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QAS 1. Definir diarreia e classificar os quadros diarreicos quanto à duração, a magnitude e o local do acometimento primário (altas e baixas). DIARREIA: é definida como o aumento da frequência das evacuações (≥3 evacuações por dia) e/ou alteração da consistência das fezes, que se tornam líquidas ou pastosas, conforme critérios da Organização Mundial da Saúde (OMS). A definição também pode incluir aumento do peso fecal diário (>200 g/dia em adultos) em contextos clínicos mais precisos. É um sintoma, não uma doença, resultante de desequilíbrios na absorção e secreção de água e eletrólitos no trato gastrointestinal. A diarreia pode ser acompanhada de sintomas como urgência evacuatória, cólicas abdominais, tenesmo, febre ou desidratação, dependendo da etiologia. Quadro Clínico Geral - Fezes líquidas ou pastosas: Aumento do conteúdo de água nas fezes (>75% de água, comparado a 60-75% em fezes normais). - Frequência aumentada: Evacuações mais frequentes que o habitual para o indivíduo. - Sintomas associados: Cólicas abdominais (devido a espasmos intestinais). Urgência evacuatória (sensação imperiosa de evacuar). Tenesmo (sensação de evacuação incompleta, comum em diarreias de intestino grosso). Febre (especialmente em causas infecciosas ou inflamatórias). Desidratação (mais comum em diarreia aguda, com sinais como sede, mucosas secas, taquicardia, hipotensão ou oligúria). Perda de peso (em diarreia crônica ou má absorção) AGUDA: A diarreia aguda é caracterizada por início súbito e duração inferior a 14 dias. É geralmente causada por infecções (virais, bacterianas, parasitárias), intoxicações alimentares ou ingestão de substâncias osmoticamente ativasFezes líquidas, frequentemente acompanhadas de cólicas abdominais, náuseas, vômitos ou febre.Geralmente autolimitada, resolvendo-se em poucos dias com hidratação adequada.Pode ser grave em crianças, idosos ou imunocomprometidos devido à desidratação. PERSISTENTE: Transição entre diarreia aguda não resolvida e crônica.Pode apresentar sintomas sistêmicos como febre baixa, fadiga ou desnutrição.Mais comum em crianças em países em desenvolvimento ou pacientes imunocomprometidos.Risco de complicações como desidratação crônica ou má absorção. Com duração de 2-4 semanas . CRÔNICA: A diarreia crônica é definida por duração superior a 90 dias. Geralmente está associada a condições não infecciosas, como doenças inflamatórias intestinais (DII), síndromes de má absorção, intolerâncias alimentares, doenças funcionais ou tumores neuroendócrinos. Sintomas intermitentes ou contínuos por longo período. Pode estar associada a perda de peso, anemia, deficiência nutricional ou sangue nas fezes.Fezes podem variar entre líquidas e pastosas, dependendo da causa.Requer investigação diagnóstica detalhada Complicações: Desidratação, desequilíbrios eletrolíticos (hipocalemia, hiponatremia), acidose metabólica, insuficiência renal (em casos graves) e má nutrição (em diarreia crônica). DIARREIA ALTA: A diarreia alta é causada por alterações no intestino delgado, geralmente relacionadas à má absorção ou secreção aumentada no lúmen, afetando a absorção de nutrientes e água. É típica de condições que comprometem a mucosa ou a função do intestino delgado. Características: A diarreia alta é marcada por fezes líquidas ou semilíquidas, com volume elevado, geralmente superior a 500 mL por dia em adultos. As fezes podem ser gordurosas (esteatorreia) em casos de má absorção, apresentando aparência oleosa, flutuante e com odor fétido. A frequência das evacuações é moderada, menor que na diarreia baixa, mas o alto volume contribui para perdas significativas de água, eletrólitos e nutrientes. As fezes podem conter restos alimentares não digeridos, refletindo a incapacidade do delgado de absorver adequadamente. A dor abdominal, quando presente, é difusa ou localizada na região peri-umbilical, e a diarreia está frequentemente associada a distensão abdominal e flatulência. Sinais e Sintomas: Pacientes com diarreia alta apresentam diarreia volumosa, que pode ser acompanhada de esteatorreia, especialmente em condições como doença celíaca ou insuficiência pancreática. A perda de peso é comum devido à má absorção de nutrientes, assim como a fadiga, resultante de deficiências vitamínicas (como vitamina B12, ferro ou vitamina D) e desnutrição. A distensão abdominal e a flatulência são frequentes, causadas pela fermentação de nutrientes não absorvidos. Em casos graves, a desidratação pode se manifestar com sinais como taquicardia, pele seca e mucosas desidratadas. Outros sinais incluem anemia (por deficiência de ferro ou B12), edema (devido à hipoalbuminemia) e cãibras musculares (por hipocalemia ou hipomagnesemia). A gravidade dos sintomas depende da causa subjacente, como infecções entéricas, doença de Crohn ou síndromes de má absorção. DIARREIA BAIXA: A diarreia baixa resulta de alterações no intestino grosso, geralmente por inflamação, infecção ou disfunção funcional, levando a fezes com sangue, muco ou pus e sintomas de irritação colônica (tenesmo, urgência). Características: A diarreia baixa é caracterizada por fezes líquidas ou pastosas, com volume reduzido, geralmente inferior a 200–300 mL por dia, mas com alta frequência de evacuações. As fezes podem conter muco, sangue ou pus, especialmente em casos de inflamação ou infecção, como na colite ulcerativa ou colite por Clostridium difficile. A urgência fecal e o tenesmo (sensação de evacuação incompleta) são características marcantes, refletindo a irritação colônica. A dor abdominal é tipicamente localizada no quadrante inferior, especialmente à esquerda, e pode ser aliviada após a evacuação. A frequência elevada das evacuações, mesmo com baixo volume, causa desconforto significativo e impacta a qualidade de vida Sinais e Sintomas: Os pacientes com diarreia baixa relatam evacuações frequentes, muitas vezes com urgência e tenesmo, acompanhadas de fezes que podem conter sangue ou muco, especialmente em colites inflamatórias ou infecciosas. A dor abdominal tipo cólica, localizada na parte inferiore do abdômen, é comum e frequentemente aliviada após a evacuação. Febre pode estar presente em casos de infecção ou inflamação ativa, como em colite ulcerativa ou colite por Shigella. A desidratação é menos grave que na diarreia alta, mas pode ocorrer em episódios prolongados. Outros sinais incluem anemia (em casos de sangramento crônico, como na colite ulcerativa) e fadiga. Em condições funcionais, como a síndrome do intestino irritável, sintomas como inchaço e alternância com constipação podem predominar, sem sinais sistêmicos graves. ● Classificação quanto à magnitude: Leva em consideração a gravidade da desidratação e é dividida em três categorias. ○ Leve: Não há sinais de desidratação. ○ Moderada: Apresenta sinais de desidratação leves ou moderados, sendo possível realizar a reidratação por via oral. ○ Grave: Há desidratação intensa, com ou sem distúrbios eletrolíticos, necessitando de terapia venosa. 2. Descrever os processos fisiopatológicos das diarreias, correlacionando-os com as fases da digestão. DIARREIA OSMÓTICA: Resulta da presença de solutos não absorvidos no lúmen intestinal, que atraem água por osmose, aumentando o volume fecal. Melhora com jejum ou exclusão do soluto; gap osmótico fecal >50 mOsm/kg; pH fecal ácido (osmoticamente ativos (ex.: lactose, manitol) não são absorvidos no intestino delgado devido a deficiências enzimáticas ou má absorção e aumentam a osmolaridade luminal, atraindo água para o lúmen intestinal. No cólon, bactérias fermentam os solutos, produzindo ácidos graxos de cadeia curta e gases (hidrogênio, metano), contribuindo para diarreia, flatulência e cólicas. Mais associada ao rotavírus, ocorre devido ao excesso de conteúdo no intestino, resultando em retenção de água na luz do tubo digestivo, tipicamente cessa com o jejum. Correlação com a digestão: Durante a digestão no intestino delgado, enzimas pancreáticas e da borda em escova degradam carboidratos em monossacarídeos que serão absorvidos pelas vilosidades. Na deficiência de enzimas como a lactase, a lactose não é digerida nem absorvida, permanecendo na luz intestinal. A fermentação bacteriana da lactose aumenta ainda mais a carga osmótica, causando distensão abdominal, dor e diarreia aquosa. Esse tipo de diarreia tende a cessar com o jejum, já que a ingestão do substrato é o gatilho principal. DIARREIA SECRETÓRIA: Caracterizada pela secreção ativa de água e eletrólitos (sódio, cloro, bicarbonato) no lúmen intestinal, geralmente desencadeada por toxinas bacterianas, hormônios ou mediadores inflamatórios. Não melhora com jejum, pois o mecanismo é independente da ingestão alimentar; gap osmótico fecal 1 L/dia). Predominantemente aguda (ex.: cólera), mas pode ser crônica em casos raros (ex.: tumores neuroendócrinos) Fezes: Aquosas, extremamente volumosas, incolores ou claras (tipo "água de arroz" em cólera), sem sangue, muco ou pus, exceto em casos mistos. Sintomas: Cólicas abdominais leves a moderadas devido à distensão intestinal.Desidratação grave, com hipotensão, taquicardia, mucosas secas, oligúria ou choque hipovolêmico, especialmente em crianças.Náuseas e vômitos, comuns em infecções virais ou bacterianas.Febre leve a moderada, se infecciosa (ex.: E. coli enterotoxigênica).Em casos crônicos , perda de peso, hipocalemia ou flushing. Fisiopatologia: Toxinas (ex.: toxina do Vibrio cholerae) ou hormônios (ex.: VIP) ativam canais iônicos (ex.: CFTR) na mucosa intestinal, aumentando a secreção de cloro e bicarbonato para o lúmen. A água segue passivamente por osmose, resultando em fezes aquosas volumosas. A absorção de sódio e água é reduzida, exacerbando a perda hídrica. Esse processo é independente da digestão, pois a secreção ocorre mesmo em jejum. Correlação com a Digestão: A diarreia secretória não está diretamente ligada à digestão de nutrientes, mas sim à ativação patológica de mecanismos de secreção intestinal. Durante a digestão normal, o intestino delgado mantém um equilíbrio entre absorção e secreção de eletrólitos. Toxinas bacterianas (ex.: cólera) ou hormônios (ex.: VIP) desregulam esse equilíbrio, promovendo secreção excessiva de água e eletrólitos, independentemente da ingestão alimentar. Isso explica a persistência dos sintomas em jejum e o volume elevado das fezes. DIARREIA POR ALTERAÇÃO DE MOTILIDADE: Resulta de trânsito intestinal acelerado, reduzindo o tempo de absorção de água, sem alterações significativas na secreção ou absorção de eletrólitos. Predominantemente funcional, associada a condições como síndrome do intestino irritável (SII); fezes pastosas, sem sangue; sintomas desencadeados por estresse ou dieta. Geralmente crônica, raramente aguda. Fezes: Pastosas ou líquidas, volume moderado, sem sangue, muco ou pus. Pode alternar com constipação (ex.: SII mista). Sintomas:Cólicas abdominais desencadeadas por estresse, ansiedade ou refeições, aliviadas pela evacuação.Sensação de evacuação incompleta (sem tenesmo verdadeiro).Flatulência ou distensão abdominal leve.Exacerbação por alimentos (ex.: gorduras, cafeína) ou fatores psicológicos.Ausência de febre ou sintomas sistêmicos. Fisiopatologia: A hipermotilidade intestinal reduz o tempo de contato das fezes com a mucosa, diminuindo a absorção de água. Desregulação do eixo cérebro-intestino, com hiperatividade do sistema nervoso entérico ou resposta exagerada a estímulos (ex.: distensão), contribui para o trânsito acelerado. Hipersensibilidade visceral pode amplificar a percepção de desconforto. Correlação com a Digestão: Durante a digestão, a motilidade intestinal é regulada para otimizar a absorção de nutrientes e água. Em condições como SII, estímulos como estresse ou alimentos específicos (ex.: gorduras) desencadeiam contrações intestinais anormais, acelerando o trânsito e reduzindo a reabsorção de água no cólon. A diarreia ocorre sem alteração na digestão de nutrientes, mas com impacto na consistência fecal devido ao trânsito rápido. DIARREIA INVASIVA Subtipo de diarreia inflamatória, causada por patógenos que invadem a mucosa intestinal, gerando ulcerações e inflamação localizada. Caracterizada por disenteria (fezes com sangue predominante); leucócitos fecais positivos; quase sempre aguda, associada a infecções bacterianas ou parasitárias. Fezes: Pequeno volume, frequentes, com sangue (disenteria), muco ou pus. Sintomas:Tenesmo intenso e urgência evacuatória.Dor abdominal em cólica, frequentemente no quadrante inferior esquerdo ou região retal.Febre alta, acompanhada de calafrios e mal-estar geral.Desidratação moderada, menos grave que na secretória.Anorexia e fraqueza. Fisiopatologia: Patógenos (ex.: Shigella, Entamoeba histolytica) invadem a mucosa do cólon ou íleo terminal, causando destruição epitelial e ulcerações. A invasão estimula citocinas e quimiocinas, atraindo neutrófilos, que amplificam a inflamação. Ulcerações liberam sangue e muco, e a barreira comprometida aumenta o risco de translocação bacteriana. Correlação com a Digestão: A diarreia invasiva não interfere diretamente na digestão de nutrientes no intestino delgado, mas afeta a função do cólon. Durante a digestão normal, o cólon reabsorve água e eletrólitos. A invasão da mucosa colônica por patógenos compromete essa reabsorção, enquanto ulcerações causam exsudação de sangue e muco, resultando em fezes sanguinolentas e tenesmo. DIARREIA INFLAMATÓRIA: Resulta de inflamação da mucosa intestinal, com dano epitelial e infiltração de leucócitos, levando à exsudação de muco, sangue ou pus. Caracterizada por fezes com sangue/muco; presença de leucócitos fecais; pode ser aguda (ex.: Clostridium difficile) ou crônica (ex.: doenças inflamatórias intestinais - DII). Fezes: Líquidas ou pastosas, com sangue (hematochezia), muco ou pus, volume moderado. Sintomas:Tenesmo e urgência evacuatória. Dor abdominal em cólica, geralmente no quadrante inferior esquerdo ou retal.Febre moderada a alta (infecciosa) ou baixa/intermitente (DII).Mal-estar, anorexia, fadiga. Em casos crônicos: Perda de peso, anemia, sintomas extraintestinais (artralgia, uveíte, eritema nodoso). Fisiopatologia: Inflamação causada por infecções (ex.: C. difficile), autoimunidade (ex.: retocolite ulcerativa) ou isquemia danifica a mucosa. Citocinas pró-inflamatórias (TNF-α, IL-1) e neutrófilos reduzem a absorção e promovem exsudação. Ulcerações ou erosões liberam sangue e muco, contribuindo para os sintomas. Correlação com a Digestão: A inflamação no cólon (ou, raramente, no intestino delgado) compromete a reabsorção de água e eletrólitos, que ocorre principalmente no cólon durante a digestão. A mucosa inflamada exsuda sangue e muco, enquanto a função absortiva é reduzida, levando a fezes líquidas com componentes inflamatórios. Em DII, a inflamação crônica pode afetar a digestão indireta por má absorção secundária. DIARREIA EXSUDATIVA: Causada por lesões graves da mucosa intestinal (ulcerações, erosões, infiltração neoplásica), resultando na exsudação de sangue, muco ou proteínas. Caracterizada por fezes com sangue/muco; perda proteica (hipoalbuminemia); predominante em condições crônicas (ex.: DII, câncer colorretal), raramenteaguda (ex.: colite isquêmica). Fezes: Pastosas ou líquidas, com sangue (visível ou oculto), muco ou pus, volume variável. Pode alternar com constipação.Sintomas:Dor abdominal crônica, frequentemente localizada.Tenesmo e urgência evacuatória.Perda de peso, anemia (perda crônica de sangue), fadiga.Febre baixa ou intermitente (DII) ou ausente (câncer). Sintomas extraintestinais em DII: Artralgia, lesões cutâneas, uveíte.Edema periférico devido a hipoalbuminemia. Fisiopatologia: Lesões mucosas (ulcerações, tumores) causam perda de plasma, eritrócitos e proteínas. Inflamação crônica ou infiltração neoplásica compromete a barreira intestinal. Fístulas ou abscessos (ex.: doença de Crohn) agravam a exsudação, enquanto a perda proteica leva a hipoalbuminemia. Correlação com a Digestão: A digestão no intestino delgado geralmente não é afetada diretamente, mas a exsudação no cólon compromete a reabsorção de água e eletrólitos. Em DII, ulcerações extensas podem causar má absorção secundária de nutrientes, enquanto tumores podem obstruir parcialmente o lúmen, alterando o trânsito e contribuindo para diarreia com sangue. DIARREIA ALTA: Fisiopatologia: Inflamação (ex.: DII, infecções) ou irritação do cólon compromete a reabsorção de água, causando exsudação de sangue/muco. Patógenos invasivos ou citocinas inflamatórias danificam a mucosa, gerando ulcerações. Em condições funcionais (ex.: SII), o trânsito acelerado reduz a formação de fezes sólidas.Correlação com a Digestão: O cólon não participa diretamente da digestão de nutrientes, mas reabsorve água e eletrólitos. A inflamação (ex.: retocolite ulcerativa) ou invasão (ex.: Shigella) compromete essa função, enquanto ulcerações causam exsudação, resultando em fezes líquidas com sangue/muco. Em SII, a motilidade alterada afeta a reabsorção sem impactar a digestão. DIARREIA BAIXA: Fisiopatologia: Má absorção (ex.: doença celíaca) ou secreção aumentada (ex.: toxinas) no intestino delgado leva a fezes aquosas/gordurosas. Danos à mucosa (ex.: atrofia vilositária) ou deficiência enzimática (ex.: lactase) reduzem a absorção. Toxinas (ex.: cólera) estimulam secreção de eletrólitos.Correlação com a Digestão: O intestino delgado é o principal local de digestão/absorção de nutrientes. Danos às vilosidades (ex.: rotavírus, doença celíaca) ou secreção excessiva (ex.: toxinas) comprometem a hidrólise/absorção de carboidratos, gorduras e proteínas, aumentando a osmolaridade luminal e gerando fezes volumosas ou gordurosas. https://sistema.editorapasteur.com.br/uploads/pdf/publications_chapter/DIARREIA-02d6d065-13b7-4341-a829-de3a09b05da1.pdf https://sistema.editorapasteur.com.br/uploads/pdf/publications_chapter/DIARREIA%20AGUDA:%20ASPECTOS%20CL%C3%8DNICOS,%20DIAGN %C3%93STICOS%20E%20PREVENTIVOS-2a35ac45-5de1-4ca5-bec9-ced27aaf047f.pdf 3. Identificar o quadro clínico, a epidemiologia e a etiologia das diarreias agudas e crônicas nos adultos. 4. Explicar os mecanismos de agressão envolvidos nas diarreias agudas e as manifestações abdominais decorrentes destes quadros. A diarreia aguda geralmente manifesta-se como quadro de instalação súbita em resposta a estímulos variáveis, sendo os principais associados a agentes infecciosos com evolução autolimitada. O organismo saudável possui mecanismos de defesa que permitem resistir aos agentes lesivos e que incluem: (1) o suco gástrico, que é letal a muitos organismos pelo baixo pH; (2) a motilidade intestinal, que dificulta a aderência dos microrganismos à parede do intestino; (3) os sistemas linfático e imune, que promovem a defesa celular e humoral contra os agentes nocivos. A falha desses mecanismos e/ou a alta agressividade do estímulo agressor do intestino causam a diarreia. As diarreias agudas (duraçãoenterotoxina termoestável (ST), que age pela ativação da guanilato-ciclase e elevação do GMPc intracelular, promovendo também diarreia secretora. Por outro lado, as citotoxinas destroem diretamente as células da mucosa intestinal, levando à formação de fezes com sangue e presença de células inflamatórias – quadro clínico típico da síndrome disentérica. Patógenos como Shigella dysenteriae tipo 1, E. coli produtora da toxina Shiga, Vibrio parahaemolyticus e Clostridium difficile são exemplos de microrganismos que produzem esse tipo de toxina. Essas citotoxinas estão frequentemente associadas a quadros graves, como colite hemorrágica e síndrome hemolítico-urêmica. Já as neurotoxinas são geralmente produzidas fora do hospedeiro, em alimentos contaminados, e provocam sintomas rapidamente após a ingestão, com destaque para náuseas e vômitos. As toxinas produzidas por Staphylococcus aureus e Bacillus cereus atuam no sistema nervoso central e são responsáveis por quadros clínicos de intoxicação alimentar aguda com predominância de vômitos. Invasão: A disenteria pode ser causada tanto pela produção de citotoxinas quanto pela invasão direta e destruição das células da mucosa intestinal. Microrganismos como Shigella e E. coli enteroinvasiva invadem o epitélio intestinal, multiplicam-se dentro das células e se disseminam para células vizinhas, provocando inflamação intensa. Já a Salmonella causa diarreia inflamatória por invasão da mucosa, mas geralmente sem destruição dos enterócitos ou quadro típico de disenteria. Algumas espécies, como Salmonella Typhi e Yersinia enterocolitica , são capazes de atravessar a mucosa intestinal íntegra, se replicar nas placas de Peyer e linfonodos mesentéricos, e depois atingir a corrente sanguínea, ocasionando febre entérica, caracterizada por febre, cefaleia, dor abdominal, esplenomegalia, leucopenia e bradicardia relativa. Defesas do Hospedeiro: Em função do grande número de microrganismos ingeridos a cada refeição, o hospedeiro normal combate um constante influxo de potenciais patógenos entéricos. O estudo das infecções que acometem pacientes com alterações dos mecanismos de defesa conduziu a uma melhor compreensão dos diferentes modos pelos quais o hospedeiro normal se protege das doenças. Microbiota Intestinal: O grande número de bactérias que normalmente habita o intestino (a microbiota intestinal) atua como um importante mecanismo de defesa, evitando a colonização por potenciais patógenos entéricos. Os indivíduos com menor número de bactérias intestinais, como lactentes em que ainda não houve uma colonização entérica normal ou pacientes que recebem antibióticos, correm risco mais alto de infecções por patógenos entéricos. A composição da flora intestinal é tão importante quanto o número de microrganismos presentes. Mais de 99% da microbiota colônica normal é constituída de bactérias anaeróbias, e o pH ácido, bem como os ácidos graxos voláteis produzidos por esses microrganismos, parecem ser fundamentais na resistência à colonização. Ácido Gástrico: O pH ácido do estômago é uma barreira importante aos patógenos entéricos, e uma frequência maior de infecções decorrentes de Salmonella, G. lamblia e de uma variedade de helmintos já foi descrita em pacientes submetidos à cirurgia gástrica ou que sofrem de acloridria por qualquer outra razão. De modo semelhante, a neutralização da acidez gástrica com antiácidos, inibidores da bomba de prótons ou bloqueadores H2 – prática comum no tratamento de pacientes hospitalizados – eleva o risco de colonização entérica. Além disso, alguns microrganismos podem sobreviver à extrema acidez do ambiente gástrico; os rotavírus e a Shigella, por exemplo, são altamente estáveis em meio ácido. Motilidade Intestinal: A peristalse normal é o principal mecanismo para a eliminação das bactérias do intestino delgado proximal. Quando há comprometimento da motilidade intestinal (p. ex., pelo tratamento com opiáceos ou com outros fármacos inibidores da motilidade, por anormalidades anatômicas ou em estados de hipomotilidade), a frequência de crescimento bacteriano excessivo e de infecção do intestino delgado por patógenos entéricos é maior. Alguns pacientes cuja infecção com Shigella é tratada com cloridrato de difenoxilato associado à atropina apresentam um prolongamento da febre e da eliminação dos microrganismos, enquanto os pacientes tratados com opiáceos para gastrenterite leve por Salmonella têm maior frequência de bacteriemia do que os que não são tratados com opiáceos. Mucina Intestinal: Uma complexa camada de muco produzida por células secretoras especializadas cobre o estômago, o intestino delgado e o intestino grosso, afastando a microbiota comensal do epitélio. A espessura e a constituição dessa barreira mucosa varia ao longo do trato intestinal. A barreira mucosa é renovada rapidamente e compreende glicoproteínas e uma gama de moléculas antimicrobianas e imunoglobulinas secretadas dirigidas contra antígenos microbianos específicos. Os patógenos entéricos desenvolveram diversas estratégias para vencer essa barreira e, assim, alcançar o epitélio subjacente e causar doença. Por exemplo, os patógenos podem penetrar na barreira mucosa secretando enzimas que degradam o muco ou através da motilidade mediada por flagelos. Alguns microrganismos, como Shigella, secretam toxinas que podem se difundir através da barreira mucosa e romper o epitélio subjacente. A redução resultante na produção de muco permite que os patógenos alcancem a superfície celular. Imunidade: A resposta imune celular e a produção de anticorpos exercem papéis importantes na proteção contra infecções entéricas. A imunidade humoral contra os patógenos entéricos consiste na produção de imunoglobulina (Ig) G e IgM sistêmicas, além de IgA secretora. O sistema imune da mucosa pode ser a primeira linha de defesa contra muitos patógenos gastrintestinais. A ligação dos antígenos bacterianos à superfície luminal das células M no intestino delgado distal e a subsequente apresentação dos antígenos ao tecido linfoide subepitelial levam à produção de linfócitos sensibilizados. Esses linfócitos circulam e povoam todas as mucosas do corpo como plasmócitos secretores de IgA. Determinantes Genéticos: A variabilidade genética do hospedeiro influencia na suscetibilidade às doenças diarreicas. Indivíduos com grupo sanguíneo O exibem maior suscetibilidade às infecções por V. cholerae, Shigella, E. coli O157 e norovírus. Os polimorfismos nos genes que codificam mediadores inflamatórios têm sido associados ao surgimento de infecções entéricas conjuntas por E. coli enteroagregativa, E. coli produtora de enterotoxinas, Salmonella, C. difficile e V. cholerae. Apresentação clínica A apresentação clínica da diarreia aguda é bastante semelhante, independente do agente causador. Entretanto, algumas diferenças podem ocorrer de acordo com a fisiopatogênese envolvida. A fisiopatologia subjacente da diarreia aguda causada por agentes infecciosos causa manifestações clínicas específicas, que também podem ser valiosas ao diagnóstico. A diarreia líquida profusa secundária àhipersecreção do intestino delgado ocorre com a ingestão de toxinas bacterianas pré-formadas, bactérias produtoras de enterotoxina e patógenos enteroaderentes. A diarreia associada a vômitos intensos e febre mínima ou ausente pode ocorrer de forma abrupta algumas horas após a ingestão dos dois primeiros fatores patogênicos; em geral, os vômitos são menos intensos, as cólicas ou a distensão abdominal são mais proeminentes e a febre é mais elevada neste último caso. Todos os microrganismos produtores de citotoxina e os invasivos causam febre alta e dor abdominal. Com frequência, as bactérias invasivas e a Entamoeba histolytica provocam diarreia sanguinolenta (conhecida como disenteria). As espécies de Yersinia invadem as mucosas do íleo terminal e do intestino grosso proximal e podem causar dor abdominal particularmente intensa com hipersensibilidade à palpação, simulando apendicite aguda. A diarreia infecciosa pode estar associada a manifestações sistêmicas. Artrite reativa (anteriormente conhecida como síndrome de Reiter), artrite, uretrite e conjuntivite, podem acompanhar ou seguir-se às infecções por Salmonella, Campylobacter, Shigella e Yersinia. A yersinose também pode acarretar tireoidite autoimune, pericardite e glomerulonefrite. E. coli êntero-hemorrágica (O157:H7) e Shigella podem causar síndrome hemolítico-urêmica, com taxa de mortalidade elevada associada. Hoje, a SII pós-infecciosa é reconhecida como uma complicação da diarreia infecciosa. Do mesmo modo, a gastrenterite aguda pode preceder ao diagnóstico de doença celíaca ou doença de Crohn. Diarreia aguda também pode ser um sintoma importante de diversas infecções sistêmicas como hepatite viral, listeriose, legionelose e síndrome do choque tóxico. A diarreia inflamatória apresenta espectro clínico mais grave e exige tratamento mais criterioso. É causada por bactérias invasivas, parasitos e bactérias produtoras de citotoxinas que afetam preferentemente o íleo e o cólon. Promove ruptura do revestimento mucoso e perda de soro, hemácias e leucócitos para o lúmen. Manifesta-se por diarreia, em geral de pequeno volume, com muco, pus ou sangue, febre, dor abdominal predominante no quadrante inferior esquerdo, tenesmo, dor retal. Algumas vezes, apresenta, no início da evolução, diarreia aquosa, que só mais tarde se converte em típica diarreia inflamatória, quando os microrganismos ou suas toxinas lesam a mucosa colônica. As manifestações abdominais associadas à diarreia aguda são consequência direta do mecanismo fisiopatológico predominante: ➔ o aumento da secreção de água e eletrólitos (mecanismo secretório) leva a fezes aquosas volumosas e desidratação; ➔ a destruição da mucosa e a invasão celular (mecanismo invasivo e citotóxico) causam inflamação local, ativação de nervos sensoriais, cólicas intensas, tenesmo e presença de sangue ou muco nas fezes; ➔ a distensão luminal por excesso de solutos osmóticos causa dor abdominal e flatulência ➔ além disso, nos quadros infecciosos agudos, a ativação do sistema imune pode desencadear manifestações sistêmicas como febre, mialgia e mal-estar. A motilidade intestinal também pode ser acelerada, contribuindo para a frequência aumentada das evacuações. Quadro clínico conforme a fisiopatogênese: A diarreia aguda em adultos costuma ser leve e autolimitada, muitas vezes não levando o paciente a procurar atendimento médico. No entanto, uma avaliação inicial cuidadosa, com história clínica e exame físico, é fundamental para identificar o tipo de diarreia, a gravidade da hipovolemia e possíveis complicações associadas. A diarreia pode ser classificada com base na aparência das fezes em dois tipos principais: ➔ Diarreia aquosa (não inflamatória): geralmente de intensidade moderada, mas pode causar grandes perdas de volume. É causada por vírus ou bactérias produtoras de enterotoxinas, que afetam o intestino delgado. Os microrganismos aderem ao epitélio sem destruí-lo, provocando diarreia secretora com fezes aquosas, volumosas, sem sangue, frequentemente acompanhada de náuseas, vômitos e cólicas discretas. ➔ Diarreia sanguinolenta (inflamatória): tende a apresentar quadro mais grave, causada por bactérias invasivas, parasitos ou bactérias produtoras de citotoxinas que acometem o íleo e o cólon, promovendo ruptura da mucosa e eliminação de muco, pus e sangue. Clinicamente, manifesta-se com febre, dor abdominal no quadrante inferior esquerdo, tenesmo, dor retal e fezes de pequeno volume. Pode começar como diarreia aquosa, evoluindo para o padrão inflamatório conforme ocorre lesão da mucosa colônica. 5. Descrever a sequência diagnóstica e terapêutica das diarréias agudas. PROF: Paciente com vômito/náusea: Soro Glicosado 5% = 5g HC/100ml = (basal necessário 100g = 2l) Reposição volêmica: Soro fisiológico ou Ringer lactato (cloro baixo e potássio alto com lactato) Plano B mesmo Cálculo com 20 % - Perdeu até 20% = - Perdeu 20-30% - PAS >90 com prostração = cálculo de 20% de EE Plano C: Desidratação grave - 20% de Espaço extracelular do KG - Hipotensão postural = perdeu 30% - PAS 50 mOsm/kg: Sugere diarreia osmótica (ex.: intolerância à lactose, uso de laxantes osmóticos).A diarreia melhora com jejum ➔ Gap 38,5°C). ➔ Dor abdominal intensa ou sinais de peritonite. ➔ Perda de peso significativa. ➔ Idade avançada ou imunossupressão (ex.: HIV, quimioterapia). ➔ Diarreia persistente (>14 dias, sugerindo transição para diarreia crônica) Ação: A presença de qualquer critério de alarme exige reavaliação imediata, escalonamento para o Plano B ou C e investigação etiológica mais detalhada. Classificação da gravidade: ➔ Sem desidratação: Estado geral bom, ausência de critérios de alarme. Tratar com Plano A. ➔ Desidratação leve/moderada: Presença de critérios como "sede excessiva" ou "redução da diurese". Tratar com Plano B. ➔ Desidratação grave ou complicações: Critérios como "vômitos repetidos", "sangue nas fezes" ou gap osmótico sugestivo de infecção grave (secretória) indicam necessidade do Plano C. Exames complementares ➔ Fezes: Exame parasitológico, cultura ou testes para patógenos, especialmente se houver "sangue nas fezes" ou gap osmótico 50): Intolerância à lactose, uso de laxantes osmóticos. ➔ Diarreia secretória (gapliberação do substrato ou ligação a fatores, alteração química, digestão de macromoléculas, funcionamento motor e sensitivo do intestino, funções hormonais e neuro-humorais, absorção e transporte pós-mucosa; qualquer uma delas pode estar comprometida na síndrome de má absorção. As causas de má absorção intestinal podem ser agrupadas conforme as fases da digestão e absorção. Os distúrbios na mistura ocorrem, por exemplo, em pacientes submetidos à gastrectomia parcial com reconstrução a Billroth II, resultando em liberação inadequada de secreções biliares e pancreáticas e favorecendo o supercrescimento bacteriano. Nos distúrbios da hidrólise luminal, especialmente da lipólise, há déficit enzimático devido a lesões pancreáticas como fibrose cística, pancreatite crônica, neoplasias, ou à hipersecreção ácida gástrica como na síndrome de Zollinger-Ellison, afetando a ação da lipase pancreática. Já os distúrbios na formação de micelas ocorrem quando há redução dos sais biliares, seja por doença hepática, obstrução biliar, ressecção ileal ou doença de Crohn, levando à deficiência de vitaminas lipossolúveis. O supercrescimento bacteriano também prejudica a formação de micelas e a absorção de nutrientes ao desconjugar sais biliares, consumir vitamina B12 e degradar dissacaridases, resultando em diarreia, esteatorreia, emagrecimento e deficiência vitamínica, com tratamento baseado em antibióticos em rodízio e pró-cinéticos. A ressecção ileal ou doença do íleo terminal leva à má absorção por perda da circulação entero-hepática dos sais biliares, com sintomas como diarreia aquosa, litíase e doença óssea, tratada com colestiramina, antidiarreicos e reposição de B12. Nos distúrbios da borda em escova, a intolerância à lactose é a causa mais comum, provocando dor abdominal, flatulência e diarreia osmótica, diagnosticada com teste do hidrogênio expirado e tratada com dieta restrita e enzimas orais. A intolerância à trealose, embora mais rara, também causa sintomas semelhantes. Entre os distúrbios na absorção pela mucosa, a Giardia intestinalis é uma causa importante nos países em desenvolvimento, levando a esteatorreia, desnutrição e retardo do crescimento. A doença de Whipple é uma condição multissistêmica com comprometimento do trato gastrointestinal, sistema nervoso central e outros órgãos, tratada com antibióticos de longo prazo. O espru tropical acomete viajantes ou moradores de regiões tropicais, com má absorção múltipla e presença de protozoários ou bactérias colônicas. A enterite actínica, que pode surgir muitos anos após radioterapia pélvica, causa má absorção de sais biliares, vitamina B12 e lactose. Nos distúrbios no transporte de nutrientes, os problemas na drenagem linfática levam à perda de proteínas, lipídios e linfócitos, gerando diarreia e edema, como nas linfangiectasias primárias ou secundárias a linfoma, tuberculose, lúpus e outras. A enteropatia perdedora de proteínas pode decorrer tanto de lesões da mucosa como de distúrbios linfáticos. Existem também causas com mecanismos não totalmente esclarecidos, como hipoparatireoidismo, insuficiência adrenal, hipertireoidismo e síndrome carcinoide. No idoso, a má absorção intestinal pode ocorrer por doenças específicas e não apenas pelo envelhecimento, sendo mais comuns condições como pancreatite crônica e supercrescimento bacteriano por hipocloridria e hipomotilidade intestinal, além de casos mais raros por isquemia intestinal crônica. Etiologias Principais ➔ Doença celíaca ➔ Espru tropical ➔ Doença de Crohn ➔ Síndrome do intestino curto ➔ Pancreatite crônica ➔ Fibrose cística ➔ Gastrectomia (Billroth II) ➔ Linfangiectasia intestinal ➔ Deficiências enzimáticas (ex.: lactase, sacarase) ➔ Doença de Whipple ➔ Enteropatia perdedora de proteínas, Enterite por radiação ➔ Parasitoses intestinais (ex.: giardíase, e estrongiloidíase) Manifestações Clínicas As apresentações variam desde sintomas digestivos até manifestações sistêmicas, podendo incluir: ➔ Diarreia (comum, geralmente osmótica ou esteatorréia) ➔ Esteatorreia (fezes volumosas, pastosas, fétidas) ➔ Perda de peso e desnutrição ➔ Distensão abdominal e flatulência ➔ Manchas pelagróides, glossite, estomatite ➔ Edema periférico (hipoproteinemia) ➔ Anemias (ferropriva ou megaloblástica) ➔ Osteomalácia, osteopenia e raquitismo ➔ Atraso no crescimento e puberdade retardada em crianças Condições Específicas ➔ Doença Celíaca: Enteropatia autoimune induzida por glúten, com atrofia vilositária, má absorção de ferro, cálcio e vitaminas lipossolúveis. Pode se apresentar com sintomas digestivos, anemia ou manifestações neurológicas. ➔ Espru Tropical: Condição adquirida em áreas tropicais, com má absorção de folato e vitamina B12, esteatorreia e resposta a antibióticos. ➔ Síndrome do Intestino Curto: Resulta da ressecção maciça do intestino, com má absorção de gorduras, vitaminas lipossolúveis, B12 e água. ➔ Pancreatite Crônica: Leva à deficiência de enzimas digestivas, principalmente lipases, resultando em má digestão e esteatorreia. ➔ Linfangiectasia Intestinal: Compromete o transporte linfático de quilomícrons e proteínas, levando a enteropatia perdedora de proteínas e edema. Diagnóstico e Abordagem ➔ História clínica e exame físico ➔ Coleta de fezes por 72h (esteatorreia >7 g gordura/dia) ➔ Biópsia intestinal (doença celíaca, Whipple) ➔ Testes de absorção (teste de hidrogênio expirado para lactose) ➔ Exames laboratoriais (vitaminas, ferro, albumina, cálcio) ➔ Endoscopia e exames de imagem (ressonância, cápsula endoscópica) 7. Explicar a fisiopatologia e o diagnóstico da doença celíaca. . Fisiopatologia: Fatores genéticos, bioquímicos e imunológicos: A doença celíaca (DC) é uma condição autoimune crônica que afeta principalmente o intestino delgado e ocorre em indivíduos geneticamente suscetíveis, desencadeada pela ingestão de glúten, uma proteína presente no trigo, centeio e cevada. Essa condição se caracteriza por uma resposta imune inadequada à fração proteica do glúten, levando à inflamação e destruição da mucosa intestinal, em especial das vilosidades intestinais, que são estruturas especializadas na absorção de nutrientes. O contato do glúten com o intestino de um indivíduo celíaco desencadeia uma série de eventos imunológicos. O principal componente tóxico do glúten é a gliadina, uma molécula rica em resíduos de prolina e glutamina, o que a torna resistente à digestão completa pelas enzimas gastrointestinais. Como resultado, fragmentos peptídicos de gliadina permanecem intactos e alcançam a mucosa intestinal. Nessas condições, a transglutaminase tecidual (tTG), uma enzima naturalmente presente na mucosa, atua sobre esses fragmentos, desaminando resíduos de glutamina e convertendo-os em formas ainda mais imunogênicas. Essa desaminação gera peptídeos de gliadina modificada que se ligam com alta afinidade às moléculas de HLA-DQ2 ou HLA-DQ8, presentes nas células apresentadoras de antígeno do sistema imune intestinal. Essas moléculas HLA são codificadas por genes do complexo principal de histocompatibilidade (MHC) classe II, localizados no cromossomo 6, e estão presentes em praticamente todos os indivíduos com doença celíaca: cerca de 90 a 95% possuem HLA-DQ2, e a maior parte dos restantes apresenta HLA-DQ8. Vale destacar que a presença desses alelos é necessária, mas não suficiente para o desenvolvimento da doença, já que uma parcela considerável da população saudável também possui esses genes, mas nunca manifesta sintomas. Uma vez que os peptídeos de gliadina modificados são apresentados às células T CD4+ da lâmina própria intestinal, ocorre ativação do sistema imune adaptativo. As células T auxiliares ativadas produzem citocinas pró-inflamatórias, como o interferon gama (IFN-γ), que intensificam a inflamação local e promovem a ativação de células epiteliais e células T citotóxicasintraepiteliais (CD8+). Estas, por sua vez, agridem diretamente os enterócitos, promovendo apoptose e destruição da borda em escova, o que leva à atrofia das vilosidades, à hiperplasia das criptas e à consequente redução da capacidade absortiva do intestino delgado. Além da resposta celular, ocorre também uma resposta imune humoral, com produção de autoanticorpos. Os mais característicos são os anticorpos anti-transglutaminase tecidual (anti-tTG), os anticorpos anti-endomísio (EMA) e os anticorpos anti-gliadina (AGA), os quais são úteis no diagnóstico sorológico da doença. A presença desses autoanticorpos evidencia a natureza autoimune do processo, já que a transglutaminase, inicialmente envolvida na modificação da gliadina, torna-se ela própria um alvo do sistema imune. A destruição das vilosidades intestinais leva à atrofia vilositária, hiperplasia de criptas e infiltração linfocítica, gerando má absorção intestinal. Clinicamente, isso se traduz em sintomas como diarreia crônica, distensão abdominal, perda ponderal, deficiência de ferro, vitamina B12, ácido fólico, cálcio e outros nutrientes. Fatores ambientais: ➔ Início da exposição ao glúten: Antigamente se acreditava que a introdução precoce ou tardia do glúten na alimentação infantil alterava o risco de DC. Estudos mais recentes mostram que o momento da introdução do glúten (entre 4-12 meses) não altera significativamente o risco, embora exposições muito precoces (antes de 3 meses) possam ser prejudiciais. ➔ Infecções gastrointestinais: Infecções virais (como rotavírus, reovírus e enterovírus) podem desencadear a DC em indivíduos predispostos. Esses agentes podem alterar a permeabilidade intestinal e promover quebra da tolerância imunológica oral. ➔ Aleitamento materno: Há controvérsia sobre seu papel. Algumas evidências sugerem que o aleitamento, especialmente concomitante à introdução do glúten, pode ter efeito protetor, mas esse dado não é conclusivo. ➔ Permeabilidade intestinal aumentada: A proteína zonulina regula a abertura das junções intercelulares (tight junctions) entre os enterócitos. A gliadina estimula a liberação de zonulina, aumentando a permeabilidade intestinal, facilitando o trânsito de peptídeos imunogênicos para a lâmina própria. ➔ Microbiota intestinal: Alterações na microbiota (disbiose) podem afetar a resposta imune e a integridade da mucosa intestinal. Celíacos frequentemente apresentam redução de bactérias protetoras (como Bifidobacterium) e aumento de bactérias pró-inflamatórias. Manifestações clínicas: Forma Clássica (ou Típica) ➔ Início comum por volta dos 6 meses, após introdução do glúten na dieta. ➔ Sintomas: diarreia crônica, distensão abdominal, vômitos, dor, hipotonia, perda de massa muscular, palidez, fezes volumosas, pálidas e fétidas (esteatorreia). ➔ Complicações: desidratação, desequilíbrio eletrolítico, desnutrição, carências vitamínicas (ex.: hipocalcemia, deficiência de vitamina K). ➔ Forma grave: crise celíaca — caracterizada por desnutrição severa, hemorragia, distensão abdominal e diarreia grave. Forma Não Clássica (ou Atípica) ➔ Quadro mono ou oligossintomático, com predomínio de sintomas extraintestinais. ➔ Sintomas: anemia, baixa estatura, osteoporose, hipoplasia de esmalte dentário, perda de peso, irregularidades menstruais, infertilidade, artrite, constipação. ➔ Sorologia positiva e atrofia de vilosidades intestinais costumam estar presentes. Forma Assintomática (ou Silenciosa) ➔ Ausência de sintomas clínicos evidentes. ➔ Presença de alterações histológicas (atrofia de vilosidades) e sorológicas. ➔ Identificada principalmente em parentes de primeiro grau de celíacos. ➔ Mesmo sem sintomas, pode levar a complicações como anemia, osteoporose, infertilidade e câncer intestinal se não tratada. Diagnóstico: O diagnóstico da doença celíaca é complexo devido à grande diversidade de apresentações clínicas (que variam desde formas clássicas com sintomas gastrointestinais até manifestações atípicas ou assintomáticas), às alterações histológicas variáveis e aos achados imunológicos. Além disso, a doença pode estar associada a outras condições autoimunes, o que pode mascarar ou confundir o quadro clínico. Como consequência, o diagnóstico frequentemente é tardio. Contudo, nas últimas décadas, houve significativa evolução nos métodos diagnósticos, com o desenvolvimento de testes sorológicos cada vez mais sensíveis e específicos. Essa melhora na acurácia dos exames tem contribuído para o aumento na detecção de casos, inclusive daqueles com manifestações não clássicas. Sorologia A investigação diagnóstica da doença celíaca geralmente se inicia por meio de exames sorológicos. Os principais anticorpos utilizados na triagem são: ➔ Anticorpos anti-gliadina (AGA) ➔ Anticorpos antiendomísio (EMA) ➔ Anticorpos anti-transglutaminase tecidual (anti-tTG) Estes exames são, em sua maioria, baseados na técnica de imunoensaio enzimático (ELISA), embora alguns centros ainda utilizem radioimunoensaio (RIA). Entre eles, o anticorpo anti-tTG da classe IgA é atualmente o mais utilizado devido à sua elevada sensibilidade, especificidade e praticidade técnica, além de apresentar melhor custo-benefício comparado ao EMA. O EMA-IgA também é altamente específico e sensível, especialmente em crianças acima de dois anos e adultos, mas seu custo elevado e maior dificuldade técnica restringem seu uso de forma rotineira. Já os anticorpos antigliadina, especialmente da classe IgA, têm menor sensibilidade e especificidade e, por isso, foram progressivamente substituídos pelos anti-tTG e EMA. Antes da interpretação dos resultados sorológicos, é fundamental verificar os níveis séricos totais de IgA, uma vez que uma proporção significativa dos pacientes celíacos apresenta deficiência seletiva de IgA. Nesse cenário, os testes sorológicos baseados na classe IgA podem resultar em falsos-negativos. Se confirmada a deficiência, deve-se então utilizar os anticorpos das classes IgG, como anti-tTG IgG e EMA-IgG. Biópsia Intestinal (Padrão Ouro) A endoscopia digestiva alta com biópsia de intestino delgado ainda é considerada o padrão ouro para o diagnóstico da doença celíaca. A amostragem deve incluir pelo menos quatro fragmentos do duodeno, sendo importante que um deles seja do bulbo duodenal, pois as lesões podem ser focais e não uniformemente distribuídas. A análise histológica deve considerar a presença de atrofia das vilosidades, hiperplasia das criptas e infiltrado linfocitário intraepitelial, alterações essas que são graduadas segundo a classificação de Marsh, posteriormente aprimorada por Oberhuber. Essa classificação avalia a gravidade das alterações morfológicas da mucosa intestinal: Classificação de Marsh (Marsh-Oberhuber): ➔ Marsh 0: Mucosa normal (pré-infiltrativo) ➔ Marsh 1: Aumento de linfócitos intraepiteliais (padrão infiltrativo) ➔ Marsh 2: Hiperplasia das criptas com infiltrado linfocitário ➔ Marsh 3a: Atrofia vilositária leve (parcial) ➔ Marsh 3b: Atrofia vilositária moderada ➔ Marsh 3c: Atrofia vilositária total (padrão destrutivo) ➔ Marsh 4: Atrofia vilositária total com hipoplasia de criptas (padrão hipoplásico) A biópsia deve sempre ser interpretada em conjunto com os dados clínicos e sorológicos, não sendo suficiente, isoladamente, para o diagnóstico definitivo. Testes Genéticos A tipagem dos alelos HLA-DQ2 e HLA-DQ8 pode ser útil como exame complementar, especialmente em casos de dúvida diagnóstica. Esses alelos estão presentes em mais de 95% dos celíacos, sendo sua ausência altamente sugestiva contra o diagnóstico da doença. Contudo, sua presença não confirma a doença, já que também ocorre em até 30-40% da população geral sem a enfermidade. O teste genético não é necessário em casos com sorologia positiva e biópsia compatível, mas pode ser útil nos seguintes contextos: ➔ Sorologia e/ou biópsia inconclusivas➔ Parentes de primeiro grau de celíacos ➔ Pacientes já em dieta sem glúten antes da investigação ➔ Avaliação de risco em familiares Diagnóstico sem biópsia (em casos selecionados) De acordo com a Sociedade Europeia de Gastroenterologia Pediátrica (ESPGHAN, 2020), em crianças sintomáticas pode-se dispensar a biópsia intestinal se os níveis de anti-tTG IgA estiverem acima de 10 vezes o limite superior do normal, desde que confirmados por EMA-IgA positivo e presença dos alelos HLA-DQ2/DQ8. Esta abordagem visa evitar um exame invasivo quando há forte evidência laboratorial. Avaliação de Grupos de Risco A triagem sorológica deve ser considerada mesmo em pacientes assintomáticos ou com manifestações atípicas, quando pertencem a grupos de risco, tais como: ➔ Parentes de primeiro e segundo grau de celíacos ➔ Gêmeos monozigóticos de indivíduos afetados ➔ Portadores de síndrome de Down ➔ Indivíduos com diabetes tipo 1, tireoidite autoimune, doenças hepáticas autoimunes (ex.: cirrose biliar primária) ➔ Pacientes com anemia ferropriva inexplicada, osteoporose precoce ou aumento inexplicado de enzimas hepáticas A investigação nesses grupos é importante para diagnóstico precoce, mesmo antes do surgimento de complicações. Importância de manter dieta com glúten durante a investigação É fundamental que o paciente não inicie dieta sem glúten antes da confirmação diagnóstica, pois a retirada precoce do glúten pode levar à normalização dos exames sorológicos e histológicos, resultando em falsos-negativos. O diagnóstico deve ser sempre realizado enquanto o paciente está consumindo glúten regularmente. Tratamento da doença celíaca: Tratamento único e definitivo: exclusão completa e permanente do glúten da dieta. A dieta sem glúten geralmente reverte as complicações da doença, como anemia, diarreia, má absorção, baixa estatura e osteopenia. Persistência de sintomas pode indicar: ➔ Contaminação inadvertida por glúten, ➔ Condições associadas, como parasitoses, intolerâncias, supercrescimento bacteriano ou colite microscópica, ➔ Doença celíaca refratária. Diagnóstico deve ser confirmado por biópsia intestinal antes da retirada do glúten; retirar o glúten antes do diagnóstico é contraindicado. ➔ Em crianças pequenas com quadros graves, pode-se suspender também a lactose temporariamente. ➔ Em crianças maiores ou com poucos sintomas, a lactose pode ser mantida. 8. Relacionar como os fatores ambientais e sociais contribuem para a gênese do quadro, bem como as consequências sociais das diarréias crônicas. A diarreia crônica é uma condição multifatorial, fortemente influenciada por fatores ambientais e sociais, que impactam tanto sua gênese quanto suas consequências sociais. Fatores ambientais e sociais na gênese da diarreia crônica: ➔ Saneamento básico inadequado: A ausência ou deficiência de serviços de água potável, coleta e tratamento de esgoto e manejo de resíduos sólidos contribui significativamente para a ocorrência de diarreias. ➔ Condições habitacionais precárias: Moradias com infraestrutura inadequada, como falta de ventilação, superlotação e ausência de instalações sanitárias, aumentam o risco de transmissão de agentes patogênicos causadores de diarreia. ➔ Baixo nível socioeconômico e educacional: Populações com menor renda e escolaridade tendem a ter menos acesso a informações sobre práticas de higiene e cuidados com a saúde, além de enfrentarem dificuldades para acessar serviços de saúde e saneamento. Consequências sociais da diarreia crônica: ➔ Impacto na saúde infantil: A diarreia crônica pode levar à desnutrição, comprometendo o crescimento e o desenvolvimento das crianças, além de aumentar a vulnerabilidade a outras doenças. ➔ Afastamento escolar e laboral: Crianças com episódios frequentes de diarreia podem ter seu desempenho escolar prejudicado, enquanto adultos podem enfrentar perdas econômicas devido a ausências no trabalho. ➔ Sobrecarga dos serviços de saúde: A persistência de casos de diarreia crônica aumenta a demanda por atendimentos médicos e hospitalares, pressionando o sistema de saúde, especialmente em regiões com infraestrutura limitada. ➔ Estigmatização e isolamento social: Indivíduos com diarréia crônica podem enfrentar estigmas sociais, levando ao isolamento e afetando sua qualidade de vida e bem-estar emocional. A abordagem eficaz da diarreia crônica requer intervenções que vão além do tratamento médico, incluindo melhorias nas condições ambientais, acesso a serviços básicos e políticas públicas voltadas para a redução das desigualdades sociais.