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TEOLOGIA PATRÍSTICA AULA 4 Prof. Heitor Alexandre Trevisani Lipinski CONVERSA INICIAL Por Patrística compreendemos o período da história que aconteceu durante os três primeiros séculos, em que se elaborou a filosofia cristã pelos teóricos apostólicos, ou santos padres. A Patrística consiste basicamente na elaboração de uma doutrina que objetivava a verdade da fé, em defesa do cristianismo contra os ataques do paganismo e das heresias. Foram os chamados Pais da Igreja que se colocaram na confirmação da fé católica, defendendo a liturgia, o rigor, os costumes etc. Assim se tornaram responsáveis pela elucidação progressiva dos dogmas cristãos e pelo que chamamos hoje de tradição católica. Prosseguindo com o aprendizado, contextualizaremos o segundo período da Patrística, momento em que aconteceram muitas controvérsias teológicas e que ficou marcado pelos intensos ataques contra o arianismo, tendo como destaque a figura de Atanásio de Alexandria. TEMA 1 – LUZ E SOMBRAS DO SÉCULO IV Com a promulgação do Édito de Milão, em 313 d.C., pelo imperador Constantino, podemos considerar que houve um estreitamento de ligações entre Igreja e Império, bem como uma maior influência do cristianismo sobre o âmbito do direito romano. Após o Édito de Milão a Igreja passou a exercer influência crescente sobre as leis romanas, tratando principalmente de moralizar e humanizar o Direito, como pode ser verificado na legislação matrimonial e nas disposições penais. (Fróes, 2004, p. 55) Quando o imperador Constantino permite liberdade de culto à nova crença que surgia em todo o império romano, a fé cristã se solidifica. Nesse momento, a fé cristã se solidificou, iniciando uma nova era ao desenvolvimento também do império. Com o fim da clandestinidade, o caminho estava aberto para a transformação do cristianismo ortodoxo em religião oficial sob Teodósio, em 380, com o Edito de Tessalônica (Rolim, 2000, p. 105). Após derrotar seu concorrente Maxêncio, Constantino se tornou o único imperador romano e, pelo Édito de Milão, considerou o Cristianismo religião permitida no Império, oficializada depois por Teodósio, como religião do Estado (Édito de Tessalônica). (Cicco, 2006, p. 38) No entanto, ocorreram consequências advindas dessa promulgação. Um dos exemplos é o aumento de convertidos, sendo que muitos se converteram de modo imaturo, superficial ou até mesmo oportunista. Também ocorreu uma maior interação entre Igreja e Império, permitindo ao imperador convocar concílios ecumênicos e intervir em questões teológicas, por vezes com objetivo político. Sob Constantino, a Igreja fez os homens compreenderem que eles não vivem só de pão, mas também deixou claro que seria importante cuidar daqueles que lhes dão o pão (Neto, 2011). No império de Constantino, surge a cidade de Constantinopla como nova capital do império romano, pois devemos lembrar que, nesse período, Roma estava em crise devido à batalha contra os bárbaros. Com isso, o imperador passou a ter maior liberdade em relação ao bispo, modernizando parte do clero que, por sua vez, acarretou em uma ruptura no plano de comunhão eclesial. Por isso chama-se esse período de luzes e sombras, pois ao mesmo tempo que a doutrina cristã se estabelecia no império, surgiam consequências desagradáveis. As implicações deste distanciamento com Roma suscitaram também o surgimento do monaquismo e a permanência da luta contra o paganismo, com destaque para a crise ariana. Saiba mais A palavra monaquismo vem do grego monos, “aquele que está só”, e designa uma forma de vida cristã totalmente consagrada a Deus no retiro, no silêncio, na oração, na penitência e no trabalho. O monaquismo cristão tem seus fundamentos imediatos no próprio Evangelho, no qual o Senhor Jesus aconselha a deixar tudo e seguir incondicionalmente o Cristo. No século III, essa modalidade de vida ascética tomou a forma eremítica; os cristãos retiraram-se para o deserto, tendo como modelo Santo Antão (251-356), considerado o patriarca do monarquismo (Aquino, 2019). TEMA 2 – CRISE ARIANA E O CONCÍLIO DE NICÉIA Durante o século IV, a Igreja enfrentou uma crise promovida pelo arianismo. A doutrina ariana é também chamada de arianismo, devido ao nome do seu criador, Ário, um sacerdote cristão da cidade de Alexandria no século IV. É importante compreender a temporalidade e espacialidade em relação a esse tema, para não haver equívocos. Essa doutrina não tem nenhuma paridade com o arianismo contemporâneo, que se notabilizou no século XX, sendo encabeçado por Adolf Hitler conjuntamente com os nazistas (Souza, 2016). Arianismo aqui se refere ao movimento teológico que negava a divindade do Filho, afirmando que este não participa da divindade do Pai, sendo a Ele subordinado. Após Constantino vencer seu inimigo Maxêncio e atribuir a vitória ao Deus cristão, as perseguições periódicas dirigidas contra os cristãos foram cessadas em 313 d.C. com o Édito de Milão. Essa lei concedia liberdade religiosa em todo o Império Romano e favorecia a todas as religiões, principalmente aos cristãos. Com isso, as perseguições aos pagãos para que se convertessem ao cristianismo também não ocorreram; no entanto, dentro dessa conjuntura pacificada para o imperador, problemas doutrinários com sacerdotes cristãos começaram a surgir, envolvendo de agora em diante, a figura de Constantino. De acordo com Waldir Freitas Oliveira: A vida do Império, no que se refere à religião cristã, iria ser tumultuada pelo surgimento da doutrina arianista que provocou a divisão do cristianismo da época, gerando uma vasta polêmica [...]. (Freitas, 1990, p.41) Também nesse cenário, debates teológicos iniciados por sacerdotes deixaram apenas de serem discussões metafísicas e passaram a abarcar diversas aspirações materiais, contidas na estrutura de seus discursos. As lutas doutrinárias se misturam questões pessoais, políticas, aspectos econômicos, querelas de vocabulário, influências palacianas. Tudo isso contribui para complicar a discussão e lhe dar complexidade. (Frangiotti, 1995, p.88) Com toda essa controvérsia, a crença na divindade de Jesus criou um problema para os primeiros teólogos cristãos que rejeitavam a ideia de muitos deuses existentes, posta pelo paganismo, e permaneciam em defesa da rígida tradição monoteísta do judaísmo (Ehrman, 2010). Objetivando resolver os conflitos, Constantino convoca, então, um concílio ecumênico, em Niceia, em 325, em que fica aprovada a fórmula que define: o Filho é consubstancial (homooûsios), ou seja, possui a mesma substância divina de Deus Pai, por Ele gerado e não criado. Nesse concílio, se define solenemente a divindade de Cristo, condenando as teses arianas que se opunham a tal afirmação. O Concílio refutou as teses arianas afirmando ser Cristo “Deus de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não criado, consubstancial ao Pai” (Araújo, 2020). Após o Concílio, ainda persiste a controvérsia entre nicenos e arianos, momento em que se sobressai a figura de Santo Atanásio (299-373), bispo de Alexandria. Denominado malho do arianismo, defendeu com força a divindade de Cristo, solenemente definida no Concílio de Niceia (Silva, 2016). TEMA 3 – ATANÁSIO, O LUTADOR DA FÉ Após o Concílio de Nicéia em 325, Atanásio, bispo que resistiu arduamente na defesa da ortodoxia nicena, passou a ser considerado como um autêntico protetor da fé cristã e doutor da Igreja. Atanásio nasceu em Alexandria e lá se instruiu, construindo toda a sua vida. Foi diácono e acompanhou seu arcebispo, Santo Alexandre, no Concílio de Niceia. Foi de Santo Alexandre que Atanásio recebeu grande parte de sua instrução e claridade de fé, assim como o exemplo fundamental para sua fibra ante as heresias (Papista, 2016). O episcopado de Atanásio durou cerca de45 anos, sendo que, destes, 17 ele passou exilado, devido a cinco ocasiões diferentes e por ordem de quatro diferentes imperadores romanos. Santo Atanásio foi um grande teólogo cristão, defensor do trinitarismo contra o arianismo. Figura 1 – Antigo ícone de Santo Atanásio, o Grande de Alexandria, um dos quatro doutores da Igreja. Patriarca grego que defendia a ortodoxia cristã contra o arianismo Crédito: Kavring/Shutterstock. Dos conflitos de Atanásio contra Ário (que muitas vezes possuía o apoio da corte romana), modificações ocorreram em toda sua carreira. Em 325, ele iniciou a luta contra os arianos, com o Concílio de Niceia, e, além disso, também bateu de frente contra os imperadores Constantino, Constâncio II, Juliano, o Apóstata e Valente e, ficando conhecido Athanasius Contra Mundum (Atanásio contra o mundo). O papel de Atanásio na defesa da ortodoxia cristã concede não só informações fundamentais à tradição eclesial, mas da discussão sobre o homooúsios, a consubstancialidade do Filho em relação ao Pai e a divindade de Verbo de Deus, gerado pelo Pai. Por isso ele defende que Cristo não é criatura, como afirmava a heresia ariana, mas está no plano divino, sendo Deus como o Pai é Deus, como o Espírito Santo é Deus (Corbellini, 2007). Santo Atanásio, com o Concílio de Nicéia, frisa a distinção do Criador e das criaturas. Para ele, Jesus está no plano do Pai, é o Filho de Deus. Atanásio foi um dos protagonistas no século IV e de toda a Igreja antiga na afirmação de que o Filho é Deus e pela sua encarnação elevou o ser humano até ao seu plano, o divino (Corbellini, 2007). Saiba mais O livro Santo Atanásio Contra o Mundo conta a biografia de Atanásio, nascido em Alexandria, no Egito, em 296. No ano de 325, deu-se o I Concílio Ecumênico, em Niceia, para definir a doutrina autêntica contra a heresia tão capciosa dos arianos, a qual fazia de Jesus uma criatura inferior a Deus Pai. Atanásio participou do Concílio na qualidade de assessor do seu bispo, embora fosse somente diácono na época. TEMA 4 – AS ORIGENS DO MONAQUISMO Santo Atanásio teve grande destaque na defesa da doutrina cristã contra as heresias do arianismo. Sabe-se que ele não foi monge, mas possuiu uma certa relação com os primórdios do monaquismo. Sua vida, assim como a dos demais padres da igreja durante o século IV, foi extremamente ascética, ou seja, ele prezava muito pela disciplina e o autocontrole estritos, tanto do corpo quanto do espírito, construindo um caminho imprescindível em direção a Deus. Sua relação com os monges parece ter surgido desde muito cedo, principalmente com Santo Antão. Dois discípulos deste o acompanharam em seu desterro a Roma, em 339, e entre os monges Atanásio buscou e encontrou colaboradores diante sua luta antiariana, o qual confiou a alguns deles sedes episcopais (Ecclesia, [S. d.]). Essa relação mútua de compreensão e apoio se deu amplamente durante os três últimos desterros de Atanásio, em Tebaia e entre os monges pacomianos. Diante da resistência estabelecida por inúmeros bispos, Santo Atanásio compreendia plenamente a tamanha grandiosidade do movimento monástico, estimulando e propagando seus ideais, além de instituir o monaquismo definitivamente como movimento integrante da Igreja. Notável foi o apoio entusiasta do monaquismo copta, em relação aos desterros de Santo Atanásio, servindo-se de consolo imensurável em suas lutas. Exemplo de tal situação é a amizade de Atanásio com Santo Antão, que, segundo historiadores, escreveu ao imperador Constantino em favor de seu amigo e não vacilou em apresentar-se na própria cidade de Alexandria (Ecclesia, [S. d.]). As relações entre Santo Atanásio e o movimento monástico geraram grande influência na orientação escriturística e evangélica do movimento. De todas as produções de Santo Atanásio, a obra intitulada Vida de Santo Antão é o exemplo mais significativo da forte contribuição dada por ele ao desenvolvimento do espírito monástico. Ademais, a obra também é considerada como o início de um novo e próprio gênero literário, que inspirará as hagiografias dos séculos seguintes. TEMA 5 – POLÍTICA E TEOLOGIA No estreitar das relações entre Atanásio e o movimento monástico, ele percebeu que os ideais proclamados por esse movimento exerciam grande influência nos cristãos, influência esta que ainda hoje pode ser verificada, e sua promoção naquele momento proporcionou resultados inesperados, como por exemplo o ressurgimento do monaquismo ocidental. Nesse período da história, as perseguições cessaram, e os monges eram vistos como os sucessores dos mártires, pois faziam parte de uma comunidade de renúncia aos prazeres da carne, objetivando uma vida santa, sem vaidade, sem luxúria etc., se doando plena e exclusivamente ao amor a Deus e aos irmãos. Nesse contexto, o clero passa a sofrer grande atração vinda do monaquismo, e com uma multiplicação dessa experiência, começam a surgir os bispos-monges. Serapião é um exemplo, sendo um dos monges que recebeu cartas de Atanásio. Santo Atanásio, como patriarca de Alexandria, tinha a tarefa de anunciar a todos os bispos qual a data da Páscoa, pois era naquela cidade que se definia o calendário cristão e, como consequência, os compromissos da Igreja. Figura 2 – Monges franciscanos rezando em frente ao altar, diante do crucifixo na Igreja do Santo Sepulcro, em Jerusalém, durante procissão Dolorosa Crédito: Dominika Zara/Shutterstock. Assim, não podemos deixar de destacar a importância das ações de Atanásio em defesa da ortodoxia contra o arianismo, e na difusão da experiência monástica, lutando pela fé nicena e defendendo o caráter não político da religião. NA PRÁTICA Verificamos que Santo Atanásio foi uma pessoa de extrema importância para a defesa da fé, lutando contra as heresias nascentes dentro da própria igreja e no império. Atanásio teve um grande papel na salvaguarda da ortodoxia cristã, produzindo um arcabouço intelectual e contando com o apoio do movimento monástico. Nesse sentido, como atividade prática, assista ao vídeo disponível no link a seguir e destaque qual a relação entre Santo Atanásio e o Credo Niceno- Constantinopolitano. REDE SÉCULO 21. Santo Atanásio e o Credo Católico. Disponível em: . Acesso em: 21 set. 2020. FINALIZANDO A partir do édito de Milão, que concedeu liberdade religiosa em todo o império, algumas consequências apareceram e se intensificaram com o reconhecimento do cristianismo como religião oficial do Império Romano, pelo Édito de Tessalônica. Nesse momento, uma grande batalha foi travada entre os defensores da fé cristã e da fé pagã, especialmente os precursores do arianismo, doutrina que em suma se opunha a santidade de Jesus Cristo. Ao mesmo tempo se observava um estreitamento das relações entre igreja e império. Na tentativa de resolver os conflitos entre arianos e nicenos, Constantino convoca um Concílio, em 346. Após a convocação, a controvérsia entre nicenos e arianos ainda persiste e, a partir de então, se sobressai a figura de Santo Atanásio, bispo de Alexandria. Atanásio defendeu com força a divindade de Cristo, solenemente definida no Concílio de Niceia, contando também com o apoio do pensamento proclamado pelo monaquismo, um movimento que designa uma forma de vida cristã totalmente consagrada a Deus, no retiro, no silêncio, na oração, na penitência e no trabalho. REFERÊNCIAS AQUINO, F. História da igreja: o monaquismo. Cleófas. 2019. Disponível em: . Acesso em: 21 set. 2020. ARAÚJO, D. A. Controvérsias sobre a natureza de Cristo na antiguidade cristã. 2020. Disponível em: Acesso em: 21 set. 2020.CORBELLINI, V. V. A Participação de Atanásio no Concílio de Nicéia e a sua Defesa do Homooúsios. Teocomunicação (PUCRS), Porto Alegre, v. 37, n. 157, p. 396-408, 2007. DI CICCO, C. de. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito. São Paulo: Saraiva, 2006. 313 p. ECCLESIA. 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