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Tema: Estudo sociológico dos linchamentos Linchamento Palavra surge em 1837, nos Estados Unidos. William Lynch (1742-1820): fazendeiro escravocrata que utilizou em suas fazendas a prática de linchamento. Organizava grupos de fazendeiros para capturar escravos fugitivos. Ao recapturá-los promovia sessões de violência e tortura em praça pública que duravam dias. Lynch tinha dois objetivos: Punir fisicamente o escravo fugitivo e não matá-lo. Inibir possíveis fugas: “Violência educativa”. Os E.U.A. são o primeiro país que estuda esse fenômeno social. Era comum depois das celebrações religiosas, as pessoas saírem das igrejas e se depararem com o corpo de alguém morto – geralmente negro – pendurado pelo pescoço. Também era comum a veiculação de cartões postais com pessoas enforcadas. A Escravidão foi abolida oficialmente nos E.U.A. em 1865. No Brasil, em 1888. Linchamento: ato de violência envolvendo um grupo de pessoas. O grupo age para punir a(s) pessoa(s) que se comporta(m) fora dos limites socialmente aceitáveis por aquele grupo. O Brasil é um país historicamente violento. Nosso dna social traz a violência na sua formação. Nossa história traz vários capítulos da violência. E, em linhas gerais, essa violência é endereçada a certos grupos sociais: Pobres; negros; indígenas; mulheres; homossexuais; travestis. Ao mesmo tempo temos uma tradição de acolhimento: basta observarmos a quantidade de imigrantes: japoneses; alemães; italianos; árabes; espanhóis; portugueses; judeus que no Brasil se estabeleceram e criaram raízes. Para se aprofundar no tema: A história brutal e quase esquecida da era de linchamentos de negros nos EUA https://www.bbc.com/portuguese/internacional-43915363 A trágica história dos linchamentos nos EUA, que podem finalmente virar crime https://www.bbc.com/portuguese/internacional-51657141 Caso Moïse: os fatores que levam a tantos casos de linchamento no Brasil https://www.bbc.com/portuguese/brasil-60267350 https://www.bbc.com/portuguese/internacional-43915363 https://www.bbc.com/portuguese/internacional-51657141 https://www.bbc.com/portuguese/brasil-60267350 Apresentação do tema José de Souza Martins é sociólogo e professor aposentado da Universidade de São Paulo (USP). Em 2015, publicou o livro: Linchamentos: a justiça popular no Brasil. Em seu levantamento, no período que cobre cinco décadas, identificou que 2.579 pessoas foram vítimas de linchamento ou tentativa. Desse total, 1.150 (44,6%) foram salvas, em mais de 90% das vezes pela ação da polícia. Cerca de 1.221 pessoas (47,3%) foram fisicamente agredidas - feridas ou mortas - em ataques brutais. Objetivo: Compreender a atuação do sociólogo no estudo do linchamento no Brasil. Fevereiro de 2008 No fim de semana passado, três homens suspeitos de roubo foram linchados na periferia de Salvador (Bahia). No sábado, Emílio Silva e Michel Oliveira, acusados de saquear residências da vizinhança, foram linchados por mais de 30 pessoas. Emílio foi morto a pauladas. Domingo, a vítima foi um homem de identidade desconhecida. Ele também foi perseguido por mais de 30 moradores, que o acusaram de roubar uma TV. Morreu no local, a 200 metros de onde Emílio e Michel forma atacados. Na noite de segunda-feira, em Ribeirão Preto, interior de São Paulo, o estudante Caio Lombardi, que invadiu um posto de gasolina atropelou o frentista Carlos Pereira Silva e tentou fugir, sofreu uma tentativa de linchamento. Por fim, na quinta-feira, um adolescente da Fundação Casa (ex-Febem) foi linchado até a morte por outros internos, em Franco da Rocha, município de São Paulo. Foram cinco casos noticiados em 6 dias. Não se trata de uma epidemia – em nosso contexto, é algo normal. (Matéria de Flávia Tavares para o jornal O Estado de S. Paulo. 17/02/2008). Segue uma entrevista do sociólogo sobre o tema: Estudo do linchamento no Brasil onde respondeu as seguintes perguntas: O Brasil é o país que mais lincha no mundo? JSM: Possivelmente. Isso nos últimos 50 anos, período que minha pesquisa abrange. Não dá para ter certeza, porque linchamento é o tipo de crime inqualificável. O linchamento é um crime altruísta, ou seja, um crime social com intenções sociais. O linchador age em nome da sociedade. É uma pessoa de bem que sabe que está cometendo um delito e não quer visibilidade. Por outro lado, no Código Penal Brasileiro não existe o crime de linchamento, somente o homicídio. Então, ele não aparece nas estatísticas. Estimo que aconteçam de 3 a 4 linchamentos no país por semana, em média. São Paulo é a cidade que mais lincha. Depois vem Salvador e Rio de Janeiro. O que configura um linchamento? JSM: É uma punição coletiva feita por pessoas comuns (homens; mulheres, idosos e até crianças) contra alguém que desenvolveu um comportamento antissocial. E, o que motiva um linchamento é o fato de não termos justiça. Qual o perfil do linchado? JSM: Em geral, é linchado o pobre, mas há exceções. Há uma pequena porcentagem superior de negros em relação aos brancos. Se um branco e um negro, separadamente, cometem o mesmo crime, a probabilidade de o negro ser linchado é maior. Sobre o componente racial nesse tipo de violência há sim mais crueldade quando um negro é alvo de uma tentativa de linchamento. Nos casos que estudei, não é necessariamente a cor da pele ou a raça a motivação inicial para linchar. No decorrer do ato, se a vítima for negra, da metade em diante de sua duração, o índice de crueldade tende a aumentar em comparação com o caso idêntico de uma pessoa branca. Que criminoso é mais vulnerável? JSM: O linchado pode ser desde o ladrão de galinha até o estuprador de criança. Se a vítima do assassino é uma criança, ou se houve violência sexual, os linchamentos são frequentes. Há muitas ocorrências por causa de roubo, especialmente se o ladrão é contumaz. A própria população estabelece uma gradação da pena que vai impor ao linchado. Essa é a dimensão de racionalidade num ato irracional. Por exemplo, um ladrão de galinha vai sair muito machucado – e pode acontecer de ele morrer. Mas o risco de ser queimado é mínimo. Com o estuprador é o contrário. Há também uma escala de durabilidade do ódio. Se o linchado sobreviver durante 10 minutos de ataque, está salvo. Tem havido muitas tentativas de linchamento em acidentes de trânsito. Mas quando a polícia chega logo se evita o ataque. Mulheres são linchadas? JSM: É raríssimo. Nos 2.579 casos que estudei há dois ou três em que uma mulher foi a vítima. Porém, há muitas mulheres linchadoras no Brasil. Quem são os linchadores no Brasil? JSM: Não há tanto uma divisão de ricos e pobres. De modo geral, os linchamentos são urbanos. Ocorrem em bairros de periferia. Porém, há linchamentos no interior do país. O caso mais emblemático é o de Matupá, no Mato Grosso, em 1990. O linchamento foi filmado e transmitido pela televisão, no noticiário. Três homens assaltaram o banco, a população conseguiu linchá-los e queimá-los vivos. Pontos para reflexão sobre os estudos de José de Souza Martins: ⁕ Linchamento é uma questão social e não individual. Pois a violência está presente e enraizada na sociedade brasileira ⁕ Pesquisa o tema há décadas ⁕ Através do seu estudo divulga e compartilha com a sociedade os dados e as informações coletadas Seu estudo identifica – através dos noticiários brasileiros - quais são as pessoas e os grupos sociais envolvidos nos linchamentos: Homens; mulheres, idosos; brancos; negros; ricos; pobres e até crianças Local; data; horário; número aproximado de linchadores envolvidos Se houve ou não intervenção policial Principais cidades brasileiras onde ocorrem os linchamentos Fator principal que dificulta a coleta de dados oficiais sobre o linchamento é a impunidade. E, a impunidade ocorre por dois motivos básicos: 1) Por ser uma conduta ilícitacometida por várias pessoas, dificultando a identificação dos agressores e as responsabilidades individuais das pessoas envolvidas; 2) Por não haver testemunhas suficientes, já que no geral, os linchadores consideram o linchamento uma reação social legítima, por acreditarem que os linchados são “merecedores” das agressões, ocorrendo, assim, a predominância da lei do silêncio. Fatores que contribuem para a existência do linchamento no Brasil: Corrupção presentes nos governos Sensação de impunidade Sensação de anonimato ao participar do linchamento Policiamento insuficiente que gera insegurança na população Desigualdades sociais e educacionais Todos esses fatores alimentam as circunstâncias e o número de ocorrências de linchamento. Imagem – Um dia qualquer no Rio... Autor: Carlos Latuff (2014). https://latuffcartoons.wordpress.com/tag/violencia/ Ace file:///C:/Users/MICRO/Desktop/Atividades%20de%20Sociologia/Imagem%20–%20Um%20dia%20qualquer%20no%20RiHYPERLINK%20%22https:/latuffcartoons.wordpress.com/2014/02/05/charge-sisejufe-a-barbarie-cotidiana-no-rio-de-janeiro/%22o...%20Autor:%20Carlos%20Latuff%20(2014) file:///C:/Users/MICRO/Desktop/Atividades%20de%20Sociologia/Imagem%20–%20Um%20dia%20qualquer%20no%20RiHYPERLINK%20%22https:/latuffcartoons.wordpress.com/2014/02/05/charge-sisejufe-a-barbarie-cotidiana-no-rio-de-janeiro/%22o...%20Autor:%20Carlos%20Latuff%20(2014) https://latuffcartoons.wordpress.com/tag/violencia/%20Ace https://latuffcartoons.wordpress.com/tag/violencia/%20Ace Multidão, anonimato, medo do diferente: a lógica por trás dos linchamentos (https://guiadoestudante.abril.com.br/atualidades/multidao-medo-e-punitivismo-como-funciona-o-linchamento/) Publicado em 2015, o livro: Linchamentos: a justiça popular no Brasil, do sociólogo José de Souza Martins é uma referência importante para se aprofundar na temática. A questão da violência social está presente há pelo menos 3700 anos. Foi nessa época, em meados do século XVIII a.C., que o rei da Mesopotâmia criou o código penal que levava seu nome: o Código de Hamurabi. Esse código baseava-se na Lei do Talião, conhecida pela máxima: “olho por olho, dente por dente”. Ou seja, a ideia de justiça com as próprias mãos ou de pagar por uma ação com a mesma moeda não é recente. O problema, no entanto, torna- se ainda maior quando se perpetua em uma era marcada pelas redes sociais, pela disseminação de notícias falsas e pelo tempo da internet que, definitivamente, não abre espaço para réplicas e defesa do suposto acusado. Comportamento de grupo Gustave Le Bon polímata francês cujas áreas de interesse incluíam antropologia, psicologia, sociologia, medicina e física, em seu livro publicado em 1895: “Psicologia das Multidões” afirma que o comportamento do indivíduo pode sofrer importantes transformações quando este se encontra numa multidão. A sensação de anonimato e de pertencimento a um coletivo favorece que os indivíduos ajam de maneira violenta, contagiados pelo grupo. Segundo Le Bon: “Só pelo fato de pertencer a uma multidão, o homem desce vários degraus na escala da civilização. Isolado seria talvez um indivíduo culto; em multidão é um ser instintivo, por consequência, um bárbaro. Possui a espontaneidade, a violência, a ferocidade e também o entusiasmo e o heroísmo dos seres primitivos e a eles se assemelha ainda pela facilidade com que se deixa impressionar pelas palavras e pelas imagens e se deixa arrastar a atos contrários aos seus interesses mais elementares. O indivíduo em multidão é um grão de areia no meio de outros grãos que o vento arrasta a seu bel-prazer”. (p.46) O sociólogo José de S. Martins afirma: “Esse tipo de comportamento parece presente nos casos de linchamentos. Os relatos desses fenômenos indicam rituais de crueldade, vítimas que são torturadas, apedrejadas, mutiladas por pessoas comuns, que possivelmente não teriam o mesmo comportamento se estivessem envolvidas individualmente num conflito. A multidão se caracteriza, em primeiro lugar, pelo anonimato dos participantes. No caso brasileiro, se o linchamento ocorre à noite, o número de participantes é muito maior do que os linchamentos que ocorrem durante o dia. Isso indica importância que o anonimato tem para uma prática que é de covardia. Além disso, na multidão, o linchador é sempre o outro”. Apesar de agirem de forma impulsiva e agressiva, os indivíduos que lincham são blindados pela isenção de culpa, já que, em tese, agiram para eliminar algo ruim para a sociedade. O comportamento parece ter aprovação tanto dos que participam diretamente quanto daqueles que testemunham, acompanham e se omitem. Efeito testemunha O termo “efeito testemunha” foi cunhado na década de 1960, em alusão ao caso de uma jovem, Catherine Susan Genovese, que foi estuprada e esfaqueada no Queens, em Nova York. O crime foi assistido por vários vizinhos que estavam nas janelas dos prédios situados na mesma rua e simplesmente se omitiram. Nessas situações, as testemunhas afirmam: não querer se envolver, alegam medo de também serem vitimadas pelos agressores, e, frequentemente, esperam que outra pessoa intervenha. Como o linchamento é um crime coletivo, operado por um grupo ou uma multidão, é comum a presença de outros indivíduos que não participam das agressões, mas que também não intervêm para que as mesmas não ocorram ou cessem o mais rápido possível. A omissão daqueles que presenciam pode ser compreendida como “efeito testemunha” ou “efeito espectador”. As testemunhas buscam não se envolver pois acreditam que outro espectador agirá em seu lugar, mas essa “terceirização” da responsabilidade acaba fazendo com que ninguém tome providências. https://guiadoestudante.abril.com.br/atualidades/multidao-medo-e-punitivismo-como-funciona-o-linchamento/ As condições do estudo sociológico dos linchamentos no Brasil (https://www.scielo.br/j/ea/a/H5qgY9GZcfKd3BXJbkHpsdd/?format=pdf&lang=pt) Autor: José de Souza Martins Segundo José de Souza Martins, os linchamentos são definidos como: Julgamentos frequentemente súbitos, carregados da emoção do ódio ou do medo, em que os acusadores são quase sempre anônimos, que se sentem dispensados da necessidade de apresentação de provas que fundamentem suas suspeitas, em que a vítima não tem nem tempo nem oportunidade de provar sua inocência. Trata-se de julgamento sem a participação de um terceiro, isento e neutro, o juiz, que julga segundo critérios objetivos e impessoais, segundo a razão e não segundo a paixão. Sobretudo, trata-se de julgamento sem possibilidade de apelação. (p.12) O linchamento é o julgamento e a execução da pena praticada pelos linchadores em que não é garantido ao linchado qualquer direito de defesa. É uma forma de justiça que não é realizada por um indivíduo imparcial e racional, mas sim com base estrita na emoção. E, em muitos casos, conforme demonstra o documentário: A Primeira Pedra (2019) fica comprovado que o linchado não tinha qualquer envolvimento com o ato lhe imputado. O linchamento é classificado como uma ação de violência – espontânea e imprevisível – da coletividade para punir sem julgamento pessoas que supostamente praticaram um crime ou infração. Com isso, pode-se afirmar que os praticantes do linchamento substituem o poder estatal, no caso o judiciário, na sua exclusiva função de julgar e punir os supostos acusados. Por os linchamentos apresentarem características violentas e brutais, José de Souza Martins ressalta a semelhança de caça às bruxas durante a Idade Média, na Europa: O que mais nos impressiona nos registros da caça às bruxas é a violência das perseguições, o uso da tortura física e psicológica, as execuções e, principalmente, o espetáculo final da queima dos corpos na fogueira. A crença em bruxas e nos seus poderes maléficos fornecia as razões para as execuções. (p.328) Os linchamentosnão são uma novidade na sociedade brasileira. O primeiro linchamento registrado no Brasil, segundo Martins ocorreu em 1585, em Salvador, quando um indígena convertido ao cristianismo afirmou que era o Papa. O homem foi linchado, porque muitos fiéis se ofenderam com a situação. O mais antigo de que tenho notícia é o de Antônio Tamandaré, em 1585, em Salvador, Bahia, índio que liderava um movimento messiânico que encontrara grande número de adeptos entre os brancos, inclusive brancos ricos. Os próprios índios seus seguidores queimaram-lhe o templo, prenderam-no, maltrataram-no, cortaram-lhe a língua e o estrangularam Um comportamento completamente estranho às tradições tribais e referido a uma cultura punitiva branca, católica e inquisitorial, de acordo com a concepção de castigo e os valores da época. (p.12) Os jornais brasileiros do final do século XIX, nas vésperas da abolição da escravatura negra noticiam linchamentos nos Estados Unidos e no Brasil. À época, a palavra linchamento já era corrente no vocabulário brasileiro. https://www.scielo.br/j/ea/a/H5qgY9GZcfKd3BXJbkHpsdd/?format=pdf&lang=pt Principais fatores que explicam o Linchamento ou, por que a população lincha? Linchamento resulta da decisão quase sempre repentina e, de modo geral, imprevisível. Os participantes dessas manifestações prontamente se recolhem ao anonimato. No Brasil, os linchamentos que ocorrem são através de grupos que se organizam subitamente para justiçar com rapidez uma pessoa que pode ser ou não ser culpada do delito que lhe atribuem. Os linchamentos são vingativos. Os linchadores indicam que há violações insuportáveis de normas e valores, mesmo para um delinquente preso: no período recente há vários casos de presos que lincham companheiros de cela quando sobre eles pesa, por exemplo, a acusação de estupro de crianças. O julgamento popular do delito – o reconhecimento de que um crime grave foi cometido (a gravidade do crime, porém, nada tem a ver com a gravidade definida nas leis e códigos jurídicos). Segundo Martins, “a justiça rápida, completa e eficaz feita pelas próprias mãos é praticada por descrença na justiça institucional”. Um dos principais objetos de estudo do linchamento analisados ao longo dos anos, é a motivação utilizada pelos sujeitos para praticá-lo, tendo este inclusive se transformado com o passar do tempo. Martins (1996, p. 12) compara as ocorrências atuais e passadas de linchamento ressaltando justamente essa alteração, que "a comparação das ocorrências de diferentes épocas mostra que os linchamentos entre nós têm sido praticados por motivos que mudam ao longo do tempo." Tal fato não é de se estranhar, uma vez que a sociedade está em transformação cultural, política, social e profissional, o que afeta o motivo pelo qual as pessoas realizam os linchamentos. Nesse sentido, o principal ponto destacado por Martins que desencadeava os linchamentos nos séculos XVI ao XVIII era a raça. E, a partir do século XIX, este motivo se transformou, conforme destaca o autor: Naquela época, o negro motivava linchamento quando ultrapassava a barreira da cor e invadia espaços do branco; quando, enfim, fazia coisas contra o branco que, feitas pelo branco contra o negro, não seriam crime. Hoje, um negro não é linchado por ser negro. Mas, os dados desta pesquisa mostram que a prontidão para linchar um negro é, na maioria dos casos, maior do que para linchar um branco que tenha cometido o mesmo delito. (p.12) A partir do século XIX, conforme ressalta Martins (1996), a população pode ter maior tendência para linchar uma pessoa negra do que uma branca. Contudo, outros fatores além da raça também passam a ser considerados de acordo com cada caso específico. O Inquérito Policial relativo ao caso analisado se constitui em uma peça que contribui de maneira inquestionável para a reafirmação de uma avaliação negativa do judiciário e da polícia. As autoridades, investidas de poder para manter a ordem, estão implicadas em um movimento que concretiza a negação da ordem, se sobrepondo de maneira flagrante aos princípios legais e morais que devem reger as sociedades civilizadas... A vida nas pequenas cidades evidencia as possíveis falhas do sistema e torna aguda a percepção da "ausência" de justiça, através de um contato mais próximo com julgamentos fraudulentos, ou considerados injustos e com a identificação de mecanismos de corrupção. Exemplos conhecidos dos moradores só fazem reforçar a ideia generalizada de uma justiça que não funciona. (p.331) Além disso, o crescimento da violência nas cidades e a dificuldade dos órgãos estatais de manter a segurança pública estão profundamente ligados à prática dos linchamentos. Os linchadores têm a intenção de eliminar aquele indivíduo da sociedade, pois o linchado não se enquadra nos moldes da vida daquela sociedade. O incômodo que certos indivíduos causam para o bairro ou para a comunidade faz com que a morte dos acusados não seja lamentada. Em vez disso, ela é tratada como a morte de um inseto que atormenta o ouvido durante uma noite de sono: ela é necessária. O linchamento pode ser motivado por vários desses fatores, conforme destaca Martins (2015, p. 91): Alguns linchamentos são motivados pelo ímpeto de vingança. Outros linchamentos são motivados pela descrença na justiça em relação a crimes para os quais a população não aceita impunidade. [...] Não é raro, ainda, que as evidências sugiram que os linchamentos combinem essas duas motivações [...] O mais comum é que, uma vez desencadeada uma situação propícia ao linchamento, a diversidade das motivações se combinem, sem que se possa distinguir o que é especificamente expressão de descrença e o que é especificamente expressão de vingança, o outro extremo da escala de motivos para linchar. A literatura sociológica disponível sobre o tema dos linchamentos é basicamente americana. Nos Estados Unidos, a motivação racista da violência e o problema do Sul dominaram o interesse dos estudiosos. Os linchamentos, em sua fase mais aguda, entre 1870 e 1930, tiveram um objetivo social além daquele que poderia ser indicado como o motivo imediato da violência, que era frequentemente o da violação da mulher branca pelo homem negro: o enquadramento da população negra nos limites de sua casta. Os brancos sentiam-se ameaçados pelos negros em duas frentes: no mercado de trabalho e no poder. As hipóteses dos sociólogos americanos tratam dessas fontes de disputa, produzidas seja pela decadência dos agricultores brancos, empobrecidos pela perda da terra e impelidos a uma redefinição de suas relações sociais já não mais como proprietários, mas como arrendatários e parceiros, seja pela extensão de direitos políticos virtuais aos negros com o fim da escravidão e a derrota do Sul na Guerra Civil. Os linchamentos no Sul indicam uma tentativa dos brancos de preservar seus privilégios mesmo onde e quando eles já não tinham mais sentido nem viabilidade econômica, impondo aos negros a inferioridade e a sujeição por meio do terror da violência privada. No Sul o objetivo era o de manter a população negra nos limites de sua casta, dissuadindo-a de invocar os direitos assegurados nas leis. Na América, os linchamentos eram predominantemente rurais, mesmo no Oeste recém- ocupado onde o urbano mal se constituíra. No Brasil, são predominantemente urbanos, embora haja registros de linchamentos rurais e outros envolvendo membros de populações indígenas. Os linchamentos são mais frequentes nas áreas periféricas de cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador, onde justamente se concentram os migrantes do campo, recentes ou não, privados da terra e do trabalho regular, vivendo no limite da economia estável e da sociedade organizada. Em 2022, de acordo com dados da 17ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública,a população carcerária do Brasil é de 832.295 pessoas. Do total de presos, 621.608 foram condenados, enquanto 210.687 estão presos provisoriamente, aguardando julgamento. Ou seja: a cada quatro pessoas presas, uma não foi julgada. Em 2021, a quantidade de pessoas que estavam privadas de liberdade era de 820.689. Em 2022, o número subiu para 832.295 - aumento de 1,4%. Considerando ainda um recorte temporal maior, nunca se prendeu tanto no Brasil como nos últimos 20 anos. E mesmo com dados estatísticos demonstrando essas afirmações, a sensação de impunidade parece só aumentar com o passar dos anos. Ou seja, de que os crimes no Brasil podem ser cometidos por qualquer pessoa sem que a lei os alcance. Nos linchamentos estão presentes formas cruéis de execução das vítimas. A crescente onda de violência, sensação de impunidade - que é reforçada pela mídia - falhas no modelo de segurança pública, ou seja, todas essas questões alimentam o grave problema do linchamento que ultrapassam a análise jurídica formal. Principais conclusões: Diante do exposto, o linchamento remonta aos tempos de caça às bruxas da Idade Média, haja vista que possui semelhanças daquele período, como a acusação em público sem qualquer embasamento ou provas e o rito de execução da pena, onde todos ao redor podem participar. A principal mudança daquela época para a atual é a legalidade da conduta praticada pelos linchadores, uma vez que na Idade Média os atos praticados eram legitimados pela ordem jurídica do direito canônico ou do direito feudal. O que diverge dos linchamentos que ocorrem na atualidade, haja vista que não são legitimados pelo Estado, mas que em grande parte dos casos possuem amplo apoio da população e são tidos como atos de justiça. Objetivo de assistir um documentário: Conecta-nos com uma realidade que está distante de nós ou; Se já conhecemos essa realidade assistir fortalece ainda mais essa conexão. Em um país de dimensões continentais como o Brasil, estar atento às diversas realidades é importante não apenas para reunir repertório para vestibulares, avaliações escolares, concursos públicos etc. mas também para melhor compreendermos as diferenças sociais existentes. Vladimir Seixas fala sobre A Primeira Pedra. Duração: 13min40seg https://www.youtube.com/watch?v=_9vBHSWUjCk Documentário: A Primeira Pedra Direção: Vladimir Seixas Duração: 56 min. Ano: 2019. Produção: Canal Futura Classificação: 14 anos Apresentação: A Primeira Pedra investiga a onda de linchamentos no Brasil e mostra como essa violência, praticada muitas vezes por pessoas que se consideram "cidadãos de bem", tornou-se cotidiana. O documentário faz uma reconstrução histórica da prática social dos linchamentos ao ouvir os depoimentos de: sobreviventes de linchamento, parentes de pessoas que foram linchadas, especialistas nas áreas de psicologia, psicanálise, pesquisadores, advogados e professores, como o sociólogo José de Souza Martins, autor do livro: Linchamentos: a justiça popular no Brasil. Segundo o levantamento realizado para o livro publicado em 2015, no Brasil acontece um linchamento por dia, sendo que em média um milhão de brasileiros já participaram de linchamento nos últimos 60 anos. As gravações do documentário A Primeira Pedra aconteceram em São Paulo, Rio de Janeiro, Maranhão e Santa Catarina. Casos reais noticiados na mídia e compartilhados nas redes sociais na época são revividos. Sobreviventes de linchamentos e pessoas que perderam familiares compartilham suas histórias e lutas diárias de superação. Capítulo 1: “Já que o Estado não nada...” – 5min26seg Depoimento do professor de História André Ribeiro que em junho de 2014, aos 27 anos foi confundido e acusado de roubar um bar e sobrevive ao linchamento. O caso ocorreu em São Paulo JSM: sociólogo e professor Não estamos indo na direção da civilização. Estamos indo na direção da barbárie. As pessoas que participam de linchamento se consideram pessoas de bem...são pais de família Ronilso Pacheco: teólogo e escritor – 10min03seg Quem é essa pessoa de bem? Linchados são aqueles que deixaram de ocupar o lugar do cidadão de bem. O linchado ocupa o lugar onde o perdão não alcança. Se somos bombardeados com a impunidade o tempo todo, talvez seja o linchamento, a oportunidade de fazer alguma coisa Mariana Trotta – advogada e professora – 10min05seg Brasil tem uma das mais altas taxas de encarceramento no mundo atrás de Estados Unidos, China e Rússia Nilo Batista – advogado e professor – 13min26seg “A defesa só é legítima diante de uma agressão iminente” https://www.youtube.com/watch?v=_9vBHSWUjCk Para saber mais: Professor „dá uma aula‟ de Revolução Francesa para não ser linchado (Julianna Granjeia, 07-2014) https://www.ihu.unisinos.br/noticias/532863-professor-da-uma-aula-de-revolucao-francesa-para-nao-ser-linchado Capítulo 2: “Bandido bom é bandido morto?” – 14min12seg Depoimento de Maria José Pires e Antônio Pereira - mãe e pai do jovem Cleidenilson Pereira morto em 2015 em São Luís do Maranhão. Foi filmado por um policial Jurema Werneck – diretora da Anistia Internacional Maria Rita Kehl – psicanalista Ronilso Pacheco: teólogo e escritor – 22min40seg Nossa história é muito violenta, sobretudo para a população negra e pobre JSM - sociólogo e professor - 23min46seg O linchamento apenas cria a possibilidade de que o racismo se manifeste. Inicialmente, nos E.U.A. os linchamentos começaram no oeste e não eram contra negros. Eram para humilhar e corrigir publicamente alguém que se embebedava, por exemplo. Serviam para fortalecer as regras sociais. Os linchamentos seguidos de morte passam a ser frequentes quando se deslocam para o sul dos E.U.A. e a motivação passa a ser racial. Já que o negro tinha ascensão social em relação ao branco pobre. Paulo Fehlauer – integrante do coletivo Garapa - 24min35seg Final do século XIX e início do XX, nos E.U.A., os linchamentos eram registrados em fotografias e vendidos em cartões postais Ronilso Pacheco: teólogo e escritor – 25min24seg Negros são tratados: como o violento, o mal, o criminoso. Narrativa que relaciona o negro com a feitiçaria, magia negra, africana. Suas práticas são estranhas, sua sexualidade é estranha, seu corpo é estranho, sua fala é estranha. Capítulo 3: “O Ritual” – 26min54seg Nesse capítulo são resgatados casos de linchamento Inicia com o depoimento de Jailson das Neves, ex-companheiro de Fabiane Maria de Jesus que em 2014, com 26 anos foi linchada e morta no Guarujá, litoral de São Paulo, depois de ser confundida com uma sequestradora de criança. Durante 4 horas, Fabiane foi arrastada pelas ruas, humilhada e espancada por uma multidão de pessoas Airton Sinto – advogado da família de Fabiane de Jesus 5 participantes do linchamento foram identificados e condenados pela justiça JSM - sociólogo e professor - Justificativa: alguns são pais de família e não quero esse tipo de pessoa em meu mundo Punir o corpo e a alma da vítima. Chama de punição definitiva Mônica Hass - socióloga e professora - 33min15seg É resgatado o caso ocorrido na cidade de Chapecó (SC). Em 1950, 4 pessoas foram acusadas de participarem de uma quadrilha de incendiários de imagens sagradas Depoimento de Luiz Aurélio – sobrevivente de linchamento em 2017, no R.J. - 37min42seg Capítulo 4: “Imagens de Linchamento” - 39min45seg Depoimento de Yvonne Bezerra - pedagoga Paulo Fehlauer – integrante do coletivo Garapa - 43min40seg Fala do livro que reúne a partir de vídeos do youtube imagens de linchamento no Brasil Ariadne Natal – pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência/USP - 45min10seg A partir de 2012, os registros imagéticos passam a ser frequentes Destaca o caso de Matupá (MT). O linchamento é filmado e transmitido à população Custódio Coimbra - fotógrafo - 48min19seg“Você só preserva se saber que existe” https://www.ihu.unisinos.br/noticias/532863-professor-da-uma-aula-de-revolucao-francesa-para-nao-ser-linchado