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REVISTA SÍSIFO ANO 2017 www.revistasisifo.com Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 2 Endereço para correspondência. Adress for correspondence: Revista Sísifo Site: www.revistasisifo.com / E-mail: sisiforevista@gmail.com Feira de Santana — Bahia — Brasil Revista Sísifo – Feira de Santana – n. 5, v. 1 (2014-) nº 5 maio/2017 Filosofia – Periódicos I Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 3 FEIRA DE SANTANA-BA nº 5 p. 1 - 234 Ano 2017 REVISTA SÍSIFO ANO 2017 www.revistasisifo.com CORPO EDITORIAL Yves São Paulo (Editor) Marcelo Vinicius (Editor) CONSELHO EDITORIAL Andreia A. Marin Bruna Torlay Denise Kloeckner Sbardelotto Dinameire Oliveira Carneiro Rios Eduardo Pellejero Luciano Donizetti da Silva Marcos Roberto Nunes Costa Nildo Viana Priscila Vieira Rodrigo Ornelas Rodrigo Araújo Tiago Medeiros Araujo Valdenésio Aduci Mendes Wanderley C. Oliveira Os artigos e demais textos publicados nesta revista são de inteira responsabilidade de seus autores. A reprodução, parcial ou total, é permitida, desde que seja citada a fonte. http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4795905P5 http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4731635E7 http://lattes.cnpq.br/2273605430845061 http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4469903Y4 http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4426527H6 http://lattes.cnpq.br/8110343630667185 http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4762199Z7 http://lattes.cnpq.br/3744231559402924 http://lattes.cnpq.br/5308121874637544 http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4469173J6 http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4744897U7 http://lattes.cnpq.br/1308306864571660 http://lattes.cnpq.br/1361181712920994 http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4794744T1 Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 4 sumário Editorial........................................................................................................6 DOSSIÊ: POLÍTICA, COMUNICAÇÃO E CULTURA NOAM CHOMSKY: propaganda e medo na política internacional Jayme Benvenuto..........................................................................................8 OPINIÃO PÚBLICA, HEGEMONIA E CULTURA NOS CADERNOS DO CÁRCERE DE A. GRAMSCI Luciana Aliaga, Andressa Lima da Silva....................................................24 MÍDIA COMO DISPOSITIVO DE SABER/PODER José Orlando Carneiro Campello Rabelo....................................................35 TODAS AS ERAS FORAM DA PÓS-VERDADE: um passeio pelo doublethink nosso de cada dia Arthur Aroha Kaminski da Silva.................................................................48 A MULTIDÃO NO TWITTER: a criação de memes com apropriação de fotografias Gabriel Malinowski.....................................................................................67 BELA, RECATADA E DO LAR: relações entre a prática discursiva sobre a mulher e a docilização dos corpos em Foucault Romário Duarte Sanches.............................................................................79 VIDA SERIAL, ÊXTERO-CONDICIONAMENTO E IDEOLOGIA: uma análise do mass media pela ótica de Sartre Vinicius dos Santos.....................................................................................96 ARTIGOS E ENSAIOS CRUZADA CONTRA A BOCA DO LIXO: saberes e discursos na imprensa Everton Behrmann Araújo.........................................................................114 http://www.revistasisifo.com/2017/05/noam-chomsky-propaganda-e-medo-na.html http://www.revistasisifo.com/2017/05/opiniao-publica-hegemonia-e-cultura-nos.html http://www.revistasisifo.com/2017/05/opiniao-publica-hegemonia-e-cultura-nos.html http://www.revistasisifo.com/2017/05/midia-como-dispositivo-de-saberpoder.html http://www.revistasisifo.com/2017/05/todas-as-eras-foram-da-pos-verdade-um.html http://www.revistasisifo.com/2017/05/todas-as-eras-foram-da-pos-verdade-um.html http://www.revistasisifo.com/2017/05/a-multidao-no-twitter-criacao-de-memes.html http://www.revistasisifo.com/2017/05/a-multidao-no-twitter-criacao-de-memes.html http://www.revistasisifo.com/2017/05/bela-recatada-e-do-lar-relacoes-entre.html http://www.revistasisifo.com/2017/05/bela-recatada-e-do-lar-relacoes-entre.html http://www.revistasisifo.com/2017/05/vida-serial-extero-condicionamento-e.html http://www.revistasisifo.com/2017/05/vida-serial-extero-condicionamento-e.html http://www.revistasisifo.com/2017/05/cruzada-contra-boca-do-lixo-saberes-e.html http://www.revistasisifo.com/2017/05/cruzada-contra-boca-do-lixo-saberes-e.html Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 5 O CORPO POÉTICO DA ATRIZ/AUTORA HELENA IGNEZ EM A MULHER DE TODOS Tatiana Trad..............................................................................................132 PRÁTICAS DISCURSIVAS ECONÔMICAS E SOCIOCULTURAIS SÃO COMPATÍVEIS? Rogério Faé...............................................................................................141 A ESCRITA COMO CUIDADO DE SI NA OBRA TARDIA DE MICHEL FOUCAULT Roberto Kennedy de Lemos Bastos..........................................................158 FOUCAULT, A HISTÓRIA DO PENSAMENTO E A GENEALOGIA: sobre uma nova política da verdade e os limites da ideologia e da dialética Priscila Piazentini Vieira...........................................................................171 UMA FILOSOFIA POLÍTICA PARA O BRASIL: Roberto Mangabeira Unger e o pensamento com sotaque Tiago Medeiros de Araújo.........................................................................192 ALCANCES E LIMITES DO CONCEITO DE SOCIEDADE CIVIL EM ANTÔNIO GRAMSCI Valdenésio Aduci Mendes.........................................................................207 REVISITANDO A UTOPIA: Sartre e o engajamento político-social da liberdade Luciano Donizetti da Silva........................................................................227 ENTREVISTA CONVERSA COM CARLA DAMIÃO: sobre filosofia e filme Rodrigo Araújo, Leidiane Coimbra...........................................................247 Regras para submissão de artigos..........................................................261 http://www.revistasisifo.com/2017/05/o-corpo-poetico-da-atrizautora-helena.html http://www.revistasisifo.com/2017/05/o-corpo-poetico-da-atrizautora-helena.html http://www.revistasisifo.com/2017/05/praticas-discursivas-economicas-e.html http://www.revistasisifo.com/2017/05/praticas-discursivas-economicas-e.html http://www.revistasisifo.com/2017/05/a-escrita-como-cuidado-de-si-na-obra.html http://www.revistasisifo.com/2017/05/a-escrita-como-cuidado-de-si-na-obra.html http://www.revistasisifo.com/2017/05/foucault-historia-do-pensamento-e.html http://www.revistasisifo.com/2017/05/foucault-historia-do-pensamento-e.html http://www.revistasisifo.com/2017/05/uma-filosofia-politica-para-o-brasil.html http://www.revistasisifo.com/2017/05/uma-filosofia-politica-para-o-brasil.html http://www.revistasisifo.com/2017/05/alcances-e-limites-do-conceito-de.html http://www.revistasisifo.com/2017/05/alcances-e-limites-do-conceito-de.html http://www.revistasisifo.com/2017/05/revisitando-utopia-sartre-e-o.html http://www.revistasisifo.com/2017/05/revisitando-utopia-sartre-e-o.html http://www.revistasisifo.com/2017/05/conversa-com-carla-damiao-sobre.html Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 6 EDITORIAL O ato de pensar é atravessado pelos modos de comunicação. Poder-se-ia até mesmo dizer que o ser humano já possui inerente a sua condição a possibilidade de se comunicar com os demais membros de sua espécie, mas também uma imensa partidos estrito senso podem cumprir esta função, é preciso dizer neste momento que estas “instituições” não são suficientes para substituir o partido – principalmente para as classes subalternas –, ou seja, não cumprem plenamente a função de partido, sua ação é restrita. Esta restrição também diz respeito aos aspectos específicos ligados à militância no partido, ou seja, a ação política direta não é um acessório, ela é central para elaboração de novas intelectualidades integrais, neste sentido, somente os partidos são o “crisol da unificação, de teoria e prática, entendidos como processo histórico real” (Q. 11, §12, p.1387). Dito de outra forma, a função de partido não substitui o partido, os termos não são intercambiáveis. Assim, o oposto também é verdadeiro, o partido, embora ligado à função cultural das revistas e jornais, não pode substituí-los e nem prescindir deles. Nenhum partido que tenha como projeto ser o divulgador de uma nova cultura pode dispensar a atividade jornalística, antes, ela devem ser parte constituinte da sua estrutura. CONSIDERAÇÕES FINAIS Os processos de hegemonia somente podem ser suficientemente apreendidos se os compreendermos por meio de suas formas diversas de exercício, a partir dos grupos em luta no interior das relações sociais de forças. Estas condições demonstram que as formas de exercício da hegemonia – e de lutas dos grupos subalternos pela sua conquista – exigem estratégias, organização política e discursos diversos. Compreendê- las então, enquanto processos pedagógicos – seja por meio dos grandes meios de comunicação de massa e suas relações indiretas com os partidos burgueses, seja por meio dos aparelhos de opinião ligados aos partidos das classes subalternas – é fundamental para perceber que a dominação não se limita ao âmbito econômico, mas só se efetiva porque existe uma base ideológica e cultural que a sustenta. Destarte, para compreender suficientemente as conexões complexas entre hegemonia e cultura é fundamental considerar tanto os processos que criam conformismo na sociedade civil por meio da difusão de concepções de mundo ligadas Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 33 ao status quo, quanto é importante refletir sobre os processos que se referem à organização e à formação da consciência crítica, isto é, a criação e difusão na sociedade civil dos aparelhos de opinião pública autônomos, criados e dirigidos pelas classes subalternas em sua diversidade. AUTORAS * Luciana Aliaga é Professora do Depto. Ciências Sociais/ CCHLA-UFPB e do Programa de pós-graduação em Ciência Política e Relações Internacionais – PPGCPRI/ UFPB. Grupo de pesquisa Materialismo e modernidade/ CCHLA-CCSA-UFPB/UFCG. ** Andressa Lima da Silva é Aluna do curso de Serviço Social/CCHLA-UFPB, bolsista PIBIC/ CNPq, integrante do grupo de pesquisa Materialismo e modernidade/CCHLA- CCSA-UFPB/UFCG. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS GRAMSCI, A. Quaderni del carcere: edizione critica dell’Istituto Gramsci a cura di Valentino Gerratana, Torino: Einaudi, 2007. GRAMSCI, A. “I giornale e gli operai”, 22 de dezembro de 1916. In Cronache Torinesi1913-1917, Sergio Caprioglio (org.). Roma, Giulio Einaudi Editore, 1980. BUCI-GLUKMANN, Christinne. Gramsci e o Estado. Rio de Janeiro: paz e terra, 1980. BIANCHI, A; ALIAGA, L. “Força e consenso como fundamentos do Estado. Pareto e Gramsci”. Revista Brasileira de Ciência Política, nº5. Brasília, janeiro-julho de 2011, pp. 17 – 36. FRANCIONI, Gianni. L’Officina Gramsciana: Ipotesi sulla struttura dei “Quaderni delCarcere”. Nápoles: Bibliopolis, 1984. MORAES, Denis. “Comunicação, Hegemonia e Contra-hegemonia: A construção Teórica de Gramsci”. Revista Debates, Porto Alegre, v.4, n.1, p. 54-77, jan.-jun. 2010. ALMEIDA, Jorge. “Relação entre Mídia e Sociedade Civil em Gramsci”. Revista Compolítica, n. 1, vol. 1, ed. março-abril, ano 2011. FERNANDES, Vívian de Oliveira N. “Reflexões sobre a obra de Gramsci para o campo da comunicação alternativa”. Extraprensa (USP) – Ano VI – nº 11 dezembro/2012. NOTAS [1] Para datação consultar FRANCIONI, 1984, p. 141. Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 34 [2] Para simplificação da citação do texto de Gramsci nos Quaderni del Cárcereutilizaremos a letra “Q”, seguida do parágrafo e da página de referência. [3] Sobre isto consultar BIANCHI; ALIAGA, 2011. [4] Sobre este assunto consultar BUCI-GLUCKSMANN, 1980. Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 35 Dossiê MÍDIA COMO DISPOSITIVO DE SABER/PODER José Orlando Carneiro Campello Rabelo* RESUMO: O presente artigo tem como objetivo discutir mídia (veículo da ‘cultura de massas’) como um dispositivo de saber/poder partindo da noção de genealogia. A centralidade do texto reside na teoria de Foucault destacando os processos de uma genealogia, a noção de modos de subjetivação, nuances do saber/poder e finalmente a noção de dispositivo convidando o leitor a refletir: não seriam os veículos de comunicação as maiores fontes de propagação e manutenção das ideologias em nosso meio? Foucault usa a “genealogia do saber-poder”, para discorrer sobre a possibilidade de construção dos saberes através de determinadas condições externas ao próprio saber, assim, congrega em sua análise, elementos relacionais, históricos e políticos a outros referendados no poder. O poder se exerce de forma difusa e descontínua criando vetores ou forças que se dissipam em direções das mais diversas, o saber seria um canalizador dessas forças ou relações de poder. Assim, o ‘saber cultural’ pode ser compreendido como qualquer ação social que tenha relevância para determinada significação e a mídia seria veículo de difusão desta cultura, uma parte crítica da ‘estrutura’ das sociedades modernas. O conhecimento é uma relação estratégica, generalizante, é a luta singular do homem com o objeto que ele quer dominar, saber, em suma é poder, resultado de lutas constantes e cortantes. Somos compelidos a produzir “verdades” pelo poder que a exige e que dela necessita para funcionar. As verdades são reguladas pela disciplina e por ela observamos as relações de poder operando sobre os corpos, tornando-os dóceis e úteis. O fato de não identificarmos diretamente a “fonte” destes discursos, pode significar que elas já tenham sido tão fortemente incorporadas ao senso comum que não causa mais estranhamento. Assim, para além da origem do discurso destacamos aqui sua Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 36 propagação, seu alcance ilimitado e seu potencial, proporcionados diretamente pelo aparelho midiático como mais um elemento de dominação. Palavras-chave: Genealogia; saber-poder; modos de subjetivação; Foucault; mídia. PARA INICIAR A CONVERSA A dita “cultura de massas” é tema recorrente em textos de diversas áreas constituindo, até certo ponto, um elemento central nos debates acerca da sociedade atual. Roland Barthes (2001), em seu clássico “Mitologias”, desvela a exaustão os processos que ancoram e escondem as ideologias que sustentam estas construções, garantindo-lhes validade e assegurando degredo a todo aquele que aponte sua falibilidade. Aquele que se presta a desvendar estes mitos sociais contidos nestas culturas é chamado por Barthes de mitólogo, e de acordo com o autor só lhe resta um posicionamento sarcástico e descrente em mudanças que estrategicamente o aloca à margem da sociedade. Na escrita deste texto me posicionarei como um destes seres, um mitólogo, embora não recorra ao pensamento deste autor não posso deixar de mencionar sua genialidade e contribuição. O texto pretende constituir-se como uma provocação ao leitor foucaultiano e aquele que por esta leitura se interessa ao questionar a possibilidade de compreender a mídia (veículo da ‘cultura de massas’) como um dispositivo de saber/poder partindo da noção de genealogia. Complexa é a tarefa em tomar o arcabouço teórico de Michel Foucault como base. A dificuldade está para além das complexidades da leitura e aproximação de suas ideias da realidade brasileira demarcada por desordem e indisciplina. Igualmente transcende as discussões da ausência de um “método”, nos cânones clássicos de metodologia científica, o que consiste em um perigo teórico em apontar direcionamentos diferentes do original. Aparentemente o maior desafio nesta tarefa consiste em manejar termos consagrados por um modismo intelectual e universitário no mínimo medíocre sem fazer coro com esta massa de ‘pensadores’ que utilizam jargões deste teórico de forma aleatória, lhes garantindo um certo status ou ar de mistério. Parece que termos clássicos do dicionário Foucaultiano estão, no caso de alguma parte da produção brasileira, saturados de sentidos e contrassensos. Assim, é fundamental buscar um fio condutor que nos leve a uma possível cartografia que embora volátil e em constante processo de metamorfose (como toda cartografia deve Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 37 ser), do cenário brasileiro para que a aproximação destes conceitos não aponte verdades, mas condições de possibilidades. Assim, este trabalho se propõe didático, enxuto e despretensioso. O objeto social mídia não será foco da discussão, a centralidade é da teoria de Foucault destacando os processos de uma genealogia, a noção de modos de subjetivação, nuances do saber/poder e finalmente a noção de dispositivo convidando o leitor a refletir: não seriam os veículos de comunicação as maiores fontes de propagação e manutenção das ideologias em nosso meio? SOBRE A NOÇÃO DE GENEALOGIA Foucault apresenta em sua obra não um método no sentido clássico (estruturalista), mas uma analítica de flexibilidade e mobilidade que permite reconstruir a história de determinado saber em seus processos de desenvolvimento descontínuo. O pensamento Foucaultiano sofre um profundo corte epistemológico, o que melhor o teria caracterizado como pós-estruturalista. Sua proposta de método se inicia em um período denominado de “arqueológico” em que busca uma análise do sujeito enquanto fundado por um sistema autônomo, desvinculado de possíveis relações entre os saberes e as relações políticas e econômicas, neste momento ele objetivava pesquisar e “generalizar inter-relações conceituais capazes de situar os saberes constitutivos das ciências humanas, sem pretender articular as formações discursivas com as práticas sociais” (FOUCAULT, 1979, p. 09). A análise arqueológica teria como finalidade e fundamento inter-relacionar os saberes apontando o surgimento das ciências humanas, enquanto resultantes de uma rede conceitual “Digamos que a arqueologia, procurando estabelecer a constituição interna dos saberes privilegiando as inter-relações discursivas e sua articulação com as instituições, respondia a como os saberes apareciam e se transformavam” (FOUCAULT, 1979, p. 10). Seria uma história das ideias, uma escrita daquilo que já foi escrito, abandonando a investigação de uma origem e buscando descrever as regras que regem as práticas discursivas daquilo que chamamos de ciência. Em outro momento o teórico, lançando mão de uma forte influência niilista do pensamento de Nietzsche, discute a “genealogia do saber-poder”, em que discorre sobre a possibilidade de construção dos saberes através de determinadas condições externas ao próprio saber. Neste momento, congrega em sua análise elementos relacionais, Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 38 históricos e políticos a outros referendados no poder. Assim possibilita a compreensão da produção dos saberes sobre o homem, além da constituição dos sujeitos formados por relações do discurso, sendo necessário compreender o que seriam tais práticas discursivas e de poder (FOUCAULT, 1979). Para compreender o que é genealogia do poder nesta teoria, será imprescindível apreender o pensamento de Nietzsche com relação à genealogia. A genealogia de Nietzsche não busca a origem histórica, pois a procura de uma origem implica a vivência de uma “essência” ou de uma “verdade” que está esperando para ser descoberta, compõe-se como algo arrebatado que se deu em determinado momento. Esta genealogia se propõe a analisar as condições de possibilidades que orientam determinado conjunto de forças a produzir certo valor, e quais direcionamentos este “valor” imprime às vivências (BOUYER, 2009). A relação da história para a genealogia será construída de rupturas e descontinuidades. Na analítica de poder, Foucault preocupa-se em estudar o porquê (ou o como?) do domínio de um saber, quais condições externas proporcionam o domínio de um determinado saber. É por meio da análise das (des)construções dos saberes, que se pretende “explicar sua existência e suas transformações situando-o como peça de relações de poder ou incluindo-o em um dispositivo político, que em uma terminologia nietzschiana Foucault chamará genealogia” (SOUZA; MACHADO & BIANCO, 2008, p. 13). Será através da genealogia que Foucault, na apreciação dos “diagramas de força” irá se dedicar a ampliar seu próprio pensamento com relação ao poder e suas manobras. Neste sentido poder não é um objeto ou um sujeito, mas uma relação ou melhor uma rede de relações. Portanto, o poder em seu exercício vai muito mais longe, passa por canais muito mais sutis, é muito mais ambíguo, porque cada um de nós é, no fundo, partícipe de certas relações de poder e, por isso, carrega ou veicula o poder. Observamos que temos dois conceitos centrais que nortearão nossas discussões, são eles: as noções de saber-poder e o discurso. Estes elementos deverão compor uma cadeia de pensamentos que irá resultar em nosso guia, ou melhor, na analítica que ora propomos. NUANCES DO SABER-PODER: A MÍDIA COMO DISPOSITIVO Conforme apontamos anteriormente, Foucault faz uso da genealogia para investigar como surgem e se transformam os saberes. Para Foucault o poder é visto Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 39 como um exercício e o saber uma regra. O poder se exerce de forma difusa e descontínua criando vetores ou forças que se dissipam em direções das mais diversas, o saber seria um canalizador dessas forças ou relações de poder. O saber não detém nenhuma experiência “natural” ou inovadora, porque o enunciável, aquilo que se manifesta, está vinculado às relações de poder, que são por elas mesmas atualizadas gerando estratos (SOUZA; MACHADO & BIANCO, 2008, p. 13). O “saber”, em Foucault, rompe, de início, com a tradição grega, que associava o desejo de conhecer (saber) como natural, ou inato a um sujeito que seria seu detentor, em uma unidade perfeita, com argúcia de observar o movimento que leva da simplicidade à complexidade. O conhecimento se reconheceria nas coisas em uma relação Dialógica. Foucault discorda veementemente disso ao apontar que o conhecimento é fruto da astúcia, uma invenção que não teria uma “origem” natural. Aqui abrimos um parêntese para discutir a ascensão e em muitos casos prevalência do uso da cultura como espaço de atravessamento de tudo aquilo que é social, garantindo-lhe o espaço de centralidade em estudos de ciências humanas e sociais. Neste trabalho abordaremos cultura como um produto social desenvolvido e ancorado em um espaço de permanentes disputas de poder, portanto instável. Um recorte fundamental é de que aqui tratamos da produção cultural midiática, e de nenhuma outra. Hall (1997) serve-nos como principal fonte de referência ao passo em que conceitua como cultural qualquer ação social que tenha relevância para determinada significação e acrescenta que a mídia, veículo de difusão desta cultura, seria uma parte crítica da ‘estrutura’ das sociedades modernas. Ao afirmar este posicionamento o autor define que a distinção marxista de uma base econômica e uma superestrutura ideológica seriam insustentáveis na atual conjuntura. Neste espaço de debate propomos: em que medida a mídia funciona como mero ‘veículo’ de transmissão da cultura dita de massas? Em algum sentido é possível manipula-la para atender a interesses de grupos sociais específicos? Uma noção brutalmente dominante, passada e reforçada por veículos de comunicação em massa é de que a mídia seria um reflexo de anseios e manifestações populares. Não cabe assim, discutir o limitado acesso popular a um repertório ‘cultural’ diversificado, sendo bombardeada diuturnamente por produtos midiáticos esvaziados de sentido e profundamente alienantes? Ao apontar a incongruência em separar base e superestrutura social Hall (1997) não nega os conteúdos ideológicos ligados aos discursos da sociedade, longe disso, Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 40 chama atenção a dificuldade de percebê-los de tão imbricados encontram-se em diversos produtos desta mídia, com destaque ao alcance destas informações e saberes: “A revolução cultural que aqui estamos tentando delinear em suas formas substantivas é igualmente penetrante no nível do microcosmo. A vida cotidiana das pessoas comuns foi revolucionada — novamente, não de forma regular ou homogênea” (HALL, 1997, p.04). Esta conceituação indica que a frágil noção de supostas identidades depende da compreensão dos processos de identificação que permitem a apropriação dos discursos culturais pelas subjetividades (ou por modos de subjetivação). Desta forma podemos afirmar que a constituição dos sujeitos se dá através da cultura repassada pela mídia, nunca fora dela, a mídia ganha força como uma das principais condições (condicionantes?) de possibilidades. Os modos de subjetivação dependem, portanto, dos ‘conhecimentos’ e saberes que a elas são acessíveis, sendo parcialmente produzidas de modo dialógico ‘no’ e pelo discurso. O conhecimento como toda invenção, demanda de um tempo e lugar próprios, e o que o engendra é seu motivo: uma maldade, originada da batalha entre os instintos. Ele tem como objetivo dominar as coisas: “é contra um mundo sem ordem, sem encadeamento, sem formas, sem beleza, sem sabedoria, sem harmonia, sem lei, que o conhecimento tem de lutar” (FOUCAULT, 2009, p. 18). Nada liga o conhecimento à natureza, portanto entre o conhecimento e as coisas não há continuidade, mas diferença. O conhecimento dobra as coisas em uma relação que busca destruí-las, ele quer dominá-las. O sujeito, demarcado pela guerra, é fruto da luta entre instintos, assim não há sujeito uno (a unidade não tem partes). Conhecer é uma relação estratégica, generalizante, é a luta singular do homem com o objeto que ele quer dominar. Saber, em suma é poder, resultado de lutas constantes e cortantes: “É que o saber não é feito para compreender, ele é feito para cortar” (FOUCAULT, 1979, p. 28). Compreender esta noção de saber passa pela apreensão de dois conceitos essenciais: a ordem do discurso e o conceito de regime de verdade. Compreendendo o saber em si, partimos para suas condições de produção e circulação, sua economia, ou, conforme define Foucault (2005) em ‘ordem do discurso’: [...] suponho que em todas as sociedades a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e terrível materialidade (FOUCAULT, 2005, p. 9). Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 41 O Discurso é aquilo pelo que se luta, o poder do qual queremos nos apoderar. Devemos, portanto considerar que não existe discurso neutro, desinteressado, ele estaria intimamente ligado a desejo e poder. Cabendo a ressalva: diferente do que pontua a psicanálise, o discurso não é apenas o que manifesta ou esconde o desejo, ele é, em si, o próprio objeto de desejo e objeto de luta (lutamos para dominar o discurso) (BOUYER, 2009). Neste cenário de lutas constantes cria-se um regime, ou ordem, que seleciona “quais discursos” são ou não válidos ou interessantes, há procedimentos de controle internos e externos nesta seleção. Os procedimentos internos são exercidos do discurso sobre si mesmo a título de ordenação, classificação. Visam o controle da aparição do discurso fixando regras de surgimento e significação (por meio da disciplina), e de sua circulação ou funcionamento, qualificando os sujeitos que falam e não permitindo sua permutabilidade, excluindo todo conteúdo inassimilável como heresia. Os procedimentos externos de controle do discurso, também falados como procedimentos de exclusão, orientam aquilo que entendemos como regime de verdade (VEIGA-NETO, 2007). Então como se dá e como o discurso pode ser controlado? DISCURSOS E OUTROS DIZERES Foucault (1986), no estudo “Arqueologia do saber” define discurso como o conjunto de enunciados que provém de um mesmo sistema de formação; assim se poderia falar de discurso clínico, discurso econômico, discurso da história natural, discurso psiquiátrico (e por que não um discurso midiático). Daí decorre em Foucault a noção de dispositivo e, finalmente de prática que enlaça a análise do discursivo com o não discursivo, ele utiliza a noção de linguagem para definir o que entende por discurso, por práticas discursivas. Diferente de uma ação concreta e individual de pronunciar este ou aquele discurso, a prática discursiva constitui-se como todo conjunto de enunciados que formariam o fundamento mesmo das ações. Isso significa que nossas práticas discursivas formam, sistematicamente, o mundo de que falam, nossa maneira de compreendê-lo, de significá-lo (VEIGA-NETO, 2007) O discurso excede a menção a “coisas”, há mais além do que palavras ou frases, não se pode apreender um acontecimento de forma completamente neutra. Para Foucault (1986) analisar o discurso seria compreender as relações históricas, de práticas Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 42 visíveis que estão presentes nos discursos, será compreender as falas como práticas sociais inexoravelmente vinculadas às relações de poder. Foucault (2005) define que existiriam diversos mecanismos de controle externo do discurso. Entre eles estariam a restrição da enunciação ou interdição, que pode ser definida em linhas gerais como: “não se tem o direito de dizer tudo (...) que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa” (FOUCAULT, p. 9, 2005). Este mecanismo estaria respaldado em três principais modalidades: o privilégio de quem fala, o tabu do objeto e o ritual da circunstância. Outro mecanismo seria a rejeição do discurso, na qual se utiliza um determinado aparato do saber para apontar a inadequação daquela fala (Foucault utiliza como exemplo a loucura). Finalmente a vontade da verdade, um procedimento de exclusão, arbitrário, ancorado institucionalmente e eminentemente histórico. Ela “administra” nossa vontade de saber apoiada em toda estrutura de livros, escolas, laboratórios, universidades, orientando formas de valorização, ou não, formas de distribuição e atribuição exercendo coerção sobre os demais discursos. Neste prisma, não se deve simplesmente aceitar mais este discurso, o de Foucault, sem questioná-lo. Oliveira (2011), ao analisar o uso acadêmico do “Vigiar e punir” de Foucault no Brasil, destaca a incongruência em utilizar este referencial indistintamente e amplamente diante da complexa realidade brasileira, segundo ele, a despeito do cenário Francês e Inglês (à época dos escritos), em que houveram a generalização dos dispositivos da escola, hospital, fábrica e prisão, este fenômeno nunca foi observado em nosso meio. Para este autor a sociedade brasileira é antes de tudo indisciplinada, argumento defendido diante dos altíssimos índices de violência que presenciamos. Portanto, se estas instituições não atingem sua plenitude em nosso meio não seria possível pensarmos que a mídia ocupa grande parte deste lugar? Alguns discursos funcionariam regendo os demais, funcionando como verdade, com regras de enunciação, técnicas de obtenção, definição de um estatuto próprio de quem gera e define a verdade. Portanto, poder e verdade (saber-poder) fundem-se em uma relação difusa e circular em que o poder produz e sustenta a verdade, que por sua vez produz os efeitos do poder. Assim a verdade pode ser conceituada discursivamente, nas palavras de Foucault: “Entendendo, por verdade, [...] o conjunto das regras segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribui aos verdadeiros efeitos específicos de poder” (FOUCAULT, 1979, p. 13). Ele diz também que há uma luta em torno do estatuto da verdade. Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 43 A partir deste “regime da verdade-poder” seria possível compreender as maneiras de constituição da própria verdade incitada pela política e economia, difundida por um imenso conjunto de instituições e aparelhamentos (mídia como elemento central na atualidade), objeto de confrontos sociais, e eminentemente centralizada pelo discurso científico. Essa “verdade” estará presente na fundação do sujeito. Observam-se três dimensões autônomas, mas que se implicam constantemente na constituição do indivíduo: saber, poder e si. Saber é determinado pelo visível e o enunciável. O poder é determinado por meio das relações de forças. O si é determinado pelos processos de subjetivação. Assim, não existem sujeitos, mas processos de subjetivação. A subjetividade anuncia relações de poder-saber, que modelam, alteram, que em suma, dobram e desdobram o indivíduo, ao passo em que irrompem com a concepção intimista de subjetividade. Portanto, para Foucault, inexiste subjetividade, o que existem são processos de subjetivação que seriam expressões da história de nossa época demarcadas em nós mesmos, o que chamamos de personalidade. A própria noção de que somos únicos e nos diferenciamos de todo restante da população do mundo já seria em si um reflexo de nosso momento atual: Nós somos atravessados por toda uma complexa teia de aspectos desejantes, políticos, econômicos, científicos, tecnológicos, familiares, culturais, afetivos, televisivos... Entretanto, cada um de nós tem uma história de vida que é singular, mas que não é interior (SOUZA; MACHADO & BIANCO, 2008, p. 21). Mas como e de onde provêm estas verdades? Voltando o olhar para o cotidiano observamos um interessante aspecto do nosso cenário: não nos incluímos no rol dos países classicamente leitores de material impresso. Ao mesmo tempo somos destacadamente consumidores de mídia televisiva e virtual, um dos países que mais consome internet no mundo. Em outras palavras, a principal forma de se manter ‘informado’ na atualidade provém da mídia, ela dita nossas verdades. Concluindo, é verificado que há três concepções fundamentais com relação ao poder em Foucault: a primeira é que o poder tem como característica ser negativo e positivo, desta maneira forma o indivíduo. A segunda é que o poder é um exercício e não deve ser possuído. A terceira, o poder transpõe a dicotomia dominante e dominado. Foucault irá instituir uma analítica de poder, e não uma teoria, pois não busca fixar definições a procura de verdades, mas acompanhar as metamorfoses das relações de poder. O poder não é ele que se exerce, portanto não há uma essência, nem Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 44 detentores do poder-saber, ele se manifesta de forma difusa em uma intricada relação de forças. Sendo assim, o poder cria relações de força, jogos, regras e dispositivos que se revelam nas práticas sociais. Em resumo, para Foucault “o poder não existe”, o que existe são relações e práticas sociais onde o poder é exercido e nos discursos se torna visível em seus jogos e manobras (SOUZA; MACHADO; BIANCO & SOUZA 2007). PODER E SEUS DISPOSITIVOS Para discutirmos os mecanismos que instituem o poder como verdade, ou seja seus dispositivos, devemos compreendê-lo em ação, seja nos discursos que o produzem, seja nos movimentos a que somos vitimados. Não se trata de descrever o poder em si, mas de buscar encontrá-lo na intensidade e constância de determinadas relações (FERREIRINHA & RAITZ, 2010). Somos compelidos a produzir “verdades” pelo poder que a exige e que dela necessita para funcionar. Estaríamos condicionados a dizer ou encontrar as “verdades” do poder, sendo este caracterizado como uma ação sobre ações (FOUCAULT, 1999). Estas verdades são, segundo Foucault, reguladas pela disciplina, compreendida aqui como uma maneira de punir, como um micro modelo de um tribunal. É por esta disciplina que observamos as relações de poder operando sobre os corpos, tornando-os dóceis e úteis, estejam produzindo uma tecnologia sobre a vida que agrupa os efeitos do convívio em coletividade (FOUCAULT, 1999). Objetivando compreender estas dinâmicas deveremos procurar possíveis homogeneidades produzidas no fundo de determinada episteme. Foucault usa a palavra episteme para designar - o conjunto básico de regras que governam a produção de discursos numa determinada época, em outras palavras, episteme designa um conjunto de condições de princípios, de enunciados e regras que regem sua distribuição, que funcionam como condições de possibilidade para que algo seja pensado numa determinada época. Uma episteme funciona informando as práticas (discursivas e não-discursivas) e dando sentido a elas; ao mesmo tempo, a episteme funciona também em decorrência de tais práticas. (VEIGA-NETO, 2007, p. 115/116). Estas condições de possibilidade orientam as manobras e jogos de poder, atuando na subjetivação, na constituição mesma dos sujeitos, assim compreende-las em sua multiplicidade de dimensões e representações é estruturante para a compreensão do sujeito e do contexto social. Estes corpos “conformados e docilizados”, forjados em Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 45 meio às ações do poder, são estabelecidos na e pela disciplinarização que bloqueia o poder em ação naquele sujeito. Para compreendermos os sujeitos devemos atentar que cada sociedade em cada tempo tem seu regime de verdade, seus discursos que se fazem funcionar como verdadeiros e norteiam as relações. As formas através das quais cada um é sancionado, as técnicas e jogos utilizados na aquisição das “verdades”, o status daquele que é autorizado a “dizer o que é verdadeiro” nos possibilita uma aproximação compreensiva dos funcionamentos destas relações (FERREIRINHA & RAITZ, 2010). Considerando que a linguagem se apresenta como fortemente ligada a sociedade, Foucault (1999), compreende que estes discursos já circulam há muito tempo, e analisando-os seria possível visualizar como as conexões estabelecidas entre as palavras e as coisas, são tênues, reflexos de regras inerentes às práticas discursivas. As práticas que induzem a internalização inquestionável destas verdades, chamadas de tecnologias do eu, são oriundas, portanto de tecnologias do poder que produzem as subjetividades. A analítica genealógica Foucaultiana possibilita compreender estas dinâmicas nos afastando de uma visão reducionista da sociedade. Buscando nos (re)aproximarmos da ideia de “genealogia” Foucaultiana, partimos da noção de dispositivo, e de como este é operacionalizado nas relações de dominação e subordinação da sociedade, especificamente naquelas ligadas a mídia na comunicação da cultura de massas. Centramo-nos em três características fundamentais deste fenômeno: atender a elementos históricos; apresentar-se como uma conceituação multilinear e dinâmica; ter vinculação a outros dispositivos contemporâneos a ele, em especial aqueles ligados as diversas ideologias e a ‘necessidade’ de mantê-las. Não é precipitado afirmar que, mesmo a um olhar superficial, nosso objeto de discussão atende facilmente aos três requisitos postos. Em uma sociedade de suposto controle não caberia buscar na religião, política ou escola o germe destas orientações, o poder é difuso existindo múltiplos dispositivos de controle na sociedade em que vivemos. O fato de não identificarmos diretamente a “fonte” destes discursos, pode significar que elas já tenham sido tão fortemente incorporadas ao senso comum que não causa mais estranhamento. Assim, para além da origem do discurso destacamos aqui sua propagação, seu alcance ilimitado e seu potencial como mais um elemento de dominação. CONSIDERAÇÕES FINAIS Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 46 Não chegamos, e talvez nunca cheguemos, a conclusões definitivas (em assunto algum), entretanto, caso o texto desperte inquietação ao leitor certamente seu objetivo terá sido alcançado. A guisa de considerações cabe destacar que a teoria Foucaultiana vista até aqui nos orienta a pensarmos que as práticas discursivas ocorrem em um contexto social e, portanto, não estrito ou determinado a esta ou aquela relação, trata-se de uma complexa teia como esquemas e jogos de poder. Para se tornar sujeito a pessoa se ‘sujeita’, e esta sujeição se dá nos processos de subjetivação através de verdades ancoradas em saberes que respondem ao poder, que se ajustam para objetivos maiores de controlar corpos e vivências, criando o mais permanentemente possível disposições sociais. Reforçamos assim, a leitura de que pode haver a utilização da posição privilegiada do discurso midiático como um dispositivo. Esta possibilidade se apresenta quando atentamos a conceituação multilinear das posições defendidas amplamente pelos veículos de comunicação, em especial nos desdobramentos e alcance de toda uma imbricada trama ideológica, observamos sua inter-relação a elementos históricos e suas vinculações a outros dispositivos. Destacamos ainda que, especialmente no caso brasileiro, poucos ‘sujeitos’ detêm o controle da mídia (destaca-se também uma igreja no caso televisivo). O que temos como resultado é uma nova idade das desigualdades caracterizada por uma massa de ‘incluídos’ em um universo informacional abertamente manipulado. Práticas discriminatórias são produzidas e reproduzidas em velocidade inimaginável e reforçadas a exaustão. Uma fábrica de valores, de uma nova ordem moral, funciona a todo vapor reforçando, sob o véu obscuro do ‘politicamente correto’, a diminuição da ação social do Estado sob o pretexto de livrar a população da corrupção (ainda que não se esclareça como estes elementos estão associados). O discurso neoliberal se aproveita do clássico estado de mal-estar brasileiro solapando direitos adquiridos e fortalecendo as elites, que em nosso país ainda estão subordinadas a uma ‘coroa’ (um bom exemplo de pós-colonialismo invertido). Ao ‘mitólogo’ só resta a existência cínica diante de tais constatações. Creio, porém que o cinismo e mesmo o sarcasmo não precisam, nem devem, ser vividos em silêncio. Se não for possível romper as relações de subordinação, discriminação e subalternidade ao menos as apontemos e multipliquemos assim o número de inquietos, se não é uma solução ao menos sirva de lenitivo. Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 47 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARTHES, R. Mitologias. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. BOUYER, G.C. O método da genealogia empregado por Foucault no estudo do poder saber psiquiátrico. Memorandum, 16, 64-76, 2009. Acesso em13 de Março de 2017, disponível em: FERREIRINHA, I. M. N., RAITZ, T. R. As relações de poder em Michel Foucault: reflexões teóricas.Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 44, n. 2, abr, 2010. Acesso em13 de Março de 2017, disponível em:. FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. __________.A Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense, 1986. __________. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999. __________.A ordem do Discurso. São Paulo: Loyola, 2005. __________.A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro, 2009. HALL, S. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais do nosso tempo. Educação & Realidade, v. 22, n° 2, jul./dez., p. 17-46, 1997. OLIVEIRA, L.Relendo ‘Vigiar e Punir’. In: DILEMAS – Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, v. 4, n. 2. Rio de Janeiro: IFCS – UFRJ, 2011. Acesso em02 de Abrilde 2017, disponível em: . SOUZA, E. M. DE, MACHADO, L. D. E BIANCO, M. DE F. O homem e o pós- estruturalismo foucaultiano: implicações nos estudos organizacionais.Organizações & Sociedade. Salvador, v. 15, n. 47, 71-86,dez, 2008. Acesso em02 de Abrilde 2017, disponível em:http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1984-92 VEIGA-NETO, A. Foucault e a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. AUTOR *José Orlando Carneiro Campello Rabelo é Docente do Centro Universitário Tabosa de Almeida – ASCES UNITA. Doutor em Psicologia Clínica – UNICAP; Mestre em Psicologia Social – UFPE; Militante dos Direitos Humanos, psicólogo, professor e pesquisador. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a16/bouyer01.pdf http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1984-92 Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 48 Dossiê TODAS ERAS FORAM DA PÓS-VERDADE: um passeio pelo doublethink nosso de cada dia Arthur Aroha Kaminski da Silva* Resumo: Este artigo visa se contrapor à algumas afirmações que surgiram no início dos anos 2000, mas que se proliferaram em meios midiáticos quando do anúncio do termo post-truth como palavra do ano de 2016 pelo grupo Oxford dictionaries. Tais afirmações dão conta de que viveríamos, hoje, no século XXI, a “era da pós-verdade”. A proposta de contraposição a estas alegações se dá, aqui, pelo enfileiramento de alguns exemplos contidos em narrativas ficcionais que demonstrarão que a prática das políticas da pós-verdade preexistem, em muito, o século XXI. A exposição se baseará no cruzamento de informações e conceitos contidos em obras como 1984 (de George Orwell), Matrix (das irmãs Wachowski), e Contos Amazônicos (de Inglês de Sousa), com as proposições teóricas sobre a relação entre verdade, ficção e política como elaboradas por autores como Pierre Bourdieu, Jacques Rancière, Juan José Saer, Umberto Eco, entre outros. Palavras-chave: Pós-verdade, doublethink, ficção, realidade. 1 INTRODUÇÃO: da ideia de pós-verdade Antes de mais nada é preciso que eu admita que o passeio a que invito você hoje, leitor, tem um objetivo. É uma proposta de contraposição à afirmações que se proliferaram em meios midiáticos na passagem do ano de 2016 para 2017, no sentido de Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 49 alegar que vivemos, hoje, a “era da pós verdade”.[1] Estes textos retomam a abordagem da questão como proposta por Ralph Keyes, em seu livro The post-truth era, publicado em 2004. E são impulsionados pela declaração do Oxford dictionary de que o termo post-truth foi eleito a palavra do ano de 2016.[2] E pelos contextos doBrexit, (como foi apelidada a saída do Reino Unido da União Europeia), e da eleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos da América. Eventos ocorridos no mesmo ano e que se mostraram ricas fontes de exemplos da política cultural que hoje chamamos políticas da pós-verdade. A pós-verdade, como nos explica o dicionário Oxford é um adjetivo que “se relaciona ou denota circunstâncias em que fatos objetivos são menos influentes em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais”.[3] Ele não se refere necessariamente à falsificação da verdade (embora possa também passar por isso), mas mais especificamente à situações em que a “verdade” ou o “fato” é tido como pouco relevante. Ou seja, algo a que todos estamos habituados, certo? Vemos (e fazemos) isso diariamente, tanto no plano político quanto no pessoal. É uma prática humana atemporal. Daí a minha contraposição à ideia de que vivemos na “era da pós verdade”, como propõe os textos que citei no primeiro parágrafo. Por contraposição, caro leitor, não pretendo dizer que discordo do fato de vivermos numa era de pós-verdade. Mas discordo, sim, de que este momento da história humana seja o ápice desta política cultural. Minha contraposição se baseará na defesa de que, em fato, esta é uma política cultural que existiu e se manteve em uso constante e corrente em toda a história humana. Que ela é parte da nossa própria capacidade de construir conhecimento. Em suma que, para bem ou para mal, todas as eras foram da pós-verdade. E que este “novo termo” - visto que data do final do século XX -,[4] é apenas uma nova roupagem para uma questão que sempre foi importante para a Filosofia, a História, a Literatura, e diversas outras áreas enquanto disciplinas. Para defender este posicionamento é que o convido a me acompanhar neste passeio. Que se trata de uma caminhada em forma reflexiva e textual por algumas narrativas ficcionais que tocam, de alguma maneira, na questão da política da pós- verdade. Admito também que a seleção das narrativas ficcionais que aqui abordaremos se deu de maneira arbitrária – leia-se, elas estão aqui presentes porque eu quis assim -, e poderiam ter sido facilmente outras a servirem de exemplos para esta discussão. Desta forma, citarei aqui algumas obras literárias que me apetecem, levando você leitor a comigo margear os rios amazônicos e conviver com alguns dos medos da população Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 50 ribeirinha paraense do fim do século XIX, através do conto Voluntário, de Inglês de Sousa. A se rebelar e sofrer junto com Winston ao descobrir a extensão e poder da prática do doublethink no romance distópico 1984, de George Orwell. E a refletir sobre a decisão de Cypher, que no filmeMatrix das irmãs Wachowski levanta a questão: é preferível encarar a dureza da realidade, ou viver confortavelmente nas ilusões da caverna do mito platônico, como o personagem conscientemente escolheu? Ademais, para nos acompanhar em nossas trajetórias ficcionais ao longo deste artigo, irei propor o cruzamento destas narrativas com questões teóricas sobre a relação entre realidade, ficção e política conforme propostas por autores como Pierre Bourdieu, Jacques Rancière, Juan José Saer, Umberto Eco, entre outros. Agora, feitos estes esclarecimentos e introdução, comecemos nossa caminhada. 2 DO MITO DAS IDENTIDADES NACIONAIS, E DAS UTILIDADES E EFEITOS DESTAS FICÇÕES O primeiro texto que eu gostaria de abordar é o conto Voluntário, texto presente no livro Contos Amazônicos, de Inglês de Sousa.[5] Este conto é ambientado na província do Grão-Pará, Amazônia brasileira, e ronda a questão do alistamento militar forçado praticado pelo Império Brasileiro à sua população durante o período dos conflitos da Questão Platina, mais especificamente na Guerra do Paraguai. O texto inicialmente foca na descrição da rotina de uma tapuia,[6] dona Rosa, uma viúva que vive com seu único filho vivo, Pedro, em uma casa muito simples na beira do rio Amazonas. Eles vivem como a grande maioria dos tapuios “colonizados”: em condição de pobreza, e sobrevivem à custa do trabalho do filho, que é pescador, e do próprio trabalho de Rosa como tecelã. Sendo estas as fontes de alimento e renda da família, que é descrita como feliz em sua vida bucólica e contemplativa. As primeiras menções ao Império vêm de maneira banal nesta parte: primeiro que o filho da tapuia é xará do Imperador. E depois conta-nos o narrador que dona Rosa dormia numa rede ornamentada com a coroa brasileira, obra de “ingênuo gosto” (SOUSA, 2005, p.24) da própria tapuia. É de um simbolismo muito forte a imagem da velha índia “dormindo ingenuamente nos braços do império”, visto o que (como veremos) se sucede no conto, e pela relação com a imagem produzida no fim, da índia cantarolando uma ode a D. Pedro II, anestesiada já após sua tragédia pessoal.[7] Pois Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 51 após a pacata introdução nos é apresentado o contexto da guerra (SOUSA, 2005, p. 26- 27), e são descritos os efeitos iniciais da deflagração do conflito na sociedade amazonense: a empolgação das classes mais favorecidas, e o medo do “povo miúdo”. É-nos narrada brevemente, então, a campanha nacional operada pela monarquia brasileira em busca de voluntários para lutar na Guerra do Paraguai. E a ironia do uso do termo “voluntário” que intitula o conto, e que o Império dizia buscar, logo se faz muito visível. Já que, em fato, o que ocorria era um alistamento forçado, ou mesmo uma campanha de rapto de jovens de famílias pobres, que eram enviados para o Rio de Janeiro e posteriormente para o front paraguaio à força. Grande parte destes jovens morria ainda no caminho, pela má alimentação e doenças, e outros morriam no front, de forma que muito poucos acabavam por voltar. Daí se pode entender o terrível medo da população pobre amazonense em relação à imagem criada pela imprensa e pelo boca a boca da época para a figura de Solano López, governante paraguaio, que faziam com que os tapuios amazonenses, segundo o narrador do conto, imaginassem o presidente como um “monstro devorador de carne humana” (SOUSA, 2005, p. 26). Na sequência da narrativa, Pedro, filho de dona Rosa, acaba sendo “voluntariado” para a guerra. E é aí que o narrador do conto se apresenta ao leitor, se identificando como o advogado ao qual a tapuia Rosa implorou ajuda para libertar o filho da prisão a que fora submetido, enquanto aguardava o transporte dos ditos “voluntários” até o Rio de Janeiro (SOUSA, 2005, p.32). É pela voz dele que ouvimos a narrativa dos horrores do recrutamento e do que proponho como relacionável com a política da pós-verdade: segundo ele, a ignorância dos “rústicos patrícios” (elite dominante, de origem portuguesa) era agravada pelas “fábulas ridículas editadas pela imprensa oficiosa, dando ao nosso governo o papel de libertador do Paraguai (embora contra a vontade do libertando o libertasse a tiro)” (SOUSA, 2005, p. 26-27). E faziam com que esta elite extravasasse seus preconceitos e privilégio social e operasse o alistamento forçado à população tapuia de forma violenta. Estas “fábulas ridículas” a que o narrador do Voluntário se refere foram os discursos que o Império brasileiro utilizava para justificar sua política intervencionista. Como todo praticante de políticas imperialistas, o governo brasileiro justificava suas ações como necessárias para o bem não só da própria população, mas como uma ação necessária para o invadido. Creio que enquanto testemunhas de diversos conflitos militares ao longo dos séculos XX e XXI, todos sabemos como isso funciona.[8] No contexto específico da Questão Platina (do qual a guerra do Paraguai foi só um dos Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 52 conflitos), o que ocorreu foi um confronto entre três nações de ambições imperialistas (Brasil – Argentina – Paraguai) que, por serem vizinhas, viram seus projetos expansionistas se chocarem.[9] Agora pergunto a você, leitor: é possível imaginar os tipos de discursos oficiais que foram produzidos no período, não? Quantas “fábulas” - como diz o narrador do Voluntário -, foram elaboradas para justificar os conflitos e para fortalecer (ou mesmo criar) um sentimento de identidade nacional nestas nações recém-fundadas. Não é à toa que em seu livro A identidade cultural na pós-modernidade, Stuart Hall tenha escolhido nomear um capítulo como As culturas nacionais como comunidades imaginadas. Nele, Hall explica que uma “(...) nação não é apenas uma entidade política mas algo que produz sentidos – um sistema de representação cultural”. Um sistema do qual as pessoas fazem parte não só como cidadãos, mas pela participação na ideia de nação. Concluindo que “uma nação é uma comunidade simbólica e é isso que explica seu poder para gerar um sentimento de identidade e lealdade” (HALL, 2011, p. 49) A ideia de nação, então, é um discurso que se constitui por uma narrativa que vincula a percepção de identidade do indivíduo às histórias, literatura e cultura popular. A própria ideia de nação, se vê, perpassa uma política cultural baseada no apelo à emoção, a crenças religiosas, e a preconceitos em detrimento da objetividade factual. Bem como a necessidade da guerra sempre perpassa esta prática. A política da pós verdade definitivamente não é um fenômeno característico do século XXI. No caso do conto Voluntário acho interessante atentar, entretanto, não à construção do discurso. Mas sim à “utilidade” que muitos encontram no discurso construído. Relata o narrador que, durante o período de recrutamento forçado, um fenômeno social ocorreu: Foi então que se mostrou em toda a sua hediondez a tirania dos mandões de aldeia. Os graúdos não perderam a ocasião de satisfazer ódios e caprichos, oprimindo os adversários políticos que não sabiam procurar, a serviço de abastados e poderosos fazendeiros, proteção e amparo contra o recrutamento, à custa do sacrifício da própria liberdade e da honra das mulheres, filhas e das irmãs (SOUSA, 2005, p.27). Ou seja, “comprar” o discurso nacionalista, a empolgação da guerra e da necessidade de intervenção, em fato servia aos “graúdos” (mas não só a eles) como a justificativa que necessitavam para pôr em prática ações que, comumente, não lhes seriam possíveis por questões legais: se você cometesse um assassinato, você seria, em teoria, preso. Mas se você, utilizando influência política ou monetária (como se as duas Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 53 coisas pudessem ser dissociadas), ou mesmo uma denúncia ou o que quer que seja, levasse um rival a ser recrutado (e muito provavelmente morto na guerra), não haveria crime. Situações como a da campanha de recrutamento citada no Voluntário permitiam uma limpeza étnica autorizada pelo Estado. Algo que se ilustra em outra fala do narrador: Corri à praia, onde era imensa a aglomeração de povo à espera do vapor que vinha entrando a boca do largo Tapajos, em busca dos futuros defensores da pátria. Eram vinte rapazes tapuios os que a autoridade obrigava representar a comédia do voluntariado (SOUSA, 2005, p. 33). Claro, a longo prazo situações como esta levaram a levantes armados por parte das incontáveis populações e povos generalizados pelos portugueses sob o termo de “tapuios”.[10] Mas como explicita o narrador – e neste caso acho possível considerar, para além do caráter ficcional, o Voluntário como um relato fiável historicamente, já que o autor imprime em seus textos um período que vivenciou[11] –, entre os tapuios, inicialmente, o efeito foi a criação de um temor gigantesco em relação a um nome: Solano López, o bode expiatório das elites e do império para todas estas práticas opressoras e de exploração. E aqui creio que encontramos um bom ponto para erigir uma ponte entre as margens do Amazonas e o distópico mundo de 1984, de Orwell. 3 DO PODER SOBRE A VERDADE, E DA SATISFAÇÃO PELA OPRESSÃO 1984, livro de George Orwell publicado em 1949, é ambientado numa sociedade distópica governada por um regime autoritário que faz uso de um complexo sistema de política da pós-verdade e controle midiático. A construção do ódio pelo outro é o atalho que sugiro tomarmos entre os dois textos: assim como em Voluntário o narrador cita Solano López como a entidade que o discurso imperial brasileiro e o imaginário popular construíram para expiar as mazelas de sua sociedade – e digo entidade porque o que esse imaginário construiu é obviamente outro ser que não o mesmo que o Solano López “real”. A distopia de Orwell também tinha seus bodes expiatórios, ilustrados por um perseguido político taxado de traidor (Emmanuel Goldstein), e também pelas nações vizinhas inimigas que seriam culpadas pela “necessidade da guerra”. E meu convite agora, leitor, é para que acompanhemos Winston, o protagonista desta obra de Orwell, em suas descobertas sobre uma das técnicas utilizadas pelo governo de sua nação para Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 54 manter o controle sobre sua população. Método que Orwell chamou doublethink. E que, como veremos, é menos uma imposição, e mais um incentivo à capacidade que nós enquanto humanos temos de defender/acreditar em duas coisas opostas ao mesmo tempo. E à possibilidade de conscientemente optarmos por aprofundar esta capacidade de modo tão intenso que a contradição se torna inconsciente. Algo que, creio, seja relacionável e ilustre bem a política cultural que discutimos neste artigo. O 1984 é protagonizado por Winston, um funcionário qualquer do Ministério da Verdade, cujo trabalho era editar dados e notícias passadas e presente em função do interesse do chamado Partido (grupo dominante). Winston, conforme vamos percebendo ao longo da leitura, parece ser um pouco mais consciente e/ou problematizador do que a maioria de seus colegas em relação à condição em que vivem. E ele faz algumas análises interessantes sobre como as pessoas lidam com a realidade em que se inserem, enquanto nos explica a conduta do doublethink. Prática que é por ele definida como: É saber e não saber, é ser consciente da completa verdade enquanto conta mentiras cuidadosamente construídas, é manter simultaneamente duas opiniões que se cancelam, sabendo-as contraditórias e efetivamente acreditando em ambas, é usar a lógica contra a lógica, é repudiar a moralidade ao mesmo tempo em que clama por ela, (...) é esquecer qualquer fato que tenha se tornado inconveniente e, quando for necessário, trazê-lo de volta à mente pelo tempo necessário, para em seguida esquecê-lo outra vez. É, acima de tudo, aplicar o mesmo processo ao próprio processo – esta é a suprema sutileza: conscientemente induzir a inconsciência e depois, mais uma vez, tornar-se inconsciente do ato de hipnose que você acabara de realizar (ORWELL, 1961, p. 35).[12] Claro, em princípio Orwell se referia a seu universo distópico. Mas agora pergunto a você leitor: já praticaste ou conhece alguém que pratica ou praticou algo similar ao doublethink? Você, como eu, vê similaridades entre o termo cunhado por Orwell e o termo eleito pelo Orxford dictionaries o mais popular de 2016? Entre o doublethink e a prática da política da pós-verdade? Sei que a pós-verdade não necessariamente se refere à falsificação direta de fatos históricos, algo que Winston ajudava a fazer, mas o próprio narrador de 1984 nos relata que Winston não era o único que tinha consciência do que ocorria. Se parte dos membros do partido “comprava” inconscientemente as verdades fabricadas, outra boa parcela tinha plena consciência da falsidade de determinadas notícias e discursos. Estes, porém, forçavam a própria inconsciência: se auto infligiam um processo de naturalização e aceitação destas verdades fabricadas. Conscientemente relegavam os fatos ao segundo plano, se Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 55 deixando moldar pelo discurso baseado no apelo à emoção. Ou seja, se tornavam praticantes da política da pós-verdade. Um exemplo pontual é o personagem chamado Syme, empregado do mesmo ministério em que Winston trabalhava. Ele é descrito como um intelectual, mais especificamente um filólogo, parte de um grupo responsável pela reelaboração do idioma falado na nação distópica criada por Orwell. E segundo o narrador, era um exemplo complexo da potencialidade do doublethink: era visível que Syme era plenamente consciente de todas as atrocidades cometidas pelo regime que apoiava, mas, adepto e praticante do doublethink, naturalizava o processo do qual fazia parte. Convencia a si mesmo de que os fatos eram pouco relevantes frente ao potencial de coisas que aquele contexto permitia a ele: financiamento às suas pesquisas e perseguição aos proles (ORWELL, 1961, p. 48-63). Os Proles,[13] como também descobrimos através da convivência com Winston, consistiam em todos aqueles que não eram membros oficiais do Partido. Eram as classes sociais menos abastadas, que viviam em situação de extrema pobreza, e que eram vistas sob um filtro de preconceito pelos membros do Partido. Syme, por exemplo, chega a se referir aos proles como “não humanos” (ORWELL, 1961, p. 52). E aqui, leitor, proponho que ampliemos nossa ponte construindo no sentido inverso. Para voltarmos rapidamente ao conto Voluntário, e relembrarmos o quanto a política da pós-verdade é útil para grupos extravasarem seus preconceitos. Poderíamos falar novamente também da atualíssima eleição de Donald Trump, evento bastante real carregado de possíveis exemplos relacionáveis. Mas tais reflexões deixarei que faças sem minha companhia, visto que meu foco neste artigo se manterá em obras de cunho ficcional. Ainda que, como bem saibamos, por vezes a ficção e a realidade se entrelacem em nós que não se permitem desamarrar. Laço este que pode nos servir de convite, caro leitor, a passearmos também por um dos bosques ficcionais de Umberto Eco, em seu livro Seis passeios pelos bosques da ficção. 4 DA COMPREENSÃO E CONTROLE DA REALIDADE ATRAVÉS DA FICÇÃO Proponho esta incursão porque, no capítulo Protocolos ficcionais, Eco traz algumas reflexões interessantes sobre o quanto as fronteiras entre realidade/veracidade e ficcionalidade/mentira são liquefeitas. Propondo, por exemplo, o seguinte Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 56 questionamento: “se a atividade narrativa está tão intimamente ligada a nossa vida cotidiana, será que não interpretaremos a vida como ficção e, ao interpretar a realidade, não lhe acrescentamos elementos ficcionais?” (ECO, 1994, p. 137). Uma forte indagação que proponho encararmos sob a luz do termo que, conforme explica o fictício livro proibido de Goldstein (parte do imaginário universo de 1984), é “o sistema de pensamento que engloba todo o resto, e que é conhecido em Newspeak[14] como doublethink” (ORWELL, 1961, p. 212). Sistema este que “é aprendido pela maioria dos membros do Partido, e certamente por todos que são inteligentes, bem como ortodoxos. Em Oldspeak é chamado, francamente, ‘controle de realidade’” (ORWELL, 1961, p. 214). Voltamos, então, à prática do doublethink como proposta por Orwell, que a define (através do virtual livro de Goldstein) da seguinte maneira: Doublethink significa o poder de manter duas crenças contraditórias na mente simultaneamente, e aceitar ambas. O intelectual do Partido sabe em que direção suas memórias devem ser alteradas; Ele sabe, portanto, que está praticando truques com a realidade; Mas pelo exercício do doublethink ele também se convence de que a realidade não é violada. O processo tem que ser consciente, ou não seria realizado com suficiente precisão, mas também tem de ser inconsciente, ou traria consigo um sentimento de falsidade e, consequentemente, de culpa. (...) (Doublethink é) contar mentiras deliberadas enquanto genuinamente acredita-se nelas, é esquecer qualquer fato que tenha se tornado inconveniente, e então, quando for necessário novamente, trazê-lo de volta do esquecimento pelo tempo necessário. É negar a existência da realidade objetiva e, durante todo o tempo, levar em conta a realidade que se nega – tudo isto é indispensavelmente necessário. Mesmo o uso da palavra doublethinktorna necessário o exercício do doublethink. Pois, ao usar a palavra, o praticante admite que alguém está adulterando a realidade, mas, por um novo ato de doublethink, apaga esse conhecimento; E assim indefinidamente, com a mentira sempre um salto à frente da verdade (ORWELL, 1961, p. 214). O doublethink como imaginado por Orwell é, então, o controle em máxima instância de um indivíduo sobre sua própria cognição. Em oposição à ignorância ou falta de conhecimento, é a plena consciência da existência de todos os filtros interpretativos pelos quais encaramos o mundo ao nosso redor. É a seleção consciente de quais filtros aceitaremos e colocaremos entre nós e o mundo. E um posterior processo de indução do esquecimento de que tal escolha consciente foi feita. É uma naturalização do discurso escolhido conscientemente induzida, a ponto de que o próprio indivíduo se torne inconsciente de que, inicialmente, fora consciente desta escolha. E, talvez, cruzando a descrição deste sistema de pensamento com as palavras de Umberto Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 57 Eco, possamos utilizar o conceito do doublethink para compreender o comportamento humano no plano da realidade. Quiçá ele possa ser uma proposição útil para compreendermos a maneira pela qual interpretamos a realidade. O modo pelo qual, como sugere Eco, interpretamos a vida como ficção e, ao interpretar a realidade, a acrescemos de elementos ficcionais (ECO, 1994, p. 137). A fim de que a encaremos como nos convém e, por meio de uma auto indução, tornemo-nos inconscientes de nossa própria escolha. Talvez. Mas, antes que nossas mentes deslizem ainda mais fundo no mundo labiríntico dodoublethink, e para que não nos percamos nestes tortuosos corredores, deixemos que Eco nos puxe daqui para uma de suas histórias. No capítulo Protocolos ficcionais do já citado Seis passeios pelos bosques da ficção, Eco nos conta uma história que ele mesmo define como espantosa e que, mesmo sendo puramente ficcional, foi e é tida por muitos como factual. Neste capítulo, Eco relata parte de uma pesquisa temática que realizou e que posteriormente utilizou como base para a criação de um romance, o Cemitério de Praga (2010). Resumindo de maneira grosseira: Eco discorre sobre a origem do texto nomeadoProtocolos dos sábios do Sião, obra de origem puramente ficcional escrita e reescrita por diversos autores, que relata um projeto de dominação mundial encabeçado por lideranças religiosas judaicas. É um “documento” ficcional onde os judeus declaram abertamente ambições de dominação e de corrompimento e destruição das instituições e nações europeias. Ocorre que este texto (em incontáveis versões adulteradas por incontáveis punhos) foi utilizado e apresentado como relatório oficial sobre investigações de seitas religiosas a diversos governos europeus durante o fim do século XIX e ajudou, sugere Eco, a fomentar o antissemitismo na Europa (ECO, 1994, p.123-148).[15] A temática da falsificação de documentos e das relações entre realidade e ficção são temas recorrentes na obra de Eco, como bem sabemos. Mas considerei pertinente apontar este caso específico por considerá-lo um exemplo muito forte. Uma demonstração poderosa de como é uma constante histórica a política da pós-verdade: provavelmente na própria época muitos desses relatórios eram sabidos ficcionais. Mas a verdade pode ser pouco relevante quando um grupo ou sociedade procura justificar seus preconceitos, ou quando pretende um debate ou discurso moldado pelo apelo à emoção. Diz Eco que “já que a ficção parece mais confortável que a vida, tentamos ler a vida como se fosse uma obra de ficção” (ECO, 1994, p.124). Ou seja, aplicamos um doublethinksobre as situações em que nosso senso de justiça vai de encontro a um preconceito, por exemplo. Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 58 5 DA ESCOLHA CONSCIENTE PELA INCONSCIÊNCIA Agora, para nos direcionarmos ao final de nosso passeio, leitor, – e peço desculpas se já o cansei com minhas divagações – gostaria de propor um flerte com outra narrativa de ficção, a fim de ruminarmos só um pouco mais esta questão da escolha consciente por nublar nossa própria visão da realidade com uma ficção mais confortável. No filme Matrix (1999), das irmãs Wachowski, há um personagem que toma uma decisão marcante: a de voltar para a caverna. Explico: esta franquia, segundo as próprias autoras, foi inspirada em obras de diversos filósofos,[16] dentre as quais a mais direta ligação que se pode fazer é com o Mito da caverna de Platão. No primeiro filme da trilogia acompanhamos Neo, o protagonista (interpretado por Keanu Reeves), passando pelo processo de saída da caverna. Pela descoberta da limitação da própria capacidade interpretativa frente à realidade. Por uma tomada de consciência de que vivia, como sugere Platão, num mundo de sombras (PLATÃO, 2006, p.307-344). De meias verdades ou de ficções. Mas não pretendo me estender detalhadamente sobre isso agora, leitor, pois já existem incontáveis produções que discorrem sobre o paralelo entre Matrix e o Mito da caverna, e este não é o objetivo aqui. O que me interessa é citar o personagem Cypher (interpretado por Joe Pantoliano), que após ter sido libertado da caverna e tido contato com a realidade, toma a decisão de que prefere viver na caverna. No filme, Cypher acaba assumindo o papel de vilão: é o traidor que quase causa a morte do protagonista. Mas creio ser importante olhar para o personagem sem vilanizá-lo, e refletir racionalmente sobre a escolha dele: é uma escolha pelo conforto, por encarar o mundo através de determinados filtros, por não sentir determinadas emoções tão intensamente. É uma escolha por saber e não saber. É ter o poder de relegar a verdade ao segundo plano e se tornar inconsciente do que nos cerca. É, também, a escolha por se auto induzir à uma inconsciência sobre a própria escolha. E a consciência desta escolha, assim como a escolha pela inconsciência, ficam muito claras no diálogo entre Cypher e o agente Smith (personagem de Hugo Weaving), durante jantar em que estão negociando sua volta à Matrix: Smith: – Temos um acordo, senhor Reagan? Cypher: – Sabe, eu sei que este bife não existe. Eu sei que quando o coloco na minha boca a Matrix está dizendo ao meu cérebro que ele é Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 59 suculento e delicioso. Depois de nove anos você sabe o que eu percebi? Ignorância é uma benção. Smith: – Então temos um acordo? Cypher: – Eu não quero lembrar de nada. Nada! Você entende? (...) Smith: – O que você quiser, senhor Reagan (MATRIX, 1999).[17] Assim, por ser exatamente neste ponto que procurei focalizar este artigo: no ato consciente de considerar a verdade irrelevante, de torná-la secundária frente aos nossos interesses ou valores pessoais. Principalmente como forma de nós, enquanto seres humanos, extravasarmos nossos preconceitos em relação ao outro, ou nos sentirmos confortáveis com nossa própria existência e decisões. E com os olhos ainda na resolução de Cypher, é que pergunto a você leitor: quantas vezes todos nós tomamos decisões similares a esta? Quantas incontáveis vezes optamos por uma ignorância seletiva, por um apagamento metódico do conhecimento de determinadas informações e conhecimentos, em nome de nosso maior conforto? Quantas vezes induzimos nossa própria inconsciência sobre nossas ações a fim de afastar, como sugeriu Orwell, o sentimento de culpa que podem gerar? Seríamos todos nós, seres humanos, utilizadores do sistema de pensamento a que Orwell chamou doublethink? 6 DA FANTASIA DO LUGAR DA VERDADE, OU DA INDISSOCIABILIDADE DA VERDADE E DA FICÇÃO A resposta para tais questões talvez esteja na maneira como lidamos com a relação entre verdade e ficção. E na reflexão sobre as políticas da pós-verdade que, reitero, definitivamente não são uma prática exclusiva do século XXI ou da popularização da internet. Mas sim um sistema de pensamento e comportamental existente há milênios. Para mim, a ideia de que o uso deste sistema se aprofundou na pós-modernidade se baseia numa premissa da qual discordo: a de que o jornalismo ou disciplinas como a História, um dia, já tiveram acesso a informações “reais”, à uma suposta real natureza das coisas. Numa concepção de dependência hierárquica entre verdade e ficção. Em seu texto Reflexões sobre a pesquisa histórica, a ficção e as artes (presente no livro História e Arte: encontros disciplinares), Rosane Kaminski nos explica, citando Hayden White e Michel de Certeau, que a separação entre ficção e verdade vem Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 60 de uma linha de pensamento construída no século XIX entre os próprios historiadores. Que passaram a “(...) identificar a verdade com o fato e considerar a ficção o oposto da verdade, portanto um obstáculo ao entendimento da realidade e não um meio de apreendê-la” (WHITE apud KAMINSKI, 2013, p. 68). Num processo de desenvolvimento, por parte da História enquanto disciplina, de práticas e convenções “(...) para que o discurso histórico fosse percebido como o lugar da verdade do passado” (CERTEAU apud KAMINSKI, 2013, p. 68). Algo similar, talvez, ao que fez/faz o jornalismo no sentido de produzir um discurso de lugar da verdade do presente. Estas são convenções que Kaminski questiona, propondo que “a ficção não é necessariamente incompatível com a ideia de verdade” (KAMINSKI, 2013, p.66). E tendo, leitor, a concordar com esta pesquisadora sobre tal questão. Bem como me inclino a consentir com algumas proposições que Juan José Saer faz em seu livro El concepto de ficción. Asserções que, se sob um primeiro olhar podem parecer fortes, creio que podem se somar positivamente às reflexões propostas em nosso passeio. Saer resume, por exemplo, o embate valorativo existente no seio das non-fictions (fidelidade à realidade versus ficcionalidade) da seguinte maneira: Podemos portanto afirmar que a verdade não é necessariamente o contrário da ficção, e que quando optamos pela prática da ficção não o fazemos com o propósito obscuro de perverter a verdade. E a dependência hierárquica entre verdade e ficção, segundo a qual a primeira possuiria uma positividade maior que a segunda, é certamente, no plano que nos interessa, uma mera fantasia moral (SAER, 2014, p.10-11).[18] Tal consideração de Saer se dá porque, embora enquanto produção literária “a ficção se mantenha à distância tanto dos profetas do verdadeiro como dos eufóricos do falso” (SAER, 2014, p.12). Ela é um tratamento específico do mundo, inseparável do que trata. Ficção e realidade são indissociáveis, pois uma se ancora na outra. As ficções, os “enunciados políticos e literários” – e aqui cito Rancière – são, afinal, construções intencionais que fazem parte de um “saber cultural”, são produtores de sentido que interferem em nossa percepção do mundo, que fazem efeito no real (RANCIÈRE, 2009, p. 59). Por isto Saer (falando em primeira instância do gênero biográfico, mas depois também de todos os gêneros que se autodenominam non-fiction),[19] também afirma que: (...) A veracidade, atributo supostamente científico, nada mais é que a retórica de um gênero literário, não menos convencional do que as três unidades da tragédia clássica, ou o desmascaramento do assassino nas últimas páginas do romance policial. A rejeição escrupulosa de todo Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 61 elemento ficcional não é um critério de verdade. Posto que o próprio conceito de verdade é incerto e sua definição integra elementos díspares e até mesmo contraditórios, é a verdade como objetivo unívoco do texto e não apenas a presença de elementos ficcionais que merece (...) uma discussão minuciosa (SAER, 2014, p. 10). Assumindo assim um tom crítico ao que considera uma pretensão “científica” inalcançável por parte de obras que se propõe a contar a “verdade” sobre a vida de uma pessoa ou sobre eventos já ocorridos. E propondo que as non-fictions são, em fato, gêneros literários que não diferem necessariamente de uma obra de ficção. Uma teoria que se mostra interessante no contexto deste artigo, pois propõe retirar tais gêneros do pedestal regido por um discurso de detentor da verdade, de caráter documental, e aproximá-los de outros gêneros literários. Apontando que não é possível garantir a veracidade crua de qualquer informação, mesmo nestes gêneros tidos como “mais fiáveis”. De jornais a documentários, de relatos históricos e biográficos a textos acadêmicos, é impossível afirmar com segurança que qualquer texto é imune à ficcionalidade.[20] É importante esclarecer, entretanto, que este tom crítico de Saer se dá não em relação ao gênero da não ficção em si, mas sim ao discurso que propõe ele como oposto à ficção. O pensamento de Saer se alinha ao do já citado Jacques Rancière, que no livro A partilha do Sensível: estética e política aborda, entre outros tópicos, a relação entre a racionalidade ficcional ou “razão das ficções” – já que a ficção possui formas e regras de ordenamento e composição próprias –, e os modos existentes de explicação da realidade histórica e social, que ele nomeou “razão dos fatos”. Discussão presente principalmente no quarto capítulo, nomeado Se é preciso concluir que a história é ficção, em que Rancière cutuca uma das questões mais polêmicas da disciplina de História: a relação entre literatura e história, entre ficção e realidade. E procura questionar ou mesmo revogar a linha de divisão aristotélica entre a história do historiador e do poeta. Para Rancière, a “realidade” dos fatos é algo desordenado. É o discurso historiográfico que, fazendo uso de elementos convencionados pela racionalidade formal da ficção, confere uma aparência de ordem ao narrar fatos. Dito de outro modo – e isso é evidentemente algo que os historiadores não gostam muito de olhar de perto –, a nítida separação entre realidade e ficção representa também a impossibilidade de uma racionalidade da história e de sua ciência. A revolução estética redistribui o jogo tornando solidárias duas coisas: a indefinição das fronteiras entre a razão dos fatos e a razão das ficções e o novo modo de racionalidade da ciência histórica (RANCIÈRE, 2009, p.54). Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 62 Ou seja, para Rancière a própria existência da História enquanto disciplina só é possível através da aceitação da não existência de uma separação clara do literário. Pois a própria escrita da história se faz pela linguagem. E sendo a linguagem uma convenção, ela está sempre sujeita a filtros de interpretação subjetiva e variável. Filtros estes que talvez escolhamos – ainda que “não recordemos” –, através de um sistema que Orwell escolheu nomear doublethink. Adaptando a fala de outro teórico: é bem provável que a definição de [verdade][21] seja dependente da maneira pela qual alguém resolve ler, e não da natureza daquilo que é lido (EAGLETON, 2003, p. 11). Afirmação que podemos utilizar para fazer uma última costura teórica, e assim encerrarmos nossos passeios pelos campos de construção da verdade. 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS: sobre as pretensões à universalidade Se, como sugere a adaptação da afirmação de Eagleton, a concepção de verdade seja dependente da maneira pela qual o indivíduo lê ou olha para determinada informação, o que impele ou auxilia o indivíduo a definir de que maneira irá olhar? Pierre Bourdieu nos traz uma sugestão no livro O poder simbólico: “Se há uma verdade é que a verdade está em jogo nas lutas” por uma “(...) pretensão à universalidade, ao juízo absoluto, que é a própria negação da relatividade dos pontos de vista” (BOURDIEU, 2003, p. 293-294). Estas lutas, como nos explica o sociólogo francês, ocorrem dentro de todos os campos que estruturam o universo social, e também pelas relações entre os campos e os agentes atuantes neste universo. São embates pelo poder que advém do direito à enunciação de um discurso legitimado. Tido como crível, confiável ou “oficial” em função dos protocolos de hierarquia e legitimação que um determinado campo ou sociedade possuem, e pelos quais outorgam um enunciador com o poder simbólico de determinar o que é verdade. Este outorgamento de poder simbólico, entretanto, só se efetiva em autoridade através do reconhecimento que os agentes conferem a ele. Daí Bourdieu defender com tanto afinco que não se pode tratar o resultado das relações de forças do campo social como efeitos de uma dominação e vontade única central, pois assim: Ficamos impossibilitados de apreender a contribuição própria que os agentes (incluindo os dominados) dão, quer queiram quer não, quer saibam quer não, para o exercício da dominação por meio da relação que se estabelece entre as suas atitudes, ligadas às suas condições Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 63 sociais de produção, e as expectativas e interesses inscritos nas suas posições no seio desses campos de luta, designados de Estado, Igreja ou Partido. A submissão a certos fins, significações, ou interesses transcendentes, quer dizer, superiores e exteriores aos interesses individuais, raramente é efeito de uma imposição imperativa e de submissão consciente (BOURDIEU, 2003, p. 86). Ou seja, para Bourdieu os fins objetivos nunca são postos como tais, nem mesmo pelos agentes mais interessados em seus resultados. E a subordinação do conjunto de uma sociedade a uma mesma intenção objetiva, numa “espécie de orquestração sem maestro” (BOURDIEU, 2003, p. 86-87), só pode se instituir através de uma concordância instaurada entre os agentes daquele conjunto. Por uma assimilação destes de seu papel dentro daquele corpo social: o que sentem que são, o que a história fez deles e o que deles se espera. Em suma, pelo processo de incorporação que o indivíduo faz do habitus[22] a ele destinado. Apropriação esta que pode gerar, como sugere Bourdieu, inclusive bem estar, no sentido de pertencimento àquele lugar, de estar a fazer o que tem de fazer, de ser destinado àquilo, e até de o fazer com gosto (BOURDIEU, 2003, p. 87). Vê-se que a concordância do indivíduo-agente (agente porque é atuante: age no meio em que está inserido) com determinada atividade ou crença pode, então, muitas vezes partir de pressupostos que não os oficialmente declarados. Mas também por interesses particulares, credos e opiniões pessoais que não necessariamente estão diretamente ligados à atividade geral a que se submetem. Associar isto individualmente aos exemplos dados ao longo deste artigo – seja pelas atitudes de parte da população ribeirinha paraense contra outra parcela dela no Voluntário, seja pela prática de falsificação de documentos históricos como exposta por Umberto Eco em Seis passeios pelos bosques da ficção ou como trabalhada por Winston em 1984, seja pela relação de Syme com osproles no mesmo livro, ou seja ainda pela escolha de Cypher por um favorecimento de seu bem estar individual através de um Doublethink forçado em Matrix –, entretanto, nos faria alongar este passeio demasiadamente. Talvez um novo estudo e artigo se mostrasse necessário só para isto. De forma que proponho encararmos estas proposições de Bourdieu dificuldade em realizá-la. Uma vez sendo um animal social, o humano requer vivência em comunidade e para isso reivindica comunicação e compreensão. Eis que esta necessidade básica de sobrevivência em grupo abandonou a esfera privada. Por meio da linguagem e seus muitos artifícios é possível criar uma peça de teatro, assim como expressar uma inquietação política objetivamente. A potência da comunicação não é ignorada pelos humanos. Especialmente por aqueles que detém poderes superiores na sociedade. E assim, ao longo de séculos, estes homens dotados de barganha material de controlar o pensamento o farão, ainda que seja adotando intelectuais e artistas para perto de si e financiando ou cerceando as suas obras. Mas a este ponto, os meios de comunicação ainda não tinham a capacidade de atingir grandes massas. Difere muito do mundo contemporâneo. A sofisticação dos meios de comunicação de massa, de maneira geral, popularizou a informação de tal forma que, em dado momento, a sensação era a de que com ela também viria a tão sonhada democratização da cultura. Tragédias naturais passaram a ganhar os noticiários em tempo recorde, assim como os grandes eventos do mundo desportivo, da moda e do mais prosaico cotidiano, bem como o acesso à vida política, e caminhamos para a imagem em “tempo real” de nossos dias. Passados os tempos, aqui e ali alterados os atores políticos, e ainda seguem tencionadas as relações entre comunicação, política e cultura, de modo que a expressão “democratização dos mass media” ainda soa como uma quimera em um Brasil cada vez mais dividido e desigual, assim como em diversos outros territórios mundo afora. Esta edição de Revista Sísifo trás para o leitor o dossiê Política, comunicação e cultura, em que se problematiza a participação dos meios de comunicação no processo Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 7 político e cultural das sociedades contemporâneas. Os artigos que seguem, mantém relação próxima com o tema, discutindo os meios de comunicação, processos políticos e seus impactos na cultura. Marcelo Vinicius Rodrigo Araújo Yves São Paulo (Organizadores) Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 8 Dossiê NOAM CHOMSKY: propaganda e medo na política internacional Jayme Benvenuto* RESUMO: Este artigo tem o objetivo de apresentar a compreensão de Avram Noam Chomsky a respeito das conexões entre a política, em especial a política internacional, a propaganda e o medo, como elementos da grandiosa estratégia imperial de dominação global, conduzida pelos Estados Unidos da América e seus sócios. Ao mesmo tempo em que procura demonstrar a força das ideias do autor norte-americano, o artigo expõe os pontos críticos na teoria chomskyana. Palavras-chave: 1. Chomsky. 2. Propaganda. 3. Medo. 4. Política internacional. INTRODUÇÃO Avram Noam Chomsky é o intelectual vivo mais citado do mundo, com mais de quatro mil citações de sua obra relacionadas no Arts and Humanities Citation Index e o Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 9 oitavo numa lista que inclui autores como Marx e Freud, entre as personalidades mais citadas de todos os tempos. Além disso, entre os anos de 1974 e 1992, Chomsky foi citado 1.619 vezes de acordo com o Science Citation Index (Barsky, 2004, p. 15). Ao completar 88 anos, em dezembro de 2016, o intelectual continuava ativo na publicação de livros, artigos e participando de filmes independentes por meio dos quais expõe seu pensamento crítico. A visita a sua página pessoal demonstra sua ampla capacidade de produzir ideias em áreas que incluem a linguística, a filosofia, a história, a história das idéias, as ciências cognitivas, a psicologia, a política nacional norte-americana e a política internacional. Apesar da vasta produção intelectual e do reconhecimento como um intelectual engajado, capaz de levar milhares de pessoas a auditórios ao redor do mundo1, Chomsky passa como mais um intelectual nos corredores do MIT, o Instituto Tecnológico de Massachusetts, onde trabalhou por mais de quatro décadas, pelo simples motivo de que nos Estados Unidos Chomsky é silenciado pelos grandes meios, inclusive pelos meios progressistas, e muitos dos universitários e intelectuais com quem cruza todos os dias provavelmente desconhecem o que ele diz (…), desenhando os Estados Unidos como um artefacto estranho que, por sua vez, é a maior democracia do mundo e é governado por uma elite autoritária que despreza a democracia. (Halperin, 2003, p. 8; tradução do autor) Em entrevista concedida a Halperin, Chomsky situa o surgimento do incômodo do Estado norte-americano em relação a si nos anos 1960, em que ele foi preso e respondeu a processo por “conspiração” devido à participação em movimentos em defesa dos direitos civis e políticos, muito em particular pelo direito de recusa legítima de jovens à participação na guerra do Vietnã. A atuação política era interpretada como uma agressão à atividade militar nos Estados Unidos. O processo judicial contra Chomsky não prosperou, em sua visão, devido ao fato de que não foram encontradas conexões, como o governo supunha, com regimes tidos então como suspeitos, como a Coreia do Norte e a Hungria, assim como porque não seria sustentável juridicamente imputar-lhe o crime de “conspiração”, quando suas ações eram integralmente públicas. O que tentaram chamar de conspiração era realizado de forma “completamente aberta” (Halperin, 2003, p. 55). 1 Em 2002, durante a segunda edição do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, Chomsky foi ouvido por uma plateia atenta constituída por 20 mil pessoas. Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 10 A precaução quanto a ter uma agenda pública não impediu que Chomsky fosse sistematicamente monitorado pelo governo norte-americano em suas ações acadêmicas. “Provavelmente, esta conversa esteja sendo escutada pela Administração de Segurança Nacional” (Halperin, 2003, p. 11), disse ele ao entrevistador. O sistema perverso descrito por Chomsky para dominar o mundo - e que tem os Estados Unidos, seu próprio país, como líder incontestável - é composto pelos poderes político, militar, empresarial, midiático e educativo. Em outra ocasião e veículo, resumi nos seguintes pontos a visão chomskyana sobre a política internacional dos nossos dias: 1. Os Estados Unidos da América são autores e lideram uma “grandiosa estratégia imperial” que se vale da “guerra preventiva” e de ações repressivas e terroristas pretensamente sustentadas pelo Direito Internacional. O método de dominação do mundo está relacionado à violência com que atua e financia, entendida como “um poderoso instrumento de controle” 2. Os Estados Unidos da América se atribuíram o direito de empreender ações militares e travar guerras químicas e biológicas pelos motivos que consigam justificar, mesmo que não sejam plausíveis. Como corolário dessa afirmação, a soberania dos demais países pode ser ignorada tendo como pretexto a defesa dos direitos humanos. 3. Na política de intervenção humanitária desenvolvida atualmente em diversas partes do mundo, a qualificação de violação a direitos humanos depende de quem seja o acusado. Os amigos criminosos merecem proteção e não se pode cogitar de cometerem violações a direitos humanos, enquanto os que se tornam inimigos merecem a mais severa punição com base nos mais altos princípios de direitos humanos. 4. Está em curso um modelo de globalização controlada da “comunidade internacional”, através de meios complexos, que envolvem os diversos países do mundo (independentemente de serem mais ou menos poderosos) em atendimento aos interesses da potência imperial e seus aliados. 5. Ao como uma possível conclusão à defesa do posicionamento que aqui propus: a política cultural da pós-verdade não está vivendo seu auge na atualidade, ela sempre existiu e atuou com intensidade. Pois esta prática cultural é parte de nossa própria prática de construção de conhecimento e organização social. De nossa capacidade de interpretar e nomear aquilo que nos rodeia. Que, para bem ou para Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 64 mal, todas as eras humanas foram da pós-verdade. E aqui proponho que encerremos nosso labiríntico passeio pelos longos corredores cognitivos da verdade, da pós-verdade e do doublethink. AUTOR: *Arthur Aroha é graduado em Escultura pela Escola de Música e Belas Artes da Universidade Estadual do Paraná – UNESPAR. Atualmente é mestrando do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Paraná – UFPR, na área de concentração de Estudos Literários sob orientação do Prof. Dr. Alexandre André Nodari. E-mail: aakds@hotmail.com REFERÊNCIAS: BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz. 6ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. Trad. Waltensir Dutra. 5ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2003. ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva. Rio de Janeiro: DP&A, 2011. KAMINSKI, Rosane. Reflexões sobre a pesquisa histórica, a ficção e as artes. In: FREITAS, Artur (org.); KAMINSKI, Rosane (org.). História e Arte: encontros disciplinares. São Paulo: Intermeios, 2013, p. 65-93. MATRIX. Roteiro e direção: Lilly e Lana Wachowski. Produção: Joel Silver. EUA/Australia: Warner Bros. Pictures/Roadshow Entertainment, 1999. 1 DVD (136 min). ORWELL, George. 1984. New York: Signet Classics, 1961 (ano de reimpressão não informado). PLATÃO. Livro Sétimo. A República (ou da justiça). Trad. Edson Bini. Bauru - SP: EDIPRO, 2006, pp. 307-344. RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. Trad. Mônica Costa Netto. 2ª ed. São Paulo: EXO experimental; Editora 34, 2009. SAER, Juan José. El concepto de ficción. 4ª ed. Buenos Aires: Seix Barral, 2014. SOUSA, Inglês de. Voluntário. In: SOUSA, Inglês de. Contos amazônicos. São Paulo: Editora Martin Claret, 2005, p. 23-36. . Acesso em Janeiro de 2017. . Acesso em Janeiro de 2017. [1] Matérias e artigos jornalísticos que seguiram esta linha afirmativa surgiram aos montes neste período. Aponto aqui alguns exemplos em língua portuguesa e inglesa, a título ilustrativo: ; ; ; ; . Acessos em Janeiro de 2017. mailto:aakds@hotmail.com Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 65 [2] Anualmente o grupo Oxford dictionaries faz uma lista com os termos considerados os mais relevantes no período, e elege um como “palavra do ano”. O anúncio do post-truth como vencedor de 2016 pode ser encontrado em: . Acesso em Janeiro de 2017. [3] Tradução livre de definição apresentada em: . Acesso em Jan. 2017. [4] O termo post-truth foi pela primeira vez utilizado com o sentido a ele hoje designado em 1992 por Steve Tesich em artigo sobre a Guerra do Golfo pérsico. Informações disponíveis em: . Acesso em Janeiro de 2017. [5] Inglês de Sousa, nascido na então província do Grão-Pará, foi um escritor, advogado e político do período imperial brasileiro. [6] Tapuio é um termo generalista que foi utilizado ao longo dos séculos no Brasil para designar quaisquer índios que não falam a língua tupi. [7] O trecho final do conto assim diz: “Ainda há bem pouco tempo vagava pela cidade de Santarém uma pobre tapuia doida. A maior parte do dia passava-o a percorrer a praia, com o olhar perdido no horizonte, cantando com a voz trêmula e desenxabida a quadrinha popular: Meu anel de diamantes Caiu na água e foi ao fundo; Os peixinhos me disseram: Viva D. Pedro Segundo!” (SOUSA, 2005, p.35-36). [8] Basta pensarmos em conflitos como as ocupações do Afeganistão, a guerra do Golfo, a invasão norte- americana ao Iraque, a intervenção francesa na Líbia, e mais recentemente as intervenções diversas nos conflitos na Síria, por exemplo. [9] O período pós independências na América do Sul foi permeado ininterruptamente por conflitos assim. Praticamente todos os países entraram em guerra com seus vizinhos. Estas novas nações aplicaram as mesmas políticas expansionistas sob as quais elas, enquanto colônias, foram fundadas. Até porque seguiram sendo governadas pelas mesmas elites do período colonial. [10] Vide a revolta denominada Cabanagem (1835-1840). [11] Toco aqui no que diversos autores, de Ginzburg e sua “contiguidade entre ficção e história” (GINZBURG, 2007), a Rancière e suas propostas de valorização por parte do olhar do pesquisador para com os produtos ficcionais (RANCIÈRE, 2009), entre tantos outros, discutem com afinco: as relações entre a realidade, a pesquisa histórica, a ficção e as artes. [12] Todas as citações de 1984 são de tradução livre. [13] O termo prole não existe no livro à toa: Orwell se inspirou nos grandes regimes totalitários europeus do século XX para criar o 1984. Especialmente no regime stalinista, do qual Orwell era crítico por considerá-lo uma perversão do Socialismo democrático. O próprio conceito do doublethink foi inspirado num discurso proferido por Stalin em 1930. [14] Newspeak é o nome da nova língua que se desenvolvia na distopia de Orwell. [15] Eco vai às últimas consequências e propõe que, visto que o documento chegou às mãos do próprio Hitler, ele poderia ter influência no Holocausto (ECO, 1994, p. 143). [16] Outras influências foram Descartes, Kant, Foucault e Derrida. Como se pode ver em entrevista com Lana Wachowski disponível em: . Acesso em Janeiro de 2017. [17] Tradução livre. [18] Todas as citações de El concepto de ficción são de tradução livre. [19] Como se pode ver no trecho a seguir: “Lo mismo podemos decir del género, tan de moda en la actualidad, llamado, con certidumbre excesiva, non-fiction: su especificidad se basa en la exclusión de todo rastro ficticio, pero esa exclusión no es de por sí garantía de veracidad. Aun cuando la intención de veracidad sea sincera y los hechos narrados rigurosamente exactos ––lo que no siempre es así–– sigue existiendo el obstáculo de la autenticidad de las fuentes, de los criterios interpretativos y de las turbulencias de sentido propios a toda construcción verbal” (SAER, 2014, p. 10). [20] Afinal somos seres que contam parte de sua história através de narrativas como as Sagas, sejam as irlandesas, as nórdicas, ou, porque não aplicar este termo também às narrativas sumérias, maoris, malinesas, às de Cristóvão Colombo no Diários da Descoberta da América, entre tantas possibilidades, quem sabe até a relatos de eventos e/ou situações bem mais recentes? [21] O termo [verdade] foi aqui utilizado para substituir o termo original [literatura], como presente em: “A definição de literatura fica dependendo da maneira pela qual alguém resolve ler, e não da natureza daquilo que é lido” (EAGLETON, 2003, p. 11). Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 66 [22] O conceito de habitus (as “vestes sociais” habitadas ou encarnadas pelos membros de uma sociedade) é trabalhado por Bourdieu no Capítulo III – A génese dos conceitos de habitus e campo – de O poder simbólico. (BORDIEU, 2003, p. 59-74). Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 67 Dossiê A MULTIDÃO NO TWITTER: a criação de memes com apropriação de fotografias Gabriel Malinowski* RESUMO: O artigo desenvolve alguns aspectos do conceito de multidão, elaborado por Antônio Negri e Michel Hardt, com ênfase nos aspectos da criação e da comunicação. Essa abordagem serve de base para analisar certa produção na rede social Twitter: os memes que são construídos com apropriação de fotografias e textos em até 140 caracteres. Faz-se uma análise de algumas postagens de cunho político que foram realizadas ao longo de dezembro de 2016 no Brasil. Esse tipo de produção parece ir ao encontro do projeto político reivindicado por Negri e Hardt, a multidão. Palavras-chave: Multidão; Twitter; Meme; Negri; Hardt PREÂMBULO Um olhar atento lê uma reportagem em um portal de notícias na Internet. Os dedos rolam a tela em busca de um parágrafo mais interessante. A fotografia que ilustra a reportagem é salva na memória do dispositivo. Encerra-se a leitura. Na seleção de aplicativos distribuídos na tela do aparelho, toca-se no ícone do Twitter. A sessão “início” contempla os posts de perfis que o usuário segue. Os dedos atravessam a tela, o olhar segue atento na leitura de textos e imagens. Com um toque no ícone de pena, que Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 68 faz referência à escrita, outra tela é aberta. Nesse espaço, a imagem salva há pouco é inserida juntamente a um texto. O botão “tweetar” é apertado, e a publicação entra em rede para outros tantos usuários. O Twitter é uma ferramenta de mensagens curtas lançada em outubro de 2006, e que obteve um rápido crescimento no Brasil e no mundo. Nela, o usuário segue e é seguido por outros perfis. O Twitter convida os usuários a responder à pergunta “o que está acontecendo?” em até 140 caracteres. Dentre outras possibilidades do aplicativo, estão a conversação entre os atores e a apropriação relacionada ao acesso à informação. Quem é esse usuário? Como caracterizar sua atividade? De saída, pode-se dizer que para existir esse “usuário” em rede, é indispensável a existência de tantos outros “usuários”. A rede que os conecta fornece uma estrutura que perpassa condutas, modos de ação e pensamento. Pode-se dizer também que Pode-se dizer também que nessa produção, troca e propagação existe um bem valioso: a informação. A produção imaterial de ideias, códigos, imagens, e até mesmo afetos parece ser um traço característico daquilo que é produzido e consumido entre eles. Essas características parecem estar no centro da questão daquilo que Antônio Negri e Michel Hardt chamam de multidão, principalmente, quanto ao uso daquilo que os autores chamam de a produção do comum por meio da linguagem. Sendo assim, a proposta deste artigo é explorar a ideia de multidão no ambiente do Twitter. O enfoque se dá na relação entre a multidão e as criações com imagem e texto do aplicativo. Essa prática é uma forma linguística usual dentre outras utilizadas cotidianamente no Twitter. Os efeitos desse modelo de ressignificação de fotografias também podem ser diversos. Fez-se então um recorte de tweets do mês de dezembro de 2016 que utilizam fotos e textos para a construção de uma crítica de cunho político. Tenta-se explorar o próprio conceito de multidão pelas práticas de criação desses memes. De saída, reforça-se a noção de multidão. Em seguida, aproxima-se o Twitter desse conceito por meio de um de seus aspectos mais instigantes: sua monstruosidade. Esse percurso serve de base para a análise de alguns posts publicados recentemente por usuários. Acrescentando texto à fotografia, esses posts podem ser visto como memes que alimentam a rede e conformam a comunicação entre seus usuários. Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 69 NO CAMINHO DA MULTIDÃO O conceito de multidão trabalhado por Antonio Negri e Michel Hardt permite leituras profícuas acerca de alguns predicados subjetivos, políticos e tecnológicos que se configuram nas sociedades mais fortemente tocadas pela lógica informacional do capital. A complexidade do conceito, entretanto, traz consigo uma dupla dificuldade, própria de grandes teorias: não ser reducionista, a ponto de desperdiçar as saborosas suspeições dos autores; tampouco prolixo, de modo a reescrever repetidamente aquilo que os autores já o fizeram de forma exemplar. No limite do interesse deste artigo, segue-se aqui então uma indicação feita pelo próprio Antônio Negri (2009), em um artigo conciso, intitulado Para uma definição ontológica da multidão. Nesse artigo, Negri elenca de forma didática três aspectos centrais na ideia de multidão. O caráter imanente da multidão seria o primeiro aspecto. Esse primeiro ponto possibilita a inserção dos autores em um terreno filosófico e epistemológico específico. Trata-se de uma demarcação teórica importante, que aposta em um projeto político para além do terreno da representação. A multidão como imanência garante a validade política das relações entre múltiplas singularidades. No mesmo gesto, postula uma crítica ao pensamento político moderno dominante, que foi construído nas ideias de representatividade e unidade, tão caras a Hobbes, Rousseau e Hegel. Abole-se na multidão uma ideia de povo assentado na transcendência do soberano. Para Hobbes, por exemplo, a multidão não é apta a governar. O múltiplo não conseguiria decidir, sendo necessário assim a unidade. É a representação da multidão que conduz à necessária unidade. A unidade, portanto, é considerada um pressuposto para a existência da paz e do governo civil. Do contrário, subsistiria a guerra e a discórdia. A virtude política se encontra na construção de uma unidade política. Disso resulta a importância que Hobbes dá à noção de representação, tendo em vista que em torno dela se constitui e se garante a unidade. A multidão, na perspectiva de Negri e Hardt (2005), não deve ser domada mediante os mecanismos representativos. Ao contrário, trata-se do protagonista fundamental do cenário político, ao qual se subordinam os dispositivos de representação. Não é a representação que organiza e confere sentido à multidão, e sim a multidão que constitui o sentido do mundo, que determina a produção do direito no espaço político. Negri (2009) destaca, como segundo aspecto, que a multidão é um conceito de classe. Trata-se de um novo ponto de vista da lógica produtiva, que agrega a perspectiva do trabalho cognitivo/imaterial como central nas sociedades capitalistas. A multidão é Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 70 vista como classe na medida em que é aquilo que produz o comum. Além disso, como essa produção se dá por comunicação e cooperação, constitui-se uma classe. Obviamente, não se trata de diminuir a dimensão do trabalho industrial, mas notar a força qualitativa de elementos imateriais presentes nos modos de produção contemporâneos. Dois momentos teriam sido centrais para essa mudança paradigmática. O primeiro é o momento em que o modo de produção se tornou completamente “biopolítico”, ou seja, o ato de captura das linguagens, dos códigos, das necessidades e dos desejos pelo capital. O segundo seria a financeirização, que mediria o valor desse elemento comum produzido por cooperação e comunicação. Ao longo da obra Multidão, os autores enfatizam as dimensões biopolíticas como centrais nos atuais processos de produção. Trata-se de uma relação de poder que está centrada na dimensão biológica, da vida. Na reconfiguração do capital e do Império, calcados nos processos de financeirização, o biopoder é centrado nas dimensões de comunicação e cooperação, ou seja, nas dimensões cognitivas e imateriais, retirando daí sua mais-valia. Nesse sentido, a força do capital não seria expropriada de um indivíduo, mas das singularidades da multidão, de suas formas de comunicação e cooperação. A multidão é então um conceito de classe na medida em que se constrói pela exploração desse comum biopolítico. A multidão é, efetivamente, a classe que produz o comum. Isso permite dizer que a multidão não é apenas explorada em sua produção – como trata a definição de classe trabalhadora -, mas uma exploração da própria cooperação. Assim, entender a multidão como classe, é colocar as singularidades como centrais nos processos de produção. Nas palavras de Negri e Hardt (2005, p. 156): A informação, a comunicação e a cooperação tornam-se as normas da produção, transformando-se a rede em sua forma dominante de organização. Assim é que os sistemas técnicos de produção correspondem estreitamente a sua composição social: de um lado, as redes tecnológicas, e de outro a cooperação dos sujeitos sociais que trabalham. Essa correspondência define a nova topologia do trabalho e também caracteriza as novas práticas e estruturas de produção. Da capacidade de comunicação e cooperação aparece também a terceira característica da multidão: sua potência. O mais importante nessa questão é notar que o comum que é apropriado pelo capital é também o que possibilita certa resistência, ou algo que escapa à lógica produtiva. Negri e Hardt (2005) argumentam que somente analisando a cooperação podemos, com efeito, descobrir que o todo de singularidades produz além da medida. Trata-se de uma fragilidade do comando capitalista, na medida Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 71 em aposta na hegemonia “virtual” do trabalho coletivo, na cooperação produtiva. Esse terceiro ponto será mais explorado neste artigo. Nele, a Internet aparece como elemento de análise. Conforme argumenta Negri e Hardt (2005, p. 14): Uma rede distributiva como a Internet constitui uma boa imagem de base ou modelo para a multidão, pois, em primeiro lugar, os vários pontos nodais se mantêm diferentes mas estão todos conectados na rede, e além disso as fronteiras externas da rede são de tal forma abertas que novos pontos nodais e novas relações podem estar sendo constantemente acrescentados. A Internet, em relação a esse terceiro ponto, fornece alguns exemplos de subversão e inventividade. Se as práticas e os processos que constituem a Internet estão na base de produção do capital, são neles que também aparecem formas de resistência e criação. A CRIAÇÃO MONSTRUOSA DA MULTIDÃO De acordo com as características descritas acima, nota-se como a multidão é explorada em suas relações de cooperação entre singularidades. Trata-se, na visão de Negri e Hardt (2005), de uma exploração das redes que compõem o conjunto. De outro lado, os autores enxergam uma potência nesse modelo, na medida em que aquilo que é explorado ultrapassa as capacidades de controle do sistema. Se a comunicação é apropriada pelo capital, ela tem a potência de ser reapropriada na dinâmica comunicacional das redes. Cria-se aí um elemento inesperado, uma espécie de dobra. Os autores enxergam, nessa agonística própria desse modelo capitalista, a força para o surgimento da multidão como realidade histórica, da multidão como um corpo político. Nos dias atuais, o que os autores conseguem perceber são apenas alguns sintomas desse projeto político que nomeiam como multidão. Por isso trabalham com a ideia de carne da multidão. Os autores constroem assim uma relação polissêmica interessante entre o corpo político global do capital e a carne da multidão. A carne parece operar, na teoria dos autores, como um estágio anterior, do corpo como virtualidade. Para evidenciar a existência dessa carne da multidão, os autores iniciam uma argumentação sobre a crise ou dissolução dos corpos sociais tradicionais. Para muitos, essa carne é monstruosa, porque ela é fugidia, e não pode ser enfeixada nos órgãos hierárquicos de um corpo político tradicional. Para os autores, “essas multidões que não são povos nem nações ou sequer comunidades constituem um Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 72 exemplo da insegurança e do caos que resultaram no colapso da ordem social moderna.”(NEGRI e HARDT, 2005, p. 251). Os autores, assim, parecem apostar na potência do monstro: “precisamos encontrar os meios de realizar esse monstruoso poder da carne da multidão de formar uma nova sociedade”. (p. 253) Um dado interessante da carne é que ela é comum, assim como o ar, o fogo, a terra e a água. O monstro não seria um acidente, mas a possibilidade sempre presente capaz de destruir a ordem natural da autoridade. Daí os autores sugerem uma relação ambivalente com os monstros, pois essa carne monstruosa deve atacar o mundo horrível e monstruoso do corpo político global do capital. Para eles, é preciso usar as expressões monstruosas da multidão para desafiar as mutações da vida artificial transformadas em mercadorias, pois é no novo mundo dos monstros que a humanidade tem de agarrar o seu futuro. Por meio então desse pensamento metafórico da carne do monstro, ou mais precisamente dessa condição latente de uma possível multidão, que os autores desenvolverão alguns cenários já em curso nos dias atuais. As expressões monstruosas da multidão podem ser entendidas, na teoria dos autores, como elementos de criação próprios à multidão. Aqui, não se trata de uma criação hierarquicamente estabelecida, mas de um elogio às capacidades inventivas dos pobres. O conceito de pobre é amplo: pobre aqui são os países periféricos, como o Brasil; pobres são aqueles sem emprego fixo e garantido nessa era de flexibilidade no trabalho. Para Negri e Hardt (2005, p.182), “a criatividade e inventividade dos pobres, desempregados, parcialmente desempregados e migrantes são essenciais para a produção social”. Trata-se de um aspecto daquilo que não tem forma certa, nem pode ser apreendido com harmonia e unidade: a criação. Para os autores, “apesar de sua pobreza e de sua falta de recursos materiais, alimentos, habitação e assim por diante, os pobres efetivamente dispõem de uma enorme riqueza em seus conhecimentos e poderes de criação.” (NEGRI e HARDT, 2005, p.182) As práticas sociais possibilitadas pelo uso de uma plataforma como o Twitter integram esse cenário monstruoso atual, na medida em que participam de revoltas, debates e, em certa medida, atuam efetivamente na condução de questões políticas importantes. As micronarrativas em disputa no Twitter também parecem contribuir para a dissolução da grande narrativa histórica. Obviamente, o Twitter não deve ser visto como uma plataforma revolucionária, mas elemento central do próprio capital, e com possibilidades que ultrapassam sua apropriação capitalística. No limite deste artigo, não se estuda nenhuma mobilização específica ou revolta que faz uso do Twitter, mas um Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 73 uso cotidiano, que parece trabalhar exatamente nessa agonística entre exploração da cooperação entre singularidades e potência comunicacional e criativa daquilo que se produz. CRIAÇÕES NO TWITTER: MEMES COM APROPRIAÇÃO DE FOTOGRAFIAS A fim de evidenciar e tornar mais concreta esta abordagem, pretende-se analisar a reapropriação de imagens com a criação de textos realizada por alguns usuários na rede social Twitter. Não se trata, contudo, de uma análise estritamente linguística, mas sim de uma aproximação às ideias e conceitos trabalhados pelos autores de Multidão. Um primeiro ponto a ser notado, por exemplo, é que os usuários que produzem esse conteúdo com reapropriação de imagens e produção textual, em sua maioria, não carregam a autoridade da representação, e podem ser vistos como singularidades que possuem uma força na realização do múltiplo. De acordo com Negri e Hardt (2005, p. 283), “a mobilização do comum demonstra, finalmente, que os movimentos que fazem parte desse ciclo global de lutas não são apenas movimentos de protesto (embora seja a face que aparece mais claramente na mídia), mas também positivos e criativos”. Além disso, o Twitter atesta, por meio da linguagem, duas características da produção do comum: o hábito e a performance. Para Negri e Hardt, outro modo de compreender a produção e a produtividade do comum seria exatamente o hábito, pois ele seria o comum na prática. Uma das vantagens em trabalhar com o termo é porque ele desloca a ideia da pura subjetividade (as profundezas do eu) ou do sujeito político tradicional (ideia transcendental). O hábito traz uma ideia de atravessamentos de subjetividades, de imanência, na medida em que estamos constantemente criando hábitos que servem para nossa vida prática. Essa construção surge de forma cotidiana, através de trocas comunicacionais, através do comum, e nunca de forma realmente individual ou pessoal. Mistura-se assim hábitos, conduta e subjetividade individual na constituição de nossa natureza social. Além disso, não estariam apenas vinculados a repetições mecânicas de atos passados, mas seriam meios ativos, maneiras enérgicas e dominadoras do agir. Ou seja, uma prática viva de criação e inovação, na qual os autores identificam a própria ideia de multidão. Nas palavras dos autores, “as singularidades interagem e se comunicam socialmente com base no comum, e sua comunicação social por sua vez produz o comum. A multidão é a subjetividade que surge dessa dinâmica de singularidade e partilha” (NEGRI e HARDT, 2005, p.258). O Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 74 que está em jogo nessa produção do comum é a participação mais ativa das singularidades, desejos, afetos dos indivíduos na construção de um corpo, o qual seria mitigado pela lógica capital que, num plano macro, ainda constrói uma sociedade à revelia dessas vontades, hábitos. A produção da linguagem cômica utilizada nas reapropriações de fotos no Twitter parece entrar nesse jogo subjetivo de produção de hábito. Os próprios assuntos do momento no Twitter surgem nessa dinâmica, com contaminações que encaminham determinadas ações. O uso de determinadas fotos “do momento” atesta esse movimento, como veremos adiante. A ideia de performance é um outro elemento trazido pelos autores para ilustrar a produção e a produtividade do comum. A performatividade, a comunicação e a colaboração seriam a chave do paradigma imaterial da produção. Dentre essas performances está a performance linguística, pois se no trabalho fabril o trabalhador é mudo, agora ele tem necessidade de habilidades linguísticas, afetivas e de comunicação. E como a linguagem é sempre produzida em comum, ela pode ser um elemento de criação, ou seja, uma aliada da Multidão. Entretanto, como sabemos, é exatamente no controle do comum que o capital tem agido atualmente. O projeto de Multidão seria possível exatamente por ter seu motor no comum. Para os autores, “essa natureza comum da atividade social criativa é ainda mais destacada e aprofundada pelo fato de que hoje a produção depende cada vez mais de competências e comunidades linguísticas” (NEGRI e HARDT, 2005, p.179) Os memes, em particular, podem ser vistos como uma produção performática que já se tornou habitual e se configurou como um gênero linguístico. Trata-se de uma forma de expressão que se estabelece por meio de novas tecnologias num determinado período histórico, juntamente a todas as transformações culturais que sua inserção acarreta. Para Lima e Castro (2016, p.39), “pode-se dizer, então, que novas formas de ‘querer-dizer’ implicam novos comportamentos comunicativos, consequentemente, novos gêneros textuais”. Uma forma usual de meme no Twitter é a postagem de uma foto que ganha certa visibilidade, mas que, porém, é ressiginificada por um texto que o usuário produz, geralmente, com uso de ironia. Como corpus de análise, buscou-se a página Melhores do Twitter, que faz uma seleção sistemática das postagens. Optou-se por analisar apenas as postagens do mês de dezembro que integravam memes com fotografia e texto e que faziam referência ao atual cenário político. O conteúdo das postagens analisadas fazem referência, em sua maior parte, à situação política no Brasil. Porém, nota-se alguns atravessamentos Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 75 próprios à globalização. Para Negri e Hardt (2005, p.179), “essa comunidade linguística vem antes do lucro e da construção de hierarquias locais e globais.” O post abaixo (Figura 01), por exemplo, diz: “Depois desse cartaz na Paulista acho que agora o Estado Islâmico vai dar uma trégua” (sic). A fotografia mostra um cartaz de fundo amarelo com a frase “Estado Islâmico / Pare!” escrita em azul e vermelho, respectivamente. Na disposição do cartaz, há ainda um ícone que lembra uma placa de trânsito, com uma mão. Figura 01 A legenda da foto, de forma irônica, critica a ineficácia e a ingenuidade da ação reivindicada pelo cartaz, colocado na Avenida Paulista, um dos principais locais de manifestação política da cidade de São Paulo. Interessante notar aqui como a linguagem do texto do autor do post se relaciona com o texto presente na fotografia. O resultado dessa intersemiose é o humor crítico, que parece ser, a propósito, elemento comum em todas as postagens analisadas. Trata-se de um comum linguístico que se tornou, no mesmo gesto, habitual e performático. A foto (Figura 2), do atual presidente Michel Temer com a primeira-dama, algumas crianças e um Papai Noel, também rendeu inúmeros memes cômicos. No dia 16 de dezembro, a página analisada publicou um desses posts, que trazia a seguinte legenda: “Michel Temer distribui talões do INSS a crianças. Confira!”. A crítica aqui se Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 76 refere ao projeto de reforma da previdência, que demandará mais anos de contribuição aos trabalhadores. Como na referida foto, as crianças que estão à frente do presidente e da primeira-dama estão sérias, o texto confere sentido a essas expressões faciais. Figura 2 O usuário que publicou esse post, como pode ser notado, é @avaaaifelipe. Uma breve investigação nesse perfil permite aprofundar a ideia de multidão como classe. Nota-se, no Twitter, que diferentes perfis, de adolescentes e idosos, jornalistas e estudantes, ou ainda perfis de viés feminista, ou esportivo, ou político, todos habitam as possibilidades de comunicação e cooperação oferecidas pela ferramenta, ainda que os poderes e influências de cada um deles dependam de outros fatores. O ponto em “comum” entre eles é o resultado de suas relações intelectuais e cognitivas com a máquina, que gera informação que alimenta o todo. O perfil @vaaaifelipe, que fez a referida publicação, conta em sua descrição apenas com a frase “não repara a bagunça”. Com efeito, a bagunça, a bricolagem e a gambiarra são traços da multidão que o perfil exemplifica muito bem. Note-se que esse perfil possuía 8.868 seguidores à época da postagem. Trata-se do número de usuários que, idealmente e diretamente, entraram em contato com as produções feitas por ele. Entretanto, como redes como o Twitter funcionam com re-postagens, elemento que caracteriza bem a cooperação, esse número deve ser bem maior. As questões políticas configuradas por toda a complexa crise brasileira que atravessou 2016 encontra sua expressão linguística do comum em praticamente todos os posts de viés político. As críticas às medidas tomadas pelo recém-empossado presidente são alvos de montagens humoradas. Ainda em relação ao projeto de reforma da Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 77 previdência, o post do perfil @chatolino integra a foto (Figura 3) de uma criança com uma roupa de gari (possivelmente de um carnaval) com o texto: “Trabalhador deverá contribuir por 49 anos para receber teto da aposentadoria pelo INSS”. A reapropriação da foto, a partir dessa legenda, coloca em questão a ideia de trabalho. É interessante notar que o projeto da reforma da previdência, após muitas críticas como essas aqui analisadas, foi estrategicamente postergado pelo governo. Figura 3 O uso das aspas no Twitter, reproduzindo um texto tal como ele foi divulgado na grande mídia ou como fala do senso comum, torna-se uma ferramenta expressiva e linguística própria da ferramenta. Geralmente, após o uso das aspas com tal texto, inicia-se um texto que o contraria, o ridiculariza, ou demonstra contradições. A foto do menino vestido de gari possui essa função de complemento, dando outro sentido ao texto com aspas. Esses casos demonstrados são similares em sua linguagem comum, e exemplificam bem algumas produções que tratam de criticar e questionar, e certamente influenciar, as decisões políticas por meio de uma linguagem que integra apropriação de fotos com a produção de um texto de até 140 caracteres. Esse comum, segundo Negri e Hardt (2005), é uma produção e um processo. Os memes são amplamente difundidos na rede e atestam um potencial inventivo e de criação da multidão. A potência dessa multidão é um fato atestado por vários casos recentes. As hashtags mais comentadas tem a capacidade de induzir e modificar uma realidade. “Hoje, criamos como singularidades ativas, cooperando nas redes da multidão, vale dizer, no comum” (p. Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 78 182). Resta saber como utilizar esse potencial de criação na conformação de uma verdadeira democracia, onde as criações do comum assumam um papel central na condução das vontades políticas. AUTOR *Gabriel Malinowski é Doutorando em Comunicação pela UERJ-RJ. Mestre em Comunicação pela UFF-RJ (2010). Especialista em Comunicação e Imagem pela PUC- RJ (2008). Graduado em Cinema pela UNESA-RJ (2006). Entre 2009 e 2016, foi docente em cursos de Cinema, Artes Visuais e Comunicação Social; coordenou o projeto de extensão Crescendo com Arte, que oferecia oficinas de cinema para alunos da rede pública do município de Barra Mansa; e foi integrante do projeto de extensão Cinema Encena, que trabalhava na relação vídeo-performance-dança. Atualmente é bolsista FAPERJ de Doutorado. Possui artigo publicado no livro anual da SOCINE, além de outras publicações em revistas acadêmicas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS NEGRI, Antonio e HARDT, Michel. Multidão. Rio de Janeiro: Record, 2005. NEGRI, Antonio. “Para uma definição ontológica da multidão” In Lugar Comum, número 19-20, p.15-26, 2009. LIMA, Geralda de Oliveira Santos e CASTRO, Lorena Gomes Freitas de. “Meme digital: artefato da (ciber)cultura” In Revista (com) Textos Linguísticos. Volume 10. Número 16, 2016. Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 79 Dossiê BELA, RECATADA E DO LAR: relações entre a prática discursiva sobre a mulher e a docilização dos corpos em Foucault Romário Duarte Sanches* RESUMO: Este artigo analisa a prática discursiva sobrea mulher “bela, recatada e do lar” com base na categoria foucaultiana de corpos dóceis. O aporte teórico focaliza-se, estritamente, na obra “Vigiar e Punir”, publicada por Michel Foucault em 1975.Para a discussão da categoria corpos dóceis, delimitou-se a terceira parte do livro (disciplina), na qual, Foucault (1987) procura pensar como se dá o processo de fabricação dos corpos dóceis, enfatizando a disciplina como uma nova técnica de poder. Foucault descreve quatro técnicas ou mecanismos disciplinares que envolvem o processo de formação dos corpos dóceis, a saber: 1) arte das distribuições; 2) controle das atividades; 3) organização das gêneses; e 4) composição das forças. Ao lado do acompanhamento dos dados da teoria foucaultiana, foram relacionados a reportagem da revista Veja, publicada em abril de 2016, e fragmentos do jornal do Jornal das Famílias, periódico brasileiro do século XIX. A materialização discursiva, tanto da reportagem, quanto do jornal, centra-se no sujeito mulher. A aproximação aponta que a mesma prática discursiva do poder disciplinar sobreo corpo feminino encontrado no Jornal das Famílias no século XIX, ainda está presente nos dias atuais, sendo propagada pelas mídias como forma de manter o poder de dominação sobre as mulheres. PALAVRAS-CHAVE: Corpos dóceis, disciplina, poder, mulher. INTRODUÇÃO Influente no pensamento contemporâneo, Michel Foucault também foi ativista político, teórico social, crítico cultural, historiador criativo e professor. Para leitura de sua obra, recomenda-se que o leitor esteja disposto a indagar a ordem social preestabelecida, bem como, desfazer-se de premissas tidas como verdades absolutas. Autores como Oksala (2011), esquematizam a obra de Foucault em três fases distintas: a) a arqueologia; b) a genealogia; e c) a ética. Ressalta-se aqui a fase genealógica, termo escolhido por Foucault para analisar o poder. Pois, é na obra “Arqueologia do saber” que Foucault (2004) toma o discurso como uma prática social, historicamente determinada, onde são constituídos os sujeitos e os objetos. Para ele, as relações entre os dizeres e os fazeres, ou seja, as práticas discursivas são formas de materializar as ações dos sujeitos na história. Uma tentativa de compreender a maneira como as “verdades” são produzidas e enunciadas. Tal prática discursiva está explicitada Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 80 também na obra “Vigiar e Punir”. Nela se discorre sobre conceitos como o de disciplina, de docilização dos corpos, de panoptismo e outros. O trabalho visa às práticas discursivas sobre a mulher “bela, recatada e do lar” presentes no Jornal das Famílias, veiculado no século XIX, e na contemporaneidade, presente na reportagem da revista Veja, publicada em abril de 2016. O artigo encontra- se dividido em três seções. Na primeira, discute-se o aporte teórico, conceituando a natureza do que Foucault assimila como corpos dóceis; seu processo de formação e suas respectivas técnicas disciplinares. Na segunda, traça-se um breve panorama sobre o papel desempenhado pela mulher na história do Brasil. Por fim, apresentam-se os possíveis vínculos de aproximação do processo de docilização do corpo feminino presenteno Jornal das Famílias e na reportagem da revista Veja. 1 APORTE TEÓRICO 1.1 Docilização dos corpos Antes de se adentrar no conceito de docilização dos corpos, parece prudente se fazer uma breve introdução a respeito da obra na qual se encontra a referida categoria de análise. “Vigiar e Punir”, publicada pela primeira vez em 1975. Nela, Foucault discorre sobre as práticas disciplinares que se consolidaram no final do século XVII e início do século XVIII; bem como, atenta para a permanência destas práticas nos dias atuais, como veremos nas próximas seções. A obra está dividida em quatro partes, nominadas da seguinte forma: o suplício, punição, disciplina e prisão. Para discussão acerca da docilização dos corpos, a presente leitura concentra-se na terceira parte do livro sobre a disciplina, da qual, Foucault (1987) procura pensar como se dá o processo de fabricação dos corpos dóceis. O autor enfatiza a disciplina como uma nova técnica de poder. A ideia remonta à história clássica, quando o corpo passa a ser visto como objeto do poder. Como bem descreve Foucault (1987), foi nesse período que houve um grande enfoque ao corpo, à época, entendido com um objeto fácil de ser manipulado: Houve, durante a época clássica, uma descoberta do corpo como objeto e alvo de poder. Encontraríamos facilmente sinais dessa grande atenção dedicada então ao corpo — ao corpo que se manipula, se modela, se treina, que obedece, responde, se torna hábil ou cujas forças se multiplicam (FOUCAULT, 1987, p. 163). Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 81 Na intenção de mostrar como se procede ao poder disciplinar, Foucault (1987) cita as fábricas, as escolas, os quartéis e os hospitais como instituições nas quais a relação e a hierarquia de poder se apresentam da forma mais visível. No caso dos quartéis, Foucault (1987) descreve a figura ideal de soldado no início do século XVII, podendo este ser reconhecido de longe. Já na segunda metade do século XVII, o soldado tornou-se uma espécie de corpo inútil ou inapto, que precisaria ser fabricado conforme as necessidades da instituição. Em torno da discussão sobre uma teoria geral do adestramento, Foucault (1987) menciona o ensaio “O homem-máquina” do médico francês Julien Offray La Mettrie2,escrito simultaneamente em dois registros. No primeiro, denominado de anátomo-metafísico, as páginas iniciais são escritas por Descartes, em seguida, continuadas por médicos e filósofos. No segundo, considerado técnico-político, Foucault constitui o registro por um “conjunto de regulamentos militares, escolares, hospitalares e por processos empíricos, refletidos para controlar ou corrigir as operações do corpo” (FOUCAULT, 1987, p. 163). Para Foucault (1987), o ensaio de La Mettrie é, ao mesmo tempo, uma redução materialista da alma e uma teoria geral do adestramento, e no centro disto, destaca-se a noção de docilidade que une ao corpo analisável o corpo manipulável. O autor entende que um corpo só poderá ser dócil desde que seja submetido, utilizado, transformado e aperfeiçoado. O corpo dócil implica numa coerção contínua que procura explorar ao máximo o tempo, o espaço e os movimentos. Desse modo, o conhecimento dos métodos permite o controle minucioso das operações do corpo, realizando a sujeição constante de suas forças e impondo-o uma relação de docilidade-utilidade. A este processo dá-se o nome de disciplina. Foucault (1987), explica que vários processos disciplinares já existiam nos espaços dos conventos, dos exércitos, das fabricas, etc. Mas somente no decorrer dos séculos XVII e XVIII foi que as disciplinas se tornaram fórmulas gerais de dominação. O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas 2La Mettrie desenvolveu em 1748 o conceito mecanicista do ser humano. Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 82 habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e inversamente. Forma-se então uma política das coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos. (FOUCAULT, 1987, p. 164). Como descreve Foucault (1987), o corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Para o autor, o processo remete a uma espécie de “anatomia política” que se iguala a uma “mecânica do poder”. Nesta última etapa se define o domínio sobre o corpo do outro, não simplesmente para que faça o que se quer, mas para que opere do modo como se deseja, impondo com as técnicas da maquinaria de poder a rapidez e a eficácia que se determina. Logo, a disciplina fabrica corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis”. Para o autor, a função do poder disciplinar é de adestrar o corpo, e para este fim, o adestramento só poderá ser garantido com sucesso se os recursos forem bem aplicados. Assim, “o sucesso do poder disciplinar se deve sem dúvida ao uso de instrumentos simples: o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e sua combinação num procedimento que lhe é específico, o exame” (FOUCAULT, 1987, p. 195). Neste sentido, pode-se afirmar que a disciplina “fabrica” indivíduos, sendo uma técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício. Sem dúvida, a manipulação e o adestramento do corpo não parece fruto da casualidade contemporânea. As relações de força e poder sempre agiram de forma velada sobre o corpo. No que tange a modernidade, o corpo continua a ser fabricado como produto, em trânsito nos diferentes espaços sociais de convivência da família, da escola, da igreja, da Universidade, e da inserção no mercado de trabalho. 1.2 Técnicas disciplinares Foucault (1987) descreve quatro técnicas ou mecanismos disciplinares que envolvem o processo de formação dos corpos dóceis: 1) arte das distribuições; 2) controle das atividades; 3) organização das gêneses; e por último 4) composição das forças. 1) arte das distribuições Para Foucault (1987) a disciplina exige uma espécie de cerca, a especificação de um local heterogêneo a todos os outros e fechado em si mesmo. Trata-se de um local Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 83 protegido da monotonia disciplinar. A produção de um corpo dócil só é possível através de uma repartição do espaço. O espaço disciplinar tende a se dividir proporcionalmente pela quantidade de corpos ou elementos que há para se repartir. Cria-se um quadriculamento onde cada corpo ocupa um lugar em que se possa tirar o máximo dele. O autor cita as fábricas e as escolas, onde os corpos são distribuídos de maneira a regular seus movimentos e suas relações. As tarefas são delimitadas, pois cada aluno tem seu lugar, cada operário está devidamente posicionado na linha de montagem. A regulação do tempo e do espaço é o meio utilizado pela disciplina para impor uma ordem ao corpo, tornando-o eficiente. “A disciplina organiza um espaço analítico para poder vigiar o comportamento de cada um, apreciá-lo, sancioná-lo, medir as qualidades ou os méritos. Procedimento, portanto, para conhecer, dominar e utilizar” (FOUCAULT, 1987, p. 169). 2) controle das atividades Nesta técnica, a disciplina é constituída por meio do controle das atividades, o relógio, ou seja, um dispositivo capaz de conduzir o corpo sem que haja dispersão. Foucault (1987) cita as fábricas, quartéis e as escolas, no sentido que nessas instituições fabricaram uma grade de horários a ser cumpridos, como horário de entrada, saída e intervalo. No caso da escola, o autor mostra que no início do século XIX, foram propostos para a escola horários como: “8,45 entrada do monitor, 8,52 chamada do monitor, 8,56 entrada das crianças e oração, 9 horas entrada nos bancos, 9,04 primeira lousa, 9,08 fim do ditado, 9,12 segunda lousa, etc” (FOUCAULT, 1987, p. 176). De forma semelhante, verifica-se esta prática nos quartéis, hospitais, prisões, etc. A ociosidade passa a representar a ideia de perigo. O tempo deve ser bem utilizado. De acordo com Foucault (1987) é no bom emprego do corpo que o tempo será bem empregado, nada deve permanecer ocioso ou inútil, tudo deverá ajudar a formar o suporte do ato requerido. 3) organização das gêneses Na organização das gêneses, ou seja, no arranjo das instituições em que o corpo disciplinado e dócil se instaura, o espaço e o tempo conduzem à acumulação de saberes, e também, à dominação e sujeição do corpo. O corpo a ser docilizado passa por várias etapas de formação, sendo o processo de docilização dividido em classes, medido por provas e aprimorado por exercícios. Uma série de estágios deve ser ultrapassada até que Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 84 a formação esteja concluída, desde os conteúdos mais simples até a estrutura mais complexa. O poder disciplinar concentra-se nos mínimos gestos (detalhes) e se acumula da repetição; só assim, o homem pode ser considerado útil. Não obstante, o mais importante na organização das gêneses é o exercício, pois, é na repetição que se cria o “bom estudante” e o “funcionário exemplar”, como afirma Foucault (1987, p. 187): “o exercício, transformado em elemento de uma tecnologia política do corpo e da duração, não culmina num mundo do além; mas tende para a uma sujeição que nunca terminou de se completar”. 4) composição das forças Nesta última técnica de disciplina, constata-se que todo treinamento tende a se concentrar num ponto máximo para a eficiência. Uma massa diversificada de indivíduos se torna, na composição de forças, um único corpo maquinal, preparado para reproduzir esquematicamente conhecimentos e práticas. No caso da escola, Foucault (1987) afirma que os corpos já disciplinados como o diretor, supervisor, professor e outros sujeitos “superiores” devem fazer com que seus sinais sejam obedecidos pelos alunos. Neste caso, o que importa não é compreendera ordem, mas perceber o sinal, e logo reagir a ele, de acordo com um código mais ou menos estabelecido. Com isso, a máquina articulada não permite refletir, o corpo treinado apenas reproduz. Em síntese, entende-se que a disciplina produz a partir dos corpos docilizados quatro tipos de individualidade, ou uma individualidade dotada de quatro características: “a celular (pelo jogo da repartição espacial), a orgânica (pela codificação das atividades), a genética (pela acumulação do tempo), e a combinatória (pela composição das forças)” (FOUCAULT, 1987, p. 176). 2 O PAPEL DA MULHER NO BRASIL É pouco provável se debruçar sobre o papel da mulher na história do Brasil sem relacioná-lo às funcionalidades sociais do âmbito familiar. O papel da mulher, historicamente, sempre esteve atrelado ao da família. Se retomarmos a história das Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 85 famílias brasileiras, percebemos a institucionalização da chamada família patriarcal, originária do modelo de sociedade fundamentado no patriarcalismo. A família é uma microssociedade (PROST, 1992), com organização política, econômica, social e cultural, baseada nas macroestruturas sociais em que cada família se encontra. Cada membro familiar conduz um papel. No que diz respeito à função da mulher na família, percebe-se desde a antiguidade, com a dominação do poder da igreja sob as sociedades ocidentais, forte submissão da mulher à figura do “pai”: A todo-poderosa Igreja exercia forte pressão sobre o adestramento da sexualidade feminina. O fundamento escolhido para justificar a repressão da mulher era simples: o homem era superior, e portanto cabia a ele exercer a autoridade. São Paulo, na Epistola aos Efésios, não deixa dúvidas quanto a isso: “As mulheres estejam sujeitas aos seus maridos como ao Senhor, porque o homem é a cabeça da mulher, como Cristo é a cabeça da Igreja... Como a Igreja está sujeita a Cristo, estejam as mulheres em tudo sujeitas aos seus maridos” (ARAÚJO, 2015, p. 45-46). Para Araújo (2015), nessa época, pretendia-se controlar a sexualidade feminina de várias formas e em diversos níveis. Qualquer comportamento “desviante” da mulher deveria ser corrigido com severas punições, como previa a legislação civil do Brasil colonial. Outros sujeitos que fomentaram a ideia de inferioridade da mulher perante o homem foram os médicos. Conforme Priore (2015), nos tempos da colonização, o médico era um criador de conceitos, e cada conceito elaborado tinha uma função no interior de um sistema que ultrapassava o domínio da medicina propriamente dito. O exemplo de incentivo à submissão feminina pode ser extraído da interpretação do médico mineiro Francisco de Melo Franco, em 1794: [...] se as mulheres tinham ossos “mais fraca do que o homem”. Suas carnes, “mais moles [...] contendo mais líquidos, seu tecido celular mais esponjoso e cheio de gordura”, em contraste com o aspecto musculoso que se exigia do corpo masculino, expressava igualmente a sua natureza amolengada e frágil, os seus sentimentos “mais suaves e ternos”. Para a maior parte dos médicos, a mulher não se diferenciava do homem apenas por um conjunto de órgãos específico, mas também por sua natureza e por suas características morais. (PRIORE, 2015, p.79). Durante o século XIX, a sociedade brasileira sofreu uma série de transformações. Presenciou-se o nascimento de uma nova mulher nas relações da chamada família burguesa, ali marcada pela valorização da intimidade e da Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 86 maternidade, do ambiente familiar acolhedor, dos filhos educados com base na religiosidade da esposa dedicada ao marido, às crianças e à igreja. D’incao (2015) mostra que as mulheres casadas ganhavam uma nova função, a de contribuir para o projeto familiar de mobilidade social, através de postura feminina nos salões, como anfitriãs, e na vida cotidiana, em geral, como esposas modelares e boas mães. Percebe-se o reforço da ideologia ideal de mulher: ser mãe, dedicada, recatada e atenciosa. Os cuidados e a supervisão da mãe passam a ser muito valorizados nessa época, ganha força a ideia de que seria importante que as próprias mães cuidassem da primeira educação dos filhos, não deixando suas crias aos cuidados das amas, negras ou “estranhos”, “moleque” de rua. (D’INCAO, 2015, p. 229). Tem-se aqui, o perfil da mulher do lar. Assim, o sucesso das famílias burguesas no século XIX, passa a depender o desempenho das mulheres no espaço doméstico. Não se pode esquecer que a emergência da família burguesa, ao reforçar no imaginário a importância do amor familiar e do cuidado com o marido e com os filhos, redefine o papel feminino e, ao mesmo tempo, reserva para as mulheres novas e absorventes atividades no interior do espaço doméstico. D’incao (2015) mostra que algumas instituições médicas, educativas e de impressa, da época, reforçaram esse papel com a propagação de uma série de propostas que visavam “educar” a mulher para o seu papel de guardiã do lar e da família; como exemplos que revelam esta natureza, tem-se o jornal das famílias, que será apresentado na seção 3.1, e a medicina, que também combatia severamente o ócio, sugerindo que as mulheres se ocupassem ao máximo dos afazeres domésticos. Não muito diferente das mulheres burguesas, Falci (2015) afirma que as mulheres de classe mais abastada não tinham muitas atividades fora do lar. Eram treinadas para desempenhar o papel de mãe e as chamadas “prendas domésticas”, ou seja, suas funções eram orientar os filhos, cozinhar, costurar e bordar. Outras, menos afortunadas, viúvas ou de uma elite empobrecida, faziam doces por encomenda, arranjos de flores, bordados a crivo, davam aulas de piano e solfejo, e assim puderam ajudar no sustento e na educação da numerosa prole. Como se vê, a mulher do século XIX, independente da classe social ou do grau de instrução, estava restrita à esfera do espaço privado, da casa, do lar. A esfera pública do mundo econômico, político, social e cultural pertencia, exclusivamente, ao homem. Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 87 Daí afirmar que a mulher dificilmente seria considerada uma cidadã política, pensante, mas sim um corpo a ser domado, controlado, vigiado. 3 ANÁLISE DAS PRÁTICAS DISCURSIVAS SOBRE A MULHER “BELA, RECATADA E DO LAR” Para compreensão de um determinado fato histórico é indispensável a análise da prática discursiva, como propõe Foucault (2004), pois é no dizer que se fabrica as noções, os conceitos e as verdades de um dado momento histórico. Gregolin (2007) aponta que a análise dessas práticas é uma forma de mostrar que a relação entre o dizer e a produção de uma “verdade” é um fato histórico. No que tange aos textos midiáticos, Gregolin (2007) afirma que a criação de uma “unidade” do sentido é um recurso discursivo que fica evidente nesses tipos de textos. Como o próprio nome parece indicar, as mídias desempenham o papel de mediação entre seus leitores e a realidade. O que os textos da mídia oferecem não é a realidade, mas uma construção que permite ao leitor produzir formas simbólicas de representação da sua relação com a realidade concreta. (GREGOLIN, 2007, p. 16) Para Gregolin (2007), a mídia é o principal dispositivo discursivo por meio do qual é construída uma “história do presente”, pois é ela que formata a historicidade que nos atravessa e nos constitui, modelando a identidade histórica que nos liga ao passado e ao presente. Sabendo da forte influência da mídia na fabricação de sujeitos na sociedade moderna e contemporânea, a análise que será apresentada aqui consistirá, estritamente, no entrecruzamento da categoria de corpos dóceis, encontrado na obra de Michel Foucault, comas práticas discursivas sobre um modelo de mulher, isto é, “bela, recatada e do lar” que se observa em textos midiáticos de dois períodos distintos da história no Brasil. Um deles está no jornal impresso do século XIX e o outro se apresenta nos dias atuais, em reportagens veiculadas por revistas de impacto nacional e internacional. 3. 1 Processo de docilização no Jornal das Famílias No que concerne ao século XIX, selecionamos o Jornal das famílias3 produzido durante os anos 1863 a 1878. Conforme Castro (2014) foi um jornal pensado e editado 3 Atualmente quase todas as edições do jornal estão disponíveis na homepage da Biblioteca Nacional Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 88 pelo Francês Garnier para atender as necessidades das mulheres, exclusivamente, para o entretenimento. Mas para, além disso, é possível observar o conteúdo moralizante em todo o periódico. Como aponta Falci (2015, p. 241) “a elas certos comportamentos, posturas, atitudes e até pensamentos foram impostos. Na primeira edição do jornal constata-se que o periódico se consuma como a continuação da Revista Popular (de circulação mais geral), no entanto, voltado para as atividades domésticas: “O Jornal das Famílias, pois, é a mesma Revista Popular d’ora avante mais exclusivamente dedicada aos interesses domésticos das famílias brasileiras.” (Jornal das Famílias, 1863, p. 02). Conforme Castro (2014) é na leitura do editorial que se percebe como o espaço exclusivo da leitora era destinado a tarefas domésticas, como cozinhar, costurar, cuidar da casa, dos filhos, etc.: “as casadas dedicam-se ao cuidado com a administração do lar, enquanto que as solteiras aprendem a cozinhar, como se estivessem se preparando para o lar que ainda não possuíam”. (CASTRO, 2014, p. 20). O jornal das Famílias também trazia “dicas” de beleza, de como a mulher bela deveria cuidar de sua saúde, sua pele, traços que marcam a feminilidade: “o fundamento das formas belas é a saúde, e para isso não ha como o movimento e o exercício ao ar livre, alimentação substancial e regularidade de nos hábitos da vida, levantar cedo e não deitar tarde. [...] Que uma pele macia e brilhante seja um predicado da beleza, ninguém o contestará por certo, trata-se, porém, de saber como se conserva e mesmo como se obtém este dote”. (Jornal das Famílias, 1863, p. 03). Observam-se também, durante a leitura do jornal, receitas de produtos cosméticos caseiros para cuidar da pele, dos cabelos, receitas para cozinhar, instruções para bordar, fazer crochê ou indumentárias da época. Como exemplos, segue abaixo a figura 01 e 02 mostrando uma receita caseira para cuidar da pela e explicações sobre figurinos. Digital do Brasil (http://hemerotecadigital.bn.br/acervo-digital/jornal-familias/339776). Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 89 Figura 01 – Receita caseira para cuidar da pele Fonte: Extraído do Jornal das Famílias (1863). A figura 02 mostra como se apresentavam as instruções para costurar bons trajes no século XIX. Inicialmente, apresentam-se os modelos de trajes elegantes da época e em seguida explicações sobre cada um. Figura 02 –Figurinos do século XIX Fonte: Extraído do Jornal das Famílias (1864). Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 90 Figura 03 – Descrição e explicação dos figurinos Fonte: Extraído do Jornal das Famílias (1864). Estes exemplos mostram como o poder disciplinar se materializa no discurso, e consequentemente, no corpo que o reproduz, o corpo feminino. Vê-sea existência do regimento disciplinar, do qual, a mulher oitocentista é obrigada a cumprir, isto é, cuidar dos afazeres domésticos e do papel de instrução para uma boa esposa, a fim de que não desfrutasse do ócio, tão condenado pelos médicos da época. Constatam-se inúmeras instruções de como ela deveria agir no âmbito familiar. De fato, a mulher passa por um processo de docilização que tende a esquadrinha-la no discurso da “mulher bela, recatada e do lar”. Em relação às quatro técnicas disciplinares, mencionadas na seção 1.2, para se chegar ao corpo dócil, percebe-se que a arte das distribuições corresponde ao espaço em que a mulher ocupa: a casa e o lar. É justamente neste espaço que se aproveita da mulher, no controle das atividades, pois, a ela, incumbe-se horário para cuidar dos afazeres domésticos e dos filhos, até mesmo, para se dormir. Segundo as “dicas” do Jornal das Famílias, as mulheres deveriam dormir cedo para preservarem sua beleza. Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 91 Por ser um jornal que tem extensa periodicidade, as instruções sobre as tarefas domésticas sempre se repetiam, culminando assim na organização das gêneses. A reprodução das instruções no controle das atividades e na organização das gêneses faria da mulher uma “boa esposa, excelente dona de casa e ótima mãe”. No que tange a composição das forças, é arquitetada a obediência das instruções trazidas pelo referido jornal, não só destinada às mulheres casadas, mas às solteiras, que almejavam ao matrimônio. As mulheres solteiras do século XIX deveriam aprender com as mais experientes, normalmente as mães. Uma tradição de aprendizagem de afazeres domésticos que era transmitida de mãe para filha. 3.1 Processo de docilização na revista Veja A revista Veja é um periódico semanal produzido pela Editora Abril. Na edição de número 2474, publicada no dia 18 de abril de 2016, o papel da mulher contemporânea tornou-se o assunto principal das ruas, das casas, dos ambientes de trabalho e das redes sociais. Com a reportagem intitulada: Bela, recatada e “do lar”, a matéria escrita pela jornalista Juliana Linhares parece pautada no objetivo de descrever quem seria a “quase primeira-dama” Marcela Temer, hoje primeira-dama interina, tendo em vista o afastamento da presidenta Dilma Rousseff. De antemão, vale ressaltar o contexto referencial desta publicação. A edição de número 2474 da revista foi publicada em meio ao cenário conturbado da politica brasileira (em curso do processo de tramitação do impeachment, imputado à presidenta Dilma Rousseff). A interinidade do presidente em exercício, Michel Temer, reverbera na caracterização de Marcela como “quase primeira-dama”. Em meio à polarização da cena política brasileira, dividida entre os que apoiam o impeachment, e os que consideraram o processo como golpe de Estado, a revista Veja emplacou a manchete “bela, recatada e do lar”. Em defesa dos interesses econômicos do grupo social que a financia, parte da mídia brasileira parece desinteressada da informação gratuita, e interessada na manipulação da vida política do país. A este critério, pensa-se a reportagem da revista Veja, em face do projeto de adestramento do sujeito analisado por Foucault, como se vê a seguir. Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 92 Figura 04 – Matéria da Revista Veja sobre Marcela Temer Fonte: Extraído da revista Veja (2016). A figura 04 mostra a “cabeça” da reportagem, trazendo ao leitor a imagem de Marcela Temer, ilustrada pela sinopse da legenda: “A quase primeira-dama Marcela Temer, 43 anos mais jovem que o marido, aparece pouco, gosta de vestidos na altura dos joelhos e sonha em ter mais filho com o vice”. Ao longo da reportagem, a jornalista Juliana Linhares apresenta a biografia de Marcela Temer, comentando sobre sua formação acadêmica e a rotina diária da quase primeira-dama. O texto inicia-se com o trecho: “Marcela Temer é uma mulher de sorte”. A jornalista conta ao público que Temer foi o primeiro namorado de Marcela, e que eles se casaram quando ela tinha 20 anos, e ele, 62. Ela é Bacharel em Direito, mas nunca exerceu a profissão de advogada. Gosta das tarefas domésticas e se dedica ao filho e ao marido. Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 93 A impressão do leitor ao ler a reportagem é a descrição de uma mulher burguesa do século XIX, como já citado na seção 2. O processo de docilização do corpo da mulher está explicito na pratica discursiva da jornalista, ao apresentar Marcela Temer. Considerando as quatro técnicas disciplinares, destaca-se na primeira delas, a arte das distribuições, a ideia que consiste em fixar o “lugar” que Marcela ocupa: o espaço doméstico. A dócil presença de Marcela na família Temer é corroborada pelo trecho: “Marcela é uma vice-primeira-dama do lar”. A segunda técnica, o controle das atividades, corresponde ao relógio que controla cada atividade de Marcela Temer. Neste cotidiano, cita-se as tarefas da mãe afetuosa, que busca o filho na escola; da mulher vaidosa, que vai ao salão de beleza para cuidar do cabelo e da pele, e da jovem esposa, mais inteirada do que o setuagenário marido com o gerenciamento das mídias digitais dele. Atrelado ao controle das atividades está a organização das gêneses, ou seja, a repetição das tarefas domésticas e o cuidado com a beleza, conforme se observa-se no fragmento da matéria: Seus dias consistem em levar e trazer Michelzinho da escola, cuidar da casa, em São Paulo, e um pouco dela mesma também (nas últimas três semanas, foi duas vezes à dermatologista tratar da pele). [...] “Marcela sempre chamou atenção pela beleza, mas sempre foi recatada”, diz sua irmã mais nova, Fernanda Tedeschi. “Ela gosta de vestidos até os joelhos e cores claras”, conta a estilista Martha Medeiros.[...] Marcela é o braço digital do vice. (Revista Veja, abr. 2016) A última técnica de formação dos corpos dóceis é a composição das forças; trata-se do corpo treinado. A mulher é posicionada de forma docilizada, preparada para ocupar o lar e ser uma “boa esposa e mãe”. Caberá a ela, mulher, reproduzir o processo de docilização à outras mulheres, que por conseguinte, deverão obedecer aos seus sinais, caso queiram obter o sucesso de Marcela Temer, referida na matéria jornalística como “mulher de sorte”, que conseguiu se casar com um “homem de sorte”. CONSIDERAÇÕES FINAIS Os resultados da análise feita sobre as práticas discursivas no Jornal das Famílias e na reportagem da Veja sobre Marcela Temer, mostram que a história do poder disciplinar sobre o corpo feminino é descontínuo. Semelhante processo de docilização encontrado no Jornal das Famílias (século XIX) também reverbera na reportagem da Revista Veja (século XXI), em recortes temporais distintos. Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 94 A luz da docilização do corpo, a mulher “ideal” é aquela que sabe cuidar da casa e dos filhos, é a mulher “prendada”, “bela, recatada e do lar”. Em ambas as práticas discursivas analisadas, tanto no jornal quanto na revista, o papel feminino impõe a total submissão ao homem, instaurando assim o poder disciplinar do corpo da mulher. No século XIX o único espaço da mulher era a esfera privada, a casa. Já no século XXI é possível encontrar o corpo feminino nos espaços públicos, conquista do movimento e da luta feminista. Na contramão das conquistas emancipatórias da mulher, a reportagem da revista Veja parece perpetuar o “ideal de mulher”, concedendo notoriedade a Marcela Temer, por observar na quase primeira-dama traços da docilidade. Desde o surgimento da imprensa, a mídia confirmou-se como forte dispositivo capaz de disciplinar sujeitos e manter a ordem social preestabelecida. Ao lado da mídia, a família como microssociedade, irá reproduzir a ordem social (mulher disciplina e submissa), criando novas forças de poder, novos corpos dóceis. Ciente da maleabilidade do poder, sensível às novas construções e usos sociais, torna-se possível assimilar a força subjetiva que rompe com os processos de docilização. Ainda é preciso se aprofundar e acrescentar categorias e reflexões foucaultianas para uma análise mais consistente e aprimorada. Todavia, este trabalho fornece novos resultados, completados pelas categorias da formação discursiva, da história descontínua, das regularidades, das ordens do discurso, e da ideia de dispositivo. Para além da análise do discurso, os resultados também servem ao propósito da análise sociológica, observando questões sociais como o machismo, o papel da mulher contemporânea, a manipulação midiática, a sociedade de controle e a sociedade disciplinada. AUTOR *Romário Duarte Sanches é Doutorando em Linguística pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Mestre em Linguística pela mesma universidade (UFPA). Especialização em Estudos Linguísticos e Análise Literária pela Universidade do Estado do Pará (UEPA). Graduado em Letras/Inglês pelo Instituto de Ensino Superior do Amapá (IESAP). Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Amapá (UNIFAP). Atua nas áreas de Letras e Linguística. Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 95 REFERÊNCIAS: ARAÚJO, E. A arte da sedução: sexualidade feminina na Colônia. In: DEL PRIORE, M. (org.); BASSANEZI, Carla (coord. de textos). História das Mulheres no Brasil. 10. ed. São Paulo: Contexto, 2015. CASTRO, V. V. Feitiços velados às gentis leitoras: cinco mulheres no Jornal das Famílias. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal do Pará: Belém, 2014. D’INCAO, M. A. Mulher e Família Burguesa. In: DEL PRIORE, M. (org.); BASSANEZI, Carla (coord. de textos). História das Mulheres no Brasil. 10. ed. São Paulo: Contexto, 2015. DEL PRIORE, M. Magia e medicina na Colônia: o corpo feminino. In: DEL PRIORE, M. 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Ano 2017 - www.revistasisifo.com 96 Dossiê VIDA SERIAL, ÊXTERO-CONDICIONAMENTO E IDEOLOGIA: uma análise dos ‘mass media’ pela ótica de Sartre Vinícius dos Santos* Resumo: o artigo pretende resgatar o modo como o conceito de série, ou de vida serial, presente na Crítica da razão dialética de Sartre, e seu desdobramento naquilo que este filósofo qualifica como êxtero-condicionamento, podem ser ferramentas conceituais úteis para se pensar o papel e o funcionamento dos meios de comunicação de massa na contemporaneidade. Particularmente, no que diz respeito à disseminação de discursos ideológicos, como, por exemplo, o colonialismo e o racismo. Para tanto, se tratará, Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 97 primeiramente, de recuperar as linhas de força do edifício teórico erigido na Crítica, sobretudo a relação entre alienação e prático-inerte, para, na sequência, esclarecer o vínculo entre aqueles conceitos. Palavras-chave: alienação, êxtero-condicionamento, ideologia, meios de comunicação, serialidade. Em texto publicado há pouco mais de uma década, Frederic Jameson afirmava que o conceito sartriano de série, que aparece na Crítica da razão dialética, de 1960, seria “a única teoria satisfatória da opinião pública, a única verdadeira filosofia das mídias elaboradas até hoje” (JAMESON In: KOUVÉLAKIS & CHARBONNIER, 2005, p. 27). Sem necessariamente corroborar com o caráter peremptório da afirmação do filósofo norte-americano, este artigo pretende resgatar o modo como a noção de vida serial, e seu desdobramento naquilo que Sartre qualifica como êxtero-condicionamento, podem ser ferramentas conceituais úteis para se pensar o papel e o funcionamento dos meios de comunicação de massa, mesmo que Sartre não tenha elaborado uma teoria completa sobre o tema. Particularmente, nossa atenção se volta ao modo de disseminação de discursos ideológicos, como, por exemplo, o colonialismo e o racismo, que a grande mídia pode viabilizar. Para tanto, será preciso, primeiramente, recuperar as linhas de força do edifício teórico erigido na Crítica, para, na sequência, esclarecer o agenciamento entre aqueles conceitos. I A Crítica da razão dialética representa o esforço definitivo de Sartre de fazer convergir seu existencialismo com uma interpretação não dogmática do marxismo. Sem entrar no mérito global da proposta, pode-se afirmar que a obra de 1960 visa esclarecer as condições transcendentais da história e, mais particularmente, da sociabilidade capitalista, por um viés materialista de assumida inspiração marxista. O ponto de partida da chamada “experiência crítica” encontra-se na relação entre a práxis individual[1] e o binômio necessidade/escassez, cujo esclarecimento é imperativo para posteriormente se compreender a noção de série. Pela práxis, isto é, pela ação no mundo inerte, o indivíduo busca satisfazer suas necessidades orgânicas. A necessidade faz surgir a primeira relação totalizante do ser humano enquanto organismo prático, ser material, com seu meio. Com efeito, ela file:///C:/Users/Marcelo/Desktop/(convidado)%20Vinicius%20dos%20Santos%20-%20Vida%20serial,%20êxtero-condicionamento%20e%20ideologia%20em%20Sartre.docx%23_ftn1 Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 98 representa a primeira negação da matéria e sua primeira totalização. “A necessidade é negação de negações na medida em que ela se denuncia como uma falta no interior do organismo, e ela é positividade na medida em que, por ela, a totalidade orgânica tende a se conservar como tal” (SARTRE, 1985, p. 194). A necessidade destotaliza a totalidade plena subsistente no mundo inorgânico, e essa destotalização injeta a negatividade no mundo, acionando uma lógica dialética de totalizações mediante a destruição de cada momento parcial. Ao agir no mundo material, o homem cria um campo prático, em conjunto com outros indivíduos (também agentes em busca de satisfazer suas carências), imprimindo um significado propriamente humano à matéria trabalhada, e criando uma nova dinâmica de inter-relações. Assim, a matéria circundante, passiva e inerte, torna-se sujeita a uma série de unificações e totalizações de outras práxis que escampam a cada agente. Minha totalização, porque adentra o campo totalizador da práxis de outrem, é igualmente destotalizada por esses outros campos. Sartre ilustra essa relação através do seguinte exemplo: um jardineiro e um calceteiro, desconhecidos entre si, trabalham em lados opostos de um mesmo muro. Cada um é o centro de sua própria ação no mundo objetivo, centro de uma disposição diferente do universo, e que possui seu próprio campo totalizante. A princípio, inexiste relação direta entre eles. Contudo, a intermediação, ignorada por ambos, de um terceiro – um intelectual que os observa da janela – e promove a unificação dessa díade. O homem só existe para o homem em circunstâncias e em condições sociais dadas; portanto, toda relação humana é histórica. Mas as relações históricas são humanas na medida em que elas se dão a qualquer tempo como a consequência dialética imediata da práxis, isto é, da pluralidade de atividades no interior de um mesmo campo prático (SARTRE, 1985, p. 210). No âmbito das relações práticas, há reciprocidade sempre possível, pois nela me torno veículo do projeto totalizante de outro na medida em que o outro se torna veículo de minha totalização. Em outras palavras, há um intercâmbio. Além disso, dois indivíduos também podem ser veículos de um projeto conjunto, transcendente. Neste caso, tais formas de reciprocidade se qualificam como positivas. Não obstante, ao haver recusa de uma relação recíproca tem-se o conflito. Doravante, afirma Sartre, cada um utilizará seu próprio campo material com o objetivo de conquistar objetivamente o outro, tendo como base a relação de carência. Trata-se de uma reciprocidade negativa (instrumentalização do outro, reificação, confronto). Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 99 Mas, se o ponto de partida da experiência crítica é a práxis do ser humano que busca satisfazer suas necessidades, cumpre complementar este princípio com um dado alarmante e decisivo para se compreender a vida social e histórica pela ótica sartriana: a escassez, desenvolver uma estratégia de dominação do mundo com base na idéia de criação do “inimigo supremo” e do armamentismo nacional, a política de Washington estaria estimulando a proliferação de armas de destruição em massa no plano internacional e, consequentemente, fazendo do mundo um lugar mais inseguro. 6. O verdadeiro caráter da política do mais poderoso país do mundo revela-se não pelo poder da retórica de seus presidentes e diplomatas, mas por suas ações e contradições práticas, muitas vezes encontradas no confronto entre os documentos e discursos oficiais e a observação prática. 7. Os alvos de intervenções humanitárias das potências ocidentais são descartáveis no day after, o que confirmaria o descompromisso com os altos valores de proteção dos direitos humanos em condição universal, conforme retoricamente anunciados. (BENVENUTO, Lua Nova, São Paulo, 73: 123-145, 2008) Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 11 As convicções de Chomsky segundo as quais o sistema de controle por ele descrito manipula os cidadãos do seu país – e do mundo – na medida em que reúne “os grandes partidos, as corporações, uma fatia muito especial de advogados, o poder militar e também os grandes meios de comunicação” (Halperin, 2003, p. 8; tradução do autor) são sustentadas por um arsenal propagandístico que ao mesmo tempo em que gera, alimenta-se do medo. Na condição de autor de orientação “anarco-sindicalista", Chomsky atribui a condição de sócios na tarefa de dominar o mundo a instituições – o Estado (em especial o poder militar), as grandes corporações econômicas, as universidades (e seus funcionários), a mídia – tão poderosa quanto difícil de ser confrontada, e ainda mais superada. Este artigo tem o objetivo de enfocar na compreensão do autor em relação às conexões entre a política, em especial a política internacional, a propaganda e o medo, como elementos de uma grandiosa estratégia de dominação global. Ao mesmo tempo em que procurarei demonstrar a força das ideias do autor, pretendo apresentar alguns pontos que considero dignos de serem problematizados em sua teoria. A GRANDIOSA ESTRATÉGIA IMPERIAL Chomsky demonstra crer na existência de uma conspiração transnacional pela manutenção do status quo internacional a qual descreve como grandiosa estratégia imperial dos Estados Unidos da América. Embora não deixando de relacionar sua análise com outros períodos históricos, o trabalho de Chomsky se concentra sobretudo nas estratégias utilizadas por seu país para manter o poder mundial, papel assumido ao longo do século XX, e principalmente com o término da II Guerra Mundial. O projeto de controle internacional teria sido baseado em estudos realizados já em 1941 (que) concluíam que o objetivo fundamental de longo prazo era que os Estados Unidos se transformassem na potência inquestionável do pós-guerra e agissem de forma tal que limitassem a soberania de qualquer Estado que pudesse interferir na política de adquirir supremacia militar e econômica […] (2004a, p. 16) A grandiosa estratégia imperial seria baseada no direito auto-instituído de empreender “guerra preventiva” quando desejar, com respaldo no direito internacional contemporâneo e certamente no poderio militar inquestionável. (Chomsky, 2004b, p. Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 12 18) Entre outras, a categoria jurídica “crimes de guerra” é apresentada como maleável o suficiente para ser usada ou descartada quando se apresentar conveniente do ponto de vista político e militar. Não fora por outra razão que os EUA anunciaram que ignorariam o Conselho de Segurança da ONU com relação ao Iraque quando do ataque às torres gêmeas em 11 de setembro de 2001, ignorando as normas multilaterais e passando a adotar o uso da força unilateral. (Chomsky, 2004b, p. 19) A conveniência da guerra preventiva seria a de que para se encaixar na categoria, o alvo "precisa ser totalmente indefeso”, “ter importância suficiente para compensar o esforço”; e “haver um meio de pintá-lo como a mais terrível e iminente ameaça à nossa sobrevivência.” (Chomsky, 2004b, p. 23) Além de manter o poder político global no cenário mundial, o objetivo da grandiosa estratégia imperial conduzida pelos Estados Unidos da América seria manter o sistema econômico capitalista. Em cada situação geopolítica objeto de sua análise, Chomsky identifica as conexões com o poder econômico, como faz no que se refere às intenções estadunidenses relacionadas ao conflito no Iraque: Os programas econômicos que têm sido anunciados seguem o estandarizado modelo neoliberal, na tentativa de transferir o controle da economia iraquiana para corporações multinacionais e instituições financeiras, a maior parte baseadas nos Estados Unidos. (…) Uma base militar no Iraque será a primeira no coração da maior região de produção energética que é verdadeiramente confiável, sempre que ao Iraque não seja permitido ir além da independência formal. (Halperin, 2003, p. 17; tradução do autor). O final da citação anterior demonstra a visão do autor de que o controle exercido pelos Estados Unidos da América sobre seus parceiros seria sobretudo político. Uma vez fosse demonstrada a intenção dos atores políticos de escaparem ao controle político, seria retirado o apoio econômico e político, passando a se constituir em objeto da luta por dominação. O programa de controle global estaria em inteira compatibilidade com os gastos norte americanos em matéria militar: o mesmo que todo o resto do mundo reunido. Na contramão do que o mundo aprendeu a conhecer e louvar sobre os Estados Unidos da América, Chomsky considera seu próprio país um “estado totalitário”, não muito diferente de outros com pretensões imperiais, como a Rússia e a China. Colocar os Estados Unidos da América no spotlight de suas críticas tem o sentido consciente de dar correspondência à importância que o país tem no plano mundial como exemplo de democracia. Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 13 Num estado totalitário, não importa o que o povo pensa, já que o governo pode controlá-lo pela força usando um cacete. Mas quando você pode controlar o povo pela força, você tem que controlar o que o povo pensa, e o modo padrão para fazer isso é pela via da propaganda (criação de consenso, criação de ilusões necessárias), marginalizando o público em geral ou limitando-lhes à apatia de alguma moda. […] Numa sociedade totalitária, a guerra é um negócio sério e […] o ditador simplesmente diz ‘estamos indo à guerra’ e todos marcham (Manufacturing consent, 1992, tradução do autor). A grandiosa estratégia imperial teria sido reforçada, sob Bill Clinton e Tony Blair, pela ideia de um “novo internacionalismo”, a qual seria justificada pela intolerância brutal aos grupos étnicos que incomodam o império e “seu sócio britânico”. Segundo ele, a nova ordem internacional tratou de atribuir-se legitimidade exclusiva para agir em nome da comunidade de nações, usando a força sempre que considerasse adequado e em obediência às “modernas noções de justiça”. A doutrina da nova ordem internacional global, para Chomsky, resume-se à palavra de ordem: “os tiranos que se cuidem”. Sua análise é focada nos objetivos anunciados pelos Estados Unidos, e certamente seu “sócio britânico” e pela OTAN para a intervenção em diversas partes do mundo com os objetivos anunciados de “garantir a estabilidade”; “conter a limpeza étnica”; e “garantir a credibilidade da OTAN”. Ao tratar das intervenções humanitárias, Chomsky não se restringe a enquadrar o termo na definição legal constante das convenções internacionais de Direito Humanitário. Considera intervenções humanitárias as ações, embora unilaterais, de potências militares no sentido de retórica e formalmente justificarem a manutenção da paz em regiões fenômeno que impede a satisfação das necessidades de todos, imprimindo à intersubjetividade o sinal negativo da luta e da violência. Com efeito, segundo o filósofo, a História humana não se inicia apenas com o movimento de busca de satisfação das carências orgânicas. Antes, seu indício originário é a impossibilidade de satisfazê-las plenamente, na medida em que haveria um descompasso entre os recursos naturais/materiais forçosamente finitos e as necessidades humanas tendencialmente infinitas. Embora não seja necessária, diz Sartre, a escassez seria, na prática, universal, demarcando, assim, o limite externo da ação prática dos indivíduos. À luz dessa situação, os seres humanos, organismos “primeiramente separados”, se unem para lutar contra a escassez. Criam objetos, ferramentas, máquinas etc. com o intuito de dominar a natureza e minimizar a penúria primitiva, relaxando a pressão por ela exercida. Criam, por conseguinte, as condições materiais de sua reprodução. Numa palavra, fazem história. A escassez, “determinação contingente de nossa relação unívoca à materialidade” (SARTRE, 1985, p. 237), é o índice que, para Sartre, inaugura a inteligibilidade da história humana. Desse modo, a escassez fundamental promove uma unidade negativa de todos enquanto incompletude (ou como “totalidade-destotalizada”), efetiva “impossibilidade de viver”. O resultado é dramático: a própria coexistência, que a princípio serviria para minimizá-la ou superá-la, com o decorrer do tempo devém igualmente impraticável. Sob a égide da escassez, explica Sartre, cada um se torna um excesso para os outros, um consumidor em potencial de algo que não existe para todos, que não poderá ser consumido mais tarde etc. Cada um passa, assim, a ser Outro-que-não-eu, um ser inumano, alienígena; um perigo para mim na exata medida em que sou um perigo para o outro. Onde a reciprocidade é alterada pela escassez cria-se o anti-homem: o outro é visto como um excesso, redundante, de trop[2]. Assim, em um quadro de escassez, o homem “é objetivamente constituído como inumano e essa inumanidade se traduz na práxis pela apreensão do mal como estrutura do Outro” (SARTRE, 1985, p. 244). II file:///C:/Users/Marcelo/Desktop/(convidado)%20Vinicius%20dos%20Santos%20-%20Vida%20serial,%20êxtero-condicionamento%20e%20ideologia%20em%20Sartre.docx%23_ftn2 Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 100 O que foi visto na seção precedente pode ser sintetizado no seguinte trânsito dialético: a natureza, intrinsecamente escassa, não possibilita ao ser humano a completa satisfação de suas necessidades (negação da própria possibilidade de existência do homem). Este, por sua vez, cria objetos e se une aos outros para superá-la (negação da negação). Mas, essa união cria uma reciprocidade alterada pela própria escassez, uma união negativamente estabelecida por um fator externo, uma tensão fundamental e inevitável em nome da sobrevivência. Segundo Sartre, toda sociedade se constitui como uma forma de luta contra a escassez. Por conseguinte, o binômio necessidade/escassez seria o verdadeiro “motor da História”. Ela seria o fundamento da escassez própria aos modos de produção históricos descritos pelo marxismo; consequentemente, a via de inteligibilidade da luta de classes. Sempre segundo Sartre, a escassez torna os indivíduos antagonistas entre si, não obstante forçá-los, ao mesmo tempo, a um mínimo de cooperação em nome de sua sobrevivência. Contudo, não é apenas a escassez que, externamente, interfere e altera a reciprocidade interindividual. De acordo com o filósofo, a própria forma com que os seres humanos se relacionam entre si pela intermediação do campo material os opõe uns aos outros, porquanto esta relação é, em si mesma e inexoravelmente, alienante. Explica-se: diante da realidade da escassez, a ação de cada um é orientada em relação à ação dos outros. Ao criar um instrumento de trabalho ou um objeto de consumo, a pressão exercida pela escassez é afrouxada e as relações de alteridade no interior do grupo diminuem. Não obstante, esse fenômeno positivo logo se reverte. Justamente porque a negação originária não pode ser abolida, ela reaparece em um nível mais elevado: o da produção social. O produto da ação humana – sua objetivação, na linguagem hegeliano-marxista – torna-se, então, a fonte da alienação da liberdade. Isso significa que, se a história daquilo que Marx chamava de “indústria humana” se caracteriza por uma crescente dominação em relação à natureza, permitindo uma autonomia crescente, Sartre entende que este processo retornaria contra o homem desde seu bojo com o ressurgimento da negação originária tornada uma negação radical da sociedade. Esta negação, portanto, é que demarcaria “os fundamentos reais da alienação” (SARTRE, 1985, p. 262). Não se trataria, destarte, de um fenômeno acidental. Na leitura de Sartre, é a própria forma que assume a relação que os indivíduos estabelecem entre si mediados pela matéria. Como explica o filósofo, “a matéria aliena em si o ato que a trabalha, não tanto na medida em que ela é uma força, nem mesmo enquanto ela é inércia, mas na Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 101 medida em que sua inércia permite absorver e retornar contra cada um a força de trabalho dos outros” (SARTRE, 1985, p. 262). Assim, no momento do trabalho, “é o produto que designa os homens enquanto Outros, e que se constitui a si mesmo em outra Espécie, em contra-homem. É no produto que cada um produz sua própria objetividade, que retorna a ele como inimigo e o constitui como Outro” (SARTRE, 1985, p. 262-3)[3]. Para corroborar sua posição, Sartre recupera o caso dos camponeses chineses, que durante séculos desmataram seus campos para aumentar a produtividade de alimentos. Essa prática social inicialmente positiva, com o decorrer dos anos terminaria por arrasar culturas inteiras, devido às inundações suscitadas por este mesmo desmatamento. Ao agir sobre a matéria, explica o autor, o homem vê sua práxis alterada pelo concurso da ação (passada ou presente) de outrem. O resultado de minha ação nem sempre condiz com minha intenção original (isto é, com meu “projeto”), e isso ocorre porque minha práxis foi alterada (desviada, modificada etc.) pela práxis alheia. Essa interferência inevitável, complementa Sartre, impede, ao final, que eu me reconheça nos produtos oriundos de minha atividade, ou seja, em minha objetivação. Logo, bloqueia a compreensão das causas que levaram minha ação a um resultado diverso daquele que eu esperava. Pois, como afirmado em Questão de método – preâmbulo metodológico da Crítica da razão dialética –, se a História me escapa, “isto não decorre do fato de que não a faço: decorre do fato de que outro também a faz” (SARTRE, 1985, p. 74). Assim, o homem faz a História: isto quer dizer que ele se objetiva nela e nela se aliena; neste sentido, a História, que é obra própria detoda a atividade de todos os homens, aparece-lhes como uma força estranha na medida exata em que eles não reconhecem o sentido de sua empresa (mesmo localmente eficaz) no resultado total e objetivo (SARTRE, 1985, p. 74). Em resumo: se, por um lado, a matéria tem como função unificar todas as práxis individuais, singulares, parciais, por outro, essa síntese se dá de um modo específico. Quer dizer, “não é que a matéria absorva as ações humanas e as coisifique ou as reifique: primeiramente, ela as unifica, e ela as unifica da maneira pela qual a matéria pode unificar, isto é, desindividualizando-as, dessingularizando-as, portanto, massificando-as” (FISCHBACH. In: BAROT, 2011, p. 305). Logo, o processo de unificação da práxis só pode tornar esta práxis estranha a si mesma. A “objetivação é alienação” (SARTRE, 1985, p. 274), afirma Sartre, fazendo eco a Hegel, justamente porque, através dela, cada um “retorna a si como Outro” (SARTRE, 1985, p. 336). file:///C:/Users/Marcelo/Desktop/(convidado)%20Vinicius%20dos%20Santos%20-%20Vida%20serial,%20êxtero-condicionamento%20e%20ideologia%20em%20Sartre.docx%23_ftn3 Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 102 Sartre denomina o meio social surgido por esta realidade de ação e estranhamento[4] de prático-inerte. O prático-inerte é o campo de socialização de nossa vida diária, isto é, em que se define nossa “situação”. Nesse sentido, atesta Sartre, vivemos cotidianamente em uma esfera na qual a liberdade é dramaticamente convertida em necessidade: os fins humanos adquirem o caráter de contra-finalidades naturais e a atividade prática torna-se “atividade-passiva”, recorrência inercial, independente da vontade dos indivíduos. A sociedade se torna uma “síntese passiva da multidão” (cf. RIZK, 1996, p. 57 e ss.), isto é, unidade incompleta de uma “multiplicidade prática” de indivíduos a priori atomizados e massificados. O campo prático-inerte é o campo de nossa servidão, e isso não significa uma servidão ideal, mas a submissão real às forças “naturais”, às forças “mecânicas” e aos aparelhos “anti-sociais”. Isso quer dizer que todo homem luta contra uma ordem que o esmaga real e materialmente em seu corpo e que ele contribui a sustentar e a reforçar pela própria luta que, individualmente, ele trava contra ela (SARTRE, 1985, p. 437). Dentro do projeto sartriano, convém reforçar, o prático-inerte funcionaria como o “fundamento lógico” da alienação capitalista descrita por Marx, porquanto serviria de anteparo à alienação característica dos modos de produção – a “alienação a posteriori”, que “começa com a exploração” (SARTRE, 1985, p. 336). Com efeito, neste governo da matéria, “equivalência da práxis alienada e da inércia trabalhada” (SARTRE, 1985, p. 181), a relação dos indivíduos entre si atravessados pela impotência, cria imperativamente uma força antissocial: na medida em que agem sobre a matéria em busca de garantir sua sobrevivência orgânica, a matéria trabalhada se contrapõe dialeticamente às práxis nos termos de uma férrea necessidade. Uma vez absorvida pela matéria, a práxis se transforma em exis, permanência, e a liberdade em inércia. O importante a se notar, observa Sartre, é que isso não se reduz à simples absorção da práxis pela matéria. Por exemplo: o desmatamento, ação humana sobre a natureza, não é igual à ausência de árvores, dado inerte da realidade material, mas uma relação de alienação promovida pelo concurso das práxis. III file:///C:/Users/Marcelo/Desktop/(convidado)%20Vinicius%20dos%20Santos%20-%20Vida%20serial,%20êxtero-condicionamento%20e%20ideologia%20em%20Sartre.docx%23_ftn4 Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 103 O cenário alienante acima descrito, no qual o reconhecimento interindividual é bloqueado à medida que os produtos da práxis se alienam de seus agentes, gera o modo de socialização característico do prático-inerte, que Sartre denomina série. Quando dois indivíduos se incluem mutuamente no campo de totalizações do outro, se estabelece uma relação recíproca de interioridade, em contraste com a de exterioridade, em que a reciprocidade é encontrada em algo externo. Para apreender a formação das coletividades, dentro do processo espiral dialético, Sartre sugere se ater, primeiramente, à forma mais simples de reciprocidade, a saber, aquela em que há uma oposição entre a reciprocidade como relação de interioridade e a solidão dos organismos enquanto relação de exterioridade. O resultado é a relação simultaneamente interna- externa típica da serialidade. No modo de existência serial, indivíduos isolados, antagônicos e intercambiáveis entre si, são unidos apenas pelo concurso da matéria exterior. Como mencionado, no domínio do prático-inerte, a práxis se transforma em exis, e a liberdade, alterada pelo concurso da ação de outras individualidades (sem necessária comunicação direta entre si), torna-se necessidade, fatalidade, destino. Numa palavra, a objetivação se converte em alienação. Esta, diz Sartre, é a realidade ao qual estamos subsumidos cotidianamente. Por exemplo, o filósofo sugere que consideremos um grupo de pessoas em fila aguardando o ônibus. Elas formam uma “pluralidade de solidões”. Os indivíduos permanecem lado a lado, junto ao ponto de ônibus, mas sem qualquer senso de comunidade. São apenas indivíduos justapostos, cuja coexistência é exclusivamente mediada pela matéria exterior (no caso, o ônibus que aguardam). Nesse nível, as solidões recíprocas como negação da reciprocidade significam a integração dos indivíduos à mesma sociedade e, nesse sentido, podem ser definidas como certa maneira (condicionada pela totalização em curso) de viver em interioridade e como reciprocidade, no seio do social, a negação exteriorizada de toda interioridade [...]. Finalmente, a solidão torna-se [...] o produto real e social das grandes cidades (SARTRE, 1985, p. 365). A solidão, portanto, pode ser compreendida como a primeira característica da serialidade. Mas, para Sartre, ela não é apenas fruto da dinâmica da vida em sociedade, mas é também um projeto. Ou seja, ela é vivida, suportada. Quando leio um jornal aguardando o ônibus, utilizo de um coletivo nacional com o intuito de me isolar, por exemplo, das outras três pessoas que estão na fila comigo. Tal situação se generaliza: o Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 104 projeto de solidão de cada um faz com que a reciprocidade exista e seja negada ao mesmo tempo. Todas as unidades de uma série possuem a mesma propriedade. Com efeito, na unificação em série, própria às formações coletivas do campo prático-inerte, cada indivíduo é idêntico, intercambiável, desnecessário, separado e solitário. A mudança de qualquer elemento e sua substituição por outro em nada alteram o quadro geral. Novamente, todos são excedentes, redundantes. “Cada um é o mesmo que os Outros na medida em que ele mesmo é outro” (SARTRE, 1985, p. 367-8). A série, assim, só pode ser inteligível através do conceito de alteridade. A alteridade, enquanto “unidade das identidades, encontra-se sempre necessariamente alhures” (SARTRE, 1985, p. 374). Mas, alhures há apenas um Outro que é outro inclusive para-si. Desse modo, a consequência direta da alteridade (enquanto forma originária de alienação, de degradação da liberdade) é a transformação de cada um em Outro (para-si e para- outrem). É, portanto, promover a separação dos indivíduos mediante uma unidade evanescente, externamente estabelecida, que conserva o antagonismo enquanto preserva cada qual encerrado em seu próprio projeto solitário. A vida serial, enfim, é o modo de ser do indivíduo, cuja unidade fugidia se encontra sempre em um ser-fora, em um objeto comum, que torna cada qual Outro para o outro e para si. Por conseguinte, viabiliza-se uma reciprocidade pela própria alteridade, isto é, uma reciprocidade externamente constituída que conserva um antagonismo interno. Sendo assim, há na vida serial um verdadeiro bloqueio ao reconhecimento do outro em sua individualidade. Mais precisamente, há reificação das relações humanas em um cenário de massificação. Com efeito, no campo prático-inerte, é a indiferença a tônica da (falta de) percepção cotidiana do outro, que só é notado quando interfere diretamente em nossa vida, nossos interesses etc. No dia a dia, presos ao modo de vida serial, praticamos efetivamente aquele “solipsismo de fato” pelo qual se definia ontologicamente a indiferença em O ser e o nada[5]. Ainda neste plano, a “multiplicidade prática” de indivíduos pode formar objetos reais que a sociologia denomina coletivos. A origem dos coletivos é a “recorrência social”. Tratam-se, portanto, de estruturas nas quais a serialidade se mantém. Porque sua realidade advém da destotalização permanente da totalidade de indivíduos, o coletivo promove uma unidade das multiplicidades orgânicas baseada na síntese passiva que mantém os homens unidos por sua separação. file:///C:/Users/Marcelo/Desktop/(convidado)%20Vinicius%20dos%20Santos%20-%20Vida%20serial,%20êxtero-condicionamento%20e%20ideologia%20em%20Sartre.docx%23_ftn5 Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 105 IV Uma vez estabelecido este quadro, torna-se finalmente possível dirigir a atenção para como os meios de comunicação podem operar na dialética da vida serial e do prático-inerte, assumindo um papel de disseminação de uma ideologia. Em uma transmissão televisiva, por exemplo, cada indivíduo é outro na medida em que é telespectador e se comunica, assim, com todos os outros nessa unidade hesitante proporcionada pelo objeto comum. Tal fenômeno não se restringe a esse meio de comunicação, mas, como bem nota Sartre, se verifica em todos os mass media. “Nesse caso, o objeto prático-inerte [...]não produz apenas a unidade fora de si na matéria inorgânica dos indivíduos: ele os determina na separação e assegura, enquanto estão separados, sua comunicação pela alteridade” (SARTRE, 1985, p. 378). Esta separação é fundamental para compreender como opera o discurso ideológico para Sartre, que atualmente encontra no funcionamento dos grandes meios de comunicação (cujos interesses e valores, enquanto empresas privadas, não se dissociam daqueles hegemônicos na classe economicamente dominante) seu veículo preferencial de disseminação. Definida como “reverso simbólico da prática material”, isto é, “anverso da alienação” (cf. BAROT. In: BAROT, 2011), a ideologia não se reduz, em Sartre, à visão do marxismo dogmático que, minimizando a riqueza da própria concepção marxiana[6], define-a como “falsa consciência”, “mistificação”, “ilusão” etc.[7]. Rejeitando o dualismo base-superestrutura que ampara aquela interpretação rasteira, Sartre compreende que a ideologia extrapola o plano meramente gnosiológico. Ela nasce das coisas, da matéria trabalhada. Nesse sentido, nota o filósofo, há modos seriais de comportamento, sentimentos seriais, pensamentos seriais, que estão diretamente vinculados à compreensão da ideologia. De fato, para Sartre, a ideologia, ideia serial, ou “ideia-exis” (como, por exemplo, o colonialismo e o racismo), é um objeto do prático-inerte, e não um momento consciente da ação. Sua evidência reside na dupla incapacidade em verificá-la ou de transformá-la nos outros membros do coletivo. Com efeito, diz o filósofo (cf. SARTRE, 1985, p. 406-9 – nota), aqui a ideia não é práxis, mas essencialmente processo. Ou seja, desenvolve-se por meio de uma força material externa que age sobre o pano de fundo da impotência provocada pelo isolamento serial. Ela se torna, assim, a “unidade da série como sua razão ou seu índice file:///C:/Users/Marcelo/Desktop/(convidado)%20Vinicius%20dos%20Santos%20-%20Vida%20serial,%20êxtero-condicionamento%20e%20ideologia%20em%20Sartre.docx%23_ftn6 file:///C:/Users/Marcelo/Desktop/(convidado)%20Vinicius%20dos%20Santos%20-%20Vida%20serial,%20êxtero-condicionamento%20e%20ideologia%20em%20Sartre.docx%23_ftn7 Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 106 de separação” (SARTRE, 1985, p. 406 – nota). Pela prática, a unidade passiva da materialidade do objeto prático-inerte transforma-se em significação. Por exemplo, a ideia-colonial é a unidade da série dos colonos (cada qual, apartado de todos os outros): tanto justificação de sua unidade exterior em um “interesse comum”, quanto modo de entronização deste interesse pelas atitudes que aquela ideia torna “legítima” [8] (a exploração e a desumanização dos colonizados, a seleção dos indivíduos por caracteres biológicos, o racismo[9] etc.). Nesse sentido, observa Sartre, expressões que sintetizam o pensamento colonialista, tais como “o indígena é preguiçoso”, “só trabalha se for obrigado”, “não sabe governar a si próprio” etc., jamais foram a tradução de um pensamento real e concreto, sequer foram alguma vez objeto de um pensamento. De resto, não têm por si só nenhuma significação, ao menos na medida em que pretendam enunciar um conhecimento sobre o colonizado. Elas aparecem com o estabelecimento do sistema colonial e sempre se limitaram a ser esse próprio sistema se produzindo como determinação da linguagem dos colonos no meio (milieu) da alteridade. E sob esse aspecto, é preciso vê-las como exigências materiais da linguagem (meio verbal de todos os aparelhos prático-inertes) que se dirigem aos colonos como membros de uma série e que os significa como colonos a seus olhos e aos olhos dos outros, na unidade de uma reunião. De nada serve dizer que elas circulam, que cada um as repete aos demais sob uma forma ou outra: a verdade é que elas não podem circular porque não podem ser objetos de troca. Elas têm a priori a estrutura de um coletivo, e quando dois colonos, em sua conversa, pretendem trocar essas ideias, o que na verdade fazem é reatualizá-las, uma após a outra, enquanto elas representam a razão serial sob um aspecto particular. Dito de outro modo, a frase pronunciada – como referência ao interesse comum – não se dá por determinação da linguagem pelo próprio indivíduo, mas por sua opinião outra. Ou seja, ele reclama receber dos Outros e dar aos Outros, enquanto sua unidade funda-se apenas sobre a alteridade (SARTRE, 1985, p. 407 – nota). Quer dizer, o racismo, por exemplo, anverso do colonialismo, “é o interesse colonial vivido como ligação de todos os colonos pela fuga serial da alteridade” (SARTRE, 1985, p. 406 – nota). Assim, as ideias racistas, enquanto estruturas da opinião coletiva dos colonos, [são] condutas petrificadas [...] que se manifestam como imperativos no quadro do Outro a se realizar por mim. Elas marcam, como exigências perpétuas de serem reafirmadas por atos verbais singulares, a impossibilidade de uma totalização real dessas afirmações, ou seja, a intensidade do imperativo é diretamente proporcional ao índice de separação (SARTRE, 1985, p. 409 – nota). A ideologia colonial, destarte, é coextensiva ao sistema colonial, é seu doublet, ambos sendo produtos de uma gênese conjunta no âmbito do prático-inerte. Por isso, ela file:///C:/Users/Marcelo/Desktop/(convidado)%20Vinicius%20dos%20Santos%20-%20Vida%20serial,%20êxtero-condicionamento%20e%20ideologia%20em%20Sartre.docx%23_ftn8 file:///C:/Users/Marcelo/Desktop/(convidado)%20Vinicius%20dos%20Santos%20-%20Vida%20serial,%20êxtero-condicionamento%20e%20ideologia%20em%20Sartre.docx%23_ftn9 Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 107 é um pensamento-coisa, pensamento reificado ou, mais simplesmente, não-pensamento. Daí a impossibilidade de sua troca, de sua circulação, apontada no trecho acima destacado. E, como explica Emmanuel Barot, “é por isso que ela dura com a força da coisa de uma parte, e que é inútil [...] se limitar à racionalidade argumentativa para lutar contra ela” (BAROT. In: BAROT, 2011, p. 262). Neste caso, lutar contra a ideia colonial ou contra o sistema colonial são uma só e a mesma coisa. Pois, essa Ideia “não é mais ‘práxis vivente’, ‘chave sempre contestável do mundo’ surgida da ação, mas reatividade fóssil reativada passivamente como unidade dos colonos que se põem eles mesmos em permanência como colonos graças a essa reativação” (BAROT. In: BAROT, 2011, p. 262).Por isso, explicará Sartre em Playdoyer pour les intellectuels: Não basta [...] combater o racismo (como ideologia do imperialismo) por argumentos universais, tirados de nossos conhecimentos antropológicos. Esses argumentos podem convencer ao nível da universalidade. Mas, o racismo é uma atitude concreta de todos os dias. Consequentemente, pode-se sustentar sinceramente o discurso universal do antirracismo e, nas distantes profundezas que são ligadas à infância, permanecer racista e, ato contínuo, se comportar como racista, sem perceber, na vida cotidiana (SARTRE, 1972, p. 48). V Numa palavra, a ideologia é o próprio sistema prático-inerte apreendendo-se a si mesmo, se convertendo em Ideia e se impondo a seus membros – cada indivíduo como Outro para todos os outros – através de suas próprias ações e pensamentos sobre o fundo da impotência de sua separação serial. Diante do exposto, porém, fica claro que, para Sartre, o sucesso de disseminação de uma ideologia depende da sua capacidade de se fazer interiorizar por cada indivíduo, na medida em que este se encontra em relação serial para com os demais. Se o regime ideológico não é apenas um regime de falsidade ou de ilusão que um saber viria a destruir, é por se tratar de um regime de existência concreta. Todo meio (milieu), as estruturas sociais que ele traz, são sempre produzidas e reproduzidas de maneira “ampliada”, no próprio movimento que procura negá-las (BAROT. In: BAROT, 2011, p. 271). Não obstante, para que essa interiorização seja possível em uma sociedade complexa, institucionalizada, como a nossa, na qual as séries se multiplicam, o isolamento das grandes cidades se intensifica, a divisão do trabalho se aprofunda e a urgência de Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 108 sobreviver torna-se mais e mais dramática, a práxis soberana (governante, grupo, classe; no limite, o Estado) deve ser capaz de condicionar cada um a agir à distância sobre todos os outros, sem se apresentar enquanto tal. Ou seja, superar essas barreiras de tal modo a, sem derrubá-las (o intuito é, na verdade, precisamente o oposto), conseguir estabelecer entre os indivíduos a elas subjugados uma forma de sociabilidade. Sartre denomina esse procedimento de êxtero-condicionamento. Segundo Sartre, este novo estágio da práxis cria uma quase-unidade passiva que, para realizar-se, precisa “fascinar cada Outro por esse falso-semblante: a totalização das alteridades (ou seja, a totalização da série)” (SARTRE, 1985, p. 727). A armadilha do êxtero-condicionamento reside no projeto do soberano de “agir sobre a série de maneira a lhe arrancar, na própria alteridade, uma ação total” (SARTRE, 1985, p. 727). Contudo, prossegue, “essa totalidade prática, ele a produz como possibilidade para a série se totalizar conservando a unidade fugidia da alteridade, ao passo que a única possibilidade de totalização que permanece no agrupamento inerte é dissolver nele a serialidade” (SARTRE, 1985, p. 727). A práxis, todavia, se conserva como liberdade transcendente. Assim sendo, a natureza fundamental da institucionalização, sua impotência serial, separação e reificação, que constrói a massa soberana e serializada, revelam, afinal, através da desmistificação de sua inteligibilidade, mais uma forma de alienação da liberdade individual. Mais uma vez, o funcionamento dos meios de comunicação de massa é o melhor exemplo de como atualmente operariam esses dois caracteres elementares do êxtero-condicionamento, complementando aquilo que já foi assinalado anteriormente. De fato, na ação dos mass media, “a ação mediadora do grupo, que condiciona cada Outro por todos os Outros, [gera uma] fascinação prática pela ilusão da serialidade totalizada” (SARTRE, 1985, p. 728). Relembrando sua visita aos Estados Unidos, em 1946, Sartre relata (cf. SARTRE, 1985, p. 728 e ss.) que, a cada sábado, as emissoras de rádio divulgavam a lista dos dez discos mais vendidos na semana que se encerrava. Na semana seguinte, as pesquisas indicavam que a venda daqueles discos aumentava em uma margem de 30 a 50%. Assim, o resultado da semana anterior era confirmado e prolongado. A escolha dos discos, observa Sartre, era feito por um grupo de especialistas (o “Grand Prix du Disque”) que agia sobre a massa serializada, em nome da “opinião pública” (na verdade, das gravadoras), de modo a persuadir cada ouvinte de que o Outro também iria comprar aqueles discos. Este Outro, consequentemente, exigiria de mim que eu também os tivesse comprado e escutado, a fim de que não Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 109 ficasse desinformado acerca daquilo que o “público” compra e escuta. Por minha vez, eu faria o mesmo em relação a outrem. Os exemplos poderiam ser multiplicados. Retomando o problema do racismo, HadiRizk nota que o êxtero- condicionamento permite compreender melhor esse tipo de procedimento (em suas várias manifestações fenomênicas), porquanto ele só pode ser explicado por sua natureza serial, na qual cada um se faz Outro que o outro “unindo-se” a ele pelo sentimento e prática da exclusão. No fundo, tudo se passa como se cada indivíduo tentasse exorcizar, às custas do outro, a fuga de seu próprio ser, que ele projeta sobre um ser coletivo e unificante. Tal objeto torna-se a unidade dessa fuga serial, tanto quanto a causa do ser-outro de cada um (RIZK, 1996, p. 186). Assim, as diversas manifestações de racismo (contra o negro ou contra o judeu, por exemplo), mais do que um fato seria, são práticas do grupo soberano que age sobre o racismo com o intuito de fazer dele um meio de junção-na-separação dos indivíduos. Não por acaso, as pesquisas de opinião visam captar “reflexivamente” esse racismo, por exemplo, com perguntas como: “há muitos imigrantes em nosso país”?; ou, em um arquétipo mais tipicamente brasileiro: “a política de cotas beneficia os negros?”[10]. Quando elas são formuladas, cortadas em amostras, e depois representadas na cerimonia do comentário aos diferentes grupos sociais, essas questões e estatísticas induzidas pelas “respostas” equivalem a uma lista-tipo que ofereceria aos indivíduos seriais o modelo de uma unificação à totalidade Outra da Nação. Dir-se-á assim que “a França pensa...”, por exemplo, na casa dos 30% de maneira racista. A comunicação – necessariamente serial, ou seja, atingindo na alteridade o senhor-qualquer-um – induz em cada um a incitação de ser 30% racista. Ou seja, ser ele mesmo um cidadão “normal” e “médio”, fazendo-se o mais Outro, isto é, conforme ao Outro como razão da série trabalhada e construída em certa totalidade pela práxis de um subgrupo do grupo soberano (RIZK, 1996, p. 186-7). O êxtero-condicionamento é, em suma, a utilização, por parte de um grupo determinado, da ação recíproca que as séries realizam umas sobre as outras, sem que estas se percebam vítimas de manipulação. Através dessa prática, o grupo soberano se serve da divisão serial, ao invés de tomá-la como uma ameaça. Sua racionalidade consiste, portanto, na necessidade que sofre o grupo soberano – surgido no seio da instituição por conta de sua impotência em superar a serialidade – de manter uma unidade social apoiada nas próprias séries em suas determinações recíprocas. Em resumo, em uma sociedade na qual as séries se multiplicam, ou seja, onde a relação interindividual é perpassada por várias camadas de mediação, os mass media, por conta de sua própria constituição, tornam-se um mecanismo privilegiado para file:///C:/Users/Marcelo/Desktop/(convidado)%20Vinicius%20dos%20Santos%20-%20Vida%20serial,%20êxtero-condicionamento%20e%20ideologia%20em%20Sartre.docx%23_ftn10 Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 110 minimizar a distância e o isolamento entre os indivíduos (no sentido de serem capazes de fazer seu discurso alcançar o maior número de pessoas possível), ao mesmo tempo em que exige que essa separação se conserve (isto é, que os indivíduos permaneçam reduzidos ao antagonismo alienante da impotência serial) para que o poder (político/econômico) ao qual estão atrelados se sustente. VI Diante do exposto, fica nítida a conexão que Sartre estabelece entre a vida serial e o êxtero-condicionamento como modos de sociabilidade nos quais os mass media podem atuar como veículos privilegiados de propagação de discursos ideológicos, isto é, discursos que se alimentam da impotência alienante daquela tipo de relação social. Com efeito, em uma sociedade de consumo de massas, como a atual, não é difícil observar, a partir da hipótese de Sartre, como a publicidade se vale fartamente de formas de êxtero-condicionamento com o intuito de assediar consumidores em potencial e aumentar o volume de vendas de seus produtos; ou como essa forma de dominação tornou-se indispensável para transmitir valores e conceitos de “verdade” que assegurem a hegemonia de uma determinada visão de mundo. Por fim, caberia ainda indagar se há, em Sartre, algum vislumbre de superação dessa situação. A resposta se fez entrever na própria forma pela qual o filósofo apreende a noção de ideologia. Porque não se trata de um problema exclusivamente gnosiológico, mas de um modo de vida interiorizado por cada um, para Sartre, apenas o concurso das práxis é capaz de, mesmo nas malhas das artimanhas que a impulsionam a reforçar a dominação à qual estão subjugadas (isto é, o prático-inerte), criar formas diferentes de sociabilidade que possam se contrapor à manipulação do êxtero-condicionamento. Lutar contra uma ideologia, portanto, não se desprende da luta (necessária e possível) contra todo o conjunto de relações (econômicas, políticas, jurídicas etc.) que a sustenta. Pelo contrário, na medida em que todas essas esferas se dão como um todo, não há combate a uma sem combate a outra. Como sintetiza Sartre, neste ponto abertamente adotando a atitude de Marx em relação ao tema: “não são as ideias que mudam os homens, não basta conhecer uma paixão por sua causa para suprimi-la. É preciso vivê-la, opor a ela outras paixões, combatê-la com tenacidade. Em suma, se trabalhar” (SARTRE, 1985, p. 25). Inclusive, se poderia acrescentar, nisso que é particularmente sensível nos dias atuais, no sentido de inventar formas distintas de Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 111 bloquear a capacidade de persuasão dos meios de comunicação. Isto é, não apenas pela mera denúncia de seu modo de operação, mas também através da concepção de práticas distintas de vida e disseminação de valores e ideias contra hegemônicas. Práticas capazes de romper, ou ao menos minimizar, a alienação típica da vida serial, cuja fraqueza a que relega os indivíduos nutre o papel contemporâneo de manipulação ideológica da mídia e, consequentemente, reforçam aquela mesma alienação. AUTOR *Vinícius dos Santos é Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos e licenciado em Filosofia pelo Centro Universitário Claretiano. Mestre e Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos, com pesquisas desenvolvidas na filosofia de Sartre. Professor adjunto de Filosofia da Universidade Federal da Bahia. e- mail:viniciusdossantos@ufba.br REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAROT, Emmanuel. Aux racines de l’idéologie. In: BAROT, Emmanuel. (dir.). Sartre et le marxisme. Paris : La Dispute, 2011, p. 253-284. FANON, Frantz. Os condenados da terra. Trad. José Laurênio de Melo. Prefácio Jean- Paul Sartre. Riode Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. FISCHBACH, Franck. L’aliénation comme réification. In : BAROT, Emmanuel. (dir.).Sartre et le marxisme. Paris : La Dispute, 2011, p. 285-312. GARO, Isabelle. L’idéologie ou la pensée embarquée. Paris : La Fabrique, 2009. JAMESON, Fredric. Entre structure et événement: le groupe. Trad. Eustache Kouvélakis. In: KOUVÉLAKIS, Eustache & CHARBONNIER, Vincent (dir.). Sartre, Lukács, Althusser : des marxistes en philosophie. Paris: PUF, 2005, p. 11-32. RIZK, Hadi. 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Sua translucidez permite disparar a dialética que permitirá ao filósofo reconstruir as condições de possibilidade da inteligibilidade histórica. [2] Cumpre ressalvar que não se trata, para Sartre, de estabelecer uma essência humana ou de afirmar que o homem seja, naturalmente, “lobo do próprio homem”, como Hobbes. Na verdade, diz o filósofo, “é preciso compreender, ao mesmo tempo, que a inumanidade do homem não vem de sua natureza, que, longe de excluir sua humanidade, só pode ser compreendida por esta, mas que, enquanto o reino da escassez não tiver chegado ao termo, haverá, em cada homem e em todos, uma estrutura inerte de inumanidade, que, em suma, nada mais é do que a negação material enquanto ela é interiorizada” (SARTRE, 1985, p. 242). [3]Destarte, “o que é negativo na contra-finalidade não é o resultado da matéria enquanto tal, mas primeiramente o resultado da produtividade humana ou da práxis investida nela, e que retorna, sob uma forma não reconhecível, sobre os seres humanos que originalmente investiram nela seu trabalho” (JAMESON In: KOUVÉLAKIS & CHARBONNIER, 2005, p. 23). [4] Com efeito, a alienação, em Sartre, consiste “numa exteriorização do sujeito de tal modo que ela engendraria da objetividade um resultado que o sujeito não pode reinteriorizar, pois não se reconhece nele ou porque se reconhece em não se reconhecendo (sob a forma: ‘sim, fui eu quem fez isso, mas, ao mesmo tempo, jamais quis fazê-lo’)” (FISCHBACH. In: BAROT, 2011, p. 308). [5] Cf. SARTRE, 2007, p. 420. [6] Para a compreensão dessa riqueza, cuja apresentação seria inviável, ver GARO, 2009, indicado nas referências bibliográficas ao final. [7]Convém notar que, desde La légende de lavérité, texto de juventude datado do final dos anos 1920, Sartre já discutia, mesmo que sem maior profundidade, a noção de ideologia nestes termos. Já após sua aproximação com o marxismo, por exemplo, em uma conferência proferida na Sorbonne, no Amphithéatre Richelieu, em 16 de maio de 1956, Sartre trata especialmente do tema da “ideologia”, de uma perspectiva próxima àquela que seria desenvolvida no âmbito da Crítica: a ideia como fato material (ligado ao processo de produção), mas irredutível a este, porquanto significante. Na linguagem marxista, Sartre recusava a tese – típica do marxismo dogmático – de que a superestrutura pudesse se reduzir à infraestrutura. O manuscrito completo da conferência se encontra depositado junto ao acervo do “Fond Sartre” da Bibliothèque nationale de France, sob a rubrica NAF 28405. Para uma análise mais aprofundada do tema da ideologia em Sartre, ver o já citado BAROT. In: BAROT, 2011, p. 253 e ss. [8] No prefácio à obra de Frantz Fanon, Os condenados da terra, Sartre assinala: “Nossos soldados no ultramar rechaçam o universalismo metropolitano, aplicam ao gênero humano o numerus clausus; uma vez que ninguém pode sem crime espoliar seu semelhante, escravizá-lo ou matá-lo, eles dão por assente que o colonizado não é o semelhante do homem. Nossa tropa de choque recebeu a missão de transformar essa certeza abstrata em realidade: a ordem é rebaixar os habitantes do território anexado ao nível do macaco superior para justificar que o colono os trate como bestas de carga. A violência colonial não tem somente o objetivo de garantir o respeito desses homens subjugados; procura desumanizá-los” (SARTRE. In: FANON, 1968, P. 9). [9] Cumpre observar, aliás, que a hierarquização social a partir da criação da ideia de raça é inseparável do processo que de expansão do capital na aurora da modernidade, que se inicia com a descoberta da América, e que estabelece uma nova forma de controle e divisão do trabalho, este convertido em mercadoria. Como explica Aníbal Quijano: “A ideia de raça, em seu sentido moderno, não tem história conhecida antes da América. Talvez se tenha originado como referência às diferenças fenotípicas entre conquistadores e conquistados, mas o que importa é que desde muito cedo foi construída como referência a supostas estruturas biológicas diferenciais entre esses grupos. A formação de relações sociais fundadas nessa ideia, produziu na América identidades sociais historicamente novas: índios, negros e mestiços, e redefiniu outras. Assim, termos com espanhol e português, e mais tarde europeu, que até então indicavam apenas procedência geográfica ou país de origem, desde então adquiriram também, em relação às novas identidades, uma conotação racial. E na medida em que as relações sociais que se estavam configurando eram relações de dominação, tais identidades foram associadas às hierarquias, lugares e papéis sociais correspondentes, com constitutivas delas, e, consequentemente, ao padrão de dominação que se impunha. Em outras palavras, raça e identidade racial foram estabelecidas como instrumentos de classificação social básicada população.[...]. Na América, a ideia de raça foi uma maneira de outorgar legitimidade às relações de dominação impostas pela conquista. A posterior constituição da Europa como nova identidade depois da América e a expansão do colonialismo europeu ao resto do mundo conduziram à elaboração da perspectiva eurocêntrica do conhecimento e com ela à elaboração teórica da ideia de raça como file:///C:/Users/Marcelo/Desktop/(convidado)%20Vinicius%20dos%20Santos%20-%20Vida%20serial,%20êxtero-condicionamento%20e%20ideologia%20em%20Sartre.docx%23_ftnref1 file:///C:/Users/Marcelo/Desktop/(convidado)%20Vinicius%20dos%20Santos%20-%20Vida%20serial,%20êxtero-condicionamento%20e%20ideologia%20em%20Sartre.docx%23_ftnref3 file:///C:/Users/Marcelo/Desktop/(convidado)%20Vinicius%20dos%20Santos%20-%20Vida%20serial,%20êxtero-condicionamento%20e%20ideologia%20em%20Sartre.docx%23_ftnref4 file:///C:/Users/Marcelo/Desktop/(convidado)%20Vinicius%20dos%20Santos%20-%20Vida%20serial,%20êxtero-condicionamento%20e%20ideologia%20em%20Sartre.docx%23_ftnref5 file:///C:/Users/Marcelo/Desktop/(convidado)%20Vinicius%20dos%20Santos%20-%20Vida%20serial,%20êxtero-condicionamento%20e%20ideologia%20em%20Sartre.docx%23_ftnref6 file:///C:/Users/Marcelo/Desktop/(convidado)%20Vinicius%20dos%20Santos%20-%20Vida%20serial,%20êxtero-condicionamento%20e%20ideologia%20em%20Sartre.docx%23_ftnref7 file:///C:/Users/Marcelo/Desktop/(convidado)%20Vinicius%20dos%20Santos%20-%20Vida%20serial,%20êxtero-condicionamento%20e%20ideologia%20em%20Sartre.docx%23_ftnref8 file:///C:/Users/Marcelo/Desktop/(convidado)%20Vinicius%20dos%20Santos%20-%20Vida%20serial,%20êxtero-condicionamento%20e%20ideologia%20em%20Sartre.docx%23_ftnref9 Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 113 naturalização dessas relações coloniais de dominação entre europeus e não-europeus. Historicamente, isso significou uma nova maneira de legitimar as já antigas ideias e práticas de relações de superioridade/inferioridade entre dominantes e dominados. Desde então demonstrou ser o mais eficaz e durável instrumento de dominação social universal, pois dele passou a depender outro igualmente universal, no entanto mais antigo, o intersexual ou de gênero: os povos conquistados e dominados foram postos numa situação natural de inferioridade, e consequentemente também seus traços fenotípicos, bem como suas descobertas mentais e culturais. Desse modo, raça converteu-se no primeiro critério fundamental para a distribuição da população mundial nos níveis, lugares e papéis na estrutura de poder da nova sociedade. Em outras palavras, no modo básico de classificação social universal da população mundial. [...]. As novas identidades históricas produzidas sobre a ideia de raça foram associadas à natureza dos papéis e lugares na nova estrutura global de controle do trabalho. Assim, ambos os elementos, raça e divisão do trabalho, foram estruturalmente associados e reforçando-se mutuamente” (QUIJANO, In: LANDER, 2005, p. 117-8). [10] Trata-se, evidentemente, de um questionamento típico de uma forma de pensamento que tem o intuito de escamotear a relação artificial (isto é, não-natural, historicamente construída) entre raça e posição social, isto é, rejeitar a constatação de que “as ‘classes sociais’, na América Latina, têm ‘cor’” (QUIJANO. In: LANDLER, 2005, p. 138), o que, no Brasil em particular, é de uma evidência negligenciável apenas se pautada em um discurso completamente alheio à realidade. file:///C:/Users/Marcelo/Desktop/(convidado)%20Vinicius%20dos%20Santos%20-%20Vida%20serial,%20êxtero-condicionamento%20e%20ideologia%20em%20Sartre.docx%23_ftnref10 Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 114 Artigos e ensaios CRUZADA CONTRA A BOCA DO LIXO: saberes e discursos na imprensa Everton Behrmann Araújo* RESUMO: Este trabalho busca analisar as construções discursivas na imprensa sobre relações de poder e sociabilidades desenvolvidas no espaço urbano da cidade de São Paulo entre 1950 – 1960, mais especificamente a Boca do Lixo, lugar que ficou conhecido a partir dos anos 1950 por abrigar uma variedade de marginalizados, onde foram estabelecidas formas de organização e códigos de conduta que insultavam a moral vigente. Palavras Chave: Discurso. Saber. Chavão. Faits Divers. Marginais. Em 1954, a cidade de São Paulo comemorava o seu IV centenário. Em torno dos festejos criou-se um ambiente simbólico tão forte que a historiadora Maria Izilda Matos Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 115 localiza nesse ano o que ela chamou “a invenção da paulistaneidade”. Ela destaca o termo “invenção” e o conceitua como um processo de construção variável ao longo do tempo, forjado em diferentes espaços, com diversos objetivos e no caso específico da capital paulista, diretamente atrelado aos conceitos de progresso, modernidade e trabalho. (MATOS, 2007, p.71) Devido a esse marco simbólico para a cidade, a década de 1950 foi marcada por uma intensificação do processo de transformações urbanas iniciadas no começo do século. Não por acaso, o lema escolhido para as comemorações do IV centenário foi: “São Paulo: a cidade que mais cresce no mundo”, que sintetiza a perseguição do ideal de progresso e o tom ufanista que se queria imprimir à data. São Paulo estava se abrindo à modernidade e seus moradores, mais do que nunca, estavam se entusiasmando com o progresso capitalista. Para Matos, essa construção do moderno está ligada, também, ao diagnóstico de um presente problemático e foi na projeção de um futuro exemplar que as autoridades da época procuraram justificar algumas ações de intervenção. Entre as ações de intervenção que necessitavam ser justificadas para que a população pudesse comemorar tranquilamente o IV Centenário da capital bandeirante livre do contato com práticas e sociabilidades consideradas nocivas e degradantes, uma, em especial, era questão de honra para o governo paulistano: a extinção da zona de meretrício do Bom Retiro. Criada na década de 1940, por decreto do então governador Adhemar de Barros, ficava confinada para além das linhas dos trens, nas ruas Itaibocas e Aimorés, no Bairro do Bom Retiro. O aparelho policial via na forma confinada de meretrício uma série de vantagens, entre as quais a possibilidade de um melhor policiamento e higienização, além de expor menos as “boas famílias” forçadas a transitar pela parte boêmia da cidade. (FONSECA, 1982, p.108) No entanto, depois de alguns anos, setores da sociedade e da imprensa começaram a cobrar do governo uma atitude em relação àquele “antro” que se localizava no coração da metrópole. Essa demanda foi concretizada em dezembro de 1953, quando o então governador Lucas Nogueira Garcez publicou um decreto colocando fim às atividades da Zona de Meretrício. As intenções do governador e da Secretaria de Segurança, entretanto, não eram somente acabar com a prostituição localizada no Bom Retiro, mas antes, por um fim definitivo à atividade da prostituição na cidade de São Paulo. Como já podemos supor, não foi bem-sucedida a intenção de extirpar definitivamente, do solo da capital paulista, a prostituição e outras práticas que se Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 116 desenvolvem em seu entorno. Com a proibição da Zona, as mulheres, sem ter de onde tirar o seu sustento, migraram para as imediações do Bom Retiro, passando a desenvolver suas atividades de forma ilegal nas ruas do bairro de Campos Elíseos, potencializando, assim, a prática do chamado trottoir, atraindo para essas imediações todas as atividades e sociabilidades que geralmente se desenvolvem em torno da prostituição. A historiadora Margareth Rago afirma que a atividade da prostituição desempenha certo papel positivo na economia dos afetos em uma sociedade, sendo praticamente impossível domar completamente a inclinação para o que chama de “forças dionisíacas,” que correspondem ao universo do prazer e do lúdico atuantes em seu interior. (RAGO, ano, p.12). Ao tentar reprimir essas forças, corre-se o risco de deixar emergir o lado violento e recalcado da sociedade. Sobre essa tentativa de frear o dionisíaco da alma humana, o lado noturno da vida, o historiador Tony Hara diz: Seja por sabedoria imitadora ou por estupidez desesperada, os homens tentaram construir também as suas muralhas e domesticar as forças do mal. Ergueram-se assim, os muros do Estado, da Pátria, da família, das escolas, dos conventos, dos hospitais psiquiátricos, das fábricas, da identidade. Os homens construíram todas essas máquinas para barrar as forças malditas que fazem parte do cotidiano de nossa existência. É evidente que todo esse trabalho de esquadrinhamento social não teve o resultado esperado, mas a consequência desses esforços de domesticação da noite, ainda podemos sentir no tempo atual, nesse exato instante que passa. (HARA, 2004, p.26). A Boca do Lixo surge como refluxo causado pela ação do aparelho repressivo, que na tentativa de extirpar as práticas “sujas” do seio da capital paulista, acabou por espalhar essas atividades pela região central. De outra forma, o local, também, surge como objeto forjado nas páginas dos jornais, através de um tipo de jornalismo sensacionalista veiculado nas seções da reportagem policial que cunhou o nome do local como “Boca do Lixo”. Pelo fato das atividades ilícitas terem se concentrado no entorno de ruas que formavam uma espécie de quadrado, a crônica policial também se referia à Boca como o “Quadrilátero do Pecado”. Esses termos eram usados para estigmatizar essa área enquanto lugar onde se concentravam os piores sujeitos da cidade, onde a legalidade e as convenções morais eram constantemente desafiadas: “seres comparáveis aos restos, à sujeira e aos dejetos produzidos cotidianamente na cidade.”, conforme observa a historiadora Angela Aparecida Teles.(TELES, 2012, p.50). Faz parte da linguagem utilizada pela reportagem policial o uso exagerado de palavras chave, ou “chavão”, para se referir a objetos, sujeitos, espaços ou temas Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 117 tratados em suas páginas. O “chavão” e o “lugar-comum” ocupam uma função específica na escrita jornalística. Referem-se, em primeiro lugar, a um nível de comunicação bastante popular: são operações linguísticas perpassadas por um universo folclórico, expressões dessimbolizadas, triviais e usadas à exaustão nas reportagens policiais. O jornalista Claúdio Julio Tognolli pesquisou o uso dessas expressões em seu trabalho de mestrado A sociedade dos chavões: presença e função do lugar-comum na comunicação, pensando na função que eles exercem na escrita do texto do jornal diz: O chavão se reproduz em todos os grupos, níveis da fala, diferentes esferas sociais e categorias profissionais. Num jogo de linguagem, os chavões têm servido como autênticas peças, ao que alguns chamariam de a mais fina forma de reificação do pensamento, volta e meia sitiado por ofegantes tentativas de criatividade. Temos aqui, diga-se, um terminus ad quem: palavras-peças que dão respostas imediatas a cada jogo, a cada interação, sem que a palavra passe, necessariamente, pelo processo de pensamento, isto é, a simbolização. (TOGNOLLI, 2001, p.17). Portanto, neste artigo, analisaremos a cobertura jornalística em relação aos acontecimentos na Boca do Lixo entre 1953 e 1963, especificamente nas páginas dos jornais Diário da Noite e A Plateía e A Capital, no sentido de observar como as práticas e sociabilidades desenvolvidas nesse espaço eram estigmatizadas e estereotipadas com intenção de enquadrar e normatizar os praticantes que nele viviam. Durante o período que propomos estudar, a reportagem policial cobria diariamente a Boca do Lixo, a ponto de ser possível acompanhar nas leituras dessas reportagens os desdobramentos de cada caso, dia após dia; da prisão de um malandro à construção da peça de defesa dos advogados. Era uma cobertura tão detalhada – acontecimento por acontecimento – que podemos comparar ao enredo de uma novela ou romance. A leitura de um jornal e o acompanhamento de um assunto ou objeto específico nas suas páginas não é algo simples. Em um único jornal, sobre uma mesma notícia ou fato, podemos ter a opinião e a análise dos mais diversos sujeitos, que ocupam diferentes territórios de fala e emitem pontos de vista diametralmente opostos sobre um mesmo fato. O historiador José D’Assunção Barros nos alerta que ao fazer o uso do jornal enquanto fonte devemos levar em conta a multiplicidade de vozes e de lugares de fala que estão presentes nesse tipo de documentação. Assim, o aparecimento dessas outras vozes não deve ser percebido ou analisado apenas sob o ponto de vista de que é o autor quem está falando, mas deve-se levar em consideração, também, que esse autor pode estar representando Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 118 uma instituição, comunidade profissional ou uma disciplina e que vai muito além de sua própria fala. (BARROS, 2010, p.21). A forma como essa diversidade de vozes e sujeitos é organizada e distribuída no interior dos jornais lembra o que Michel Foucault chamou de “procedimentos internos” de interdição do discurso, que submete o acontecimento e o acaso do discurso a uma ordem, no caso do jornal, a sua “política editorial”, que tem relação direta com seus interesses no jogo de poder da sociedade. Diz ele: “são procedimentos que funcionam, sobretudo, a título de princípios de classificação, de ordenação, de distribuição [...].” Foucault elenca três categorias internas de interdição do discurso, as quais tentaremos resumir conceitualmente. A categoria do “comentário” é o procedimento que permite que seja dito algo além do texto, desde que o texto mesmo seja dito. Sobre isso temos no jornal a seção de “cartas” ou, no jargão jornalístico mais moderno, o “Painel do leitor”, espaço onde os leitores comentam sobre o texto. O segundo princípio, o de “autor”, não deve ser entendido apenas como o indivíduo que produz um texto ou pronuncia um discurso, mas um também “princípio de agrupamento do discurso, como unidade e origem de suas significações, como foco de sua coerência.”, é o caso, por exemplo, dos sujeitos que escrevem um artigo no jornal representando determinadas instituições, para além de sua fala pessoal. E, por último, a “disciplina”, que seria, grosso modo: um conjunto de métodos, de domínios de objetos ou corpus de preposições consideradas verdadeiras. Não obstante, no jornal, quando se trata de falar sobre saúde, chama-se um médico; sobre criminalidade, um criminalista, advogado; sobre distribuição de renda, um sociólogo ou economista; e, em datas comemorativas, um historiador. Foucault propõe uma análise do discurso enquanto prática instituinte, ou seja, criadora de acontecimentos, imagens e comportamentos, levando-nos a perceber nosso objeto de estudo como um efeito de construções discursivas. (FOUCAULT, 1996, p. 26) 2.1 Um faroeste sobre o Terceiro Mundo ou toda notícia que couber a gente publica4 Decretado hoje estado de sítio no país, o dispositivo policial reforça todos seus órgãos [...] qualquer semelhança com fatos, reais, ou irreais, 4O título dessa seção é uma alusão e colagem de trecho retirado do filme O Banido da Luz Vermelha de Rogério Sganzerla e do artigo Jornalismo: toda notícia que couber a gente publica de Robert Darnton; IN: O beijo de Lamourette. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 119 pessoas vivas, mortas ou imaginárias, é mera coincidência. Trata-se de um faroeste sobre o terceiro mundo. (SGANZERLA, 1968). O trecho citado faz parte da abertura do filme O bandido da luz vermelha do diretor Rogério Sganzerla, o qual é narrado em tom de um programa de rádio policial. As vozes de um homem e de uma mulher em tom apocalíptico e sensacionalista se alternam na narração. O filme é construído através de colagens que abusam dos clichês utilizados nesse tipo de programa. O recurso à linguagem do jornalismo policial utilizado no filme, em certo sentido, serve para criticar e debochar da iconografia conservadora e ufanista que predominava no imaginário cultural da São Paulo dos anos 1950-1960, onde a cidade era representada como terra do progresso, locomotiva do país, cidade que não dorme etc. Como se a cidade fosse uma ilha de desenvolvimento e progresso, simbolizando o lado moderno de um país atrasado e miserável – uma ilha de “primeiro mundo” dentro do “terceiro”. Como forma de ironizar essa visão que a elite paulistana tinha construído sobre o progresso e a modernidade da cidade, no momento em que o trecho citado do filme é narrado, surge em um letreiro luminoso a seguinte mensagem: “Os personagens não pertencem ao mundo, mas ao terceiro mundo: Guerra total na Boca do Lixo.” (SGANZERLA, 1968) A trama é narrada através dessa mistura de vozes de um programa de rádio com a do personagem João Acácio, o bandido da luz vermelha, que ficou conhecido nos anos 60 através da crônica policial. Importante situar que a voz do personagem protagonista, o “Luz”, que no modelo convencional de cinema deveria ocupar o primeiro plano da narrativa, é colocada em over, dividindo com a voz dos apresentadores do programa sensacionalista o protagonismo na construção narrativa. Essa técnica faz com que a construção do personagem se dê em fragmentos contraditórios e disparatados, que são supervalorizados, para mostrar a angústia do personagem marginal, caçado pelo aparelho policial. O filme é na verdade uma paródia à mídia, por isso a mistura, o jogo de vozes entre os narradores do rádio e o personagem, juntando-se a isso, o recurso a uma quarta forma de narrativa, que são os constantes letreiros luminosos que aparecem no decorrer do filme. (TELES, 2015, p.231) Em certos momentos, o filme passa a sensação de que todo o seu argumento foi construído através de colagens feitas a partir da seção de fait divers de algum jornal, pois há constantes recursos ao uso dos chavões da reportagem policial e uma exibição excessiva do kitsh, numa clara crítica a essa forma de jornalismo: Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 120 O narrador explicita a mediocridade dos meios de comunicação de massa insistindo em escancarar o quanto há de informações precárias e contraditórias circulando pela mídia sensacionalista. O tom irônico do narrador provoca o riso demolidor, expondo a própria mídia em ação. (TELES, op.cit., p.231). No jornalismo brasileiro, o aparecimento dos fait divers — “fatos diversos”, numa tradução literal — data da virada do século XIX para o XX, com o crescimento de algumas cidades e o aumento de crimes e acontecimentos pitorescos no cotidiano das mesmas. Foi quando os maiores jornais em circulação nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo começaram a dedicar uma seção para notícias sensacionalistas da cobertura policial, importado, como sempre, do modelo de jornais norte-americanos e europeus. Escritos numa linguagem dramática e às vezes com lampejos de comicidade, essas pequenas e violentas crônicas do cotidiano chegaram para ficar e até jornais tidos como sérios, a exemplo de O Estado de São Paulo, passaram a ter uma seção destinada a esse tipo de narrativa jornalística. (GUIMARÃES, 2007, p. 323-349) Em um comentário sobre a estruturação das notícias policiais, o historiador Robert Darnton diz que é um tipo de escrita fortemente perpassada por estereótipos e feita a partir de uma concepção prévia do resultado final da “matéria”. Esse tipo de reportagem faz circular, entre o jornal e os leitores, um repertório conceitual e uma forma de escrita e apuração, de modo que tentar fugir dessa amarra estrutural pode significar um baixo índice de leitores. Segundo Darnton, existe uma epistemologia dos fait divers, que ele descreve nessa passagem: Converter um boletim policial num artigo requer uma percepção treinada e um domínio do manejo de imagens padronizadas, clichês, “ângulos”, “pontos de vista” e enredos, que vão despertar uma reação convencional no espírito dos editores e leitores. Um redator perspicaz impõe uma velha forma sobre um assunto novo, de uma maneira que cria certa tensão – o sujeito vai se adequar ao predicado? -, e a seguir dá-lhe uma solução voltando ao familiar. (DARNTON, 1990, p.91) Essa tendência de abusar dos estereótipos, apontada por Darnton, faz com que os repórteres policiais optem por uma redução da linguagem utilizada, pelo fato de se propor escrever enquanto “jornalismo popular”, como se o seu público leitor fosse formado por crianças, “o povo essa grande criança”, ironiza o historiador. Segundo ele, é por causa dessa escolha estética que se forma o “caráter sentimental, moralista, com ares de superioridade, do jornalismo popular”. (DARTON, op.cit., p. 91) Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 121 Embora pequenos fragmentos, escritos em tom romântico, com uso recorrente de recursos textuais oriundos da literatura de ficção, pode-se colocar em questão a veracidade das informações divulgadas nesse tipo de notícia, se lido com certa atenção e técnica, os fait divers podem fornecer pistas importantes sobre aspectos do cotidiano da época em que foram publicadas, bem como ajudar a perceber os valores que circulavam, as angústias e cobranças sociais e morais em relação a determinadas práticas, e até o modus operandi dos aparelhos de repressão. Embora aliada do aparelho policial no combate aos maus costumes, na manutenção da moral vigente e, às vezes, servindo como porta-voz de cobranças por segurança, moralidade, saúde pública, higienização; ao fazer circular através de suas páginas os discursos de setores conservadores, de órgãos do governo, os jornais e, em especial, a reportagem policial, desempenham um papel político importante na produção da cidade. Quando o objeto em questão é a “marginália”, a “prostituição” e toda sorte de desajustados sociais, esse papel fica ainda mais evidente, pois, quando se trata do “submundo” o texto jornalístico recorre a disciplinas externas a seu saber, como, por exemplo, a criminologia, com o intuito de diagnosticar desvios sociais, atuando no sentido de esquadrinhar e delimitar a cidade, criando áreas “degradadas”, fazendo mapeamento moral dos espaços, escolhendo personagens – alvo para protagonizar diariamente, envolvendo-os em um enredo digno de novela. (BENATTE, 1996, p.230) Foi através dessa atitude de se reivindicar enquanto porta-voz de demandas moralistas de setores da sociedade paulistana, atuando no sentido de estereotipar determinadas práticas e delimitar espaços “marginais” dentro da cidade, que podemos perceber nas páginas do jornal Diário da Noite, a partir de 1951, uma série de reportagens, notas e artigos que cobravam das autoridades competentes uma atitude contra a zona do meretrício do Bom Retiro. Importante lembrar que a criação de um espaço confinado para o exercício do meretrício na cidade de São Paulo, começou a ser pensado e demandado no final da década de 1930, pois a elite cafeeira queria desfrutar dos avanços arquitetônicos pelos quais a cidade vinha passando e se sentia incomodada em dividir o espaço urbano com esses tipos “devassos”, tendo que presenciar práticas como a prostituição e as diversas sociabilidades que esta atraía, como por exemplo, o jogo e a malandragem. Portanto, surgia a necessidade de delimitar, de isolar essas práticas em um lugar que ficasse distante do olhar das famílias que tinham de transitar por São Paulo. (FONSECA, 1985, p.210) Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 122 Importante lembrar que no período pré-criação da zona do Bom Retiro, um setor da imprensa paulistana serviu como veículo para a emissão dos discursos a favor da criação de um espaço confinado para o exercício do meretrício. Nesse sentido, podemos observar o discurso do então Interventor Federal de São Paulo, Adhemar de Barros, publicado no jornal A Platéia, no qual ele profere os motivos e vantagens de se delimitar o espaço de atuação da “zona”: “não só para facilitar o policiamento como também, por oferecer um interessante campo para estudos sociais, defendendo, ao mesmo tempo, a ordem e a moralidade pública.” (A Platéia, 04-12-1940. p.6.) Assim, num clima de coesão política que envolvia políticos, empresários e setores da alta sociedade paulistana, Adhemar de Barros publica no final de 1940 um decreto que cria a zona de confinamento no bairro do Bom Retiro. O local escolhido foi as ruas Itaboca e Aimóres. Não demorou e essas ruas passaram a ser uma das mais movimentadas da capital paulista, principalmente aos finais de semana e vésperas de feriados, atraindo gente de outros bairros e cidades. Após essas datas, as ruas, que durante o dia funcionavam como ponto de comércio tradicional, ficavam muito sujas, por isso, muitos comerciantes e famílias do local começaram a reclamar, e a imprensa, claro, se prontificou a servir novamente como porta-voz dessas demandas. Dessa forma, A Platéia publica a seguinte nota: “o escândalo que se vem verificando, especialmente aos sábados, quando a extraordinária multidão que desfila por essas ruas da boemia na falta total de mictórios despeja as urinas pelas ruas. (A Platéia, 04-12-1940. p.6.) Não demorou muito para que setores da sociedade e da imprensa mudassem sua opinião a respeito da medida de confinar a prostituição na cidade. A partir disso, todos os dias vários jornais estampavam manchetes na capa narrando a “sujeira”, “violência” e a “pouca-vergonha” que diariamente tomavam conta de parte do Bom Retiro. Esse clima começa a se acirrar durante a década de 1950, já no Governo de Lucas Nogueira Garcez. Esse governo foi caracterizado, na época, como o governo da limpeza, da moralidade e dos bons costumes. Garcez era muito próximo de setores conservadores da Igreja Católica. Já em 1951, começa-se uma ação de repressão do aparelho policial na Zona do Meretrício. O Diário da Noite relata um desses momentos. “Pânico no Bas-fond”, era a chamada da matéria: A polícia cercou o bairro, deteve 500 pessoas e interrogou mais de três mil. – Mais de 500 prisões foram efetuadas na noite de sábado, por volta das 23:30 horas, na diligência levada a efeito Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 123 pela 2ª Delegacia de Polícia da Capital, sob a orientação do delegado Guilherme Pires de Albulquerque. A primeira medida foi mandar fechar todas as entradas que dão acesso à zona, compreendidas pelas ruas Aimorés, Carmo Cintra e Itaboca. Essas vias públicas fervilhavam de indivíduos de toda a espécie, alguns malandros já conhecidos da polícia, exploradores das infelizes que frequentam os lupanares. (Diário da Noite, 29-08- 1951. p.3) Nota-se, já de imediato, que o jornalista queria justificar estatisticamente a ação da polícia e já começa explorando a grande quantidade de detenções e interrogatórios que a ação policial gerou. Entre as várias formas de atuação do jornal no sistema de relações de poder em que ele se insere, uma delas é essa de querer passar a impressão de que é portador de demandas e cobranças da população, como um todo, para o governo e outras instituições, quando, na maior parte do tempo, é um prestador de contas e legitimador da ação dos mais diversos aparelhos do Estado e de valores de setores hegemônicos da sociedade. Logo em seguida, justificada a ação policial, o texto focaliza a estigmatização do espaço geográfico e os seus praticantes, daí o uso de termos como “espécie”, “malandros”, “exploradores” e “infelizes”. Na segunda parte da nota, o jornal nos informa quais os tipos sociais que foram detidos nessa diligência. Diz: “Ladrões, “caftens”, “batedores de carteiras”, homossexuais e outros indivíduos, em número superior a 50, que foram reconhecidos pelos policiais, foram detidos e encaminhados para o plantão do D.I.” (Diário da Noite, 29-08-1951. p.3). Esse clima de cobranças e disputas sobre o que fazer com a Zona do Meretrício só teve desfecho quando o governador Lucas Nogueira Garcez publicou, em 1953, o já citado decreto que colocava fim à Zona do Bom Retiro. Ironicamente, no mesmo dia foi publicado outro decreto que mudava o nome da rua que mais representava o local da prostituição do ponto de vista do imaginário cultural, a Rua Itaboca. O governo mudou seu nome para Rua Cesare Lombroso, coroando, com essa homenagem ao criminalista italiano, o seu trabalho para extinguir a zona tolerada de prostituição da cidade de São Paulo. No material que analisamos e, aqui, especialmente no jornal conservador A Capital, podemos observar a existência de uma insatisfação desse veículo — que na época representava os interesses de setores ligados ao mercado financeiro — com as notícias narradas pela reportagem policial, que para os editores romantizava os feitos de criminosos e retratava com glamour tanto a vida da prostituição quanto a do crime, que Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 124 segundo o jornal, acaba por incentivar a entrada de mais e mais pessoas na vida dos delitos e do pecado, ofendendo assim, a moral e os bons costumes da população paulistana. O impresso, que se apresentava como “jornal-magazine”, era publicado mensalmente. Podemos notar em três editoriais diferentes, a preocupação com a chamada “imprensa marrom”; nesses editoriais, o jornal se valia do auxílio de outros saberes, a medicina e a criminologia, por exemplo, para sustentar sua tese de que a reportagem policial era um mal a ser combatido e extirpado. Também, pode-se observar a tentativa de mobilizar diversas instituições da sociedade para sua causa, como se percebe em constantes apelos ao clero, a polícia e aos políticos. Na edição de janeiro de 1962, o jornal publicara editorial com o título “O noticiário criminoso e dissolvente”; o uso do adjetivo “dissolvente” já deixa claro a posição contrária do jornal à forma de narrativa veiculada nas seções dedicadas à reportagem policial dos outros jornais; e mais, afirmava que as mesmas atuavam no sentido de atacar determinados valores caros para a visão de mundo de A Capital, nesse sentido o editor prossegue: Afinal, “água mole em pedra dura…”, aqui está uma das manifestações mais merecedora de acatamento e gratidão: o presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado de S. Paulo, prof. Flaminio Favero, apresentou-lhe a proposta que estudada em plenário em sua 205ª reunião, em 14 de março, foi POR UNANIMIDADE APROVADO, e deliberado transmitir a todos os jornais de São Paulo e autoridades competentes. Essa proposta refere-se ao noticiário policial, e, sendo esta folha a única que, na imprensa nacional tem movimentado uma persistente campanha contra tal sistema de noticiário sensacional é com a maior satisfação que transcrevemos o texto integral do protesto, hipotecando – lhe integral solidariedade (A Capital, janeiro de 1962. p.1). O texto trata de uma proposta apresentada pelo presidente do Conselho Regional de Medicina, em reunião do citado órgão, no sentido de tentar frear a disseminação de notícias jocosas nas páginas de jornais paulistanos. O editor de A Capital faz o uso da metáfora “água mole em pedra dura...” para ilustrar a luta e protagonismo do seu jornal na batalha contra o sensacionalismo e ao mesmo tempo para salientar que, enfim, depois de tantas insistências e batalhas, algum órgão respeitável da sociedade resolvia se pronunciar. O texto prossegue com a publicação na integra da nota do Conselho de Medicina, eis o texto: “De ordem do Conselheiro Presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado de S. Paulo, conselheiro Flaminio Favero, cumpre-me apresentar a v.s, proposição estudada pelo plenário em sua 250ª reunião, realizada em 14 último e por ele aprovada unanimemente, que se relaciona com publicações noticiosas de natureza policial insertas de frequente nos jornais desta capital. Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 125 “Assistimos no momento ocorrência social demasiado desagradável. Habitantes de vários bairros da cidade vivem sobressaltados pela ação criminosa do “bandido mascarado”. Toda a população se inquieta e se comove pela natureza dos crimes cometidos.” Ninguém ignora os objetivos do referido malfeitor. Para aumentar a intranquilidade e piorar o trauma emocional, a policia e a imprensa fazem questão de identificar as vítimas mesmo quando há dias o fato delituoso ocorreu com uma menor. Embora o nome não tivesse sido citado, cuidou a policia e a imprensa de anunciar a residência da vítima, identificando-a de maneira indireta, mas sem dúvida, realizando o sádico desejo de denunciar de modo claro quem era a vítima. Nos médicos, Sr. Presidente, compreendemos a necessidade de se guardar segredo a respeito de certas ocorrências, porque sabemos da possibilidade de tais revelações concorrer para agravar traumas psíquicos, tornando – os irreparáveis. Nestas condições, propomos que o Conselho de Medicina proteste, em defesa das vítimas e do sentido de humanidade que nunca deve abandonar o profissional de medicina, contra tal proceder da policia e da imprensa. (A Capital, janeiro de 1962. p.1). Trata-se aqui, como podemos observar, do embate de uma entidade representativa de um saber, no caso o Conselho Regional de Medicina, que se utiliza do espaço discursivo de outro tipo de instituição, o jornal, para emitir uma opinião contra um tipo de linguagem, a reportagem policial veiculada em jornais concorrentes de A Capital. A nota é endereçada a outra instituição, a Presidência da República. No texto a entidade médica toma para si o direito de falar em nome de moradores inconformados com a forma que imprensa veicula notícias sobre os feitos do Bandido da Luz Vermelha, e reclama sobre a identificação das vítimas nas páginas dos fait divers; termina reafirmando a posição do Conselho contra a imprensa e a polícia, mas não sem antes recorrer ao saber psiquiátrico para justificar seu argumento. Ao que parece, o apelo às instituições laicas não foi suficiente para que a sua cruzada contra a reportagem policial obtivesse sucesso, em outubro de 1962 A Capital resolve buscar ajuda junto ao clero para continuar sua batalha conta o sensacionalismo. Dessa forma, estampa no título de seu editorial a frase “Contra a perversão e a degeneração”, o texto é endereçado ao Cardeal Dom Câmara, Archebispo de São Paulo. Na argumentação, como recurso para obter a imediata simpatia do Cardeal, o editor enfatiza a atuação do jornal no que chama de “causa santa” contra o comunismo e o jornalismo marrom que seriam responsáveis por dilacerar os costumes e a moral cristã da sociedade paulistana: Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 126 A coleção desta folha, em seus 45 ou 46 anos da atual orientação, (facilmente consultável no Arquivo do Estado) atestará aos seus leitores sua indefectível batalha contra a degeneração, perversão de costumes reclamando providencias enérgicas das respectivas autoridades, além de intervenção salutar de autoridades, inclusive da Eclesiástica... Acompanha esta alguns exemplares da “A CAPITAL”, órgão independente que mantém a santa batalha contra o comunismo e dissolução de costumes de forma enérgica e permanente.( A Capital, 01/1962. p.1) Ainda nesse artigo continua-se a mobilização de poderes e instituições para extirpar os relatos degradantes e obscenos da imprensa policial, que expõem constantemente a formação moral da população da cidade. Dessa vez, o editor faz menção à carta enviada ao Presidente da República, reportando-se à época em que o mesmo foi designado pelo clero para compor um conselho econômico sobre assuntos de interesse do Brasil junto a Europa. Temos, portanto, o entrelaçamento e a mobilização de três instituições para atuarem no sentido de interditar o discurso emitido pelas seções dedicadas a reportagem policial na São Paulo da década de 1960, tais quais, da Igreja e do saber religioso, da Presidência da Republica, além de fazer referência a uma delegação que atuava no debate sobre economia e comércio, conforme podemos observar na seguinte parte do editorial: Num dos números encontrará V. Emin. os relatórios enviados ao Sr. Presidente da Republica, relativo aos trabalhos na qualidade de membro da Delegação Econômica Comercial do Brasil na Europa que me coube desempenhar por ordem de S. Exa.( A Capital, Outubro de 1962, p.2). Após desenvolver toda sua argumentação com o intuito de mostrar ao representante da Igreja todo o esforço feito pelo jornal no sentido de combater a proliferação dos discursos sensacionalistas nos jornais em circulação, o editor conclui seu raciocínio afirmando que se não houvesse um enquadramento e uma normatização por parte do poder-saber jurídico, via a inclusão de um artigo específico na Lei de Imprensa, artigo esse que proíba a divulgação de notícias sobre crimes, bem como fotos consideradas obscenas, seria inútil todo o esforço feito ao longo do tempo, pelo jornal e pelas outras instituições envolvidas na cruzada contra o sensacionalismo. No final, ele ainda se vale de um recurso retórico, ao usar o termo “infância” como um dos setores que clamam por essas medidas: Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 127 Aproveito a oportunidade para relembrar que todos os esforços contra o sensacionalismo e dissolução de costumes, não serão profícuos se não tiverem que na Lei de Imprensa seja incluído o artigo proibindo tal divulgação do noticiário policial conturbadas, tendo como base os princípios de respeito aos direitos humanos e humanitários mais relevantes. Na perspectiva chomskyana, são as grandes potências ocidentais, mais do que tudo através da OTAN, que praticam crimes internacionais (genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra) nos dias atuais, sob o manto de construção da democracia e de respeito aos direitos humanos – o que constitui, por óbvio, uma inversão na perspectiva tradicionalmente aceita, sobretudo pelos realistas. A estas ações Chomsky contrapõe inúmeros exemplos em que as potências ocidentais toleram ou mesmo estimulam – na medida em que emprestam apoio político, militar e financeiro – as atrocidades cometidas pelos amigos, aqueles que, no exercício dos poderes locais, dão sustentação à política internacional que lhes interessa. É o caso dos amigos turcos, em 1997, sob Clinton: Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 14 Graças ao fornecimento constante de armamento pesado, treinamento militar e apoio diplomático, a Turquia conseguiu esmagar a resistência curda, deixando dezenas de milhares de mortos, de dois a três milhões de refugiados e 3.500 aldeias destruídas (sete vezes o Kosovo bombardeado pela Otan)” (2003b, p. 18). O que outros autores vêem como contingência natural da política do mais forte sobre os mais fracos, política, financeira e militarmente, Chomsky vê como conivência interessada em legitimar políticas semelhantes em outras partes do planeta. Praticamente todos os governos fizeram o impossível para se aliar à coalizão liderada pelos Estados Unidos, sempre por seus próprios motivos. Assim, um dos primeiros países a se aliar, com grande entusiasmo, foi a Rússia. Por que a Rússia? Porque eles querem autorização para dar continuidade, mais ativamente, às suas próprias atrocidades na Chechênia. A China aliou-se de muito bom grado. Eles ficam encantados por contar com o apoio norte-americano para repressão no ocidente da China. A Argélia, um dos maiores países terroristas do mundo, foi recebida de braços abertos na ‘coalizão contra o terrorismo’. [...] Atualmente, há tropas turcas em Cabul, ou logo haverá, pagas pelos Estados Unidos para travar a Guerra contra o Terrorismo. Por que a Turquia está oferecendo soldados? Na verdade, eles foram o primeiro país a oferecer tropas aos Estados Unidos no Afeganistão [...]. Foi por gratidão – porque os Estados Unidos foram o único país que se dispôs a lhes dar apoio maciço em suas próprias enormes atrocidades terroristas no sudeste da Turquia, nos últimos anos. […] Clinton estava inundando o país de armas. A Turquia tornou-se o principal destinatário de armas do mundo, além de Israel e do Egito. (2005, pp. 21-22) Por esse critério, os Estados violentos podem agir como quiserem, com a aprovação das classes instruídas e da mídia. Estados com ímpetos imperiais regionais, como a Rússia e a China, se sentiriam cômodos em seguir a doutrina norte-americana de segurança nacional. A China estaria respondendo exatamente como esperado, através do aumento de sua capacidade militar nuclear ofensiva, que obrigaria a Índia a responder da mesma maneira, o que, por sua vez, obrigaria o Paquistão a responder em igual proporção. Logo, essa cadeia atingiria o Oriente Médio e grande parte do resto do mundo. A administração norte-americana estaria, assim, dando exemplo ao resto do mundo ao desenvolver novas armas nucleares, o que certamente faria com que outros viessem a agir da mesma maneira, já que não seria razoável esperar o contrário. Como consequência, em sua visão, atualmente “o mundo é um lugar mais inseguro” (2004a, p. 34). Em conexão com tais desenvolvimentos, está a ideia de que os grandes estados do mundo são estados terroristas. Nesse aspecto, Chomsky vale-se dos ensinamentos de Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 15 Santo Agostinho para demonstrar que é tênue a diferença na caracterização de “piratas e imperadores”: Santo Agostinho conta a história de um pirata capturado por Alexandre, o Grande, que lhe perguntou: ‘Como você ousa molestar o mar?’. ‘E como você ousa desafiar o mundo inteiro?’, replicou o pirata. ‘Pois, por fazer isso apenas com um pequeno navio, sou chamado de ladrão; mas você, que o faz com uma marinha enorme, é chamado de imperador.’ A resposta do pirata [...] ilustra com certa exatidão as relações atuais entre os Estados Unidos e vários outros atores no plano do terrorismo internacional: a Líbia, facções da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) e outros. (Chomsky, 2006, p. 259) Em relação a um dos temas mais caros a Chomsky, o terrorismo, ele o vê como um dispositivo em que os sócios co-constroem, co-justificam e se responsabilizam pelas realidades criadas. No contexto da guerra fria, Não é (era) terrorismo (…) quando forças paramilitares, operando a partir de bases americanas e treinadas pela CIA, bombardeiam(avam) hotéis cubanos, afundam(avam) navios pesqueiros e atacam(avam) navios soviéticos em portos cubanos, envenenam(avam) plantações e animais de criação, tentam(avam) assassinar Fidel Castro e assim por diante, em missões que eram realizadas quase semanalmente no auge da campanha. (Chomsky, 2006, p. 10) Para Chomsky o significado original de terrorismo considerado como terrorismo de Estado precisa ser resgatado. Originalmente, estes são atos de violência cometidos pelo Estado, no fim do século XVIII, com o intuito de garantir a submissão popular. Com o passar do tempo, atendendo a interesses dos imperadores de todos os tipos, o termo passara a ser empregado para designar, principalmente, terrorismo de pequena escala, praticado por pessoas ou grupos (2006, p. 259). Tal concepção abre caminho, a seu juízo, para a afirmação do princípio segundo o qual: quando alguém pratica o terrorismo contra nós ou contra nossos aliados, isso é terrorismo, mas, quando nós ou nossos aliados o praticamos contra outros, talvez um terrorismo muito pior, isso não é terrorismo, é antiterrorismo ou guerra justa” (2005, p. 78). O mesmo padrão de comportamento se aplicaria à Colômbia, a cujo país Chomsky atribui o pior histórico de violação dos direitos humanos da década de 1990, ao mesmo tempo em que é o maior beneficiário da ajuda e do treinamento militar dos EUA para “eliminar” seus inimigos (deles e dos próprios EUA). Certamente, no caso da Colômbia, há a particularidade de que as atrocidades são atribuídas a paramilitares, estreitamente ligados às forças armadas que recebem ajuda e treinamento dos Estados Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 16 Unidos da América, “todos seriamente envolvidos com o narcotráfico”. A questão da plausibilidade das razões apresentadas para as intervenções unilaterais persiste: [...] o pretexto se baseia na notável pressuposição, praticamente não questionada, de que os EUA têm o direito de empreender ações militares e travar guerras químicas e biológicas em outros países para erradicar uma lavoura de que não gostam, apesar de, supostamente, as ‘modernas noções de justiça’ não darem à Colômbia – ou à Tailândia, à China e a muitos outros – o direito de fazer o mesmo na Carolina do Norte para eliminar uma droga muito mais letal que foram obrigados a aceitar (e divulgar) sob a ameaça de sanções comerciais, a um custo de milhões de vidas (2003, p. 25). A grandiosa estratégia imperial caracterizada por Chomsky só é possível graças à sustentação e à participação na própria estratégia de instituições globais poderosas. OS SÓCIOS DO IMPÉRIO Se o império atual tem como nome Estados Unidos da América e seu sócio estatal principal é o Reino Unido, na descrição de Chomsky os objetivos não são alcançados sem que participem da grandiosa estratégia imperial os setores que lhe dão suporte: a mídia, o poder militar, a Intelligentsia abrigada e fotografias obscenas. Nossa infância clama por essas medidas e só V. Emin poderá consegui-la. Com elevado respeito e acatamento de V. Emin devotissimo patrício J. C. (A Capital, outubro de 1962, p.2). A preocupação corrente era que os constantes relatos sobre os feitos criminosos dos malandros e da vida libidinosa das prostitutas, contadas através da linguagem romantizada e adornada por recursos como o chavão, utilizados pelos repórteres policias, influenciassem de maneira negativa os leitores, principalmente a juventude. Sobre isso, Ramão Gomes Portão5, repórter que atuou com frequência na Boca do Lixo, chama atenção para o que ele denomina de “influência” que os meios de comunicação de massa, especialmente a reportagem policial, exercem sobre a opinião pública. Ele diz que esse tipo de relato contribui na formação da chamada “opinião pública”, pois ele cria questões de interesse público, e que a ação do repórter ao cobrir determinados locais onde a população por diversos motivos não tem acesso, acaba por “formar” o conhecimento das pessoas sobre a “criminalidade”, influenciando também as atitudes a serem tomadas pelas “instituições de defesa social” em relação aos marginalizados. Como vimos, essas relações se estabelecem e podem ser percebidas diariamente na prática da leitura do jornal. (PORTÃO, 1980, p.13). Outra forma de atuação da reportagem policial, no sentido de pressionar as autoridades e aparelhos de Estados a se posicionarem em relação a determinadas sociabilidades consideradas “marginais”, é quando essa se comporta como uma espécie de “tribuna de debates” sobre o que se considera um problema social a ser enfrentado. Nesse caso, é recorrente encontrar nas páginas dos jornais no período pesquisado, entrevistas com agentes do governo intimados a prestar contas de suas ações para combater o crime e os maus costumes, como é o caso da entrevista encontrada no Jornal Diário da Noite, em agosto de 1963, com o então Secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo, na segunda gestão de Ademhar de Barros, o General Adelvio Barbosa de Lemos. Na ocasião, o então Secretário havia sido convocado pela Assembleia Legislativa para prestar alguns esclarecimentos sobre os acontecimentos “ultrajantes” da Boca do Lixo. O jornal se antecipa à sabatina da Assembleia e o convoca para uma entrevista onde o título já oferece ao leitor a opinião do entrevistado 5Ramão Gomes Portão era formado em Direito, mas atuou como editor de polícia do famoso jornal Notícias Populares durante 20 anos e conhece bem os melindres da feitura desse tipo de reportagem. Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 128 sobre os principais assuntos pautados, diz: “Sou pela regulamentação do jogo e da prostituição”; porém, logo em seguida, o jornal procura desqualificar a opinião do secretário “Digressões filosóficas do velho General” (Diário da Noite, 09-08-1963, p.5). A entrevista segue com o secretário descrevendo como se comportaria perante os questionamentos que iria receber na casa legislativa: “Responderei com lealdade e franqueza a todas as perguntas que me forem dirigidas pelos ilustres deputados da nossa Assembleia Legislativa. Direi inclusive os motivos pelos quais sou pela regulamentação do jogo e do difícil problema do sexo. ” Logo em seguida, ciente do jogo de forças e de poder ao qual estava prestes a ser submetido, diante do desafio de entrar nessa “ordem arriscada do discurso” (FOUCAULT, op.cit. p.7), o secretário estabelece de imediato uma separação, uma distinção, entre sua opinião pessoal sobre as práticas do jogo e da prostituição na Boca do Lixo e seu dever enquanto agente do Estado, como podemos observar: Faço absoluta questão de frisar que, como secretário de Estado, coíbo a contravenção penal a qualquer preço. Todavia, como cidadão, homem particular, sou pela existência legal de ambos. Em todos os regimes, em todos os tempos, jogo e questão sexual foram duramente combatidos, no entanto, tidas como autentico calcanhar de Aquiles de todos os governos. ( Diário da Noite, 09-08-1963, p.5) Em seguida, o secretário se despe totalmente da postura de cidadão com opinião progressista em relação ao jogo e à prostituição para descrever em detalhes como se daria sua atuação na repressão aos praticantes da Boca do Lixo. Nessa descrição recorre a termos utilizados pelos repórteres policiais para se referir aos habitantes do local e ao seu cotidiano, como por exemplo, o uso das palavras “degradante”, “intolerável” e “desajustadas”, como podemos observar: Como auxiliar de um governo que me honrou com a direção desta importante pasta, cumpre-me combater a contravenção e o crime. Isso o farei de qualquer forma. Quando assumi a SSP tive a cautela de mandar filmar e fotografar o aspecto degradante da chamada “Boca do Lixo”. O espetáculo triste de filas de mulheres prostradas na via publica em atitude de deboche vai acabar. Até aqui, o delegado Milton Martins de Lara, titular da Delegacia de Costumes, autoridade das mais dignas, tem se portado como um herói na repressão aos delitos atinentes à sua Especializada, em fato dos parcos recursos do que ela dispõe. Todavia, tão logo aquela Delegacia receba os reforços que objetivo fornecer, espero que os lamentáveis espetáculos daquelas ruas desapareçam. O delegado Milton Martins de Lara continua a merecer a minha confiança. Estamos em plena batalha e, em tal fase, não se troca de comando. Acredito, também, que a Delegacia de Costumes, uma das mais importantes da nossa Polícia especializada, Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 129 elimine, quando estiver devidamente equipada, o intolerável e conhecido “trottoir” de mulheres desajustadas. (Diário da Noite, 09- 08-1963, p.5). Ele encerra a entrevista descrevendo a situação e a estrutura utilizada pela polícia para reprimir esse tipo de contravenção. Não sem antes, apoiar o seu enunciado na incorporação de estudos realizados e no planejamento das ações de repressão que seriam desenvolvidas. No final, faz questão de lembrar a responsabilidade e o papel da imprensa no sentido de fiscalizar e pressionar o Estado para que tome as providências cabíveis: Até aqui a nossa posição foi de estudos e de observação, agora, com tudo devidamente planejado, vamos avançar no sentido da trincheira do inimigo comum, isto é, a delinquência. Em cada posto chave da Polícia coloquei o homem adequado. Todos estão colaborando com dedicação. As delegacias especializadas, as distritais, as regionais do interior do Estado passaram a funcionar entrosadamente. Espero que a imprensa continue firme na sua função fiscalizadora. As portas da minha secretaria estão abertas aos jornais. Recebo a critica como subsidio ao meu trabalho, nunca como ofensa à minha administração. (Diário da Noite, 09-08-1963, p.5) Sobre essa confusão que é a leitura diária de um jornal, o antropólogo Bruno Latour faz uma descrição interessante, e a partir de uma notícia sobre o “aumento do buraco na camada de ozônio” ele descreve que no mesmo artigo encontrou várias falas, desde opiniões de químicos à de executivos de empresas produtoras de pesticidas, passando por chefes de Estados e ecologistas, além é claro, da visão do próprio jornal através do jornalista designado para produzir a matéria principal. Diz ele: “O mesmo artigo mistura, assim, reações químicas e reações políticas [...]. As proporções, as questões, as durações, os atores não são comparáveis e, no entanto, estão todos envolvidos na mesma história. ” Ele conclui seu raciocínio de forma cômica e irônica: “Se a leitura do jornal é a reza do homem moderno, quão estranho é o homem que hoje reza lendo estes assuntos confusos. Toda cultura e toda natureza são diariamente reviradas aí.”(LATOUR, 1994, p.7) O produto das reportagens produzidas no jornal é nomeado por “informação”, o historiador Frank Ankersmit diz que causa estranhamento as metáforas utilizadas para se referir a este conceito, como se a informação fosse algo físico: “A informação ‘flui, ’ ‘se move’, ‘se espalha, ’ é ‘trocada’, é ‘guardada’ ou é ‘organizada. ’ (ANKERSMIT, ano, p.120). Voltando ao debate sobre a linguagem do jornalismo policial, lembramos que os chavões e o lugar-comum são artefatos da escrita jornalística, orientados, em Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 130 muitos casos, pelos manuais de redação dos jornais; eles cumprem uma função de sobrepor a descrição dos fatos, o que dá aos títulos das reportagens uma materialidade própria, como diz Tognolli: No caso de um crime já disponho de todas as aberturas de matérias possíveis realizadas pelo jornalismo policial. No caso de economia tenho todo um componente técnico e reprodutível da linguagem a meu serviço; os candidatos que “não alçam voo”, os partidos que “não aquecem as turbinas” [...] para descrever a briga entre dois políticos, me basta adotar todo o referencial da linguagem bélica: os “flancos expostos”, os “pelotões de fuzilamento” e o “entrincheiramento” de políticos num determinado partido.”(TOGNOLLI, ano, p.161) Conforme apresentado no decorrer do artigo, a cobertura dos jornais analisados funcionou como suporte discursivo de aparelhos do Estado, instituições sociais e de saberes, que viam nas práticas “marginais” desenvolvidas no cotidiano da Boca do Lixo uma ameaça para os valores e costumes que queriam fazer circular no imaginário cultural da época. Para isso, se utilizaram das diversas seções dos jornais analisados, transportando para suas páginas os discursos de diferentes campos do saber, sempre na direção de esquadrinhar, separar, estereotipar e estigmatizar o cotidiano do local e seus praticantes. Frisando sempre a sujeira, a violência, a promiscuidade, utilizando sempre adjetivos negativos, como se o cotidiano dessas pessoas fosse o tempo inteiro perpassado por essa aura sombria, como se no local, não existisse outras formas de se relacionar que não as descritas nas páginas dos jornais. AUTOR Graduado em História pela UNEB - Universidade do Estado da Bahia (2010). Mestre em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (2015) e Doutorando em História pela mesma instituição. Atualmente dedica-se à pesquisa em História Cultural, nas seguintes áreas de interesse: história dos marginais, urbanidade, heterotopias, escrita de si e estética da existência. REFERÊNCIAS Filmes: SGANZERLA, Rogério; O Bandido da Luz Vermelha. Vídeo Interamericana, 1968. Jornais: A Platéia – 1940 A Capital – 1962 Diário da Noite – 1951/1963 Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 131 Bibliografia: BARROS, José D’Assunção. Fontes Históricas – um caminho percorrido e perspectivas sobre os novos tempos. In: Revista Alburquerque. Vol.3, n.1, 2010. BENATTE, Antônio Paulo. O centro e as margens: boemia e prostituição na “capital mundial do café”(Londrina 1930-1970). Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Paraná, 1996. DARNTON, Robert. O beijo de Lamourette. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. FONSECA, Guido. História da prostituição em São Paulo. São Paulo: Resenha Universitária, 1982. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Loyola, 1996. 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Da parceria da atriz com o diretor do filme e seu marido Rogério Sganzerla, surgiu Angela Carne e Osso, uma personagem transgressora, original e que se tornou um marco na interpretação do Cinema Brasileiro pelas rupturas e avanços que traz na representação da mulher. Este artigo reflete sobre o papel da performance nas inovações que a atriz apresenta. Palavras-chave: Helena Ignez, Cinema Marginal, interpretação. Trabalhar a poética colaborativa cinematográfica e investigar os momentos de criação do filme como integrantes e inerentes à composição de sua forma final e à sua recepção estética, pressupõe elevar o ator ao estatuto de co-autor de determinados Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 133 planos, sequências e até de um filme por inteiro. Partindo do lugar da atriz/autora Helena Ignez, faço uma breve análise da personagem Angela Carne e Osso do filme A Mulher de Todos(1969) dirigido por Rogério Sganzerla. Angela Carne e Osso é um marco na cinematografia nacional por romper com o modelo de mulher imposto pelo patriarcado e ampliar as possibilidades de identidades femininas no cinema brasileiro. A performance da atriz foi determinante para o filme alcançar o resultado obtido. Em A Mulher de Todos, a atuação de Helena Ignez é parte integrante da construção da narrativa fílmica; a performance, ela mesma, é a força do filme. O texto lido, ganha uma forma única na voz e no corpo da atriz. Rogério Sganzerla, influenciado por Bergman e Godard, acreditava na liberdade de criação do ator/atriz e tinha em Helena Ignez o corpo preparado para cada expressão requerida pela personagem. O aspecto visual da atriz se torna a única forma possível de existência para Angela Carne e Osso. Jovem, radicalmente loira em terra tupiniquim, corpo bonito, forte e sensual. Poderia ser apenas uma mulher sedutora, mas era muito mais, era “a mulher de todos”. O filme é uma comédia e mostra as aventuras de uma mulher vampiresca, adúltera, sedutora, dona de si, moderna, rebelde, casada com o empresário do ramo das comunicações, editor de história em quadrinhos Dr. Plirtz (Jô Soares). Angela Carne e Osso está em busca de amantes que queiram lhe acompanhar à Ilha dos Prazeres, um lugar onde tudo é permitido. O filme se vale da linguagem da história em quadrinhos, da pop art, da colagem e do humor das chanchadas para fazer uma crítica direta ao machismo, ao sistema e a cultura de massa. O texto falado pela atriz ganha formas muito particulares através de sua voz e corpo, resultando em uma performance absolutamente original. No início do filme, um enquadramento em contra-plongé mostra Angela Carne e Osso chutando Flávio Asteca em uma escada rolante. Angela não para de chutá-lo e agredi-lo. Ao mesmo tempo em que o agride, o beija. É ela quem toma a iniciativa. Causa um estranhamento ao espectador, ver esta sequência onde Angela chuta, empurra, puxa, grita, xinga, abraça e beija Flávio Asteca ao mesmo tempo. São sentimentos extremamente opostos. Um corpo feminino que transita entre a histeria e a sedução, apresentando-nos uma mulher agressiva e de comportamento oscilante. O corpo poético da atriz desenha-se entre gestos contidos e explosões. A força da personagem também é reforçada por um corpo firme em suas ações e oscila entre a delicadeza feminina e a altivez tão característica do gênero masculino. A personagem se Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 134 mostra ao espectador como um corpo autônomo, a exemplo da cena em que Angela está na praia fumando um charuto (elemento fálico que irá lhe acompanhar ao longo de todo o filme) e ajusta a camisa molhada e transparente no corpo, com o intuito de valorizar e evidenciar os mamilos aparentes. Nesta cena Angela é dona do próprio corpo, está em busca de diversão e prazer. Não é possível separar a aparência física de Helena da composição física da personagem. Angela Carne e Osso é em certo sentido a própria Helena Ignez. A atriz/autora é conduzida por uma narrativa cômica que se utiliza dos exageros, dos excessos, do absurdo e do cafona como elementos de composição estética e cênica para dar corpo e voz a uma mulher única. A poética do corpo e da voz brota dos extremos. O corpo que agride, o corpo que sente e dá prazer, um corpo ambíguo e material. A personagem caracteriza diferentes mulheres para diferentes homens, porém sempre em posição de domínio. A atriz faz uso de diversos figurinos, o que contribui para essa demarcação de personalidades. O corpo de Angela Carne e Osso veste símbolos codificados como bota de cowboy, vestidos curtos, mas também se veste com roupas masculinas, vestindo camisa de manga comprida, gravata , chapéu e calça comprida, masculinizando a personagem nas cenas em que desempenha ações atribuídas somente aos homens na época, como dirigir um carro , dar carona para um homem na estrada, se relacionar com outra mulher ou pilotar uma moto. O diretor se apropria de elementos e símbolos de poder do universo masculino (como o charuto, por exemplo) para garantir a Angela Carne e Osso um patamar de igualdade com os homens. https://4.bp.blogspot.com/-JXRMaoGBrns/WSwr4w2FjmI/AAAAAAAACes/D_w5FCkS6UQFHDlvWY6gOp8AhIBtZ4RxACLcB/s1600/4.jpg Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 135 Os trajes usados também influenciam em sua movimentação contribuindo para a composição gestual da personagem. Nas cenas de dança, a coreografia intuitiva e de improvisação, interage diretamente com o olhar do diretor, uma vez que a atriz brinca com a câmera, ora se posicionando mais a frente ora mais afastada. Não tendo o diretor total controle sobre a cena/performance. Outra característica que aponta uma rasura no padrão de performance da narrativa clássica hollywoodiana, é o fato de que Angela Carne e Osso é uma mulher vampira e sádica. Em uma das cenas , ao beijar o parceiro Armando, queima-o com o charuto e morde seu pescoço até sangrar. A cena dá um tom surreal à narrativa, principalmente porque não é um código que se repete. Angela Carne e Osso rompe com o convencional e ataca o parceiro com violência, deliciando-se com o sangue nos lábios. É uma cena de horror, diferente das cenas de amor convencionais. Uma mulher dominadora que se sente provocada e reage de forma agressiva. Essa cena é um dos extremos no filme. O espectador não espera que algo assim aconteça, pois não há nenhum código presente em cenas anteriores que indique essa possibilidade. A atriz/autora tem em seu corpo e voz os instrumentos que a permitem fazer essa transição entre a sedução e o horror. O berro é uma característica marcante do cinema marginal e Angela Carne e Osso berra, grita. Esse grito é um grito da violência, da dor de ser mulher, de ser jovem e artista durante o regime militar, mas este grito de Angela/Helena, também é o grito da mulher discriminada, da mãe que não pode criar a própria filha, são gritos provenientes também das angústias pessoais da atriz. A visceralidade da encenação de Angela Carne e Osso se vale do improviso como estratégia de combustão. O corpo, educado pelas técnicas é capaz de transcender as convenções de interpretação cênica, criando um espaço/tempo próprio onde a mulher e sua subjetividade é mais forte. De forma totalmente autônoma e independente, Angela é protagonista de sua própria história. É ela quem está no comando e quem decide de que forma dispõe seu corpo no tempo/espaço. Angela Carne e Osso é extremamente abusada, é agressiva, grita com os homens, mas também os ama, nunca sendo apenas uma presença sedutora. Ela é aquela que não é submissa aos homens, que reage a violência com violência, que é dona do próprio corpo. Helena Ignez fez da sinceridade do “olhar” de Angela Carne e Osso, a síntese de seu dinamismo incomum. Helena Ignez, a atriz e a autora encontram-se polarizadas em extremos corporais no que diz respeito a postura da atriz frente à câmera. Se de um lado, temos a Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 136 imobilidade total ou parcial quando aparecem as figuras da pose e da sedução; do outro, temos a mobilidade excessiva e frenética do satélite e da histeria. Neste caso, o satélite é uma das funções desempenhadas pela personagem, que às vezes parece orbitar em torno dos demais personagens, onde a movimentação de Angela Carne e Osso em algumas cenas sugere um estado de confusão ao espectador. A aproximação aliada ao distanciamento brecthiano sugere uma atuação bastante explosiva. A verborragia da personagem é uma característica já presente em “O Bandido da Luz Vermelha”, esse excesso de texto, que é a marca geral dos atores nos filmes marginais de Sganzerla, se apoia em diálogos e situações que escapam à transmissão de um sentido narrativo através das palavras. Os personagens repetem assim, exaustivamente ao longo dos filmes, frases previamente escritas pelo diretor, mas que variam de entonação, ritmo e intensidade segundo a escolha de quem interpreta. Mais do que formar diálogos, essas frases que muitas vezes soam como slogan publicitário, servem mais para extravasar a tensão de um personagem do que estabelecer a comunicação entre ela e seu parceiro de cena. Os diálogos de Angela Carne e Osso às vezes parecem monólogos; o texto escrito, a entonação, o gestual, muitas vezes não indicam claramente com quem ela fala; existe um distanciamento proposital dos outro personagens. Através do método de improviso, pulsão, atuação e construção operam em conjunto ao mesmo tempo. Neste processo marcado pela ausência de fronteiras, o livre trânsito da atriz possibilita uma performance onde o “corpo” é o grande acontecimento; Helena Ignez dispôs de seu corpo como um corpo político a serviço da anarquia. Angela Carne e Osso promove um rompimento radical com a norma e o realismo no que tange o universo da encenação/atuação no cinema brasileiro. A questão da pose, do “aparecer” sobre o “parecer”, é um elemento presente na narrativa do filme, principalmente nos filmes da produtora Belair, onde ao invés de buscar a verossimilhança, os atores simplesmente aparecem diante das câmeras (o “aparecer”, o “mostrar- se”, o “estar lá”), acentuando o deboche típico do Cinema Marginal. A forma de realização do filme torna-se fundamental para que ocorram rupturas no modo de representar. Rogério Sganzerla cria um espaço de maior liberdade para a atriz, que permite que o acontecimento/performance se modifique, se altere, se construa e desconstrua no exato momento em que é registrado. É dentro deste espaço, que ocorre sempre no presente, que surge a possibilidade de alteração nos modos de representação, Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 137 onde se torna possível romper a reprodução de modelos hegemônicos a partir da interferência da atriz/autora. Ao romper com a repetibilidade da forma de representar, nos deparamos com a força do “ato performativo”. Para compreender esta força é necessário adentrarmo-nos ao campo da linguagem. Segundo J.A. Austin (1998), a linguagem não se limita a proposições que simplesmente descrevem uma ação, uma situação ou um estado de coisas. Algumas proposições não são apenas descritivas mas fazem com que alguma coisa aconteça. Ao serem pronunciadas, essas proposições fazem com que algo se efetive, se realize. A estas proposições, Austin chama de “performativas”. São exemplos: “Declaro estado de guerra. Eu vos declaro marido e mulher”. (AUSTIN apud SILVA, 2007, p.93). Segundo Austin (1998), no universo da comunicação, muitas sentenças descritivas acabam funcionando como performativas, como: Maria tem dificuldade de raciocinar. Embora descritiva, em um sentido mais amplo, pode funcionar como performativa na medida em que sua repetição produz o fato, pois a receptora da informação internaliza a sentença, que pela repetição a leva a acreditar que realmente tem dificuldade de raciocinar. Em termos de produção de Identidade, é sobretudo da possibilidade de repetição que vem a força que um ato linguístico desse tipo tem no processo de produção de identidade. (AUSTIN apud SILVA, 2007, p.94) Analisando o conceito de “performatividade/performance”, numa perspectiva mais ampla, para a filósofa e estudiosa de gênero Judith Butler (1999), a mesma repetição que garante eficácia dos atos performativos e que reforçam as identidades existentes pode significar também a possibilidade da interrupção das identidades hegemônicas. A repetição pode ser interrompida, pode ser questionada e contestada. É nessa interrupção que residem as possibilidades de instauração de identidades que não representem simplesmente a reprodução das relações de poder existentes. (BUTLER apud SILVA, 2007, p.95) É a partir da performance que a atriz Helena Ignez rompe com a repetição de um padrão. A liberdade no processo de construção das personagens possibilitou a atriz explorar os extremos das potencialidades humanas, através do corpo e da voz, criou nuances variadas, imbuídas de força e particularidades. A sua forma de atuar choca, é a anti-heroína do cinema brasileiro. O papel da atriz/ autora como ativista feminista que criou uma nova concepção de atuação através da estética marginal, trouxe em cena uma mulher que quebra tabus Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 138 falando abertamente sobre o aborto, sexualidade, que é também protagonista da revolução, que questiona os valores do seu tempo, que propõe uma reflexão mais profunda nas questões relacionadas ao gênero feminino. Num período de ditadura e censura, Helena Ignez transgrediu as normas, incomodou os de direita e os da esquerda também. Ela era o retrato do avacalho feminino, uma clara insatisfação ao regime da ditadura civil e militar e suas consequências. Ela criou um novo estilo de atuar: debochado, extravagante, sedutor e original. A partir daí, Helena atuou em diversos filmes de Rogério Sganzerla. Teóricas feministas do cinema como Laura Mulvey ou Teresa de Lauretis acreditavam que o cinema independente poderia ser o espaço de subversão do papel feminino comumente representado. No ensaio “Visual pleasure and narrative cinema”, de 1975, Laura Mulvey convoca Lacan e Althusser para o projeto feminista ao afirmar o caráter genérico da narrativa e do ponto de vista do cinema hollywoodiano clássico. Para Mulvey. O cinema coreografa três tipos de “olhar”: o da câmera, o das personagens olhando-se umas às outras e do espectador induzindo a identificar-se voyeristicamente com um olhar masculino sobre a mulher. O homem é o condutor do veículo narrativo e a mulher o seu passageiro. O prazer visual no cinema reproduzia assim uma estrutura em que o masculino olhava e o feminino era para ser olhado, uma estrutura binária que espelhava as relações assimétricas de poder operantes no mundo social real. `As espectadoras femininas não era reservada outra escolha senão a de identificar-se com o protagonista masculino ativo, ou com a antagonista feminina passiva e vitimizada. No caso do filme A Mulher de Todos, temos, além dos olhares masculinos, dois olhares femininos: o da atriz para o marido/diretor/ público, e a possibilidade do olhar https://2.bp.blogspot.com/-_WdFjTcooII/WSwsJBeguMI/AAAAAAAACew/FGLj3w5oi2U1bB3RJy5MP0mCybKBAjBpACLcB/s1600/6.jpg Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 139 do público feminino que pode se identificar de forma positiva com a protagonista. Existe aí a novidade do olhar feminino, defendido por Ann Kaplan, como sendo uma das maneiras de se alterar as narrativas fílmicas, e que pode possibilitar brechas contra o patriarcado e a construção de novos olhares. Ainda que o olhar feminino desta cena não altere de forma significativa a narrativa como um todo, existe aí uma abertura de espaço para que novos olhares se configurem, assim como a possibilidade de uma identificação feminina com a protagonista. A Mulher de Todos é um filme que merece destaque por sua originalidade e pelas inovações da interpretação proposta por Helena Ignez, inclusive no comportamento da personagem. O filme causou um grande impacto no meio intelectual e levou diversos cineastas a refletirem. Para Jean Claude Bernardet[1]:. A mulher de todos é um ato de liberdade quase total, como se o Sganzerla tivesse se libertado dessa questão de desconstrução, de paródia e se dirigir ai pra uma forma muito surpreendente de narrativa, de personagens, de interpretação, de maneira de dizer o texto, de montagem, de absolutamente tudo. No Bandido, e mais ainda na Mulher de Todos, Helena Ignez rompe absolutamente com essa forma de representação realista. Eu acho que ela foi realmente muito audaciosa. Uma das inovações da Mulher de Todos é a forma de trabalho da Helena Ignez como atriz que se apoia muito mais na pessoa dela, na competência dela, no potencial performático dela do que na composição da personagem. Como Bernadet aponta acima, um fator determinante que possibilitou rupturas na forma de representar é a própria capacidade de Helena Ignez e o seu potencial de encenação. Sua bagagem pessoal aliada a seu potencial criativo, sobrepõe-se a rigidez de uma composição prévia da personagem. Sob o ponto de vista do feminismo, Bernadet acrescenta que naquela época mulheres com caminhos muito diversos passam a fazer afirmações surpreendentes. Para ele, não se pode pensar em Helena Ignez sem pensar em Leila Diniz grávida, pois ambas são contemporâneas e não são fatos isolados. Surge a pílula, despontam colunas semanais com artigos sobre a libertação da mulher, comportamento e etc. Para Bernardet, dentro deste contexto de libertação e ruptura, Helena Ignez é a atriz de sua época que foi mais longe, pois ao reunir esses elementos de empoderamento feminino ao nível da interpretação diante da câmera, tornou possível o surgimento de Angela Carne e Osso, por exemplo. Jean Claude Bernardet considera “A Mulher de Todos” um filme inovador e a performance da atriz Helena Ignez única no cinema brasileiro. Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 140 A Mulher de Todos trouxe avanços para o cinema brasileiro em diversos aspectos. Existe um consenso entre autores/críticos do cinema brasileiro quanto à importância fundamental do sujeito Helena Ignez na atuação e co-criação da personagem, a performance de Helena Ignez é o elemento de força da personagem. AUTORA * Tatiana Trad é Mestra em Cultura e Sociedade pela UFBA e integrante do grupo de pesquisa em Gênero, Cultura e Mídia “MIRADAS” / UFBA, coord. Pela Profa. Dra. Linda Rubim. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS KAPLAN, E. Ann. A mulher e o cinema: os dois lados da câmera. Rio de Janeiro: Artemídia; Rocco, 1995. LAURETIS, Tereza de. Alice doesn’t: feminism, semiotics, cinema: an introduction. London: themainillanpress, 1978 LAURETIS, Tereza de. 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Rogério Faé* RESUMO: Os discursos governamentais frequentemente justificam suas ações com base na capacidade financeira para execução. Ao longo das últimas décadas nos acostumamos a uma prática discursiva que atribui à eficiência e à competitividade no mercado o suporte econômico que, por consequência, cria as condições para que possamos melhorar a qualidade de vida, seja individual, seja da população em geral. Entretanto, ao atrevermo-nos a um olhar diferente encontramos práticas discursivas desvalorizadas ou negadas em uma batalha de saber-poder que busca manter a legitimidade das ideias que predominam. Razão pela qual, este texto busca fazer um resgate de algumas das condições que possibilitaram o predomínio, na atualidade da sociedade brasileira, da lógica econômica sobre os aspectos socioculturais. Palavras-Chave: Práticas Discursivas, Foucault, Crescimento Econômico. INTRODUÇÃO Vivemos em um contexto no qual está dado por certo que os aspectos econômicos são determinantes do contexto sociopolítico em que vivemos. Os discursos https://2.bp.blogspot.com/-4up9TmQrufw/WS6-piC9N1I/AAAAAAAACgg/bqRGYJlIAWsoKAGezB9ABYffpoUiPpr2wCLcB/s1600/16.jpg Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 142 governamentais frequentemente justificam suas ações com base na capacidade financeira para execução. Ao longo das últimas décadas nos acostumamos a uma prática discursiva que atribui à eficiência e à competitividade no mercado o suporte econômico que, por consequência, cria as condições para que possamos melhorar a qualidade de vida, seja individual, seja da população em geral. Entretanto, ao atrevermo-nos a um olhar diferente encontramos práticas discursivas desvalorizadas ou negadas em uma batalha de saber-poder que busca manter a legitimidade das ideias que predominam. Razão pela qual, este texto busca fazer um resgate de algumas das condições que possibilitaram o predomínio, na atualidade da sociedade brasileira, da lógica econômica sobre os aspectos socioculturais em termos governamentais. Em um primeiro momento, será feita uma revisão de alguns elementos da teoria foucaultina que darão suporte à análise. Na parte seguinte, as ideias de Celso Furtado serão trabalhadas entendendo-as como reflexivas em relação ao contexto em que ele se encontra. O autor, em constante autocrítica, faz emergir práticas discursivas para no momento seguinte desconstruí-las e reconstruí-las parcialmente. Processo que dá margem a vários entendimentos e que cria as condições para a posterior produção discursiva de autores tanto de direita como de esquerda. A seguir será feita uma rápida aproximação das formações discursivas abordadas em relação ao momento atual e, por fim as considerações finais. FOUCAULT E AS PRÁTICAS DISCURSIVAS Foucault (2000, p. 55) argumentou que o discurso é um conjunto de enunciados que não somente designa as coisas, mas produzem-nas, e deve ser visto como prática(s) que formam “sistematicamente os objetos de que falam. Certamente os discursos são feitos de signos; mas o que fazem é mais que utilizar esses signos para designar coisas. É esse mais que os torna irredutíveis à língua e ao ato da fala. É esse “mais” que é preciso fazer aparecer e que é preciso descrever”. O poder, por sua vez, se constitui através de práticas discursivas baseadas em saberes próprios, nos quais ganha importância o conceito de corpo político, que é entendido como um conjunto dos elementos “(...) materiais e das técnicas que servem de armas, de reforço, de vias de comunicação e de pontos de apoio para as relações de poder e saber que investem os corpos humanos e os submetem fazendo deles objetos de saber” (FOUCAULT, 1987, p. 30). Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 143 Entretanto, mesmo considerando imprescindível considerar a produção anterior à terceira fase de Foucault, é necessário frisar que a ênfase da última etapa no processo de subjetivação, para Deleuze (1998, p. 129-130) foi resultado de um “(...) impasse em que o próprio poder nos coloca, na nossa vida como no nosso pensamento (...). E só haveria saída se o de-fora fosse apanhado num movimento que o desvia da morte. Seria como que um novo eixo, simultaneamente distinto do do saber e do do poder. Eixo que não invalida os outros, mas os impede de ficarem fechados, entendendo a própria “(...) motivação psicológica não como a fonte, mas como o resultado de estratégias sem estrategistas (...)” (RABINOW; DREYFUS, 1995, p.121) que leva a disposições, manobras, táticas, técnicas e funcionamentos, que emergem no interstício de uma rede de relações sempre tensa e em atividade. Foucault (1994, p. 10) define este terceiro eixo como “(...) o estudo dos modos pelos quais os indivíduos são levados a se reconhecerem como sujeitos (...)”. Ou seja, a compreensão sobre as maneiras pelas quais os indivíduos podem construir a experiência deles mesmos enquanto sujeitos, constituindo-se e reconhecendo-se como tal, ou ainda, através de quais jogos de verdades. Ganharão importância, neste contexto, as razões pelas quais os cuidados éticos – localizados espacial e temporalmente – adquirem importância, questionando sobre o porquê de determinadas práticas discursivas e, principalmente, sobre as razões desta formatação das relações de força. Buscando, assim, as formas e condições do pensar, pelo homem sobre o que ele é, e sobre o mundo em que se insere. Valorizando, assim, o conceito de técnicas de si, que se caracterizam como conjuntos formados por práticas que definem a estética da existência, ou seja, práticas reflexivas e voluntárias através das quais “(...) os homens não somente se fixam regras de conduta, como também procuram se transformar, modificar-se em seu ser singular e fazer de sua vida uma obra que seja portadora de certos valores estéticos e respondam a certos critérios de estilo”. (Foucault, 1994, p.15) Foucault (1994, p. 15-16) ao buscar as razões de determinadas problematizações éticas, parte das práticas de si e, sem descaracterizar os eixos anteriores, os atualiza e redimensiona: “a dimensão arqueológica da análise permite analisar as próprias formas da problematização; a dimensão genealógica, sua formação a partir das práticas e de suas modificações”. Na sequência do texto, serão utilizados alguns elementos da construção de Foucault no que tange à estética da existência. Para este estudo que busca olhar para o Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 144 passado vislumbrando as condições que possibilitaram o contexto presente, no que se refere à predominância do econômico sobre as esferas socioculturais no Brasil, serão analisados aspectos da prática discursiva de Celso Furtado ao estudar em termos históricos a formação socioeconômica brasileira. A escolha por centrar o estudo em Celso Furtado se justifica por seu reconhecimento tanto por autores de esquerda, quanto por autores de direita, que utilizam parte de sua construção discursiva de forma muitas vezes descontextualizada (VIEIRA, 2007). Entretanto, algumas premissas permanecem na base de quase todos os autores, mesmo que negadas por técnicos que predominam no contexto político gerencial da atualidade. O PROCESSO DE FORMAÇÃO SOCIOECONÔMICO BRASILEIRO Antes de iniciar o texto é importante salientar que ao buscar compreender os principais aspectos da formação econômica brasileira é necessário relembrar que a construção de qualquer autor responde a fatores perceptuais localizados em termos geográficos e temporais que, ao reinterpretar o passado a partir de novas variáveis, não se está apenas abrindo alternativas para o futuro, mas empreendendo a reconstrução da história pretérita (FOUCAULT, 2000). Nesse sentido, a produção de um mesmo autor pode, também, expressar diferentes argumentos ao longo do tempo. As práticas discursivas de Celso Furtado ganharam visibilidade na primeira metade da década de 1950, época em que grupos modernizadores questionavam as práticas oligárquicas ligadas à agricultura exportadora. Sua obra foi fortemente influenciada pela construção político-social que emergiu na década de 1930, na qual [...] o historicismo alemão, o culturalismo de Franz Boas, a sociologia de Max Weber e o marxismo, passaram a informar, em novas bases, o pensamento social do País. Foi, aliás, esse sopro de radicalismo intelectual o responsável por algumas obras essenciais que [...] descobriram o Brasil para os brasileiros, nos idos de 1930 – Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freire; Formação do Brasil Contemporâneo, de Caio Prado Junior; e Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda. (VIEIRA, 2007, p. 16) Em resultado dessa efervescência intelectual emergiram as bases para práticas discursivas que buscavam valorizar a identidade brasileira. Esses projetos almejavam fazer frente à homogeneização sociocultural de matriz eurocêntrica (VIEIRA, 2007). Naquele contexto, Furtado (1961, p. 241-242) argumentou que a ideia de desenvolvimento, unicamente identificada à lógica de crescimento econômico, Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 145 desconsiderava a dimensão histórico-social que a condicionava. Assim como, criticou a simples reprodução de padrões exógenos no contexto nacional. O autor defendeu que a Revolução Industrial provocou transformações nos padrões produtivos em escala mundial e, principalmente, que o discurso de eficientização da produção somente ganhou dinamismo através da elaboração de técnicas comerciais que articulavam oferta e procura, assim como da construção de novas classes sociais ligadas à produção industrial, distribuição e comercialização das manufaturas. Se, nos países em que o processo de industrialização primeiro se fez presente, houve íntima interdependência entre os fatores tecnológicos e sociais na construção da realidade nacional, o mesmo não se podia afirmar em relação aos países da América Latina. Nesses últimos, o processo de industrialização, ao ser incentivado, teve como principal fator motivacional o aperfeiçoamento da produção ligada à exportação, ou seja, caracterizou-se como complementar ao processo experimentado nos países centrais. Essa lógica, em geral, desconsiderou as necessidades das nações que compunham as linhas comerciais em posição de importadoras de manufaturas e exportadoras de bens primários. O resultado, para as economias Latino-Americanas, foi “[...] quase sempre a criação de estruturas híbridas, uma parte das quais tendia a comportar-se como um sistema capitalista, a outra, a manter-se dentro da estrutura preexistente. Esse tipo de economia dualista constitui, especificamente, o fenômeno do subdesenvolvimento contemporâneo” (FURTADO, 1961, p. 253). Nesse sentido, o subdesenvolvimento experimentado pelos países da América Latina teria provocado a reprodução, em âmbito regional interno, das desigualdades socioeconômicas entre países. Uma vez iniciado esse processo, “[...] sua reversão espontânea é praticamente impossível” (FURTADO, 1959, p. 331). É necessário frisar, ainda, que contrariando as práticas discursivas que predominavam à época e que defendiam que o desenvolvimento socioeconômico viria da homogeneização produtiva ditada pelos países centrais, para Furtado (1961, p. 253), o “[...] subdesenvolvimento é [...] um processo histórico autônomo, e não uma etapa pela qual tenham, necessariamente, passado as economias que já alcançaram grau superior de desenvolvimento”. Entretanto, a resposta de Furtado (1954), em âmbito econômico, atribuía à industrialização substitutiva uma posição de recurso gerador de nova dinâmica que Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 146 levaria as nações Latino-Americanas, mais especificamente o Brasil, a uma situação de maior autonomia em relação aos países centrais. Entretanto, o que se percebeu a posteriori é que tal lógica acabou por reproduzir as práticas discursivas pré-existentes nos países centrais. A industrialização por substituição de importações tinha por pressuposto ampliação do mercado interno, via crescimento da produção e renda per capita, que possibilitariam a participação nacional no sistema econômico internacional em condições menos desiguais. Já o planejamento do processo de desenvolvimento, ao ser atribuído ao Estado, teria por função reduzir a espontaneidade pressuposta à industrialização periférica, como fator alheio a qualquer “[...] intenção consciente de romper com os esquemas tradicionais de divisão internacional do trabalho” (FURTADO, 1962, p. 38-39). Vieira (2007, p. 385) argumenta que, para Furtado, “(...) somente a ação planificadora e compensatória do Estado, guiada pela intelligentsia munida de uma racionalidade superior, seria capaz de assegurar o interesse coletivo e, nessa medida, a dimensão democrática que na sua teoria passa pelo desenvolvimento econômico e pela nação soberana, finalmente construída”. Entretanto, passada a Era Vargas (1930-1954) na qual o processo de industrialização foi incentivado, ao contrário do que era esperado, o custo das importações demandadas pelo processo de industrialização substitutiva foi gradativamente evoluindo e exigindo participação crescente do capital estrangeiro, conforme foram se ampliando as necessidades. O próprio Furtado (2000a) fez a autocritica e identificou três estágios sequenciais que acabavam por manter a dependência com os países centrais: a) substituição de bens de consumo leves; b) substituição de bens de consumo duráveis; e c) substituição de bens de produção. A passagem para níveis mais elevados de produção interna, se, por um lado, liberava a pauta importadora, por outro, criava novas necessidades de importação de insumos para alimentar a produção interna, fato que tornava o equilíbrio entre as divisas oriundas da exportação e os custos advindos da importação (de máquinas, bens intermediários e matérias-primas industrializadas) extremamente complexo, principalmente, ao considerar a relação crescentemente deteriorada entre produção primária e industrial (FURTADO, 2000; MARTINS, 2006). Naquele momento, a percepção que passou a predominar era que a acumulação seria indissociável da expansão capitalista em padrões internacionais, ou seja, seria Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 147 parte de um processo de enriquecimento dos países centrais e da pequena elite periférica articulada a eles. Em resposta a essa percepção ganharam força, ao final da década de 1950 e início da década de 1960, processos de resistência articulados por movimentos sociais e sindicatos de trabalhadores que lutavam por melhores condições de vida e renda à população em geral (BIELSCHOWSKY, 2000). Ao constatar que a classe dirigente brasileira era passiva e intelectualmente alinhada com práticas discursas externas, Furtado (2007a, p. 421) passou a defender a tese de que havia falta de vontade política para mudar a realidade experimentada. Razão pela qual passou a “[...] ver o mundo como um desafio. Fazer política é enfrentar desafios. Não cabe esperar por soluções espontâneas. Não pode haver infraestrutura sem política, sem planejamento”. Entretanto, a [...] derrota e o banimento de Furtado, em 1964, no momento em que o capital monopolista internacional elegia o país como mais um de seus espaços de acumulação e reprodução ampliada, exigindo para isso o aprofundamento dos aspectos antidemocráticos do Estado Brasileiro, era a evidência de que a burguesia industrial Brasileira, sem nenhuma ‘ilusão heróica’, tinha feito sua escolha: ser o sócio menor do grande capital externo. (VIEIRA, 2007, p. 390) Considerando a prática discursiva que predominou na década de 1960, principalmente a partir de 1964, e que salientava os limites à industrialização sob premissas definidas em âmbito interno, Furtado (1974, p. 10) afirmou que sua formação discursiva anterior à década de 1970 foi produzida em um contexto no qual se “[...] se manifestavam tendências policêntricas na economia mundial [...]”. Já a produção discursiva que começou a tomar forma teve por base a percepção da “[...] afirmação definitiva das grandes empresas no quadro de oligopólios internacionais, a rápida industrialização de segmentos da periferia do sistema capitalista no novo sistema de divisão internacional do trabalho”. Para o autor, a grande empresa passou a ocupar posição de elemento estruturador do sistema capitalista. Razão pela qual Furtado (1974) ratificou seu discurso problematizador do conceito de desenvolvimento que, ao ser predominantemente identificado com formações discursivas em defesa da ampliação dos mercados, buscava a disseminação dos padrões de consumo experimentados por uma minoria privilegiada da população mundial. Esse olhar teria direcionado muitos dos esforços ligados ao desenvolvimento para práticas que viam na tecnologia o principal fator de dinamismo, independente do contexto em que se inserisse. Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 148 Em decorrência, Pouca ou nenhuma atenção foi dada às consequências, no plano cultural, de um crescimento exponencial do stock de capital. As grandes metrópoles modernas com seu ar irrespirável, crescente criminalidade, deterioração dos serviços públicos, fuga da juventude na anticultura, surgiram como um pesadelo no sonho de progresso linear em que se embalavam os teóricos do crescimento. Menos atenção ainda se havia dado ao impacto no meio físico de um sistema de decisões cujos objetivos últimos são satisfazer interesses privados. (FURTADO, 1974, p. 14) Em contrapartida à ênfase tecnológica estimulada pelos centros difusores do discurso capitalista, o autor destacou a crescente dependência dos países centrais em relação à matéria-prima – muitas vezes advinda de recursos não-renováveis – produzida por outros países, como fator-chave na definição política de abertura econômica, principalmente, via disseminação de grandes empresas com tecnologias capazes de explorar os recursos naturais, em escala planetária. Nesse aspecto, Furtado (1974, p. 16) destacou: “[...] como a política de defesa dos recursos não-reprodutíveis cabe aos governos e não às empresas que os exploram, e como as informações e capacidade para apreciá-las estão principalmente com as empresas, o problema tende a ser perdido de vista”. Em relação à desigualdade que daí advém, o autor salientou dois fatores mutuamente influenciáveis: a aceleração da acumulação de capital nos sistemas de produção; e a intensificação do comércio internacional, sob condições de troca que ampliavam progressivamente a diferença entre o valor relativo dos produtos industrializados e dos produtos agrícolas ou matéria-prima. Assim, é a forma como esse excedente era apropriado e utilizado que era ratificada como problema para o estudo da formação e manutenção do sistema capitalista industrial. Em outras palavras, a ênfase de Furtado (1974) se centrava no entendimento da dinâmica que sustentava o sistema de divisão internacional do trabalho. Nesse sentido, sua análise novamente recorreu aos fatos históricos que condicionaram a formação do sistema como o conhecemos, ou seja, o projeto inicial, inglês, que buscava concentração geográfica, logo sofreu resistência e se pulverizou na forma de sistemas econômicos de base nacional orquestrados pelos países que, no século passado, assumiram a liderança do processo de industrialização e, por consequência, centralizaram as decisões econômicas em escala mundial. Posições essas que não deixaram de se aprofundar, pois Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 149 Como a industrialização, em cada época, se molda em função do grau de acumulação alcançado pelos países que lideram o processo, o esforço relativo requerido para dar os primeiros passos tende a crescer com o tempo. Mais, ainda: uma vez que o atraso relativo alcança certo ponto, o processo de industrialização sofre importantes modificações qualificativas. Já não se orienta ele para formar um sistema econômico nacional e sim para completar o sistema econômico internacional. (FURTADO, 1974, p. 23) Neste contexto, as indústrias nascentes se moldavam às necessidades do mercado de forma articulada com o sistema macroeconômico e remetiam às grandes empresas à posição de centro de decisão, com capacidade de influir na dinâmica interna dos diversos países, em âmbitos que extrapolavam a esfera econômica. Com base nessa visão problematizadora, à revelia das consequências do discurso econômico nas esferas socioculturais e ambientais, o traço mais característico do capitalismo seria a inexistência de um disciplinador geral do conjunto das atividades econômicas. A autonomia da macroeconomia, à medida que fornecia estabilidade às relações comerciais transnacionais, em contrapartida, liberava o Estado para direcionar seus esforços para a esfera social. Essa última, entretanto, necessitava estar articulada com a estratégia econômica, ou melhor, deveria oferecer atratividade ao investimento empresarial (FURTADO, 1974). [...] o Estado tem [...] grandes responsabilidades na construção e operação de serviços básicos, na garantia de uma ordem jurídica, na imposição de disciplina às massas trabalhadoras. O crescimento do aparelho estatal é inevitável, e a necessidade de aperfeiçoamento de seus quadros superiores passa a ser uma exigência das grandes empresas que investem no país. (FURTADO, 1974, p. 60) Com base na análise do último autor, as relações entre empresas e Estados nacionais eram condicionadas pelas grandes empresas, com base em quatro fatores: (i) a inovação, principal instrumento de expansão internacional através da introdução de novos processos e produtos, era controlada pelas grandes empresas; (ii) a maior parte das transações internacionais estava sob responsabilidade das grandes empresas; (iii) as grandes empresas operavam de forma a escapar da ação isolada de qualquer governo; e (iv) as empresas possuíam grande liquidez que fugia ao controle dos bancos centrais e tinham fácil acesso ao mercado financeiro internacional (FURTADO, 1974). Para o autor, tais características das grandes empresas não caracterizavam o declínio da atividade política, mas a “[...] unidade de comando político, apoiado em um sistema unificado de segurança” (FURTADO, 1974, p. 34), que daria suporte à lógica macroeconômica. Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 150 Criou-se, assim, uma superestrutura política a nível muito alto, com a missão principal de desobstruir o terreno ali onde os resíduos dos antigos Estados nacionais persistiam em criar barreiras entre os países. A reconstrução estrutural se operou a partir da economia internacional. No plano interno os Estados nacionais ampliaram a sua atuação para reconstruir as infraestruturas, modernizar as instituições, intensificar a capitalização, ampliar a força de trabalho, etc. Tudo isso contribuiu, evidentemente, para reforçar a posição das grandes empresas dentro de cada país. Mas foi a ação no plano internacional, promovida pela superestrutura política, que abriu a porta às transformações de fundo, trazendo as grandes empresas para uma posição de poder vis-à-vis dos Estados nacionais. (FURTADO, 1974, p. 36) Nessa superestrutura que possibilitava a autonomização da esfera econômica, sob controle das grandes empresas, um Estado nacional isolado pouco poderia fazer, até porque a pressão por inserção no mercado mundial já não vinha apenas dos núcleos de desenvolvimento, mas também das empresas internas a seu território. Nesse sentido, “[...] como tanto a estabilidade e a expansão dessas economias dependem fundamentalmente das transações internacionais, e estas estão sob o controle das grandes empresas, as relações dos Estados nacionais com estas últimas tendem a ser relações de poder” (FURTADO, 1974, p. 33). As principais repercussões dessa nova dinâmica capitalista baseada em relações de saber-poder, podiam, para Furtado (1974, p. p. 42-43) ser traduzidas por Em primeiro lugar, [...] o processo de unificação abriu o caminho a uma considerável intensificação do crescimento no próprio centro [...]. Em segundo lugar, ampliou-se consideravelmente o fosso que já separava o centro da periferia do sistema, o que em grande parte é simples consequência da intensificação do crescimento no centro. Em terceiro lugar, as relações comerciais entre países centrais e periféricos, mais ainda do que entre países centrais, transformaram-se progressivamente em operações internas das grandes empresas. As economias periféricas passaram, então, a enfrentar um processo de agravamento das disparidades internas de forma proporcional à sua industrialização, amplamente estimulada pelo capital advindo dos oligopólios internacionais que, ao financiar a produção, buscavam melhores taxas de retorno aos seus investimentos. Nesta dinâmica foi ratificada a demanda aos países periféricos por mimetismo cultural e concentração de renda, de forma a possibilitar a uma minoria privilegiada padrões de consumo similares aos dos países centrais, que se diferenciam daqueles experimentados pela massa populacional. A integração do centro permitiu intensificar sua taxa de crescimento econômico, o que responde, em grande parte, pela ampliação do fosso Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 151 que o separa da periferia. Por outro lado, a intensidade do crescimento no centro condiciona a orientação da industrialização na periferia, pois as minorias privilegiadas desta última procuram reproduzir o estilo de vida do centro. Em outras palavras: quanto mais intenso for o fluxo de novos produtos no centro (esse fluxo é função crescente da renda média), mais rápida será a concentração da renda na periferia. (FURTADO, 1974, p. 45) Assim, a crescente influência das grandes empresas se traduzia por uma tendência à homogeneização e disseminação dos padrões de produção e consumo vigentes no centro, que se traduziam na periferia por um aumento da distância entre as condições de vida de uma minoria privilegiada e a massa populacional que vive no limite da subsistência. Nesse sentido, as práticas discursivas em defesa do desenvolvimento criariam, nos países periféricos, fossos que demonstrariam a insustentabilidade de sua lógica, tanto em termos socioculturais, quanto ambientais, pelo esgotamento dos recursos não- renováveis que fornecem o suporte ao desenvolvimento. Razão pela qual, o autor atribui ao desenvolvimento, sob as premissas do progresso, um status de mito: A conclusão geral que surge dessas considerações é que a hipótese de generalização, no conjunto do sistema capitalista, das formas de consumo que prevalecem atualmente nos países cêntricos, não tem cabimento dentro das possibilidades evolutivas desse sistema. E é essa a razão fundamental pela qual uma ruptura cataclísmica, num horizonte previsível, carece de fundamento. O interesse principal do modelo que leva a essa ruptura cataclísmica está em que ele proporciona uma demonstração cabal de que o estilo de vida criado pelo capitalismo industrial sempre será o privilégio de uma minoria. (FURTADO, 1974, p. 75) A prática discursiva de Furtado (1974), ao defender a tese do mito do desenvolvimento, partiu da premissa de que as estratégias desenvolvimentistas originadas nos países centrais e que têm por base a ampliação dos mercados de produtos e de capitais seriam insustentáveis, predatórias e desiguais. A disponibilização de capitais pelos oligopólios empresariais teria por principal função o financiamento da produção e consumo de forma articulada com o sistema econômico mundial e, principalmente, a busca das melhores taxas de lucro. O autor assumiu, assim, uma posição de denúncia em relação às estratégias discursivas em prol do sistema produtivo e financeiro impostas pelos países desenvolvidos, enquanto produtores de situações de desigualdade entre nações, no interior das nações e de insustentabilidade socioambiental. As grandes empresas foram posicionadas como estruturantes do sistema macro, a partir de estratégias discursivas de Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 152 saber-poder, que encontram seu suporte em práticas ligadas ao sistema financeiro, em escala mundial. Cabe destacar que, em avaliação retrospectiva sobre a produção ligada ao mito do desenvolvimento, Furtado (1999, p. 98-99) argumentou que Quando escrevi O mito do desenvolvimento econômico, foi um pouco como provocação. Eu vivia no estrangeiro, estudava o Brasil de longe, e quis mostrar aos brasileiros que, se não encontrassem caminhos próprios, se confiassem completamente nas forças do mercado, nas forças internacionais que atuavam aqui, não teriam saída. Abordei o tema de tal modo que muita gente me disse que eu andava pessimista com respeito ao Brasil. (...) O que eu insinuava é que a classe dirigente brasileira não tem capacidade para enfrentar seus grandes problemas, assim como não teve capacidade para formular uma política de industrialização nos anos 30; esta veio na contramão, mas veio. Só tardiamente o país descobriu sua vocação para industrializar- se. Em busca de alternativas à situação percebida, Furtado (1998, p. 63) passou a defender que o subdesenvolvimento não seria resolvido pela lógica de mercado, ao contrário, somente haveria superação desta condição “através de um projeto político voltado para a mobilização de recursos sociais, que permitisse empreender um trabalho de reconstrução de certas estruturas”. O NOVO E A REPETIÇÃO Empreender uma analise das práticas discursivas predominantes em termos de defesa do predomínio econômico na atualidade, em escala nacional, levaria a um estudo que considerasse, por um lado, uma leitura do processo de enfraquecimento econômico provocado externamente pela queda do valor das commodities no mercado internacional; por outro, do processo de crise e oportunismo político em parte provocado pelo desequilíbrio da balança comercial brasileira. O que infelizmente, por questões de extensão do texto, foge ao alcance do trabalho. Entretanto, é necessário salientar que Celso Furtado foi reconhecido e serviu de inspiração aos últimos governos em escala nacional. Bresser-Pereira (2006) reconheceu a influência da prática discursiva de Furtado em suas ideias. Cabe destacar que Bresser- Pereira, mesmo tendo sido Ministro de Estado no governo FHC, por um lado, argumentou que divergia das ideias do ex-presidente no que se refere à importância do planejamento governamental; por outro, como um dos principais idealizadores da formação discursiva ligada ao neo-desenvolvimentismo, influenciou fortemente as práticas discursivas nos governos Lula e Dilma (MERCADANTE, 2010). É interessante Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 153 lembrar que o livro escrito por Aloísio Mercadante (Ministro de Estado nos governos petistas) e publicado em 2010 tem em seu título (Brasil: uma construção retomada) uma referência a um dos últimos textos de Furtado (Brasil: a construção interrompida). Mercadante (2010), na introdução de seu livro, pressupõe uma retomada da prática discursiva de Celso Furtado. No que se refere às aproximações com as ideias de Furtado é necessário salientar que os governos petistas incentivaram práticas em defesa do mercado interno, como foi por exemplo a política de conteúdo local (PROMINP, 2017) que define um percentual mínimo de equipamentos e insumos de fabricação nacional com vistas ao incentivo da competitividade da indústria nacional ligada à extração e transporte de petróleo, assim como investiu em políticas sociais que melhoraram os indicadores de qualidade de vida (IPEA, 2011). Entretanto, a ênfase sempre se manteve no aspecto econômico como dispositivo através do qual seriam alcançadas melhores condições para os produtos brasileiros competirem no mercado internacional sob a justificativa de que a disponibilidade financeira determina a capacidade de investimento na esfera social (ROUSSEFF, 2011). Pouca atenção foi dada ou mesmo foram negadas as consequências deste processo de associação ao mercado internacional como argumentado por Furtado (1974). A negação e inversão – já que o crescimento econômico é posicionado como única alternativa para melhorar as condições de vida da população em médio e longo prazo – das consequências da estratégia econômica criou as condições para que em um momento de crise houvesse um aprofundamento da lógica economicista que propõe o ajuste estrutural. Estavam abertos os caminhos para o fortalecimento da formação discursiva direcionada ao crescimento econômico. O direcionamento dado pelo governo nacional, principalmente a partir do impeachment ocorrido em agosto de 2016, remete para o mercado as esperanças por melhores condições de vida à população em geral, primordialmente, por meio dos investimentos privados incentivados em algumas das políticas. Como, por exemplo, na definição de novas regras que reduzem o percentual de conteúdo local para a indústria de petróleo e gás, sob a justificativa de aumento da eficiência da indústria nacional (Agencia Brasil, 2017). Neste último caso, as alterações nas regras governamentais são justificadas por uma prática discursiva que coloca em primeiro plano o custo de produção dos equipamentos e insumos para a extração de produtos petrolíferos em comparação com o Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 154 mercado internacional e, consequentemente, o potencial de atratividade de capital externo. Entretanto, desconsidera o potencial desemprego a ser provocado pelo fechamento de indústrias nacionais que fornecem tais equipamentos e insumos; desvaloriza o investimento em pesquisa e tecnologia feito até o momento; assim como nega a impossibilidade das indústrias nacionais concorrerem em pé de igualdade com as estrangeiras em razão dos incentivos fiscais nos países de origem das empresas fornecedoras, que não encontrará mais similaridade no país. (Jornal Agora, 2017). Assim, de forma a repetir o passado e ocultar riscos como os previstos por Furtado (1974), no atual contexto que valoriza prioritariamente o crescimento econômico em escala global, práticas discursivas que se contrapõem a lógica predominante são desconsideradas, negadas ou sofrem inversão, ao demonstrar as consequências da dependência dos países periféricos em relação aos centros de desenvolvimento e à articulação político-social entre atores economicamente interessados e articulados em escalas global e nacional. A prática discursiva predominante dissemina uma lógica na qual resta aos sujeitos imersos no contexto fazer uma escolha entre abrir mão de direitos conquistados ao longo dos anos ou a não sobrevivência. CONSIDERAÇÕES FINAIS A prática discursiva predominantemente disseminada em escala nacional coloca ênfase no aspecto econômico como suporte às políticas de cunho social. Entretanto, o que realmente está em pauta é a adequação da estrutura socioeconômica nacional às demandas do mercado global. É curioso olhar para este contexto e perceber que o denominado “ajuste estrutural” ganha conotação de prática discursiva em defesa dos interesses da população como um todo. Entretanto, o que se constata com maior frequência é um entrecruzamento de formações discursivas em disputa. Conflito que não é claramente percebido por quem se utiliza exclusivamente dos meios de comunicação de massa mais acessíveis, nos quais predomina a participação de técnicos governamentais que são escolhidos para suas funções, em muitos casos, pela própria identificação com as propostas vigentes. Práticas discursivas que põem em questão a lógica predominante são frequentemente desqualificadas como provocadoras de estagnação e, consequentemente, Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 155 identificadas com o aumento da impossibilidade de atendimento das necessidades da população. O que facilmente é esquecido, negado ou mesmo intencionalmente ocultado se refere às consequências desta lógica em termos de dependência e insustentabilidade do sistema produtivo em posição de fornecedor de commodities. As possibilidades de investimento em políticas sociais estão vinculadas ao resultado econômico e, por consequência, em momentos de crise o atendimento à população perde qualidade em prol dos investimentos necessários para que se revertam os resultados econômicos inadequados. A pergunta que fica é: nos momentos vindouros de prosperidade e melhoria econômica, haverá reversão na qualidade dos serviços? Ao finalizar este artigo, que tem a pretensão de oferecer um olhar alternativo ao contexto nacional vigente, é importante salientar que a prática discursiva neo- desenvolvimentista que predominou nos governos petistas, assim como a utilização de ideias de Celso Furtado perderam força no atual governo que tem se mostrado de corte mais liberal. Assim, a problematização que esteve na base da construção deste texto pode vir a ganhar novas nuances a partir do momento em que o projeto de desenvolvimento do atual governo venha a ser explicitado. Ou talvez, sob a lógica de mercado global, o próprio plano seja não ter planos. O que para Matus (1996) já se apresentaria como uma estratégia a ser examinada em suas consequências. AUTOR * Rogério Faé é professor Adjunto na Escola de Administração / Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Doutor em Administração pelo PPGA/EA/UFRGS e Pós- Doutorado pela Essex University - UK (Ênfase em Economia Política). Email: rogerio.fae@ufrgs.br. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA BIELSCHOWKY, R. Cinqüenta Anos de Pensamento na CEPAL – Uma Resenha. In. BIELSCHOWSKY, Ricardo (org). Cinqüenta Anos de Pensamento na CEPAL. v. 1. Rio de Janeiro: Record, 2000. p. 13-68. BRESSER-PEREIRA, L. C. O novo desenvolvimentismo e a ortodoxia convencional. São Paulo em Perspectiva. São Paulo, 2006, v. 20, n. 3, p. 5-24. DELEUZE, G. Foucault. Lisboa: Veja, 1998. FOUCAULT, M. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1987. Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 156 FOUCAULT, M. 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Discurso da Presidenta da República, Dilma Rousseff, durante Compromisso Constitucional perante o Congresso Nacional - Brasília/DF. 2011. Disponível em . VIEIRA, R. M. Celso Furtado: Reforma, Política e Ideologia (1950-1964). São Paulo: Educ, 2007. Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 158 Artigos e ensaios A ESCRITA COMO CUIDADO DE SI NA OBRA TARDIA DE MICHEL FOUCAULT[1] Roberto Kennedy de Lemos Bastos* RESUMO: Michel Foucault realizou um deslocamento teórico até a antiguidade clássica com o intuito de abordar textos prescritivos da conduta do homem grego, nessa pesquisa atenta para o preceito do cuidado de si como princípio regulador de uma espécie de razão prática do homem grego. A escrita se exerceria aí como importante alternativa instrumental para o autoconhecimento tão necessário ao efetivo uso coerente da razão no tocante ao uso dos prazeres, portanto, de um ethos anterior ao modo do dispositivo moderno da sexualidade. Evocamos o texto L’écriture de soi (A escrita de si) como um “mapa” para a localização do problema da escrita como cuidado de si na obra tardia de Michel Foucault, enquanto uma tecnologia de si que dispõe o ser para uma condição de ascese no pensamento e, por conseguinte, em uma excelência de vida no sentido do conceito de estética da existência, isto é, a vida como uma obra de arte. Palavras-chave: escrita de si, cuidado de si, hypomnemata, estética da existência. https://1.bp.blogspot.com/-91wsdJoAG-E/WS6_fX8E_BI/AAAAAAAACgo/ox3-8ggX-oEe27lOcWb3iLbXAQQ2ahQkQCLcB/s1600/17.jpg Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 159 1 INTRODUÇÃO O objetivo deste artigo é comentar as reflexões contidas na obra tardia de Michel Foucault acerca de temas como subjetividade e modo de subjetivação, servindo-se para tal de um texto menor, qual seja, A escrita de si, como um “mapa” onde o leitor toma conhecimento dos novos contornos tomados pela pesquisa do autor e do rumo que essa inflexão dos temas da modernidade (saber/poder) para a antiguidade greco- romana. Esse é um texto menor. Figura entre outros textos produzidos por Foucault nos anos oitenta na esteira das suas pesquisas acerca da história da sexualidade por intermédio dos ditos jogos de verdade através dos quais o ser humano se reconheceu como “homem de desejo”, conforme Jean-François Pradeau, “as regras de conduta às quais os antigos buscavam submeter suas práticas sexuais e os discursos com os quais eles demandavam uma compreensão, um entendimento dessas práticas[2]”. A escrita de si segundo o método arqueológico-genealógico é um modo de subjetivação que, enquanto uma forma de tecnologia de si, interessa Foucault nesse momento[3]. Acreditamos que as grandes escolhas se iniciam por pequenas e esclarecidas fontes escolhidas, aqui e ali, e pensamos demonstrar a importância deste texto – publicado pela primeira vez na revista Corps Écrit[4] – cujas páginas saem desta pesquisa cujo lema “é preciso dizer a verdade sobre si mesmo”[5], concede mais fomento para o curso que aborda temas relacionados com a cultura do cuidado de si[6] na antiguidade e no início da nossa era em função da noção (nomeada pelo autor francês) de estética da existência[7]. Dito ainda de outro jeito, mas sem sair da cartografia proposta por ele, de como as práticas de si – do jogo entre o conhecer e o cuidar – expressam na forma da escrita de si uma resolução estética e ética enquanto um poder “subjetivador” que a escrita representa. A escrita de si foi publicada em fevereiro de 1983 (portanto um ano e cinco meses antes de sua morte) junto com outros cinco artigos que compõem a produção do autor no hiato que sucedeu ao lançamento de A vontade de saber (1976), e que, segundo o autor, faz “parte de uma série de estudos sobre as ‘artes de si mesmo’, isto é, sobre a estética da existência e o governo de si e dos outros na cultura greco-romana, nos dois primeiros séculos do Império” [8]. É sabido que a obra que aqui tratamos é o resultado de um arriscado [9] deslocamento teórico feito rumo à antiguidade, e cuja alusão aqui tem um significado igualmente arriscado[10]. Aliás, com efeito, o risco é a condição de todo empreendimento filosófico, diria Foucault no prefácio de O uso dos prazeres, obra Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 160 que, junto com O cuidado de si, representam a materialização do esforço do autor em conceber uma ontologia do presente partindo de experimentos no campo da ética greco- romana. Mais especificamente romano uma vez que a utilização da escrita como gênese ethopoiética [11] só fora posta em prática, segundo o pensador francês, no período imperial. Conforme Foucault: Parece não haver dúvida que, entre todas as formas que tomou este adestramento (o que comportava abstinência, memorizações, exames de consciência, meditações, silencio e escuta do outro), a escrita – o fato de se escrever para si e para outrem – só tardiamente tenha começado a desempenhar um papel considerável. Em todo o caso, os textos da época imperial que se referem às práticas de si concedem uma grande parte à escrita. É preciso ler, dizia Sêneca, mas escrever também. É Epicteto, nas grandes universidades do mundo. Os sócios do império seriam, na realidade, co-participantes de um aparato propagandístico montado para dar sustentação ao sistema político e econômico vigente, diante do que a economia capitalista é de fato o que move a estratégia. A primeira operação de propaganda governamental norte-americana teria sido produzida pelo presidente Woodrow Wilson, com a assessoria de diversos intelectuais, por meio da Comissão Creel, com o objetivo de “transformar uma população pacifista numa população histérica e belicosa que queria destruir tudo o que fosse alemão, partir os alemães em pedaços, entrar na guerra e salvar o mundo.” (Chomsky, 2014, p. 7) Segundo Chomsky, aquela teria sido o contraponto da propaganda nazista de Hitler, “patrocinada pelo Estado, quando apoiada pelas classes instruídas” e teria como pressuposto a ideia, comum a certo liberalismo, ao leninismo e ao nazismo, de que “as massas ignorantes (…) são estúpidas demais para compreender sozinhas” (Chomsky, 2014, p. 8) os assuntos governamentais, em especial os de política internacional. De acordo com essa visão, a função do “rebanho desorientado” é a de ser “expectador”. (Chomsky, 2014, p. 8) Assim, Para a classe política e para os responsáveis pela tomada de decisões, elas têm de oferecer uma percepção razoável da realidade, embora Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 17 também tenham de incutir nele (o rebanho) as convicções certas. Mas lembrem-se: existe aqui uma premissa não declarada. A premissa não declarada - e mesmo os homens responsáveis têm de escondê-la de si próprios - tem que ver com a pergunta de como eles alcançam a posição em que têm autoridade para tomar decisões. A maneira como fazem isso, naturalmente, é servindo as pessoas que têm poder de verdade. As pessoas que têm o poder de verdade são as donas da sociedade, e elas fazem parte de um grupo bem reduzido. (Chomsky, 2014, p. 9-10) O elemento propulsor da propaganda política é o medo, que faz com que as pessoas se mobilizem contra o que consideram uma ameaça a suas próprias existências. “A lógica é cristalina. A propaganda política está para uma democracia assim como o porrete está para um Estado totalitário.” (Chomsky, 2014, p. 10) Seu compromisso é “controlar a mente da população.” (Chomsky, 2014, p. 10) Desde então, a propaganda estaria presente nos governos dos Estados Unidos. Durante o governo Ronald Reagan, que assumiu o poder em 1981, o objetivo seria o combate ao “terrorismo internacional”: O governo estava empenhado na implementação de três políticas correlatas, todas realizadas com sucesso considerável: 1) transferência de recursos dos pobres para os ricos; 2) um aumento em larga escala da economia estatal pela forma tradicional, por intermédio do Pentágono (orçamento militar), artifício para compelir o público a financiar a indústria de alta tecnologia, por meio do cativo mercado estatal, para a produção de inutilidades de alta tecnologia e, com isso, contribuir com o programa de subsídios públicos, lucros privados (denominados “livre iniciativa”); e 3) um aumento significativo da intervenção americana, de operações subversivas e do terrorismo internacional (no sentido lexicológico do termo). (Chomsky, 2006, p. 14-15) A ideia de que “Os verdadeiros objetivos a que tais políticas visam não podem ser revelados ao povo” casa bem a conclusão de Chomsky com ideia de uma grandiosa estratégia imperial da qual os bobos da corte não se dariam conta de como são utilizados pelos governos e seus sócios. O artifício para alcançar os objetivos junto às populações manipuláveis seria o medo, uma verdadeira “artimanha" por meio da qual a propaganda se valeria de recursos discursivos como “Império do Mal”, “guerra contra o terror”, “quem não está conosco está contra nós”, entre outros. No auge da Guerra Fria, mais precisamente em 1971, em debate com Michel Foucault na TV holandesa, Chomsky contra-constrangia o sistema, afirmando: Pelo que sei, na mídia de massas americana você não pode encontrar um único jornalista socialista ou um único comentarista político sindicalizado que seja socialista. Do ponto de vista ideológico a mídia de massas é quase 100% ‘capitalista de estado’. Num certo sentido, Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 18 temos aqui a ‘imagem-espelho’ da União Soviética, onde todos que escrevem no Pravda representam a posição a que chamam ‘socialismo’. [...] há a marcante homogeneidade ideológica da intelligentsia americana em geral, que raramente provém de uma das variantes da ideologia capitalista estatal (liberal ou conservadora) (Chomsky e Foucault, 2007, p. 75, tradução do autor) Assim vista por ele, a grande mídia é aliada dos grandes estados na ocultação de fatos de interesse de suas sociedades. Um dos aspectos em que Chomsky mais insiste quanto ao papel desempenhado pela mídia é com relação à ocultação de informações do grande público, com o que se manifestaria a intenção de retirar a liberdade de informação, ao contrário do que os postulados liberais levariam a crer. A guerra terrorista dos EUA em El Salvador não é assunto para discussão entre pessoas respeitáveis; isso não existe. O esforço americano de "deter" a Nicarágua é assunto discutível, mas dentro de limites estreitos. (Chomsky, 2006, p. 65) A propósito do conflito árabe-israelense, Chomsky faz menção ao veto do governo Carter à proposta construída, no âmbito das Nações Unidas, de uma resolução que concluiria pela coexistência de dois estados na Palestina, mediante o entendimento de que os estados da região teriam o direito de viver em paz, dentro de fronteiras seguras e reconhecidas. Atendendo a pressões de Israel e de setores político- econômicos poderosos nos EUA, o governo Carter vetara a proposta, com a complacência da mídia e da intelectualidade. O sistema ideológico-midiático ao qual Chomsky faz referência é aquele que deliberadamente distorce informações, vendendo a ideia de que a política norte- americana seria “moderada”, enquanto que a dos outros (países e grupos) seria “extremista" ou mesmo “terrorista”, ao passo que os métodos e as intenções seriam os mesmos ou assemelhados. Chomsky se refere igualmente a um padrão duplo adotado pelos principais veículos da mídia, em Israel e nos Estados Unidos, diante de um mesmo acontecimento. No contexto do conflito árabe-israelense (que ele entende ser melhor designado como conflito árabe-israelense-norte-americano), Chomsky diz que o envio de novos helicópteros militares, em 2001, foi digno de ampla difusão pela mídia israelense, enquanto que a mídia norte-americana escondeu a informação dos contribuintes, certamente por razões políticas. A única menção que se fez do acontecimento nos EUA foi numa matéria assinada em Raleigh, Carolina do Norte. A condenação que a Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 19 Anistia Internacional fez da venda de helicópteros americanos foi ignorada também. E nada mudou nos meses seguintes, inclusive em relação a uma carga despachada em fevereiro de 2001, por conta de uma transação de 5 bilhões de dólares, a compra de helicópteros Boeing Apache Longbow, os mais avançados do arsenal americano, noticiada superficialmente nos Estados Unidos como simples transação comercial. (Chomsky, 2006, p. 263) No contexto do ataque às torres gêmeas, Chomsky faz menção ao editorial do New York Times do dia 16 daquele setembro de 2001, em que o jornal se pronuncia de maneira a gerar comoção, alimentar o medo e ao mesmo tempo angariar apoio para uma investida militar: “Os responsáveis agiram pelo ódio que nutrem contra os valores prezados no Ocidente, tais como liberdade, tolerância, prosperidade, pluralismo religioso e voto universal”. (Chomsky, 2002, p. 33) A conclusão proporcionada por Chomsky que, todavia não ministrou senão um ensino oral insiste repetidas vezes no papel da escrita como exercício pessoal: deve-se “meditar” (meletan), escrever (graphein), treinar; “possa a morte arrebatar-me enquanto penso, escrevo, leio” (FOUCAULT: 2009, pg. 133). A escrita tem uma função transformadora do indivíduo e, na tradição cristã – que no texto de Foucault é expresso pela transcrição de um trecho da vitae antonii de Atanásio[12] –, possui seu sentido principal numa relação de complementaridade com a anachoresis [13], i.e, atenuar os perigos da solidão e realizar um “trabalho não apenas sobre os atos, mas, mais precisamente, sobre o pensamento”. Portanto, “aquilo que os outros são para o asceta numa comunidade, Sê-lo-á o caderno de notas para o solitário”. Trata-se de um debate sobre a forma como a askésis [14] grega ganha importância junto à tradição cristã ainda procurando por uma identidade. Há uma análise da oposição entre o ascetismo cristão e a ascética pagã, ambas possuindo estreita relação com o cuidado de si, instituindo um campo prescritivo moral com o qual o indivíduo irá constituir uma espécie de “armadura da conduta cotidiana”[15]. Onde está, com efeito, a diferença uma vez que o sentido do ascetismo é sempre um domínio sobre o desejo e o controle sobre o uso dos prazeres no sentido de um cuidado de si? Em que sentido se pode dizer que a prática da escrita serviria, enquanto princípio racional, para o controle do pensamento, isto é, dos movimentos da alma? A seguir, portanto, apresentaremos estas questões dimensionando como Michel Foucault vira no uso que os pensadores da antiguidade faziam da escrita uma forma de cuidado de si, i. e, conforme A escrita de si: Constituir a si próprio como sujeito de ação racional pela apropriação, a unificação e a subjetivação de um “já dito” fragmentário e escolhido; no caso das notações monásticas das experiências espirituais, tratar-se-á de desentranhar do interior da alma os Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 161 movimentos mais ocultos, de maneira a poder libertar-se deles. No caso da narrativa epistolar de si próprio, trata-se de fazer coincidir o olhar do outro e aquele que se volve para si próprio quando se aferem ações quotidianas às regras de uma técnica de vida. A apropriação do sujeito do “já dito” e sua consequente utilização em uma prática de si, i. e; um exercício (que é um modo de subjetivação) concebido conforme o entendimento que os antigos (seja grego, seja romano) tinham do papel da escrita como exercício de si no pensamento, tinha duas formas, segundo Foucault, quais sejam, o hypomnemata e a correspondência. A função que vão cumprir é da ordem de uma tekne tou biou, uma arte de viver, “que é preciso entender como um adestramento de si por si mesmo” (FOUCAULT, 2009, p. 132). 2 A ESCRITA DE SI: HYPOMNEMATA A leitura produz no leitor um movimento, em sua alma, que pode ser utilizado tal qual uma “ferramenta” para auxilio na sua disposição de vida. Fazer coleta de fragmentos dos textos lidos sugere algo de peculiar, i. e; com a coleta de citações, “reflexões ou debates que se tinha ouvido ou que tivessem vindo à memória” se forma um conjunto de elementos componentes de uma “memória material das coisas ouvidas ou pensadas” que um “público cultivado” chamará “livro de vida” ou “guia de conduta”: o hypomnemata. Assim, conforme o Vocabulário de Foucault[16] define o caderno de notas grego, hypomnemata, tem por característica estar á mão, tal qual uma ferramenta, conforme já dito acima, para qualquer das vicissitudes da vida que se apresente tais como “um luto, um exílio, uma ruína, a desgraça” de um lado; e de outro, combater “este ou aquele defeito como cólera, a inveja, a tagarelice, a bajulação” dentre outras formas de vícios constantes na condição humana. Foucault afirma, Não haverá que considerar esses hypomnémata como um simples suporte de memória, que poderia consultar a cada tanto, caso se apresentasse a ocasião. Eles estão destinados a substituir a recordação eventualmente débil. Eles constituem, antes, um material e um quadro para os exercícios a realizar frequentemente: ler, reler, meditar, conversar consigo mesmo e com os outros etc. Trata-se de constituir um logos boéthikos; um equipamento de discursos que servem de ajuda, suscetíveis, como diz Plutarco, de levantar eles mesmos a voz e de fazer calar as paixões, como um amo que com uma palavra aplaca o latido dos cães (FOUCAULT, 2009, p. 221). Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 162 O hypomnemata serve de “base” para a escrita das correspondências que serão enviadas em auxilio dos amigos-discípulos, nesse sentido, podemos dizer que não apenas o ler é fundamental para a constituição de um hábito a tornar-se um ethos, mas uma associação deste com o ato de escrever-para, que, se por um lado favorece, em complementaridade com a anachorese (aqui tratando da tradição asceta cristã supracitada), uma forma de disciplina e ascese; por outro lado, suscita a meditação que, conforme Foucault, citando Epicteto, diz, “esse exercício do pensamento sobre si mesmo que reativa o que ele sabe, se faz presente como um princípio, uma regra ou um exemplo, reflete sobre eles, os assimila, e se prepara assim para enfrentar o real” (FOUCAULT, 2009, p.133). Portanto, há um sentido “prático” da leitura que não apenas o aumento da cultura – ou como dissera Heráclito da polimathia. Convém pensar no hypomnemata como uma ferramenta para as circunstancias mais variadas (sobretudo as adversas) como dito acima, mas, vislumbrar que o fim é um só, qual seja, a produção de um corpo estético-ético possível segundo a prática de exercícios ascéticos. Sêneca, por exemplo, é um dos autores mais apropriados por Foucault, e, este estoico romano, verteu, por exemplo, da tradição grega para a latina, a chamada paraskeué[17] (em latim instructio) que era a preparação para um acontecimento[18] vindouro possível. No curso de 1982, A Hermenêutica do sujeito, na aula de 17 de março (primeira hora), Foucault trata das técnicas utilizadas pelos filósofos que prescrevem que a vida tal qual uma regula (uma regra), deve ser dotada de uma estilística. Vejamos como ele expõe a questão. A obra bela é a que obedece à ideia de uma forma (um certo estilo, uma certa forma de vida). Esta sem dúvida é a razão pela qual jamais encontramos na ascética dos filósofos aquele mesmo catálogo tão precioso de todos os exercícios a serem realizados, em cada momento da vida, que encontramos entre os cristãos. Portanto, estamos diante de um conjunto bem mais confuso, cuja elucidação podemos tentar iniciar da seguinte maneira: detenhamo-nos em duas palavras, dois termos que se referem ambos a este domínio dos exercícios, da ascética, mas que designam, creio eu, dois aspectos, ou se quisermos duas famílias. De um lado, temos o termo meletân e, de outro, gymnázein (FOUCAULT: 2004, 514). A reflexão de Foucault demonstra como a práxis dos filósofos não era regida por qualquer forma de breviário[19] (catálogo dos exercícios a serem realizados em cada momento da vida), e sim, por técnicas (tékhne) cujo sentido era expressar uma vida bela, exemplar. Há, contudo a distinção entre dois termos, quais sejam, melete e gymnázein que em alguns filósofos estão separados e noutros seguem Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 163 quase como sinônimos. Na palavra grega que tem a correspondência com cuidado, epimélia, há uma junção entre uma preposição epi que diz através de, acerca de, e, mélia que tem relação com meléte, isto é, exercício que implica uma energia intensa, atenção constante. Jean-Pierre Vernant, no seu livro Mito e pensamento entre os gregos, esclarece que: O que caracteriza, no entanto, a meléte filosófica é que à observância ritual e ao exercício é de que os atos dos EUA são irrelevantes para explicar os ataques às torres gêmeas e demais espaços territoriais norte-americanos naquele dia trágico de setembro de 2001. Se nada pode justificar o acontecimento de 11 de setembro, não seria apropriado, na perspectiva chomskyana, aceitar a posição dos EUA como o de uma “vítima inocente”, com o que se estaria ignorando "o histórico de suas ações". (Chomsky, 2002, p. 38) No aspecto militar, a OTAN e a Escola das Américas teriam papel fundamental na criação de antagonistas e na difusão de ideias que contribuiriam para o sucesso da estratégia. A OTAN seria responsável pelas piores campanhas de limpeza étnica da década de 1990 no Leste Europeu. Lideraria um esquema e um discurso capaz de dar importância inquestionável ao poderio militar, incluindo a distribuição de armamentos, o que requereria vultosos investimentos e alimentaria novos conflitos, por sua vez justificadores de mais investimentos. Em relação à associação liderada por Clinton e Blair, diz Chomsky: A nova geração estabeleceu os limites colocando conscientemente a maior quantidade possível de armas nas mãos de assassinos e torturadores - não apenas armas, mas aviões, tanques, helicópteros, todos os mais avançados instrumentos de terror - às vezes em segredo, porque as armas eram enviadas violando legislação do Congresso. (2003b, p. 19). No que especificamente se refere à Escola das Américas, Chomsky destaca entre seus logros a aniquilação da Teologia da Libertação, mediante o discurso de “aperfeiçoamento democrático”. Seja no contexto latino-americano seja no contexto do conflito árabe-israelense-norte-americano, o poder militar norte-americano Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 20 potencializaria amigos, os quais certas vezes se tornam inimigos. A política norte- americana teria contribuído para não apenas tornar o mundo mais inseguro, mas também para afirmar “pressupostos racistas que não seriam tolerados se declarados abertamente.” (Chomsky, 2006, p. 47) O discurso militar e midiático teria sustentação da maioria dos intelectuais, os quais escreveriam artigos e dariam aulas em que a tônica seria para o fator civilizador das políticas e ações dos principais estados do planeta e para os “absurdos” praticados pelos estados menores, sobretudo aqueles que são qualificados como estados falidos. Aí estariam incluídas vozes que festejariam que os Estados Unidos fossem firmes, duros, determinados, como forma preventiva e educativa, e sempre com a finalidade de instaurar ou restaurar a democracia e o respeito aos direitos humanos. A propósito do conflito soviético no Afeganistão, Chomsky trabalha com a pressuposição de que o poder militar teria construído e a mídia expandido o “esforço para apagar os registros e fazer crer que os Estados Unidos foram meros e inocentes espectadores.” (Chomsky, 2002, p. 20) Os militares são acusados por Chomsky de darem sustentação a esquemas dos quais fazem parte prisões secretas, onde os detentos são mantidos em "condições chocantes e sujeitos a espancamentos e torturas com choques elétricos” (Chomsky, 2006, p. 92), entre outras práticas pré-modernas. No que se refere ao conflito com a Nicarágua, Chomsky diz que Os terroristas que (George) Shultz comanda na Nicarágua (…) são especializados justamente em ataques assassinos contra civis, acompanhados de torturas, estupros, mutilações; a odiosa história de terror deles está bem documentada, embora tenha sido ignorada e esquecida rapidamente, e até negada pelos partidários do terrorismo. (Chomsky, 2006, p. 119) Na aliança envolvendo o poder militar, a mídia e os intelectuais, o objetivo é certamente "mobilizar a população” para a sustentação do status quo político e econômico global. BEYOND CHOMSKY Em outro artigo a respeito do autor, publicado em 2008, concluí que "O desafio da sociedade é imenso, considerando o quadro de análise chomskyano”. (Benvenuto, 2008, p. 145) Tendo em vista que para Chomsky “é sensato lutar por um mundo melhor, Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 21 mas não alimentar veleidades e ilusões sobre o mundo em que vivemos” (Chomsky, 2003b, p. 157), vale a pena concluir este artigo com uma breve reflexão a respeito do tamanho do desafio contido por trás de suas palavras. Tomarei como elemento chave para esta breve reflexão uma das questões mais relevantes na análise chomskyana: a ideia de que propaganda política a que ele se refere é uma propaganda de guerra para sustentar a grandiosa estratégia imperial, embora não exista uma guerra global em termos jurídicos. A esse respeito, Chomsky dirá que não temos uma guerra descrita enquanto tal porque o direito internacional contemporâneo não dá sustentação ao conceito. Em outras palavras, o sistema do qual faz parte a intelligentsia internacional cria suas normas e definições jurídicas conforme as conveniências políticas. Esta condição nos coloca numa enrascada sem tamanho na medida em que, se todos esses poderes estão articulados em torno de uma propaganda de guerra capaz de sustentar a grandiosa estratégia imperial - e eles são de tal forma poderosos -, poderíamos ser tentados a sustentar a conclusão de que há duas saídas possíveis. A primeira saída seria o esclarecimento da população - como Chomsky vem propondo por meio de suas palestras, livros e filmes. A análise chomskyana parece conduzir à compreensão de que a alternativa é o empoderamento das pessoas, por meio de informação, para que entendam melhor o mundo em que vivem e a partir dessa tomada de consciência possam fazer melhores escolhas, sobretudo relacionadas aos governos. A partir da tomada de consciência da forma como os políticos, a mídia, a Intelligentsia e o poder militar manipulam as consciências humanas, poderia haver um levante popular de tamanha proporção que o próprio sistema se encarregaria de se rearrumar em termos mais democráticos. Não se pode deixar de enxergar, entretanto, a possibilidade de que o complexo quadro de análise proposto por Chomsky considere pouco as dissidências existentes dentro do próprio sistema - as quais poderiam estabelecer uma permanente tensão entre posições - e que o jogo politico esteja de tal maneira embolado que as populações, sobretudo dos grandes países do mundo, prefiram adotar uma posição conformista. Nesse quadro, a cada denúncia contra os pressupostos da grandiosa estratégia imperial o sistema responderia de tal forma articulado que as palavras dos articulistas críticos não passariam de fagulhas lançadas ao vento capazes de desaparecer sem que o poder político, a mídia, os militares e a intelligentsia tomassem conhecimento de sua breve existência. Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 22 Finalizo este artigo um dia após a autorização de Donald Trump para os bombardeios unilaterais na Síria, atingindo civis de forma indiscriminada, segundo se tomou conhecimento. As ações de Trump deverão ser descritas por Chomsky como crimes contra a humanidade não respaldados pelo direito internacional contemporâneo. A propósito das relações entre a política e a mídia, cabe lembrar aqui que a eleição de Donald Trump foi realizada em plena era da Internet aberta, e deu margem a acusações de manipulação do eleitorado pela mídia, tanto a tradicional como a alternativa, com sinais de virulência e desatino político. O acesso à informação, conforme temos visto em tempos de Internet aberta, pode levantar a suspeita de que o eleitorado não propriamente se deixa enganar, mas faria parte de uma engrenagem da qual ele próprio é produtor de sentidos. Diante desse tipo de cenário cabe perguntar se as populações das nações poderosas (e do mundo como um todo) estariam dispostas um dia a se insurgirem contra o estado de coisas que parecem conhecer. Havendo o desejo, quais meios a população dispersa possui para se insurgir contra poderes armados com mísseis, bombas, TVs, rádios e Internet aberta a todo tipo de informação. E se estivermos diante de um estado de coisas em que as populações não sejam tão manipuladas como supõe Chomsky, mas prefiram permanecer diante de realities de TV (como os big brothers e as competições gourmet de hoje em dia), redes sociais e telas de sexo interativo - deixando a política nacional e internacional para poucos? Não concluirei que esta escolha importaria em adesão à grandiosa estratégia imperial, mas que deixando as questões que importam aos poderosos de sempre as populações não parecem ser nada ingênuas ou manipuladas. Parecem ser parte do jogo, como acontece com a participação, ora direta, ora indireta, nos big brothers. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS LIVROS BARSKY, R. F. 2004. Noam Chomsky – A vida de um dissidente. São Paulo: Conrad do Brasil. BENVENUTO, J. Lua Nova, São Paulo, 73: 123-145, 2008. CHOMSKY. 2002. 11 de setembro. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. CHOMSKY, N. 2003a. Contendo a democracia. Rio de Janeiro: Record. CHOMSKY, N. 2003b. Uma nova geração decide o limite: os verdadeiros critérios das potências ocidentais para suas intervenções militares. Rio de Janeiro: Record. Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 23 CHOMSKY, N. 2004a. “Os dilemas da dominação”. In: BORON, Atílio (org.). Nova hegemonia mundial: alternativas de mudança e movimentos sociais. Buenos Aires: Clacso, pp. 15-36. CHOMSKY, N. 2004b. O império americano. Rio de Janeiro: Campus. CHOMSKY, N. 2005. Poder e terrorismo. Rio de Janeiro: Record. CHOMSKY, N. 2006. Piratas e imperadores, antigos e modernos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. CHOMSKY, N.; FOUCAULT, M. 2007. The Chomsky-Foucault debate on human nature. New York: The New Press. CHOMSKY, N. 2014. Mídia: propaganda política e manipulação. São Paulo: Martins Fontes. HALPERIN, Jorge. 2003. Conversaciones con Chomsky. Santiago: Editorial Aún Creemos en los Sueños. MITCHELL, P. R.; SCHOEFFEL, J. (orgs.) 2005. Para entender o poder – O melhor de Noam Chomsky. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. FILMES Manufacturing consent: Chomsky and the media. Mark Achbar e Peter Wintonick (diretores). 1992. Austrália, Finlândia, Noruega, Canadá: Zeitgeist Films, 167 min. On globalization. Rage against the machine. Entrevista com Zach De La Rocha. 11 min. Poder e terrorismo: Noam Chomsky em nossa época. 2002. John Junkerman (diretor). Nova York: First Run Features. 74 min. Power versus justice. Fragmentos de debate na TV holandesa em 1971, publicados no Youtube. Parte 1 (06:50 min.); Parte 2 (06:02 min.) The corporation. Mark Achbar e Jennifer Abbott (diretores). Canadá. 145 min. INTERNET http://www.chomsky.info/ AUTOR * Jayme Benvenuto é Professor Adjunto da Universidade Federal da Integração Latino- americana (UNILA) no curso de Relações Internacionais. Bolsista de Produtividade em Pesquisa 2 do CNPq. E-mail: benvenutolima@uol.com.br / jayme.benvenuto@unila.edu.br http://www.chomsky.info/ mailto:benvenutolima@uol.com.br mailto:jayme.benvenuto@unila.edu.br Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 24 Dossiê OPINIÃO PÚBLICA, HEGEMONIA E CULTURA NOS ‘CADERNOS DO CÁRCERE’ DE A. GRAMSCI Luciana Aliaga* Andressa Lima da Silva** RESUMO: A investigação das relações complexas que se estabelecem na sociedade moderna entre os aparelhos de opinião pública, a cultura e os processos de hegemonia analisados nos Cadernos do Cárcere por Antonio Gramsci, constituem o centro de interesse do presente artigo. Para consecução do nosso objetivo tomamos como ponto de partida uma das características chave da opinião pública: o desempenho de “funções de partido” por jornais, revistas e pelo setor editorial em geral. Estas “funções de partido” ao mesmo tempo tornam evidente o caráter privado dos aparelhos de “opinião pública” e explicitam suas conexões com as classes sociais, muitas vezes não imediatamente perceptíveis. Palavras-chave: Opinião pública; Hegemonia; Cultura; Partidos políticos. INTRODUÇÃO Nos Cadernos do Cárcere, já no primeiro caderno escrito entre fevereiro e março de 1929[1], Gramsci caracteriza o exercício “normal” da hegemonia como “uma combinação da força e do consenso que se equilibram, sem que a força suplante em muito o consenso, ao contrário, apareça apoiada pelo consenso da maioria, expresso Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 25 pelos assim ditos órgãos da opinião pública” (GRAMSCI, Q.1, § 48, p. 59[2]). Deste parágrafo podemos deduzir dois elementos importantes da teoria de Estado gramsciana, de clara influência maquiaveliana[3]. Em primeiro lugar o Estado moderno se mantém a partir de um equilíbrio entre força e consenso e, portanto, o conflito está sempre subjacente às relações sociais e políticas. De acordo com Gramsci o consenso permite à classe ser dirigente, enquanto a força torna-a dominante (Cf. Q. 1, § 44, p. 41). Este é, portanto, um Estado de classes e não um abstrato Estado ético. A segunda constatação que se pode fazer é que a relação entre as classes sociais e entre estas e o Estado- governo, ou, nos termos gramscianos, a sociedade política, é mediada pela cultura, âmbito de ação dos aparelhos privados de hegemonia[4] em geral e especificamente dos assim chamados “aparelhos de opinião pública”. Para Gramsci os jornais, as revistas e o setor editorial em geral, constituem importantes pontos de contato entre a “sociedade civil” e a “sociedade política”, entre a força e o consenso. Neste sentido, podem se tornar instrumentos do Estado para “organizar e centralizar certos elementos da sociedade civil” “quando quer iniciar uma ação pouco popular” (cf. Q. 7, § 83, p. 914). Mas os órgãos de opinião pública são fundamentais também para as classes não hegemônicas, isto é, o conjunto das classes subalternas somente pode construir uma nova concepção de mundo se for capaz de universalizar a ética e a política presente em sua filosofia, criando movimentos culturais, “movendo” a opinião pública, em suma, criando consentimento em torno de sua própria visão de mundo. Neste sentido, os diferentes órgãos da opinião pública não apenas atuam na formação do consenso, mas de fato “educam” (Cf. Q. 10, § 44, p. 1330-1331), isto é, conformam mentalidades e aceitação em torno de determinadas ideias e políticas. Gramsci, deste modo, contraria a ideia mesma de “opinião pública”, ou, melhor, ele põe em relevo seu caráter “privado”, mostrando que toda opinião está ligada por muitos fios, às vezes não imediatamente perceptíveis, aos grupos de interesse e às classes sociais. Os aparelhos de opinião pública desempenham um papel de grande importância no processo de luta entre hegemonias ao nível da consciência. Para o autor, em certas circunstâncias “são os jornais, agrupados em série, que constituem os verdadeiros partidos” (Q.1, § 116, p.104). Ao demonstrar que as linhas editoriais guardam conexões com interesses de grupos, Gramsci sinaliza para uma função que é específica dos partidos políticos: sintetizar ou influenciar a concepção de mundo e a ética adequada à determinada classe, universalizando-a para o conjunto da sociedade. Neste sentido, Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 26 buscaremos esclarecer em primeiro lugar como Gramsci define os partidos políticos nosCadernos do Cárcere, para em seguida refletir sobre as “funções de partido” desempenhadas pelos aparelhos de opinião pública e, por último, suas diversas relações na sociedade civil com os processos culturais e políticos de hegemonia. PARTIDO POLÍTICO E FUNÇÃO DE PARTIDO O partido político é definido por Gramsci nos Cadernos do Cárcere como o “moderno príncipe”, o “condottiero ideal” (Cf. Q. 13, § 1, p. 1555). Numa clara referência à Maquiavel, o autor destaca o papel fundamental da direção e da formação política que têm os partidos modernos. Esta função diretiva e organizativa deve ser compreendida no interior das relações de forças na sociedade civil e no Estado. O “momento” onde se localiza o partido é aquele “essencialmente político”, isto é, o momento em que a classe social ou o grupo específico torna-se capaz de superar as demandas meramente econômicas e alcançar o terreno da universalidade (Cf. Q. 13, § 17, p. 1584). O momento anterior, econômico-corporativo, caracteriza-se justamente por uma solidariedade essencialmente econômica de grupo profissional, assim, não há consciência de unidade do grupo social mais amplo. Por outro lado, a formação de uma vontade coletiva localiza-se num estágio superior, no momento da formação da consciência de classe e absorção dos interesses dos grupos subalternos. Esta é a fase mais estritamente política que “assinala uma passagem nítida da estrutura para a esfera das superestruturas complexas, é a fase em que as ideologias geradas anteriormente se transformam em partido” (idem). Esta elaboração política de interesses de grupo consiste na formação mesma do partido político, como agente capaz de sintetizar a ética e a política adequada à classe que representa. Destarte, ao partido cabe resguardar os interesses da classe que representa, porém, simultaneamente, deve assimilar em certa medida os interesses das classes subordinadas. Deste modo, difunde sua visão de mundo de forma que os demais grupos sociais a tomam como sua própria visão. A difusão por toda área social de sua visão de mundo e a aceitação desta pelos demais grupos contribui para a construção da hegemonia do grupo social fundamental, assim: determinando além da unicidade intelectual dos fins econômicos e políticos, também a unidade intelectual e moral, pondo todas as Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 27 questões em torno das quais ferve a luta não no plano corporativo, mas num plano ‘universal’ criando assim a hegemonia de um grupo social fundamental sobre uma série de grupos subordinados (idem). Nos Cadernos, contudo, Gramsci observa que no mundo moderno, “os partidos orgânicos e fundamentais, por necessidade de luta ou por alguma outra razão, dividiram-se em frações, cada uma das quais assume o nome de partido”, de modo que, muitas vezes o “Estado-Maior intelectual do partido orgânico” opera como se fosse uma “força dirigente em si mesma, superior aos partidos e às vezes reconhecida como tal pelo público”. E arremata: Esta função pode ser estudada com maior precisão se se parte do ponto de vista de que um jornal (ou um grupo de jornais), uma revista (ou grupo de revistas) são também ‘partidos’, ‘frações de partido’ ou “funções de determinados partidos” (Q. 17, §37, p. 1939). Observe-se que, para o autor, os jornais e as revistas, isto é, os aparelhos de opinião pública, devem ser estudados em sua conexão com os “partidos orgânicos e fundamentais”, ou, pode-se dizer, com os grupos sociais que travam disputa político- cultural na sociedade civil no interior das lutas por hegemonia. Neste sentido, ainda que sejam reconhecidos como uma “força dirigente em si mesma, superior aos partidos” – o que supõe certa “isenção ideológica” – são “aparelhos” de opinião, isto é, desempenham funções políticas na sustentação de certa visão de mundo ligada a determinados grupos sociais. Note-se que quando Gramsci se refere aos aparelhos de opinião pública como partidos ele utiliza aspas, procedimento usado nos Cadernos para indicar que determinado termo ou conceito está sendo utilizado fora de seu sentido habitual, neste caso, determinadas revistas ou jornais são “partidos” na medida em que desenvolvem funções de partido e estão enraizados em grupos sociais fundamentais. Gramsci, portanto, distingue este tipo de “partido” específico, que abstrai a ação política imediata, isto é, dos homens de cultura, que tem a função de dirigir do ponto de vista da cultura, da ideologia geral, um grande movimento de partidos afins (frações de um mesmo partido orgânico). Ao analisar a situação da Itália de seu tempo, Gramsci afirma que, pela falta de partidos organizados e centralizados, “não se pode prescindir dos jornais: são os jornais, agrupados em série, que constituem os verdadeiros partidos” (Q. 1, §116, p. 104). Neste sentido, os jornais cumprem duas funções fundamentais: informação e direção política geral. Esta direção política obviamente não é neutra, ao contrário, está ligada por muitos fios a determinados grupos (Cf. idem). Ao demonstrar Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 28 que as linhas editoriais guardam conexões com interesses de grupos, Gramsci sinaliza para uma função que é específica dos partidos políticos: sintetizar ou influenciar a concepção de mundo e a ética adequada à determinada classe, universalizando-a para o conjunto da sociedade. Para esta função deve-se da mesma forma levar em conta a atuação dos “intelectuais”, mas neste caso específico, sua atividade concentra-se na capacidade de influenciar as linhas editoriais de acordo com os interesses de grupos, de certa forma, estes indivíduos constituem-se em dirigentes dos jornais (Cf. Q. 1, § 116, p. 108-109). HEGEMONIA COMO PROCESSO EDUCATIVO Aspecto importante dos aparelhos de opinião pública – a imprensa, os jornais, as revistas, e o setor editorial em geral – é seu papel educativo na formação de um determinado clima cultural, isto é, no convencimento, na conformação da opinião. O fato de a hegemonia não se realizar apenas por meio dos aparelhos repressivos do Estado, mas também por meio dos aparelhos privados de hegemonia, põe em relevo seu aspecto “pedagógico”, neste sentido, compreende-se a afirmação de Gramsci segundo a qual “toda relação de hegemonia é necessariamente uma relação pedagógica [...]” (Q. 10, §44, p. 1331). Nesse sentido, os aparelhos de opinião pública, que estão estritamente ligados ao exercício da hegemonia através de sua atividade educativa formam consenso e difundem determinadas concepções de mundo na sociedade. O conjunto de concepções que difundem, a despeito de se apresentarem como fria análise de fatos concretos e, não obstante reivindicarem isenção ideológica estão, invariavelmente ligados à filosofia de um tempo, eivada por ideias-força que se tornaram senso comum, “religião de um tempo histórico”, que servem de apoio ao status quo. A opinião pública, portanto, se constitui enquanto o ponto de contato entre a sociedade civil e a sociedade política, entre a força e o consenso, justamente por atuar na relação que se estabelece entre os grupos dirigentes e aqueles dirigidos. Compreende-se, destarte, que a atividade educativa dos aparelhos de opinião pública é imprescindível para os processos de hegemonia, seja para sua manutenção pelos grupos dominantes ou para a construção de uma nova hegemonia pelas classes subalternas. No caderno 24, ainda sobre os jornais, Gramsci ressalta que estes se distinguem entre o jornal de informação, que não possui nenhum partido explícito – que Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 29 também é definido como jornal popular, por ser destinado às massas populares –, e o jornal de opinião, que consiste num órgão de partido, e é dedicado a um público restrito. Enquanto no último caso as conexões com a classe são evidentes, no primeiro estes liames não são explícitos e, via de regra, são mais difíceis de perceber imediatamente. Neste caso é necessário investigar seu editorial, o conjunto das opiniões expressas, os interesses que defende, bem como os intelectuais que o dirigem e suas conexões individuais para definir quantos fios o ligam a quais classes ou frações de classe. Isto porque é de fundamental importância para as classes dominantes que os grandes “jornais populares”, principalmente aqueles de circulação nacional, apareçam como neutros, imparciais, defensores de supostos interesses universais, de uma indiferenciada e homogênea sociedade civil. Os jornais populares se tornam, assim, os grandes educadores da massa. Eles “simplificam” a realidade social para o homem médio e, assim, naturalizam o que é social e velam o conflito entre as classes. Ao contrário, para Gramsci, a imprensa consiste na parte mais dinâmica da estrutura ideológica da classe dominante (Cf. Q. 3, § 49, p. 332-333), voltada para difundir conteúdos acerca da sociedade sob uma determina perspectiva. Esta elaboração madura de Gramsci começa a ser elaborada nos anos anteriores ao cárcere. No artigo “Os jornais e os operários”, publicado no “Avanti!” em 22 de dezembro de 1916, o autor afirma: Tudo que se publica é constantemente influenciado por uma ideia: servir a classe dominante, o que se traduz sem dúvida num fato: combater a classe trabalhadora. (...) E não falemos daqueles casos em que o jornal burguês ou cala, ou deturpa, ou falsifica para enganar, iludir e manter na ignorância o público trabalhador. (GRAMSCI, 1980, p. 661). Nesse sentido, observa-se que a concepção de mundo da classe dominante é hegemônica justamente porque conseguiu tornar-se senso comum, uma fé, uma religião laica, o que determina que sua suposta isenção seja aceita acriticamente. A concepção de religião laica é uma elaboração original de Benedetto Croce, que Gramsci define como “unidade de fé entre uma concepção de mundo e uma norma de conduta adequada a ela, apresentada em forma mitológica” (Q. 10, §5, p.1217-1218). Gramsci assimila esse conceito criticamente e o utiliza como uma forma de descrever o papel prático da ideologia, que seria justamente colocar as massas em movimento, levá-las a ação. A verdadeira concepção de mundo, neste sentido, se manifesta na ação, por esta razão a concepção de mundo mais arraigada na cultura é aquela que aparece como natural, Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 30 como uma fé, como uma religião sem deus e sem culto. Neste sentido, somente ao tornar-se religião (laica) é que uma concepção de mundo terá impacto histórico, isto é, se tornará hegemônica. Assim, as classes subalternas devem travar também uma batalha cultural no interior das consciências para construir novas concepções de mundo, que estejam em consonância com as necessidades concretas de vida, de trabalho e de fruição do conjunto dos trabalhadores. Destarte, encontramos outro aspecto da atuação dos dirigentes de jornais e revistas que pode ser abordado do ponto de vista do seu caráter educativo, este se refere à possibilidade da elevação das consciências no seio dos grupos subalternos. Neste sentido, as redações das revistas podem funcionar como círculos de cultura, que tem a função de “criticar de modo colegiado e contribuir para elaboração de trabalhos dos redatores individuais, cuja operosidade é organizada segundo um plano e uma divisão do trabalho racionalmente preestabelecidos (Q.12, §1, p. 1533). A crítica colegiada está, portanto, voltada à educação recíproca como uma forma de elevar o nível médio individual, no caso particular dos redatores de revista no qual cada um é especialista em sua matéria, a troca de informações ou a crítica construtiva constitui um meio de “alcançar o nível ou a capacidade do mais preparado” (idem). É este “intercâmbio” de conhecimentos que dá organicidade ao grupo, e não apenas isto, mas “criam-se também as condições para o surgimento de um grupo homogêneo de intelectuais preparados para a produção de uma atividade ‘editorial’ regular e metódica (não apenas de publicações de ocasião e de ensaios parciais, mas de trabalhos orgânicos de conjunto)” (ibidem). Temos, portanto, uma relação pedagógica entre os membros mais avançados e os mais atrasados do grupo, o que pode resultar na elevação do nível médio. O ponto fundamental a ser observado é que, assim como deve ocorrer no partido, esse tipo de atividade editorial favorece a crítica da própria consciência, avançando no sentido da formação de uma consciência integral de mundo, menos contraditória, mais próxima da criação de uma nova cultura. Estes organismos, contudo, que não se caracterizam por atividade política direta, por seu modo de operar, correm o risco de perder o lastro na sociedade, isto é, de ter um alcance tão restrito que se torna irrelevante. Desta forma só podem atingir os objetivos como associação cultural se de fato estiverem ancorados em “um movimento de base disciplinado, [caso contrário] tendem ou a se tornarem igrejinhas de ‘profetas Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 31 desarmados’, ou a se cindirem de acordo com movimentos inorgânicos e caóticos que se verificam entre os diversos grupos e camadas de leitores” (Q. 6, §120, p. 790). O que Gramsci demonstra é a necessidade de organicidade, as revistas ligadas aos grupos subalternos não podem estar no “limbo social”, supostamente em posição neutra em relação aos grupos sociais, pois esta situação as restringe, faz com que acabem por se cindirem infinitamente, sem de fato contribuir para o avanço cultural do país. O mesmo se aplica às revistas dos partidos, igualmente elas devem ter caráter de massa. A atividade política partidária por si só não é capaz de cumprir a função das revistas: “(...) não se deve crer que o partido constitua, por si mesmo, a ‘instituição’ cultural de massa da revista. O partido é essencialmente político e até mesmo sua atividade cultural é atividade de política cultural; as ‘instituições’ culturais devem ser não apenas de ‘política cultural, mas de técnica cultural’. Exemplo: num partido existem analfabetos e a política cultural do partido é a luta contra o analfabetismo” (Q. 6, §120, p. 790-791). É importante notar que Gramsci diferencia política cultural, própria do partido político (luta contra o analfabetismo) e técnica cultural, própria das “instituições” culturais (ensinar a ler e a escrever). Segundo o autor, num grupo criado para lutar contra o analfabetismo não se propõe a ensinar ler e escrever meramente, não é uma “escola para analfabetos”, mas “planejam-se todos os meios mais eficazes para extirpar o analfabetismo das grandes massas da população de um país, etc.” (idem). De modo que ficam claras tanto as conexões, quanto as distinções entre o partido e os aparelhos culturais que cumprem determinadas “funções de partido”. As revistas não ligadas aos partidos políticos possuem, contudo, uma limitação adicional: elas não podem corresponder às necessidades meramente ideológicas na medida em que precisam também atender às necessidades comerciais: “Os leitores devem ser considerados de dois pontos de vista principais: 1. Como elementos ideológicos, ‘transformáveis’ filosoficamente, capazes, dúcteis, maleáveis à transformação; 2. Elementos ‘econômicos’, capazes de adquirir as publicações e de fazê- las adquirir por outros (...) É observação generalizada a de que, num jornal moderno, o verdadeiro diretor é o diretor administrativo e não o diretor da redação” (Q. 14, §62, p. 1721). Desta forma, todo o trabalho cultural e educativo que caracteriza a função política das revistas corre o risco de perder-se na burocracia, já que se coloca a necessidade de um “técnico” financeiro para cuidar das atividades da redação, ou seja, Revista Sísifo - nº 5, maio/2017. Ano 2017 - www.revistasisifo.com 32 existe a possibilidade dos elementos econômicos sobrepujarem os elementos ideológicos. Disto depreende-se que, embora tenhamos dito no início desta discussão que determinadas organizações ou “instituições” como os jornais e revistas, não sejam