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RENATA CRISTOFANI MARTINS EPIDEMIOLOGIA 48 Epidemiologia analítica 3 UNIDADE 3 EPIDEMIOLOGIA ANALÍTICA INTRODUÇÃO Como são definidos quais são os fatores de risco para uma doença ou, ainda, quais são os fatores que significam uma melhor evolução do quadro clínico do indivíduo? Consumir bebida alcóolica durante a gestação faz mal para a criança? Qual é a chance de uma pessoa infartar se for hipertensa? Como são avaliadas a eficácia de um trata- mento? Vacina funciona? Essa unidade abordará os tipos de estudos que conseguem responder a essas pergun- tas e como calcular e interpretar as análises estatísticas que medem a intensidade da associação entre diversas variáveis. Para tanto, serão abordados estudos analíticos e longitudinais, o que significa que é possível provar associações e causalidade entre as variáveis e que a coleta de dados acontece em mais de um momento. Há os estudos observacionais e os experimentais, sendo que a diferença é que no segundo tipo de estudo é o pesquisador que decide quais sujeitos terão a intervenção. Nos estudos observacionais, o pesquisador só observa os eventos sem definir a qual intervenção o sujeito será submetido, Esses tipos de estudo conseguem medir a associação entre variáveis e riscos ou chan- ces de um evento acontecer. Para ajudar a distinguir os desenhos do estudo é impor- tante definir quais são as variáveis pesquisadas, como elas foram coletadas e como os grupos comparados foram divididos. GLOSSÁRIO Variáveis independentes são fatores estudados que podem estar associados com a variável dependente. Trata-se das causas presumíveis ou possíveis fatores de risco, em que pode ser chamada de exposição, já que é a exposição ao fator de risco pode causar alguma doença (Rouquaryol; Gurgel, 2018, p. 705). Por exemplo: fumar, bebida alcóolica e aleitamento materno. Já a variável dependente é o efeito presumível da variável independente. Ela pode ser cha- mada de desfecho ou variável de interesse. (Rouquaryol; Gurgel, 2018, p. 705). Além disso, normalmente, ela é dicotômica, ou seja, só tem duas possibilidades de resposta, como ter ou não ter uma doença. Por exemplo: câncer de pulmão, incapacidade e óbito. 1. ESTUDO COORTE Entre os estudos observacionais, o estudo do tipo coorte é o que melhor consegue avaliar o risco. Isso se deve porque, no início da pesquisa, todos os sujeitos não têm o 49 3 Epidemiologia U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co desfecho, sendo assim possível avaliar quantos casos novos aparecerão. Esse estudo compara dois grupos, um que tem exposição ao fator de risco a ser estudado e outro grupo que não é exposto. Os sujeitos, por sua vez, são acompanhados ao longo do tempo para contar o surgimento do desfecho (Rouquaryol; Gurgel, 2018, p. 123-125). O desenho desse tipo de estudo (Figura 1) iniciará pela exposição e, após uma quanti- dade determinada de tempo, o desfecho é aferido. Desse modo, uma característica que diferencia o estudo de coorte de outros estudos longitudinais é a pesquisa dividindo os grupos pela exposição. Pessoas com presença de uma ou mais variáveis independentes Fumantes Não Fumantes Pessoa com ausência de uma ou mais variáveis independentes Pessoas com presença de variável independente Pessoas com presença de variável independente pessoas com câncer de pulmão pessoas com câncer de pulmão pessoas sem câncer de pulmão pessoas sem câncer de pulmão DESENHO EXEMPLO Pessoas com ausência de variável independente Pessoas com ausência de variável independente Fonte: elaborada pela autora. Figura 01. Esquema do desenho de estudo coorte O termo coorte se refere a um grupo de pessoas com uma característica em comum. Por isso, um estudo coorte tem em seu desenho o acompanhamento de grupo de pes- soas. Há coortes que são estudadas desde 1950, como a corte de nascidos vivos em Pelotas (RS) que acompanha as pessoas há 30 anos, desde o nascimento até sua fase adulta. Por exemplo, esses estudos conseguem avaliar qual o impacto do aleitamento materno na saúde das crianças ao longo dos anos até a idade adulta. Os estudos de coorte acompanham indivíduos sadios divididos em grupos de quem possui uma característica e de quem não possui. Normalmente, o objetivo é avaliar 50 Epidemiologia analítica 3 quais consequências essa exposição pode gerar. Nesse sentido, alguns estudos acom- panham um grupo de pessoas ao longo de vários anos para avaliar a morbidade de uma exposição ou a associação entre ela e um desfecho. CURIOSIDADE EXEMPLO 1 Um marco nos estudos epidemiológicos é o estudo de Doll e Hill com o acompanhamento dos médicos britânicos, em que essa coorte conseguiu provar as complicações causadas pelo fumo. O artigo indicado a seguir resume a trajetória da pesquisa citada e seus resultados. DI CICCO, M. E.; RAGAZZO, V.; JACINTO, T. Mortality in relation to smoking: the British Doc- tors Study. Breathe (Sheff), [s. l.], v. 12, n. 3, p. 275-276, set. 2016. Disponível em: https:// www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5298160/. Acesso em: 10 abr. 2021. No começo do estudo, os participantes não podem apresentar o desfecho. Contudo, na avaliação inicial é comum testar se a pessoa já apresenta o desfecho, ainda que ele esteja na fase inicial da doença e seja assintomático. Por isso, esse é o único estudo observacional capaz de medir incidência, somente a pesquisa pode monitorar esse indicador de saúde. A duração e a periodicidade do acompanhamento da pesquisa dever ser estabelecido a partir da História Natural da Doença da variável dependente. Por exemplo, para avaliar se o fumo está associado ao câncer de pulmão, a coleta de dado não precisa ser anual ou após um ano de ter começado a fumar, já que a doença demora para se manifestar. Por- tanto, dependendo das variáveis de interesse, um estudo coorte será de longa duração. Por ser um estudo observacional, a decisão de que sujeitos serão expostos às variáveis independentes não é do pesquisador. Uma pesquisa acompanha quem fuma ou não, o pesquisador não influencia na decisão de qual participante deverá fumar. Ou, então, uma pesquisa acompanhar os pacientes interna- dos que tiveram abordagens terapêuticas diferentes para avaliar a cura de uma doença, con- forme a abordagem terapêutica. Nesse último caso, a variável independente é a abordagem terapêutica e o desfecho é a proporção de cura da doença. Para alguns tipos de exposição, esse é o melhor desenho de pesquisa, pois, não é possível fazer estudo experimental. De acordo com a ética, um pesquisador não pode oferecer a gestantes bebidas alcoólicas, em razão do risco que isso pode causar à criança. No entanto, ele pode observar quais são os efeitos encontrados em gestantes que consumiram a bebida. A temporalidade é uma característica importante dos estudos coorte. Ela garante a certeza de que o fator de risco existiu antes do desfecho, o que é fundamental porque, muitas vezes, consegue-se perceber uma associação estatística entre duas variáveis, mas não se sabe dizer qual é a causa e o efeito. Por exemplo, um estudo descritivo, 51 3 Epidemiologia U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co que coleta todas as informações, mostra uma associação entre ser sedentária e ter depressão. Para definir se de fato uma variável é fator de risco para outra é preciso um estudo longitudinal de coorte que garanta a ausência de depressão no começo do acompanhamento dos sedentários e daqueles que praticam atividades físicas. Nesse caso, no acompanhamento se avalia quantas pessoas apresentaram depressão. Há dois tipos de estudo coorte, o prospectivo e o retrospectivo. Na coorte retrospec- tiva, os grupos são selecionados no passado e acompanhados até o presente. A título de exemplo: uma pesquisa que quer avaliar se o uso de antibiótico em pessoas com gripe previne que o paciente necessite de ventilação mecânica. Com levantamento de prontuário do último ano de todos os casos internados por gripe, o pesquisador separa quemusou de quem não usou antibiótico e, em seguida, avalia quais precisaram de intubação. O acompanhamento é realizado com as informações do prontuário e é pos- sível que, no tempo atual, os sujeitos já tenham o desfecho. As vantagens da coorte retrospectiva são de que é possível ter um alto número de su- jeito de pesquisa e ela são de curta duração. Isso ocorre porque, como os fatos estão no passado, não há necessidade de ficar esperando o evento acontecer desde o início da exposição. Em contrapartida, a grande desvantagem é de que, ao utilizar registros e informações de prontuário, não é possível garantir a qualidade dos dados e como as informações foram coletadas. Isto é, quando os dados são coletados em prontuários que não se pode garantir a qualidade da informação, a pesquisa apresenta um viés de registro de informação. Já a coorte prospectiva se trata do acompanhamento em tempo atual, como acom- panhar atletas profissionais e avaliar o risco de lesões osteomioarticulares. Nesse caso, a partir de hoje, por exemplo, atletas de diversas modalidades que não tenham lesão serão acompanhados e avaliados, a fim de identificar quais e quantas lesões aparecem ao longo dos anos. Por um lado, a vantagem é a coleta das informações ser padronizada e, assim, garantir a confiabilidade dos dados. Além disso, outra vantagem é poder medir outras variáveis que podem influenciar na associação e avaliar fatores de confusão. Por outro lado, as desvantagens são que essas pesqui- sas são caras e de longa duração, o que pode gerar a desistência de participantes no meio do acompanhamento. A perda de segmento é uma desvantagem de qualquer tipo de estudo, mas é mais fre- quente em estudos longos, como a coorte prospectiva. A perda do acompanhamento do sujeito da pesquisa pode ter várias causas, como migração, aderência, desistência e outro desfecho que inviabilize a continuidade na pesquisa. Isso pode gerar impacto na análise estatística e resultado. Desse modo, a primeira informação a se avaliar é a proporção da perda, se ela for maior do que 10% do número total da amostra da pesquisa, a qualidade dos resultados é questionável; mas, se ela for maior do que 30%, a validade interna fica prejudicada. Em seguida, é necessário avaliar as causas e se os grupos se mantêm comparáveis ou se as pessoas que saíram tinham características diferentes. 52 Epidemiologia analítica 3 EXEMPLO 2 Uma pesquisa para avaliar se consumir bebida alcoólica na gestação faz mal para a crian- ça, na qual 100 mulheres foram acompanhadas em dois grupos. Ao longo do segmento, 20 mulheres desistiram de participar ou mudaram de endereço, entre as desistentes, 18 eram usuárias de bebida alcoólica e tinham menos de 20 anos. Com a perda do segmento, o grupo de expostos apresenta características e tamanho diferentes do grupo de não expostas. Na pesquisa, qualquer pessoa que não saiba dizer a qual grupo o participante pertence, se ele faz parte do grupo controle, intervenção, caso, exposto ou não exposto, é considerada “cego”. O problema de não ter o participante “cego” é que ele pode mudar o seu comporta- mento, o que poderá influenciar na avaliação. Dessa forma, apesar de continuar ingerindo bebida alcoólica enquanto grávida, a mulher pode começar a comer de forma mais saudável para garantir que o filho não tenha problemas. Assim, o resultado da pesquisa pode não re- presentar a realidade. No caso da coorte, o voluntário sabe qual é o objetivo da pesquisa e, portanto, sabe se ele está no grupo exposto ou não. O ideal é que todo sujeito de qualquer pesquisa seja cego, contudo, no estudo coorte, dificilmente o sujeito da pesquisa é “cego”. Esse tipo de estudo não é adequado para avaliar doenças de baixa prevalência. Como a frequência do evento é baixa, é necessário ter uma amostra muito grande para conse- guir poucos desfechos, o que, consequentemente, aumentaria o custo sem ter a certeza de que a quantidade de desfecho seria adequada para análise. Para doenças que tem um longo período de latência, esse desenho também não é adequado. As principais vantagens de qualquer estudo coorte são: ` Ter relação temporal (exposição sempre veio antes do desfecho); ` Calcular incidência; ` Não expor o paciente ao risco (é um estudo observacional); ` Avaliar os múltiplos efeitos de uma exposição e ` Adequado para avaliar exposição rara. Como em toda pesquisa, é possível que erros sistêmicos ocorram e que enfraqueçam a validade do resultado. Assim, o viés de amostragem pode acontecer se o grupo exposto e o grupo não exposto tiverem características diferentes. Isto é, é preciso que eles sejam similares com exceção pela exposição ou, ainda, pode acontecer quando os participantes não representam todos as situações de exposição. PARA REFLETIR Tendo em mente o exposto até aqui, reflita: será que a pesquisa sobre fumo tem uma amostra que abrange todos os tipos de exposição? Têm pessoas que fumam desde 1 a mais de 40 cigarros por dia, que fumam cigarro de palha ou elétrico, ou ainda têm pessoas de todos os sexos e idades? 53 3 Epidemiologia U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co SAIBA MAIS O viés de migração ocorre nos casos de perda de segmento quando os grupos ficam diferentes do que que eram no início da pesquisa e já não são mais comparáveis. Por isso, no planejamento do estudo é importante programar estratégias que diminuam as perdas, como ligações telefônicas para manter contato com os participantes. Ele ocorre com mais frequência na coorte prospectiva. O viés de aferição, por sua vez, pode acontecer sempre, mas ocorre com mais frequ- ência na coorte retrospectiva. Nele, é importante que todos os indivíduos sejam ava- liados da mesma maneira e de preferência pelo mesmo equipamento. Por isso, o ideal é criar protocolos para definir as técnicas e as frequências com que os sujeitos devem ser avaliados. Para os estudos retrospectivos é importante garantir a confiança das informações registradas. As análises estatísticas principais para esse estudo são: o risco relativo e o risco atribu- ível, além da incidência. Com elas, é possível avaliar o impacto que se exposto tem o risco de desenvolver o desfecho. O Framingham Heart Study, é um famoso estudo coorte norte-americano que investiga fatores de risco para doenças cardiovasculares. Para saber mais, leia o artigo, disponível a seguir: TSAO, C. W.; VASA, R. S. Cohort profile: the framingham heart study (FHS): overview of milestones in cardiovascular epidemiology. International Journal Epidemiology, [s. l.], v. 44, n. 3, p. 1800-1813, dez. 2015. Disponível em https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/ PMC5156338/. Acesso em: 10 abr. 2021. 2. ESTUDO DE PROGNÓSTICO O estudo de prognóstico prediz quais são os resultados possíveis de um evento. Por exemplo, o prognóstico de quem sofre um acidente de carro é 45% de chance da pes- soa sair ilesa, 25% de sair com alguma lesão que será curada, 15% de ficar com algu- ma sequela e 15% de ir a óbito em um mês do acidente. No estudo de prognóstico, todos os participantes, desde o início da pesquisa, têm a doença a ser estudada. O objetivo é acompanhar a evolução da doença comparando grupos com característica diferente (presença ou ausência de fator prognóstico) e ava- liar se ela influencia no desfecho a ser avaliado. Como o caso de uma pesquisa que pretende avaliar se o tamanho do tumor do câncer de mama influencia na chance de a mulher estar viva depois de 5 anos. O desenho do estudo está esquematizado na Figura a seguir. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5156338/ https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5156338/ 54 Epidemiologia analítica 3 Figura 02. Esquema do desenho de estudo prognóstico Pessoa doente com presença de um ou mais fatores prognósticos Pessoa com câncer com tumor maior de 5 cm Pessoa doente com ausência de um ou mais fatores prognósticos Pessoa com câncer com tumor menor de 5 cm Pessoas com presença do desfecho Pessoas vivas após5 anos Pessoas vivas após 5 anos Pessoas com presença do desfecho DESENHO EXEMPLO Pessoas com ausência do desfecho Pessoas mortas após 5 anos Pessoas mortas após 5 anos Pessoas com ausência do desfecho Fonte: elaborada pela autora. Essas pesquisas comparam como alguns fatores influenciam na história natural da do- ença. Por exemplo, iniciar o tratamento nas primeiras seis horas de um Acidente Vas- cular Cerebral (AVC) altera a história natural da doença com aumento da sobrevida e redução das sequelas. Os fatores prognósticos podem ser características do indivíduo, como idade, caracte- rísticas da doença (tipo histológico do câncer ou intervenções realizadas, como realizar inicialmente quimioterapia em vez da cirurgia). Os desfechos do estudo podem ser morte, deficiência ou incapacidade, sofrimento ou, ainda, redução da qualidade de vida. Os es- tudos prognósticos mais comuns são os de sobrevida, que avaliam quais são as chances de a pessoa estar viva após 5 anos do diagnóstico. Nesse caso, o desfecho é morte. Quando se usa a gravidade da doença como fator prognóstico, um possível problema que pode acontecer é, no meio da pesquisa, surgir um método diagnóstico. Se após essa novidade, os novos casos começarem a serem classificados de maneira diferente, a pesquisa fica comprometida. 55 3 Epidemiologia U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co EXEMPLO 3 EXEMPLO 4 Um novo método tomográfico consegue identificar tumores menores e faz com que o que antes seria uma classificação grau II, agora seja grau III. Por sua vez, esse processo se chama migração de estágio e altera a análise estatística de cada fator prognóstico. Assim, as probabilidades de sobrevida de cada fator prognóstico aumentam (Fletcher, R. H.; Fletcher, S. W.; Fletcher, G. S., 2014, p. 103). O início do acompanhamento é denominado tempo zero, trata-se do diagnóstico, do início dos sintomas, do início do tratamento, entre outras opções. O importante é que todos os participantes entrem na pesquisa no mesmo tempo zero. Para a gestão do sis- tema de saúde é importante avaliar o impacto que a demora para o início do tratamento tem sobre o prognóstico. Esse estudo é similar ao coorte, no entanto, uma diferença é que, no prognóstico, todos os indivíduos têm a doença. A coorte investiga fatores de risco que podem causar uma doença, já o prognóstico investiga fatores que alteram a evolução da doença. Ainda, no primeiro estudo, o principal desfecho é desenvolver uma doença, já no segundo, o desfecho é avaliar as complicações da doença que são muito mais frequentes. Além disso, na coorte, os vieses que mais frequentemente acontecem são de amostragem, migração e aferição. A análise estatística principal para esse estudo é a análise de sobrevida que calcula as probabilidades dos desfechos acontecerem a partir dos grupos de fatores prognósticos. Para doenças com estigmas associados é comum o paciente perguntar para algum profissional de saúde qual é o seu prognóstico. Nesse contexto, a oncologia tem grande quantidade de estudos para avaliar as associações de diversos fatores para dar uma resposta correta ao paciente e familiares. Contudo, é importante ressaltar que o prog- nóstico é uma probabilidade e isso não necessariamente acontecerá. O artigo a seguir é um estudo de sobrevida que avalia quais são os possíveis fatores prognósticos. SCHNEIDER, I. J. C.; D’ORSI, E. Sobrevida em cinco anos e fatores prognósticos em mulheres com câncer de mama em Santa Catarina, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 25, n. 6, p. 1285-1296, jun. 2009. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_art- text&pid=S0102-311X2009000600011&lng=pt&nrm=iso. Acesso em: 10 abr. 2021. 3. ESTUDO CASO-CONTROLE O estudo de caso-controle é, também, observacional e longitudinal. A diferença com o estudo coorte é o modo em os grupos de comparação são divididos. Na coorte se com- para os grupos a partir da presença ou ausência de exposição. Já no caso-controle, os grupos são presença ou ausência da variável dependente, ou seja, do desfecho. 56 Epidemiologia analítica 3 O desenho do estudo caso-controle é dividir a amostra conforme a presença do desfecho e depois avaliar quais são os fatores que as pessoas estavam expostas. Por exemplo, uma pesquisa sobre a associação entre câncer de pulmão e cigarro. Inicialmente, sepa- ra-se quem tem e não tem câncer de pulmão e depois investiga por questionário ou pron- tuário quais pessoas fumavam. O desenho do estudo está esquematizado na Figura 3. Fumantes Fumantes Não Fumantes Não Fumantes pessoas com câncer de pulmão pessoas sem câncer de pulmão EXEMPLO DESENHO Fonte: elaborada pela autora. Pessoas com presença da variável independente Pessoa com ausência da variável independente Pessoa com presença de uma ou mais variáveis independentes Pessoa com presença de uma ou mais variáveis independentes Pessoa com ausência de uma ou mais variáveis independentes Pessoa com ausência de uma ou mais variáveis independentes Figura 03. Esquema do desenho de estudo caso-controle O objetivo do estudo é avaliar, a partir da doença, quais são os possíveis fatores de risco e qual é a frequência que cada exposição ocorreu. Ele é ideal quando a doença é rara ou tem um longo período de latência. Os participantes são selecionados em dois grupos, o caso e o controle. Essa divisão ocorre a partir da presença ou ausência do desfecho e é independente da exposição. A definição do que é um caso deve ser precisa e adequada, assim, o pesquisador deve estabelecer critérios rigorosos para não haver dúvida se uma pessoa se enquadra no grupo caso. A amostra dos casos deve conter quem acabou de ser diagnosticado e quem foi há mais tempo, que faz ou não acompanhamento e/ou tratamento e os diver- sos graus da doença. 57 3 Epidemiologia U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co A definição do controle deve ser alguém da mesma população do caso e que poderia se tornar um se ficasse doente. Os controles podem ser outras pessoas internadas no mesmo hospital, mas com outro diagnóstico ou, ainda, pessoas próximas da residência do caso ou parentes. EXEMPLO 5 Uma pesquisa que quer avaliar estresse de professores do ensino fundamental. Os casos foram professores que, em uma escala de estresse, pontuaram alto, enquanto os controles são os professores que pontuaram baixo. A amostra foi selecionada em uma única escola de ensino fundamental, com o objetivo de avaiar se as condições de trabalho são similares. Assim, é possível parear o controle com o caso. Normalmente, o pareamento é por idade e sexo, mas ele pode ser por outras características que não a exposição. Nor- malmente, a quantidade de controle pode ser igual a de casos. Mas, nas situações em que há poucos casos, é possível selecionar de duas a três vezes mais controles do que caso. Exemplificando: um estudo sobre quedas de pacientes no hospital teve parea- mento feito em relação ao sexo, data de internação e clínica. Se um homem internado na clínica cirúrgica em 05/01/2015 sofreu uma queda, o controle deveria ser um homem internado na clínica cirúrgica em 05/01/2015 que não caiu. A vantagem desse desenho é a praticidade e ser de curta duração. A principal desvanta- gem é ser um estudo retrospectivo, o que significa que a informação sobre a exposição pode não ser correta. Portanto, frequentemente, ocorre o viés de registro de informa- ção. Dessa forma, é importante utilizar fontes seguras, confiáveis e que relatem a expo- sição antes de saber da existência da doença. No entanto, a avaliação de exposição só é possível a partir de entrevista com os sujeitos ou análise de prontuário. Os participantes podem lembrar de maneira diferente um fato, em que normalmente os casos vão tender a lembrar com mais detalhes do que o controle. Pense: você conse- gue lembrar o que comeu há dois dias? Provavelmente não, mas se foi um dia com um evento importante, isso o ajudará a se lembrar.Ainda, se no dia você teve episódios de diarreia é mais provável que você lembre que alimentos ingeridos no dia. Esse erro possível de acontecer em todo estudo caso-controle tem o nome de viés de memória ou de lembrança (Fletcher, R. H.; Fletcher, S. W.; Fletcher, G. S., 2014, p. 92). Os profissionais de saúde, contudo, só poderão investigar sobre exposições que estão associadas com a hipótese diagnóstica. Então, para esses casos é mais provável que se tenha uma avaliação completa e, nos controles, a avaliação ser mais simples. O estudo caso-controle é comum por ser rápido e prático de realizar. Além de permitir explorar múltiplas exposições para uma mesma doença e de não precisar de muitos indivíduos para provar associações. Apesar de parecer prático e simples, ao fazer uma pesquisa rápida, de- ve-se ter cuidado para que a qualidade não seja prejudicada por apresentar diversos vieses. A análise estatística principal para esse estudo é a razão de chances ou, em inglês, odds ratio (OR). Com ela é possível estimar o risco que a exposição desenvolva o desfecho. 58 Epidemiologia analítica 3 EXEMPLO 6 Para um exemplo de Estudo caso-controle e sua aplicação, leia: GAMBA, M. A. et al. Amputações de extremidades inferiores por diabetes melli- tus: estudo caso-controle. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 38, n. 3, p. 399- 404, jun. 2004. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi- d=S0034-89102004000300010&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 10 abr. 2021. 4. TABELA DE CONTINGÊNCIA Entre duas variáveis podem acontecer comparações, sendo uma variável independente e outra dependente, ou entre múltiplas variáveis, em que várias variáveis são indepen- dentes e uma é dependente. Geralmente, as variáveis independentes são as exposi- ções ou fatores, e a variável dependente é o desfecho, que pode ser desde deficiência, complicação, morte ou doença. Para a análise entre duas variáveis é comum organizar os dados em uma tabela de con- tingência 2 x 2 (Figura 4). Nessa tabela, nas linhas estão descritas as possibilidades da variável independente e nas colunas as da variável dependente. Como de preferência a exposição e o desfecho são dicotômicos (presentes ou ausentes), a tabela fica com duas linhas e duas colunas, por isso, ela tem esse nome. As casas da tabela são nomeadas como “a”, “b”, “c” e “d” para depois facilitar as fórmulas das medidas de associações. Figura 04. Tabela de contingência 2 x 2 Fonte: elaborada pela autora. 59 3 Epidemiologia U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co EXEMPLO 7 A Figura 4 exemplifica uma pesquisa para avaliar a associação entre fumo e câncer de pulmão. Nesse caso, primeiramente, deve-se definir que o fumo é a variável indepen- dente e o câncer de pulmão a variável dependente. Então, pode-se designar que a = 67, b = 9, c = 5 e d = 114 e que os valores totais foram obtidos por uma soma simples. É interessante observar que independentemente do tipo de estudo, se é transversal, caso-controle ou coorte, a tabela é montada da mesma maneira. Tabela de contingência 2 x 2 Em uma pesquisa para avaliar a associação do sexo com a chance de ter depressão, no início do acompanhamento, nenhum dos participantes eram depressivos. Contudo, depois de 10 anos, das 452 mulheres 79 foram diagnosticadas com depressão, enquanto 39 homens foram diagnosticados do total de 908 participantes do sexo masculino. Como os dados estão distribuídos em uma tabela? Tabela 2 x 2 Para montar a tabela, deve-se considerar que ter depressão é o desfecho e o sexo é a expo- sição. Como desejamos saber o risco de uma mulher ter a doença, podemos definir que ser mulher é ter a exposição. Então, preencha a tabela com os valores descritos no enunciado: Tabela 01. Índices de depressão por sexo COM DEPRESSÃO SEM DEPRESSÃO TOTAL MULHERES 79 (a) (b) 452 HOMENS 39 (c) (d) 908 TOTAL (a+c) (b+d) (a+b+c+d) Fonte: elaborada pela autora. Fonte: elaborada pela autora. Para calcular “b”: do total de mulheres subtraia aquelas que tiveram depressão = 452 – 79 = 373. Para calcular “d”: do total de homens subtraia aqueles que tiveram depressão = 908 – 39 = 869. Some as colunas para preencher a linha “Total.” Tabela 02. Tabela completa COM DEPRESSÃO SEM DEPRESSÃO TOTAL MULHERES 79 373 452 HOMENS 39 869 908 TOTAL 118 1242 1360 60 Epidemiologia analítica 3 5. RISCO RELATIVO E RISCO ATRIBUÍVEL As medidas de associação risco relativo e risco atribuível estão associadas a incidência de um evento. Por serem dependentes da incidência, essas medidas só podem ser calculadas em estudos do tipo coorte, pois ele é o único que consegue avaliar o número de casos novos de um desfecho. GLOSSÁRIO Incidência, ou coeficiente de incidência, é a proporção que descreve o número de casos novos de uma doença em uma determinada população. O resultado pode ser expresso em coeficiente com os números decimais resultantes da divisão ou em taxa a cada 1.000 pesso- as, ou qualquer outra proporção que for adequada. númerodecasos novos deuma doençaemuma populaçãoeumdeterminado períodoIncidência númerototal de pessoas emuma populaçãoeumdeterminado período =1 Fonte: Rouquayrol; Gurgel (2018, p. 682). As duas medidas avaliam o risco de se ter o desfecho quando temos a exposição ao fator de risco comparando com o risco nas pessoas não expostas. risco relativo é uma razão das incidências do desfecho do grupo exposto contra o grupo não exposto (Rou- quayrol; Gurgel, 2018, p. 138). A partir desse resultado, é possível saber quantas vezes maior é o risco do desfecho ao comparar os dois grupos (expostos e não expostos ao fator de risco). Um resultado alto favorece a causalidade da associação das variáveis. Fórmula do risco relativo (RR): 2 Incidência dodesfechonos expostosRR Incidência dodesfechonos nãoexpostos = ou a a bRR c c d += + Em que: a, b, c e d são as casas de referência da tabela 2 x 2. Considere que, um estudo coorte acompanhou 195 pessoas entre fumantes e não fuman- tes e, depois de 15 anos, avaliou quantas delas desenvolveram câncer de pulmão. A distri- buição hipotética dos casos nos grupos está no exemplo da Figura 4. Para calcular o risco relativo, inicialmente, é preciso calcular a incidência do desfecho nos dois grupos (expostos e não expostos). Nessa pesquisa, a exposição é o fumo e o desfecho é o câncer. Ao fazer o cálculo, identifica-se que incidência de câncer de pulmão em fumantes é de 0,8816 e em não fumantes é de 0,2632. Como usaremos os valores da incidência, podemos mantê-los na forma de coeficiente. Então, para calcular o risco relativo é preciso dividir as incidências, na qual se obtém o resultado de 3,35. Como interpretar esse resultado? 61 3 Epidemiologia U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co Esse valor de risco relativo significa que, o risco de ter câncer de pulmão entre fumantes é 3,35 vezes maior do que entre os não fumantes ou, ainda, pode-se dizer que fumar está associado a um risco de 3,35 vezes maior de desenvolver câncer de pulmão. EXEMPLO 8 Risco relativo Em uma pesquisa para avaliar a associação do sexo com a chance de ter depressão, no início do acompanhamento, nenhum dos participantes tinham a doença. Porém, das 452 mulheres ana- lisadas, depois de 10 anos, 79 foram diagnosticadas com depressão; enquanto apenas 39 ho- mens foram diagnosticados com a doença em um total de 908 participantes do sexo masculino. Qual é o risco relativo de mulheres terem depressão após 10 anos? Tabela 03. Tabela 2 x 2 completa COM DEPRESSÃO SEM DEPRESSÃO TOTAL MULHERES 79 373 452 HOMENS 39 869 908 TOTAL 118 1242 1360 Fonte: elaborada pela autora. Risco relativo 79 0,1748 452 númerodemulheres depressivasIncidência nas mulheres total demulheres = = = 39 0,0430 908 númerodehomens depressivosIncidência nos homens total dehomens = = = Incidência do desfechonos expostos Incidência dedepressãonas mulheresRR Incidênciadodesfechonos nãoexpostos Incidência dedepressãonos homens = = 0,1748 0,0430 RR = realizar a divisão. 4,07RR = Ou pela outra fórmula a a bRR c c d += + substituir o valor. 62 Epidemiologia analítica 3 79 452 39 908 RR = dividir no numerador e no denominador. 0,1748 0,0430 RR = realizar a divisão. 4,07RR = Logo, o risco relativo é de 4,07. Isso significa que as mulheres têm um risco 4,07 maior do que os homens de desenvolver depressão. Caso o risco relativo seja 1,0, a exposição não altera o risco de desenvolver o desfecho. Quando o risco relativo é menor do que 1,0, pode-se dizer que a exposição é um fator protetor, pois, a presença dela reduz o risco de ter a doença. Por exemplo, uma pesquisa sobre aleitamento materno e infecções respiratórias na primeira infância cujo RR=0,2. Isso significa que, aleitamento materno protege quanto a infecções respiratórias na pri- meira infância ou que não aleitamento é um fator de risco para a doença. Quando o risco relativo é menor do que 1,0, é possível fazer uma conta para avaliar o quanto a exposição reduz o risco. A fórmula, simplesmente, divide 1 pelo valor do risco relativo. No exemplo 1 1 5 0,2RR = = = , ou seja, o aleitamento materno reduz em 5 ve- zes o risco de infecções respiratórias na primeira infância. Já o risco atribuível se trata do quanto a incidência aumentou por causa da exposição, ou seja, ele avalia o risco que pode ser atribuído a exposição. Por sua vez, o cálculo é realizado a partir da subtração das incidências do desfecho entre os dois grupos (ex- postos e não expostos) (Fletcher, R. H.; Fletcher, S. W.; Fletcher, G. S., 2014, p. 73-75). Fórmula do risco atribuível (RA): 3 RA Incidência dodesfechonos expostos Incidência dodesfechonos nãoexpostos= − ou a cRA a b c d = − + + Em que: a, b, c e d são as casas de referência da tabela 2 x 2. Assim, analisando a Figura 4, é possível que um não fumante tenha câncer de pulmão, mesmo que o risco seja bem menor. Ao usar o risco atribuível, você avaliará o quanto fumar acrescentou no risco de desenvolver câncer. Para ficar mais fácil de interpretar 63 3 Epidemiologia U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co o resultado é melhor transformá-lo em taxa a cada 1.000 pessoas, ou qualquer outra proporção que se achar adequada. EXEMPLO 9 Risco atribuível Em uma pesquisa para avaliar a associação do sexo com a chance de ter depressão, no início do acompanhamento, nenhum dos participantes eram depressivos. Contudo, depois de 10 anos, das 452 mulheres 79 foram diagnosticadas com depressão, enquanto 39 homens foram diagnosticados do total de 908 participantes do sexo masculino. Qual é o risco atribuível de mulheres terem depressão após 10 anos? Tabela 04. Tabela 2 x 2 completa COM DEPRESSÃO SEM DEPRESSÃO TOTAL MULHERES 79 373 452 HOMENS 39 869 908 TOTAL 118 1242 1360 Fonte: elaborado pela autora. Risco atribuível 79 0,1748 452 númerodemulheres depressivasIncidência nas mulheres total demulheres = = = 39 0,0430 908 númerodehomens depressivosIncidência nos homens total dehomens = = = RA Incidência dodesfechonos expostos Incidência dodesfechonos nãoexpostos= − 0,1748 0,0430RA = − subtrair. 0,1318RA = 0,1318 1 .000RA x= realizar a multiplicação para transformar em taxa. 1 31,8 1 .000 RA por pessoas= Com isso, o risco de ter depressão atribuível a ser mulher é de 131,8 casos para 1.000 pessoas. 64 Epidemiologia analítica 3 6. RAZÃO DE CHANCES (ODDS RATIO) Para estudos que não são coorte e, portanto, não se sabe a incidência do desfecho, o risco relativo não pode ser calculado. Para esses casos, existe a razão de chances ou odds ratio (OR), em inglês, que significa estimativa de risco. Essa medida pode ser usada em qualquer tipo de estudo. Chances, no inglês Odds, é uma medida utilizada que avalia a chance de um even- to acontecer contra a chance de não acontecer. Essa medida é popularmente usada em eventos esportivos e apostas. Ela se assemelha a probabilidade, com a diferença de que o denominador na probabilidade é a totalidade de possibilidades, enquanto na chance é a frequência do evento não acontecer. Por exemplo, qual é a chance e a pro- babilidade e sair o número 6 no dado? ` Na probabilidade a conta é º 1 0,1667. º 6 n deeventos esperados n deeventos possíveis = = ` Na chance a conta é º 1 0, 2 º 5 n deeventos esperados total deeventos n eventos esperados = = − . A razão de chances é a divisão das chances (odds) do desfecho acontecer nos dois grupos (expostos e não expostos). Matematicamente, a fórmula pode ser simplificada pela divisão dos produtos cruzados. Fórmula da razão de chances ou odds ratio (OR): 4 ad a dOR bd b d × = = × Em que: a, b, c e d são as casas de referência da tabela 2 x 2. DESENVOLVIMENTO DA FÓRMULA DA RAZÃO DE CHANCES OU ODDS RATIO Considere a tabela 2x2 de uma pesquisa de caso-controle. Tabela 05. Exemplo de pesquisa de caso-controle COM DESFECHO SEM DESFECHO TOTAL COM EXPOSIÇÃO a b a + b SEM EXPOSIÇÃO c d c + d TOTAL a + c b + d a + b + c + d Fonte: elaborada pela autora. 65 3 Epidemiologia U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co Para calcular a razão de chances, primeiramente, é necessário calcular a chance de o desfecho acontecer em cada um dos grupos. Nesse caso, os grupos são: com exposição e sem exposição. 5 6 9 7 8 º º n de pessoas comdesfecho aChancenos expostos n de pessoas semdesfecho b = = º º n de pessoas comdesfecho cChancenos nãoexpostos n de pessoas semdesfecho d = = A razão de chances ou odds ratio é a divisão da chance do desfecho no grupo dos expostos pela chance do desfecho no grupo dos não expostos: a chancenos expostos bRazãodechances ouOR cchancenos nãoexpostos d = = Uma divisão de frações pode ser solucionada multiplicando a primeira fração pelo inverso da segunda (o numerador vira o denominador e vice-versa), como na equa- ção a seguir: a a dbOR c b c d = = × Já a multiplicação de frações é solucionada multiplicando os numeradores e multi- plicando os denominadores. Com isso, obtemos a fórmula final (Equação 9). a dOR b d × = × A interpretação do resultado é muito similar ao do risco relativo, mas a diferença é que o RR mede o risco, enquanto o OR estima o risco. Portanto, razão de chances maior do que 1,0 indica aumento na chance do desfecho acontecer. Se for igual a 1,0, não existe associação entre as variáveis e se for menor do que 1,0 indica que a exposição reduz a chance do desfecho acontecer. 66 Epidemiologia analítica 3 EXEMPLO 10 Razão de chances ou OR Em uma pesquisa para avaliar a associação do sexo com a chance de ter depressão, no iní- cio do acompanhamento, nenhum dos participantes eram depressivos. No entanto, depois de 10 anos, das 452 mulheres 79 foram diagnosticadas com depressão, enquanto 39 homens foram diagnosticados do total de 908 participantes do sexo masculino. Qual é a razão de chances de mulheres terem depressão após 10 anos? Tabela 06. Tabela 2 x 2 completa Com depressão Sem depressão Total Mulheres 79 373 452 Homens 39 869 908 Total 118 1242 1360 Fonte: elaborada pela autora. Razão de chances a dOR b d × = × substituir os valores. 79 869 373 39 OR × = × multiplicar. 68.651 14.547 OR = dividir. OR = 4,72 Logo, estima-se que ser mulher aumenta o risco de ter depressão em 4,72 vezes. O risco relativo e a razão de chances têm valores aproximados quando a prevalência do desfecho for inferior a 10% (Fletcher, R. H.; Fletcher, S. W.; Fletcher, G. S., 2014, p. 106). Nos exemplos da unidade sobre a pesquisa de depressão, nota-se que os valores estão próximos, RR=4,07 e OR=4,72. Isso ocorre porque a prevalência de depressão na amostra foi de 8,7%. Para chegar nesse resultado de prevalência, divide-seo total de pessoas com depressão pelo total de pessoas (= 118/1360) e, em seguida, o resul- tado é multiplicado por 100. Já no exemplo da pesquisa sobre fumo e câncer, em que os valores estão descritos na Figura 4, a prevalência da doença é 75,8%. Nesse caso, o RR=3,35 está bem distante do OR=20,84. Como o risco relativo mede o risco enquanto a outra medida apenas estima, toda vez que for um estudo de coorte e for possível, deve-se dar preferência as medidas de risco relativo em vez da razão de chances. 67 3 Epidemiologia U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co 7. ANÁLISE DE SOBREVIDA As análises de sobrevida são gráficos que descrevem as probabilidades de o desfecho acontecer ao longo do tempo, podendo ou não ser estratificada em grupos de fatores prognósticos. Trata-se da medida mais completa dos estudos prognósticos, pois é pos- sível avaliar a probabilidade do desfecho em cada ponto do tempo. Porém, ela só pode ser calculada se o desfecho é dicotômico e só ocorre uma vez. O evento dicotômico é quando só há duas possibilidades presente/ausente ou sim/não. Se o desfecho não for morte/vida, mas seguir os mesmos pressupostos, pode-se usar o termo análise de tempo ou evento. Para fazer estimativa, o método estatístico mais habitual é a análise de Kaplan-Meier (Figura 5). Nessa análise, a probabilidade de sobreviver é calculada em intervalos de tempo. As pessoas que saem da pesquisa por perda de segmento são chamadas de censurados e saem da conta do denominador naquele período em diante. Figura 05. Representação gráfica de uma curva de sobrevida com a análise de Kaplan-Meier estratificada pelos fatores prognósticos de câncer Os valores são fictícios. Fonte: elaborada pela autora. Para calcular a probabilidade de sobrevida em um maior período de tempo, é ne- cessário multiplicar a probabilidade de cada intervalo. Por exemplo, para saber qual é a probabilidade de sobreviver após um ano do diagnóstico do câncer, é preciso multiplicar a probabilidade de ter sobrevivido a cada mês desse primeiro ano. Então, com o passar do tempo, a probabilidade se reduz cada vez mais. Na representação gráfica, as probabilidades já estão calculadas considerando a chance de sobreviver a todo aquele período. 68 Epidemiologia analítica 3 SAIBA MAIS SAIBA MAIS A Teorema do Produto de Probabilidade fala que, quando se quer saber a probabilidade de dois ou mais eventos acontecerem simultaneamente, é necessário multiplicar a probabilidade de cada evento acontecer individualmente (Vieira, 2016, p. 177). Por exemplo, acertar um número na loteria é mais fácil do que acertar três, que é mais fácil do que acertar seis, porque quanto mais eventos entrarem na conta, menor fica a probabilidade. A interpretação da cauda da curva deve ser feita com cuidado. Isso se deve pelo fato de que, quando a probabilidade está baixa, o número de pessoas vivas é baixo e qualquer al- teração terá um impacto muito maior, mas essa mudança não necessariamente representa o que pode acontecer. Por exemplo, a probabilidade de morrer quando se tem 1 morte: ` Em 100 pessoas acompanhadas é de 1%. ` Em 50 pessoas acompanhadas é de 2%. ` Em 25 pessoas acompanhadas é de 4%. ` Em 10 pessoas acompanhadas é de 10%. ` Em 5 pessoas acompanhadas é de 20%. No entanto, continua sendo uma única morte, mas dependendo da amostra ela tem um impacto muito maior na estatística. Por isso, no final da curva, em que o número de pessoas é baixo, é importante utilizar a probabilidade com cautela. Essa é a análise estatística principal dos estudos de prognósticos. Por ser comum o paciente perguntar para algum profissional de saúde qual é o seu prognóstico, deve-se refletir o que isso significa para o indivíduo e seus familiares. Nesse contexto, é impor- tante ressaltar que a resposta é uma probabilidade e que isso não, necessariamente, acontecerá. Desse modo, pode ser que a média de sobrevida das pessoas, após o diag- nóstico de câncer de mama bilateral, seja de 1,5 ano. Na maioria dos casos, as pessoas irão viver um tempo próximo a esse, mas é possível que o seu paciente sobreviva 1 mês ou 7 anos. As exceções são raras, mas elas podem acontecer. Ao conversar com o paciente e familiar é importante considerar diversos fatores e não só números. Estes artigos mostram curvas de sobrevidas: ` CENTEMERO, M. et al. Avaliação comparativa do valor prognóstico de quatro marca- dores bioquímicos de lesão miocárdica pós intervenções percutâneas utilizando stents coronarianos. Arquivos Brasileiros de Cardiologia, São Paulo, v. 83, n. especial, p. 53-58, dez. 2004. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi- d=S0066-782X2004001900010&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 10 abr. 2021. 69 3 Epidemiologia U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co ` MIGOWSKI, A.; SILVA, G. A. Sobrevida e fatores prognósticos de pacientes com câncer de próstata clinicamente localizado. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 44, n. 2, p. 344-352, abr. 2010. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi- d=S0034-89102010000200016&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 10 abr. 2021. 8. ENSAIO CLÍNICO Os ensaios clínicos são estudos experimentais que avaliam benefícios, malefícios, efi- cácia e efetividade de alguma intervenção. Considera-se como intervenção qualquer feito que tenha o objetivo de melhorar o quadro do paciente, seja uma medicação, um procedimento ou um atendimento. O desenho desse estudo (Figura 6) é a comparação de dois grupos, a intervenção e o controle. Os grupos devem ser os mais similares possíveis, sendo que a única diferença é a intervenção. Esse é um estudo longitudinal, depois de algum tempo avalia-se os resultados. O desfecho pode variar conforme a intervenção, podendo ser ausência de complicação, estabilidade da doença, entre outros fatores. DESENHO EXEMPLO Grupo Intervenção Pessoa que realizaram a intervenção Grupo controle Pessoa que não realizaram a intervenção Vacinados com princípio ativo Vacinados com princípio placebo Pessoas com presença do desfecho Pessoas com presença do desfecho Pessoas com ausência do desfecho Pessoas com ausência do desfecho Pessoas com a doença Pessoas com a doença Pessoas sem a doença Pessoas sem a doença Figura 06. Esquema do desenho de estudo de ensaio clínico Fonte: elaborada pela autora. 70 Epidemiologia analítica 3 O grupo controle pode ter outra intervenção diferente da estudada. Por princípios éti- cos de que devemos tratar o paciente, raramente o controle não tem intervenção. Se a pesquisa é de um medicamento novo para uma doença que não tem tratamento, nor- malmente se administra um placebo para que o sujeito não reconheça qual grupo ele faz parte. Entende-se como placebo uma substância que não tem princípio ativo, mas que apresente características como cor, cheiro e formato semelhantes à intervenção. EXEMPLO 11 SAIBA MAIS Ao testar uma vacina contra malária, o controle deverá ser com placebo, já que não existe outra medicação preventiva. Se a vacina é vermelha, com via de administração intramuscular, dose tes- tada de 0,5 ml e disponibilizada em frasco único, o placebo deve ter essas mesmas características. Se já existe um tratamento preconizado da doença, é importante que este seja a inter- venção do grupo controle. Pode-se comparar com o melhor tratamento disponível ou com o tratamento convencional da doença dependendo do objetivo do estudo. Exem- plificando: ao testar um novo quimioterápico para câncer de mama, o grupo controle pode ser a primeira droga de escolha do protocolo do serviço ou pode ser a droga que na literatura é mais eficaz. Se a melhor medicação não é disponível para a maioria da população brasileira, fazer essa comparação não ajudará o médico na hora de decidir qual remédio prescrever. Por isso, em algumas situações é melhor comparar com o tratamento convencional. Existem dois tipos de ensaio clínico: ele pode ser de superioridade ou de não infe- rioridade. É desuperioridade quando o objetivo do estudo é avaliar se a intervenção testada é melhor do que o controle. Ele é de não inferioridade quando o objetivo é so- mente comparar se uma intervenção tem um efeito minimamente igual ao do controle. Normalmente, estudos sobre medicamentos genéricos ou com um custo inferior são de não inferioridade, já que o objetivo é garantir que o novo remédio não seja pior que a medicação comercial. Para conhecer mais acerca dos tipos de ensaio clínico, recomendamos as leituras de: Superioridade RUELA, L. de O.; et al. Efetividade da acupuntura auricular no tratamento da dor oncológica: ensaio clínico randomizado. Rev. esc. enferm. USP, São Pau- lo, v. 52, 2018. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi- d=S0080-62342018000100477&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 28 abr. 2021. Não inferioridade LUNA, E. J. de A.; et al. Eficácia e segurança da vacina brasileira contra hepati- te B em recém-nascidos. Rev. Saúde Pública, São Paulo, v. 43, n. 6, p. 1014-1020, dez. 2009. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi- d=S0034-89102009000600013&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 28 abr. 2021. 71 3 Epidemiologia U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co Uma característica importante desse estudo é o controle e o gerenciamento das variá- veis com a finalidade de reduzir o viés de confundimento. Os grupos devem ser os mais semelhantes possíveis em suas características e tratamento, exceto pela intervenção pesquisada. Esse controle rigoroso das diversas variáveis aumenta a validade interna da pesquisa. Considere uma pesquisa sobre um novo tratamento para emagrecer. É preciso contro- lar nos dois grupos a realização de atividade física e a ingesta de alimentos para garan- tir que não são essas variáveis que causaram a redução de peso. Para isso, é possível medir essas variáveis para depois, na análise estatística, os ajustes serem realizados. Outras estratégias para controlar variáveis que podem influenciar na associação que se está tentando é solicitar que os sujeitos da pesquisa cumpram um regime, bem como orientações específicas, ou internar os pacientes, assim, todos participantes irão comer a mesma comida. Figura 07. Fatores associados com a melhora do quadro do paciente no grupo controle e no grupo intervenção Fonte: Adaptada de Fletcher, R. H.; Fletcher, S. W.; Fletcher, G. S. (2014, p. 147). Vários fatores estão associados à melhora do quadro de um paciente, como descrito na Figura 7 (Fletcher, R. H.; Fletcher, S. W.; Fletcher, G. S., 2014, p. 147). A melhora pode acontecer pela história natural da doença, ou seja, o quadro gripal melhora depois de sete dias, independentemente da medicação em uso. O efeito Hawthorne refere-se à mudança de comportamento e ao cuidado com a saúde que o sujeito tem por participar de uma pesquisa ou por estar recebendo um cuidado especial. Ou seja, só pelo fato de alguém ligar para você todos os dias perguntando como você está, pode te fazer melho- rar, não importando a medicação que está sendo usada. O efeito placebo é a melhora do quadro por fazer algum tratamento independentemente de ser um princípio ativo. Esses três fatores associados com a melhora do quadro do paciente devem ser iguais nos grupos controle e intervenção. Dessa forma, é ideal que todo o cuidado seja se- melhante nos dois grupos para que o único fator diferente seja o efeito da intervenção. 72 Epidemiologia analítica 3 Então, ao desenhar o estudo e o protocolo do cuidado é preciso levar em conta esses efeitos a fim de que o resultado terapêutico seja o único diferente entre os grupos. 8.1 AMOSTRAGEM NOS ENSAIOS CLÍNICOS A amostra do ensaio clínico segue as mesmas etapas de qualquer outra pesquisa com cri- térios de inclusão e exclusão, ou seja, quem está no grupo controle poderia estar no grupo intervenção. É importante manter a homogeneidade dos grupos. Para facilitar esse proces- so, é comum que o grupo controle seja selecionado pareado com o grupo intervenção. EXEMPLO 13 Se foi incluído um homem de 35 anos com peso adequado para idade no grupo intervenção, no grupo controle deve ser incluído também uma pessoa com essas mesmas características. O pareamento pode ter uma ou mais variáveis em comum, normalmente o sexo e a idade, mas, dependendo da característica do estudo outras podem ser incluídas. Normalmente, o número de pessoas no controle é a mesma que na intervenção, mas, às vezes, a proporção pode ser de 1:2, sendo que o grupo controle tem o dobro de pessoas que a intervenção. Denomina-se alocação o processo de definição de quem fará parte do grupo controle e quem será intervenção. O ideal é que esse processo seja randomizado, ou seja, a deci- são é feita por meio de um sorteio, em que todos os participantes têm a mesma chance de serem selecionados para o grupo intervenção. A alocação pode ser randomizada estratificada quando o sorteio ocorre dentro de estratos. A título de exemplificação: dentro das faixas etárias (estratos) será sorteado quem irá para determinado grupo. A alocação também pode ser randomizada por con- glomerados, na qual o sorteio é o local da pesquisa. Por exemplo, quatro unidades de saúde vão participar da amostra, o sorteio irá definir as duas unidades que serão contro- le e as duas que serão intervenção. A estratégia por conglomerado é boa por questões logísticas, já que não é preciso treinar os profissionais nos dois procedimentos. Como o ensaio clínico é um estudo experimental, é necessária uma padronização dos critérios de avaliação e do processo de intervenção. Para isso, é comum a criação de protocolo da pesquisa com descrição de cada etapa. Esses protocolos reduzem os vie- ses e aumentam a validade interna da pesquisa. Para reduzir o viés de confundimento, a amostra pode ser bem controlada, como em algumas etapas de estudos clínicos cuja população da pesquisa seja somente in- divíduos adultos saudáveis sem comorbidades e com hábitos de vidas saudáveis. Ao restringir participantes com possíveis fatores de confusão é mais fácil garantir a eficácia do tratamento. Para reduzir o viés de migração, são necessárias estratégias que garantam adesão ao tratamento e que o sujeito siga os cuidados corretamente. É importante assegurar que o sujeito não esteja realizando outro tratamento além do protocolado na pesquisa. Por exemplo, em uma pesquisa de uma nova medicação para ansiedade é preciso garantir que o único tratamento que os participantes estejam recebendo para ansiedade seja a 73 3 Epidemiologia U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co medicação proposta. Então, é preciso reforçar que práticas complementares, como me- ditação e uso de plantas medicinais não podem ser realizadas. Essas cointervenções podem influenciar no resultado da pesquisa. Outro risco que se corre é de o participante trocar de grupo por conta própria. Se ele sabe que está no grupo controle e tem acesso ao grupo intervenção, é possível que ele busque o tratamento experimental em vez de manter com o que foi solicitado. Para reduzir o viés de aferição, o avaliador é treinado para o preenchimento do ques- tionário, e os equipamentos utilizados são os mesmos. Tomemos como exemplo uma pesquisa sobre tratamento de ferida que irá acompanhar a cicatrização com fotos da lesão. O avaliador treinado irá tirar as fotos sempre na mesma máquina, no mesmo local, com a mesma iluminação, na mesma distância da lesão. Outra estratégia de redução de vieses é o cegamento na pesquisa. Isso significa que a pessoa “cega” não sabe dizer qual sujeito está em qual grupo (intervenção ou contro- le). Existem quatro momentos ou pessoas que podem ser “cegas” no ensaio clínico: a alocação, o paciente, o profissional que executa a intervenção e o profissional que faz a avaliação (Figura 8). Figura 08. Esquema com as diversas pessoas que podem ser “cegas” na pesquisa Fonte: elaborada pela autora. O sigilo da alocação é o cegamento nesse processo. Isso ocorre quandoquem faz a alocação não sabe dizer qual indivíduo foi para qual grupo. Logo, ao fazer o processo, a pessoa não pode saber que está decidindo onde essa pessoa vai estar. Saber quem é o sujeito pode influenciar na decisão de escolher qual grupo alocar. Para facilitar o sigilo desse processo, a seleção é feita com frequência com a ajuda do computador. 74 Epidemiologia analítica 3 O sujeito da pesquisa também deve ser cego para que ele não seja tendencioso nas suas condutas. É possível que a pessoa busque outras intervenções ou mude para hábitos mais saudáveis para querer ajudar o resultado da pesquisa. Já para os sujeitos que sabem que estão no grupo controle isso pode estimular a não adesão ao tratamen- to ou a uma maior taxa de desistência. IMPORTANTE! Uma dificuldade em cegar o sujeito da pesquisa é a obrigatoriedade do Termo de Consenti- mento Livre e Esclarecido (TCLE) que todo participante deve ler e assinar para poder parti- cipar do estudo. No TCLE está descrito o objetivo da pesquisa, o que pode fazer com que a pessoa saiba qual é o grupo que ela está. O profissional que realiza o cuidado também precisa ser cego para que ele preste a mesma atenção, independentemente do grupo que o paciente está. Esse profissional pode ser alguém do serviço onde a pesquisa está realizada ou mesmo algum pesqui- sador. Mas é importante que o cuidado seja o mesmo para que o efeito Hawthorne seja igual nos dois grupos. Uma estratégia que ajuda no cegamento do profissional é a alocação por conglomera- do. Nesse caso, os sujeitos daquele serviço de saúde são do mesmo grupo, isso impe- de que o profissional compare as pessoas e faça atendimento diferenciado. Para facilitar o cegamento do sujeito e do cuidador é importante que o placebo ou a outra intervenção do grupo controle seja muito similar à intervenção do estudo. Assim, eles não serão capazes de diferenciar um do outro. Se a pesquisa é sobre técnicas de curativo, as duas pomadas devem ser embaladas no mesmo frasco e quem fez a alocação deve nomear a embalagem por paciente e não por produto. Mas se as carac- terísticas são diferentes, o cuidador que deveria ser cego vai conseguir descobrir qual grupo o sujeito está. É essencial o profissional que faz a avaliação ser cego, já que a avaliação pode ser tendenciosa e muito mais detalhada no grupo intervenção. O avaliador pode ser alguém do serviço onde a pesquisa está sendo realizada ou pode ser algum pesquisador. Mas é impor- tante que ele siga o protocolo de avaliação da mesma maneira para todos os indivíduos. No caso da pesquisa de curativo em que a avaliação é por fotos, quem faz a análise das imagens deve realizá-la sem saber qual foi a pomada aplicada. Assim, a pessoa não será tendenciosa em procurar algum critério de melhora ao saber que o sujeito é do grupo intervenção. Tradicionalmente se classifica um estudo duplo cego usando como referência que o sujeito da pesquisa e o cuidador ou avaliador são cegos. É possível que a alocação, a intervenção e a avaliação sejam feitas pela equipe de pesquisa e, por isso, sejam con- sideradas como um ponto cego. Mesmo sendo o termo mais tradicional, é importante estar claro no estudo quais são os pontos cegos e quais foram as estratégias utilizadas para garantir isso. Quando um ensaio clinico não é cego, ele é classificado como aberto. 75 3 Epidemiologia U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co IMPORTANTE! Um estudo pode ser cego em um ou mais momentos: na alocação, com o sujeito da pesqui- sa, o profissional que realiza o cuidado e o profissional que realiza a avaliação. Um estudo randomizado é quando a alocação dos sujeitos nos grupos, intervenção ou con- trole é aleatória. Quando isso acontece, o estudo é cego no momento da alocação. Um estudo duplo cego tradicionalmente indica que o sujeito e o pesquisador são cegos. Nes- ses casos, normalmente o pesquisador será o cuidador e o avaliador. O ideal é o pesquisador deixar claro as estratégias para cegar as pessoas. 8.2 ANÁLISE DA PESQUISA A análise dos resultados pode ser feita com testes estatísticos e com medidas sumárias, que são Redução do Risco Relativo (RRR), Redução do Risco Absoluto (RRA) e Núme- ro Necessário para Tratar (NNT) (Rouquayrol; Gurgel, 2018, p. 155). Como o desenho do estudo é semelhante ao estudo coorte, a análise de dados também é similar. É pos- sível calcular a incidência do desfecho nos dois grupos. A RRR é a diferença das incidências do desfecho entre os grupos dividido pela incidên- cia do grupo controle. A RRA representa o risco absoluto com a diferença da incidência do desfecho entre cada grupo. O NNT informa quantas pessoas são necessárias tratar para evitar um desfecho ruim. Fórmula da Redução do Risco Relativo (RRR): 10 Incidência desfechoControle Incidência desfecho IntervençãoRRR Incidência desfechoControle − = A medida que as pessoas comumente vão utilizar no ensaio clínico é a eficácia do tra- tamento, que é a redução do risco relativo em porcentagem. Para fazer esse cálculo, basta multiplicar por 100 o valor de RRR. EXEMPLO 14 Um ensaio clínico para avaliar a efetividade de uma vacina na prevenção de COVID-19 uti- lizou como desfecho as possíveis classificações de gravidade da doença. A pesquisa acom- panhou 724 pessoas do grupo intervenção e 706 do grupo placebo. No grupo intervenção 85 foram sintomáticos e 7 tiveram casos mais graves que necessitaram de assistência. No grupo placebo 167 foram sintomáticos e 31 tiveram casos mais graves que necessitaram de assistência. Calcule a eficácia da vacina na prevenção de casos sintomáticos. 76 Epidemiologia analítica 3 Casos sintomáticos Tabela 07. Tabela 2 x 2 completa SINTOMÁTICOS ASSINTOMÁTICOS + NÃO DOENTES TOTAL INTERVENÇÃO 85 639 724 PLACEBO 167 539 706 TOTAL 252 1178 1430 Fonte: elaborada pela autora. 85 0,1174 724 númerode sintomáticos na IntervençãoIncidência na Intervenção total de Intervenção = = = 167 0, 2365 706 númerode sintomáticos noControleIncidência noControle total deControle = = = Incidência desfechoControle Incidência desfecho IntervençãoRRR Incidência desfechoControle − = substituir os valores 0,2365 0,1174 0,2365 RRR − = realiza a subtração 0,1191 0,2365 RRR = realiza a divisão 0,5036RRR = multiplica por 100 Eficácia = 50,36% A vacina reduz em 50,36% a chance de uma pessoa ser caso sintomático de COVID-19, quando comparado a pessoas não vacinadas. A análise dos dados pode ocorrer pela intenção de tratar ou pelo tratamento que de fato os sujeitos receberam (denominada análise explanatória). Essa escolha deve ser defi- nida e ser clara nos resultados da pesquisa. É uma decisão que acontece quando há cruzamento de grupos, ou seja, apesar de a pessoa estar no grupo controle ela recebeu o tratamento intervenção. Normalmente, a análise é pela intenção de tratar, já que é esse o olhar que importa para o profissional de saúde. Por exemplo, um médico precisa saber qual é a eficácia do remédio que ele prescreve para o paciente, mesmo que se tenha o risco de o paciente usar outros tratamentos e não fazer uso da medicação indicada. A análise explanatória é importante para saber, de fato, quão eficaz é tratamento quan- do o paciente realmente o realiza. O grande problema dessa análise é que a amostra 77 3 Epidemiologia U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co pode estar enviesada, uma vez que a análise dos grupos não segue a alocação definida no início da pesquisa. Os ensaios clínicos avaliam a eficácia e a efetividade do tratamento. Define-se eficácia a avaliação da intervenção em condições ideais. Ela ocorre em ensaios clínicos com uma população de saudáveis e com o controle rigoroso das variáveis. Por conta disso, essa pesquisa tem baixo viés de confundimento e alta validade interna. Em contrapar- tida, há baixa capacidade de generalização, já que a amostra é tão restrita e, portanto, não representa a população geral. Ao restringir a população dapesquisa para somente pessoas saudáveis, a validade interna aumenta, mas a capacidade de generalização dos resultados diminui, visto que no mundo real são poucas as pessoas que são saudáveis. Para conseguir melhorar a validade externa sem alterar a população, pode-se aumentar o número de participantes e os locais de coleta de dados. Já a efetividade é definida como a avaliação da intervenção em condições normais. Ela ocorre em ensaios clínicos com uma população com características diferentes, como presença de comorbidades. Essa pesquisa tem maior chance de viés de confundimento e, portanto, pode apresentar validade interna baixa. Contudo, se for possível controlar os fatores de confusão, a pesquisa terá uma alta capacidade de generalização. GLOSSÁRIO Eficácia refere-se ao impacto que uma ação tem, por exemplo, condições ótimas ou experi- mentais (Rouquayrol; Gurgel, 2018, p. 688). Efetividade avalia o efeito que uma ação alcança em aplicação prática ou condições habitu- ais (Rouquayrol; Gurgel, 2018, p. 688). A validade externa define o quanto o resultado pode representar a população. Está associa- da à capacidade de generalização da pesquisa (Rouquayrol; Gurgel, 2018, p. 161). A pesquisa clínica para avaliar novos tratamentos medicamentosos passa por quatro fases. Antes dessas etapas são realizados estudos pré-clínicos em laboratórios e com animais. O ensaio clínico de fase I avalia a faixa terapêutica de segurança e os possí- veis efeitos colaterais. Ela descreve as características do fármaco como qual é a via de eliminação e a meia-vida da substância. O número de participantes é muito pequeno, com menos de 100 pessoas, e não é necessário um grupo controle. A fase II é um ensaio clínico de avaliação de eficácia, avaliação entre doses e eficácia e investigação de efeitos colaterais. Dessa forma, a população é de pessoas saudáveis. Há um grupo controle e a amostra é pequena de algumas centenas. A fase III é um ensaio clínico de efetividade randomizado e avalia os reais efeitos do tratamento na população. Tem grupo controle e a amostra é grande, com mais de 1.000 pessoas. Com o resultado da fase III publicado a droga pode ser utilizada para uso co- mercial a depender da aprovação do órgão regulador. 78 Epidemiologia analítica 3 A fase IV do estudo clínico é a vigilância pós-comercialização. Nessa etapa, a coleta de dados é feita a partir de notificação de efeitos adversos que só serão detectados com um uso amplo da medicação. Alguns medicamentos já foram retirados do mercado após a fase IV avaliar efeitos colaterais que não compensavam os benefícios da medicação. Por ser um estudo experimental, as duas principais desvantagens são o custo elevado e a logística complexa. O gasto é alto, já que tudo deve ser fornecido pela equipe da pesquisa. A logística é maior do que nos estudos observacionais, uma vez que é preciso realizar a intervenção e não somente avaliar o que já foi feito. Outro fator que influencia é as diversas etapas necessárias para manter as pessoas “cegas”. Além disso, outro motivo que dificulta a execução é a participação das pessoas. Se for um estudo de eficácia, atu- almente é difícil conseguir pessoas saudáveis. Também, as pessoas podem ter medo de fazerem parte do grupo intervenção ou não quererem participar se for controle. Em alguns casos, os estudos experimentais não são possíveis de serem realizados. Uma das justificativas para isso é o princípio ético da não maleficência, ou seja, não se pode causar mal para o sujeito da pesquisa. Por exemplo, quando se investigava uma possível associação de fumo com câncer de pulmão, não foi possível fazer um ensaio clínico, já que não se podia incentivar o consumo de uma substância que podia fazer mal às pessoas. Em outros casos, os estudos observacionais conseguem respostas mais rápidas e com um custo menor. IMPORTANTE! O ensaio clínico randomizado duplo cego é considerado o padrão-ouro dos estudos científi- cos. Entende-se como padrão-ouro a indicação mais robusta, que é um padrão de referên- cia, seja ele um estudo, método diagnóstico ou tratamento (Fletcher, R. H.; Fletcher, S. W.; Fletcher, G. S., 2014, p. 117). Então, deve-se sempre almejar realizar um ensaio clínico para avaliar uma intervenção em vez de estudos observacionais. CONCLUSÃO Essa unidade descreve os desenhos de estudos mais clássicos. Uma hipótese de pes- quisa pode ser investigada com diversos desenhos. A escolha do tipo de estudo depen- de dos recursos e acessos disponíveis além de questões éticas. Por exemplo, uma pesquisa tem como hipótese que fazer atividade física reduz o risco de ter câncer de mama. A seguir podemos colocar os diversos tipos de estudos e como seria a coleta de dados: ` Estudo transversal: fazer um levantamento perguntando quem faz atividade física detalhando frequência, tipo e quantidade e quem tem ou não cancer de mama. Esse estudo é descritivo não longitudinal que não foi abordado nessa unidade. ` Estudo coorte: acompanhamento por 10 anos de jovens com 40 a 45 anos de idade avaliando esporadicamente a atividade física e identificação dos casos no- vos de câncer. Esse estudo é observacional, longitudinal e que acompanha um grupo de pessoas. Normalmente os grupos de comparação são divididos pela presença ou ausência da variável independente. 79 3 Epidemiologia U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co ` Estudo caso-controle: escolha de pessoas com câncer de mama e de alguma familiar como grupo controle. Avaliar a atividade física que as pessoas fizeram nos 10 anos anteriores. Esse estudo é observacional, longitudinal e que inicia identificando pessoas com a variável dependente (desfecho) e depois avaliando possíveis fatores de risco. ` Ensaio clínico: por 10 anos fornecer atividade física para jovens com 40 a 45 anos de idade, sendo que um grupo a atividade é de baixo impacto e intensidade e o outro é com alta intensidade. Identifica-se ao longo do tempo os casos novos de câncer. Esse estudo é experimental e longitudinal. 80 Epidemiologia analítica 3 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA FILHO, N.; BARRETO, M. L. Epidemiologia e saúde: fundamentos, métodos e aplicações. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2011. FLETCHER, R. H.; FLETCHER, S. W.; FLETCHER, G. S. Epidemiologia clínica: elementos essenciais. 5. ed. Porto Alegre: ArtMed, 2014. ROUQUAYROL, M. Z.; GURGEL, M. Rouquayrol: epidemiologia e saúde. 8. ed. Rio de Janeiro: Medbook, 2018. VIEIRA, S. Introdução à bioestatística. 5. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2016. 81 3 Epidemiologia U ni ve rs id ad e S ão F ra nc is co