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À sociedade brasileira e às autoridades competentes, Escrevo esta carta como quem volta de uma viagem longa por uma aldeia à margem de um rio que já foi caminho e que agora é fronteira — fronteira entre o sofrimento e a resistência, entre a lei escrita e a prática cotidiana. Ao chegar, encontrei uma avó Xokleng sentada à sombra, tecendo um cesto enquanto contava histórias de quando os filhos e netos podiam atravessar o rio sem medo; depois veio o barramento; depois as motosserras; depois, as disputas no tribunal. Sua voz, feita de pausas e nomes, foi o fio que me fez ver com nitidez que o Direito dos Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais não é um conjunto de artigos abstratos: é matéria viva, tecido nas rotas, nas línguas, nas sementes e nos ritos que persistem apesar da pressão. Narrar essa cena é, ao mesmo tempo, denunciar e persuadir. Denuncio porque a realidade mostra violências que o papel da lei ainda não neutralizou: invasões de terra, criminalização de lideranças, negação de consulta, destruição de ecossistemas tradicionais e omissão de políticas públicas efetivas. Persuado porque acredito que o reconhecimento constitucional e os tratados internacionais podem e devem ser ferramentas transformadoras — não enfeites retóricos. A Constituição de 1988 reconheceu a posse originária dos povos indígenas e garantiu direitos às comunidades tradicionais; contudo, a efetividade desses direitos depende de decisões políticas e judiciais, de vontade administrativa, e do compromisso cotidiano da sociedade em respeitar o pluralismo. Permitam-me contar uma pequena passagem que sintetiza a urgência: ao acompanhar uma audição pública sobre demarcação, vi crianças recusar comer peixe que trazia cheiro de óleo vindouro. A imagem é brutal: saúde, cultura alimentar e subsistência ameaçadas por empreendimentos que, embora prometam desenvolvimento, frequentemente suprimem modos de vida. Esses modos de vida são fonte de conhecimento ecológico e de soluções locais para crises climáticas — o território tradicional não é apenas propriedade; é guarda de biodiversidade e matriz cultural. Assim, proteger direitos indígenas e tradicionais é proteger saberes que beneficiam toda a coletividade. Os argumentos jurídicos existem e são sólidos: o princípio da autodeterminação, o direito ao território, à consulta livre, prévia e informada, à reparação por danos, à proteção das línguas e da cultura. Mas falta algo que o Direito formal não captura integralmente: o horizonte ético que torna legítimas e urgentes as decisões. É preciso traduzir a letra em prática com políticas que garantam demarcação célere, proteção contra grilagem, mecanismos de proteção a lideranças, acesso diferenciado à justiça e investimentos em saúde e educação culturalmente adequadas. Proponho, com a veemência de quem esteve junto, algumas medidas práticas e persuasivas que peço que sejam abraçadas com prioridade: - Garantir a celeridade dos processos de demarcação e a implementação imediata de medidas cautelares que protejam o território durante o trâmite. - Instituir mecanismos efetivos de combate à violência e à criminalização de lideranças — incluindo protocolos policiais alinhados com direitos humanos. - Implementar a consulta livre, prévia e informada como processo vinculante, com orçamento e cronograma claros, respeitando calendários e formas tradicionais de decisão. - Fortalecer políticas de apoio à economia local, assente em modos de produção sustentáveis, e financiar programas de recuperação ambiental conduzidos pelas comunidades. - Promover educação intercultural bilíngue, com valorização das línguas indígenas e de saberes tradicionais nas escolas públicas. Esta carta é também um apelo à sociedade civil e ao Judiciário. À sociedade, peço que escute, que coloque pressão política e que reconheça a dívida histórica. Ao Judiciário, solicito sensibilidade hermenêutica para que a interpretação assegure proteção efetiva, não retrocessos que reduzam direitos conquistados. Não peço privilégios; peço justiça. Justiça que se mede não apenas em sentenças, mas em vidas preservadas, em mantos cerimoniais ainda usados, em crianças que aprendem a nomear plantas em sua língua materna, em rios limpos que ainda oferecem alimento seguro. O futuro do Brasil — ecológico, cultural, democrático — está intrinsecamente ligado ao tratamento que damos hoje aos povos indígenas e às comunidades tradicionais. Termino esta carta com a imagem da avó que tecia: cada fio que ela passava era um argumento contra o apagamento. Se desejamos um Brasil plural e justo, precisamos deixar que esses fios constituam o tecido da nação, não sejam aparados por interesses imediatistas. Que a lei cumpra o que promete; que a política seja capaz de escutar; que a sociedade reconheça; e que as próximas gerações herdem territórios vivos e dignos. Com respeito e firmeza, [Assinatura] PERGUNTAS E RESPOSTAS 1) Quais são os direitos fundamentais dos povos indígenas e comunidades tradicionais? Resposta: Direitos ao território, autodeterminação, consulta prévia, proteção cultural e ambiental, saúde e educação diferenciadas. 2) O que significa demarcação de terras? Resposta: Reconhecimento oficial dos limites territoriais tradicionalmente ocupados, garantindo posse originária e proteção legal contra invasões. 3) O que é consulta livre, prévia e informada (CPI)? Resposta: Procedimento que obriga ouvir comunidades antes de projetos que as afetem, com informação adequada e respeito às formas tradicionais de decisão. 4) Como o Estado pode prevenir violência contra lideranças? Resposta: Criando protocolos de proteção, investigando crimes com celeridade, punindo responsáveis e garantindo medidas cautelares efetivas. 5) Como a sociedade não indígena pode apoiar concretamente? Resposta: Apoio político e financeiro a movimentos, pressão sobre autoridades, consumo consciente, divulgação de causas e apoio a projetos comunitários.