser visto como prática(s) 
que formam “sistematicamente os objetos de que falam. Certamente os discursos são 
feitos de signos; mas o que fazem é mais que utilizar esses signos para designar coisas. 
É esse mais que os torna irredutíveis à língua e ao ato da fala. É esse “mais” que é 
preciso fazer aparecer e que é preciso descrever”. 
O poder, por sua vez, se constitui através de práticas discursivas baseadas em 
saberes próprios, nos quais ganha importância o conceito de corpo político, que é 
entendido como um conjunto dos elementos “(...) materiais e das técnicas que servem de 
armas, de reforço, de vias de comunicação e de pontos de apoio para as relações de 
poder e saber que investem os corpos humanos e os submetem fazendo deles objetos de 
saber” (FOUCAULT, 1987, p. 30). 
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Entretanto, mesmo considerando imprescindível considerar a produção anterior 
à terceira fase de Foucault, é necessário frisar que a ênfase da última etapa no processo 
de subjetivação, para Deleuze (1998, p. 129-130) foi resultado de um “(...) impasse em 
que o próprio poder nos coloca, na nossa vida como no nosso pensamento (...). E só 
haveria saída se o de-fora fosse apanhado num movimento que o desvia da morte. Seria 
como que um novo eixo, simultaneamente distinto do do saber e do do poder. 
Eixo que não invalida os outros, mas os impede de ficarem fechados, 
entendendo a própria “(...) motivação psicológica não como a fonte, mas como o 
resultado de estratégias sem estrategistas (...)” (RABINOW; DREYFUS, 1995, p.121) 
que leva a disposições, manobras, táticas, técnicas e funcionamentos, que emergem no 
interstício de uma rede de relações sempre tensa e em atividade. 
Foucault (1994, p. 10) define este terceiro eixo como “(...) o estudo dos modos 
pelos quais os indivíduos são levados a se reconhecerem como sujeitos (...)”. Ou seja, a 
compreensão sobre as maneiras pelas quais os indivíduos podem construir a experiência 
deles mesmos enquanto sujeitos, constituindo-se e reconhecendo-se como tal, ou ainda, 
através de quais jogos de verdades. 
Ganharão importância, neste contexto, as razões pelas quais os cuidados éticos 
– localizados espacial e temporalmente – adquirem importância, questionando sobre o 
porquê de determinadas práticas discursivas e, principalmente, sobre as razões desta 
formatação das relações de força. Buscando, assim, as formas e condições do pensar, 
pelo homem sobre o que ele é, e sobre o mundo em que se insere. 
Valorizando, assim, o conceito de técnicas de si, que se caracterizam como 
conjuntos formados por práticas que definem a estética da existência, ou seja, práticas 
reflexivas e voluntárias através das quais “(...) os homens não somente se fixam regras 
de conduta, como também procuram se transformar, modificar-se em seu ser singular e 
fazer de sua vida uma obra que seja portadora de certos valores estéticos e respondam a 
certos critérios de estilo”. (Foucault, 1994, p.15) 
Foucault (1994, p. 15-16) ao buscar as razões de determinadas 
problematizações éticas, parte das práticas de si e, sem descaracterizar os eixos 
anteriores, os atualiza e redimensiona: “a dimensão arqueológica da análise permite 
analisar as próprias formas
da problematização; a dimensão genealógica, sua formação a 
partir das práticas e de suas modificações”. 
Na sequência do texto, serão utilizados alguns elementos da construção de 
Foucault no que tange à estética da existência. Para este estudo que busca olhar para o 
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passado vislumbrando as condições que possibilitaram o contexto presente, no que se 
refere à predominância do econômico sobre as esferas socioculturais no Brasil, serão 
analisados aspectos da prática discursiva de Celso Furtado ao estudar em termos 
históricos a formação socioeconômica brasileira. A escolha por centrar o estudo em 
Celso Furtado se justifica por seu reconhecimento tanto por autores de esquerda, quanto 
por autores de direita, que utilizam parte de sua construção discursiva de forma muitas 
vezes descontextualizada (VIEIRA, 2007). Entretanto, algumas premissas permanecem 
na base de quase todos os autores, mesmo que negadas por técnicos que predominam no 
contexto político gerencial da atualidade. 
 
O PROCESSO DE FORMAÇÃO SOCIOECONÔMICO BRASILEIRO 
Antes de iniciar o texto é importante salientar que ao buscar compreender os 
principais aspectos da formação econômica brasileira é necessário relembrar que a 
construção de qualquer autor responde a fatores perceptuais localizados em termos 
geográficos e temporais que, ao reinterpretar o passado a partir de novas variáveis, não 
se está apenas abrindo alternativas para o futuro, mas empreendendo a reconstrução da 
história pretérita (FOUCAULT, 2000). Nesse sentido, a produção de um mesmo autor 
pode, também, expressar diferentes argumentos ao longo do tempo. 
As práticas discursivas de Celso Furtado ganharam visibilidade na primeira 
metade da década de 1950, época em que grupos modernizadores questionavam as 
práticas oligárquicas ligadas à agricultura exportadora. Sua obra foi fortemente 
influenciada pela construção político-social que emergiu na década de 1930, na qual 
[...] o historicismo alemão, o culturalismo de Franz Boas, a sociologia 
de Max Weber e o marxismo, passaram a informar, em novas bases, o 
pensamento social do País. Foi, aliás, esse sopro de radicalismo 
intelectual o responsável por algumas obras essenciais que [...] 
descobriram o Brasil para os brasileiros, nos idos de 1930 – Casa 
Grande e Senzala, de Gilberto Freire; Formação do Brasil 
Contemporâneo, de Caio Prado Junior; e Raízes do Brasil, de Sérgio 
Buarque de Holanda. (VIEIRA, 2007, p. 16) 
 
Em resultado dessa efervescência intelectual emergiram as bases para práticas 
discursivas que buscavam valorizar a identidade brasileira. Esses projetos almejavam 
fazer frente à homogeneização sociocultural de matriz eurocêntrica (VIEIRA, 2007). 
Naquele contexto, Furtado (1961, p. 241-242) argumentou que a ideia de 
desenvolvimento, unicamente identificada à lógica de crescimento econômico, 
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desconsiderava a dimensão histórico-social que a condicionava. Assim como, criticou a 
simples reprodução de padrões exógenos no contexto nacional. 
O autor defendeu que a Revolução Industrial provocou transformações nos 
padrões produtivos em escala mundial e, principalmente, que o discurso de 
eficientização da produção somente ganhou dinamismo através da elaboração de 
técnicas comerciais que articulavam oferta e procura, assim como da construção de 
novas classes sociais ligadas à produção industrial, distribuição e comercialização das 
manufaturas. 
Se, nos países em que o processo de industrialização primeiro se fez presente, 
houve íntima interdependência entre os fatores tecnológicos e sociais na construção da 
realidade nacional, o mesmo não se podia afirmar em relação aos países da América 
Latina. Nesses últimos, o processo de industrialização, ao ser incentivado, teve como 
principal fator motivacional o aperfeiçoamento da produção ligada à exportação, ou 
seja, caracterizou-se como complementar ao processo experimentado nos países 
centrais. Essa lógica, em geral, desconsiderou as necessidades das nações que 
compunham as linhas comerciais em posição de importadoras de manufaturas e 
exportadoras de bens primários. 
O resultado, para as economias Latino-Americanas, foi “[...] quase sempre a 
criação de estruturas híbridas, uma parte das quais tendia a comportar-se como um 
sistema capitalista, a outra, a manter-se dentro da estrutura preexistente. Esse tipo de 
economia dualista constitui, especificamente, o fenômeno do subdesenvolvimento 
contemporâneo” (FURTADO, 1961, p. 253). Nesse sentido, o subdesenvolvimento 
experimentado pelos países da América Latina teria provocado a reprodução, em âmbito 
regional interno, das desigualdades socioeconômicas entre países. Uma vez iniciado 
esse processo, “[...] sua reversão espontânea é praticamente impossível” (FURTADO, 
1959, p. 331). 
É necessário frisar, ainda, que contrariando as práticas discursivas que 
predominavam à época e que defendiam que o desenvolvimento socioeconômico viria 
da homogeneização produtiva ditada pelos países centrais, para Furtado (1961, p. 253), 
o “[...] subdesenvolvimento é [...] um processo histórico autônomo, e não uma etapa 
pela qual tenham, necessariamente, passado as economias que já alcançaram grau 
superior de desenvolvimento”. 
Entretanto, a resposta de Furtado (1954), em âmbito econômico, atribuía à 
industrialização substitutiva uma posição de recurso gerador de nova dinâmica que 
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levaria as nações Latino-Americanas, mais especificamente o Brasil, a uma situação de 
maior autonomia em relação aos países centrais. Entretanto, o que se percebeu a 
posteriori é que tal lógica acabou por reproduzir as práticas discursivas pré-existentes 
nos países centrais. 
A industrialização por substituição de importações tinha por pressuposto 
ampliação do mercado interno, via crescimento da produção e renda per capita, que 
possibilitariam a participação nacional no sistema econômico internacional em 
condições menos desiguais. Já o planejamento do processo de desenvolvimento, ao ser 
atribuído ao Estado, teria por função reduzir a espontaneidade pressuposta à 
industrialização periférica, como fator alheio a qualquer “[...] intenção consciente de 
romper com os esquemas tradicionais de divisão internacional do trabalho” 
(FURTADO, 1962, p. 38-39). 
Vieira (2007, p. 385) argumenta que, para Furtado, “(...) somente a ação 
planificadora e compensatória do Estado, guiada pela intelligentsia munida de uma 
racionalidade superior, seria capaz de assegurar o interesse coletivo e, nessa medida, a 
dimensão democrática que na sua teoria passa pelo desenvolvimento econômico e pela 
nação soberana, finalmente construída”. 
Entretanto, passada a Era Vargas (1930-1954) na qual o processo de 
industrialização foi incentivado, ao contrário do que era esperado, o custo das 
importações demandadas pelo processo de industrialização substitutiva foi 
gradativamente evoluindo e exigindo participação crescente do capital estrangeiro, 
conforme foram se ampliando as necessidades. 
O próprio Furtado (2000a) fez a autocritica e identificou três estágios 
sequenciais que acabavam por manter a dependência com os países centrais: a) 
substituição de bens de consumo leves; b) substituição de bens de consumo duráveis; e 
c) substituição de bens de produção. A passagem para níveis mais elevados de produção 
interna, se, por um lado, liberava a pauta importadora, por outro, criava novas 
necessidades de importação de insumos para alimentar a produção interna, fato que 
tornava o equilíbrio entre as divisas oriundas da exportação e os custos advindos da 
importação (de máquinas, bens intermediários e matérias-primas industrializadas) 
extremamente complexo, principalmente, ao considerar a relação crescentemente 
deteriorada
entre produção primária e industrial (FURTADO, 2000; MARTINS, 2006). 
Naquele momento, a percepção que passou a predominar era que a acumulação 
seria indissociável da expansão capitalista em padrões internacionais, ou seja, seria 
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parte de um processo de enriquecimento dos países centrais e da pequena elite periférica 
articulada a eles. Em resposta a essa percepção ganharam força, ao final da década de 
1950 e início da década de 1960, processos de resistência articulados por movimentos 
sociais e sindicatos de trabalhadores que lutavam por melhores condições de vida e 
renda à população em geral (BIELSCHOWSKY, 2000). 
Ao constatar que a classe dirigente brasileira era passiva e intelectualmente 
alinhada com práticas discursas externas, Furtado (2007a, p. 421) passou a defender a 
tese de que havia falta de vontade política para mudar a realidade experimentada. Razão 
pela qual passou a “[...] ver o mundo como um desafio. Fazer política é enfrentar 
desafios. Não cabe esperar por soluções espontâneas. Não pode haver infraestrutura sem 
política, sem planejamento”. 
Entretanto, a 
[...] derrota e o banimento de Furtado, em 1964, no momento em que 
o capital monopolista internacional elegia o país como mais um de 
seus espaços de acumulação e reprodução ampliada, exigindo para 
isso o aprofundamento dos aspectos antidemocráticos do Estado 
Brasileiro, era a evidência de que a burguesia industrial Brasileira, 
sem nenhuma ‘ilusão heróica’, tinha feito sua escolha: ser o sócio 
menor do grande capital externo. (VIEIRA, 2007, p. 390) 
 
Considerando a prática discursiva que predominou na década de 1960, 
principalmente a partir de 1964, e que salientava os limites à industrialização sob 
premissas definidas em âmbito interno, Furtado (1974, p. 10) afirmou que sua formação 
discursiva anterior à década de 1970 foi produzida em um contexto no qual se “[...] se 
manifestavam tendências policêntricas na economia mundial [...]”. Já a produção 
discursiva que começou a tomar forma teve por base a percepção da “[...] afirmação 
definitiva das grandes empresas no quadro de oligopólios internacionais, a rápida 
industrialização de segmentos da periferia do sistema capitalista no novo sistema de 
divisão internacional do trabalho”. Para o autor, a grande empresa passou a ocupar 
posição de elemento estruturador do sistema capitalista. 
Razão pela qual Furtado (1974) ratificou seu discurso problematizador do 
conceito de desenvolvimento que, ao ser predominantemente identificado com 
formações discursivas em defesa da ampliação dos mercados, buscava a disseminação 
dos padrões de consumo experimentados por uma minoria privilegiada da população 
mundial. Esse olhar teria direcionado muitos dos esforços ligados ao desenvolvimento 
para práticas que viam na tecnologia o principal fator de dinamismo, independente do 
contexto em que se inserisse. 
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148 
 
Em decorrência, 
Pouca ou nenhuma atenção foi dada às consequências, no plano 
cultural, de um crescimento exponencial do stock de capital. As 
grandes metrópoles modernas com seu ar irrespirável, crescente 
criminalidade, deterioração dos serviços públicos, fuga da juventude 
na anticultura, surgiram como um pesadelo no sonho de progresso 
linear em que se embalavam os teóricos do crescimento. Menos 
atenção ainda se havia dado ao impacto no meio físico de um sistema 
de decisões cujos objetivos últimos são satisfazer interesses privados. 
(FURTADO, 1974, p. 14) 
 
Em contrapartida à ênfase tecnológica estimulada pelos centros difusores do 
discurso capitalista, o autor destacou a crescente dependência dos países centrais em 
relação à matéria-prima – muitas vezes advinda de recursos não-renováveis – produzida 
por outros países, como fator-chave na definição política de abertura econômica, 
principalmente, via disseminação de grandes empresas com tecnologias capazes de 
explorar os recursos naturais, em escala planetária. 
Nesse aspecto, Furtado (1974, p. 16) destacou: “[...] como a política de defesa 
dos recursos não-reprodutíveis cabe aos governos e não às empresas que os exploram, e 
como as informações e capacidade para apreciá-las estão principalmente com as 
empresas, o problema tende a ser perdido de vista”. 
Em relação à desigualdade que daí advém, o autor salientou dois fatores 
mutuamente influenciáveis: a aceleração da acumulação de capital nos sistemas de 
produção; e a intensificação do comércio internacional, sob condições de troca que 
ampliavam progressivamente a diferença entre o valor relativo dos produtos 
industrializados e dos produtos agrícolas ou matéria-prima. Assim, é a forma como esse 
excedente era apropriado e utilizado que era ratificada como problema para o estudo da 
formação e manutenção do sistema capitalista industrial. Em outras palavras, a ênfase 
de Furtado (1974) se centrava no entendimento da dinâmica que sustentava o sistema de 
divisão internacional do trabalho. 
Nesse sentido, sua análise novamente recorreu aos fatos históricos que 
condicionaram a formação do sistema como o conhecemos, ou seja, o projeto inicial, 
inglês, que buscava concentração geográfica, logo sofreu resistência e se pulverizou na 
forma de sistemas econômicos de base nacional orquestrados pelos países que, no 
século passado, assumiram a liderança do processo de industrialização e, por 
consequência, centralizaram as decisões econômicas em escala mundial. Posições essas 
que não deixaram de se aprofundar, pois 
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Como a industrialização, em cada época, se molda em função do grau 
de acumulação alcançado pelos países que lideram o processo, o 
esforço relativo requerido para dar os primeiros passos tende a crescer 
com o tempo. Mais, ainda: uma vez que o atraso relativo alcança certo 
ponto, o processo de industrialização sofre importantes modificações 
qualificativas. Já não se orienta ele para formar um sistema econômico 
nacional e sim para completar o sistema econômico internacional. 
(FURTADO, 1974, p. 23) 
 
Neste contexto, as indústrias nascentes se moldavam às necessidades do 
mercado de forma articulada com o sistema macroeconômico e remetiam às grandes 
empresas à posição de centro de decisão, com capacidade de influir na dinâmica interna 
dos diversos países, em âmbitos que extrapolavam a esfera econômica. Com base nessa 
visão problematizadora, à revelia das consequências do discurso econômico nas esferas 
socioculturais e ambientais, o traço mais característico do capitalismo seria a 
inexistência de um disciplinador geral do conjunto das atividades econômicas. 
A autonomia da macroeconomia, à medida que fornecia estabilidade às 
relações comerciais transnacionais, em contrapartida, liberava o Estado para direcionar 
seus esforços para a esfera social. Essa última, entretanto, necessitava estar articulada 
com a estratégia econômica, ou melhor, deveria oferecer atratividade ao investimento 
empresarial (FURTADO, 1974). 
[...] o Estado tem [...] grandes responsabilidades na construção e 
operação de serviços básicos, na garantia de uma ordem jurídica, na 
imposição de disciplina às massas trabalhadoras. O crescimento do 
aparelho estatal é inevitável, e a necessidade de aperfeiçoamento de 
seus quadros superiores passa a ser uma exigência das grandes 
empresas que investem no país. (FURTADO, 1974, p. 60) 
 
Com base na análise do último autor, as relações entre empresas e Estados 
nacionais eram condicionadas pelas grandes empresas, com base em quatro fatores: (i) a 
inovação, principal instrumento de expansão internacional através da introdução de 
novos processos e produtos, era controlada pelas grandes empresas; (ii) a maior parte 
das transações internacionais estava sob responsabilidade das grandes empresas; (iii) as 
grandes
empresas operavam de forma a escapar da ação isolada de qualquer governo; e 
(iv) as empresas possuíam grande liquidez que fugia ao controle dos bancos centrais e 
tinham fácil acesso ao mercado financeiro internacional (FURTADO, 1974). 
Para o autor, tais características das grandes empresas não caracterizavam o 
declínio da atividade política, mas a “[...] unidade de comando político, apoiado em um 
sistema unificado de segurança” (FURTADO, 1974, p. 34), que daria suporte à lógica 
macroeconômica. 
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Criou-se, assim, uma superestrutura política a nível muito alto, com a 
missão principal de desobstruir o terreno ali onde os resíduos dos 
antigos Estados nacionais persistiam em criar barreiras entre os países. 
A reconstrução estrutural se operou a partir da economia 
internacional. No plano interno os Estados nacionais ampliaram a sua 
atuação para reconstruir as infraestruturas, modernizar as instituições, 
intensificar a capitalização, ampliar a força de trabalho, etc. Tudo isso 
contribuiu, evidentemente, para reforçar a posição das grandes 
empresas dentro de cada país. Mas foi a ação no plano internacional, 
promovida pela superestrutura política, que abriu a porta às 
transformações de fundo, trazendo as grandes empresas para uma 
posição de poder vis-à-vis dos Estados nacionais. (FURTADO, 1974, 
p. 36) 
 
Nessa superestrutura que possibilitava a autonomização da esfera econômica, 
sob controle das grandes empresas, um Estado nacional isolado pouco poderia fazer, até 
porque a pressão por inserção no mercado mundial já não vinha apenas dos núcleos de 
desenvolvimento, mas também das empresas internas a seu território. Nesse sentido, 
“[...] como tanto a estabilidade e a expansão dessas economias dependem 
fundamentalmente das transações internacionais, e estas estão sob o controle das 
grandes empresas, as relações dos Estados nacionais com estas últimas tendem a ser 
relações de poder” (FURTADO, 1974, p. 33). As principais repercussões dessa nova 
dinâmica capitalista baseada em relações de saber-poder, podiam, para Furtado (1974, 
p. p. 42-43) ser traduzidas por 
Em primeiro lugar, [...] o processo de unificação abriu o caminho a 
uma considerável intensificação do crescimento no próprio centro [...]. 
Em segundo lugar, ampliou-se consideravelmente o fosso que já 
separava o centro da periferia do sistema, o que em grande parte é 
simples consequência da intensificação do crescimento no centro. Em 
terceiro lugar, as relações comerciais entre países centrais e 
periféricos, mais ainda do que entre países centrais, transformaram-se 
progressivamente em operações internas das grandes empresas. 
 
As economias periféricas passaram, então, a enfrentar um processo de 
agravamento das disparidades internas de forma proporcional à sua industrialização, 
amplamente estimulada pelo capital advindo dos oligopólios internacionais que, ao 
financiar a produção, buscavam melhores taxas de retorno aos seus investimentos. Nesta 
dinâmica foi ratificada a demanda aos países periféricos por mimetismo cultural e 
concentração de renda, de forma a possibilitar a uma minoria privilegiada padrões de 
consumo similares aos dos países centrais, que se diferenciam daqueles experimentados 
pela massa populacional. 
A integração do centro permitiu intensificar sua taxa de crescimento 
econômico, o que responde, em grande parte, pela ampliação do fosso 
Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 
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que o separa da periferia. Por outro lado, a intensidade do crescimento 
no centro condiciona a orientação da industrialização na periferia, pois 
as minorias privilegiadas desta última procuram reproduzir o estilo de 
vida do centro. Em outras palavras: quanto mais intenso for o fluxo de 
novos produtos no centro (esse fluxo é função crescente da renda 
média), mais rápida será a concentração da renda na periferia. 
(FURTADO, 1974, p. 45) 
 
Assim, a crescente influência das grandes empresas se traduzia por uma 
tendência à homogeneização e disseminação dos padrões de produção e consumo 
vigentes no centro, que se traduziam na periferia por um aumento da distância entre as 
condições de vida de uma minoria privilegiada e a massa populacional que vive no 
limite da subsistência. 
Nesse sentido, as práticas discursivas em defesa do desenvolvimento criariam, 
nos países periféricos, fossos que demonstrariam a insustentabilidade de sua lógica, 
tanto em termos socioculturais, quanto ambientais, pelo esgotamento dos recursos não-
renováveis que fornecem o suporte ao desenvolvimento. Razão pela qual, o autor atribui 
ao desenvolvimento, sob as premissas do progresso, um status de mito: 
A conclusão geral que surge dessas considerações é que a hipótese de 
generalização, no conjunto do sistema capitalista, das formas de 
consumo que prevalecem atualmente nos países cêntricos, não tem 
cabimento dentro das possibilidades evolutivas desse sistema. E é essa 
a razão fundamental pela qual uma ruptura cataclísmica, num 
horizonte previsível, carece de fundamento. O interesse principal do 
modelo que leva a essa ruptura cataclísmica está em que ele 
proporciona uma demonstração cabal de que o estilo de vida criado 
pelo capitalismo industrial sempre será o privilégio de uma minoria. 
(FURTADO, 1974, p. 75) 
 
A prática discursiva de Furtado (1974), ao defender a tese do mito do 
desenvolvimento, partiu da premissa de que as estratégias desenvolvimentistas 
originadas nos países centrais e que têm por base a ampliação dos mercados de produtos 
e de capitais seriam insustentáveis, predatórias e desiguais. A disponibilização de 
capitais pelos oligopólios empresariais teria por principal função o financiamento da 
produção e consumo de forma articulada com o sistema econômico mundial e, 
principalmente, a busca das melhores taxas de lucro. 
O autor assumiu, assim, uma posição de denúncia em relação às estratégias 
discursivas em prol do sistema produtivo e financeiro impostas pelos países 
desenvolvidos, enquanto produtores de situações de desigualdade entre nações, no 
interior das nações e de insustentabilidade socioambiental. As grandes empresas foram 
posicionadas como estruturantes do sistema macro, a partir de estratégias discursivas de 
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saber-poder, que encontram seu suporte em práticas ligadas ao sistema financeiro, em 
escala mundial. 
Cabe destacar que, em avaliação retrospectiva sobre a produção ligada ao mito 
do desenvolvimento, Furtado (1999, p. 98-99) argumentou que 
Quando escrevi O mito do desenvolvimento econômico, foi um pouco 
como provocação. Eu vivia no estrangeiro, estudava o Brasil de longe, 
e quis mostrar aos brasileiros que, se não encontrassem caminhos 
próprios, se confiassem completamente nas forças do mercado, nas 
forças internacionais que atuavam aqui, não teriam saída. Abordei o 
tema de tal modo que muita gente me disse que eu andava pessimista 
com respeito ao Brasil. (...) O que eu insinuava é que a classe 
dirigente brasileira não tem capacidade para enfrentar seus grandes 
problemas, assim como não teve capacidade para formular uma 
política de industrialização nos anos 30; esta veio na contramão, mas 
veio. Só tardiamente o país descobriu sua vocação para industrializar-
se. 
 
Em busca de alternativas à situação percebida, Furtado (1998, p. 63) passou a 
defender que o subdesenvolvimento não seria resolvido pela lógica de mercado, ao 
contrário, somente haveria superação desta condição “através de um projeto político 
voltado para a mobilização de recursos sociais, que permitisse empreender um trabalho 
de reconstrução de certas estruturas”. 
 
O NOVO E A REPETIÇÃO 
Empreender uma analise das práticas discursivas predominantes em termos de 
defesa do predomínio econômico na atualidade, em escala nacional, levaria a um estudo 
que considerasse,
por um lado, uma leitura do processo de enfraquecimento econômico 
provocado externamente pela queda do valor das commodities no mercado 
internacional; por outro, do processo de crise e oportunismo político em parte 
provocado pelo desequilíbrio da balança comercial brasileira. O que infelizmente, por 
questões de extensão do texto, foge ao alcance do trabalho. 
Entretanto, é necessário salientar que Celso Furtado foi reconhecido e serviu de 
inspiração aos últimos governos em escala nacional. Bresser-Pereira (2006) reconheceu 
a influência da prática discursiva de Furtado em suas ideias. Cabe destacar que Bresser-
Pereira, mesmo tendo sido Ministro de Estado no governo FHC, por um lado, 
argumentou que divergia das ideias do ex-presidente no que se refere à importância do 
planejamento governamental; por outro, como um dos principais idealizadores da 
formação discursiva ligada ao neo-desenvolvimentismo, influenciou fortemente as 
práticas discursivas nos governos Lula e Dilma (MERCADANTE, 2010). É interessante 
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lembrar que o livro escrito por Aloísio Mercadante (Ministro de Estado nos governos 
petistas) e publicado em 2010 tem em seu título (Brasil: uma construção retomada) uma 
referência a um dos últimos textos de Furtado (Brasil: a construção interrompida). 
Mercadante (2010), na introdução de seu livro, pressupõe uma retomada da prática 
discursiva de Celso Furtado. 
No que se refere às aproximações com as ideias de Furtado é necessário 
salientar que os governos petistas incentivaram práticas em defesa do mercado interno, 
como foi por exemplo a política de conteúdo local (PROMINP, 2017) que define um 
percentual mínimo de equipamentos e insumos de fabricação nacional com vistas ao 
incentivo da competitividade da indústria nacional ligada à extração e transporte de 
petróleo, assim como investiu em políticas sociais que melhoraram os indicadores de 
qualidade de vida (IPEA, 2011). Entretanto, a ênfase sempre se manteve no aspecto 
econômico como dispositivo através do qual seriam alcançadas melhores condições para 
os produtos brasileiros competirem no mercado internacional sob a justificativa de que a 
disponibilidade financeira determina a capacidade de investimento na esfera social 
(ROUSSEFF, 2011). Pouca atenção foi dada ou mesmo foram negadas as 
consequências deste processo de associação ao mercado internacional como 
argumentado por Furtado (1974). 
A negação e inversão – já que o crescimento econômico é posicionado como 
única alternativa para melhorar as condições de vida da população em médio e longo 
prazo – das consequências da estratégia econômica criou as condições para que em um 
momento de crise houvesse um aprofundamento da lógica economicista que propõe o 
ajuste estrutural. Estavam abertos os caminhos para o fortalecimento da formação 
discursiva direcionada ao crescimento econômico. 
O direcionamento dado pelo governo nacional, principalmente a partir do 
impeachment ocorrido em agosto de 2016, remete para o mercado as esperanças por 
melhores condições de vida à população em geral, primordialmente, por meio dos 
investimentos privados incentivados em algumas das políticas. Como, por exemplo, na 
definição de novas regras que reduzem o percentual de conteúdo local para a indústria 
de petróleo e gás, sob a justificativa de aumento da eficiência da indústria nacional 
(Agencia Brasil, 2017). 
Neste último caso, as alterações nas regras governamentais são justificadas por 
uma prática discursiva que coloca em primeiro plano o custo de produção dos 
equipamentos e insumos para a extração de produtos petrolíferos em comparação com o 
Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 
154 
 
mercado internacional e, consequentemente, o potencial de atratividade de capital 
externo. Entretanto, desconsidera o potencial desemprego a ser provocado pelo 
fechamento de indústrias nacionais que fornecem tais equipamentos e insumos; 
desvaloriza o investimento em pesquisa e tecnologia feito até o momento; assim como 
nega a impossibilidade das indústrias nacionais concorrerem em pé de igualdade com as 
estrangeiras em razão dos incentivos fiscais nos países de origem das empresas 
fornecedoras, que não encontrará mais similaridade no país. (Jornal Agora, 2017). 
Assim, de forma a repetir o passado e ocultar riscos como os previstos por 
Furtado (1974), no atual contexto que valoriza prioritariamente o crescimento 
econômico em escala global, práticas discursivas que se contrapõem a lógica 
predominante são desconsideradas, negadas ou sofrem inversão, ao demonstrar as 
consequências da dependência dos países periféricos em relação aos centros de 
desenvolvimento e à articulação político-social entre atores economicamente 
interessados e articulados em escalas global e nacional. 
A prática discursiva predominante dissemina uma lógica na qual resta aos 
sujeitos imersos no contexto fazer uma escolha entre abrir mão de direitos conquistados 
ao longo dos anos ou a não sobrevivência. 
 
CONSIDERAÇÕES FINAIS 
A prática discursiva predominantemente disseminada em escala nacional 
coloca ênfase no aspecto econômico como suporte às políticas de cunho social. 
Entretanto, o que realmente está em pauta é a adequação da estrutura socioeconômica 
nacional às demandas do mercado global. 
É curioso olhar para este contexto e perceber que o denominado “ajuste 
estrutural” ganha conotação de prática discursiva em defesa dos interesses da população 
como um todo. Entretanto, o que se constata com maior frequência é um 
entrecruzamento de formações discursivas em disputa. Conflito que não é claramente 
percebido por quem se utiliza exclusivamente dos meios de comunicação de massa mais 
acessíveis, nos quais predomina a participação de técnicos governamentais que são 
escolhidos para suas funções, em muitos casos, pela própria identificação com as 
propostas vigentes. 
Práticas discursivas que põem em questão a lógica predominante são 
frequentemente desqualificadas como provocadoras de estagnação e, consequentemente, 
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155 
 
identificadas com o aumento da impossibilidade de atendimento das necessidades da 
população. 
O que facilmente é esquecido, negado ou mesmo intencionalmente ocultado se 
refere às consequências desta lógica em termos de dependência e insustentabilidade do 
sistema produtivo em posição de fornecedor de commodities. As possibilidades de 
investimento em políticas sociais estão vinculadas ao resultado econômico e, por 
consequência, em momentos de crise o atendimento à população perde qualidade em 
prol dos investimentos necessários para que se revertam os resultados econômicos 
inadequados. A pergunta que fica é: nos momentos vindouros de prosperidade e 
melhoria econômica, haverá reversão na qualidade dos serviços? 
Ao finalizar este artigo, que tem a pretensão de oferecer um olhar alternativo 
ao contexto nacional vigente, é importante salientar que a prática discursiva neo-
desenvolvimentista que predominou nos governos petistas, assim como a utilização de 
ideias de Celso Furtado perderam força no atual governo que tem se mostrado de corte 
mais liberal. Assim, a problematização que esteve na base da construção deste texto 
pode vir a ganhar novas nuances a partir do momento em que o projeto de 
desenvolvimento do atual governo venha a ser explicitado. Ou talvez, sob a lógica de 
mercado global, o próprio plano seja não ter planos. O que para Matus (1996) já se 
apresentaria como uma estratégia a ser examinada em suas consequências. 
 
AUTOR 
* Rogério Faé é professor Adjunto na Escola de Administração / Universidade Federal 
do Rio Grande do Sul. Doutor em Administração pelo PPGA/EA/UFRGS e Pós-
Doutorado pela Essex University - UK (Ênfase em Economia Política). Email: 
rogerio.fae@ufrgs.br. 
 
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Artigos e ensaios 
 
A ESCRITA COMO CUIDADO DE SI NA OBRA 
TARDIA DE MICHEL FOUCAULT[1] 
Roberto Kennedy de Lemos Bastos* 
 
 
RESUMO: Michel Foucault realizou um deslocamento teórico até a antiguidade 
clássica com o intuito de abordar textos prescritivos da conduta do homem grego, nessa 
pesquisa atenta para o preceito do cuidado de si como princípio regulador de uma 
espécie de razão prática do homem grego. A escrita se exerceria aí como importante 
alternativa instrumental para o autoconhecimento tão necessário ao efetivo uso coerente 
da razão no tocante ao uso dos prazeres, portanto, de um ethos anterior ao modo do 
dispositivo moderno da sexualidade. Evocamos o texto L’écriture de soi (A escrita de 
si) como um “mapa” para a localização do problema da escrita como cuidado de si na 
obra tardia de Michel Foucault, enquanto uma tecnologia de si que dispõe o ser para 
uma condição de ascese no pensamento e, por conseguinte, em uma excelência de vida 
no sentido do conceito de estética da existência, isto é, a vida como uma obra de arte. 
Palavras-chave: escrita de si, cuidado de si, hypomnemata, estética da existência. 
 
 
 
 
 
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1 
INTRODUÇÃO 
O objetivo deste artigo é comentar as reflexões contidas na obra tardia de Michel 
Foucault acerca de temas como subjetividade e modo de subjetivação, servindo-se para 
tal de um texto menor, qual seja, A escrita de si, como um “mapa” onde o leitor toma 
conhecimento dos novos contornos tomados pela pesquisa do autor e do rumo que essa 
inflexão dos temas da modernidade (saber/poder) para a antiguidade greco-
romana. Esse é um texto menor. Figura entre outros textos produzidos por Foucault nos 
anos oitenta na esteira das suas pesquisas acerca da história da sexualidade por 
intermédio dos ditos jogos de verdade através dos quais o ser humano se reconheceu 
como “homem de desejo”, conforme Jean-François Pradeau, “as regras de conduta às 
quais os antigos buscavam submeter suas práticas sexuais e os discursos com os quais 
eles demandavam uma compreensão, um entendimento dessas práticas[2]”. A escrita de 
si segundo o método arqueológico-genealógico é um modo de subjetivação que, 
enquanto uma forma de tecnologia de si, interessa Foucault nesse momento[3]. 
Acreditamos que as grandes escolhas se iniciam por pequenas e esclarecidas fontes 
escolhidas, aqui e ali, e pensamos demonstrar a importância deste texto – publicado pela 
primeira vez na revista Corps Écrit[4] – cujas páginas saem desta pesquisa cujo lema “é 
preciso dizer a verdade sobre si mesmo”[5], concede mais fomento para o curso que 
aborda temas relacionados com a cultura do cuidado de si[6] na antiguidade e no início 
da nossa era em função da noção (nomeada pelo autor francês) de estética da 
existência[7]. Dito ainda de outro jeito, mas sem sair da cartografia proposta por ele, de 
como as práticas de si – do jogo entre o conhecer e o cuidar – expressam na forma da 
escrita de si uma resolução estética e ética enquanto um poder “subjetivador” que a 
escrita representa. 
A escrita de si foi publicada em fevereiro de 1983 (portanto um ano e cinco 
meses antes de sua morte) junto com outros cinco artigos que compõem a produção do 
autor no hiato que sucedeu ao lançamento de A vontade de saber (1976), e que, segundo 
o autor, faz “parte de uma série de estudos sobre as ‘artes de si mesmo’, isto é, sobre a 
estética da existência e o governo de si e dos outros na cultura greco-romana, nos dois 
primeiros séculos do Império” [8]. É sabido que a obra que aqui tratamos é o resultado 
de um arriscado [9] deslocamento teórico feito rumo à antiguidade, e cuja alusão aqui 
tem um significado igualmente arriscado[10]. Aliás, com efeito, o risco é a condição de 
todo empreendimento filosófico, diria Foucault no prefácio de O uso dos prazeres, obra 
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160 
 
que, junto com O cuidado de si, representam a materialização do esforço do autor em 
conceber uma ontologia do presente partindo de experimentos no campo da ética greco-
romana. Mais especificamente romano uma vez que a utilização da escrita como 
gênese ethopoiética [11] só fora posta em prática, segundo o pensador francês, no 
período imperial. Conforme Foucault: 
Parece não haver dúvida que, entre todas as formas que tomou este 
adestramento (o que comportava abstinência, memorizações, exames 
de consciência, meditações, silencio e escuta do outro), a escrita – o 
fato de se escrever para si e para outrem – só tardiamente tenha 
começado a desempenhar um papel considerável. Em todo o caso, os 
textos da época imperial que se referem às práticas de si concedem 
uma grande parte à escrita. É preciso ler, dizia Sêneca, mas escrever 
também. É Epicteto,
nas grandes universidades do 
mundo. Os sócios do império seriam, na realidade, co-participantes de um aparato 
propagandístico montado para dar sustentação ao sistema político e econômico vigente, 
diante do que a economia capitalista é de fato o que move a estratégia. 
 A primeira operação de propaganda governamental norte-americana teria sido 
produzida pelo presidente Woodrow Wilson, com a assessoria de diversos intelectuais, 
por meio da Comissão Creel, com o objetivo de “transformar uma população pacifista 
numa população histérica e belicosa que queria destruir tudo o que fosse alemão, partir 
os alemães em pedaços, entrar na guerra e salvar o mundo.” (Chomsky, 2014, p. 7) 
Segundo Chomsky, aquela teria sido o contraponto da propaganda nazista de Hitler, 
“patrocinada pelo Estado, quando apoiada pelas classes instruídas” e teria como 
pressuposto a ideia, comum a certo liberalismo, ao leninismo e ao nazismo, de que “as 
massas ignorantes (…) são estúpidas demais para compreender sozinhas” (Chomsky, 
2014, p. 8) os assuntos governamentais, em especial os de política internacional. De 
acordo com essa visão, a função do “rebanho desorientado” é a de ser “expectador”. 
(Chomsky, 2014, p. 8) Assim, 
Para a classe política e para os responsáveis pela tomada de decisões, 
elas têm de oferecer uma percepção razoável da realidade, embora 
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17 
 
também tenham de incutir nele (o rebanho) as convicções certas. Mas 
lembrem-se: existe aqui uma premissa não declarada. A premissa não 
declarada - e mesmo os homens responsáveis têm de escondê-la de si 
próprios - tem que ver com a pergunta de como eles alcançam a posição 
em que têm autoridade para tomar decisões. A maneira como fazem 
isso, naturalmente, é servindo as pessoas que têm poder de verdade. As 
pessoas que têm o poder de verdade são as donas da sociedade, e elas 
fazem parte de um grupo bem reduzido. (Chomsky, 2014, p. 9-10) 
 
 O elemento propulsor da propaganda política é o medo, que faz com que as 
pessoas se mobilizem contra o que consideram uma ameaça a suas próprias existências. 
“A lógica é cristalina. A propaganda política está para uma democracia assim como o 
porrete está para um Estado totalitário.” (Chomsky, 2014, p. 10) Seu compromisso é 
“controlar a mente da população.” (Chomsky, 2014, p. 10) 
 Desde então, a propaganda estaria presente nos governos dos Estados Unidos. 
Durante o governo Ronald Reagan, que assumiu o poder em 1981, o objetivo seria o 
combate ao “terrorismo internacional”: 
O governo estava empenhado na implementação de três políticas 
correlatas, todas realizadas com sucesso considerável: 1) 
transferência de recursos dos pobres para os ricos; 2) um aumento em 
larga escala da economia estatal pela forma tradicional, por 
intermédio do Pentágono (orçamento militar), artifício para compelir 
o público a financiar a indústria de alta tecnologia, por meio do 
cativo mercado estatal, para a produção de inutilidades de alta 
tecnologia e, com isso, contribuir com o programa de subsídios 
públicos, lucros privados (denominados “livre iniciativa”); e 3) um 
aumento significativo da intervenção americana, de operações 
subversivas e do terrorismo internacional (no sentido lexicológico do 
termo). (Chomsky, 2006, p. 14-15) 
 
 A ideia de que “Os verdadeiros objetivos a que tais políticas visam não podem 
ser revelados ao povo” casa bem a conclusão de Chomsky com ideia de uma grandiosa 
estratégia imperial da qual os bobos da corte não se dariam conta de como são 
utilizados pelos governos e seus sócios. O artifício para alcançar os objetivos junto às 
populações manipuláveis seria o medo, uma verdadeira “artimanha" por meio da qual a 
propaganda se valeria de recursos discursivos como “Império do Mal”, “guerra contra o 
terror”, “quem não está conosco está contra nós”, entre outros. 
 No auge da Guerra Fria, mais precisamente em 1971, em debate com Michel 
Foucault na TV holandesa, Chomsky contra-constrangia o sistema, afirmando: 
Pelo que sei, na mídia de massas americana você não pode encontrar 
um único jornalista socialista ou um único comentarista político 
sindicalizado que seja socialista. Do ponto de vista ideológico a mídia 
de massas é quase 100% ‘capitalista de estado’. Num certo sentido, 
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18 
 
temos aqui a ‘imagem-espelho’ da União Soviética, onde todos que 
escrevem no Pravda representam a posição a que chamam 
‘socialismo’. [...] há a marcante homogeneidade ideológica da 
intelligentsia americana em geral, que raramente provém de uma das 
variantes da ideologia capitalista estatal (liberal ou conservadora) 
(Chomsky e Foucault, 2007, p. 75, tradução do autor) 
 
 Assim vista por ele, a grande mídia é aliada dos grandes estados na ocultação de 
fatos de interesse de suas sociedades. Um dos aspectos em que Chomsky mais insiste 
quanto ao papel desempenhado pela mídia é com relação à ocultação de informações do 
grande público, com o que se manifestaria a intenção de retirar a liberdade de 
informação, ao contrário do que os postulados liberais levariam a crer. 
A guerra terrorista dos EUA em El Salvador não é assunto para 
discussão entre pessoas respeitáveis; isso não existe. O esforço 
americano de "deter" a Nicarágua é assunto discutível, mas dentro de 
limites estreitos. (Chomsky, 2006, p. 65) 
 
 A propósito do conflito árabe-israelense, Chomsky faz menção ao veto do 
governo Carter à proposta construída, no âmbito das Nações Unidas, de uma resolução 
que concluiria pela coexistência de dois estados na Palestina, mediante o entendimento 
de que os estados da região teriam o direito de viver em paz, dentro de fronteiras 
seguras e reconhecidas. Atendendo a pressões de Israel e de setores político-
econômicos poderosos nos EUA, o governo Carter vetara a proposta, com a 
complacência da mídia e da intelectualidade. 
 O sistema ideológico-midiático ao qual Chomsky faz referência é aquele que 
deliberadamente distorce informações, vendendo a ideia de que a política norte-
americana seria “moderada”, enquanto que a dos outros (países e grupos) seria 
“extremista" ou mesmo “terrorista”, ao passo que os métodos e as intenções seriam os 
mesmos ou assemelhados. 
 Chomsky se refere igualmente a um padrão duplo adotado pelos principais 
veículos da mídia, em Israel e nos Estados Unidos, diante de um mesmo acontecimento. 
No contexto do conflito árabe-israelense (que ele entende ser melhor designado como 
conflito árabe-israelense-norte-americano), Chomsky diz que o envio de novos 
helicópteros militares, em 2001, foi digno de ampla difusão pela mídia israelense, 
enquanto que a mídia norte-americana escondeu a informação dos contribuintes, 
certamente por razões políticas. 
A única menção que se fez do acontecimento nos EUA foi numa 
matéria assinada em Raleigh, Carolina do Norte. A condenação que a 
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19 
 
Anistia Internacional fez da venda de helicópteros americanos foi 
ignorada também. E nada mudou nos meses seguintes, inclusive em 
relação a uma carga despachada em fevereiro de 2001, por conta de 
uma transação de 5 bilhões de dólares, a compra de helicópteros 
Boeing Apache Longbow, os mais avançados do arsenal americano, 
noticiada superficialmente nos Estados Unidos como simples 
transação comercial. (Chomsky, 2006, p. 263) 
 
 No contexto do ataque às torres gêmeas, Chomsky faz menção ao editorial do 
New York Times do dia 16 daquele setembro de 2001, em que o jornal se pronuncia de 
maneira a gerar comoção, alimentar o medo e ao mesmo tempo angariar apoio para uma 
investida militar: “Os responsáveis agiram pelo ódio que nutrem contra os valores 
prezados no Ocidente, tais como liberdade, tolerância, prosperidade, pluralismo 
religioso e voto universal”. (Chomsky, 2002, p. 33) A conclusão proporcionada por 
Chomsky
que, todavia não ministrou senão um ensino oral 
insiste repetidas vezes no papel da escrita como exercício pessoal: 
deve-se “meditar” (meletan), escrever (graphein), treinar; “possa a 
morte arrebatar-me enquanto penso, escrevo, leio” (FOUCAULT: 
2009, pg. 133). 
 
A escrita tem uma função transformadora do indivíduo e, na tradição cristã – 
que no texto de Foucault é expresso pela transcrição de um trecho da vitae antonii de 
Atanásio[12] –, possui seu sentido principal numa relação de complementaridade com 
a anachoresis [13], i.e, atenuar os perigos da solidão e realizar um “trabalho não apenas 
sobre os atos, mas, mais precisamente, sobre o pensamento”. Portanto, “aquilo que os 
outros são para o asceta numa comunidade, Sê-lo-á o caderno de notas para o solitário”. 
Trata-se de um debate sobre a forma como a askésis [14] grega ganha importância junto 
à tradição cristã ainda procurando por uma identidade. 
Há uma análise da oposição entre o ascetismo cristão e a ascética pagã, ambas 
possuindo estreita relação com o cuidado de si, instituindo um campo prescritivo moral 
com o qual o indivíduo irá constituir uma espécie de “armadura da conduta 
cotidiana”[15]. Onde está, com efeito, a diferença uma vez que o sentido do ascetismo é 
sempre um domínio sobre o desejo e o controle sobre o uso dos prazeres no sentido de 
um cuidado de si? Em que sentido se pode dizer que a prática da escrita serviria, 
enquanto princípio racional, para o controle do pensamento, isto é, dos movimentos da 
alma? A seguir, portanto, apresentaremos estas questões dimensionando como Michel 
Foucault vira no uso que os pensadores da antiguidade faziam da escrita uma forma de 
cuidado de si, i. e, conforme A escrita de si: 
Constituir a si próprio como sujeito de ação racional pela apropriação, 
a unificação e a subjetivação de um “já dito” fragmentário e 
escolhido; no caso das notações monásticas das experiências 
espirituais, tratar-se-á de desentranhar do interior da alma os 
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movimentos mais ocultos, de maneira a poder libertar-se deles. No 
caso da narrativa epistolar de si próprio, trata-se de fazer coincidir o 
olhar do outro e aquele que se volve para si próprio quando se aferem 
ações quotidianas às regras de uma técnica de vida. 
 
A apropriação do sujeito do “já dito” e sua consequente utilização em uma 
prática de si, i. e; um exercício (que é um modo de subjetivação) concebido conforme o 
entendimento que os antigos (seja grego, seja romano) tinham do papel da escrita como 
exercício de si no pensamento, tinha duas formas, segundo Foucault, quais sejam, 
o hypomnemata e a correspondência. A função que vão cumprir é da ordem de 
uma tekne tou biou, uma arte de viver, “que é preciso entender como um adestramento 
de si por si mesmo” (FOUCAULT, 2009, p. 132). 
 
2 
A ESCRITA DE SI: HYPOMNEMATA 
A leitura produz no leitor um movimento, em sua alma, que pode ser utilizado 
tal qual uma “ferramenta” para auxilio na sua disposição de vida. Fazer coleta de 
fragmentos dos textos lidos sugere algo de peculiar, i. e; com a coleta de citações, 
“reflexões ou debates que se tinha ouvido ou que tivessem vindo à memória” se forma 
um conjunto de elementos componentes de uma “memória material das coisas ouvidas 
ou pensadas” que um “público cultivado” chamará “livro de vida” ou “guia de 
conduta”: o hypomnemata. 
Assim, conforme o Vocabulário de Foucault[16] define o caderno de notas 
grego, hypomnemata, tem por característica estar á mão, tal qual uma ferramenta, 
conforme já dito acima, para qualquer das vicissitudes da vida que se apresente tais 
como “um luto, um exílio, uma ruína, a desgraça” de um lado; e de outro, combater 
“este ou aquele defeito como cólera, a inveja, a tagarelice, a bajulação” dentre outras 
formas de vícios constantes na condição humana. Foucault afirma, 
Não haverá que considerar esses hypomnémata como um simples 
suporte de memória, que poderia consultar a cada tanto, caso se 
apresentasse a ocasião. Eles estão destinados a substituir a recordação 
eventualmente débil. Eles constituem, antes, um material e um quadro 
para os exercícios a realizar frequentemente: ler, reler, meditar, 
conversar consigo mesmo e com os outros etc. Trata-se de constituir 
um logos boéthikos; um equipamento de discursos que servem de 
ajuda, suscetíveis, como diz Plutarco, de levantar eles mesmos a voz e 
de fazer calar as paixões, como um amo que com uma palavra aplaca 
o latido dos cães (FOUCAULT, 2009, p. 221). 
 
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162 
 
O hypomnemata serve de “base” para a escrita das correspondências que serão 
enviadas em auxilio dos amigos-discípulos, nesse sentido, podemos dizer que não 
apenas o ler é fundamental para a constituição de um hábito a tornar-se um ethos, mas 
uma associação deste com o ato de escrever-para, que, se por um lado favorece, em 
complementaridade com a anachorese (aqui tratando da tradição asceta cristã 
supracitada), uma forma de disciplina e ascese; por outro lado, suscita a meditação que, 
conforme Foucault, citando Epicteto, diz, “esse exercício do pensamento sobre si 
mesmo que reativa o que ele sabe, se faz presente como um princípio, uma regra ou um 
exemplo, reflete sobre eles, os assimila, e se prepara assim para enfrentar o real” 
(FOUCAULT, 2009, p.133). Portanto, há um sentido “prático” da leitura que não 
apenas o aumento da cultura – ou como dissera Heráclito da polimathia. 
Convém pensar no hypomnemata como uma ferramenta para as circunstancias 
mais variadas (sobretudo as adversas) como dito acima, mas, vislumbrar que o fim é um 
só, qual seja, a produção de um corpo estético-ético possível segundo a prática de 
exercícios ascéticos. Sêneca, por exemplo, é um dos autores mais apropriados por 
Foucault, e, este estoico romano, verteu, por exemplo, da tradição grega para a latina, a 
chamada paraskeué[17] (em latim instructio) que era a preparação para um 
acontecimento[18] vindouro possível. No curso de 1982, A Hermenêutica do sujeito, na 
aula de 17 de março (primeira hora), Foucault trata das técnicas utilizadas pelos 
filósofos que prescrevem que a vida tal qual uma regula (uma regra), deve ser dotada de 
uma estilística. Vejamos como ele expõe a questão. 
A obra bela é a que obedece à ideia de uma forma (um certo estilo, 
uma certa forma de vida). Esta sem dúvida é a razão pela qual jamais 
encontramos na ascética dos filósofos aquele mesmo catálogo tão 
precioso de todos os exercícios a serem realizados, em cada momento 
da vida, que encontramos entre os cristãos. Portanto, estamos diante 
de um conjunto bem mais confuso, cuja elucidação podemos tentar 
iniciar da seguinte maneira: detenhamo-nos em duas palavras, dois 
termos que se referem ambos a este domínio dos exercícios, da 
ascética, mas que designam, creio eu, dois aspectos, ou se quisermos 
duas famílias. De um lado, temos o termo meletân e, de 
outro, gymnázein (FOUCAULT: 2004, 514). 
 
A reflexão de Foucault demonstra como a práxis dos filósofos não era regida 
por qualquer forma de breviário[19] (catálogo dos exercícios a serem realizados em 
cada momento da vida), e sim, por técnicas (tékhne) cujo sentido era expressar uma vida 
bela, exemplar. Há, contudo a distinção entre dois termos, quais 
sejam, melete e gymnázein que em alguns filósofos estão separados e noutros seguem 
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163 
 
quase como sinônimos. Na palavra grega que tem a correspondência com 
cuidado, epimélia, há uma junção entre uma preposição epi que diz através de, acerca 
de, e, mélia que tem relação com meléte, isto é, exercício que implica uma energia 
intensa, atenção constante. Jean-Pierre Vernant, no seu livro Mito e pensamento entre os 
gregos, esclarece que: 
O que caracteriza, no entanto, a meléte filosófica é que à observância 
ritual e ao exercício
é de que os atos dos EUA são irrelevantes para explicar os ataques às torres 
gêmeas e demais espaços territoriais norte-americanos naquele dia trágico de setembro 
de 2001. Se nada pode justificar o acontecimento de 11 de setembro, não seria 
apropriado, na perspectiva chomskyana, aceitar a posição dos EUA como o de uma 
“vítima inocente”, com o que se estaria ignorando "o histórico de suas ações". 
(Chomsky, 2002, p. 38) 
 No aspecto militar, a OTAN e a Escola das Américas teriam papel fundamental 
na criação de antagonistas e na difusão de ideias que contribuiriam para o sucesso da 
estratégia. A OTAN seria responsável pelas piores campanhas de limpeza étnica da 
década de 1990 no Leste Europeu. Lideraria um esquema e um discurso capaz de dar 
importância inquestionável ao poderio militar, incluindo a distribuição de armamentos, 
o que requereria vultosos investimentos e alimentaria novos conflitos, por sua vez 
justificadores de mais investimentos. Em relação à associação liderada por Clinton e 
Blair, diz Chomsky: 
A nova geração estabeleceu os limites colocando conscientemente a 
maior quantidade possível de armas nas mãos de assassinos e 
torturadores - não apenas armas, mas aviões, tanques, helicópteros, 
todos os mais avançados instrumentos de terror - às vezes em 
segredo, porque as armas eram enviadas violando legislação do 
Congresso. (2003b, p. 19). 
 
 No que especificamente se refere à Escola das Américas, Chomsky destaca entre 
seus logros a aniquilação da Teologia da Libertação, mediante o discurso de 
“aperfeiçoamento democrático”. Seja no contexto latino-americano seja no contexto do 
conflito árabe-israelense-norte-americano, o poder militar norte-americano 
Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 
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potencializaria amigos, os quais certas vezes se tornam inimigos. A política norte-
americana teria contribuído para não apenas tornar o mundo mais inseguro, mas 
também para afirmar “pressupostos racistas que não seriam tolerados se declarados 
abertamente.” (Chomsky, 2006, p. 47) 
 O discurso militar e midiático teria sustentação da maioria dos intelectuais, os 
quais escreveriam artigos e dariam aulas em que a tônica seria para o fator civilizador 
das políticas e ações dos principais estados do planeta e para os “absurdos” praticados 
pelos estados menores, sobretudo aqueles que são qualificados como estados falidos. Aí 
estariam incluídas vozes que festejariam que os Estados Unidos fossem firmes, duros, 
determinados, como forma preventiva e educativa, e sempre com a finalidade de 
instaurar ou restaurar a democracia e o respeito aos direitos humanos. 
 A propósito do conflito soviético no Afeganistão, Chomsky trabalha com a 
pressuposição de que o poder militar teria construído e a mídia expandido o “esforço 
para apagar os registros e fazer crer que os Estados Unidos foram meros e inocentes 
espectadores.” (Chomsky, 2002, p. 20) 
 Os militares são acusados por Chomsky de darem sustentação a esquemas dos 
quais fazem parte prisões secretas, onde os detentos são mantidos em "condições 
chocantes e sujeitos a espancamentos e torturas com choques elétricos” (Chomsky, 
2006, p. 92), entre outras práticas pré-modernas. No que se refere ao conflito com a 
Nicarágua, Chomsky diz que 
Os terroristas que (George) Shultz comanda na Nicarágua (…) são 
especializados justamente em ataques assassinos contra civis, 
acompanhados de torturas, estupros, mutilações; a odiosa história de 
terror deles está bem documentada, embora tenha sido ignorada e 
esquecida rapidamente, e até negada pelos partidários do terrorismo. 
(Chomsky, 2006, p. 119) 
 
 Na aliança envolvendo o poder militar, a mídia e os intelectuais, o objetivo é 
certamente "mobilizar a população” para a sustentação do status quo político e 
econômico global. 
 
BEYOND CHOMSKY 
 
 Em outro artigo a respeito do autor, publicado em 2008, concluí que "O desafio 
da sociedade é imenso, considerando o quadro de análise chomskyano”. (Benvenuto, 
2008, p. 145) Tendo em vista que para Chomsky “é sensato lutar por um mundo melhor, 
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mas não alimentar veleidades e ilusões sobre o mundo em que vivemos” (Chomsky, 
2003b, p. 157), vale a pena concluir este artigo com uma breve reflexão a respeito do 
tamanho do desafio contido por trás de suas palavras. 
 Tomarei como elemento chave para esta breve reflexão uma das questões mais 
relevantes na análise chomskyana: a ideia de que propaganda política a que ele se refere 
é uma propaganda de guerra para sustentar a grandiosa estratégia imperial, embora não 
exista uma guerra global em termos jurídicos. A esse respeito, Chomsky dirá que não 
temos uma guerra descrita enquanto tal porque o direito internacional contemporâneo 
não dá sustentação ao conceito. Em outras palavras, o sistema do qual faz parte a 
intelligentsia internacional cria suas normas e definições jurídicas conforme as 
conveniências políticas. 
 Esta condição nos coloca numa enrascada sem tamanho na medida em que, se 
todos esses poderes estão articulados em torno de uma propaganda de guerra capaz de 
sustentar a grandiosa estratégia imperial - e eles são de tal forma poderosos -, 
poderíamos ser tentados a sustentar a conclusão de que há duas saídas possíveis. 
 A primeira saída seria o esclarecimento da população - como Chomsky vem 
propondo por meio de suas palestras, livros e filmes. A análise chomskyana parece 
conduzir à compreensão de que a alternativa é o empoderamento das pessoas, por meio 
de informação, para que entendam melhor o mundo em que vivem e a partir dessa 
tomada de consciência possam fazer melhores escolhas, sobretudo relacionadas aos 
governos. A partir da tomada de consciência da forma como os políticos, a mídia, a 
Intelligentsia e o poder militar manipulam as consciências humanas, poderia haver um 
levante popular de tamanha proporção que o próprio sistema se encarregaria de se 
rearrumar em termos mais democráticos. 
 Não se pode deixar de enxergar, entretanto, a possibilidade de que o complexo 
quadro de análise proposto por Chomsky considere pouco as dissidências existentes 
dentro do próprio sistema - as quais poderiam estabelecer uma permanente tensão entre 
posições - e que o jogo politico esteja de tal maneira embolado que as populações, 
sobretudo dos grandes países do mundo, prefiram adotar uma posição conformista. 
 Nesse quadro, a cada denúncia contra os pressupostos da grandiosa estratégia 
imperial o sistema responderia de tal forma articulado que as palavras dos articulistas 
críticos não passariam de fagulhas lançadas ao vento capazes de desaparecer sem que o 
poder político, a mídia, os militares e a intelligentsia tomassem conhecimento de sua 
breve existência. 
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 Finalizo este artigo um dia após a autorização de Donald Trump para os 
bombardeios unilaterais na Síria, atingindo civis de forma indiscriminada, segundo se 
tomou conhecimento. As ações de Trump deverão ser descritas por Chomsky como 
crimes contra a humanidade não respaldados pelo direito internacional contemporâneo. 
 A propósito das relações entre a política e a mídia, cabe lembrar aqui que a 
eleição de Donald Trump foi realizada em plena era da Internet aberta, e deu margem a 
acusações de manipulação do eleitorado pela mídia, tanto a tradicional como a 
alternativa, com sinais de virulência e desatino político. O acesso à informação, 
conforme temos visto em tempos de Internet aberta, pode levantar a suspeita de que o 
eleitorado não propriamente se deixa enganar, mas faria parte de uma engrenagem da 
qual ele próprio é produtor de sentidos. 
 Diante desse tipo de cenário cabe perguntar se as populações das nações 
poderosas (e do mundo como um todo) estariam dispostas um dia a se insurgirem contra 
o estado de coisas que parecem conhecer.
Havendo o desejo, quais meios a população 
dispersa possui para se insurgir contra poderes armados com mísseis, bombas, TVs, 
rádios e Internet aberta a todo tipo de informação. E se estivermos diante de um estado 
de coisas em que as populações não sejam tão manipuladas como supõe Chomsky, mas 
prefiram permanecer diante de realities de TV (como os big brothers e as competições 
gourmet de hoje em dia), redes sociais e telas de sexo interativo - deixando a política 
nacional e internacional para poucos? Não concluirei que esta escolha importaria em 
adesão à grandiosa estratégia imperial, mas que deixando as questões que importam 
aos poderosos de sempre as populações não parecem ser nada ingênuas ou manipuladas. 
Parecem ser parte do jogo, como acontece com a participação, ora direta, ora indireta, 
nos big brothers. 
 
 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 
 
LIVROS 
BARSKY, R. F. 2004. Noam Chomsky – A vida de um dissidente. São Paulo: Conrad do 
Brasil. 
BENVENUTO, J. Lua Nova, São Paulo, 73: 123-145, 2008. 
CHOMSKY. 2002. 11 de setembro. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. 
CHOMSKY, N. 2003a. Contendo a democracia. Rio de Janeiro: Record. 
CHOMSKY, N. 2003b. Uma nova geração decide o limite: os verdadeiros critérios das 
potências ocidentais para suas intervenções militares. Rio de Janeiro: Record. 
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CHOMSKY, N. 2004a. “Os dilemas da dominação”. In: BORON, Atílio (org.). Nova 
hegemonia mundial: alternativas de mudança e movimentos sociais. Buenos Aires: 
Clacso, pp. 15-36. 
CHOMSKY, N. 2004b. O império americano. Rio de Janeiro: Campus. 
CHOMSKY, N. 2005. Poder e terrorismo. Rio de Janeiro: Record. 
CHOMSKY, N. 2006. Piratas e imperadores, antigos e modernos. Rio de Janeiro: 
Bertrand Brasil. 
CHOMSKY, N.; FOUCAULT, M. 2007. The Chomsky-Foucault debate on human 
nature. New York: The New Press. 
CHOMSKY, N. 2014. Mídia: propaganda política e manipulação. São Paulo: Martins 
Fontes. 
HALPERIN, Jorge. 2003. Conversaciones con Chomsky. Santiago: Editorial Aún 
Creemos en los Sueños. 
MITCHELL, P. R.; SCHOEFFEL, J. (orgs.) 2005. Para entender o poder – O melhor 
de Noam Chomsky. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. 
 
FILMES 
Manufacturing consent: Chomsky and the media. Mark Achbar e Peter Wintonick 
(diretores). 1992. Austrália, Finlândia, Noruega, Canadá: Zeitgeist Films, 167 min. On 
globalization. Rage against the machine. Entrevista com Zach De La Rocha. 11 min. 
Poder e terrorismo: Noam Chomsky em nossa época. 2002. John Junkerman (diretor). 
Nova York: First Run Features. 74 min. 
Power versus justice. Fragmentos de debate na TV holandesa em 1971, publicados no 
Youtube. Parte 1 (06:50 min.); Parte 2 (06:02 min.) 
The corporation. Mark Achbar e Jennifer Abbott (diretores). Canadá. 145 min. 
 
INTERNET 
http://www.chomsky.info/ 
 
AUTOR 
* Jayme Benvenuto é Professor Adjunto da Universidade Federal da Integração Latino-
americana (UNILA) no curso de Relações Internacionais. Bolsista de Produtividade em 
Pesquisa 2 do CNPq. E-mail: 
benvenutolima@uol.com.br / jayme.benvenuto@unila.edu.br 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
http://www.chomsky.info/
mailto:benvenutolima@uol.com.br
mailto:jayme.benvenuto@unila.edu.br
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Dossiê 
 
OPINIÃO PÚBLICA, HEGEMONIA E CULTURA 
NOS ‘CADERNOS DO CÁRCERE’ DE A. GRAMSCI 
Luciana Aliaga* 
 Andressa Lima da Silva** 
 
 
 
RESUMO: A investigação das relações complexas que se estabelecem na sociedade 
moderna entre os aparelhos de opinião pública, a cultura e os processos de hegemonia 
analisados nos Cadernos do Cárcere por Antonio Gramsci, constituem o centro de 
interesse do presente artigo. Para consecução do nosso objetivo tomamos como ponto 
de partida uma das características chave da opinião pública: o desempenho de “funções 
de partido” por jornais, revistas e pelo setor editorial em geral. Estas “funções de 
partido” ao mesmo tempo tornam evidente o caráter privado dos aparelhos de “opinião 
pública” e explicitam suas conexões com as classes sociais, muitas vezes não 
imediatamente perceptíveis. 
Palavras-chave: Opinião pública; Hegemonia; Cultura; Partidos políticos. 
 
INTRODUÇÃO 
 
Nos Cadernos do Cárcere, já no primeiro caderno escrito entre fevereiro e 
março de 1929[1], Gramsci caracteriza o exercício “normal” da hegemonia como “uma 
combinação da força e do consenso que se equilibram, sem que a força suplante em 
muito o consenso, ao contrário, apareça apoiada pelo consenso da maioria, expresso 
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25 
 
pelos assim ditos órgãos da opinião pública” (GRAMSCI, Q.1, § 48, p. 59[2]). Deste 
parágrafo podemos deduzir dois elementos importantes da teoria de Estado gramsciana, 
de clara influência maquiaveliana[3]. Em primeiro lugar o Estado moderno se mantém a 
partir de um equilíbrio entre força e consenso e, portanto, o conflito está sempre 
subjacente às relações sociais e políticas. De acordo com Gramsci o consenso permite à 
classe ser dirigente, enquanto a força torna-a dominante (Cf. Q. 1, § 44, p. 41). Este é, 
portanto, um Estado de classes e não um abstrato Estado ético. A segunda constatação 
que se pode fazer é que a relação entre as classes sociais e entre estas e o Estado-
governo, ou, nos termos gramscianos, a sociedade política, é mediada pela cultura, 
âmbito de ação dos aparelhos privados de hegemonia[4] em geral e especificamente dos 
assim chamados “aparelhos de opinião pública”. 
Para Gramsci os jornais, as revistas e o setor editorial em geral, constituem 
importantes pontos de contato entre a “sociedade civil” e a “sociedade política”, entre a 
força e o consenso. Neste sentido, podem se tornar instrumentos do Estado para 
“organizar e centralizar certos elementos da sociedade civil” “quando quer iniciar uma 
ação pouco popular” (cf. Q. 7, § 83, p. 914). Mas os órgãos de opinião pública são 
fundamentais também para as classes não hegemônicas, isto é, o conjunto das classes 
subalternas somente pode construir uma nova concepção de mundo se for capaz de 
universalizar a ética e a política presente em sua filosofia, criando movimentos 
culturais, “movendo” a opinião pública, em suma, criando consentimento em torno de 
sua própria visão de mundo. 
Neste sentido, os diferentes órgãos da opinião pública não apenas atuam na 
formação do consenso, mas de fato “educam” (Cf. Q. 10, § 44, p. 1330-1331), isto é, 
conformam mentalidades e aceitação em torno de determinadas ideias e políticas. 
Gramsci, deste modo, contraria a ideia mesma de “opinião pública”, ou, melhor, ele põe 
em relevo seu caráter “privado”, mostrando que toda opinião está ligada por muitos fios, 
às vezes não imediatamente perceptíveis, aos grupos de interesse e às classes sociais. 
Os aparelhos de opinião pública desempenham um papel de grande importância 
no processo de luta entre hegemonias ao nível da consciência. Para o autor, em certas 
circunstâncias “são os jornais, agrupados em série, que constituem os verdadeiros 
partidos” (Q.1, § 116, p.104). Ao demonstrar que as linhas editoriais guardam conexões 
com interesses de grupos, Gramsci sinaliza para uma função que é específica dos 
partidos políticos: sintetizar ou influenciar a concepção de mundo e a ética adequada à 
determinada classe, universalizando-a para o conjunto da sociedade. Neste sentido, 
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buscaremos esclarecer em primeiro lugar como Gramsci define os partidos políticos 
nosCadernos do Cárcere, para em seguida refletir sobre as “funções de partido” 
desempenhadas pelos aparelhos de opinião pública e, por último, suas diversas relações 
na sociedade civil com os processos culturais e políticos de hegemonia. 
 
PARTIDO POLÍTICO E FUNÇÃO DE PARTIDO 
 
 O partido político é definido por Gramsci nos Cadernos do Cárcere como o 
“moderno príncipe”,
o “condottiero ideal” (Cf. Q. 13, § 1, p. 1555). Numa clara 
referência à Maquiavel, o autor destaca o papel fundamental da direção e da formação 
política que têm os partidos modernos. Esta função diretiva e organizativa deve ser 
compreendida no interior das relações de forças na sociedade civil e no Estado. O 
“momento” onde se localiza o partido é aquele “essencialmente político”, isto é, o 
momento em que a classe social ou o grupo específico torna-se capaz de superar as 
demandas meramente econômicas e alcançar o terreno da universalidade (Cf. Q. 13, § 
17, p. 1584). 
O momento anterior, econômico-corporativo, caracteriza-se justamente por uma 
solidariedade essencialmente econômica de grupo profissional, assim, não há 
consciência de unidade do grupo social mais amplo. Por outro lado, a formação de uma 
vontade coletiva localiza-se num estágio superior, no momento da formação da 
consciência de classe e absorção dos interesses dos grupos subalternos. Esta é a fase 
mais estritamente política que “assinala uma passagem nítida da estrutura para a esfera 
das superestruturas complexas, é a fase em que as ideologias geradas anteriormente se 
transformam em partido” (idem). Esta elaboração política de interesses de grupo 
consiste na formação mesma do partido político, como agente capaz de sintetizar a ética 
e a política adequada à classe que representa. 
Destarte, ao partido cabe resguardar os interesses da classe que representa, 
porém, simultaneamente, deve assimilar em certa medida os interesses das classes 
subordinadas. Deste modo, difunde sua visão de mundo de forma que os demais grupos 
sociais a tomam como sua própria visão. A difusão por toda área social de sua visão de 
mundo e a aceitação desta pelos demais grupos contribui para a construção da 
hegemonia do grupo social fundamental, assim: 
determinando além da unicidade intelectual dos fins econômicos e 
políticos, também a unidade intelectual e moral, pondo todas as 
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questões em torno das quais ferve a luta não no plano corporativo, 
mas num plano ‘universal’ criando assim a hegemonia de um grupo 
social fundamental sobre uma série de grupos subordinados (idem). 
 
Nos Cadernos, contudo, Gramsci observa que no mundo moderno, “os partidos 
orgânicos e fundamentais, por necessidade de luta ou por alguma outra razão, 
dividiram-se em frações, cada uma das quais assume o nome de partido”, de modo que, 
muitas vezes o “Estado-Maior intelectual do partido orgânico” opera como se fosse uma 
“força dirigente em si mesma, superior aos partidos e às vezes reconhecida como tal 
pelo público”. E arremata: 
Esta função pode ser estudada com maior precisão se se parte do 
ponto de vista de que um jornal (ou um grupo de jornais), uma revista 
(ou grupo de revistas) são também ‘partidos’, ‘frações de partido’ ou 
“funções de determinados partidos” (Q. 17, §37, p. 1939). 
 
Observe-se que, para o autor, os jornais e as revistas, isto é, os aparelhos de 
opinião pública, devem ser estudados em sua conexão com os “partidos orgânicos e 
fundamentais”, ou, pode-se dizer, com os grupos sociais que travam disputa político-
cultural na sociedade civil no interior das lutas por hegemonia. Neste sentido, ainda que 
sejam reconhecidos como uma “força dirigente em si mesma, superior aos partidos” – o 
que supõe certa “isenção ideológica” – são “aparelhos” de opinião, isto é, desempenham 
funções políticas na sustentação de certa visão de mundo ligada a determinados grupos 
sociais. 
Note-se que quando Gramsci se refere aos aparelhos de opinião pública como 
partidos ele utiliza aspas, procedimento usado nos Cadernos para indicar que 
determinado termo ou conceito está sendo utilizado fora de seu sentido habitual, neste 
caso, determinadas revistas ou jornais são “partidos” na medida em que desenvolvem 
funções de partido e estão enraizados em grupos sociais fundamentais. 
Gramsci, portanto, distingue este tipo de “partido” específico, que abstrai a ação 
política imediata, isto é, dos homens de cultura, que tem a função de dirigir do ponto de 
vista da cultura, da ideologia geral, um grande movimento de partidos afins (frações de 
um mesmo partido orgânico). Ao analisar a situação da Itália de seu tempo, Gramsci 
afirma que, pela falta de partidos organizados e centralizados, “não se pode prescindir 
dos jornais: são os jornais, agrupados em série, que constituem os verdadeiros partidos” 
(Q. 1, §116, p. 104). Neste sentido, os jornais cumprem duas funções fundamentais: 
informação e direção política geral. Esta direção política obviamente não é neutra, ao 
contrário, está ligada por muitos fios a determinados grupos (Cf. idem). Ao demonstrar 
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28 
 
que as linhas editoriais guardam conexões com interesses de grupos, Gramsci sinaliza 
para uma função que é específica dos partidos políticos: sintetizar ou influenciar a 
concepção de mundo e a ética adequada à determinada classe, universalizando-a para o 
conjunto da sociedade. Para esta função deve-se da mesma forma levar em conta a 
atuação dos “intelectuais”, mas neste caso específico, sua atividade concentra-se na 
capacidade de influenciar as linhas editoriais de acordo com os interesses de grupos, de 
certa forma, estes indivíduos constituem-se em dirigentes dos jornais (Cf. Q. 1, § 116, p. 
108-109). 
 
HEGEMONIA COMO PROCESSO EDUCATIVO 
 
Aspecto importante dos aparelhos de opinião pública – a imprensa, os jornais, as 
revistas, e o setor editorial em geral – é seu papel educativo na formação de um 
determinado clima cultural, isto é, no convencimento, na conformação da opinião. O 
fato de a hegemonia não se realizar apenas por meio dos aparelhos repressivos do 
Estado, mas também por meio dos aparelhos privados de hegemonia, põe em relevo seu 
aspecto “pedagógico”, neste sentido, compreende-se a afirmação de Gramsci segundo a 
qual “toda relação de hegemonia é necessariamente uma relação pedagógica [...]” (Q. 
10, §44, p. 1331). 
Nesse sentido, os aparelhos de opinião pública, que estão estritamente ligados ao 
exercício da hegemonia através de sua atividade educativa formam consenso e 
difundem determinadas concepções de mundo na sociedade. O conjunto de concepções 
que difundem, a despeito de se apresentarem como fria análise de fatos concretos e, não 
obstante reivindicarem isenção ideológica estão, invariavelmente ligados à filosofia de 
um tempo, eivada por ideias-força que se tornaram senso comum, “religião de um 
tempo histórico”, que servem de apoio ao status quo. A opinião pública, portanto, se 
constitui enquanto o ponto de contato entre a sociedade civil e a sociedade política, 
entre a força e o consenso, justamente por atuar na relação que se estabelece entre os 
grupos dirigentes e aqueles dirigidos. 
Compreende-se, destarte, que a atividade educativa dos aparelhos de opinião 
pública é imprescindível para os processos de hegemonia, seja para sua manutenção 
pelos grupos dominantes ou para a construção de uma nova hegemonia pelas classes 
subalternas. No caderno 24, ainda sobre os jornais, Gramsci ressalta que estes se 
distinguem entre o jornal de informação, que não possui nenhum partido explícito – que 
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também é definido como jornal popular, por ser destinado às massas populares –, e o 
jornal de opinião, que consiste num órgão de partido, e é dedicado a um público restrito. 
Enquanto no último caso as conexões com a classe são evidentes, no primeiro estes 
liames não são explícitos e, via de regra, são mais difíceis de perceber imediatamente. 
Neste caso é necessário investigar seu editorial, o conjunto das opiniões expressas, os 
interesses que defende, bem como os intelectuais que o dirigem e suas conexões 
individuais para definir quantos fios o ligam a quais
classes ou frações de classe. Isto 
porque é de fundamental importância para as classes dominantes que os grandes 
“jornais populares”, principalmente aqueles de circulação nacional, apareçam como 
neutros, imparciais, defensores de supostos interesses universais, de uma indiferenciada 
e homogênea sociedade civil. Os jornais populares se tornam, assim, os grandes 
educadores da massa. Eles “simplificam” a realidade social para o homem médio e, 
assim, naturalizam o que é social e velam o conflito entre as classes. 
Ao contrário, para Gramsci, a imprensa consiste na parte mais dinâmica da 
estrutura ideológica da classe dominante (Cf. Q. 3, § 49, p. 332-333), voltada para 
difundir conteúdos acerca da sociedade sob uma determina perspectiva. Esta elaboração 
madura de Gramsci começa a ser elaborada nos anos anteriores ao cárcere. No artigo 
“Os jornais e os operários”, publicado no “Avanti!” em 22 de dezembro de 1916, o 
autor afirma: 
Tudo que se publica é constantemente influenciado por uma ideia: 
servir a classe dominante, o que se traduz sem dúvida num fato: 
combater a classe trabalhadora. (...) E não falemos daqueles casos em 
que o jornal burguês ou cala, ou deturpa, ou falsifica para enganar, 
iludir e manter na ignorância o público trabalhador. (GRAMSCI, 
1980, p. 661). 
 
 
Nesse sentido, observa-se que a concepção de mundo da classe dominante é 
hegemônica justamente porque conseguiu tornar-se senso comum, uma fé, uma religião 
laica, o que determina que sua suposta isenção seja aceita acriticamente. A concepção 
de religião laica é uma elaboração original de Benedetto Croce, que Gramsci define 
como “unidade de fé entre uma concepção de mundo e uma norma de conduta adequada 
a ela, apresentada em forma mitológica” (Q. 10, §5, p.1217-1218). Gramsci assimila 
esse conceito criticamente e o utiliza como uma forma de descrever o papel prático da 
ideologia, que seria justamente colocar as massas em movimento, levá-las a ação. A 
verdadeira concepção de mundo, neste sentido, se manifesta na ação, por esta razão a 
concepção de mundo mais arraigada na cultura é aquela que aparece como natural, 
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como uma fé, como uma religião sem deus e sem culto. Neste sentido, somente ao 
tornar-se religião (laica) é que uma concepção de mundo terá impacto histórico, isto é, 
se tornará hegemônica. Assim, as classes subalternas devem travar também uma batalha 
cultural no interior das consciências para construir novas concepções de mundo, que 
estejam em consonância com as necessidades concretas de vida, de trabalho e de fruição 
do conjunto dos trabalhadores. 
Destarte, encontramos outro aspecto da atuação dos dirigentes de jornais e 
revistas que pode ser abordado do ponto de vista do seu caráter educativo, este se refere 
à possibilidade da elevação das consciências no seio dos grupos subalternos. Neste 
sentido, as redações das revistas podem funcionar como círculos de cultura, que tem a 
função de “criticar de modo colegiado e contribuir para elaboração de trabalhos dos 
redatores individuais, cuja operosidade é organizada segundo um plano e uma divisão 
do trabalho racionalmente preestabelecidos (Q.12, §1, p. 1533). 
A crítica colegiada está, portanto, voltada à educação recíproca como uma forma 
de elevar o nível médio individual, no caso particular dos redatores de revista no qual 
cada um é especialista em sua matéria, a troca de informações ou a crítica construtiva 
constitui um meio de “alcançar o nível ou a capacidade do mais preparado” (idem). 
É este “intercâmbio” de conhecimentos que dá organicidade ao grupo, e não apenas 
isto, mas “criam-se também as condições para o surgimento de um grupo homogêneo de 
intelectuais preparados para a produção de uma atividade ‘editorial’ regular e metódica 
(não apenas de publicações de ocasião e de ensaios parciais, mas de trabalhos orgânicos 
de conjunto)” (ibidem). 
Temos, portanto, uma relação pedagógica entre os membros mais avançados e os 
mais atrasados do grupo, o que pode resultar na elevação do nível médio. O ponto 
fundamental a ser observado é que, assim como deve ocorrer no partido, esse tipo de 
atividade editorial favorece a crítica da própria consciência, avançando no sentido da 
formação de uma consciência integral de mundo, menos contraditória, mais próxima da 
criação de uma nova cultura. 
Estes organismos, contudo, que não se caracterizam por atividade política direta, 
por seu modo de operar, correm o risco de perder o lastro na sociedade, isto é, de ter um 
alcance tão restrito que se torna irrelevante. Desta forma só podem atingir os objetivos 
como associação cultural se de fato estiverem ancorados em “um movimento de base 
disciplinado, [caso contrário] tendem ou a se tornarem igrejinhas de ‘profetas 
Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 
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desarmados’, ou a se cindirem de acordo com movimentos inorgânicos e caóticos que se 
verificam entre os diversos grupos e camadas de leitores” (Q. 6, §120, p. 790). 
O que Gramsci demonstra é a necessidade de organicidade, as revistas ligadas 
aos grupos subalternos não podem estar no “limbo social”, supostamente em posição 
neutra em relação aos grupos sociais, pois esta situação as restringe, faz com que 
acabem por se cindirem infinitamente, sem de fato contribuir para o avanço cultural do 
país. O mesmo se aplica às revistas dos partidos, igualmente elas devem ter caráter de 
massa. A atividade política partidária por si só não é capaz de cumprir a função das 
revistas: 
“(...) não se deve crer que o partido constitua, por si mesmo, a 
‘instituição’ cultural de massa da revista. O partido é essencialmente 
político e até mesmo sua atividade cultural é atividade de política 
cultural; as ‘instituições’ culturais devem ser não apenas de ‘política 
cultural, mas de técnica cultural’. Exemplo: num partido existem 
analfabetos e a política cultural do partido é a luta contra o 
analfabetismo” (Q. 6, §120, p. 790-791). 
 
É importante notar que Gramsci diferencia política cultural, própria do partido 
político (luta contra o analfabetismo) e técnica cultural, própria das “instituições” 
culturais (ensinar a ler e a escrever). Segundo o autor, num grupo criado para lutar 
contra o analfabetismo não se propõe a ensinar ler e escrever meramente, não é uma 
“escola para analfabetos”, mas “planejam-se todos os meios mais eficazes para extirpar 
o analfabetismo das grandes massas da população de um país, etc.” (idem). De modo 
que ficam claras tanto as conexões, quanto as distinções entre o partido e os aparelhos 
culturais que cumprem determinadas “funções de partido”. 
As revistas não ligadas aos partidos políticos possuem, contudo, uma limitação 
adicional: elas não podem corresponder às necessidades meramente ideológicas na 
medida em que precisam também atender às necessidades comerciais: 
“Os leitores devem ser considerados de dois pontos de vista 
principais: 1. Como elementos ideológicos, ‘transformáveis’ 
filosoficamente, capazes, dúcteis, maleáveis à transformação; 2. 
Elementos ‘econômicos’, capazes de adquirir as publicações e de fazê-
las adquirir por outros (...) É observação generalizada a de que, num 
jornal moderno, o verdadeiro diretor é o diretor administrativo e não o 
diretor da redação” (Q. 14, §62, p. 1721). 
 
Desta forma, todo o trabalho cultural e educativo que caracteriza a função 
política das revistas corre o risco de perder-se na burocracia, já que se coloca a 
necessidade de um “técnico” financeiro para cuidar das atividades da redação, ou seja, 
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existe a possibilidade dos elementos econômicos sobrepujarem os elementos 
ideológicos. 
Disto depreende-se que, embora tenhamos dito no início desta discussão que 
determinadas organizações ou “instituições” como os jornais e revistas, não sejam

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