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GISELE DE OLIVEIRA CASTRO BILBO BOLSEIRO: UM HERÓI INESPERADO - ANÁLISE DE “O HOBBIT” DE J. R. R. TOLKIEN Trabalho de conclusão da disciplina “Pesquisa e Produção de Texto III”, do curso de Letras do CUML apresentado ao Profº. Dr. Renato Alessandro dos Santos. RIBEIRÃO PRETO 2015 RESUMO Este artigo visa a análise da obra O hobbit do autor inglês J. R. R. Tolkien, publicada em 1937. Tendo como base os estudos literários de Joseph Campbell e a obra O herói de mil faces, este artigo tem como objetivo traçar um percurso literário do personagem principal da obra – Bilbo Bolseiro – e seu papel de herói na narrativa. Bilbo não possui as características épicas de um herói clássico, mas continua sendo referência para muitos estudos de como algumas vezes anti-heróis acabam por adquirir características clássicas. Será feita uma comparação com o estereótipo clássico dos heróis, como Ulysses, e traçadas as diferenças entre esse parâmetro com o proposto por Tolkien. Juntamente com a análise heroica será feita uma pequena discussão a respeito do livro, elencando as características que este possui para ser considerado um clássico literário bem como um épico. Tolkien utiliza-se de recursos linguísticos, musicais e estéticos a fim de dar a O hobbit um tom leve e quase infantil, mas com grande peso literário. Entre os objetivos principais do artigo pode-se dizer que o estudo de Tolkien dentro da literatura fantástica está como central, bem como analisar as influências do autor na construção de sua personagem principal da obra e analisar o papel do herói, Bilbo, e sua trajetória. Palavras-chave: literatura fantástica, hobbit, Tolkien, herói, literatura inglesa Numa toca no chão vivia um hobbit. (TOLKIEN, 2001, p. 13) Comes the morning When I can feel That there’s nothing left to be concealed Moving on a scene surreal No, my heart will never, will never be far from here Sure as I am breathing Sure as I’m sad I’ll keep this wisdom in my flesh I leave here believing more than I had And there’s a reason I’ll be, a reason I’ll be back Eddie Vedder, No Ceiling (Into the Wild) TOLKIEN – O PRIMEIRO HOBBIT John Ronald Reuel Tolkien nasceu em 3 de Janeiro 1892 e morreu em 2 de Setembro 1973. Foi um inglês escritor, poeta, filólogo e professor universitário, mais conhecido como o autor de O hobbit e O senhor dos anéis. Tolkien foi professor de anglo-saxão em Oxford de 1925 a 1945, e professor de Língua e Literatura inglesa de 1945 a 1959. Ele participou da Primeira Guerra Mundial ao lado de um também conhecido autor, C. S. Lewis, o qual teve grande influência na escrita do épico O senhor dos anéis. Tolkien sempre se descreveu como um típico inglês do norte da Inglaterra. Daí vieram as primeiras inspirações para sua obra O hobbit, que a princípio foi tomada como infanto-juvenil, mas que, com o passar do tempo, tornou-se ser o pontapé inicial de um mundo mágico chamado Arda. Além da vida pessoal de Tolkien, servindo como inspiração, poucos sabem que seu trabalho foi inspirado por Beowulf, poema épico Anglo-saxônico que conta a história de um guerreiro e sua brava luta contra três criaturas distintas e terríveis. Esta história nunca foi escondida pelo próprio autor. Nas poucas entrevistas ele diz que Beowulf era sua fonte de inspiração e a contava todas as noites para seus filhos. Essa influência é clara, especialmente nas criaturas por ele criadas em O senhor dos anéis e O hobbit. Em uma das aventuras vividas pelo personagem Bilbo Bolseiro na caverna do dragão Smaug – onde Bilbo rouba uma taça preciosa – o dragão fica furioso e sai à caça do pequeno ladrão; esta cena específica é bem similar a um episódio em Beowulf quando o herói Hrothgar também rouba uma taça preciosa do dragão. A reação de ambas as criaturas é a mesma: devastar a caverna em busca do pequeno e astucioso ladrão. A descrição das taças e dos objetos de ouro nas cavernas é bem parecida. A taça em forma de chifre é um objeto de cortar a respiração, e já em diversas ocasiões ela se referiu explicitamente ao fascínio que lhe causa. Foi seguramente elaborado em tempos mais recuados, numa época em que objetos daquele requinte artístico não eram raros naquela terra, ou então foi produzido nalgum reino distante por um povo que ainda não se esquecera de tal arte. E um mistério e um encanto para a vista, esta relíquia resgatada ao tesouro dum dragão; mesmo preso nas mãos papudas dum homem tão rude quanto o marido, o chifre continua a ser um deleite para os seus olhos. O ouro mais requintado gravado com estranhas runas como ela nunca antes viu, e dois pés em garra numa das extremidades, de modo a que o chifre possa ser pousado sem se virar e entornar o conteúdo. (KIERNAN, 2007, p. 130) Lá estava Smaug. As asas recolhidas como as de um morcego incomensurável, virado parcialmente para um lado, de modo que o hobbit podia ver a parte inferior de seu corpo, a barriga comprida e clara cravejada de pedras e fragmentos de ouro, de passar tanto tempo sobre leito tão precioso. Atrás dele, junto às paredes mais próximas, podiam-se entrever cotas de malha, elmos e machados, espadas e lanças penduradas e em fileiras, grandes jarros e vasos cheios de uma riqueza incalculável. Dizer que Bilbo perdeu o fôlego não é uma descrição adequada. Não sobraram palavras para expressar a sua vertigem desde que os Homens mudaram a língua que aprenderam dos elfos, no tempo em que todo o mundo era maravilhoso. Bilbo já ouvira contar e cantar sobre tesouros de dragões. Mas o esplendor. A cobiça e a glória de um tesouro assim eram desconhecidos para ele. Seu coração foi penetrado e dominado pelo encantamento e pelo desejo dos anões; ele observava, imóvel, quase esquecendo o temível guardião, o ouro além de qualquer preço ou conta. Ficou observando durante o que pareceu um século, até que, arrastado quase contra a vontade, esgueirou-se da sombra da entrada e foi até a ponta mais próxima dos montes de tesouro. Acima dele, jazia o dragão adormecido, uma ameaça medonha mesmo dormindo. Agarrou uma grande taça de duas alças, tão pesada quanto podia carregar, e lançou um olhar amedrontado para cima. Smaug mexeu uma asa, abriu uma garra e seu ronco mudou de tom. (TOLKIEN, 2011, p. 144) Neste pequeno ato heroico pode-se ver que Bilbo – bem como Beowulf – são heróis em sua trajetória que lidam com criaturas excepcionais, mas mostram grande coragem ao enfrentá-las. São essas características a serem trabalhadas neste artigo. Mas antes, qual é a história do nosso hobbit e por que ela se tornou referência na literatura mundial? Enredo “Em um buraco no chão vivia um hobbit...” (TOLKIEN, 2011, p.5) Assim inicia-se uma das histórias mais empolgantes escritas. Esta frase não apenas dá início à aventura de Bilbo Bolseiro, mas é a apresentação de um mundo de fantasia que irá culminar na trilogia O Senhor dos Anéis. A história de Bilbo pode ser resumida da seguinte forma: um hobbit tranquilo que vive na Vila dos Hobbits após um encontro inesperado com o mago Gandalf, é colocado em uma aventura com mais treze anões: Thorin Escudo-de-Carvalho, Dwalin, Balin, Dori, Ori, Oin, Gloin, Bifur, Bofur, Bombur, Fili e Kili, aventura esta que não tem certeza de como irá terminar, muito menos começar. O objetivo dessa aventura é recuperar um grande tesouro dos anões roubado pelo dragão Smaug nos tempos de Thór, avô de Thorin. Muito a contragosto e sabendo que sua vida irá correr perigo, Bilbo aceita. Em cima de pôneis, o grupo liderado pelo mago Gandalf e o anão Thorin inicia sua viagem pelas Montanhas Nevoentas. No primeiro descanso são surpreendidos por goblins que querem devorá-los ou pisoteá-los. Apesar do perigo, com a ajuda do hobbit o grupo consegue fugir e continuam sua trajetória até a Montanha Solitária, destino final da jornada. Na sua travessia, fugindo de perigo e de orcs prontos para ataques mortais, o grupo chega até Valfenda – moradia dos elfos, seres sublimes e mágicos. É neste encontro com o mestre dos elfos, Elrond, que Thorin, apesar de sua arrogância e repúdio de elfos, aceita ajuda e descobre comoe quando ele deve entrar na caverna a fim de recuperar seu tesouro. Após a ajuda e um bom descanso, o grupo volta à estrada e é perseguido novamente por orcs. Nesse enlaço, Bilbo se perde dos anões e acaba encontrando uma outra criatura, esta tão presente em O senhor dos anéis: Gollum. Neste encontro Bilbo acha o objeto de maior desejo e razão pela qual a história dos Bolseiros na Villa do Hobbit nunca mais será a mesma; Bilbo acha o Um Anel, antes pertencente à criatura Gollum. Para tentar sair da caverna sem ser devorado pela criatura, Gollum propõe um jogo de adivinhações, e aí vemos nosso hobbit mostrar sua esperteza ao lidar com situações inesperadas. Com um pouco de raciocínio rápido e uma agilidade presente apenas nos hobbits – e a ajuda do Um Anel - Bilbo se livra das artimanhas de Gollum e escapa da caverna, encontrando novamente seus companheiros anões. Ao saírem da caverna encontram um bando de wargs, mas conseguem escapar e saem salvos graças as águias das Montanhas Nevoentas que, guiadas pelo Senhor das Águias, os fazem avançar em seu caminho. Gandalf agora sendo o líder leva o grupo até a casa de um amigo um pouco temperamental, Beorn. Ficam ali alguns dias até se recuperarem e, quando voltam para sua travessia, vão parar na Floresta das Trevas, onde são atacados e feitos de refém de aranhas gigantes. Bilbo, novamente utilizando-se da esperteza hobbit e do anel encontrado – anel este que possui o poder de deixa-lo invisível – consegue se livrar das aranhas e ajuda seus companheiros. Porém a felicidade não dura muito. Logo em seguida eles são capturados e feitos prisioneiros dos elfos da Floresta das Trevas. Bilbo desaparece novamente e com a ajuda do anel, não apenas se livra de ser feito prisioneiro, como também prepara uma fuga em barris de vinho onde os anões entram e fogem pelo rio. Após a fuga eles vão parar na Cidade do Lago, onde a população conhece a antiga lenda de um dragão adormecido e um “Rei sob a montanha” que iria voltar para destruir o monstro e trazer riqueza novamente para a cidade. Thorin, aproveitando o ensejo, se auto proclama como rei da montanha e junto com seus companheiros parte em busca do dragão Smaug e seu tesouro longo perdido (roubado). Quando conseguem entrar na Montanha Solitária, todos os anões pressionam Bilbo a fazer aquilo pelo qual fora contratado – roubar uma pedra muito importante para os anões, a Arkenstone. Colocando o anel, Bilbo torna-se invisível e chega até o poderoso Smaug em sua câmara, onde acaba por roubar uma taça de seu tesouro. Smaug acorda e fica furioso ao perceber que algo foi roubado e sai a procurar pelo ladrão, mas não consegue reconhecer seu cheiro, Bilbo vê aí uma boa escapatória para dialogar com o dragão. Neste diálogo o hobbit acaba por deixar escapar que seu apelido é “Cavaleiro do barril” o que faz com que Smaug saia da caverna achando que ele é enviado da Cidade do Lago a fim de destruí-lo. Ao chegar da cidade, um dos homens de nome Bard estava preparado para uma possível vingança do dragão e o acerta com uma flecha bem em seu ponto fraco, destruindo-o. Nesse ínterim, Bilbo ainda permanece na caverna sem saber direito o que aconteceu, junto com os outros anões. Ele descobre Arkenstone e a guarda para si (como um bom ladrão que é). Homens e elfos, após a morte de Smaug, vão até a Montanha, na qual encontram-se os anões, a fim de pegarem todo o tesouro escondido. Mas quando Thorin descobre a verdadeira intenção deles, pede ajuda aos seus familiares distantes: o povo de Dain, e estes formam uma muralha de proteção ao redor de Erebor (local onde está a Montanha Solitária que Smaug escondia-se). Começa uma tentativa de negociação entre os anões e homens e elfos, mas não chegam a nenhuma boa conclusão. Bilbo, agoniado com a situação, decide levar a Arkenstone para os elfos, pretendendo que tudo termine logo de uma vez. Ao descobrir o plano de Bilbo, Thorin fica furioso e planeja se vingar do hobbit. Começa assim a Batalha dos Cinco Exércitos, na qual homens, anões, elfos, wargs e orcs se degladiam, todos lutam pelo tesouro recém descoberto. Nesta batalha há muitas perdas, entre elas a de Thorin e seus sobrinhos Fili e Kili. Os três são enterrados na Montanha Solitária e ao final, homens, elfos e anões fazem um tratado de paz. Bilbo volta para casa com Gandalf, depois de viver grandes emoções, conhecer terras que para um hobbit pareciam quase impossíveis e também acaba por perder grandes amigos. Ao voltar, vê sua casa sendo leiloada – a vizinhança acreditara que o hobbit estava morto – mas ele consegue recuperar todos os seus bens. Perde sua reputação de hobbit respeitável, ninguém da Vila dos Hobbits gosta de viver uma aventura e Bilbo foi o primeiro a desafiar essa tradição. A obra termina com Bilbo, certo dia, recebendo a visita de Gandalf e Balin para contar as novidades: a antiga cidade dos homens (Cidade do Lago) foi reconstruída e hoje reina um grande laço de amizade entre elfos, anões e homens. BILBO BOLSEIRO: UM HERÓI INESPERADO Bravura, lealdade, força, eloquência e sagacidade. Estas são algumas das características principais que esperamos encontrar em um herói de uma narrativa épica. Esta ideia épica, originalmente introduzida pelos trabalhos homéricos, nos apresenta um herói que tem virtudes superiores a um homem comum; o homérico herói é aquele que apesar de não ser muito humilde entre os de sua raça, sabe que tudo o que ele consegue é um presente dos deuses, então ele deve servir eles. O Hobbit, romance escrito por J. R. R. Tolkien, pode ser certamente considerado um épico, mas Bilbo Bolseiro não é um clássico herói. Bilbo é, na verdade, às vezes considerado como um anti-herói, tantos são as diferenças entre a sua natureza e ao clássico herói. Ao longo da história, Bilbo passa por muitas mudanças, sendo ao final da narrativa mais perto do herói épico do que ele estava ao início da narrativa. Desta forma, a maior oposição que pode ser feita entre Bilbo e personagens como Ulisses, de Homero, ou Aquiles, acontece nos primeiros capítulos de O Hobbit. Em relação a estes capítulos podemos facilmente perceber que esta não é uma obra heroica como poderíamos originalmente pensar: notamos que embora curioso, Bilbo está disposto a embarcar em uma aventura que pode ser perigosa. As origens por parte de pai – Baggins ou Bolseiro – são pessoas quietas e domésticas, e esta é uma razão pela qual Bilbo se apega para não aceitar ir na aventura. Embora haja esse seu lado forte familiar, há também o lado de sua mãe – Tûk – de espíritos aventureiros. Eventualmente, Bilbo “decide” aceitar a aventura e, embora esta viagem seja reveladora para o hobbit, ela está longe de ser igual a uma história clássica de herói. Antes de mais nada, é preciso entender o que seria um hobbit, e isso é detalhadamente descrito pelo autor logo ao início do romance: (...)Imagino que os hobbits requeiram alguma descrição hoje em dia, uma vez que se tornaram raros e esquivos diante das Pessoas Grandes, como eles nos chamam. Eles são (ou eram) um povo pequeno, com cerca de metade da nossa altura, e menores que os anões barbados. Os hobbits não têm barba. Não possuem nenhum ou quase nenhum poder mágico, com exceção daquele tipo corriqueiro de mágica que os ajuda a desaparecer silenciosa e rapidamente quando pessoas grandes e estúpidas como vocês e eu se aproximam de modo desajeitado, fazendo barulho como um bando de elefantes, que eles podem ouvir a mais de uma milha de distância. Eles têm tendência a serem gordos no abdome; vestem-se com cores vivas (principalmente verde e amarelo), não usam sapatos porque seus pés já têm uma sola natural semelhante a couro, e também pêlos espessos e castanhos parecidos com os cabelos da cabeça (que são encaracolados); têm dedos morenos, longos e ágeis, rostos amigáveis, e dão gargalhadas profundas e deliciosas (especialmente depois de jantarem, o que fazem duas vezes por dia, quando podem). (TOLKIEN, 2002, p. 2) Com essa descrição é possível perceber que Bilbo não possui nem os atributos físicos para um herói. Desdeos primeiros passos longe de seu conforto, Bilbo anseia por sua casa não apenas enquanto está em perigo, cansado ou com medo, mas também nos momentos em que está fisicamente bem, como na casa de Beorn. Ali em meio ao conforto e hospitalidade, ele volta a pensar na toca do hobbit, na lareira, no cheiro de bolo e chá fresco. Bilbo não é especialmente forte ou corajoso; na verdade, quando os primeiros problemas emergem ele precisa ser salvo por outros membros do grupo, como acontece no confronto com trolls. É Gandalf quem o salva, juntamente com os anões. Além disso, os maiores sinais de bravura Bilbo dá ao leitor quando ele encontra o Um Anel e fica invisível. Bilbo Bolseiro precisa desaparecer a fim de ser desafiado o suficiente e superar seus limites. Como não possui qualidades superiores, Bilbo certamente não está em uma posição de liderança (Thorin é o mais próximo a ser líder). Porém Bilbo sabe que esse não é seu território natural, mesmo quando ele começa a se tornar útil ao grupo, sempre haverá uma postura defensiva, o que pode ser visto, por exemplo, como ele sendo uma personagem humilde. Bilbo não zomba daqueles que derrota, como heróis clássicos tendiam a fazer (pode-se recordar aqui de Ulysses zombando de Polyphemus na Odisséia). Ao contrário do herói clássico, Bilbo também não consegue combater em grandes guerras; ele tende a ser protegido pelo acaso e pela sorte, o que pode ser confirmado na maior batalha em O Hobbit: A Batalha dos Cinco Exércitos, na qual Bilbo não participa diretamente pois foi nocauteado por um pedra: - As Águias! - gritou Bilbo mais uma vez, mas, naquele momento, uma pedra veio rolando de cima, bateu com toda a força em seu elmo; ele caiu com estrondo e perdeu os sentidos. (TOLKIEN, 2002, p. 185) Isto também acontece pela razão de Bilbo não ter qualidades intrínsecas heroicas. Ele cresce como um herói quando supera os perigos, mas até quando suas qualidades heroicas estão no nível mais alto, parece estar sempre muito inseguro a respeito, o que começa a ser provado no próprio final da história, quando Bilbo volta a ser um hobbit em sua toca vivendo confortavelmente longe dos perigos – embora seu coração nunca mais volte a ser o mesmo e ele ainda irá ansiar por novas aventuras, como é possível ver em O senhor dos anéis. Outra questão que separa claramente Bilbo Bolseiro do clássico é o conceito de que herói seria íntegro e nunca faria nada contra o seu grupo. Ao dar a Arkenstone para Bard, Bilbo “trai” o grupo de anões, algo que é impensável a um herói clássico. Porém, essa traição está diretamente ligada com outra diferença entre Bilbo e o clássico – o fato dele ser justo e não ganancioso. Nos épicos clássicos, quanto maior, melhor e mais poderosos, mais gananciosos se tornavam. Por aqui vemos que Bilbo não age dessa forma, ele dá a Arkenstone para Bard sabendo que era a coisa certa a ser feita e não porque essa atitude lhe traria algum destaque ou ganharia algo com isso. Mas não é apenas de diferenças que nossa análise é feita. A fim de ser considerado um herói, o hobbit certamente compartilha algumas características do épico, características essas que tornam-se mais claras após o momento em que Bilbo mata a aranha sozinho. Se o Bolseiro do lado de sua família paterna o fazia temer a aventura, seu lado Tûk materno o levou a insistir na missão. Depois de matar as aranhas gigantes o herói de Bilbo se revela; a partir deste ponto sua bravura aumenta gradualmente. Então a grande aranha, que se ocupara em amarrá-lo enquanto ele cochilava, veio por trás dele e o atacou. Bilbo só conseguia ver os olhos da coisa, mas sentia suas pernas peludas enquanto ela lutava para enrolá-lo em seus abomináveis fios. Teve sorte por voltar a si em tempo. Logo não poderia mais se mexer. Do jeito que estava, lutou desesperadamente até se libertar. Repeliu a criatura com as mãos - ela tentava envenená-lo para mantê-lo imóvel, como as aranhas pequenas fazem com as moscas -, até que se lembrou de desembainhar a espada. Então a aranha deu um salto para trás e ele teve tempo de cortar os fios e libertar as pernas. Depois disso era a sua vez de atacar. Era evidente que a aranha não estava acostumada a seres com esse tipo de ferrão, ou teria se afastado mais depressa. Bilbo atacou-a antes que ela pudesse desaparecer e feriu-a com a espada bem nos olhos. Então ela enlouqueceu e saltou, dançou, e jogou as pernas em espasmos hediondos, até que ele a matou com outro golpe; depois, caiu no chão e não se lembrou de mais nada por um longo tempo. (TOLKIEN, 2002, p. 107) Outra característica que mostra as ações de Bilbo como herói clássico é o fato de ele ser muito astuto. Ambos – o hobbit e os clássicos – não são inteligentes, eruditos, mas podem pensar rapidamente para sair de situações perigosas que se encontram; Bilbo é inteligente o bastante para sobreviver ao jogo de Gollum e para esperar o momento certo para escapar dos Elfos da Floresta, quando estes aprisionam os anões. Também é de se levar em conta o fato de que Bilbo não quer ter responsabilidades nesse grupo. Ele sempre exerce suas funções e sempre é capaz de sair da situações em que está envolvido, não importa quão perigosa essas sejam. Isso está envolvido com o fato de que Bilbo, assim como o herói clássico, está protegido pelo seu destino heroico, ou seja, o hobbit está destinado a realizar grandes deveres. Sorte e azar sempre vão protegê-lo. Assim como na narrativa clássica, em O hobbit todos os personagens possuem um papel importante, seja ajudar ou perturbar Bilbo. É claro que, apesar das mudanças na história, não há entre eles algum qualificado como sendo o bom ou o ruim, e isso torna-se claro na Batalha dos Cinco Exércitos na qual pode-se ver facilmente quem está de cada lado, analisando um pouco mais os outros personagens paralelos a Bilbo. Desde muito cedo torna-se claro que cada personagem é bom ou mau, e que as variações que existem, são geralmente provocadas devido a alguma interferência externa: a má atitude de Thorin é devido a sua sede de ouro; Gollum – embora não intencionalmente – fornece o Um Anel para Bilbo e este objeto será seu maior aliado durante o decorrer da história. O fato de Gandalf colocar Bilbo em busca de uma aventura e talvez uma descoberta do seu próprio ser também pode ser considerada boa ou má, dependendo de que ponto está na narrativa. Quando Gandalf abandona o grupo e Bilbo vê-se sozinho lutando por sua sobrevivência, vemos o lado heróico do personagem. A mesma lógica pode ser aplicada para a aranha na Floresta que, por morrer, marca um ponto de mudança na personalidade de Bilbo, convertendo-o em um caráter corajoso e decidido a partir daí (o fato de Bilbo matar essa aranha faz dele um herói muito mais perto do herói clássico). O hobbit como um clássico literário O Hobbit é uma história que está perto, não apenas do épico clássico, mas para o conto e posteriormente a tradição oral. Essas estratégias narrativas podem ser provadas tanto pela linguística como pela estética. No aspecto linguístico, temos, por exemplo, as palavras escritas de acordo com a maneira como os personagens falam; ao fazer isso, Tolkien enfatiza a linguagem e consequentemente o caráter de quem está falando. Como exemplos leva-se em conta o sotaque dos trolls, enfatizando sua arrogância e insensatez, ou os sibilos de Gollum, ressaltando o seu caráter sombrio (o fato de que as palavras ditas por esses personagens são escritos na forma que eles pronunciam é um marcador oral): Gollum entrou no barco e afastou-se da ilha enquanto Bilbo estava sentado na borda, completamente atarantado, no fim do caminho e com o juízo no fim. De repente surgiu Gollum, sussurrando e chiando: - Que beleza e que moleza, meu preciossso! Acho que temos um lauto banquete; pelo menos um bom bocado para nós, gollum! - E quando ele dizia gollum, fazia um ruído horrível na garganta, como se estivesse engolindo alguma coisa. Era assim que tinha conseguido esse nome, embora sempre chamasse a si mesmo “meu precioso”. (TOLKIEN, 2002, p.56) Outro recurso na narrativaé o fato de que os nomes de muitos lugares são dados depois de suas características físicas, ou seja, para identificar os povos que vivem nestes lugares. Isto acontece com (por exemplo) Hobbinton ou Vila dos Hobbits – local este onde os hobbits moram. Igualmente importante são as estratégias introduzidas por Tolkien para dar ao Hobbit marcadores orais e elementos típicos do conto e da literatura infantil, como músicas (que os anões constantemente cantam), enigmas (os de Gollum na caverna com Bilbo), enumerações constantes, geralmente referindo-se ao nome dos anões (Thorin, Dori, Nori, Ori, Balin, Dwalin, Fili, Kili, Oin, Gloin, Bifur, Bofur, Bombur) ou a listagem de ações, como acontece na conversa com Smaug no momento em que ele conta para Bilbo seus feitios, a fim de mostrar que não era um dragão tão inofensivo como o hobbit poderia imaginar: - Muito bem, ó, Montador de Barril! - disse ele em voz alta. - Talvez Barril” fosse o nome do seu pônei, ou talvez não, embora ele fosse bem gordo. Você pode andar sem ser visto, mas não andou todo o caminho. Deixe-me dizer que devorei seis pôneis a noite passada, e devo capturar e devorar todos os outros em breve. Como recompensa pela excelente refeição, vou lhe dar um conselho para seu próprio bem: não se envolva com anões mais do que puder evitar! (TOLKIEN, 2002, p. 149) Outra questão central para levar em conta é o próprio narrador. Este mostra-se instruso na história, o que significa que, apesar do fato dele não ser participante direto, sabe tudo o que aconteceu e o que está por vir. Ele usa seu conhecimento para dar dicas sobre o desenvolvimento da trama: Thorin chegou por último - e não foi pego de surpresa. Já veio esperando problemas, e não foi preciso ver as pernas de seus amigos saindo de sacos para que percebesse que as coisas não iam bem. (TOLKIEN, 2002, p.33) Neste aspecto pode-se fazer uma comparação com o personagem Gandalf, visto que o mago também possui conhecimento do futuro e, sabendo disso, apresenta-se como elemento mais sábio do grupo. O mesmo acontece com o narrador: suas palavras ganham credibilidade ao leitor e isto deixa-o ansioso para confiar naquele que narra a história. Ao saber da história toda, o narrador tem maior liberdade de controlar a narração. CONSIDERAÇÕES FINAIS Por todas estas razões é inevitável concluir que O hobbit aproxima-se do épico e que, neste sentido, a comparação de Bilbo Bolseiro com o herói clássico torna-se inevitável. Bilbo Bolseiro, apesar de não ser intrinsecamente heróico, supera todos os seus problemas que possui para a luta e assim consegue trilhar seu caminho como herói em toda a história. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDERSON, Douglas; D.C, Michael; FLIEGER, Drout. Tolkienian Linguistics – The First Fifty Years. Inglaterra, 2007 CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. São Paulo, Pensamento, 1997. TOLKIEN, J.R.R Contos Inacabados. São Paulo; Martin Fontes, 2011 ------- O Hobbit. São Paulo, Martin Fontes, 2008 ------- O Retorno do Rei. 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