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VI OBRAS COMPLETAS PSICANÁLISE IV Princípio de Relaxamento e Após terem ouvido a minha exposição, alguns de vocês terão muito Sándor Ferenczi provavelmente a impressão de que era inteiramente injustificado intitulá-la "Progressos da e que seu conteúdo mereceria, pe- lo contrário, ser qualificado de passo atrás ou de retrocesso. Mas essa impressão se dissipará rapidamente, espero, quando se pensar que o retorno a uma tradição mais antiga, injustamente negligenciada, pode igualmente favorecer a verdade; e penso francamente não ser parado- xal, em tais casos, apresentar como progresso científico o fato de en- fatizar o que é antigo. As investigações psicanalíticas de Freud abran- gem um domínio imenso que compreende a vida psíquica indi- vidual mas também a psicologia das massas e a história das civiliza- ções humanas; recentemente, essas investigações ampliaram-se às re- presentações extremas a respeito da vida e da morte. À medida que transformava um modesto método de trabalho psi- coterapêutico numa psicologia e numa visão do mundo completas, o inventor da psicanálise devia centrar sua investigação ora num ora no outro campo de pesquisa, e afastar provisoriamente todo o resto. Essa negligência de certos pontos já elucidados não significa em absoluto, bem entendido, um abandono ou uma retratação. Mas nós, seus alu- nos, somos propensos a seguir muito mais ao pé da letra as falas mais recentes do mestre, a proclamar como única verdade a última desco- 1. Relatório apresentado ao XI Congresso Internacional de Psicanálise em Oxford, Martins Fontes em agosto de 1929, sob o título "Progresso da Técnica Título do texto publicado: Relaxationsprinzip und Neokatharsis, em Intern. Zeitschrift für Psycho- São Paulo 1992 Analyse, 1930, vol. XVI. É evidente que em 1929 a palavra alemã "relaxation" não de- signava essa técnica de "distensão neuromuscular" depois descrita por diversos autores (Schultz, Jacobson, etc.).54 OBRAS COMPLETAS PRINCÍPIO DE RELAXAMENTO E NEOCATARSE 55 berta e assim cair, por vezes, no erro. A minha posição pessoal no mo- seguro o material fornecido pelos pacientes e, por conseguinte, indig- vimento psicanalítico fez da minha pessoa uma coisa intermediária en- no de consideração científica. Felizmente, a perspicácia de Freud sal- tre aluno e professor, e esta dupla posição autoriza-me e habilita-me, vou a psicanálise do perigo iminente de ser enterrada de novo. Ainda talvez, a sublinhar esse gênero de perspectivas unilaterais e, sem re- que certas alegações de pacientes fossem mentirosas e irreais, a reali- nunciar ao que há de bom na novidade, defender uma justa aprecia- dade psíquica da própria mentira subsistia como fato irrefutável. É di- ção do que foi confirmado pela experiência. fícil imaginar o que foi precedido de coragem, de força, de obstinação Considerando-se o estreito e quase indissolúvel vínculo entre o mé- e também de superação de si mesmo para tratar friamente como fanta- todo técnico e o conjunto do saber psicanalítico, compreenderão que sia histérica a tendência falaciosa dos pacientes para a mentira, e para eu não possa limitar a minha comunicação ao domínio da técnica e considerá-la digna, a título de realidade psíquica, de ser objeto de aten- que seja igualmente levado a rever uma parte do conteúdo desse saber. ção e de investigação. Na pré-história da psicanálise, da qual apresentarei agora um resumo Esses progressos não deixaram de influenciar a técnica psicanalí- muito breve, ainda não está em causa uma separação desse gênero. E tica. A relação intensamente emocional, de tipo hipnótico-sugestiva, mesmo no período seguinte, a distinção teoria-técnica era puramente que existia entre o médico e seu paciente, esfriou progressivamente pa- artificial e respondia a considerações de natureza didática. ra converter-se numa espécie de experiência infinita de associações, lo- go, um processo essencialmente intelectual. Médico e paciente uniam suas forças e seus esforços para tentar, de algum modo, reconstituir I as causas recalcadas da doença a partir de fragmentos disparatados do material associativo, do mesmo modo que se procede para os espaços O tratamento catártico da histeria, precursor da psicanálise, foi em branco de palavras cruzadas muito complicadas. Mas Freud foi coa- a descoberta comum de uma doente genial e de um médico de espírito gido por alguns fracassos terapêuticos decepcionantes, que teriam cer- aberto. A paciente tinha experimentado em si mesma que alguns dos tamente desencorajado outros menos fortes do que ele, a restabelecer seus sintomas desapareciam quando conseguia relacionar fragmentos a afetividade na relação analista-analisando, que tinha sido manifesta de suas falas ou gestos, expressos em estados de exceção, com impres- e erroneamente negligenciada durante um certo tempo. Entretanto, is- sões esquecidas de sua vida anterior. O extraordinário mérito de Breuer so já não era mais feito sob a forma da influência por hipnose ou su- foi ter seguido as indicações metódicas de sua paciente e ter também gestão, mal conhecida em sua natureza e muito difícil de dosar, mas acreditado na realidade das lembranças que surgiam, sem descartá-las conferindo mais atenção e valor aos sinais de transferência dos afetos de imediato, como era o habitual, como invenção fantasística de uma e de resistência afetiva que se manifestavam na relação analítica. doente mental. Sem dúvida, a credulidade de Breuer tinha limites es- Tal era, em linhas gerais, o estado da técnica e da teoria psicanalíti- treitos. Ele só pôde acompanhar sua paciente na medida em que as de- ca na época em que, no início curiosamente estimulado pelas experiên- clarações e o comportamento dela evoluíam no quadro do decoro. A cias de associação de Jung, tornei-me um adepto entusiasta da nova dou- partir das primeiras manifestações de vida pulsional não inibida, Breuer trina. Permitam-me apresentar agora a evolução da técnica, do ponto abandonou não só a paciente mas todo o método. Do mesmo modo, de vista subjetivo do indivíduo. A lei biogenética fundamental parece ser suas deduções teóricas, por outro lado extremamente penetrantes, igualmente válida para o desenvolvimento intelectual do indivíduo; tal- limitam-se na medida do possível ao aspecto puramente intelectual, ou vez não exista nenhum saber validamente fundado que não repita por então prendem-se diretamente ao físico, deixando de lado todo o do- sua própria conta os estágios da iluminação exageradamente otimista, mínio psíquico e emocional. da decepção que inevitavelmente se segue, e da reconciliação final dos Iria surgir um homem mais forte do que ele, que não recuaria dian- dois afetos. Na verdade, não sei se devo invejar nos meus colegas mais te do que existe de instintivo e de animal na organização psíquica do jovens a facilidade que têm para entrar na posse de tudo aquilo que a homem civilizado. Penso ser desnecessário dizer-lhes de quem se trata. geração precedente conquistou ao preço de duros esforços. Às vezes, As experiências de Freud acabaram por impor a hipótese de que todas parece-me que não é a mesma coisa receber uma tradição já feita e aca- as neuroses têm por condição sine qua non traumas sexuais infantis. bada, por válida que seja, ou estabelecer uma por si mesmo. Mas, como em alguns casos as asserções dos pacientes revelavam-se Tenho uma lembrança muito viva de minhas primeiras experiên- incertas, ele também devia lutar contra a tentação de declarar pouco cias no início da minha carreira psicanalítica. Recordo-me, por exem-56 OBRAS COMPLETAS PRINCÍPIO DE RELAXAMENTO E NEOCATARSE 57 plo, do meu primeiro caso. Tratava-se de um jovem colega a quem ti- pêutica ativa"), procurei favorecer a repetição de eventos traumáticos nha encontrado na rua: extremamente pálido, lutando contra uma vi- anteriores e uma melhor resolução destes pela análise. Por certo não sível e penosa dispnéia, apanhou-me por um braço e suplicou-me que ignoram que, por vezes, deixamo-nos arrastar, eu próprio e alguns ou- o ajudasse. Sofria, disse-me ele entre duas sufocações, de asma nervo- tros que me seguiram, para excessos no domínio da atividade. O mais sa. Já experimentara de tudo, mas sem qualquer êxito até o momento. grave desses excessos consistia em fixar um prazo para tratamento, Decidi-me rapidamente e conduzi o meu infeliz colega ao meu consul- medida proposta por Rank e por mim adotada na época. Tive sufi- tório. Lá incitei-o a comunicar-me suas reações ao esquema de asso- ciente discernimento para me aperceber a tempo desses exageros, e mer- ciação proposto e mergulhei em seguida na análise do seu passado com gulhei com ardor na análise do ego e dos desenvolvimentos do caráter a ajuda desse material associativo rapidamente semeado e colhido; e, que Freud, nesse meio tempo, tinha abordado com tanto êxito. A aná- como previsto, as imagens mnêmicas não tardaram em reagrupar-se lise do ego, algo simplista, em que a libido (outrora concebida como em torno de um traumatismo sofrido na primeira infância. Tratava-se onipotente) não era tida em grande conta, transformou o tratamento, da operação de um hidrocele²; ele viu, e reviveu, com uma viva sen- sob muitos aspectos, num processo destinado a permitir-nos, acompa- sação de realidade, como tinha sido agarrado à força pelos enfermei- nhando com extrema precisão a distribuição da energia entre o id, o ros, como lhe tinham aplicado à força a máscara de clorofórmio sobre ego e o superego do paciente, compreender o mais completamente pos- o rosto, e como tinha querido escapar, com todas as suas forças, ao sível a tópica, a dinâmica e a economia da formação dos sintomas. En- poder asfixiante do gás anestésico; repetiu as contrações musculares, tretanto, eu tinha cada vez mais a impressão, ao aplicar essas concep- o suor de angústia e o distúrbio respiratório que tivera no momento ções na análise, de que a relação entre médico e paciente começava a do evento traumático. Depois abriu os olhos, como se saísse de um so- se assemelhar um pouco demais a uma relação de professor com alu- nho, passeou um olhar espantado à sua volta e apertou-me em seus no. Adquiri igualmente a de que os meus pacientes estavam braços, declarando jubilosamente que se sentia livre por completo de profundamente descontentes comigo mas não se atreviam a revoltar- sua crise. se abertamente contra o dogmatismo e o pedantismo de que dávamos Muitos outros êxitos "catárticos" que pude registrar na época eram prova. Num dos meus trabalhos consagrados à liberdade convidei, por- do mesmo gênero. Mas não tardei em descobrir que quase todas essas tanto, os meus colegas a doutrinar seus pacientes num maior uso da curas de sintomas só produziam resultados provisórios, e senti-me, eu, liberdade, a ensinar-lhes como abandonarem-se mais livremente à sua o médico, progressivamente curado do meu excessivo otimismo. Por agressividade para com o médico; ao mesmo tempo, exortei-os a dar um estudo mais aprofundado das obras de Freud e por conselhos pes- provas de um pouco mais de humildade a respeito de seus pacientes, soais que tive o privilégio de receber dele, esforcei-me por fazer minha a admitir as faltas eventuais que eles tenham podido cometer; e preco- a técnica da associação, da resistência e da transferência, seguindo o nizei maior elasticidade, eventualmente mesmo às custas das nossas teo- mais exatamente possível os conselhos técnicos que Freud ia publican- rias (que não são, por certo, imutáveis, ainda que constituam instru- do nesse meio tempo. Creio já ter dito em outro texto que se, graças mentos provisoriamente utilizáveis). Finalmente, pude afirmar que não à observação dessas regras técnicas, os meus conhecimentos psicológi- se causava nenhum dano à análise concedendo maior liberdade ao pa- cos iam se aprofundando, os resultados rápidos e espetaculares faziam- ciente; que, pelo contrário, o esgotamento de todas as agressões possí- se, em contrapartida, cada vez mais raros. O antigo tratamento catár- veis permitia, em seguida, uma transferência positiva e resultados mais tico transformava-se, pouco a pouco, numa espécie de reeducação ana- tangíveis. lítica dos pacientes que exigia cada vez mais tempo. Em meu zelo, ain- Não fiquem, pois, surpreendidos demais se estou sendo hoje leva- da juvenil, por certo, esforcei-me por encontrar os meios de abreviar do a expor-lhes novos avanços nesse caminho ou, se preferirem, re- esse tempo e de provocar resultados terapêuticos melhores. Generali- cuos. Estou consciente de que o que tenho a dizer-lhes tem muitas chan- zando e acentuando ainda mais o princípio de frustração, de que o pró- ces de desagradar e, mais particularmente, àqueles que freqüentam o prio Freud se reconhecera partidário no Congresso de Budapeste (1918), seu círculo. Mas devo igualmente expressar o receio de ver as minhas e recorrendo igualmente a um crescimento artificial da tensão ("Tera- palavras valerem-me uma popularidade das mais indesejáveis nos cír- culos dos reacionários autênticos. Entretanto, não esqueçam o que lhes disse no começo a respeito de avanço e recuo; o retorno ao que existe 2. Tumor do escroto, da túnica vaginal do testículo e do cordão espermático. (NTF) de bom no passado não significa para mim, em absoluto, o abando-58 OBRAS COMPLETAS PRINCÍPIO DE RELAXAMENTO E NEOCATARSE 59 no do que os mais recentes desenvolvimentos da nossa ciência com- Eu tinha os maiores escrúpulos de consciência por causa de todas portam de bom e de válido. Aliás, seria presunçoso imaginar que um essas infrações a uma regra fundamental e a muitas outras que não qualquer dentre nós possa dizer a última palavra sobre as possibilida- posso enumerar aqui até que recebi palavras de pes- des de desenvolvimento oferecidas pela técnica ou pela teoria da análi- soas investidas de autoridade: os conselhos de Freud não pretendiam se. No que me diz respeito, pelo menos, as múltiplas hesitações que ser, de fato, mais do que recomendações para principiantes, que deve- acabo de expor-lhes em resumo tornaram-me mais modesto; por isso riam protegê-los das inépcias e dos fracassos mais grosseiros, não con- não gostaria de lhes apresentar o que tenho a dizer como algo definiti- tinham quase nenhuma indicação de natureza positiva e, por conse- vo, porquanto não excluo a possibilidade de ter que submeter uma parte guinte, grande liberdade era deixada a esse respeito à avaliação pes- mais ou menos importante destas reflexões a diversas reservas. soal do analista, na medida em que pudesse explicar a si mesmo as con- seqüências metapsicológicas de sua conduta. Entretanto, a acumulação de casos de exceção leva-me a formular II um princípio até então não postulado, embora tacitamente admitido, o princípio de laisser-faire³ que cumpre admitir, com freqüência, a par No decorrer da minha longa prática analítica, vi-me constantemen- do princípio de frustração. Uma reflexão posterior conduziu-me, é ver- te na situação de transgredir ora um ora outro dos "Conselhos técni- dade, à de que, já ao explicar o modo de ação da técnica cos" de Freud. A fidelidade ao princípio segundo o qual o paciente ativa, era relativamente exagerado atribuir tudo o que se passou à frus- deve estar deitado no divã foi ocasionalmente traída pelo impulso in- tração, ou seja, a um "aumento da tensão". Quando ordenava a uma controlável do paciente para levantar-se de um salto, ficar deambulan- paciente manter afastadas as pernas até então cruzadas, eu criava, de do pelo gabinete ou falar comigo de olhos nos olhos. Circunstâncias fato, uma situação de frustração libidinal que encorajava o aumento difíceis da realidade mas também, com freqüência, a maquinação in- de tensão e a mobilização de conteúdos psíquicos até então recalca- consciente do doente, colocaram-me muitas vezes diante da alternati- dos. Mas quando sugeria à mesma paciente que abandonasse a posi- va ou de interromper a análise, ou de transgredir a regra habitual e ção surpreendentemente rígida de toda a sua musculatura e se permi- prosseguir com a análise sem contrapartida financeira; não hesitei em tisse maior liberdade e mobilidade, era injustificado, de fato, falar uni- optar por esta última solução e, em geral, não me dei mal. O princípio camente de aumento de tensão, só porque esse abandono da rigidez segundo o qual a análise deve desenrolar-se no meio habitual e o pa- da paciente criava dificuldades. Seria muito mais honesto confessar que ciente prosseguir em suas atividades profissionais é muitas vezes im- se tratava aí de uma medida de natureza muito diferente, e que se po- praticável; em alguns casos difíceis, vi-me até obrigado a permitir aos deria tranqüilamente denominá-la, em oposição ao aumento de ten- pacientes que ficassem de cama durante dias, até semanas, dispensando- são, relaxamento. Cumpre admitir, pois, que a psicanálise trabalha, os inclusive do esforço de ir ver-me no consultório. O efeito do choque de fato, com dois meios que se opõem mutuamente: produz um au- da interrupção brutal da sessão de análise obrigou-me, por mais de uma mento de tensão pela frustração e um relaxamento ao autorizar certas vez, a prolongar a sessão até esgotar-se a reação emotiva, ao ponto liberdades. de dedicar ao mesmo paciente duas sessões por dia ou mais. Freqüen- Mas, como ocorre com toda novidade, também nesse caso se des- temente, quando eu não queria ou não podia fazê-lo, a minha rigidez cobre bem depressa que se trata de algo muito antigo, eu diria mesmo provocava um aumento supérfluo da resistência e uma repetição de- muito banal. Esses dois princípios não estariam já operando na asso- masiado literal de acontecimentos traumáticos da pré-história infantil, ciação livre? Um obriga o paciente a confessar verdades desagradáveis, e custava muito tempo para superar metade dos efeitos nefastos dessa ao passo que o outro autoriza-o a uma liberdade na fala e na expres- identificação inconsciente no paciente. Quanto a um princípio essen- são de sentimentos de que, aliás, não se dispõe na vida corrente. Mas, cial da análise, o da frustração, que alguns dos meus colegas e tempos muito antes que a psicanálise existisse, a educação das crianças e das atrás eu próprio aplicamos com desmedido rigor, foi rapidamente des- massas já consistia em conceder ternura e amor, e em exigir renúncias coberto por um grande número de obsessivos que nele encontraram dolorosas para adaptar-se a uma realidade repleta de desprazer. um manancial de revelações, quase inesgotável, de situações de resis- tência, até que o médico se decidisse finalmente, para retomar domí- nio da situação, a retirar essa arma das mãos deles. 3. Prinzip der Gewährung realização. (NTF)60 OBRAS COMPLETAS PRINCÍPIO DE RELAXAMENTO E NEOCATARSE 61 Se a Sociedade Internacional de Psicanálise não fosse uma orga- III nização tão altamente civilizada e habituada à autodisciplina, eu seria, sem dúvida, interrompido neste ponto da minha exposição por um tu- Em vez de abordar de imediato as suas indagações e objeções pro- multo geral e exclamações, como é costume acontecer até na Câmara váveis e, devo admitir, em parte muito pouco confortáveis, gostaria dos Comuns britânica, por outro lado tão distinta, quando tem que de apresentar-lhes o argumento principal que justifica, na minha opi- ouvir um discurso particularmente irritante. "Na verdade, o que é que nião, a ênfase que ponho sobre o relaxamento ao lado da frustração você está querendo?", me gritariam alguns. "Quando começávamos e da objetividade evidente. A validade de uma teoria, ou de uma hipó- a ficar um pouco familiarizados com o princípio de frustração, que tese, mede-se por sua utilidade teórica e prática, ou seja, pelo seu va- você mesmo levou ao extremo com a sua técnica ativa, eis que vem lor heurístico, e tive a experiência de que a adoção do princípio de re- agora perturbar-nos a consciência científica, apaziguada a duras pe- laxamento também produz bons resultados segundo esses dois pontos nas, lançando um novo e desconcertante princípio cuja aplicação nos de vista. Comecemos pelo ponto de vista prático. Em toda uma série reserva os maiores embaraços." "Você fala dos perigos que há em de casos, em que a análise fracassou diante de resistências aparente- exagerar as frustrações", clamaria uma outra não menos estriden- mente insolúveis dos pacientes, uma modificação da tática de frustra- te, "e o que nos diz de afagar e amimar os pacientes? E, de um modo ção, antes rigorosa demais, acarretou, quando de uma nova tentativa geral, pode indicar-nos com precisão quando e como aplicar um ou de análise, resultados que são muito mais profundos. E isso não só em outro desses princípios?" casos não curados por outros analistas, casos que me fizeram a ofe- Vamos com calma, senhoras e senhores! Não estamos suficiente- renda dessa virada, favorável a mim, o analista novato (talvez em par- mente longe para nos entregarmos a detalhes desse gênero. De momen- te simplesmente por vingança); refiro-me também a pacientes com os to, o meu objetivo era apenas constatar que, de maneira inconfessada, quais eu mesmo não fazia progressos trabalhando apenas com a técni- já trabalhamos desde agora com esses dois princípios. Mas talvez me ca unilateral da frustração; mas numa nova tentativa em que permitia falte ainda responder, nesta exposição, a certas objeções que, natural- maior relaxamento, tive que lutar por muito menos tempo contra as mente, tenho posto para mim próprio. Sem dúvida, serei obrigado a manifestações de resistências pessoais, até então intermináveis, o que negligenciar o fato de perturbar o conforto intelectual dos analistas ao permitia ao paciente e ao médico unirem suas forças de trabalho para elaborar, com menos choques, o que eu chamaria as "resistências ob- apresentar-lhes novos problemas. Para acalmar os espíritos, sublinharei, aliás, que a atitude de ob- jetivas" produzidas pelo material recalcado. Ao comparar a atitude inicialmente obstinada e fixa do paciente com a flexibilidade que re- servação, objetiva e reservada, do médico, tal como Freud a recomen- sultava do relaxamento, pode-se constatar nesses casos que o paciente da, continua sendo a mais segura e a única que se justifica no início vê a reserva severa e fria do analista como a continuação da luta infan- de uma análise, e que, em última instância, jamais se deve fazer inter- til contra a autoridade dos adultos, e que repete agora as reações ca- vir fatores afetivos mas somente a sábia reflexão na decisão de recor- racteriais e sintomáticas que estiveram na base de sua neurose propria- rer a tal ou qual medida apropriada. Os meus modestos esforços vi- mente dita. Até aqui, no que se refere ao fim do tratamento, eu era sam somente formular o que até agora se definia pela expressão pouco mais propenso a pensar que não se devia temer essas resistências do clara de "atmosfera Com efeito, não se pode negar que paciente, e até que se tinha o direito de provocá-las artificialmente; es- a fria objetividade do médico pode adotar formas que colocam o pa- perava, mais ou menos com razão, que se todos os caminhos da resis- ciente em confronto com dificuldades inúteis e evitáveis; devem existir tência se tornassem progressivamente impraticáveis, graças à compreen- meios de tornar perceptível ao paciente a nossa atitude amistosamente são analítica, o paciente seria finalmente posto contra a parede e, por- benevolente (freundlich wohlwollende) durante a análise, sem abando- tanto, levado a enveredar pelo único caminho que lhe continuava aber- nar por isso a análise do material transferencial nem, é claro, cair no to, o da cura. Dito isto, não se trata de negar que é impossível evitar erro daqueles que tratam o neurótico com uma severidade ou um amor o sofrimento ao neurótico em análise e, de um ponto de vista teórico, fingidos, e não de acordo com o modo analítico, ou seja, com uma é evidente que o paciente deve aprender, na análise, a suportar o sofri- total sinceridade. mento que acarretou o recalcamento. Pode-se apenas perguntar se, por vezes, não se inflige ao paciente mais sofrimento do que é absoluta- mente necessário. Eu escolheria a expressão "economia do sofrimen-62 OBRAS COMPLETAS PRINCÍPIO DE RELAXAMENTO E NEOCATARSE 63 to" para fazer compreender e ensinar, sem equívocos demais, assim ciações e das resistências, pelo jogo tão difícil de adivinhação com os espero, como trabalhar com o princípio de frustração e com o princí- elementos da psicologia do ego, inclusive por toda a metapsicologia, pio de laisser-faire. para chegar finalmente a essa boa e velha "amabilidade" (Freundlich- Todos sabem que nós, analistas, não temos o hábito de atribuir keit) para com o paciente, e à catarse que se acreditava morta e enter- muito valor científico aos resultados terapêuticos, no sentido de um rada há tanto tempo? Mas não precisei refletir por muito tempo para maior bem-estar do paciente. Temos o direito de falar de um verdadei- ficar inteiramente tranqüilizado a esse respeito. Há uma diferença imen- ro progresso em relação aos métodos de tratamento mais antigos so- sa entre esse desfecho catártico de uma longa psicanálise e essas erup- mente no caso deste método, além das melhoras, permitir uma melhor ções emocionais e mnêmicas, fragmentárias, de efeito apenas passa- apreensão do mecanismo do processo terapêutico. Ora, foi deveras sur- geiro, que eram as únicas que a catarse primitiva podia provocar. A preendente, num grande número de casos, observar como as melhoras catarse de que lhes falo é apenas, por assim dizer, como no caso de sobrevinham em conseqüência do emprego conjunto da terapia de re- muitos sonhos, uma confirmação oriunda do inconsciente, um sinal laxamento. Tanto com os histéricos quanto com os obsessivos, até mes- de que o nosso laborioso trabalho de construção analítica, a nossa téc- mo com as neuroses de caráter, as tentativas habituais de reconstrução nica da resistência e da transferência, lograram finalmente alcançar a do passado prosseguiam da maneira habitual. Mas, após ter-se conse- realidade etiológica. Portanto, a paleocatarse não tem muita coisa em guido criar uma atmosfera de confiança um pouco mais sólida entre comum com essa neocatarse. É inegável, entretanto, que uma vez mais médico e paciente, assim como o sentimento de uma total liberdade, um círculo se fecha. A psicanálise foi concebida, inicialmente, como sintomas histéricos corporais faziam bruscamente sua aparição, com uma medida de resposta catártica a choques traumáticos não liquida- freqüência pela primeira vez, numa análise de vários anos de duração; dos e a afetos imobilizados, depois voltou-se para o estudo aprofun- parestesias e cãibras nitidamente localizadas, movimentos de expres- dado de fantasias neuróticas e de seus diferentes mecanismos de defe- são violentos lembrando pequenas crises histéricas, variações bruscas sa. Em seguida, concentrou-se mais na exploração da relação afetiva do estado de consciência, ligeiras vertigens e mesmo perda da cons- pessoal entre o analista e o seu paciente, interessando-se mais durante ciência, seguida amiúde de amnésia retroativa. Alguns pacientes pedi- os dois primeiros decênios pelas manifestações das tendências pulsio- ram-me com insistência que lhes contasse como se tinham comportado nais e só mais tarde pelas reações do ego. Portanto, não há por que nesses estados. Não era difícil, em seguida, utilizar esses sintomas pa- assustar-se com o súbito aparecimento, na psicanálise moderna, de frag- ra fortalecer ainda mais as reconstruções realizadas até aí, de certo modo mentos de uma técnica e de uma teoria antigas; recordemos simples- a título de símbolos mnêmicos corporais, com a diferença, porém, de mente, nesta ocasião, que a psicanálise, até o presente, não deu um que o passado, desta vez reconstruído, aderia muito mais do que antes único passo, no decorrer de sua progressão, que tivesse sido necessário ao sentimento de realidade e de objetividade (Dinghaftigkeit), e, por- apagar como inútil, e que devemos estar sempre na expectativa de des- tanto, estava muito mais próximo, em sua natureza, de uma verdadei- cobrir novos filões de ouro nas galerias provisoriamente abandonadas. ra lembrança, ao passo que até então o paciente limitava-se a falar de possibilidades, no máximo de plausibilidade, e suspirava em vão por lembranças. Em certos casos, esses acessos histéricos assumiam as pro- IV porções de um verdadeiro estado de transe, no qual fragmentos do pas- sado eram revividos, e a pessoa do médico era então a única ponte en- O que lhes tenho agora a dizer é, de certo modo, a seqüência lógi- tre o paciente e a realidade; tornava-se possível fazer perguntas ao pa- ca do que acaba de ser dito. O material mnêmico descoberto ou con- ciente e obter informações importantes sobre partes dissociadas de sua firmado pela neocatarse voltou a dar grande importância ao fator trau- personalidade. Sem intenção da minha parte e sem nenhuma medida mático original na equação etiológica das neuroses. As medidas de pre- para ir nesse sentido, produziam-se então estados de exceção que se caução da histeria e as evitações dos obsessivos podem encontrar sua poderia mais ou menos qualificar de auto-hipnóticos e que, de bom explicação por formações fantasísticas puramente psíquicas: são sem- ou de mau grado, era lícito comparar às manifestações catárticas, se- pre perturbações e conflitos reais com o mundo exterior que são trau- gundo Breuer e Freud. Esse resultado, devo confessá-lo, começou por máticos e têm um efeito de choque, que dão o primeiro impulso à cria- me surpreender de forma desagradável, poderia até dizer que me des- ção de direções anormais de desenvolvimento; eles precedem sempre concertou. Valia a pena fazer esse imenso desvio pela análise das asso- a formação de potências psíquicas neurogênicas, por exemplo, as da64 OBRAS COMPLETAS PRINCÍPIO DE RELAXAMENTO E NEOCATARSE 65 consciência moral também. Por conseguinte, uma análise não poderia a forma de uma compensação alucinatória positiva imediata que dá ser considerada concluída, pelo menos teoricamente, se não se tiver con- a ilusão de prazer. Em todos os casos de amnésia neurótica, talvez tam- seguido alcançar o material mnêmico traumático. E, na medida em que bém na amnésia infantil corrente, poderia tratar-se de uma clivagem se encontra a confirmação dessa hipótese, que, como dissemos, baseia-se psicótica de parte da personalidade sob o efeito de um choque, mas na experiência fornecida pela terapia do "relaxamento", o valor heu- essa parte clivada sobrevive em segredo e esforça-se constantemente rístico da técnica assim modificada também aumenta de maneira sen- por manifestar-se, sem encontrar outra saída senão, por exemplo, os sível, no plano teórico. Após ter dado toda a atenção devida à ativida- sintomas neuróticos. Devo em parte essa hipótese às observações da de fantasística como fator patogênico, fui levado, nestes últimos tem- nossa colega Elisabeth Severn, que as comunicou pessoalmente. pos, a ocupar-me cada vez com maior freqüência do próprio trauma- Chega-se por vezes, como acaba de ser dito, a estabelecer um con- tismo patogênico. Verificou-se que o traumatismo é muito menos fre- tato direto com a parte recalcada da personalidade e a conduzi-la para qüentemente a conseqüência de uma hipersensibilidade constitucional o que eu chamaria uma conversão infantil. No relaxamento, os sinto- das crianças, que podem reagir de um modo neurótico até mesmo a mas histéricos corporais conduziram, às vezes a estágios do desenvol- doses de desprazer banais e inevitáveis, do que de um tratamento ver- vimento em que, não estando o órgão do pensamento completamente dadeiramente inadequado, até cruel. As fantasias histéricas não men- formado, só eram registradas as lembranças físicas. tem, elas nos contam como pais e adultos podem, de fato, ir muito Enfim, devo dizer que entre os fatores traumáticos, a par da amea- longe em sua paixão erótica pelas crianças; e por outro lado, são pro- ça de castração, tem uma importância muito maior o sentimento de pensos, se a criança se presta a esse jogo semi-inconsciente, a infligir angústia provocado pelo sangue menstrual, fato que C. D. Daly foi à criança totalmente inocente punições e ameaças graves, que a aba- o primeiro a sublinhar muito corretamente. lam e a perturbam, causam nela o efeito de um choque violento e são Mas por que infligir-lhes, nesta exposição essencialmente técnica, para ela inteiramente incompreensíveis. Hoje, estou de novo tentado uma extensa lista, mesmo incompleta, de argumentos teóricos semi- a atribuir, ao lado do complexo de Édipo das crianças, uma importân- elaborados? Por certo que não para que adiram a essas idéias, que, cia maior à tendência incestuosa dos adultos, recalcada e que assume para mim próprio, ainda não são inteiramente claras. Ficarei satisfeito a máscara da ternura. Por outro lado, não posso negar que o empenho se tiverem colhido a impressão de que levarmos na devida conta a trau- das crianças em responder ao erotismo genital manifesta-se de manei- matogênese, por tanto tempo negligenciada, poderia mostrar-se uma ra muito mais intensa e muito mais precoce do que costumávamos pen- decisão fecunda não só no plano terapêutico è prático, mas também sar até agora. Nas crianças, uma boa parte das perversões talvez não no teórico. implique uma simples fixação numa etapa anterior mas já a regressão a uma etapa que se origina num estágio genital precoce. Em certos ca- traumatizantes, o castigo atinge a criança no próprio momento de V uma atividade erótica e corre o risco de ocasionar um distúrbio dura- douro do que Reich chama a "potência Mas a criança sen- Ao discutir com Anna Freud algumas das minhas medidas técni- te o mesmo susto se suas sensações genitais foram prematuramente for- cas, ela fez o seguinte comentário pertinente: "Você trata os seus pa- çadas, pois que a criança deseja, de fato, mesmo no que diz respeito cientes como eu trato as crianças nas minhas análises infantis." Tive às coisas sexuais, é somente o jogo e a ternura, e não a manifestação que lhe dar razão, recordando-me de que na minha última publicação, violenta da paixão. um pequeno artigo sobre a psicologia das crianças "não Entretanto, verificou-se que a observação dos tratamentos com de- que recorrem mais tarde à análise, preconizei uma espécie de acolhi- senvolvimento neocatártico dava ainda, sob outros aspectos, matéria mento caloroso em preparação da análise propriamente dita das resis- para reflexão. Permitia fazer uma idéia do processo psíquico em curso tências. As medidas de relaxamento que acabo de propor apagam ain- durante o recalcamento traumático primário e entrever a própria na- da mais, por certo, a diferença, excessivamente acentuada até hoje, entre tureza do recalcamento. Parece que a primeira reação a um choque análise de crianças e análise de adultos. Ao aproximar esses dois mo- é sempre uma psicose passageira, ou seja, uma ruptura com a realida- de, por um lado sob a forma de alucinação negativa (perda de cons- ciência ou desmaio histérico, vertigem), por outro, com freqüência, sob 4. Ver, neste volume, "A criança mal acolhida e sua pulsão de morte".66 OBRAS COMPLETAS PRINCÍPIO DE RELAXAMENTO E NEOCATARSE 67 dos de tratamento, fui influenciado, sem dúvida, pelo meu encontro explosões emocionais de natureza histérica, passou a lembrar-se dos com Groddeck, o corajoso precursor da psicanálise dos distúrbios or- choques psíquicos que sofrera em sua infância. A semelhança entre a gânicos, a quem me dirigira por causa de uma doença orgânica. Apro- situação analítica e a situação infantil incita mais, portanto, à repeti- vei-o quando quis encorajar seus pacientes a darem provas de uma in- ção; contraste entre as duas favorece a rememoração. genuidade infantil, e pude constatar os resultados assim obtidos. Por Estou consciente, naturalmente, de que essa dupla atitude de frus- minha parte, permaneci fiel à aplicação, a par do procedimento grod- tração e de laisser-faire impõe ao próprio analista um controle mais deckiano, da técnica clássica da frustração na análise, e procurei al- rigoroso de sua contra-transferência e de sua contra-resistência. Pul- cançar o meu objetivo servindo-me com tato e compreensão das duas sões mal controladas fazem com que mesmo educadores e pais sérios técnicas. sejam freqüentemente levados a cometer excessos em um ou outro sen- Gostaria de fornecer agora uma resposta tranqüilizadora às obje- tido. Nada é mais fácil do que, a coberto das exigências da frustração, ções que serão provavelmente levantadas contra essa tática. Que moti- usar os pacientes ou as crianças para dar largas à satisfação de nossas vos poderiam levar o paciente a desinteressar-se da análise a fim de próprias tendências sádicas inconfessadas; por outro lado, formas e voltar-se para a dura realidade da vida, se ele pode desfrutar junto do quantidades excessivas de ternura para com os pacientes e as crianças analista uma liberdade infantilmente irresponsável, de uma forma que podem servir mais às próprias tendências libidinais, talvez inconscien- por certo lhe é recusada na realidade? Responderei que no relaxamen- tes, do que a promover o bem-estar daqueles de quem nos ocupamos. to analítico, assim como na análise de crianças, cuida-se de que as ár- Essas condições novas e difíceis fornecem um argumento ainda mais vores não cresçam até o céu. Mesmo em relaxamento analítico, por decisivo para o que exprimi com freqüência e insistência, a saber, a mais puxado que seja, não será admitida a satisfação de desejos ativa- necessidade para o psicanalista de uma análise profunda que lhe per- mente agressivos nem de desejos sexuais, assim como muitas outras mita controlar suas próprias particularidades de caráter. exigências excessivas: o que fornece ao paciente numerosas ocasiões Posso imaginar casos de neurose (que, diga-se de passagem, te- para aprender a renúncia e a adaptação. A nossa atitude amistosa e nho encontrado amiúde) em que, talvez em resultado de choques in- benevolente pode, sem dúvida, satisfazer a parte infantil da personali- fantis de efeito particularmente intenso, a maior parte da personalida- dade, a parte faminta de ternura, mas não a que logrou escapar às ini- de converte-se como num teratoma, ao passo que todo o trabalho de bições do desenvolvimento e tornar-se adulta. Pois nada tem de licen- adaptação real é assumido por uma parcela que foi poupada. Para es- ça poética comparar o psiquismo do neurótico a uma dupla malfor- sas pessoas que, mesmo na realidade, mantiveram-se quase inteiramente mação, uma espécie de teratoma, poderíamos dizer: uma parte do cor- infantis, não seriam suficientes os auxiliares habituais do tratamento po, escondida, alberga as parcelas de um gêmeo cujo desenvolvimento psicanalítico. Do que esses neuróticos precisam é de ser verdadeiramente foi inibido. Nenhum homem sensato hesitaria em submeter tal terato- adotados e de que se os deixe pela primeira vez saborear as bem- ma ao bisturi do cirurgião se a existência da pessoa inteira estivesse aventuranças de uma infância normal. Não me parece excluído que o ameaçada. tratamento analítico em clínica, tal como é preconizado por Simmel, Constatei igualmente que o ódio recalcado constituía um meio de possa ser desenvolvido nesse sentido. fixação e de colagem mais poderoso do que a ternura abertamente re- Se fosse comprovada a exatidão de uma parte da técnica do rela- conhecida. Foi o que pôde exprimir com grande clareza uma paciente xamento e da experiência neocatártica aqui proposta, isso nos permiti- de quem consegui conquistar a confiança ao final de quase dois anos ria, sem dúvida, ampliar sensivelmente as nossas perspectivas teóricas de duro combate contra a resistência, utilizando uma técnica flexível. e o campo de ação da nossa prática. À força de trabalho laborioso, "Agora que o amo, posso renunciar a foi a sua primeira decla- a psicanálise moderna consegue restabelecer a harmonia destruída e cor- ração espontânea depois do aparecimento de uma atitude afetiva posi- rigir a distribuição anormal da energia entre as forças intrapsíquicas, tiva a meu respeito. Creio ter sido no decorrer da análise dessa mesma melhorando assim de forma notável as capacidades e a eficácia do pa- paciente que pude observar a capacidade do relaxamento para trans- ciente. Mas as forças intrapsíquicas apenas representam o conflito que formar a tendência à repetição em rememoração. Enquanto ela me iden- se desenrolou na origem entre indivíduo e o mundo externo. Após tificava com seus pais de coração duro, a paciente repetia constante- ter reconstruído a história do desenvolvimento do id, do ego e do su- mente suas reações de desafio; mas, quando deixei de fornecer-lhe a perego, muitos pacientes também repetem, na experiência neocatárti- ocasião, começou a distinguir o presente do passado e, após algumas ca, o combate original com a realidade, e a transformação desta últi-68 OBRAS COMPLETAS ma repetição em rememoração poderia fornecer uma base ainda mais sólida para a existência posterior. O paciente vê-se, de certo modo, co- locado na situação daquele dramaturgo que, sob a pressão da opinião pública, é obrigado a transformar a tragédia que projetava num dra- ma com happy end. Permitam-me concluir com esta nota otimista, e agradecer-lhes de todo o coração pela atenção que dispensaram à mi- nha exposição.